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português Pages 291
Michel Onfray
A POLÍTICA DO REBELDE Tratado de resistência e insubmissão
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I
"Para mim é tão odioso seguir quanto guiar." Nietzsche, A gaia ciência
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO FISIOLOGIA DO CORPO POLÍTICO...........................................
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PRIMEIRA PARTE: DO REAL Em defesa da espécie humana • 29 1. DA GÊNESE PARA PREENCHER DE MEMÓRIA O BURACO NEGRO
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O suicídio de um justo. Buraco negro e memória. Além de Adorno. Conservar e ultrapassar o nazismo. Contrateologia negativa e teodicéia de um Deus ruim. Pensar a política em outra parte. Descristianizar. Odisséia da consciência rebelde. Essência da espécie humana e artifício ideológico. O corpo como verdade. Fisiologia e ontologia: genealogia do indivíduo. Sinal de irredutibilidade metafísica. Morte do homem, nascimento do indivíduo. O sujeito, exacerbado nos campos de concentração. Contra a pessoa, ficção de representação. Além do juridismo, do humanismo e do personalismo: o individualismo. Do solipsismo. A veia do corpo. Da metafísica à política Dissemelhança e circulações libertárias. Campo e mundo do trabalho. Ontologia do pobre, do proletário, do deportado. Ética da desobrigação. Por um hedonismo vitalista. Nominalismo jurídico. Um novo direito natural. Viver e sobreviver universalizados. Capitalismo, corpos esquecidos, almas negligenciadas. Falências escolares, culturais, midiáticas. De novas Luzes. Incomodar a tolice. Fascismo francês.
2. DA INDIGÊNCIA CARTOGRAFIA
INFERNAL DA MISÉRIA
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Do Leviatã. Misérias limpas e sujas. Uma política hedonista. A miséria encarna-
A POLÍTICA
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DO REBELDE
da. Primeiro círculo: os malditos. Dejetos do corpo social. Corpo nômade. Claudicação do pé esquerdo. Inversão do trajeto de hominização. Privação da vida privada. Condições pré-históricas. A colheita transfigurada. Novas caças. Espaço esquadrinhado. Crise estrutural e não conjuntural. Condenações vividas. Segundo círculo: os reprovados. Sintomas e patologia do corpo social. Regaço e fossa. Corpo improdutivo. A razão inadequada. Saúde abatida. Corpo individual e modelo do corpo social. O idoso, o louco, o doente, o delinqüente. Forças improdutivas. Subúrbios, imigração. Auxílio para retomo ao mercado de trabalho. Empobrecimento. Maldições do trabalho. Repartir de outra maneira. Terceiro círculo: os explorados. Retórica dos direitos e dos deveres. Dominação, servidão. Forças laboriosas sedentárias. A ciência dos escravos. Escolares, prostitutas e proletários. No umbigo dos limbos. A escravidão contemporânea.
SEGUNDA PARTE: DO IDEAL
o gênio
colérico da revolução • 89 1. DA ECONOMIA
o REENCANTAMENTO
DO MUNDO.
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Niilistas e utopistas. Pensar à esquerda. Contra o coletivismo. A barreira guarnecida de obstáculos. Modos de produção alternativos. Uma revolução copemicana: a economia a serviço dos homens. Contra a religião da economia. A síndrome de Hecaton, Primazia da mercadoria sobre o homem. Economia isolada e alquimia canibal. Gastos suntuosos. Lógica dos capitais flutuantes. Religião do capital. Miséria dos homens, santidade do dinheiro. A revolução cibernética. Prostituição e capital. Luta das consciências opostas de si. Diferenças e desigualdades. A arte de dispensar os lugares. O desejo mimético. Do escravo. Metafísica do capitalismo. Ciência do lúgubre e metafísica da necessidade. Advento do economismo e esterilização do catolicismo. Os usos do cartesianismo. Dos fisiocratas. Mão invisível e harmonia preestabelecida. O teísmo econômico. Os usos do darwinismo. Patrologia e escolástica do economismo. Europa liberal e teoria da necessidade. Um voluntarismo libertário. Economia generalizada e nietzschismo. Do sistema das antinomias políticas. Valor, maquinismo, divisão do trabalho, concorrência, impostos, crédito, propriedade imobiliária. Metamorfoses do trabalho e economia da libido. A economia submetida ao político. Dionisismo político contra ideal ascético economista. Política dos corpos liberados.
2. DOS PRINCÍPIOS POR UMA MÍSTICA DE ESQUERDA
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SUMÁRIO
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Mística imanente. Ateísmo político e economia. Busca de uma energia. Elogio da divisão direita-esquerda. A cólera irrefragável e o ideal hedonista. Etimologia e semântica. Vontade libertâria do espírito das trevas, porém livre. Pela utopia real, em potência. Ética de convicção. Descristianizar, atacar o ideal ascético, laicizar. Genealogia da esquerda. Teoria laica do poder e teoria do poder laico. Princípio do prazer e vontade contra princípio de realidade e necessidade. A laicidade integral: celebrar o diverso. O princípio do mosaico. A igualdade contra a uniformidade. Advento da democracia e do cidadão. O princípio da unidimensionalidade. O anjo da revolução. A primeira bandeira negra. A fraternidade. Advento do socialismo e do trabalhador. A força, a ação, a técnica. O socialismo francês. A propriedade. Esquerda e capitalismo. O gênio colérico da revolução. A liberdade. Advento do indivíduo. Princípio de Antígona. Maio de 68, genealogia do indivíduo teórico. O tributo situacionista. Desejo libertârio e economia da libido. Fim dos argumentos de autoridade. A atração apaixonada. Capitalismo, liberalismo, consumismo. Consumar Maio de 68. Elogio do Pensamento de 68. Do nietzschismo de esquerda.
TERCEIRA PARTE: DOS MEIOS
o devir revolucionário
dos indivíduos • 149
1. DO INDIVÍDUO ALÉM DO ROSTO DE AREIA...................................................
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O triângulo negro do nietzschismo de esquerda francês. Nascimento e morte do homem. Maio de 68, novas referências. Formas e promessas do movimento. Os antigos e os modernos. Política dionisíaca e administração apolínea. Fim do humanismo clássico. Direitos do homem e legitimação de fato. Humanismo e caridade contra justiça e eqüidade. Do lado do sobre-humano. Após Deus e o homem: o indivíduo soberano. Uma filosofia do corpo irnanente. A raiz da sujeição. A figura do homem: alma, consciência e liberdade. O humanismo contra os homens. Novas intersubjetividades libertârias contra Família e Trabalho . . Ludismo e corpo novo. Sexualidade nômade e lazer generalizado. A droga. Fazer gozar. O sobre-humanismo libertário. Além do anarquismo antigo, a linhagem artista. Uma nova filosofia libertâria. O bode expiatório estático e o poder polimorfo. Nem monoteísta, nem localizável, nem fixo, nem ideal, nem essencial. A eletrificação intersubjetiva. Microfísica do poder. Dobra de Deus, desdobramento do homem, sobrepeliz do indivíduo. Do local ao global. Metamorfoses do capitalismo. O modelo do homem calculável. Cumplicidade do humanismo e dos direitos do homem. Filosofia oficial e filosofia radical. Do homem ao indivíduo desobrigado. Teoria do indivíduo soberano. Gozo mútuo. Sociedade de controle e microfascismos. Novos regimes de dominação.
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A POLÍTICA
DO REBELDE
2. DO PODER DA ESCULTURA POLÍTICA DE SI..
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A lição de Maio. Impasses e sucessos. Tom libertário e poder generalizado. Lógica agônica. Poder de Estado, estado do poder. O exercício libertário contemporâneo. Além da fetichização do Estado, a resistência libertária. Contra o poder de sujeição. A casta dos govemantes. Revolução molecular e devir revolucionário dos indivíduos. Contra o milenarismo, o instantaneísmo. A oligarquia dos eleitos e o ódio dos celibatários. Retrato do libertário. As funções contra os indivíduos. Maldição dos submissos perpétuos. O ressentimento. Prazer de exercer e submeter. O medo da liberdade. Liberdade desejável, liberdade indesejável. Liberdade liberal, liberdade libertária. Desejo mimético, gregarismo. Alienação, morte do indivíduo, nascimento do sujeito. Da resistência e da insubmissão. Do Condottiere, mais uma vez. Da energia ao celibato. Cinismo e dandismo, libertinagem e romantismo. Estratégia, tática e mecânica. Diplomata e exote. O temperamento resistente. Insolência e desenvoltura, saber contra poder, ironia contra seriedade. Paixão cínica e poder dos príncipes. Vontade aristocrática e dandismo revolucionário. A preocupação do sublime. Contra o populismo. Multidões nacionais e planetárias. Dandismo contra poder das massas. A euforia constante. Libertino e política do corpo. Contrato hedonista e vontade de prazer. Procissão, capilaridade e ação do poder. Anticlericalismo ateu e sabedoria trágica. O envolvimento romântico e a impossível tarefa. Solar, solitário e rebelde. Sublime e reencantamento do mundo.
QUARTA PARTE: DAS FORÇAS Celebração do gás lacrimogêneo • 207 1. DA ARTE POR UMA ESTÉTICA GENERALIZADA
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Potência da arte. A estética que quer a vida. A arte, antídoto do poder. Contra a metáfora da política estética. O Estado como obra de arte? Artesãos de política e artistas. O modelo religioso da Igreja. Estetização da política e politização da arte. A hipótese do nacional-estetismo e seu suporte: o mito. Mito e razão. Um outro uso da razão. Da necessidade do mito em política. A greve geral. Nazismo e politização da arte. Modelo biológico contra modelo estético. A metáfora cinematográfica virtual. Por uma estética generalizada. Uma arte sem museu. Genealogia desta energia. O arquipélago dos galhofeiros. Ludismo e modemidade. Além do mercado e da recuperação da arte. Por uma arte de resistência.
SUMÁRIO
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Crítica da exposição e do museu. O vitalismo dispendioso. Contra o elitismo e o populismo, um gramscismo cultural. Esquecimento, superação e ódio da cultura. Cultura e potência de fogo libertário. Opção crítica e desmontagem do sistema. Opção pragmática e formulação de uma alternativa. A existência de uma cultura crítica. O poder do saber. Fascismo ordinário e guerra cultural. Violência liberal e força libertária. Mito, práxis e ação. Microfascismo e romantismo revolucionário. Sindicalismo revolucionário e cultura do eu. O uso das mídias. Do sublime na política.
2. DA AÇÃO 236
UMA DINÂMICA DAS FORÇAS SUBLIMES
Teoria das barricadas. Luta das classes e entrecruzamento dos círculos sociais. Servidão e dominação. O dualismo político. Dinâmica, força, inércia e irradiação. A dissociação de idéias: liberdade e lei, autonomia e direito, soberania individual e contrato social, particular e universal. Diluição dos conflitos. Razão de Estado. Mitridatização do pensamento crítico. Leitura de Sorel. Desconstruir Marx à esquerda. O mal-entendido da violência. Força contra violência. As formas da violência: insubmissão, rebelião, resistência, insurreição. As duas vertentes da barricada. Pessimismo histórico e sociedade aberta. Contra o marxismo e o reformismo. Mística da ação e carreirismo político. Grande e pequena política. O teatro parlamentar. A perversão eleitoreira. Virtudes domésticas do eleito. Impossibilidade de reformar o sistema parlamentar. Grande política, mito do sublime e heroísmo. Crítica do sangue: nem Terror, nem propaganda realmente, nem retomada individual. Do sindicalismo revolucionário. Elogio da coordenação. O poder sindical. O individualismo altruísta. A ação coletiva. Desobediência civil e revolução passiva. A resolução de não mais servir. Impotência e limites da força de inércia. Objeção de consciência e não-violência. Associação das forças. Da greve à destruição do aparelho de produção. Obstrucionismo, go canny e sabotagem: agir sobre o tempo de trabalho. Etiqueta, boicote, associação de consumidores, imobilização dos instrumentos: agir sobre a quantidade de trabalho. Satumais políticas e fogos enfurecidos.
CONCLUSÃO r
Quarenta e três camélias para Blanqui
• 263
ANEXO À guisa de convite para prosseguir
• 277
INTRODUÇÃO Fisiologia do corpo político
Eu conheço minha fibra anarquista desde os meus tenros anos, indistintamente, de modo confuso e desordenado, sem que eu tenha podido colocar um nome nessa sensibilidade proveniente das vísceras e da alma. Desde o orfanato salesiano, para onde fui mandado pelos meus pais quando tinha dez anos, desde a primeira mão levantada contra mim, desde os primeiros vexames infligidos pelos padres, desde as humilhações contemporâneas de minha infância, mais tarde, na fábrica onde trabalhei por algumas semanas, depois na escola e no quartel, eu encontrei a revolta, conheci a insubmissão. A autoridade me é insuportável; a dependência, intolerável; a submissão, impossível. As ordens, as chamadas, os conselhos, as solicitações, as exigências, as proposições, as orientações, as injunções me infeccionam, me apertam a garganta, me contraem o ventre. Diante de qualquer comando, sinto-me na pele da criança que fui, devastado por dever retomar a estrada do pensionato a cada quinze dias, que se tomaram a medida de meus encarceramentos e de minhas liberações. Quase trinta anos após meu ingresso nesse pensionato, eu constato minha pele arrepiada, minha vontade escorada e minha violência subjacente, assim que aparecem veleidades de açambarcamento da minha liberdade. Só podem me suportar e viver bem perto de mim aqueles que aceitam essa carne ferida, essa chaga ainda em carne viva e essa incapacidade visceral de suportar qualquer autoridade. É possível obter aquilo que se quer de mim sem pedir, e nada, assim que aparece aquilo que pode representar a expressão de uma força que me colocaria em perigo ou agrediria minha liberdade.
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A POLÍTICA
DO REBELDE
Foi só tardiamente, quando estava com uns dezessete anos, que descobri a existência de um arquipélago de rebeldes e irredutíveis, um continente de resistentes e insubmissos que são chamados de anarquistas. Stimer foi viático para mim, Bakunin um relâmpago irrompendo minha adolescência. Depois de minha abordagem nessas terras libertárias, não parei de me perguntar como, hoje em dia, alguém podia merecer o epíteto de anarquista. Longe das opções datadas do século passado ou das demarcações daquilo que depende ainda do cristianismo dentro do pensamento anarquista dos grandes ancestrais, eu freqüentemente me interroguei sobre o que seria, neste fim de milênio, uma filosofia libertária levando em consideração duas guerras mundiais, o holocausto de milhões de judeus, os campos de concentração do marxismo-leninismo, as metamorfoses do capitalismo entre o liberalismo desgrenhado dos anos 70 e a globalização dos anos 90 e, principalmente, o pós-Maio de 68. Antes de chegar a essas zonas contemporâneas, eu gostaria de expor a hipótese de informações que atormentam primeiramente as vísceras, o corpo, a carne. Eu desejaria voltar às sabedorias que atingem em primeiro lugar um tecido, uma estrutura, um sistema nervoso. Gostaria de reencontrar a época na qual se inscrevem nas rugas da alma as experiências geradoras de uma sensibilidade da qual nunca nos afastamos, não importa o que aconteça depois. Meu propósito é uma fisiologia do corpo político. Eu sustento que, para mim, o hedonismo está para a moral assim como o anarquismo está para a política: uma opção vital, exigida por um corpo que se recorda. Este décimo segundo livro completa os precedentes que convidam a todos a uma filosofia do corpo reconciliado consigo mesmo, soberano, livre, independente, autônomo, contente de ser ele próprio, em vez de sofrer dentro da armadilha do ideal ascético. Eu não imagino uma filosofia sem o romance autobiográfico que a toma possível. Tudo começa com o corpo de uma criança apavorada pela fábrica da aldeia que sopra vapores e fumaças pelas ventas,
INTRODUÇÃO
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qual um animal monstruoso e fabuloso. Seu ventre fervilha de barulhos surdos e regulares, longos e lentos, obscuros e inquietantes: motores, foles, máquinas mágicas, ferros estriados, estrondos de aço, palpitações de engrenagens e longos jatos de brumas deslavadas ou saturadas de odores repugnantes. Assim me parece a queijaria da aldeia, nas ruas onde treino meus primeiros passos. A fábrica lança para fora neblinas ameaçadoras para a criança que sou. Vou freqüentemente da casa de meus pais até as fronteiras desse animal furioso para encher a tina de leite e voltar sentindo na palma da mão o peso e a superfície abaulada do cabo de madeira com a tinta vermelha descascando. O líquido pesa e puxa meu braço. Eu me lembro da diferença entre a ida leve com um recipiente vazio que oscila na minha mão e que faço ressoar batendo-o de vez em quando contra os muros, e a volta com um conteúdo que transbordará se não tomar cuidado com a estabilidade do conjunto. Então o leite escorre em filamentos cremosos ao longo do alumínio, na verdade, ao longo das minhas pernas nuas, no verão. Quem então me ensinou essa magia da força centrífuga com a qual podia-se, fazendo girar intensamente em volta do eixo do ombro o recipiente na extremidade do braço, realizar uma rotação integral sem que sequer uma única gota de leite caísse no chão? A resposta me ocorre hoje, escrevendo: um cúmplice da escola primária morto há pouco tempo de um câncer generalizado. Desses sons abafados do alumínio batendo ao longo do muro a esse sopro, esse assobio de ar após os movimentos que, mais tarde, eu experimentei com o incensório na sacristia nos dias de missa, me parece que eu descobria o mundo, em pedaços, por fragmentos. Eu ia então, de dois em dois dias, buscar esse leite dado pelo dono da fábrica a seus operários. Meu pai trabalhava na sua fazenda, minha mãe fazia o trabalho doméstico na sua propriedade, como se dizia. Eu caminhava ao longo do animal e, às vezes, penetrava na fumaça que saía pelas ventilações abertas nas janelas escondidas por espessas vidraças que separavam as entranhas da pele da aldeia. Avançando pelas neblinas magníficas, o conquistador das regiões saturadas pelos fogs
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A POLÍTICA
DO REBELDE
fabris, eu entrava naquele mundo como se adentra as grutas sombrias, as cavidades misteriosas onde se espera dar de cara com um animal pré-histórico. Eu não sabia então que me encontraria diante de um dragão cujo ódio, desde aquela época, conservei em mim. Lá fora, no frio dos invernos ou sob a luz dos verões, eu reencontrava aquele vapor como um sinal de proximidade com o Leviatã. Do interior, chegavam a mim ruídos surdos, secos, frios, nítidos, uivos compostos ao metrônomo, gemidos mecânicos e fúrias atormentadas por um vento mau. Por muito tempo, dessa baleia branca eu só conheci os lábios, a goela, ignorando tudo sobre seu ventre. Ao seu redor, como pescadores partindo atrás dos cardumes, não muito afastados dos continentes hiperbóreos, os leiteiros partiam à noite, como os marujos de Terra Nova embarcando para mundos longínquos: os caminhões afastavam-se da fábrica em teorias, em procissões. Acordado por eles e seus movimentos noturnos semelhantes aos dos cameleiros mergulhando no deserto, eu ouvia primeiro as vasilhas se entrechocando ao se aproximarem da parada, próxima do cruzamento. Em seguida, balançando novamente ao arrancarem, antes de se dispersarem pelos quatro pontos cardeais. Aos meus olhos de criança, meu tio era um desses guerreiros da leiteria, uma espécie de cavaleiro que acordava com as auroras, quando a aldeia ainda dormia. No fim dos caminhos traçados pelos verdes campos então ameaçadores, ainda dentro da noite, eles carregavam as vasilhas para os caminhões e desciam as outras, que os camponeses encontrariam vazias quando acordassem. Esse nora permitia alimentar a fera que ficara na aldeia. De volta bem cedo à fábrica, os leiteiros traziam quantidades de leite e eu via então o ventre do animal encher até a borda, no limite do vômito. Eu imaginava o transbordamento do líquido gorduroso e branco sobre as vasilhas, as cubas, recipientes e gigantescas panelas de aço que rivalizavam em monstruosidade com a majestade do torreão medieval que domina a aldeia. Depois a invasão das ruas, das casas, dos comércios, da minha escola, da padaria onde eu ia buscar o pão na claridade vacilante do alvorecer.
INTRODUÇÃO
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Chiados, lamentos contidos, ruídos sufocados, bramidos modulados em longas frases, roncos de motores e ventilações, a fábrica me era proibida sob pena de lá descobrir um universo povoado de monstros, de fúrias, de horror e de condenados; eu era somente autorizado a aceder ao que chamavam de cais, desembarcadouro de numerosas vasilhas. Eu penetrava no ar cada vez mais saturado pelo barulho, o vapor e a atividade laboriosa, subia uma pequena escada de ferro, sempre brilhante, sempre escorregadia, para alcançar um local onde a luz se projetava densa, proveniente de um buraco feito no teto. A plataforma era invadida por uma serpente feita de ferro e aço, de correntes e óleo, sobre a qual as vasilhas avançavam regularmente, da traseira do caminhão onde eram descarregadas até as cubas onde espumava o leite derramado, antes de ser devorado pela fábrica. Ali, ou eu me servia, inábil, desajeitado, ou enchiam para mim o recipiente. Às vezes, um adulto peludo, sempre o mesmo, mergulhava seu vaso medidor dentro do leite e despejava o conteúdo dentro da minha vasilha; de vez em quando, algumas gotas escorriam pelos seus antebraços e a mistura de pêlos escuros e filetes esbranquiçados me causava nojo. Duas palavras, me lançava ele, e eu partia, o braço fazendo lastro, deixando para trás a fábrica ameaçadora para retomar à aldeia. O limite era perceptível à altura do abrigo para as bicicletas onde, sob as telhas, elas ficavam presas como carcaças sanguinolentas aos ganchos de açougueiro, aguardando o final do dia de trabalho, quando os operários viriam despendurar suas vítimas exangues. O pátio era atravessado por corpos em movimento como sobre um palco de teatro: uns, eretos, duros, limpos, dignos, vestidos com roupas da cidade; outros, mais arqueados, mais curvados, mais sujos, mais abatidos, em seus uniformes azuis ou macacões; alguns, finalmente, contraídos, retorcidos, esmagados por um peso cuja origem eu ignorava, assombravam o espaço e seguiam como fantasmas foragidos de alguma vala sombria. Ali se cruzavam as pessoas dos escritórios e da contabilidade, as da manutenção e da mecânica, as da produção e dos trabalhos mais árduos. Minha infância convivia com esses
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A POLÍTICA
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movimentos de turba, já embebida da revolta que faz com que hoje minha irredutibilidade seja visceral. Os camponeses iam e vinham também, conduzindo tratores aos solavancos, barulhentos e fumegantes. Atrás deles, rebocavam tonéis metálicos atrelados dentro dos quais eles despejavam o soro do leite com o qual haviam feito a manteiga. Esse soro, claro, ligeiramente esverdeado, transbordava ao sabor dos solavancos sobre o pátio. Rastros líquidos se desenhavam no chão, mágicas e misteriosas cartografias, imundamente perfumadas de um odor ácido e picante. Criança, eu saltava por sobre essas poças deixando para trás o animal e suas vomições para reencontrar, aos poucos, nas dimensões de meus passos, a rua que descia até a aldeia. O lugarejo fora construído em tomo dessa fábrica: quinhentos habitantes, cento e vinte empregados. Todos tinham trabalhado, trabalhavam ou trabalhariam lá. Os comerciantes, a escola, o conselho municipal, os artesãos, o médico, os bares, o farmacêutico, o peixeiro, todos tiravam dessa empresa o essencial de sua substância e de sua subsistência. O dono da fábrica vivia como um dândi, grande senhor malvado, belo, elegante, amante dos automóveis possantes e das mulheres, como se amam os cavalos, dos temos de corte refinado e dos sapatos italianos feitos sob medida. E também dos perfumes inebriantes. Seu nome era o mesmo dos queijos e da queijaria mas, dentro da fábrica, o chamavam pelo seu primeiro nome: senhor Paul. Meus pais lhe deviam seu emprego e meu pai alguma gratidão, especialmente porque ele tinha emprestado um automóvel para conduzir minha avó ao hospital, quando ela estava à beira da morte. Ele era amado como, naquela época, o patemalismo tomava possível essa espécie de amor. Ele possuía tudo, desde o ventre das mulheres que escolhia até as casas que colecionava na aldeia. Eu recebi minha primeira convocação de trabalho no dia do aniversário do meu pai, quando eu tinha dezesseis anos. Eu acabara de passar para uma faculdade de letras onde estudaria
INTRODUÇÃO
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francês e aguardava o reinício do período escolar 1975-76. Seria meu primeiro contato com o ventre do animal, o interior da máquina. Houve um outro, dois anos mais tarde, em 1977, quando fazia um curso livre de filosofia que me conduziu aos meus dezoito anos e ao vazio que se abria diante de mim. Eu queria ser condutor de trem na SNCF, que me recusou, e tentava adiar o máximo possível a data de minha incorporação ao exército ... Eu então penetrei nas entranhas da fera no dia 1 de julho de 1975, às sete horas da manhã. Se o colégio interno não tivesse destroçado a criança que havia em mim para me lançar no mundo brutal dos adultos a partir dos dez anos, eu teria me tornado velho naquele dia, naquela hora. Não esqueci o que eu aprendi depois dessa data e nunca me descuidei disso desde então, quaisquer que fossem meus trajetos, quaisquer que tenham sido os locais por onde arrastei minha curiosidade e meu desejo inextinguível de experiências. As portas flexíveis e isolantes em plástico listrado arranhado pelos atritos das idas e vindas se abriram para mim naquela manhã. Eu deixei o que restava da minha infância no seu limiar e tornei-me definitivamente adulto ultrapassando aquela barreira iniciática. Vi então a mucosa que revestia o ventre do animal, seus pulmões queimados e sujos, seu sistema digestivo onde se fomentavam as exalações e as putrefações de seu hálito, observei a carcaça da qual era feito, as paredes úmidas, encharcadas de urna transpiração tépida e viscosa, as lajes escorregadias e recobertas de uma película gordurosa, as idas e vindas das diversas paletas e carrinhos de mão transportando alimentos, matéria a transformar, a digerir, a regurgitar, a tornar sólida, líquida, a metamorfosear em massa, em fatias de manteiga e lavas de creme espesso e desbotado, em Camemberts. No interior, eu descobri finalmente o que fazia o epicentro da fábrica, imaginado durante anos e decriptado de uma só vez. E depois, vi homens e mulheres, poucos homens, essencialmente mulheres. Os primeiros trabalhavam do lado de fora, sobre o cais, no descarregamento, conduzindo caminhões, cuidando da manutenção; as últimas em contato com os líquidos, 0
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com as matérias de parto, em gestação, em perpétuas transformações, perto das leveduras, das bactérias, das proliferações de fungos, dos escoamentos e tremores de massas coalhadas. Eu fui designado à salgadura, na companhia de um velho operário que tinha trabalhado nos abatedouros e que me contava sobre o sangue ardente bebido da carótida dos touros abatidos ou os fígados retalhados com a força dos dentes numa espécie de concurso com seus companheiros de trabalho. Ele me 'contou também sobre a Legião Estrangeira e seu alistamento no exército. Nós dois trabalhávamos na conservação dos queijos em salmoura. Ele, com um cadernal, imergia um acoplamento de cestinhos de aço cheios de queijos frescos em imensas bacias de água salgada entalhadas dentro da terra; eu recuperava o conjunto escoando a salmoura, com a tarefa de retirar com a mão os queijos e dispô-Ios de forma que não se tocassem no momento da irrigação bacteriana. Botas nos pés, um boné na cabeça, vestido de branco com roupas que nunca foram do meu tamanho, eu cumpria o melhor possível minha tarefa. Erros no posicionamento ou no encaixe das cestinhas podiam induzir o desabamento de todo o conjunto. E então, várias dezenas de queijos caíam rolando pelo chão. O que não deixava de acionar ou o riso, ou a cólera inominável do comedor de fígado cru. A entrada no secadouro e, depois, o local de salgadura me davam náusea e vontade de vomitar. Após o odor de metal enferrujado dos vestiários, onde nos despíamos de nossos trajes civis e colocávamos nossas roupas de trabalho, era preciso suportar as emanações de vinhos ruins, de cidras deterioradas ou de salsichas que extravasavam dos sacos de papel contendo os lanches matinais. Enfim, a jornada de trabalho transcorria dentro dos tecidos saturados de suor, lágrimas, soro, coalho, salmoura e até mesmo mucos presos às paredes que grudavam sobre os corpos assim que eram tocados ligeiramente. Os odores de transpiração se misturavam ao soro que molhava os cabelos e escorria pelo rosto. Nas extremidades da boca, sobre os lábios, encontrava-se às vezes uma mistura de sabores de sal, que eu me perguntava o que tinham de lágrimas de cólera, de imundícies salmouradas, de vestígios sudoríparos.
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o COrpOtornava-se uma mecânica integrada ao conjunto de funções do animal: respiração, digestão, circulação, efusão de ares e de ventos, de odores e de miasmas, de sólidos e líquidos, de trabalho e de dores, de homens e de mulheres. A fábrica vivia como um Leviatã emboscado dentro dos pântanos. Os dedos mergulhados dentro das cestinhas ficavam azuis e depois negros de sangue coagulado, os olhos ardiam por causa dos líquidos ferventes instilados sob as pálpebras, os nervos e os ossos das costas contraíam o influxo nervoso e a coluna vertebral na altura dos rins, os músculos dos braços tremiam, feridos pela reiteração do esforço, e o pensamento vagabundeava, mas sempre conduzindo o espírito de volta ao trabalho e às condições dentro das quais este evoluía. A pele das minhas mãos começou a se enrijecer, inchar, embranquecer e depois partir em pedaços. Pequenos fragmentos, películas, uma acumulação de células raspadas com as unhas se depositava na palma da mão. Depois farrapos maiores de pele deixavam a carne viva que toda manhã era novamente regada com salmoura. Eu estava ficando como certos queijos, cujas cascas recobrem uma matéria macia: parecia-me que um mimetismo transfigurava todo e qualquer um que acabava por se assemelhar ao objeto indefinidamente trabalhado, manipulado, esmerado. Sob a ducha, a água clara e quente lavava as dores da alma e reconduzia à forma humana, à consistência metafísica necessária. As tardes, nas primeiras vezes, eram acompanhadas de abatimentos, quase desmaios, tanto a fadiga minava o corpo que explodia assim que a tensão enfraquecia. Sobre a relva, no campo por onde eu vagabundeava com um companheiro de infortúnio, sobre uma poltrona, um leito, em qualquer lugar, eu soçobrava em plena inconsciência num sono embrutecido do qual só saía quando vinha a noite, como se um relógio interior me despertasse para me convidar a tomar o caminho da cama. Dormir: não havia mais nenhum sentido na minha existência além desse abandono à tirania do cansaço. Após doze horas de sono, eu retomava ao trabalho ainda enevoado pelas lembranças de lassitudes sonhadas, moído, esfalfado, extenuado, va-
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zio, ainda assombrado pelos devaneios vividos, eles também, dentro do ventre da baleia. Desse corpo eu guardei uma lembrança intacta, sem uma gota de entropia. E eu sei que não existe pior escravidão do que sentir, pouco a pouco, sua carne se modelar, se desfazer e se reconstituir em torno dos imperativos do trabalho. Diante da esteira de lavagem, onde os jatos de vapor espirravam às vezes na direção do rosto daquele que encaixava as cubas, eu trabalhei com um operário orgulhoso da excrescência que surgira na junção de seu braço e antebraço: uma bola de carne, tecido, músculo, construída e fabricada por milhares de horas consagradas à repetição do mesmo gesto. No tumulto de vapores e jorros de água, ele me mostrava às vezes com um piscar de olhos aquele sinal que indica o mutante: um animal inteiramente adestrado para o trabalho. Minha primeira odisséia pelo ventre bestial terminou com o final das férias. Eu lia para tentar compreender esse tipo de mundo. Primeiro Marx, porque me parecia ser o único a falar desses condenados, a dedicar um pensamento inteiro ao serviço de uma revolta que, agora, eu sabia legítima e fundada. Eu gostava de Nietzsche e já via a esquerda como a única família imaginável. Eu me preocupava com que aconteceria com Marx neste século XX: o ideal marxista me encantava, mas o espetáculo soviético me consternava. Jean Grenier dizia no seu Essai sur l'esprit d'orthodoxie, que me deixara entusiasmado, tudo que se podia saber na época, bem antes da publicação de Soljenitsin, sobre a peste hegeliana em matéria de política. O partido comunista francês dilapidava ideologicamente um capital essencial e o desperdício me desolava porque assim me parecia fazer sofrer na pele aqueles que enfrentam a dor do cotidiano. Depois descobri os grandes textos anarquistas. Eu soube então que fazia parte desse arquipélago. Stirner e seu individualismo radical, Bakunin e seu dionisismo libertário, Jean Grave e Proudhon, depois outros, Kropotkin e Louise Michel, todos os pensamentos revigorantes, dentre os quais, alguns que
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não estavam assim tão distantes de Nietzsche quanto se poderia crer. Nem Deus, nem senhor, era isso que me parecia, e me parece ainda, de tremenda atualidade e que se mostra bem próximo do nietzschiano: "Para mim, é tão odioso seguir quanto guiar." Ao mesmo tempo que progredia pela via libertária, eu só encontrava textos antigos, nenhuma referência recente, nada pós-Maio de 68 que tivesse a densidade e a consistência dos clássicos do século passado, apenas cometas, tais como Alain Jouffroy ou Marcel Moreau. As publicações libertárias contemporâneas ainda estão cheias da poeira do século XIX, tanto quanto as livrarias anarquistas parisienses que eu visitava de vez em quando após deixar minha província. Terminado o segundo grau, veio um ano na universidade, outras leituras e uma nova viagem ao interior da mesma fera. Desta vez menos como turista do que a primeira vez: tratavase mais precisamente de entrar na vida ativa, mesmo que não houvesse compromisso algum antes das obrigações militares. Novos encontros, figuras antigas, velho local e imutabilidade das tarefas. Cada um havia permanecido no seu posto, enquanto eu tinha vivido em outro lugar nos dois últimos anos, longe deles, esquecido mesmo de sua existência. Eu era do tipo volante, sem tarefa fixa, mas itinerante dentro da fábrica ao sabor das necessidades, a maior parte do tempo fazendo substituições durante as pausas matinais, quando o vinho escorria abundante, quando os dentes destroçavam os sanduíches espessos e quando também alguns se consumiam em cios trágicos, trancados nos banheiros ou nas duchas, para copular como bichos dentro do jardim zoológico. Fabricação, lavagem de cubas, prensagem, corte, salgadura, manutenção, preparação, conservação, pequenos consertos, eu participava de todas as fainas. Trabalhar sob os jatos contínuos de vapor, sob a chuva de salmoura, as mãos mergulhadas em detergentes que perfuravam a pele, o punho e os dedos maltratados pelas emissões de pressão na seringa, o braço enrijecido pelos movimentos necessários ao deslocamento das cubas, os gestos efetuados dentro de uma sala com temperatura constante de 33°, uma higro-
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metria que fazia suar assim que se entrava no local, um barulho constante, o soro molhando e colando os cabelos sobre o rosto, ou saltando e esguichando sobre a boca assim que a bomba esvaziava o fundo das cubas, as queimaduras: acredito não ter ignorado nada daquilo que compunha o cotidiano dos diferentes postos da fábrica. Mas o pior foi, naquele inferno viscoso, a figura humana do contramestre. Desengonçado e deambulando semelhante a um macaco em busca de uma vítima. Ele não se separava nunca de uma boina de feltro preto, a mesma, dia após dia, untuosamente suja, brilhando de imundice, uma franja de grinalda de espuma desenhada pelas camadas sucessivas de suor. Blusa branca e botas pretas, ele ia e vinha, distribuía o trabalho e controlava com um zelo minucioso o que havia sido feito. Poucas palavras, só grunhidos a se decifrar tão rapidamente quanto possível para não se arriscar a um arrebatamento do borborigmo em questão e à total impossibilidade de compreender o que quer que fosse de suas injunções. Os gestos, os sinais cabalísticos, os trejeitos dos braços, se não fossem compreendidos, tomavam-se ainda mais obscuros, sempre mais confusos. Diziam que seu chapéu escondia horríveis cicatrizes resultantes da carnificina de uma trepanação. Todos pensavam encontrar nisso a explicação e a causa de sua falta de delicadeza, senão de sua legítima natureza de caráter. Ele era o contramestre, eu era o estudante, uma espécie de animal insuportável, algo que desafia o intelecto e significa uma forte personalidade a adestrar. Ainda mais que, dessa vez, eu não era apenas um temporário destinado a desaparecer ao fim de um determinado período, mas sim um recrutado com o qual talvez se devesse contar quotidianamente, e por um bom tempo. Pois, no espírito da maioria, entrava-se na queijaria para lá permanecer toda a vida ... Descobri em suas troças não a expressão da luta de classes, mas sim os efeitos radicalmente perversos do poder sobre qualquer indivíduo normalmente constituído. Seu autoritarismo e sua perversão tinham seu equivalente na obsequiosidade e deferência exibida a cada manhã à passagem do senhor Paul,
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a quem ele disse um dia o quanto eu era um causador de problemas, um espírito ruim. Seu olhar de idiota cintilou quando ele se aliviou da denúncia. O feliz delator se deleitou por uma semana, pelo menos. O resto do pessoal escondeu os olhos nas tarefas do instante, para ali perder mais um pouco de sua alma. Seguiu-se uma convocação ao escritório do mencionado senhor Paul, entregue como era devido pelo contramestre da boina preta. Eu me dirigi ao santo dos santos durante minha jornada de trabalho e fui recebido por um homem afável, untuoso, quase afetuoso. Ele começou homenageando o bravo caráter de meu pai e a coragem da minha mãe, seus empregados. Eu soube imediatamente que não escutaria o restante. Ele atacou o contramestre trepanado, exagerando um pouco e, nietzschiano de opereta, me saiu com uma tirada sobre aqueles-que-não-são-da-mesma-natureza, uma espécie de raça de senhores para uso local. Pouco avaro em suas artimanhas, ele elogiou meu mau caráter, prestou homenagem às naturezas e aos temperamentos, me felicitou por um que outro aspecto, depois me propôs sem cerimônia um cargo de diretor na sua fábrica. O céu me caiu sobre a cabeça. Ele continuava a enumerar vantagens que fazia reluzir como palhaço de parque de diversão. Eu experimentei então, pela primeira vez, o júbilo que existe em se dizer não. Nos dias seguintes, retomei meu lugar dentro do animal úmido, entre o gnomo de crânio danificado que eu via e suportava diariamente e o predador atravessando a fábrica como um meteoro. Ele reiterou seu convite certa manhã, ele, perfumado, adocicado, limpo, asseado, formoso, eu, fedendo, sujo, pegajoso, viscoso, ceroso. O intercâmbio verbal ocorreu sob os olhares interrogadores e duvidosos, curiosos e interessados. Nova recusa de minha parte, novo prazo oferecido pelo patrão que admitiu não estar apressado e não esperar uma resposta imediata. Houve outros dias que consumiram as oito horas de todos. Alguns, que estavam lá havia trinta ou quarenta anos, tinham acabado por se fundir à paisagem, por se tomarem pedaços da fábrica, fragmentos da fera que soprava sempre seus vapores fétidos e suas brumas desbotadas. O material humano se con-
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fundia com os demais, com o ferro das vigas, com a madeira das paletas, com o alumínio das cubas, com o coalho mole dos queijos, com as mucosidades negras que escorriam sobre os muros como lesmas. O tempo não passava, ele chegava a recuar e andava no sentido inverso. A areia parecia subir da ampola inferior para a ampola superior, e essa retroversão da duração do tempo infligia ao corpo uma irrefutável regressão. A fisiologia das carnes desenvolvia-se ali como plantas venenosas em uma estufa onde se cultivassem vegetações lácteas, a carne intumescida oito horas por dia, cinco dias sobre sete, onze meses sobre doze durante mais de quarenta anos, o sistema nervoso adormecido para o córtex, acordado para o cérebro réptil, o influxo contido dentro do revestimento onde a energia passava milhões de vezes, direcionada no sentido dos movimentos da empresa, tudo indicava o corpo político, a fisiologia adestrada pelo modelo político. Então, num dia sem importância, o pêndulo ia marcar onze horas, não sei mais por quê, porém não suportei a humilhação do trepanado. A observação foi certamente benigna, mas dita num tom que justificava que não fosse aceita. No meio do tumulto, da umidade e do suor, imobilizado na linha de produção, meu trabalho dependendo do precedente, mas o do operário seguinte só sendo possível após o meu, eu me revoltei. Parei de trabalhar e encarei o contramestre que berrava com toda sua força. As cubas se amontoavam em torno de mim, a acumulação a montante acompanhada de uma falta de material para trabalhar a jusante. A esteira girava vazia. Eu deixei meu posto e me dirigi a ele, decidido, lentamente mas decidido, meu olhar fixo no seu. Fez-se o silêncio, ele berrou, eu gritei ainda mais forte do que ele. Fui talvez insultuoso, hoje já não sei, mas me lembro de lhe ter dito o mais alto que pude o quanto me repugnavam ele e seu poder mesquinho. A esteira foi paralisada urgentemente por uma operária, horrorizada. Permaneciam somente o ruído do motor inútil e esse silêncio que, entre todos, nunca poderei
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esquecer. Todos os olhares apontados para as duas feras que se encaravam. Após o ímpeto de cólera, apanhei meu boné, desatei meu avental e enfiei tudo nos seus braços. Não tenho mais nenhuma idéia de como me achei novamente do lado de fora, no estado de espírito da criança pequena que eu tinha sido e que teve, repentinamente, a impressão de acabar com um pesadelo, deixando o animal arfando atrás de si, às suas costas. Da mesma forma, eu esqueci do meu retomo à casa de meus pais, da luz, do sol na aldeia, das carcaças de bicicleta penduradas sob o abrigo. Não tenho mais lembrança do ruído da minha respiração, então, nem daquele som que fazia o alumínio da vasilha contra os muros da fábrica. Esquecime completamente do barulho dos malhetes de madeira que destampavam os recipientes, dos lentos e longos chiados dos ventiladores, das idas e vindas mecânicas dos caminhões e do braço do motorista repousado sobre a porta. Só consigo me recordar dos odores lívidos do leite, das cores desbotadas do creme, da palidez dos filetes de manteiga nas manhãs de inverno, tudo jaz como em um cemitério. Porque a fábrica hoje é um terreno baldio, um navio encalhado, abandonado, desertado, esvaziado desde que foi vendida e, depois, liquidada. O senhor Paul morreu, o contramestre igualmente, por um mimetismo zeloso talvez, ou pelo gosto de um serviço bem-feito ou da domesticidade levada a seu paroxismo. A aldeia não está mais longe, ela também, de dissiparse de corpo e alma. Sua alma, por sinal, já se foi há muito tempo. Decompostas pelos maçaricos as antigas cubas, vendidas as cestinhas, recicladas as máquinas, já mortos, provavelmente extintos, os foles da forja. O pavimento se racha, o concreto se pulveriza, o asfalto do pátio dá lugar à grama, à vegetação. Os antigos objetos enferrujados encontram-se largados por todos os lados. E somente minha infância e minha adolescência ainda assombram aqueles locais. Mas o que eu nunca esquecerei, o que levarei comigo para meu túmulo e que sem cessar atormenta minha alma, é o olhar que tinham aqueles que, no dia em que me demiti, assistiram à cena: um misto de
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inveja e desespero, um desejo de exprimir aquilo que não podiam se dar ao luxo de dizer. Hoje, escrevendo este livro que carrego comigo desde aqueles dias, é nos olhares vazios daqueles que não podem devolver seus aventais que eu penso.
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PRIMEIRA PARTE
DO REAL Em defesa da espécie humana
1. DA GÊNESE PARA PREENCHER DE MEMÓRIA O BURACO NEGRO
Essas páginas são dedicadas a meu amigo Pierre Billaux, matrícula 39.359 no campo de concentração de Neuengamme. Meu cúmplice indefectivel desde sempre.
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No sábado, 11 de abril de 1987, pouco depois de dez horas da manhã, quando sua mulher tinha saído às compras e a dona que cuidava da portaria vinha lhe trazer suas correspondências, Primo Levi passou por cima do corrimão da escada em frente a sua porta para se lançar no vazio e cair cinco andares abaixo, esborrachado ao pé do elevador. O corpo daquele que sobreviveu a Auschwitz suspirou então pela última vez. Os nazistas triunfavam ainda agora, meio século depois? Ele não deixou nenhuma linha explicando seu gesto. Mas é sabido que uma profunda depressão o oprimia há alguns anos. Certamente sua vida privada, mas quem saberá o que a história do mundo, encontrando a história singular, pode produzir como reações obscuras ou motivações sombrias? Primo Levi não suportava mais o aumento do número de teses revi sionistas e negacionistas. Ele decidiu sair da reserva que escolhera anteriormente para se fazer mais presente em todo lugar onde lhe parecia necessário seu testemunho, a fim de não deixar seus companheiros de campo de concentração morrerem duas vezes, assim como para dar um sentido à sua sobrevivência. Páginas escritas, conferências, colóquios, retificações, participações na mídia e, depois, sua antepenúltima obra, um artigo publicado na Stampa, de 22 de janeiro de 1986, intitulado: "Buco nero di Auschwitz" (O buraco negro de
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Auschwitz), no qual ele rejeita metodicamente as teses negacionistas de Hillgruber, para quem as câmaras de gás se reduziam a uma simples invenção tecnológica - depois, o suicídio. O aumento dessas teses na Europa, sob o falacioso pretexto de uma reconciliação necessária entre os países, o esquecimento de uma condenação daqueles e daquelas que fizeram a história sinistra da época, a ausência de memória demonstrada pelas novas gerações, a lassidão da maioria sobre este assunto, a confusão de registros virtuais e reais, as misturas de ficção e imagens de arquivos, o adiamento de toda história digna deste nome para o dia de São Nunca por parte do público e, principalmente, a permanência disseminada no planeta daquilo que fez o nazismo: tudo isso afeta numerosos deportados que, depois de voltar, não se contentam em administrar uma carreira paralela àquela dos antigos combatentes. Primo Levi era um desses. Ao seu suicídio seria preciso acrescentar os de Bruno Bettelheim e de Jean Améry, eles também antigos deportados, e de tantos anônimos que escaparam dos campos de concentração? Certamente, deve-se evitar designar com clareza os culpados e os responsáveis pela decisão de morte voluntária de um ou outro. Evitar também explorar a vítima por um motivo que pode ser diluído numa multidão de dores emaranhadas e impossíveis de desembaraçar. Por isso tudo, o fim da vida de Primo Levi e as páginas de Par-delá le crime et le châtiment (Para além do crime e do castigo), consagradas por Jean Améry ao ressentimento insaciado, são testemunhas suficientes para se supor que papéis a deportação e o fim político imundo deste século puderam desempenhar dentro deles na decisão de acabar com a própria existência. Cada dor devida aos nazistas, cada sofrimento, cada morte, induzi da por sua barbárie meio século mais tarde, cada triunfo de Tanatos em relação próxima ou em distante eco de suas teses, tudo isso deve reencontrar, hoje e agora, na urgência absoluta, uma memória fiel preservada pelas gerações que se seguem. Dentre as quais a minha, que verá seus quarenta anos na alvorada do próximo milênio. Esse buraco negro * 1 aberto *1
Os asteriscos remetem ao anexo: "À guisa de convite a prosseguir" (pág. 277).
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pelos nazistas e dentro do qual foram lançados os corpos e as almas de milhões de homens não se deve fechar novamente. Pelo menos, devemos sem descanso contribuir para enchê-Io de lembranças. Como? Tomando o sentido oposto de todas as teses de Adorno, bem-intencionadas porém catastróficas em suas conseqüências, em virtude das quais o horror teria sido tal que mais nada seria possível, depois de Auschwitz, no domínio do pensamento, da poesia, da filosofia, nem da escrita, nem do que quer que seja, fazendo dessa tragédia um objeto de reflexão ou um momento suscetível de ser ultrapassado. Pois, no terreno hegeliano do Aufhebung, deve-se ultrapassar o nazis.mo, quer dizer conservá-Io ultrapassando-o. Pode-se muito bem considerar o nacional-socialismo como um momento dentro de um movimento e não como um fim, um impasse, uma parada definitiva da história, ou um eclipse da razão. Sacrificar-se a esta hipótese é fazer o jogo daqueles que esperam a ocasião para banalizar o fascismo de modo a melhor assegurar seu retomo e ocupar o terreno deixado livre e disponível, ao passo que é preciso freqüentá-Io e habitá-lo com os pensamentos fiéis e as lembranças preservadas. Para isso, deve-se ir além dos dois termos da alternativa à qual a maioria hoje reduz esta questão: seja uma espécie de teologia negativa, seja um tipo de teodicéia procedente de um Deus mau. Os defensores do primeiro termo criticam ao longo das páginas, e o exercício neste sentido pode ser infinito, a impossibilidade de dizer, o inefá el e o indizível, a impotência da linguagem e os limites da razão. Sobre a experiência nazista não haverá nada a se dizer enquanto o empreendimento de destruição ultrapassar a compreensão. E, ainda que chegando a tal conclusão, esses críticos, em vez de onsentirem no silêncio que então se imporia, publicam longas páginas obscuras para explicar, até se fartarem, que nada há a se dizer, e que não se pode dizer nada. Impossibilidade de transmitir, inutilidade das palavras, limites da linguagem, a traição de se experimentar, o crime de tentar. Daí a abundância, no caso deles, de uma lite-
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ratura para dizer o fim, os limites, senão o ódio da literatura. Elogio do vazio, do silêncio através de palavras e de páginas, celebração do vácuo e do nada com o auxílio de longas e intermináveis logorréias. Antiliteratura, pós-literatura, condenação à morte do romance, caducidade do pensamento, tudo serve para reciclar a eterna tese hegeliana dos fins, por todos os cantos perseguida e em nenhum lugar encontrada. Pois para Antelme, autor de um único livro, sublime, a produção de Primo Levi, a de Jean Améry, a de David Rousset ou de Jorge Semprun mostram que, como autor de um livro sobre os campos de concentração, é possível que sua inspiração de escritor não tenha sido aniquila. da, nem ele próprio se tenha consumido pela redação de uma obra sobre o assunto, quaisquer que tenham sido os sofrimentos necessários à sua escritura. Mas o livro impossível se impõe como fantasmagoria dos teóricos da escrita que encontram aí uma ocasião de melhor expor seus próprios fantasmas mais do que a verdade do texto em matéria de literatura concentracionária. No verso da medalha niilista, encontramos os partidários de uma espécie de teodicéia associada a um demiurgo mau, um Deus malvado. Esses teólogos que dissertam sobre o modo neoleibniziano se vêem condenados a abordar a espécie pelo modo compassivo: o nazismo teria sido apenas a ocasião de encamar o mal radical, a negatividade absoluta, daí a simpatia generosa e o pesar erguido em virtude das variações sobre o tema do imundo, do horror, do inferno, do campo de concentração e da exterminação compreendida Como o ânus do mundo, a cloaca da Europa inteira. E as páginas de se escurecerem sobre o pavoroso, o horrível, a monstruosidade, a feiúra, a atrocidade, o odioso. Depois, mais nada. Em relação a isso, me recordo da injunção de Spinoza que convidava a se libertar do riso ou das lágrimas para se contentar com o desejo de compreender. Evidentemente, o nazismo como realidade maltrata a linguagem que o exprime, ainda mais que se trata de um dos ãpi-
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ces da infâmia. Mas quando alcançarmos essas duas certezas, o que teremos feito para satisfazer o buraco negro da memória, para fazer justiça, por mais modestamente que possamos, aos milhões de vítimas, e depois aos que se salvaram, uns por não terem sido sacrificados na única e pura perda desejada pelos nazistas, os outros por não terem sobrevivido num mundo absurdo? Os primeiros, teólogos negativos, fazem precária justiça a todos os empreendimentos que foram tentados, com registros em livro ou no cinema - penso em Shoah, de Claude Lanzmann, monumento deste século -, pelos mais brilhantes e pelos mais modestos; os outros, teólogos da teodicéia sombria, esquecem as páginas que convidam, em Antelme ou em Levi, a se apoiar sobre a experiência concentracionária para pensar . de outra forma a política. É sobre este terreno que desejo prosseguir. Por todos aqueles que só conheceram o destino dentro dos fornos crematórios e das chaminés de tijolo dos campos de concentração; por aqueles cujas peles tatuadas serviram de abajur; por aqueles cuja gordura tomou-se sabão, os cabelos, tecidos; por aqueles, crianças, mulheres e homens, que foram maculados, aviltados, humilhados, destruídos; por aqueles que voltaram destroçados, fendidos, rachados, freqüentados por pesadelos que escavam em suas camas a rigidez dos estrados de arame e transformam em sudários seus lençóis onde se arriscam tantas noites a serem engolidos por uma memória sombria; por todos eles, é preciso acabar com os impasses do indizível e das experiências limites a fim de desejar que a política de hoje e de amanhã seja esclarecida pelas lições que se deve tirar da experiência concentracionária nazista. Eu não teria me sentido bem para escrever estas linhas se o desejo de Pierre Billaux, meu eterno amigo que escapou de Neuengamme, não tivesse encontrado o de Robert Antelme e o de Primo Levi, e ainda de tantos outros anônimos com os quais pude falar e que não querem ter sofrido em vão, pois anseiam que seus companheiros de cama de ferro não tenham morrido por nada. Dentro do carro que o trouxe de volta a Paris, algumas horas após a sua libertação, Robert Antelme disse: "Cada
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vez que me falarem de caridade cristã, eu responderei Dachau". ""O que se deve entender por essas palavras infundidas nos meses de travessia do espelho? Que o velho mundo, os velhos valores, as antigas virtudes do cristianismo não mais se aplicam diante da barbárie nazista, especialmente, e que se trata, de certa maneira, de descristianizar o mundo. Assim sendo, ação. Tudo foi dito sobre o que faz a especificidade do horror dos campos, dos vagões até as câmaras de gás, dos cães de guarda aos militares uniformizados, dos miradouros das sentinelas aos arames farpados, da fome ao frio, das agressões às humilhações, das chagas que apodrecem e da ausência de sepultura, dos piolhos e das diarréias. Em compensação, foi mantido o silêncio sobre os convites feitos por esses mesmos homens para que não seja esquecido e seja levado em consideração o que foi possível aprender lá, de modo a transmitir aqui. Pois o inferno vivido e habitado toma legítimo e desejável um mundo onde se tentaria evitar o retomo daquilo que, de perto ou de longe, possa assemelhar-se a ele. Se é sabido que a obra principal de Hegel é suscetível de ser lida como a odisséia da consciência que caminha em direção ao absoluto, pode-se dizer que toda literatura concentracionária parece igualmente a odisséia da "consciência que não se dissolve sob a opressão" - são essas as palavras de Robert Antelme. Quaisquer que tenham sido as variações, e suas multiplicidades, sobre o tema do sadismo dos senhores a respeito daqueles que queriam transformar em escravos, é patente que uma espécie humana resistiu, se manifestou evidente, sólida e fixa, desfraldando como uma verdade indefectível a permanência da essência humana contra o artifício da ideologia. Se acreditarmos nos testemunhos dessa literatura, o empreendimento de negação da humanidade dentro da pessoa e dos corpos de certos homens acaba por, simplesmente, demonstrar o inverso: a unidade absoluta da espécie, carrascos e vítimas, senhores e
'" Dachau, campo de concentração nazista na Baviera. (N. do T.)
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escravos, todos colocados sob a mesma insígnia, homens, desesperadamente homens, mais próximos nos seus desvios e diferenças do que o último dos homens e o primeiro animal. As hierarquias são fictícias, as desigualdades fantoches, nada de super-homens nem sub-homens, nada de homens transformados em animais, ao passo que outros teriam recebido a unção dos deuses de Valhala: o artifício não vale nada quando a essência diz tudo e exprime a verdade absoluta da espécie. Sobre a SS, Robert Antelme escreve: "Ela pode matar um homem, mas não pode transformá-lo em outra coisa." Aí está a primeira verdade descoberta em um campo de concentração, ela é de natureza ontológica: a existência de uma única espécie, e a natureza essencial do humano dentro do homem, , cavilhada ao corpo, visceralmente associada à carne, ao esqueleto, à pele e aos ossos, àquilo que resta de um ser, contanto que um suspiro, mesmo frágil, o anime ainda. A verdade de um ser é seu próprio corpo. Tolhidos por furúnculos, esfolados por antrazes, as chagas carcomidas de vermes, a carne devorada pelos piolhos, a pele violeta, o rosto consumido por buracos, o sangue roubado pelos parasitas, os membros entorpecidos e podres, arrasados, arruinados, forçados a cada dia a participar de uma dança macabra até o esgotamento, a derrocada, ou seja, até que a morte invada por final e definitivamente o corpo - nesses extremos, o corpo de um homem triunfa no local inexpugnável de sua humanidade. É esta a segunda verdade proveniente dos campos de concentração, pairando sobre as fossas. Diante da natureza e diante da morte, Antelme constata: não existe diferença substancial. A essência é a existência, e ice-versa. Não há uma que preceda a outra, elas se confundem, como o corpo e sua sombra. De modo que essa ontologia es larecida por uma fisiologia, senão o inverso, impõe que se entenda o indivíduo como essencial, certamente não o sujeito, o homem ou a pessoa. O que mostram os campos de concentração, terceira verdade, é que além de todos os artifícios possíveis e imagináveis, comuns e familiares aos nazistas assim como aos amantes das
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ideologias gregárias - que fazem de um o sujeito de direito, do outro um gênero da espécie humana, ou uma pessoa evoluindo sobre a cena metafísica - o que faz a irredutibilidade de um ser é sua individualidade, e não sua subjetividade, sua humanidade ou sua personalidade. É o indivíduo que sofre, pena, sente frio e fome, vai morrer ou se salvar, é ele, dentro da sua carne, portanto de sua alma, que é submetido aos golpes, sente progredirem os parasitas assim como a fraqueza, a morte ou o pior. Toda nova figura a ser inscrita sobre a areia após a morte do homem passa por essa vontade deliberada de realizar o indivíduo e nada mais. O homem, por sinal, bem que poderia ter vivido seus derradeiros momentos dentro dos campos de concentração. Após Foucault dar as datas de nascimento, poder-se-ia formular a hipótese de uma data de óbito para esculpir e materializar, sobre uma pedra tumular, os marcos entre os quais ele teria exercido seu magistério. E depois, é preciso acabar com esse termo que, jogando com a duplicidade e a pluralidade das definições, permite submeter o conjunto da humanidade, incluindo aí sua metade feminina, a uma única rubrica de Homem. Que as mulheres sejam homens, segundo esse registro, isso sempre me incomodou - por elas, se assim me permitirem. Pois os campos de concentração mostraram, além das variações semânticas e das diversidades, que a individualidade é o que há de comum aos seres, qualquer que seja seu sexo, sua idade, a cor de sua pele, sua função social, sua educação, sua origem, seu passado: um só corpo, fechado dentro dos limites indivisíveis de sua individualidade solipsista. A fisiologia que constitui a ontologia ignora o diverso para definir um único princípio. Sobre o sujeito, pode-se infelizmente dizer que ele foi exacerbado nessa época e nessas paragens. Ele define o ser em relação à exterioridade, recusando-lhe uma identidade própria somente atribuída por e dentro da submissão, da subsunção a um princípio transcendente, que o excede: a lei, o direito, a necessidade, ou não importa o que mais que o convide a economizar a si mesmo em prol de uma identidade estruturada
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pela sua participação, sua docilidade. O sujeito o é sempre de alguma coisa ou de alguém. De maneira que se encontra sempre um sujeito menos sujeito que outro na medida em que, apoiado sobre o princípio em questão, um se autoriza incessantemente a submeter o outro: o juiz, o policial, o professor, o padre, o moralista, o ideólogo, todos gostam tanto dos sujeitos, submissos, quanto temem ou detestam o indivíduo, insubmisso. O sujeito se define em relação à instituição que o permite, daí a distinção entre bons e maus sujeitos, os brilhantes e os medíocres, ou seja, aqueles que aceitam o princípio da submissão e os outros. Com sua preocupação com a consciência que se rebela e não aceita, Antelme lembra que um sujeito se define menos pela sua consciência livre do que pelo seu entendimento submisso, fabricado para aceitar a obediência. A pessoa tampouco me satisfaz. Aí também, a etimologia, etrusca neste caso, lembra que a palavra procede da máscara usada em cena. Que o ser seja por meio daquilo a que se submete ou por seu modo de aparecer não convém nem em um caso nem no outro. A metáfora barroca do teatro, a vida como um sonho ou um romance, a necessidade do ardil ou da hipocrisia, do jogo social que subentende a pessoa teatral, aí também se supõe o recurso ao artifício: o ser para o outro não é o ser em sua resplandecência, nem em sua miséria. O campo de concentração esqueceu o homem, celebrou o sujeito, tomou improvável a pessoa e pôs em evidência o indivíduo. As três figuras da submissão funcionaram dentro do aspecto jurídico, do humanismo e do personalismo. Resta formular as condições de possibilidade de um individualismo que não seja um egoísmo. Longe da rede, da estrutura, das formas exteriores que desenhariam os contornos vindos do social, a figura do indivíduo remete à indivisibilidade, à irredutibilidade. É o que resta quando o ser foi despojado de todos os seus ouropéis sociais. Sob as camadas sucessivas que designam o sujeito, o homem, a pessoa, encontramos o caroço duro, indivisível, a mônada que nada, a não ser a morte, e ainda assim, pode destruir a identidade. Unidade distinta dentro de uma série hierárquica formada de gêneros e espécies, elemento indivisível, corpo or-
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ganizado vivendo uma existência própria, e que não poderia se dividir sem desaparecer, ser humano enquanto identidade biológica, entidade diferente de todas as outras, senão unidade da qual se compõem as sociedades, o indivíduo permanece irredutivelmente a pedra angular com a qual se organiza o mundo. A evidência do indivíduo, sua natureza primeira, atômica, obriga à dedução e conclusão do solipsismo. Sem consentir às extravagâncias metafísicas e excessivas de Berkeley, podemos adiantar a idéia de um solipsismo - solus ipse - em virtude do qual cada individualidade está condenada a viver sua única vida, e somente sua vida, a ressentir e experimentar, o positivo como o negativo, para si só e por si só. Os prazeres e os sofrimentos, as feridas e as carícias, os risos e as lágrimas, os choros e as alegrias, a velhice, a angústia e o medo, a morte, tudo isso, todo mundo conheceu, conhece ou conhecerá, mas sozinho, sem poder transferir o que quer que seja de sua sensação, de sua percepção ou de sua emoção a terceiros, a não ser pelo modo participativo, mas desesperadamente terceiro, distante e estranho. Quarta lição suscetível de ser tirada do campo de concentração, ainda pelo registro ontológico: a perpétua evidência do solipsismo e a condenação do indivíduo a si mesmo. L'Espêce humaine faz do campo de concentração o local dessa experimentação. As cenas no decorrer das quais se descobrem as violências físicas, os espancamentos, são descritas com sobriedade. Da mesma maneira, com o tom de um moralista que deve ter tido lições de concisão e lucidez com La Rochefoucauld, Antelme precisa que todos "sabiam que entre a vida de um companheiro e a sua própria escolheriam a sua". Reduzido à pura individualidade, à proteção daquilo que, em si, faz o substrato de toda vida e de toda sobrevivência, Robert Antelme revela um princípio por ele mesmo chamado de a sorte do corpo, segundo o qual, diante do espetáculo daquele em quem se bate, a quem se espanca, sempre há, no fundo de si, uma satisfação de um tipo particular, um contentamento estranho que supõe o prazer de não ser esse homem espancado. Não que nos alegre o sofrimento do outro, mas nos protegemos disso, evitando que ele nos contamine, já que o
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fato vale como o prazer de uma dor evitada, princípio de um hedonismo negativo. Tocado pela compaixão, fragilizado pela condolência, toda individualidade submetida ao ritmo e às cadências violentas dos campos de concentração teria pura e simplesmente explodido. Sorte do corpo, portanto ... Do indivíduo assim descrito, mostrado, circunscrito, dessa figura tomada possível pela penúria, pela desconstrução máxima, deve-se fazer alguma coisa. Reduzido ao grau zero da unidade, diante do qual é permitido construir ou reconstruir, tratase agora de elevar-se no sentido de uma complexidade que determina e define a passagem do ontológico e do metafísico para a política. Toda política, classicamente, propõe uma arte de submeter o indivíduo e dele fazer um sujeito, com o auxílio dos caprichos e vantagens que se permitem a uma pessoa. Ela sobressai como técnica de integração da individualidade dentro de uma lógica holista na qual o átomo perde sua natureza, sua força e sua potência. Todas as utopias declaradas, mas igualmente os projetos de sociedade que pretenderam recorrer à ciência, à positividade, ao utilitarismo mais sóbrio, colocaram o seguinte axioma: o indivíduo deve ser destruído, depois reciclado, integrado em uma comunidade provedora de sentido. Todas as teorias do contrato social se apóiam nesta lógica: fim do ser indivisível, abandono do próprio corpo e advento do corpo social, único habilitado, a partir daí, a reivindicar a indivisibilidade e a unidade habitualmente associadas ao indivíduo. Ora, a política que constrói sobre, por e para a mônada ainda não foi escrita. Na qualidade de arte de esquecer, de negligenciar, de conter, de reter, de canalizar, de ultrapassar ou de pulverizar o indivíduo, ela propõe há séculos variações que são todas feitas sobre o mesmo tema dessa negação. O indivíduo nunca é percebido, concebido como uma enteléquia, mas sempre como uma parcela, um fragmento que pede para ser realmente um grande todo promotor de sentido e de verdade. Submissão, sujeição, dependência, renúncia, subsunção, é sempre em nome do todo que é solicitado acabar com a parte, que, no entanto, triunfa como um todo sozinha.
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Todas as políticas visaram a esta transmutação do indivíduo em sujeito: os monarquistas em nome do rei, figura de direito divino, representante do príncipe unitário celeste sobre a terra; os comunistas, em virtude do corpo social pacificado, harmonioso, sem classes, sem guerras, sem contradições, enfim resolvido à maneira monoteísta; os fascistas, em respeito à nação homogênea, à pátria militarizada e sã; os capitalistas, obcecados pela lei do mercado, a regulagem mecânica de seu fluxo de dinheiro e de benefícios gerados. Tradicionalistas e integristas lado a lado com ortodoxos e dogmáticos dispõem de auxiliares zelosos da parte dos positivistas, cientistas e certos sociólogos para quem o sacrifício do diverso se faz em nome dos universais dos quais eles comungam: Deus, o Rei, o Socialismo, o Comunismo, o Estado, a Nação, a Pátria, o Dinheiro, a Sociedade, a Raça e outros artifícios combatidos desde sempre pelos nominalistas. Nesses mundos onde triunfa o culto dos ideais, dos universais geradores de mitologias - totalitárias ou democráticas, o indivíduo passa por quantidade desprezível. Ele é tolerado ou celebrado somente quando põe sua existência a serviço da causa que o excede e à qual todos dedicam um culto. O Padre, o Ministro, o Militante, o Revolucionário, o Funcionário, o Soldado, o Capitalista reluzem como auxiliares dessas divindades que são uma unanimidade para a maioria. Onde estão as individualidades solares e solitárias, mágicas e magníficas? O que aconteceu com as exceções radiantes nas quais se encarna, até a incandescência, essa consciência que não se dissolve sob a opressão? Quid os cometas que, sozinhos, atravessam o céu com soberba antes de se abismarem dentro da noite? Querer uma política libertária é inverter as perspectivas: submeter o econômico ao político, mas também colocar o político a serviço da ética, dar primazia à ética da convicção sobre a ética da responsabilidade, depois reduzir as estruturas ao mero papel de máquinas a serviço dos indivíduos, e não o inverso. O campo de concentração pode ser entendido como a demonstração exacerbada do que resulta do triunfo absoluto e sem partilha de um universal admitido como tal- a raça pura
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de um Reich milenar - e de uma vontade de erradicar o indivíduo para construir uma vasta e imensa máquina homogênea, purificada, fixa, mantida dentro daquilo que é o modelo absoluto em matéria de fixismo e de negação de todo dinamismo: a morte - quando todo libertário quer e celebra a vida. Ao contrário dos modelos de Platão, Hobbes, Rousseau, Hegel e Marx, que celebram uma sociedade fechada, resultando em suas variações encarnadas no nazismo e no stalinismo, depois em todos os totalitarismos que procedem, de perto ou de longe, desta lógica de fechamento, uma política libertária quer a sociedade aberta, os fluxos de circulação livres para as individualidades suscetíveis de irem e virem, de se associarem, depois se separarem, de não serem retidas e contidas por um argumento de autoridade que a colocaria em risco, desmantelaria sua identidade, a tomaria mesmo impossível, a suprimiria. Lá onde Maquiavel exprime a verdade política autoritária, La Boétie formula a possibilidade de sua vertente libertária. Voltarei a isso. O interesse que representa Robert Antelme em relação aos seus semelhantes que deixaram um nome na literatura concentracionária puramente descritiva é propor, aqui e ali, ao longo de L'Espêce humaine; frases ou páginas colocando em perspectiva aquilo que se viveu dentro de um campo nazista e o que se vive em seguida, e desde então, no mundo dito livre. Constatando a unidade e a unicidade de uma essência humana, além daquilo que causa diferença e divergência, Antelme conclui a necessidade de lutar contra tudo o que mascara essa unidade. Falso e insano, diz ele, aquilo que contribui para cavar as diferenças entre os indivíduos para querer transformar ligeiras fissuras em abismos impossíveis de preencher porque a idade, o sexo, a cor, a função social e tudo o que caracteriza uma pessoa entre as demais mostram, à primeira vista, motivo para se entender uma dissemelhança. É sobre isso que se constrói o regime de exploração e servidão. A existência de uma multiplicidade de espécies poderia sozinha justificar um modo de intersubjetividade que legitima a escravidão, a servidão ou a exploração. Ora, a unidade da espécie humana faz uma mons-
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truosidade ontológica, metafísica, depois política, de tudo o que coloca os indivíduos em situação de serem explorados e exploradores. Uma fenomenologia dos comportamentos nazistas no campo de concentração permitiu a Robert Antelme concluir que não havia diferença de natureza essencial entre o que se passava dentro dos limites de Buchenwald e o que é visível no mundo do trabalho habitual. De uma certa maneira, Jean Améry ilustra esse tema mostrando o quanto o intelectual estava mais despojado dentro do campo do que o trabalhador manual, já habituado, na sua existência quotidiana, a esses regimes de submissão e de exploração, a esse servilismo que transforma os homens em animais de carga, utiliza-os como gado, mercadorias, máquinas. Antelme via dentro do campo de concentração uma pura e simples ampliação, senão uma caricatura extrema, são suas estas expressões, do que se passa dentro do mundo verdadeiro ao qual todos aspiram, fechados em seus blocos. Aqui uma repartição em raças, ali uma distinção em classes, mas nos dois casos triunfa uma ideologia da divisão supondo a ausência de unidade e de homogeneidade na espécie humana. Impossibilidade de mudar de raça ou de classe: ser judeu, cigano ou ariano, ser proletário ou capitalista; com dentro das zonas intermediárias, onde não se indicam as raças, aquilo que exprimir a hierarquia - uma base e um topo: os homossexuais, os franco-maçons, os laicos, os oposicionistas, os resistentes, os comunistas, os opositores de consciência, aqueles que dizem não e os outros, os Kapos, Vorarbeiter ou Stubendienste, casta intermediária, respeitando o esquema indo-europeu, entre a massa e a elite, composta de nazistas, de alemães arianos. Essa repartição, esse desmembramento artificial da espécie humana natural fornece o princípio com o qual se fazem as explorações e os regimes disciplinares. Tudo se passa, no campo nazista, e dentro na fábrica capitalista, como se não houvesse espécies diferentes, irredutíveis, incapazes de se encontrar, de se observar, de se falar e de se compreender, como um animal e uma planta, uma pedra e um homem, cada
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um em seu registro. Seu único tipo de relação, neste caso, é a sujeição, o constrangimento, a submissão, a subsunção: a lei darwiniana de exploração de um pelo outro. Assim, o mais forte submete o mais fraco, e o mais astuto, o mais velhaco, o mais armado, o mais hipócrita colocam o outro de joelhos, a seus pés. Nessa vontade de hierarquia, nesse desejo de compartimentar, estruturar, repartir dentro de locais homogêneos, nessa irredutível vontade de reduzir o diverso a classes, raças, castas, Robert Antelme vê o modo de agir daqueles que querem poder dizer: "Essas não são pessoas como nós." Para alcançar seus objetivos, eles empreendem, a história é testemunha, aquilo que ficou sem efeito: aviltar, humilhar, transformar, marcar e produzir uma diferença, animalizar e depois convidar a constatar a animalidade, esquecendo que se trata unicamente de um processo impossível e não de uma nova figura, exatamente ali onde subsiste a qualquer preço a humanidade. Eles queriam o artifício cultural racial, mas só conseguiram a essência natural da espécie humana, triunfante sobre pilhas de cadáveres e mesmo dentro das câmaras de gás e dos ossários. Essas idéias são disseminadas na grande obra de Antelme. Elas foram retomadas mais tarde, em setembro de 1948, num texto soberbo intitulado "Pobre-Proletário-Deportado", ponto alto na genealogia da arte política pós-Auschwitz. Aí, mais do que em qualquer outro lugar, nessas poucas páginas densas, se exprimem o desejo e a necessidade de não fazer da experiência concentracionária de ontem um objeto de reciclagem onanista para os amantes de teologia negativa ou de teodicéia sombria, mas uma ocasião de pensar todas as formas concentracionárias posteriores à libertação dos campos nazistas, em todo lugar, incluindo as catedrais de dor que são as fábricas, as empresas e outros locais organizados e administrados pelo capitalismo. Eu não teria ousado sozinho essa proximidade se Antelme não tivesse ele próprio dado a fórmula. O artigo de 1948 permite que seu autor volte a esta vigorosa idéia: o campo de concentração é exacerbação máxima do político onde se encontra legitimada a submissão de uma cate-
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goria de homens a uma outra, novos senhores, novos escravos. Somente um sobrevivente desses locais apocalípticos pode antecipar a idéia. Prossigamos: uma moral de senhores, associada à sua potência, cruza os desejos, os sonhos e as aspirações de almas errantes e privadas de destino. Pobres e proletários têm a ver com os deportados na penúria, na miséria, na ausência de futuro, na condenação a uma reiteração sem esperança de acabar com aquilo que ocupa o tempo diariamente: levantar, trabalhar, sofrer, penar, servir aos ritmos e cadências impostos pelos outros, sopas miseráveis, saúde precária, esperanças proibidas, direitos para os senhores, deveres para os escravos, sem possibilidade de imaginar uma inversão ou uma partilha das ordens, alguns deveres para os chefes, dois ou três direitos para os trabalhadores. Leiamos Antelme: "Não há diferença de natureza entre o regime 'normal' de exploração do homem e o praticado nos campos de concentração. O campo é simplesmente a imagem clara do inferno mais ou menos velado no qual vivem ainda tantos povos." E, mais adiante: "A 'moral' que recobre a exploração camufla o desprezo que é o impulso real dessa exploração." Com essas evidências, ele acrescenta não poder aceitar e reconhecer como tais, dentre os valores e a moral, o que é concretamente universalizável. Para isso, o imperativo categórico formula nítida e radicalmente a supressão da exploração do homem pelo homem. É possível ser mais claro? Evitaremos tergiversar e praticar a casuística. As páginas são claras, fortes, precisas, densas e autorizam que joguemos fora tudo o que foi escrito em matéria de moral, virtude, direitos do homem e outras justificativas do caritativo contemporâneo no último meio século, e ainda mais daquilo que é servido sobre esse assunto há alguns anos. Vamos resumir e definir os amigos e os inimigos neste programa: pode-se dizer mais, melhor e ir mais longe sobre a literatura concentracionária do que as glosas estéreis e repetitivas; dispõe-se, desse modo, de meios de se manter fiel ao espírito da resistência, da rebelião, da oposição, da insubmissão da consciência e, fiel ao princípio de Antígona, pode-se assim fazer com que os mortos nos cam-
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pos não fiquem sem túmulo; os velhos valores já tiveram sua época, trata-se de incitar e inventar novos que levem em consideração o que ocorreu, lá, nos campos de deportação, concentração e extermínio; a consciência resiste e, neste retesamento, ela formula e depois estrutura a unidade e a existência da espécie humana, uma, única, impossível de se fragmentar, emendar, ordenar, levando em conta as exceções; o artifício da ideologia não destrói a essência da natureza humana e, até mesmo na morte, o que morre é um homem, uma individualidade irredutível que mesmo o falecimento não consegue privar de sua unicidade; o indivíduo solipsista fornece o local e a ocasião de uma nova ética, a menor instância suscetível de permitir, após a desconstrução da qual ela participa, a reconstrução que permite ter a política a seu serviço. E ele acrescenta: o campo de concentração nazista funciona como um local onde se revela, de modo exacerbado, a exploração, que existe em todos os cantos do planeta; o capitalismo criou, desde o momento em que passou a dominar sozinho, as condições que permitem com muita freqüência e tragicamente uma assimilação do pobre, do proletário e do deportado, associados em uma comunidade de destino, privados de sua individualidade, submetidos, sujeitos, submissos e sem esperança de sair dos cárceres nos quais se estagnam como se expiando um erro maior, um pecado capital: o de ter vindo à luz, de ter nascido. A partir dessas conclusões, reencontraremos a idéia de Clausewitz, o estrategista, para quem a guerra é a continuação da política por outros meios, e a de Foucault, o filósofo, reativando e afirmando em eco que a política é a guerra continuada por outros meios. Para fornecer a frase emblemática desses que travam essas duas guerras, é preciso retomar aquela pronunciada por um kapo e ouvida por Antelme: "Eu posso compreender tudo, mas não compreendo que não se seja disciplinado." É esta a fórmula do imperativo ético de todos aqueles que querem a sujeição.
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Dessa viagem ao país concentracionário, trata-se agora não de se fazer o balanço, mas de reconsiderar aquilo que é possível para hoje e para amanhã, aquilo que, tentado, proposto, defendido, existindo como tal, poderia, talvez, levar um pouco de consolo para aqueles que, como Primo Levi, acabaram voluntariamente com sua existência. Pois eu não ouso imaginar que ele tenha podido, desse modo, por mínimo que fosse, dar razão aos nazistas que queriam lhe tirar a vida como se rouba o bem mais precioso de um ser. É isto, ao meu ver, que deve ser colocado acima de tudo: a Vida. Opção hedonista, se assim for, confirmada pelas tragédias deste século que fizeram das existências singulares uma mercadoria tão desprezível enquanto, ao mesmo tempo, os tiranos e seus domésticos instalam os universais em letras douradas sobre as cidades, os países, as nações, os impérios e os campos de concentração. Quantos milhões de mortos para as águias bicéfalas, as estrelas vermelhas, senão pelas torres vertiginosas onde se fazem, virtuais, as operações monetárias globais cujas siglas são os signos fiduciários? Que nos satisfaçamos como indivíduo vivo, que celebremos as unicidades repletas de vida, de energia, de força, de saúde e de vitalidade. Eu não quero uma outra definição da vida senão aquela de Bichat, que a explica como o conjunto das forças que resistem à morte. De maneira que, dispondo de um princípio, a vida, e de uma ocasião, o indivíduo, me veio ao espírito diversas vezes, lendo Robert Antelme e outros livros consagrados a este ou . àquele campo de concentração, que se poderia tentar formular um método, no caso, nominalista. O que quer dizer isso? Para além do detalhe técnico da querela medieval entre defensores e opositores da teoria dos universais, do realismo, do conceito, da palavra como flatus vocis, guardemos desse combate metafísico o que ainda pode ser atual nesta virada de milênio. Assim, é preciso distanciar-se de todas as considerações jurídicas que valeriam para os grupos, e unicamente para eles, em detrimento das individualidades que os compõem. Onde os realistas legislam para o homem em geral, o sujeito de direito,
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o nominalista prescreve o que permite aproximar-se da individualidade, da particularidade, definidas em si, e não em relação a uma totalidade dentro da qual seria preciso se fundir. Preocupado com o indivíduo, o nominalista evita produzir o jurídico em tudo, para tudo, em todas as ocasiões, para todas as circunstâncias. O excesso de direito mata o direito. E os arcanos nos quais agora é preciso se empenhar, ainda que ninguém deva ignorar a lei, são demasiadamente complexos para que a jurisdição seja outra coisa além de uma arma entre as mãos de escolásticos contemporâneos isolados. Aguerridos e versados, eles dominam o direito e o fazem servir aos interesses que eles defendem - aqueles a quem eles devem sua esmola. Então o direito não está mais a serviço do indivíduo, mas daquilo que permite subjugá-lo. O sintoma da religião dos direitos do homem, por sinal, revela muito bem o descuido com as particularidades por parte das prescrições jurídicas que só definem os cidadãos, os sujeitos subjugados a serviço das máquinas sociais, ideológicas, políticas, contra as quais tomou-se difícil, impossível mesmo, se defender. Que acabemos com as declarações de princípio, as grandes idéias úteis somente para causar efeitos: elas autorizam a retórica e os escolásticos próprios da profissão que, definitivamente, abandonaram toda a vontade de permanecer próximos dos indivíduos para só servirem aos sujeitos. Nem transcendentais, nem universais, nem conceitos, nem idéias puras, nem religiões construídas sobre os fetiches que servem de fundação às mitologias democráticas, um direito nominalista começaria por reivindicar um retomo radical e genealógico ao indivíduo. Para issovapós o princípio vital, a ocasião individual, o método nominalista, resta promover a construção ética. Conseqüentemente, me parece que se poderia considerar, mais uma vez à luz dos ensinamentos da literatura concentracionária, uma redefinição do direito natural. A idéia faz sorrir desde o triunfo sem concessões dos positivismos jurídicos e o império das teses de Kelsen. Pouco importa. O antigo combate de Antígona atravessou os séculos e sempre opôs aqueles que
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tomam o partido da consciência aos defensores da opressão. Sempre existem aqueles que preferem a justiça à própria mãe, outros a injustiça à desordem. O direito natural, reformulado sobre novas bases, aquelas que vêm após Auschwitz, supõe que se copie as formas tomadas por ele na Antigüidade, depois no período moderno. Da origem até o final da época medieval, o direito natural remete às leis de Deus, aquilo que, se supondo anterior a uma ideologia porém posterior à natureza, era invocado para legitimar e fundamentar o direito positivo. A interrogação subsiste: sobre o que assentar o positivismo jurídico, se não for sobre a idéia prévia que se faz da justiça? Pois há de se convir que a promulgação dos editos de uma lei não procede de nada, nem dela mesma, mas de uma anterioridade ética em virtude da qual o direito resulta do justo ou da idéia que se faz a priori a partir das formas éticas universais apesar de seus conteúdos diversos e divergentes. Certamente, o justo não é absoluto, na medida em que ele também procede de uma civilização, de uma ideologia. Verdade aqui, equívoco ali, conhecemos desde Pascal a variabilidade de certos absolutos, a precariedade das verdades hipotéticas. Aliás, exigir um justo absoluto, total e universal, acabaria por contradizer a opção nominalista e reinjetar uma figura transcendente platônica que eu disse querer economizar. Que justo, então? Lembrando-me do que escreveu Robert Antelme, mantenho que é necessário menos um princípio universal, aqui e agora, do que um princípio universalizâvel e capaz de reunir o máximo de sufrágios possíveis. E eu penso, dentro da lógica hedonista, na fórmula de Chamfort, que convidava a aproveitar e fazer aproveitar, sem causar dano nem a si mesmo nem a ninguém, como imperativo categórico de uma ética jubilatória na qual as ocasiões da justiça coincidam com os fins. O que viria fazer, aqui, o direito natural? Bem distante, atrás de Deus, porém mais próximo das concepções jus-naturalistas modernas, ele visaria menos a legislação colocada por Deus, deuses ou leis desde sempre não escritas mas intangí-
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veis, do que uma ética apoiada na razão comum hedonista, mesmo que sejam diferentes os meios de realizar essas opções partilhadas. Quais seriam os artigos básicos de um direito natural após Auschwitz. Conservando do fideísmo dos Antigos a relação do absoluto e do jus-naturalismo moderno o desejo de apelar à razão, poderia se querer a fórmula daquilo que exprimiria a superioridade, a excelência e a preeminência do que permite viver. a campo de concentração, ,negativamente, demonstrou o que podia ser uma política inimiga da vida, negada e proibida para aquelas e aqueles que não foram julgados dignos dela, posto que relegados aos locais onde se empenhavam a persuadi-los de que não eram homens. Um direito natural nominalista e libertário, hedonista, garante para cada indivíduo a possibilidade de se preparar inteiramente para viver e, principalmente, sobreviver, quando esses dois objetivos lhe são recusados pelo social. Cabe à sociedade evitar que este ou aquele seja conduzido aos extremos na reivindicação de seu bem, em virtude deste princípio. Quais são esses direitos naturais? Viver e sobreviver, é o mínimo, supõe a satisfação das necessidades do corpo e do espírito à medida que, assim apaziguados, permitam a existência de um corpo que seja e dure livre de todo sofrimento, assim como a de uma alma, nas mesmas condições, desde que ela, por si própria, seja conservada dentro da dignidade. Uma vez que o direito natural elegeu esses objetivos, ele se toma transponível para todas as civilizações como um absoluto: em Papua-Nova Guiné tanto quanto na Quinta Avenida em Nova York, dentro de uma aldeia campestre vietnamita ou num acampamento instalado no deserto africano, em todo lugar e para todos, as leis naturais são defensáveis a partir desses princípios: existência, integridade e saúde do corpo, identidade, conservação e dignidade da alma. Tudo, por conseguinte, é questão de interpretação, para determinar o necessário em quantidade assim como em qualidade. A política define os princípios e os meios dessa herrnenêutica. a direito natural estabelece um princípio, o direito positi-
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vo purifica e cristaliza a expressão do compromisso formulado por uma civilização sobre o que ela estima ser justo em matéria de quantidade e qualidade propostas para satisfazer as necessidades elementares a fim de viver e sobreviver. Sobreviver? É simplesmente aquilo que, na sua ausência, induz um prazo maior ou menor à decadência, à degradação, ao fim e à morte: beber, comer e dormir, por exemplo. Sem isso, não há integridade física digna deste nome. Os nazistas compreenderam isso, privando os deportados ao máximo com o único objetivo de conservar sua submissão. Este corpo conhecendo as fraquezas tem direito, segundo o princípio vitalista hedonista, a tudo o que permite a manutenção de sua saúde, ou seja, o seu desenvolvimento e sua recuperação. A receber assistência em caso de necessidade e cuidados apropriados. Enfim, quando falta a saúde ou a morte está presente, o direito natural torna obrigatório uma sepultura digna desse nome. Nesse ponto também nós sabemos como procediam os nazistas: negação total e completa do direito à saúde assim como à sepultura. O Revier vale como um local de onde, a maior parte do tempo, não se sai vivo. E as valas comuns, tanto quanto as chaminés dos fornos crematórios, eram a oportunidade de mostrar a ausência de identidade, de unicidade e de individualidade dos cadáveres assim tratados para a reciclagem e o desaparecimento. Quem diria que o capitalismo, hoje, é absolutamente civilizado? Baseado em suas próprias necessidades vitais, ele encontrou uma solução melhor do que a interdição ou a negação obrigando à compra, à taxação, ao pagamento. Comer e beber? É preciso pagar o alimento, todo dia, e di lapidar incessantemente o dinheiro, para cada refeição. O que é ainda mais um desgosto para quem ganha pouco ou nada. Dormir? É preciso encontrar onde habitar e pagar um aluguel. Sabe-se o que diferencia os bairros chiques de custos impossíveis para os pobres, e as zonas selvagens, mais abordáveis financeiramente - e ainda assim! - mas que se pagará, além do dinheiro entre-
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gue aos proprietários, com uma promiscuidade quase permanente com aqueles que são arrastados para dentro das jaulas antes de serem um dia criticados por rugir. Que cotidiano elementar para os despojados e os miseráveis? Direito à saúde? A que preço, por que assistência? S-egundo quais modalidades, sempre mais precárias? Em matéria de seguridade social, há contribuições sem fim, mas não o suficiente para cobrir as despesas em sua totalidade; seguros complementares, ainda mais dinheiro e deduções, certo, mas isso não bastará para a íntegra do pagamento; o bilhete moderador, finalmente, supondo-se que por uma operação de medicina dentária três quotizações não serão suficientes para cobrir a intervenção, pois ainda será necessário pagar do próprio bolso aquilo que nunca será reembolsado. Que saúde, então, para os pobres e miseráveis? Direito à sepultura? Ainda melhor em termos de vilania: na civilização capitalista, a morte abastece um mercado, uma ocasião de puncionar ainda e sempre, de se taxar. Taxas sobre o caixão e estofamento, sua qualidade e dimensões - cuidado se for grande e gordo -, taxas sobre a cerimônia e transporte, a funerária e os cuidados de conservação, taxas para o deslocamento do caixão fora das áreas definidas pela lei, taxa sobre a cova no cemitério, taxas sobre cremação, a incineração, taxas sobre taxas, pois não se pode esquecer dos impostos. Taxas sobre a herança. Paremos por aqui. Morrer custa àquele que ganha o salário mínimo dois meses de trabalho. Onde está a dignidade para os sem dinheiro, esses principais rejeitados? Beber, comer, dormir, cuidar da saúde, recuperá-Ia e morrer? É isso que causa cada vez mais problemas e justifica minha repulsa aos governos satisfeitos de administrar o capitalismo. Os ricos atravessam essa sociedade com danos menores do que aqueles que não têm nada. Lembremo-nos de Antelme: fracionar a espécie humana, construir classes, castas, raças, é este o princípio que permitiu o funcionamento da mecânica nazista, assim como todas aquelas que justificam a exploração ou a dominação violenta e brutal por parte de seus senhores. Lá, onde os nazistas empurraram os limites o mais próximo possível do
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precipício, os capitalistas delimitaram o terreno cujo acesso deve ser pago. Melhor assim para aqueles que podem fazê-lo, os outros se contentarão em gemer, para isso estão autorizados ... Imaginemos o que diz respeito às necessidades espirituais! A falta de satisfação das necessidades naturais é evidente. E a sanção chega assim que elas não são levadas em conta: morrese de fome e de frio, falecemos porque não temos os meios para nos curarmos, acaba-se na vala comum pois os obséquios são demasiadamente caros. O que, de vez em quando, cria a desordem, mas nada além da desaprovação geral e verbal. Mas onde e quando se percebe a privação às necessidades espirituais? Como elas podem deixar de ser satisfeitas sem danos imediatamente observáveis e importantes, deixa-se como está, por enquanto. Se a ausência de satisfação das necessidades básicas conduz à morte dos corpos, a falta para as segundas leva diretamente às almas mortas e aos espíritos corrompidos, ressecados, amargurados, sombrios; é o mesmo que dizer que isso conduz por via direta e expressa aos terrenos vagos onde se encontram os abstencionistas, os eleitores dos partidos protestantes simbólicos e, pior, o apoio, de qualquer ordem e de qualquer natureza que seja, à Frente Nacional, este acelerador do fascismo francês. Quando e onde se alimentam essas almas? E quem? A escola desobrigou-se desse assunto, se contentando em reproduzir o sistema das elites, e depois acelerar o movimento e a força centrífuga. A fonte de receita da educação nacional coloca às margens os menos adaptados, à beira, da mesma forma que os urbanistas obedecendo a única lei do mercado: no centro, os eleitos, os senhores - é preciso lembrar de Antelme? - na periferia, os domésticos, aqueles que irão aumentar a fila de enjeitados, de míseros e miseráveis, os habitantes dos círculos do inferno cuja cartografia eu apresento mais adiante. Os colégios elegantes do centro da cidade contra os colégios profissionalizantes dos subúrbios, estabelecimentos da cidade contra as escolas do interior: somente as fanulias podem ainda garantir o alimento das almas, caso não tenham sido pulverizadas sob efeito dos casamentos, divórcios, recasamentos,
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separações e outras ocasiões fomecidas pelo sistema de se viver em reclusão, separado dos outros. Para as famílias que restam, faltam-lhes ainda os meios financeiros e intelectuais, senão simplesmente a energia, após os dias consagrados aos trajetos, ao trabalho, às repreensões, ao receio de perder o emprego tudo isso por salários simbólicos e sofrimentos reais. Nem a escola, nem a família. Então, a televisão? Ousemos, sobre este assunto, escutar as duas extremidades da reflexão política, em Karl Popper e em Pierre Bourdieu, pensamentos exprimindo tudo o que se deve, a esse instrumento que poderia ser formidável, ao triunfo do pior quando unicamente a lei do mercado determina seu funcionamento. Nova religião e único meio hipotético, hoje, de um resto de laço social, ela tomou-se o veículo da trivialidade, dos pensamentos débeis, dos interesses infames. Os jogos, os livros e os discos, os filmes e os políticos que são promovidos no mercado, ainda mais celebrados porque aceleram o movimento no sentido do pior e não representam risco algum para a própria máquina, todos saturam a tela e o espaço que se quer ainda intelectual ou cultural. Então, o livro, a biblioteca, a livraria? Podemos ainda esperar desses lugares e desses objetos os meios de assegurar a satisfação das necessidades intelectuais e espirituais? Há de se temer que não, ou cada vez menos. Aí também, a oferta e a procura regulam o mercado e sabe-se que o desejo não é livre, solicitado pela publicidade, no senso abrangente do termo, quer dizer o-que-passa-na-televisão. As práticas culturais se tornaram festivas e tribais, holistas e gregárias, simplistas e triviais; não se trata tanto de praticar a arte como rebelde do que como consumidor satisfeito assim que fizermos parte dos milhares de visitantes, leitores e espectadores do evento promovido como tal e auto-engendrado. Resta a selva. A possibilidade selvagem das afinidades eletivas e das eleições singulares, a amizade, virtude que não responde quando chamada e que deveria celebrar nosso fim de século carente de princípios comunitários. Essas intersubjetividades radiantes tornam ainda possível o encontro das obras, no amplo sentido do termo. As que oferecem as perspectivas críti-
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cas, longe dos pensamentos pré-digeridos vendidos e promovidos pela moda de todo o tempo e em todas as épocas, as que fazem da cultura um meio de se apoderar de outro modo do mundo para vê-lo distinto, diferente, em vez de uma ocasião suplementar para praticar a distinção e escavar abismos que separam as classes como em outros períodos as castas e as raças. A derrota do pensamento não é generalizada e o triunfo do barbarismo ainda não é efetivo. O desígnio de um pensamento crítico libertário consiste ainda em se opor a cultura às forças sombrias e gregárias, de algum modo em se reatualizar a mensagem e a potência das Luzes que presidiam à Revolução Francesa. Os objetivos da época permanecem na atualidade: a autonomia da razão, a reflexão livre, desembaraçada dos laços dominantes do momento, a extração da condição passiva, a fim de celebrar a atividade, a positividade e o voluntarismo ético assim como o estético, o pensamento livre oposto a todas as formas de religião e de comunitarismo, a desconfiança, a suspeita, senão o ódio no lugar de tudo aquilo que é gregário. Os inimigos, eles também, persistem e permanecem idênticos: os promotores da ordem tal qual ela é. Aqueles que, em vez de reatualizar o imperativo voltairiano - esmaguemos o infame - ou mesmo kantiano, cheguemos a esse ponto - sapere aude, pense por si próprio, ouse - preferem celebrar a moral e a religião com as quais este século termina no estado que sabemos. O objetivo permanece indefectivelmente nietzschiano; "Incomodar a estupidez." Sem isso, esta triunfará sozinha e a tal ponto que os autoritarismos do passado parecerão temos e pálidos ao lado desses que terão conseguido subjugar os corpos, certamente, mas também e sobretudo as almas. O fascismo a vir, senão já presente, não se contenta mais em submeter os corpos, ele dispõe de meios para conseguir a sujeição das almas, a partir de hoje, antes de qualquer hipotética tomada de poder no modelo golpista. Nos campos nazistas, a consciência resistia e o corpo era achincalhado incessantemente, todos os dias. Nesse ponto, diz Robert Antelme, se forjou a resistência das almas e das consciências se recusando a colaborar. Por outro lado, no campo pla-
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netário governado praticamente sem partilha pela ordem capitalista, o corpo é geralmente celebrado, dentro do mais vulgar hedonismo, de modo que, polarizados numa relação egocêntrica e narcisista de si, convertidos aos méritos dessa nova religião do amor de si mesmo, os fiéis se esquecem que possuem também uma alma. Eles chegam ao ponto de ignorar que, não sendo solicitado, o espírito é pura e simplesmente inexistente. Ora, os rebanhos que se formam atrás dos fascistas e amantes de sensações totalitárias de todos os tipos - a Frente Nacional, na França, mas em toda a Europa existem equivalentes - são constituídos por aqueles que foram privados dos meios decentes de viver e sobreviver ou daqueles que temem sofrer um dia tal privação. Entre eles, gente que tem fome ou sede, que não tem teto ou, pior, que sabe que poderia em breve encontrar-se privado desses bens, de tal maneira é precária a situação, mesmo pequenas riquezas, riquezas mesquinhas. Pessoas que temem pela sua saúde, sua aposentadoria, seu futuro e tratam de viver e sobreviver, mesmo modestamente, mesmo escassamente. De maneira semelhante, encontramos, nas fileiras dessas massas que esperam apenas um chefe e uma ocasião para se pôr em marcha, aqueles que foram privados de cultura, de saber, de memória, de inteligência; e pior ainda, até mesmo aqueles que, em vez dessas virtudes, dispõem de um catálogo de referências de combate para uso fascista: os racistas, os sexistas, os misóginos, amantes da luta contra o aborto, defensores implacáveis do papismo sob todas as suas formas, por vezes militantes da causa animal ou contra a vivissecção, os militaristas, os nostálgicos da Argélia francesa, os petainistas (seguidores de Philippe Pétain), seguramente, e, posto que era preciso acabar por encontrá-Ios, os negacionistas e os revisionistas. Esses querem a hierarquia, as castas e os grupos, as raças e as classes, eles são a descendência direta daquilo que provocou o desejo reativo em Robert Antelme de militar por uma política preocupada em celebrar a espécie humana, única e nua. Cada inadequação do direito positivo ao direito natural, cada esquecimento da dimensão nominalista do direito, cada
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afastamento criado entre aquilo que a justiça ou a eqüidade pedem e aquilo que a política politiqueira se empenha em não oferecer, não dar, cada recusa em colocar a política a serviço do indivíduo reforçada pelo empreendimento inverso, submetê-lo permanentemente a tudo que o digere, tudo isso age como novas ações práticas para o alargamento do buraco negro descrito por Primo Levi onde, me parece, ele acabou por jogar seu corpo velho e cansado como outros se precipitam sobre as cercas farpadas e eletrificadas para pôr um termo ao pesadelo. Quero também me lembrar que Antígona, em Sófocles, por ter feito a escolha do direito natural - que eu chamarei de o princípio de Antígona* -, das leis divinas, infrangíveis e intangíveis, por ter se oposto a Creonte, tirano de Tebas, comprometido com um de seus sobrinhos usurpadores, o próprio irmão de Antígona, por ter suportado ser emparedada viva, por sua decisão, até a morte. Seu crime? Ter desejado enterrar seu outro irmão, pelo menos cobrir seu corpo de poeira, de modo a estar em acordo com as leis naturais em virtude das quais não se deixa ninguém sem sepultura, a alma errante e o corpo exposto aos cães e às aves carnívoras. Em duas oportunidades, Antígona afrontou o proibido depois que o vento soprou pela primeira vez ao longe da terra que protegia Polinice, seu irmão. Ela voltou, apesar da presença de soldados dos quais tinha escapado uma primeira vez, arriscando-se a ser presa. O que acabou ocorrendo. Exultante, Creonte decidiu transformar sua prisão em túmulo até o final dos tempos, depois disse para seu filho que o proibia de pensar em se casar com Antígona. Tirésias, o cego adivinho de Tebas, anunciou uma inacreditável série de desgraças para aquele que perseguisse assim uma mulher preocupada ao extremo com os direitos naturais. Antes que Creonte pudesse se recompor, o apocalipse anunciado ocorreu e as catástrofes se encadearam: Antígona se enforcou, de uma certa maneira se lançando no buraco negro designado por Primo Levi; depois, o filho do tirano, apaixonado por Antígona, perfurou o próprio corpo após ter amaldiçoado seu pai e lhe cuspido no rosto. Abatida pela dor, a mãe do
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jovem, esposa do tirano, suicida-se também para fugir da infelicidade. Restou a Creonte uma pedra onde se sentar e chorar. Dentro do buraco negro onde desapareceram tantos homens e mulheres, desde Antígona até Primo Levi, todos preocupados em fazer prevalecer a vida sobre a morte, a cultura e a civilização contra a barbárie e o horror, a ferocidade e a inumanidade, é preciso hoje derramar a memória, em quantidade máxima. Desta forma, fiéis, um pouco, àqueles que ali tiveram de lançar seu corpo, sua alma, sua juventude, sua vida, suas lembranças, seu passado, até mesmo seu futuro, nós poderemos pelo menos caminhar um pouco mais retos, evitando aumentar, ao longe, o rebanho daqueles que jubilariam, se a ocasião se lhes apresentasse, de enviar ao fundo, e dentro deste buraco, todos aqueles sobre os quais eles cristalizam seu ódio.
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CARTOGRAFIA
INFERNAL DA MISÉRIA
Longe de Harrar, onde Rimbaud expiava seu gênio visionário, um barco bêbado desceu os rios impassíveis em que se estagnava dentro dos pântanos enormes, entre os juncos decompostos e putrescentes, um Leviatã que acompanhava, a cinqüenta léguas, a exalação do berro dos Béhémoths. Eu encontrei esses animais vorazes e cruéis sob a pena de Thomas Hobbes, quando ele fala do corpo social e da melhor teoria política segundo seus desejos. Leviatã significa o autômato assimilado a essa máquina política, semelhante a uma mecânica impulsionada por molas, cordões e rodas que são igualmente corações, nervos e articulações para um grande animal obcecado pela alimentação e inteiramente voltado para o que pode satisfazer seu apetite de ogro. Leviatã é o monstro do caos primitivo, uma espécie de serpente capaz de devorar o sol num único golpe, fomentando assim os eclipses durante os quais as bruxas lançam seus sortilégios. Ele sai do mar, onde ordinariamente repousa quando é deixado em paz, para fazer reinar o terror entre a maioria dos homens que hoje vivem sob seu regime e poder, temendo-o e obedecendo a seus caprichos. Béhémoth, por sua vez, sevicia como um herbívoro fantástico e esfomeado a vegetação de mil montanhas, assim tomando-se o símbolo da força brutal. Hobbes tem razão ao convocar este bestiário fantástico para designar a onipotência do corpo político, do corpo social e das máquinas de submeter o indivíduo sob o registro do comunitário apresentado como a virtude suprema. Animais devoradores, ignorando tudo sobre sua vítima morta, bestas esfomeadas destruindo toda subjetividade no seu caminho, Leviatã
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e Béhémoth fazem a zoologia política em virtude da qual o homem representa uma presa preferencial para o predador, esse monstro fabuloso aniquilando os que são menores que ele. Essa máquina histérica produziu sobre a terra um inferno contemporâneo para o qual eu gostaria, aqui, de propor uma cartografia. Como existiram os mapas de Tendre, os portulanos e sextantes embarcados para escrever as linhas que fazem as costas, os recifes fugidios e inconstantes, os bancos de areia móveis e enganadores, os precipícios e os cumes, as montanhas e os abismos, os penhascos íngremes como teixos estendidos na direção do céu ou as águas falsamente adormecidas que escondem abismos, as correntes e os turbilhões invisíveis, existe uma geografia infernal*, uma tipologia que pode ser encontrada na Divina comédia. Eu gostei, em Dante, dos nove círculos e dos três regaços, dos dez fossos e das quatro zonas que formam o inferno, e até das sete cornijas do purgatório com o auxílio das quais é possível, não se informar sobre uma sonhada Beatriz, mas prosseguir na busca de uma compreensão daquilo que faz, aqui e agora, o inferno em que vivem alguns na terra. A miséria, que percorre de um ponto a outro essas terras infernais, não é com freqüência um objeto filosófico. A sociologia dela se apodera para mencioná-Ia, descrevê-Ia, mostrá-Ia, afirmar que ela existe, calculá-Ia, e já é muito. Mas onde estão os filósofos? O que fazem os intelectuais e o que dizem sobre esta questão? Mais preocupados com as misérias do mundo, quando parecem nobres, dignas e suscetíveis de abrir as portas de um reconhecimento midiático ou de um hipotético prêmio Nobel, eles não se cansam com seus manifestos, petições, tomadas de posição, quando a miséria é limpa, quer dizer quando ela resulta das guerras, dos genocídios sangrentos, dos combates planetários entre potências enlouquecidas. Mas e a miséria suja*, aquela dos sem-graduação, dos indigentes, dos heróis de todos os dias que morrem sob as escadas, por causa da fome e do frio, ou que, quotidianamente, batem pernas pelas calçadas onde esperam a esmola de um trabalho medíocre? Aquela dos homens e das mulheres que, sem repouso, oferecem seu tempo,
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sua energia, seus sonhos, seus desejos às goelas ávidas do Leviatã, nas fábricas, nas oficinas, nas empresas? Onde estão os filósofos que fizeram a teoria da miséria, aqueles que, depois de Proudhon e Marx, seguidos por Simone Weil, fizeram da condição dos miseráveis e dos trabalhadores um objeto filosófico tão politicamente digno quanto a questão dos direitos humanos, do direito de ingerência ou do fim da história? Eu aguardo que um contemporâneo em boa posição, menos preocupado com sua inscrição na atualidade de uma moda do que com a lógica de um trabalho autenticamente filosófico, seja para seu tempo o que Proudhon foi para o dele escrevendo Philosophie de Ia misêre, uma obra que, apesar de seus limites, permanece o protótipo do trabalho político por excelência: aquele que consiste em colocar em termos claros o que faz a seus próprios olhos de pensador o objeto do escândalo maior. O meu - meu escândalo maior - é que existe na minha vizinhança, num círculo de dolorosa e quotidiana proximidade, um inferno no qual se mantém um certo número de homens, de mulheres e, de forma firme, de crianças, que são sacrificados dia após dia às exigências do Leviatã e ao cio dos Béhémoths. Minha lógica permanece hedonista, ela não o deixa de ser, livro após livro. Eu já esclareci com freqüência, mas não o bastante, que o imperativo categórico do hedonismo considera o gozar e o fazer gozar - esta segunda parte, inseparável, constitui a genealogia da política que proponho -, ela vale como modalidade de uma ética alternativa à do ideal ascético. O inferno no qual estão inertes aqueles que nutrem a máquina social, ou que foram excluídos por ela, como as dejeções de um animal infecto, supõe por definição o local onde triunfa o ideal ascético em detrimento de todo e qualquer hedonismo. Impossível gozar e fazer gozar dentro dessa cloaca, dessa latrina da civilização onde se estratificam as dejeções, com certeza, mas também as patologias e as mecânicas servis que estruturam o Leviatã. Uma política hedonista exige antes de mais nada uma ética preocupada com a erradicação deste inferno sobre a terra, uma moral de combate contra essas fu-
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maças fugi das do Tártaro, um voluntarismo estético declarando guerra, de maneira radical e imperdoável, a essa política de terras e colheitas destruídas onde gemem somente aqueles que passam a sua vida a perdê-Ia. Eu ainda me espanto e sempre me espantarei com o silêncio no qual sofrem essas pessoas, com seus soluços contidos e sua submissão às necessidades brutais do sistema como se não houvesse nenhuma alternativa possível, ou que outra coisa fosse inimaginável, impossível, inconcebível. De acordo com Bakunin, contra Marx, eu sempre acreditei que os mais esquecidos constituem hipoteticamente um fermento mais eficaz para as revoltas lógicas ou as revoluções do que as vanguardas esclareci das do proletariado, as pontas de lança afiadas de uma eminência da classe trabalhadora. Sinto mais simpatia pela revolução artística do primeiro do que pela arte das revoluções do segundo, pelos poetas e pelos malditos de um do que pelos dialéticos e revolucionários profissionais do outro. Blanqui e Rimbaud no lugar de Lênin e Trotski. Igualmente, me recuso a falar pelos pobres reivindicando plenamente a obrigação ética e o dever visceral de fazê-lo com eles. A que, então, se assemelhará hoje uma cartografia da misérial? Não uma miséria metafísica, limpa, transfigurada pela filosofia que a definiria como falta ou penúria existencial, inadequação entre o ser e o ter, antinomia radical entre a aspiração e a posse, impossibilidade total de gastar que suporia o confinamento na preocupação única de uma economia de si mesmo ou de uma pura e simples sobrevivência, mas a miséria encarnada, a miséria suja que tem nomes: mendigo e desempregado, delinqüentes e trabalhadores temporários, aprendizes e empregados, operários e proletários, aquela que roda a bolsa com as prostituídas, dorme sob a ponte com os vagabundos, deita-se no leito dos prisioneiros, assombra o sono e a noite das pessoas sem trabalho. A miséria da qual Littré revela o andamento
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Ver a tabela na página 291.
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paradoxal do ódio e da tristeza e depois seu estranho parentesco. Outros etimologistas insistem na proximidade do termo com a desgraça.r É possível significar melhor a antinomia com o hedonista cuja formulação dantesca seria o paraíso? O inferno a que me refiro coincide com um universo dentro do qual são nitidamente traçados três círculos em que cada um delimita territórios com suas leis, suas lógicas próprias. Eles estruturam três formas para três mundos dos quais se pode cair, em involução, raramente se extirpar, em evolução. A cloaca total, a terra dos refugos, dos dejetos e do lixo, aquela além da qual só existem as carcaças mal recobertas por uma poeira benevolente, terra dos malditos. Chamo de maldito aquele que não tem mais nada além de si próprio e vive exclusivamente à maneira dolorosa das necessidades vitais e animais: comer e beber, primeiro, dormir depois, se proteger das intempéries. Nada mais. Depois dele, há aqueles que disputam a esmola dos ratos e dos cães errantes, dos gatos perdidos e dos parasitas. Eles se definem pelo império que os domina, feito de necessidades elementares, e a urgência de as satisfazer, sem o que não existe vida. Mendigos, diziam não há muito tempo, antes que a conjuração do termo pelos imbecis - como se isso fosse capaz de fazer desaparecer aquilo que nomeia - permitisse o triunfo da perífrase do sem-domicílio-fixo, também chamado prosaicamente de SDF, tal uma sigla que, mágica, dispensaria o significante de toda relação com um significado qualquer e equivaleria à prestidigitação do real unicamente através da semântica. Eu quero conservar o termo mendigo.v= também por razões etimológicas, pois este se define primeiramente por aquele que manqueja, coxeia; e coxear::f:.::f:.::f:. quer também dizer ser defeituoso, infringir uma regra qualquer, se instalar do lado ímpar e esquerdo - eu retomarei a essa esquerda -, mostrar sua fraqueza, sua inadequação, seu inacabamento, seu desequilí-
* Em francês, ** Clochard, *** Clocher,
malheur. (N. do T.) em francês. (N. do T.) em francês. (N. do T.)
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brio. Hefesto e Jacó eram mancos por terem lutado com Deus, e os mendigos porque são os vencidos de uma luta mortal contra Leviatã, as forças sociais e políticas conjugadas. Eles mancam depois de terem sido derrubados pelos deuses do dinheiro e do capitalismo arrebatado. Mendigo e vagabundo, é o que aparece aos olhos daqueles que recusaram o combate contra esses deuses para se entregarem de corpo e alma eximindo-se de toda luta. Sujos, hirsutos, fedorentos, vestidos de farrapos, amarrados como embrulhos, protegidos por artefatos que são também uma colagem de dejetos, os mendigos aumentam freqüentemente sua claudicação pelo uso do álcool como único viático, único revigorante permitido para atravessar as provas do frio, da fome, da noite, da solidão, do abandono e do isolamento. O vinho ruim dá ao corpo algo com que se sustentar e se aquecer quando tudo em volta se mostra hostil. Esse coxear ao qual se acrescenta o modo de andar de lado daqueles que estão embriagados mostra a ofensa feita à verticalidade que define o homo sapiens e o retorno insensível para aquilo que faz a regressão da espécie: verticalidade, bipedismo; depois arqueadura, equilíbrio precário, desequilíbrio; enfim, uma mistura de quadrupedismo, senão reptilismo ou de prostração que designa o caminho ao qual foi forçado o maldito: a reconfiguração em seu corpo e em sua pessoa - como uma perversão à idéia de que a ontogenia recapitula a filogenia - de estados anteriores à hominização. Essa retroversão da humanidade faz com que o maior dos malditos percorra em marcha à ré todas as etapas de um progresso ancestral que se torna um regresso atual: deitado no chão, confundido com a calçada, perdido no meio de caixas de papelão empilhadas, embriagado, senão derrubado pelo álcool, o mendigo não se limita apenas, pode-se perceber, a alguém que define sua pri vação de um domicílio fixo, é também aquele cujo único domicílio fixo é o corpo vivido como uma maldição, uma perpétua ocasião de recriminações, corpo que é preciso alimentar, refrescar, vestir, proteger, aquecer, corpo irmão, nesse sentido, dos deportados e prisioneiros. Corpo que seria preciso poupar, não o expondo
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aos perigos das carências alimentares, térmicas ou de sono, corpo que deveria evitar tanto a ação da violência contra si quanto o seu desvio e a sua canalização contra os outros. Por sinal, será que se imagina o que representam as necessidades de defecação quando nenhum local fechado e privado permite que se esconda a própria animalidade? Malditos constrangidos por Leviatã a se aliviar como os animais, quase em público, praticamente visto e sabido por toda gente, o Inferno da Divina comédia não tinha pensado nesse tipo de penitente e de expiação. Em compensação, os campos de concentração, senão algumas prisões francesas, pensaram. Os malditos são aqueles que, na impossibilidade de satisfazerem suas necessidades corporais, se rebaixam ao espetáculo da humilhante animalidade que, de outra forma, repousa em cada um de nós, confinada para o uso privado e confidencial. O mendigo é privado de uma vida privada, por encontrar-se sempre em público, exposto aos olhos do primeiro a chegar, o passante banal. Reduzido a um corpo restrito num único clamor, o maldito lembra o homem pré-histórico anterior ao período neolítico, aquele que mantinha uma proximidade ainda maior com os mamíferos ditos inferiores. Proteger-se do perigo, de onde quer que ele venha, pois todos são predadores potenciais para o maldito; cobrir-se, encontrar um abrigo contra as rudezas do clima, pois o gelo do inverno equivale a uma condenação à morte tanto para eles como para os animais; fabricar o fogo, simbolicamente redescobrir o sentido da morada' e sua lareira, em torno da qual elabora-se um pouco os meios de conjurar a total assimilação aos bichos. E isso permite pelo menos sobreviver. Mas também, e desta vez para viver, é preciso igualmente relançar sobre.a cena do mundo moderno e industrial o fator ancestral da caça, da pesca ou da colheita, atividades que se tornaram, após transfigurações, as técnicas da mendicidade de hoje. As florestas desapareceram, e com elas a natureza hostil e perigosa, dissimulando todos os perigos a cada instante. Não há mais feras preparando emboscadas ou animais predadores, não há mais perigos vindos do matagal, das moitas, das cavidades, porém, sem limite é a hostilidade das cidades tentaculares
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e desmedidas, das metrópoles megalômanas e furiosas. As atividades da mendicidade se aparentam às técnicas primitivas permitindo a nutrição pura e simples que precisa de uma repetição perpétua cada vez que o corpo manifesta suas necessidades. Vencer o nada, a morte, refeição após refeição, dia após dia, confinado dentro de um tempo de puro e simples imediatismo, o maldito vive privado de toda possibilidade de futuro, ele sofre aqui e agora. Amanhã será um outro dia, talvez o dia do falecimento, já que é preciso viver no cotidiano em companhia da morte e de seus atributos. O espaço é fracionado como um território sobre o qual se desenham e se determinam, quase que em superposições simbólicas com as evacuações comuns de fezes e urina, as zonas controladas, senão submetidas às leis não escritas referentes à etologia mais elementar: a luta pela existência e pelo espaço vital, o direito do solo e do primeiro ocupante, a seleção natural imperdoável, a gestão solitária e tribal das riquezas e dos bens, a horda constituída à maneira dos rebanhos. Aqueles que anunciam impacientemente o fim da história deveriam se interessar pelo retomo à pré-história em certos casos. De modo que os princípios teóricos herdados da era neolítica encontram sua ilustração na prática dos territórios onde se pode mendigar sem invadir o espaço do outro, debaixo dos viadutos, subterrâneos, pátios de edifícios coletivos, desvãos, escadas e outros terrenos baldios que podem ser ocupados sem lesar ninguém, esconderijos mais elaborados, depósitos, ou locais mais esperados, que se utilizam para preservar assim o que resta dos laços e das raízes com o mundo daqueles que não são malditos, papéis, documentos, objetos. fetiches - tudo supõe e necessita um esquadrinhamento do espaço e um domínio das parcelas conforme a ordem das forças e das necessidades vitais. Um tempo reduzido ao imediato, um espaço ordenado em virtude dos princípios estabelecidos por Darwin constituem as únicas riquezas que restam ao maldito. É por isso que ele não quer se deixar despojar daquilo que lhe resta como particular dentro das instituições caridosas - os mesmos amantes de neologismos pudicos dizem caritativas - onde é preciso, para ser
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admitido, abandonar até seu usufruto livre do tempo e do espaço em prol de outras referências impostas pela instituição: horários, repartições dos quartos, renúncia a um resíduo de autonomia em prol das ordens dos responsáveis que anunciam a hora de acordar, de dormir, das refeições, obrigando a despirse, a lavar-se, uma regulagem que só se consente abdicando daquilo que subsiste de amplitude. Paradoxalmente, a rua continua sendo o que resta ao maldito quando tudo lhe foi suprimido - bem se pode dizer, às vezes, um luxo inaudito para aqueles que só têm um corpo exigente e doloroso, frágil e imperioso. Mesmo se deve partilhar essa geografia monstruosa com os cães errantes, os ratos esfomeados e as dejeções animais ou latas de lixo viradas, o maldito mostra uma excepcional vitalidade, uma coragem inominável e uma força que me é difícil imaginar naqueles a quem eles devem tal condição: os guardas das galés do capitalismo arrebatado. Desguarnecidos, empobrecidos, diminuídos, destruídos, eles preservam seus seres com uma energia que aumenta ainda mais minha admiração à medida que desprezo aqueles que, longe de serem as dejeções do Leviatã, vivem com ele, dele, obtêm seus favores acariciando-o, adulando-o, celebrando-o todos aqueles que não se revoltam minimamente com essa situação de fato e essa miséria que circunscreveram nomeando-a conjuntural, explicando que ela procede necessariamente da crise, quer dizer de um estado excepcional e passageiro, enquanto a miséria é estrutural e decorre de um modo de repartição social, política portanto, dos recursos e dos bens, das riquezas e dos valores. Eu retomo Dante e aponto as expiações inventadas pela sua imaginação: se bem que tenha sido sem limite, ela permanece aquém daquilo que sofrem os malditos do mundo moderno, aqueles do primeiro círculo. Chuvas negras e glaciais, tempestade infernal, insaciável desejo, submissão à lama, condenação aos trabalhos repetitivos, a submissão aos insultos, imersão nas águas sujas, esquartejamento pelos cães; em outros lugares, são mergulhados nos rios de excrementos, cobertos de sarna e de lepra, devorados pela sede ou pelas
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febres ardentes, presos dentro do gelo: são essas as punições vividas todos os dias por eles, nas ruas da França, e não em um Hades hipotético fruto apenas das imaginações. O que lhes é poupado? Dormir nos túmulos ardentes, se revolver nos rios de sangue fervente, ser transformado em árvores que choram e gemem, deitar sob uma chuva de fogo, ser chicoteado pelo diabo, ter a cabeça mergulhada em buracos circulares, a planta dos pés queimadas pelas chamas, ser encharcado em resina ardente ou arpoado pelos demônios, mordido pelas serpentes, ou perfurado pela espada dos diabos; é verdade, mas é simplesmente porque seria difícil encontrar diabos, demônios, sangue em quantidade ou mágicos capazes de transfigurar as dores sofridas em lamentos vegetais. Pois, no terreno metafórico, o sangue, o fogo e as lágrimas, as pancadas e os vexames não faltam num mundo onde triunfa a lei da selva. O que eles fizeram para merecer essas penas infamantes? Por que lhes recusam a esse ponto qualquer aspecto humano, qualquer condição de dignidade? Em Dante, pelo menos, era preciso cometer pecados, ter errado: luxúria ou gula, avareza ou cólera, heresia ou violência, fraude, sedução, adulação, simonia ou tráfico, concussão, hipocrisia, roubo ou perfídia. Foram eles cismáticos, falsários, alquimistas, falsificadores ou traidores? Nada disso, que é com freqüência e na maior parte do tempo o quinhão e o cotidiano daqueles aos quais eles devem sua degradação. E então? Então nada, eles são simplesmente os dejetos de Leviatã, as dejeções do corpo social que fez a festa sem eles, apesar deles, graças a eles, contra eles. A culpa é deles? Não ser utilizado pela comunidade, ser rejeitado em tudo e em todo lugar por causa da inutilidade decretada. Sub-homens assim desejados até por aqueles que, com freqüência, debulham os artigos da Declaração dos Direitos Humanos ou troçam da excelência de todas as constituições possíveis e imagináveis. A miséria suja, aquela fedorenta e enjoatíva que enfastia e causa náuseas, resulta do funcionamento da máquina social, é uma reciclagem dos restos, uma produção daquilo que, mesmo em PIatão, por
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causa da extrema vilania, como as unhas, os cabelos ou a sujeira, jaz como puro fenômeno, sem correspondência inteligível. Degradação entrópica do único ser em questão: o ser social e as máquinas que o acompanham. Do primeiro círculo, portanto, guardaremos a vagabundagem, o nomadismo involuntário, o abandono, a negação da dignidade e a tirania radical de um corpo reduzido à sua mais simples expressão. Desejos em estado puro, brutais e violentos, primitivos e voltados para Tânatos, necessidades incandescentes a satisfazer sob pena de falecimento - os famosos desejos naturais e necessários de Epicuro. Malditos, abandonados, perdidos, eles se esfregam na morte todos os dias, vivem com ela, se batem contra ela. Seu triunfo sobre o cotidiano assinala a cada instante que eles podem ainda viver, como se concede uma esmola, com uma parcimônia precária, suportando uma lâmina atrás da cabeça, pronta a cair a cada segundo. Deixemos esse primeiro círculo do qual os sociólogos poderão contabilizar a população e precisar que relação numérica ela mantém com aquela do segundo círculo. Dentro do conjunto infernal, a progressão se registra de maneira exponencial. Muitos malditos, porém mais ainda os reprovados, que mais uma vez definirei em sua relação com Leviatã: os primeiros são as rejeições, as dejeções; os segundos, os sintomas da patologia do corpo social, aqueles que estão em equilíbrio, prestes a cair, saindo da incerteza de seu círculo para o primeiro, o da condenação, ou para o terceiro, cuja natureza eu designarei mais adiante. Os reprovados, então. Eles são os sintomas de uma patologia pois revelam uma fragilidade, uma precariedade topológica entre a doença social mortal e a doença crônica assimilada do proletariado. O empobrecimento define os contornos da dinâmica que rege a ordem desses círculos, seus entrecruzamentos, suas separações, seus pontos de junção, de fricção, de comunicação. Beneficiários de uma prorrogação, e ainda não condenados como os primeiros, os reprovados podem ainda
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esperar um lugar, ainda que modesto, dentro do mundo dos proletários que fornece o maior número de locatários do último círculo desse inferno miserável. Para conservar o vocabulário cartográfico de Dante, eu distinguirei dentro deste segundo círculo um regaço constituído pelas figuras proibidas de atividades sociais e uma fossa plena de excluídos que foram privados de trabalho. O regaço, primeiramente. Digamos que ele contenha, em ordem crescente de utilidade social, segundo as categorias praticadas pelo Ocidente capitalista, os velhos, os loucos, os doentes e os delinqüentes. Os malditos supõem um puro corpo nômade; os membros do regaço, um corpo improdutivo *, seja momentaneamente, seja definitivamente, que se saiba que a situação é irremediável, ou que se imagine a possibilidade de uma evolução. Pensaremos, para evoluir num mundo assim, nas análises magistrais de Michel Foucault, que propôs uma genealogia, uma arqueologia, uma tipologia, uma metodologia dos locais de confinamento reservados a,esses reprovados: o hospício, o asilo, os hospitais e a prisão, todos fortalezas onde são concentrados e conservados aqueles que a sociedade terá recolhido por causa de inutilidade social caracterizada, momentânea ou definitiva. Conhecemos as temáticas do enclausuramento, da disciplina, da confissão, da infâmia, da governabilidade inervando a obra de Foucault. Elas permitem o material conceitual analítico das lógicas que governam este fragmento do segundo círculo. Em que são eles pecadores, esses bodes expiatórios de um corpo social preocupado com a eficácia e a rentabilidade? De ter tomado naturalmente, voluntária ou involuntariamente, sob efeito de tropismos hereditários ou de vontades deliberadas, pouco importa, caminhos enviesados, vias oblíquas que transgridem o ideal formulado para si mesmo por Leviatã: juventude, saúde, razão e moralidade. Dir-se-ia um lema de admissão para um grêmio de seguidores de Pétain. Quatro virtudes cardinais que o corpo social não suporta ver extraviadas. Pecado contra a religião social, insulto feito ao narcisismo do Leviatã que celebra imagens de si próprio, formula ícones para os quais exige uma
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franca, nítida submissão, uma enfeudação infalível. Caso contrário, é o recolhimento, o cativeiro, o isolamento. Os velhos e as velhas, aos quais são negados todos os direitos salvo o de ser ainda consumidor e gastar de sua aposentadoria no jogo social consumista, sofrem progressivamente a privação de toda arrogância permitida aos jovens: sem sensualidade, nem sexualidade triunfante, uma vida privada que se quer modesta e discreta. Empurrados docilmente em direção à saída, os afagamos, conservamos e veneramos, desde que reeiclem suas economias dentro da máquina social. Reconhecidamente improdutivos - exceto quando fazem política, onde o limite etário não existe -, eles são afastados com a mesma veemência com que lhes sacrificaram sua liberdade, sua vida, sua energia, sua existência no tempo em que se empenhavam para alimentar a máquina social, no seu período dito ativo. Suas forças definitivamente irrecuperáveis, a dose de isolamento a ser infligido é ajustada: de uma participação modesta, discreta, recuada, para os de mais sorte, ao gueto puro e simples prometido àqueles cujas mecânicas já estão demasiadamente gastas para que sejam destinados a outra coisa além da morte em casas pudicamente chamadas de repouso. Da mesma forma para os loucos cujos corpos não obedecem mais docilmente às injunções sociais, entregues ao capricho, à invenção, ao delírio, à quase improvisação sempre associal. Insensato, aquele que desertar a razão ocidental será declarado inapto a ocupar uma função no seio do corpo social. Espírito inutilizável, alma improdutiva, corpo achincalhado portanto, relegado, negligenciado. Desgraçados aqueles a quem essa faculdade, adestrada como um animal doméstico, faltar por pouco que .seja: por limitação, pobreza, deficiência, inadequação ou por ausência, é ela que autoriza a colocar de lado os infelizes que foram esquecidos. Todo o sistema escolar, que vive do adestramento e da domesticação, busca classificar as razões em função da utilização dócil que sabem, ou não, fazer daqueles que são educados. O diploma atesta e certifica a utilização correta da razão, quer dizer, sua execução segundo os costumes sociais confirmados, mas certamente não em virtude
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da pura inteligência ou da inventividade radical. A razão razoável e raciocinante triunfa como um produto de Leviatã, numa criação destinada a medir o grau de obediência e de submissão dos impetrantes. A razão funciona como um excelente indicador da dose de socialização que são capazes de estocar os solicitantes de reconhecimento social, aqueles que esperam do animal um salvoconduto, uma autorização para tomar parte no festim ao qual ele convida as naturezas benévolas. Dentro da lógica que anima o Leviatã, e em virtude da qual todo particular só vale quando está convencido da necessidade de sua subsunção ante o universal, a razão triunfa como instrumento da socialização bem-sucedida, tal um argumento empregado em favor da negação, da dissolução da individualidade dentro da totalidade. Sua utilização calibrada e determinada serve à antinomia perpétua entre o indivíduo e a sociedade. O louco aparece assim como a encarnação daquele cuja razão suprimida torna improvável a integração social. Seja porque manifesta a impossível dominação do coletivo sobre um indivíduo, de modo diferente da obtida por encarceramento e camisa-de-força; seja porque ele mostra, com atos, num corpo, numa carne, a obra de destruição da qual é culpado o Leviatã, no lugar daqueles que, frágeis, resistem à sua ascendência antes de acabarem pulverizados por ela. Nos dois casos, o diagnóstico da loucura é o que torna irrealizável toda subsunção do indivíduo sob o ventre gelado do animal social. Sem sua juventude e sem razão, não há chance alguma para o indivíduo existir integralmente. Nem quando a saúde física parece abatida ou ausente. Assim essas três condições são exigidas para que um corpo possa ser reconhecido como tal e integrado no jogo social contemporâneo. O corpo improdutivo não poderia ser realmente um corpo, pois se espera dele que seja em cada detalhe um resumo semelhante ao corpo social. Após servir de modelo para a mecânica social e política, a fisiologia das carnes e o princípio dos organismos, das circulações de fluxos, das ventilações das excreções, das ingestões e digestões agem com efei-
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to de revés. Tornado autônomo, o corpo político, decalcado sobre o corpo dos indivíduos, exigiu e obteve que sua própria carne tomasse como modelo as virtudes do corpo social: saúde, vigor, eficácia, produtividade, rendimento, performance. Tudo aquilo que não ilustra a excelência e a pertinência do modelo induz à rejeição social. O doente surge como prova de que um organismo social pode igualmente conhecer patologias diversas - o que é intolerável. O corpo momentânea ou definitivamente improdutivo, caso venha a ser afetado por uma doença com solução, cura, recuperação, ou por uma patologia incurável, definitiva e irremediável, é mandado para o lado dos reprovados com sursis ou dos reprovados categoricamente. De um lado, os corpos afetados de maneira benigna, ocasional, operáveis, suscetíveis de uma reinjeção dentro do jogo social após a recuperação e conformidade; do outro, aqueles que a doença martirizou até a medula e que não abandonará. Câncer em fase terminal, AIDS declarada, paralisias diversas, entre as quais a tetraplegia atinge a quintessência de sua forma. A esses, doentes de um dia ou para sempre, o Leviatã designa o hospital como um local fechado, um espaço de enclausuramento regido por leis diferentes das que valem do lado de fora. Atrás dos muros, não há nenhuma medida comum: sob a lâmpada da sala de operação, sob o néon dos quartos de reanimação ou de convalescença, o modo feudal governa em função do poder de direito divino de que dispõe o sábio, raiz do despotismo esclarecido, graças à ciência e seu poder mágico de investigar os corpos e de os recolocar em bom estado. Sozinho, ele decide o futuro de um corpo: seja definitivamente improdutivo, seja reciclável dentro dos prazos que ele fixa. Em caso de improdutividade devidamente constatada, estabelecida pela faculdade e sua ordem, o doente é integrado ao batalhão de reprovados que serão abordados a partir de então pelo modo da compunção, da condescendência ou da infantilização. Pelo modo da escusa, ao menos, cuidadosamente conservada, pois se contornará o sujeito, a questão, o problema. E então, que ele
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seja colocado de lado, esperando a morte, provedora da mais inegável e menos contestável improdutividade. Enfim, esses corpos podem ser improdutivos, não porque a fisiologia derrapa, sai da estrada e se mistura ao cenário, mas porque o querer, o livre arbítrio, o poder decisório, vamos chamá-lo assim, não é utilizado da maneira que o Leviatã espera que seja. Não a carne faltosa, mas a decisão faltosa: o delinqüente é o indivíduo indócil diante das vontades do grupo, ele aspira a outra coisa, de outra forma. Ora, como se pode querer algo que esteja fora daquilo que o corpo social impõe como único objeto de desejo possível? Quem pode, sem se marginalizar, se querer um reprovado, fazer a escolha da infâmia, optar por uma autonomia de julgamento, em seguida fazer com que este resulte num ato, num feito, num gesto irrepreensível? Que suicida prefere a autonomia do seu próprio desejo ao desejo gregário e comunitário? O delinqüente quer outra coisa além daquilo que limita socialmente sua força. Ele se coloca num mundo onde o Leviatã não existe. Vive da pura e simples expressão do seu querer, sem nenhuma inquietação, sem nenhuma preocupação ligada a imperativos sociais. Dentro do julgamento que fazem os detentores da ordem social, os defensores do território ocupado pela fera maléfica, o delinqüente aparece, tal um irmão do louco, como desprovido de razão, ou mesmo de toda saúde mental. Pelo menos sem moralidade, essa virtude fabricada com a moralina para justificar e legitimar recompensas e punições distribuídas pelos serventes de estábulo do Leviatã que são sempre os juízes, os padres, os legistas, os professores e outros detentores da ordem moral, logo, social. A expiação é exigi da para aquele que, culpado de improdutividade, preferiu a facilidade dos vícios que transgridem as virtudes de humildade, candura, pobreza voluntária, moderação e outros ornatos éticos aos quais recorrem os profissionais do adestramento social. A prisão equivale a hospício, asilo e hospital: ocasiões para desativar as energias catalogadas como negativas diante dos dogmas da religião comunitária. Quando não são locais onde se trata ou se administra essas pretensas
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patologias sociais que estorvariam o bom andamento, rentável, da máquina gregária. Surpreendentemente, os reprovados deste regaço definido pelo enclausuramento dos corpos improdutivos são assistidos de maneira inversa ao que se pode esperar da reclassificação no lugar do corpo social. Jamais se recupera a juventude, às vezes a razão, a maior parte do tempo a saúde, sempre, se assim desejar, a moralidade. E, no entanto, somente os irremediavelmente condenados concentram as máximas solicitações benevolentes, assim como os loucos incuráveis ou os doentes condenados a morrer num curto prazo. Recolhidos, afastados do sistema, eles se encontram como que à margem, dentro de um inferno dourado. Inversamente, os delinqüentes presos são sujeitos a penas desproporcionais, visando, a maior parte do tempo, a punição pura, a humilhação crua e a expiação seca, em detrimento de toda reinserção possível ou pensável, o oposto do que deveriam ser os processos ou os cuidados para a reintegração social. Promiscuidades, defecações comunitárias, privação de sexualidade, ofensa às regras elementares de higiene, obrigação a uma vida coletivista, submissão de toda vontade e de toda liberdade, de toda autonomia e de toda independência ao princípio da autoridade que legifera em tudo e para tudo: o tempo e o espaço são ordenados como os territórios animais, sendo proibido utilizá-lo de outra forma que não seja a determinada pelo regulamento. Uma vez revelado o uso dos códigos, induzir-se-á ao adestramento para sempre em uma instituição aparentada às mais retrógradas dentre as mais retrógradas. Como se oobjetivo fosse fazer pagar mais caro a má utilização de um corpo e de uma vontade, que poderia ser estendido até a submissão social, àquele que não tem escolha e age em virtude de um tropismo de necessidade. De onde concluo que se pune a vontade livre tornando corno pretexto o objeto que ela terá escolhido, sem a preocupação dos costumes, pois na verdade o Leviatã não suporta o exercício puro e simples dessa vontade fora daquilo que ele decretou.
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o regaço
dos corpos improdutivos supõe o enclausuramento e o modelo carcerário, a sociedade fechada e o encerramento em micro-sociedades onde os próprios regulamentos chamados interiores - punem com rigor, às vezes em contradição com aqueles de fora: da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aos direitos positivos do velho senil, do louco, do doente ou do prisioneiro, há uma distância considerável. Nesse afastamento, nesse corte, nessa abertura, se instala a miséria que eu disse caracterizar os reprovados tratados como pobres, como provas da existência de patologias sociais que têm também outra modalidade: não mais a dos corpos improdutivos, mas a das forças improdutivas e errantes. Permaneçamos na terminologia de Dante e falemos agora de uma fossa que contém aqueles que foram privados, como os precedentes, mas de trabalho. Vêem-se os imigrantes clandestinos, os refugiados políticos, os desempregados, e mesmo essa categoria associada à panóplia de novos signos: os érémistes malditos= que se pode definir como os assistidos ao mínimo, antes de tombarem de seu destino ao lado dos malditos. Gente sem terra e sem atividade, sem nacionalidade e sem trabalho, eles se encontram com muita freqüência além dos limites dos lugares onde se tomam decisões, com fronteiras nítidas e bem demarcadas, lá onde estagnam as vítimas da força centrífuga das cidades, brutais, cruéis e imperdoáveis: subúrbios, conjuntos residenciais, zonas de edifícios que abrigam às vezes, num único prédio, o equivalente à população de um burgo do interior sem nada do que permite a convivência das aldeias no campo. Lá onde eles estão vivem aqueles sobre os quais o poder é sempre exercido, e que, sem interrupção e sem remissão, são submetidos às misérias, às calamidades sociais e às troças consubstanciais dos delírios de Leviatã. Vindos da Somália onde os clãs em guerra matam uns aos outros, da Argélia onde os
,;. Aquele que, na França, sem nenhum outro rendimento, recebe do Estado um benefício mínimo visando a sua reinserção no mercado. (R.M.I.: Revenu Minimal d'Insertion.y (N. doT.)
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histéricos integristas seviciam, da Bósnia onde se purificam os sérvios, da Moldávia onde se desencadeia o anti-semitismo, tamuses fugindo da guerra civil, afegãos perseguidos pelos muçulmanos no poder, os ciganos ainda e sempre presas fetiches dos bandos de fascistas, etíopes atacados pela fome, magrebinos arrancados de suas terras secas e desérticas, todos saíram de um inferno para encontrar outro, preferido contudo àquele onde há o risco de morrer por causa da fome, da guerra, da perseguição ou do terrorismo. Errantes soltos, de passagem e desenraizados, esperando da França a hospitalidade que, incessantemente e diante de todos, ela diz oferecer, e que sempre oferece mesquinhamente, eles são os reprovados sobre os quais outros reprovados, freqüentemente, concentram toda sua agressividade, encontrando o bode expiatório no que há de mais infeliz, mais pobre e mais desguamecido. Entretanto, todos pagam as despesas dos usos e costumes do Leviatã na civilização capitalista, todos sofrem e suportam as mesmas denegações de um social que fustiga e persegue aqueles que reivindicam uma miséria como forma de pagamento e de salário por essa riqueza que faz falta - o trabalho. Ora, a dita falta de trabalho é sabiamente mantida por aqueles que têm interesse nessa penúria: os atores e os beneficiários do capitalismo arrebatado para os quais é conveniente dispor de um reservatório de mão-de-obra pronto a aceitar qualquer coisa e sob qualquer condição, estagnado nas zonas mais incandescentes e mais perigosas do pauperismo. A bordo dos mesmos barcos precários, os desempregados autóctones, esses que também vivem da renda mínima de inserção, engordam as forças improdutivas dentro de uma lógica que fez do trabalho um valor absoluto, uma ética propriamente dita. Ora: essa moral dolorista= decorre diretamente dos esquemas cristãos, segundo os quais o labor tem por genealogia a natureza pecadora dos homens e há um sofrimento consubstancial com o trabalho como uma punição, uma expiação, necessárias em virtude das faltas cometidas pelo primeiro
* De dolorismo,
doutrina da utilidade do valor moral da dor. (N. do T.)
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homem: o trabalho deve ser sofrimento para aqueles que o têm, e maldição para os que dele estão privados. Então triunfa a ideologia dominante do ideal ascético: aqueles que com ele sofrem não têm meios de escapar, aqueles que o desejam não têm ocasião de consegui-Io. Enquanto isso, todos sofrem por ele, para ele. Recordemos a etimologia, mais uma vez, que faz com que trabalho derive de tripalium, um instrumento de tortura, explicando com clareza o que seria preciso achar de toda atividade laboriosa e assalariada, se estivéssemos submetidos, os punhos atados aos pés, as épistémés que, no dizer de Foucault, resultam do ódio do corpo e jubilam com todas as atividades que permitem a castração, a contenção, a retenção, a suspeição no lugar da carne, dos desejos e dos prazeres. A religião do trabalho fez do desempregado um mártir. O fervor que ela exige e os sacrifícios que espera transformaram os solicitantes de emprego em pecadores e em penitentes que podem obter o perdão e a salvação à medida que merecerem e receberem uma redenção à custa da impassibilidade e da submissão às necessidades das leis, se não da fatalidade, pelo menos de um mercado que faz reinar seu terror por meio da penúria organizada do trabalho no lugar da partilha. Considera-se ainda que um outro modo de repartição diminuiria as penas coletivas dos que sofrem de um excesso de trabalho e dos que penam por não tê-Io. Utopia, dirão alguns cujos ancestrais, já naquele tempo, há dois séculos, vociferavam as mesmas invectivas enquanto outros falavam de suprimir o colonialismo, a servidão, a escravidão ou o trabalho infantil. Com seus gritos de águia-marinha que profetizavam o fim da economia, a regressão secular, a catástrofe monetária, o desabamento dos mercados, eles não pararam de ser desmentidos na história pelos fatos, mas não cessam por isso de persistir no catastrofismo logo que se trata de justificar o estado das coisas e legitimar o mundo tal como ele é. Na falta disso, e para assegurar a manutenção da manjedoura do Leviatã, os auxiliares do grande animal, seus turiferários, ensinam que o improdutivo de hoje deve viver de espe-
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rança antes de tomar-se produtivo amanhã. De maneira que, preocupados com os amanhãs prometidos que não chegam nunca - posto que, incessantemente, são adiados para o dia seguinte pelos economistas liberais, esses charlatães patenteados de nossas épocas -, os reprovados se contentam em desencantar-se dia a dia, e aceitam, dóceis, submissos, o estado em que são mantidos. Consumir, tomar-se ao menos um trabalhador recompensado por aquilo em função de que ele abdica de liberdade e autonomia para poder comprar ridículas quinquilharias celebradas como fetiches: é isso que é apresentado como horizonte quimérico àqueles cuja aspiração é ingressar, ao som de tambores e trombetas, no terceiro círculo. Entre o primeiro e o segundo círculo, entre os malditos e os reprovados, há uma instância dinâmica e móvel que permite pontos de junção e de passagem. Da mesma forma, entre o segundo e o terceiro círculo, entre os reprovados e os explorados, encontra-se um mesmo ponto que desempenha uma função idêntica. No primeiro caso, o espaço é habitado pelos indivíduos em situação de fim de direitos sociais, no segundo, pelos trabalhadores temporários. Os dois mundos são plásticos e contêm pessoas que, conformemente, irão se encontrar, após um tempo de utilidade vendido ao Leviatã, devolvidas a um dos três círculos. O término dos direitos e a interinidade dizem respeito àqueles que, a cada vez, assumem a situação intermediária, ainda não malditos, e que acabaram de ser reprovados; não mais exatamente reprovado e ainda não totalmente explorado de maneira legal, corrente e garantida para o outro. Aqui, a perspectiva do pior, a queda; lá, a do melhor, o compromisso com uma escala cuja extremidade supõe o céu e o afastamento dos vapores mefíticos do inferno. A máquina social diz para um que ela não o quer mais, o rejeita, o recusa após o uso; para outro, ela notifica que o prepara, durante o tempo que precisa para persistir em seu empreendimento e seu império.
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Esse terceiro círculo, portanto, é o dos explorados, dos que são espoliados, dentro da mais perfeita legalidade, de sua existência, até mesmo da substância de sua vida, e reduzidos à condição de obter dessa renúncia apenas os meios de recomeçar no dia seguinte e de prover suas necessidades mais modestas. Vendedores ou locatários de sua força de trabalho, seu único capital, sua única riqueza potencial, eles formam o grosso da zona, para utilizar ainda as categorias de Dante, que define a privação de segurança e a força nômade embriagada de trajetos de seu próprio destino errante. Encontramos aí os trabalhadores temporários e os contratados, certamente durante o tempo em que estão integrados ao mundo do trabalho, esperando mais sinistras perspectivas, mas também seus aprendizes, aqueles que mesmo seu status legal e as convenções coletivas justificam que sejam considerados escravos sujeitos a impostos e corvéias à vontade. Sem status, sem salários decentes, sem perspectivas, sem meios de fazer respeitar as regras elementares do direito do trabalho cujo único triunfo é a declaração de intenções, desarmados e nutridos pela esperança, assim como solicitados com cacetadas ou estimulados com uma cenoura, eles aceitam, hoje, ser espoliados na incerteza do instante, esperando poderem encontrar-se, amanhã, na certeza de um contrato que lhes garantirá a possibilidade de sofrer esses maus tratamentos com garantia e regularidade. Privados de garantia, eles são solicitados conforme o querer e as necessidades ditas econômicas ou de produção. Longe dos semblantes de dignidade que autorizam os contratos sinalagmáticos, a precariedade de seu status funciona em relação direta com os caprichos do Leviatã. Em virtude da religião econômica, que é o modelo do seu poder discricionário, o animal social contrata, depois demite; solicita, depois manda embora; oferece um emprego, depois licencia, mas sempre explora conforme sua vontade, seus caprichos e seus desejos. Sua lei se confunde com suas necessidades únicas e estas fazem os homens aumentarem as filas de espera das agências de emprego ou buscarem os jornais assim que saem, para neles procurarem o pequeno anúncio visto como uma possibilidade de salvação, uma promessa de melhoria de sua situação.
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Dentro da turbulência dessa zona se fazem sentir as disparidades e os desequilíbrios atormentando o casal abominável que forma um indivíduo com a sociedade dentro da qual ele se debate. É conhecida a tirania manifesta e evidente assim que a soma dos direitos excede a dos deveres. Da mesma maneira, a servidão define a situação na qual se encontra uma pessoa para quem os deveres exigidos são superiores aos direitos dos quais dispõe. Onde estão então os tiranos e os escravos? Quem poderá dizer que o social ainda respeita os deveres que lhe incumbem em relação aos indivíduos, especialmente aquele para o qual é constituído: a proteção de todos os contratantes e de todos que, tacitamente, aceitaram o princípio do contrato social? O que se pode exigir dos indivíduos, em matéria de deveres, quando a sociedade, e com ela o político, não honram mais nada daquilo que faz o pacto, especialmente em matéria de segurança, de dignidade e de satisfação das necessidades elementares? Tirânicas as sociedades que fiscalizam, requerem, exigem, obtêm, legalizam, legiferam, puncionam, retêm, subtraem, impõem, taxam e quando não perseguem, prendem, constrangem e aprisionam, depois se dizem incapazes de oferecer o mínimo ao cidadão que elas terão roubado, despojado, despido, desnudado. Principalmente em matéria de emprego, o mínimo vital, de decência e de dignidade. Escravos todos aqueles que sofrem o julgamento dessas sociedades e não têm outra alternativa além de submeter-se, de boa vontade ou constrangidos e forçados, à autoridade incontestável de uma pretensa justiça que põe sua polícia, seus magistrados, se não suas forças armadas, a serviço desse vasto empreendimento de espoliação dos indivíduos para o lucro de uma máquina econômica, social e política arrebatada, furiosa e autofágica. E tiranos aqueles que se fazem administradores, funcionários, preceptores, braços armados dessa lógica perversa. As dinâmicas que funcionam dentro do corpo social são centrífugas, elas excluem mais facilmente e mais freqüentemente do que permitem a inclusão, a inserção ou a reinserção social. Freqüentes são os trajetos que fazem de um explorado
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um reprovado, depois um maldito, antes da dissolução nas múltiplas dejeções sociais. Quantos podem se prevalecer de um encaminhamento inverso, não na direção das trevas, mas na direção da luz? Aí, também, os sociólogos deveriam fornecer os números desse sacrifício perpétuo oferecido às potências sociais mortíferas. Aí se veria, calculada, a contabilidade do diabo, aí se leria, desenhada com carvão, a cartografia desse inferno social. Depois do regaço dos corpos improdutivos e da fossa das forças improdutivas que definem os reprovados, depois da zona das forças nômades que representa o primeiro tempo do mundo dos explorados, é necessário que eu mencione a comija - ainda palavras de Dante - onde se encontram as forças laboriosas sedentárias. A zona, que era privada de segurança, se faz substituir pela cornija, que define antes de tudo a privação de liberdade. No ponto de junção dessas duas instâncias eu coloco os adolescentes, colegiais e estudantes, escolarizados de todo tipo considerados como perpétuos menores e de quem se espera o comportamento, a elegância e a docilidade dos adultos, embora sejam alimentados dentro da instituição como cidadãos de segunda categoria. Na instância de adestramento, destinados a serem os rolamentos da máquina social, contentes com a própria sorte, incluídos se são dóceis, recompensados se são servis, excluídos se são rebeldes, punidos se revoltados e não fazem o jogo, os colegiais são submetidos ao tratamento dos reprovados do corpo improdutivo. Isentos de corpo, de carne, de sentimentos, de emoções, de afeto, de pensamentos próprios, de problemas pessoais, de sensibilidades, de subjetividade, eles são convidados para os banquetes onde lhes ensinam a macaquear os adultos, a se tomar escravos conforme as regras. Não consigo deixar de pensar nas páginas que Aristóteles consagrou ao que ele chama de "a ciência da escravidão", no capítulo sobre os subhomens que são os indivíduos servis. Essa ciência ensina aos escravos a natureza de seus deveres. Os direitos? Isso é que não, para quê? Toda instituição escolar, mesmo disfarçada sob os ouropéis das ciências da edu-
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cação e de não sei que outra prática pedagógica esclarecida, tem por única função aquilo que pudicamente chama-se de socialização, para evitar nomear de outra forma a arte de fazer curvar a espinha dorsal, de submeter ou de destituir, de obedecer, ou mesmo de mentir ou praticar a hipocrisia. Pois Leviatã e as instituições admitem como verdade somente o que serve a seus desígnios de produzir mentiras sociais. Mais socializadas ainda do que as vítimas do sistema escolar, e como uma metáfora de todo trabalho assalariado, cito as prostitutas, sobre as quais nunca se dirá suficientemente o quanto elas resumem a condição do homem laborioso, o destino dos corpos submetidos às potências sociais, o caráter repetitivo, fastidioso e traumatizante de cada uma das reiterações que fazem a atividade para a qual cada um se dedica, mediante salário - e ainda mais que o salário freqüentemente permanece baixo, se não miserável ou quase inexistente. Elas representam excelentes leitoras de Aristóteles, não porque sejam peripatéticas - as idas e vindas pela calçada bastariam para a proximidade com o Stagirite, um professor caminhante -, mas porque ilustram assim, de maneira quintessencial, aquilo que faz a natureza, a definição e as funções do escravo como se pode descobrir nos filósofos gregos. Com elas ao lado, irmãos e irmãs em destino trágico, companheiros de miséria e infortúnio, os trabalhadores avassalados da fábrica, da oficina, dentro da empresa, os operários e todos os assalariados que são os proletários, aqueles que, em outras épocas, eram os malditos da terra, antes que exclusões mais temíveis os instalassem às margens do inferno, quase em caução, lá onde o purgatório se anuncia, com seus artesãos, comerciantes e camponeses, porém já bem afastados dos lugares onde o mais sombrio, o mais negro, o mais negativo e o mais infernal triunfam completamente. Proletários, dizia Marx, aqueles que não possuem os meios de produção e são submetidos ao aluguel de sua força de trabalho para prover suas necessidades elementares e essenciais. Esses não deixaram de existir e a pauperização aumentou seu número: salários de miséria, cadências infernais, precariedade
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do emprego, tiranias dos supervisores, perspectivas de futuro impossíveis, indignidade das tarefas, embrutecimento dos cargos, sujeição à linha de montagem, exposição do corpo aos perigos, submissão dos espíritos à desmultiplicação infinita das repetições. Seu destino? Esfolar galinhas ao longo do dia, polir a mesma peça durante horas, coser milhares de pontos de tecido, fundir os queijos em quantidades astronômicas, limpar peixes ao longo dos anos, encaixotar peças até a aposentadoria, pintar carrocerias imersos em vapores tóxicos, passar oito horas dentro de câmaras frigoríficas sob temperaturas polares, em locais frios ou superaquecidos, expostos aos miasmas e aos fedores, cortar carcaças de bichos para esquartejamento. E dormir, e voltar: oito horas por dia, cinco dias por sete, onze meses por doze e mais de quarenta anos em uma existência. O que sobra para viver? Entre miséria e pobreza, inquietação e medo de ser privado de sua situação e seu miserável estatuto, esses em questão perdem sua vida a tentar ganhar aquilo que lhes permitirá colocá-Ia novamente emjogo no dia seguinte, inexoravelmente. Assim estão traçados os limites deste terceiro círculo de onde ao longe se consegue enxergar os malditos, e mais próximos, porém ainda à distância, os reprovados, sem saber que se está sendo igualmente explorado, espoliado, privado de si, esvaziado de sua substância, morto antes da hora. Morto vivo. As dejeções do corpo social me assustam, me aterrorizam e me revoltam. Da mesma forma que me encolerizam as condições dos trabalhadores e o esquecimento por parte daqueles que possuem a linguagem, a retórica e os meios de formular essas alienações, mas se calam, culpados pelos seus silêncios cúmplices ou pelas diversões que lhes agradam ao tratar unicamente, exclusivamente, somente daquilo que eu chamei rio acima de misérias limpas. Essa cartografia imprecisa e rápida dos infernos nos quais estão as misérias contemporâneas não pára de me inquietar. Onde pode ser encontrado entre os gregos que justificavam a
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escravidão uma condição específica relacionada ao infra-humano? Uma vez que, para um grego, abaixo do escravo, atrás dele, não existe nada. Sequer os bárbaros, que não são nem mais nem menos humanos, mas radicalmente outros, com os quais aliás é impossível se comunicar, posto que barbarizam e que com eles não se dispõe de uma linguagem comum. A modernidade e o capitalismo arrebatado, em particular, geraram essas categorias sinistras que instalam o escravo - o proletário - no topo de uma hierarquia funesta enterrada nas trevas onde se estagnam malditos e reprovados. E para que então ter instalado este inferno sobre aterra? O que justifica a genealogia desta demonomania cada vez mais inventiva, cada vez mais provedora de perversões e a tolerância que se tem em relação a ela? Provavelmente para garantir uma dominação integral sobre os escravos, tornar-lhes impossível qualquer esperança de salvação, fazer-lhes temer um estado pior do que aquele em que se encontram se acaso eles não se submeterem, corpo e alma, aos diktats do Leviatã, vendido às leis de mercado e convencido por elas. Este inferno teatralizado é o que espera qualquer um que se recusar às regras do jogo liberal. Daí o sucesso garantido dos que anunciam o fim da história, reforçados na propaganda por aquelas e aqueles para os quais não se pode mais nada mudar: seria necessário compor com o capitalismo planetário, mundial, universal, e de hoje em diante se adaptar a isso. Caso contrário? O inferno, a maldição, a miséria generalizada, o pior para todos. Senão, o apocalipse, o retorno do gulag, do fascismo e das ditaduras, o grande mergulho no ânus do mundo e a certeza de ser dejeto para a maior parte das pessoas ... Assim seja. Estou acostumado a ouvir essas pessoas, que fazem ficção descarada para justificar seus canonicatos, apontar a utopia em todos os lugares logo que se fala de modificar as regras, as leis, as normas. Com eles, que negam toda mudança possível, todo o progresso imaginável, seria preciso se contentar com o estado das coisas. Ora, apesar das aparências, a escravidão e a servidão não desapareceram, e mais do que nunca se trata de querer a supressão após a redefinição do
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termo dentro de uma aceitação contemporânea. Deve-se convir que já são distintos aqueles que habitam atualmente um local inventado pela modemidade e que se poderia nomear, aprês Artaud, o umbigo dos limbos. É lá que se encontram os malditos e os reprovados cuja natureza tentei representar. Esses são prioritários em tudo e para tudo. O estado de emergência é indispensável, sempre, em todas as circunstâncias: as sopas populares, as associações de caridade, as assistências beneficentes, o benevolato que se diz agora caritativo, as ações humanitárias pontuais ou regulares devem ser suplantadas por uma política que deixe para trás a caridade, que passe por cima da justiça e queira aqui e agora a eqüidade. Já em La Sainte Famille, Marx estigmatizou as "donquixotices filantrópicas" precisando que elas traem "a organização da beneficência em divertimento". Foi em 1845, há pouco mais de cento e cinqüenta anos. Não muito longe do umbigo dos limbos, há a imensa multidão de escravos - pois eu insisto neste substantivo já presente em Aristóteles. Ou seja, aqueles e aquelas que se definem como instrumentos animados, ao lado dos instrumentos inanimados. Quem contestará que um define o proletariado, o outro a máquina? Eles são a propriedade dos homens livres. Quem se recusará a mencionar o destino, a vida, o cotidiano desses homens entre as mãos daqueles que, sem vergonha, confundem os proletários e as máquinas? Eles são um tipo de ajuda destinada à ação. Quem acreditará que eles são prometidos à contemplação? Eles são servis por natureza, por sua conformação física e sua procedência biológica, fisiológica. Quem invalidará as demonstrações da sociologia ao provar que os filhos e as filhas de escravos são em quase toda sua totalidade escravos também? Que as alforrias são raras, excepcionais e pouco prováveis? Que as próprias ocasiões de alforria quase todas naufragaram nesta civilização enlouqueci da? Elas procedem de uma metafísica que quer que a perfeição submeta quem deve obedecer a quem deve ser obedecido, o corpo à razão, as mulheres aos homens, os animais aos humanos e assim os escravos aos senhores. Quem negará que Leviatã destina os mais
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dóceis e os mais obedientes a assumir a reprodução social e a garantir suas funções de empregadas do social como se elas procedessem de um direito irrecusável e de uma irrefragável lei? Eles são escravos segundo as modalidades de uma ordem beneficente e justa. Quem negará que alguns afirmaram, entre os senhores, que um emprego é uma bênção com a qual se deveria contentar e que o simples fato de dispor de um trabalho deveria apagar toda veleidade de ver e pensar as coisas de outra forma? Afinal, eles o mereceriam ser, escravos, pelo fato de serem originários de um mundo que engendra seus únicos semelhantes. Quem não defendeu o fundamento do sistema de reprodução social das elites, não encontrando nada de suspeito em relação àquilo que obtêm os canoninatos como se herdassem os talentos? Paremos por aqui, o processo se instrui facilmente, a defesa da causa está praticamente feita. Esta "ciência do escravo" se destingue na Politique da "ciência de adquirir escravos" sobre a qual Aristóteles mencionou o parentesco específico com a arte da guerra ou da caça. Ora, vejo na primeira uma prefiguração daquilo que faz a ideologia burguesa dominante, com seus revezamentos escolares, universitários, mediáticos e intelectuais, e na segunda uma definição radical e sem rodeios daquilo que se chama hoje a ciência econômica.
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SEGUNDA
PARTE
DO IDEAL O gênio colérico da revolução
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o REENCANTAMENTO
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o desencantamento do mundo estrutura a religião niilista de nossa época. A existência das fossas, dos infernos e dos malditos, as misérias e os excluídos que encontramos incessantemente, tudo isso faz com que a maioria comungue num desespero que a leva a fechar-se sobre si mesma. Assim encarquiIhando-se, parece ser possível alcançar a passagem da catástrofe, desde que ela nos poupe. Os niilistas, quaisquer que sejam, fazem sempre o jogo dos atores já designados que enxergam nessas carpideiras aliados negativos, menos perigosos que aqueles cujo voluntarismo define a utopia menos como o irrealizável do que o ainda não realizado. Não ignoro as fossas soviéticas, os paraísos radiantes para o amanhã na origem dos infernos de hoje, sei dos crânios acumulados em forma de pirâmide pelo regime do Khmer vermelho, as ossadas dissimuladas dentro dos arrozais como pilares de uma Veneza macabra. Não me esqueci dos rios chineses tingidos com o sangue daqueles que, às vezes, não eram sequer oponentes. Tampouco apaguei da memória as covas nas quais foram jogados oficiais poloneses, ou nas quais os antigos comunistas sérvios extraíram o conforto de um nacionalismo à sua medida. Ora, um homem de esquerda, mais do que qualquer outro, deve saber o que as tragédias deste século roubaram de seu ideal. De modo que se trata de formular, para hoje, um pensamento preocupado em tornar impossível aquilo que justificou, legitimou e tornou possíveis esses períodos sombrios como o inferno. Igualmente, quero pensar a esquerda longe de todos os que tiveram por leitmotiv acabar com a propriedade privada. Desde a formulação desse desejo em Grac-
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chus Babeuf, pode-se ler, como contraponto inseparável dessa proposição, o convite feito pelo próprio autor do Tribun du peuple, de instalar "barreiras guarnecidas de obstáculos" entre a França revolucionária e seus vizinhos para evitar o "contágio de maus exemplos". Entre essas linhas escritas em 1796 no Systême politique et social des égaux e a derrubada do muro dito de Berlim em 1989, teremos visto uma parte da história que se afirma de esquerda conjugar-se por meio da tragédia, do negativo, do sangue e da ditadura. A lição deste século sombrio para a esquerda que não se satisfaz com o mundo tal qual ele se apresenta é evitar fazer da propriedade privada o bode expiatório. Ora, à esquerda, poucos, além de Proudhon, fizeram um elogio da liberdade reforçado por uma crítica, sob todas as suas formas, da autoridade e do autoritarismo. Da mesma maneira, fugindo das opções menos igualitaristas que uniformizantes dos comunistas, fossem eles poetas, como Fourier, ou neocientistas, como Marx, Proudhon conservou a pequena propriedade privada em seu projeto de sociedade anarquista. Evidentemente, essa presciência fez com que se passasse por um defensor dos pequeno-burgueses aos olhos dos que se achavam constrangidos, por suas preferências, a erguer as barreiras guarneci das de obstáculos que nós conhecemos. Na minha opinião, o reencantamento do mundo, quando ele supõe a abolição da propriedade privada, passa inelutavelmente pela edificação dos muros que já vimos em demasia e pelo sistema policial associado. A opção libertária da esquerda passa por uma ação menos obcecada pela destruição da propriedade, pelas expropriações violentas - leiamos e releiamos o Manifesto dopartido comunista - e mais concentrada na proposta de uma economia alternativa, cuja prioridade seria a elaboração de modos polimorfos de produção paralelos aos do capitalismo, ou seja, modalidades transversais dentro do próprio capitalismo. Antes de chegar à hipótese de uma reatualização das soluções propostas por Proudhon, é necessário desejar a revolução
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copemicana, acabar com a submissão dos homens à economia liberal e às suas loucuras generalizadas, de modo a submeter a economia a um projeto hedonista de vida em comum. Não mais servir ao capital, mas colocá-lo à disposição dos homens. O triunfo do capitalismo assinalou a sentença de morte do político e da política em benefício de um puro e simples elogio da técnica de administração dos homens assim como dos bens. A utilização libertária da economia permitiria o retomo do político e das lettres de noblesse= que nunca deveriam ter perdido esta arte da vida em comum transformada, depois da revolução industrial, na ciência da submissão dos escravos aos senhores. Todos prolegômenos ao reencantamento do mundo passam pela revolução copemicana: acabar com essa religião da economia que faz do capital seu deus e dos homens vulgares fiéis, sujeitos a impostos e corvéias à vontade. De modo que é preciso promover um ateísmo em relação a isso, ao menos um confinamento da economia no registro único dos meios e não dos fins. Ela deve estar a serviço e parar de exigir ser servida. Para fazer isso, ela deve se submeter ao político - posto que há muito tempo a política age como servente da economia. Os estragos são remotos e os hábitos ancestrais, já que encontramos na Antigüidade matéria para compreender aquilo que funda esta religião da economia. Ela supõe a primazia da mercadoria sobre o homem, e poderia se chamar síndrome de Hecaton o princípio desta enfermidade particular. Precisemos. Hecaton era um filósofo estóico do século II antes de nossa era, autor de um único Tratado sobre os deveres, perdido porém comentado e criticado por Cícero. Hecaton ensinava que, entre a salvação de um terceiro e a conservação de seu próprio interesse, deve-se sempre preferir a segunda solução. Em caso de escassez, por exemplo, é preciso alimentar primeiramente seus escravos, arriscando seus próprios rendimentos, seus meios de produção ou sua quantidade de bens? Ou se pode querer o inverso? Se acaso, no meio do mar, num barco
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que está fazendo água porque está excessivamente carregado, tendo que escolher entre sacrificar um cavalo de boa raça ou um escravo de pouco valor, qual se deve jogar no mar? Hecaton responde sem pestanejar: é preciso dar preferência ao interesse pessoal sobre a humanidade. A pão seco e água, o escravo, antes de ser jogado pela amurada na próxima viagem. Assim, o proprietário pode dormir com a consciência tranqüila, perto de seus dracmas e de sua cavalgadura preferida. E o escravo junta-se aos malditos da terra, antes de ser lançado no Aqueronte. A síndrome de Hecaton atinge os que praticam a economia como uma atividade isolada e a entendem como a ciência dos bens, das riquezas, excluindo o homem e a humanidade de seus objetos, de suas preocupações. Pior, é igualmente disso que sofrem aqueles que acreditam que a atividade econômica pode ser praticada apesar dos homens, ou seja, contra eles e seu bem-estar. Primazia generalizada do ter sobre o ser, prioridade cardinal aos interesses, aos benefícios, às vantagens obtidas em moeda sobre qualquer outro valor, é isso que faz do aluno de Panécio de Rodes um precursor, uma espécie de Calliclês da economia, tendo feito fortuna através dos anos e dos séculos. Nessa ordem de idéias, a economia vem em primeiro lugar e a política em segundo a seu serviço. Primeiramente o dinheiro e a manutenção das riquezas materiais em bom estado, em seguida, o que sobra. Nada, na maior parte do tempo. A ética das empresas e dos empresários, a moral dos industriais ou dos proprietários, a axiomática dos produtores * ou dos capitalistas, as virtudes dos economistas ou dos banqueiros, estamos diante de um rosário de oximoros. Nossa época celebra de fato a prática da ec-onomia como atividade isolada, ou seja, como uma disciplina excluindo todas as outras - tanto a política quanto a ética. Daí o talento dessa gente para povoar e semear as terras infernais das quais eu propus uma cartografia. A síndrome de Hecaton mostra à porfia, como em matéria de fundação de tudo aquilo que é essencial dentro de uma civilização, o inaugural fundado sobre um sacrifício, e a duração
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assegurada por um holocausto incessantemente reiterado. O sacrifício e o holocausto têm por vítimas emissários, esfolados pelo sacrifício e fetiches propiciatórios, todos aqueles que são destruídos dentro do sistema de produção. Quem estimará um dia as dores, as penas, os males, os sofrimentos, as torturas, as mutilações, as doenças? Quem assinalará as maldições, as exclusões e as condenações? Quem mencionará as sentenças à morte, as matanças, as carnificinas que são devidas a esta religião da economia isolada? Quem mostrará as usinas e as fábricas, as oficinas e os locais onde foram perpetrados esses sacrifícios cotidianos, em massa? Quem contará sobre essas máquinas para extrair os cérebros, esvaziar os corpos e as almas, empobrecer o espírito, marcar as carnes, deformar os esqueletos, envergar os ossos, comprimir as estaturas, desenvolver fisiologia mutante na carne daqueles que foram j ogados no caldeirão de Hecaton? O desencantamento do mundo, o niilismo contemporâneo, o pessimismo generalizado durarão enquanto a ordem das coisas for celebrada segundo as modalidades desejadas pelo antigo filósofo. Da mesma forma, é preciso definir a economia como uma alquimia canibal, uma disciplina de transmutação que desde o tempo dos escravos faz o dinheiro dos senhores. Seu mecanismo funciona de tal modo que absorve as energias, as forças, as vitalidades, as singularidades, os temperamentos, os caracteres, as liberdades individuais daqueles que dispõem somente deste resquício, seus corpos, para reduzi-lo, destruí-lo, parti-lo e dele extrair as lágrimas, o sangue, o suor de um lado e o ouro do outro, com o qual os senhores financiarão festas dotadas do poder de os fazer esquecer, por algum tempo, que eles são mortais. Com a dignidade digerida, a economia isolada produz as riquezas que financiam as despesas suntuosas. Aliás, seria possível escrever uma história da economia unicamente sob o ângulo dos consumos magníficos. Todos têm em comum a satisfação do narcisismo daqueles que os efetuam, decidem sobre eles, os querem. As pirâmides egípcias, as catedrais ocidentais, as represas soviéticas, os foguetes americanos, as fábricas das multinacionais européias e, hoje, os ca-
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pitais flutuantes planetários ou que giram na estratosfera virtual: a cada vez, trata-se de afirmar a potência e a soberania do poder temporal, depois no poder espiritual no qual se inspira ou que o sustenta. Em todas as situaçõess, o sangue dos homens pobres cimentam a pândega extrema. O faraó, o padre, o engenheiro, o chefe da indústria, o financista, todos se apoiaram nas forças armadas, nas polícias, nos poderes constituídos, por vezes com o auxílio de pensadores e de filósofos enfeudados nesse sistema, posto que pagos em retomo, para se proteger dos explorados cujo trabalho tornou possíveis esses edifícios monstruosos. Proprietários, militares e proletários, esta é a ordem descendente na qual se exprimem a potência, o poder e a dominação dos que infligem o economismo, essa religião fundada, pelo menos formulada desde a Antigüidade, por Hecaton. Para aumentar essas massas monetárias virtuais, que circulam em fluxos tensos e jatos contínuos, em mundos onde os deslocamentos se fazem na velocidade da luz, via fibra óptica, os escravos dos tempos modernos são utilizados e dispensados, explorados, humilhados e ofendidos, depois licenciados, conforme as necessidades do mercado. Esses meteoritos que escapam a todos os controles policiais, governamentais ou políticos evoluem segundo a ordem econômica respeitando unicamente suas próprias leis. Apátridas, cosmopolitas, platônicos de uma certa maneira, hipóstases a seu modo, eles tomam vias que, como as dialéticas ascendentes e descendentes caras aos devotos da caverna, procedem de modo invisível. . Sem fronteiras, sem vistos democráticos ou proibições éticas, as massas de capitais flutuantes agem segundo o mesmo princípio que as forças armadas de uma superpotência dominando planetariamente. Fluidos e plásticos, invisí eis e todopoderosos, esses fluxos monetários distribuem a miséria ou a riqueza à sua passagem: fortuna aqui, ruína ali, acumulação em um lugar, dispersão em outro, entesouramento para um, dilapidação para aquele que não for tocado pela proteção e pela
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graça desses deslocamentos de energia. Mas para aqueles que não tinham nenhum compromisso com esses movimentos lúdicos, portanto nada a ganhar, há sempre a perda: do tempo, da energia, das forças, da liberdade - sua vida. Que vantagem sobre a pirâmide ou a catedral para os operários de obra, trabalhadores e outros vendedores de dor e de labor? Que benefícios tiveram com a contenção de águas gigantescas e a conqui ta espacial, o esvaziamento dos rios, a inundação dos vales e o primeiro passo sobre a Lua, os soviéticos e os americanos solicitados quotidianamente para a prostituição de seu ser, de seu corpo, paga com um salário irrisório? Que júbilos para o operário, o proletário, o assalariado nos bramidos da fundição, das histerias das máquinas e dos apocalipses de fogo dentro dos quais perduram as metalúrgicas, as fábricas e outros templos em que se sacrifica a Prometeus ou Hefestos? Que lucros para o mendigo, o desempregado, o assalariado precário, o operário, o empregado desses sinais calculados em moedas fortes e formulados de maneira cibernética na memória dos computadores? Todas as épocas colocaram a ideologia, a religião, a filosofia, a arte a serviço desses cultos prestados à produção. A nossa assim como as outras. Cada civilização se enuncia e se anuncia dentro da justificação estética desta lógica. Daí falar, no que diz respeito à nossa utilização, de uma religião do capital* plástico e incessantemente reciclado desde que Paul Lafargue deu-lhe a primeira fórmula, no século passado. Nossos tempos celebram o conceitual, o virtual, o significado do significante irascível, pelo menos disfarçado. Os capitais flutuantes, o dinheiro que, circulando, desprende a energia, e a entropia com a qual o capital inicial se reproduz, mito e e meiose confundidas, se fraciona, se desenvolve, se condensa se valoriza e se desloca, tudo isso contribuindo para a formação de um Deus ao qual todos ou quase todos se sacrificam. Invisível se mostrado fora desses efeitos, onipresente em todas as manifestações da civilização, onipotente em todos os registros do real, ele parece onisciente àqueles que conferem o movimento e a vida a uma ausência venerada sob forma de
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fetiches tidos como responsáveis para encarná-Io e lhe conferir uma realidade concreta. As análises feitas por Feuerbach no século passado visavam expor os processos de alienação pelos quais o homem, despojando-se de seus atributos hipostasiados, fabrica um Deus à sua imagem sublimada: aquilo que o homem não é, ele o projeta, depois lhe dá consistência, forma e, enfim, uma existência. Sobra o culto a se prestar a uma pura criação do espírito: Deus, construído com os encalhamentos do homem metamorfoseado em bugiganga pomposa. Toda alienação funciona com o mesmo princípio. A miséria dos homens permitiu a criação da santidade do dinheiro*, ela a tornou possível. Em suas sublimações, as civilizações exprimem aquilo que lhes falta, depois seus deuses, se não seu Deus. E essa falta transfigurada em ser cintila e fascina porque é proibida à maioria, numerosa, para ficar confinada às mãos de alguns. De modo que pareça assim demonstrar a raridade, conseqüentemente a natureza preciosa de um fetiche transformado em mundo. O luxo manifesta esse Deus invisível, dele é sua epifania. Ele torna possível, por meio da hierarquia instalada, a leitura daquilo que causa a miséria, ou seja, a ausência de Deus, a impossibilidade para a maioria de uma comunhão com a hóstia, que é o valor proposto após transubstanciação. Não há nenhuma soberania individual sem participação nessa religião. Os excluídos, os reprovados alimentam a população de malditos, impedidos de obter riqueza, privados de ter, portanto proibidos de ser. Giratórios, circulantes, impetuosos ou flutuantes, esses capitais são inacessíveis para aqueles cuja existência se dedica a movê-los, a tornar possíveis seus fluxos. Nem a terra nem o trabalho permitem a renda ou o salário. Hoje, sozinho, o capital trabalha para interesses ainda maiores à medida que a quantia em jogo se revela considerável. Raramente a pauperização terá sido a tal ponto cínica e frouxa: nenhuma esperança de poder abandonar seu estado de excluído para os que ainda não têm a ganhar e sempre a perder; tudo permanece possível para os que possuem suficientemente para poder comprometer uma parte de sua fortuna; ganhos quase garantidos para os que criam as regras do jogo que jogam, con-
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trolam O princípio e o funcionamento lúdico, recuperam as perdas eventuais através de jogos compensatórios aos quais só eles têm acesso. Os pobres irão se empobrecendo à medida que os ricos irão se enriquecendo. O culto prestado ao capital flutuante é inversamente proporcional à participação, direta ou diferenciada, dos impetranteso Os reprovados aspiram tanto ao que lhes falta quanto os bem-aventurados desfrutam do que, para eles, é uma realidade. O futuro permanece um fantasma para os outros, um desejo investido como tal porque possuído por outros. O desejo mimético faz do escravo um guardião do templo onde comungam seus senhores porque ele espera, um dia, conseqüentemente em vão, participar dos banquetes, mesmo que só lhe deixem as sobras. E por isso que a religião do capital, em seu modo virtual, dispõe de tantos sectários: aqueles que dela desfrutam, evidentemente, e aqueles que acreditam poder dela desfrutar um dia e, por esta razão, desejam a manutenção das regras do jogo com a única esperança de poder, amanhã, sentar-se diante do tapete verde. De modo que a economia, dentro do nosso sistema capitalista global, é duplamente canibal: privando os escravos de suas existências, mas também tomando frágil, precária, senão caduca sua própria essência, inteiramente alienada na hipótese de uma procissão em direção do Ser-Bem do qual estão excluídos para sempre. Após as revoluções industriais e tecnológicas, é preciso encarar a revolução cibernética e informática. No século passado, onde a exploração podia ser rastreada, acompanhada por um cartógrafo como Marx, existem apenas ersatz, angares desertos, fábricas vazias, oficinas abandonadas. Descentralizações, deslocalizações, desterritorializações diria Deleuze, as instâncias que tomam possível a repartição desigual das riquezas são invisíveis, inapreensíveis, apenas assinaláveis pelos fatos e danos suscetíveis de serem às vezes registrados: um indivíduo fazendo fortuna, um outro falindo, uma sociedade anônima surgindo aqui, uma região massacrada ali e, sempre, a maior parte mantida na miséria, sofrendo e se submetendo aos efeitos dos fluxos monetários. Semelhante ao Deus dos teístas, o capital flutuante
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não aparece nunca diretamente, mas sempre como a encarnação, o efeito produzido, a obra. O que exige esse Deus como forma de adoração, de veneração ou de culto? Uma dedicação sem limites, uma submissão sem fronteiras. Ele transforma as multidões, os povos, as populações em rebanhos humanos constrangidos à prostituição. Pois o modo de enfeudamento do singular a este novo universal invisível é precisamente a prostituição que entretém com a escravidão uma relação íntima. Qual relação? Os escravos e as prostitutas não se possuem, são desapossados do uso independente, livre e autônomo de seus corpos. Os primeiros se definem, segundo as análises de Aristóteles, como instrumentos tendo por fim a ação. Eles não possuem a si mesmos, pois são propriedade de seus senhores e daqueles que, num retorno miserável e lastimável, lhes fornecem esmola, salário, os meios de sobreviver ou de viver, porém nada mais. Ao lado dos animais domésticos, o escravo e a prostituta vêem seus corpos investidos, invadidos, possuídos, marcados, requisitados para as necessidades do serviço, da produção, do gasto solicitado a produzir benefícios e reinvestimentos. A economia é a ciência desta alquimia canibal já que ela funciona isolada, submetendo o político à sua ordem, sua lei. Ela depende desta ciência dos escravos cujas subdivisões distinguidas por Aristóteles permitem, ainda em nossos dias, assinalar aquilo que, no vocabulário contemporâneo, define os caçadores de cabeças, os recursos humanos, as disciplinas ergonômicas, os círculos de qualidade e outros achados que emanam dos departamentos pessoais. Os atores desta ciência são os cronometristas, os contramestres, os chefes de equipes e todos aqueles que, pelo simples fato de serem quem são, desempenham as funções de polícia e de força armada, de padres e de vigários desta religião do capital. Nesta arte da relação com o escravo, Aristóteles afirmava que o senhor devia fazer entender a seu inferior que os dois tinham os mesmos interesses, senão uma conformidade de destino. E como são aristotélicos esses que, hoje, em nome dessa pura e simples negação da luta de classes, evidência de todos
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os dias para os que trabalham, querem fazer acreditar ao doméstico ao qual se dá uma ínfima esmola, um salário irrisório, que ele está a bordo do mesmo barco que seu senhor, que possui todo o resto, incluindo aí o corpo, o destino, o futuro, a saúde daquele a quem ele concede a oferenda de uma tigela de sopa! "Comunhão de interesse", escrevia Aristóteles. Quais? Quem utilizaria ainda este lugar-comum, esta justificação deformada, de que é necessário que haja os ricos para alimentar os pobres? Que a miséria tem também uma função, posto que, sem ela, não se poderia praticar essa sublime virtude que é a caridade? Que é evidentemente necessária a fortuna de uns para tomar possível a sobrevivência de outros? Ora, os interesses divergem sobre o modo da luta das consciências de si opostas, para dizê-lo em termos hegelianos. Luta de classes, dirá Marx. Assim que senhor e escravo desejam respectivamente o desaparecimento do outro enquanto tal, em sua essência e em sua existência. Mas a que poderia se assemelhar uma sociedade de escravos onde não haveria mais esses senhores e vice-versa? Esta luta prossegue por toda a eternidade, querer erradicá-la é impensável. A sociedade sem classes equivale a uma ficção, nem possível nem sequer desejável. Que se multipliquem as diferenças! E tanto quanto for possível, que as solicitemos, é claro. Em compensação, as desigualdades, quer dizer, sua exploração econômica, não. A diferença entre essas classes se traduz na cartografia que se pode fazer para determinar o lugar de todos e de cada um. Nesta representação com o tempo em abscissa e a mobilidade no espaço ordenada, o escravo é aquele cujo tempo empregado supõe uma saturação nos dois registros: ele dá o máximo de seu tempo para e dentro de um espaço que ele não escolheu. Imóvel, congelado, fixo e grampeado como um inseto sobre a cortiça, ele desempenha sua função inteiramente a serviço de uma ordem na qual não tem escolha. Despojado de seu corpo, ele o é também de seu tempo em um espaço onde é obrigado a permanecer - a fábrica, o escritório, a oficina, a usina, o habitáculo de seu veículo, a sala onde trabalha. Nesta ordem de
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raciocínio, a economia aparece como a arte de distribuir os lugares em função das necessidades do culto a ser praticado. O capitalismo se sobressai na transmutação do tempo dos escravos em dinheiro para os senhores, através do esquadrinhamento efetuado incessantemente para conter as energias singulares, instalá-Ias, depois mantê-Ias, dentro de aparelhos em que se tomam cativas com a ajuda de subterfúgios que são os salários miseráveis, necessitando reiniciar a prostituição do corpo e do tempo. Da mesma forma, como auxiliar de sujeição, pode-se contar os créditos necessitados para o endividamento, eles mesmos solicitados pelas submissões dos escravos aos desejos miméticos esculpidos pela publicidade - uma espécie de opus dei a serviço da religião do capital. O tempo no qual o escravo é despejado, transmudado em dinheiro do qual ele é privado, enquanto simultaneamente se faz com que ele reflita, permanentemente, felicidades que lhe são autorizadas, fornece o sangue do sacrifício e do holocausto fundador da religião do capital. Nietzsche afirmava que qualquer um que não disponha de dois terços de seu tempo em liberdade pura para seu próprio uso é um escravo. Que cada um faça suas contas ... Para ser definida como uma alquimia canibal e submeter o político, sobressair-se em patologia manifestada pela síndrome de Hecaton e se substituir a toda outra religião, proceder do sacrifício e do holocausto reiterados, viver da luta de classes e gerar a alienação máxima, a economia capitalista no seu modelo atual, cibernético e planetário não é nada menos do que o reflexo de uma metafísica que a subentende, como se acharam subentendidas todas as variações registráveis do modo de produção capitalista das riquezas. A economia procede da superestrutura ideológica e não é em nada uma infra-estrutura isolada, motriz do mundo em sua totalidade. Antes de chegar a uma proposta libertária sustentada por uma mística de esquerda, eu gostaria de tentar dizer que a economia, essa "ciência lúgubre" segundo as palavras de Carlyle, sempre gerou suas mitologias a partir de pensamentos domi-
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nantes da época ou de ideologias mais adaptadas para permitir a justificação teórica, senão ontológica, do mercado livre e da concorrência, da divisão do trabalho, da submissão de uma classe aos interesses de outra, da teleologia radiante e da harmonia preestabelecida, da mão invisível e dos paraísos anunciados para amanhã. Tudo isso contribuiu para a formação de uma impiedosa metafisica da necessidade que reuniu a quase totalidade dos economistas, mesmo que fossem aparentemente opostos, tais como Adam Smith e Karl Marx. Para propor uma outra maneira de considerar a economia, seria preciso avançar as bases de uma outra visão do mundo - e para criar um conjunto libertário suscetível de ser orientado por ideais humanos, seria preciso uma mística insinuante e harmoniosa. Antes disso, e para propor uma genealogia ontológica da modemidade econômica, gostaria de apelar para a constelação cartesiana e, mais particularmente, para começar, para as projeções permitidas ao grande século pelas conclusões e os grandes temas do Discurso do método. O catolicismo recua ante os assaltos do pensamento reformado e do aumento de potência de uma filosofia laica em situação de substituir a onipotência da teologia católica. Antes dele, Montaigne tinha preparado o advento do sujeito moderno, mas é Descartes que vai lhe dar a luz, assistir e conferir uma identidade a esse eu que se opõe a Deus. De modo que se pode colocar em perspectiva a relação inversamente proporcional que liga o desmoronamento do catolicismo à elaboração das condições de possibilidades do que chamarei o economismo, esse monstro híbrido que fez da economia uma religião. Progresso do ateísmo desaparecimento de Deus, aparição da economia e teologia das riquezas triviais, eis o movimento que vai tomar possível a cristalização dos fervores e-dos cultos dedicados ao dinheiro. Então, Descartes. A obra de 1637 inaugura a modernidade na Europa porque ela desenha, com contornos nítidos, um sujeito que, desde que seja respeitoso com a religião do seu Rei e de sua ama-de-leite - o desejo é do próprio filosofo -, vê abrir-se diante de si todas as possibilidades. Autonomia da razão, liberdade da reflexão conduzida segundo a ordem matemática, leitura científica do mundo, metodologia confinada ao uso da retóri-
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ca e do conceito, regras estabelecidas para a direção do espírito, reciclagem do dualismo antediluviano, são esses os instrumentos daquilo que se tomará a razão pura prática. Aliás, o propósito do Discurso do método, além da fundação desse indivíduo com valores ontológicos sobre os quais nós ainda vivemos, consiste igualmente em promover todas as ciências que permitissem ao homem tomar-se "mestre e possuidor da natureza". Ainda não se fala de economia propriamente dita, mas aquilo que representa o conteúdo do termo já está presente no século. O indivíduo exposto a todos e sua vontade de poder sobre a natureza, o mundo real, sensível, eis um agente, um ator e um projeto com os quais podem se constituir as reflexões que desenham o contorno das primeiras meditações dos economistas. Para isso, e permanecendo dentro do cartesianismo que excita, ocupa, se não inflama a Europa, na Alemanha com Leibniz, na Holanda com Spinoza, na Inglaterra com Hobbes, seria preciso dissertar sobre a teodicéia de um, o monismo panteísta do outro, o materialismo mecanicista do último para demonstrar em que medida os anos de meados do século XVIII permitirão à François Quesnay, o pai dos fisiocratas, a elaboração daquilo que convém apresentar se não como a pré-história das ciências econômicas, ao menos como uma primeira manifestação digna deste nome dessa nova disciplina. Seria preciso reter dos fisiocratas a idéia de que o mundo, da forma como se apresenta, é perfeito e procede de uma vontade divina. Da mesma forma, no processo que conduz o real a se apresentar como tal, o negativo tem sua função e contribui, dialeticamente, para a perfeição do grande todo. De onde a conclusão de uma harmonia preestabelecida e da leitura da natureza como obra desejada por uma força superior, procedendo, ao seu modo, de um projeto no qual a natureza naturante e a natureza naturada agiriam e provariam a unidade do mundo e sua emanação de uma única substância diversamente modificada. Essa natureza, por sua vez, expandida pela variação múltipla a partir de um único e mesmo tema, obedeceria às leis legíveis para qualquer um que considerasse seu espírito conforme a ordem das razões.
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Os fisiocratas, em sua desconfiança acerca das premissas da industrialização, sua celebração da natureza e, mais particularmente, da terra, sua vontade de nela ver a obra de um princípio arquitetônico, empregam um talento sintético digno do ecletismo de Victor Cousin para acrescentar a essas colagens teóricas uma suspeita de sensualismo emprestado de Locke, uma outra do ocasionalismo subtilizado de Malebranche; em seguida formulam, de modo dedutivo, quase a postulando, uma teoria econômica que, como por acaso, alegra o Rei, o conforta em seu monarquismo de direito divino e legitima sua ação como déspota unicamente concentrado na luta contra os fatores perturbadores da ordem natural. Recusa da história e de seus desenvolvimentos dinâmicos e dialéticos, universalismo estendido aos reinos europeus, se não a todo o planeta, desvalorização do homem, uma criação recente, e supervalorização da terra, uma verdade de sempre, os fisiocratas, à guisa de teoria econômica científica, apenas fornecem os meios de sua política a um rei funcionando sobre o princípio da monarquia de direito divino sempre a legitimar a ordem feudal por meio de uma visão do mundo apropriada e confeccionada para esse fim. Onde se assiste, pela primeira vez, a colocação em perspectiva de uma metafísica, de acordo com a necessidade, e de uma política, tudo isso com a instalação da economia em terceiro lugar, em instância regulando a ordem de fato. Ao escrever Physiocratie ou Constitution naturelle du gouvernement le plus avantageux au genre humain, François Quesnay mereceu ser apresentado pelo rei Luís XV sob os auspícios e a rubrica de "Meu pensador", o que, também, nesse caso, vaticinava o modo de relação entretido com os poderes pela maior parte dos economistas dedicados à causa da não-intervenção e do sal o-conduto - o melhor caminho para chegar à negligência. Rapidamente, os economistas fizeram a lei e suas formulações os tomaram cobiçados pelos governos que andavam mal de política, pois já encontravam aí matéria para substituir com brilhantes sua notória incompetência. A lição ainda é válida. A formulação quase perfeita da metafísica do capitalismo sob o
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regime do qual vivemos parece praticamente concluída com Adam Smith, cujo principal livro propõe os evangelhos do liberalismo úteis para legitimar o século da revolução industrial. Ainda que comentando, criticando e ultrapassando a opção fisiocrata, Smith conserva a idéia central de urna harmonia preestabelecida e, sobretudo, adianta também urna teoria da necessidade. O célebre convite da não-intervenção, reforçado por um salvo-conduto, deveria ser suficiente corno análise e proposta. No entanto, o economista assinala o quanto é necessário deixar a concorrência agir livremente, funcionarem os movimentos de ida e vinda entre a oferta e a procura, para que os lucros sigam crescendo e o mercado se regule por intermédio de urna mão invisível, essa célebre metáfora que exprime sem rodeios a metafísica da necessidade: a harmonia preestabelecida, o divino arquiteto, a perfeição da criação, a inscrição dentro da natureza das regras genéticas, se não a legitimação do negativo na economia de um equilíbrio generalizado. Assim, de maneira induzida, se bem que falte semelhante formulação cínica, a miséria, a pobreza, a exploração, a servidão dos operários, o estado de decrepitude no qual se encontram os proletários, a pauperização, tudo isso é necessário dentro da produção, in fine, de urna obra harmoniosa: a sociedade industrial do momento e do capitalismo devem poder funcionar sem entrave metafísico, ontológico, portanto político. O objetivo almejado pela mecânica que Adam Smith elogia é estranho, pois supõe o trabalho em permanência para os operários, e lucros e benefícios sem conta para os proprietários. Estranha repartição de papéis com o inferno do labor perpétuo para uns e o paraíso dos interesses jorrando continuamente para outros, a exploração dos primeiros funcionando corno condição de possibilidade dos segundos. Onde encontramos a famosa comunhão de interesses cara ao coração de Aristóteles ... Essa lógica devia desenvolver, corno sempre acontece com os economistas, um estado de fato diferente das previsões enunciadas por eles sobre o modo das predições que encalham sempre e jazem ao lado das certezas de quiromantes. As meta-
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morfoses do capitalismo deviam induzir menos o trabalho garantido para a maioria e os benefícios para poucos, do que um mundo onde se desenvolve o desemprego, se incrementa a pauperização, a delinqüência, uma demografia desastrosa, condições de existência cada vez mais deploráveis para os mais desfavorecidos. Da mesma forma, o modelo cartesiano da harmonia preestabelecida e perceptível pelas regulações teístas da mão invisível se diluiu ao mesmo tempo que avançava o ateísmo e que a Revolução Francesa laicizava o espaço público francês, para não dizer europeu. Os teístas deram lugar aos deístas, depois àqueles que então eram chamados de ateístas, tudo isso acelerando a autonomia da economia e sua metamorfose em religião de substituição. Jamais o dinheiro e as riquezas conduziram o mundo deste modo, a tal ponto que se pode entender os impasses de 1789 como o produto da resistência da moeda, das finanças e dos bancos aos ideais da Constituinte. O modelo cartesiano foi suplantado por este, sob o qual ainda vivemos e que é de fabricação nitidamente darwiniana. Desde a Origem das espécies (1859), Darwin fornece um modelo biológico em forma de grade para apreender a ordem em que aparece a economia, ou seja o economismo. As idéias essenciais do cientista são conhecidas: luta pela vida, seleção natural das espécies pelos mais adaptados, papel seletivo e purificador da morte, sobrevivência dos mais fortes, metamorfoses e variações morfológicas por questões de adaptabilidade, teoria predatória, cruzamentos ou hibridações. Todo este registro científico suporta facilmente a demarcação para falar do mundo da economia capitalista. A luta na qual se envolveram as empresas, as multinacionais, as sociedades anônimas é luta mortal, sem piedade, e supõe, aí também, os dejetos, os esquecidos da evolução, os fracassados, os fracassos, um preço a pagar pelo êxito desta sobrevivência. A síndrome de Hecaton é, neste caso, levada ao seu paroxismo, e nunca, dentro de tais perspectivas, a vida humana foi tão barata.
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Anunciando sua descoberta das leis tendenciais do capital, Marx retomava por sua conta os dois tempos precedentes das metafísicas tendo gerado as modalidades do capitalismo da revolução industrial: teleologia e luta pela sobrevivência são reformuladas no quadro de um otimismo irenista que supõe a autofagia do capitalismo e sua destruição anunciada sobre o princípio hegeliano do fim da história. Esta última se encontraria hipoteticamente realizada, após a revolução, assim que desaparecessem as classes, a luta de classes, a exploração e, portanto, a miséria, o proletariado e a burguesia, a alienação, a penúria e tudo aquilo que faz o inferno dos tempos antigos, Que se há de fazer! o capitalismo é plástico. Ele se metamorfoseia, recorre à guerra, ao colonialismo, ao fascismo, ao imperialismo, à sociedade de consumo, à globalização da circulação dos fluxos invisíveis, à uniformização ideológica das consciências ou das inteligências e a todos os meios que lhe convém para não desaparecer. Então, a que se assemelha hoje esta religião? O Deus dos católicos quase totalmente desaparecido no Ocidente foi substituído por Mammon, a divindade do dinheiro. Lá onde os teólogos ditavam a lei, os economistas tomaram conta. O desencantamento do mundo se faz pelo abandono de um princípio, a divindade, em benefício de um outro, a riqueza, enquanto de fato triunfa sempre o ideal ascético que necessita, com o mesmo arrebatamento, do trabalho, esta perpétua expiação legitimada e justificada, quaisquer que sejam os deuses aos quais os sacrifícios são destinados. Sempre o holocausto, sempre a escravidão, ainda a servidão e, sem cessar, a submissão das energias individuais aos interesses do Leviatã. Uma nova patrologia veio à luz, ela é constituída e redigida pelos economistas especialistas em prospecção, demografia, estatística, sondagem, fisco e outra escolástica dos supressores de quintessência que lançaram as vistas sobre os orçamentos ou a Bolsa, os bancos ou os créditos, a contabilidade ou os impostos. Desenvolvem-se teorias que mostram a encarnação, a transubstanciação, a celebração, a oração reinvestidas, por meio das teologias enganosas fomentadas por
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esses novos Pais da Igreja, no capital, no dinheiro, no lucro ou no trabalho. O catolicismo quase pereceu, o economismo quase triunfou, e nada mudou para aqueles que se confinam na massa de atores dessa religião, do lado dos servidores, semelhantes aos intocáveis orientais, sujos, impuros, desconsiderados. Alquimia canibal e metafísica da necessidade, a economia tomou-se uma disciplina autônoma, radicalmente isolada. Ela sacrificou o político e a história, como preço de sua independência, submetendo o real à única lei do mercado, interditando todo governo fora da administração dos assuntos correntes. Hoje nada parece poder interromper o curso das coisas e a idéia parece globalmente partilhada, sendo impossível modificar o movimento da história, inflectir o que quer que seja ou dispor de um poder sobre esse ou aquele fragmento do real pertencente à cidade, à Nação ou ao Estado. O niilismo é generalizado, o pessimismo cultivado e o desencantamento presente em toda parte. Aos olhos dos defensores do economismo, é lesa-majestade colocar em questão a verdade do dogma. Seu argumento supõe sempre que são demasiadamente ignoradas as engrenagens delicadas e finas da economia para poder dizer o que quer que seja de fundamentado sobre o assunto - como se, para ter o direito de ser ateu, fosse necessário, antes de tudo, ser doutor em teologia ... A melancolia só não é intratável, em termos políticos, para aqueles que querem conservar as regras do jogo tais como são: o capitalismo triunfando sobre o modelo do liberalismo desenfreado, arrebatado. Certamente, para eles, o interesse consiste em avançar a idéia de que existe somente um imenso movimento planetário do qual não temos a possibilidade de nos livrar. Com este princípio, o Estado universal dispõe de belos dias diante de si e, sem espírito de resistência oposta, o totalitarismo de um pensamento uniformizado, de uma economia monoteísta e a conclusão da história acabarão por impor rapidamente sua lei assim realizando uma ditadura sem precedentes.
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Como futilidade, os defensores deste niilismo comungam dentro de uma Europa supranacional que acelerava o fim da autonomia das nações, já bem desgastada. Toda promoção de uma Europa liberal, dita de Maastricht, funciona como um formidável acelerador para a globalização do capitalismo e para seu próprio triunfo. Com Maastricht, é menos a Europa que é proposta e mais unicamente a Europa liberal, com a exclusão de uma entidade política, por exemplo. E a arte da mentira, na qual têm prática os gerentes do capitalismo que, na França, substituem o poder há um quarto de século, consiste em assimilar a Europa, no singular, a única, àquela que propõem, em Bruxelas, os técnicos e os financistas desejosos de instaurar um império liberal suscetível de estabelecer uma simetria, se não às nações do iene e do marco, ao menos à do dólar - o que, convenhamos, não está longe de ser a mesma coisa. Se não quisermos nos sacrificar ao pessimismo do ambiente, nem à excitação européia liberal deste fim de século, que soluções podem ainda ser consideradas? O fim do capitalismo? Certamente que não. Enquanto não houver alternativa a isso além da abolição da propriedade privada e da apropriação coletiva dos meios de produção, será preciso, optando por esta escolha, aceitar as conseqüências: as barreiras guarnecidas de obstáculos, que inflamavam Gracchus Babeuf. Assim, seria igualmente necessário acabar com toda individualidade digna deste nome, condenada, sacrificada a se mover, sem liberdade dentro dos limites da nação fechada por uma cortina de ferro, de concreto, ou de qualquer outra coisa suscetível de ser vigiada do alto de um mirante. A opção libertária não pode ser essa, pelo menos num reconhecido antiautoritário como Pierre-Joseph Proudhon, ou num atípico do gênero de André Gorz. Pois Bakunin diferencia-se de Marx unicamente quanto aos meios, em nada no que diz respeito aos fins. Nesses dois pensadores, encontramos o mesmo sacrifício à teleologia, ao otimismo, a mesma crença hegeliana na possibilidade de um fim e de uma conclusão da história, uma idêntica comunhão no ódio à propriedade privada herdada de Rousseau, de quem ambos tomam emprestado
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tanto sua crítica da modernidade, como seu ridículo descrédito lançado sobre a técnica. Os dois acreditam no homem total, livre de suas alienações pelo simples fato de evoluir dentro de uma sociedade sem classes. Conhecemos a história. Proudhon vale pela ausência de entusiasmo profético e a recusa em endossar as vestes preparadas para uma natureza messiânica. Nada do delírio de Fourier ou das mitologias societárias de Saint-Simon, tampouco ele concorda com as obsessões securitárias, organizadoras ou totalitárias de um Cabet louco e enfurecido de leária. O despotismo estatal e o socialismo autoritário de um Louis Blanc, da mesma forma, não lhe caem bem. Sua obra se faz dentro da preocupação pragmática de uma realização, não dentro das probabilidades ainda mais nebulosas que exigem o futuro para sua conclusão, mas dentro da iminência que sempre foi o tempo e o horizonte de seu pensamento. Longe da opção leibniziana ou das lógicas darwinianas, aos antípodas dos fisiocratas assim como dos marxistas, a economia pode ser praticada, não mais isolada, no modelo de religião de substituição, mas reconciliada com o conjunto dos domínios da atividade humana. Digamos que num campo que não espera nem a palavra, nem a referência: nietzschiano. Não que Nietzsche tenha formulado algo que se assemelhe a uma economia ou aos materiais suscetíveis de serem reunidos sob esta regência, mas porque, no seu rasto, alguns, recorrendo a ele e ao seu fôlego, adiantaram idéias que poderiam ser inscritas sob a rubrica de uma economia generalizada", O Collêge de Sociologie, no início deste século, forneceu a possibilidade de textos mais importantes de Caillois e Klossowski, Bataille e Leiris, que ampliaram a noção de economia, chamada por um deles de limitada, como a relatividade do mesmo nome, às dimensões de uma economia englobando os domínios importantes daquilo que faz a vida em todas as suas acepções. Ateus, eles também, Deleuze, Guattari e Lyotard cavaram ainda mais profundamente o campo do nietzschismo de esquerda fornecendo a esta nova economia os meios de ser libidinal, molar, molecular, impulsiva, nômade, lisa ou estria-
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da. Tantas acepções suscetíveis - com as do gasto, do excesso, da parte maldita, do consumo, da energia excedente, da dilapidação - de fornecer um material conceitual inteiramente destinado a resolver as antinomias ou as contradições econômicas colocadas pelo capital e apontadas por Proudhon na sua Phlosophie de ia misêre. De modo que, avançando sobre o terreno destas resoluções, se desenham as feições do que é possível chamar de uma grande política que devolva a esta arte maior e à história suas origens ilustres. Com o que se parecem essas antinomias? Todas supõem - o que é de sua natureza e justifica sua definição - uma vantagem e Um inconveniente, uma positividade e uma negatividade, um lado construtor e um destruidor. Assim, preocupado em experimentar a dialética hegeliana que se propõe à resolução dentro de um terceiro tempo sintético, Proudhon admite uma seqüência que podemos reatualizar sob a luz do nietzschismo de esquerda e do material conceitual proposto pelos seus representantes. O reencantamento do mundo pode ser considerado neste terreno onde se conjugam uma preocupação libertária e uma opção nietzschiana, uma vontade pragmática e um desejo de energia. Uma economia generalizada reteria do pensamento de Nietzsche um desejo infundado de dar a Dioniso o lugar que lhe pertence, de submeter-lhe ApoIo realizando uma inversão de valores, posto que, habitualmente, é o deus do êxtase que se submete ao da forma. Ela suporia uma guerra declarada ao ideal ascético sob todas as formas, tanto das lógicas do ressentimento ou da culpa quanto das retóricas do ódio de si ou da condenação das paixões. Não nos esqueçamos de poder encontrar no pai de Zaratustra, que entusiasmou Jean Jaurês no início deste século, mas também Lucien Herr, Charles Andler, Georges Palante, Elie Faure ou Georges Sorel, verdadeiras opções capazes de divertir a esquerda: uma crítica do cristianismo, certamente, e ideais de renúncia associados, um alerta, já nessa época, contra o aumento de potência da sociedade de consumo e o culto ao ter em detrimento do ser, um ataque regular ao liberalismo, aos burgueses, aos filisteus, ao trabalho, mas igualmente uma condenação sem recurso do Estado,
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entendido como uma monstruosidade sem alma, animal e frio. Enfim, é preciso contar com o filosemitismo de Nietzsche e sua crítica da guerra que ele elogia unicamente no terreno metafórico. De volta a Proudhon. As antinomias salientadas por ele podem se relacionar ao valor de uso e ao valor de troca, separados por um abismo no qual encontra-se tudo o que permite o trabalho do capital e a elaboração dos benefícios efetuados sobre o labor dos proletários. A resolução pode se fazer pela promoção do valor constituído, calculado de tal modo que a quantidade de trabalho real seja representada no objeto. Tratase de submeter a avaliação desse novo valor à sagacidade de um cálculo preocupado em integrar a força de trabalho ao preço, a potência desta força cuja possibilidade reside na única efetividade do coletivo, e a retribuição dessa alquimia que leva em conta a ação comunitária. Energia libidinal e gasto, consumo e vitalidade encontram assim uma ocasião de ser levados em consideração, nos cálculos constitutivos do valor em questão. Da mesma maneira, Proudhon se detém na antinomia do maquinismo que permite o alívio da pena do trabalhador ao mesmo tempo que a precariedade de seu emprego. Sobre esta questão, Marcuse precisou qual o uso hedonista, libertador e libertário, que poderia ser feito das máquinas, longe de uma condenação sistemática e de princípio. A técnica, em si, não é boa nem má, é seu uso que determina sua excelência ou não. Nesse sentido, é preciso celebrar e desenvolver todas as tecnologias que, novas, permitem a economia ou o resguardo dos sacrifícios da dignidade regularmente consentidos dentro do modelo de produção capitalista. A submissão da máquina, não unicamente no interesse do proprietário, visando ao seu lucro e ao seu benefício, mas no alívio das tarefas, ou seja, na diminuição do tempo de trabalho, na redução dos trabalhos penosos, e mesmo seu total desaparecimento, supõem uma ética interposta entre a máquina e a produção cega. Cada triunfo desta ética valeria como um recuo da ideologia dos devotos da religião do capital. Aliás, a divisão do trabalho, tal como é desejada, exigida e praticada dentro do capitalismo, apresenta a vantagem de per-
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mitir a criação. de riquezas em razão. de sua eficácia, contribuindo. ao. mesmo. tempo. para o. embrutecimento do. trabalhador e para a generalização. do. empobrecimento. Que ela oponha os intelectuais aos braçais, os técnicos aos executantes, traz menos problema do. que vê-Ia como causa de uma especialização. excessiva implicando. tarefas repetitivas, desinteressantes, quando. não. alienantes. São. conhecidas as páginas de Adam Smith consagradas à produção. e à divisão. do. trabalho. numa usina de fabricação. de agulhas, onde o. parcelamento levado. ao. extremo. prende cada operário à infinita duplicação. do. mesmo. gesto. durante to.da sua jornada de trabalho, sua semana, seu mês, sua vida. De Fourier, podemos reter o. desejo. de praticar a atração. apaixonada e, se o. trabalho. feliz é uma visão. do. espírito. dos regimes totalitários, pode-se pelo. menos imaginar uma repartição. de tarefas que evite o.trabalho. pesado. lá onde este se manifesta. Sobre este assunto, é preciso. ler a revolução do. trabalho. proposta por André Gorz em Méthamorphoses du travail. Quête du sens, um livro. ainda longe de ter produzido todos os seus efeitos. A antinomia da concorrência, mesmo. que necessária à fixação. dos valores e à estimulação da produção, aparece também como uma das causas de destruição. dos salários e da sujeição. dos trabalhadores às remunerações miseráveis. Daí a necessidade de uma legislação. fiscal que se inspire nas "barreiras guarnecidas de obstáculos" de Gracchus Babeuf. No. mercado. livre planetário, o. protecionismo econômico é o. único. modo de evitar que um país onde as crianças trabalham por salários miseráveis possa, sendo. as leis da concorrência como são, conquistar os mercados em que outros atuam segundo. uma regra do.jogo que reco.nhece o.direito. ao. trabalho, o. sindicalismo e a humanização relativa das tarefas. Da mesma forma, serão. apontadas as antinomias dos impostos, excelentes à medida que eles poderiam compensar o. efeito. nefasto. dos monopólios, ou das concentrações de riquezas, mas catastróficos ao. agravar a exploração da maioria sobre a qual a pressão. fiscal é mais pesada. Com todos os impostos cobrados, o. cidadão. rico. os sentirá menos do. que o.
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pobre que tem que colocar a mão no bolso em todas as circunstâncias: impostos diretos, indiretos, prediais, taxas diversas sobre uma lengalenga de produtos ou transações, e outras medidas vexatórias supondo, a cada movimento de dinheiro, um desconto obrigatório. Fixado por aqueles que têm o poder para legitimar e financiar seu aparelho de coação, o imposto parece, com muita freqüência, uma ocasião de diminuir a parte de dinheiro disponível dentro de uma fanu1ia para favorecer o empobrecimento, tomando mais fácil a perenidade do sistema de salariado e de exploração. A antinomia do crédito funciona igualmente como produtor de duplo efeito: ele poderia emancipar os pobres se fosse organizado de modo a ser gratuito, mas tal como é, ele apenas permite que o dinheiro vá para onde já se encontra, sempre evitando facilitar a vida das fann1ias ou pessoas sem dinheiro para as quais ele seria vital. O empréstimo é somente um meio de fazer dinheiro com o dinheiro, certamente não é um modo de tomar possível o acesso ao consumo para os mais despojados, senão a um preço alto. O crédito aparece na nossa civilização como uma maneira formidável de coagir os lares que, endividados, se tomam sujeitos aos impostos e tributos, obrigados a aceitar as condições de trabalho propostas no mercado de modo a poder unicamente reembolsar suas prestações. Enfim, podemos concluir com a antinomia da propriedade imobiliária. Esta se constitui na base de todas as liberdades, posto que Proudhon não concebe seu anarquismo sem a manutenção e a preservação da propriedade privada. Mas, ao mesmo tempo, ela só produz privilégios, permitindo aos proprietários de sempre possuir mais, com os efeitos da renda, ao passo que os despojados são privados de acesso a essa segurança. Às vezes habitação faz falta para alguns, enquanto que outros acumulam apartamentos desocupados com a única intenção de capitalizar, entesourar. Há séculos que o direito à habitação não deixa de ser uma reivindicação, e o é ainda hoje, nas megalópoles saturadas. Quem dirá que essas antinomias envelheceram? Que são caducas? A Philosophie de Ia misêre de 1846 não perdeu sua
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atualidade. O valor, os fins do maquinismo, o status de novas tecnologias, a qualidade do trabalho, sua quantidade, sua relação com o dinheiro, a pressão fiscal, a espiral do crédito, o direito à habitação, a desigualdade diante da posse sob todas as suas formas, é a partir daí que se podem constituir as prioridades para uma ética política que submeta a tecnicidade da economia a um projeto de sociedade. De sua parte, Proudhon desenvolveu múltiplas teorias: a oficina em cooperativa, o mutualismo, o federalismo, os bancos populares, os créditos mutuais, tudo visando a expressão de uma economia social, de uma democracia industrial onde surgiriam as propriedades individuais de exploração ao lado de uma agricultura de grupo, propriedades coletivas de empresas acopladas às oficinas autônomas, companhias operárias movidas pela participação, federações industriais de produtores e de consumidores, organizações cooperativas de serviço, todo esse conjunto gerando uma socialização liberal, senão um socialismo libertário. André Gorz, seguido por outros, entre os quais Alain Lipietz, efetuou recentemente uma crítica da racionalidade econômica ocidental e propôs uma revolução do trabalho. Sua "busca do sentido" visa uma redução do tempo de trabalho como propedêutica ao domínio do tempo dos indivíduos, reforçado por uma ateísmo consumista. Trabalhar menos, melhor e de outra maneira, desatrelar rendimento e quantidade de trabalho, a tudo isso deve visar uma economia colocada a serviço dos homens e de sua liberação, de sua reapropriação de si mesmos. Não se pode expressar melhor a possibilidade de um projeto político hedonista dentro do qual a economia se toma uma força positiva e não esta ciência do lúgubre que ela representa dentro de seu modelo liberal.
o projeto pode ser elaborado, aprimorado, refinado com os economistas de profissão que, enriquecidos com essas linhas de força, prepararão economias alternativas nas quais os fins serão o trabalho humanizado, a produção regulada, as riquezas melhor repartidas, dentro das nações e entre as nações, de um
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bloco ao outro, se não de um hemisfério ao outro, a habitação um direito para todos, o consumo, uma possibilidade oferecida indistintamente às classes desfavorecidas assim como às demais. Para isso, é preciso submeter a economia a um princípio dionisíaco e dela fazer uma técnica celebrando os impulsos da vida, o que permitiria uma redefinição da economia libidinal desejada por Lyotard. Não mais celebrar o ideal ascético e as impulsões de morte, cessar de submeter a política e a história à tirania de uma economia funcionando com o único objetivo de aumentar o empobrecimento e de tornar possível a riqueza dos ricos através de uma pobreza sempre maior dos pobres. Aí está o que forneceria matéria para a transavaliação. O reencantamento do mundo só poderá ocorrer visando ao fim de um economismo celebrado sob a forma de religião, entendido como único laço social possível hoje. A submissão da economia à lei da política é uma necessidade vital. Enquanto perdurar o inverso, a lei do mercado triunfará, sozinha, sem contrapartida e, projetados no sentido do abismo, nós conheceremos corridas desenfreadas em direção a mais mortes, sofrimento e dor. Tânatos foi eleito deus tutelar do capitalismo desenfreado. Sua sombra e sua cruz, sua divindade fetiche, são as causas do holocausto e dos sacrifícios quotidianos que lhe são oferecidos. No espírito de Nietzsche, era preciso uma Grande Política, livre das contingências estreitas e mesquinhas daquilo que se convencionou chamar hoje de política politiqueira. Afastada dos cálculos quotidianos, da aritmética em virtude da qual se ascende ao poder e depois lá se mantém, a grande política quer os meios de uma ação e visa à encarnação. O poder, certamente, mas para fazer o quê, senão exprimir, realizar, encarnar uma política, quer dizer, um projeto, idéias, um querer, uma energia. A força se distingue da violência, pois a primeira sabe aonde vai, e a segunda se submete aos impulsos selvagens que a habitam. O capitalismo é uma violência, a política uma força. E a segunda serve como único remédio para a primeira. Um dionisismo político agiria segundo o imperativo categórico querendo a transavaliação, a revolução copernicana e a
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colocação da economia a seu serviço. Longe dos narcóticos religiosos, do ópio do povo e das virtudes soporíferas da religião e do dinheiro, ele suporia uma prioridade dada ao querer, à energia, à economia generalizada cujo objetivo exige a realização de um indivíduo hedonista, reconciliado consigo mesmo e que não seja exigido, coagido e forçado, condenado e amaldiçoado, a perder sua vida para poder somente ganhá-Ia, e garantir as contingências quotidianas. Esquecido do ser, de tanto que o obrigam a possuir, escravo acorrentado às alienações da época, àquele que se quer livre o hedonismo é proibido enquanto uma política não quiser que ele desperte os impulsos de vida lá onde estão, disseminados, difusos, senão confusos, aniquilados, adormecidos pela máquina social. A economia limitada vive do desperdício de energia e da negação dos corpos como auxiliares do ideal ascético que ela tomou em substituição para fazer triunfar as retóricas grega, romana e depois cristã do ódio do corpo, do desprezo da carne e do anátema lançado sobre os desejos, os prazeres, os impulsos e as paixões. Para estragar sua vida, nada de mais prático que uma colocação deste corpo a serviço do trabalho incessantemente recomeçado. Todas as civilizações submetidas a Tânatos viveram e se alimentaram deste holocausto perpétuo. O mal-estar na civilização analisado por Freud tem a seguinte genealogia: o sacrifício dos desejos individuais em prol da elaboração das máquinas coletivas, o esquecimento do indivíduo ao qual se prefere todas as cristalizações do instinto gregário, a renúncia de seus prazeres a fim de ter por único objetivo o lugar a se manter dentro do jogo social, o sacrifício da liberdade individual e, à guisa de compensação, uma sociedade securitária, autoritária, castradora e desvitalizante. Diluição do eu dentro do grande tudo social, confusão dos interesses individuais com os interesses coletivos, sacrifício do princípio do prazer em nome do princípio da realidade, necessidade de consolação impossível de saciar, renúncia aos prazeres aqui e agora em prol de um hipotético além ou de um amanhã mais radiante, diversões, satisfações substitutas, recurso a todos os estupefacientes fornecidos pelas ideologias da renúncia hoje
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levadas ao seu auge, niilismo celebrado, pessimismo conservado, depressões endêmicas, autofagias, intoxicações suicidárias de ideais mortíferos: aí está um começo do inventário das misérias quotidianas oferecidas ao Leviatã social que nada é capaz de saciar. Freud disse até que ponto o trabalho e a civilização funcionavam em contraponto. Eu gostaria de dizer, hoje, o sentido desta política hedonista e libertária, como se pode dissociar esse casal maldito cujo cimento é o economismo, esta religião do capital sacralizado. Para lutar contra uma ideologia, é preciso mobilizar forças consideráveis suscetíveis de deslocar os continentes ou de permitir a descoberta de terras desabitadas, geografias desconhecidas. A economia liberal entendida como genealogia sombria da miséria cartografada em montante obriga uma revolução copernicana. Esta inversão dos valores é pensável com o auxílio de uma alavanca que é também uma mística e com uma visão do mundo radicalmente ancorada à esquerda.
2. DOS PRINcíPIOS POR UMA MÍSTICA DE ESQUERDA
Mística? inquietar-se-ão aqueles que conhecem minha aversão pela religião e meu gosto pelo materialismo radical. Exatamente, e eu quero reivindicar alto e claro a possibilidade, para um fanático da imanência, de ler o real, a história e o mundo, segundo um princípio não apenas horizontal, mas também vertical. A mística convém às idéias que, segundo o princípio nietzschiano, habitam os cumes, lá onde o ar é frio, vivo e cortante, onde não se temem as virtudes do inverno, a rudeza e a raridade, portanto, os valores que contam. Para as idéias medíocres, e as pessoas que as seguem, o alto designa a transcendência, o além, ao passo que ele significa, aos meus olhos, a possibilidade, até os limites conhecidos, os únicos, de uma margem qualitativa, em que uma leitura puramente plana e linear suporia o quantitativo. A mística procede de postulados que nossa alma faz para nós e sobre os quais não podemos evitar de pensar que guiam toda uma existência, uma ética e princípios, um pensamento e ações. Ela quer o império ao qual aspiram todas as energias indomáveis e se propõe como a única resposta possível para a saída daqueles que se encontram estagnados nos três círculos infernais da miséria e para-realizar, nos fatos, o ateísmo que autorizaria a colocar por terra o ídolo economista. A esquerda de que falo, para ser suscetível a uma mística, supõe portanto uma translação ética do domínio horizontal do qual ela guarda metaforicamente seu sentido - ao registro vertical onde eu a desejo instalar. Ela não é portanto um programa para um partido ou uma plataforma com destino eleitoral. Tampouco tende a fazer o catálogo, no modelo de enume-
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ração, daquilo que foram as vitórias e os triunfos da esquerda. A definição de uma mística de esquerda* supõe uma busca da energia da qual ela é constituída. Uma busca e uma descoberta, pois de nada adiantaria procurar se por acaso, neste terreno, devêssemos nos contentar com uma espécie de teologia negativa como única maneira de se aproximar ou de abordar regiões impossíveis, margens improváveis. Eu sei que são desqualificadas a mística e a esquerda, às quais se prefere o racionalismo dos universitários e a direita dos senhores da selva sob o regime dos quais nós vivemos. Ora, os discursos não ganham nada fingindo se apoiar no objetivo, no racional, na verdade, na dedução, quando, disfarçados, eles permanecem todos fundamentalmente inspirados pelo visceral. Ultrapassaremos o propósito confinado à política fazendo a psicanálise dos compromissos que decidem, por um ou outro, uma instalação radical à direita ou à esquerda - eu excluo, certamente, os profissionais da negação, os renegados que vão de um lado para outro seguindo o interesse que os conduz ora para um, ora para outro, da mesma forma que os centristas, esta peste da política que se coloca a igual distância daqueles aos quais ela se venderá, desde que suas ofertas sejam as melhores. A esses últimos, por sinal, devemos uma das desqualificações mais em voga em termos de esquerda. Na qual é preciso ver sua vitalidade aqui mesmo reafirmada. Pois se a direita e a esquerda não significam mais nada, se as duas categorias estão ultrapassadas, como dizem aqueles cujo espírito se encontra ao máximo de suas possibilidades dentro do psitacismo, então por que razão eles só afirmam tolices idênticas quando o sócio capitalista no -poder tem dificuldades de obter apoio alhures, sempre ao centro, que estão prontos a lhe ceder em contrapartida apenas da partilha dos ministérios. A recusa da repartição e da fragmentação entre direita e esquerda é feita pelos homens de direita - ou por aqueles que apenas o poder, por si mesmo, motiva. A outra desqualificação da esquerda vem daqueles que a reivindicam para justificar seja seu talento para a tirania, penso
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nos antigos países de leste, seja sua obsessão maníaca em alcançar o trono cobiçado durante toda uma carreira não política mas politiqueira. Dos primeiros, ditadores no modelo feudal e antigo, e dos segundos, velhacos e hipócritas consumados, não se deve esperar talento algum para a mística, simplesmente uma excelência consumada dentro da retórica, da estratégia, da tática e todas as artes da guerra assimiladas. Se eles lessem, suas leituras poderiam ser Sun Tzu ou Clausewitz, Maquiavel ou Graciàn. Em contato com eles, a política se reduz às dimensões de um terreno polemológico, e nada mais. A instalação no registro místico e a reivindicação desta única postura dispensam ter que encontrar ou freqüentar, de perto ou de longe, os aprendizes de ditador ou os aspirantes mentirosos e falsificadores. Os nomes próprios, quaisquer que sejam, não me interessam. Por nada no mundo eu quero dar a impressão que é da alçada do escritor legitimar os recuperadores de energia que são sempre os mandatários dos partidos nos quais se tornou profissão nunca pensar, nunca refletir e sempre obedecer, com o único intento de partilhar os cargos assim que o poder for alcançado. A vontade de circunscrever uma mística de esquerda supõe um desejo de captar energias, ler e ver as forças em ação - e de celebrar apenas essas dinâmicas. Certamente não as individualidades que, na história, não pararam de retardar, senão destruir essas potências magníficas querendo se apoderar delas para esculpi-Ias. Interessam-me apenas as figuras que, pelo princípio da astúcia da razão hegeliana, resistem com força idêntica à história, e a fazem tanto quanto são feitas por ela, aquelas e aqueles que, dentro de um combate e uma luta com o anjo da revolução ou da história, dobram, partem ou dominam essas energias. Para um Espártacos, contamos milhões de aspirantes cujo desejo povoa somente os sonhos ... A identidade desta energia eu consegui parcialmente abordar com a ajuda de uma fórmula encontrada na Histoire de ia Revolutionfrançaise, de Michelet, que fala do "gênio colérico da revolução". Pois existe, jacente dentro de toda a esquerda, uma irrefragável cólera, uma revolta indivisível, inteira e im-
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possível de se partir. O que a anima, faz seu movimento e justifica suas manifestações é esta cólera invencível e assimilável a uma espécie de raio, um tipo de trovão, um feixe de relâmpagos destinados ao mundo quando ele se compraz na fatalidade em lugar das misérias, das explorações e das servidões no entanto suscetíveis de serem, senão suprimidas, pelo menos atacadas. Desta cólera, espero a faculdade de pulverizar, destruir, quebrar em duas partes as instituições e os monumentos erguidos à glória do ideal ascético. De fato, associo a direita à promoção, em política, do ideal ascético e daquilo que supõe os sofrimentos e as expiações necessárias para o bom funcionamento da ordem social. Em compensação, a esquerda me parece fornecer, após a cólera, seu modelo dinâmico, a ocasião de promover o hedonismo, seu conteúdo. De onde o estranho e significativo compromisso da esquerda e daquilo que, simbolicamente, se acha associado ao mau presságio, ao negativo, ao pior. A etimologia trai nitidamente a associação com o sinistro. São numerosas as histórias que contam, à esquerda, a ida ao céu escrutado pelos arúspices, dos pássaros de mau agouro; à esquerda, nas missas negras, os sinais-da-cruz efetuados pelos fiéis; ao olho esquerdo, a marca feita com seus chifres pelo diabo que toma posse de uma criança; à esquerda o lado exposto pelo soldado grego quando a lança é empunhada do lado direito; portanto à esquerda, o perigo, à direita, a força; à esquerda, a parte feminina de Adão na época em que ele era andrógino; à esquerda, o inferno; à direita, o paraíso, nas cosmogonias e geografias imaginárias; à esquerda, para os Ocidentais, o oeste onde o sol se esconde, indo do lado da morte; a leste, à direita, ele se levanta, associado à renascença, à renovação, à vitalidade em potência crescente; à esquerda o embaraço dos desastrados, a torcedura daquilo que perde sua forma, seu caminho, a linha reta, o propósito exato; à esquerda aquilo que está torto, oblíquo; à esquerda, as superfícies impossíveis de se desdobrarem sobre um plano em geometria; à mão esquerda o casamento desigual e do lado esquerdo aquilo que não foi legitimado nem pela administração municipal
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nem pela Igreja; enfim, à esquerda o lado para onde se passa a arma quando tudo acabou. '* Por que então este simbólico que em quase todo lugar associa a palavra com aquilo que há de mais temível em termos de acontecimento? Porque, se, como ocorre com freqüência, a metáfora procede do corpo, da fisiologia e da associação, da habilidade, da fabricação, da rninúcia, sabe-se depois dos trabalhos de Broca que o que toma possível a ação da mão direita é o hemisfério esquerdo ... De maneira que a esquerda, na política, se coloca sob sinistros agouros. Devemos nos espantar? A associação da esquerda ao demoníaco não é destituída de razão, sem fundamento ou qualquer fundo de verdade. De fato, o demônio, o diabo, é aquele que, dentro da lógica cristã, preferiu se revoltar, desobedecer a Deus. Submeter-se, não refletir, aceitar a ordem e a lei definidas e desejadas por Ele, eis o que constituía a legitimidade angélica das criaturas aladas. Em compensação, o espírito das trevas, o diabo, define aquele que escolheu exercer sua liberdade, sua autonomia, sua independência e opta pelo livre arbítrio contra a submissão aos imperativos divinos. Princípio libertário contra princípio da autoridade, tudo está dito, ou quase. A cólera como meio dinâmico, o hedonismo como conteúdo, a vontade libertária à guisa de recurso, eis o que permite desde o presente uma tipologia mais precisa da esquerda de que falo. Que a esquerda tenha aparecido como satânica, seja aos olhos de seus adversários - Joseph de Maistre vê a Revolução francesa como uma das criações do diabo -, seja aos seus próprios olhos - quando ela se instala espontaneamente do lado esquerdo do herniciclo no dia de 1789 em que, na Assembléia nacional, é preciso escolher o rei, de direito divino, ou o Parlamento, de direito humano - não há nada de anormal. A esquerda exprime então sua ancoragem libertária radical, sua preferência pelo julgamento independente e a ação autônoma à obediência aos argumentos de autoridade. Que nos lembremos '" A expressão passer l' arme à gauche (passar a arma à esquerda) significa "falecer". (N. doT.)
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também da etimologia que aparenta Lúcifer ao portador de luz e à metáfora desmultiplicada que culmina na formulação de um ideal dito das Luzes. Aliás, satânica até o fim, a esquerda evolui familiarmente aos infernos sociais, esses mundos sombrios onde estagnam os malditos do corpo social: ela se preocupa com este universo no qual as luzes são raras, se não ausentes. Aqueles para quem ela formula um ideal são os excluídos, os despojados, os explorados, os miseráveis, os pobres, os malditos, os escravos, os esquecidos de uma máquina que produz riquezas e bens em quantidade monstruosa repartidos entre alguns em detrimento daqueles de quem ela não se esquece e a quem pretende defender. A cólera que a anima toma por objeto esta repartição desigual do ouro. Alguns que desejariam defender a direita não extremista, que dispõe com muita freqüência de domésticos dissimulados e envergonhados e poucos defensores com o rosto descoberto, renegam esta exclusividade da preocupação dos malditos unicamente pela esquerda. Ora, para disfarçar a defesa da pobreza, os homens e as mulheres de direita, evitando um cinismo verbal que poderia estorvar sua prática quotidiana de um cinismo real, preferem falar da necessária desigualdade provedora da emulação, da inutilidade incontestável das disparidades sociais para tomar possível a competição sem a qual nenhum progresso (do qual se reservam o usufruto, certamente) é possível, da extensão essencial da escala dos salários para estimular a atividade laboriosa, esquecendo que alguns, em grande quantidade, jazem dentro da lama onde se afunda sua escada, longe, bem longe do único primeiro escalão. Colérica, hedonista, libertária e satânica, a esquerda que eu formulo recusou-se a cumprir seu luto da ética, o que alguns se empenham em achar perfeitamente utópico, no que eles têm razão, mas seu equívoco consiste em imaginar que a utopia designa uma perversão, um vício. Ela significa uma topografia singular: não em lugar algum para sempre, que se diria atópico, mas não ainda em um lugar qualquer, ainda não encarnado, em ato, mas soberbamente em potência. No poder, e não so-
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mente na oposição, esta esquerda que me agrada prefere naufragar ou se fazer suprimir antes de abjurar: a de Jacques Roux, o Raivoso, que se suicidou para escapar à guilhotina, a dos exilados da geração de 48, a dos partidários da Comuna de Paris acendendo os braseiros dentro dos quais sabiam que certamente morreriam, também a da geração de 68 que recusa as prebendas nos governos de pós-1981 cujo motor terá sido o júbilo perpétuo na arte de renegar. A ética de convicção se regozija quando a transmutação dos valores se efetua em proveito do político que coloca a economia na sua medida e no seu ritmo, e não o inverso; quando as idéias não são esquecidas e são praticadas pelo que elas são, promessas de fatos e de ações para os quais os homens receberam seus mandatos; quando os princípios que permitem um acesso ao poder permanecem os mesmos que aqueles preparados para nele se manter, à medida que procedem de uma outra lógica que a de um florentino da Renascença ou de um jesuíta espanhol do grande século; quando a exoneração é preferida ao pragmatismo que teria suposto e exigido a abjuração e a apostasia. E preciso também tomar cuidado com a maior oferta verbal que apresentam os que desejam as magistraturas supremas: o hedonismo sempre é um recurso fácil. Entre o paraíso terreno realizado e os amanhãs promissores, as férias permanentes e a canícula no inverno, a raspagem grátis completada pela distribuição de manteiga, não se contam mais as teleologias radiantes e os fins da história desembocando na clareira de um nirvana harmonioso. Essa utopia é perigosa porque legitimou os anos mais sangrentos deste século. Para tanto - os fatos, as realizações e seus triunfos falam por ela -, a esquerda permitiu a encarnação do princípio hedonista, dentro dos textos da lei, dos decretos, da vida quotidiana, dos corpos e das carnes, das mentalidades, de países inteiros ou até continentes, do princípio hedonista em virtude do qual o político é a arte de preparar os meios para tomar mais aceitáveis as condições de existência dos mais desfavorecidos, os mais despojados. De 1789 a Maio de 68, da igualdade de prazeres exigida pelos revolucionários republicanos ao prazer sem obstáculos
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dos muros do Quartier Latin, passando pelo direito à vida para as pessoas pobres da Frente Popular, a reivindicação para acabar com o ideal ascético foi uma constante da esquerda. Bem se pode dizer que a direita construiu sua potência sobre a celebração da trilogia Trabalho-Família-Pátria que forneceu substancialmente três ocasiões de avançar as virtudes da devoção, do sacrifício, do esquecimento de si, do funcionamento de todas as suas forças e, principalmente, de sua autonomia, em benefício daquilo que é destinado a absorver a liberdade individual: uma atividade assalariada, filhos, períodos militares ou o posto prolongado no fronte em caso de necessidade, antes das medalhas oferecidas ao trabalhador, ao pai e ao soldado e a sepultura ... A direita mostra em todas as ocasiões o seu ódio pelo indivíduo que ela quer a serviço do grupo, quando a esquerda celebra este último como uma oportunidade de atenuar as deficiências e as fraquezas das singularidades mais frágeis. Este desprezo pela pessoa desenha um fio vermelho na ideologia de direita que se apóia no catolicismo e sua paixão pelo mortífero, pelo sofrimento, pelo prazer dentro da dor, do sofrimento e do mérito. A veneração da cruz, instrumento de tortura, e daquele que nela se encontra, um supliciado sanguinolento, ferido mortalmente, humilhado e ofendido, dá o modelo ao qual é preciso se conformar, A imitação define um exercício de estilo e de retórica católica obrigada, a política desejada por aqueles que a reivindicam resulta diretamente disso. Igualmente, naquilo que faz a essência da esquerda, sua natureza e sua definição, encontra-se uma vontade deliberada, ainda que mais ou menos assumida como tal, de descristianizar a política, de a laicizar, de trazê-Ia de volta à terra e de fazê-Ia resultar unicamente da imanência, em lugar de qualquer transcendência. As ações mais significativas neste terreno devem ser colocadas na conta da Revolução Francesa, a qual alguns descristianizadores notórios não regatearam sobre os símbolos, aquilo que, então, não carecia de legitimidade de tanto que o partido religioso tinha de reservas, a ponto de reaparecer onde não se esperava, na pessoa e intercessão de um Robespierre,
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produto dos maristas, devolvendo ao clero aquilo de que o tinha frustrado: seu Ser supremo, seus templos da virtude e suas festas copiadas do modelo das procissões. A épistémé da direita se nutre do catolicismo apostólico romano. A época da Revolução francesa - também da genealogia da esquerda - mostrará o quanto o clero, o rei, os privilegiados, a feudalidade, a propriedade, a monarquia, a autoridade e a pobreza entretinham relações íntimas e mesmo conexões estruturais. Em compensação, a esquerda se constituiu do lado da democracia, do direito, da lei, da justiça, da eqüidade, da igualdade e da cidadania. Nossa modernidade se enraíza nessa metafísica cujo princípio exige a imanência. Contra a transcendência, a esquerda colocou em questão a pessoa e a função do monadismo político, monolitismo real, de seu caráter provedor de verdade copiado do princípio da autoridade papal. A cidade terrena não procedia da cidade celeste. O princípio governamental tendo de reproduzir a unicidade divina do mundo perfeito, a identidade do soberano não derivando de modo algum do temperamento do princípio primeiro, a esquerda pôde elaborar uma teoria laica do poder, ou uma teoria do poder laico. A saber: a soberania reside no povo, o real concreto só procede dele e não tem contas a prestar senão no terreno da imanência mais radical; o poder é falível, suscetível de todos os erros dos quais são capazes os homens e aos quais qualquer mortal está sujeito; a pessoa que exerce o poder executivo não é coroada de nenhuma aura, nem leva consigo nada de sagrado; e a etimologia nos lembra: a república é coisa pública, não um confisco privado. Do mundo das idéias, o político desce nitidamente ao_mundo real. A morte de Deus, que supõe também a do rei, ou inversamente, foi a condição de possibilidade de nascimento do homem. Os direitos que ele elaborou para seu uso, por ele e para ele, testemunham que a esquerda traz sempre a política de volta à terra, enquanto a direita não pára de a lançar na direção do céu, que as missas rezadas sempre interrogaram e solicitaram até Luís XVI dentro da capela real, em Notre-Dame, ou, na seqüência, quando das celebrações sob
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o patrocínio de Napoleão, Luís XVIII, Charles Maurras, Philippe Pétain, Jean Marie Le Pen, ou ainda presidentes, portanto da república, que divulgam sua fé privada. À direita, o sabre e o aspersório sempre se deram muito bem. Enfim, à direita, no que diz respeito à história, não há quase sacrifício a uma outra teleologia senão àquela estabelecida pelo Vaticano: o julgamento final, para mais tarde, muito mais tarde. Enquanto isso, contenta-se de um fatalismo conveniente que permite constatar, dia após dia, a força do destino e a submissão deste às vontades de Deus, das quais todos conhecem os caminhos insondáveis. Se é assim, isso é em função do desenvolvimento de um projeto transcendente que nos escapa e para o qual Hegel estabeleceu a fórmula decidindo, de uma vez por todas, e pelo modo tautológico, que o real é racional, e que aquilo que é racional é o que corresponde à Idéia. Posto que nada daquilo que é ou advém só pode ser ou advir em pura conformidade com a Idéia, quer dizer o Absoluto, ou o Espírito Absoluto como seria de desejar, é forçoso constatar que é preciso se virar com aquilo que se tem. Ora, esta máxima não ultrapassa o alcance de um princípio de sabedoria popular, nem mais elaborado, nem mais inteligente, simplesmente um pouco mais contornado e torneado pelo terreno da retórica. Mas, para além de todo efeito da língua, Hegel dá a fórmula do fatalismo e se condena a não ter em seu jardim senão corujas atrasadas em relação ao mundo e só revoando quando a noite cai. Evidentemente, a mística da esquerda supõe, não uma teleologia cuja natureza se conheceria antes que ela mesma conduzisse à eflorescência, mas a idéia de que o real só é racional se a vontade dos homens recair sobre o mundo, se a energia que atravessa a história de ponta a ponta for canalizada, cristalizada, formada e formulada com base nas decisões com as quais se arquitetam os edifícios que são as civilizações, Não há mística de esquerda sem um voluntarismo estético, sem a aquiescência a uma escatologia dentro da qual a energia toma uma parte, mínima para os pessimistas, mas importante, posto que decisiva para os otimistas.
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o fatalismo, o niilismo e o pessimismo são os aliados naturais da direita para a qual não há muito a se fazer, exceto consentir, num panteísmo hegeliano, à necessidade tal qual ela se exprime. No terreno econômico, a fórmula de uma metafísica semelhante é a não-intervenção, o salvo-conduto, ou a crença nessa mão invisível que, misteriosa e autônoma, regularia o mercado como um Deus benevolente preocupado em assegurar o trajeto que conduz da consciência ao saber absoluto, passando pelas etapas que não ignoram nem uma divindade informada, nem um agregativo consciencioso - mas estes são pleonasmos. Enfim, a esquerda não se sacrifica à idéia de uma espécie de clinâmen ontológico, um arqueamento do qual nasceria um tipo de culpa a ser expiada aqui e agora até o fim dos tempos, a culpa podendo ser determinada ou remi da: por ter deixado o estado de natureza, por ter se afastado dos valores neolíticos, conhecido o aparecimento do capitalismo industrial, seja por infelizmente ter desejado se tomar mestres e possuidores da natureza ou querido rivalizar com os deuses inventando, por exemplo, a cibernética. Colocar o princípio de um paraíso perdido induz à tentação de fazer tudo para tomar possível um paraíso reencontrado. Não se saberá datar uma fratura nem mesmo determinar um corte enquanto for grande a tentação de pensar em termos de decadência, o que suporia rapidamente a crença na idéia de um renascimento. Uma mística de esquerda se impõe, não para recuperar um estado perdido ou realizar um paraíso desejado, como não sei que nova variação sobre o tema de qualquer irenismo estúpido, mas para tomar possíveis, como contraponto, a potência do princípio de prazer e sua capacidade de informar o real contra o triunfo imperioso e indivisível garantido pela direita ao princípio de realidade em todos os lugares onde ela se encontrar, em todos os lugares onde ela governa. O hedonismo supõe a luta para contrabalançar os sucessos de Tânatos sobre o quotidiano com o auxílio das pilhérias de Eros. A descristianização tomou por objeto a tríade TrabalhoFamília-Pátria atacando, assim que pôde, aquilo que fazia o envasamento dessa associação virtuosa. Desde a Revolução
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francesa, o confisco e a venda de bens do clero, o convite ao juramento constitucional, a dispersão dos bens eclesiásticos, o confinamento dos hábitos sacerdotais ao recinto religioso, a supressão das ordens monásticas, depois, mais festivo, porém igualmente demonstrativo de uma simbólica necessária, as satumais organizadas nas igrejas, as quebras de objetos destinados ao culto, as cenas de deleites coletivos ou a palmada nas nádegas dadas nas religiosas pelos cidadãos, tudo isso mostrava, em ato, em funcionamento, a vontade de acabar com o conluio do sagrado e do político, o desejo de pôr fim à submissão do poder político ao poder espiritual encarnado dentro das igrejas - e dos castelos. Queimando os objetos dos monges ou derretendo os sinos, consentindo com o casamento de um bispo vindo solicitar a bênção cidadã ou revestindo um asno com as estolas e casulas do padre, os revolucionários de 1789 teatralizaramaquilo que formulariam mais tarde os Convencionais laicizando a vida política. O cristianismo visado é menos uma religião entre outras do que aquela que, pelo seu conluio demonstrado com o poder político, tinha uma imensa parte de responsabilidade no empobrecimento do reino. Como prova de que os revolucionários não atacavam a religião em si mesma, é preciso lembrar-se que, descristianizando com uma mão, com a outra eles proclamavam em assembléia a liberdade dos cultos. Uma mística de esquerda, desfeita de toda fidelidade a qualquer poder espiritual constituído, inimiga das castas, classes e partidos, coloca o princípio de uma laicidade sem aceitar a derrogação. Para isso, uma vez que a laicidade não tem mais necessidade, hoje, do anticlericalismo, é preciso defini-Ia menos como a interdição de toda marca de pertencimento a uma confissão particular do que como possibilidade para todas se manifestarem, já que nenhuma se encontra em posição hegemônica nítida e aberta, nem em vias, no momento, de chegar a isso. Este princípio de não-exclusão ultrapassa seu limite e vai até a formulação de um convite para celebrar o diverso. À esquerda, as diferenças divertem sendo percebidas como
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riquezas; à direita, elas são compreendidas como riscos, de empobrecimento, de enfraquecimento, de ofensas feitas a uma identidade fictícia, mental. Dessas diferenças, a direita induz desigualdades com as quais ela alimenta as hierarquias úteis para estruturar seu edifício social. Em compensação, as origens ilustres da esquerda consistem em dar a essas diferenças os meios de existir, se desenvolver, desde que sejam vividas e praticadas no interior da moldura de um mosaico, de um projeto comum - a Nação de 1792, ou uma entidade que ainda precisa ser definida. De qualquer forma, a laicidade tomada possível pela descristianização permite esquecer a teoria negligenciada pelos cristãos do amor ao próximo para substituí-Ia por uma igualdade diante da lei e o direito e uma liberdade reconhecida diante dos mesmos princípios. Neste sentido, o igualitarismo, primeiro tempo da encarnação na história dessa mística de esquerda, não tem nada a ver com aquilo que seus detratores querem que ele seja. Não existe nem culto da uniformidade, nem celebração da indistinção que geraria o ódio dos gênios e dos grandes homens reforçado por uma vontade de alinhar o maior número sobre o reino dos de espírito mais simples. A igualdade na qual os homens nascem e permanecem se determina em relação ao direito que instala em pé de igualdade os homens dentro de suas diversidades preservadas e reconhecidas: o tomar-se cidadão dos judeus não se fez ao preço de sua integração obrigada, nem de seu desaparecimento radical; a emancipação dos negros, o fim da servidão e da escravidão não supôs o tomar-se branco para as pessoas de cor, nem em sua pele e tampouco em sua alma; a liberação dos loucos não ocorreu porqueos doentes mentais se tomaram sãos de espírito; o acesso à cidadania francesa dos estrangeiros que a desejarem não foi consentido em troca de um abandono da nacionalidade de origem do impetrante; as crianças não foram cuidadas, alimentadas, tratadas, educadas, adotadas, reconhecidas, pela coletividade, com o único propósito de se tomarem imediatamente adultos; as mulheres e os pobres ascenderam à cidadania sem que com isso tenham cessado de ser eles mesmos.
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Que se busque a igualdade dentro das tiranias que se diziam de esquerda, só se achará a uniformidade, pois a uniformização sempre foi o sonho dos extraviados desta mística afim, conforme o desejo de Saint-Just, grande padre não da igualdade, mas da uniformidade, provendo o povo com uma única cabeça de modo que se possa fazê-Ia saltar com um único golpe dentro do cesto de serragem, de uma vez por todas. Delírio dos devotos de Tânatos mais do que desejo de um companheiro de Eros, preocupação ascética mais do que hedonista. A igualdade não deve ser feita dentro da lama, ao pé das guilhotinas ou dentro da umidade dos calabouços, mas diante da regra do jogo estabelecida, a mesma para todos, quaisquer que sejam a cor de pele, as sexualidades, as idades, as inteligências, os rendimentos, as faculdades, os sexos, as religiões, as opiniões. Uma vez formulado esse princípio de mosaico, esse elogio do diverso adquirido, essa aceitação da igualdade consentida como definições cardinais da mística de esquerda, pode-se constatar o quanto as idéias e as reformas que aderiram desse princípio foram e permanecem, pertinentes, apesar de passados dois séculos. As Assembléias Constituinte e a Legislativa realizaram a descentralização de modo que os provincianos tivessem as mesmas oportunidades que os parisienses em relação ao conhecimento, às riquezas, ao poder; decidiram pela descolonização de modo que os Brancos e os Negros fossem iguais diante da produção das riquezas e da lei; declararam a elegibilidade para todos de modo que judeus, protestantes, não-católicos em geral, proprietários ou despossuídos pudessem ascender da mesma forma às funções representativas; votaram leis permitindo o li re acesso às obras de arte, sua exposição em museus nacionais criados com este fim, de modo que a cultura deixe de ser um instrumento de reprodução social, e se tome uma ocasião de edificação e uma promessa de felicidade; admitiram que os soldados pudessem se inscrever em agremiações políticas, abrindo assim a porra da cidadania aos policiais; aboliram a distinção entre cidadãos ativos e cidadãos passivos para que os pobres pudessem, da mesma forma que os
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ricos, ocupar cargos na assembléia nacional; legalizaram o divórcio, simplificaram o casamento e a adoção, com a intenção de permitir às mulheres uma autonomia que as dispensasse de uma submissão definitiva aos seus maridos. Paremos para refletir e colocar em perspectiva esses princípios emitidos e essas leis votadas com o real assim como ele é, dois séculos depois, unicamente no território nacional, e constataremos até que ponto uma mística de esquerda parece mais do que nunca necessária para manifestar a permanência de ideais, de princípios e de virtudes adormecidas quando não são pura e simplesmente achincalhados. Os provincianos conhecem a igualdade de oportunidade com os parisienses para o acesso às riquezas, ao saber, à cultura, aos serviços? As pessoas de cor recebem a mesma consideração que os Brancos, em todos os lugares, todas as circunstâncias, todas as ocasiões? Os não-católicos, principalmente quando são muçulmanos, podem tirar partido dos mesmos tratamentos que aqueles que freqüentam as igrejas e seus adros nas manhãs de domingo? Os excluídos do saber e da cultura, aqueles que disso são privados, têm as mesmas chances que os letrados de circular no labirinto dos conhecimentos? Os soldados nas casernas, os convocados, até pouco tempo atrás, dispõem de direitos que possam lhes servir fora do recinto das casernas? Os pobres estão em pé de igualdade com os ricos? As mulheres com os homens? Inútil ir adiante, desenvolver isso, pois hoje, mais do que nunca, o diverso é contrariado em prol da celebração única daqueles que têm a chance de estar em conformidade com as categorias formuladas por Leviatã e que fazem o bom cidadão: branco, francês de linhagem, homem, católico ou de formação católica, letrado, rico. Quem dirá o que pode representar na França, morena, procedente da África do Norte, a mulher muçulmana, pouco letrada e pobre? E onde ficam as crianças e os doentes mentais, os incuráveis, os mendigos, os operários, os proletários, em matéria de igualdade, de dignidade, de puro e simples direito à existência, ao reconhecimento? Fantasia falar de direitos do homem e da Constituição para aqueles que têm fome e dormem nas ruas, como cães.
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Patranha, falar de decretos, leis e declarações de princípio diante daquele que conhece a miséria, procura emprego, mendiga um trabalho ou qualquer coisa que lhe garanta o final do mês. O anjo da revolução, mais necessário do que nunca, anda esquecido deles, os malditos, os reprovados e os escravos a favor dos quais é preciso sempre lembrar a necessidade de uma mística de esquerda que impulsione os fôlegos, solicite energias, engrosse os ventos para deles fazer tempestades, a única linguagem que o Leviatã, atolado em sua pocilga, entende. A igualdade solicitada caracterizou a Revolução Francesa que como gosto de lembrar forneceu o escrínio histórico dentro do qual aparece pela primeira vez a bandeira negra que tem minha simpatia e que tremulou no dia 9 de março de 1793 sobre as torres da Notre-Dame, o que, para um golpe experimental, revelou-se um golpe de mestre. A fraternidade, assim me parece, para se desdobrar como um estandarte, ela também, teve o espaço de um século, que se estende de 1848 - 1830 é um caso à parte - até 1936, passando por 1871 e a Comuna. O . ano de 1789 permitiu o advento da democracia e do cidadão dentro de seus princípios, o segundo período toma possível o advento do socialismo e do trabalhador. Sobre essa figura singular, não vejo nada além do estudo de Jünger, que fez do Trabalhador a ocasião de uma sociedade e de um mundo nos quais a economia e o destino significam a mesma coisa. Essa no a figura é dotada do poder de se representar como um todo ela mesma e para ela mesma. Longe dos burgueses cujo estado os toma inaptos a perceber qualquer coisa além das partes, sem que jamais consigam apreender aquilo que faz a totalidade e o essen ial de uma globalidade, o trabalhador se percebe pelo modo de uma força em ação, uma entidade do labor revelada dentro. pela e para a ação. A força e a potência, depois o comportamento. o tipo e o caráter, o instalam como alternativa ao mundo no qual ele aparece. O trabalhador mobiliza o mundo sob o registro exclusivo da técnica, que é menos o meio de alcançar fins radiantes ou
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satisfações terrenas, materiais e triviais do que a ocasião de determinar uma nova classe, uma categoria que Jünger chama de raça. Diante do esgotamento, do empobrecimento da energia das civilizações, o trabalhador toma-se reivindicação categórica de uma vitalidade nova levando à globalização do domínio que ele exerce. Essa dominação, manifesta no mundo do trabalho, ganhará um impulso generalizado que derrubará as barreiras nacionais em prol de um Estado universal. Sabe-se que a análise de Jünger, enraizada no húmus alemão dos anos 30, fornecerá os meios de apreender e compreender, ou de preparar e anunciar o que se tomará a figura do trabalhador nos mundos totalitários bolchevique e nacional-socialista. Ele próprio reivindicando então a postura singular do nacionalbolchevique. Lembremo-nos que a descrição feita desta figura do trabalhador dos quais os filósofos sempre fizeram a economia - pelo menos depois de Marx - mostra em funcionamento uma dinâmica cuja genealogia vem do século XIX. A Revolução Francesa permite à mística de esquerda se encarnar numa força reativa acerca da feudalidade; o século de Marx e de Proudhon forneceu a ocasião para a dita mística reagir à industrialização. Se a igualdade foi a resposta dada por 1789 à necessária superação do mundo feudal, foi a fraternidade que apareceu em ilustração do Aufhebung - superaçãoconservação - do mundo industrial. Daí as contrações, as forças, as energias, os transbordamentos, as potências e as vitalidades de 1830, 1848, 1871 e 1936 - que me permitirão instalar dentro de uma épistémé relevante do século XIX. Todos esses períodos são assombrados pela definição de um lugar, no interior de um estatuto a conferir ao trabalhador. De modo que as respostas teóricas que foram e são diversas podem todas se agrupar sob a rubrica e o registro do socialismo. Menospreza-se o socialismo francês apagado e silencioso por causa de sua recuperação teutônica e de sua formulação prussiana. Regente da banda, Marx conseguiu o golpe de Estado filosófico que consistiu em ocultar ou desacreditar todo pensamento socialista precedente para fazer com que acreditassem que a genealogia era unicamente sua, o desenvolvimento e a
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conclusão desta sensibilidade teórica. É fazer pouco caso de Blanqui e de Fourier, de Proudhon e de Pecqueur, de Babeuf e Considérant, é esquecer Cabet e Saint-Simon, sem os quais o marxismo não teria podido se constituir, seja no resultado de empréstimos diretos e maciços, seja na elaboração de um refinamento político, através da polêmica ou do confronto. Esquecese o que Proudhon deve de desconsideração e purgatórios injustificados às críticas polêmicas e malévolas do autor do Capital obcecado por reinar sobre o movimento operário europeu. Ora, a mística de esquerda, quando reage à industrialização do mundo, à mecanização do real, à concentração do capital em suas formas destinadas a serem superadas por essas que hoje seviciam, se faz socialismo e faz girar o conjunto de sua reflexão em tomo deste ponto fixo que é o trabalhador. O cidadão e o homem, nascidos no início da Revolução francesa, se vêem acompanhar-se pelo trabalhador, pelo proletário, encarnações da penúria e da miséria, da pobreza e da desapropriação sistemática de si mesmo. Este século é habitado realmente por uma reflexão sobre a filosofia da miséria. É igualmente necessário se deter sobre o aparecimento de uma importante consideração teórica e crítica da propriedade. Seu fundamento, sua natureza, sua legitimidade, seu futuro, suas formas, as alternativas possíveis de uma propriedade, seja ela imobiliária ou do capital, concentrada não mãos de alguns, decididos a dela tirar proveito para produzir um benefício exponencial e constante, dentro da mais absoluta das negligências em relação àqueles que tomam possível esse lucro, eis o que faz escrever um Pierre-Joseph Proudhon e com ele uma série de autores socialistas, animados por esta mística de esquerda, atormentados por ela, preocupados em dar-lhe forma teórica viável. Qu' est-ce que Ia propriété? (O que é a propriedade?) dá por sinal o pontapé inicial da reflexão socialista francesa sobre essa questão. Em resposta: o roubo, Proudhon formula simples e claramente, e de modo polêmico, o que não deixou de ser uma verdade desde de 1840. Sobre o trabalhador, portanto. Figura da maldição, da exclusão e da exploração, ele encarna o escravo do mundo
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moderno sem o qual não existe civilização possível, dizia Aristóteles - e assim pensam todos os devotos da religião do capital. Os bens, as riquezas, os benefícios, as mais-valias, os lucros, os rendimentos, os saldos favoráveis, são essas as obras-primas do mundo moderno, as pirâmides do capitalismo e as catedrais da industrialização. Para erguer esses edifícios, não se regateia sobre a mão-de-obra que ontem, como hoje, paga-se com um punhado de cebolas, com nacos de pão adormecido e bebidas ruins. O preço dessas construções? O trabalho das crianças, sem distinção de idade, os salários miseráveis consentidos àqueles que penam, a penúria absoluta para os miseráveis privados de emprego, a escravidão nas colônias, as jornadas legais de quatorze horas, as enfermidades profissionais, o alcoolismo, os acidentes, as dívidas, as habitações lastimáveis quando existem, a ausência de direito do trabalho, a repressão de toda uma aspiração sindical, o acompanhamento policial por meio de documentos apropriados dos trajetos dos trabalhadores. Desprezo da dignidade ou da humanidade dos homens, mulheres e crianças que tomam possíveis a existência das riquezas e seu confisco pelo capital. Os dias de fevereiro e março de 1848, os meses de março, abril e maio de 1871, aqueles que se sucederam ao 4 de junho de 1936 propuseram as mesmas resoluções às questões que ainda perduram. Problemas de emprego? Criação de frentes de trabalho nacionais, garantia do rendimento pelo Estado, supressão do trabalho infantil, redução do tempo de trabalho diário, interdição do acúmulo de funções. Problemas de miséria? Obrigação de um salário mínimo, aumento do pagamento, seguridade social, adiamento do prazo das dívidas, abolição das emendas, deslocamento gratuito de objetos colocados no Mont-de-Piété=. Problemas de direito do trabalho? Promoção de associações e sociedades de resistência, contratos de trabalho coletivo, eleições de delegados dentro das empresas, au'" Mont-de-Piété, estabelecimento público comunitário, chamado geralmente de caixa de crédito municipal que empresta dinheiro mediante o depósito de um objeto. O equivalente a uma casa de penhores municipal. (N. do T.)
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sência de sanções em caso de greves, respeitos à liberdade sindical. Problemas elementares de humanismo? Abolição da pena de morte por razões políticas, igualdade entre homens e mulheres, liberdade imprescritível dos cidadãos, supressão da escravidão, criação de licença remunerada. Problemas estruturais devidos ao empobrecimento? Nacionalizações, reforma dos bancos, dos créditos, do sistema fiscal, separação da Igreja e do Estado - uma demanda da Comuna -, laicização da educação e da saúde, escolaridade obrigatória para as crianças. Problemas de moradia? Requisição de apartamentos vazios. Problemas de organização do trabalho? Promoção de bolsas, criação de serviços nacionais, preferência econômica dada à associação de produtores, federalismo, mutualismo, comunitarismo, cooperativas. Problemas de formulação das reivindicações? Generalização e expansão da greve, do sindicalismo, do corporativismo operário. A direita, imediatamente, recusa o todo. Quem pode dizer hoje que esses problemas desapareceram? Que deixaram de ser especificamente estes? A miséria, o emprego, o direito ao trabalho, o humanismo elementar, o empobrecimento induzido por instâncias estruturais, a moradia, a organização do trabalho, a formulação das reivindicações, a ação - nada desapareceu daquilo que assalta o trabalhador e os miseráveis, tampouco nada disso deixou de fazer parte da atualidade dentro das soluções trazidas pelos homens e mulheres dedicados em seu tempo ao gênio colérico da revolução. Tudo permanece tremendamente atual, de uma verdade gritante e de uma desesperante pertinência na nossa história presente. Realmente, mas tudo continua sendo verdade e pertinente também em matéria de solução. O que alegra aqueles a quem o capitalismo arrebatado não mais satisfaz. A feudalidade atacada com o auxílio da democracia e da igualdade, por meio do cidadão; a industrialização recolocada em questão com o socialismo e a democracia, por meio do trabalhador; só esperavam o capitalismo criticado segundo o princípio libidinal e libertário, por meio do indivíduo, cuja data de nascimento é incontestavelmente Maio de 68. Com esse
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mês mítico e os acontecimentos que o caracterizam, a mística de esquerda completa e remata a formulação de seu empreendimento de descristianização iniciado com a Revolução Francesa. O século de Proudhon quis acabar com a caridade dos católicos que sempre satisfazia a pobreza, uma vez que ela lhes permite praticar uma das virtudes teologais à qual convida a Igreja apostólica romana. Contra aquilo que ainda não é o caritativo, mas, no fundo, se assemelha estranhamente a ele, os socialistas quiseram promover se não a justiça, pelo menos a eqüidade, saber o que se retira das leis naturais quando ajustiça supõe o que cabe a cada um, mas conforme o direito positivo. Volto a precisar, aqui, que as leis naturais designam aquilo que em evidência parece se impor, desde que se disponha de um mínimo de humanidade. Segundo o princípio de Antígona, essas leis querem, de maneira ética e absoluta, o que é justo segundo a ordem da alma - e não do código civil. Abrigar os sem-teto, dar trabalho aos malditos, tomar mais viável a condição dos explorados, humanizar a existência sob todas as formas, eis as obrigações políticas de esquerda que procedem dos princípios éticos hedonistas. Longe das dissertações filosóficas ou das digressões dos retóricos sobre os méritos comparados das justiças comutativa ou distributiva, sobre a relação entretida com a caridade e outras virtudes teologais do tipo fé ou esperança, com as quais lidamos, o princípio de Antígona quer a eqüidade segundo a ordem humana. Sua especificidade, sua definição e sua quintessência consideram preferível tudo o que nos afasta do animal, do bicho. Da igualdade e da humanidade à fratemidade e à eqüidade, um trajeto se efetua que conduz à liberdade e ao gozo de si. Maio de 68 oferece a ocasião de um momento histórico no qual se cristalizou a mística de esquerda. Certamente, convém hoje fazer dos acontecimentos um epifenômeno, uma festa, uma algazarra, um desfile barulhento de estudantes sem conseqüência. De Kojêve ao farmacêutico que temia pela sua vitrine, passando por todos os antigos combatentes reconvertidos atualmente nas atividades liberais onde expiam suas vagabundagens passadas, sem esquecer aqueles
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que querem converter o vento da história pelo qual foram surpreendidos em um mesquinho vento encanado passando sob a porta de seu apartamento, Maio de 68 não faz mais nenhum sucesso para as pessoas sérias. Melhor assim, não há necessidade de se ter o consentimento dessa gente. Alguns encontraram em um certo Guy Debord, insosso e emasculado, fabricado para a ocasião e talhado segundo sua lógica, a oportunidade de clamar a mais alta fidelidade aos ideais da época - antes de convidar a votar em um adido de gabinete de Pompidou repentinamente transformado em presidenciável. Isso é esquecer o Debord crítico da sociedade, menos do espetáculo do que da circulação de mercadorias cujo espetáculo oferece uma metáfora. É negligenciar o que está, além da postura, do lado da ilustração daquilo que não deveria nunca deixar de definir e qualificar o filósofo ou o pensador: o intelectual crítico, não desejando nunca compor. Não é de estranhar que Alexandre Kojêve, assim como determinado autor recente de um Petit Traité des grandes vertus, tenham recebido a Legião de Honra - um por Giscard d'Estaing, outro por Jacques Chirac. Pode-se imaginar as reações de Deleuze ou Debord diante de convite semelhante, e o que retorquiram Sartre e Camus quando recusaram tal brinquedo. Pode se ler Debord, ainda e sempre, mas igualmente Raoul Vaneigem, a face solar da filosofia crítica da qual Debord ilustra o lado noturno. O Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes générations é o equivalente hoje do que escreveram outrora Condorcet ou o abade Grégoire, e recentemente Proudhon e Blanqui: livros que, segundo a expressão de Nietzsche, são a dinamite com a qual pode-se minar uma época que responda melhor às aspi ações nutridas do princípio de Antígona. Aqui reencontramos a permanência da mística de esquerda, como um tema musical, dentro do absoluto, sobre o qual se efetuam as variações em função das épocas. O indivíduo surgido desse Maio de 68 constitui o pendente político do nascimento do Eu na filosofia de Descartes. Emancipado de toda ligação escolástica e teológica, o indivíduo formulado em Maio de 68 se define menos pelo seu rela-
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cionamento com o trabalho, a família e a pátria, a sociedade e o Leviatã, que pela relação mantida consigo mesmo. A autonomia, no sentido etimológico, quer dizer, a capacidade de ser por si seu próprio fim, sua própria causa e sua própria razão, aparece como busca essencial de todos e cada um que achem que os acontecimentos desta época lhe dizem respeito. Libertários, eu escrevi, para caracterizar os acontecimentos de então. De fato, e o recurso icônico a Mao, Lênin ou Trotsky não basta para fazer de Maio de 68 uma revolução no modelo chinês ou soviético, nem mesmo a tentativa de desordem sobre este princípio. Os situacionistas exprimem melhor a natureza da época com seu convite a poetizar a existência, a revolucionar a vida quotidiana, a realizar a arte injetando-a dentro do real, a querer a confusão da ética contemporânea com a estética de vanguarda, a promover um urbanismo lúdico, ao mesmo tempo formulando, para seu tempo e para o nosso, uma crítica da publicidade, do consumo, do mandarinato ou de modelos de produção de um pensamento unidimensional. Sua denúncia da miséria, tanto no meio estudantil quanto em todas as outras camadas exploradas da sociedade, e da civilização mercantil, os coloca numa ótica que autoriza essa mística de esquerda a emiquecer com as contribuições substanciais do radicalismo, do humor, da ironia e da subversão. Seu ódio por toda teoria isolada da prática e do império da razão contra ou apesar da vida faz dos situacionistas os precursores do que poderia ser um pensamento autenticamente libertário para nossos tempos melancólicos e desesperados, niilistas e pessimistas. Esse Maio de 68 é igualmente libidinal, à medida que a mística de esquerda aparece nitidamente, e pela primeira vez com tanta evidência, no terreno da energia sexual e de suas práticas. As premissas de Maio se fazem, nós sabemos, com um desejo de abrir e acabar com a separação infligi da aos estudantes masculinos e femininos confinados, cada um na sua casa, dentro de prédios sexuados como no século passado. Um ministro, interrogado sobre essa questão por Daniel CohnBendit, achou por bem responder convidando seus jovens con-
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traditores a se refrescar dentro de uma piscina. Ele acreditava então que a terapia balneária (balneoterapia) fosse eficaz o bastante para desarticular o que se anunciava. Sabe-se hoje que isso não foi o suficiente ... A economia libidinal, como precisamente a formulou Lyotard, suplantou, digamos melhor, completou a reivindicação do gênio colérico da revolução: o homem, o cidadão, o trabalhador, e finalmente o indivíduo se apoderaram alternadamente do desejo de serem figuras consumadas, ultrapassando a alienação representada pelo mundo feudal, o universo industrial seguido do real capitalista e liberal deste século que termina. Esse violento desejo de liberar os corpos supôs uma fúria libertária que elegeu a hierarquia como objetivo a minar, a ceifar, e destruir em prioridade. A tirania do corpo político gerava, de um modo assemelhado à astúcia da razão, uma vontade visando a uma nova política dos corpos. Entre os homens e as mulheres, os pais e seus filhos, os alunos e os professores, os patrões e os operários, os jovens e os velhos, os intelectuais e os braçais, os provincianos e os parisienses, os argumentos da autoridade não tiveram mais nenhuma pertinência. Em seu lugar foram instalados, de um modo lúdico e festivo, contratos ou associações de egoístas, caros ao afeto de Max Stirner. Que princípios animavam essas lógicas novas? O fim dos constrangimentos, a liberação, a superação das submissões, o gozo no lugar da obediência, o prazer no lugar das relações de senhor e escravo. Longe de Mao e de Trotsky, mais próximos de Marcuse e Vaneigem, essas reivindicações se apóiam sobre uma estética renovada da intersubjetividade colocada sob o signo do hedonismo. Jamais o imperativo formulado por Chamfort - gozar e fazer gozar - encontrou uma primavera mais resplandecente. Comunidades alternativas, dinâmicas relacionais pontuais florescendo e depois desabrochando ou se desfazendo; luditismo e talento para a improvisação, religião da festa e reivindicação hedonista generalizada como modalidade lubrificante do social: o espírito de Maio invoca menos os manes de Marx que os de Charles Fourier, o fundador de uma teoria da atração
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apaixonada, uma modalidade importante da mística de esquerda. Para o futuro, ela deveria tornar-se uma virtude cardinal, axial ou rotativa, para usar os termos de Fourier. Vontade libidinal e potência libertária assim conjugadas deviam permitir o nascimento de um novo indivíduo sobre o qual o fim do século se lançou para tornar precários o estatuto e a existência. A figura que provém de Maio, como aquela que sai pela grande porta teórica do Discurso do método, vale pela reivindicação manifesta de sua subjetividade, até e inclusive no consentimento de carregar sua identidade nova aos confins da solidão, ver do solipsismo, que supõe a recente conquista. Terra incognita, ela aguarda ainda hoje uma cartografia precisa, e modalidades possíveis para ser enfim habitada. A metafísica da destruição associada à obra de Maio não poupou o tripé reacionário: trabalho, farm1ia, pátria. De modo que a família, como elemento de base da sociedade civil, portanto do Estado - que se leia e releia a esse respeito os Principes de ia philosophie du droit, de Hegel-, se achou pulverizada. Descaroçada, poder-se-ia dizer, se não fosse pelo temor de uma metafísica imprópria ... Deixando de ser valorizado pela paternidade, a maternidade, a filiação, a classe, a categoria, o sexo, a idade, cada um se encontra dotado de uma individualidade que, para alguns, foi vivida como um estorvo, um presente envenenado, uma espécie de vontade sem objeto. Pois é jubilatório se reencontrar face a face consigo mesmo, sem a obrigação de se determinar em relação a um terceiro. Mas naqueles a quem não interessa encher essa forma vazia, o acesso a essa identidade nova foi mais a ocasião de uma vertigem, um atordoamento, senão de uma náusea, do que um prazer. Alguns nunca mais se recuperaram. Alguns ainda estão nauseabundos, aqueles para os quais o álcool foi demasiadamente violento, quase um veneno. Um novo indivíduo, com certeza, mas para fazer o quê? Com essa liberdade particular oferecida, ou adquirida como um viático, o capitalismo reencontrava seus fundamentos abandonando essa conquista, ainda frágil sobre as próprias pernas, enquanto retomava para si a corrida aos benefícios. Ora, o novo estado de
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coisas exigia uma transformação do modo de sujeição das forças recentemente liberadas. O capitalismo paternalista se lança e toma-se um liberalismo desgrenhado que ofereceu o consumismo à guisa de retribuição de sua violência, seu cinismo, sua imoralidade radical e de seu talento decuplicado para fazer tanto lucros quanto vítimas para o sacrifício em honra aos deuses da antiga religião do capital. Que as causas da miséria não tenham desaparecido, isso não deixa a menor dúvida. Que essa miséria ainda seja o produto das mesmas lógicas, é evidente. Que essa casualidade funesta e maléfica se disfarce sob perpétuas metamorfoses, isso já não é mais mistério. Que esse horror seja gerado pelo antigo capitalismo enlouquecido, isso parece uma opinião ajuizada. Que uma mística de esquerda seja então necessária, útil e urgente, quem duvidará entre as vítimas cada vez mais numerosas dessa regra do jogo? Certamente não os manes daqueles que, aos milhares, tombaram sob as balas do poder que se seguiu a 1848; dezenas de milhares que desabaram sob a metralhadora dos soldados de Versalhes conduzidos pela burguesia republicana, o senhor Thiers no comando; os milhões de malditos que se desesperaram com os homens políticos de esquerda convocados ao poder e que abandonaram imediatamente, ou quase, a ética de convicção em prol de uma ética de responsabilidade inteiramente nova. Alguns falaram, não há muito tempo, de cultura de governo - aquela que fez Blum recusar-se a ajudar os republicanos espanhóis, permitindo assim ao fascismo franquista se instalar na Espanha, aquela também, na França, que fez com que fosse abandonado um caminho tomado por alguns meses, entre 1981 e 1982, antes de dar lugar à miséria que se sabe, e aos demagogos que conhecemos, a camisa escura dobrada dentro do armário, pronta a retomar seu serviço. E então? Então trata-se de dar um fim a Maio de 68. Não como se dá um fim a um animal doente que estivesse com raiva, a baba na boca, ou que saísse em disparada, histérico, destruindo e devastando tudo no seu caminho. A negatividade
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de Maio de 68, se porventura ela for assinalável, existe à medida que a obra precisa ser concluída. Finalizá-lo, como um modo de arrematá-Ia, portanto. E isso quer dizer o quê? Dar a essa nova individualidade uma forma, um conteúdo, meios e ocasiões de se polir, desabrochar e se manifestar, de ir além das geografias em que ela se atardou. Convém, conseqüentemente, determinar o que se pode esperar de uma tal figura nova a fim de que ela retome o gênio colérico da revolução e dele se sirva para reatualizar os ideais dessa mística sobre a qual eu falo. Daí, então, a vontade deliberada e arredia de continuar, na medida do possível, em outros lugares e de outra forma, porém dentro do mesmo espírito, na mesma direção, aquilo que alguns há pouco chamaram, para o fustigar e o depreciar, o Pensamento de 68. Se bem que a expressão proceda do artifício da escrita e que, pelas razões que foram ditas em seu tempo, pareça difícil tratar da mesma maneira e sob a mesma rubrica pensamentos reduzidos para melhor serem descreditados, aceitemos a expressão para convir, com seus inventores, que existe realmente, apesar da diversidade, da disparidade das pesquisas e das obras, uma idéia a atravessar o conjunto desses trabalhos: a crença na fecundidade das idéias de Maio, em sua positividade. Lá onde este pensamento parou, digamos em uma época que vai da morte de Michel Foucault à defenestração de Gilles Deleuze, ou seja, de 1948 a 1996, aquilo que se apresenta para dar seqüência, se não o poder intelectual, de mandarino, portanto midiático, brilhou dentro do insípido e do indigente, mas principalmente dentro de uma espécie de coerência ao seu modo. A crítica desse Pensamento de 68, seja aberta e nitidamente, seja celebrando e reatualizando de uma maneira descaradamente reacionária os valores e virtudes atacados poderosamente pelos filósofos do Pensamento de 68, não fez senão fornecer um pensamento débil e moralizador às senhoras protetoras, aos vigários gerais das comunas rurais, ou às burguesias de subprefeitura vaporosas em seu tédio típico do bovarismo entre o chá e os trabalhos de costura. A ideologia contem-
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porânea, consternadora no retomo do moralismo, recristianiza a época disfarçada com uma roupagem vagamente filosófica reduzida à colagem de citações para as classes terminais do segundo grau. Arrematar o Maio de 68 é se instalar nos mesmos territórios nômades que o Foucault dos dispositivos de enclausuramento, dos métodos de confissão, de retóricas disciplinares, de governabilidade, de técnicas de autoridade, de rnicropoderes e de sociedades punitivas, da biopolítica e do governo dos vivos, mas também do uso dos prazeres, da preocupação consigo, da ética da subjetividade ou da coragem da verdade; é também respirar os ares dos cumes que sopram em Deleuze e Guattari em Mille plateaux (1980), onde se intercalam, lúdicas e jubilatórias, as páginas sobre a sujeição e a servidão, os aparelhos de captura próprios ao capitalismo e ao Estado, as organizações mundiais e os centros de poder, a lógica dos devires, os deslizes e os estratos que separam a maioria, a minoria, o minoritário, ou ainda o molar e o molecular, o corte, a fenda e a ruptura. Que sejam retomados nesse livro barroco os capítulos onde são ditas as relações entre ação livre e trabalho, corpo e espírito de corpo, violência e idades do direito. Paremos por aqui, pois existem mais idéias ativas e explosivas aí, em dez páginas, do que em todos os livros daqueles que saturam ideologicamente nossa época. Porque, e eu termino com os lineamentos para dar um fim a Maio de 68, Foucault e Deleuze reivindicavam de modo alto e claro um nietzschisma de esquerda no qual, após o Caillois do Vent d'hiver e o Bataille de Acéphale ou do Collêge de Sociologie, é preciso saber que podemos ainda e sempre nos instalar. O Pensamento de 68, se representa um certo tipo de coerência, pode fazê-lo graças ao nietzschismo de suas figuras de proa. E numa época na qual o capitalismo triunfa, na qual o que se apresenta como pensamento não passa nunca de reciclagem de velhos caprichos liberais, reformulados na linguagem da universidade da Terceira República, faz sentido, nitidamente, e como uma confissão, que alguns voltem a sentir a necessidade de dizer por que eles não são nietzschianos, conceden-
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do, com meias palavras, que o mundo como está lhes convém globalmente e que eles protestarão contra a vontade, pela forma e pela postura, porém que aos seus olhos trata-se de não mudar coisa alguma, de modo que tudo possa continuar como está e que eles persistam em suas funções de cães de guarda e de domésticas do liberalismo.
TERCEIRA PARTE
DOS MEIOS O deuir revolucionário dos indivíduos
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1. DO INDIVÍDUO ALÉM DO ROSTO DE AREIA
Eu gosto das geografias e cartografias de Nietzsche porque elas dão oportunidades de reencontrar no seu caminho uma quantidade incrível de personagens conceituais, figuras singulares, sujeitos extraordinários, mas todos repletos de uma inacreditável vitalidade, de um soberbo vigor. Para celebrar a morte de Deus, e dar o banquete que convém em tal caso, o filósofo convida uma multidão de comensais: um rei de direita e um rei de esquerda, uma víbora lasciva, uma tarântula ondulante, um velho feiticeiro, um papa, sério como deve ser, um leão risonho, uma sanguessuga, um mendigo voluntário acompanhado de um consciencioso do espírito, um triste adivinhador e o mais hediondo dos homens, uma arca cheia de macacos e de burros, águias e serpentes, mas também guerreiros e crianças no espelho, ilusionistas seguidos de meninas do deserto, um caminhante noturno, um viajante, um convalescente, sábios ilustres e mais animais, entre os quais um camelo, um dragão e depois pálidos criminosos. Ele tinha esquecido, mas não pôde fazer melhor por causa da cronologia, três filósofos obcecados, um por uma história de olho, outro pelas máquinas desejantes, o último pelos homens infames. Daí unir três pontos sombrios e dionisíacos em um triângulo negro do qual cada ponta, já os teríamos reconhecido, designa Bataille, Deleuze e Foucault, ou seja três ocorrências das mais sublimes do nietzschismo de esquerda francês do século XX. Eu acredito que fornecendo leituras diferentes mas convergentes de Assim falava Zaratustra e de suas teses cardinais, todos os três ofereceram os meios de uma grande política cujo epicentro coincide com a formulação
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deste novo indivíduo que freqüenta a arquitetura e os objetivos de toda política digna desse nome. Pode ser, nos ângulos agudos desse triângulo negro, uma reflexão sobre a soberania, suas condições, a parte maldita, a economia generalizada; uma outra sobre as máquinas desejantes, as relações entre capitalismo e esquizofrenia, os tabuleiros políticos e os rizomas ideológicos, as particularidades moleculares e o universal molar; ou finalmente, uma análise fina e rigorosa dos diagramas estratégicos, técnicas disciplinares ou regimes de sujeição. Tudo isso sem negligenciar o conjunto das linhas de força e linhas de fuga que proliferam em todos os lugares, despontam, perfuram o conjunto das obras e as atravessam inteiramente como as flechas no corpo de são Sebastião. Acho que foram subestimadas, esquecidas, negligenciadas as capacidades oferecidas pelo nietzschismo francês de fornecer um pensamento alternativo ao mundo triunfante do capitalismo liberal, se não depois do fim da Segunda Guerra Mundial, para Bataille, pelo menos depois de Maio de 68, para Deleuze e Foucault. Ao banquete de convivas solicitados por Nietzsche para se deleitar com o fim da aranha de cruz e de seu princípio é preciso hoje acrescentar esse caminhante das praias, esse sonhador das areias que, sobre não sei que região de seu juízo, percebeu um dia um desenho assemelhando-se a um rosto no qual ele viu, muito rapidamente, que representava ainda aquele do homem, antes que o fluxo e o refluxo das marés o apague. Do homem, Foucault concluiu a invenção recente sem a esperança de uma longa existência, de tal modo é precário aquilo que a to~ou possível. Do homem, pode-se assim dar uma data de nascimento e prever o falecimento próximo. Nascimento? A partir do século XVII, depois, lentamente, abrindo caminho no século dito das Luzes e desabrochando no da Revolução Industrial, ele ganhou finalmente um aspecto reconhecível. As palavras e as coisas conta essa odisséia não poupando detalhe algum da marcha. Em seguida, o livro termina sobre essa imensa abertura, esse abismo, se não esse desejo de
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cumes: o anúncio da morte possível, provável, próxima dessa criação tão nova na história do Ocidente. Oscilação do alicerce clássico, fratura, fragmentação, efeito tectônico das placas, aquilo que tornou possível a passagem de um mundo com Deus em seu centro para aquele no qual o Homem ocupa o lugar central parece suficientemente determinado para que se possa vigiar os arrepios da terra que anunciariam uma mesma devastação ideológica, uma emergência de epistema inaugural, para dizê-lo nos termos de Foucault. Mas, desta feita, o novo mundo coloca no epicentro uma figura nova que, além do rosto de areia, pode se desenhar com auxílio de quem deseja estabelecer essa comunicação. Enquanto trabalha nesse livro, que é lançado em 1966, Foucault não sabe quais os signos necessários para uma epifania, ou seus prolegômenos, a esta épistémé de um novo gênero. Pelo menos ele conhece a necessidade de se emboscar atrás do tempo, da época e da história, de prestar maior atenção para perceber os primeiros estalos, de aguçar seu olhar para reparar o mais cedo possível as leves fibrilas dentro do material bruto que se tornarão as falhas inaugurais, de colocar seu corpo inteiro à espera de vibrações, de bramidos, de roncos, depois os abalos que anunciarão, finalmente, a chegada do fenômeno sísmico do qual ignora-se a magnitude. Antes que o abismo se abra sob nossos passos, o filósofo se faz historiador do presente e interroga o passado para compreender, como arqueólogo, geólogo e genealogista, aquilo que estratifica o subsolo e a superfície sobre a qual evoluímos. Serve-se desses estratos como informações permitindo a leitura do mundo de hoje e, interrogando as condições nas quais se definem a folia, o asilo, a doença, o hospital, Foucault percebe os mecanismos transponíveis dentro da sociedade de seu tempo. Igualmente, quando chega Maio de 68, tempestade alegre de turbilhões de ventos quentes, o filósofo percebe alguns dos signos que lhe permitem registrar os estalos espreitados, as fissuras esperadas, os tremores aguardados. Nas franjas do mar, o rosto de areia percebido e constatado dentro de sua precariedade parece devorado, atacado, inquieto,
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maltratado. As águas adormecidas transformadas em águas montantes produzem águas conquistadoras, e logo a figura do homem não passa de uma lembrança escrita sobre a praia, impossível de se recordar com precisão. É preciso portanto falar de Maio de 68 em termos de oscilação ideológica, de ruptura de um gênero epistemológico, de rompimento metafísico, de fratura num mundo que, cortado em dois, verá se afastar de um lado um continente onde o homem reinou em ilusão, como fantasma, do outro uma terra incognita sobre a qual nenhuma nova figura esboçou seus primeiros passos. Aqui, o velho homem e o humanismo das sociedades ocidentais roídos pelo capitalismo, lá, um indivíduo soberano suscetível de se governar segundo o princípio hedonista apoiado sobre a economia generalizada e a mística de esquerda. Foucault esperava formas e promessas para este novo mundo. Acredito poder adiantar que o espírito de Maio, sozinho, forneceu mais signos do que podia se esperar. Dentro deste moderno Floréal, pode-se apontar o acontecimento de uma ultramodernidade, ou de uma supramodernidade, que, retardada pela retomada do poder capitalista e pela selvageria das reconstruções que ela impôs para garantir sua duração e legitimar sua permanência, ainda não exprimiu todas as suas potencialidades. Interceptadas no vôo por um fogo preciso e nítido lançado pelos poderes políticos que se seguiram ao desaparecimento de De Gaulle, as idéias de 68 foram recicladas, disfarçadas, descreditadas a ponto de não mais se imaginar, nos nossos dias e na maior parte do tempo, senão uma desconsideração generalizada, lá onde eu proponho a necessidade de um remate para que a obra não se perca completamente. Na paisagem intelectual francesa, Maio de 68 surgiu como um vento purificador obrigando uns e outros a pensar sobre esses acontecimentos. Seja para levá-los em conta e lhes dar uma seqüência, seja para os fustigar e formular um pensamento reacionário, seja para fazer como se nada tivesse ocorrido e se reencontrar propulsionado dentro do campo dos antigos simplesmente por não ter optado por aquele dos modernos. O corte atormenta ainda o mundo de maneira ativa entre aqueles
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que não digeriram Maio de 68 e aqueles que desejariam que uma obra assim iniciada pudesse se prolongar, ver se acabar, numa efusão jubilatória. A linha de fratura e de divisão das águas se faz entre os nietzschianos e os outros, entre aqueles que consideram hoje como a ocasião de um pensamento válido também para amanhã, e aqueles que, no mesmo instante em que escrevem, fazem obra reacionária, no sentido etimológico, vendo a salvação dentro da repetição, da reiteração e da celebração dos valores do passado onde se encolhem com o tropismo dos animais assustados em suas tocas. Uns querem a modemidade e aquilo que a acompanha em matéria de arte, de ética e de política, outros comungam na antífona niilista apoiada sobre a religião da decadência. Maio de 68 intimou que se escolha e diga claramente o que é possível fazer desses acontecimentos nos terrenos ideológicos mais clássicos. De um lado Nietzsche e a possibilidade de uma política dionisíaca, do outro Kant e as certezas de uma administração apolínea. Deleuze e Foucault, entre os filósofos mais recentes, instalaram nitidamente seu pensamento no curso dessa história. Maio surgiu como uma primavera que solicita as naturezas espermáticas em ato e informa as produções realizadas no curso desses anos. Sabemos o tempo de que necessita uma pesquisa, uma escritura, os prazos de edição e só se pode esperar livros nutridos substancialmente por Maio de 68 alguns anos mais tarde. A primeira obra filosófica, como vestíbulo no edifício nietzschiano de esquerda, é provavelmente O anti-Édipo, assinado por Deleuze e Guattari; seguirá Vigiar e punir, sob o nome de Michel Foucault. O primeiro em 1972, o segundo em 1975. Com esses dois elementos, e o que se segue às duas assinaturas mencionadas, pode-se finalmente pensar melhor uma mística de esquerda contemporânea e mais facilmente constituir uma nova figura além do rosto de areia apagado.
Conhecemos o arco do edifício foucaltiano com, de um lado, o anúncio da morte do homem*, de outro, a condenação
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do humanismo clássico. Nada além de gritos e mal-entendidos, de processo de intenção e de erros de interpretação sobre essas duas questões! Alguns, a maioria anglo-saxões, entre bobagem e imbecilidade, má vontade ou tolice sem fim, colocaram em perspectiva essas duas teses e as misérias do século. Auschwitz e a Kolyma, Pol Pot e Yunnan. Fim do sujeito? Morte do homem? Condenação do humanismo dentro do pensamento? Então as piras, campos de concentração e de extermínio, regimestotalitários e legitimação da divagação dos integrismos dentro da história; não teríamos nada a poupar ao filósofo em matéria de leituras sumárias confinadas nas revistas onde se acham instaladas as reflexões autorizadas depois de um certo número de anos. Outras críticas, mais refinadas, melhor argumentadas, mas igualmente desejosas de evacuar esses pensamentos para instalar a poltrona no sentido da história do dia, fustigaram Foucault quanto a esses dois pontos, empenhando-se para demonstrar o quanto, com opções teóricas parecidas, não se podia fundar uma filosofia política, uma teoria do direito, ou mesmo uma pura e simples reivindicação metafísica ou ontológica. Desaparecido o sujeito clássico, não se pode evidentemente nem fundar nem legitimar uma ideologia apropriada sobre as religiões dos direitos do homem e do individualismo liberal. Em compensação, o lugar tendo ficado limpo, pode-se pensar em uma nova figura, um novo direito, uma nova filosofia política, e mesmo uma nova intersubjetividade. Com certeza, livrando-se das categorias antigas, os modernos se proíbem toda possibilidade de construir uma ordem antiga. Mas que interesse teriam eles em destruir aqui para reconstruir a mesma coisa mais adiante? Nem Foucault, nem Deleuze, nietzschianos sensatos, não se sacrificam à ética obrigatória da fundação e da legitimação que se sobressaem mais nos tópicos kantianos. Aos seus olhos, a genealogia que leva em conta as forças deve suplantar qualquer arquitetônica da razão pura ou prática. Nem cúmplices dos carrascos responsáveis pelo sangue derramado neste século, nem kantianos abortados, pela boa
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razão de que eles deixaram Kant muito para trás numa vontade deliberada e conjunta de derrubar o platonismo, Deleuze e Foucault simplesmente formulam uma teoria valendo como ruptura epistemológica. Ela seciona em duas partes este século XX para deixar de um lado os defensores de Apolo se debaterem com seu velho mundo, e de outro, aqueles que se sacrificam a Dionísio e se empenham em cartografar uma outra realidade onde a vida e o princípio de prazer não são contados como nada, ou em quantidades negligenciáveis. Dirigindo-se, no entanto, àqueles que souberam ler, Foucault teve o cuidado de comentar abundantemente as linhas que anunciam a morte do homem em um conjunto de intervenções no qual as coisas são esc1arecidas sem ambigüidade. Nem os direitos do homem, nem o humanismo se salvam simplesmente porque eles funcionam sobre o registro da legitimação do estado de fato. Cortina de fumaça prática, tela estendida entre a miséria das pessoas e os locais onde se fomentam sua alienação, esses dois edifícios principais do empreendimento burguês servem para desarmar todo desejo de acesso ao poder naqueles que, explorados, alienados, dele são privados e também sofrem os efeitos perversos. O humanismo dos direitos do homem age sobre o princípio de uma máquina a captar as energias revolucionárias para as transformar em compaixão, em simpatia, condolência e outros sentimentos que dispensam de atentar contra a ordem do mundo, à qual deve-se, no entanto, a genealogia das misérias sujas. O homem morre menos dentro de um campo de concentração do que como alguém que passa seu tempo a abafar as perspectivas inovadoras. O humanismo, por exemplo, induz ao deslocamento do desejo de justiça para a prática da caridade, em detrimento da eqüidade, ao mesmo tempo que ele poupa as causas da injustiça, da miséria ou da pobreza. A prática dos direitos do homem pelo modelo da religião revelada celebra os textos e exalta os artigos da lei, as alíneas, com força de molinete e efeitos de retórica. Ela evita recolocar em questão os modos de distribuição ou de produção, de repartição ou de gestão das riquezas e dos bens.
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Deus esteve, por um tempo, no centro desses dispositivos de captação de energias rebeldes suscetíveis de tomarem-se revolucionárias; depois foi o homem, um período demasiadamente longo, a julgar pela indecência na qual se entretêm os homens reais, concretos, em carne e osso, que se explora tanto mais impunemente quanto se multiplicam as declarações de boa-fé ou de humanidade e que se reivindicam os princípios da religião humanista. O anti-racismo tratado pelo esquema humanitário ou neo-humanista liberal deveria ser pensado politicamente, considerado como um epifenômeno "ético" do capitalismo em crise. A pobreza, a miséria, a fome, a mendicância em massa, a precariedade auxiliar da enfeudação dos sujeitos à produção e ao mercado livre durarão enquanto nada além de uma simpatia aristotélica, uma comiseração agostiniana, uma compaixão spinozista ou uma condolência kantiana se opuser à violência desses estados de fato cujas causas conhecemos. O humanismo supõe a demissão da política, o desaparecimento da história em prol de uma leitura do real segundo as categorias antigas da necessidade, do destino, da fatalidade, da tragédia inevitável, da incontornável dureza. Não se está então afastado do pecado original a ser expiado. Assim o imperdoável se vê investido de categoria cardinal da filosofia da história. O anúncio do Deus morto proferido por Nietzsche, o do falecimento do homem feito por Foucault, liberam o terreno para um novo nascimento no qual o humanismo e os direitos do homem desaparecem, pela pura e simples razão de que a figura solicitada pelos votos dos nietzschianos franceses torna caduco o recurso aos aparelhos ideológicos destinados à reciclagem ou à aniquilação dos impulsos e das energias reivindicadoras. Deus celebrado, o homem divinizado não produziram, realmente, senão a alienação e a servidão, o empobrecimento, o enfraquecimento dos indivíduos, seus sacrifícios aos leviatãs multiplicados. Após Deus e o homem, o camelo e o leão nietzschianos, é preciso celebrar a criança e as virtudes da inocência coextensiva ao sobre-humano desejado por Zaratustra. Além do rosto de
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areia, pode-se traçar com um dedo febril o contorno de uma nova figura: o indivíduo soberano. A morte do homem e a superação do humanismo ganham seu sentido nessa perspectiva do reino da nova figura. Primeiramente, Deus dispõe de plenos poderes e o homem não conta em nada, uma coisa sendo a causa da outra - a religião triunfa; em seguida, o homem reina sozinho enquanto que o indivíduo soberano não tem existência nenhuma -, o humanismo lança todos aos sufrágios; imaginemos então uma nova época, possibilitada pelas fraturas abertas em Maio de 68, tendo, ao centro, o indivíduo soberano e o reino daquilo que chamarei o hedonismo, sem esquecer a lição de Nietzsche para quem todo prazer busca a eternidade. O conjunto de propósitos mantido por Foucault sobre a morte do homem e a necessidade de superar o humanismo remete explicitamente a Nietzsche e torna possível a formulação deste nietzschismo de esquerda que me convém. Zaratustra descreveu o homem como uma figura desabrochando ao tornar impossível a emergência do super-homem. Feito para ser ultrapassado, dançando no vazio sobre uma corda estendida entre a animalidade e o sobre-humano, o homem se exercita volteando no espaço, por cima de uma praia cuja areia poderia muito bem acolher sua queda e abrir-se em forma de tumba. O pai de Zaratustra afirma que a distância é tão grande entre o verme ou o macaco e o homem quanto entre o homem e o super-homem. O trabalho dos nietzschianos franceses após 68 consiste em avaliar, medir, considerar a distância entre o ponto do meio e aquele da extremidade, longe das origens, antes de empreender um outro percurso, aquele do segundo segmento. Sobre esta linha, Deus e a religião se encontram no início, o homem e o humanismo no centro, o indivíduo soberano e o hedonismo no final. Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche convida a espiar o relâmpago que procede e jorra dessa sombra obscura que é o homem. Emboscados, a cabeça nas constelações que os atravessam, Deleuze e Foucault praticam meteorologia dos grandes espaços nietzschianos antes de capturar as linhas zebradas de fogo no céu, antes, também, de infundir suas obras com
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auxílio das resplandecências que as caracterizam. Com o fogo roubado das vias lácteas e da abóbada estrelada, eles se esforçaram em manter acesa a pira na qual queimam os promotores do ideal ascético, os pregadores da morte, os vendedores de mundos interiores, os turiferários das virtudes que diminuem, os depreciadores do corpo, os maníacos do além, e todos aqueles que, após o grito de Zaratustra, se ajoelharam e rezaram, encadeando litanias atrás de litanias. Essas lógicas promovem a sujeição, ou seja, a colocação do indivíduo em dependência. Sua educação visa a dependência daquilo que o limita, que o estorva, mata, castra, reprime. O trabalho, a família e a pátria, a moral, Deus, a ideologia e a metafísica, as grandes virtudes e as religiões humanistas, sem esquecer todas as mitologias falsamente democráticas às quais convém atualmente se sacrificar e se submeter sem procurar compreendê-Ias ou questioná-Ias. Não há particular sem subsunção ao universal, não há singularidade sem subordinação ao geral, não há individualidade sem entrega à lei. Destruidor de ídolo e negador, Zaratustra, por vezes dialético, não concebe este empreendimento de destruição senão dentro da perspectiva de uma reconstrução. Foucault e Deleuze igualmente. Nietzsche formulou os princípios desta positividade desejada e querida: uma filosofia do corpo imanente, um convite a consentir à inocência do devir, quaisquer que sejam as modalidades, desejos, prazeres, sentimentos, paixões, emoções, sensações. Ele desejava igualmente a invenção de novas possibilidades de existência, a reconciliação com o Eu que ele convidava a não mais pensar como execrável, o desejo do prazer ao modo da eternidade, do eterno retomo, da repetição, da incessante reiteração. E não mais formulando uma religião divina ou um humanismo humano, mas sim uma ética hedonista, através da intersubjetividade associada, ele escrevia: 'Desde que os homens existem, o homem se divertiu pouquíssimo. Só este, meus irmãos, é nosso pecado original. E quando aprendemos a nos divertir mais, é então que desaprendemos a fazer o mal aos outros e inventar sofrimentos." Quem, depois dessas linhas, não consideraria o sobre-humanismo nietzschiano como uma ma-
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neira de desclassificar esse humanismo morno que serve para justificar as existências congeladas. Desde Zaratustra, Nietzsche tinha pensado que ele teria como inimigos aqueles que querem conservar o homem. E ele tinha anunciado e enunciado seus argumentos e suas lógicas: a prece, o sermão, a modéstia, a submissão, o trabalho e tudo aquilo que hoje triunfa sobre o elogio das grandes virtudes e do retomo do homem-deus. Ai ele apontou os maiores perigos para impedir o acesso ao super-hornem, aí chafurdam ainda aqueles que lustram suas armas para proibir a emergência de uma soberania livre ao mesmo tempo celebrando somente as individualidades confinadas no humanismo ou dos direitos do homem. Esses sujeitos, na verdade, são o contrário dos indivíduos: amordaçados para o essencial, eles estão condenados a se virar dentro do incurável.
Quais são as engrenagens deste humanismo em ação há vários séculos, e hoje ainda? Esse aparelho de guerra ideológico funciona interiormente, por e para a captação. Ele apreende as energias rebeldes para alterá-Ias, reduzi-Ias, depois destruíIas. Trata-se de desconstruir as forças, decompô-Ias, para aniquilar toda veleidade de rebelião. Ao sair desta máquina digestora, encontramos, descerebrados, os indivíduos submetidos pelo conjunto dos mecanismos acionados em ação para a ocasião: da escola à família, da mídia aos outros locais onde circulam os saberes dominantes, das editoras às universidades, ou o inverso, tudo é feito para dirigir as forças reati as para as cristalizações humanistas que reivindicam mais decência, justiça, consideração, dignidade. Para tanto, elas se contentam com as proclamações de boas intenções, proibindo que se á mais longe, familiarmente à operação e ao método genealógico, para ver de onde vêm essas misérias, de onde provêm essas dores, de que fonte jorra este negativo, como se poderia afrontar o problema pela raiz, lá onde os nietzschianos gostariam de pegá-lo, e não na sua extremidade, onde se instalam os humanistas. A compaixão permanece uma virtude inoperante, mesmo reforça-
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da pela caridade, lá onde a subversão supõe uma força ativa, principalmente quando ela é completada pela ação. A ideologia estruturou um sistema de malhas estreitas do qual não se pode sair sem estrago. Daí o sentido e a necessidade de uma derrubada do platonismo que, metaforicamente, equivale ao convite para rasgar esta rede metafísica. De que é ela constituída? De um certo número de crenças ou de verdades propostas dentro do absoluto, intocáveis e apresentadas sob a forma de fetiches de adoração para tomar possível essa religião filosófica consensual. Da origem do pensamento a seu esgotamento contemporâneo, os pontos fixos permanecem os mesmos. Primeiro, a promoção de uma alma separada, princípio federador e governamental que organiza e quer o corpo, a carne, os desejos e os prazeres submetidos a seu registro. Mesmo definida de modo heterodoxo como matéria, substância estendida tanto quanto substância pensante, envelope do corpo ou princípio energético, ela está lá, qual uma sentinela vigiando sobre o conjunto do corpo assimilado ao que resta. Informadora, ela suporta a informação pelo princípio divino do qual procede e que dá as ordens. Enquanto tal, ela intercede como auxiliar do espiritual e fornece a ocasião de uma encarnação que permite ao animal material conhecer o fôlego ideal. Depois, efeito da alma ativa, a consciência aparece como condição de possibilidade de julgamentos claros e distintos, estáveis e refletidos, dedutivos e apodícticos. Semelhante a uma máquina de guerra destinada a produzir a verdade, a consciência é alçada à dignidade de mecanismo eficaz, operatório e incontestável. Soberana da ordem dos julgamentos, ela confessa uma submissão dentro da ordem da verdade. O conjunto visando à edificação e à legitimação das certezas úteis ao social, o mesmo que dizer mentiras de grupo, a consciência toma-se moral, o que toma possíveis e justifica na mesma proporção os remorsos, a culpa, a lembrança do erro. Daí a genealogia da responsabilidade necessária aos empreendimentos disciplinares construídos sobre o castigo e legitimados por ele. Enfim, seria preciso que esse indivíduo dotado de uma alma e de uma consciência, enriquecido espiritualmente por
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uma e gratificado razoavelmente por outra, fosse decretado livre para que a melhor ou pior utilização desses instrumentos possa ser mantida contra ele ou ao seu crédito. Aí aparecem as técnicas disciplinares, as lógicas normativas e outros mecanismos destinados a produzir verdade, ou seja, as certezas necessárias à existência e à duração do social. O indivíduo anteriormente dotado de plenos poderes tem sua utilização limitada pelos imperativos sociais incessantemente erguidos contra a soberania. Assim, a alma, a consciência, o indivíduo e a liberdade tornam-se os quatro pilares da sabedoria ocidental moderna. Tomadas autônomas, essas categorias vivem pelo modo antinômico, de tal forma são contidas, retidas e definidas no uso estrito permitido pelo social. Elas são princípios soberanos, sem constrangimento em relação à interioridade, tanto quanto, no registro exterior, na sua fricção com o real, elas se tornam visão do espírito. Sua impossível utilização soberana exterior equivale à extensão infinita de sua existência como princípios. O humanismo se enraíza nessa confusão entre as liberdades interiores reais e as liberdades exteriores formais, entre a total autonomia conceitual desses princípios e a limitação radical de sua projeção no mundo. Os conceitos matam a vida, as idéias desvitalizam e proíbem o real. Fortalecidos desses antinômios que permitem colocar incessantemente o problema sobre o terreno do absoluto, negligenciando e esquecendo as condições de uma experimentação, de uma encamação na vida quotidiana, os guardiães da religião humanista, que são também defensores da mitologia dos direitos do homem, ilustram a opção realista dentro da antiga querela.com os nominalistas. O nietzschismo de esquerda reivindica um nominalismo radical apoiado na e idência de que a palavra não é a realidade. A declaração de princípio, seja ela generosa, soberba ou magnífica - como no caso do humanismo e dos direitos do homem - não vale nada em relação ao mundo concreto se a passagem para o ato for impossível. Assim, o humanismo serve a uma causa inversa ao princípio sobre o qual ele se apóia: confinada no único registro da
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petição ética, da reivindicação moral depois moralizante e moralizadora, encostada em uma revolta e em uma cólera que não dá em nada além de elas mesmas e os ersat; caritativos que se conhecem, essa religião que reatualiza o cristianismo sob forma antropológica recicla igualmente as temáticas do pecado original, da expiação, da necessidade daquilo que advém. Reformismo ou revolução são proibidos de fato e, para desarmar toda veleidade reivindicativa, institucionaliza-se a caridade dentro dos espíritos e das instituições substitutas dessas idéias conservadoras. O que diz Michel Foucault sobre este assunto? Que se pode atacar essa redução da ação da condolência humanista de duas maneiras: primeiro pela luta política clássica, em seguida pelo engajamento de um combate filosófico, do tipo gramsciano. De um certo modo, trata-se de desconstruir o sujeito dos direitos do homem e da pessoa do humanismo em prol de uma nova figura desenhada sobre a areia descoberta pelo mar, um outro rosto para um novo tipo de relacionamento com o mundo e com os outros. Nesses dois casos, aquilo que anima a ação supõe uma vontade irredutível de dissociar uma entidade ideologicamente servil daquilo que ela poderia ser, uma vez reformulada através de uma instância fundamentalmente soberana. Nesta ordem de idéias, e dentro das perspectivas positivas associadas ao sobre-humano desejado por Foucault, Maio de 68 fornece ao filósofo exemplos, experiências, modos alternativos de pensamento, ação e existência que se encontrarão integrados, tanto em Deleuze e Guattari quanto em Lyotard, dentro do próprio corpo da obra filosófica dos anos 80 e 90. Foucault vê nos acontecimentos de Maio um convite para derrubar os tabus com o auxílio dos quais a civilização garante sua dominação: a família mononuclear visando à procriação e substituída pelas partilhas sexuais e a indiferença dos parceiros em relação a isso. Do mesmo modo, ela desaparece como modelo normativo único sob os golpes reforçados de experiências intersubjetivas de todas as ordens, da associação de egoístas à maneira de Max Stirner, revogável instantaneamente, das práticas comunitárias no modelo proudhoniano, instaladas dentro
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de uma duração mais longa. Desse modo, Foucault experimentará tanto a amizade sadomasoquista americana quanto a ação sindical do lado da CFDT (Confédération Française Démocratique du Travail) na França. O trabalho deixa de ser entendido como uma fatalidade, uma necessidade na qual a submissão se exprime ao máximo. Ele é pensado no interior de uma relação limitada à produção, ela mesma submetida às necessidades e às carências do consumo limpo. Daí uma série de variações sobre o tema do direito à preguiça e do trabalho lúdico instruído em relação à atração apaixonada de Charles Fourier. O capitalismo e seus excessos, seus estoques e suas especulações sobre mercadorias dão lugar a uma economia generalizada que submeterá os modos de produção visando à satisfação dos indivíduos. Dentro desta perspectiva de um luditismo fundador de novas virtudes, celebrando novos valores, a prática da droga como ocasião de desinibição, de hedonismo comunitário, de soberania jubilatória chama a atenção de Foucault como experiência fundadora. Se o século precedente se constituiu a partir das utopias, o nosso, chegando ao fim, deverá ou deveria se apoiar sobre essas novas formas de existência que Foucault procurou encarnar na costa oeste dos Estados Unidos nos últimos anos de sua vida. O que se desenha nessas experiências deixa surgir o corpo novo, uma subjetividade desobrigada, soberana, sem contas a prestar senão a si própria. Sua faculdade de se divertir, para dizê-lo nos termos de Zaratustra, permite ofazer gozar o outro, categórico imperativo de um hedonismo político digno deste nome. As novas possibilidades de existência * invocadas por Nietzsche supõem Maio de 68 como um humo a não ser negligenciado. Desse subsolo podem nascer, além do humanismo clássico, novas definições da alma - Scherer e Hocquenghem a dirão atômica -, da consciência - Deleuze e Guattari a descreverão como maquínica -, do indivíduo - Bataille o teria desejado soberano -, da liberdade - Foucault a queria livre, nos mesmo termos de Rimbaud. O conjunto, além do rosto de areia, e desclassificando, passando a uma classe superior o
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humanismo, descreve, funda e estrutura um gênero de humanismo novo, um sobre-humanismo libertário que instala em seu centro, não mais o homem castrado, e sim o indivíduo desobrigado. Após a soberania submetida, eis que chega o tempo da soberania liberada. Esta passagem efetuada do outro lado do semblante autoriza uma redefinição do pensamento anarquista enviscado há muito tempo nas descendências marxistas, cientificistas e positivistas do século passado. De Proudhon a Jean Grave, de Kropotkin a Elisée Reclus, de Bakunin a Han Ryner, o poder foi entendido por esses grandes antigos como uma figura monoteísta encarnada dentro do Estado. E mais, me parece que o conjunto de pensamentos anarquistas formulados no século passado e no início deste, antes da explosão das máquinas infernais da propaganda, se reduz mais ou menos a uma laicização do pensamento cristão. Nietzsche tinha razão ao dizer que o socialismo era um platonismo para os pobres, esta doutrina filosófica, ela mesma antiga, tendo sido a matriz do cristianismo vaticanesco. A maior parte do tempo, o humanismo dos antigos libertários supõe o irenismo, o otimismo, o puritanismo e o moralismo, o pacifismo e o educacionismo, o anticlericalismo e o evolucionismo, o sociologismo e uma multidão de outras escolas agindo como prisões tanto teóricas quanto dialéticas. As invocações à justiça generalizada, a crença em uma teleologia positiva, a submissão ao dogma dos amanhãs que cantam a fé e a bondade naturais dos homens, a celebração da escola e da cultura como únicos meios de combater a infâmia, a revolução social como única ocasião de realizar a humanidade concluída e perfeita, eis o que fazia um credo poeirento, uma série de dogmas pulverizados pelas lições da Primeira, e depois da Segunda Guerra Mundial. Nas trincheiras de Verdun, depois nas câmaras de gás de Auschwitz, encontramos despojos de um pensamento anarquista tomado inutilizável. Entretanto, ninguém retomou niti-
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damente a flama após esses dois apocalipses que sangraram o século. E, no entanto, uma outra geração, menos religiosa, mais artista, se enraizou em Félix Fenéon entre 1880 e 1920 e forneceu uma genealogia desse novo anarquismo que, por seus rizomas, permite uma constelação gloriosa: Tristan Tzara e Marcel Duchamp, Jean Dubuffet e John Cage, Noam Chomsky e Paul Feyerabend, Kate Millet e Merce Cunningham, Henri Laborit e Frank Lloyd Wright. Cada um a seu modo, eles formularam sua vontade de promover novas formas, livres, liberadas, em seus respectivos domínios. A estética, a música, a lingüística, a epistemologia, o feminismo, a dança, a ciência, a arquitetura se encontraram revivificados. Parece-me que o nitzschismo de esquerda, em Deleuze e Guattari, em Foucault também, não deixou de infligir ao pensamento libertário uma ruptura epistemológica que necessita, hoje, de uma reconsideração magistral. Com a derrota de seu alicerce neocristão e neomarxista, nutrida com críticas da modernidade radical, afilosofia anarquista* parece em condição de se constituir de modo singular e de oferecer os meios de pensar este fim de século e depois fornecer idéias alternativas, se não modos de existência radicais e novos. Diferindo somente nos meios, não em seus fins, os anarquistas e os marxistas do século passado queriam colocar um termo no Estado assimilado ao bode expiatório, única fonte de todos os males. Após o Pensamento 68* não se ignora mais que o poder age em outros lugares e de outro modo que aquele concentrado nessa forma dispondo apenas do monopólio do constrangimento legal. A lição de Foucault, e Deleuze a colocou sob a luz em seu Foucault (1986), foi de acabar com essa crença no monoteísmo do poder. Deixando de ser uma propriedade localizável, ele aparece estrategicamente em todo canto onde houver vida e viventes, relações intersubjetivas e luta das consciências de si opostas. Fim da homogeneidade, advento do parcelamento e de pontos mais dificilmente perceptíveis: o poder age onde as forças se opõem e estão em jogo. Ele coincide com o vestígio deixado por esta termodinâmica que está em seu modo de intersubjetividade.
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Contra os marxistas, e neste ponto igualmente contra os anarquistas ortodoxos, Foucault dissocia poder de Estado e modo de produção econômica: o primeiro não participa em nada da infra-estrutura econômica e não se reduz à superestrutura ideológica. A ação sobre um, por exemplo, a apropriação coletiva dos meios de produção, não teria nenhum efeito sobre o outro, ou seja, o fim do poder, seu desaparecimento, mesmo seu devir positivo. Equivale dizer que não há nada a se esperar de uma revolução proletária, social ou política pura e que é preciso considerar de outra maneira a ação política e militante. O poder celebra seu ofício em todos os lugares onde desempenha um papel produtor: equilíbrios, desequilíbrios, ações, reações, forças a devir, potências em regressão, involuções, evoluções, trabalho perpétuo do real, obra constante de tudo o que vive. Da mesma forma, Foucault recusa a idéia de uma essência do poder, um gênero de idealidade inteligível da qual procederiam os momentos encarnados em que se declarariam as forças. Nem o Estado, nem os locais onde ele se manifesta participam, ao modo de uma dialética descendente, de um foco 10calizável ou de uma quintessência acessível. O poder se mostra dentro da imanência e não tem nada a ver com um Deus cuja teologia, ou ainda a sociologia, poderiam traçar os contornos ou precisar as formas. Operatório e inteiramente dentro do relacionamento, o poder supõe jogo de forças puras e puro jogo de forças. Seu modo de ação evita a violência, a violação ou o império brutal. Mais insidioso, o poder supõe uma familiaridade com os interstícios, as falhas, as fendas, as minúsculas brechas abertas em todo lugar onde as forças podem se insinuar antes de marcar sua presença pelo princípio da conquista integral. A ideologia não é seu vetor e, para se dar conta disso, seria antes preciso recorrer à física, à mecânica, à termodinâmica ou não importa que outra ciência mais habilitada para exprimir o comportamento das forças, dos fluidos, das energias, das temperaturas. Com esta nova cartografia, Michel Foucault só poderia hostilizar a simpatia dos marxistas, que, eles, optam pelo molar enquanto o filósofo nietzschiano reivindica o molecular:
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menos o ponto fixo e determinável que a disseminação. Daí uma reconsideração generalizada das táticas e das estratégias em matéria de luta política. Sem mais inimigo frontal, ou animal com cabeça de touro que se poderia sitiar como um forte inexpugnável e ao qual poderíamos imaginar o cerco e o ataque, mas uma infinidade de circunstâncias, de locais, de ocasiões, uma eletrificação de todas as intersubjetividades e espaços identificáveis entre os próprios indivíduos. O amor e o ódio, o desejo e o prazer, a revolução e a repressão, tudo é alterado pelo poder, habitado por ele, escavado pelas forças que o constituem e o definem. Não se escreve mais a palavra no singular, o que não faria mais sentido, mas somente no plural. Daí a passagem de uma estratégia da guerra total à reatualização de uma tática de guerrilha perpétua em todas as frentes onde o combate parece possível. Fim da grande noite para o dia seguinte, fim da resolução dos conflitos após e com o fim da história, fim das revoluções econômicas monoteístas. As revoluções de hoje se atualizam na forma de subjetividades: o credo dos marxistas e anarquistas ortodoxos desaba sob o peso da argumentação magistral de Foucault. De modo que, após essa metamorfose na maneira de encarar a política e de praticar rebelião, resistência e insubmissão, o nietzschismo de esquerda, libertário, supõe novas formas de conjurar a fatalidade do poder generalizado. Foucault elabora uma microfísica que toma por objeto o conjunto das produções de uma sociedade. Dentre as quais a lei, o direito, a justiça, a disciplina, a punição e todo o arsenal de cristalizações sociais autorizando uma civilização a captar este poder para seus próprios fins contra e apesar das subjetividades individuais, desviantes ou não. O jogo político supõe uma gestão permanente das oposições entre a matéria da força e sua função, vale dizer entre o poder de ser afetado e o poder de afetar. A captura da função, reforçada por um evitamento de sua matéria, permite uma imobilização das forças do indivíduo, a saber, a expansão de sua vitalidade, a expressão de sua energia, a manifestação de sua potência. Em seguida, ele deve encarar uma outra força,
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ela própria decidida a lutar pelo império. As instituições vivas dessas reciclagens de energia, a família, o Estado, a escola, a prisão, a usina, a oficina, a empresa, a mídia e todos os locais chancelados usam sua força para apreender a força dos indivíduos e colocá-Ia a serviço de uma dinâmica na qual eles serão perdedores em prol da máquina. Formulando a ética e a dinâmica daquilo que podem ser as forças postas ao serviço da desobrigação, Deleuze escreve: "A vida se torna resistência ao poder quando o poder toma por objeto a vida." De modo que trata-se de procurar dentro do próprio homem o conjunto de forças que resistem à ... morte do homem. Captadas, capturadas, apreendidas, contidas, retidas, essas forças poderão ser canalizadas na promoção de uma nova subjetividade, aquela que, além do humanismo, para além do homem e das religiões associadas, por cima do rosto de areia, permitiria uma figura nova. Dobra de Deus, escreve Deleuze, desdobramento do homem, sobrepeliz desta instância figural que procede do super-homem nietzschiano, eis as três referências que permitem escrever uma história da humanidade na qual a existência do homem encontra um lugar dialético, entre o camelo e a criança nietzschiana, do lado do leão cujos primeiros sinais de cansaço se fizeram ouvir, na França, após esse lindo mês de Maio. Seria necessário, hoje, o equivalente de As palavras e as .coisas que mostrou na tripla emergência da filologia, da economia política e da biologia as condições de uma genealogia do homem. Entre essas análises da gramática geral e da linguagem, de riquezas e de ciências econômicas, de discursos sobre a vida e a história natural, o homem apareceu como animal contado pela filosofia pré-socrática, afastando-se de uma gangue, se constituindo, encontrando seu aspecto com o tempo, avançando pelos séculos. A colocação de um homem que fala, trabalha e vive, representa, classifica, troca, dava espessura ao traço e permitia um contorno suscetível de ser preenchido com a figura antiga. Seria preciso esperar três séculos a partir de Maio de 68 para que uma genealogia pudesse ser feita desta nova figura a
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desenhar sobre a areia onde esteve o rosto posteriormente apagado? Ou se pode, a partir de hoje, encontrar os pontos de referência, mas sem uma fixidez absoluta, que permitiriam um esboço, uma indicação de direção para conduzir corretamente este empreendimento? Pode-se, eu creio, procurar do lado daquilo que faz o quotidiano da pesquisa de Paul Virilio: a deificação da velocidade e a aceleração do mundo, sua globalização, a era da virtualidade doméstica, a dromologia, a submissão às lógicas do tempo real, a permanência do golpe do Estado midiático, o devir imaterial das lógicas de guerra, as realidades numéricas e o imperialismo cibernético. Toda a obra de Virilio propõe um olhar sobre a passagem do local- que permitia o homem - ao global - que torna sua existência precária e sua necessidade aleatória. Num mundo cibernético, a que pode assemelhar-se a figura do homem? O devir do século após Maio de 68 mostra menos o ressurgimento do humanismo, a revalorização da pessoa ou a redefinição de um novo individualismo que o recesso identitário e tribal, egocêntrico e solipsista, à espera diante das perturbações do mundo. Maio de 68 foi um estalo sintomático, como a tectônica das placas, que anuncia a oscilação da sua superfície e uma encruzilhada para o capitalismo: seja sua permanência no modo racional e neopaternalista, seja seu devir planetário e cínico. O fim político de De Gaulle, herói da História, o advento de Pompidou, herói do Banco e das Finanças, o triunfo em 1969 menos do gaulismo da participação que do pompidouismo da exploração (sob suas formas giscardianas, miterrandianas e, hoje, chiraquianas) dão unção a um outro mundo que não encontrou sua figura oposicional ou rebelde. Em compensação, o capitalismo formulou seu tipo ideal com a figura, anunciada por Marcuse, o homem unidimensional, variação sobre o tema proposto por Nietzsche do homem calculável. Seu retrato é conhecido: iletrado, inculto, ávido, limitado, sacrificando-se às palavras de ordem da tribo, arrogante, seguro de si, dócil, fraco com os fortes, forte com os fra-
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cos, simples, previsível, amante arrebatado dos jogos e dos estádios, devoto do dinheiro e sectário do irracional, profeta especializado em banalidades, em idéias curtas, tolo, néscio, narcisista, egocêntrico, gregário, consumista, consumidor de mitologias do momento, amoral, desmemoriado, racista, cínico, sexista, misógino, conservador, reacionário, oportunista, portador ainda de alguns traços da mesma natureza que definem um fascismo ordinário. É preciso um parceiro ideal para manter seu papel no vasto teatro do mercado nacional e, depois, mundial. Eis o sujeito cujos méritos, valores e talento são hoje vangloriados. Este homem é menos um produto de Maio de 68 que do triunfo político do conservantismo verificado desde junho do mesmo ano. O capitalismo tendo conseguido sua metamorfose, Maio de 68 tendo permitido a passagem ao capitalismo liberal planetário, ao mercado totalmente liberado, o humanismo e a ideologia dos direitos do homem abasteceram soberbamente desde então os meios ideológicos de entreter a miséria e remendar tudo, apesar do crescente número de falhas. O aumento da miséria sob todas as formas, o crescimento da alienação, a selvageria das leis da concorrência, o empobrecimento generalizado não encontram medicações e farmacopéias junto aos defensores do humanismo, senão do lado da caridade organizada cinicamente como empresa e espetáculo. Na falta de justiça, o sentimento promovido como caritativo se apóia nas associações de voluntários, nas sociedades de caridade, as doações solicitadas por meio de grandes espetáculos nos quais o mundo midiático, entrando em cena, exacerbando o sistema, distribui os emolumentos de uma noite sob pretexto humanista de tomar a miséria suportável. E quando uma coisa parece suportável, toma-se difícil, impossível, impensável sua supressão. Nunca o papel contra-revolucionário, conservador, se não reacionário da caridade, produziu tantos belos efeitos quanto com a ajuda e a cumplicidade dos filósofos oficiais que, entre a Academia Francesa e os jornais parisienses, freqüentam os jardins do Elysée onde recebem o necessário para se regala-
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rem; sufoca-se e apaga-se tudo aquilo que poderia representar um risco para a ordem social em vigor. Diante dessafilosofia oficial, freqüentemente aquela dos professores sedentos de unção midiática, persiste umafilosofia radical preocupada em fazer do Pensamento de 68 menos um efeito de geração que uma ilustração, dentro do século, da permanência de uma corrente nietzschiana geneticamente radical e produtora de efeitos alternativos. A morte do homem, o fim do humanismo e a proposição de uma nova figura parecem, neste caso, contraditórios dentro do pensamento de Foucault somente para aqueles que querem ali encontrar o que procuram: algo que legitime a privação de um pensamento que nutre poderosamente todas as modernidades estéticas, éticas ou políticas. Há de se convir, constatando isso, que os defensores de um peremptório "por que não somos nietzschianos" passem a maior parte do seu tempo a fustigar todas as modernidades deste século, só celebrando os artistas, pensamentos ou políticas que, a montante de Maio, se recusaram ou se recusam a aderir a seu século, dando preferência a improváveis virtudes antiquadas. Em suas fogueiras, acham-se a música contemporânea, o serialismo, o dodecafonismo, o atonalismo, o noveau roman, a arte conceitual, a arte minimalista, a arquitetura pós-moderna, os pensamentos da desconstrução, a sociologia e a teoria antropológica de Bourdieu, a esquerda não-liberal, este mais recente disfarce do capitalismo desenfreado, se não todas as esquerdas. Para alimentar o braseiro, então, os livros de Deleuze e Guattari, os de Lyotard e de Foucault, a música de Boulez e as colunas de Buren, tudo isso apresentado como marcas de um novo academicismo. Permanecem, em volta do fogo, as conversas sossegadas, que se podem ousar até dentro dos cafés filosóficos, sobre a necessidade dos valores, o retomo da filosofia e da moral, a oportunidade de restaurar as grandes virtudes - a coragem e a fé, o amor e a caridade, a esperança e a temperança, a prudência e o humor, posto que bastaria rir... Como, a partir de então, censurar os atores do Pensamento de 68 por se encontrarem como vítimas de um ardil da
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razão, promotores involuntários de um retorno do indivíduo que eles teriam desejado suprimir, de um triunfo do humanismo que teriam preferido ultrapassar? Não se pode considerar Deleuze e Foucault responsáveis, de nenhum modo, pelo estado das coisas reais e concretas, desde Maio de 68, pois, até que se prove o contrário, o que triunfou politicamente após a primavera de 68, é o inverno da ideologia humanista dos direitos do homem caros aos inimigos do Pensamento de 68. Que Pompidou pelo tempo que lhe restava, depois Giscard, Mitterrand e Chirac tenham lido atentamente A arqueologia do saber, em seguida Capitalisme e Schizophrénie, antes de passar por A vontade de saber, e se tenham inspirado para construir o século à imagem dessas obras, é algo repleto de mordacidade. Somente os intelectuais mundanos imaginam que os livros precedem o real e que o texto anuncia o mundo ... Em compensação, que esses pensamentos estejam ainda em atividade, ou sejam apostas agindo como linhas divisórias, isso é algo indubitável. Que a nova figura, após o rosto de areia, esteja ainda por ser desenhada, não há dúvida. Que o aspecto grotesco do homem deste fim de século não tenha nada a ver com essa outra figura, mas procede diretamente dos acasalamentos entre os defensores da religião humanista e aqueles dos direitos do homem celebrados como um decálogo dispensando tudo exceto as orações, isso é evidente. Não se pode determinar a posição do Pensamento de 68 em atividade nesses últimos trinta anos sobre qualquer terreno político para que se possa tornar seus filósofos culpados de prevaricação. O último Foucault não abandonou de forma alguma suas idéias de 1966. Nenhuma negação ou contradição, nem reviravoltas nem arrependimentos. Anunciando a morte do homem, o filósofo não se proíbe de maneira nenhuma um trabalho ou uma pesquisa permitindo a formulação de uma figura alternativa. Sua recusa de um homem nadando no período clássico como um peixe dentro d' água pode, sem risco para a coerência de sua obra, se reforçar de uma busca de novas formas para uma outra figura que tomaria por centro o indivíduo desobrigado. A exis-
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tência desse personagem conceitual teria inaugurado um outro período, uma épistémé singular, ainda a ser constituída. As interrogações do A preocupação consigo e de O uso dos prazeres (1984) visam menos a um retomo ao sujeito que a uma superação do homem para conseguir formular uma teoria da soberania doindivíduo ao mesmo tempo que uma teoria do indivíduo soberano. Sobre a areia onde se apagou o rosto do homem, Foucault começou a desenhar alguns traços para constituir uma nova figura. Nesse novo sujeito, o filósofo buscava um esboço no passado grego e romano, quando o cristianismo não havia ainda pervertido toda ética com fortes doses de moralina. Procurando o que podia se assemelhar a uma moral pré-cristã, Foucault se deu meios de formular uma moral póscristã que vale para nossos tempos. Qual a moral vigente neste espaço pagão? Uma problematização dos prazeres que autoriza uma resolução dos desejos sem o parasita da culpa, uma nova erótica e uma cultura de si que supõem uma definição ampliada da dietética entendida como uma ética generalizada, um governo de si no qual o regime dos prazeres parece menos uma ocasião de sofrimento'que uma possibilidade hedonista, uma intersubjetividade contratual e jubilatória, uma moral da brandura e da amizade, uma política da moderação, o desejo não mais definido pela falta mas pelo pleno, a confusão da ética, da estética e da existência, a vida pensada como uma obra de arte. E toda uma série de traços fortes, suficientes para ver com o que teria podido se assemelhar, além do esboço, a obra concluída. Longe de contribuir para tomar possível uma barbárie - é esta palavra que utilizam Luc Ferry e Alain Renaut - destruindo o sujeito, proibindo assim toda intersubjetividade, a morte do homem autoriza novas perspectivas de relação com o outro. A figura formulada por Michel Foucault nos últimos períodos de sua vida, aquela segundo o rosto sobre a areia, não foi constituída através do modo do solipsismo, mas sim pelo regozijo mútuo, para retomar os termos dados pelo próprio Zaratustra. O indivíduo soberano, em relação e em contato com outras individualidades soberanas, permite o esboço de uma civiliza-
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suscetível de ultrapassar a epistemologia clássica. Em uma relação pacificada, hedonista, libertária e jubilatória, o contrato, a associação pelo modo sinalagmático, fornece e legitima a autoridade fundadora. O jogo de forças se curva, a partir de então, menos no sentido de Tânatos, como à época da submissão, do que na direção de Eros, por e para ele. O poder que os desejos disputam toma-se uma força empregada para procurar prazeres e obtê-Ios. Menos bárbaro, selvagem e brutal que civilizado, refinado e cortês, o regime ético pretendido por Foucault em seus últimos livros define um ideal contemporâneo. Que uma mística de esquerda possa se inclinar no sentido da realização de um modelo de subjetividade e de intersubjetividade, que a política se apóie sobre uma ética, que as máquinas sociais estejam menos em contradição com os indivíduos que dentro de uma relação de complementaridade construtiva, aí se encontravam as pesquisas do filósofo quando a AIDS o levou. Depois dele, mas ainda perto dele, Gilles Deleuze constata que Maio de 68 permitiu aquilo que a História, esta história particular, deu no terreno das idéias e do pensamento. A saber, o deslize de um mundo em direção a outro. Ele afirma que após aquela primavera é preciso distinguir "o futuro das revoluções dentro da história e o devir revolucionário das pessoas". Em seguida, ele convida a extrair as conclusões e as conseqüências desse saber, de modo que se abone e se celebre, lição para uma mística de esquerda e uma ética libertária, o devir revolucionário das pessoas "que é o único a poder conjurar a vergonha ou responder ao intolerável". Nem humanismo, nem direitos do homem, nem caridades associadas, nem retomo às grandes virtudes proclamadas e reiteradas através de dervixes dançantes, a filosofia radical quer uma potência de ação efetiva e não uma compaixão moralizadora verbal e verbosa, estéril e esterilizante. As declarações de intenção cúmplices do realismo político bastam quando tudo, nesta hora, exige um nominalismo que os nietzschianos praticam pois sabem que as palavras não são atos, os verbos, gestos, nem a retórica, uma política. ção
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Maio de 68 fez desabar a Universidade construída sobre o modelo do século XIX. Esta espécie de Bastille uma vez derrubada, o trabalho se iniciava. Desde essa época Foucault designou as outras fortalezas a atacar, os edifícios a visar: os grandes mecanismos de reprodução e de conservação social, as instituições e as instâncias pelas quais os saberes constituídos são ensinados, celebrados, incensados.Para obter uma lista desses locais de predileção do auto-envolvimento do poder há de se ler Pierre Bourdieu que, de acordo com Foucault, para além do tempo, aponta a Universidade, certamente, mas também os colégios, a escola, no sentido amplo do termo, os baluartes do jornalismo, a televisão, as galerias de arte, as editoras e outras máquinas destinadas, a maior parte do tempo e exceto algumas raras exceções, a cimentar e confortar o edifício social em vez de fazer com que ele balance ou colocá-lo em perigo. Em todos os locais possíveis e imagináveis, longe de um lugar centralizado, visível e perceptível, Félix Guattari aponta o perigo de um microfascismo ativo. Disseminadas em todo o campo social, essas forças, que absorvem a vida e a energia como buracos negros, fornecem aos poderes em vigor ocasiões de fabricar nódulos, pontos de endurecimento sobre os quais se fazem a ancoragem e a inspeção sanitária das malhas e esquadrinhamentos mais envolventes. A passagem da antiga sociedade disciplinar, teorizada por Foucault, para a sociedade de controle, diagnosticada por Deleuze, supõe a exacerbação, a proliferação e a expansão dos microfascismos. A modernidade política coincide aliás com essas metamorfoses que, após a fissura do monólito, o fazem explodir e pulverizam a autoridade, o poder, a potência, a violência legal, em zonas de difícil senão de impossível acesso, a tal ponto são controladas as modalidades de um possível atrito. A virtualidade dos modos de ação do constrangimento legal gera uma maior brutalidade: a dissimulação soma-se à eficácia, velho princípio de estratégia guerreira e militar. O difuso ganha em concentração, em periculosidade, que cresce na medida em que ele mantém sua aparente invencibilidade da invisibilidade de sua abordagem. Somente os efeitos são visíveis, mas tarde
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demais para considerar uma intercepção depois uma destruição, um curto-circuito. A cibernética e a informática dão a essa nova sociedade novos meios: o virtual, o secreto, o tempo real, a eficácia do controle no qual os auxiliares, os meios, os homens e as técnicas não mais necessitam do aparecimento direto nem da presença. Tudo isso induz um novo regime de dominação que desclassifica Marx e toma caducas suas antigas grades de decodificação. As análises do século passado envelheceram ao mesmo tempo que seu objeto eleito deixou de ser reconhecível. A posteridade de Nietzsche, particularmente dentro da fórmula do nietzschismo de esquerda, me parece fornecer uma grade mais adaptada à leitura deste fim de século. De maneira que, sobre a praia onde a figura do homem acabou por desaparecer, se revela cada vez mais nitidamente desde Maio de 68 uma soberania em guerra radical contra tudo aquilo que, sob a forma de um poder qualquer, impede sua expressão e sua expansão.
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2. DO PODER DA ESCULTURA POLÍTICA DE SI
Onde se encontra então o sucesso de Maio de 68? O que é preciso reter? Barricadas e odores de gás lacrimogêneo, multiplicação de pixações nas paredes e poesia nas ruas, carros virados e queimados, universidades, fábricas ocupadas, discursos por toda parte, dionisíacas do Quartier Latin e satumais até as províncias, reuniões e greves, desfiles e incidentes, pedras e escudos, conferência de imprensa e efeitos dos anúncios, comunicados transmitidos pelo rádio e teatralização da política, tudo lembra a tradição histórica da insurreição, dentro das modalidades adequadas ao século. Tudo, também, conta o fim dessa história de um gênero báquico no triunfo da reação e do conservadorismo: de Gaulle repelido, não foi Mao, mas um banqueiro que retomou as rédeas deixando lastimáveis, ofegantes e ridículos aqueles que, em Charléty, acreditando que sua hora era chegada, se apresentaram em recurso, em socorro. Alguns viram aí o impasse do movimento, sua falha, seu insucesso manifesto. Mas o que teria sido um sucesso? A tomada efetiva do poder por aqueles que desfilavam sob os retratos do Grande Timoneiro, do inventor do Exército Vermelho, se não os stalinistas do partido comunista francês? Sucesso seriam os sovietes e a ditadura do proletariado, a revolução cultural no modelo chinês ou a generalização do trabalho braçal forçado? Não é certo. O espírito de Maio * não se desenvolve nessas máquinas valendo menos que aquelas que fazem o poder do momento, mas no novo tom libertário, nascido naquele instante, nas ruas, sobre os muros, nos locais ocupados, e dentro no interstício incessantemente visível entre duas pessoas que se falam. Maio de 68 descobriu a difusão genera-
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lizada do poder e fez deste, onde ele se encontre, uma ocasião de questionamento, de crítica. Longe do poder único do Estado, ou de um Althusser falando interminavelmente sobre os aparelhos ideológicos do Estado, o poder se mostrou em todo lugar; se era preciso combatê-lo, tratava-se de persegui-lo em todo canto. Daí uma obrigação de pensar de outra forma as modalidades da resistência ou da insubmissão. A lição de Maio também está aí: saber a inexistência de um local fixo para a expressão da autoridade, que nenhuma figura encarna especificamente, por essência, pois ela age através de uma energia instalada em todos os lugares possíveis e imagináveis. Lá onde dois seres se olham, antes mesmo de se falarem, o poder elabora a relação, mina-a, determina-a. A luta das consciências de si opostas em Hegel, o combate para determinar aquilo que reflete a dominação, aquilo que demonstra a servidão, eis a matéria para uma verdade tanto ética quanto política. Esta lógica agônica funciona entre os indivíduos, os grupos, as castas, as nações. Ela supõe sempre uma saída sem que jamais o equilíbrio deixe de determinar dentro do absoluto um ganhador, um perde dor, um vitorioso, um vencido. A guerra invade o teatro com toda intersubjetividade e o poder circula como uma energia ruim com a qual se formulam e cristalizam as submissões. O problema não é tanto o poder do Estado, mas o estado do poder, sua fluidez, seu silêncio e sua circulação generalizada, seus fluxos e suas devastações, suas construções, os edifícios e as ruínas. Lá onde lutam duas forças opostas existe matéria de exercício libertário. Daí uma caducidade generalizada do pensamento anarquista que faz do Estado seu objetivo prioritário e único. Imaginar o poder somente no local onde se fomentam a burocracia e a administração de uma nação é achar um bode expiatório a custo baixo, eleger sem risco uma vítima suscetível de um sacrifício propiciatório unicamente gerador de satisfações simbólicas. O golpe de Estado, tal como Malaparte o detalha, deixou de ser pensável: os locais de um poder a ser tomado estão disseminados e reluzem com intermitência nos lugares mais
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inesperados. Além dos ministérios, dos aeroportos, das capitais, das conexões e do rádio, o poder permanece em sua soberba e eterna eficácia, em lugar nenhum e em todos os lugares. Um pensamento anarquista contemporâneo deve romper com esse fetichismo do Estado, pois ele se resume em não ser senão uma máquina, sem nenhum coeficiente ético, apenas um mecanismo obedecendo às ordens dadas e transmitidas. A antinomia entre o Estado e a liberdade desaparece ao mesmo tempo que a sociedade de controle substitui a sociedade disciplinária. E a ideologia, como qualquer outra nova tecnologia de gestão virtual dos fluxos de homens ou de idéias, substitui somente o Estado. O Leviatã antigo muda de forma e se manifesta na onipotência do pensamento unidimensional, a condenação à morte de toda reflexão por pouco que seja complexa, subversiva, pior, na sua recuperação segundo as palavras de ordem do teatro midiático ambiente. Em todo local onde a energia rebelde se transfigura em violência constitutiva do real, o libertário pode se pôr ao trabalho. A existência pode se exercer em todos os azimutes diante de um poder funcionando pelo princípio das categorias teológicas da onipresença, da onipotência, mesmo da onisciência, todo poder valendo como um saber. Em compensação, o saber compreendido como um poder solicita a ira dos amantes e promotores da submissão. A lógica revolucionária holista e gregária não é mais apresentável, ela teve sua época. Ainda mais que ela sempre mostrou na história sua condenação, após a prova do poder político efetivo, a "governar como os governados governariam se eles tivessem o poder" - segundo a feliz fórmula de Giono prefaciando Maquiavel. Em todos os casos, os revolucionários de hoje fazem os reacionários de amanhã. Com muita freqüência, os oponentes do dia se revelam piores que seus predecessores, tão logo eles tomam seus lugares no trono. Eis então lições anarquistas para hoje: a eterna perversão daqueles que exercem o poder, quaisquer que sejam, quer se trate de filósofos que viraram reis ou reis picados pela filosofia. Seu exercício induz uma unção que transfigura os gover-
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nantes, direita e esquerda confundidas, em membros de uma casta com suas regras, suas leis, seu gregarismo compreendido, e conduz a um culto no sentido daqueles que puderam, um dia, praticar, legitimamente ou não, a dominação sobre o maior número de seus súditos, seus administrados - suas vítimas. A revolução à maneira de golpe de Estado está morta, viva a revolução pelo modo libertário, molecular, para dizê-Io com as palavras de Deleuze e Guattari. Longe dos futuros radiantes e dos amanhãs que cantam, pacificados, é preciso pensar no devir revolucionário dos indivíduos, única ética pensável para um libertário na virada do milênio. Lá onde os recicladores milenaristas visam a uma sociedade entorpecida, fixa, construída pelo princípio da esfera parmenidiana, fechada, é preciso opor a vontade de uma sociedade movente, mutante, atravessada por fluxos, animada pelas correntes, elaborada no modo do rio heraclitiano, aberta. Lá onde a morte acaba por ser o modelo, a vida se toma o princípio, uma obrigação ontológica. De uma à outra, existe tudo aquilo que separa sociedades fechadas e sociedades abertas conforme as categorias propostas por Bergson. Ontem, a revolução supunha uma espera, algo pior para hoje, dentro da perspectiva de um amanhã pacificado. Tudo isso justificava assim o recurso a uma dialética e a negatividade desempenhava seu papel dentro da lógica de uma resolução ulterior, pelo modo sintético. Esses futuros radiantes, nunca vindos, sempre anunciados, foram a causa de presentes deploráveis, de quotidianos detestáveis. Foi, aliás, em nome de um terceiro tempo social maravilhoso que o segundo era suportado, ainda que fosse medonho. Esse milenarismo reforçado de sacrifício à utopia clássica deve ser substitu-ídopor um instantaneísmo fundador da identidade hedonista em política: aqui e agora, na urgência de um presente a não ser lido como um momento dentro de um movimento, mas como um fim em si, um absoluto. A eternidade jaz exatamente dentro do instante, em nenhuma outra parte, e é preciso vivê-Ia pelo princípio enunciado por Nietzsche do desejo de ver repetir-se incessantemente aquilo que se escolheu, quis, elegeu. Adiar é tomar impossível, dar suas chances
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ao improvável. Ora, o devir revolucionário do indivíduo se inscreve no momento presente, e só nele. Qualquer que seja o poder, o papel do indivíduo consiste em opor uma resistência determinada, uma insubmissão feroz àquilo que requer a autoridade. Se uma mística de esquerda serve de bússola e oferece pontos cardinais seguros e garantidos para a ação e a decisão, não se deve imaginar por isso que a chegada da esquerda ao poder suponha e subscreva o fim do trabalho de toda vontade libertária. Ao contrário, e mais do que nunca, para incitar os aspirantes e os pretendentes, os auxiliares e os atores da encarnação dessa mística, para evitar seu abandono pelo caminho, mesmo sua perversão, seu esquecimento, o indivíduo rebelde deve se preparar para exercer uma tarefa infinita. Desde a Revolução Francesa, e seu lento avanço no sentido da negação de seus ideais fundadores, os Raivosos isolaram a antinomia radical que arquiteta toda vontade libertária. Varlet escrevia em Explosions: "Governo e revolução são incompatíveis." Dois séculos mais tarde, mesmo se a noção de revolução exige redefinição e reconsideração, a idéia permanece uma verdade sustentada pela evidência. De um lado, aqueles que detêm o poder, o exercem, o amam, o querem, o reclamam e, com muita freqüência, dele dispõem; do outro, aqueles sobre os quais ele é exercido. Os primeiros podem ser de direita ou de esquerda, ateus ou clericais, liberais ou comunistas, eles designam e distinguem, para os segundos, os inimigos reconhecidos, divulgados. Pois, ainda que móvel, difícil de apreender, suscetível de desaparecer aqui para reaparecer mais adiante, o poder se encarna com freqüência nas.mesmas pessoas que uma sociedade forma por esse fim, elege e recompensa de maneira nada desprezível. As elites, os antigos alunos da escola nacional de administração, os ministros, os apparatchiks, *- os eleitos constituem uma oligarquia que se arroga o poder político sem o partilhar, uma
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Palavra russa usada pejorativamente para denominar membros de um sindicato, de um partido, em particular de um partido comunista. (N. do T.)
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casta dissociada dos interesses e da vida dos cidadãos ordinários sobre os quais se exerce a autoridade. O homem branco, adulto, ocidental, cristão, heterossexual, casado, dispondo de um capital cultural e de um volume de bens materiais codificados, aparece como modelo a quem se reserva a utilização e a detenção dessa violência social autorizada e legitimada. Aqueles sobre os quais ela se exerce são com muita freqüência seu contraponto, sua contradição: as mulheres, as pessoas de cor, os jovens, os adolescentes ou os velhos, os muçulmanos - que se pense na acepção deste termo dentro dos campos de concentração -, os homossexuais, os incultos, os analfabetos, os pobres, os deficientes físicos e mentais, e aqueles que eu chamaria, de modo geral, os celibatários para inscrever sob essa rubrica todos que assumem fundamentalmente e visceralmente sua parte de solidão, sua identidade como indivíduos soberanos e rebeldes, solares e solitários. Certamente, essa tendência majoritária não é obrigatória e existem os explorados, os domésticos, os escravos e os submetidos na primeira ordem, depois os exploradores, os chefes e os senhores arrogantes na segunda. Hegel disse tudo sobre este sujeito, um pode ser submetido aqui, e lá decidir pela submissão do outro, como um senhor no terreno simbólico, como outro escravo no registro real concreto. A determinação dos efeitos de poder, dos locais onde ele se formula, a estratégia dos militares ou dos dialéticos das escolas de guerra, de Sun Tzu a Clausewitz, do jogo de go às casas do tabuleiro de xadrez. Não mais monolitismo facilmente apontado e distinguido, e sim uma fragmentação plástica em metamorfose permanente: as novas condições modificam o trabalho do libertário e supõem um tátioo, um vigilante desperto com acuidades formidáveis. O infinitesimal satura seu mundo, o imperceptível preenche seu universo, o não-sei-o-quê caro a Graciàn, o quase-nada familiar de Montesquieu delimitam seu registro. O retrato do libertário, esta figura celibatária, solicita as qualidades do animal de caça: farejar, escutar, espiar, estar incessantemente atento, interpretar as pegadas, procurá-Ias, atraí-Ias, colocar em perspectiva - aquilo que define etimologicamente
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a inteligência, a arte de unir aquilo que, em princípio, parecia sem laço de conseqüência e ou de casualidade. A política torna-se a ciência da decodificação dos signos móveis entre os indivíduos que aproximam as relações dentro dos agrupamentos, ou no terreno mais especificamente doméstico quando são primeiramente os disfarces sociais que comandam o jogo. A intersubjetividade entre um pai e sua filha, um marido e sua mulher, uma mãe e seu filho, e toda outra relação apoiada sobre as funções, além dos indivíduos, se instala de fato no terreno político. Da mesma forma, com mais força, esta lógica é perceptível entre um patrão e seu operário, um diretor e seu empregado, um graduado e seu inferior hierárquico, um professor e seu aluno, e não importa que outra distinção social que mascara ou ultrapassa o puro e simples relacionamento entre dois indivíduos. A inversão dos jogos, a mobilidade dos papéis fazem de uma mulher uma súdita de seu marido, ou uma mestra para seus alunos se ela for professora; da mesma forma que um ser inferior ou superior para seus colegas, segundo a singularidade de seu diploma, sua competência, seu carisma, sua beleza, sua inteligência ou qualquer outro sinal distinto de uma identidade socialmente perceptível e negociável. As idéias dominantes, essas mentiras sociais de grupo necessárias às coesões sociais, permitem achar o coeficiente das qualidades associadas a um e a outro: do mais detestável ao mais notável, do mais evitável ao mais desejável. O mimetismo incitando e conduzindo a maioria a querer somente o desejo do outro, a querer a semelhança com o outro, a produzir uma escala de valores com as mercadorias incessantemente reavaliadas conforme o local onde são consideradas: a universidade ou a fábrica, a oficina ou a livraria, o recinto doméstico ou o local de reunião sindical, o escritório ou a sala de aula, num local público ou num local privado, com ou sem testemunhas. A cada vez, o poder formulado difere. Sua forma, sua natureza, seu funcionamento, seu devir, sua intensidade são assim afetados. A entropia a que é submetido é modulada, seus efei-
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tos se encontram assim determinados. A luta travada contra um ou outro desses poderes encarnados suporia uma identificação viva, uma constatação rápida, uma circunscrição da geografia relacionada a curto prazo: nenhuma tática ou estratégia sem a precisão e a elaboração de uma cartografia prévia reforçada de um talento para os ajustes velozes. O campo de batalha dominado em seu conjunto, ou em sua maior extensão, equivale a uma probabilidade de sucesso. Recusando os poderes para outra coisa além de sua desmontagem, o libertário se faz companheiro daqueles que deles são privados. O campo de concentração mostrou o paroxismo da espoliação, a submissão somente aos deveres das pessoas singulares sobre as quais todos os poderes, independentemente de seu grau de infâmia, de ignomínia, de perversão, foram exercidos sem descanso pelos que não eram submetidos a nenhum, exceto àquele demonstrado pelo corpo que perdura e permanece vivo - o indivíduo. O próprio Robert Antelme instalou a fábrica e os locais de produção do capitalismo produtivista dentro da orbe desses infernos concentracionários. Seguem todos aqueles onde são amontoados e domesticados os despojados, os privados, os submetidos, os sem graduação, os explorados, os obrigados, os pobres de tudo, os modestos, os que sempre são submetidos e nunca exercem o poder, aqueles que são encurralados no ressentimento com o qual se alimenta a força populista e neofascista. Esse gozo do poder exercido pelos senhores - eles próprios empregados do sistema que sabe como se livrar deles no momento certo, quando a produtividade ou a eficácia diminuem - se justifica e se legitima pelos ideais. Nunca o gozo do poder exercido sobre um outro se exprime apenas na nudez do exercício, do puro e simples exercício. Ele se justifica sempre em virtude dos universais, das transcendências que exigiriam e necessitariam, para o bem daqueles que os submetem, o Justo, o Verdadeiro, o Belo, a Lei, o Estado, o Saber, a Ordem, a Segurança, o Direito, a Moral e outras mitologias com as quais se perpetuam as submissões. Dizer que o júbilo sádico se basta a
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si mesmo, sem se preocupar com o que poderiajustificá-lo, eis o que ouvimos apenas em Sade, aliás proscrito teoricamente por aqueles que o praticam com ardor e no quotidiano no interior do sistema. E depois, existe também, mais espantoso, o prazer dos que são submetidos pelo poder. Pois, se La Boétie tem razão ao dizer que o poder se impõe somente pelo consentimento daqueles sobre os quais ele se exerce, por que então aceitam os que pagam a conta, por vezes dolorosamente? O que pode justificar que se fique aquém desse jogo no qual são distribuídas dominação e servidão evitando um hedonismo que dispensaria as estratégias de sujeição? Quando o mesmo La Boétie escreve: "Estejam decididos a não mais servir e, pronto, estarão livres", por que não se pode não estar decidido e persistir no serviço? Por medo da liberdade. Por temor de ter que escolher, inventar, querer, por preguiça intelectual, por incapacidade de querer quando tudo foi feito para circunscrever o espírito crítico graças às técnicas de alienação, de sujeição e de descerebração permitidas pela sociedade de hoje. Nas sociedades disciplinares, Michel Foucault mostrou o quanto o castigo era a perspectiva reservada aos rebeldes insubmissos: tortura, encarceramento, hospitalização, medicalização, aprisionamento, privação de liberdade, sevícias, castração química, confinamento dos indivíduos dentro dos dispositivos construídos no modelo panóptico.v Tudo o que, por pouco que fosse, assemelhava-se a uma insubmissão individual reduzia-se a nada. Que nos recordemos do destino de Campanella, d' Auguste Blanqui ou de Alexandre Soljenitsin. Os totalitarismos do século XX ilustraram maravilhosamente esses modos de funcionamento, até 1989, data de desabamento da cortina de ferro. Nas sociedades de controle, eles agem a montante, associando a liberdade àquilo que não se deve desejar. Eles, quer dizer, os auxiliares do sistema que vendem a ideologia liberal '" Diz-se de um prédio construído de tal forma que se possa, de um ponto dentro dele, enxergar inteiramente todo seu interior. (N. do T.)
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pretendendo que ela seja a única disponível no mercado intelectual. A liberdade defendida é associada a um desejável útil para o social: liberdade para consumir, possuir, dispor de bens materiais, móveis e imóveis; liberdade de ser conforme o modelo do consumidor vangloriado pelos sistemas publicitários e promocionais; liberdade para comprar um comportamento, valores, um modo de aparição, tudo isso proposto com as chaves na mão pela ideologia dominante substituída por tudo que depende daquilo que deixou de se chamar a propaganda e tomou-se a publicidade para o mundo unidimensional. A circulação dos signos, suas relações com as estruturas técnicas de transmissão, não unicamente o universo televisivo, mas também todos os outros caminhos tomados para levar uma mensagem de um local para um outro, oferecem ocasião de esvaziar a liberdade de seu conteúdo libertário para preenchêIa com uma outra matéria, comestível unicamente dentro da perspectiva do mercado liberal. A liberdade se reduz à possibilidade de se inscrever numa lógica mimética, de tomar parte na corrida dentro da qual todo mundo visa à ascensão aos estágios superiores da escala social proposta num modelo único pelo mundo mercantil. Liberdade de ter, liberdade liberal, contra liberdade de ser, liberdade libertária*. Quem desejar uma outra liberdade que não seja liberal se verá circunscrito tal um inimigo, designado como um adversário que se pode solicitar, comprar, fazer com que volte a ter melhores sentimentos por meio da persuasão e da retórica, senão, em caso de resistência prolongada e reivindicada, por meios progressivamente coercivos. As técnicas midiáticas associam, no modelo pavloviano, o que é desejável individualmente com o que o é coletivamente: o bem de um é definido em relação àquilo que realiza o bem do todo. Formula-se assim de maneira moderna e contemporânea um gênero de contrato social no qual o convite supõe, entre diplomacia e coerção, o abandono de qualquer pretensão e vontade individual em prol de uma escolha envolvendo o conjunto da sociedade. A vontade geral enunciada por Rousseau encontra assim sua reformu-
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lação sobre o princípio liberal: o que é bom para o mercado é bom para o indivíduo. E, com certeza, vice-versa. Quando o desejo obedece a este ponto, constrangido, fabricado e possuído pelo mercado, ele se torna o corpo estranho integrado e digerido pelo sujeito alienado que, querendo o que o sistema lhe faz desejar, acredita querer livremente quando é submetido dentro de uma câmara de eco onde se repercutem as necessidades do mercado. Desejar não mais servir é, evidentemente, um desejo não desejável para o social que promove exatamente o inverso celebrando a fórmula: estejam decididos a servir e serão livres. Alguns formularam uma variante bem conhecida: o trabalho liberta. O desaparecimento dessa sentença do frontão dos campos da morte não significou porém o fim da crença nessa ideologia sempre no coração da produção capitalista contemporânea. Essa liberdade, pode-se imaginar facilmente, não tem muito a ver com a liberdade libertária cujo objetivo consiste em encaminhar-se para além da alienação individual. Querer a liberdade liberal induz à inscrição num movimento gregário e supõe a capacidade de dispensar a reflexão, a análise, a compreensão, o pensamento; economizar toda atitude crítica limpa, pois a obediência basta. De modo que o desejo, tornado inativo ou mesmo impossível, conduz à servidão voluntária. Da mesma forma, ela dará à maioria a satisfação de sentir o calor animal dos rebanhos longe da lembrança antiga de um vento frio vindo dos cumes onde se avança sozinho. O grupo se responsabiliza, dá as sensações fortes do espírito de casta àqueles que sacrificam toda vontade própria para não mais se definir exceto no interior, por e para o grupo. O serviço voluntário parece jubilatório às almas ricas com o salário de sua renúncia à individualidade e dos penhores de sua domesticidade: assim eles dispõem da garantia de ser como todo mundo, na corrida que leva ao abismo, porém no meio do rebanho. Fora dos caminhos balizados e das rodovias mentais, a liberdade libertária inquieta. Ela supõe o combate, o temor, a incerteza, as dificuldades, uma imensa solidão e, com muita freqüência, a espantosa sensação de se sentir e de se demonstrar estranho no meio daqueles que dão a impressão de serem
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semelhantes. A escolha angustia, as latitudes oferecidas dentro de sua multiplicidade geram atordoamentos existenciais. A obrigação de tomar uma via a ser inventada desperta antigos terrores, fantasmas de impotência e temores alimentados pelo risco do fiasco. Todo o empreendimento existencial sartriano mostrou a formidável potência da angústia e sua natureza consubstancial ao verificar a existência de uma liberdade metafísica em si, antes mesmo de qualquer utilização. Que se a utilize para se engajar ou para não fazer nada, ela é sempre exercício, positivo ou negativo, do qual não se escapa. A condenação a esta liberdade libertária faz desejar a liberdade liberal, já feita, já pronta e que dispensa qualquer esforço imaginável. Tanto que a preferência dada à primeira gera satisfações unicamente pessoais e solipsistas. Por outro lado, a eleição da segunda toma possível, dentro da vida quotidiana, uma série de compensações simbólicas que alegram os provocadores do naufrágio de sua individualidade: eles são assimilados às funções, depois temidos, celebrados, venerados, admirados, qual modelos do êxito social. A servidão voluntária traz de volta a evasão diante das angústias consubstanciais ao exercício de uma liberdade libertária e o acesso a gratificações simbólicas com as quais a maioria se satisfaz, de tal ponto é fácil e diretamente jubilatório se contentar com o hedonismo vulgar vangloriado e celebrado pelo mercado liberal. Consumir, ter, possuir, eis o que dispensará o ser ou algo equivalente a isto. Ora, esses benefícios são custosos, pois eles petrificam a alienação e obrigam uma duplicação ind~finida da submissão através das retóricas de aceleração do pior. Enlameado por essas lógicas liberais, o indivíduo não tem mais nenhum meio de recuperar sua autonomia se, por acaso, um dia, ele decidiu se alienar aos imperativos sociais dominantes. Submisso e submetido pelos laços do casamento, da paternidade ou da maternidade, do crédito e do endividamento, do trabalho salariado e da ideologia gregária, lhe restará se apro-
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fundar suave mas seguramente nos pântanos onde um dia ele pôs o pé. Cada punção mensal efetuada na sua conta testemunhará, entre os reembolsos e as pensões alimentícias, os impostos e os seguros, que ele não é mais que um sujeito, um cidadão, mal é um indivíduo. Esses princípios pertinentes para um indivíduo valem também, certamente, para os grupos, e mesmo para os povos, as nações inteiras que preferem a sujeição do cão ao qual se garante a ração, mesmo que seja ao preço da liberdade, do que as divagações e o nomadismo libertário do lobo que, se não come diariamente uma papa medíocre, pelo menos dispõe de si na mais absoluta das soberanias. La Fontaine, que contou as travessuras desses dois, assinalava mais adiante: "Nosso inimigo é nosso dono", formulando assim o imperativo categórico libertário operatório em todas as épocas. O dono é certamente o único disfarçado dentro da função, a única rubrica à qual ele consente aparecer, mas é também toda. a idéia que avassala e transforma os indivíduos em sujeitos.
Conseqüentemente, todas as dissertações clássicas e tradicionais da literatura política sobre os méritos comparados de uma monarquia, de uma república ou de uma democracia: de uma democracia direta ou indireta, eletiva, oligárquica ou plutocrática; aquelas que interrogam o que faz o soberano, o que é preferível entre uma gerontocracia, a regra e uma ginecocracia, a exceção; todos esses exercícios de estilo parecem vãos, posto que, em todos os casos, o princípio é o mesmo e quer a submissão, o fim e a morte do indivíduo à guisa de sacrifício fundador do nascimento do sujeito, do cidadão, do homem. Um só ou alguns, ricos ou pobres, de sangue nobre ou plebeus, tecnocratas ou autodidatas, os familiarizados ao exercício do poder praticam da mesma maneira, com o ódio radical do lobo e o amor imoderado dos cães. A sociedade quer a segurança, o indivíduo, a liberdade. A antinomia subsiste, persiste, permanece, fundamental.
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o poder estando em todos os lugares, como imaginar uma figura preocupada em investir toda sua energia para evitar ser o senhor e ao mesmo tempo o escravo? A que poderia assemelhar-se essa individualidade que, conforme a expressão de Nietzsche, acharia igualmente odioso seguir ou guiar? Nem carrasco nem vítima, mas dispondo diante de si de uma soberania radiante, essa figura, eu desenhei seu retrato em A escultura de si, propõe uma ética, antes dessa política provedora de estilo, de verticalidade radical quando a hora, o tempo e a época são, se não da reptação, pelo menos da quadrupedia generalizada. Essa figura puramente ética, que então eu não quis considerar em sua dimensão política, reservando a ocasião para o presente livro, eu a construi em relação à metáfora do Condottiere, princípio manifesto na estátua de Verrocchio sise piazza San Zanipollo em Veneza. Por ela se exprime a confusão da ética e da estética e depois se formula o tratamento da história pelo modo metafórico, artístico primeiramente, conceitual e em seguida filosófico. Flexionador de energia, depositário de uma vitalidade superabundante, o Condottiere que desejo excede na arte de adestramento das forças que contribuem à sabedoria trágica. Não afastado dos cínicos, dentro do espírito de Diógenes e das figuras associadas à Antigüidade grega, ele opõe um temperamento faustiano às edificações generalizadas e aos desabamentos geradores dos mundos nos quais prosperam as efervescências gregárias. Virtuose da força, ele usa seu talento para desafiar a violência, ignorando seu propósito, e quer concentrar e depois dirigir a energia rebatida sobre os planos com os quais constrói sua existência. Certamente, ele triunfa como figura celibatária e nominalista, como artista especialista das pontas e do domínio do tempo eficaz, como rebelde inimigo do contrato social ao qual ele prefere e opõe o contrato hedonista. Para assumir sua parte solar, e contra os egocentrismos incandescentes nos quais nossa época é especialista e apreciadora, ele desenha um narcisismo flamejante com a ajuda do qual todos podem se reapropriar de um eu desacreditado pela tradição cristã.
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Encenando sua própria existência, teatralizando aquilo que pode sê-I o com elegância, estilo e vertical idade, o Condottiere quer uma vida transfigurada na qual ética, estética e vida quotidiana se confundam. Ele cria formas onde triunfa o informe e substitui o artifício da vontade pelo naturalismo das pulsações do grupo. Enfim, sua dimensão dionisíaca não deixando a menor dúvida, Apolo servindo à contenção de uma energia que, de outro modo, se dilapidaria, ele estiliza sua liberdade, esculpe sua própria estátua, amplia a arte ao mesmo tempo que integra as partes malditas em seu projeto. Sua arte sem museu se contém nos limites de uma existência singular sempre a transbordar no tempo de forma radiosa e irradiante. Aliás, dotado de uma vitalidade impossível de se perturbar por um estímulo de morte, o Condottiere celebra a prodigalidade, a magnificência, a magnanimidade, a generosidade e outras virtudes mais próximas das virtú italianas da Renascença que da vulgata cristã infectada de moralina, esta substância dos moralismos de todos os tempos. Longe das virtudes que diminuem e de todas as variações de ontem, de hoje e de amanhã sobre o tema do ideal ascético, ele encarna a máquina de guerra, tal como ela atravessa a obra de Deleuze e Guattari, dirigida contra o retorno do moralismo, pois a ética deveria bastar como remédio. Na relação com o outro, ele supõe uma aritmética dos prazeres e um utilitarismo jubilatório informador das afinidades eletivas, uma prática da eumetria, a boa distância, uma reatualização da polidez, senão uma celebração do entusiasmo dentro de todas essas modalidades. Na sua preocupação com a delicadeza, ele organiza o real em torno de si pelo princípio dos círculos éticos onde o lugar do outro se enuncia em função de um perpétuo reajustamento realizado pela eleição ou a evicção. De modo que ele triunfa como hedonista sobre o terreno libertário. Na estética lúdica onde eu lhe atribuo talento, ele se faz promotor de uma rematerialização da palavra, e da ironia também. Retomo portanto, lá onde o havia deixado, o retrato dessa figura do indivíduo solitário para concluir precisando sua dimensão política.
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conjunto do retrato supõe a convocação de um certo número de sensibilidades que ao longo da história mostraram as figuras rebeldes, insubmissas, resistentes, singulares, expondo a autonomia como modelo de riqueza suprema. Cínicos e dandies, libertinos e românticos, por seu próprio gesto, estruturaram o temperamento ético do Condottiere. Para concluir a descrição e completá-Ia com sua dimensão política, me é necessário dizer que o contraponto desse personagem conceitual supõe o Libertário, menos anarquista do modo antigo que depositário dessa tradição da rebelião numa perspectiva resolutamente moderna. Diógenes e Baudelaire, Wilde e Carlyle reconciliados. O Libertário, estratégico e tático conhece a metáfora guerreira do poder, os campos de batalha e os fatos militares; ele evolui em cena, ciente da dimensão teatral do terreno de operações militares; ele conhece o jogo entre a sombra e a luz, o palco e os bastidores, o silêncio e a declamação - outros haviam convocado a raposa e o leão, senão o lince e a sépia, pois é preciso força e malícia, acuidade e dissimulação a cada expressão do poder, sempre disfarçada, freqüentemente transversal, regularmente oblíqua; ele se metamorfoseia também em uma espécie de mecânico especialista em engrenagens, polias, alavancas e outros mecanismos de deslocamento, que assimilam o corpo político de um autômato submetido às leis da física elementar das distribuições de energia, de pilhas de força e de tensões dinâmicas; enfim, ele sobressai como diplomata ao modo da arte antiga, misto de pensamento oriental e exótico, familiarizado às iniciações políticas praticadas atrás das muralhas sagradas, onde evoluem René Leys e os seus. Estratégico, ator, mecânico, exote, segundo a bela palavra de Segalen, o Libertário brilha antes de tudo na arte de desalojar o poder de onde ele se encontra, de o circunscrever, o contornar, o esquivar, semelhante aos especialistas em aikidô que evitam as energias negativas e sabem também as devolver àqueles que as desencadearam e desejaram. Reparar, ver, interromper, desviar, a cada vez o propósito consiste em evitar o domínio e a servidão, a obediência ou a sujeição.
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Se a pergunta: como se pode ser anarquista, hoje? pode ser feita, a resposta parece imediata: instalando a ética e a política sobre o perpétuo terreno da resistência". Palavra-mestra, ambição cardinal do libertário. Resistir, a saber, nunca colaborar, nunca ceder, guardar em poder de si tudo que faz a força, a energia e a potência do indivíduo que diz não a tudo aquilo que visa a diminuição de seu império, senão o puro e simples desaparecimento de sua identidade. Recusar os mil e um laços feitos, ridículos, irrisórios, que acabam por produzir a sujeição dos mais vigorosos gigantes. Que se lembre de Gulliver, imenso e poderoso, mas constrangido e mantido no chão pela quantidade infinita de laços que tomava possível a eficácia. Longe da proposição de um modelo de sociedade ideal, aconselhado pela sabedoria trágica consubstancial às questões políticas em virtude das quais ele conhece a natureza corruptora de todo poder e a fatalidade alienante para todo indivíduo da quase totalidade dos laços sociais, o libertário contemporâneo antecipa uma atitude, um aspecto, um modo de ser, uma maneira de dizer e de fazer, um temperamento. Esta resistência manifesta, a essência da força libertária, pode se ativar em toda a sociedade, quaisquer que sejam as geografias e as histórias. Dentro de uma ditadura ou de uma sociedade liberal, num planeta devastado pelo livre mercado ou nos limites farpados de uma nação com poder totalitário, o libertário permanece o homem da resistência e a ocasião de insubmissão. De Espartacus a Inge Scholl, da Rose Blanche à praça Tien An Men, de Jean Moulin ao Dalai Lama, ele cristaliza a força com a qual se fazem os tiranicidas, os monarcômacos, os derrubadores de trono, os destruidores de ídolos e os fomentadores de atentados dirigidos contra os liberticidas. Todos comungam naquilo que Michelet, dissertando sobre Charlotte Corday, chamou de religião do punhal*.
Eu me recordo também de que, em matéria de política, os cínicos pouco eloqüentes, porém substanciais, celebram o bronze com que se imortalizou a memória de dois tiranicidas, estigmatizam as condecorações, as honrarias, fustigam os funcioná-
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rios do fisco, insultam os colaboradores, criticam os mestres, os policiais e todas as formas de autoridade, tanto filosóficas quanto militares. Sabemos que ao imperador Alexandre que lhe solicitou que exprimisse um desejo, a fim de atendê-lo, Diógenes responde insolentemente convidando-o a se deslocar porque lhe faz sombra. Outra vez, prisioneiro, conduzido acorrentado até Filipe da Macedônia que o interroga sobre as razões de sua presença em tal local, ele replica: "Eu espiono sua instabilidade. " A lição cínica permanece atual: ensinar a nudez do rei, a ausência de diferença de essência, de natureza ou de substância entre o primeiro dos cidadãos do Império e o último dos escravos da cidade - uma sapiência anunciadora de Robert Antelme. Da mesma forma, Diógenes, Cratês e os outros querem a desenvoltura no lugar de todas as manifestações de poder: fausto, teatralidade, esplendor de ouros e brocados. São cínicos os rebeldes que colocam seu orgulho bem acima das prebendas oferecidas pela colaboração com os poderes em vigor, cínicos ainda os revoltados que põem o pensamento a serviço da insubmissão em vez de colocá-Io a serviço das forças que desvitalizam o indivíduo, cínicos enfim os resistentes que opõem o saber ao poder à guisa de contrapoder. Os conselheiros do Príncipe, os colaboradores, como se diz em uma palavra que não perdeu em nada seu sentido desde a época dos anos sombrios, os técnicos, os funcionários do pensamento que trabalham desinteressadamente dentro das comissões ou fornecem aos homens políticos do momento e aos poderosos do dia dois ou três conceitos bem suscetíveis de serem compreendidos e assimilados pelos jornalistas, estes perpetuam a miséria e a servidão, a sujeição e o sacrifício das individualidades em prol das máquinas sociais das quais eles obtêm privilégios adicionais, simbolicamente, se não em dinheiro vivo, o conjunto, de qualquer maneira, está sempre em harmonia. Onde os auxiliares do poder em vigor celebram a virtude de sério, útil e indispensável para sacralizar o poder, e dele
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fazer um epifenômeno procedendo do religioso ou do celeste, o libertário restaura as virtudes do desvio, da ironia, do humor, do cinismo, sob formas subversivas linguageiras e gestuais, conceituais e pragmáticas. O rir nietzschiano de Foucault, contra o silêncio estofado dos palácios presidenciais; a dança de Zaratustra em contraponto às inflexibilidades ministeriais, à rigidez de todos os protocolos; o grotesco de Rabelais e as loucuras de Swift como resposta aos cochichos dos contínuos em série; a troça de Voltaire e a vasilha de Sartre em eco aos meirinhos de ouro e aos brocados púrpura; os sarcasmos da festa dos loucos e a antimissa com os asnos diante das pompas do Eliseu; do vinho aos borbotões, das libações, um Diógenes pétomane, ~ onanista e canibal, uma política dionisíaca, de brinde com água, de presidentes da República descerebrados, uma política apolínea, eis o inventário das alternativas ancestrais. O risco do lobo, certamente, não é o mesmo do cão. Para este, a opulência ética, o fim de toda elegância moral, a obesidade conceitual e a reflexão adiposa, a obra lançada como pasto para os simples como para os abutres: uma idéia por livro, e ainda, um livro por mandato daquele que se serve, uma multidão de prédicas públicas, uma ocupação dos lugares midiáticos no modelo dos vasos sanitários. No final das contas, um talento desvitalizado, um pensamento em frangalho, em farrapo, e a alma vendida aos parasitas políticos nutridos de sangue sugado e de inteligência subjugada. Para os lobos, os outros, o que foi o quinhão dos companheiros de Diógenes através dos séculos: o banirnento, o exílio, a prisão, a tortura, o enc1ausuramento, a perseguição, a punição, os maus tratamentos, o cárcere. Prisão mamertina=s e celas emparedadas, montanhas corsas e jaulas de ferro não longe de Couesnon, braseiros romanos e salas de tortura espanholas, exílio holandês e mudanças forçadas para a América, Bastille e Charenton, Jersey e Guernesey, ou, hoje, privação de oF Pétomane, artista de variedades da Idade Média capaz e de modular a tonalidade de sua emissão. (N. do T.) Antiga prisão situada em Roma. (N. do T.)
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cobertura midiática ou de promoção social, o contrário de tudo aquilo que, mesmo vagamente, assemelha-se ao néctar e à ambrosia dos elísios. A loucura de Nietzsche, a AIDS de Foucault, o suicídio de Deleuze, o silêncio de Blanchot, contra a paixão de alguns pelos almoços em companhia daqueles que nos governam. Os pensamentos fortes se associam às vidas que os acompanham, os pensamentos débeis também. A paixão cínica pode se reforçar de uma vontade aristocrática. Eu sempre gostei que Roger Vailland, comunista, dirigisse um Jaguar MK Il, praticasse a heroína e não fosse suspeito em seu engajamento do lado dos despojados senão aos olhos das belas almas ainda piedosas, quando não cristãos até a medula, que concedem um crédito aos pensamentos de esquerda se eles se vestem com ouropéis caricaturais de uma pobreza de composição levada ostensivamente a tiracolo. A culpabilidade não é uma obrigação, nem um dever, pela razão que uma política hedonista, libertária e de esquerda, se ilustra menos na arte de empobrecer os ricos que na de enriquecer os pobres. Longe daquilo que pôde caracterizar na época uma esquerda dita caviar e na qual se procura ainda o que fazia dela uma esquerda, quando não resta mais dúvida alguma sobre as razões e a existência de sua dependência em termos de Beluga, um pensamento libertário infundido por uma mística de esquerda pode muito bem funcionar pelo modo artístico. Quero como prova, além de Roger Vailland, as páginas soberbas escritas por Oscar Wilde sob o título L'Ame de l'homme sous le socialisme, um livro de total atualidade após um século de existência ou, mais inusitado, um almoço, aproximando nas primeiras semanas de 1849 Baudelaire e Proudhon num pequeno restaurante da rua Neuve-Vivienne. Um olhar para o sistema de contradições econômicas, um outro para saborear as flores do mal ou apreciar os paraísos artificiais, o conjunto visando àquilo que Séverine chamava, no século passado, de um dandismo revolucionário, a mistura não deixa de me agradar. A opção libertária não tem obrigação de trabalhar do lado da compaixão ao modo cristão; não me parece legítimo, para ser crível, ter de ser pobre ou pessoalmente despojado, pois os
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detratores diriam então que o engajamento político seria motivado pelo ajuste de contas pessoal ou pelo ressentimento no qual encontrariam novas razões para o descrédito ao qual eles se apegam. Dandismo e pensamento libertário funcionam admiravelmente bem em todos aqueles que, longe dos imperativos do realismo socialista em virtude do qual é preciso submeter a arte à política, colocam exatamente o inverso e esperam da arte que ela informe o político, o alimente, lhe transmita força, vigor e energia. Dentro dessa perspectiva, o dandismo contemporâneo do século da revolução industrial pode ser lido como reação à unidimensionalidade gerada pela metamorfose do capitalismo. Contra o igualitarismo, esta religião nociva da igualdade, o dandismo reivindica uma subjetividade radical ativa no combate contra todas as palavras de ordem do momento: culto do dinheiro e da propriedade, dogmas burgueses e mitologias familialistas, razoável economia da vida doméstica e imprensa consumida como única referência intelectual, cultural e tudo aquilo que dá o tom da época. Baudelaire afirma e demonstra uma feroz independência de espírito, uma animosidade particular a respeito dos burgueses, de onde quer que venham, direita e esquerda confundidas. Ele professa o culto do inútil e do artifício, do lazer e da gratuidade onde a maioria se consome no útil, no rentável, no trabalho, nos rendimentos. O dândi visa ao sublime. A política libertária aspira ao mesmo tipo de objetivo: a assunção do indivíduo artista reage contra o desabamento dos particulares na direção das camadas inferiores onde triunfam as virtudes e os valores burgueses. O poeta contra o farmacêutico, o pintor como remédio para a frouxidão da vida moderna, o escritor em resposta às torpezas induzi das pela industrialização e pela era da reprodução mecânica dos objetos, dos homens, das obras de arte - que se pense a respeito das imprecações do poeta sobre a fotografia - ou das individualidades. Na época do reproduzí el todos são pensados, queridos, construídos sobre um mundo semelhante. O dandismo teoriza a reivindicação de garantias multiplicadas pela expressão da individualidade e da soberania das mônadas.
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o dandismo revolucionário formulado por Séverine não supõe a comunhão dentro de outro pecado venal, por vezes mortal, cometido por aqueles que estremecem não longe da mística de esquerda: o dever de amor do povo, a obrigação abjeta de o celebrar, de lhe emprestar ou dar méritos. Pois uma olhada retrospectiva sobre a história deveria dissuadir a prática deste entusiasmo tão perigoso quanto nefasto a cada vez provedor de gregarismos políticos, do stalinismo ao nazismo passando pelas fórmulas européias de um nacional-populismo declinado pelos modos italiano, espanhol, francês, grego e da Europa do Leste. Nada de mais devoto acerca do povo que as declarações de Lênin, Stálin, Hitler, Pétain, Mussolini, Franco, Le Pen e tantos outros cuja fabulação sobre este universal a serviço deles se nutre do esquecimento e da negligência dos indivíduos, únicos princípios ou unidades operatórias em matéria de política. O dândi sobressai como farmacopéia que se opõe ao homem das multidões*. A psicologia das multidões é conhecida. Le Bon, Freud e Canetti foram ao encalço e narraram as vagabundagens, os movimentos desse animal descerebrado, sua brandura e sua submissão quase sistemática aos demagogos, os melhores condutores dessas energias em busca de um senhor, de um guia, de um chefe. Caudillo em espanhol, Führer em alemão, Duce em italiano, Conducator em romeno, em cada caso, o monstro fornece a ocasião de uma captação e de um rapto de energia a favor das máquinas totalitárias. O irracional irradia, os mofos do subsolo e geologias primitivas triunfam, as matilhas e as massas desencadeiam potências sempre demasiadamente devotas a Tânatos para que se deseje ainda celebrá-Ias. Não levar em conta as lições pessimistas dadas pelo povo prostituído no século XX seria criminoso. Oferecido aos tiranos imperiosos em suas vontades, ele mostrou sua natureza flácida e seu tropismo trivial. Nós entramos, com a revolução industrial, na era das multidões nacionais transformadas em multidões planetárias com o final do século XX. Aquilo que valia para umas, ontem, vale
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para as outras, agora: nada de raciocínio, mas uma propensão à ação cega, sentimento de potência e liberação selvagem de energias, procedimentos contagiosos e hipnóticos, sugestionabilidade máxima, impulsividade e irritabilidade, autoritarismo, conservantismo e simplismo, as multidões chamam o mestre que lhe dá em troca uma voz e a palavra. Depois elas se curvam ao seu querer, possantes e perigosas, imperiosas e não suportando a resistência ou a oposição. O dândi fornece a antítese radical do homem das multidões, ele opõe sua vitalidade singular aos impulsos de morte em atividade dentro do corpo de todo agregado social. O cínico combate o poder dos príncipes e dos poderosos; o dândi, aquele dos povos e das massas. Dândi, Romain Gary ao pé do Arco do Triunfo com suas medalhas de guerra, sua bandeira e sua memória, para defender um general De Gaulle que ele acreditava só e abandonado, e eis que dá meia-volta e retoma seu caminho após ter descoberto a frouxidão da massa de ódio afiada para uma cena de caça anunciada. O populismo age como inimigo mais seguro do povo que, mais cedo ou mais tarde, esvaziado de sua substância por um ditador ou um tirano, um demagogo ou um tribuno, abandona na calçada uma nação exangue de ter acreditado e seguido as palavras de ordem estabelecidas por uma retórica ativa à maneira do slogan, do catecismo, da falsa idéia, verdadeira operação de captação e transmutação de energia neutra em negatividade em funcionamento. A soberania direta do povo, a religião do referendum ou os apelos ao bom senso popular criam armadilhas sob todas as energias rebeldes e inteligentes. De Baudelaire é este projétil: "Só pode existir verdadeiro progresso (quer dizer moral) dentro do indivíduo e pelo próprio indivíduo." Não há dandismo sem subscrição integral a esta evidência. Recentemente, Cécile Guilbert propôs uma leitura da obra do último Guy Debord em relação ao dandismo baudelairiano. Ela convence e demonstra o devir trágico, porém ainda lúdico, de um pensador para o qual a visão do mundo ao modo espetacular, depois ao modo do espetacular integrado dos últimos
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anos do século, foi a ocasião de uma atualização das teses situacionistas da deriva, da psicogeografia, da construção de ambientes, de uma civilização do jogo, do culto do estilo e da recusa dos ídolos do dia. A poetização do real, a escritura artística da resistência libertária, o devir revolucionário de um indivíduo autor em outras épocas de uma teoria coerente da revolução, mostra como dentro do percurso de um mesmo homem a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle, com um estalo em Maio de 68, induz uma conversão ao convite deleuziano para o devir revolucionário dos indivíduos. Um dos mais importantes dândis do século XX, Marcel Duchamp morreu bem oportunamente, se considerarmos as correspondências históricas, no dia 2 de outubro de 1968, após a quente primavera que conhecemos. Em seguida a um jantar com Man Ray, Robert e Nina Lebel, em seu apartamento no número 5 da rua Parmentier, em Neully, o pai de toda modernidade estética após Nietzsche, a engrenagem nietzschiana por excelência, desaparece devido a uma embolia, com 81 anos. Eu. uma de suas anotações pode se ler isto: "Minha arte será de viver; cada segundo, cada respiração é uma obra que não se encontra inscrita em lugar algum, que não é nem visual, nem cerebral. É uma espécie de euforia constante." O cinismo e o dandismo do libertário supõem essa euforia perpétua que se pode obter pelo desejo e pelo prazer da ação. O devir revolucionário do indivíduo se encarna igualmente nessa transfiguração libertária que se serve da libertinagem do grande século das Luzes. Depois das mais antigas definições, contemporâneas às reflexões de Graciàn, o libertino caracteriza primeiramente o liberto, aquele que não reconhece nenhuma obrigação, nenhuma lei, nenhum constrangimento e confessa uma propensão de obediência à sua inclinação natural. Desde já, nem Deus nem mestre, ou melhor, nem deuses nem mestres. Depois, a definição se refinando, com auxílio de Littré, o libertino caracteriza o indivíduo rebelde em relação a todas as tentativas de sujeição exercidas contra sua autonomia, sua independência. Indócil, insubmisso, rebelde, renitente a todo laço social, ele vive como inimigo das leis, opondo-se
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perpetuamente às figuras de autoridade encarnadas pelo Comendador. Gosto também de lembrar sem cessar que em falcoaria um libertino designa um pássaro que, criado e adestrado para voltar ao braço de seu dono, um dia parte e não volta mais. Onde o corpo político exige a abdicação da soberania individual, o libertino celebra uma política do corpo; onde triunfam de todas as maneiras as variações sobre o tema do contrato social, ele opõe um contrato hedonista, revogável a partir do único desejo de um dos dois; onde o poder político reina, em última instância com o auxílio da razão de Estado, ele magnifica a paixão singular e individual, o capricho, a vontade de gozo, para ele e para o outro. Associações de egoístas, afinidades eletivas e prática política da amizade, o libertino histórico da Trétrade ou das Academias secretas, prática dos locais fechados como uma metáfora: o cenáculo e o bar-café, a taberna e o salão, o boudoir e a carruagem, a casa no campo e o quarto de dormir, o castelo e a tenda de caça, o sótão, microcosmos elevados à categoria de laboratórios libertários onde triunfam as virtudes partilhadas e a sociedade organizada pelo princípio do gozar e fazer gozar. Essas novas possibilidades de existência fornecem modelos, e poderiam dar ainda mais, para intersubjetividades verdadeira e radicalmente hedonistas: cinismo e dandismo, libertinagem e cimento libertário, cada vez que essas forças contribuem para desarmar as lógicas de poder promovendo uma micro-sociedade eletiva hedonista. No registro do ideal ascético, o poder funciona por procissão: do mais elevado sobre e contra a pessoa situada abaixo na pirâmide hierárquica; no do ideal hedonista, ele age por capilaridade, irrigando o conjunto e traçando na totalidade de um grupo as luminosidades e as cintilações próprias às relações jubilatórias. Onde os outros vêem a função, a pessoa, ele quer a nudez, metafórica ou real, pois age em virtude de uma sapiência trágica: o saber conseqüente próprio de todo ateu radical da igualdade absoluta diante da morte. Essa sabedoria violenta da consciência próxima dos ossários, dentro dos campos de con-
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centração, das pocilgas onde se aguarda a queda da lâmina da guilhotina, ela supõe que não se perca seu tempo esperando o falecimento em considerações nas quais as hierarquias estorvariam os movimentos de uma atração apaixonada voluptuosa entre todos os membros da comunidade social, em igualdade diante de seu destino. As Remarques nouvelles sur Za Zanguefrançaise (Novas observações sobre a língua francesa), de 1692, assinalam: "Dir-se-ia de um homem de bem que ele não se incomodaria e que é inimigo de tudo aquilo que se chama servidão: ele é libertino." Alguns, Vanini, Fontanier ou Vallée, por exemplo, pagaram esta vontade libertina e libertária com a fogueira, fiéis quanto a isso à proximidade necessária do pensamento e do perigo - mesmo se os riscos de nossa época par:ecem quase nulos, pelo menos numa França satisfeita e perclusa de egocentrismo, não longe de uma Argélia onde o libertino ainda tem o pescoço cortado com uma faca de açougueiro. Os inimigos e os amigos conhecem os mesmos trajetos, eles são submetidos a destinos semelhantes. Nada deve durar mais e melhor, e por toda a eternidade, que esta figura libertária construída por um princípio anticlerical e ateu. Enfim, cínico, dândi e libertino, o libertário se mostra também como romântico, pois ele se sabe envolvido em um combate de Titãs onde ele perderá tudo, exceto a honra. O resultado não deixa dúvidas: nenhum sacrifício individual será suficiente para inflectir o curso da história de modo durável e definitivo. Nada inverte a natureza trágica do real e a permanência das lutas violentas pelo poder. Pelo menos, com auxílio da elegância, o Ybertário pode liberar seu último suspiro com a satisfação de uma missão cumprida até o final, apesar de todas as dificuldades. Onde o revolucionário imaginava o fim de sua missão coincidindo com o fim da história, o libertário convertido às necessidades do devir revolucionário do indivíduo aquiesce à eternidade de sua obra e conhece a impossibilidade da história findar um dia. Nada de pacificação futura, nada de sociedade
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realizada dentro da harmonia, nada de ideal da razão encarnada nos amanhãs radiantes, mas o eterno retomo da violência, da luta para o exercício de uma soberania a ser paga com o preço da submissão do outro. A vontade hedonista em política supõe o desejo exacerbado de um descomprometimento de si em relação ao registro agônico. O romântico age como solitário, para alcançar o sublime, seu ideal, evitando toda negação ou objetivação do outro. Pois dentro de uma vontade jubilatória generalizada, uma economia global dos desejos e dos prazeres, é preciso gozar e fazer gozar, apesar do desespero. Porque ele não é kantiano, o libertário não conta com a improvável universalização da máxima hedonista. Em compensação, no terreno da enxameação, da capilaridade de proximidade, cada um pode esperar um reencantamento do mundo dentro de sua esfera somente, aguardando o entrecruzamento dessas esferas num jogo de combinações múltiplas. A guerra permanecerá, e com o teatro da sombra e da luz, a estratégia e a tática, a força e a potência, o mistério e a implacabilidade daquilo que se repete: a natureza e a substância desta energia guerreira instalada nos interstícios liberados pelos indivíduos que abrem e desfraldam seus destinos. O romantismo reside neste saber trágico e desesperado: nada de substancial se modificará; a única esperança, solipsista, jaz na possibilidade de uma escultura de si. Uma política hedonista desejosa de uma intersubjetividade do mais neutro dos poderes de submissão e do mais absoluto dos prazeres de júbilo gera uma verticalidade dentro da estruturação de si pelo registro da moral pura. Onde o mundo guerreiro e as violências sociais vivem de solenidade, de seriedade, de segurança, de comunidade, de brutalidade, de cientificismo, de sociologismo e de contrato, o libertário propõe o lúdico, a liberdade, o indivíduo, o romantismo, o trágico e a estética generalizada. Contra o soberano querido pelo grupo, o número e a quantidade, ele realiza a sobera-
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nia do eu e autoriza uma palavra suscetível de dizer "eu" e tomando possível o mesmo exercício para cada um. Neste projeto de escultura política de si, a euforia cara ao espírito de MareeI Duchamp toma-se psicopompo e portadora de entusiasmo. Daí a interseção e o advento da obra dentro da ação.
QUARTA PARTE
DAS FORÇAS Celebração do gás lacrimogêneo
1. DA ARTE POR UMA ESTÉTICA GENERALIZADA
A arte permanece como um dos raros domínios no qual o indivíduo pode teoricamente oferecer sua plena dimensão, quaisquer que sejam a época, a história ou a geografia. Através dela ficam os vestígios de luta com armas iguais com o tempo, se não com aquilo que perdura em longínquos impulsos, nos subsolos onde se preparam as vitalidades futuras. Ora, todos os regimes, todos os poderes políticos conhecem este local estratégico e o querem confinar, dominar, limitar, conter, até controlar radicalmente. Alguns utopistas aspiravam pura e simplesmente ao banimento dos poetas da cidade, outros à sua enfeudação clara e direta; em outras partes, confundia-se o fim da história com o fim da arte, daí uma realização da digestão definitiva dos artistas pelo corpo social. Outros, de espírito menos errante porque dispondo dos poderes reais e efetivos, acenderam as fogueiras, abriram as prisões, encheram os asilos, exigiram os tribunais, construíram jaulas, enforcaram, queimaram vivo, decapitaram, guilhotinaram ou submeteram a outros tratamentos, tudo isso alegrando os defensores de uma arte livre, opositores dos da política como mecânicos do pior, como provedores de cemitérios. Artistas aqueles que viam a Terra redonda girando sobre si mesma, os redutores de mundos de átomo, os leitores de geografias esféricas, os poetas amantes das flores venenosas, os pornógrafos difamadores de virtude e os romancistas sociólogos do bovarismo, os jornalistas redatores de folhas livres; artistas também os pintores malditos e aqueles que berram verdades cruas, aqueles que proclamam contra os discursos oficiais, os vendedores da Terra plana e de espíritos celestes, os
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promotores de versos à água de rosa e os polígrafos estendendo histórias insossas e insípidas, os escrevinhadores de revistas incensadas por aqueles que os indicam, os fomentadores de sustento para salões acadêmicos, os pensadores descartáveis confinados dentro do modelo perecível. Artistas, os familiarizados com o não quando são servis os outros que dizem sim. Entre repúblicas desertadas pelos poetas e democracias celebradas pelos medíocres, restam figuras individuais e rebeldes, artistas cuja negação visa primeiramente à preparação do terreno para seu poder afirmativo. Se eles são amantes das potências negadoras, é para melhor deixar o campo livre à força que age em seus corpos e transbordam sua existência de modo a semear as terras onde florescem as plantas carnívoras da política. As obras daqueles que, através da história, contam os poderes e a potência de toda estética que quer a vida e escarnece a morte, se abrindo como estranhas mandrágoras desabrochadas ao pé dos cadafalsos. Certamente, poucos príncipes são capazes de apanhar o pincel que solta da mão de um grande artista e lhe cai aos pés, porém, quando o são, não agem eles de um modo condescendente que pode interromper, de seu bom grado, a brutalidade de seu desejo? Pois La Boétie tinha razão de suspeitar de toda autoridade, por princípio, com o pretexto fundado de que possa ser negativa a todo instante e, portanto, perigosa se não em ato pelo menos em potência. Quando ela é digna deste nome, eu aspiro ver a arte como antídoto de plenos poderes, de onde quer que ela emane. De modo que uma arte oficial enuncia uma contradição em seus termos, uma impossibilidade oximórica. A loucura dos artistas se opõe à seriedade daqueles que praticam a política com soberba: de um lado a estética e a aspiração do sublime, do outro a reivindicação, coberta de cientificidade, de pretensas verdades todas úteis à cristalização e à solidificação das mentiras de grupo, são esses os termos da alternativa. Em matéria de política, seria um equívoco esperar a salvação dos artistas, mas pode-se querer extrair algo das forças lançadas por eles dentro dos reservatórios onde se exprimem suas visões do mundo, seus entusiasmos, suas audácias e suas
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fúrias. Imagina-se facilmente a antinomia radical entre a pretensão de uns e a loucura de outros. O desejo do ator político visa ao fim de toda a vida em forma congelada dentro da rigidez do cadáver; o do artista tende para uma perpétua dinâmica informada pela vida, pelo movimento, pela mudança, a força em ato. É preciso também se interrogar sobre as razões do recurso ao registro artístico para falar de política. Na maior parte do tempo, os intelectuais vivendo de entre as glosas, sem se preocupar com a prosa do mundo, com o ensinamento do real, da história e dos fatos, usam a metáfora como categoria equivalente à verdade efetiva, encarnada. De modo que a política assimilada a uma obra de arte passa com muita freqüência, sob a pena de alguns, por um sumo de um achado filosófico lá onde sobressai somente um talento para a retórica. Os dialéticos acostumados com a arte de manejar a extremidade e o conjunto de figuras repertoriadas no assunto submetem-se aos tropismos da escolástica medieval e dos esquemas herdados de uma vulgata aristotélica. A saber? Que se pode tecer a metáfora da arte política com a ajuda do recurso à escultura, por exemplo, reciclando a antiga imagem do cerarnista. Prosseguindo desta maneira, encontram-se mal disfarçadas as ferramentas da forma em potência, da forma em ato e da informação da matéria. A matéria é o povo, a multidão, a assembléia informe daqueles que evoluem, errantes, antes da existência de uma nação. Pedra bruta, ou terra dentro da selvageria de uma lama pura, trata-se de ir buscar no coração desses materiais a forma que jaz, escondida, dissimulada. Depois supõe-se a mão do artista hábil a retirar de uma ganga inútil a obra que já está lá. O informador é,o artista que esculpe, talha ou modela. Ditador ou príncipe esclarecido, déspota ou chefe de Estado, tirano ou presidente, ele se declina de cem maneiras como o filósofo rei ou o rei filósofo. Artista, ele poderia muito bem dever seu lugar, sua natureza, sua função, seu carisma, a não sei qual ardil da razão. Não importa, demiurgo ou deus ao seu modo, por ele advém a forma. Enfim, os meios utilizados, as ferramentas do artista
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são, alternada ou simultaneamente, a persuasão ou o constrangimento, a força ou a sedução, a energia ou a violência. A cada vez, o objetivo consiste em identificar o motor da história e as formas dentro das quais essas forças captadas acabam constrangidas: o Partido, o Estado, a Nação, o Povo, a Ideologia, a Raça, o Plano, ou outros ídolos caros ao coração daqueles que nos governam. Nesta ordem de idéias, aqueles que ainda aplicam o esquema escolástico neste século persistem naquilo que faz o ideal estético clássico: a Beleza, definida em relação aos auxiliares dessa polícia estética que são equilíbrio e harmonia, simetria e coerência, número e proporção. Do Estado grego àquele que promoveu o nacional-socialismo, passando pelas conquistas normandas na Sicília ou as cidades artistas da Renascença, a idéia de urna forma política assimilável a urna forma estética concluiu seu trajeto. "O Estado corno obra de arte", escreverá Jacob Burckhardt, que utiliza sem referência aqueles que hoje repetem, até a saciedade, esta instituição sedutora mas limitada à sua pura eficácia metafórica. A política corno obra de arte estabelece comparação destituída de razão. Sem dúvida, ela autoriza também que se faça da guerra urna arte, se não da diplomacia, mesmo da economia e de tudo que contribui às fundações e à duração da ação política em questão. Mas, em ocorrência, a arte visa menos a um projeto estético que a um puro projeto técnico: o do artesão, sua habilidade, sua competência, com certeza. Mas nada autoriza urna assimilação substancial da política de urna época, aquela de Lênin ou de Hitler, por exemplo, a urna pirâmide ou urna catedral, objetos com os quais, no pior dos casos, se poderia sugerir urna reaproximação unicamente formal - no modelo fornecido por Panofsky para pensar a arquitetura medieval segundo os princípios estruturais escolásticos. O ideal da bela forma pura e intacta, da criação incorruptível instalada no céu das idéias e nos fatos, o Estado, o Direito, a Lei entendidos e definidos nas mesmas acepções que a Pintura, a Música, a Poesia, eis o que basta aos defensores desta tese para pensar a política em termos nobres.
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Que os homens políticos mais preocupados com a unidade dos monólitos tenham querido, à força de guerras e de conquistas, um Império decidido e determinado como uma forma sublime justificando qualquer sacrifício, isso é algo que não deixa a menor dúvida no espírito dos negadores de indivíduos que foram Alexandre, Carlos V, Napoleão, Hitler ou Stálin. Mas essa forma desejada por eles procedia mais da religião e da Igreja do que da arte e do ideal estético. Ela visava mais à comunidade celeste transposta e superposta bem-sucedida ao modo terreno, do que à produção de uma instância autenticamente enervada por uma energia procedendo da arte. Artistas, eles desejaram ser, jogando com a metáfora como o resto do mundo. No entanto, eles não foram. A declaração de intenção e o decreto de autoproclamação nunca foram suficientes para legitimar o artista. É ainda mais surpreendente que além da megalomania própria a todo chefe de Estado, e a todos os edificadores de império, tenham existido filósofos, pensadores, historiadores da arte, para abundar neste sentido e consentir que certos homens políticos tenham feito de seu traço na história uma encamação assimilável a uma obra de arte digna deste nome. Eu citei Burckhardt, seria preciso acrescentar Walter Benjamin e seus epígonos contemporâneos. Após a fórmula dada pelo historiador da Renascença, a idéia aparece mais uma vez em 1936 sob a pena do autor de A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, que aponta no fascismo europeu, e mais particularmente no nazismo, uma "estetização da vida política", contra a qual ele convoca à luta pela "politização da arte". O quiasma seduz, porém, mais uma vez, esconde mal uma eficácia reduzida aos efeitos de retórica. Primeiramente, porque a estetização da política supõe uma ampliação máxima da noção. Onde o nazismo é estético? Quando o é? Com que razões se pode apoiar tais hipóteses? Em seguida, porque a politização da arte, longe de constituir uma resposta ao nazismo, coloca de costas um para o outro, como irmãos gêmeos, o nacional-socialismo e o bo1chevismo, ambos eminentemente dotados para politizar a arte mais que estetizar a política.
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Ou então, se for questão de imaginar o nazismo como um estetismo, é preciso estender a noção ao bolchevismo e às democracias ocidentais, legíveis à força de metáforas como ocasiões políticas de exprimir o artista, a ação de informar a matéria e o material. O uso da metáfora excede a ideologia hitleriana. O nazismo é um estetismo para o recurso às festas noturnas, às luzes utilizadas no contexto de grandes teatralizações festivas e comunitárias? Para os símbolos com a ajuda dos quais se materializam as hierarquias, as partes que, ajustadas mais próximas, fazem o grande todo? Ou ainda para o recurso principal ao sentimento e à emoção mais que à razão e à dedução? Se tal fosse o caso, seria preciso igualmente desqualificar as diferentes versões do marxismo: soviético ou chinês, africano ou europeu ou para todas as propostas de variação sobre o tema liberal nunca sobra nada para promover as ocasiões de celebrar os mitos aos quais todos se sacrificam: o dinheiro rei, o pensamento insípido, a degradação dos sentidos em signos publicitários, em sinais mercantis, a amnésia generalizada espetada em todas as comemorações que tomam pretexto de uma história reduzida às datas de nascimento ou de falecimento dos atores da vida cultural ou social para realizar prioritariamente benefícios em espécie. Dentro da utilidade social e da utilização ideológica, a festa da Federação serrana equivale à do nazismo, do solstício, ou àquela, liberal, do desembarque dos aliados de 1945, cinco anos mais tarde. Toda política do gregarismo festivo e de celebrações comunitárias, de recurso à sedução mais que à dedução, à mentira e à hipocrisia mais que à análise e à reflexão. Sua própria essência reside no talento consumido a reabilitar os animais maquiavélicos ou gracianescos: leão e raposa, lince e molusco - força e astúcia. Nada que se pareça com a coruja de Minerva ou a águia nietzschiana de olhos penetrantes. É com o bestiário da falsa aparência que se deve imaginar a política instalada do lado da arte? Verossimilmente não. Aqueles que hoje retomam a hipótese de Walter Benjamin vão mais longe naquilo que chamam de nacional-estetismo *, uma categoria suscetível, a seus olhos, de prestar conta concei-
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tual e filosoficamente do nazismo. Segundo eles, o Terceiro Reich teria querido praticar a política como uma arte considerando o povo como um material a informar plasticamente com o propósito de fazer dele uma obra estética. Onde e quando essa obra salienta o registro estético? Quando ela supõe, escrevem Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe - posto que se trata deles -, um mito para tornar possível seu advento. Em virtude de catecismo universitário bem conhecido, e transformado em clichê, que o mythos se opõe ao lagos, o mito da razão, e segundo o princípio dualista igualmente querido que uma díade simplifica a existência opondo o negativo ao positivo, tudo aquilo que se reclama como mito é condenável por fazer apelo apenas à emoção, à sensação, ao corpo, ao irracional, ao peremptório, à afirmação praticada pelo modo encantatório. Em compensação, sem dúvida, a razão se apoiando sobre a demonstração, a retórica e a lógica, a dedução e outros acessórios úteis à panóplia filosófica clássica, são essas as condições de possibilidade irrefutáveis para estabelecer a verdade. Estetismo desde o uso do mito contra a razão? Mas desse modo a Revolução Francesa, ela também grande consumidora de festas, de manifestações públicas e coletivas encenadas pelos artistas - pensemos no triunvirato Chénier-David-Gossec -, 1789, portanto, reflete igualmente o nacional-estetismo? Tanto quanto, se tal fosse o caso, os bolchevismos diversos deste século. Pois a utilização de uma razão diferente não deve iludir e deixar acreditar em um eclipse da razão. Existe infelizmente uma razão fascista, uma razão bolchevique, uma razão nazista tanto quanto uma razão republicana, uma razão democrata, uma razão liberal, na sua maioria contraditórias, mas para alguns compatíveis. Esta disparidade das razões dispensa que se oponham as políticas apoiadas nos mitos, enterradas nas areias movediças, e aquelas que se encostariam na razão soberana, sublime, triunfante e provedora de verdades magníficas. O mito atravessa tanto o político quanto a razão. Eles se alimentam aliás um do outro e constituem simultaneamente uma razão mítica e um mito racional.
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o mito se submete à caricatura desde sua redução ao modo destro de referências ao solo, ao sangue, à raça e à terra. Não é preciso sequer imaginá-lo em relação ao enraizamento, às forças obscuras e perigosas, os subsolos ctonianos onde se estagnam as sombras maléficas acopladas aos monstros engendrados pelo sono da razão. Existe uma possibilidade, uma necessidade mesmo, de recorrer aos mitos para estruturar uma política, dar-lhe uma coluna vertebral. Toda democracia que enuncia sua recusa do mito e sua preferência por um "irrepresentável" (sic) corre o risco de apenas existir ou de ser autenticamente invertebrada. Da mesma forma, o mito pode ser elaborado, construído, para obedecer a uma necessidade independente do irracional. A oposição pensamento mítico/pensamento racional esquece e negligencia aquilo que os dois mundos devem um ao outro, seu modo de se alimentar e de se encorajar mutuamente. Quando Georges Sorel fabrica o mito da greve geral, ele está longe de apelar para o irracional ou de solicitar as forças demoníacas das geografias infernais. O mito propõe uma forma, um conceito útil para realizar a confluência e a convergência daquilo que, de outra forma, permaneceria espalhado, informe e sem força. A República deve sua estutura dentro da história a uma mitologia tornada mística sem que por isso o mito em si próprio seja condenável. No nazismo apoiado sobre o mito ariano o que é indefensável é menos o mito que o arianismo do qual conhecemos a economia e a utilização na ideologia nacionalsocialista. Os filhos e os netos de Walter Benjamin querem mal ao mito, celebrando a Razão como um ídolo, porque ele obrigaria, necessariamente, à imitação e ao mimetismo. Em ocorrência, o mito nazista tomaria por modelo a Grécia antiga, revista e corrigida para uma adaptação sob formas contemporâneas por Wagner e pelo wagnerismo. De maneira que, nesta operação, Nietzsche vagueia, sempre depreciado por aqueles que, em compensação, colocam todo seu ardor para defender Heidegger, de quem gosto de lembrar, para aqueles que ainda o igno-
DA ARTE
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ram, que ele teve a carteira da NSDAP* entre 1933 e 1945 mais cedo teria sido difícil, mais tarde também ... Do homem grego ao tipo nazista, o afastamento não quer dizer nada, ou muito pouco, e a referência ao mito bastaria para autorizar a identificação. O estetismo envolveria o desejo de copiar, de reproduzir, de decalcar uma forma ancestral revivificada para os tempos modernos com fins políticos. Da mesma forma, Philippe Lacoue-Labarthe, a quem se deve esta leitura, busca a confirmação da hipótese benjaminiana numa carta endereçada por Goebbels ao maestro e compositor Wilhelm Furtwângler, Nessa correspondência, o chefe da propaganda censura o músico por ter recusado o arianismo como critério da excelência da música e ter preferido uma noção intrinsecamente estética: lá onde o nazista distingue música ariana, pura, e música judia, degenerada, o artista opõe a boa e a má música, a despeito de qualquer outra distinção. E Goebbels censura Furtwângler por sua visão artística e não política. Quero ver aí uma ilustração da oposição radical entre as referências "cientificistas" e "positivistas" do nazista e a leitura estética e musical do artista. Se, por acaso, o nazismo tivesse funcionado pelo princípio de um estetismo, o nazista, me parece, teria pensado como o maestro. Em compensação, o ministro de Hitler mostra suas referências. Aos antípodas da arte, elas remetem explicitamente àquilo que representa o fundo do pensamento nazista: o biologismo higienista - de modo algum o estetismo. Se Goebbels fala de arte política não significa que ele pensa a política como uma arte, ainda que ele próprio também, como continuador clássico da razão política ocidental, se sacrifique ao lugar-comum metafórico de uma leitura estética da política a partir desta vontade única de fazer do povo uma obra de arte. Nem as aquarelas de Hitler e as eructações nazistas, nem o doutorado de literatura e de filosofia de Joseph Goebbels bastaram para fazer do nacional-socialismo um estetismo, e deles, artistas. #