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português Pages 241 Year 2016
TEATRO E POLÍTICA ARENA, OFICINA E OPINIÃO
TEATRO E POLÍTICA ARENA, OFICINA E OPINIÃO EDÉLCIO MOSTAÇO
2ª EDIÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880 M915t Mostaço, Eldécio Teatro e política, Arena Oficina e Opinião / Edélcio Mostaço. -- . 2.ed. -- São Paulo : Annablume, 2016. 241 p. 16x23cm. ISBN: 978-85-391-0786-5 1. Teatro de Arena (São Paulo, SP). 2. Teatro Oficina. Teatro Opinião. 3.Teatro – Brasil- História – Séc XX. 4. Teatro – Aspectos políticos. I. arena oficina e opinião. II. Título. CDD 792.0981 Índice para catálogo sistemático: 1. Teatro de Arena (São Paulo,SP) 2. Teatro Oficina 3. Teatro Opinião 4. Teatro – Aspectos políticos Teatro e política Arena, Oficina e Opinião Capa Arthur Matuck Ponte Projeto e Produção Coletivo Gráfico Annablume Annablume Editora Conselho Editorial Eugênio Trivinho Gabriele Cornelli Gustavo Bernardo Krause Iram Jácome Rodrigues Pedro Paulo Funari Pedro Roberto Jacobi 2ª edição: junho de 2016 © Edélcio Mostaço Annablume Editora Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554, Pinheiros 05415-020 . São Paulo . SP . Brasil Televendas: (11) 3539-0225 –Tel.: (11) 3539-0226 www.annablume.com.br
Projeto realizado com o apoio do Estado de Santa Catarina, Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte, Fundação Catarinense de Cultura, FUNCULTURAL e Edital Elizabeth Anderle/2014.
SUMÁRIO
REEDIÇÃO NECESSÁRIA – prefácio por Silvana Garcia
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NOTAS DO AUTOR
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CAPÍTULO 1 – Os padrões empresariais do TBC
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CAPÍTULO 2 – Em cena o Arena: realismo e política nos anos 50
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CAPÍTULO 3 – Um teatro de classe no pacto populista
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CAPÍTULO 4 – Oficina: do existencialismo ao realismo social
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CAPÍTULO 5 – Caminhos de uma arte popular
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CAPÍTULO 6 – O golpe de 1964: O Opinião e a arte de protesto
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CAPÍTULO 7 – Exortação e paródia: estéticas opostas e suas vigências CAPÍTULO 8 – 1968: projetos de neovanguarda e mobilização social
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CAPÍTULO 9 – Repressão e Censura: o fim do Arena, do Oficina e do Opinião
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CAPÍTULO 10 – Contracultura e vazio cultural
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CAPÍTULO 11 – Pano de Boca e Um Grito Parado no Ar: confrontos
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CAPÍTULO 12 – O nacional-popular no novo pacto com o Estado
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REFERÊNCIAS
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POSFÁCIO – O teatro como fato cultural
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GLOSSÁRIO
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REEDIÇÃO NECESSÁRIA Silvana Garcia
Há muitos e muitos anos, um amigo de adolescência me ofereceu de presente uma colagem cujo tema – resgato-a como posso na memória, pois já não a tenho – remetia à Tropicália. Tratava-se de um pequeno retângulo de papelão com fragmentos colados, tosco, mas muito significativo em sua forma e sentido. Com esse presente singelo, o amigo assinalava sua inconformidade com os limites estreitos do pensamento da esquerda sisuda (mais tarde alcunhada por Cacá Diegues de “patrulha ideológica”), assim como afirmava sua indignação política com a ditadura militar e, de quebra, com as atrocidades que se cometiam no Vietnã. Já naquele momento pude identificar na pequena obra traços que ainda hoje reconheço em Edélcio Mostaço: uma consistente inquietação intelectual, uma obstinada necessidade de se contrapor ao pensamento raso e uma disposição para o bom debate, quando se faz necessário. Formamo-nos basicamente com as mesmas referências intelectuais, ainda que, nele, elas tenham sido plantadas em terreno mais fértil; vivenciamos e compartilhamos muitas experiências e temos nos acompanhado desde então, sempre por caminhos paralelos, mas suficientemente próximos para não nos perdermos de vista. Pouco mais de uma década após o episódio relatado acima, Edélcio publicou este livro. Aqueles traços característicos que o distinguiam na fase final de adolescência aqui ganham ossatura. Já no título revelava a que veio, propósito que ganhava reforço no subtítulo (suprimido nesta segunda edição): Uma interpretação da cultura de esquerda. Na verdade, uma interpretação da práxis da esquerda no teatro, centrada nos três grupos que encabeçam a
análise, mas indo bem além deles, abrangendo, ainda que de relance, toda a produção mais significativa do período. Tendo o TBC como vértice de uma pirâmide ao contrário, Edélcio traça um panorama da produção teatral que se abre para abranger um período de três décadas, até os primeiros indicadores do processo de abertura política. Nesse panorama, finamente esmiuçado pelo autor, o que o orienta é a análise do pensamento político que moveu a esquerda teatral, aparentemente convergente em suas motivações, mas um tanto diversificada em suas expressões. O livro teve seus opositores – o próprio autor comenta o fato no Posfácio –, em grande parte porque desmembrava tudo o que deveria, segundo a vontade de alguns, permanecer coeso. O investimento em revelar as camadas que constituíam os fatos, associando produção artística e ideologia, nos idos de 1982, quando a abertura política começava a apenas delinear-se com a realização das primeiras eleições diretas, poderia ser considerado uma exposição desnecessária. Não que a revisão crítica (ou autocrítica) da cultura estivesse alheia a essa inclinação. Basta ver a bibliografia originalmente utilizada nessa pesquisa e constatar que muitos de seus interlocutores já vinham produzindo reflexões relevantes acerca do panorama cultural das duas últimas décadas. O próprio livro de Edélcio era resultado de seu envolvimento com o CEAC - Centro de Estudos de Arte Contemporânea, no qual militou por um período. Fundado em 1979 e orientado por Otília Arantes, vinculado ao Departamento de Filosofia da USP, o CEAC agrupou um conjunto importante de pesquisadores e foi responsável pelas edições de Arte em Revista, uma publicação voltada para o resgate de documentos e produção de pensamento sobre arte e cultura brasileiras. Muitos dos materiais sobre os quais a intelligentsia de esquerda se debruçou, a partir de meados dos anos de 1970, para averiguar e analisar as fermentações culturais e artísticas do período da ditadura encontra-se ali exposto e comentado. Mas, essa revisão crítica foi exercida por cientistas políticos e pensadores da cultura, muito pouco por críticos e pesquisadores de teatro. E foi nesse campo que o livro teve seu maior impacto. Embora com proximidade, Edélcio não pertencia à comunidade acadêmica naquele momento, bem como ainda não estava engajado na crítica jornalística, fase que viria a seguir, de modo que produziu seu texto como pesquisador independente. Na apresentação do livro O espetáculo autoritário, que ele lançaria no ano seguinte, Teixeira Coelho a ele referiu-se como um “es-
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critor polemista”, qualificativo que é atributo de poucos e mérito de quem tem competência analítica e profunda paixão pelo seu objeto. Certamente o estilo direto, interpretativo de Edélcio – como se a tarefa do historiador pudesse prescindir disso – pode ter dado a seu livro certa dose de agressividade analítica, não habitual no ambiente do teatro, mais bem dotado de certo bom-mocismo sempre que se trata de defender seus pares. Mas, também é evidente que o autor demonstra estar imbuído do desejo de passar a limpo, de tocar em pontos nevrálgicos, sensíveis, contribuindo para que, naquele horizonte de abertura, pudéssemos avançar com uma compreensão desanuviada de nossa história. E isso fazia sentido, naquele momento, quando, para dar um exemplo concreto, não poucas vozes ensaiavam uma retomada dos propósitos e das práticas do CPC, como se fosse possível (e desejável) uma via expressa que transportasse de lá para cá o fenômeno, evitando a admissão da passagem do tempo e da mudança de contexto. Algo como acreditar que o Auto dos 99% se tornara um clássico, podendo ser encenado sem constrangimentos. Lido hoje, a contundência do autor não perdeu atualidade, mas já não nos parece tão desafiadora como alguns quiseram supor à época. Ajuda, com certeza, o reconhecimento do acerto e da qualidade de suas conjecturas. A análise de Edélcio, mesmo se não concordamos com todos seus matizes, é lúcida e coerente. Acompanha pari passu o andamento da produção teatral das décadas pré e pós-golpe militar, e seu recorte é claro: trata do evolver do pensamento dos setores de esquerda engajados no movimento artístico e como seus principais mentores dispõem na cena os delineamentos ideológicos que formularam para extrair do teatro seu potencial como fomentador de juízo crítico e/ou agir revolucionário. Em sua marcha, o autor vai explicitando os debates ocorridos no interior dos setores engajados da produção teatral, sempre em relação com o movimento mais geral das esquerdas em seus esforços por assenhorear-se dos rumos da resistência revolucionária, da frente nacionalista adornada pelo pacto de classes, de inspiração isebiana e matrizada pelo PC, à luta armada. Nas trajetórias do Arena e do Opinião, assimilados pelo autor a essa vertente frentista, não faltaram contradições, ainda que os grupos tenham produzido em abundância teorias e conceitos que trataram de justificar o acerto e ressaltar o caráter programático de suas escolhas. No interior desses processos, na busca da medida justa entre criação estética e resposta ao regime vigente, e à medida que se aprofundavam os mecanismos de
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opressão da ditadura militar sobre a sociedade brasileira, também os fundamentos e estratégias artísticas dos grupos foram derivando para outras formulações mais ou menos pragmáticas, que persistiram até o momento de suas dissoluções, no início da década de 1970. Em raia própria, o grupo Oficina constrói uma trajetória no contra fluxo da corrente dominante “exortativa”, imersa em “rituais cívico-esquerdizantes”, e vai encontrar contundência estética (e política) primeiramente em Brecht e, depois, senda que continua trilhando até hoje, na retomada da linha evolutiva do modernismo brasileiro, acessando a via alegórica. Contra o excesso de poder autoritário, o excesso do achincalhe. Em sua trajetória, ainda que também eivada de impasses e rupturas, o Oficina foi capaz de romper com os esquemas de um fazer artístico que pensava o teatro como instrumento de protesto e de resistência, mas que não ia além de fornecer alimento ideológico para uma plateia conivente. Ao fim e ao cabo, Edélcio reconhece a importância do Arena e do Opinião, ressaltando o papel que cumpriram na desestruturação do modelo burguês (i. e. TBC) de produção teatral e, consequentemente, na proposição de novos caminhos para a criação e produção do teatro, mas não esconde sua adesão à práxis do Oficina, dedicando a ele algumas de suas melhores análises. Essa adesão se estende a todo teatro que rompe com os cânones, que busca novos paradigmas artísticos e entende a arte não como um instrumento para a ação política, mas ela mesma como força revolucionária que põe em xeque todas as estruturas, a começar pelo próprio sistema artístico. Após averiguar a oposição entre a esquerda programática e a “terceira via” do Oficina, o próximo passo de Edélcio é a visada sobre o período da chamada contracultura, dos anos 1969-1974. Desarmando a ideia de que o período foi um “vazio-cultural”, cuja formulação leva em conta apenas o falecimento da corrente ideológica até então dominante, o autor ressalta o veio fértil da produção contra cultural do período. É na sequência desse capítulo que ele apura o raciocínio que vinha construindo até então, ao contrapor duas peças emblemáticas do período, Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri, e Pano de boca, de Fauzi Arap, revelando em tal confronto a vigência de dois sistemas de valores os quais, em plano metalinguístico similar, porém escorados em pensamentos estéticos diferentes, dão conta de suas supostas referências, apenas sugeridas nos textos: Arena um, Oficina o outro.
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O fato de Edélcio ter sido testemunha – ou até mesmo ter participado – de grande parte dos eventos teatrais que desdobra nesse extenso painel histórico que constitui seu livro não lhe tira mérito analítico por proximidade ou comprometimento; ao contrário, revela grande lucidez crítica. Ele não só articula com habilidade um número extraordinário de eventos teatrais como tece ao redor deles comentários que substanciam teoricamente suas análises, assim como descreve e disseca um sem-número de espetáculos com a segurança de quem soube reter registros e impressões. Mas ele também sai em busca do diálogo com outros pensadores, ainda poucos no ambiente rarefeito da produção intelectual daquele momento. Seus principais interlocutores encontram-se nas áreas das ciências sociais e da política, intelectuais que, desde suas esferas específicas, operavam a crítica das esquerdas. Em menor número estão os pensadores do teatro. Em 1982, havia apenas oito anos que a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo instituíra seu programa de pós-graduação em Artes, e apenas começavam a surgir, de forma ainda tímida, os primeiros frutos da pesquisa acadêmica. No segmento ensaios, também havia pouco material produzido – um volume obrigatório seria justamente o número 6 de Arte em Revista (1981), totalmente dedicado ao teatro e organizado por Edélcio –, concentrado em publicações como a Revista Civilização Brasileira e Cadernos de Opinião (da Editora Paz e Terra). Assim, na bibliografia original da pesquisa já constavam os mais significativos volumes produzidos sobre o período abraçado pelo livro, revelando o cuidado e a abrangência com que o autor organizava suas fontes. Nessa nova edição, além de umas poucas incisões, que tornaram o texto mais enxuto, Edélcio nos brinda ainda com um posfácio que situa o contexto de escrita do livro e referenda suas escolhas, trazendo formulações que lançam novas luzes sobre o que foi articulado na versão original. Seu texto nos revela ainda que, passadas mais de três décadas, o autor amadureceu, mas mantém coerentemente forte enraizamento em princípios que suportaram, e bem, o passar dos anos. Não há, portanto, como não saudar a segunda edição desse livro. Muitos de seus principais temas permanecem vigentes e continuam colocando em lados opostos diferentes segmentos dos produtores teatrais. As discussões em torno do binômio arte-política ainda se conjugam em grande medida no mesmo leito de auto-ilusão no qual navegaram alguns militantes da esquerda teatral dos anos da ditadura; a perspectiva de classe que o autor aponta como um dos eixos principais de sua análise ainda persiste como
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um fator mal debatido nas discussões sobre teatro popular e teatro político; ainda há segmentos que acreditam que se devem impor como pensamento hegemônico. Temos de olhar com discernimento para esse passado e não nos sentirmos nem ameaçados nem hipnotizados por ele. Não podemos nele procurar “modelos” ou “exemplos” a serem resgatados, como o autor já nos advertiu, bem como não podemos ignorar o que lá foi debatido e experimentado. Ainda mais neste momento, quando uma direita raivosa ocupa as ruas reivindicando a volta dos militares ao poder, o debate sobre arte e política será certamente reacendido em novas fogueiras e tornar-se-á mais que oportuna a revisão desta análise: uma reflexão que, embora pareça difícil de tragar pelo incômodo do remédio, se fez e ainda se faz necessária.
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NOTAS DO AUTOR
Em abril de 1980 me vi diante de uma tarefa insólita: narrar, para um grupo de jovens atores que montavam um espetáculo onde uma cena bosquejava as trajetórias do Arena e do Oficina, a história daqueles grupos. Com a surpresa da tarefa (eu era um deles) e a absoluta concisão com que deveria ser cumprida, optei por uma narrativa ideológica. Sentei-me na roda e fui percebendo, nos olhares curiosos e atentos, um reconhecimento quase inconsciente, como se eu falasse de algo muito presente, mas já invisível, muito importante, mas desaparecido. Foi o começo desse livro. Nos dois anos seguintes enveredei a fundo não apenas com a história daqueles grupos como, igualmente, por todo o teatro praticado no período, dando por encerrada minha carreira de doze anos de prática teatral e assumindo as tarefas da critica militante. Foram idas e vindas, acertos e desvios, mas principalmente busca e repensamento. Relendo todos os textos escritos e encenados, gravando entrevistas, revendo fotos, arquivos e documentações, consegui reunir um farto material, muitas opiniões contraditórias sobre os processos vividos pelos grupos analisados. Tudo isso me permitiria realizar uma linda monografia de infusão historiográfica-crítica, o que me causava certo mal-estar. Optei por regredir ao começo, à condição de testemunha de um processo vivido, pessoalizando uma narrativa que, antes de procurar pela objetividade dos fatos, busca pelo sentido do ideológico. Em toda criação humana há uma quantidade imponderável de razões e propostas, de valores e de trabalho, de inventividade e suor que dificilmente conseguem vir à luz em toda sua força num texto de reconstituição posterior. Não nego muito menos estou distante de perceber a complexidade de
tudo e de todos, da humanidade mais radiosa que subjaz em cada obscuro figurante que consta da ficha técnica de um espetáculo. Como fenômeno coletivo, torna-se difícil surpreender no teatro onde começa ou termina o trabalho de criação individual. Falar em termos genéricos de uma montagem é, então, de imediato, reconhecer a existência dessa complexidade e a infinita inadequação em surpreendê-la em sua plenitude. Que essa desculpa não seja entendida pelas muitas pessoas que comigo discutiram alguns dos temas tratados, prestaram depoimentos ou forneceram sua ajuda na pesquisa como esquecimento, irrelevância ou menosprezo de suas participações no trabalho histórico que desenvolveram e ao qual me reporto. A história do teatro deste período não é tarefa para uma só pessoa, nem por direito nem por vocação. Tarefa onerosa, a mim pode caber articular uma perspectiva - não a única, evidentemente. O encontro com colocações de Heloísa Buarque de Hollanda e de Marilena Chauí me predispôs a abandonar, em definitivo, qualquer tentativa definitiva e/ou multifacetada de competência para a tarefa. Mulheres radicais, não só pelos pensamentos, mas atuações, honram a intelligentsia brasileira com suas renovadas posturas frente a problemas sobre os quais não é mais possível calar. Suas vozes femininas, sonoridades e observações até então sufocadas, fazem valer certo espírito de pitonisa que se imiscui em seus discursos, que se armam insidiosos, não autoritários, democráticos, poéticos. Musicais, como em outra chave faz Rita Lee. Aludi à escolha. Para retornar ao enfoque original, matriz que me dispôs à tarefa, tive de refugiar-me em minha solidão, minha individualidade e vivência, adensando uma perspectiva pessoal. Nessa pessoalidade, acredito, o que se segue poderá trazer luz ou mistério, esse eterno paradoxo que nos conforma. Para alguns, a inexistência de teatralidade no texto poderá tornar a leitura desconfortável, para outros a falta de singularidades e entreveros de bastidores, um livro suspeito, porque fora dos padrões com que a categoria teatral costuma relacionar-se entre si e com o mundo. Não faltarão, ainda, reparos quanto ao uso de conceitos ou exageros ou empobrecimentos de tópicos analisados. De tudo isso eu sei, tudo foi pensado. A escolha de uma feição, como eleição preferente do Desejo e da consciência, marca um ritual de instalação, e a partir dele, de compreensão, de pensamento e ação.
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Aventurei-me pelo político, não porque renegue o estético ou tenha dele uma visão de atrelamento ou subjugação, pelo contrário; mas porque numa ordem suspeita de discurso há de se radicalizar o signo, estourando a linguagem, para evidenciar seus substratos turvados. Exatamente porque, em função da obliteração do estético que marca alguns trabalhos analisados, pensar o estético é, antes, pensar o político. Se a ideologia é o mascaramento resultante, a face trágica da teatralidade amarrada, evidenciar tais deslizes é buscar, como o tempo perdido, o Outro subjugado, ainda que ele aqui surja por ausência. Nessa recherche de imponderáveis, não me iludido quanto aos destinos que este livro poderá trazer; mas, à imponderabilidade reconfortante da inação optei, por escolha, pela terceira via, procurando redimir um pouco daquela humanidade adormecida em nossos corações preocupados e nos olhos daqueles jovens a quem eu falava. Pois se sou "a ovelha negra da família, agora é a hora de assumir". Convencido de que o fenômeno cênico é único e indissolúvel, impossível de ser transposto, recriado ou reconstituído a posteriori, desviei-me, definitivamente, de tentar resgatar os valores fenomênicos das montagens analisadas. Tomadas como epifenômenos, fica enfatizado o contexto sociopolítico onde surgiram, dando origem a uma escritura paradoxal: onde se espera ver o teatro é onde ele não está, e vice-versa. Ainda que exista a consciência das inegáveis defasagens entre a teoria e a prática, especialmente em se tratando de uma arte performática, preferi enfatizar as ideias sobre e subjacentes aos espetáculos, não por alimentar a convicção de que eram justas ou inequívocas, mas procurando enfatizar o rol de contra dicções em relação à sua teoria política e, portanto, de suas traduções em ações. O procedimento provocou refrações, sem dúvida, mas foi empregado para evidenciar a deformação ainda mais acentuada daquelas ideias em seus momentos históricos. Gerou-se, é claro, um jogo de discursos, entre a análise e o objeto analisado. Em todo discurso ideológico tal jogo de espelhos é fatal, pois é próprio da ideologia ser um discurso separado, heterônimo. Ora, o jogo de discursos, sua luta imanente, é também fonte de contradições, oposições, de política, restando-me, portanto, optar por um discurso, nem sempre convencido de ser ele o mais abrangente - mas, resolutamente, o mais necessário. Março de 1982.
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CAPÍTULO 1 OS PADRÕES EMPRESARIAIS DO TBC
Quando se verifica a história do teatro brasileiro compreendida entre as décadas de 1950 e 1960, nela ocupa papel de singular relevância o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), fundado em São Paulo em 11 de outubro de 1948. Não apenas em função das conquistas estéticas e avanços artísticos que implantou e consolidou, mas, singularmente, sua radical alteração de padrões de produção frente àqueles até então instituídos, alastrando essa influência para outros centros de produção teatral, alterando sobremaneira os paradigmas do teatro nacional. O Rio de Janeiro exercera, desde os primórdios, uma hegemonia tranqüila quanto aos desígnios cênicos do país, não apenas pela sua condição de capital como, em igual medida, centro administrativo e financeiro privilegiado desde o Império até a República. Acumulou, portanto, não apenas know how em matéria artística como extensa galeria de figuras decisivas quanto à sua constituição. Com a fundação do novo palco paulista, um movimento de modernização voltado para outros horizontes torna-se perceptível, bem como faz emergir o deslocamento das forças econômicas e financeiras que decidem os rumos da administração pública. Seja para aqueles que dele participaram seja para alguns de seus analistas, o TBC é percebido positivamente, com destaque para as inovações artísticas, o rigor estético, a noção de conjunto, a adoção de padrões artísticos compromissados com a mentalidade inovadora. Mas há também quem, todavia, ali aponte contradições internas, relativizando a iniciativa, a partir de juízos menos embevecidos e mais argutos ao flagrar desvãos. Quer num caso quer noutro, contudo, raramente é colocada em evidência a curvatura ideológica manifesta pelo empreendimento, sua inegável extração burgue-
sa, as refrações de classe ali geradas bem como o teor de suas relações frente à produção. Quem mais se aproximou de uma leitura crítica desse desenvolvimento foi Augusto Boal, nos vários textos que dedicou à trajetória do Teatro de Arena, onde, pela contraposição e contraste estabelecidos entre os dois conjuntos, anuncia algumas observações que, entrementes, não atingem o fulcro da questão.1 Partindo de um olhar assemelhado, Fernando Peixoto ressalva a importância histórica exercida pela empresa, advertindo, entrementes, para a inexistência de um pensamento de classe a nortear a apreciação do TBC e seu momento em relação ao movimento amplo da sociedade brasileira.2 Um crítico destoante da generalizada recepção laudatória em curso naqueles anos foi Miroel Silveira3, cujos textos jornalísticos reunidos em A Outra Critica propiciam um contraponto ao trabalho efetivado por Décio de Almeida Prado.4 O mecenato exercido por Franco Zampari, a um só tempo lisonjeiro para com uma realidade que praticamente só conhecia o amadorismo e economicamente influente dada sua condição social superior, parece ter agido para apaziguar os juízos, fazendo vigorar o consenso de tomá-lo como uma espécie de messias da cultura, entusiasta nacionalista do teatro e do cinema, coisa que, evidentemente, faz justiça a seu arrojo pessoal e espírito de iniciativa, mas deixa à sombra sua figura de fundador da era burguesa da ribalta nacional.5 Foi a partir da consolidação da industrialização paulistana, efetivamente, que se pôde observar a emergência de uma burguesia nacional a exigir, a partir do início da década de 1940, uma mais expressiva atuação de seus atores culturais. Fundada em 1930, a Universidade de São Paulo importara professores franceses que vieram ensinar para esta elite hábitos e padrões renovados, gerando uma demanda ideológica muito significativa quanto a afastar de vez os resquícios patriarcais ainda vigentes e o provincianismo
1. Boal, Augusto. “Etapas evolutivas do Teatro de Arena de São Paulo”, in Teatro do Oprimido, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977. 2. Peixoto, Fernando. Teatro em Pedaços, São Paulo, Hucitec, 1980. 3 Silveira, Miroel. A Outra Crítica, São Paulo, Símbolo, 1977. 4. Prado, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno, 2 ° ed., São Paulo, Perspectiva, 2001; Teatro em Progresso, São Paulo, Martins, 1954; e Exercício Findo, São Paulo, Perspectiva, 1987. 5. Franco Zampari foi um engenheiro de origem italiana, contratado pelas Indústrias Matarazzo para dinamizar seus setores de produção. Tendo desposado uma das herdeiras da família, tornou-se influente nos meios sociais e empresariais. Após fundar o TBC, em 1948, cria a Companhia Cinematográfica Vera Cruz no ano seguinte, apostando numa tendência internacional de capitalização da indústria de diversões.
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nas atitudes até então dominantes. Assim como a cidade se reurbanizava, crescendo econômica e industrialmente, também a arte e a cultura deveriam figurar neste programa renovador, coisa que a constituição democrática de 1946 fazia prever, afastando definitivamente o estigma ditatorial obscurantista em vigor ao longo do Estado Novo (1937-1945). E, sintomaticamente, o teatro surge como uma destas iniciativas pioneiras, com a fundação do TBC, em 1948, empreendimento que deve ser percebido dentro desse quadro inquieto de movimentação cultural quando nascem, como de um mesmo influxo, a revista Anhembi, a Sociedade de Cultura Artística, a Tv Tupi, e registra-se a expansão do Departamento Municipal de Cultura fundado por Mário de Andrade, que passa agora a dispor de uma biblioteca, uma discoteca e demais setores agregados. O Grupo Universitário de Teatro, o Grupo de Teatro Experimental, os English Players, os Artistas Amadores e outros elencos amadores ou estudantis atuantes naquele final de década são os responsáveis pela efervescência cênica que dá origem ao TBC, assim como à Escola de Arte Dramática, aberta no ano seguinte por Alfredo Mesquita. A Bienal de São Paulo e o Museu de Arte, fundados a seguir, igualmente resultam desse mesmo impulso renovador.6 Franco Zampari estabelece o empreendimento teatral ao alugar e reformar um antigo edifício assobradado na Bela Vista onde funcionara, sucessivamente, um laboratório, a sede de uma organização fascista e uma garagem, transformando-o num teatro de 365 lugares, dotado de palco italiano de boa profundidade, mas pouca altura. Servindo em seus primeiros meses para apresentações dos amadores, em seguida iniciam-se as contratações dos melhores dentre eles. Melhores em talento, mas também em origem, quer dizer, os aficionados oriundos das melhores famílias que a cidade dispunha. Apenas Cacilda Becker era de origem humilde, mas já figurava, há alguns anos, como primeira atriz do Grupo Universitário de Teatro.7 O espetáculo de abertura do TBC, La Voix Humaine, de Cocteau, por Mme. Henriette Morineau (atriz francesa da companhia de Louis Jouvet que permanecera no Brasil quando da excursão à América Latina) foi levado em francês prognosticando, como um vaticínio, o gosto civilizado da jovem companhia: o bom tinha de ser europeu.
6. Para se verificar a amplitude deste movimento, especialmente quanto às comunicações de massa, ver Mattos, David José Lessa. O espetáculo da cultura paulista, São Paulo, Códex, 2002. 7. Sobre a importância de Cacilda Becker, quer como artista quer como cidadã, ver Fernandes, N. e Vargas, M. Thereza. Uma atriz: Cacilda Becker, São Paulo, Perspectiva, 1984.
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Em muito pouco tempo Zampari, engenheiro e diretor de um conglomerado de dez empresas do grupo Matarazzo, demonstra um tirocínio administrativo vigoroso e um caráter organizacional surpreendente. O TBC dispunha de uma seção de carpintaria e marcenaria apta a fabricar qualquer tipo de móvel, uma seção de cenografia, do mesmo tamanho do palco, uma sala especial de ensaios, com a mesma acústica do teatro, aparelhada com luz e som, 50 cadeiras e demais apetrechos técnicos que a equipavam como um pequeno teatro, além de ateliê completo de costura, almoxarifado, depósito de materiais e acomodações internas para dois elencos e duas montagens simultâneas ocuparem o edifício. Em 1956, época em que já está consolidado como empresa de sucesso, o TBC promove excursões às capitais dos demais estados, ocupa uma sala permanente no Rio de Janeiro para alternar com São Paulo suas estréias e manter o ritmo de trabalho, Zampari declara: “O TBC tem quinze atores permanentes, que recebem um mínimo de 8 mil cruzeiros mensais e um máximo de 23 mil. Os encenadores recebem de 25 a 30 mil cruzeiros, com o acréscimo de 30%, no Rio, que para os atores chega até um máximo de 50%. Apesar das grandes despesas para a manutenção do conjunto, julgo necessários, para três elencos, no mínimo 4 encenadores. Para segurança seriam necessários 5.”8 O público habitual foi estimado em 25 mil pessoas, tendo atingido com Santa Marta Fabril, o maior êxito do período áureo, a marca dos 45 mil pagantes. Ainda é Zampari quem oferece esclarecimentos: “Em 1948, quando o TBC iniciou as atividades, o preço do ingresso era de 40 cruzeiros. Os artistas mais bem pagos recebiam 7 mil cruzeiros. A madeira custava 30 cruzeiros. O tecido, de 50 a 60. Atualmente pagamos aos primeiros atores 23 mil; a madeira custa 110 cruzeiros; o tecido de 150 a 200. Com estes dados, o preço do ingresso deveria ser não de 90 ou 100 cruzeiros, mas 120. (...) Em relação aos outros países, o preço cobrado pelo TBC é pequeno. A
8. Zampari, Franco. Entrevista originalmente concedida à revista Teatro Brasileiro, 1956, republicada em Palco e Platéia, n° 12, São Paulo, s/d.
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média fora do Brasil é de 3 dólares, custando o dólar 80 cruzeiros. Nos Estados Unidos uma boa localidade custa mais de 6 dólares.” 9 Tais cifras esclarecem algumas correlações monetárias então vigentes, deixando claras as dificuldades econômicas para viabilizar uma empresa comercial, bem como permitem seja vislumbrada a amplitude financeira do empreendimento, muito sintonizada em suas relações de compra e venda. A companhia, em seus 12 anos de gestão particular, nunca recebeu nenhuma verba oficial ou subsídio - ainda que os tenha solicitado - tendo sobrevivido numa acirrada economia de oferta e procura e com inevitáveis sacrifícios à bilheteria, alternando no cartaz produções mais ambiciosas com comediotas divertidas que ajudavam a saldar as contas. Desde os primórdios, ainda na fase de reformas do edifício, foi fundada a Sociedade Brasileira de Comédia, entidade sem fins lucrativos e destinada a assegurar a viabilidade do empreendimento, seja recolhendo contribuições para amortizar as despesas seja subsidiando a compra antecipada de ingressos. Eram dadas nove sessões semanais, de terça a domingo, incluindo vesperais às quintas feiras, sábados e domingos. As segundas feiras, reservadas às folgas, foram ocupadas inúmeras vezes com montagens “de vanguarda” ou “experimentais”, sem que artistas e técnicos recebessem remuneração. Os espetáculos permaneciam em cartaz numa média entre seis e oito semanas, sendo raros os casos em que ultrapassaram três meses. Os maiores sucessos de bilheteria foram Os Filhos de Eduardo, de Sauvajon, Uma Certa Cabana, de A. Roussin, Arsênico e Alfazema, de Kesselring e Treze à Mesa, também de Sauvajon. Alguns clássicos frequentaram o repertório: Schiller, Sófocles, Goldoni, John Gay, mas sempre enfocados sob uma ótica erudita, como produtos culturais destinados a solidificar um padrão de gosto, a refinar uma fórmula cênica, respaldando uma ideologia carente de origens, o que se pode dizer, também, dos Pirandello, Wilde, Tennessee Williams e demais autores encenados.10 O ritmo normal de trabalho comportava pelo menos dois elencos fixos: enquanto um permanecia em cartaz, o outro ensaiava a produção seguinte
9. Idem, ibidem. 10. Uma ampla análise do repertório e contingências de cada produção pode ser encontrada em Guzik, Alberto. TBC: crônica de um sonho, São Paulo, Perspectiva, 1984. Proveitosa, igualmente, a consulta a Magaldi, S. e Vargas, M. Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo, jornal O Estado de São Paulo, Suplemento do Centenário, n. 56, 17 de janeiro de 1976.
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ou, ainda, um deles excursionava para o Rio de Janeiro ou outras cidades. A fundação da Cia. Vera Cruz, em 1949, destinada à produção cinematográfica, demonstra o arrojo de Zampari em se aventurar no mundo do entretenimento, construindo amplos e bem equipados estúdios em São Bernardo do Campo e passando à produção de filmes nos mesmos moldes e segundo os mesmos princípios com que gerenciava o teatro. Por razões muito variadas a Vera Cruz não prospera, embora tenha produzido alguns filmes considerados superiores à média da produção carioca ou independente surgida na mesma época. A derrocada da Vera Cruz é interpretada, por muitas vozes, como um sorvedouro dos lucros gerados pelo TBC sendo a responsável, inclusive, pela desestruturação da companhia teatral que, pressionada por forte crise interna em 1960, perderá as características que ostentou ao longo dos 12 anos da gestão Franco Zampari.11 E ele, enquanto esteve à testa do empreendimento, nunca deixou de tirar partido publicitário - portanto mercadológico - de seus atos empreendedores ou situações rumorosas ocasionais. Tais como o requinte de fabricar sedas e veludos especiais nas tecelagens da Matarazzo, exclusivamente destinados às luxuosas indumentárias de O Mentiroso, até a exposição de Tônia Carrero de pernas de fora e em apimentado papel na comédia Uma Certa Cabana, quando o affair Tônia-Celi-Salce encontrava-se no auge. Para esse empresário habilidoso, o investimento despendido no palco deveria retornar na bilheteria, compensando os custos de uma ousadia destinada a lisonjear uma plateia ávida de novidades e de reconhecer-se naqueles padrões de savoir-vivre. É próprio à mentalidade burguesa gerar contradições muito acirradas entre o capital e o trabalho, bem como é de sua natureza acobertá-las com espessos véus ideológicos destinados a empanar os conflitos sobrevenientes. Se o regime de trabalho imposto era duro, a explicação vinha do necessário empenho e aplicação de cada qual na formação de um teatro exigente do ponto de vista cultural; se os salários ficaram congelados mesmo em épocas de inflação, a razão era o indispensável sacrifício em prol de um teatro sempre deficitário, mas um emprego garantido; se fulana ou beltra-
11. Para uma verificação das relações entre o TBC e a Vera Cruz, consultar Galvão, Maria Rita. Burguesia e cinema, o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981. Sobre o papel desempenhado pela Vera Cruz junto à produção cinematográfica nacional ver Bernardet, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978; e Cinema brasileiro: propostas para uma história, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
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na era preterida numa montagem, naquele inevitável jogo de disputa de papéis, a explicação vinha do necessário sistema disciplinar, rígido para aplacar vaidades e sustar personalismos. Mas, claro está, sempre existiam as compensações: a exposição para a mídia do brilho individual, o narcisismo cultuado e alimentado, a possibilidade de ser cortejada por um senhor da sociedade, o sucesso mundano e lisonjeiro que legiões de admiradores, presentes, jantares, conformavam como mística de uma vida dedicada à arte, sem preocupação com as contas do fim do mês. Este balanço nas relações empregatícias não se mostrou, por óbvio, sempre tranquilo. A crônica tebeceana registra vários incidentes trabalhistas, técnicos, divergências de opiniões, bate-bocas palacianos. Mas que foram resolvidos, contudo, sempre a favor da empresa; ou seja, triunfou sempre o capital, observação válida mesmo para Zampari que, por diversas vezes, colocou-se tão somente como um integrante do grupo (fazendo deslizar para a sombra sua figura de empresário).12 Quando observada a vida teatral profissional brasileira na Primeira República, fazendo o olhar se deslocar para o Rio de Janeiro e sua rede de casas de espetáculos ainda às voltas com empreendimentos artísticos nos velhos moldes, é que ganham relevo as conquistas advindas com o TBC. Aquelas companhias, quase sempre gravitando em torno de um ator ou atriz de sucesso e reconhecimento público, organizavam-se em torno de cachês diretamente ligados à bilheteria: se a peça fizesse sucesso, eles eram pagos, caso contrário acumulavam-se dívidas, saldadas sabe deus quando. Grande parte dessas companhias deslocava-se para São Paulo e outros estados em excursões quase sempre rápidas. Ostentando um repertório geralmente composto por comédias ou melodramas aguados, poucas eram as montagens esteticamente mais ambiciosas. É entre os anos de 1938 e 1948 que a cena brasileira começa a assimilar as atualizações estéticas em vigor nos grandes centros, dando também ensejo ao surgimento de uma dramaturgia nacional mais sintonizada com a realidade do país. O TBC vem, portanto, instituir uma prática teatral inteiramente renovada dentro dos hábitos do teatro de então, especialmente para o público. Ganham força, nesse sentido, seu pioneirismo e espírito de iniciativa em
12. Tais informações podem ser confrontadas nos diversos depoimentos de ex-integrantes da companhia, na série Depoimentos do SNT. Especialmente aqueles reunidos na edição especial sobre o TBC em Dyonisos, n. 25, Rio de Janeiro, Edição do SNT, setembro de 1980,
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alicerçar uma teoria e uma prática artísticas desconhecidas na cultura paulista – e mesmo brasileira - fixando novos padrões, irreversíveis aos olhos de uma época que, deslumbrada com suas conquistas, acreditava-se up to date. Toda discussão sobre a modernidade no teatro brasileiro deságua, necessariamente, no TBC, seja porque fixou o hábito da encenação (afirmada por intermédio dos diretores estrangeiros contratados), seja porque sistematizou metodologias de interpretação ainda pouco utilizadas (o sistema de Stanislávski), seja, ainda, porque consolidou uma série de iniciativas anteriores, comprometidas com a introdução da modernidade cênica entre nós, como o Bailado do Deus Morto, de Flávio de Carvalho, em São Paulo, assim como os cariocas grupos amadores Batalha da Quimera, o Teatro de Brinquedo, o Teatro do Estudante do Brasil, Os Comediantes e mesmo iniciativas profissionais, como as empreendidas por Dulcina de Moraes e Sandro e Maria Della Costa.13 A mentalidade tebeceana alastrou-se e vingou. Tônia Carrero, Adolfo Celi e Paulo Autran saem da companhia em 1955, para fundarem no Rio uma empresa própria. Sérgio Cardoso e Nydia Lícia já haviam se afastado, para trabalharem na Companhia Dramática Nacional e retornam a São Paulo para fundar, em 1956, o Teatro Bela Vista. Igualmente Cacilda Becker, a mais venerada prima donna da companhia, juntamente com Ziembinski, Cleide Yáconis, Fredi Kleeman e Walmor Chagas, formam empresa própria em 1957. Desde 1954 Sandro e Maria Della Costa haviam construído em São Paulo seu teatro, em aberta disputa pelo mesmo público do TBC. O último núcleo a sair, levando dessa vez Fernanda Montenegro, Sérgio Britto e Fernando Torres, que organizam no Rio o Teatro dos Sete, foi em 1959. Assim, vemos surgir, a partir da segunda metade da década de 1950, alguns novos núcleos teatrais, dotados de know-how e inspirados diretamente naquela experiência matricial, o que autoriza chamá-los de filhotes do TBC, a dividir o mesmo público que o núcleo-mãe, que já se apresenta espoliado e alquebrado com tais perdas, todos com o mesmo objetivo de subsistir economicamente dentro de um panorama de oferta que começa a
13. As questões em torno da modernidade na cena brasileira permanecem ainda controversas. Creio que duas correntes podem ser identificadas: a evolutiva e a de ruptura. A primeira afirma ter sido a modernidade implantada pouco a pouco, através de iniciativas como a Batalha da Quimera, o Teatro de Brinquedo, o Teatro da Experiência, o Teatro do Estudante, sucessão de pequenos avanços que atingem, com o trabalho de Os Comediantes, seu coroamento. A outra vertente não enxerga nesse percurso um fio evolutivo, afirmando, ao contrário, a decisiva novidade de Os Comediantes e sua produção de Vestido de Noiva.
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congestionar-se, num contexto agravado com o surgimento de novos grupos e de novas mentalidades frente ao fazer teatral, inspirados em outros padrões estéticos. Calou fundo junto à recepção pública a presença do TBC, o que dá a medida de sua importância cultural e ideológica, e, mais ainda, para aqueles artistas e técnicos egressos da companhia, imbuídos de uma mentalidade muito determinada quanto à definição de seus princípios artísticos. As mulheres, especialmente, distinguiam-se por refinada etiqueta, tornando “comovente ver as melhores atrizes formadas na euforia do TBC abandonarem a pele de suas conturbadas personagens para viverem o papel de hostesses irrepreensíveis”, e, a julgar por muitas delas, o método de Stanislávski “poderia proveitosamente ser utilizado por qualquer curso de etiqueta e boas maneiras”.14 Limite mental esteticista, tão caro à geração de 45, a imersão neste glamour constituiu-se em ponto ótimo dentro das aspirações de uma geração de artistas sintonizada com aquilo que, naquele horizonte, era tomado como exigente logro estético. A importância histórica do TBC não se restringe, por suposto, à dignificação profissional e artística que introduziu em nosso teatro, mas, igualmente, por ter sido edificado em torno de uma mentalidade inovadora e teorias cênicas das mais relevantes, ainda que já desgastada frente aos padrões mundiais, dos modos de ver, sentir e representar o ser humano, através de uma linguagem de palco dotada de rigor criativo para apresentar a “complexidade do mundo”. É neste sentido que a atuação dos diretores italianos do TBC tornou-se decisiva quanto à almejada densidade estética, fazendo avançar os modos expressivos e representacionais, quer para os artistas quer para o público. Ruggero Jacobbi foi o mais intelectualizado dentre eles, tendo escrito alguns livros no Brasil, tratando de aspectos da literatura dramática e outros problemas correlacionados. Carla Civelli, sua esposa, foi diretora do Teatro Paulista do Estudante, fundado na Faculdade de Filosofia da USP, congregando um expressivo número de jovens que, posteriormente, integrarão o Teatro de Arena. Ali ela pôde trabalhar com alguns bons textos do repertório internacional e abrir as páginas de Hegel, Gramsci e Marx para seus integrantes, apontando caminhos artísticos e políticos inovadores em relação
14. Maciel, Luiz Carlos. “Quem é quem no teatro brasileiro”, in Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial n° 2-Teatro, Rio de Janeiro, 1968, p. 57.
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ao pensamento corriqueiro que então circulava. Jacobbi permanece pouco tempo no TBC. Como diretor da Escola de Teatro da UFRGS, a partir de 1958, irá desenvolver uma atividade didática importante, no sentido de influenciar um bom número de gaúchos na opção profissional pelo teatro. Flamínio Bollini Cerri, outro jovem italiano, encena em 1955 para a Companhia Maria Della Costa a primeira peça de Brecht montada profissionalmente no Brasil, A alma Boa de Set-Suan. Gianni Ratto, renomado cenógrafo do Piccolo Teatro di Milano, chega em 1954, também para a Companhia Maria DeIla Costa, passando a desenvolver simultaneamente o papel de diretor e de cenógrafo, em anos subsequentes, para o TBC. Alberto d’Aversa também permaneceu longo tempo entre nós, assinando uma coluna de critica teatral no extinto Diário de São Paulo. Os encenadores que vieram para o TBC, em sua maioria, haviam sido alunos da Academia de Arte Dramática de Roma, escola fundada por Silvio d’Amico que, funcionando em paralelo à de cinema, foi a grande responsável pela eclosão do neorrealismo italiano, que tanto vai influenciar importantes segmentos da cinematografia e da teatralidade em vários países. Mas foi pela via cênica que o novo estilo penetrou no Brasil. Se nos palcos ele não pôde desenvolver algumas de suas características principais, tais como usar atores anônimos e cenas exteriores, ajudou a refinar uma técnica de representação e de visualidade colada aos padrões do verismo e do realismo, como eram então professadas. Num aparente paradoxo, foram diretores formados nessa nova mentalidade artística que ajudaram a construir o teatro burguês no Brasil. Se no nível do repertório as produções enfileiram-se naqueles aludidos patamares, é inegável que o tratamento cênico dispensado às encenações guardava as marcas de uma escritura cênica ágil, ritmada, emocionante, verossímil, criando o ficcionalmente verdadeiro, imprescindível para comover uma platéia que, realista em economia, via-se altruísta em seu espírito. Tal dicotomia, apenas vislumbrada até este momento histórico, é que fará o próprio projeto do TBC esboroar-se do ponto de vista ideológico, deixando os flancos abertos para outras realizações, mais altruístas em economia e mais realistas em seus métodos de ação. De fato, essa guinada virá com o Teatro de Arena que, em 1953, apresentou-se no TBC como um curioso grupo de vanguarda.
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CAPÍTULO 2 EM CENA O ARENA: REALISMO E POLÍTICA NOS ANOS 50
A primeira menção a um teatro em forma de arena a surgir na crônica teatral brasileira ocorre em 1951, numa tese subscrita por Décio de Almeida Prado, Geraldo Mateus e José Renato Pécora encaminhada ao 1° Congresso Brasileiro de Teatro, realizado no Rio de Janeiro, por iniciativa da Associação Brasileira de Críticos Teatrais. O primeiro signatário, além de crítico do jornal O Estado de São Paulo, era também professor da EAD-Escola de Arte Dramática, sendo os outros dois formandos daquela instituição. O documento reportava a primeira montagem realizada em arena de Demorado Adeus, de Tennessee Williams, exame de conclusão de curso de José Renato, em 1951.15 Entre outras afirmações, destacava-se ali a “solução” encontrada para uma crise formal que vinha acometendo a Europa e Estados Unidos, em busca de maior disseminação da atividade teatral.16 Num trecho do documento pode-se ler:
15. Apud Dória, Gustavo A. Moderno Teatro Brasileiro, Rio de Janeiro, SNT/MEC, 1975, p. 160. Décio de Almeida Prado estivera nos Estados Unidos em 1941, fazendo cursos na Universidade da Carolina do Norte, onde travou conhecimento com as grandes renovações da cena norte-americana. 16. Entre as duas Guerras, recrudescem na Europa e nos EUA as discussões em torno do teatro popular e a concorrência que lhe oferece os meios de comunicação de massa (especialmente o cinema). Margo Jones, jovem entusiasta do encontro de uma saída economicamente viável para o teatro americano, desenvolve uma campanha nacional com o objetivo de instalar teatros de arena em todas as cidades com mais de 100 mil habitantes. Sua atuação obteve ressonância internacional e se encontra registrada em Jones, Margo, Theatre-in-the-Round, New York, Reinhardt & Company Inc., 1951. Foi a esta edição que Décio teve acesso, repassando-a aos alunos. Em 1954 é fundado em Paris o Théàtre en Rond, iniciativa de André Villiers, cujo livro, La Scéne Centrale, Paris, Klincksieck, 1977, oferece a mais bela reflexão estética sobre a prática de teatro em arena.
“Gilmor Brown e Margo Jones tiveram sua atenção voltada para uma série de espetáculos realizados na Rússia, com peças de Górki, e por algumas publicações de Kenneth MacGowan e Robert Edmond Jones. Em 1936 em Pasadena, na Califórnia, Brown, depois de ter apreciado várias tentativas de uma nova modalidade teatral, um estilo de representação diferente que chamamos teatro de arena, resolveu adaptar uma sala especialmente para tal fim, para este novo gênero que surgia (the playbox)”.17 O aspecto financeiro foi destacado, advertindo os autores para o baixo custo de manutenção ali implicado: “Gastaram os alunos da Escola de Arte Dramática aproximadamente 400 cruzeiros, incluindo o aluguel de todo o material elétrico e um ou outro acessório que passou para o patrimônio da Escola. Uma peça do mesmo Tennessee Williams, Lembranças de Berta, idêntica a Demorado Adeus, foi montada no Teatro Brasileiro de Comédia (teatro normal, portanto), ao custo de mais ou menos 4.000 cruzeiros”.18 E foram exatamente tais trunfos - a nova forma cênica e o baixo custo - que serviram de estímulo para aqueles jovens idealizarem a criação de um novo grupo teatral. Incompatibilizados com o teatrão preconizado pelo TBC, alguns formandos criam a Companhia Teatro de Arena de São Paulo. Sem sede fixa, mas animados com as novas perspectivas descortinadas dentro da prática teatral, o primeiro espetáculo é apresentado a 11 de abril de 1953 no Museu de Arte de São Paulo, ainda sediado à Rua 7 de Abril, no centro da capital: Esta Noite é Nossa, de Stafford Dickens, sob a direção de José Renato. Constam do repertório, ainda neste primeiro ano, a remontagem de Demorado Adeus e Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, esta sob a direção de Sergio Britto. Com o propósito de levar teatro onde fosse possível encontrar público, deslocou-se a jovem companhia do Museu para uma fábrica (Fiação Textila), dois clubes, o Círculo Israelita e o Clube XV (em Santos), além do Colégio Estadual Presidente Roosevelt, precedida por uma palestra de Décio de Almeida Prado sobre o que era teatro em arena.
17. In Anhembi, ano I, n° 10, 1951, p. 143. 18. Idem, ibidem.
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O ideário da companhia era animado pelo propósito de levar espetáculos onde o público se encontrasse, ao invés de esperar que ele se deslocasse para o centro, apresentar uma forma cênica revolucionária - a da arena - que possibilitava montar um espetáculo com poucos recursos de infraestrutura, mediante a adaptação pouco dispendiosa de uma sala, além, é claro, de introduzir uma rotação copernicana na relação palco/plateia. Certamente nem todas essas implicações foram percebidas de imediato pelos jovens integrantes da companhia, como evidencia sua titubeante carreira inicial. Ruggero Jacobbi já assinalara, em artigo jornalístico de 1953, que o teatro se encontrava numa saudade profunda dos tempos em que se processava como um ritual, algo entre “a cerimônia religiosa e a competição esportiva”, lamentando o fato de ele ter perdido “o contato com o verdadeiro povo e se acostumou a reconhecer como única coletividade o grupinho social ou cultural a que pertence”. Para o articulista, é nesse processo que se explica a retomada do teatro circular: “nasce assim o paradoxo do teatro de arena, que pertence ao mesmo tempo à tradição dos teatrinhos íntimos, para iniciados, e às grandes tentativas da dramaturgia contemporânea, a fim de abolir as barreiras entre o palco e público”.19 Com profética intuição, Jacobbi salientou o eixo das contradições que a jovem companhia então enfrentava e que, como se verá, acompanharão todo seu processo de desenvolvimento. Naquele instante, contudo, as preocupações eram bem imediatas. Deslumbrados com a descoberta da forma nova, as implicações estético-ideológicas circunscreviam alturas mais modestas, centrando em cima do ator o espectro maior das preocupações. Este passou a ser o centro da procura de uma nova técnica de representação. O long-shot do teatro à italiana deveria ser substituído pelo close, os grandes gestos e máscaras exageradas dos atores das décadas de 1930 e 1940, por gesticulação miúda e um delineamento interpretativo mais intimista, onde o detalhe e o pormenor sobrepunham-se ao largo e ao eloquente, a multivisão da platéia obrigando o ator a representar continuamente e em eixo, uma vez que, como um objeto cubista, era percebido simultaneamente no todo e nas partes. Isto obrigava a uma representação mais psicodramática que espetacular, introduzindo um desempenho circular em torno de um eixo que abarcasse ao mesmo tempo os 360 graus da sala. Tais proposições e procedimentos se encontravam em sintonia com certo clima de experi-
19. Jacobbi, Ruggero. A Expressão Dramática, Rio de Janeiro, MEC-INL, 1956, p. 134.
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mentalismo solto no ar. Tratava-se, afinal, de implantar um formato absolutamente novo não só dentro da relação palco/plateia tradicional como, em modo mais amplo, forçar o hábito do público, condicionado a uma leitura da esquerda para a direita, ao espetáculo frontal (teatro e cinema), isolado num escuro ensimesmado, a admitir a visão da platéia oposta, agora desnudada, passando da contemplação de uma caixa de surpresas, coisa que a circularidade rompia, para um maior envolvimento com a ação e o espaço. Esta nova cena deve ser percebida como a captação de um espírito experimental que estava no ar, compartilhando as inovações que vão se instaurado junto a outras pesquisas de linguagem: na arquitetura, Niemeyer e Lúcio Costa fazem linhas ondulantes adquirirem a materialidade do aço e do concreto, inicialmente na Pampulha e depois em Brasília; na poesia, o grupo noigandres lança a poesia concreta, privilegiando as palavras em si, o espaço da folha de papel, a abolição da sintaxe, das rimas e do lirismo convencionalmente associado ao poema; na música erudita brotam sonoridades atonais, logo organizadas em torno da “música nova” e, junto à canção popular, uma renovação do samba sincopava nos acordes da bossa nova. Também no cinema uma inquietação crescente fermentava, através de realizações que muito em breve serão conhecidas como cinema-novo. Fora do eixo Rio-São Paulo, é Porto Alegre a cidade que registra maior número de grupos e produção teatral nos anos 1940 e 1950. O Teatro do Estudante, fundado em 1941, passa por uma reformulação dez anos após, cedendo às pressões do tempo. E elas se consolidarão com o aparecimento do Teatro Universitário, em 1955, cujas experiências em torno de poemas e textos mais densos despertam os gaúchos para novas possibilidades expressivas sobre os palcos. Intensificadas após o surgimento do Clube de Teatro, em funcionamento desde 1954, outra agremiação estudantil orientada para uma cena mais inquieta e desafiadora das convenções, em oposição à praxe dos demais, numerosos e ativos grupos locais. Mas será após 1958, com a abertura do Curso de Arte Dramática da UFRGS, que o movimento sulista vai conhecer um verdadeiro salto qualitativo. Teatro de atores, o Arena dispensou desde seu nascimento o estatuto de uma diretoria, animado com as possibilidades oferecidas pelo teatro móvel que conquistaria assim o seu público, alargando a faixa de mercado. A forma cooperativada, isto é, a repartição dos lucros da bilheteria sem salários fixos, foi uma norma assumida desde a fundação. Dentro de um mercado empregatício deveras limitado (havia o TBC com elencos está-
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veis, além de outras poucas empresas dele originadas), pensava o Arena ser uma opção de carreira válida para os novos formados pela EAD. Além do mais, como companhia jovem, mantinha contatos estreitos com os amadores de então, articulados num movimento bastante organizado e ofertando bom nível de realizações. Da fábrica ao clube, o mesmo espetáculo percorria um circuito de espectadores ainda não determinado, tomando-se por público a plateia concentrada na sala onde a apresentação ocorria. O conceito de classe social não entrara ainda no rol das preocupações, quer na determinação de seu espectador preferencial, quer na escolha do repertório. Buscava-se uma modernidade, sem que fosse especificado o que ela exatamente poderia ser. E foi essa a primeira contradição percebida: a nova interação imposta pela relação palco/plateia. Aquilo que fora inspirado na experiência norte-americana cedo demonstrou alguns descompassos, tornando necessária uma saída. As experiências russas descritas na base dos estímulos que levaram Brown e Jones a criarem a play-box nos campi universitários americanos na década de 1930 sofreram, certamente, um processo de assepsia que nem mesmo o New Deal conseguiu absorver: o formato em arena utilizado para espetáculos como A Mãe e Otelo, dirigidas por N. Oklapov, discípulo de Meyerhold, em seu Teatro Realista na Rússia de 1930, ou Leopold Jessner, ao criar sua Jessnertreppen, para colocar em cena Hamlet, Otelo e Ricardo III, na Alemanha, almejava sim um novo modo na relação entre a cena e o público. Mas ele era inovador porque propunha uma interação de cunho participativo, um environment crescente que projetava o teatro para a dimensão épica do circo, do tribunal, da feira, do comício, do espetáculo esportivo, formatos marcados pela dessacralização e pelo jogo. Um teatro de agitação e não de apaziguamento, de confronto e não de individuação, de classe e não de público. Não eram essas exatamente as expectativas de Tennessee Williams. A play-box americana surgira de um conúbio entre o teatro intimo expressionista alemão e a má assimilação do sistema de Stanislávski, o que acabou gerando o estilo interpretativo desenvolvido pelo Actor’s Studio de Lee Strasberg ou a escola de Stella Addler. Um estilo intimista mais ligado às necessidades da indústria cinematográfica (pequeno ângulo da câmara) e do guild theater realista-psicológico (teatros íntimos, pequenos grupos artísticos) - formato que Williams soube explorar como poucos dramaturgos o fizeram - e que parece ter servido de referência a Ruggero Jacobbi em seu aludido texto, ao
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afirmar ser esta cena “o anseio sociológico de um mundo reduzido à solidão, preso à Babel do individualismo”. 20 Mesmo sem perceber todas essas implicações na relação palco/plateia advindas das experiências estrangeiras, José Renato procurava uma modernidade, um não sei quê que faltava e que o texto de Williams não alcançava. Sua intuição guiou-o para Uma Mulher e Três Palhaços, de Marcel Achard. A encenação marca uma nova etapa para o grupo: a descoberta do poético mundo do circo e a aquisição de uma sala de espetáculos. Do ponto de vista organizativo, essa nova fase, iniciada com a aquisição da sede em 1956, provocou algumas modificações importantes nos rumos até aqui observados. A Companhia transforma-se em Sociedade, o que quer dizer a existência de uma associação que compra os ingressos antecipadamente, garantindo, ao menos precariamente, a manutenção da empreitada. O procedimento fora copiado do TBC, que também se estruturara através de uma iniciativa semelhante. Com a fixação em um território, uma importante meta - ir ao encontro do público – passa a ser relegada a plano secundário, sendo visíveis os esforços na concentração de recursos que permitissem viabilizar a existência da empreitada. O deslumbramento com o novo formato e público novo foi se pulverizando aos poucos, e o repertório que se segue indica uma procura de textos mais afinados com o realismo-psicológico. O saldo do primeiro ano de atividades na sede própria não deixa de ensejar considerações: a ênfase no tema do próprio teatro, por exemplo, que perpassa Uma Mulher e Três Palhaços e Escrever sobre Mulheres, culminando na metalinguagem de Pirandello, agudo ao surpreender o teatral subjacente ao cotidiano, enfatizando o que existe de representação naquilo que é habitual; sendo possível dizer o mesmo de Williams, ao menos naquilo que destaca como poeticamente teatral em seus textos. A ênfase dispensada ao psicologismo – uma vida perpassada pelas reverberações anímicas e pelos “estados d’alma” - climas e situações fortemente subjetivados, se por um lado dirigia o repertório para as necessidades do formato em arena, por outro era caro à sensibilidade e ao gosto de José Renato e seus companheiros, às voltas com suas afirmações pessoais enquanto projetos de vida artística e humana. Tal singeleza existencial, associada a uma busca de “bom gosto” artístico (padrão que tinha origem em Londres ou Paris) não afastava mui-
20. Idem, ibidem.
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to o Arena de ser um simulacro do TBC, um avanço experimental expressivo para abrigar os mesmos epistemas estéticos que norteavam a companhia fundada por Franco Zampari. Às voltas com a estabilização do empreendimento, não só enquanto formação interna como também em busca de uma afirmação artística e cultural, nota-se neste primeiro ano de atividades o empenho da profissionalização do projeto e uma busca consciente de consolidação, esforços estes satisfatoriamente atingidos, a se acreditar nas afirmações da imprensa que arrolou o Teatro de Arena, junto ao TBC, o TMDC e o Bela Vista, como as únicas companhias estáveis economicamente em São Paulo ao final da década de 1950. Com a sede foi possível desenvolver uma atividade sedentária que incluía a utilização do espaço para outras manifestações. Surge, assim, o Teatro das Segundas-Feiras que, a exemplo da experiência levada a efeito no Teatro Íntimo Nicette Bruno, oferecia oportunidade para alguns experimentos cênicos e o lançamento de novos. Surgem exposições de artes plásticas e, paralelamente, o teatro se abre para a música, criando uma tradição de shows que, posteriormente, irá se refinar e integrar a própria linguagem do Arena. A experiência com a “cooperativa” vai sofrendo adequações, o que leva José Renato a declarar: “Em dois anos a companhia atravessou reformulações administrativas e de pessoal praticamente depois de cada espetáculo. Havia uma célula básica de sustentação que garantia a continuidade ideológica do projeto. Mas, ainda assim, o desejo de conservar um grupo unido e um elenco permanente para todas as produções tornou-se inviável”.21 Se por um lado o projeto atravessa um modo de fechamento em relação às propostas inaugurais, por outro evidencia uma abertura, ao intensificar contatos com outros conjuntos, basicamente amadores, especialmente o Teatro Paulista do Estudante, que passa a usar as segundas-feiras para apresentar suas criações. Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Flávio Migliaccio, originários do TPE, aos poucos começam a circular mais assiduamente pelo Arena, promovendo uma aproximação entre os
21. Apud Lima, Mariângela Alves de. “História das ideias”, in Dionysos, n° 24, Rio de Janeiro, SNT/ MEC, outubro de 1978.
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dois grupos que, em pouco tempo, resultará numa fusão, ou melhor, acomodação de integrantes através de um acordo firmado entre as partes . O acordo previu, em seis itens, que: “o TPE fundirá o seu elenco ao Teatro de Arena, passando a atuar sob a denominação ‘Elenco Permanente do Teatro de Arena’”; “O TPE será responsável pela programação e realização de cursos, conferências, debates, cuja efetuação consistirá o trabalho de difusão teórica dos problemas do teatro”; “serão montadas pelo Elenco Permanente, duas ou mais peças, o que garantirá a atividade da casa de espetáculos, como a representação em fábricas, escolas, clubes, etc.”; ambos os grupos “não perderão suas autonomias administrativas”; “o Elenco Permanente ficará sob a direção do sr. José Renato, que será também o Diretor Artístico do TPE” e “as entidades que subscrevem o presente acordo o fazem no firme propósito de batalhar pelo incremento do teatro nacional”.22 Originado do meio estudantil mais consciente da época, o TPE reunia vários integrantes decididamente empenhados nas lutas políticas, não escondendo suas ligações com o PCB.23 Em seus poucos anos de existência conseguira aglutinar um elenco bastante elogiado, onde se destacavam Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Vera Gertel, que logo estréiam no Arena. Guarnieri, em 1955, vence o 1° Festival de Teatro Amador, ganhando o prêmio Arlequim como o melhor ator do certame pela sua interpretação em Está lá fora o Inspetor, de J.B. Priestley. Os contatos com Carla Civelli, diretora do grupo, e Ruggero Jacobbi, encenador e seu marido, em muito haviam auxiliado o grupo estudantil, fundado na FFLCH-USP, a adquirir uma visão sociopolítica e cultural mais profunda a respeito da função do teatro.24
22. Idem, ibidem. 23. Oduvaldo Vianna e Deocélia Vianna, autores de teatro, rádio e tv, participavam do Partido Comunista Brasileiro e de diversas agremiações por ele controladas. Oduvaldo Vianna Filho, filho do casal, um dos fundadores do TPE, estabelecia a ponte entre núcleos comunistas instalados nas comunicações de massa, no meio estudantil e no teatro. Maiores informações in Vianna, Deocélia. Companheiros de Viagem. São Paulo. Brasiliense: 1984. 24. Ruggero Jacobbi foi um dos fundadores do TPE, constando na ata de sua fundação como o presidente da reunião. Sua forte ascendência sobre a equipe pode ser verificada no depoimento de Guarnieri, Gianfancesco. Depoimentos V, Rio de Janeiro, MEC/SEC/SNT, 1976, p. 69.
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Em 1957 o TPE enviara uma tese para o IIº Festival de Teatro Amador, realizado em São Paulo, destacando a necessidade de o teatro assumir um papel mais ativo na conjuntura cultural, afirmando que: “os problemas da cultura não vivem independentemente dos problemas políticos e econômicos. Um povo entorpecido é um povo que na passividade se entrega à rapina e à escravidão. Um povo entorpecido é o que não ama, não quer, não luta. E a cultura destinada a entorpecer um povo é aquela que se desliga desse mesmo povo, que se desvencilha de seus sentimentos, paixões e aspirações, a que foge dele, é a que se abstraindo do humano, deturpa e entorpece.”25 É possível aqui se entrever algumas preocupações que tomam lugar central no ideário do núcleo tepeísta fundido ao Arena: a ideia humanista de que a emoção é um elemento basal para alicerçar a luta, o querer, assim como a necessidade de uma arte desentorpecida, além de propor uma função para a arte, identificada como instrumento de conscientização. Tal ideário, com o tempo, tornar-se-á melhor explicitado na práxis do Arena. A associação com o TPE, agora tornada prática - assim como a definição de teatro popular levantada com a encenação de Escola de Maridos - suscita novas indagações para com o destinatário do espetáculo: o público. Na ocasião, surge também o núcleo volante, incumbido de excursionar com os espetáculos, pois, ainda funcionando como companhia de repertório, tentava-se contornar o sedentarismo imposto pela fixação na casa de espetáculos. Todas estas questões estavam no ar, à procura de respostas e José Renato, ocupado com um emprego na televisão, decide convocar outro diretor para com ele dividir os encargos com o Arena. Indicado por Sábato Magaldi será ele Augusto Boal, recém-chegado dos Estados Unidos, onde seguira cursos de dramaturgia e direção e fora aluno, entre outros, de John Gassner, Milton Smith e Ernest Brenner na Columbia University. Suas camisas de um xadrez excessivo provocaram no grupo certa reação ostensiva, porém, simultaneamente, um encantamento com as novidades que ele trazia debaixo do braço: o play-wrighting e o sistema de Stanislávski.
25. “O Teatro Amador na Defesa de Nossas Tradições Culturais”, tese do TPE apresentada ao II Festival de Teatro Amador de São Paulo, in Revista do Teatro Amador, ano II, n° 6, janeiro de 1956. O texto é de Gianfrancesco Guarnieri.
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Ratos e Homens, de John Steinbeck, em 1956, é a primeira bem sucedida realização conduzida pelo jovem diretor com o elenco, evidenciando segurança e um à vontade em lidar com o realismo e o psicologismo. Porém, como destacou Miroel Silveira, “a qualidade da encenação de Augusto Boal, bem como a importância literária, teatral e humana de Steinbeck, não eliminam o fato de não ser Ratos e Homens uma peça indicada para arena.”26 Outra coisa não fez o crítico que salientar as contradições presentes na play-box: a conciliação entre o realismo fotográfico almejado e o espaço cênico abstratizante empregado. Isto é, como tornar verossímil uma interpretação e uma narrativa cênica tão posta a nu pela proximidade excessiva, a todo o momento revelando seu caráter de representação, com a desejável empatia e instalação da personagem dentro de um espaço cênico que estabelecesse as dimensões, tessituras e características sociais trazidas com o espaço, de modo a torná-la concretamente histórica? O realismo, como estilo e forma, mesmo sofrendo injunções que lhe acrescentaram nuances ao longo dos tempos, nunca prescindiu da solução desta ad-equação.27 De qualquer modo, a encenação de Ratos e Homens marca o advento de preocupações sociais explícitas, ainda que referidas a uma realidade estadunidense. A ideia central da peça, segundo o encenador, “é a de que por piores que sejam as circunstâncias sociais em que vive o homem, ele lutará sempre por um mundo melhor. Nesta peça, como na vida, o homem acredita no incrível, desde que o incrível seja belo”.28 É impossível saber, hoje, se tal argumento associando luta e beleza era uma tentativa de “conciliar” o politicamente empenhado, defendido pelos jovens tepeístas, e o esteticismo, caro a José Renato. Tais afirmações de Boal, entrementes, fazem supor uma mais acirrada disputa subjacente à linha programática proposta pelo espetáculo. Já nesta sua primeira encenação o diretor fez uso do que se convencionou chamar de “realismo seletivo”, princípio artístico que, posteriormente, irá
26. Silveira, Miroel. A Outra Crítica. São Paulo, Símbolo, 1976, p. 222. 27. Sobre as implicações e significados do espaço cênico, afirma Denis Bablet: “a cada época, em cada época da história social, corresponde um certo tipo de lugar teatral, definido pela organização precisa do espaço, instituindo uma relação determinada entre sala e cena, uma repartição de público, que não é mais do que o reflexo direto das estruturas e das ideias sociais. A relação sala-cena corresponde à necessidade de uma dramaturgia que contenha suas leis e meios de expressão, evidenciando a maneira como uma sociedade se representa o mundo, constituindo-se o teatro, sobretudo, uma arte visual”, in Le Lieu Théàtrale dans la Societé Moderne, Paris, CNRS, 1971, p. 172. 28. Boal, Augusto. Artigo para o programa do espetáculo.
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se alastrar, como uma justificativa para os recursos de encenação e interpretação empregados: “os detalhes essenciais dão a idéia do todo. A encenação, toda ela, caracteriza-se por um despojamento absoluto, intencional e necessário. Não existem, por exemplo, marcações arbitrariamente bonitas, pois estão todas psicologicamente justificadas. Em teatro de arena, mais talvez do que nos de proscênio, o que tem mais importância são as inter-relações humanas. O que importa mais é a essência de cada cena, o sentido das coisas que são ditas e não tanto a maneira de dizê-las. E isto implica em despojamento, em simplicidade, desde que se compreenda que simplicidade não é sinônimo de pobreza.”29 Dez anos após, ao fazer uma sistematização das etapas evolutivas cumpridas pelo Teatro de Arena, Augusto Boal sugere algumas pistas para o que era prioritário naquele momento. Contra o estrelismo, onde as vedetes eram sempre idênticas a si mesmas, não importando o texto ou a personagem que interpretassem; contra o italianismo do TBC, o estilo correto de pronunciação das frases, o pormenorizado acabamento do espetáculo, o luxo e o apuro indiscriminados a cobrir uma cena a ser degustada, uma evocação de dramas íntimos, de conflitos de alcova, de serenidade olímpica para representar clássicos; a favor da classe média, que havia se misturado à aristocrática plateia do TBC, mas que já estava desfazendo aquele enlace feliz, exigindo outros temas e colocações na problemática do palco: a sua própria imagem e dimensão. Uma plateia que, estilisticamente, preferia atores que “sendo gagos, fossem gagos; que sendo brasileiros falassem português, misturando tu e você” e que, ideologicamente, havia substituído o caipira afrancesado dos atores luxuosos pelos revolucionários-irlandeses-gente-do-Brás. Suas ilações a respeito da dicotomia arena/realismo destacam: “a arena revela sempre o caráter ‘teatral’ de qualquer espetáculo (...); todos os mecanismos do teatro visíveis: refletores, entradas e saídas, rudimentos de cenários; surpreendentemente a arena mostrou ser a melhor forma para o teatro-realidade (...), onde o café servido em
29. Boal, Augusto, “Etapas Evolutivas do Teatro de Arena de São Paulo”, in Teatro do Oprimido, 2° ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
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cena é cheirado pela plateia, o macarrão comido é visto em processo de deglutição; a lágrima ‘furtiva’ expõe seu segredo...”. 30 São observações que remetem mais à adequação de determinadas realidades percebidas a posteriori que preocupações vigentes à época, onde tais dessimetrias existiam, mas não eram tomadas nesse grau de ênfase ou clareza. Seguem-se no repertório, entre outras, duas peças com claros vínculos estabelecidos com o momento político-social: Juno e o Pavão, de Sean O’Casey e Só o Faraó tem Alma, do comediógrafo carioca Silveira Sampaio, a primeira encenada por Boal e a segunda por José Renato. “Juno é a denúncia do conformismo escapista, da indiferença hostil e do egoísmo. Esse é o ponto de vista, o ângulo, em que o autor se colocou e em que nós, diretor e atores, temos que nos colocar. Como enunciado, porém, resulta estático, (...) a trama se move em dois planos, político e familiar. Examinemos Juno e a revolução. De um ponto de vista macroscópico, político, Juno tem ideias reacionárias, que são, no entanto, de um ponto de vista microscópico, familiar, progressistas. Os valores humanos, porém, não esbatem ou anulam os valores políticos e a ira de Juno contra a revolução não a negativiza porque ela existe em função desses mesmos valores humanos. Apenas a perspectiva de Juno é limitada demais para compreendêla, (...) Johnny respira e aceita ideias nacionalistas, mas sem que isso decorra de um pensamento profundo, de uma meditação intima. Suas ideias, se bem que autênticas, decorrem da apreensão no ar das ideias desse específico momento político. Johnny ainda não está maduro para compreender o nacionalismo em toda sua extensão. Não compreende que não é possível ser progressista em política e reacionário em problemas morais. Na encenação procurei transmitir objetiva e simplesmente o conteúdo humano da peça e suas implicações ideológicas. Não hesitei em usar ‘clichês’, quando for mais (sic) (a batida de pé de Benthan na cena do fantasma, por ex.) por acreditar que eles estejam dentro do espírito de O’Casey. De resto insisti em que os atores recriassem e, sem engodo e faz-
30.
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Idem, ibidem.
-de-conta, vivessem realmente os personagens, que já estão vivos e pungentes no próprio texto.”31 O projeto político de Augusto Boal, que com o tempo acaba se transformando no ideário do próprio Arena, está aqui claramente esquadrinhado: tomar a arte como um instrumento de luta e a arena como seu espaço de batalha. À falta de comentários mais eloquentes, é ele próprio quem, no prefácio à edição do texto em 1965, assim o esclarece: “Quando a representamos, em 1957, procurávamos transformá-la em peça de exortação à luta de libertação nacional”.32 Embora retrate a realidade irlandesa e a luta empreendida pelo IRA, a peça é circunscrita aos limites realistas de suas formulações, Juno permanece na dicotomia homem/mundo através de uma interação idealista: limita-se a circunscrever uma psicologia e uma situação, mas não pode ir além enquanto alternativa real. Assemelhada a outra mãe criada pelo mesmo autor (a personagem central de Riders to the Sea), Juno hesita entre a condenação da guerra que lhe mata os filhos e a necessidade de lutar para salvar o país. Tal dicotomia, não resolvida nos dois textos, será retomada na obra de Bertolt Brecht Os Fuzis da Sra. Carrar, montagem efetuada em 1963, que lhe fornece uma alternativa ideológica precisa: ela entrega os fuzis aos revolucionários e com eles parte para o front. O’Casey, oscilando entre um realismo poético enquanto estilo e uma indeterminação ideológica quanto à opção política, repassa às suas personagens dicotomias inconciliáveis, o que lhes garante um travo trágico de extrema beleza e aguda poesia. Tanto para o Arena da época quanto para o público, tal debate ideológico não se apresentava com essa clareza, não se afigurava como necessário. Preso ainda às hesitações internas quanto à eleição de um repertório adequado, bem como um modo de representação que solucionasse as características infraestruturais da arena, Juno e o Pavão viabiliza para o elenco o mais sólido enfrentamento com o método de Stanislávski até então ali levado a efeito. A encenação que se segue, de uma comédia paródica sobre a realidade brasileira, foi defendida pelo grupo com “a mesma sanha e o mesmo prazer
31. Boal, Augusto. “O’Casey e a Verdade”, prefácio à sua tradução de Juno e o Pavão, São Paulo, Brasiliense, 1965. 32. Idem, ibidem.
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com que um revolucionário empunha a sua arma”, a partir de um espetáculo que era “um impacto contra a demagogia, contra o suborno, contra a politicalha (...). Um ataque frontal ao que existe minando as instituições, minando o país, minando o progresso: a política. (...) Sua encenação é nossa contribuição real para colocar o teatro na 1º linha -vanguarda - dos que combatem em defesa dos seus direitos e do bem comum”; para sintetizar os principais móveis que orientaram José Renato quanto à condução de Só o Faraó Tem Alma.33 Ao transportar para um Egito imaginário de hilariantes relações sociais, em tudo idênticas aos dias de então, Silveira Sampaio almejou, empregando como recurso uma situação cômica algo rocambolesca, descrever a trajetória de um demagogo, para tanto tomando um maestro de coro que não hesita em deixar a oposição mediante a possibilidade dele também usufruir as benesses da “alma”, privilégio das classes dominantes. O refrão entoado pela plebe (“nós queremos alma”) aludia a um episódio da política do momento conhecido como “queremismo”. O reconhecimento, pelos espectadores, de personagens e situações que desfilavam diariamente nos jornais, transformou o espetáculo num sucesso popular, debochado e irreverente. Contudo, tanto do ponto de vista econômico quanto político, as coisas não iam bem. Muitas discussões e dissensões internas faziam o grupo cindir-se em duas correntes bem delineadas: os jovens originários do TPE tinham a intenção de cada vez mais aprofundar as pesquisas e realizações em torno do teatro político e os mais velhos, que vinham da época da fundação, resistiam a enveredar por essa trilha. Diante desse conflito aparentemente insolúvel, e quando tudo parecia acabado para a companhia, os jovens optam por fazer uma paródia dos antigos sucessos do Arena, por pura brincadeira teatral, resolvendo a seguir fechar o teatro com a montagem de uma peça escrita por Gianfrancesco Guarnieri, à época o principal ator da companhia. O texto gravitava em torno de uma greve, destacando as dúvidas da personagem central entre a participação política e o amor de Maria. Chamava-se O Cruzeiro lá no Alto, romântica evocação ao cenário que servia para abrigar os favelados. Na encenação de José Renato, o texto estreia a 22 de fevereiro de 1958, rebatizado como Eles Não Usam Black-Tie, alusão irônica e direta ao repertório que ocupava o TBC e sua engalanada elite, que desta vez não estava em cena. Nem na plateia.
33. Renato, José. Artigo para o programa do espetáculo.
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Para espanto geral, mas principalmente para os componentes do grupo, a peça transforma-se no maior sucesso já encenado no teatro desde sua abertura, permanecendo até o final do ano em cartaz. Pelas suas características, o evento marca um fio divisório claro na história do grupo – e, como se verá, também do teatro brasileiro. O sucesso fulminante reconduz as discussões internas para as motivações subjacentes a Black-Tie, indicando caminhos novos não só do ponto de vista estético como também políticos. Em função desse sucesso que aludia à realidade nacional, decide-se abrir um Seminário de Dramaturgia, o que ocorre em 10 de abril de 1958, congregando as discussões estéticas que se processavam no período para examinar textos produzidos pelos membros do grupo e outros especialmente convidados. Sob a coordenação geral de Augusto Boal, participam do Seminário (que durou quase dois anos, com reuniões semanais) Gianfrancesco Guarnieri, Flávio Migliaccio, Nelson Xavier, Oduvaldo Vianna Filho, Vera Gertel, Chico de Assis, Milton Gonçalves, José Renato, tendo como convidados Zulmira Ribeiro Tavares, Sábato Magaldi, Maria Thereza Vargas, Roberto Freyre, Roberto Santos e Beatriz Segall, que formaram o bloco mais assíduo, dentre outros eventuais, como o folclorista Barbosa Lessa e os dramaturgos Jorge Andrade e Álvaro Moreyra. Enquanto estrutura de funcionamento, o Seminário foi dividido no seguinte esquema: I –Prática: a) Técnica de Dramaturgia; b) Análise e debate de peças; II –Teórica: a) Problemas estéticos do teatro; b) características e tendências do teatro moderno brasileiro; c) estudo da realidade artística e social brasileira; d) Entrevistas, debates e conferências com personalidades do teatro brasileiro; III-Burocrática: a) Seleção e encaminhamento das peças inscritas nos seminários; b) Divulgação de teses e resumos dos debates. Estava dada a largada.
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CAPÍTULO 3 UM TEATRO DE CLASSE NO PACTO POPULISTA
Eles Não Usam Black Tie constituiu-se em realização carregada de novas significações. O primeiro aspecto que, indiscutivelmente, chamou a atenção geral e despertou viva polêmica foi o tema: era a estreia do operário brasileiro como protagonista de uma peça teatral, a surgir não como figura original, folclórica, naif ou outras adjetivações que costumavam diluir a característica de classe em meio às apreensões que aparentavam o proletário ao malandro. Como nos sambas de Noel Rosa, onde “o Joaquim é condutor, quase a cara me cai, veja papai, o Joaquim não é doutor”. No Estado Novo, ele havia se tornado o bom trabalhador: “o bonde São Januário leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar, antigamente não tinha juízo”, de Ataulfo Alves. Similares aos pobres criados no ciclo realista socialista de Jorge Amado e José Lins do Rego, os operários de Guarnieri, herdeiros da mesma tradição, chegam à cena habitando não apenas um ambiente próprio – a favela -, como também de uma psicologia, uma ideologia e um conjunto de sentimentos que os confrontam com um problema concretamente classista: a greve. Tião ama Maria, que dele está grávida, e sua grande opção ideológica no entrecho dramático é exatamente escolher entre seu sonho de felicidade pessoal, ao lado da amada, furando a greve e indo buscar o salário que pudesse “comprar” essa felicidade, ou defrontar-se com o pai, o Partido, e os demais companheiros, frustrando-se individualmente em beneficio da causa. Tal é o conflito básico que permeia a peça, sem disfarces ou meios-tons. Sem esconder o tom provocativo (“é possível que vejam no título da peça uma tomada de posição. Pois é uma tomada de posição”), Guarnieri não logrou contornar certa ingenuidade ao caracterizar o cenário humano dos morros cariocas, que adquirem certo ar edênico, certo perfil de so-
ciedade pré-socialista de auxílio mútuo, expressa na oposição geográfica morro x praia; nem foi capaz de aprofundar certas contradições internas àqueles ambientes, que não albergam somente operários, mas uma rica e variada galeria de tipos sociais, quase sempre em oposições entre si bem caracterizadas. A tese marxista tomada ao positivismo de que as circunstâncias geram os indivíduos (Tião não teria uma identificação com a gente do morro porque havia passado a adolescência como pajem de uma casa da cidade) exprime certa ligeireza em suas justificativas, uma vez tratar-se de um drama realista (que beira a fotografia naturalista) e não uma farsa ou comédia de costumes, que permitiriam mais tranquilamente certas generalizações. Imbuído, todavia, pelo conflito central - “uma luta entre duas formas de pensar”34 -, foi sem dúvida essa ideologização que marcou mais profundamente as motivações geradoras do texto. José Renato, diretor do espetáculo, para quem o conflito básico da peça resume-se “ao orgulho”, em busca da melhor narrativa cênica construiu um espetáculo sóbrio e simples, enfatizando as psicologias, pausas e tensões sugeridas pelo original, deixando aos atores a responsabilidade de contaminar o público. Espetáculo de tese, Eles Não Usam Black-Tie viabilizou para o núcleo tepeísta do Arena a base de sua atuação artística: uma descrição realista da realidade dentro de um engajamento de luta ideológica. Estribada sobre os pressupostos básicos do realismo socialista, foi encontrada uma forma estética de plasmar tal ideário. Constituindo-se em obra artística cujos méritos foram imediatamente reconhecidos, foi compensado com um sucesso de público inusitado para o teatrinho da rua Teodoro Bayma. Seus 150 lugares permaneceram lotados durante um ano, um sucesso financeiro extremamente afortunado para uma companhia que pensava fechar as portas. Fruto do amadurecimento cultural e artístico da companhia, a peça de Guarnieri foi o primeiro fruto gerado em meio ao suor derramado sobre o palco, árduas discussões ideológicas varando madrugadas e do estudo sistemático desenvolvido em torno da obra de Stanislávski, contexto que não esgota a obra, mas circunscreve o ambiente de seu nascedouro. O sucesso de Black-Tie abriu as portas do Arena para a dramaturgia nacional, estendendo sua influência ao restante teatro paulista, quer no sentido de redescobrir autores já consagrados, mas raramente representados ou de
34. Guarnieri, Gianfrancesco. Artigo para o programa da peça.
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farejar novos. Assim, o Teatro Popular de Arte de Sandro e Maria Della Costa monta, em 1959, um novo texto de Guarnieri encenado por Flávio Rangel, cuja complexidade não permitia sua adequação à arena. Trata-se de Gimba, Presidente dos Valentes, cuja excursão à Europa para participar do Festival Internacional de Paris do Teatro das Nações, além de apresentações em Roma e no Uruguai, consolidaram o nome do autor em solo pátrio. Gimba também usa o morro como cenário, mas este já não é mais um microcosmo ideológico nem sustenta os valores estéticos alcançados na peça de estreia. Em 1960 um novo texto de Guarnieri sobe à cena, igualmente pelas mãos de Flávio Rangel: A Semente. Para ocupar, dessa feita, a sala e o palco do TBC, numa das mais acaloradas disputas com a Censura que a história do período registra. Proibida de ir à cena, e em face dos graves problemas administrativos e artísticos pelos quais passa a empresa, solidarizam-se autor, diretor e elenco, além de outros integrantes da categoria teatral, que tomam o teatro e nele se instalam em regime de reclusão. Assim, atraída a atenção da opinião pública, e concretizado o plano de tomada de administração da companhia, é vencida a batalha contra a Censura e o pano sobe para o espetáculo.35 A Semente é uma das mais políticas obras do teatro brasileiro: descreve o interior e o funcionamento do Partido Comunista, tomando como tema a preparação e posterior repressão de uma greve operária. Agileu, chefe de uma célula do Partido, é vítima de uma patranha da polícia, que consegue fazê-lo passar como traidor de vários colegas presos, desse modo destruindo-o enquanto líder grevista. Ele é “julgado” na célula
35. Crises financeiras periódicas vinham sacudindo o TBC desde meados dos anos 1950, obrigando Franco Zampari a repensar e reorientar seu empreendimento. Ao entregar a direção artística a Flávio Rangel, o primeiro brasileiro que assumiu a companhia, pensava ele ter encontrado uma alternativa de sobrevivência estética no momento em que requer a falência do empreendimento. Mobilizada pelos seus líderes, a classe artística forma a União Paulista da Classe Teatral, sob a presidência de Cacilda Becker, que acaba conseguindo verbas na Caixa Econômica Estadual através de um Plano Extraordinário de Auxílio ao Teatro Paulista, beneficiando não apenas o TBC como outros conjuntos igualmente em situação de penúria. A ocupação do TBC pelos artistas e técnicos chama a atenção da imprensa e da opinião pública. Gestões do crítico Décio de Almeida Prado e da deputada Dulce Salles Cunha Braga conseguem a liberação de A Semente, interditada pela Censura, possibilitando ao elenco estrear em 27 de abril de 1961, ainda que sob protestos da Igreja Católica e setores sociais contrários a peça de Guarnieri que, pouco depois, conseguem retirá-la de cartaz. Para outros detalhes deste episódio consultar “Surge o TBC”, de Sábato Magaldi e “Antecedentes e História Cotidiana do TBC”, de Maria Lúcia Pereira, ambos in Dionysos, n° 25, SNT-MEC-FUNARTE, 1980. Ver, igualmente, Magaldi, Sábato e Vargas, Maria Thereza, “Cem Anos de Teatro em São Paulo”, jornal O Estado de São Paulo, Suplemento do Centenário, n. 56, 17 de janeiro de 1976.
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e destituído dos quadros do Partido, tendo, ao final, de amargar a solidão pessoal e ideológica. Obra de militância, não deixou rogada uma realidade cada vez mais presente na vida brasileira de então - a atuação do PCB junto às crescentes greves operárias - tema que encontrou em Guarnieri seu mais fiel intérprete cênico. Através de um grande painel dramático, onde se destaca a porta da fábrica, arquetípico cenário de toda greve e as moradias de várias personagens envolvidas na situação, A Semente já foi caracterizada como portadora de “reminiscências da tragédia grega, da religiosidade cristã e da temática marxista, num amálgama bem sucedido que está na própria raiz do homem moderno”, sugerindo a envergadura que abarca enquanto friso de paixões humanas e ideológicas se entrechocando.36 A trilogia formada por Black-Tie, Gimba e A Semente constitui-se num ciclo denso de preocupações com a realidade imediata, no sentido de surpreendê-la, compreendê-la e, igualmente, apontar possíveis desdobramentos. Engajada política e esteticamente, constitui obra pioneira do teatro voltado para a realidade e debruçado sobre ela, não declinando inclusive de portar uma tocha iluminadora de outros rumos para a dramaturgia brasileira. Iniciado em abril de 1958, o Seminário de Dramaturgia começa ativamente a trabalhar e a incentivar a criação de textos sintonizados com as sendas trazidas por Black-Tie. Alguns meses após são aprofundados os estudos sobre Stanislávski, coordenados dentro de uma maior sistematização, ficando assim instaurado o Laboratório de Interpretação, um espaço de estudo prático não só para o elenco permanente da casa como também aberto para outros interessados, inclusive não atores. José Renato parte para a Europa, lá permanecendo oito meses como assistente de direção do Teatro Nacional Popular, iniciativa francesa capitaneada por Jean Vilar com enorme ressonância internacional. Com o afastamento de Guarnieri do elenco permanente, ao final de 1959, para participar da montagem e excursão de Gimba à Europa, Augusto Boal torna-se o centro irradiador das atividades do Arena. A 17 de março de 1959 estreia a primeira peça originada do Seminário: Chapetuba F. C., de Oduvaldo Vianna Filho. Sem dúvida foi esse, e não o texto de Guarnieri, o primeiro produto extraído daquelas longas discussões, sessão de cortes, remontagens, reelaborações, louvores e detrimentos que constituíram a prática do Seminário.
36. É o juízo de Magaldi, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro, Rio de Janeiro, MEC-DACFUNARTE-SNT, s/d .
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Em julho do mesmo ano sobe à cena Gente como a Gente, original que Roberto Freire ali discutira. Apresentada por Boal como “uma visão católica de um problema social”, aguentou apenas dois meses em cartaz. O ano é concluído com a Farsa da Esposa Perfeita, da autora gaúcha Edy Lima. Em meados do ano seguinte havia retornado José Renato de sua estada européia. Impressionado com o trabalho de Jean Vilar à frente do TNP, volta predisposto a repetir, em moldes brasileiros, aquela experiência seminal. Suas declarações à imprensa exalam seu entusiasmo que, para se concretizar, necessitaria de uma total redefinição da companhia. Um novo local, que comportasse 800 espectadores, com palco conversível entre o italiano, a arena e o elizabetano, um repertório que pudesse abarcar grandes clássicos e basicamente formado entre autores nacionais, destacando também o propósito de realizar grandes festivais teatrais, a exemplo daquilo que presenciara em Avignon, em quatro ou cinco grandes capitais, com o fito de atrair um novo público, entre outras renovadas medidas de caráter administrativo. Tais planos jamais se concretizaram. Sem conseguir entusiasmar a companhia em torno das novas ideias – àquela altura inteiramente solidária com as propostas de Boal - e diante de uma realidade financeira não muito feliz, decide José Renato afastar-se do Arena, tentando a sorte no Rio de Janeiro, onde vai procurar envolver a Companhia Dramática Nacional, sob a égide do SNT, a acatar suas proposições. Em setembro de 1959 o Arena promove uma excursão ao Rio de Janeiro, levando três de suas mais bem sucedidas produções nacionalistas: Black-Tie, Chapetuba e Gente como a Gente, ocupando o Teatro da Sociedade de Arte, construído no Shopping Center de Copacabana. Foi esse o segundo teatro de arena surgido no país, iniciando uma série que se repetirá em outros estados, numa evidente influência exercida pelo exemplo paulista. Anos mais tarde, essa sala de espetáculos será rebatizada para Teatro Opinião, sede de outro grupo que em seguida analisaremos. O sucesso alcançado na capital da República motivou a temporada a estender-se pelo ano de 1960, ocasionando uma distância geográfica e temporal em relação à direção de Boal, fermentando contradições acumuladas desde anos pretéritos dentro do Arena que agora, sazonadas pelas circunstâncias, logo irão explodir. Na falta de elenco e de espetáculo para ocupar o teatro, Boal convida o Grupo Oficina para uma colaboração, uma vez que, ao que tudo indicava,
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afinidades várias e necessidades mútuas poderiam ser satisfatoriamente sanadas para ambos os coletivos em torno da produção de Fogo Frio, texto que Benedito Rui Barbosa debatera no Seminário. Estreada a 19 de abril de 1960, a peça dava continuidade ao ciclo nacionalista, deslocando o enfoque agora para a realidade agrária do norte do Paraná, terra de colhedores de café permanentemente ameaçados pelo fogo frio das geadas. José Celso Martinez Corrêa foi assistente de direção nesta empreitada e, logo a seguir, divide com Boal a autoria da adaptação do roteiro cinematográfico de A Engrenagem, de Jean-Paul Sartre, montado a seguir pelo Oficina. Estreia a 15 de setembro Revolução na América do Sul, texto que Augusto Boal escrevera enfeixando as discussões de dois anos de Seminário aberto. Texto polêmico, de decidido contorno épico, foi o primeiro espetáculo montado por José Renato após seu estágio francês, onde pôde aplicar o refinamento de uma narrativa cênica ao mesmo tempo eficaz e enxuta. No texto para o programa, Boal explicita as motivações políticas que o levaram a manifestar-se: “atualmente existe forte tendência para que uma obra seja julgada levando-se demasiado em conta as idéias progressistas ou reacionárias contidas no texto, transformando-se este no único padrão de excelência ou de inferioridade. Procede-se ao julgamento ético, abandonando-se o estético. (...) Grande parcela de nossos dramaturgos preocupa-se com a defesa do operário, do ‘underdog’. (...) Chegamos ao ponto fundamental: ‘revolução’ tem idéia? Imodestamente, consigo pensar que sim. Talvez não consiga verbalizá-la numa fórmula do tipo ‘o crime não compensa’ ou ‘vede como sofrem os fracos oprimidos’. (...) Porque uma peça tão quebradinha, com tantos personagens e tanta cena, e música e canções? Não nego que a peça apresente uma certa anarquia na seleção de seus elementos. (...) O objetivo era escrever uma peça que apresentasse diferentes características da sociedade, diferentes meios sociais e psicologias, sem contudo interligá-los por nenhum enredo que não fosse a simples apresentação de um show por uma equipe circense. (...) Sartre, analisando Brecht, afirmou que pretende, como este, criticar a sociedade na qual vive o homem moderno, expondo os processos pelos quais essa sociedade e este homem se desenvolvem. Mas quer também fazer o especta-
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dor participar integralmente da experiência do homem deste século, porque é ele, espectador, que o vive.”37 Como se verifica, Boal apreendeu em Brecht não apenas um modelo formal, como também uma das mais vivas postulações do dramaturgo alemão, decididamente ancorada na teatralidade, onde o elemento épico salta como cerne. “A grande qualidade da peça de Auguto Boal é que, pela primeira vez, em nosso teatro, todas suas formas e técnicas foram usadas descaradamente e sem medo (digamos assim), para atingir a um efeito desejado: circo, revista, mímica, canções, chanchada, farsa, com um despudor, uma entrega total, que nos faz vislumbrar caminhos até agora impensados e que ansiávamos ver empregados em nosso teatro, para uma nova procura, para uma revisão necessária e total”, destacou o crítico Delmiro Gonçalves sobre a encenação.38 Espetáculo polêmico, como de resto a própria realidade que rapidamente se transformava, sua temporada paulista coincidiu com o auge da campanha eleitoral para a presidência da República, que levaria, no ano seguinte, Jânio Quadros a ocupar o cargo que pertencera a Juscelino Kubitschek, não se eximindo de colocar em cena as maquinações de toda ordem vigentes no jogo sucessório então armado. Assim como Black Tie se constituíra num divisor de águas, inaugurando a fase nacionalista no Arena, Revolução pode, em igual medida, separar esta fase daquela iniciada a seguir, pelo conjunto de práticas envolvidas, onde um novo tipo de engajamento artístico pode ser surpreendido. O grupo amplia suas excursões, atingindo não somente o interior de São Paulo como outras capitais, especialmente cidades do Nordeste brasileiro, inaugurando uma itinerância teatral que se coaduna com a militância política e artística. Boal voltará ainda a dirigir mais dois espetáculos nascidos no Seminário; contudo, quer para ele quer para o resto da companhia, o novo objetivo era alardear a Revolução aos quatro cantos.
37. Boal, Augusto. Artigo para o programa do espetáculo. 38. Gonçalves, Delmiro. “A Peça do Teatro de Arena”, crítica do espetáculo in O Estado de São Paulo, 25 de setembro de 1960.
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Pintado de Alegre, que Flávio Migliaccio escreve e onde atua como protagonista, estréia a 23 de janeiro de 1961. O espetáculo seguinte, O Testamento do Cangaceiro, de Chico de Assis, se inicia a 7 de julho. Visto em conjunto, o Seminário de Dramaturgia implantou inúmeras conquistas dentro do fazer teatral brasileiro, uma iniciativa pioneira de interação entre dramaturgia e interpretação, na consolidação de um projeto artístico cujas ressonâncias, tanto do ponto de vista estético como organizacional e ideológico, ensejaram um movimento de âmbito nacional que foi contribuindo para fixar, paulatinamente, as bases expressivas da cena brasileira. É preciso notar que o Arena foi forjando, no correr do processo aqui observado, um projeto que, articuladamente, evoluiu em seus formatos e adaptou-se à realidade de maneira a buscar o necessário equilíbrio entre as expressividades estéticas que lhe eram inerentes e as táticas e estratégias de ação política. Até o momento é possível separar dois grandes movimentos nesta trajetória: o da fundação até a chegada de Augusto Boal e desta até o final do Seminário. Uma, que corresponde à descoberta de uma forma nova, a arena, concentrou a ênfase de suas preocupações nas soluções estruturais e técnicas que o espaço apresentava, tentando buscar uma narrativa compreensível e autônoma, ensaiando aqui e ali proposições mais ousadas que pudessem dar conta da tarefa. É compreensível. Se José Renato conhecia bem as teorizações de Margo Jones sobre o “theater in the round”, defrontava-se, todavia, com os problemas inerentes à ausência de uma prática e uma tradição criada em torno do novo formato; situações que, no fundo, são também as da autora americana ao escrever seu livro, ainda ensaiando soluções e propostas. O formato, se não era novo dentro da arquitetura própria aos espetáculos, era novo em relação ao momento em que estava sendo retomado, distante e infinitamente mais complexo, em vários planos, de qualquer período anterior. No Brasil, tal ineditismo era efetivamente experimental. Mediado entre uma tradição advinha de um teatro semi ambulante, estética e materialmente pobre, e formado dentro da estética refinada do TBC, auge artístico nacional do “teatro à italiana”, buscava José Renato uma remodelação total dos padrões vigentes em seu tempo. Seu trânsito por um repertório ameno, nesse sentido, o que o aproxima de um TBC reduzido de luxo e ostentação, e suas reiteradas abordagens perseguindo uma metalinguagem no nível dos textos, são indícios de uma propedêutica cênica em gestação, num processo onde a busca de soluções centrava-se sobre o projeto da arena, isto é, onde se imbricam os vetores gerados pela interpretação,
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cenografia, disposição dos atores, iluminação, tom, narrativa, jogo de forças dramáticas e outros problemas afins que mobilizavam o grupo ou, melhor dizendo, a busca mesma de constituição deste grupo, ainda não coeso, ainda não dominando os meios expressivos. Sem uma estética não poderia ser perseguida uma ética: primeiro era necessário inventar um como dizer; depois selecionar o público a quem dizer. É nesse sentido que começam a se evidenciar, com ênfase após a chegada de Augusto Boal, as primeiras soluções: o encontro de um play-wrighting adequado e de um acting rules abre campo para as preocupações com o público, introduzindo distinções éticas em modo mais evidente. A nuclearização do grupo galvaniza-se em torno de Boal (John Herbert, Floramy Pinheiro, Sérgio Britto, Fábio Cardoso, Eva Wilma entre outros da primeira geração são pouco a pouco preteridos, em função dos jovens tepeístas) e, se também ele é um neófito da narrativa em arena, apoiava-se, entrementes, numa sólida formação intelectual e estética para engendrar uma direção ética, razão pela qual já não se fala tanto na arena mas no Arena. Tal índice sugere ter sido encontrada uma saída para a forma, uma busca de novos modelos de comunicação e preocupação com aqueles olhares curiosos que se amontoavam circularmente para presenciar a cena. Do ponto de vista das conquistas auferidas enquanto linguagem cênica, é possível surpreender na primeira fase uma inclinação para textos diluídores da vanguarda internacional, se excetuarmos os dois textos de Pirandello. Formado pela EAD, respirando o ar culturalista emanado nos corredores do TBC, fundador do primeiro teatro em arena do Brasil, José Renato tinha os sentidos despertos para o up-to-date internacional, mesmo com as poucas excursões estrangeiras que nos visitavam. Ainda que em 1954, por ocasião do 4º Centenário da Cidade, o Teatro Municipal tivesse albergado o Piccolo Teatro di Milano, sob o comando de Giorgio Strehler e, em 1957, nos visitasse o TNP com seu repertório de renovação dos clássicos, São Paulo era uma cidade do 3º Mundo perdida na América do Sul, ocasional ponto de parada de uma ou outra companhia estrangeira de importância. Oscilando entre o psicologismo de Williams, o poético impressionista de Achard ou a açucarada Escrever Sobre Mulheres, de sua própria lavra, buscava José Renato, dentre esta multiplicidade de estilos, sintagmas narrativos que pudessem dotar a arena de uma linguagem. Linguagem que, não encontrada junto a um repertório, foi buscada junto ao desempenho dos atores. Seus esforços em adaptar o estilo do TBC aos recursos da arena, usando intérpretes pouco preparados sequer na linguagem tradicional,
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constituíram tentativas que permaneceram a meio caminho. Somente com a chegada de Boal e do método de Stanislávski, utilizado a partir de Ratos e Homens, foi possível descobrir-se o tom e o estilo requeridos pela narrativa na play-box: o realismo fotográfico. Se, de um lado, era necessária uma dramaturgia adaptada aos recursos do espaço, por outro demandava ele uma interpretação que o efetivasse inteira e adequadamente. Assim, não foram outras as intenções do Seminário de Dramaturgia e do Laboratório de Interpretação, senão dotar o grupo de uma linguagem ou descobrir uma língua para uma fala. Somados os esforços coletivos provenientes dos atores, diretores e do cenógrafo Flávio Império, que executou todas as cenografias dos textos do Seminário, buscava-se a plenitude de uma expressividade desenvolta e altamente comunicativa. “Primeiro: a forma envergonhada procurava fazer-se passar por palco convencional, mostrando estruturas de portas e janelas. Como imagem, arena era apenas um palco pobre. Segundo: a arena toma consciência de ser uma forma autônoma e elege o despojamento absoluto - algumas palhas no chão dão a idéia de celeiro, um tijolo é uma parede, e o espetáculo se concentra na interpretação do ator. Terceiro: do despojamento nasce a cenografia própria dessa forma - o melhor exemplo foi o cenário de Flávio Império para O Filho do Cão.39 Quanto à tendência estética, sabemos ser o realismo o estilo privilegiado. Mas em qual de suas acepções? Praticamente impossível se precisar. Zulmira Ribeiro Tavares é taxativa: “De um ponto de vista teórico, o Seminário de Dramaturgia esteve muito preso às teses do realismo socialista. As relações entre teoria e prática foram nele sempre problemáticas. O procurado ‘reflexo’ da realidade era entendido em sentido estrito, quase documental, e a fuga a isto encarada como um ‘desvio formalista’.” Outro integrante, Flávio Migliaccio, igualmente sugere a mesma tônica: “Imbuídos daquele entusiasmo todo, era perfeitamente normal considerar válidos somente os textos dentro daquilo que achávamos ser a forma que daria inicio ao nosso trabalho, que era o realismo socialista.” Enquanto Guarnieri a refuta categoricamente: “Não aceitamos o rótulo de realismo socialista. Nosso realis-
39. Boal, Augusto. “Etapas Evolutivas do Teatro de Arena de São Paulo”, in Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
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mo era, antes de tudo, crítico. Nas primeiras composições, era de um naturalismo de observação social imediata. Tivemos sérias discussões a respeito da existência de realismo socialista num país capitalista.”40 Balanço realizado, o fato é que as discussões envolvendo um realismo socialista ou um realismo crítico (vale dizer, as posições opostas defendidas por Brecht e Lukács, tendo como pano de fundo as propostas de Jdanov, de veiculação restrita a órgãos culturais da Europa de Leste), estavam na ordem do dia no plano internacional, mas no Brasil eram enfatizadas apenas as proposições mais ortodoxas. Até a desestalinização operada no 20º Congresso do PCUS, em 1956, a arte de esquerda norteava-se pelos cânones vigentes, onde Stálin qualificara os artistas como “engenheiros de almas” e Jdanov, seu mentor para assuntos de cultura, desde 1934, conclamara os artistas a seguirem as diretrizes do realismo preconizado pelo Partido, o que implicava em: “conhecer a vida a fim de poder representá-la veridicamente nas obras de arte, representá-la não de modo escolástico, morto, não apenas como realidade objetiva, mas representar a realidade dentro de seu desenvolvimento revolucionário. E aqui, a verdade e o caráter histórico concreto da representação artística deve unir-se à tarefa de transformação ideológica e de educação dos trabalhadores dentro do espírito do socialismo. A este método da literatura e da critica literária é que chamamos de realismo socialista.”41 Lukács não pode ser limitado, todavia, a parâmetros tão estreitos. Sua teoria do reflexo, aludida por Zulmira Ribeiro Tavares, comporta extenso detalhamento sobre o fenômeno artístico, nada simplificador, ainda que ideologicamente comprometido com o stalinismo e suas implicações. Os conceitos por ele desenvolvidos de “particular” e “típico”, tornados ponta-de-lança por um dogmatismo tributário, representam reduções táticas de militância, quando deveriam figurar como sugestões estéticas mais abran-
40. As declarações constam da mesa-redonda “Seminário de Dramaturgia: Uma Avaliação 17 Anos Depois”, organizada e transcrita por Carmelinda Guimarães, in Dionysos, n° 24, Rio de Janeiro, SNT, 1980. 41. “Discours d’Andrei Jdanov au Premier Congrés des Ecrivains Soviètiques (17 août de 1934)”, apêndice inserido por Emile Copfermann, organizador da coletânea Théàtre et Revolution, de A.V. Lunatcharski, Paris, Maspero, 1971.
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gentes. Brecht, por outro lado, nunca definiu a rigor o que preconizava enquanto “realismo crítico”. Sua obra teórica, e especialmente a dramática, constituem uma continuada reflexão sobre o realismo na arte, nunca entendido como estilo, forma ou mimese grosseira; mas é, antes, substância e conteúdo, “apresentar o sistema da causalidade social; escrever do ponto de vista da classe que propõe as soluções mais amplas para as dificuldades mais urgentes em que se encontra a sociedade humana; destacar, em qualquer processo, os seus pontos de desenvolvimento; ser concreto e possibilitar a abstração”, caráter este que não se separa do “popular”, isto é “representar a parte mais progressista do povo, de forma que esta possa tomar a direção da sociedade e, por conseguinte, ser compreensível também para a outra parte do povo”, entre outros procedimentos que nunca se reduzem à fórmula ou estilo.42 O Seminário não seguiu nenhum desses caminhos rigidamente, mas evidenciou, ao contrário, quando da verificação dos textos encenados e artigos teóricos dos programas, uma maleabilidade em transitar de uma postura à outra. E, quando percebido em perspectiva, é possível nele se detectar uma atitude pendular: o contexto de Black-Tie sugere mais de perto a adequação às teses jdanovistas, enquanto a Farsa, Fogo Frio, Pintado de Alegre e O Testamento do Cangaceiro desenvolvimentos estilísticos que se espraiam em distintas acepções do realismo, tentativas em direção ao épico, que será plenamente atingido com Revolução na América do Sul. Igualmente quanto às encenações, tal zigue-zague pode ser observado, seja pelo aproveitamento de sugestões emanadas da obra de Stanislávski, Meyerhold e Brecht, bem como de Piscator ou Max Reinhardt. O Arena deglutiu e experimentou, no curto espaço de dois anos, um percurso gestado durante décadas em relação à história do teatro europeu. Em artigo escrito em 1959, Augusto Boal sintetizou suas preocupações sobre o teatro brasileiro. Uma consulta ao texto fornece uma leitura clara do projeto então em curso: o Arena imbuiu-se de uma tarefa precisa, a de promover o necessário salto que fundamentasse o surgimento de um teatro popular, e por extensão, de uma cultura popular e, comentando a fase então situada, a do Teatro Simplesmente Brasileiro, o encenador destaca a composição do público:
42. Consultar Bertolt Brecht, especialmente “O Caráter Popular da Arte Realista”, in Ecrits sur la literature et l’art, Paris, L’Arche, col. Travaux, 1970.
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“...seu amorfismo vem em primeiro lugar. [...] Qualquer peça contendo riso e lágrimas será fatalmente consagrada na bilheteria. Mas para que o espectador ria e chore foi necessário abolir as formas alienadas e procurar maior autenticidade, ainda que meramente superficial. Para o espectador ainda não importam as ideias, apenas as emoções. E isto explica o sucesso indiscriminado de Chá e Simpatia e Eles Não Usam Black-Tie [...]. Esta é a fase em que necessariamente deveriam surgir os Seminários de Dramaturgia. A função atual dos seminários é fornecer aos seus autores os elementos básicos do seu artesanato, ao mesmo tempo que procura lançá-los na experimentação. É a fase em que se devem pesquisar os nossos estilos para melhor transmitirmos as nossas idéias. E é, sobretudo, a fase em que se tornam necessárias as definições. ‘Fazer teatro’ nada define. ‘Fazer bom teatro’ é pouco mais explícito. Fazer teatro para quem? E por quê?”43 Sobre o surgimento do Teatro Popular, a fase seguinte, da qual alguns indícios já eram perceptíveis através das plateias buscadas junto aos sindicatos, clubes, grêmios e ligas camponesas, ele prognostica: “Popular não é sinônimo de casa lotada. Significa que, prosseguindo o seu desenvolvimento dialético, o teatro brasileiro incorporará, pela primeira vez, uma plateia operária. (...) A nova classe transformada em plateia, trará uma riqueza maior de ideias, impossíveis de serem solicitadas pela plateia burguesa.” Documento ímpar, esse artigo do encenador constituiu-se na mais acabada reflexão efetuada no período sobre as preocupações que norteavam o Arena. Sintonizadas perfeitamente, em realidade, com o que de mais político então se pensava, cujas emanações mais instigantes provinham do ISEB-Instituto Superior de Estudos Brasileiros, em contraponto às teorizações do Partido Comunista Brasileiro. O ISEB congregou uma seleta intelectualidade, organizado como universidade aberta em sintonia com o projeto desenvolvimentista, cuja função bási-
43. Boal, Augusto, “Tentativa de análise do teatro brasileiro”, artigo originalmente publicado nos Cadernos de Oficina, n° 1, agosto 1961. Republicado em Arte em Revista - Teatro, n° 6, São Paulo, Kairós, 1981.
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ca, ao longo dos anos JK, foi fornecer respaldo intelectual e ideológico para a presidência da República. Através de aulas, conferências e seminários, influiu decisivamente sobre a formação intelectual da juventude nos últimos anos de 1950 e princípios da década de 1960. Sem divulgar um pensamento único, frise-se, mas pelo contrário, comportando desde neoliberais até marxistas, ele teve decisivo papel nas discussões econômico-culturais do período, não havendo nenhum movimento social importante que ali não se abeberasse, criticando ou negando, mas sempre o tomando como ponto de referência. Para ficarmos apenas com o pensador que mais discutido foi entre a jovem intelectualidade, vindo posteriormente a se transformar numa espécie de “guia” dentro da Revista Civilização Brasileira, vejamos uma amostra do pensamento de Roland Corbusier.44 Em Formação e Problema da Cultura Brasileira, editado pelo ISEB em 1958, após rastrear vários diagnósticos internacionais sobre o “ser da cultura”, o autor aborda as análises sobre o Brasil efetuadas por Gilberto Freyre, Ignácio Rangel e Jacques Lambert. E ali atesta, qual Lambert ao falar dos dois Brasis opostos, o litorâneo e o interiorano, que “o homem brasileiro é oco, interiormente vazio” (pág. 63). Em seguida, após alguma especulação pelo pensamento francês sobre o processo de colonização, referenda ter sido o colonialismo brasileiro um processo “globalmente alienado”: “exportamos o não-ser e importamos o ser” (pág. 70). E assim, após a exaltação desenvolvimentista, outra não é sua conclusão: “[...] tomamos consciência de nós mesmos, do que somos e do que queremos ser, tomamos consciência da nação como uma tarefa, de uma empresa comum a realizar no tempo” (pág. 86, grifos do autor). Um crítico a esse modo de pensar não deixará de surpreender em tais formulações seus desvios: “Não há que estranhar, pois, que nesse caldo irracionalista a ideia de planejamento emerja tão clara. Surge enraizada num projeto nacional, mas não em uma teoria das classes sociais. A aliança entre as classes torna-se o pressuposto básico, em termos de organização social, nessa fabricação ideológica da burguesia desenvolvimentista, reformista e nacionalista. Burguesia para a qual a questão cultural se resume
44. Para uma ampla análise do pensamento isebiano ver Toledo, Caio Navarro. ISEB: Fábrica de Ideologias, São Paulo, Ática, 1978. Outras informações em Sodré, Nelson Werneck. A verdade sobre o ISEB. Rio de Janeiro, Avenir, 1978. E, ainda, Jaguaribe, Hélio, “ISEB – um breve depoimento e uma reapreciação crítica”, in Cadernos de Opinião, n° 14, Rio de Janeiro, Inúbia, 1979.
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na transformação do aparelho pedagógico, na criação de institutos de pesquisa para melhor atender às necessidades crescentes da industrialização, centros culturais cuja organização, cujo programa e métodos de ensino estejam adequados às novas exigências desse projeto de transformação” (grifos do autor), como concluiu Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira.45 Quanto ao PCB, suas preocupações centravam-se mais nas táticas políticas de mobilização que no cultivo de uma formação cultural, embora seus militantes fizessem divulgar, periodicamente, reflexões que espelhassem as discussões do mundo soviético. Após o 20º Congresso do PCUS, quando Nikita Kruschev inicia a “desestalinização”, o PCB vai entrar em confrontos internos, entre os partidários ortodoxos e os identificados com a nova ordem e o que resulta, em 1958, na promulgação de uma Declaração Política “que representaria uma modificação substancial na sua linha”. A declaração acirra ânimos internos e deslancha os conflitos que levarão a entidade a posteriormente se subdividir. Enquanto tática política a “Declaração” erige-se como sua mais clara adesão à estrutura do Estado populista existente até 1964. É dela o seguinte trecho: “a revolução no Brasil não é ainda socialista, mas anti-imperialista e anti-feudal, nacional e democrática”, destacando a necessidade de formação de “uma frente única nacionalista e democrática, integrada pelo proletariado, o campesinato, a pequena-burguesia interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional e mesmo setores de latifundiários em contradição com o imperialismo norte-americano na disputa de mercados ou grupos da burguesia ligados a monopólios rivais dos monopólios norte-americanos e que são por este prejudicados.”46 Como se depreende, as conclusões do ISEB e do PCB coincidentemente faziam soar as mesmas teclas, por caminhos e metodologias diversas, é bem
45. Mota, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira 1933-1974, São Paulo, Ática, 1978, p. 173. 46. Apud Garcia, Marco Aurélio. “Contribuição à História da Esquerda Brasileira”, publicada em fascículos pelo jornal Em Tempo, entre 16 de agosto e 25 de outubro de 1979. Ver, igualmente, Carone, Modesto. Movimento operário no Brasil, 3 vols., São Paulo, Difel, 1981/1982.
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verdade, mas em busca de um acorde harmônico entre as classes sociais e seus interesses “convergentes”. E se a imagem musical vem a calhar, tal processo deu-se como ópera melodramática de matiz verdiano, onde solistas tempestuosos digladiam-se em gorjeios desafiando o rigoroso big-stick do maestro imperialista, enquanto o esfarrapado coro do populacho ou repete os melismas da trilha principal ou se cala na zona sombreada dos bastidores. É a força do destino... O antes referido texto de Boal remete ao tônus daquelas discussões políticas e culturais como percebidas da perspectiva do Arena, ao mesmo tempo em que confere ao Seminário de Dramaturgia seu caráter tático, ético e estético dentro da sinfonia nacional. Aqueles dois primeiros aspectos, que lançaram o grupo Arena decisivamente na busca de uma radiografia da realidade brasileira, surgem sintetizados no último parágrafo do mesmo escrito: “Portanto, à medida que o nosso teatro vai incorporando novas platéias, não vai jamais reduzindo o seu campo de ação, mas ampliando-o e buscando uma adequação formal mais enérgica. Lamentavelmente, até as idéias reacionárias e falsas podem encontrar uma forma artística válida e atuante. Por isso, mais do que nunca, requer-se uma definição exata do artista como homem e como ser social. A análise do artista como homem vivendo no mundo é certamente mais importante do que a do desenvolvimento do nosso teatro, não sendo, porém, objeto deste artigo.”47 Discurso que não deixa dúvidas, onde o homem político sobrepõe-se ao homem estético, conferindo ao Arena, em sua segunda fase, o perfil de um coletivo teatral ideológico, o primeiro de uma série de outros que surgirão na década de 1960, caráter este que se tornará preponderante em seu percurso criativo. Diferentemente de outros grupos e companhias surgidos em passado mais próximo ou distante de sua fundação (Os Comediantes, o Teatro Popular de Arte, o TBC, bem como as companhias pós-TBC), foi o Arena o introdutor do caráter funcional da arte e do teatro, fazendo de sua práxis artística um ininterrupto diálogo entre as duas funções sociais: arte e política. Equação quase sempre transformada em adequação, uma vez que sem filiação par-
47. Boal, Augusto, “Tentativa de análise do teatro brasileiro”, cit.
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tidária estrita, mas progressista, dentro da pluralidade de matizes ideológicos que tal postura abrange. Trata-se de um traço ideológico novo dentro do panorama aqui em observação, mas não é possível se falar em teatro no Brasil, após o Arena, sem que seja considerada essa enorme ascendência, ao menos quando se trata de um teatro cultural e socialmente empenhado.
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CAPÍTULO 4 OFICINA: DO EXISTENCIALISMO AO REALISMO SOCIAL
O final da década de 1950 encarregou-se de despertar, pouco a pouco, uma euforia generalizada no país, reconhecida através das grandes transformações que marcaram o governo de Juscelino Kubistchek. Um plano de metas, articulado desde o início de sua gestão possibilitara, entre nós, pela primeira vez, um planejamento coordenado no âmbito da ação presidencial, efetivando projetos de grande envergadura que concorreram para confirmar o slogan da época: “50 anos em 5.” E Brasília, a nova capital implantada no Planalto Central em 1960, era o símbolo mais reluzente de uma jovem república acertando seus ponteiros com a história, bem como, em igual medida, o desaguadouro de inúmeros confrontos gerados nesses embates, um símbolo de disputa de poder – cultural e político. Marcada pelas franquias democráticas, a época juscelinista assistiu o Brasil convulsionar-se através de mobilizações populares, bem como pelo expressivo movimento cultural ocorrido no final da década - o cinema novo e a bossa nova ganham destaques internacionais. A rápida expansão da classe média foi alastrando, no Rio e São Paulo, o fenômeno da crescente especulação imobiliária que se incumbiu de formar novos bairros, espraiando as cidades e enxotando para os morros e arrabaldes o proletariado, unido agora em favelas, criando um dos problemas sociais mais graves da época. A industrialização paulista, especialmente no caudal advindo com o boom das indústrias automobilísticas, fazia vicejar um mercado consumidor próspero, augurando rápidos enriquecimentos e a dinâmica social consequente. Ao som da bossa-nova pululavam pequenos bares em Ipanema e no centro de São Paulo, arregimentando a juventude universitária para tocar violão e
beber chopp, exercitando o ócio de uma intelectualidade cheia de verve e emoção com o país que se transformava. Fenômeno de extração universitária em suas origens, a bossa-nova rapidamente adernou para uma vertente nacionalista - ao menos como a viam seus imberbes cultores - que não desprezava por completo os anseios maiores da UNE, organismo que após a retomada “democrática” de 1956 vinha incentivando uma política francamente nacionalista, na esteira de ação do ISEB. Tal euforia avolumava-se, abrigando a convergência de inúmeros afluentes, formando uma robusta corrente de reivindicações que, cada vez mais, identificavam no imperialismo norte-americano a barreira repressiva a ser estourada “para que o sertão virasse mar”. A decisiva e fulgurante atuação do Arena, como antes observado, colocou problemas novos para a cena brasileira, não apenas ao levantar temas inéditos ao discurso artístico como, em igual medida, ao comprovar a eficácia da expressão teatral como fenômeno de comunicação popular para com as novas temáticas. Não fosse sua formação enquanto grupo semiestudantil, desde que passou a albergar o TPE, eram os estudantes seu principal destinatário. Nada mais natural, portanto, que assistir o surgimento de diversos grupos teatrais assentados em bases estudantis, principalmente entre universitários. Se a caracterização destes grupos distinguia-se pelo caráter teórico de suas intenções, ao menos um firmou-se, em modo crescente ao longo dos anos 1960, vindo a ocupar o papel de mais importante ensemble teatral do país: o Oficina. Nascido nas salas e corredores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, encontrou o apoio do Centro Acadêmico XI de Agosto, que viabilizou economicamente as primeiras produções daquele movimento conhecido como a Oficina, deixando claras suas intenções de saneamento, limpeza e, basicamente, conserto, invenção, laboratório que animavam seus integrantes. “Oficina foi na sua origem um projeto que hoje se faz público, mas que na sua essência continua a se alimentar da seiva existencial de outra série de projetos e apelos; ela é apenas futuro, perspectiva ou horizonte de volições; sem compromissos de qualquer espécie com o passado”, definiu o empreendimento um de seus fundadores, Luiz Roberto Salinas Fortes.48 Vislumbrando no teatro um “acorde de sinfonias diversas”, prossegue o artigo, revelando ser ele “cosmovisão, mensagem de conotações não
48. Fortes, Luiz Roberto Salinas. Artigo para o programa de A Ponte.
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apenas metafísicas e fonte mítica inesgotável”, num fraseado típico de futuros juristas se exercitando na retórica, mas ancorado na filosofia existencial de Albert Camus, que é citado por Salinas: “A função do artista é a de por meio de sua obra oferecer ao homem uma parcela ainda que mínima de liberdade, tomando-se esta palavra não no seu sentido vulgar ou meramente político-legal, mas no seu significado superior de liberdade vital ou de plenitude. Impulsiona ‘Oficina’ o mesmo projeto.”49 Além de sambas-canção e rock and roll, também o existencialismo estava na moda e autores como Sartre, Camus e Gabriel Marcel eram acirradamente discutidos nos círculos mais avançados da intelectualidade, adentrando os portões da universidade, especialmente derrubando tabus e equivocados princípios morais - o que motivava o escândalo ou o deboche, conforme o olhar que lhe fosse lançado. As duas primeiras produções da Oficina marcam com clareza meridiana seu projeto existencial, ao escolherem dois textos de participantes da equipe: A Ponte, de Car1os Queiroz Telles e Vento Forte para Papagaio Subir, de José Celso Martinez Correa. Apresentados em um só programa, obedeceram a direção de Amir Haddad, todos sem experiência teatral anterior. A principal personagem de A Ponte defronta-se com o problema da perda da virgindade e da gravidez, girando a trama a partir do confronto entre as posições retrógradas e moralmente abstratas dos pais de Fernanda, as posições éticas cristãs do padre Luiz e o acovardamento moral do noivo, Alfredo, restando à heroína concluir, quase ao final, que ela e ele se encontram em lugares díspares: “... A ponte, você sabe... agora nós estamos em margens opostas.”50 Se Fernanda está aparentemente derrotada e vitimada pela situação na qual se enredou, a aludida ponte, para ela um arco do triunfo, lhe garante a margem dos que se responsabilizam pelos seus próprios atos, carregando suas existências à frente de suas essências. Mal ajambrada em seus diálogos um pouco soturnos e uma insuportável falta de ação teatral, a peça deve ter exasperado os espectadores que não conheciam O Existencialismo é um Humanismo, de Sartre, obra da qual ela não deixa de ser uma ilustração. Já A Náusea parece ter inspirado José Celso na composição de seu texto, ambientado na fictícia cidadezinha de Bandeirantes, no interior paulista, onde José Ignácio, incompatibilizado com o tacanho e provincia-
49. Idem, ibidem. 50. Telles, Carlos Queiroz, A Ponte, texto mimeografado.
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no ambiente, parte para longe em busca de uma largueza existencial que lhe descortine outros horizontes. Obras imaturas elas viabilizaram, contudo, quer aos autores quer ao coletivo de intérpretes se lançarem na aventura cênica, fazendo crescer o entusiasmo em torno da atividade. O espetáculo reunindo os dois textos, estreado em 1958, cumpriu curta temporada, mas coroou as cabeças de seus participantes com certa aura olímpica em relação ao resto do teatro então praticado. Tal atitude, bem como alguma desconfiança alimentada pelos profissionais em relação àquele grupo empinado que saia do nada para a notoriedade, fez nascer uma ponta de menosprezo que colocava a Oficina perante o consenso profissional como um grupo de “intelectuais snobs”. No ano seguinte, um novo original de José Celso é encenado, ainda sob a direção de Amir Haddad, contando com Renato Borghi como protagonista. Ele pertencia ao grupo desde a fundação, mas ausentara-se nas primeiras produções para ir ao Rio fazer Chá e Simpatia, estreando profissionalmente ao lado de Nidia Lycia. Após bem sucedida carreira em São Paulo, a nova encenação é convidada para o Festival de Teatro Amador de Santos, onde logra o primeiro lugar, bem como outros quatro prêmios para artistas e técnicos. Após tantas vitórias, alugam o Arena para dois meses de apresentações, com sucesso de bilheteria. A peça era A Incubadeira, o conflito do adoentado Tarciso com uma superprotetora mãe que o mantém doente física e psicologicamente, através de chantagens emocionais que beiram uma incestuosa relação. Não seria despropositada uma correlação com o universo de Tennessee Williams, ao pensarmos especialmente em A Margem da Vida ou Anjo de Pedra, ao se verificar o tratamento psicológico dispensado às tramas e à evolução dos conflitos. O amor de Tarciso por Veroca, uma jovem de sua geração, acaba levando-o a superar aquela dependência maternal castradora, fazendo crescer seu projeto de libertação até a explosão final, ao quebrar a caixa de vidro que continha seus medicamentos, desfazendo a metáfora da incubadeira, de uma vida presa à proveta de ensaio. Em 1960 o grupo lança-se num espetáculo duplo, em sua primeira parte apresentando Calígula, de Albert Camus, no desempenho do grupo Strapontin, formado por professores da Aliança Francesa e encenado na língua original e, a seguir, As Moscas, adaptação que Jean-Paul Sartre realizara sobre a tragédia Electra, de Eurípedes, no desempenho da Oficina. Ambas as encenações foram assinadas por Jean-Luc Descaves, jovem professor entusiasmado pelo teatro.
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Essa volta às fontes do pensamento existencialista, se não efetivou espetáculos consistentes e dramaticamente ágeis propiciou, entrementes, uma consolidação da equipe quanto ao pensamento daqueles autores, ajudando a radicalizar algumas posições diluídas até então no seio da Oficina, que se vê na iminência de assumir novos rumos de ação, não apenas enquanto determinação de projeto cultural como teatro universitário, quanto como nas vidas particulares de seus integrantes, que começam a optar pela profissionalização. O primeiro lance de dados nessa direção surge a partir de um convite de Augusto Boal para que o grupo participasse de Fogo Frio, de Benedito Rui Barbosa. A peça integrava o Seminário de Dramaturgia do Arena e Boal encontrava-se sem elenco, em excursão no Rio de Janeiro. Essa primeira aproximação entre os dois coletivos, se de um lado foi forçada por alguns integrantes interessados numa fusão, como modo assumir o projeto nacionalista do Arena, foi olhada com desconfiança pelos demais, fiéis ao espírito autônomo da iniciativa Oficina. Preso nas malhas da ambiguidade, o espetáculo, efetivamente, acabou não obtendo o sucesso premeditado. O saldo da tentativa de aproximação entre os grupos deixou claro o destino escolhido por um e outro, que não poderiam encontrar um diálogo criativo comum e afinado do ponto de vista ideológico e cultural. O Arena era muito preconceituoso em relação a tudo que fugisse à sua ótica estreita de teatro de esquerda e popular, isto é, aquilo que entendiam então como sinônimo de um comportamento revolucionário. Apenas Boal, com sua grande capacidade intelectual e relativa equidistância para o trato dos problemas estéticos, conseguiu simpatias entre os integrantes da Oficina. E esta, após três anos de atividade e cinco montagens, aninhava contradições que a obrigavam a repensar seu desígnio. No plano político-social novas posturas se esboçavam no País, tornando a campanha para a presidência da República uma vala que fazia desaguar não apenas os ferrenhos confrontos partidários, bem como a aluvião de expectativas mais gerais quanto ao futuro. Revoluções socialistas haviam eclodido no Congo, no Egito e na Argélia; a Índia experimentava uma liberalização do regime, enquanto a Costa Rica fora massacrada pela instauração de uma ditadura de direita comprometida com o governo americano; e bem próximo, em Cuba, Fidel Castro e Che Guevara haviam liderado a primeira revolução socialista no continente. O Arena estava em cartaz com Revolução na América do Sul, o TBC ocupado pelos artistas que exigiam a
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liberação de A Semente, e Sartre viria à América Latina, acompanhado de Simone de Beauvoir, para visitar especialmente dois países: Cuba e Brasil. Entre um existencialismo quase metafísico, como o pretendido por Camus e um comprometimento existencial ancorado na libertação nacional, como o preconizado pelo engajamento de Sartre, os integrantes que fizeram valer sua voz dentro da Oficina optam pelo segundo autor. Para recepcionar Sartre e Simone e decididos a engrossar o caudal das discussões políticas pré-eleitorais, convidam Augusto Boal para dirigir A Engrenagem, um roteiro cinematográfico do filósofo adaptado pelo encenador e José Celso em duas frenéticas madrugadas, sendo o espetáculo ensaiado às pressas em quinze dias, estreando duas semanas antes das eleições de 15 de novembro. O texto sartreano é um libelo político claro: as revoluções coloniais que não expulsam o imperialismo estão fadadas a sucumbir. Dentro do amplo debate de conjuntura que então se processava, a partir das áreas de influência hegemonicamente controladas pelos Estados Unidos, restava ao Terceiro Mundo o encontro de uma opção própria, ou então continuar apenas um dente da engrenagem. “A ação se passa num país imaginário. Poderia ser Cuba ou o Brasil. O líder vitorioso da revolução, que substitui Jean Aguerra, o líder anterior, foi pelo mesmo caminho. Eu procurei mostrar que enquanto o país é vítima do imperialismo nenhuma orientação reformista resolve”, esclareceu Sartre sobre suas intenções.51 José Celso, além de coassinar a adaptação foi assistente de direção, salienta ser a montagem: “teatro político. Não apenas em virtude de seu conteúdo explícito, mas principalmente tendo-se em vista o que ele representa para nós em matéria de compromisso ideológico, uma vez que o que determinou em primeiro lugar a escolha de A Engrenagem foi antes a convicção, por parte do grupo Oficina, de que se fazia necessária sua presença nas lutas reais de nosso tempo e não exclusivamente o valor
51.
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Sartre, Jean-Paul. Artigo para o programa.
inegável do texto. (...) Nossa realização pessoal integra-se na própria realização histórica do povo brasileiro.”52 Como se nota, algum voluntarismo rondava as cabeças, todos acreditando piamente nos bons propósitos artísticos capazes de mudar o mundo. A peça é centrada no julgamento de Jean Aguerra e, através de flash-backs, os dados da trama vão sendo revelados ao espectador. Sua falha capital foi não ter alertado ninguém de sua intenção de nacionalizar o petróleo, sendo traído por seu maior amigo, Lucien. Com seus atos, antevia o ódio popular a lhe perseguir os passos, mas guardou seu segredo político por assumir inteira e pessoalmente a responsabilidade da não nacionalização rápida, o que forneceu o tempo necessário para o imperialismo subvencionar a contra-revolução. Acrescentando dados retirados das reportagens efetuadas por Sartre em Cuba, os adaptadores enfatizaram o processo político-social presente no texto, em detrimento das constituintes psicológicas das personagens, reduzindo o entrecho a uma simplicidade constrangedora: uma revolução política nacional operada por um único personagem efetivamente responsável. Ainda que os treze guerrilheiros de Sierra Maestra tivessem desbaratado, efetivamente, as tropas de Fulgêncio Batista, não fizeram a Revolução Cubana sozinhos. O panegírico, contudo, estava em voga, ainda que cometesse injustiças históricas ou deformasse certas interpretações dos processos revolucionários. Por outro lado, a frente nacionalista do PCB alardeava o caráter anti-imperialista da revolução brasileira, o que guiou nossos teatrólogos a tomarem uma tática política reformista por uma completa teoria revolucionária. Tais desacertos, entrementes, não foram assim percebidos na época, o que tornou a encenação uma plataforma de propósitos e posições políticas assumidas em consonância com o pensamento hegemônico vigente. Apresentada no Teatro Bela Vista, A Engrenagem consolidou o grupo da Oficina interessado na profissionalização. Desde o período posterior a Incubadeira, seus integrantes passam a desenvolver a prática de teatro a domicilio, ou seja, a encenação de peças amenas em casas de família que pagavam pelo prazer de ter teatro em casa. Angariava-se assim os necessários fundos para a manutenção da companhia e consolidavam seu desligamento do Centro Acadêmico Xl de Agosto, passando a adotar, depois de A En-
52. Corrêa, José Celso Martinez. Artigo para o programa.
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grenagem, o símbolo da bigorna, logotipo que até hoje identifica o grupo. Entre os fundadores da sociedade civil então formada estavam José Celso, Renato Borghi, Ronald Daniel, Jairo Arco e Flexa, Moracy do Val e Paulo de Tarso. A exemplo dos demais conjuntos existentes, também eles nutriam a ambição de trabalhar num edifício próprio, objetivo alcançado com o aluguel do Teatro Novos Comediantes, uma sala precária ocupada por evangélicos e necessitando de reformas, à Rua Jaceguai, 520. Ali é fundado o Teatro Oficina, cuja abertura ocorre em agosto de 1961, com a estréia de A Vida Impressa em Dólar, após intensa campanha de arrecadação de fundos para a construção do novo projeto cênico, construído com cena central e duas platéias opostas, segundo uma concepção que reformulava o conceito de arena, da autoria do arquiteto Joaquim Guedes. A partir da estabilização obtida com a sede e da encenação de A Vida Impressa em Dólar, que ensejou a estréia de José Celso como encenador do grupo, inicia-se uma nova fase para o Oficina, galvanizada com a consolidação de seu ideário estético e político distante das precárias atitudes evidenciadas nos anos iniciais.
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CAPÍTULO 5 CAMINHOS DE UMA ARTE POPULAR
Os quatro primeiros anos da década de 1960 compreendem o mais formidável movimento, não só quantitativo como qualitativo, no sentido de enraizar uma cultura de caráter participante e popular no Brasil. Fruto dos decisivos debates que agitavam a intelectualidade desde meados da década anterior, sob garantia em sua liberdade de expressão pelo governo juscelinista, amplos setores da população se beneficiam agora com o ambiente reinante nos governos Jânio Quadros e João Goulart, sensíveis aos apelos populistas e reivindicações dos movimentos de massas. Quanto ao contexto, Octávio Ianni assim apresenta o período: “...nos anos de 1961-64 o povo brasileiro defrontou-se de modo cada vez mais premente com a necessidade de adotar uma opção drástica. Por um lado, o modelo getuliano esgotava um ciclo crucial de realizações. Impunha-se uma decisão corajosa, no sentido de aprofundar rupturas estruturais indispensáveis à consecução dos alvos inerentes à sua lógica interna. Em certo sentido, as experiências da política externa independente, de Jânio Quadros e San Tiago Dantas, bem como as exigências políticas inerentes ao Plano Trienal (1963-65), denotam a compreensão do dilema em que a sociedade se encontrava. Nesse quadro, a mobilização do povo para o comício do dia 13 de março de 1964 - pelas reformas de base e em oposição às tendências conservadoras da maioria do Congresso Nacional - simboliza a existência de condições políticas para uma ruptura que não se realizou. O comício, em que se reuniram o Presidente da República, Ministros de Estado e líderes nacionalistas e de esquerda, é o clímax e o fim da
política de massas: como técnica de sustentação do poder político e como expressão fundamental da democracia populista. Por outro lado, no bojo do próprio modelo getulista - ou muito preso a ele - constituíra-se o modelo socialista. Ele estava presente nas organizações políticas, nos estilos de liderança e nas técnicas de ação enfeixadas que promoveram as campanhas do petróleo, pelas reformas de base, pelo desenvolvimento nacionalista e atuaram na formulação da política externa independente, na sindicalização rural, na estabilização crescente da economia, nos movimentos de opinião pública, no florescimento cultural, etc. Entretanto, como a esquerda se prende cada vez mais às técnicas, estilos e alvos da democracia populista, não consegue libertar-se a tempo, para propor e impor sua alternativa. No convívio contínuo, crescente e profundo com a política de massas, acaba por inverter meios e fins, tática e estratégia, ideologia e realidade. Por isso abismou-se com o golpe”53(grifos do autor). A UNE, na gestão de Aldo Arantes (1960), projetara-se como expressiva força organizadora em âmbito nacional, auferida através da chamada “UNE- volante”, o que significou a promoção de eventos políticos e culturais nos diversos Estados da federação, congregando em torno de si uma massa sólida e motivada. Os sindicatos vinham se articulando em coligações, até se encontrarem suficientemente atados os liames para formar, em 1962, o Comando Geral dos Trabalhadores, uma central sindical operária que vai se constituir no mais importante trunfo político na determinação da política de massas e que, cada vez mais, assombrava, através de insistentes greves e piquetes, as ruas do país. Mas também os camponeses se organizam, sobretudo no Nordeste e especialmente em Pernambuco, de onde emergem as Ligas Camponesas, espécie de pré-sindicatos rurais. A campanha pelas reformas de base crescia, levando o Primeiro Ministro Brochado da Rocha (à época do parlamentarismo), em 1962, a propor um programa de governo francamente esquerdista e reformista. Entre os expressivos acontecimentos políticos desse curto, mas conturbado período, recorda o sociólogo:
53. Ianni, Otávio. O Colapso do Populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 123-124, grifos do autor.
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“a condecoração do Ministro da Indústria e Comércio de Cuba Socialista, Ernesto Che Guevara, pelo Presidente da República, Jânio Quadros; a crise política nacional provocada pela renúncia de Jânio Quadros e a tentativa de impedir a posse do então vice-presidente João Goulart”.54 E, é necessário completar, a posterior instauração do sistema parlamentarista de governo, onde a relevância do poder executivo ficava com o Primeiro Ministro, além da posterior campanha por um plebiscito, que fez o regime retroagir novamente para o sistema presidencialista. “a atuação política crescente de órgãos como: Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), Liga Democrática Radical (LIDER), Patrulha Auxiliar Brasileira (PAB), União Nacional dos Estudantes (UNE), Confederação Geral dos trabalhadores (CGT), etc.; a difusão programada da “doutrina da guerra revolucionária”, como se ela estivesse sendo posta em prática pela esquerda brasileira; a manutenção obstinada das relações do Brasil com Cuba Socialista, como ponto básico desse estágio da política externa independente; as tentativas de golpe de Estado e decretação do estado de sítio, pelo Presidente João Goulart; o comício do dia 13 de março de 1964; a presença e fala do Presidente João Goulart na cerimônia em sua homenagem promovida pela Associação dos Sargentos da Polícia Militar, no mesmo ano presença crescente da esquerda na vida política nacional”, segundo quadro situacional organizado por Octávio Ianni.55 Os espetáculos teatrais agora verificados espelham com acuidade tal embate de forças, ao mesmo tempo díspar quanto às opções partidárias, mas construída, em igual medida, sobre acirradas posturas ideológicas frente aos desígnios políticos. Além dos grupos aqui rastreados, o momento assiste a uma considerável quantidade de novas propostas artísticas, novos agrupamentos, novos líderes da cena, bem como a redefinição de mais antigos, de algum modo engajados na nova situação que, rapidamente, solici-
54. Idem, ibidem. 55. Idem, ibidem, p. 124-125.
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tava adesões. Tudo isso torna árdua a configuração de sínteses que possam revelar as propostas e suas diferenças. Grande parte desta movimentação ocorreu em modo espontâneo, na refrega da hora, deixando pouca ou nenhuma documentação para que a pesquisa documental possa reconstituir as diversas variáveis existentes. Mas é o Arena que se insurge, acima de tudo, como centro irradiador das principais atuações estético-teatrais, tornando o teatrinho da Teodoro Bayma o epicentro das confluências. Desde a época do Seminário de Dramaturgia, o estudo sistemático das teorias de Piscator, Brecht, Plekánov e Lukács vinha ocupando seus participantes, coisa que, com o passar do tempo, fez acirrar disputas no interior do coletivo quanto à escolha de uma atuação estética e política mais orientada. É uma das razões pelas quais, quando de uma excursão para o Rio de Janeiro, sob a liderança de Oduvaldo Vianna Filho e contando com o apoio de Flávio Migliaccio, Chico de Assis, Vera Gertel, Nelson Xavier e Milton Gonçalves, acaba-se propondo em 1960 a criação de um segundo elenco que percorresse sindicatos, escolas, favelas e organizações de bairro, com o “intuito de levar à população que não frequentava os teatros do centro os espetáculos montados pelo Arena.” Além de Eles Não Usam Black-Tie, o carro-chefe da excursão, entra em ensaios uma peça panfletária de Oduvaldo Vianna Filho, A Mais Valia vai Acabar, seu Edgar, arregimentando estudantes universitários sensibilizados pela ideia de fazer teatro, especialmente um texto que abordava a teoria marxista da mais valia. Carlos Estevam Martins, aluno do ISEB, é chamado para amparar o grupo quanto às complexas implicações sociopolíticas ali presentes e suas possíveis traduções para o formato cênico. A partir da estreia da encenação, ocorrida na Faculdade de Arquitetura da UERJ, um grande número de estudantes se engalfinhava em seus acalorados debates, dispostos a avolumarem as iniciativas de criação, o que leva Vianna e Estevam Martins a propor a instalação de uma central de produção de cultura destinada à ampla difusão da propaganda política. A ideia é bem aceita por todos e, sob a tutela da UNE e do ISEB, é então fundado o Centro Popular de Cultura. Movimento inicialmente nucleado em torno do teatro, em pouco tempo vê surgir os setores de cinema, literatura, alfabetização, artes plásticas, música e cultura popular, fornecendo a almejada envergadura pleiteada pela central. Intelectuais e artistas são contatados, aderindo e integrando-se em algumas das comissões criadas, de modo que em 1961 o primeiro CPC é formalizado e instalado na Guanabara, no prédio da UNE da Praia do Flamengo. A dire-
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toria é composta por Oduvaldo Vianna Filho, Leon Hirshman (ligado ao cinema novo) e Carlos Estevam Martins (sociólogo, aluno do ISEB). Para Vianna, seu desligamento do Arena e necessidade desse novo tipo de mobilização teatral surge explicitado no artigo “Do Arena ao CPC”, publicado inicialmente na revista Movimento, da UNE, onde afirma: “O Arena era porta-voz das massas populares num teatro de cento e cinquenta lugares... O Arena não atingia o público popular e, o que é talvez mais importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para seu trabalho. A urgência de conscientização, a possibilidade de arregimentação da intelectualidade, dos estudantes, do próprio povo, a quantidade de público existente estavam em forte descompasso com o Teatro de Arena enquanto empresa. (...) Um movimento de massas só pode ser feito com eficácia se tem como perspectiva inicial sua massificação, sua industrialização. É preciso produzir conscientização em massa, em escala industrial. Só assim é possível fazer frente ao poder econômico que produz alienação em massa. (...) O Arena contentou-se com a produção de cultura popular, não colocando diante de si a responsabilidade da divulgação e massificação. (...) Um movimento de cultura popular usa o artista corrente, usa uma ideologia de espetáculo que precisa pertencer à empresa e não a seus representantes individuais. Nenhum movimento de cultura pode ser feito com um autor, um ator, etc. E preciso massa, multidão.”56 Seguindo-se ao desligamento de Vianna e seu grupo, também outros remanescentes vão aos poucos se afastando, o que deixa o comando com Boal e Guarnieri que acabam fundando uma nova diretoria para a sociedade, que inclui agora Paulo José e Flávio Império. O elenco permanente é renovado com os nomes de Lima Duarte, Isabel Ribeiro, Joana Fomm, Juca de Oliveira, Henrique César, Dina Sfat, Riva Nimitz, entre os mais constantes. Esgotado o ciclo de afirmação da dramaturgia nacional através do Seminário de Dramaturgia, inicia-se uma nova fase para o conjunto, caracterizada como de “nacionalização dos clássicos”, que dominará o re-
56. Vianna Filho, Oduvaldo. “Do Arena ao CPC”, In: Movimento n° 6, Editora Universitária, out. 1962.
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pertório entre 1962 e 1964. Significando um aprofundamento estético e político de pensamento do conjunto, irá ensejar a criação de alguns belos e notáveis espetáculos, seja pelos resultados artísticos seja pelas propostas político-culturais que enfeixavam. Quanto ao Oficina, após seu estabelecimento à Rua Jaceguai, encontra-se vivamente empenhado quanto à definição de um caminho próprio, orientando suas criações para a abordagem entre o ser individual e o ser social, através de obras que pudessem enfeixar paradigmas e conotações metaforicamente apropriados em relação à realidade brasileira. Recusando o agit-prop do CPC e as experiências de análise do poder que o Arena realizava a partir de textos clássicos, decide-se por um repertório realista contemporâneo, buscado inicialmente no guild-theatre norte-americano e, logo após, junto aos realistas russos. O TBC, sob a direção de Flávio Rangel desde 1960, envereda por um caminho francamente nacionalista, montando textos de Jorge Andrade, Dias Gomes, Guarnieri e significativas obras da dramaturgia internacional. A maioria das demais companhias enfatiza o autor nacional ou recorre a grandes textos estrangeiros que possibilitassem correlações com nossa realidade, adaptando-os e deles ressaltando a significação política, o que concorre para fornecer ao período uma inquestionável guinada progressista em todos os planos. Em 1962 é fundado por Germano Coelho, em Pernambuco, o MCP-Movimento de Cultura Popular, uma iniciativa acolhida pelo governo de Miguel Arraes e contando com o apoio cultural dos dramaturgos Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. Além de teatro, a grande ação social do MCP se orientou em torno da alfabetização de adultos empregando o método de Paulo Freire, também um de seus diretores e em pouco tempo a iniciativa se expande, atingindo diversos Estados nordestinos, criando outras centrais de trabalho em comum com os CPCs locais. Completa esse painel a intensa atuação de intelectuais de todos os ramos que, mesmo exercendo trabalho pessoal e sem filiações associativas, acaba gerando pontos de contacto e de discussão com as movimentações organizadas, através da criação de obras de importância para a cultura brasileira. Um sintomático aumento no movimento editorial então observado colocava em circulação obras de sociologia, história, filosofia, economia, planejamento, didática, saúde, recursos energéticos, entre outras áreas, que muito contribuíram para a ampliação do espectro de divulgação e estudo.
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Associações de profissionais liberais e sindicatos de trabalhadores igualmente unem forças na determinação dos destinos da cultura e da política do país. A nomeação do antropólogo Darcy Ribeiro como reitor da recém-criada Universidade de Brasília, ele que antes ocupara o cargo de Chefe da Casa Civil da Presidência da República, simboliza um reconhecimento da função do intelectual nos rumos da política cultural do país, num governo que conta ainda com nomes como Celso Furtado e San Tiago Dantas entre seus ministros. Do ponto de vista estratégico, o CPC da Guanabara constituiu-se na mais abrangente e palpável experiência de expansão cultural já levada a efeito no país, ainda que suas realizações não tenham sido numericamente grandiosas. A partir de recursos oriundos da UNE num primeiro momento e, posteriormente, por seus próprios meios, articulou uma editora de livros, uma gravadora de discos, uma agência de distribuição, ateliês e oficinas próprias de artes gráficas, artes plásticas, fotografia, dispositivos cênicos para shows musicais e peças de teatro, além do famoso caminhão adaptado em palco que percorria praças e outros logradouros para apresentações. Seus dois presidentes foram Carlos Estevam Martins e Ferreira Gullar, ambos assinando livros sobre a cultura popular, onde refletiram o caráter das discussões travadas e seus encaminhamentos decorrentes. No “anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura”, Estevam distingue três categorias de arte como eram então percebidas: a arte popular, a arte do povo e a arte popular revolucionária. A primeira é aquela produzida por um tipo de artista que, oferecendo seu produto às camadas urbanizadas ou semiurbanizadas, com elas estabelece uma simples relação de produtor e consumidor, ambos alienados em suas funções criativas no processo artístico. O segundo tipo é ainda mais tosco: típica das regiões semiurbanizadas e agrárias, onde artista e povo não se distinguem enquanto funções, sendo que a criação não passa de um simples ordenar de dados da consciência popular atrasada. Ao contrário, a arte popular revolucionária, a almejada e praticada pelo CPC, “começa pela essência do povo e entendemos que esta essência só pode ser vivenciada pelo artista quando ele se defronta a fundo com o fato nu da posse do poder pela classe dirigente e a consequente
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privação de poder em que se encontra o povo enquanto massa dos governados pelos outros e para os outros.”57 Com a frase “fora da arte política não há arte popular”, o autor fornece os dados fundamentais para a compreensão da ideologia do CPC: o povo é circunscrito como uma entidade auto-evidente, de teor essencial, dotado de um projeto revolucionário de tomada do poder, mas ainda não desperto pela consciência. A função da arte revolucionária deve ser, portanto, a de fazer desabrochar essa consciência, dotar o povo de uma identidade ainda não discernível dentro da sociedade de classes. Discurso sem qualquer amparo antropológico ou sociológico, puramente tático e apoiado em crenças teleológicas, foi alvo de inúmeras contestações, mas o objetivo e as reais intenções que levaram à criação do CPC foram deslindados pelo próprio Carlos Estevam Martins quatorze anos depois: “A queda de Jânio foi fundamental para o surgimento do clima que originou o CPC, todo aquele fervor só tinha uma justificação: a idéia de que íamos chegar lá, e muito rapidamente. (...) O CPC surge daí, decorrente da idéia de que era necessário aumentar as fileiras, politizando as pessoas a toque de caixa, para engrossar e enraizar o movimento pela transformação estrutural da sociedade brasileira. É preciso sacrificar o artístico? Claro que sim, porque as classes populares vão chegar ao poder logo, logo. A avaliação de conjuntura levava à conclusão de que havia um ascenso do movimento de massas e que tudo só dependeria do esforço que empregássemos para multiplicar essas forças sociais em ascensão.”58 Sobre as simplificações estéticas, tão amplamente discutidas na ocasião, e fruto de várias contestações posteriores, prossegue o ex-presidente:
57. Martins, Carlos Estevam. “Anteprojeto do Manifesto do CPC”, in A Questão da Cultura Popular, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1963, p. 92. 58. Martins, Carlos Estevam. “História do CPC”, entrevista-depoimento prestada ao CEAC em outubro de 1978, condensada por Vera Cíntia Alvarez, publicada em Arte em Revista, n° 3, São Paulo, Kairós, 1980.
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“Havia falta de espaço para a criação artística propriamente dita. Aqueles que tinham talento e continuaram depois o trabalho artístico, mantinham a ilusão de que era possível fazer arte ali dentro. Eu dizia que o problema estava na falta de talento deles, em não terem encontrado um jeito de fazer alguma coisa que fosse popular e, ao mesmo tempo, com valor artístico. Em sempre defendi esta posição lá: dá pra fazer, é que vocês não descobriram ainda como, vamos lá, vamos descobrir. Mas eu estava careca de saber que não ia dar nunca, que a tendência era cada vez mais baixar nível, e eu lutei para que cada vez mais baixasse o nível, não do conteúdo, mas da forma. (...) O Chico de Assis queria aplicar técnicas de Brecht e eu disse: ‘Nada de Brecht por aqui.’ Quer dizer, nós tínhamos tanta autoconfiança que vinha alguém falar em Brecht, no caso um teatrólogo, e nós dizíamos que Brecht não entendia nada daquilo que estávamos fazendo, que não queríamos efeitos de distanciamento, mas o máximo de aproximação possível.”59 Se populista enquanto formulação teórica e artística fica exposto pelo seu próprio ex-presidente, igualmente, o populismo interno que dominava as relações cepecistas, coisas que, de resto, nada mais evidenciavam que o teor da práxis política professada pela frente nacionalista comandada pelo PCB. A ação da central admitia desde espetáculos teatrais estruturados, com texto de um só autor, até espetáculos relâmpagos improvisados na hora ou a partir de um coletivo de autores que minutos antes havia concebido um roteiro, na esteira do agit-prop. O que menos importava ali era a autoria, sendo privilegiado o esforço anônimo, bem como o acúmulo de funções sobrepostas: autor, diretor, ator, cenógrafo, maquinista etc. Nunca foi realizado um inventário de todas as atividades de todos os CPCs espalhados pelo Brasil, uma vez que, após o golpe de 1964, foi ele posto na ilegalidade e desmantelada sua central que funcionava no prédio da UNE, incendiado pela policia. No livro antes citado, Estevam apresenta um balanço do primeiro ano de atividades da central da Guanabara (a mais ativa), dando conta de vinte eventos, e entre os espetáculos que percorreram o Brasil
59. Idem, ibidem.
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aparecem: Brasil, Versão Brasileira, Auto dos 99%, Auto do Tutu Tá no Fim, cuja repressão policial engendrou o Auto dos Cassetetes. Em São Paulo, face à atuação do Arena, não foi fundado um CPC, mas ele surgiu em Santo André e em outras cidades do interior paulista. Mesmo não encampando in totum a estética preconizada, Boal aceitou orientar um Seminário de Dramaturgia e montou A Exceção e a Regra, de Brecht, com os cepecistas andreenses. Mas suas ligações maiores e colaborações mais significativas foram realizadas junto ao MCP. Além de várias excursões do Arena ao Nordeste, reunindo no repertório desde remontagens de Black-Tie até clássicos como O Melhor Juiz, o Rei e A Mandrágora, Boal dirigiu Julgamento em Novo Sol, que ele, Nelson Xavier e outros escreveram abordando problemas concernentes à reforma agrária. Uma peça de Guarnieri, intitulada Missa Agrária, foi apresentada em muitas cidades nordestinas. Já Carlos Estevam Martins aludira ao fervor. Era esse perfil aguerrido, sem dúvida, que impulsionava os cepecistas à prática artística e cultural simplificada, cujas implicações junto à cultura brasileira após o golpe de 1964 serão objeto do próximo capítulo. Para concluir o balanço de sua significação, alguns depoimentos de seus ex integrantes evocam as atribulações vigentes: “...o Oduvaldo Vianna Filho fazia uma observação importante: ‘Eu, no CPC, falava de operários, escrevia sobre os sentimentos, comportamentos, aspirações e valores do operário e na realidade eu não conheci um operário.’ Esta observação dele vale para toda a ação política e cultural do CPC” (Carlos Alberto Oliveira, vice-presidente de intercâmbio internacional da UNE). “Segundo um dos últimos manifestos do CPC, elaborado por Carlos Estevam Martins, as manifestações populares, apesar de oriundas da criatividade espontânea do povo, com suas raízes perdidas na Idade Média, seriam quase que necessariamente reacionárias porque transmitiam uma visão do mundo que não seria das classes populares e sim das classes dominantes. Era um tipo de posição extremamente esquemática no julgamento das formas populares, deixando de levar em consideração uma série de fatores” (João das Neves). “Ficou patente um certo esquematismo na conceituação do trabalho artístico, na esperança de, com isto, alcançar o grande público... Sem levar em conta uma série de outros fatores que, na verdade, dificul-
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tavam a possibilidade de comunicação com o público dos sindicatos e das favelas. A falta de hábito cultural, a falta de hábito das pessoas irem ao teatro, a falta de informações que completassem o seu entendimento eram fatores de dificuldade” (Ferreira Gullar). “O artista naquela época fazia menos do que poderia fazer, em função de uma idéia de agitação. Ele, enquanto artista, deveria estar fazendo coisas como Rasga Coração e, no entanto, o que ele podia escrever na época era o Auto do Tutu Tá no Fim” (Leon Hirshmann). “Na verdade o CPC foi uma escola para dezenas, talvez centenas de pessoas que, aprendendo com seus erros e possíveis acertos, tornaram-se profissionais de cinema, TV, teatro, etc. Mas a função específica do CPC jamais foi alcançada. A Cultura Popular, hoje sabemos, é algo muito mais complexo, diversificado, abrangente, misterioso, do que nossa vã utopia poderia perceber” (Armando Costa).60 Manipulado por políticos e partidos que controlavam os locais onde o CPC se apresentava, o saldo era medido em função da agitação auferida em torno das palavras de ordem da ocasião. Traço inequívoco das táticas populistas empregadas naquele momento, não apenas pelos partidos legalizados como, de resto, os clandestinos e toda a esquerda conivente com a frente nacionalista. Se a central produziu mais equívoco teórico que atos consequentes, forjou, em contrapartida, uma consciência esquerdizante em boa parcela da intelectualidade nacional que, contaminada pela febre populista, passou a exteriorizar uma espécie de culpa em não ser povo. Como se aquele povo, tomado na acepção arquetípica e abstrata cunhada pela frente nacionalista, fosse o único estrato social a deter as marcas da unção, o eleito para cruzar os portões beatíficos da Revolução. A via encontrada pelo intelectual cepecista foi ir ao encontro do povo, mas sem abrir mão de sua semântica e sintaxe própria, ou seja, o uso de formatos populares, mas revestidos com um indispensável banho revolucionário que somente ele - o intelectual orgânico - poderia perpetrar. Se na literatura optou-se pelo uso do cordel, no
60. Depoimentos prestados por ex cepecistas à revista Ensaio, n. 3, Rio de Janeiro, Livraria Muro, 1980.
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teatro a escolha recaiu sobre o auto, como se ambas fossem formas populares autênticas e cultivadas pelas classes desfavorecidas daquele momento. Claro ficou que tais eleições advieram de uma ligeireza de análise e generalizações prematuras. Se o auto fora o grande teatro popular medieval ele sucumbira há séculos, contudo, a serviço dos poderosos – a Igreja e os monarcas - , tendo encontrado seu ápice na grande retórica jesuítica européia ou transplantado como instrumento catequético no Novo Mundo, formações culturais muito distantes para figurarem ainda no imaginário das populações. Ademais, para as camadas urbanizadas das grandes cidades onde o CPC atuou o formato era tão desconhecido quanto o próprio teatro, quanto qualquer teatro. Se seus integrantes tivessem acolhido Brecht, teriam encontrado, sem dúvida, respaldo teórico largamente formulado para superar sua dicotomia fatal: “O que ontem era popular, hoje já não é mais, porque o povo já não é hoje como era ontem. Quem for vítima dos preconceitos formais, sabe que há muitos modos de ocultar a verdade e outros tantos de dizê-la. (...) No teatro a realidade pede apresentar-se de forma objetiva ou fantástica. Os atores podem estar caracterizados ou estarem-no apenas muito levemente, e dar uma impressão de absoluta naturalidade, representando, todavia, a pura mentira: ou usar máscaras grotescas e dizer a verdade. Sobre esse ponto, não há discussão: os meios devem ser avaliados em função de seu fim”.61 E ainda, se procurassem alento em outras experiências históricas, teriam encontrado Walter Benjamin em meio do caminho, cujo esclarecedor ensaio “O autor como produtor” distingue exatamente os termos daquela oposição, revelando não ser possível uma obra revolucionária se ela também não implicar em uma revolução dentro de seu próprio fazer, não contiver elementos formais que façam avançar o processo criativo, sendo ele incisivo ao reiterar que a pura “tendência política, mesmo se parece das mais revolucionárias, tem uma função contra revolucionária quando o es-
61. Brecht, Bertolt. “O Caráter Popular da Arte Realista”, in Ecrits sur la litterature et l’art, Paris, L’Arche, 1973.
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critor sente sua solidariedade com o proletariado unicamente no que se refere à sua ideologia e não enquanto produtor.”62 O que evitou o MCP não enveredar pelo mesmo caminho ou, melhor dizendo, a não sucumbir nos arroubos maiores da prática cepecista, foi a presença de Paulo Freire, pedagogo responsável por uma revolução copernicana nos métodos de alfabetização popular. Formulador de uma “pedagogia de libertação”, que manifestava uma dialética entre as primeiras letras, o mundo da cultura e o universo cognitivo do alfabetizando, ele pôde, como um dos dirigentes do Movimento, conter os ânimos mais extremados ou simplificadores e projetar a abrangência das atividades em níveis menos epidérmicos.63 No setor teatral, especificamente, o MCP conseguiu construir um teatro ao ar livre em Recife, o Teatro do Arraial Velho, e um teatro ambulante, o Teatro do Povo. Quinze mil pessoas foram reunidas, em vinte dias, para prestigiar o 1º Festival de Teatro do Recife, organizado no suntuoso teatro Santa Izabel. Entre os artistas que se juntaram ao movimento destacam-se Luís Marinho e Luiz Mendonça, autores e encenadores de inúmeras criações levadas em todo o Nordeste. Enquanto essa movimentação fundia discussão e prática em torno da cultura popular, capitaneada pelas centrais do CPC e do MCP, o Arena voltou-se para uma dramaturgia clássica ou pré-burguesa, tentando ali detectar possíveis alternativas para a constituição de uma expressividade menos ingênua e respaldada nos princípios estéticos apontados por Brecht. A etapa de “nacionalização dos clássicos” envolveu, segundo a argumentação de justificativas a posteriori que caracteriza o texto “Etapas Evolutivas do Teatro de Arena”, de Augusto Boal, ajustes de sincronia para um exercício que se mostrou vário. São arrolados A Mandrágora, O Noviço, O Melhor Juiz o Rei, Tartufo e O Inspetor Geral como integrantes da fase, sendo seu inicio datado de 1963. Mas tal divisão puramente estilística deixa de lado espetáculos do período que, no quadro de Boal, restam sem referência, como Os Fuzis da Sra. Carrar, de Brecht e a incursão nordestina O Filho do Cão, de Guarnieri.
62. Benjamin, Walter. “O autor como produtor”, in Essais sur Bertolt Brecht, Paris, Petite Collection Maspero, 1978. 63. Alguns textos de época e uma apreciação do conjunto das ações do MCP podem ser compulsados em Cirano, Marcos e Almeida, Ricardo de. Arte Popular e Dominação, Recife, Alternativa, 1978.
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Nacionalizar clássicos representou um anteparo artístico às teses e à prática de agitação do CPC. Ao descartar os estereótipos, “não existe o ‘clássico universal’ que só o Old Vic e a Comédie podem produzir. Nós também somos universo”, Boal enfatiza que não era o caso de recuperar um molde colhido no passado e reproduzi-lo em caráter museológico, e que, embora um estilo fosse perseguido, seu emprego nunca o era “aprioristicamente”, enfatizando ser a pesquisa artística e o labor estético indispensáveis para a produção de um espetáculo contemporâneo histórica e culturalmente significativo. A busca de uma síntese, de um “universal”, significou uma meta para um grupo que havia esgotado o “particular”, cultivado desde os primórdios do Seminário. Quanto à interpretação dos atores, o percurso é explicitamente salientado por Boal: “Os personagens passaram a ser criados de fora para dentro. Percebemos que o personagem é uma redução do ator, e não uma figura que paira distante e flutua até ser alcançada por um instante de inspiração. Mas redução de que ator? Cada ser humano forma seu próprio personagem na vida real: ri da sua maneira própria, anda, fala, cria vícios de linguagem, de pensamento, de emoções: o enrijecimento de cada ser humano é o personagem que cada um cria para si mesmo.”64 Assim formulada, a proposição parece rebater com pertinácia a tese isebiana do “ser globalmente alienado”, onde “o homem brasileiro é oco, interiormente vazio”, usando como refutação argumentos dialéticos, fundamentados na diversa formação histórica e cultural da população, as características diferenciadoras de cada nação e cada cultura, bem como a negação de um idealizado modelo universal, tal como ocorria com os tipos cênicos dos cepecistas: ou inteiramente alienados ou inteiramente conscientizados. Ainda que apoiado em matrizes vulgarizadas do marxismo, torna-se inegável destacar o salto de qualidade num trabalho teatral que não poupou esforços para tornar concreta a linguagem cênica, em buscar um sentido para a cena,
64. Boal, Augusto, “Etapas evolutivas do Teatro de Arena”, cit., p. 182.
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atingindo “uma reflexão sobre a obra”, como destaca Bernard Dort ser a função do encenador moderno.65 Sintonizado com aquilo que de mais instigante se produzia no teatro europeu, especialmente junto ao teatro popular francês e as conquistas auferidas no Berliner Ensemble, Boal adiantava-se aos demais encenadores brasileiros quanto ao rastreamento das mais generosas influências do legado de Brecht, ou seja, sua prática de encenação. Estreada em 1962 sob a direção de José Renato, Os Fuzis da Sra. Carrar veio coroar um processo de estudos em relação à obra do autor alemão em curso desde meados do Seminário de Dramaturgia. Vinda após o Testamento de Cangaceiro, o último texto encenado do Seminário, Os Fuzis propiciou o necessário “equilíbrio” entre uma dramática aristotélica e realista, apoiada em obras que tinham explorado suas diversas facetas como as do Seminário, e os clássicos épicos da fase posterior. Considerada por Brecht como um exercício dialético sobre os textos Riders to the Sea e Juno e o Pavão, ambos de O’Casey, redigida sob o impacto emocional do bombardeio nazista sobre a cidade espanhola de Guernica na Segunda Guerra, Os Fuzis dá a público, basicamente, uma problemática ideológica: a sra. Carrar possui fuzis escondidos em casa e nega-se a entregá-los aos revolucionários. Após a crescente argumentação de Pedro Jáqueras, seu cunhado e ativo militante, e após a chegada do corpo de seu filho assassinado enquanto pescava, pelos aviões alemães, ela finalmente se convence que não é possível se manter neutra e concorda em entregar as armas aos revolucionários. E mais, retirando do forno o pão que assa durante o transcorrer da ação, ela se junta às milícias. O discurso, do ponto de vista político, não deixa dúvidas: diante de uma guerra é indispensável tomar partido, sob o risco de conivência com os opressores. Ainda que para José Renato “a mãe Carrar é o teatro de nossos dias... entre concepções e definições... entre consciência e inconsciência”66, evidência de uma leitura aligeirada, o texto de Brecht propunha uma opção efetiva à plateia, em sintonia com um estado de coisas que se dilatava para além das paredes do teatro. Texto afeito às leis de unidade, tempo e lugar, permitiu a Flávio Império seu primeiro experimen-
65. Dort, Bernard, O teatro e sua realidade, São Paulo, Perspectiva, 1977. O argumento encontrase no capitulo “Uma propedêutica de realidade”. A obra de Dort configura-se como uma das mais incisivas em relação à apreensão da obra do dramaturgo alemão. Assim como Critique et Verité, de Roland Barthes. 66. Renato, José. Artigo para o programa do espetáculo.
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to entre o “mínimo e o máximo teatral”, teoria que formulou a partir de estudos de Brecht e que o auxiliaram na composição de cenografias futuras. Um texto de Antônio Abujamra salientando as intenções do autor alemão, bem como tópicos da dramática dialética, também figura no programa da montagem. Abujamra há pouco retornara da França, onde estagiara com Roger Planchon em Lyon e, juntamente com José Renato, passa a divulgar as teses principais do Teatro Nacional Popular daquele país. Efetivamente, foi essa a última encenação de José Renato para o Arena, seguindo para o Rio de Janeiro rumo a uma carreira independente. A montagem de A Mandrágora, em 1962, propiciou o mais extenso artigo escrito por Boal como estudo de uma peça e de uma encenação, integrando hoje “Maquiavel e a Poética da Virtú” o volume Teatro do Oprimido. A leitura da montagem intentou surpreender o que havia de O Príncipe escamoteado nas linhas e entrelinhas da obra do autor florentino. Nícia tomou por esposa a virtuosa e incorruptível Lucrécia. Mulher jovem e bela, porém não lhe dá filhos, dada a impotência do marido, já alquebrado. Um jovem galanteador por ela se interessa e, contando com os préstimos de seu criado Siro e do amigo Ligúrio, além da proverbial contribuição “ideológica” do padre-confessor Timóteo, consegue armar um bem sucedido estratagema para a conquista da bela mulher. Tomadas como alegorias políticas, tais personagens podem ganhar outros contornos, ilustrando a passagem da Idade Média para a Idade Moderna - de uma luta de classes. “Maquiavel acredita que a tomada do poder (ou a conquista da mulher amada) só pode ser atingida através de raciocínio frio e calculador, isento de preocupações de ordem moral e voltado unicamente para a factibilidade e a eficácia do esquema a ser adotado e desenvolvido. Esta é a idéia central da peça, e divide os personagens em dois grandes grupos: os virtuosos e os não virtuosos. Isto é, aqueles que acreditam nesta premissa e por ela se regem, e os que não”, na visão de Boal.67 Como encenação, A Mandrágora primava em ser uma requintada comédia, envolta em veludos e rendas, dentro de uma feliz cenografia e figurinos
67. Boal, Augusto, “Maquiavel e a política da virtú”, in Teatro do Oprimido, cit., p. 81.
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de Paulo José; e, se alguma dúvida pairasse sobre uma possível retomada dos engalanados propósitos do TBC a montagem, ao radicar sua força nos conteúdos políticos implícitos à situação, respondia como uma alternativa tanto ao TBC quanto ao CPC. Sem que o amparo brechtiano tenha sido declarado, a inteligência do autor de Galileu Galilei ilumina estas conclusões do encenador: “Acredita-se, convencionalmente, que o teatro popular deve aproximar-se sempre do circo, quer como texto, quer como interpretação. Esta opinião é bastante divulgada e aceita. Discordamos frontalmente (...). Acreditamos, ao contrário, que a característica mais importante do teatro que se dirige ao povo deve ser sua clareza permanente, a sua capacidade de, sem rodeios ou mistificações, atingir diretamente o espectador, quer na sua inteligência quer na sua sensibilidade. A Mandrágora atinge o espectador inteligentemente e, quando consegue emocioná-lo, ela o consegue através do raciocínio, do pensamento e nunca através da ligação empática, abstratamente emocional.”68 A retomada de uma dramaturgia pré-burguesa tinha o mérito de poder localizar os confrontos ideológicos da sociedade capitalista em seu nascedouro. Daí o especial interesse por Shakespeare, estudado na primeira parte do citado artigo. Neste sentido, o encenador via Macbeth, Iago, Cássio, Ricardo III “e outros de menor poder” como homens dotados de virtú - a mesma qualidade exercitada por Calímaco n’A Mandrágora - , e cuja expressão contemporânea pode ser localizada na ideologia do self made man, cuja concreção de ação fez mudar a sociedade, que saltou para outra etapa histórica.69 A escritura cênica empregava uma situação ficcional e contingente para, com uma parábola, expandir seus conteúdos e atingir a contemporaneidade. Mostrar o burguês lutando e armando seu jogo de conquista do poder equivaleria, então, a introduzir a necessária lente histórica que possibilitasse ampliar sua significação, adensando seu conteúdo. O riso da platéia demonstrava sua compreensão do processo: a missão teatral estava cumprida.
68. idem, ibidem, p. 80. 69. Tal modo de situar as personagens shakespeareanas é devida a Jan Kott, autor de uma inovadora incursão sobre a obra do bardo de Stratford. Ver Kott, Jan. Shakespeare, nosso contemporâneo, Cosac & Naiff, São Paulo, 2004. A edição original é de 1962.
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As funções políticas da Poética, de Aristóteles, constituem objeto de outra parte do artigo, onde Boal conclui que ela “é, acima de tudo um perfeito dispositivo para o funcionamento social exemplar do teatro. É um instrumento eficaz para a correção dos homens capazes de modificar a sociedade”.70 Nesse instante, envolvido com a contraposição oferecida por Brecht em torno do anti aristotelismo, tal afirmação pode passar como arroubo interpretativo. Porém, sua máxima expressão enquanto significado contestatório voltará, anos depois, a inquietar o encenador ao formular seu teatro do oprimido. Por ora fiquemos por aqui, nesta constatação.71 Em 1963 uma lei de obrigatoriedade, votada pouco antes, exigia das companhias teatrais a montagem de um texto nacional a cada dois estrangeiros. Também nesta ocasião, sob a gestão de Bárbara Heliodora, o SNT estava oferecendo maiores verbas para a encenação de espetáculos clássicos. A conciliação entre as duas situações explica a montagem de O Noviço, de Martins Penna. O aguado entrecho do seminarista que vem passar as férias na casa da tia no Rio de Janeiro, onde se apaixona pela prima, armando uma série de quiproquós molierescos, se não permitiu um exercício cênico ideológico, abriu as portas, entretanto, para um histrionismo desbragado por parte do elenco. Em meados do ano um novo espetáculo ocupa a arena. Adaptado por Boal, Paulo José e Guarnieri, O Melhor Juiz, o Rei teve praticamente todo seu terceiro ato refeito em sintonia com os novos tempos. O original de Lope de Vega privilegia o soberano como a solução social e moral - portanto política - para o impasse da sociedade barroca, a se debater ainda com os privilégios da nobreza feudal e as agruras da vassalagem. A obra exalta o indivíduo justo, que em suas mãos reúne todos os poderes: caridoso, bom, impoluto, exaltando-lhe o carisma. Se em seu contexto histórico original tal fábula mostrava-se progressista, para o nosso e para o Brasil, corria o risco de ser tomada como reacionária. Tornou-se necessário, portanto, alterar sua estrutura para devolver-lhe, séculos após, sua ideia original.72 A história
70. Idem, ibidem, p. 6, grifos do autor. 71. Boal cita longamente a Poética de Aristóteles pela tradução de Butcher, um neopositivista do começo do século XX certamente por ele estudado em seu período norte-americano. O estudioso, em sua Introdução, não escapa a seu tempo e recalca a função didática e normativa de Aristóteles; coisa que, nos últimos decênios, vem sofrendo agudas e inovadoras reformulações, retirando a ganga que durante séculos pesou sobre o estagirita. Boal, contudo, não se mostra sensível a tais mudanças de interpretação. 72. Boal, Augusto. Artigo para o programa do espetáculo.
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do camponês que move um processo judicial contra um nobre interessado em exercer seu direito à pernada, desvirginando a noiva, é resolvida em Lope com a benéfica intervenção do rei favorecendo o noivo. Na adaptação foi privilegiada a participação de outro camponês, amigo do processante e que, disfarçado como rei, aplica a justiça beneficiando evidentemente seu companheiro. Assim como Lucrécia, n’A Mandrágora, havia representado o poder, aqui a noiva adquiria conotações com a terra, a propriedade fundiária, sendo relativas à reforma agrária as intenções subjacentes à discussão. Ao lado da desenvolta liberdade dos adaptadores para com o original, aprofunda-se também a pesquisa cenográfica de Flávio Império, interessado não na reprodução de ambientes, roupas e utensílios renascentistas, mas no encontro de soluções visuais que conciliassem a realidade brasileira com as necessidades da trama. “Para a imagem teatral que emprega o objeto pelo seu atributo, ou pelo atributo que se lhe empresta a circunstância ou a palavra, o uso de peças prontas é facilmente eficiente. Se tomarmos um objeto qualquer, feito para um determinado fim, e juntamos a ele outro, o que da reunião resulta nem sempre é uma soma. Muitas vezes, e é desse caso que tratamos, o resultado é um terceiro elemento, a revelar um questionamento quanto ao valor narrativo de cada componente cênico empregado. Uma mesma cadeira, dentro de uma sala e embaixo de uma ponte empresta aos dois fatos sentidos diferentes. Uma cadeira usual numa sala usual pode ser tida como ‘neutra’. Se embaixo de uma ponte pode ser tida como ‘máximo contraste’. Esses atributos surgem do sentido de usual para uma dada sociedade. Donde a unidade cenográfica depender da inter-relação plateia-objeto cênico, como fator cultural.”73 O que oferece a medida das preocupações do cenógrafo quanto ao espaço cênico, em busca de uma síntese: longe do realismo, longe do abstracionismo, mais próxima de um sentido, isto é, uma significação advinda do signo que, em última análise, realiza a operação da linguagem, tomada não só enquanto apreensão enfática como acima de tudo poética.
73. Império, Flávio, “Uma boa experiência”, artigo para o programa do espetáculo.
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É ainda a reforma agrária o assunto da próxima produção, através de O Filho do Cão, de Guarnieri. Ao aproveitar os exercícios dramatúrgicos efetuados sobre textos clássicos, o autor elaborou uma trama onde retirantes nordestinos surgem envoltos em crendices que mobilizam Deus e o Diabo e mais a multidão de seus asseclas, em luta pela permanência e posse da terra. Para alojar um numeroso elenco nas reduzidas dimensões da arena, Flávio Império construiu uma cenografia em dois andares, alcançando, além de um espaço plasticamente eficiente, a síntese cênica necessária ao desenvolvimento dos conflitos, tirando partido dos efeitos de iluminação, em cortes quase cinematográficos. A encenação de Paulo José, ao privilegiar os efeitos visuais do espetáculo, enfatizava sobremaneira o trabalho dos intérpretes, através de renovadas incursões pelo método de Stanislávski. Após o recuo estilístico para a Itália e a Espanha medievais, o encontro com a dura existência e quase selvageria dos beatos nordestinos estava exigindo reciclagens que recolocassem o caráter de choque e contraste nos desempenhos. Não mais eram operários urbanizados, como a tônica das personagens oriundas do Seminário, que cabia aos atores interpretar, mas gente dotada de outras motivações psicológicas, emergindo culturalmente de um universo agrário, místico, camponês. Tais recursos, que chegaram a motivar discussões entre os profissionais de teatro, em seguida obtiveram uma “resposta”: a encenação de Antunes Filho, realizada em 1964 no TBC, de Vereda da Salvação, texto de Jorge Andrade, onde levou as pesquisas de interpretação a um ponto limite. Augusto Boal dirige a seguir, motivado pela Marcha com Deus, pela Família e a Liberdade, que meses antes de abril de 1964 saíra às ruas de São Paulo reclamando ordem e progresso para a nação, a mais derrisória obra de Molière: O Tartufo. Sob o comando de D. Leonor Mendes de Barros, esposa do governador Adhemar de Barros, e contando com a eficiente organização da Liga das Senhoras Católicas, a direita havia colocado nas ruas multidões de beatas amedrontadas com a ameaça vermelha sobre os destinos do país. Movimentações semelhantes, ocorridas no Rio e Belo Horizonte, acabaram propiciando o clima social ideal para a encenação do texto de Molière, onde examina o comportamento de um indivíduo pretensamente beato que se aproxima de uma casa da nobreza para solapar as instituições em beneficio próprio. A intervenção do Rei, simbolizada na peça por um emissário que vem prender o Tartufo, ao contrário de parecer um elogio ao governo militar que acabara de desfechar o golpe de 1º de abril de 1964,
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transformava-se, na boca dos atores do Arena, em satírica mordacidade anti-militar. Com requintados cenários e figurinos de Paulo José, e “sem a necessidade de mudar um único alexandrino do texto original”, a nacionalização de mais este clássico da comédia política operava-se por intermédio de metáforas conjunturais. Quanto ao Teatro Oficina verifica-se, neste início de década, uma clara inclinação por textos vinculados ao realismo social norte-americano, julgados adequados às suas preocupações estilísticas e a seu público. Com A Vida Impressa em Dólar, o coletivo finalmente opta pela profissionalização, pela aquisição de uma sala de espetáculos e pela fundação da companhia estável. O texto lefty de Clifford Odets ensejou os primeiros problemas para o grupo: a Censura implicou com o título e passagens mais candentes do entrecho. As dificuldades foram vencidas com algumas adaptações e o espetáculo, considerado a melhor realização da equipe até então, cumpre uma carreira de sucesso. Tratando da crise de 1929 nos EUA, Odets estabelece um corte nos anseios e esperanças de uma classe média envolta pelas agitações, desconfianças e crise generalizada: do país e da própria estrutura familiar. O texto caía como luva para a situação brasileira, não apenas pelas assemelhadas situações socioeconômicas nele tangenciadas como também para os integrantes do grupo, às voltas com definições pessoais e necessidade de rupturas. O Oficina buscava encontrar um acordo com o espetáculo, mediado entre a eficácia de suas propostas, jogo de valores, avanços de conteúdo e ideológicos e os inevitáveis tropeços encontrados junto a seu público, majoritariamente oriundo da classe-média, sendo ele seu principal objetivo e, ao mesmo tempo, seu maior empecilho. Daí a escolha do repertório, quase sempre um arcabouço melodramático realista, psicológico, buscado como veículo para facilitar e prender a atenção do espectador a uma fórmula conhecida (advinda do TBC), mas aberta para um conteúdo problemático, insidioso, subversivo mesmo. Num artigo de época é possível perceber as intenções e o estado de ânimo que permeavam o grupo: “Não é por ser erudito ou popular, metafísico ou panfletário, que o teatro atrai esta ou aquela espécie de público. Antes pelo contrário; a composição do público é determinada por fatores de ordem social preexistentes ao próprio teatro como espetáculo e é o tipo de composição do público que acabará por determinar o próprio conteúdo do
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teatro. (...) Na noite em que fomos assistir A Semente, de Guarnieri, ouvimos um comentário de um respeitável senhor (...): ‘Que maravilha o lirismo dos operários!’ Isto foi o bastante para liquidar todos os pacientes esforços do indefeso dramaturgo: aquilo que pretendia se apresentar como protesto violento, como escândalo, foi, em um abrir e fechar de olhos, maquiavelicamente transformado em um dado inofensivo, pitoresco e classificável do universo burguês.”74 Como se observa, acertando no alvo da mais aguda contradição presente no teatro então praticado, o Oficina erigiu como meta outro horizonte de atuação, aberto à transformação interna do teatro que - acaso não se renovasse jamais atingiria outras camadas de espectadores. O artigo prossegue: “E em função de um público virtual, ainda não existente, mas que seja capaz de se dar sem reservas ao espetáculo (...) é que devem ser organizados os projetos artísticos das novas gerações”.75 Uma “Urgência transformadora” que talvez explique a decisão do coletivo em se voltar, quando de sua nova empreitada, para um universo destoante do repertório que vinha articulando. Recém chegado de Paris, Antônio Abujamra convence a equipe a montar um original de Augusto Boal. Trata-se de José do Parto à Sepultura, uma nova tentativa de aproximar os dois grupos em torno de um projeto em comum. O texto fora muito levemente inspirado, segundo declarações de Boal, em D. Quixote, na mesma chave: ao recalcar os valores medievais num mundo que já os havia ultrapassado, provocaria uma conscientização de tais valores, revelando-os anacrônicos. A montagem, considerada muito ruim pela crítica e pelo público, desbaratou de vez a tentativa de união entre os grupos, mais uma vez evidenciando os rumos divergentes entre seus projetos artísticos. Em 1962 sobe à cena outro original norte-americano, da lavra daquele que já era considerado um relevante representante da “decadência”. Sob a direção de Augusto Boal Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, destacou Maria Fernanda como protagonista. Ela estrelara com sucesso, no ano anterior, a montagem baiana de Martim Gonçalves para o texto. Ainda que a direção insistisse em imprimir acentos nas componentes de
74. Fortes, Luiz Roberto Salinas, “Teatro e privilégio”, originalmente in Cadernos de Oficina, cit., republicado em Arte em Revista, n. 6, cit. 75. Idem, ibidem.
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classe subjacentes à trama, a montagem transpirava certa grandiosidade e glamour que lembravam o TBC. Nesse mesmo espírito, Todo Anjo é Terrível, em 1963, tendo à frente Henriette Morineau e Sadi Cabral, colocava o Oficina abertamente em contraponto ao Arena. Eram encenações luxuosas, vistosas, apoiadas numa dramaturgia de forte extrato psicológico, onde o debate ancora-se mais nas relações morais entre o protagonista e a sociedade que nas refrações sociopolíticas que pudessem emanar. Ainda que dissipando, pouco a pouco, aqueles traços existencialistas que tanto marcaram sua fase inicial, o Oficina permanecia subjetivamente desperto para tal inclinação ética. Na primeira fase do grupo da rua Jaceguai é importante ser destacada a contribuição propiciada por Eugênio Kusnet, não apenas participando como ator em algumas produções, sempre com brilho e impecável técnica, mas também pela dedicação cada vez mais afeiçoada ao elenco e seus projetos, pelas aulas que passa a ministrar regularmente. Kusnet realizara uma adaptação do sistema de Stanislávski, empregando recursos de discípulos do mestre russo e algumas propostas advindas da vertente norte-americana do sistema, o Actor’s Studio. As aulas eram frequentadas diuturnamente pelos principais integrantes do Oficina, ao lado de demais interessados da classe artística, tendo como objetivo o aperfeiçoamento do ator dentro do espetáculo. Em igual medida deve ser entendida a presença de grandes atores e atrizes, mesmo identificados com um teatrão já um pouco desgastado nos elencos desta fase, não como recuperação de fórmulas do passado, mas como meio de não negligenciar uma sólida formação artística. Kusnet traduzira um texto russo, utilizado em aulas, de um autor da década de 1930, enfocando engraçados problemas de convivência numa habitação popular soviética. Diante de uma crise financeira por que passa a companhia, após a montagem de Todo Anjo é Terrível, resolvem partir para a encenação da comédia soviética, acessível e pouco dispendiosa. Foi nesse viés que Quatro num Quarto, de Kataiev, abriu as portas do grupo para um novo filão dramatúrgico. O espetáculo, um grande sucesso popular, fez o elenco provar pela primeira vez o difícil jogo da comédia e sua enorme comunicabilidade junto às plateias motivou inúmeras e intermitentes remontagens, nas várias ocasiões em que o fantasma da crise econômica sobrevoou o teatro. Por essa via de comédia o Oficina chega, em 1963, à montagem de Pequenos Burgueses, de Górki. Seis meses de ensaios e um rigoroso treinamento dentro da metodologia stanislavskiana responsabilizaram-se por fornecer os
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subsídios técnicos e artísticos que alçaram o coletivo, muito rapidamente, à posição de um dos melhores do país, sendo a montagem apontada como um marco na história da encenação no Brasil. Escrita na Rússia em 1902, a obra destaca o esfacelamento social e moral de uma família pequeno-burguesa. Em outro tempo e lugar, evocava confrontos muito próximos do eterno embate protagonista x sociedade que tanto seduziam o grupo - só que, agora, numa decidida ancoragem sociopolítica. Fernando Peixoto, que assina a nota de apresentação do espetáculo, destaca: “É inevitável a identificação com pais, parentes, amigos, nós mesmos. A peça pode ter uma revitalização válida, um interesse espantoso, uma comunicação que não se limite à transmissão de valores estéticos e culturais, mas ajude cada um a compreender sua responsabilidade para com os acontecimentos por mínimos e mais domésticos que sejam, para conhecer melhor sua realidade dentro do mundo e do momento em que vive, sua necessidade de opção na marcha da História, marcha que envolve todos, mesmo os que se negam a ser envolvidos, mesmo os que se opõem à própria idéia de marcha.”76 Piotr, seguindo Nil e Pólia, os empregados da casa, rompe com a família, integrando-se à massa que, nas ruas, marcha contra o czar e entoa a Internacional. Nada poderia ser mais motivador para aquele elenco de filhinhos-de-papai que havia renegado suas boas raízes burguesas em busca da liberdade pessoal do que um drama de rompimento. Efetivamente, a partir da ótica do Oficina (que era igualmente a perspectiva da plateia), a história acontecia fora das paredes do teatro: a questão era enxergá-la e nela tomar um partido. Desde As Moscas, e adensando gota a gota nas realizações intermediárias, o coletivo vinha articulando uma coerente ascensão de compromisso sociopolítico com seu tempo, através de uma identificação estética com sua classe e seu país. Negando atrelar-se aos compromissos populares então em voga, o Oficina atingia com tiro certeiro o alvo da questão naquele momento: a classe que frequentava o teatro era a pequena burguesia, e era ela quem estava sendo mobilizada contra a propaganda revolucionária. Um apelo à conscientização só poderia ser efetivado, nessa ambiência, dentro da perspectiva e dos referenciais dessa mesma classe.
76. Peixoto, Fernando. Artigo para o programa do espetáculo.
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Assim o Oficina, contrário ao voluntarismo teleológico do CPC e da frente nacionalista que carreava o grosso da produção artística ao redor, fazia por seu público um duplo trabalho: propunha-lhe uma opção ideológica claríssima, e, ao não mistificá-lo, possibilitava que tal opção germinasse fora das paredes do teatro. O golpe civil militar de abril de 1964 obrigará a uma revisão total de caminhos. A cúpula do PCB, reunida num jantar de confraternização na noite mesma da quartelada direitista, dá a medida de como os setores de esquerda foram surpreendidos e acossados, através de violenta repressão a todas as organizações atuantes, sem estarem minimamente preparadas para uma reação. Todas as organizações culturais que veiculavam idéias novas e de algum modo comprometidas com a frente nacionalista foram postas na ilegalidade, seus líderes e participantes perseguidos, presos ou exilados. O CPC e o MCP foram literalmente destruídos; o ISEB desmantelado, através de inúmeros IPMs; a Universidade de Brasília, especialmente, e as demais universidades importantes, vítimas de expurgos intermináveis que fizeram evadir cérebros preciosos para a inteligência nacional. Todos os setores culturais ligados ao teatro, música, cinema, TV, literatura ou cultura popular – além da imprensa - tornaram-se vítimas de forte Censura e verdadeira caça às bruxas, onde não foram poupados nem os escalões subalternos, sem comprometimento com as direções. O medo, a insegurança e a falta de caminhos abateram-se sobre o sonho, degustado durante anos, de uma possível virada nos destinos do país.
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CAPÍTULO 6 O GOLPE DE 1964: O OPINIÃO E A ARTE DE PROTESTO
O golpe civil militar de 1° de abril de 1964 não evidenciou, logo de início, todas as intenções a que veio. O que não deixou dúvida, entretanto, foi o caráter truculento por ele articulado, concebido para atrelar o país ao capitalismo internacional, o grande interessado na ampliação de mercados e no repasse de tecnologia obsoleta como expansão de fontes de lucro, intenções que os civis e militares nele envolvidos não esconderam desde seus primeiros meses de ação. Alguns setores da burguesia, que haviam chegado a um namoro não de todo coeso e muito menos pacífico com as esquerdas em anos anteriores provaram que, à simples ameaça de seus privilégios, não hesitaram em bandear-se francamente para a direita. Assumindo o risco de também ela ser engolfada nas malhas da gerência internacional das decisões, porém, menos mal, guarnecendo lucros que a solução à esquerda poderia dissipar, a burguesia optou pelo apoio ao golpe. Todas as organizações progressistas, surpreendidas com a virada brusca, não tiveram condições de qualquer reação que não fosse retórica, como aquela de manter durante alguns dias uma cadeia de rádios executando músicas de protesto ou proferindo discursos inflamados no Congresso Nacional. Em poucos dias a quartelada alcunhada de Revolução de Março derruba o presidente João Goulart e intervém no Congresso Nacional, iniciando um galopante processo de controle de todas as instituições do País. Do ponto de vista historiográfico, esse longo período autoritário costuma ser dividido em três grandes fases: de 1964 a 1969, data em que o AI-5 e a Lei de Segurança Nacional são promulgados; de 1969 a 1974, quando o modelo do “milagre econômico” começa a dar sinais de cansaço e esvazia-
mento, obrigando o regime a abrandar-se; e de 1974 até 1985, época em que as coalizões dentro da própria direita começam a se esfacelar, obrigando a “abertura” que resultará, finalmente, na nova Constituição de 1988. As esquerdas, no pós-64, aglutinam-se numa ampla frente de oposição antifascista, buscando dirimir dissensões internas surgidas em anos anteriores, quando facções começaram a surgir. De fato, em 1960, uma tendência cristã começara a ganhar força, especialmente nos setores universitários e intelectuais, ensejando uma insólita associação entre Marx e Jesus, movimento conhecido como Ação Popular. O PCB, corroído por disputas internas, em 1962, conseguiu segurar um racha, mas duas alas resultam conformadas e em oposição, o que acaba levando a uma posterior subdivisão do Partido, de onde surgirá o PCdoB.77 Outros grupos minoritários existiam, mas pouco expressivos numericamente, entre socialistas, trotskistas, anarquistas etc. Uma integral modificação de práticas e discursos teve de ser operada: a frente de esquerda entabulada com a burguesia e o Estado populista que atravessara a década anterior esboroou-se. Tornou-se indispensável, agora, rever padrões e iniciar novas estratégias, consoantes com o novo contexto sociopolítico. Dentre os setores artísticos, foi o teatro o primeiro a se reorganizar e propiciar uma espécie de “modelo” para a arte de protesto que se seguiu. Atingido de imediato pela repressão militar, o CPC foi desmantelado. Mas seus remanescentes, escolados nas práticas de agit-prop antes desenvolvidas, rapidamente se aglutinam num núcleo teatral, através de uma produção que se transformará no mais acabado exemplo de arte participante e de “protesto” daqueles anos, o show Opinião. Nele, um negro nordestino camponês e um negro carioca favelado representam a parcela popular, somados a uma cantora identificada com a ala estudantil, a classe media conscientizada e, os autores mais o diretor, a porção de intelligentsia que soldava ideologicamente a realização. O grupo Opinião, nascido oficialmente em dezembro de 1964, formado por anti-
77. Garcia, Marco Aurélio. “Contribuições à História da Esquerda Brasileira”, cit. Para Edgar Carone, em Movimento Operário no Brasil, cit., as razões de tal divisão advinham das desiguais apreensões em relação à condução do movimento de luta. De qualquer modo, mesmo que tais tendências divisionistas já estivessem em curso dentro do Partido desde antes, é em 1967 que Luiz Carlos Marighela desobedece taxativamente o CC e parte para Cuba para participar da reunião Tri Continental, viabilizando a hipótese da luta armada no Brasil.
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gos cepecistas oriundos de uma experiência coletivizada, não dispunha de documentação para estrear seu espetáculo, o que concorreu para que essa primeira montagem fosse realizada em associação com o Teatro de Arena de São Paulo e contasse com Augusto Boal na supervisão geral. Somente no ano seguinte a companhia será registrada, organizada como empresa por cotas e seus sócios fundadores são Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Denoy de Oliveira, Pichin Plá, João das Neves, Tereza Aragão e Armando Costa. Não articulando uma estrutura dramatúrgica muito sólida, Opinião caracterizava-se como show musical, apoiado nas personalidades de seus intérpretes que passam, da noite para o dia, à condição de personagens, e daí, a de mitos. João do Vale e Zé Kéti, se não escondiam suas origens humildes, há muito estavam amalgamados com a cultura classe-média do Rio de Janeiro. Nara Leão, embora se auto ironizasse em cena admitindo “ter uma mesa de cabeceira de 120 contos”, foi a introdutora da calça Lee (trade mark, of course) e da camiseta nos palcos – o uniforme cotidiano usado pela maior parte dos estudantes - era quem veiculava a mensagem política mais exuberante do espetáculo: “podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião”.78 Do coletivo de criadores mobilizado, três assumiram a autoria: Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa. No show circulavam casos reais vividos pelos intérpretes, seus embates profissionais com a indústria fonográfica e, sobretudo, suas escolhas de repertório: protest-songs norte-americanas, hinos pátrios, a canção cubana Guantanamera, cifras de migrações forçadas de populações nordestinas entremeando a canção-chave do espetáculo – Carcará - que aborda simbolicamente uma subdesenvolvida situação da região. Portanto de flashs, de referências, de símbolos e paráfrases armou-se a realização, uma vez que nada podia ser explícito, em função da Censura. Opinião foi planejado para operar uma comunicação
78. No programa do espetáculo pode-se ler: “a música popular é tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social; quando mantém vivas as tradições de unidade e integração nacionais.” No mesmo programa, anota Augusto Boal, diretor do show: “Em Opinião, os fatos não estão expostos caoticamente, embora muitas vezes conflituem. Há uma ideia central organizadora da obra, embora nem sempre explícita. A mesma ideia informa as canções de Zé e João, de Pete Seeger e do anônimo espanhol ‘al pueblo y a las flores no los mata el fuzil’. Por que não os mata, Opinião tenta dizer: a simples existência de Opinião é prova de perenidade de flores e povo.”
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entre iniciados: palco e plateia irmanados na mesma fé. O povo cantado no palco era o mesmo povo que lotava a plateia. Mas afinal, quem era povo no Brasil? A resposta não era dada em cena, mas podia ser perquirida na pequena coleção de opúsculos Cadernos do Povo Brasileiro, uma criação do ISEB e publicados em anos anteriores pela editora Civilização Brasileira, contando com vários professores do Instituto entre os autores. Quem é Povo no Brasil foi assinado por um dos proeminentes mentores do PCB e da última fase do ISEB: Nelson Werneck Sodré. Nos livretos, em linguagem acessível “às massas”, conceitos basilares da teoria política surgem explanados. Conceituação nuclear da coleção, Quem é Povo no Brasil permite uma radiografia do ideário isebiano. Assumindo-se na perspectiva de uma “cultura popular”, o autor relaciona, desde o início, povo e nação, o que traz a grande vantagem de, imediatamente, resolver uma contradição que costuma passar despercebida: povo é um conceito antropológico, antes de político; e nação pressupõe a existência anterior de uma população fixada num território, associada em torno de alguns interesses. Quando ajuntados, ainda mais sob a égide de uma “cultura”, ficam dissipados os contornos históricos que conformaram um e outro, restando uma aparente harmonia de termos, numa operação que encobre, em realidade, um ligame ideológico: a suposição de um Estado coeso unindo os dois termos. No raciocínio do autor, “povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive”.79 Quando tal arrazoado é suposto como necessário, ou seja, uma tarefa histórica precisa numa conjuntura histórico/política de vetor teleológico, o autor está apresentando uma estratégia partidária (do PCB, evidentemente) como um princípio referendado pelo materialismo histórico, avalizado como portador de uma objetividade indiscutível.80
79. Sodré, Nelson Werneck. Quem é Povo no Brasil?, Cadernos do Povo Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1962, p. 22. 80. Para um confronto, vale a pena lembrar o ponto de vista de Marx sobre tais questões: “de todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária.” (...) “As classes médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como classes médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras” (p. 29). “Os operários não tem pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem. Como, porém, o proletariado tem por objetivo conquistar o poder político e erigir-se em classe dirigente da nação, tornar-se ele mesmo a nação, ele é, nessa medida, nacional,
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Ora, qual era o limite estratégico do PCB de então? Nada além de colaborar com a revolução burguesa nacional em sua luta contra o capital estrangeiro, como surge expresso em suas teses de 1958, cujas linhas de atuação visavam combater o imperialismo, no plano das relações internacionais e reivindicando as reformas de base, no plano das medidas internas. Conformando um Estado cujo contrato social, quer em sua estrutura quer em suas origens, resulta dissipado na retórica de Werneck Sodré, uma vez velada a complexa e sempre problemática formação sociopolítica e burocrática classista, eufemística e simplificadamente designado “O Brasil”, “a nação”, fazendo supor natural aquele conúbio entre povo e nação. Talvez por isto, em Opinião, Nara Leão declarasse que gravaria baiões “sim”; aparente sacrilégio para quem era reverenciada como a musa da bossa-nova, inteiramente desatenta à voz do interlocutor que a advertia de que “o povo não iria comprar seus discos porque não tinha dinheiro”. Tal pormenor, que apontava para a desigual distribuição de renda e, consequentemente, para o cerne da questão das classes sociais, era rebatido pela cantora com heróico joanadarquismo: era suficiente que ela cumprisse sua parte de intelectual, isto é, gravasse baiões; e o povo, se tivesse dinheiro, que comprasse. A ela competia ter opinião, manter uma posição alinhada, de companheira de caminho, ser uma antena dos anseios populares. Na condição de musa (da ex-bossa nova e, agora, da música de protesto), sua função era sugerir, intuir, captar, interpretar os sentimentos, esperanças e projetos que o povo engendrava e augurava. Fechava-se, desse modo, o circuito ideológico perfeitamente arredondado da práxis política proposta pelo espetáculo, em acordo e acomodamento exemplares com o discurso preconizado pelo PCB no nível tático, tal como surge por extenso em Quem é Povo no Brasil.81 Se não apenas os criadores de Opinião se autodenominavam povo, o que salta aos olhos é o reconhecimento de seu público, ele também se tomando por povo. Tal modelo de comunicação fixou-se, a partir da fórmula
embora de nenhum modo no sentido burguês da palavra” (p. 35), in “Manifesto do Partido Comunista”, Marx-Engels, Obras Escolhidas, 1, São Paulo, Ed. Alfa Ômega, 1978. 81. Numa edição especial dedicada à cultura desenvolvida nos anos de 1960, a revista Visão afirma: “Opinião foi a primeira aula dada ao público sobre como reaprender a ler certas obras de arte – ensinamento extremamente útil nos anos (de censura) que se seguiriam. O clima, na plateia compacta, ensopada de suor e envolvida pelas paredes de concreto do teatro, era de catarse e sublimação. Vivia-se a sensação de uma vitória que tinha sido impossível lá fora”. Dez Anos Depois. São Paulo. Editora Visão, 1974, p. 138.
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encontrada para esse show, carreando para a cena brasileira um teor de protesto que passou a integrar a maior parte dos espetáculos do período. Acoplando o ideário cepecista quanto à prática artística (arte do povo, arte popular e arte revolucionária) à estratégia ideológica do PCB, congelou-se um modelo estético à gauche que, pouco depois, reivindicará o nome de nacional-popular, conceito que engloba as duas fontes táticas citadas e que por elas foi engendrado. Em Opinião, entrementes, isso tudo estava subentendido, abafado sob o forte clima emocional do momento. A música Carcará, por exemplo, ao ribombar em qualquer parte, era logo tomada como um ato de protesto. Em um de seus discos, Nara Leão foi ungida à condição de porta-voz destes anseios: “O interesse político de Nara não lhe impede de ter uma visão ampla da canção popular e de valorizá-la em seus diferentes aspectos, como em suas diferentes épocas e fases. Ela parece fazer questão de mostrar que a canção popular muda, transforma-se, se enriquece e, não obstante, continua a mesma”, escreveu Ferreira Gullar. Mas, todavia, “Quando o ‘do povo’ ruma para o ‘popular’, o adjetivo tende a deslizar para um outro que encobre definitivamente a contradição e a luta: o adjetivo ‘nacional”, cuja peculiaridade, sobejamente conhecida, consiste em deslocar a luta interna para um ponto externo à sociedade e que permite a esta última ver-se imaginariamente unificada. Este deslizamento não é casual mas encontra-se latente no termo ‘popular’, pois este já realiza uma primeira unificação, extremamente problemática, de todas as camadas da população que não estejam imediatamente ‘no alto’, e que, postas como consumidoras de uma cultura que não produziram, levam ao risco de dissimular diferenças reais como aquelas que provavelmente existem entre operários e pequeno-burgueses, entre proletariado urbano e rural, entre os assalariados dos serviços e os setores mais baixos da pequena burguesia urbana, etc. Destarte, passar da unificação popular à nacional torna-se uma operação ideológica muito fácil e tentadora,
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porquanto elimina a necessidade de enfrentar as diferenças mencionadas”, referenda Marilena Chauí, ao examinar tais questões.82 Como se vê, fulgura no âmago daquela operação ideológica uma contradição entre termos que, nem Nelson Werneck Sodré nem o resto das vozes que agitavam a bandeira da cultura nacional popular, estavam interessados em desvendar ou deslindar. Uma vez que, como grifa a professora: “... o modo de inserção no sistema produtivo é diverso para essas classes e segmentos de classes, mas sobretudo porque se considerarmos a cultura como ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza, entre si e o poder, bem como a maneira como interpretam estas relações, a própria noção de cultura é avessa à unificação”.83 A música Opinião, nesse sentido, tornava-se uma senha de reconhecimento da tribo ideológica. Por metonímia, por simbolização. O passo seguinte desse processo de representação é o aparecimento do mito, para que se complete o sentido circular próprio às criações ideológicas artificiais. Liberdade, Liberdade, o espetáculo sequencial montado pelo mesmo grupo, cumpriu tal função. Estreado a 21 de abril de 1965, contou com o desempenho de Paulo Autran, Thereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho e, novamente, Nara Leão. Montagem que reunia cenas, textos, canções, poemas e piadas tendo como núcleo a idéia de liberdade, foi justificado por seus autores como “um espetáculo que pretende reclamar, denunciar, protestar - mas sobretudo alertar” (Flávio Rangel) e “frente a um panorama cuja palavra de ordem é ‘retroagir’ (...), não queremos retroagir senão para a frente” (Millôr Fernandes). Mesmo Paulo Autran, ex-ator do TBC e da cia. Tônia-Celi-Autran, até então um artista fora dos circuitos da esquerda atreveu-se a uma justificativa: “se
82. Chauí, Marilena. “Cultura do Povo e Autoritarismo das Elites”, in Cultura e Democracia, São Paulo, Moderna, 1981. 83. Idem, ibidem.
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o público compreender palavras tão belas, assimilá-las e amá-las, teremos lucrado, nós, eles e o País também”.84 Formulado como um afresco conceitual, Liberdade tornou-se o carro chefe do protesto e foi levado em excursão a todo o Brasil. Em suas intenções de denúncia, percorria alguns momentos da História: do assassinato de Sócrates ao discurso de Marco Antonio frente a César morto; da morte de Danton à repressão na Guerra Civil Espanhola; do “ça ira” francês ao Hino da Proclamação da República, fazendo a palavra liberdade ser multiplicada mil vezes sobre os tablados. Faltou, todavia, imbricar toda essa exaltação a um aporte político: afinal, de que liberdade se estava tratando? Impedia-os de dizer, evidentemente, não apenas a Censura política do regime, como também o pacto aberto pela frente, e assim, não descendo ao cerne da questão de classe, os autores e o espetáculo pulavam aqui e ali, saltavam muros e deixavam o espectador sem resposta. Mito consumado, Liberdade, Liberdade rodopiava sobre um conceito político basilar, sem adentrá-lo em suas múltiplas acepções. Fiel àquele circuito fechado de comunicação - do povo para o povo - a postura estético-ideológica do grupo Opinião foi se refinando nessa paradoxal e metafórica configuração, visando manter acesa a chama de uma pulsão. Auge da chamada “esquerda festiva”, o ritual teatral encarnava a efusão cívica e ideológica, ao perpetrar o mito maior que engendrara: o de que, a partir de uma opinião, o regime ditatorial cairia. A estética de agitação cepecista é a contrapartida das teses do PCB quanto às táticas para a política de massas anterior ao golpe. Segundo Octávio Ianni foi esse “o dilema mais grave dentro da esquerda - não pôde transformar a política de massas em luta de classes”85, devido a seus compromissos no período da frente nacionalista, argumento que Roberto Schwarz retomou com menos papas na língua: “formou-se, em consequência, uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista então dominante, cuja ideologia original, o trabalhismo, ia cedendo terreno. O aspecto conciliatório
84. As declarações constam da edição impressa do texto, Liberdade, Liberdade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. 85. Ianni, Octávio. O Colapso do Populismo no Brasil, cit.
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prevalecia na esfera do movimento operário, onde o PC fazia valer a sua influência sindical, a fim de manter a luta dentro dos limites da reivindicação (puramente) econômica. E o aspecto combativo era reservado à luta contra o capital estrangeiro, à política externa, à reforma agrária.”86 Ao agitar a liberdade, a opinião, o protesto, como símbolos genéricos de uma atitude política, o Grupo Opinião não ultrapassava os pressupostos e compromissos ideológicos da frente, tornando-se a mais acabada versão brasileira de um grupo teatral vinculado a uma estratégia programática. Que, mesmo após sua dissolução “formal” em 1970, continuou, através da obra de vários de seus ex integrantes, a alardear uma estética pari passu com as postulações que tal tendência criara, já agora no interior do Estado autoritário após o AI-5. Estranhável? Não, se a observação for dirigida à trajetória política do PCB que, mesmo alijado do poder no pós-64, não desistiu, pelo contrário aprofundou, em anos seguintes, sua política de alianças com setores burgueses do mundo econômico e burocrático da ditadura, na esperança de integrar, ainda que à esquerda, uma nova coalizão política no interior do Estado.87 O Arena e o Oficina, mesmo que engolfados na onda de protesto que agitava a intelectualidade, desenvolveram outras características que demandam ser mais bem apreciadas. O golpe de 1° de abril de 1964 surpreendeu o Arena levando à cena O Tartufo, de Molière, encenação integrada à fase de nacionalização dos clássicos. Arremetendo contra as beatíficas demonstrações de religiosidade invocada nas Marchas Por Deus e Pela Família contra o avanço do perigo vermelho, O Tartufo, sem necessitar qualquer adaptação, era inteiramente recebido pela plateia como uma corrosiva crítica àquele estado de coisas. Um texto estrangeiro e temporalmente distante, entrementes, não era suficiente para abarcar tudo o que estava entalado nas gargantas. Enquanto Augusto Boal dirigia Opinião, no Rio de Janeiro, o elenco paulista reuniu-se em torno de Guarnieri, partindo para a criação de um espetáculo que empregava técnicas assemelhadas à montagem carioca: estruturado,
86. Schwarz, Roberto. “Cultura e Política 1964-1969”, in O Pai de Família, Rio, Paz e Terra, 1978. 87. As articulações para tanto e uma análise desse tema serão retomadas no último capítulo.
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porém, sobre uma base dramática mais densa e tomando como personagens os negros quilombolas do século XVIII. O recurso à história, como se viu, havia perpassado Liberdade, Liberdade; a utilização da música, do corte brusco na narrativa, da mistura deliberada de elementos reais com outros ficcionais veio com a experiência de Opinião. O resultado constituiu-se no maior sucesso de público já levado à cena na sala da Teodoro Bayma: Arena Conta Zumbi, texto assinado por Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, autor das inúmeras e belas canções do espetáculo, estreado em 1° de maio de 1965. A idéia básica também estava nucleada em torno da exaltação da liberdade, mas estruturada, contudo, em modo menos abstrato, a partir das lutas dos negros rebeldes do Brasil Colônia, fundadores de uma comunidade livre no interior das matas nordestinas, fugindo à escravidão imposta pelos brancos. Para contar um episódio que, no tempo real, ocupou várias décadas e enfileirou centenas de personagens-chave para culminar em seu desfecho, um pequeno palco sem cenários e um grupo de apenas oito atores tornava a tarefa um verdadeiro desafio. Com a chegada de Boal, procedimentos de síntese e farto uso da improvisação viabilizaram uma saída formal para o projeto, nascendo assim o sistema coringa. Em cena, os atores eram atores mesmo, “incorporando” as personagens nos momentos indispensáveis, sendo a narrativa auxiliada por slides que exibiam mapas e fotografias; e cenas descritivas sobrepunham-se a outras de caráter dramático, paródico, ficcional ou eram bruscamente interrompidas, declaradas incompletas pela falta de certezas ou referências. O resultado assemelhava-se a um seminário acadêmico, uma dramatização feita por alunos para uma aula ilustrada. Qualquer analogia com os procedimentos do CPC não era mera coincidência. Se foram estudantes que dramatizaram o Auto do Tutu tá no Fim e O Auto dos 99% (que era uma versão da história da universidade no Brasil), ou mesmo Missa Agrária, encenada conjuntamente pelo Arena e o MCP em Pernambuco, Zumbi evidenciava inúmeros pontos de ligação com sua realidade de grupo teatral de extração majoritariamente universitária, sabendo que seu público possuía a mesma composição e origem. A encenação valeu-se apenas de um tapete vermelho cobrindo o palco e os atores trajavam jeans e camisetas coloridas, o que visualmente reforçava a ambiência estudantil. Um maniqueísmo exemplar marca a realização: os negros são belos, altaneiros, alegres, enquanto os brancos despóticos, desprezíveis e cruéis. As correlações históricas entre o passado e o presente foram deliberadamente
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forçadas para demonstrar uma similitude de fatos e eventos, atingindo assim sua mensagem política: a uma primeira fase de tolerância e convivência pacífica entre negros e brancos, sobrevém um duro golpe militarista, destinado a desbaratar os quilombolas, a esmagar e apagar a memória daquele sonho de liberdade e felicidade humanas. A fase dos musicais, iniciada com Zumbi, foi justificada por Augusto Boal no texto “A necessidade do ‘coringa’” como a de uma conciliação entre o particular, exacerbado na época nacionalista, e o universal, exaltado durante os anos de nacionalização dos clássicos: “tínhamos de encontrar o particular típico.”88 É sabido que tal formulação constitui-se em pedra de toque da estética preconizada por Geörgy Lúkacs e tal referência, nessas alturas das considerações, não é fortuita. Para quem já havia se defrontado com as principais teses do realismo socialista, com as constituintes de universalidade da dramaturgia pré-burguesa, chegar às teses lukacsianas significava um passo natural, uma espécie de programa definido. Por um lado, o olhar lançado sobre episódios retirados da história (como os dramatizados escritos em coringa) obrigava o encenador a possuir uma teoria da história, não apenas para nortear-se quanto à exemplaridade do recorte ficcional e sobre ele defender um ponto de vista; como, de outro, obrigava-o a distinguir entre as constituintes sociológicas mais amplas de uma e outra época. Além do mais, o momento pós-64, onde nitidamente foi abortada uma esperada mudança política, exigia um mais sério enfrentamento da questão colocada pela função do indivíduo na história. O caráter tático dessa função, todavia, como referido nas ponderações de Boal, assume uma urgência não suposta pelo teórico húngaro, lida ou interpretada como um aqui e agora, uma atuação imediata. Nesse procedimento de instantaneização para com a função do indivíduo na história foram dissipados, entrementes, os contornos “humanistas” vigentes na anterior fase de nacionalização dos clássicos, aqueles contrapontos teóricos brechtianos que tornaram o Arena uma barreira estética ao simplismo do CPC. É conhecida a vinculação do pensamento lukacsiano ao idealismo hegeliano; como igualmente sabe-se que seu aparato conceitual segue as
88. Boal, Augusto. “A necessidade do ‘coringa’”, in Teatro do Oprimido, cit., p. 191.
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grandes acomodações programáticas leninistas expressas em Materialismo e Empirocriticismo. Lukács escreveu: “Dado que a ininterrupta transformação histórico-social pertence à essência da realidade, ela não pode ser esquecida no reflexo artístico. Aliás, ela chega mesmo a tornar-se o problema central da justa reprodução. De fato, se se considera - como já Hegel o fazia - a modificação histórica do conteúdo como base para a transformação da arte no que toca à forma, no estilo, à composição, etc., é claro que no centro da criação artística deve estar precisamente este momento de transformação, do nascimento do novo, da morte do velho, das causas e das consequências das modificações estruturais da sociedade nas relações recíprocas entre os homens.”89 Mais adiante, ao deter-se sobre o partidarismo na obra de arte, ele conclui que: “as obras originais são aquelas nas quais aparecem tomadas de posição justas, conteudisticamente, em face dos grandes problemas da época, em face do novo que neles se manifesta, e que são representadas mediante uma forma correspondente a este conteúdo ideal, capaz de expressá-lo adequadamente.”90 Tal arcabouço conceitual parece ter fornecido ao encenador os elementos suficientes para lastrear seu pensamento em torno da dialética organizada em torno da originalidade/compromisso histórico. Em suas ponderações, afirma Boal: “Queríamos refletir sobre uma realidade em modificação, e tínhamos ao nosso dispor apenas estilos imodificáveis ou imodificados. Estas estruturas reclamavam sua própria destruição, a fim de que não destruíssem a possibilidade de, em teatro, surpreender o movimento. E queríamos surpreendê-lo quase no dia a dia - teatro-jornalístico.
89. Lukács, Geörgy. “Concretização da Particularidade como Categoria Estética em Problemas Singulares”, in Introdução a Uma Estética Marxista. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1978. 90. Idem, ibidem.
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A história passa a ser não uma referência cósmica, mas sim de uma perspectiva terrena bem localizada no tempo e no espaço: a perspectiva do Teatro de Arena.”91 Com o estabelecimento desse horizonte, o elenco se singulariza frente ao grupo carioca: além de uma opinião sobre o mundo, queria ter igualmente uma perspectiva para essa opinião, distinguir-se enquanto grupo ideológico com certo partidarismo em arte e, mais que isto, apontar um caminho, sugerir uma alternativa concreta de ação à plateia. Zumbi refere-se, ainda que indiretamente, à luta do povo vietnamita: o programa do espetáculo traz a foto de um vietcong como fundo para frases candentes do texto dito em cena; várias técnicas da luta de guerrilhas empregadas pelos negros (algumas descritas em minúcias no espetáculo) aludiam às práticas de combate daquele povo do oriente. Se, por um lado, tal perspectiva histórica tornava-o distinto de seu congênere carioca ele enredou-se, por outro, no emaranhado lukacsiano, através de sua problemática apreensão do particular típico. Zumbi representou uma expressão cênica inovadora e emocionante, mas não conseguiu suplantar sua dicotomia política essencial, isto é, tratar um episódio histórico com distanciamento crítico, isentando o público como espectador dos fatos. Ao tornar a luta presente, através das constantes idas e vindas das personagens e atores no tempo e no espaço, através das buscadas identificações com criaturas e figuras atuais e reconhecíveis pela plateia, substituiu o político do histórico pelo político do teatral, forçando o espectador a também entrar em cena, ele também um oficiante do ritual. Nesse sentido, o próprio Boal sustenta, a respeito do coringa, a necessidade da exortação, como uma espécie de panacéia para uma platéia imobilizada.92 Lukács indicara que a definição do típico: “é tão mais justa cientificamente quanto mais alto for o nível de generalização ao qual esta definição e sua síntese no tipo for elevado, na ação recíproca dialética que assim surge deve prevalecer o momento
91. Boal, Augusto. “A necessidade do ‘coringa’”, in Teatro do Oprimido, cit., p. 187. 92. Boal, Augusto. “As estruturas do coringa”, in Teatro do Oprimido, cit., p. 205.
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de universalidade, ainda que também o de particularidade permaneça como uma característica ineliminável do tipo”.93 Zumbi sugere que, ao radicar no estudante o arquétipo de alteridade para o típico do Arena, o grupo atropelou o arrazoado conceitual, deslizando do estético para o real, escolhendo seu público como personagem padrão para representar aquela função do indivíduo na história, coisa que concorreu decisivamente para mitificá-lo, quer no plano real quer imaginário, tal como fizera Opinião em relação ao povo; isto é, tomando o agente transformador onde ele não estava. Num caso e noutro, o que faltou foi uma mais acurada análise de classe, uma distinção que indicasse ou sugerisse quem, dentro do espectro social, efetivamente era ou poderia ser o agente de mudança. Constatemos o que tais sutis deslocamentos analíticos promoveram: -a conceituação de nacional e popular, como veiculada pela arte participante, baseava-se no conceito isebeano de povo, quer dizer, na ratificação estética e sociológica dos compromissos assumidos com a frente nacionalista; -a eleição do povo ou do estudante como agente transformador não apenas mascarou o verdadeiro debate em torno da questão de classes como, por seu intermédio, corroborou a política de massas do PCB: no passado o pacto populista e, no presente, a frente antifascista; -seja pelo viés voluntarista (basta uma opinião para que o regime se dissipe) seja pelo estético (a formulação da exortação), ambos os processos concorreram decisivamente para embalar o público em rituais cívico-esquerdizantes, substituindo a ação real pela sua exasperada representação, mais um veículo para a esquerda festiva; -a sistematização teórica e as realizações artísticas delas resultantes, refinadas em anos subsequentes, constituem o núcleo do que pode ser surpreendido como a hegemonia cultural do PCB nos domínios da cultura brasileira. Ao longo dos anos mediados entre 1964 e 1969 tal pensamento se estabilizará na produção cultural, assumindo uma posição de liderança, não tanto pela ausência de vozes discordantes ou portadoras de outras postulações ideológicas e artísticas, mas porque sua ampla articulação, difundida em praticamente todos os setores da criação cultural, tornou o campo das
93. Lúkacs, Geörgy. “Concretização da Particularidade”, in Introdução a Uma Estética Marxista, cit.
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ideias e da criação brasileira, a partir daquele momento, o grande terreno da prática política, impedida de ser exercida em seus territórios próprios e coerentes.94 Destaque-se, nestes primeiros tempos, o disparado privilégio do teatro frente a outros setores da produção artística e cultural, quer pelo seu incoercível poder de catalisação de público quer sua captação de outros criadores, constantemente chamados a integrar coletivos de trabalho nas produções cênicas da época. Lembremos, nesse sentido, que o jornalista derrotado vivido por Oduvaldo Vianna Filho no filme O Desafio, de Paulo Cesar Sarraceni, ao descer as escadarias da Lapa, passa por um cartaz de Liberdade, Liberdade colado à parede, enquanto a trilha sonora evoca “Ganga Zumba”, o tema central de Zumbi. E que, como constituinte não fortuita do enredo do filme, a personagem assiste ao espetáculo Opinião, onde, nas palavras de Jean-Claude Bernardet, “contempla o espetáculo sem reação, nada que indique aprovação ou rejeição, e sua impassibilidade coloca em dúvida toda uma linha de ação que foi e é a que se convencionou chamar de festiva”.95 O fato de até o momento o grupo Oficina não figurar neste rol de considerações não se deve à ausência de uma ou outra destas características presentes no ideário do grupo, mas porque outros formatos de engajamento eram cultivados entre as paredes da rua Jaceguai, 520. Mais intelectualizado que seus congêneres e, na mesma proporção, menos politizado, o Oficina também creditou seu dízimo à frente, porém em modo estético e não diretamente político. O golpe militar o surpreendeu com a produção de Pequenos Burgueses ocupando o palco. As apresentações foram suspensas, alguns atores se refugiaram do clima de insegurança instaurado e o grupo, na ausência de qualquer coisa mais insossa, encena Toda Donzela tem um Pai que é uma Fera, de Gláucio Gil, uma comédia despretensiosa girando em torno de Tarcísio Meira, já na ocasião um galã de sucesso na televisão para ganhar tempo e se reorganizar. Acalmados os ânimos, segue-se Andorra, de Max Frish, montada ao final de 1964, além de uma série de atividades outras que ocupam o grupo ao longo do ano e meio seguinte: excursões para várias cidades, participação
94. Schwarz, Roberto. “Cultura e Política”, cit. 95. Bernardet, Jean-Claude. Brasil em Tempo de Cinema, cit., p. 123.
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no I Festival de Teatro de Atlântida, no Uruguai, um programa de televisão em Montevidéu, cursos, etc. Andorra é uma fábula sobre a delação. Perfeitamente sintonizada com o clima reinante após 1964, o texto de Frish foi tomado como parábola sobre os duros tempos em que se vivia. Mais uma vez apelando para um texto estrangeiro, passível de ensejar correlações, mas não identificações imediatas, o Oficina posicionava-se frente à realidade pela via oblíqua. A encenação propiciou a José Celso Martinez Corrêa o confronto com uma dramaturgia crivada de elementos épicos, não realista quanto à exposição da ação, o que gerou um espetáculo híbrido, oscilando entre o verismo psicológico e o antiilusionismo distanciado do espaço cênico. Suas preocupações com Brecht acentuam-se neste momento e ele vai à Europa, em 1965, para estagiar junto ao Berliner Ensemble. Em seu retorno e a partir do municiamento artístico trazido na bagagem nasce um novo e decisivo espetáculo para o Oficina: Os Inimigos. Górki é novamente convocado para, através de uma paráfrase, equacionar a realidade brasileira. Os pequenos burgueses apavorados com o ascenso revolucionário de 1905 foram substituídos, nesse momento, por um amplo painel social que, seccionando a sociedade russa após 1905, investigava a inter-relação entre a alta burguesia, a classe média e o proletariado no momento conturbado de uma revolução fracassada. Ao ser traduzido por Fernando Peixoto e pelo encenador, o texto já tomara certas liberdades, estabelecendo conotações com os tão próximos acontecimentos ocorridos em Brasília. Adensado artisticamente por uma encenação que misturava arbitrariamente elementos épicos e dramáticos, Os Inimigos punha a nu o pacto burguesia/Estado objetivando coibir os avanços do proletariado. Optando por enfatizar a crônica dos acontecimentos tratados no enredo, elegeu igualmente a óptica da burguesia para efetivar a narração. Assim, emoldurando o antagonismo entre as classes sociais como proposto pelo original, surgia em cena outro enquadramento político, distante daquele invocado pela hegemonia cultural do PCB e, ao eleger a óptica da elite (que era, afinal, seu público), o Oficina punha em cena o problema exatamente para quem por ele podia ter interesse. Os três grupos aqui enfocados dividiam, em termos amplos, o mesmo público, majoritariamente estudantil, mas só o Oficina optou por não mistificá-lo como os demais: essa é a diferença velada que a montagem de Os Inimigos suscita. Dado o rigor artístico da realização, bem como sua vincu-
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lação às preocupações da esquerda, a montagem não foi percebida, naquele instante, como uma crítica efetuada sobre as teses articuladas pela hegemonia cultural. O fato de estar no palco um original focado em outro país conferia à encenação a possibilidade de algum desajuste quanto às análises que tentassem situar o grupo como fora dos padrões por ela defendidos. Se, de fato, eles já se encontravam em desacordo com aqueles encaminhamentos, em muito pouco tempo tais diferenças vão se tornar translúcidas, escandalizando os arraiais frentistas, com a montagem de O Rei da Vela, objeto do próximo capítulo.
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CAPÍTULO 7 EXORTAÇÃO E PARÓDIA: ESTÉTICAS OPOSTAS E SUAS VIGÊNCIAS
Em 1966 o Opinião dá a conhecer um inusitado espetáculo, cujo título situa onde a política da frente nacionalista se enredara: Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, ainda uma vez dois autores encobrindo um coletivo de trabalho, inspirado no filme Tom Jones, que Tony Richardson moldara a partir da obra homônima de Fielding. Em cena é conformado um amplo painel de tipos sociais onde se destaca Roque, empregado pobre de uma fazenda nordestina às voltas com políticos, prostitutas, um industrial, um poeta e uma moça casadoira, todos procurando sobreviver, cada qual a seu modo, levando vantagem sobre os demais. Para a nova realização, alinham-se razões políticas, artísticas e ideológicas. No programa da encenação tais razões são assim apresentadas: contra a política de “castas”, preconizada pelo golpe, um nivelamento dos diversos setores da população era efetuado pela cena; contra o quietismo social, a intenção de se fazer festa, porque “existir é manifestar”; contra a desconfiança do governo em relação ao povo, o Bicho era um voto de confiança neste povo; como podem ser expressas as razões políticas. Artisticamente, recorria-se à literatura popular, “a imaginação e a fantasia sobrepujando a verossimilhança (...) um fiel e maduro amor à objetividade”, onde a própria autoconsciência já definia que “talvez o excesso de festa e de vitalidade seja uma maneira de responder à ausência de festa e vitalidade em que vive o País”. E, finalmente, entre as razões ideológicas, “a tentativa de ordenar, de desenhar o impasse entre o ser real e a vontade de ser das pessoas da realidade brasileira”, na qual “o impasse chega à inércia”. Portanto o Bicho “é o impasse em que nos metemos não devido à nossa irresponsabilidade e cor-
ruptibilidade, ao contrário, o homem é capaz de viver esse impasse porque é altamente responsável e incorruptível.”96 Para os ex-cepecistas que, dois anos antes, apostavam que ter uma opinião era suficiente para abalar o regime, observa-se, sem dúvida, sensível progresso quanto ao dimensionamento do real. Envolvendo grande número de artistas de vários calibres, o espetáculo contou com a direção de Gianni Ratto, diretor italiano que, entre outras realizações de sua profícua carreira, trabalhara com a Cia. Maria Della Costa e com o TBC. Essa valorização de expoentes do passado, identificado como valor indispensável a ser conservado na necessária sedimentação de uma postura nacional, perpassou o grupo desde seus primórdios. O impasse, tão eloquentemente grifado no novo título apontava, evidentemente, para uma radiografia da situação política do país. Não apenas a frente nacionalista ameaçava desboroar, bem como o desastre de 1964 prolongava-se por tempo maior que o antevisto nos primeiros momentos após sua eclosão, cuja aparência de mera quartelada apontava para uma permanência mais longa e consequente, fazendo vislumbrar transformações estruturais mais profundas. Atos institucionais cada vez mais restritivos, reorganização partidária absolutamente autoritária e com claros objetivos de divisão entre as forças de oposição (apenas dois “partidos” foram permitidos, a ARENA e o MDB), ações restritivas da Censura, repressão sindical, são algumas das medidas que acompanham a implantação de uma verdadeira rede de medidas econômico-financeiras abertamente comprometidas com o capital internacional. O PCB, que realiza neste ano sua primeira reunião do CC após o golpe militar, enfatiza em sua autocrítica a tática a ser desenvolvida: “isolar e derrotar a ditadura e conquistar um governo amplamente representativo das forças antiditadura.” Já não se fala mais em derrubar a ditadura, mas em isolá-la e derrotá-la. Tal deslocamento tático não ocorreu pacificamente, bem como diversos sintomas de divergências, descontentamentos e assumidas rebeldias internas incumbiam-se de pôr a frente em xeque. É possível supor, neste contexto, o que o Opinião queria dizer com política de castas, como a praticada pelo governo e, igualmente, o pretendido nivelamento social dentro da ficção do espetáculo, onde os diversos
96. Grupo Opinião. Artigo no programa do espetáculo.
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estratos da população eram flagrados em assemelhada relativização moral, cumprida à medida em que conquistam e afirmam a supremacia de seus princípios éticos e políticos. Princípios que reluzem na pequena fórmula ideológica que dava sustento à obra: “ser como se é, já não é permitido, não é possível”97 - donde resulta o impasse. Assim, na confluência de uma conjuntura desfavorável, resta ao grupo, ainda fiel à sua conivência com a frente, postar-se perplexo: o bicho pega ou come. O bicho (papão), símbolo pantagruélico da ditadura, ganha aqui foros metafóricos para encobrir o verdadeiro caráter de uma situação que não podia ser mais bem explicitada, sem correr o risco de entornar o caldo cuidadosamente mantido até o bordo de uma panela sobre fogo forte. O recurso à uma obra bela, festeira, vitalista, de desabrida crítica moral, acoberta assim uma tática de ação para a qual era impossível avançar mais. No Arena, simultaneamente, Augusto Boal teoriza sobre o coringa, estreando a 1° de maio de 1967 um espetáculo fortemente ideologizado: Arena conta Tiradentes, onde o proto-herói da independência e os acontecimentos da Inconfidência Mineira foram retomados, numa tentativa de equacionar as coordenadas políticas e constituir um modelo de encenação todo próprio dentro das especificidades daquele grupo teatral. Coroando o conjunto de razões que levaram à montagem são invocadas, inicialmente, razões econômicas: “o sucesso de uma peça até 1964, mais ou menos, promovia o sucesso de outras, [...] hoje os poucos espectadores fanáticos remanescentes são disputados à faca pelas poucas companhias remanescentes e fanáticas. O espectador que vai uma vez ao teatro pratica, assim, sua boa ação de cada ano e dificilmente volta a repetir a experiência onerosa”.98 Em seguida, o encenador evoca a necessidade de fomentar uma contínua revolução estética visando mobilizar a plateia e também contribuir, em igual medida, para a evolução do teatro brasileiro. Declarando que mesmo o “teatro de caminhão” do CPC era “clássico”, porque preso a uma forma
97. Idem, ibidem. 98. Boal, Augusto. “Etapas Evolutivas do Teatro de Arena”, in Teatro do Oprimido, cit., p. 174.
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fixa, ele reivindica para o Arena um desenvolvimento dialético quanto à coordenação artística e à necessidade social. Após historiar as várias fases vividas pelo grupo, chega finalmente às razões do coringa. O sistema, esteticamente já analisado em ensaios e artigos, não será aqui retomado, dada a linha de raciocínio que interessa ressaltar. Com ironia, Boal aponta uma significativa contradição: “nos países subdesenvolvidos costuma-se eleger o teatro dos ‘grandes centros’ como padrão e meta. Recusa-se a plateia de que se dispõe, almejando a distante. O artista não se permite receber influência de quem custeia seu trabalho e sonha com os espectadores chamados ‘educados’ ou ‘de cultura’”.99 Não é apenas ao teatrão preconizado pelo TBC e seus sucedâneos que o criador do coringa se dirige, obviamente. É possível entrever nessa admoestação uma mais longa tradição culturalista e de bom tom subjacente à boa parcela dos criadores teatrais à sua volta, envolvidos no caldo de cultura que banha as relações entre as formas estéticas internacionais versus as nacionais. Bem como é possível entrever, na declaração, a justificativa que levou o Arena à eleição de seu público prioritário - os estudantes. O caráter artístico do sistema coringa é justificado pelos usos anteriores do expediente de um mesmo ator representar dois ou mais personagens, numa linha de teatralidade ascendente em relação ao desenvolvimento da cena nas primeiras décadas do século XX. Por outro lado, a inserção da exegese do enredo dentro da própria peça, é também ascendente em relação à evolução do teatro épico moderno, bastando se verificar a função do raisonneur no teatro realista, dos mestres de cerimônia nos cabarés e dos narradores brechtianos. Ao optar por um sistema permanente de fazer teatro, cujas regras narrativas são previamente aclaradas, em posse de conhecimento pela platéia, “imutável ou pouco modificável”, Boal em realidade vislumbra criar um jogo de regras, tal como nos esportes, aberto à originalidade de lances. Uma peça escrita e encenada dentro do sistema compõe-se de Dedicatória, Explicação, Episódio, Cena, Comentário, Entrevista e Exortação, sendo criados dois Coros (o Protagonista e o Antagonista), um Coringa, uma
99. Idem, ibidem, p. 194.
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Orquestra Coral e a divisão geral do espetáculo em dois Tempos. Como se percebe, foi do futebol que adveio a inspiração, com árbitro e tudo. O equilíbrio entre o particular e o universal, entre empatia e distanciamento, fica assegurado pelas funções vetoriais do sistema: o herói encarna e emana a primeira dimensão, enquanto o Coringa consubstancia a segunda. Desse modo, pensa o encenador, uma simbiose entre Stanislávski e Brecht resulta efetivada. Apenas de passagem, é bom lembrar as novas teorizações que lhe ocorrerão dez anos após, quando da formulação do teatro do oprimido, mudando alguns termos deste receituário, mas não mudando as regras nem as funções teatrais daquilo que receberá o nome de antimodelo (empregado no teatro-foro).100 Mas voltemos a Tiradentes. “A validade de uma peça deve ser considerada, antes de mais nada, em função do público a que se destina, sem que seja tomada abstratamente a palavra público. Na relação peça-público, este deve ser considerado como parte da população, esta como povo, este como nação, e esta no mundo de hoje. Há que se considerar o texto como fenômeno social presente - portanto liberto da historiografia teatral - idêntico ou semelhante a outros fenômenos sociais de natureza não estética: comícios políticos, assembleias, partidas de futebol, lutas de box. Um espetáculo não será válido senão na medida de sua eficácia teatral e de seu acerto social, e este não será outro que a humanização do homem, e esta não será nunca uma atitude contemplativa, mas um fato concreto de condições e direções de vida no sentido de uma sociedade que se desaliene progressivamente e aos saltos. Os meios empregados não importam, só importam os objetivos que se desejam.”101 São esses os princípios conceituais que embasam Tiradentes. Ao despachar as firulas artísticas para longe, inclusive as relações anteriormente estabelecidas entre arte e política, Boal atribui validade apenas às obras que resultem em algum saldo organizacional imediato, como os comícios e assembleias, ou assemelhados a uma disputa ou desafio onde alguém perde ou ganha, como no futebol ou no box. O caráter desalienante de um espetá-
100. Duas análises críticas sobre o coringa podem ser encontradas: Rosenfeld, Anatol. O mito do herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo. Perspectiva, 1992; e Mostaço, Edélcio, “Opressão: o mito oculto do teatro do oprimido”, in O Espetáculo Autoritário. São Paulo, Proposta, 1983. 101. Boal, Augusto. “Etapas Evolutivas do Teatro de Arena”, in Teatro do Oprimido, cit., p. 210.
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culo, sua capacidade de provocar um salto organizativo de qualidade, sem maiores atenções quanto aos meios empregados, é o critério ótimo por ele privilegiado nessa escolha. “O principal objetivo de Arena Conta Tiradentes é a análise de um movimento libertário que, teoricamente, poderia ter sido bem sucedido. (...) No entanto, o grupo fracassou. Ruiu como rui um castelo de areia, embora fosse este construído com armas, dinheiro, gente e propósitos definidos”.102 Como uma questão preliminar à montagem surge a vontade ou a necessidade de efetuar uma exegese política sobre um fato do passado, propondo-se dela extrair, em realidade, um esquema analógico aplicável a situações presentes, analogia buscada à força de qualquer sacrifício, ainda que sucumbindo à tentação de “prováveis impossibilidades a improváveis possibilidades.”103 Desnecessário destacar, diante do arrazoado, o caráter altamente ideológico que presidiu a feitura quer do texto quer da cena. Como já ocorrera com Zumbi, o Arena sabia dispor de um público bastante específico - os estudantes - ao qual se dirigia com argúcia e apurava, através dessas constantes revisões críticas, um aprofundamento de mobilização eficiente. Entre as duas realizações há, aliás, um notável incremento de eficácia retórica (recursos dramáticos de exortação e estímulo emocional empregados nas encenações). Se o Arena da fase anterior articulara uma perspectiva sobre a história, ele tenta aprofundar, nesse momento, uma intervenção sobre ela, propondo uma ação concreta. A arte não é senão arma de incitamento, e o teatro o lugar de reunião da seita para ouvir a palavra de ordem a ser cumprida na ação. A mobilização atinge seu grau máximo, onde o mínimo desejável é que o espectador, ao sair do teatro, apanhe uma arma para lutar. Tamanha radicalização provinha, entrementes, da seguinte análise sobre a ocorrência dos dois planos de realidade: a Inconfidência não passou de um movimento aristocrático palaciano, onde o único revolucionário sincero era o simples alferes Tiradentes. É preciso, portanto, afastar-se das cúpulas
102. Idem, ibidem, p. 210. 103. Idem, ibidem, p. 211.
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e assumir o herói positivo que há em cada um de nós. Em contrário àquilo proposto no Bicho do Opinião, onde todas as classes são desenhadas em suas falibilidades éticas, em Tiradentes são moralmente reprováveis (em graus diversos, é bem verdade) os elementos da elite inconfidente, mas não o elemento popular, que é o alferes (outros representantes do povo, que surgem em algumas cenas, são desenhados como medrosos, alienados, covardes ou despreparados para engrossar o movimento insurrecional). Mas o herói, mesmo pertencendo por origem ao estrato inferior, era consciente de seu papel histórico, um verdadeiro revolucionário inquebrantável e austero, alguém que como consciência “subira” dentre a massa, e, dada sua qualidade em ser povo, não se “diluíra” na pusilanimidade da elite. Assim, o mártir da Inconfidência foi, verdadeiramente, um herói: mesmo no patíbulo declara “dez vidas eu tivesse dez vidas eu daria”, em exemplar sacrifício estóico. Tal conjunto de pressupostos, em função do esquema analógico utilizado pelo Arena, refere-se ao presente (quer dizer, o pós-64), e era da história recente das esquerdas que o espetáculo tratava, ainda que se reportando à uma fábula afastada no tempo. Não é absurdo pensar que Boal, ao esbater o caráter “clássico” dos ex cepecistas do Opinião, estivesse igualmente rebatendo aquelas posições políticas, bem como explicitando, através da perspectiva do Arena, seu desacordo em relação às opções frentistas das esquerdas. Ao propor o herói positivo de Tiradentes ele renegava o herói humilde do Bicho, um Tom Jones caboclo cuja práxis política era fortuita ou ocasional, quase involuntária, para alinhar-se, em definitivo, com as personagens vanguardistas armadas e combatentes por opção. Tal perspectiva, vislumbrando a arquitetura da luta armada, era novíssima no Brasil, contrariando as posições ortodoxas do PCB. Afinal, o racha ocorrido em 1967, de onde emergira a ALN, preconizava, pela via cubana, a tática armada como única saída para os povos oprimidos104, encontrando na montagem de Tiradentes não apenas sua apologia artística como uma primeira mobilização de propaganda junto à opinião pública. Se Opinião e Zumbi primaram por fornecer alimento ideológico para a plateia forrar-se, saciando pela via cerimonial do teatro a fome demonstrada na realidade, Tiradentes vai representar o auge destes rituais cívico-éticos destinados a encorajar a plateia. A exortação era componente intrínseca ao
104. Garcia, Marco Aurélio. “Contribuições à História das Esquerdas no Brasil”, cit.
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espetáculo, culminando num hino guerreiro que bradava “mais vale morrer com uma espada na mão do que viver como carrapato na lama” e, mais adiante: “espanto que espanta a gente /tanta gente a se espantar/que o povo tem sete fôlegos/e mais sete tem pra dar/ quanto mais cai mais levanta/mil vezes já foi ao chão/mas de pé lá está o povo/na hora da decisão/de pé!”105 Retórica de calculado efeito sobre o pathos da audiência Tiradentes, a partir do momento em que foi dedicado a um obscuro estudante dentro da história da Inconfidência - mas buscado a dedo para figurar no prólogo do espetáculo - demonstrou saber lidar com seu público, bem como o que fazer para tornar eloquentes suas componentes rituais. Ao declarar sim em seu foro íntimo, em estreita conivência com as ideias apresentadas, suas crenças, prognósticos e desejos, a platéia sentia-se alimentada e municiada de argumentos solidários com os presenciados em cena, entrelaçada nas malhas da mega narrativa. Ao apresentar os intelectuais inconfidentes muito resolutos ao discutirem os detalhes da nova bandeira a ser criada para a jovem república e, em contraste, sua exacerbada incompetência para decidir os aspectos práticos da insurreição, enfatizava-se o caráter “desviacionista”, “típico dos intelectuais”, da “pequena burguesia”. Diz Bárbara: “Vocês passaram tanto tempo fazendo o dístico que agora só ficou faltando fazer a independência. Se tivessem gasto o mesmo tempo fazendo a Independência, agora só faltaria o dístico.” Ao que Alvarenga retruca: “Não te preocupes meu anjo. A coisa já está adiantada. As revoluções começam sempre pela cabeça. Depois é que os braços se movem.” A observação é bem endereçada: contra as cúpulas “teóricas”, é preciso enfatizar a “prática”, a partir de heróis resolutos e populares como o alferes. No momento em que se começa a pôr em xeque as componentes táticas da frente ou se esboça a teoria do foquismo pregada pela luta armada, o diálogo deixa entrever o tônus de suas entrelinhas. A partir da guerrilha boliviana desencadeada por Che Guevara (um médico que aderira à luta armada) e da opção pró revolução formulada por Regis Debray (um dos líderes do movimento estudantil francês), há um nítido gauchismo em trânsito no horizonte internacional e o Brasil não se mostrou infenso a tais solicitações. Ainda que evidencie algumas destas novas com-
105. Boal, Augusto e Guarnieri, Gianfrancesco. Arena Conta Tiradentes, São Paulo, Sagarana, 1967.
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ponentes políticas em curso, Tiradentes é um reluzente produto da cultura de esquerda que dominou o período compreendido entre 1964 e 1969. O presente quadro ideológico deve ser entendido dentro de sua dialética interna, engendrando formas expressivas e conteúdos programáticos, cuja práxis anima sua dimensão histórica própria, dai surgir com seus componentes plasmados, em processo dinâmico, enquanto projeto. Enquanto cultura, o quadro abriga sua exterioridade, o que permite sua descrição; mas igualmente abriga sua interioridade, sua lógica interna, abrindo-se para seu inconsciente e imaginário próprios. Numa ideologia criada pela teoria, a quantidade desse imaginário adensa-se, tornando-a mais complexa.106 Ao lado do imaginário original da ideologia dominante aninha-se agora outro, inerente à ideologia criada que, para subsistir sem vacuidade neste contexto, necessita reproduzir-se com alta dose de esforço. É próprio ao mito requerer sua auto estimulação constante, através de ritos que o fertilizem periodicamente. Quer para a ideologia dominante, quer para a ideologia criada, são os mesmos os requisitos exigidos no sentido de adubá-la, recalcá-la, referendá-la. E tais requisitos apontam para a sujeição de particularidades e diferenças, para a necessidade de reprodução constante de seus êmulos de origem.107 Tais cogitações não visam criar um duplo de leitura sobre a cultura da época, mas interpretar a curiosa tipologia apontada por Roberto Schwarz: “entretanto para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data (no pós-64), e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável em alguns campos e é dominante. Apesar da ditadura de direita há relativa hegemonia cultural de esquerda no país” (grifos do autor).108 Foi ele quem primeiro apercebeu-se dessa ambivalência (o texto foi redigido em 1970), mas poucos até o momento se aventuraram a aprofundar a
106. Ver a publicação de conjunto Da ideologia, Center for Cultural Studies, Rio de Janeiro, Zahar, 1980. Ver, igualmente, Ansart, Pierre. “Ideologia contra os poderes”, in Ideologias, Conflitos e Poder. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. 107. Tal raciocínio está em Lefort, Claude. “Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas”, in As Formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979. 108. Schwarz, Roberto. “Cultura e política 1964-1969”, cit.
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questão.109 Uma cultura de esquerda floresceu neste período, num ambiente hostil é verdade, sob o formato de produtos que serviam de reforço à sua própria disseminação, ao menos para aqueles setores alojados na esquerda festiva que, no Rio de Janeiro, ficou conhecida como “geração Paissandu” e, em São Paulo, como “plateia dos festivais da canção”, compostas ambas por estudantes engolfados na mobilização em curso. Entre 1964 e 1968 o movimento de estudantes conhecera uma considerável ascensão no país e, ainda que na ilegalidade, a UNE praticamente atuou sem interrupção de atividades. Setor menos decisivo na anterior política de massas (cujas centrais operárias haviam sido esmagadas pela força militar), os estudantes tornar-se-ão a vanguarda agitadora do movimento de esquerda no Brasil, à falta de outras articulações partidárias mais orgânicas ou operacionalmente disponíveis naquele momento. Maciçamente composto pelas classes medias, o movimento estudantil vai demonstrando um poder de radicalização e avanço organizacional formidável. A fundação do TUCA (Teatro da Universidade Católica, de São Paulo) em 1966, iniciativa rapidamente desdobrada em outras capitais, evidencia tal vínculo entre teatro e mobilização. Com a encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, o conjunto vence o 1º Festival de Teatro Universitário de Nancy, França, coroando e respaldando a atividade cênica como privilegiada artística e politicamente, além de mostrar-se adequada forma de organização e propaganda. Na esteira desse sucesso estético e de fórmula política encontrada pelos universitários paulistas, em pouco tempo praticamente todas as universidades passam a ter seus grupos teatrais. Muitos ex cepecistas retornam, assim, às antigas lides, prestigiando e ajudando a incrementar a atividade teatral entre os jovens. Nem todas as encenações transbordavam méritos artísticos, evidentemente, e o antigo vício cepecista de medir a eficácia artística de um evento pela mobilização em torno de alguma palavra de ordem ocasional volta a circular como critério ótimo para respaldar as realizações. O Coronel de Macambira, pelo TUCA-RIO, em 1967; O & A, pelo TUCA-SP e
109. Foi a “esquerda musical”, de fato, a grande consumidora do protesto que atravessou todo o período. Mistificada e mitificada, ela transformou a cultura de esquerda em bem de consumo, integrada às comunicações de massa. Dois artigos abordam tais mitos musicais em trânsito naquele momento: Louzada Filho, O. C. “A Festa da Bossa: impacto, sintaxe e declínio”, republicado in Arte em Revista, n. 2, São Paulo, Kairós, 1979; e Galvão, Walnice Nogueira. “MMPB: uma análise ideológica”, in aParte, n. 2, Tusp, São Paulo, 1968, onde pela primeira vez se abordou o sentido ideológico relativo ao “dia que virá”, presente em muitas canções do período.
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Os Fuzis, pelo TUSP, ambas em 1968, contam entre as mais bem sucedidas encenações universitárias do período. Posicionando-se abertamente contra tal contexto sociocultural da festividade de esquerda, estreia em setembro de 1967, pelo Grupo Oficina, O Rei da Vela, utilizando um texto de Oswald de Andrade. Escrito em 1933 e editado em 1937, havia permanecido sem conhecer as honras do palco até ser retomado pelo Oficina. Pelo viés crítico, o grupo da rua Jaceguai posiciona-se no vértice de três diferentes redirecionamentos: inicialmente, propiciar a crítica da fantasmática frente nacionalista instalada na cultura do país; em seguida, redescobrir a linha evolutiva moderna da cultura brasileira, iniciada no Modernismo de 1922, através da retomada de um de seus mais legítimos representantes, praticamente desconhecido das novas gerações pós-Estado Novo; e, finalmente, ser um dos estopins de um novo movimento estético, o tropicalismo, destinado a revolucionar os padrões artísticos e políticos até então assentados. Lido em 1965 por José Celso e Renato Borghi, o texto de Oswald permanecera “mudo” para o encenador. Nos primeiros meses de 1967, estando o Oficina no Rio de Janeiro apresentando uma remontagem de Quatro num Quarto com o intuito de angariar fundos para a reconstrução de sua casa de espetáculos, totalmente destruída por um incêndio no ano anterior, lança-se a uma série de exercícios laboratoriais e de investigação teatral sob o comando do crítico e diretor Luís Carlos Maciel. Foi esse laboratório de “desestruturação” da linguagem realista, tão arraigada no grupo desde seus primórdios, a gênese de um processo de inquietação que o fez, à procura de um novo texto para reinaugurar seu teatro, novamente acercar-se de O Rei da Vela, certificando-se, definitivamente, de sua exuberância estética e propriedade política em responder àquele estado de coisas. A peça centra-se sobre as relações familiares, morais, econômico-financeiras e matrimoniais de um burguês nacional, Abelardo I, dono de uma fábrica de velas e suas relações com o imperialismo norte-americano. Farsa desbragada, perpassada de elementos expressionistas, futuristas e cubistas, exala um tom de deboche e espinafração, o que propiciou a criação de uma exuberante cenografia e indumentária por Hélio Eichbauer, carregada de fortes tintas e explícitos símbolos cênico-visuais. A encenação de José Celso, soberba concatenação de elementos díspares que concretizavam um amálgama de proposições, constituiu-se num êxito, engrandecida pela entrega do elenco às propostas lançadas.
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Como espetáculo manifesto, foi dedicado a Glauber Rocha (que acabara de lançar Terra em Transe) e apresentado por José Celso Martinez Corrêa como “um teatro fora de todos os conceitos de ser ou não ser teatro, fora do escoteirismo teatral”.110 Enfatiza o encenador que: “no Rei da Vela todo esforço do homem brasileiro é gasto para manter através da autóctone e única ideologia nacional, o oportunismo, seu status quo paradoxal, que é o status quo que o perde. De um lado da história os Mr. Jones (personagem americana da peça), do outro os Jujubas (massa de marginais representada não por um ser humano, mas por um cachorro) e sua não história - no centro, o chamado homem brasileiro, que para fazer sua história tem que partir para um simulacro de história: sua existência carnavalesca, teatral e operística. (...) Não há história, não há sentido hegeliano. A tese não engendra sua antítese por si; a estrutura (tese) se defende (ideologicamente, militarmente, economicamente); se mantém e inventa um substituto de história e assim de tudo emana o fedor de um imenso, de um quase cadáver gangrenado ao qual cada geração leva seu alento e acende sua vela. (...) Oswald através de uma simbologia rica nos mostra o Rei da Vela se mantendo na base da exploração (“herdo um tostão em cada morto nacional”) e da Frente Única Sexual, isto é, do conchavo com tudo e com todos (a vela como falus): conchavo com a burguesia rural, com o imperialismo, com o operariado, etc. para manter um pequeno privilégio (não o rei do petróleo, do aço, mas simplesmente da mixuruca vela).”111 Sonora recusa da política até então encetada, a montagem do Oficina escancarava, através da Frente Única Sexual, o intenso jogo de interesses particulares subjacente àquela opção política. No terceiro ato, Abelardo I, já à morte e em vias de ser substituído por seu alter ego Abelardo II, declara: “neste momento quero a destruição universal... o socialismo a conserva... se todos fossem como o oportunista cínico que sou, a revolução social nunca se faria! Mas existe a fidelidade à miséria! Eu
110. Corrêa, José Celso Martinez. Programa do espetáculo. 111. Idem, ibidem.
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estou saindo da luta de classes... mas se sarasse... regressava à arena na posição que ocupei. Não aderia... talvez mudasse de dono. Voltava a trabalhar para o imperialismo inglês...”.112 A feliz síntese oswaldiana do “país estruturalmente hipotecado ao imperialismo” encontra no texto sua mais límpida configuração, ao captar as estagnadas estruturas brasileiras que, desde a República Velha, vinham forjando as linhas históricas de força do país. A febre desenvolvimentista de JK, o panegírico ideológico do ISEB, os conchavos populistas de todas as ordens, o protesto estudantil, tudo, na montagem do Oficina, vinha à tona em ácidas colocações, escrachadamente assumidas como uma “porrada”, quer na oficialidade quer nos vários “retratos” do Brasil nascidos à esquerda ou à direita.113 O espetáculo provocou, evidentemente, fortes reações nos mais diversos setores. Desde tentativas de invasão da sala de espetáculos pela polícia, ameaças telefônicas e protestos da plateia em cena aberta, até sérias reprovações de expoentes intelectuais, quer de direita quer de esquerda. O que O Rei da Vela conseguiu, em sua radicalidade, foi dividir o público, provocando uma cisão ideológica clara e a aglutinação de opiniões pró ou contra sua realização. Numa longa entrevista a Tite de Lemos, José Celso fez um balanço de suas pretensões iniciais e das consequências advindas com a montagem: “O teatro não pode ser um instrumento de educação popular, da transformação de mentalidades na base do bom meninismo. A única possibilidade é exatamente pela deseducação, provocar o espectador, provocar sua inteligência recalcada, seu sentido de beleza atrofiado, seu sentido de ação protegido por mil e um esquemas teóricos abstratos e que somente levam à ineficácia. (...) Para um público mais ou menos heterogêneo que não reagirá como classe, mas sim como indivíduo, a única possibilidade é o teatro da crueldade brasileira - do absurdo brasileiro - teatro anárquico, cruel, grosso, como a grossura da apatia em que vivemos. (...) Sem o golpe militar, sem o desgaste da
112. Andrade, Oswald. O Rei da Vela, São Paulo, Difel, 1967. 113. Ver, a propósito, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Retrato do Brasil, de Paulo Prado; A Revolução Brasileira, de Caio Prado etc.
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festividade pós-golpe, sem talvez o incêndio do Teatro Oficina (...) talvez O Rei da Vela não existisse. (...) Hoje, com o fim de todos os moicanos da festividade, ele é a possibilidade de um marco de ruptura com toda a tradição do teatro brasileiro, político ou não, destinada a uma visão engrandecedora e mistificadora de nossa realidade. O Brasil não tem uma tradição de cultura revolucionária. Oswald preconiza uma. (...) Oswald faz para o teatro brasileiro o que tem sido feito em todos os outros setores da arte. A eliminação de limites e barreiras nos gêneros, a intercomunicação de todos. A arte colocando toda a experiência de significar o mundo e as coisas como experiência estética. (...) enfim, é uma relação de luta. Luta entre atores e público. Metade deste, praticamente, não adere. Ou detesta. Ou não entende. A peça agride intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente. (...) O Rei da Vela deu-nos a consciência de pertencermos a uma geração. Pela primeira vez eu sinto isso”.114 Marcada pelo calor da hora em que a declaração veio à luz ela sintetiza, entrementes, o relevo histórico do acontecimento, um marco divisório claro, sob muitos aspectos, quer com a política quer com a prática estética então em curso. Como um êmulo de Oswald, autor de frases lapidares como “o anarquismo de minha formação foi incorporado à estupidez letrada da semicolônia” ou “a situação revolucionária desta bosta mental sul-americana”, o Oficina encampou este ideário e engajou-se numa proposta sociopolítica. Foi um critico francês, assistindo à montagem que se deslocou para a França e a Itália, quem captou em toda inteireza os propósitos da encenação. Escreveu Bernard Dort: “O Rei da Vela se transformou, no espetáculo do Teatro Oficina, em um jogo de massacre teatral levado à última potência. Ele utiliza ao mesmo tempo a representação épica (reconhece-se nele o palco giratório e o cenário de Arturo Ui, do Berliner Ensemble), o teatro de variedades, a opereta, enfim, o gênero, nobre e burguês por excelência: a ópera. Ele parodia todos. Todo o espetáculo nos propõe assim uma espécie de escalada no deboche teatral e é através de um jogo
114. Correa, José Celso Martinez. Entrevista concedida à Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial Teatro, n. 2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
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de espelhos cada vez mais deformante que o espectador é chamado a reconhecer a realidade atual do Brasil: a realidade de uma comédia histórica monstruosa. (...) Estamos aqui diante não de uma tranqüila tentativa de fundar um teatro folclórico nacional (como era o espetáculo brasileiro apresentado em Nancy e Paris dois anos atrás: Morte e Vida Severina), mas de um apelo raivoso e desesperado por um outro teatro: um teatro de insurreição”.115 A redescoberta de Oswald postava-se como uma redescoberta do Modernismo. Devidamente amansada nas décadas de 1940 e 1950, a Semana de Arte Moderna de 22 tinha desaparecido em importância nos horizontes da cultura brasileira. Quarenta e tantos anos depois, ainda provocava arrepios em alguns setores intelectuais, mas há quem lembre suas intenções originais, como Décio Pignatari: “Em Oswald, a radicalidade da linguagem corresponde a uma radicalidade ideológica de esquerda; os grupos Anta e Verde-Amarelo representam a direita político-ideológica e se caracterizam por suas realizações formais conservadoras. (...) Mário de Andrade situa-se na difícil posição mediana, que tanto pode ser a do compromisso e da diluição, como do equilíbrio e da liberdade. Em geral, esta última é a face que acaba prevalecendo, como representante de todo o movimento, ou de seus aspectos mais positivos, depois do sucesso inicial maior, porém aparente dos direitistas (que dependem do poder que apóiam e no qual se apóiam). A ponta-de-lança da esquerda é a última a ser legitimada. Não se trata de simples questão de preconceitos, mas de repertórios e expectativas: o signo novo é sempre de apreensão mais difícil.” O projeto nacional oriundo da Semana - configurado em obras, manifestos, teses, onde não estão ausentes nem a militância organizativa nem a escalada dentro da indústria cultural, ancorado em signos renovados de discurso e procedimentos – solicita ser entendido no quadro mais amplo da cultura brasileira, por representar uma decisiva arrancada de cunho político e o primeiro movimento estético nacional com olhos efetivamente postos no
115. Dort, Bernard. Programa do espetáculo em temporada do Théàtre de la Cité de Aubervilliers.
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futuro. Seu caráter incômodo, programático, decididamente revolucionário, não passou despercebido frente às instituições do poder e muito menos foi deixado fora de controle pelos setores oficiais. É preciso lembrar que Getúlio Vargas a citou como orientadora de várias de suas soluções governamentais, em discurso na Academia Brasileira de Letras. Pela sua contundência estética e sociocultural (especialmente da linha pau-brasil-antropofagia), o Modernismo brasileiro já foi comparado, em importância e abrangência, ao cubo-futurismo russo (semelhanças enquanto movimento, não enquanto soluções estéticas), vítimas ambos da oficialização que redundou no triunfo do realismo. Um mesmo realismo, aliás, se bem equacionadas as metas pretendidas com o realismo socialista, não estranharemos encontrá-las em sua versão cabocla, naquilo que é chamado de regionalismo de 1930, em tudo oposto à teoria política do modernismo de 1922.116 Retomar o espírito combativo que insuflara a Semana foi a capital tarefa do Oficina para seus contemporâneos, com sua desabusada encenação de Oswald de Andrade. Discurso insurrecional, O Rei da Vela não deixará mais o mesmo o teatro brasileiro. Se a montagem, dedicada ao Glauber Rocha de Terra em Transe, galvanizou uma série de inquietações criativas geracionais que andavam soltas pelo ar, ela representou, segundo várias vozes, o ato inaugural do tropicalismo. Caetano Veloso compôs Tropicália sob a influência da montagem e para ela musicou o poema Canção de Jujuba, bem como inúmeros outros criadores culturais passam a referenciar-se por um antes e um depois de O Rei da Vela.
116. Convém não esquecer, inicialmente, o quanto de tradicionalismo tentou recuperar o “Manifesto Regionalista” de Gilberto Freyre em 1926, parido entre chá e sequilhos, doces da região preparados por mãos de sinhás. Decididamente anti estrangeirista, pregou um nacionalismo neopositivista dos mais translúcidos, em nome de uma cultura colonizada que tentava se passar, agora, por colonizadora. Depois, quando o Modernismo vai conhecendo suas mais fortes expressões autônomas ligadas ao “primitivismo” e à antropofagia, cerceadas politicamente pelo conservadorismo da corrente VerdeAmarelo, o Estado, nas mãos de Getúlio Vargas, torna-se “moderno”, ou mesmo “modernista”. Fechase um ciclo estético-político: a Aliança Libertadora Nacional, fora do jogo político da República Velha, triunfa no Poder, institucionalizando a ideologia “modernizadora”, só que da óptica regional. O projeto político libertário cede à direita, ao Estado Novo que se avizinha. E a arte vê transformar-se o que era um projeto estético em um projeto ideológico: à esquerda (o romance social) e à direita (o integralismo e os condoreiros). Há, inevitavelmente, um movimento de transformação da vanguarda em kitsch. Tais raciocínios, rebatendo a maior parte das colocações vigentes, encontram-se por extenso em Lafetá, João Luiz. “Estética e Ideologia: O Modernismo em 1930”, publicado na revista Argumento, n. 2, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973. Ver, também, sobre o movimento de kitschização, Campos, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável, São Paulo, Perspectiva, 1969.
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O rompimento proposto pelo grupo, como se vê, é total. Na melhor tradição debochada de Oswald (“o contrário do burguês não é o proletário, mas o boêmio”), o Oficina punha em cena um país em transe, abalado em sua suposta identidade. Sem encampar o nacional popular em voga no palco do Opinião ou o povo de pé, exortado pelo Arena, o coletivo não apenas se recusava continuar companheiro de caminho, mas rompia com estardalhaço o quadro da frente de esquerda, posicionando-se numa terceira via. Distante do poder, os tropicalistas optaram pela marginalidade em relação às convenções, certos de que seus “planos eram muito bons”.117 Foi a retomada da linha evolutiva.
117. “Nossos planos são muito bons”, verso da canção Os Mais Doces Bárbaros, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, integrante do show de mesmo nome, estreado em 1976.
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CAPÍTULO 8 1968: PROJETOS DE NEOVANGUARDA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL
No grupo Opinião, após a montagem de Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, desenvolve-se uma atividade profícua no sentido de alicerçar os vínculos entre seus participantes e as manifestações populares “de raiz”, promovendo sua divulgação nos circuitos de classe média, consoante os pressupostos que nortearam a própria criação daquele coletivo de trabalho. Uma sequência de shows de música popular é empreendida, com destaque para Telecoteco Opus I e II e Pois É, realizados às segundas-feiras. Em 1967 ali estreia um espetáculo teatral abertamente anti-imperialista, baseado no livro O Estado Militarista, de Frederic Cock, e que recebeu o título de A Saída, Onde Fica a Saída? Sem grande novidade artística quanto aos modelos dramatúrgicos antes empregados pelo grupo, apenas enveredava por outro filão: a denúncia da criminosa ação dos Estados Unidos no Sudeste asiático, centrando naquele conflito o auge da escalada armamentista. O Vietnã se impunha, na ocasião, como o mais intenso campo político de debates e preocupações: uma pequena nação asiática, paupérrima e assolada por longa luta de libertação nacional, enfrentando a nação mais poderosa, os Estados Unidos, detentor de sofisticadíssimo poderio tático-militar. Não havia filme, peça ou show musical que não dedicasse, implícita ou explicitamente, sua adesão à luta do povo vietnamita. Enquanto qualidade artística e impacto ideológico o espetáculo do Opinião, todavia, não foi além de ser realização rotineira. Outra atividade pouco conhecida, mas importante na determinação dos caminhos internos ao grupo, foi o desenvolvimento de uma espécie de seminário de dramaturgia, entre os anos de 1966 e 1967. Ali nasceram ou foram discutidos trabalhos que, posteriormente, serão encenados (O Último Carro, Moço em Estado de Sítio, entre outros), manifestando a consciência
daqueles autores sobre as necessidades, cada vez mais prementes, de uma dramaturgia voltada para o momento, com ele afinada artística e politicamente. Por outro lado, o concurso do Serviço Nacional de Teatro, há muito relegado ao abandono, lança uma nova edição e, em 1967, Oduvaldo Vianna Filho sagra-se o vencedor com a obra Os Azeredo Mais os Benevides, escrita ainda na época do CPC e que, igualmente, só será montada anos depois. Os debates em torno dessas atividades respaldam uma espécie de programa do grupo em ampliar seus horizontes e estruturar (tal como sucedera no Arena nos idos de 1958-1960) um modo articulado de expressão, uma plataforma de assalto aos palcos. Meia Volta, Vou Ver, é o texto de Vianna Filho estreado na sala de espetáculos em maio de 1967, sob a direção de Armando Costa. Trata-se de uma comédia sobre a situação política do momento, que não entusiasma nem o público nem a crítica, iniciando uma sequência de produções mal sucedidas do ponto de vista financeiro. Situação essa que fará explodir as relações internas, levando a uma nova composição entre os fundadores da companhia. Vianna Filho e Paulo Pontes dela se desligam em 1967. E, juntamente com outros dramaturgos cariocas, passam a articular um novo coletivo conhecido como Teatro do Autor Brasileiro, do qual resulta uma produção “independente”, isto é, não destinada a uma ou outra equipe e menos atrelada às posturas da frente. O Teatro do Autor, sem ser uma associação formal, vai subsistir até meados de 1973.118 No início de 1968 o grupo, já sem Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Ferreira Gullar como sócios, encena Jornada de Um Imbecil até o Entendimento, texto de Plínio Marcos dirigido por João das Neves. Tomando o picadeiro de circo e suas personagens como espaço cênico – afastando-se das criaturas marginalizadas que tão apropriadamente enfocara em seus textos iniciais – Plínio tenta aqui tornar didático o processo capitalista da mais-
118. Logo após deixar o Opinião, Paulo Pontes retorna à Paraíba, para trabalhar com um programa de rádio. Para o teatro escreve Parai-bê-a-bá, encenada no início de 1968 no Teatro Santa Roza, principal sala de João Pessoa. Ao final do ano volta ao Rio de Janeiro para, juntamente com Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa, escrever quadros para o programa Bibi-Série Especial, levado na TV Tupi sob o comando de Bibi Ferreira. Sobre o dramaturgo ver Vieira, Paulo. Paulo Pontes: a arte das coisas sabidas. João Pessoa, Editora Universitária, 1997. Oduvaldo Vianna Filho escreve com Armando Costa Dura Lex Sed Lex, No Cabelo Só Gumex, comédia musical estrelada por Berta Loran no Teatro Mesbla com estreia no final de 1967. Sobre o autor, ver Damacesno, Leslie Hawkins. Espaço cultural e convenções teatrais na obra de Oduvaldo Vianna Filho, Campinas, Unicamp, 1994.
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-valia, empregando a linguagem das ruas, tão sua conhecida. O resultado, todavia, é apenas sofrível. A expressão mais clara do Opinião sobre os acontecimentos de 1968 surge cristalizada em Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória, que Ferreira Gullar escrevera em parceria com Dias Gomes, numa encenação comandada por José Renato, estreada ao final do mesmo ano. Nela, a evocação dos episódios ligados ao período trabalhista de Getúlio Vargas vem à cena por intermédio da metalinguagem, se valendo do ambiente de uma quadra de escola de samba e tendo como foco de disputa a composição do samba enredo destinado ao carnaval. Tanto a gênese do trabalhismo como a do pacto populista são retomadas para, ainda uma vez, afirmarem suas perspectivas. Após Tiradentes, é nítido no Arena certo sufoco criativo, certa falta de horizontes que entrecruza vieses econômicos e artísticos. Ainda que o espetáculo tenha se constituído em sucesso de público, falhara enquanto formulação de um sistema cênico permanente, viabilizando o pretendido barateamento de custo das produções que o sistema coringa fazia prever. A realização, todavia, faz acirrar um conflito artístico-ideológico entre Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, levando o segundo a afastar-se da empresa, deixando ao outro sua continuidade. Também recorrendo aos shows musicais (que ganham uma decidida feição teatral, onde os cantores arriscavam a expressão dramática e obedeciam a roteiros que incluíam poemas ou dramatizações poético-musicais, cujos melhores exemplos são os shows de Maria Bethânia, Ary Toledo e Sérgio Ricardo), o Arena ganhava tempo para articular um novo projeto neste final de década, que outro não será senão uma feira de opiniões. Se, por um lado, a 1º Feira Paulista de Opinião constituiu-se num desdobramento do coringa, igualmente tornava patente a necessidade do coletivo paulista encontrar uma conciliação artística e política para sua atuação, após os vários e seguidos rachas que dividiam as esquerdas e as correntes ideológicas. Colhendo depoimentos não apenas entre dramaturgos como, igualmente, entre artistas plásticos e compositores musicais, a intenção era propiciar um vasto painel opinativo sobre a conjuntura daquele instante, reunindo num espetáculo o que de mais expressivo se produzia e pensava. Enquanto isso, na Rua Jaceguai, prossegue a carreira de O Rei da Vela que, no início de 1968, vai à Europa participar de mostras em Gênova e Paris. Os episódios de Maio de 68, na capital francesa, surpreendem o elenco apresentando-se em Aubervilliers, na periferia da capital, e essa forçada estada
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favorece a seus integrantes o contato com uma situação revolucionária que marcará o futuro do Oficina. José Celso, que permanecera no Brasil, aceita dirigir um texto de Chico Buarque de Hollanda (então um ídolo doce da canção popular), numa produção de Orlando Miranda para o Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. O espetáculo transformou-se em grande sucesso de público e também no epicentro estético-político mais importante do ano: Roda Viva. Trabalhando com jovens atores cariocas, o encenador imprimiu tal magnitude à encenação que praticamente fez sucumbir o texto inicial, mal alinhavada sequência de cenas em torno da ascensão e queda de um ídolo da canção popular sem uma ossatura dramatúrgica mais palpável. O contexto das produções dos três grupos que nos ocupam deve, necessariamente, ser referido ao quadro mais amplo do teatro brasileiro para que possam ser observados seus pontos de contato e afastamento. Além da produção destinada ao entretenimento, que evidentemente continuou a ser praticada durante toda a época nos centros de produção mais estáveis de todo o período – Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte, Recife, Vitória, São Luiz e Natal -, e que pouco sofreu o impacto dos ventos renovadores (a não ser, talvez, por uma sutil guinada à farsa, ao melodrama escabroso e ao destempero verbal advindo com a incontestável ascensão do palavrão na cena da época), outras tendências devem ser consignadas nos parâmetros do teatro esteticamente mais empenhado. A generalizada crise de público que insidiosamente assolou nosso teatro entre os anos de 1964 e 1973 possui, evidentemente, muitas constituintes, porém de difícil dimensionamento.119 Seu efeito mais notório junto à produção é a recessão verificável na oferta, e quando ela ocorre, o faz através de textos de poucas personagens e baixo custo no investimento. Tal índice, puramente econômico, vai combinar-se, todavia, com as expectativas de um público desejoso de ver novos temas e enfoques sobre os palcos. Da sinergia desses fatores surge uma nova floração dramatúrgica que, batizada pelo crítico Sábato Magaldi como “nova dramaturgia”, com esse selo tornar-se-á conhecida nos anos vindouros. São eles autores “desalinhados” politicamente, jovens e irrequietos, e seus textos denunciam fragilidades quanto à estrutura dramática, discutíveis
119. Para um aprofundamento de tais questões ver Mostaço, Edelcio. “Os teatros estão vazios. Por quê?”, artigo publicado no Jornal da Tarde, 03 de agosto de 1982, hoje integrando o livro O Espetáculo Autoritário, São Paulo, Proposta, 1983.
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efeitos cênicos, mas exibem, antes de tudo, vigor em seus discursos fortemente existenciais e amplitude significante, onde o lirismo salta ao primeiro plano. Dentre os mais destacados representantes dessa nova vertente estão Antônio Bivar, José Vicente de Paula, Consuelo de Castro, Leilah Assumpção, Isabel Câmara, Mário Prata e Timochenco Wehbi, ainda que nunca tenham se constituído em grupo formal e menos ainda alimentado plataformas comuns de atuação. Outros dramaturgos poderiam ser arrolados nesse caudal, com maior ou menor afinidade com o núcleo definidor, porém os vieses estéticos da tendência são tão díspares que tornam praticamente impossíveis as generalizações. É o caso, por exemplo, de Plínio Marcos, revelado historicamente nesse influxo, mas conceitualmente distante de seus pares, mais próximo à dramaturgia nacionalista do Arena e das postulações ideológicas do Opinião. Essa nova dramaturgia incide seu olhar sobre as classes médias, flagrando preferentemente seus personagens outsiders, de várias idades, experimentando conflitos ou desajustes existenciais profundos. Tais situações apontam para o convulsionado cotidiano desses estratos da população, às voltas não apenas com uma reviravolta de valores como sofrendo também o impacto das comunicações de massa. Depauperadas, afuniladas quanto à perspectiva de ascensão (onde só ultrapassavam o funil aqueles com formação técnico-científica, que irão constituir a bem sucedida geração dos executivos), encontram-se achatadas pela recessão, violentadas em seus valores liberais de ideário político e minadas, interiormente, pela irresistível ascensão dos jovens, contestadores dos tradicionais valores que as mantinham coesas. Fala-se, em todo o mundo, em poder jovem - uma avassaladora onda de novos paradigmas lançados sobre os padrões de comportamento varrendo os principais países ocidentais. Essa dramaturgia inovadora refletiu, na franja geográfica em que nos encontrávamos em relação aos centros internacionais, sua apreensão em relação àqueles eventos. Diante dos temas e padrões artísticos articulados pela cultura de esquerda, os novos autores enveredaram por enfoques expressivos diversos, oferecendo flagrantes da subjetivação política, colocando em cena criaturas alegóricas, simbólicas, sintéticas. Elas apontavam para outros fatores da densa conformação social, revelando ângulos não explorados de sua estruturação. Para mais ampla compreensão dessas transformações, convém não esquecer que desde meados dos anos 1950 a arte norte-americana vinha reve-
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lando uma ampla guinada no sentido da experiência artística, vincando em modo decisivo as relações entre arte e vida, onde o happening e a performance saltavam como procedimentos modelares. A atitude experimental que lhes é subjacente conhece impulsos, apontando outros vetores não apenas quanto à produção de arte, como também em seu consumo. Nos domínios cênicos tais movimentos agiram poderosamente junto ao Living Theatre, o Open Theatre ou o Performing Group; bem como, do outro lado do Atlântico, forneceram alento às propostas encetadas por Tadeuz Kantor e Jerzy Grotówski. O caráter gestual inerente à action painting e à body-art muito em breve contamina a dança, e ela, as demais manifestações cênicas, conformando novos modelos, apoios e técnicas para a abordagem da interpretação dos atores. Tais mudanças de paradigmas levarão a um redimensionamento da noção de representação, que trabalha agora com fenômenos de mestiçagens e hibridizações, sem fronteiras demarcadas: é o work in progress em franco desenvolvimento. Nesse novo ambiente criativo também uma dramaturgia assumida fora do textocentrismo nasce com o trabalho de Beckett, Adamov, Ionesco, Heiner Müller, Botho Strauss, Rainer W. Fassbinder, em paralelo às criações coletivas privilegiadas por inúmeras equipes artísticas. O pensamento de Artaud ressurge com ímpeto ao longo dos anos de 1960, bem como as práticas ritualísticas, na base de um teatro performático e de environment como o preconizado por Schechner e Chaikin. O teatro de imagens ganha relevo com Robert Wilson e Richard Foreman, no início dos anos 1970. É dentro desse panorama amplo, e aqui tão somente evocado, que podemos situar a terceira vertente cênica se delineando entre nós, desde meados da década e com expansão pelos anos seguintes, que pode ser situada no rol da neovanguarda. Se a designação mostra-se problemática, ela apenas quer recordar um vínculo com o passado criativo que, dado o triunfo das proposições artísticas enfeixadas na frente nacionalista de esquerda conformada ao final dos anos 1950, deixou à sombra pelo menos dois movimentos da maior importância: a poesia concreta e o neoconcretismo. O confinamento a que foi colocado o grupo noigandres, a partir de então, foi responsável pelo abafamento do concretismo e suas experiências de linguagem. Em igual medida, o neoconcretismo – especialmente com suas convocações do espectador, inerentes às trajetórias de Lygia Clark e Hélio Oiticica -, desenvolveu-se à sombra dos circuitos de legitimação, avançando em suas pesquisas e lançando propostas criativas da maior importância
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para a cultura brasileira. Embora ocasionais encenações sintonizadas com esse panorama experimental tenham frequentado nossos palcos no período, a hegemonia da frente nacionalista incumbiu-se de dissolver seus possíveis efeitos de disseminação. Portanto é agora, quando os rompimentos se efetivam com certo alarde, que o tropicalismo volta a estabelecer vínculos com aqueles citados criadores, permitindo a Caetano Veloso formular a expressão retomada da linha evolutiva. Vale destacar, nessa vereda de encenações, a de Cemitério de Automóveis, sobre textos de Fernando Arrabal pelo franco-argentino Victor Garcia, em 1967, juntamente com sua encenação seguinte, O Balcão, baseado em Jean Genet, em 1969, duas produções da atriz-empresária Ruth Escobar. Reunindo Arrabal e Artaud, na primeira, conseguiu Victor Garcia a exuberância teatralizada possível ao surrealismo teatral - o pânico invocado pelo autor espanhol -, num espetáculo onde a crueldade, mais que designativo estético, adquiria tônus ético-político, em estreitas correlações com o caso brasileiro e as evidentes conotações com a Espanha franquista que serviam de referência à ficção de Arrabal. Não tanto pelo discurso verbal (quase sempre esgarçado, profundamente lírico e até mesmo cifrado), mas pela violência visual e de environment que soube construir no interior de uma antiga oficina mecânica, Cemitério de Automóveis tomou de assalto o público pelas vísceras, chave não habitual para os apelos estéticos entre nós. No Balcão, os espectadores foram dispostos numa complexa estrutura cilíndrica de metal para assistirem as cenas que se desenvolviam em seu interior, guarnecido com uma plataforma se deslocando de alto a baixo, balancins que subiam e desciam e uma rampa espiralada que permitia o deslocamento dos intérpretes. Estrutura esta que podia sugerir várias apreensões metafóricas, tais como a ordem social, ou histórica, ou política. A violência verbal de Genet, aliada à sua finíssima articulação de imagens poético-cênicas, permitiram que a crueldade artaudiana emanasse a partir de signos grandiloquentes, transformando seu enredo no antirritual da festividade, no anticlímax da frente: nele, o General, o Juiz e o Bispo unem-se à Aristocracia e à Burguesia para derrotar a revolução popular, esmagando-a através do Chefe de Polícia. Roger, o revolucionário exemplar deseja, em realidade, mais que a vitória dos oprimidos, tornar-se um dos frequentadores do bordel de luxo de Mme. Irma, proprietária da caixa de espelhos que sedia a ação.
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As produções associadas à neovanguarda em nossos palcos colocaram definitivamente o teatro brasileiro em consonância com as melhores conquistas internacionais no campo da expressão cênica. Brecht, que havia sido a última grande referência artística no Brasil na década de 1960, cede sua primazia a nomes menos convencionais, mas não menos significativos: Artaud, Grotówski, Peter Brook, Ronconi, Planchon, entre outros. A montagem de Marat/Sade, de Peter Weiss, em 1967, e a do musical norte americano Hair, em 1969, ambas sob a batuta de Ademar Guerra, são outros exemplares díspares, mas significativos, de tendências internacionais aqui exibidas marcando profundamente os padrões do espetáculo brasileiro, cujas ressonâncias irão ecoar e se aprofundar ao longo dos anos. Especial atenção deve ser dispensada também aos veículos de comunicação de massa. O crescimento das redes de televisão, da imprensa, do rádio, da indústria fonográfica, entre outros, passa a ocupar papel exponencial neste contexto, permitindo considerar que atravessamos um período de turbulência quanto aos mecanismos de transmissão cultural, criando novas dimensões de gosto e sensibilidade, de circulação de informações. Trópico entrópico Os espectadores que assistiam a seu novo espetáculo recebiam um panfleto escrito por Augusto Boal, um depoimento pessoal sobre a cultura do momento, onde surgem enfileirados os pressupostos que justificavam a realização da 1º Feira Paulista de Opinião, da qual o texto “O que pensa você da arte de esquerda?” é sua suma.120 A montagem foi composta com O Líder (Lauro César Muniz), É Tua a História Contada (Bráulio Pedroso), Animália (Gianfrancesco Guarnieri), A Receita (Jorge Andrade), Verde que te Quero Verde (Plínio Marcos) e A Lua Muito Pequena e a Caminhada Perigosa (Augusto Boal), contando ainda com músicas de Edu Lobo, Caetano Veloso, Ary Toledo, Sérgio Ricardo, Gilberto Gil e a “Tonada de Manuel Rodrigues”, de Pablo Neruda, que integra o texto de Boal. Obras de artistas plásticos espalhavam-se pelo saguão e paredes do teatro, conferindo à realização a almejada síntese de opiniões.
120. Boal, Augusto, “O que pensa você da arte de esquerda?”, programa do espetáculo.
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As criações são muito desiguais entre si: abarcam desde o neorrealismo de O Líder e A Receita, até a farsa grotesca e a sátira desenfreada dos textos de Plínio Marcos e Guarnieri, culminando com o coringa exortativo sobre os últimos dias de vida de Ernesto Che Guevara nas matas da Bolívia, da autoria de Boal. Disparidade semelhante percorre as obras dos artistas plásticos e dos compositores. Invocando a indispensável união das esquerdas em torno do objetivo único de derrotar a “reação”, Boal enfeixou em seu panfleto as três principais tendências da arte de esquerda como então praticadas, não deixando de lado a crítica e limitações de cada uma. Após condenar violentamente a “neutralidade”, e o caráter de mercadoria assumido pela arte, apontando para a necessidade de trabalhar unicamente para plateias populares e abandonar definitivamente o público burguês, suas colocações podem ser assim sintetizadas: o neorrealismo é ineficiente, provoca a empatia do espectador, mas não pode mostrar as saídas para os problemas abordados em cena, uma vez que “espetáculos deste tipo correm o risco de realizarem a mesma tarefa da caridade em geral e da esmola em particular: a esmola é o preço da culpa”. Seu mal maior, contudo, é a falta de “combatividade”. A segunda tendência, qualificada como “sempre de pé”, refere-se ao próprio Arena e à sua linha exortativa maniqueísta, simplificadora sim, mas cujo principal demérito é não poder dirigir-se ao “povo”, não ser exercida “na praça”. Na terceira vertente, situa o que denomina de “tropicalismo chacriniano-dercinesco-neorromântico”, para o qual reserva suas mais ácidas críticas e estabelece cinco questionamentos. São eles: “1) o tropicalismo é neorromântico, todo ressurgimento do neorromantismo baseia-se no ataque às aparências da sociedade, “agride o predicado e não o sujeito”; 2) é homeopático, “pretende destruir a cafonice endossando a cafonice, pretende criticar Chacrinha participando de seus programas de auditório (...) e se esta plateia já está habituada a ganhar repolhos o cantor mais sutilmente atira-lhes bananas”; 3) é inarticulado, “porque ataca as aparências, e estas aparências são efêmeras e transitórias, o tropicalismo não consegue se articular em nenhum sistema”; 4) é tímido e gentil, “pretende ‘épater’ mas consegue apenas ‘enchanter les bourgeois’, quando um ou outro cantor se veste de roupão colorido isso me parece falta de audácia”; 5) é importado, “desde JK, da bossa-nova, do cinema-novo não importávamos arte. Agora, assiste-se à avalanche inglesa misturada com a crueldade provinciana copiada de Grotówski-Living Theater”. De todas as características, porém, a pior de todas - para Boal - é sua falta de lucidez
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artística, o que a torna a “mais caótica e a que, tendo origem na esquerda, mais se aproxima da direita”. Mais que uma almejada união da arte de esquerda em geral e do teatro em particular, coisas que o encenador intimamente sabe impraticável neste momento de radicalização, Boal indica a luta guerrilheira como única alternativa restante para a conquista da liberdade nacional. De fato, a Feira evoca, todo o tempo, a luta armada que já se articula no país. A ênfase por ele dispensada contra o tropicalismo vem demonstrar, de dentro das próprias fileiras esquerdistas, a abrangência e o poder corrosivo do movimento, deixando clara, igualmente, sua condenação mais política que estética. Curiosamente, no mesmo Teatro Ruth Escobar de São Paulo, apresentavam-se, concomitantemente, em suas duas salas, a Feira e a montagem paulistana de Roda Viva, esta a mais explosiva síntese tropicalista que nossos palcos conheceram. José Celso soube transformar o ralo texto de Chico Buarque numa continuação quase natural de O Rei da Vela. Se no texto oswaldiano era dissecado um país sem história, de largos conchavos econômicos e políticos açambarcados pelo mais descarado oportunismo, inventariando e espinafrando o cadáver gangrenado dormitando em berço esplêndido, Roda Viva propunha praticamente a retomada daquelas mesmas situações de conchavo, só que posto em cena de modo mais torpe, mais debochado, mais caricatural e, principalmente, mais próximo das verdadeiras figuras reais das quais era o Ersatz. O enredo gira em torno de um cantor popular medíocre, manipulado por interesses de várias ordens que o transformam sucessivamente de ídolo de sucesso, identificado com uma jovem guarda iê-iê-iê edulcorada, num marco da canção de protesto, ligado ao folclórico-baião-nordestino-revolucionário, ambos igualmente ancorados e manipulados por uma estrutura de marketing e consumo industrial. Sua morte, que deu ensejo a uma das mais famosas cenas de José Celso (ao transformar o cantor em novo Prometeu que tem o fígado devorado pelas macacas-de-auditório), é zelosamente planejada e manipulada pelo sistema discográfico de modo a forjar Juju, sua esposa, como nova rainha da canção. Continua, assim, a roda viva... O texto, cuja leitura não ultrapassa quarenta minutos, foi recheado pelo encenador com inúmeras cenas criadas em laboratórios com o elenco, além de adensado pelas expressivas conotações visuais criadas pelo cenógrafo Flávio Império, atingindo quase três horas de encenação. Espetáculo agres-
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sivo, tudo aquilo que poderia chocar a platéia foi buscado como recurso expressivo: palavrões, gestos obscenos, nus, um fígado cru devorado em cena a respingar sangue nas primeiras filas, uma cena de longo silêncio em que os atores fixavam um espectador olhando-o insistentemente, uma passeata estudantil onde os atores jogavam-se literalmente sobre o público, entre outros recursos. Procedimentos urdidos na porrada (como os configurou José Celso), efetivamente perturbavam a costumeira placidez da relação palco/ plateia. Se O Rei da Vela limitara-se à contenção proposta pela ribalta (apenas em uma cena a lésbica João dos Divãs descia para as poltronas para brincar com o público), Roda Viva era praticamente seu oposto: seu espaço privilegiado de ação era aquele destinado ao público, restando ao palco o início e o desfecho das cenas. O tropicalismo veiculado por Roda Viva nega, ponto por ponto, as críticas que lhe endereçou Augusto Boal. O aludido caráter neorromântico é fruto de uma apressada leitura do encenador, uma vez que a retomada de clichês patrióticos, padrões nacionalistas, lírica edulcorada e melodramática, mau gosto e grosseria, entre outros componentes, evidenciam outra origem, próxima do dada, do surrealismo, do pop e, especialmente, de sua debochada apropriação pela antropofagia. É certo que a observação de Boal não é estilística, mas filosófica; mas refere-se, todavia, mais à aparência do movimento que às suas constituintes internas. A aludida homeopatia, ao invés de neutralizante revela-se, ao contrário, como sua grande tática poética corrosiva: similia similibus curandur. O caráter integrado do tropicalismo (para lembrar a expressão de Umberto Eco) é o que o torna insidioso, incontornável, escorregadio, possibilitando-lhe entrar em todas as estruturas e de todas sair, mas não sem antes modificá-las (empregando, nessa operação, um preceito de Walter Benjamin, de não entregar nada ao aparelho de produção sem antes transformá-lo o quanto possível). Quanto à referida inarticulação, o que Boal não suporta é a ausência de discurso programático, a falta de porta-vozes, a falta de autoria. O procedimento pelo gesto, pelo gestus, e não pela palavra, é de difícil apreensão para a razão positivista, o que transforma o “jeito de corpo” tropicalista num discurso outro, não retoricamente articulado enquanto mensagem, porém eloquente o suficiente para impor-se enquanto práxis. Sua visada não se dirige preferentemente às estruturas, mas aos efeitos das estruturas, e atuar nessa superfície reside não sua falência enquanto projeto, mas sua potência enquanto afetação: ao ocupar-se da metonímia o tropicalismo sabe que está trabalhando com o mito de uma metáfora, daí seu caráter estrutural e
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estruturante, revidando politicamente o tostão pelo milhão. O Ben Silver iê-iê-iê que se transforma em ídolo de protesto-revolucionário implica nas duas faces da mesma moeda mercantilista – o destino da canção popular na cultura industrializada capitaneada pelo capital. Do mesmo modo como a sucessão entre Abelardo I e Abelardo II já demonstrara, a face esquerda e direita do mesmo Estado. O que parece ser incompreensível para Boal é a recusa mesma do Estado no ideário tropicalista, seu colorido anarquista: “sem lenço, sem documento, nada no bolso ou nas mãos eu quero é seguir vivendo”; “eu oriento o movimento, eu organizo o carnaval, eu inauguro o monumento no planalto central do país.”121 A ausência de audácia do movimento somente poderia ser negada por um cego: Gilberto Gil cantando Domingo no Parque tendo à esquerda um conjunto de guitarras elétricas e sofisticado aparelhamento eletrônico e à direita um artesanal berimbau nordestino, promovendo uma mixagem entre escalas melódicas atonais e sons gravados colhidos nas ruas era a própria colocação em cena da audácia sonora; assim como audacioso era o boneco de Abelardo I presente no Rei da Vela, que disparava jatos de luz pelo pênis quando das investidas do protagonista sobre as mulheres ou o dinheiro, a denunciar o caráter fálico-narcisista do homem brasileiro em modo efetivamente literal e irrepreensível. O caráter pop e internacional do “som universal” tropicalista constitui-se no alimento de sua própria antropofagia, reciclagem projetiva que, ao reinterpretar as formas culturais as deglutia numa dimensão presente, único sentido que a história pode ter para um revolucionário. Veja-se o caso de Renato Borghi ao desempenhar o protagonista: somando a aparência do Reizinho das historias em quadri-
121. Trechos de Alegria, Alegria e Tropicália, canções de Caetano Veloso. O tropicalismo na música foi objeto de várias análises e recorro aqui à de Augusto de Campos: “alguns estruturalóides falaram em ‘alienação’ a propósito de Alegria, Alegria. O que eles não entenderam é que Alegria, Alegria não escreve, ‘escrevive’, como diria José Lino Grünewald. Lá, como aqui, em Tropicália, há uma presentificação da realidade brasileira – não a sua cópia – através da colagem criativa de eventos, citações, rótulos e insígnias do contexto. É uma operação típica daquilo que Lévi-Strauss denomina de bricolage intelectual: a construção de um conjunto estrutural não com uma técnica estereotipada, mas com uma técnica empírica, sobre um inventário de resíduos e fragmentos de acontecimentos. Em suma, ainda que se utilize da linguagem discursiva, Caetano não a usa linearmente, mas numa montagem de ‘fotos e nomes’, numa justaposição de frases-feitas ou numa superposição de estilhaços sonoros. Essa linguagem – que é a linguagem própria da poesia – não entra, é claro, na cabeça dos que querem reduzir tudo a esquemas, perdão, a ‘estruturas’ quadradas e slogans bífidos, do tipo alienação/ participação, ainda que, por uma estranha ironia, Caetano seja um dos nossos compositores mais ‘participantes’, como o comprova este disco”, in Campos, Augusto de. Balanço da Bossa, São Paulo, 2ª ed, Perspectiva, 1974, p. 163.
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nhos com a veia cômica debochada do velho ator Mesquitinha lograva, em sua paródia interpretativa, um produto híbrido e eficaz: a práxis do estranhamento brechtiano apoiada, simultaneamente, em um arquétipo e em um estilo teatral popular. O internacionalismo tropicalista constituiu-se, ao contrário do que pensa Boal, em sua melhor forma, em sua lucidez em integrar os valores estéticos subdesenvolvidos aos modelos avançados da técnica internacional, construindo produtos nacionais e populares, ainda que por caminhos radicalmente opostos àqueles preconizados pela hegemonia cultural. Já nos referimos à inexistência de uma síntese abrangente em relação à captação do universo tropicalista e suas relações mais amplas com o teatro brasileiro. Ensaiemos, pois, o enunciado de alguns tópicos que poderão concorrer para tornar menos difusa sua apreensão, tentando evidenciar a teatralidade que lhe confere os contornos. Foi Walter Benjamin quem afirmou que “as alegorias são, no reino do pensamento, o que são as ruínas no reino das coisas”122, fornecendo aquele que é o procedimento típico utilizado pelo tropicalismo em geral, e pelo teatral em particular: a alegoria. Como conceito privilegiado, evidencia-se por ser escritura, por “dizer o outro”, remetendo à história e suas constituintes. Mais além do símbolo, a alegoria traz embutida sua própria negação, trabalhando incessante na oposição é/não é. Na base de um discurso alegórico, o que salta de imediato é o reenvio à própria constituição de sua matriz que, por espelhamento, resulta desmascarada. Enquanto articulação de um discurso indireto é ao Outro que ela remete. Como propõe Mikhail Bakhtin, o discurso indireto projeta-se em duas direções: conserva a integridade do primeiro falante ou opera a derrisão de seu enunciado. O tropicalismo, instalado num contexto sócio-político francamente autoritário (de esquerda e de direita), optou pela segunda via, onde “o contexto narrativo esforça-se por desfazer a estrutura compacta e fechada do discurso citado, por absorvê-lo e apagar suas fronteiras. Podemos chamar este estilo de transmissão do discurso de outrem de estilo pictórico”.123 Situando tal procedimento como próprio de situações de repressão institucionalizada, onde restam como fórmulas alternativas a sátira, o deboche, a farsa ou a
122. Benjamin, Walter. Il Drama Barroco Tedesco, Torino, Einaudi, 1971, p. 188. 123. Bakhtin, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo, Hucitec, 1979, p. 139.
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paródia124, o linguista russo explicita a gênese material da própria caracterização ideológica: “tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”.125 Menosprezar tais constituintes alegóricas é não creditar ao tropicalismo sua verdadeira matriz enquanto ato estético, enquanto discurso indireto e uso das propriedades subversivas da ideologia. O que restou institucionalizado em termos teatrais sobre ele, porém, foram as cogitações de Anatol Rosenfeld, que o qualificou como “violento” e “agressivo”, configurando tão somente uma “irracionalidade”.126 O que o crítico condena, estribado em seu inefável hegelianismo, é a impossibilidade de apreender esta cena dentro das categorias estéticas que compõem seu aparato intelectual, pois “é completamente irracional uma violência que, desligada da ‘exatidão sociológica’ e, possivelmente, da validade artística e da interpretação profunda da realidade, se apresenta como único critério de eficácia da peça”.127 Ora, é essa a ruína para o pensamento aludida por Benjamin. Articular frente à história uma visão etapista ou adstrita às limitações do materialismo histórico, como é o caso de grande parte da intelligentsia (que não articula a história enquanto prática nem lhe credita sua dimensão inconsciente), é não captar as componentes alegóricas dos discursos que lhe são arremessados, e quando o fazem, frustram-se. A mise-en-question alegórica é a própria estruturação sígnica da ideologia denunciada por Bakhtin, evidenciada, ironizada, parodiada através de um movimento cínico ou epicurista. O discurso cênico, como se apresenta em O Rei da Vela e Roda Viva, segue de perto as cogitações que nortearam Artaud em busca de um teatro da crueldade. Como o encenador francês foi mal assimilado no Brasil, a imagem que dele restou foi a do estereótipo, uma retomada pouco mais refinada do grand-guignol. Ora, o sentido de duplo com que Artaud calibra o ato teatral é amplo, profundo, apontando para constituintes bem mais complexas que certa vulgata que o quer védico ou brâmane ou aquele racionalismo protestante que ali apenas percebe o ritual, o irracional, o metafísico. Ainda que uma vítima da psiquiatria, Artaud conservou-se fiel a certas
124. Além da obra antes citada, consultar L’Oueuvre de François Rabelais et la Culture Populaire au Moyen Age et Sous la Renaissance, Paris, Gallimard, 1970, onde surge explanada a teoria da carnavalização. 125. Bakhtin, Mikhail, Marxismo e Filosofia da Linguagem, cit., p. 140. 126. Rosenfeld, Anatol, “O Teatro Agressivo”, in Texto/Contexto, São Paulo, Perspectiva, 1969, p. 49. 127. Idem, ibidem, p. 54.
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cogitações surrealistas, concebendo o onírico como um “sonho cruel”, onde “devem doravante ser identificadas a poesia e a ciência”.128 Ele adverte que “o psicanalista pertenceria à estrutura da cena clássica, à sua forma de sociabilidade, à sua metafísica, à sua religião, etc.”129, e, portanto, para o teatro da crueldade ele é dispensável, já que o que se dá entre a cena e o público é uma regressão para o inconsciente, que fracassa se não “despertar o sagrado, se não for experiência mística da revelação, da manifestação da vida no seu afloramento primeiro.”130 Assim, Jacques Derrida esquematiza tudo aquilo a que o teatro de Artaud põe-se contra: 1) todo o teatro não sagrado; todo o teatro que privilegie a palavra, ou melhor, o verbo; todo teatro abstrato, fora da vida e de seus recursos de significação sensível (a dança, o canto, volume, profundidade plástica, imagem visível, sonora, etc.); todo o teatro de distanciamento, dirigido à não participação dos espectadores, “que visa lançar o espírito numa atitude separada da força que assiste a sua exaltação”. [...] “Este teatro de festa tem de ser um ato político, e o ato da revolução política é teatral; todo teatro não político, afirmando que a festa deve ser um ato político e não a transmissão mais ou menos eloquente, pedagógica e policiada de um conceito ou uma visão político-moral do mundo; todo o teatro ideológico, todo o teatro da “cultura”, todo o teatro de comunicação, de interpretação, procurando transmitir um conteúdo, entregando uma mensagem, não se esgotando com o ato e o tempo presente da cena.”131 E, finalmente, Derrida aponta aquilo que pode ser tomado como fundamental no pensamento artaudiano: querer apagar a repetição em geral. Como se vê, bem além de um receituário técnico-estético, como muitos quiseram ver os Manifestos da Crueldade, a obra do encenador e poeta francês é uma contínua reflexão sobre as fundas componentes do fenômeno teatral. Assim como Brecht, que não pode ser lido apenas pelo Pequeno Órganon, ele não se reduz àqueles manifestos, apenas picos visíveis de um iceberg bem mais profundo. Trilhando um percurso acidentado e poético, Artaud também toca o problema da ideologia já apontado por Bakhtin: tudo o que
128. Saint-Denyx, H. “Les Rêves et les Moyens de les Diriger”, apud Derrida, Jacques. A Escritura e a Diferença, São Paulo, Perspectiva, 1971, p. 164. Trata-se do início do manifesto surrealista Vases communicants. 129. Derrida, Jacques. A Escritura e a Diferença, cit., p. 165. 130. Idem, ibidem,p. 166. 131. Tal como aparece a síntese proposta pelo analista francês. Ver Derrida, Jacques, A Escritura e a Diferença, cit., p. 167.
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é ideológico é signo, tem corpo, matéria, physis. Ainda que José Celso tenha resumido isso tudo numa expressão curta e grossa – estética da porrada - , o conjunto de seu substrato deve ser creditado ao pensamento artaudiano, através das soluções cênicas que soube criar para O Rei da Vela e Roda Viva. Onde, para além do espetáculo, era possível surpreender um ato político concretamente instituído, muito além da representação, como quem cumpria um rito destinado à história: aniquilando a formação ideológica empedernida, seja da frente (O Rei da Vela) seja da festividade (Roda Viva). Num texto escrito em Paris, dez anos após O Rei da Vela, José Celso oferece um diagnóstico sobre essa questão: “O objetivo, ainda que inconsciente, passou a ser a destruição do aparelho neocolonial do teatro, que nos vinha sendo imposto desde o Padre Anchieta à burguesia executiva paulista de multinacional. Destruir suas máscaras, seus modelos, seus gestos e ir ao encontro ao chamado do tempo. A revolução cultural: a destruição de um Brasil de papelão, pré-americano, o reencontro da participação coletiva, o combate ao ‘espectador’, a procura da Outra História do Brasil, da que vinha das resistências dos escravos, dos índios, dos imigrantes, dos seus auditórios loucos para participar... É óbvio que tudo isso tinha de começar pela consciência de que estávamos nos trópicos. Esses trópicos que, na época, a nossa visão ainda tacanha limitava à América Latina, sem incluir claramente a África... Estávamos nos trópicos! Últimas reservas mundiais de matéria-prima, matéria de cobiça internacional. Espaço decisivo para a sobrevivência do imperialismo, portanto autoritário, violento, despótico.” 132 Ao trabalhar o imaginário para nele surpreender o ideológico, o tropicalismo radicalizou a experiência que torna possível a instituição do sujeito, quer como indivíduo quer como ser social capaz de efetivar um ato. Através da simbolização, como propõe Jacques Lacan, “o sujeito pode fazer agir o imaginário e o real e conquistar o seu desenvolvimento. Ele se precipita
132. Corrêa, José Celso Martinez. “Longe do trópico despótico”, texto inédito incluso em Primeiro ato. Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974), Seleção, organização e notas de Ana Helena Camargo de Staal, São Paulo, 1998, Editora 34, p. 126.
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numa série de equivalências, num sistema em que os objetos se substituem uns aos outros”.133 O caráter de representação daí decorrente surge não como perversão (ainda que também possa sê-lo), mas como instrumento que torna possível a desalienação da situação bloqueada. A experiência habilita o fluir histórico e, é através desse procedimento ambivalente que os homens se percebem no mundo, em ato. Se tal processo inclui a articulação da palavra, como queria Lacan, porque é no discurso verbal que trabalha os significantes, em Artaud tal processo conduz à teatralidade, à elaboração do código cênico vital, de que os Manifestos constituem a propedêutica. Sem preocupar-se com todas as implicações que tais cogitações podiam despertar, José Celso evoca um “teatro da crueldade brasileiro” para referendar sua apreensão de que “nossa forma de arte popular está na revista, no circo, na chanchada da Atlântida, na verborragia do baiano, na violência de tudo que recalcamos e está no nosso inconsciente”134, evidenciando que, antropofagicamente, soube ler em Artaud o estímulo para uma prática. Revista, circo, chanchada, programa de auditório - o universo expressivo que lhe dá referência requisita o grotesco, a farsa, a paródia, bem como o horizonte político-ideológico que percebe e sobre o qual exercita essa prática: “O incrível é a semelhança de espírito, por exemplo, da ‘cultura nacional’ do integralismo com suas editoras, seus Alberto Torres, seu culto do nacional a qualquer preço, com o projeto de cultura nacional da esquerda festiva. Uma mesma cultura folclorista, exótica, apologética, grandiloquente, romântica, pseudo revolucionária, tem sido nossa tradição.”135 Muito além de se postar como ingênua iconoclastia, o tropicalismo tentou surpreender a ideologia autoritária da mesma chave que une os discursos de uma ou outra posição. Daí, despertando em Boal aquela repreensão de ser “inarticulado”, de estando à esquerda, “mais aproximar-se da direita”. De
133. Lacan, Jacques. “A tópica do imaginário”, in O Seminário, livro 1, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. Sobre a teoria do espelho ver, do mesmo autor, Escritos, São Paulo, Perspectiva, 1978. 134. Corrêa, José Celso Martinez, “A Guinada de José Celso”, entrevista a Tite de Lemos, Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial Teatro, n.2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 127. 135. Idem, ibidem, p. 123.
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fato, trabalhando uma crítica mais abrangente que ser contra isto ou aquilo, o tropicalismo colocou-se numa terceira via. Muito semelhante, aliás, àquela sustentada pelos surrealistas franceses e que despertaram a simpatia de Benjamin ao observar: “o surrealismo empenha-se em conquistar o êxtase para a revolução. (...) A realidade conseguirá superar-se, na medida em que a exige o manifesto comunista, apenas quando nela o espaço físico e o imagístico se interpenetrarem tão profundamente que toda a tensão revolucionária se transforme em uma comoção nervoso-física coletiva e que todas as comoções nervoso-físicas da coletividade se tornem descargas revolucionárias.”136 O surrealismo que se imiscui no tropicalismo emerge pela abertura ao onírico em seu discurso. Descentrado, o sonho opera por deslocamento ou condensação, mas sempre enquanto sublimação de uma realidade que é, de fato, outra. Esse é seu caráter ambíguo, urdido através de metáforas ou metonímias, na báscula entre o princípio de prazer e o de realidade, operando sobre a intensidade do Desejo. O mundo onírico costuma ser um mundo de imagens substitutivas, daí o alegórico de seu discurso: a ruína ou o arco do triunfo do real. Ao enfatizar o cruel subjacente ao sonho, o tropicalismo age como super-realidade: o canhão do boneco de Abelardo I, o fígado estraçalhado em Roda Viva, as macacas de auditório carregando seu ídolo num andor eclesiástico, o rei da vela morrendo com uma delas enfiada no ânus, ensejando a subida ao poder de seu alter ego: ao morrer fisicamente também o é moralmente - enrabado. O que permite a ascensão de seu Outro, mas que coloca as coisas no mesmo lugar. Tal surrealismo debochado, a la Atlântida, constitui o instinto caraíba de que nos fala o Manifesto Antropofágico - a saúde a ser resguardada. Foi Marx quem sugeriu que a história quando se repete é como farsa. É a mais esta ruína para o pensamento que o tropicalismo reenvia com seu caráter paródico: reencenar esta farsa até a exaustão, como ato desalienante. Com seu formato de teatralidade, o tropicalismo engendrou diversas outras encenações. Ele retorna, no próprio Oficina, em alguns elementos de Galileu Galilei, e, em chave redimensionada, pós-tropicalista, em Na Selva
136. Benjamin, Walter, “O Surrealismo”, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 83.
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das Cidades. No cinema, tais chaves preconizadas desde Terra em Transe voltam a mostrar sua pujança em filmes como Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, O Dragão da Maldade, de Glauber, Como era Gostoso Meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos, atingindo seu auge, contudo, em Brasil, ano 2000, de Walter Lima Jr. e Pindorama, de Arnaldo Jabor. Foi na produção musical do grupo baiano, especialmente com as canções de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e Tom Zé que o movimento se consolidou, expandiu-se e ganhou receptividade pública, não apenas pelo caráter de maior rapidez entre a produção e a divulgação, próprios aos mecanismos da canção popular, como também pela maior quantidade de compositores e intérpretes com ele identificados. Suas apresentações musicais, concebidas em decidido molde espetacular, efetivos enquadramentos de teatralidade, culminam no Festival da Canção de 1968 promovido pela Rede Globo, no palco do TUCA paulista, quando Caetano, impedido pelas vaias de cantar É Proibido Proibir, profere violento discurso de teor estético-político contra a hegemonia cultural. Vale lembrar que, no mesmo certame, a canção preferida pelos cultores da esquerda festiva era defendida por Geraldo Vandré: Pra Não Dizer que Não Falei de Flores ou Caminhando. Uma montagem do TUSP, em meados de 1968, fortemente perpassada pelo tropicalismo, mas apontando para uma proposta política em outra direção, transformou o texto de Bertolt Brecht Os Fuzis da Sra. Carrar em pretexto para veicular uma propaganda da luta armada. Citando Regis Debray (“o intelectual deve se suicidar como classe para renascer como revolucionário” e “somos todos alunos da revolução”), o diretor e cenógrafo Flávio Império urdiu um espetáculo fortemente gestual, anti-ilusionista e cujo final culminava com o oferecimento de fuzis à plateia pelas várias atrizes que interpretavam a mãe que se arma para a guerra. Pouco depois, no Rio, outro grupo de forte extração universitária, numa encenação pouco convencional de Agamêmnon, de Ésquilo, culminava a trágica sequência de assassinatos que compõem o enredo em modo semelhante. Sob a direção de Amir Haddad, a Comunidade transformou a tragédia clássica num pretexto para incitar a plateia a aderir à luta armada. Feira, Roda Viva, Os Fuzis, Agamêmnon - a partir de 1968 a predominância de apelos em favor da guerrilha encontra um ponto de culminância, seja pelos caminhos da hegemonia de esquerda seja pelas manifestações do tropicalismo, deslanchando uma contra ofensiva irreversível que culmina com a promulgação do AI-5 e, logo a seguir, da Lei de Segurança Nacional. Pondo fim à aparência de legalidade construída nos anos anteriores, a ditadura
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mostra sua verdadeira face repressiva e os soldados nas ruas sinalizam que uma guerra está em curso no país. Se entre a esquerda multiplicam-se as divisões internas e o surgimento de um sem número de facções e grupos políticos a reivindicar as mais acertadas estratégicas na condução da guerrilha, a direita, ao demonstrar sua coesão impiedosa no combate, começa a matar. Uma longa lista de torturados, sequestrados, desaparecidos, encarcerados, perseguidos, vigiados e exilados começa a crescer espantosamente. A arte e o teatro do período subsequente, arrochados pela forte Censura, tendem a voar mais baixo, a se camuflarem, na tentativa desesperada de subsistirem enquanto meio expressivo, de fazerem ouvir suas vozes.
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CAPÍTULO 9 REPRESSÃO E CENSURA: O FIM DO ARENA, OFICINA E OPINIÃO
Entre os anos de 1969 e 1971 os três grupos aqui analisados vão desaparecer - ao menos nos formatos em que os conhecemos até esse momento. Além da crise estética e de repertório, das dificuldades com a Censura e das generalizadas vicissitudes econômicas erodindo suas finanças - bem como da maior parte do teatro brasileiro -, em cada equipe o processo de desagregação conheceu características específicas. Os cinco anos de estrada do grupo Opinião são comemorados com uma encenação de Antígone, de Sófocles, na direção de João das Neves. O recurso a um texto clássico visa ultrapassar um momento delicado, marcado pela ausência de alguns dos pilares que haviam ajudado a colocar o grupo em pé, onde a parábola da donzela apegada aos valores humanísticos em luta até a morte contra o arbítrio do Estado erigia um discurso sintonizado com a resistência cultural. O grupo se esfacelara, deixando João das Neves sozinho nas tarefas de continuidade das atividades. Vários integrantes do coletivo passam a ser perseguidos pela repressão ou deliberadamente se afastam, para integrarem equipes do cinema ou da televisão. Após Antígone, o Opinião deixa de existir enquanto formação de artistas que o havia fundado, sendo João das Neves seu último remanescente e encarregado de gerenciar a sala de espetáculos. Frente aos impasses resultantes, ele passa a alugar o imóvel para outras produções e torna-se encenador de montagens independentes com outras companhias e empresas, até reunir condições para, em
1977, colocar em cena O Último Carro, uma criação que entusiasmou crítica e público e cheia de significados na segunda metade da década.137 Quanto ao Arena, um processo assemelhado corrói suas últimas atividades. Os últimos integrantes do elenco permanente dispersam-se após as montagens de Feira Paulista de Opinião e McBird, de Barbara Garson, espetáculo que lhe segue no mesmo palco do Teatro Ruth Escobar, visando amealhar o público por ela sensibilizado. Ao longo dos anos de 1969 e 1970 o Arena remonta Zumbi e Arena Conta Bolívar, um novo musical seguindo as pegadas das criações em coringa anteriores mas proibido, em seguida, pela Censura. Diante do impasse, a alternativa encontrada foi organizar uma excursão pela América Latina e Estados Unidos com esse repertório, únicos locais que conheceram a nova criação em coringa. A seguir, outra produção ocupa a arena: A Resistível Ascensão de Arturo Ui, de Brecht, em 1970, mal sucedida reutilização do sistema coringa com Gianfrancesco Guarnieri no papel central. A montagem de Arturo Ui fazia clara alusão ao processo de concentração de renda em curso. Arturo, um gangster de Chicago, apossa-se pelas armas do monopólio da couve-flor, impondo suas violentas decisões tanto ao mercado da produção quanto do consumo. Brecht referia-se, sem disfarces, à ascensão de Hitler e do nazismo numa Alemanha amedrontada e passiva. No Brasil de 1971, contudo, a montagem não pode levar às últimas consequências suas metáforas. Simultaneamente ao espetáculo, numa improvisada sala do segundo andar do edifício, estreia Teatro Jornal – 1º Edição, trabalho de criação coletiva embasado sobre técnicas de leituras de periódicos, utilizando um jovem elenco formado em um curso ministrado no ano anterior. Em janeiro de 1971, mediante a liberação com muitos cortes de Bolívar, alguns integrantes do antigo elenco juntam-se aos novos egressos do curso de formação para preparar o novo espetáculo. Mas, com a prisão de Boal e de outro membro da equipe em meio aos ensaios, a produção é desarmada. Alguns meses depois é negociado um exílio para o encenador junto às autoridades militares e ele parte para a Argentina, onde passa a desenvolver suas atividades, marcando o início daquilo que ficará conhecido como Teatro do Oprimido.
137. Nesse período, entre outras atividades, João das Neves coordenou seminários de dramaturgia, montou espetáculos na Bahia e visitou a Alemanha, onde desenvolveu trabalhos com o teatro radiofônico. Seu retorno ao Rio ocorre em 1976.
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Os recursos por ele mobilizados, bem como suas inúmeras variantes metodológicas, figuram nos volumes Técnicas Latino Americanas de Teatro Popular, 200 Exercícios e Jogos para o Ator e o Não-Ator com Vontade de Dizer Algo Através do Teatro, Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas e Stop, c’est Magique, constituindo o campo da teoria e prática do teatro do oprimido ao longo da década de 1970.138 Na Europa, posteriormente, o encenador ampliará esse raio de ação, incorporando elementos oriundos do psicodrama e do sociodrama, para atender uma capa de opressões não diretamente políticas, como o preconceito racial e a dependência feminina, criando o arco íris do desejo. Após seu retorno ao Brasil em 1986, como vereador no Rio de Janeiro, criará, ainda, o teatro legislativo. O jovem grupo remanescente do Teatro Jornal viu-se, da noite para o dia, às voltas com a administração da companhia e da casa de espetáculos. É então fundado o Núcleo-Arena, destinado a ser um centro de difusão não apenas das técnicas de teatro-jornal como, igualmente, servir de ponto de reunião e discussão para as inúmeras trupes amadoras que rapidamente começam a se formar em bairros e escolas. O trabalho havia sido inspirado pelas técnicas do agit-prop russo e alemão e os procedimentos mobilizados pelo Living Newspaper, grupos atuantes no período da Depressão norte-americana. Boal decidira assumir esse percurso após a Feira Paulista de Opinião, articulando recursos cênicos que envolvessem também a participação do público, desprezando as tradicionais relações que separam palco e plateia, cujos procedimentos visavam o contágio. Num primeiro momento foram elaboradas nove técnicas destinadas a trabalhar as notícias, de modo a retirar-lhes o caráter de letra impressa passiva e convertê-las (ou reconvertê-las) nos fatos que as engendraram. Cinco edições sucessivas do espetáculo foram montadas. Grupos amadores que formavam sua plateia eram imediatamente sensibilizados para funcionarem como reprodutores de teatro-jornal, através da criação de seus próprios espetáculos. Em pouco tempo dezenas de equipes se apresentavam na cidade, especialmente em vilas e na periferia, comprovando o sucesso da nova tática. Tendo à frente Celso Frateschi, Denise Del Vecchio, Dulce e Hélio Muniz, Margot Baird, Antônio Pedro, entre outros, o Núcleo-Arena põe em cena, em 1972, a criação coletiva Doce América, Latino América, realização
138. Para uma análise do teatro do oprimido ver, entre outros, meu ensaio “Opressão: o mito oculto do teatro do oprimido”, in O Espetáculo Autoritário, São Paulo, Proposta, 1983.
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cuja meta era um diálogo com as culturas do continente. A rigor, foi essa a última produção realizada na sala de espetáculos e com integrantes, em algum modo, ainda comprometidos com o ideário que norteara o Arena ao longo de sua trajetória. O imóvel acaba ficando nas mãos do administrador Luiz Carlos Arutin e o Núcleo, agora sem a identificação Arena em seu nome, muda-se para o Teatro São Pedro, onde ocupa a sala menor até 1973, transferindo-se posteriormente para o subúrbio de São Miguel Paulista, onde edifica uma sede e abre intenso diálogo com conjuntos amadores da periferia da cidade. Como se percebe, a dissolução dos grupos ideológicos, nestes primeiros anos da década, não foi fortuita nem natural. Por detrás dos fatores episódicos presentes num e noutro caso, vinha ocorrendo uma drástica alteração nos rumos do país. A desagregação do Estado populista no pós-64 engendrara outra etapa na configuração econômica e política do capitalismo nacional, novas constelações de poder operando em Brasília. Substituindo a antiga classe oligárquica por escalões tecno-burocráticos, civis e militares conseguiram viabilizar um surto de crescimento acelerado – alcunhado como “milagre econômico” - atrelado a uma doutrina de segurança nacional, centralizadora, repressiva e autoritária. Os setores culturais sentiram de frente os reflexos nefastos dessa nova realidade, que fez a classe-média, a grande e tradicional consumidora de cultura, cortar despesas de seus orçamentos, rebaixando-a a condição de bem de consumo supérfluo. Há uma súbita negação das artes dos espetáculos em benefício das plásticas e discográficas, isto é, aqueles produtos que, levados para casa, pudessem materializar-se logo após como bens de troca, além de configurarem materialmente a posse. Os anos compreendidos entre 1969 e 1974, quando esse processo atinge seu pico financeiro é, igualmente, o período de vigência da repressão à luta armada no país. Foi a justificativa maior para o regime enrijecer-se, adquirindo um perfil institucionalmente repressivo, controlando a liberdade de expressão através de pesada Censura. O mal disfarçado estado de sítio que tomou conta do país configura um quadro avesso às ideologias contrárias ao regime ou aos governantes, com especial ênfase sobre as artes dos espetáculos. Com a decisão tomada de repudiar o profissionalismo, o Núcleo procura a zona leste da capital paulista para privilegiar suas apresentações, região tradicionalmente operária desassistida pelos poderes públicos. Ali, em sintonia com uma forte pastoral da Igreja, o grupo encontra condições para
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instalar uma sede e promover atividades, através de um trabalho obscuro, mas de efetiva criação de contágio e disseminação ideológica. Portanto, renegando o teatro formal, tanto estética quanto economicamente, o Núcleo opta pela via do amadorismo, buscando na relação direta com o público popular êmulo para continuar seu labor e prosseguir seus objetivos. O longo e entrecortado caminho mediado entre Eles Não Usam Black-Tie e o Teatro-Jornal demonstra que o projeto político do coletivo, desde os primórdios, só poderia cumprir-se adequadamente com a efetiva assimilação do agente histórico à sua plateia. A equipe, em suas variadas fases, usou e abusou da expressão povo e popular, mas enquanto esteve no centro da cidade a concreção desse ideário permaneceu retórica, seja a partir de estilos, fases, sistemas e soluções estéticas voltadas a indivíduos da classe-média (especialmente os estudantes) que, mistificados, acreditaram-se povo e, no âmago da construção ideológica reinante, tomaram-se por populares. O próprio Núcleo só vai encontrar a base estética e política efetivamente popular ao abandonar as fórmulas do oprimido e passar à criação coletiva, como evidenciam seus bem sucedidos espetáculos A Epidemia e Os Imigrantes. No dia 13 de dezembro de 1968 os jornais estampavam em manchetes a decretação do AI-5. Nas mesmas edições, nos classificados de teatro, o Oficina anunciava a estreia de Galileu Galilei. Vindo após O Rei da Vela e Roda Viva, esperava-se um grande festim tropicalista realizado sobre o texto de Brecht, mas o que se viu, frustrando tais expectativas, foi um vigoroso exercício de teatro dialético que dosava, em igual percentagem, as determinações brechtianas e a iconoclastia feérica dos novos tempos. Galileu, sem dúvida, foi a mais generosa encenação brasileira assimilada sobre as determinações do teatro épico até então levada em palcos nacionais, garantindo um resultado esteticamente invulgar ao surpreender o confronto entre a autoritária ideologia medieval e as formulações revolucionárias dos tempos modernos. José Celso conseguiu adequar um espetáculo de árdua estruturação cênica à mais clara leitura do processo brasileiro da época, quando se assistia a despedida das melhores cabeças de nossas universidades, fazendo evadir uma massa crítica pacientemente elaborada. Bem como equacionar um tema difícil, aparentemente adstrito apenas às discussões científicas, o que continha enquanto substrato interativo ao opor duas mentalidades divergentes: o autoritarismo reinante e a necessidade de liberdade para pensar.
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Mais que biografar o físico e matemático nascido em Pádua em 1564, Galileu ocupa-se com o debate político entre a tecnologia e o saber. Enfrentando a Inquisição, o protagonista sofre o impacto de uma ideologia articulada com claros contornos de controle, sustentando tanto o quietismo social quanto a pacífica aceitação do mito católico da Terra como centro do Universo. Seu desafio punha em causa esse cerne de poder, e por isso deveria ser abjurado. À trajetória individual do físico e matemático, Brecht contrapõe um coro popular que, em famosa cena do Carnaval de Veneza, faz farto uso da imaginação, vulgarizando as inversões celestes galilaicas e questionando, através desse novo ângulo para compreender o cotidiano, seu próprio universo de referências. Tal caráter rebaixado vislumbrado na ciência encontrou no espetáculo seu momento tropicalista, perpetrado através de diversas reinterpretações profanas. Em paralelo, Galileu abjura, proferindo “infeliz o país que precisa de heróis”, mas como uma dissimulação, para continuar suas pesquisas na clandestinidade, fazendo publicá-las no exterior através de um ex-aluno. Ao rebater a “necessidade de heróis”, o Oficina respondia diretamente à formulação do Arena - veiculada em Tiradentes e na Feira - da importância e serventia de heróis nacionais. Um contraponto desse teor, que encobria uma mais funda discordância entre a necessidade ou não de lideranças reconhecidas para guiar a massa, teve sua origem no populismo do começo da década, encontrando agora, num momento de crise de lideranças e fracionamento crescente entre as esquerdas, um desigual posicionamento de um e outro grupo sobre o dilema. Mas não paravam ai os enfrentamentos. A cena do Carnaval introduz, por exacerbação de José Celso, um nítido confronto de via de conhecimento: enquanto Galileu debate-se em favor de uma resoluta objetividade, o populacho demonstra igual apreensão dos mesmos princípios por um caminho que passa pelo prazer, pela festa, pela intuição. É certo que Galileu é apresentado por Brecht como glutão, espirituoso fanfarrão, interesseiro professor. Mas tais predicados, contudo, não seriam suficientes para a completa apreensão do Universo se desprezadas fossem as constituintes subjetivas, sensíveis, estéticas, afetando os seres humanos. Através dessa visada contracultural na narrativa cênica de um dos mais acabados textos de um autor marxista foi atingido, corrosivamente, o positivismo dominante na mentalidade professada pela hegemonia cultural. Ousado, provocativo e veraz, Galileu ensejou para o Oficina a conquista de um discurso ao mesmo tempo flexível e desafiador, em ampla sintonia com aquele momento onde se debatiam temas como contracultura, teatro de
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guerrilha, sociedade alternativa, enrijecimento de caráter, antipsiquiatria, volta à naturalidade dos corpos humanos. Um modo de encarar e dimensionar a cultura, enfim, que viabilizará para o grupo outra perspectiva sobre a vida pessoal e a história. De fato, mais que para o Arena, o confronto com a história foi o grande denominador que unificara a maior parte de suas montagens, desde A Engrenagem e As Moscas até Galileu. O coletivo da rua Jaceguai sempre manteve em seu limite de miragem a revolução, percebido em alguns de seus grandes sucessos: Pequenos Burgueses, Andorra, Os Inimigos e O Rei da Vela. Em todos eles um bem delineado confronto entre o(s) homem(s) e sua opção frente à mudança social ganha o espaço filosófico, antropológico e ideológico que requer uma ação, uma instalação, um ato responsável. O destaque sobre O Rei da Vela evidencia-se pelo rompimento explícito com o pensamento dominante entre as esquerdas daquele momento. Como discurso, todavia, é uma leitura operada através de paráfrases que, como se sabe, é uma operação segunda do pensamento, uma reflexão sobre o real. Em Roda Viva o uso da violência corporal, do gesto grotesco, do ato obsceno foi tomado como tática política. Era o corpo usado objetivamente como arma de ataque (explícita força física ou no sentido figurado de arma moral), mantendo o elenco em estado de alerta, representando como quem participa de uma batalha campal, onde a prontidão dos sentidos tornava-se indispensável para a autodefesa e o contra-ataque. Os excessos, num e noutro espetáculo, devem ser tomados como táticas estéticas, articuladas mais sobre a teoria da paródia e menos sobre a contracultura, que começa a marcar mais o grupo no pós-69. Em outras palavras, O Rei da Vela e Roda Viva posicionam-se como um adestramento expressivo (a busca de uma linguagem corporal) e, ainda que aludidos como “estética da porrada” por José Celso, não qualificam uma irracionalidade, mas uma subjetividade que coordena conscientemente sua força física e gestual.139 Em Galileu, onde a objetividade refulge num discurso dialético, é que se vai notar mais decisivamente a potencialização dessas propostas sensoriais, organicamente planejadas, estabelecendo um contraponto estético entre o
139. O que aqui se caracteriza como via de conhecimento segue o raciocínio: do confronto entre a ciência mística e metafísica (como defendida pelos sábios da corte florentina) e a ciência experimental (como exercitada por Galileu) surge, para o grupo, a consciência de intervenção teatral; materializada, na aludida cena do Carnaval de Veneza, onde foram empregados decididos procedimentos de incorporação ou embodiment, de teor tropicalista (paródia, deboche, alegoria, gestualidade significante etc.).
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corpo e as sensações. Os possíveis excessos verificáveis nas duas montagens anteriores foram fundamentais para liberar essa energia desconhecida, sem dúvida, mas somente agora o repertório expressivo e gestual encontra uma perspectiva enquanto teoria do conhecimento. Não mais um discurso sobre o mundo, mas um discurso absorvido e tornado ação sobre ele. Mas foi com a montagem posterior, entrementes, estreada em meados de 1969, com o auxílio da autopenetração (o conceito é grotowskiano) que a máxima tensão no interior do coletivo de artistas foi dimensionada em toda sua potência, ao se voltarem para um original do jovem Brecht - Na Selva das Cidades. Ao contrário da objetividade dominante em sua melhor peça de maturidade, foi no expressionismo anárquico de sua juventude que o Oficina encontrou o alento que respondesse às suas posturas. Foi o próprio autor quem situou o enredo como uma luta metafísica entre dois homens, um potentado malaio, dono do trust da madeira, e o outro, um obscuro empregado de livraria, iniciando-se o desafio quando o rico senhor quer comprar a opinião do jovem balconista. Ao longo do combate, os rivais inverterão as posições, cabendo a Garga controlar o negócio da madeira e a Shilink empregar-se como simples carvoeiro e, finalmente, encontrar a morte, perseguido por uma turba racista. Garga, ao final, diante das cinzas a que sua madeira e sua vida foram reduzidas, declara: “o caos acabou, foi o melhor tempo”. Aguda prospecção sobre os efeitos corrosivos do capitalismo selvagem sobre o núcleo familiar dos Garga, Na Selva das Cidades articula uma poesia rimbaudiana (alguns versos são literais) mesclada a cenas de exacerbada violência, física, psicológica e moral. A cena em que George cospe no rosto do sargento do Exército da Salvação e outra posterior, de curra de sua irmã Marie, contam entre as mais exasperadas de quantas o autor alemão tenha jamais escrito. O que há de fascinante nos contrapontos criados são as irredutibilidades a um e outro sistema de valores polarizados pelos protagonistas, uma vez embasados em forte substrato instintual e decididos aportes no imaginário social e pessoal, motivando um rasgo antropológico perpassando a sociedade cuja verticalidade jamais será novamente alcançada pelo próprio Brecht em qualquer outro texto posterior. Somente o universo de Jean Genet, nas décadas de 1940 e 1950, poderá competir com personagens e situações tão ambíguas e instigantes.
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A dimensão maquínica impregnando a ossatura das criaturas foi alcançada, na encenação, com o uso do método grotowskiano, num espaço cênico agressivamente belo concebido por Lina Bo Bardi (duas platéias laterais e um ringue de box central, inspirado diretamente em Mahagonny), além do admirável empenho interpretativo do elenco, indiferente ao tormento sofrido, físico e psicológico, para alcançar a expressionista verticalidade requerida pela encenação. O bairro da Bela Vista (o Bexiga), onde se localiza o teatro, estava sofrendo, à época, sua mais radical transformação urbanística, retalhado em suas entranhas para abrigar um complexo de viadutos elevados e avenidas, alterando significativamente seu traçado original. Um ambiente de destruição física da cidade (praticamente todo o centro de São Paulo foi revolvido para a construção do Minhocão) materializava com eloquência os efeitos do agressivo “milagre econômico”, razão pela qual a montagem foi dedicada a “São Paulo, a cidade que se humaniza”, em alegórica alusão ao slogan oficial. Um patamar de leitura possível do texto é o confronto entre o capital e o trabalho quando alienados, para ficarmos numa distinção clássica que Marx certamente aprovaria. Apenas tal contraponto, por certo, não esgota as filigranas do drama, mas fornece os andaimes da ação, especialmente em sua versão cênica. Neste sentido José Celso buscou radicalizar as palavras de Brecht: “O modo de agir das pessoas de nossos dias não pode ser mais explicado pelos motivos antigos. O noticiário policial no qual surgem ‘sem motivos conhecidos’ se acumulam. Desta forma os senhores não podem estranhar quando num drama moderno as personagens agem de maneira diversa do que vocês esperam. Neste mundo e neste tipo de teatro o filósofo está mais à vontade que o psicólogo.”140 Quer o texto quer o espetáculo trabalham sobre decididas perversões. A luta entre dois homens em torno de uma opinião, ou seja, uma vontade, uma postura, um modo de ser, é a aparência visível de constituintes outras que conformam tal “relação de relações”. A troca de papéis proposta atinge o feitio de um corte oblíquo sobre suas existências, desfazendo as vértebras que
140. Brecht, Bertolt. Citado no artigo para o programa.
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os mantinham em determinada ordem hierárquica e social, mas igualmente, as horizontais, no âmbito das reverberações contíguas às ações criadas. Operando a dialética de Hegel em torno das figuras do senhor e do escravo, Brecht remete para longe as especulações do pensador romântico, visando detectar uma ordem de universo que já não mais comporta a ilusão de um Espírito soberano quando contraposto ao rigor de um Estado cruel. A obra exala, em não poucos momentos, as inquietações de uma genealogia da moral como formulada por Nietzsche, especialmente na segunda dissertação de Para Além do Bem e do Mal. E Lacan, ao examinar esse mesmo contraponto, assinala: “A perversão é uma experiência que permite aprofundar o que se pode chamar, no sentido pleno, a paixão humana, para empregar o termo spinozano, quer dizer, aquilo em que o homem está aberto a essa divisão com ele mesmo que estrutura o imaginário. (...) Ela é aprofundadora, com efeito, pelo fato de que nessa hiânsia do desejo humano aparecem todas as nuanças, escalonando-se da vergonha ao prestígio, da bufonaria ao heroísmo, pelo que o desejo humano está inteiro exposto, no sentido mais profundo do termo, ao desejo do outro. (...) esta situação começa por um impasse, porque o seu reconhecimento pelo escravo não vale nada para o senhor, já que é apenas um escravo que o reconhece, quer dizer, alguém que ele não reconhece como um homem. (...) Uma lei se impõe ao escravo, que é a de satisfazer o desejo e o gozo do outro. Não basta que ele peça mercê, é preciso que vá ao trabalho. E quando se vai ao trabalho, há regras, horas - entramos no domínio do simbólico”.141 Ao que tudo indica, é a Lei de Segurança Nacional o grande mito estendido como pano de fundo nessa realização do Oficina, quando as já alquebradas franquias democráticas estavam solapadas e recrudescidas por intermédio de rígidos mecanismos de controle e vigilância, transformando a sociedade civil na contrapartida escrava do Estado/senhor. É nesse leque amplificado de significações que Na Selva das Cidades ganha relevo no instante em que é encenada, constituindo-se em suma da crueldade, da paródia, da luta de classes permeando a sociedade brasileira.
141. Lacan, Jacques. “A Ordem Simbólica”, in Seminário I, cit., pp. 252 e 255.
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O espetáculo, que na fase de ensaios chegou a desdobrar-se por cinco horas, deveria ser reduzido para um máximo de duas e meia, um dilema entre a criação livre e as convenções junto ao público que muito angustiaram o Oficina. Veja-se um trecho de José Celso no programa do espetáculo: “hoje minha classe ex marginal de artistas tem tudo para uma vida digna e bonitinha, de pequenos burgueses minúsculos, com cachorro, gato, carpete, TV. As editoras abris e tvs já fazem novelas tão finas e cultas, a Rhodia que faz a sua cafonada tão elegante, etc., estão todos aí para nos comprar. Estamos todos à venda para guardarmo-nos do touro, é esta a forma do stalinismo e do nazismo contemporâneos. O mito e o sonho bobo de uma tecnocracia de segunda mão. Um canadá mendigo e sujo, uma austrália com bossinha. É o fim definitivo de um certo tipo de teatro e um mergulho arqueológico no trabalho do Oficina: quebrar tudo, virar a mesa, espatifar as cucas e se preparar para destruir 10 anos de Oficina (60-69) que ameaça se transformar em instituição. Quebrar tudo e se preparar para aceitar o Desafio, que é agora e não foi em 64”.142 Se Na Selva das Cidades representou um auge no mergulho pós-tropicalista - tomado enquanto antropofagia regredida até seu estágio instintivo -, abriu igualmente as portas do grupo para a contracultura que começava a despontar. Em uma cena antológica, ao revolver o fundo do palco, entre ossos e dejetos, minavam relíquias do passado: o samovar de Pequenos Burgueses, roupas de Os Inimigos, adereços de O Rei da Vela. As dez cenas, denominadas rounds, terminavam invariavelmente com a ordem de “quebra!”, a que se seguia a literal destruição dos objetos presentes, diuturnamente consertados para voltarem à cena no dia seguinte. Essa quebra - metáfora maior subjacente a todo o espetáculo – o perpassava do início ao fim: as interpretações, a visualidade, as relações entre as personagens, a própria relação dos atores com suas criaturas, evidenciando as negações praticadas e a instalação de outras dimensões de contágio e envolvimento. Era a via de conhecimento inaugurada em Galileu novamente se manifestando: a verdade deve ser buscada numa relação de autopenetração não mediada entre o ser
142. Corrêa, José Celso Martinez. Artigo para o programa do espetáculo.
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cognoscente e o objeto a ser conhecido. Apenas a partir de uma experiência vital estabelecida entre os seres e as coisas é possível conhecer e viver, extrapolando as consequências possíveis – ainda uma vez ecoando, em modo radicalizado e teatral, as propostas do neoconcretismo. Tal consciente desregramento dos sentidos possuía em Rimbaud uma pedra de toque poética e em Grotówski uma metodologia cênica, tornando a encenação um feixe de proposições paradoxais: o grupo negava as assertivas da hegemonia cultural, não apenas enquanto plataforma política, mas negava igualmente sua própria constituição enquanto ser social, convencido de que desde suas bases cognitivas aquele pensamento se encontrava mal situado. Ao negar-se enquanto grupo instituído (então, a unanimidade da crítica o considerava o mais importante e artístico ensemble teatral do país), o Oficina afastava igualmente seu passado de compromissos, suas posturas, suas crenças, fazendo da destruição a matéria prima criativa para um salto, antevisto num lugar outro que não na objetividade ou no autoritarismo dos epistemas dominantes. Nessa acepção, Na Selva das Cidades foi um decisivo espetáculo a romper os limites então propostos ao teatro enquanto convenção. Tanto as personagens quanto a fábula foram tão amalgamadas (e adaptadas, quando necessário) às características individuais de seus intérpretes que restaram praticamente indistinguíveis onde começavam e terminavam as metáforas e os jogos de representações, a performatividade do processo. Matando o teatro, o Oficina auferia um máximo de teatralidade, num novo paradoxo. Surpreendendo a luta, em suas ilimitadas acepções - de classe, de ideologia, de vontade, de existência - radicalizava o que a criatura humana possui por orgânico e vital, forçando os limites de apreensão de onde começam e terminam o fisiológico e o instintivo no interior do culto e do civilizado. Norteando-se por uma antropologia imaginária, o Oficina apostou todas suas fichas, almejando descobrir no branco do olho uma luz para um novo tempo. O caos, efetivamente, deveria se acabar. Salvo raras exceções, as esquerdas não deixaram de reconhecer seus méritos artísticos nem de se espantar com seus efeitos estéticos, mas não poderiam - jamais - assimilar seus métodos e discurso sobre a realidade. Num país empenhado em guerra intestina esperava-se do grupo um apontamento de caminho, ou a filiação a uma ou outra tendência em curso. Os “filhos prediletos” da classe teatral, porém, desde O Rei da Vela, haviam optado por uma terceira via, agora aprofundada: não estavam dispostos a filiar-se a nada, a apontar caminho algum, a integrar qualquer frente, convencidos de que a função cultural e artística distancia-se tanto dos partidos quanto das
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formas instituídas, e que se há uma função para a arte é a de encetar uma revolução permanente, um xeque contínuo em todas as estruturas, inclusive e principalmente as mentais. Se um jogo de dados não abole jamais a intervenção do acaso, o Oficina apostava nessa mallarmaica profecia quanto a seu futuro ético-estético: era preciso provar a morte para redescobrir a vida. Somente com esse saldo poderia almejar um salto. Na Selva das Cidades não teve um final pacífico para o grupo e um incidente ocorre numa apresentação em Belo Horizonte, após bem sucedida carreira em São Paulo e no Rio. Numa cena particularmente violenta, Ítala Nandi foi lançada por três dos jovens atores vindos do coro de Roda Vida do palco para cima da plateia, ferindo-se com gravidade. O incidente significou a impossibilidade de convivência entre os “velhos” e os “novos”, dificultando a continuidade de projetos conjuntos. Assim, o ano de 1970 registra três núcleos de atividades da equipe: uma parcela desloca-se para Santa Catarina para a realização do filme Prata Palomares; uma segunda recebe os visitantes Living Theater e o grupo Lobos; enquanto Fernando Peixoto encarrega-se da direção de Don Juan, contando com Gianfrancesco Guarnieri no desempenho do mítico sedutor espanhol.143
143. Prata Palomares era um roteiro de André Farias, naquele momento marido de Ítala Nandi, modificado e alterado através de discussões com os demais membros do Oficina. Seu enredo gira em torno de dois guerrilheiros que, fugindo de um ataque de napalm, chegam a uma pequena igreja numa ilha. Um deles assume a identidade do pároco local, naquele estranho lugar dominado por uma Família de Branco. Entre pesadelo e realidade, o jovem que havia incorporado o padre tem um surto esquizofrênico, o que causa a superposição dos planos narrativos. É quando surge uma figura feminina (ora a Mãe Natureza, ora a Prostituta, ora Nossa Senhora das Dores), em meio à repressão contra os ilhéus sublevados. Os Homens de Preto a serviço da oligarquia de Branco, sufocam a revolta e a Santa tem suas mãos decepadas e a língua cortada. O segundo guerrilheiro consegue fugir e novamente juntarse a seu antigo grupo; restando o padre esquizofrênico que, descrente na revolução, tenta implantar na ilha o “Paraíso agora”. A Santa se junta ao grupo guerrilheiro primitivo e todos contemplam, do alto da serra, aquele que traiu a causa, um cérebro largado às moscas. José Celso seria o diretor de atores do filme, mas, em função de desavenças com André, que causaram a paralisação das filmagens, elas só serão retomadas após seu afastamento da equipe. Rodado em Florianópolis, o filme utilizou a Lagoa da Conceição e a Igrejinha que lhe dá o nome como locações principais. Proibido no Brasil, Prata Palomares estreou no Festival de Cannes em 1971, sendo também exibido em diversas cidades europeias, mas nunca veiculado comercialmente no Brasil. Don Juan foi concebido por Fernando Peixoto como uma ópera rock, empregando uma banda musical ao vivo e um expressivo visual concebido por Flávio Império. Gianfranceso Guarnieri assinou a adaptação do texto juntamente com o diretor, encarnando o libertino que desafia o poder do tirânico Comendador. Espetáculo confuso, não alcançou todos os objetivos a que tinha se proposto.
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O Living aportara no Brasil a partir de um convite de José Celso e Renato Borghi, e as expectativas de parte a parte apontavam para a realização de um trabalho conjunto, mas sua estada em São Paulo virá trazer mais transtornos que harmonia para as já exasperadas relações internas. Julien Beck e Judith Malina tentaram monopolizar as discussões e as propostas de criação, confiantes nas táticas desenvolvidas em seus últimos espetáculos (Antigone, Frankenstein e Paradise Now), apontados em todos os grandes centros culturais como a mais explosiva neovanguarda cênica da década de 1960. Empenhado nos últimos anos em visitar regiões “subdesenvolvidas” para pesquisar e atuar (já havia trabalhado na Sicília e na África), o grupo norte-americano também passava por atribulada vivência interna, evidente em sua divisão em dois agrupamentos. O primeiro permanecera na Europa trabalhando junto às universidades e voltado para a agitação política, na esteira direta dos acontecimentos de Maio de 68, e o outro viajara, mais preocupado com as contradições do terceiro-mundo, comandado pelo casal fundador do ensemble. É essa variante “internacionalista” que tentará, junto com o Oficina, formar uma comunidade e criar um espetáculo no Brasil. Do lado brasileiro apenas dois “representativos” são aceitos e assimilados, José Celso e Renato Borghi, além dos “novos” e o acréscimo de outros artistas interessados no contato com os americanos. Após poucas semanas a experiência de convivência se frustra, tanto na arquitetura da comunidade como nos métodos de investigação artística, decidindo-se interromper o projeto. Enquanto o Oficina parte para a organização de seu Saldo para o Salto, o Living desloca-se para Ouro Preto e, sozinho, lança-se à criação de O Legado de Caim. Tendo em mira um imperscrutável “trabalho novo”, as remontagens do Saldo para o Salto são organizadas para uma longa excursão pelo país, em busca de êmulos culturais espalhados pelo interior, com o objetivo final de atingir Manaus e as comunidades indígenas das fronteiras com o Peru. Durante quase um ano, entre 1970 e 1971, após expressivas experiências de criação (desde a apresentação de Pequenos Burgueses em casas de família no sertão paraibano até a construção de um dique em Mandassaia, improvisos de cenas com estudantes da Universidade de Brasília até apresentações com o elenco drogado em Salvador e São Luiz), o Oficina retorna para o Rio de Janeiro para apresentar o resultado de seu labor: um espetáculo em criação coletiva denominado Gracias, Señor, dividido em sete cenas e dois dias de apresentações.
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A encenação dividia-se, em resumo, em: Confrontação, onde os atores renunciavam à careta, rasgando suas carteiras de identidade; Aula de Esquizofrenia, onde após a demonstração da personalidade dividida propunha-se ao público a opção pela lobotomização; Divina Comédia, onde os apelos da propaganda de bens de consumo e da lobotomização aplicados ao cotidiano eram demonstrados enquanto ações sociais; Morte, onde se demonstravam os efeitos da divina comédia, isto é, o não-querer; Ressurreição dos Corpos, só possível se o caminho após a Aula de Esquizofrenia indicasse outra direção que não a divina comédia, onde os grupos opostos Cotovia/ Rã convidavam o público a subir na Barca de Dioniso, metáfora que conduzia à ausência de pecado ao sul do Equador; O Novo Alfabeto, onde um bastão era manipulado tendo como bordão o enunciado “há muitos objetos num só objeto, mas um só objetivo: destruir o inimigo. Se este objetivo não for atingido, não há nenhum objeto num objeto”, símbolo muito sugestivo no contexto do espetáculo e; Te-ato, onde o bastão, entregue ao público, funcionava como convite ao exercício de sua livre manipulação. Um aspecto a ser observado diz respeito ao significado do te-ato, uma radicalização do gesto criativo, cada vez mais invocado nas últimas produções do grupo: da via de conhecimento de Galileu até a autopenetração de Na Selva das Cidades, remetendo, igualmente, às contribuições do Living Theatre em torno da performance. Há, de fato, uma não disfarçada correlação entre Paradise Now e Gracias, Señor, não apenas quanto aos métodos de trabalho empreendidos em ambas as encenações, visando promover a interação com o público, indispensável para a própria continuidade das ações como, igualmente, nos paralelismos temáticos entre suas diversas sequências.144 Apresentado durante duas semanas no Rio e apenas uma em São Paulo, o espetáculo, dadas as cada vez mais crescentes improvisações do elenco e do público, afastando-se do roteiro entregue à Censura, foi por ela suspenso. Efetivamente, mobilizavam-se ali forças criativas de parte a parte, impossíveis de serem contidas em um evento previsível. É então que, sob o influxo das postulações liberalizantes de Herbert Marcuse e outros expoentes da contracultura, o Oficina começa a desenvolver outras formas de expressão:
144. Um confronto entre os roteiros dos espetáculos revela similitudes: Ritual do Tu e Eu/ Confrontação; Ritual das novas possibilidades/ O novo alfabeto; Ritual das forças opostas/ Aula de esquizofrenia; Ritual da Viagem/ A ressurreição dos Corpos; Ritual do Teatro/ Te-Ato e a cena do bastão. Para ampliar estas noções ver: Silva, Armando Sérgio. Oficina: do teatro ao te-ato. São Paulo, Perspectiva, 1984 e Biner, Pierre. Living Theatre. New York, Avon Books, 1973.
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cursos e ciclos de cinema são organizados, prática de música e shows ocupam o palco da rua Jaceguai, a redação de um jornal e uma revista alternativos passam para os porões do prédio, levando o coletivo, nessa somatória de estímulos e realizações, a cada vez mais abandonar o propósito de fazer teatro. O te-ato atinge assim sua dinâmica máxima, não mais adstrita apenas enquanto fórmula estética. Alardeando a disseminação do pensamento alternativo, são visíveis os esforços por parte dos integrantes do coletivo, agora transformado em Casa das Transas, em buscar algo novo, distante dos antigos paradigmas. Um novo que abarcasse tanto as experiências com a comunidade como as práticas de expressão por onde se aventuravam e vislumbradas como atuações contraculturais.145 A última direção de José Celso em 1973, As Três Irmãs, foi uma tentativa de conciliar esse projeto já altamente esgarçado relativo à linguagem cênica. Juntando remanescentes de Gracias, Señor com a estrela de Um Bonde Chamado Desejo, Maria Fernanda, o grupo tomou a peça de Tchekhov como um trampolim que o catapultasse ainda uma vez para o centro de sua renovada identidade. Uma mandala desenhada no palco delimitava o espaço de ação, com uma pedra demarcando seu centro de energia, e os quatro atos do espetáculo reportavam-se às quatro grandes fases de vida do grupo, em novo exercício metateatral. A encenação resultou desigual, ao fazer conviver atores muito jovens ao lado de veteranos, com distintos rendimentos artísticos, subsistindo apenas alguns poucos momentos cênicos inspirados. Tornou-se impraticável conciliar a sutileza tchekhoviana com a escancarada expressividade empregada nas últimas experiências. Com a intempestiva saída de Renato Borghi, em meio da temporada, resta apenas José Celso da antiga equipe que, em pouco mais dez anos de trajetória, atravessara conceitualmente todo o século quanto às suas mais inspiradas correntes estéticas. E, tal como sucedera com grande número de grupos europeus e norte-americanos muito ativos na década anterior, também o Oficina se dissipou.
145. A contracultura deve ser dimensionada em sua configuração abrangente, a busca pela negação total das estruturas da cultura institucionalizada e seus consequentes modelos de reprodução. Especialmente as formas aberrantes que engendrou: a burocracia, a concentração de renda, a espoliação da natureza, a estratificação das relações humanas, a baixa qualidade de vida nas grandes metrópoles, a repressão sexual, a submissão humana à tecnologia e às máquinas etc. Ela buscou, em todos esses planos, alternativas possíveis, não escondendo seu caráter utópico embebido pelo princípio de prazer. Ver Roszac, Theodor. A contracultura, Petrópolis, Vozes, 1972. Assim como Marcuse, Herbert. Eros e civilização, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.
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Havia uma nova ordem mundial, novos paradigmas de ação e comportamento, bem como a abertura para novos territórios artísticos – tais como a body art e a performance art -, apontando para a descrença na eficácia da linguagem teatral em seu poder de mobilizar o público. Na Polônia, Jerzy Grotowski abandonara seu Teatro-Laboratório para dedicar-se àquilo que, em polonês, foi designado swieto, aproximadamente traduzível por “festa”, “dia santo” ou “férias”, querendo designar um modo de abrir-se, revelar-se, deixar-se conhecer por inteiro num momento propício – sintetizado na fórmula arte como veículo. Já não mais com atores nem a partir de uma estrutura dramática, mas buscando um momento de encontro em meio a uma pequena comunidade de interessados em novas experiências humanas, sem o objetivo de fazer arte. O Living Theatre, trilhando um percurso assemelhado, após sua volta aos EUA, lança-se à criação de O Legado de Caim, projeto iniciado no Brasil, reunindo pequenas cenas estruturadas sobre as motivações subjacentes entre um senhor e um escravo, extraídas das confissões de Leopold von Sacher-Masoch. Libertas, igualmente, das implicações de um teatro formal, tais interações cênicas foram desfrutadas em meio a pequenas plateias ocasionais. Quando percebida pelo crivo do tempo histórico brasileiro, essa crise solapando as convenções teatrais desenvolveu-se tendo como pano de fundo a luta armada e a intensa repressão política, oscilando entre dois pólos: alguns criadores abandonam os palcos e partem para outras opções de existência, seja no estro das inúmeras variantes terapêuticas corporais que se conformaram no contexto contracultural, seja dedicando-se a novas atividades artísticas, como a literatura e a poesia, o cinema, a vídeo arte, as artes plásticas, a culinária, a curadoria de eventos. E os remanescentes que optaram pela linguagem de palco são instados a procurar novos paradigmas artísticos, em geral optando pelas criações coletivas ou investindo no refinamento das relações humanas internas aos grupos, em não poucos casos associados em modelos que derivam das comunidades. Em qualquer dessas direções, entrementes, os caminhos apontam para o recolhimento e a reclusão.
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CAPÍTULO 10 CONTRACULTURA E VAZIO CULTURAL
Conformando o período de maior repressão imposta pela ditadura, com estrito controle sobre a imprensa, as diversões públicas, o mercado editorial, bem como exercendo pressão preventiva sobre órgãos e associações que pudessem viabilizar debates, o estudo ou propiciar a troca de opiniões – incluindo e, especialmente, as universidades – os anos mediados entre 1969 e 1974 evidenciaram-se como um tempo de fraturas. A prisão de José Celso Martinez Corrêa e outros integrantes da comunidade que se formou no ex-Oficina, agora tornado Casa das Transas, em 1974, coloca um ponto final, no âmbito teatral, a um ciclo genericamente caracterizado como pós-tropicalismo. Nesta acepção, o período antes referido pode ser tomado como a fase cínica do movimento e o auge da contracultura brasileira, quando assumiu decidida feição estética e política que marcam um rol de realizações. Foram filmes, jornais, espetáculos de teatro e dramatização de poemas, poesias de mimeógrafo, um expressivo movimento musical, formação de comunidades e a multiplicação de práticas terapêuticas, em variados formatos e direções. Sem distinguir limites, da arquitetura às artes plásticas, das artes gráficas à poesia, ela tingiu com seus tons coloridos grandes parcelas das invenções poéticas daqueles anos. Expressão cultural da chamada “geração AI-5”, a contracultura desenvolveu-se em clima de sufoco, de asfixia (no dizer de Torquato Neto), o que lhe confere qualidades e características próprias, quando correlacionadas à sua presença internacional. Acercando-se do teatro em modo bastante direto, pode-se nele encontrar algumas características que, dadas suas componentes de espetáculo, vão se evidenciar exacerbados.
Tanto a designação “geração AI-5” quanto os dados analíticos a seguir foram tomados de Luciano Martins, um sociólogo pioneiro no rastreamento da temática, num ensaio autorreferido como impressionista, publicado nos Cadernos de Opinião.146 E aqui referi-lo prende-se às suas afirmações políticas, onde é sugerido que a perda de ação social foi consequência do autoritarismo dominante, mas também às demais considerações veiculadas naquele momento, quanto a referendar as teses hegemônicas que situam o período e a geração pós-tropicalista como expressões de um “vazio-cultural”. A juventude colocada sob foco é aquela situada entre os 16 e 20 anos de idade em 1968. Logo ao início, a contracultura é situada como uma das contraposições ao pensamento autoritário que, primando por produzir um corte violento nas relações Estado/sociedade civil produziu, entre outros efeitos, a perda de contato com a história recente do país, promovendo uma dicotomia entre o indivíduo e sua consciência crítica. A instauração do absurdo como fato cotidiano teria concorrido, para reforçar certos atos perpetrados pela ditadura (supressões, desaparecimentos, ocultações, tortura e morte etc.). Em seguida, Luciano Martins investiga as causas e consequências geradas, para concluir e surpreender o que lhe parece a síndrome comportamental daquela geração - em que pese o genérico da análise, o enfoque centrado no Rio de Janeiro e a grande quantidade de dados apenas empíricos, como salienta o autor: o uso da droga, a desarticulação do discurso e o modismo psicanalítico. Contam elas como as três pontas de lança sindrômicas mais cristalizadas, independentemente de suas relações internas, marcando os índices da geração. Deixando de lado algumas conclusões periféricas do autor e centrando na tripla síndrome a atenção, que articulam interações com o projeto político da contracultura e mais especificamente com o teatro, vejamos como se apresentam. A inexistência de um projeto social ou existencial surge como a condição básica que leva o jovem à droga. Ressalvadas as características de fator de autoconhecimento, experimento de sensações não passíveis de se concretizarem sem auxílios químicos e buscados efeitos alucinógenos, distensionantes ou excitantes junto ao córtex cerebral quando no âmbito de uma experiência, resta ao ensaísta analisar o consumo da droga enquanto hábito social, enquanto prática cotidiana. Quando assumida como compulsão,
146. Martins, Luciano. “A Geração AI-5”, in Cadernos de Opinião, Rio de Janeiro, Inúbia Editora, 1970.
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ruem as barreiras entre livre escolha e autoconhecimento, restando apenas o culto à droga, aquele primitivo anseio de busca de prazer ou desafio à “ordem instituída”. Em uso recorrente, ela adquire o tônus de demiurgo para situações de evasão, negação da realidade e fluxo do tempo. Assim, “é esse o sentido profundo do estado que, no jargão da droga, é significativamente designado por ‘flash’. Trata-se, em síntese, de uma visão fragmentada e fragmentária de um imaginário artificialmente induzido e que se relaciona apenas ‘exteriormente’ com o real. Porque minha suspeita é a de que o real, seja ele o mundo externo ou do indivíduo, se constitui apenas num suporte não no objeto dessa percepção sob o efeito da droga: a percepção ‘passa’ pelo real sem o penetrar. (...) não há aquisição de conhecimento.”147 Por esse motivo, especialmente sob o efeito das hard-drugs consumidas no país de maneira cada vez mais ampla, associadas ao quadro institucional de repressão e supressão dos mecanismos da dinâmica sociopolítica, clarifica-se um estado geral de não história ou a-historicidade, como salienta o autor, o que configura cabalmente a alienação. Situação que conduz a um estado onde: “a ideia de fluxo do tempo é violentamente rejeitada: porque é intolerável que algo flua lá fora enquanto se está estancado por dentro. As proposições e negações continuam existindo, mas, dada a ausência de movimento, existindo já enquanto paradoxos e não mais enquanto contradições. [...] Tal recusa tenderá evidentemente a ser maior quanto mais absurdo, cruel e repressivo for por ele percebido esse mundo dos adultos.”148 Vivido como extático ou “edênico”, o estancamento do tempo conduz a um desvio fortemente introjetado, já descrito como conceito alienado na identidade, que é a transferência da autoestima para um indicador da personalidade e não à sua totalidade que, no caso, seriam aquelas características associadas à juventude. De fato, o crescimento do “poder jovem” em todo o
147. Idem, ibidem, p. 83. 148. Idem, ibidem, p. 84.
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mundo incumbiu-se de alastrar comportamentos e hábitos decididamente renovados, propiciando à indústria a cooptação de seus estereótipos numa intensa promoção de seus atributos. Neste processo, a assunção de uma ou de várias máscaras, por um desvio paranóide ou onipotente, torna-se fato e processo continuado, levando ao desempenho de vários papéis simultâneos, ainda que contraditórios (como compensação ao vácuo da despersonalização), ou ainda, à violação de interditos, acessíveis a uma não pessoa, que assim se desincumbe de responsabilizar-se pela prática dessas transgressões. (Podemos aqui pensar em O Assalto, de José Vicente, quando da troca de personalidades entre Victor e o Varredor, bem como no ritual mágico de roubo ao banco; ou ainda, em Gracias, Señor, na sequência do bastão, do “muitos objetos num só objeto”, quando a plateia era convidada a ultrapassar limites num rito de “ousadia criativa”). Com tais pautas de comportamento, onde a realidade era percebida como um não-lugar, e onde a compulsão para a evasão e a negação do fluxo de tempo ganham aval sociopolítico de sociedade permissiva e “jovem”, incentivadora quer da despessoalização quanto da despersonalização crescentes, vem somar-se uma segunda, levando a identificação sociocultural a estabelecer-se sobre outros dados que não os tradicionais: “no qual as afinidades seletivas, porém estruturantes - de interesse, de sensibilidade, de projeto, de visão ética e até mesmo de classe são substituídas por outras estabelecidas a partir de uma identificação que se realiza através de exterioridades e de pautas de comportamento padronizados (roupas, linguagem, uso de drogas, etc.). Por isso que tal universo pode ser heterogêneo sendo, ao mesmo tempo, idêntico a si mesmo em sua alienação”.149 Uma ilustração apurada desses desvios poderia ser encontrada na relação erótico-amorosa cultivada pelas duas personagens centrais do romance Terror e Êxtase, de José Carlos Oliveira, uma vez que, originárias de classes sociais distais, encontram-se os amantes na mesma situação de marginalidade. Ou, ainda, quando voltamos ao teatro, na cena de confrontação de Gracias, Señor, quando as carteiras de identidade dos atores são rasgadas; na ritualização e troca de papéis entre a abusada servidora pública subur-
149. Idem, ibidem, p. 86.
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bana e o vendedor de enciclopédias de Alzira Power, de Antônio Bivar. E, como ponto culminante entre as componentes estéticas destas interações sociais, surge a festa. Não mais, todavia, enquanto espaço do prazer permitido, mas inversamente, aquele da transgressão, “um instrumento, em síntese, de reprodução do mito e de controle de sua liturgia - o que até não exclui a alegria: apenas a situa.”150 Do ponto de vista cênico, essa caracterização faz lembrar o be in inaugurado pelos hippies de Hair, atinge um contorno utópico antes proposto em Paradise Now, exibe uma feição erótica na cena da barca de Gracias, Señor, transpassa verticalmente toda a encenação de Rito do Amor Selvagem, atinge características sacras em Hoje é Dia de Rock, arma-se como irreverência e paródia em Luxo, Som, Lixo para atingir contornos quase perversos, profundamente partícipes deste universo de transgressões, em Gente Computada Igual a Você, pelos Dzi Croquettes. Enfim, a festa must go on. O uso do idioma e, em seu limite, a capacidade de articular um discurso inovador nos mais diversos meios comunicacionais, fora o aparato apropriado empregado pelas experimentações vanguardistas, especialmente no século XX. No Brasil, elas são verificáveis em modo mais relevante sob o signo modernista de 1922 e nas experimentações verbi-voco-visuais dos concretistas ligados à revista noigandres, ao final de década de 1950. Se tais experimentos, advindos de estudiosos do idioma e hábeis cultores de formas expressivas de variadíssimo léxico e sintaxe, foram realizados no sentido de expandir e explodir um universo de discurso estagnado, verborrágico, redundante e entalado num arcabouço discursivo vetusto e cerceador, o geral desta atividade ocorreu à sombra e em suspeição por parte da hegemonia cultural da década de 1960. A retomada do concretismo, na fase áurea do tropicalismo, revelou à cultura brasileira muito da estagnação quanto às formas de comunicação do português. Utilizadas como decidido campo experimental, aquelas formulações concretistas e tropicalistas irão influenciar a arte de modo aprofundado, trazendo para o teatro não tanto suas intensidades vocoverbais, mas, notadamente, seus processos técnicos de montagem e de visualização espacial. Mas a desarticulação do discurso como observada por Luciano Martins no âmbito da contracultura, contudo, não tangencia essa via estética, e aqui
150. Idem, ibidem, p. 87.
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voltamos às suas constatações. Muito além da chamada santa ignorância, o que ele observa neste momento é “a recusa da inteligência crítica e o embotamento da percepção”151, pois estabelecida através do rápido aparecimento de modismos e gírias conformando um jargão típico de grupo, instaura-se uma funda desarticulação do universo cognoscente, detectável por debaixo de seu palavreado irrisório. Que, em grande parte, emerge associado à droga, a seu universo de causas e efeitos: barato, barra, bode, cara, careta, tipo, beck, numa boa, numa pior, desbunde (e transbunde), mandracona, dançar (no sentido de eliminar, sair, desaparecer), pinel, louco (no sentido de descontrolado), realce (no sentido de ter apoio ou sucesso), além de alguns anglicismos definitivamente incorporados: hard, trip, nice, drop out, brother, ok, slow, etc. O que o autor salienta não é o uso de tais neologismos como atributos de um discurso inovador, juvenil, incorporado às práticas e hábitos desanuviados do convívio social, mas a desarticulação léxica e sintática a que ele induz, onde tais expressões passam a designar tudo. Ou seja, efetivamente não designam nada. Esvaziadas enquanto referências, tais vocábulos, por outro lado, são empregados em construções recorrentes cujas fórmulas apontam para uma desestruturação mais ampla da própria percepção, instalação, articulação e raciocínio do falante. Alguns dos exemplos ilustram claras afasias: cara, que denota um rosto vago e uma feição genérica, não é empregada para a referência a terceiros, mas ao próprio interlocutor, possuidor de um sexo, um nome, uma história e quase sempre um conhecido íntimo do falante. O que o genérico cara esconde é, então, uma ausência de registro, uma despessoalização do interlocutor, um desinvestimento de suas singularidades. Caso análogo ocorre com a expressão tipo, em frases como “a gente se encontra tipo cinco horas”, “estou numa tipo de horror”, “um cara tipo barra”, onde a classificação estrutural que está por trás da expressão, uma corruptela de “tipologia” ou um seu adjetivo, reduz a uma única dimensão cognosente e cognoscível as intenções do falante, marcando a unidimensionalidade de seu discurso, descolado de singularidades, importância ou preferência. Ou ainda, veja-se o uso recorrente do sabe no interior da fala. Num exemplo do autor: “Pô, cara, ontem acabei numa festa na casa do Pedrão, sabe, tava um barato, ô cara, só que pintou aquele bode prá Mônica, ela tava tipo grilada, meio pinel, sabe, precisou de um realce e
151. Idem, ibidem, p. 87.
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tudo, sabe, mas a festa tava um barato, sabe”. O reiterado uso do sabe não apenas sugere grande ansiedade no ato de falar (a necessidade recorrente de assegurar-se estar sendo compreendido) como, mais importante, tem a função de dar por entendido justamente aquilo que não se sabe explicitar ou explicar (pintou um bode, meio pinel, grilado). Equivale à renúncia de explicação. As coisas acontecem sem que se saiba bem porque e também sem que haja interesse em saber o que significam: nesse caso, “coisas, acontecimentos e sensações pintam.”152 Saltemos, momentaneamente, para outra referência. Em pesquisa realizada em São Paulo, a professora Maria Thereza Fraga Rocco analisou as dissertações de vestibulandos da USP ao longo de quinze anos (após 1964). Suas conclusões levam a crer que, efetivamente, estamos diante de uma degenerescência no uso do idioma por parte das novas gerações, bem como presenciando aguda crise quanto a seu modo de pensar, usar a linguagem e com ela se comunicar. Alguns dados recolhidos da reportagem do Jornal da Tarde dão conta de tópicos desta pesquisa, transformada em tese acadêmica.153 Vejamos excertos, colhidos junto às dissertações: ausência de conexão por uso semântico indevido do conectivo (Minha mãe veio me cumprimentar apesar que choveu a noite toda); ausência de coesão por contradições lógicas evidentes (Quando abro o envelope noto que não há nada escrito e o mais engraçado é que não continha nome da pessoa anônima que assinou a carta); ausência de coesão por impropriedade entre as partes dos enunciados que causam ruptura da relação locutor-leitor (Ganhei de presente uma fotografia de um metro quadrado de poster de minha frondosa figura); ausência de coesão por nonsense, evidenciando quebra total dos nexos lógicos (Não apenas aos 18 anos que deveríamos receber uma carta em branco, mas desde quando nossas progenitoras dão entrada na sala de obstetrícia, a partir daí o nosso semblante sofrerá as cargas genéticas, indicando nossa cara e o nosso parentesco); ausência de coesão por repetição e circularidade (Hoje é dia de festa e festividade. Além de minha alegria por esta festiva data, sinto-me muito festivo e alegre). Na base da pesquisa, Maria Thereza não computou os desajustes gramaticais e de normalização da língua, procurando evidenciar tão somente as formas de articulação do discurso. Após historiar os avanços e utilizações
152. Idem, ibidem, p. 90. 153. Melamet, Raquel, reportagem “Pobre Língua Portuguesa!”, in Jornal da Tarde, São Paulo, 1º de junho de 1981.
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criativas de autores como Lewis Carrol, Júlio Cortázar, Eugène Ionesco, James Joyce e outros, ela conclui que nas redações verificadas a fragmentação lógica não surge como recurso, estilo, violentação gramatical ou outras variantes experimentais, mas expressam um anti discurso, uma desestruturação verbal ligada à fragmentação do raciocínio. Frases como há fases da vida de um homem em que só o tempo encoraja ou em quantos caminhos os acontecimentos encaram a real condição de surpresa?, embora gramaticalmente corretas, revelam total dissociação entre causa e efeito, um nonsense não intencional e uma disfunção cognitiva primária. Sobre os 1500 textos tabulados e selecionados, conclui a professora: “muitos deles são mais próprios de crianças de 10 ou 12 anos do que de adultos. São textos ‘emparedados’, a ação geralmente se passa dentro de casa e a narrativa é feita em ordem cronológica. Apenas 16 redações têm características descritivas, porque a descrição implica observação, capacidade de detalhamento, de olhar e realmente ver, sentir a relação entre pessoas e pessoas, pessoas e coisas. E a capacidade de observação, registro e relacionamento revelou-se muito pouco desenvolvida nestes indivíduos.”154 E, ao verificar a totalidade do panorama abarcado, ela conclui: “a consciência do homem só se instaura na história a partir da linguagem. O carente verbal não pode sequer reivindicar seus direitos fundamentais (...), se a pessoa obtém a suficiência do discurso próprio ela irá paulatinamente conquistando outras suficiências e diminuindo suas carências”155, conclusões não muito distantes daquelas efetuadas por Luciano Martins em sua pesquisa: “não é de estranhar que numa sociedade na qual todo o processo decisório que ordena seu destino é ocultado, e na qual o arbítrio faz com que o fato político se apresente como destituído de qualquer relação de causa e efeito, também o sujeito das frases passe a ser oculto ou indeterminado, ‘dizem que’, ‘informou-se ontem’, ou então ‘pintou numa boa’, ‘pintou um bode’. No primeiro caso ninguém sabe
154. Rocco, Maria Thereza Fraga, em depoimento para a citada reportagem. 155. Idem, ibidem.
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quem diz ou o que informa; no segundo caso, algo (indeterminado) aconteceu (de bom ou de mau) sem que se saiba por que, como, pela ação de que ou de quem. Não é também de estranhar, assim, que a ideia de projeto seja confundida com a de ‘programa’; é que projeto se constrói, ‘programa’ pinta.”156 A ausência de instalação no mundo se complementa, na visão do autor, por intermédio de outro mecanismo alienador – a psicanálise - tal como praticada ao final da década. Para situar seu ambiente, Martins invoca algumas inquietantes declarações do psiquiatra Eduardo Mascarenhas. Para ele: “hoje, e cada vez mais, recorrem à psicanálise e seus desdobramentos (grupo terapias, terapias de apoio, psicodramas, etc,) pessoas psiquiatricamente consideradas ‘no pleno gozo de suas faculdades mentais’ (...). O desejo de autoconhecimento, a vontade de melhorar a qualidade dos vínculos eróticos, afetivos e familiares, a inquietação por desatar nós ou impasses existenciais, a ambição de ampliar a criatividade, iniciativa ou eficácia profissionais, tornam-se agora os principais motivadores para a busca de auxílio psicanalítico. Quer isto dizer que não são os inativos ou imobilizados, mas sim os membros mais socialmente ativos da sociedade - seus líderes, dirigentes ou formadores de opinião - aqueles que são mais poderosamente influídos pelo saber psicanalítico. Porque o boom psicológico iniciou-se há apenas 10 anos, seus efeitos, na plenitude de sua impetuosidade, ainda tardam por se manifestar. As gerações subsequentes, entretanto, testemunharão o seu impacto”.157 A partir destes dados Luciano Martins articula seu raciocínio, constatando o baixo nível com que era conduzida a prática psicanalítica no país, especialmente pela ausência de teoria formulada a partir de correntes brasileiras, o que torna tal tipo de terapia suspeita. Especialmente suas variantes e decorrências, como as grupo terapias e psicodramas, em diversas vertentes, acessíveis a psicólogos aptos a clinicarem sem controle ou fiscalização.
156. Martins, Luciano, “A Geração AI-5”, cit., p. 90. 157. Mascarenhas, Eduardo, “O boom da psicanálise e a consciência nacional”, Jornal do Brasil, 12 de fevereiro de 1978, p. 5, apud Martins, Luciano, A Geração AI-5, cit., p. 94.
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No caso do teatro, foi verdadeiramente grande o número de indivíduos que abandonaram suas carreiras artísticas para improvisaram-se como facilitadores, monitores ou condutores dessas variantes ligadas à biodança, bioenergética, treinamento autógeno, técnicas de relaxamento e meditação, entre a infinidade de diuturnas inovações sofridas pelo arsenal terapêutico. O autor de A Geração AI-5 vê nesse modismo uma mais séria correlação com o pensamento autoritário: “Até porque se trata de uma sociedade na qual registra-se: de um lado, uma transformação econômica acelerada, importantes deslocamentos (para baixo e para cima) dos grupos de rendas médias e altas na pirâmide social, centros urbanos em expansão caótica e uma lamentável qualidade de vida; e, de outro, a obstrução pelo autoritarismo de todos os canais de representação de interesses ou de protesto, além da repressão de qualquer utopia de transformação. Em tal sociedade parece claro que todas as condições estão dadas para um brutal aumento de ansiedade e dos distúrbios de comportamento. Fenômenos esses que, por sua vez, se manifestam concomitantemente com o desarmamento crítico e a expansão do pensamento mágico, uma coisa e outra servindo para acentuar e ao mesmo tempo esconder dos indivíduos a sua própria alienação. Parece evidente que sendo este o contexto social, a tendência é para que todos andem (ansiosamente) às cegas, o que em geral conduz à busca de saídas onde elas não existem.”158 Assim, vale enfatizar, enquanto aspecto político desta problemática e segundo o raciocínio do autor, o caráter social e não individual da ansiedade, ou seja, configuram-se como interdependentes o crescimento do autoritarismo dominante e o desajuste psicológico que, quando percebido na esfera da individualidade, deve ser creditado a uma dada gênese histórica e não à enganosa apreensão de que teria ocorrido um súbito aumento de autoconsciência para com os problemas do ego ou do corpo. Se, efetivamente, tal conjunto de características apontado Luciano Martins marca o horizonte de discurso da geração pós-1969, é indispensável reconhecer, por outro lado, que muitos de seus expoentes souberam encontrar
158. Martins, Luciano, “A Geração AI-5”, cit., p. 95.
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modos de viabilização para formas expressivas esteticamente congruentes, contribuindo para enriquecer a cultura daquele período. Especialmente quando veicularam práticas de uma contracultura que, mesmo imersa nessa mélange sucumbida ao autoritarismo dominante, articulou proposições culturais alternativas.159 É a partir destas proposições emergentes, mesmo quando embaralhadas na liquefação homogênea e totalizante efetuada pelo milagre econômico que despontam, na segunda metade da década de 1970, novos horizontes para a prática cultural, onde o teatro vai ocupar lugar de destaque. Uma grande quantidade de novos grupos teatrais surge em todo o Brasil, especialmente em meados da década, em moldes e padrões muito diversos daqueles observados na fase anterior, constituindo opções culturais e políticas longe do retrato arrasado e arrasador que Luciano Martins quer ver e fazer crer. À tese de um suposto “vazio cultural”, a contracultura demonstrou estar apta a um discurso dos mais interessantes - e político. Mapear, todavia, os percursos da contracultura no Brasil é tarefa tortuosa. Além dos pensadores que a difundiram em modo mais reconhecível e sistemático, como Luís Carlos Maciel, Jorge Mautner, Torquato Neto, Tite de Lemos, Torquato Mendonça, Gramiro de Matos, Wally Salomão, Antônio Risério, Rogério Duarte, Rogério Sganzerla, Hélio Oiticica entre tantos mais, forçosamente há que se recorrer à própria produção artística efetuada no período, onde encontramos centenas de jornais, revistas, panfletos, filmes em super 8, poesias, textos mais ou menos teóricos, entrevistas, depoimentos, músicas, livros, discos, obras plásticas e audiovisuais, filmes, uma gama de formatos e expressões.
159. Em sua coluna “Underground”, publicada no Pasquim, Luiz Carlos Maciel reporta a visita de Foucault ao Brasil em 1973, resumindo uma de suas conferências: “Aparentemente, Foucault não prevê limites capazes de cercear a fúria arrasadora dessa nova intenção analítica. Estendida a outros setores do conhecimento, conforme se apresentam em nossa cultura, ela por certo não deixaria pedra sobre pedra. Descrita a gênese dos condicionamentos, a base arbitrária e contingente dessas estruturas fica evidente por si. Pode-se discutir o alcance da solução de Foucault, reconhecendo que ela não deixa de ser uma acrobacia intelectual diante da desilusão filosófica com o tipo de conhecimento científico estratificado no século XIX, por exemplo. Mas não se pode deixar de constatar que seu diagnóstico é agudo e penetrante. Mais: seu discurso estratégico tem uma inegável função desmistificadora, talvez capaz de libertar os espíritos mais presos à rigidez dos condicionamentos. O próprio Foucault falou, entre nós, das possibilidades de ‘liberação para as pessoas’ e ‘tentar a cura’. As consequências práticas dessa espécie de terapia epistemológica podem ser ilustradas pelo surgimento da antipsiquiatria e sua utilização das ideias de Foucault”, in Maciel, Luiz Carlos, A morte organizada, São Paulo, Parma, 1978, p. 96.
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A contracultura foi emanada a partir dos EUA, detectável desde meados da década de 1950 e com amplos prolongamentos na década seguinte, quando os beatnicks começam a se posicionar a margem do sistema. Tecendo ácidas críticas ao american way of life, faziam apologia de uma vida livre, orientada por princípios ideológicos que mesclavam, em modo pouquíssimo ortodoxo, lições zen-budistas e a revisão moral de Nietzsche, as propostas libertárias de Freud e Reich, acopladas com o engajamento sugerido por Sartre, sendo a droga, o blues e os happenings alguns dos expedientes a funcionar como passaportes para essa nova junção entre vida e arte. Nos anos 1960 serão os hippies os disseminadores deste amplo movimento de contestação, apoiados em Thimoty Leary e Herbert Marcuse, integrando a grande frente de luta dos negros pelos direitos civis, contra a guerra do Vietnã e os testes nucleares, cujas manifestações mais peremptórias tornar-se-ão conhecidas como radical will.160 A música emerge como a grande linguagem internacional, com os Beatles e os Rolling Stones ocupando lugar central, ao lado de ídolos como Jimmy Hendrix, Janis Joplin e Joan Baez. No Brasil o tropicalismo irá galvanizar esses influxos, alçando as propostas contraculturais a um plano imbricado e aderido à realidade nacional; mas também conhecemos, mormente nos grandes centros urbanos, verdadeiras manifestações hippies e junkies. Grandes festivais de rock reuniam milhares de jovens que faziam da deambulação um estado de espírito. O filme Easy Rider retratou com argúcia esse novo tônus de experiências vitais. Os acontecimentos de Maio de 68, em Paris, vieram coroar essa explosão do poder jovem, mesclando o protesto, a revolta e a necessidade de mudanças estruturais na cultura e na sociedade. O tropicalismo, entre 1967 e 1969, e o chamado pós-tropicalismo, entre 1969 e 1974, albergaram as mais radicais e peremptórias experiências
160. A cultura instituída é vista como dominada pela tecnocracia, incapaz de satisfazer a vida humana e saciar seus incomensuráveis desejos. Razão pela qual impõe-se a necessidade de uma “contra” cultura que possa, alternativamente, propiciar o pleno desenvolvimento humano. Fenômeno substancialmente jovem, é referida como “uma emergência histórica de proporções absolutamente sem precedentes, um estranho animal cultural cujo impulso biológico para a sobrevivência expressa-se através das gerações. São os jovens, que chegam com os olhos capazes de enxergar o óbvio, que devem refazer a cultura letal de seus antecedentes, e que devem refazê-la numa pressa desesperada”, nas palavras de Roszak, Theodore. A Contracultura. Rio, Vozes, 1972, p. 59. Alguns artigos sobre a nova sensibilidade estética, evocando o clima radical dos anos 1960, serão encontrados em Sontag, Susan. Styles of Radical Will, NY, Farrar, Straus and Giroux, 1969.
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artísticas vinculadas à contracultura, fazendo sobressair aquilo que continham de brasilidade. Existem basicamente duas grandes “explicações” sobre a produção cultural do período. A hegemonia de esquerda, percebendo a desarticulação das palavras de ordem por ela erigidas em bandeira ao longo dos anos 1960, desqualifica tudo o que foi produzido no início dos anos 1970, designando o tempo como um “vazio cultural”. Somente as obras e os produtores que lhe permaneceram “fiéis” são poupados, como criações vinculadas à resistência, àquilo entendido como a tradição nacionalista de nossa cultura associada a algum padrão de protesto. No outro extremo, esse espaço de manifestação abarca um variado e eloquente panorama de criação, cuja principal característica é o contraponto efetivado quanto aos sistemas estabelecidos, à direita e à esquerda. Desse modo, o período não apenas apresenta-se “cheio” como também vigoroso, registrando explosões inventivas e ocupando, em suas interpretações mais ousadas, o perfil de verdadeira criação e a retomada dos padrões evolutivos interrompidos desde o advento da hegemonia da frente nacionalista, em meados dos anos 1950. Vejamos com mais de detalhes os argumentos mobilizados. Os alojados na primeira tendência tendem a enquadrar a dissolução dos grupos ideológicos Arena e Opinião como motivada pelas agressivas persecuções da ditadura, e mesmo o Oficina, que procedeu a entronização da contracultura, como índices inequívocos do esvaziamento, que se somam à desarticulação de editoras, centros de produção cultural estáveis como universidades, associações profissionais de classe, clubes e círculos culturais, sindicatos, grupos organizados de artistas plásticos, arquitetos, professores. Tais dissoluções, como frutos da Censura e da Lei de Segurança Nacional que se abateu sobre todos, teriam sido a principal causa externa indutora do “vazio”. De um ponto de vista interno, o fracionamento cada vez maior dos partidos e organizações de esquerda, com maior ou menor adesão à estratégia da luta armada, teria originado a pulverização das forças resistentes. A revista Visão, que passara a veicular um balanço da produção cultural a cada ano, foi quem alcunhou o período de “vazio” (em 1970), vindo a constituir-se no principal porta-voz da hegemonia cultural nos anos posteriores. Na edição de 1974, ao comentar as tendências em voga e a atitude dos artistas de vanguarda, conclui que “antes havia perdido a ilusão, agora
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perdia a inocência. A perda da vontade viria em seguida”.161 É curioso que tais conclusões, ao invés de assentarem como autocrítica pelos cultores da hegemonia foram, paradoxalmente, reenviadas aos “outros”, àqueles que se afastaram da “resistência”. É preciso convir que ilusão, inocência e vontade, foram os êmulos que impulsionaram a dita arte revolucionária, preconizada pelo CPC e pela frente desde o início da década. Os integrantes da frente nacionalista ou dela simpatizantes, agora ensimesmados ou premidos pelas circunstâncias, foram os que perderam espaço de manifestação. Nas palavras do ex-presidente do CPC, Carlos Estevam Martins, em depoimento incluso na citada reportagem, “quando uma sociedade chega ao ponto de erigir o pragmatismo em virtude, essa sociedade não necessita mais pensar, (...) os setores em que se divide tecnicamente a classe média dominante estão praticamente fundidos. É por isso que as camadas novas dessas classes são extremamente débeis, com pouco ou nenhum pensamento original.”162 Quer dizer, ao observar o traço pragmático inerente aos setores econômicos, políticos e culturais que agora gravitam em torno de Brasília, o ex cepecista constata a ausência de pensamento utópico a impulsioná-los. Ou seja, desfeito o antigo pacto que uniu a frente ao Estado populista, ela agora se apercebe desalojada, sem visibilidade social e sem influir sobre os mecanismos estatais, tornando-se, portanto, vazia. De sorte que somente com a articulação de uma nova frente, desta feita com o próprio Estado ditatorial, ela poderá voltar a deter alguma influencia no jogo decisório, volvendo à sua perdida alteridade, viabilizando sua sobrevivência moral e material. A segunda vertente cultural, contraposta à hegemonia, permite reunir tudo aquilo que foi denominado ou se autodenominou vanguarda, underground, marginália, desbunde, subterrânea, contracultural, experimental, alternativa, entre outros rótulos referidos ou pespegados às manifestações inovadoras, desalinhadas, voltadas para outros objetivos e interesses. E que, enfrentando ao mesmo tempo o fogo cruzado do cerceamento imposto pelo regime militar, quer em suas formas policial ou técnico-burocrática de controle social quanto o assédio intermitente da hegemonia cultural,
161. “A Perda da Ilusão”, reportagem da revista Visão, São Paulo, Editora Maksoud, 11 de março de 1974. 162. Depoimento na reportagem citada.
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qualificando-a no melhor dos casos de “omissa” e no pior de “ser de direita”, o movimento de inovação cresceu, instalou-se, deixando marcas em toda uma geração da população. Como as manifestações expressivas dessa “outra arte” marcam-se pelos intercâmbios semióticos, a pluralidade expressiva e a desestruturação dos campos de legitimação e corpus de conhecimento privilegiados pela primeira tendência, ela não estava particularmente interessada na criação de nenhuma obra prima, em destinar ao futuro o seu labor. Articulada mais como movimento artístico difuso do que somatória de criadores individuais, essa “outra arte” referia-se sempre ao presente, ao cotidiano, à sobrevivência de seus procedimentos estéticos. Ela não foi “vazia”, mas um surto criativo variegado de formas e expressões, alheia ao conceito de obra e sintonizada no conceito de processo. Fixemos a atenção em alguns dos criadores mais identificados com o teatro. José Celso Martinez Corrêa, um dos porta-vozes mais eloquentes dentre eles, afirmou à revista: “(Gracias, Señor) foi o fruto da experiência mais radical de pessoas que não quiseram entrar no teatro censurado e prostituído, que não se venderam e resolveram com sua própria vida física entrar no escuro e no caos, sem deixar nenhum grito parado no ar. (...) O mundo do sistema foi desabitado, abandonado pelos artistas, pelos loucos, pelos revolucionários. É um mundo que tem contra si todas as forças reais da natureza e da criação. Esse ‘sistema’ que está aí não tem saída. (...) Há uma tomada de consciência, um despertar para tudo, o chamado do desbunde, isto é: desmontagem da coluna vertebral que nos mantinha eretos, num falso equilíbrio. (...) É por isso que a única arte que eu acho importante hoje é a arte da transação, a arte de mudar a relação com o dinheiro. Hoje estou mais interessado em criar uma estrutura de relações de confiança entre as pessoas, isto é, toda uma sociedade alternativa. (...) O único antídoto contra o sistema é a anarquia, anarquia entendida não como ausência de governo mas ausência de dominação”.163 São palavras que, pela clareza de propósitos, prescindem de comentários. Fauzi Arap, em 1971, assim entendia a situação:
163. Correa, José Celso Martinez, depoimento na reportagem citada.
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“O teatro morreu? de repente ninguém mais teve vontade de ver teatro, mas foi mesmo assim, de repente? e estranhamente o número de pessoas que queria fazer teatro aumentava mais. Os ‘profissionais’ apavorados e a concorrência aumentando de uma forma absolutamente incrível, todos assumiram a morte do teatro como se fossem deus e como se a tivessem decretado. O que ninguém viu ou preferiu não ver, ou o que ninguém tinha condição de perceber, era que estávamos diante de um suicídio. (...) tomara morra logo o teatro. Mas morra no lugar certo: fora dos palcos, nada de assassinar ‘teatralmente’ o teatro. Que cada um acabe com o drama particular que nasce da dualidade, da divisão.”164 São dois encenadores que, mesmo momentaneamente apontando caminhos diversos, insistem em algumas pedras de toque relativas ao novo estado de coisas: a decantada morte do teatro, tão lamentada pela revista Visão referia-se, em realidade, à morte de um determinado sistema teatral. Fato que tornava impossível dividir o mundo entre razão e desrazão, mocinhos e bandidos, certos e errados, mas acabar de uma vez com este drama quer no nível pessoal quer social, através de uma anarquia inventiva: colocar a imaginação no poder. E, enfim, que não existiam mais certezas, colunas de pensamento, modelos a serem seguidos ou retomados, mas que a arte deveria reinventar-se diuturnamente. Por certo uma parcela de espetáculos então produzidos se perdeu em confusões, experimentações pouco objetivas, apropriações mais ou menos grosseiras de temas ou conteúdos da contracultura. Realizações, porém, como Terceiro Demônio, Luxo, Som, Lixo, Tarzan 3º Mundo ou O Mustang Hibernado, Rito do Amor Selvagem, Hoje é Dia de Rock, Somma - os Melhores Anos de Nossas Vidas, Dzi Croquettes, Avatar, o Arquiteto e o Imperador da Assíria, O Casamento do Pequeno Burguês, A Viagem, Apareceu a Margarida, entre inúmeros outros, contam-se como realizações integradas sobre si mesmas, invenções de originalidade ímpar e momentos de uma teatralidade nova, fresca, não contaminada pelas convenções do passado. Todos foram considerados realizações sem ossatura dramática tangível pela crítica paulista e carioca da época, desatenta para seus pro-
164. Arap, Fauzi. “Aviso aos Navegantes”, artigo para o programa de seu espetáculo Rosa dos Ventos, com Maria Bethânia.
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cessos internos de se constituírem em pioneiros de um percurso da arte experimental performática entre nós. Novos veículos de imprensa – conhecidos como alternativos – começam a circular: O Pasquim, Verbo Encantado, Flor do Mal, Presença, Pólen, Bondinho, Rolling Stones, entre outros, fomentando não apenas a divulgação de poesia, ficção e prosa poética como também de reflexão. O suplemento Plug, do jornal carioca Correio da Manhã, tornou-se uma tribuna para os novos cineastas emergentes, organizados em torno de um cinema marginal. Alternativos e marginais são outras duas denominações frequentes postas em circulação, indicando modelos não convencionais de produção e circulação para produtos culturais autônomos. Colocando-se à margem dos sistemas instituídos, o teatro praticado nesses primeiros anos da década de 1970 procurava reorientar sua atuação. O formato da empresa, companhia ou grupo que subsistiram nas décadas anteriores já não comportava as novas experiências de vida experimentadas, bem como as metodologias e processos criativos instaurados entre as equipes. A contracultura, mirando a concreção do que entendia como sociedade alternativa, colocou nas comunidades e nos agrupamentos fraternos a grande esperança para os problemas com que passa a se defrontar, aí se incluindo a alimentação, a posição da mulher, a guarda dos filhos, a circulação do poder dentro do grupo, a sexualidade, as necessidades religiosas, a ingestão de drogas ou a prática da meditação. É como desligamento de um dado universo conhecido que esta contracultura se organiza, onde as soluções já não mais são individuais, setoriais ou classistas, mas pleiteiam e exigem ampla reformulação dos indivíduos para assegurar possibilidades ainda indivisas para a vida em comum. Como balanço estético desta produção observa-se, de um lado, a defesa de uma criação livre, explorando ao máximo a área propedêutica ao teatro então instituído, estribada numa mentalidade artística que o associava à caretice de um meio esgotado e condenado à desaparição. De outro, um voltar-se às fontes da vanguarda histórica, nela perquirindo êmulos criativos vislumbrados como perdidos pelo teatro formal. Nos dois casos, contudo, ensejando espetáculos que desafiaram cânones, revelaram talentos e operaram, por intermédio de uma terceira via, o solapamento das convenções estéticas e sociais em curso no restante teatro brasileiro da década – sintomaticamente alijado como teatrão -, certos de que a velha teatrolo-
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gia ideologicamente sustentava um sistema de poder.165 O teatro praticado nas décadas seguintes vai guardar uma inestimável dívida para com esses pioneiros que, em meio às adversidades e aproveitando brechas, mobilizaram sua ousadia e coragem para dobrar dogmas e empreender demolições, inaugurando procedimentos já discerníveis como performativos. As mais radicais realizações das décadas de 1960 e 1970 traziam o germe daquilo que, futuramente, tornar-se-á conhecido como performance, intertextualidade, hibridização, teatro narrativo, autoral ou performativo, onde o corpo é assumido como locus preferencial da expressividade autoral.166 No embate entre as duas tendências aqui apontadas, o período registra inúmeros casos de trânsfugas que, defendendo um conjunto de posições num dia está no outro falando ao contrário. Tais disputas, tornando sua convivência uma batalha intestina, originará uma série de polêmicas que, a partir de 1978, serão rotuladas como “patrulhas ideológicas”.167 Muitas falsas questões dominaram tais discussões - talvez fórmulas retóricas para dois grupos que estão fora do poder lutar por um lugar ao sol - ou fugirem ambos dos golpes certeiros desfechados pela ditadura. Num caso ou noutro, porém, esse embate deu visibilidade à morte de todas as certezas, de todas as ideologias salvacionistas, do caráter messiânico da arte e da cultura subjacentes aos principais argumentos mobilizados no cerne do “patrulhamento”.
165. Entre outras referências de época destaca-se A Sociedade do Espetáculo, de Guy Débord, ex líder estudantil situacionista ligado ao Maio de 68 francês que tece uma crítica radical ao sistema capitalista, quando este toma a metáfora do teatro como sustentáculo para seus mecanismos de poder. 166. O espetáculo Hoje é Dia de Rock, texto de José Vicente encenado no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro ficou quase dois anos em cartaz, atraindo multidões de espectadores. Sobre ele, assim se manifestou a crítica Mariângela Alves de Lima: “por estar muito perto da essência do teatro, por proporcionar uma comunicação em que a mediação da máscara se torna cada vez menos perceptível, os atores do Teatro Ipanema reuniram em torno de si um fantástico grupo de coparticipantes dessa cerimônia. Uma cerimônia que só não atingiu a dimensão do rito porque a capacidade de adorar exige uma proposta transcendente que o grupo não pretendia ofertar. O que estava em cena, sob a forma de teatro, era ainda assim a metáfora obscura de um acontecimento muito concreto. (...) Onde estava a ligação desse espetáculo com a história que lhe era contemporânea, com a desagregação que levou tantos indivíduos a procurarem o ninho do grupo? Aparentemente em lugar nenhum, e esse é o x da questão. Não era preciso nominar, apontar, aclarar as analogias. O simbolismo das personagens e o fato de que elas caminhavam bastava para englobar tudo, para canalizar para dentro da encenação a história pessoal de cada espectador presente”, in Lima, Mariângela Alves, “Quem faz o teatro?”, Anos 70-Teatro, Rio de Janeiro, Europa, 1979, pp. 50 e 52. 167. Os principais protagonistas e os respectivos argumentos de cada qual foram mapeados em Hollanda, Heloisa Buarque. Patrulhas Ideológicas, São Paulo, Brasiliense, 1983.
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CAPÍTULO 11 PANO DE BOCA E UM GRITO PARADO NO AR: CONFRONTOS
No início de 1973 ocorre a estreia de Um Grito Parado no Ar, texto de Gianfrancesco Guarnieri encenado por Fernando Peixoto em São Paulo, transferido, logo após, para o Rio de Janeiro. No ano seguinte sobe à cena no Rio Pano de Boca, espetáculo de Fauzi Arap, igualmente encenado a seguir na capital paulista. Ambos abordam o mesmo assunto: um grupo teatral tenta retomar suas atividades paralisadas, através da montagem de um novo espetáculo – e aqui terminam as coincidências. Ao se debruçarem sobre o assunto, as duas realizações indicavam um movimento de compreensão e interpretação do passado, bem como, utilizando-se fartamente da metalinguagem, propor interessantes abordagens para o enfoque do desaparecimento dos antigos grupos teatrais dos anos 1960. Ainda que nenhuma referência seja efetivada, parece fora de dúvida tratar-se do Oficina a equipe reunida em Pano de Boca. Uma personagem, em certo momento, refere-se às antigas montagens, entre elas O Rei da Vela e Roda Viva; em outro momento “àquela peça em que se jogava tudo no lixo”. Um dos problemas básicos invocados para a desagregação do antigo ensemble, alguns anos antes, foi a passagem “dos ciganos”, alusão nada velada ao Living Theater. As personagens do plano realista, atores que aguardam o diretor chegar para rediscutir o futuro do grupo, exibem algumas características comportamentais de ex integrantes do Oficina, reforçando os indícios. Em Um Grito Parado no Ar nenhuma alusão, ainda que velada, é feita a grupo algum; embora, pelos métodos de trabalho empregados trata-se de um coletivo “objetivista”, que bem poderia ser o Arena ou até mesmo o Opinião.168
168. Tanto Pano de Boca como Um Grito Parado no Ar foram lidos em versões mimeografadas.
A narrativa de Pano de Boca é deliberadamente uma montagem: três planos ficcionais separados, mas concomitantes, ocupam o espaço de ação, sendo que no primeiro, uma dimensão de pura criação, o autor e duas personagens personagens (Pagão e Segundo) vivem sua história, ou proto-história - dialogando entre si e com o autor sobre o universo da gênese e da criação teatral; numa segunda dimensão, integralmente realista, seis ex integrantes do antigo coletivo discutem entre si, trancados no teatro e sem possibilidade de sair, pois o forte vento e a chuva incessante trancou a porta e ninguém possui a chave, aguardando a chegada do diretor atrasado; no último plano, uma projeção lírica quase imaginária, vivem Magra e Pedro, também ex atores, mas em conflito de opiniões com os demais companheiros e também entre si. Os dois últimos planos fundem-se ao final. A sequência dos episódios, ainda que designada pelo autor pode sofrer alterações deixando, portanto, a uma dada organização a narrativa cênica. Em cada dimensão os conflitos ganham intensidade, mas não se mostram vinculados à ação dramática como um todo, referindo-se, em cada qual, às especificidades psicológicas das criaturas. Um Grito Parado no Ar enfoca um dia de ensaio da peça que dá título ao texto de Guarnieri. Cinco atores e um maquinista também tornado ator são retratados, desde a mais naturalística fotografia de um começo de ensaio, com as piadas na chegada e a descontração do elenco, até seus métodos de trabalho e dificuldades materiais enfrentadas para concretizarem a produção. Também aqui se pode surpreender, de modo bem marcado, três planos de ação: os atores ensaiando, suas pequenas diferenças internas e divergentes personalidades que, todavia, configuram um grupo coeso em sua vontade de levar avante e estrear a montagem; os momentos em que se entregam a laboratórios e exercícios de improvisação, recursos poéticos que possibilitam aos artistas se acercarem de suas criaturas em processo de elaboração; e, finalmente, um último plano, conformado pela audição das entrevistas gravadas com populares, com o objetivo de servirem de apoio “documental” à criação ficcional do elenco. No plano de Pagão e Segundo, em Pano de Boca, há espaço para a comédia, o drama e o melodrama, já que suas existências são projeções lúdicas do autor invisível. Eles se aparentam àquelas entidades pirandellianas em busca de atores para se materializarem, exatamente discutindo as conexões entre “papel e máscara”, “status e papel”, “ser ou representar”. Magra, em seu primeiro monólogo, aborda o fingimento no teatro, a dialética entre ser e
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representar e conclui que “a forma segura de permanecer na superfície é o teatro antigo, você não largar a personagem você mesmo”. Nessa crise de identidade, ela está abandonando sua profissão. No plano dos atores a discussão encontra foco nos métodos empregados: experimentar ou jogar com um texto certo, reorganizar a companhia ou retomar a comunidade. E, no entremeio dessa discussão eles vão, pouco a pouco, revelando seus perfis: um só acredita no poder da palavra impressa, outra é medrosa e necessita de apoio, um terceiro acha que os ciganos estavam certos. O ato conclui com o debate entre eles sobre Pedro e Magra que, ausentes da reunião, são aguardados pelos demais. Num certo momento Pedro chega ali de surpresa, mas permanece mudo, apenas brincando com um e outro. Em seguida, Magra aparece para seu segundo monólogo. Aqui o tema é a loucura, os fluídos limites escalonados entre o real e o ficcional, onde somos informados que Pedro não está louco: “o silêncio dele é a recusa da personagem, qualquer que seja ela.” E Magra é a única a compreendê-lo, a amá-lo, invocando o poder instaurador da palavra, da santidade do som, da magia do verbo: “nós temos usado a palavra para nos atordoarmos, nós a temos usado a esmo, nós nos confundimos com ela, elas nos justificam o tempo todo de nossa inação.” Magra está entre dois mundos e de ambos participa, mas não quer mais continuar representando. “Os mais fortes de nós propuseram uma espécie de destruição, de autodestruição que foi acompanhada pelos outros. Eu acho que muito da confusão nasceu daí. É que alguns não tinham experimentado o gosto de ser, e já eram convidados a experimentar o não ser. Onde começa essa outra coisa... criação humana? O teatro já foi uma coisa religiosa, hoje não é mais, é uma ‘profissão’. Será que o que quero saber devo buscar fora do teatro? Numa igreja, num laboratório?”, evolui Magra. Ao final, ela acrescenta seu olhar sobre o fim do ensamble: “todo e qualquer grupo anterior existia como uma unidade alienadora de cada um, de cada indivíduo que o compunha. Era uma prisão recíproca, que foi rompida exatamente com a chegada deles (os ciganos)”. Assim, Magra vai desfiando suas conclusões. O conjunto de artistas, cada vez mais perplexo entre suas próprias contradições e desenganos, permanece num limbo, à espera do grande ausente que jamais aparecerá e que, sintomaticamente, controla tudo e todos. Pedro, que se recusou a falar todo o tempo, quando o faz é vestido como uma esfinge (sugerindo, não fortuitamente, Édipo Rei), reinvestindo o Mistério: “quem conhece o segredo? Quem o anunciou? De onde surgiu esta criação multiforme? O altíssimo vidente que está no céu mais alto, ele o
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sabe, ou talvez, nem mesmo ele”. O trecho é dos vedas, citado por Helena Blavatsky. Magra, recolocando o sentido que a todos desorienta, chega ao final da peça: “enquanto se está vivo não se consegue escapar do teatro. Teatro é a engrenagem viva que interliga as pessoas. Se você se cala você se recusa e interrompe o milagre. Por precipitação, por avidez. Por querer chegar depressa demais, porque o milagre só pode ser coletivo, ele é por direito de todos e quem tenta chegar sozinho fracassa. (...) Se eu não disser não agora, eu não sei onde iremos parar.” Pano de Boca, em sua dupla significação de cortina e obstáculo à fala, articula-se todo o tempo nestes desvãos de significação. Poroso aos eflúvios da contracultura antes destacados, investe como obra aberta sobre um rico mundo de criação, amplificado em suas contínuas interações entre o real e o ficcional. Repensa o real como um projeto de futuro, num momento em que a palavra é dada como morta, cogitando exatamente sobre suas potencialidades, seu poder instaurador e desviante. Tomado não como discurso vazio, mas auferido em chave poética, evidencia de um lado o grupo de atores e suas falas “gagas” e, de outro, a vocalização sacra que lhe empresta Magra, como intérprete e mediadora entre os vários universos que permitem a comunicação: a remissão. São outras as ambições de Um Grito Parado no Ar. Aqui, o grupo de atores tenta montar um espetáculo realista e várias evidências reiteram tal approach. Entre os atores, os conflitos restringem-se às desavenças cotidianas, à competição profissional, à pequena inveja por ter sido outro o escolhido para isto ou aquilo, dentro do mais banal cotidiano; inclusive o conflito entre Fernando-Amanda que, casados na vida real, explicitam em cena desavenças típica de casais, em parte coincidentes com uma cena do plano da ficção. Os “laboratórios” ou exercícios de interpretação de um ou outro intérprete, ou de todos, fornecem o passaporte para a metalinguagem que a peça almeja, mas sempre num único e rigoroso plano de realidade cênica. Tais improvisações vinculam-se ao entrecho da peça em montagem: uma cena de interrogatório policial, outra de passeata estudantil que evolui para um programa chacrinesco de televisão, um edifício e o interior de vários apartamentos ao mesmo tempo, uma cena num bar de periferia. Entrevistas gravadas com populares nas ruas da cidade são ouvidas, aqui e ali, funcionando como referências onde os atores devem buscar estímulo para a construção das criaturas que interpretam. Os diálogos são curtos e raramente declarativos sobre a situação ou as decisões de um ou outro personagem, levando o espectador a formar um quadro global sobre o desen-
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volvimento da ação pouco a pouco, nos moldes causais da ação dramática. Fernando, o diretor do grupo, é quem talvez melhor sintetize a situação: “só fico em paz quando me comunico... É quando eu me sinto... Eu só sei me comunicar através disso que está aqui... Mas está cada vez mais difícil”. Enquanto o elenco vai se afinando em torno de um sentimento coletivo, suplantando suas pequenas desavenças para se unir em torno do projeto, o crescendo de entusiasmo aumenta em razão das dificuldades materiais que estão enfrentando, pois o edifício vai sendo desmantelado, objetos de cena e materiais técnicos necessários à representação vão sumindo. Por fim apaga-se a luz, porque a conta da energia elétrica não foi paga. No escuro, mas irmanados, todos se reúnem em torno de uma vela. Novamente Fernando, resumindo os anseios gerais, é o porta-voz: “Tem uma fala do Rafael que só agora estou entendendo... Quando ele repete: sou um homem, sou um homem... E isto mesmo a gente precisa repetir pra entender... entende? Sou um homem... sou um homem...”. Augusto, o outro ator, complementa: “Gente, gente, gente... Eu não te mato, não te persigo, não te roubo, estou falando com você... Sou um homem... Gente, gente, gente” (acompanhado por todos). Apagando-se a vela, já muito fraca, na escuridão o elenco entoa um altissonante grito. Para Guarnieri, “o espetáculo é dos atores que em nenhum momento perdem sua liberdade pessoal de criação. Esta mobilidade, esta liberdade, provoca uma constante transmissão de estímulos que levarão o público a um estado emocional que lhe facilitará a compreensão do que não pode ser formulado verbalmente”.169 Justifica-se assim o autor, pela inexistência de palavras mais claras em sua obra, em função da forte Censura. Para Fernando Peixoto, o encenador, o texto “é uma tomada de posição, uma declaração de princípios, a utilização consciente da linguagem teatral para uma reflexão crítica impiedosa sobre o próprio teatro, num momento de mistificação.”170 Tais afirmativas parecem um pouco deslocadas, não apenas porque sempre que as situações e/ou falas das personagens culminam segmentos importantes da ação as referências tornam-se genéricas, quando não tendendo à abstração: “eu sou um homem”, “somos gente”, o “grito” final, que tanto pode ser de protesto contra a situação quanto de alegria pela resistência do grupo. Bem como na sequência do enredo, porque, dada a lógica linear da peça
169. Guarnieri, Gianfrancesco. Artigo para o programa do espetáculo. 170. Peixoto, Fernando. Artigo para o programa do espetáculo.
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(onde a metalinguagem encontra-se inteiramente a serviço da organização de um mesmo sentido unívoco), pretender-se uma liberdade aos atores soa pouco plausível; bem como pretender levar o espectador à compreensão através de um artifício puramente emocional, só poderá confundir ainda mais sua percepção sobre o que poderia ser a tal “reflexão critica, impiedosa” almejada, dados os genéricos substantivos que perpassam todo o texto. O espectador vê o grupo sendo espoliado de seus bens: pouco a pouco somem cadeiras, mesas, tapetes, objetos variados, mas não vê quem o faz. As referências não nominam sujeitos: “os home”, “não descarregaram”, “levaram”, “cortaram a luz” etc. Ainda que em “os home” esteja evidente a acepção de polícia, deve-se ressaltar a generalização da referência: não é a polícia quem cobra contas, não entrega tapetes, corta a luz de edifícios, surrupia cadeiras etc., segundo a verossimilhança do texto faz supor (uma vez que os objetos estavam em cena, numa interação realista com a narrativa cênica). Se aqui se pretendeu uma generalização da repressão, o aparato verbal e cênico empregado deixa a desejar quanto à decodificação: ou se muda a lógica cênica ou se introduzem clarificações de que existe um complô da sociedade burguesa-capitalista-tecnocrática-policialesca-repressiva armado contra a pobre companhia teatral. Tal como está, indica que Guarnieri, ainda gravitando em torno daquelas mesmas ideias que o levaram a subscrever a tese do TPE ao Festival de Teatro Amador de 1957, quando acreditava que “um povo entorpecido é um povo que na passividade se entrega à rapina e à escravidão; um povo entorpecido é um povo que não ama, não quer, não luta”, move-se ainda no espaço causal da dramaturgia, segundo os mesmos paradigmas de antanho. Por caminhos radicalmente opostos àqueles apontados por Luciano Martins, é possível perceber no Grito a apontada desarticulação de discurso empregada pelo autor para caracterizar a perda da clareza expressiva, e não apenas no nível verbal como, igualmente, quanto à própria narrativa cênica. Ao sobrepor aos atores as personagens que interpretam no plano “ficcional”, mas guardando a separação entre uns e outros, Guarnieri referenda a univocidade de sentidos, restringindo as possibilidades poéticas em alcançarem uma verdadeira metalinguagem, resvalando para uma proto linguagem, isto é, vozes descarnadas, referenciais, em potência. A fusão de elementos ou a pretendida interação entre planos torna-se estanque, fracionada e excessivamente genérica. À lógica dialética ou simbólica, Guarnieri opta pela causal, linear, sequencial. E, uma vez que o espectador recebe tais elementos de uma só vez, o que percebe é um mosaico, um todo composto
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de partes desiguais sem interação ou operada sem coordenação ou subordinação. Como naquelas apontadas redações escolares que não demonstram conexão, por uso semântico indevido do conectivo ou por circularidade nas imagens criadas. Seria nonsense identificar o Grito como uma proposta associada à contracultura, dada a obviedade de suas intenções se colocarem exatamente contra aquilo que seu autor classificou como “mistificação”. O que aqui se quer destacar, entrementes, é seu discurso tergiversado, perpassado de conjurações melodramáticas banhando-o em caldo emotivo, pouco adequado como opção técnico-artística para exprimir um posicionamento de valor diante de um processo histórico, sobre uma atividade profissional multiplamente ameaçada, para dar corpo a uma “reflexão impiedosa” em relação ao teatro ao redor. O discurso tergiversado, como se observa, extrapola os limites da contracultura, como pretende fazer crer Luciano Martins, impondo-se como um modo de pensar, que remete para operações cognitivas desligadas de um “universo cultural” específico, mas integrando a ideologia estabelecida. Ideologia que, nesse caso, emparelha-se parí passu com o autoritarismo dominante no discurso da hegemonia cultural. Ainda que mudem as referências éticas (esquerda ou direita), o modo de criar imagens e simbolizar a realidade permanece inalterado. Talvez porque aqueles que vivem na ideologia esquecem que ela é uma relação de relações, mesmo quando intencionam articular sua crítica, mas partindo de seu próprio referencial, motivando o moto contínuo da alienação. Em Pano de Boca, bem ao contrário, a exacerbada exploração metalinguística responsabiliza-se por não fechar univocamente as significações. No instante em que seus três planos narrativos surgem coordenados, inúmeras relações entre as cadeias significantes tendem a formar um leque de significados, poeticamente abertos ao imaginário. Guardando uma interrogação assemelhada àquelas preocupações pirandellianas que perpassam Esta Noite se Improvisa ou Seis Personagens à Procura de um Autor, o espetáculo de Fauzi Arap projeta a pretendida análise da crise do teatro num epicentro outro que não a mera “repressão”, como faz o Grito. No texto de Guarnieri não há crise na linguagem teatral. Amanda, que foi atriz da “época de caminhão” (seria o CPC, o núcleo volante do Arena ou o Teatro Vila Velha, de Salvador?) encontra-se rouca, mas tão somente do ponto de vista da fonação, coisa que “se resolve com algumas aulinhas com a Madalena”. Ao contrário, Pedro, em sua recusa em empregar a fala, torna-se o índice de uma crise mais densa, que atinge a dimensão de recusa de toda palavra, tida
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como ineficaz, em contraponto às demais possibilidades da comunicação. Essa é sua “loucura”, a outra face dos sortilégios verbais de Magra, detentora e artífice da palavra-redenção, ou seja, da poesia. E qual o seu poder? Exatamente o de invocar o imaginário, afetar camadas adormecidas da psique, desbloqueando a labilidade da anima. Sua recusa em ser uma “profissional”, mas afirmando que o teatro prossegue na vida cotidiana a embalar os homens, a faz procurar o fulcro desse mistério, a gênese da “criação humana”. Fauzi, prudentemente, não a explicita: das palavras vedas invocadas por Pedro às ambíguas indagações de Magra, passando pela jocosa gênese de criação de Pagão e Segundo ou, ainda, perdida nos interstícios da convivência discutida pelos atores, em algum ponto dessa cadeia pode estar a procurada chave - ou em todos esses elos ao mesmo tempo. São outras as preocupações do Grito: seus três planos narrativos - o grupo de atores e suas dificuldades, os atores em laboratórios testando suas personagens e as entrevistas gravadas -, visam sublinhar o que existe de “profissional” (isto é, técnicas de criação) na atividade, ou ainda, como se processa a criação de um espetáculo a partir de procedimentos artísticos (o uso de entrevistas, os laboratórios improvisados). Os planos se isolam apenas de um ponto de vista narrativo, uma vez que a integração entre os três é mantida em rigorosa sujeição lógica. Os atores trabalham, isto é, são trabalhadores, enfatiza-se que operam a partir de técnicas: os problemas descritos por um entrevistado fornecem a base mimética para sua representação no outro plano. Em momento algum os planos operam interações significativas ou propõem conotações, deslocando significantes para outra dimensão. Não há imaginário em causa, tão somente apela-se à imaginação do espectador, que deverá supor um edifício, um bar, uma rua, e outros tantos ambientes, mas sempre a partir das coordenadas propostas pelo próprio texto, o que implica direcionar a imaginação através de seu vetor objetivo, apenas permitindo o jogo cênico do enredo. Quando há um salto narrativo (por exemplo, Augusto descobrindo seu amor por Nara), ele advém de um insondável jorro emocional que, do ponto de vista dramatúrgico e cênico, visa carrear junto o espectador. O trato com a emoção em Um Grito é subjetivado e sentimental, visando suplantar “dificuldades” miméticas e/ ou de narrativa cênica, por intermédio de um apelo extracênico ou, em outras palavras, buscado em recursos exteriores à situação. Não emana das personagens ou do processo cênico, mas “pinta” de repente, tergiversando seu discurso.
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A autopercepção mais frequente sobre o fim do Arena e do Oficina (referendada por vários de seus ex componentes) é a de que “o Arena foi assassinado” e o Oficina “suicidou-se”. Ou seja, o primeiro acabou em função de uma causa externa, a forte repressão que o impediu de continuar enquanto grupo e projeto. E quanto ao Oficina, a causa externa apontada só vai aparecer muito após, quando o grupo já tinha aniquilado a linguagem teatral, envolvido em um irreversível irracionalismo incapaz de levá-lo adiante, esfacelando seu projeto artístico. Em Um Grito e em Pano de Boca, contudo, as afirmações parecem indicar outros percursos em relação aos diagnósticos antes aventados. Após uma pequena confusão provocada por Amanda entre “ser uma prostituta” ou “representá-la”, Augusto retruca: “jogar problema pessoal pra cima dos outros já tão fazendo muito por aí... nessa eu não entro. (...) Ninguém tem nada a ver com o seu desespero pessoal... Falar pros outros é importante paca. Disso eu sei e tenho uma bruta responsabilidade, ora porra. (...) Vocês ficam assim porque a gente está se deixando trancar no nosso mundinho de bosta... e vendo as coisas só através de laboratório, parece até que a gente tem alergia de viver. Não basta dizer ‘não é isso, não quero’, é preciso dizer ‘eu quero isso, quero aquilo’. Estão jogando flit na gente e a gente não percebe. Fica aí, batendo asa...” Além de antes condenar a propalada “mistificação”, Guarnieri agora assenta o que entende por função do teatro: “falar pros outros é importante, eu tenho responsabilidade”. Como? Através de um discurso regulado pela progressão retórica aristotélica. Falar “com responsabilidade”, aqui, implica afiliar-se a uma dada postura política, muito clara quanto à função de disputa pelo poder, ainda que através de uma ação simbólica. Ainda que este falar não se restrinja à linguagem verbal, mas teatral (à somatória significante operada pelos elementos cênicos), a defesa de um ponto de vista revela seu recorte enquanto programa, enquanto tática. Trabalhando com o estético numa dimensão unidimensional, sobra desse discurso apenas sua ossatura de mensagem e rarefeito eco de palavras de ordem que são, como antes observado, muito semelhantes às empregadas nos primórdios do Arena, já desgastadas, esvaziadas, emanadas de uma conjuntura que há tempos se alterou mas não foi percebida.
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Um Grito não aponta uma saída estética para a crise de linguagem nem articula elementos para tal entendimento. Ao não apontar contradições internas ao grupo que enfoca, dilemas ou disputas intramuros, não perquire sobre as razões e consequências quanto às raízes de sua forma estética ou projeto teatral (que poderia ser o do Arena ou outro assemelhado), insistindo sobre causas externas (reduzidas “à repressão”, “os home”) para ambientar a crise. Realimenta, portanto, aquele aludido diagnóstico de assassinato, fazendo crer que o projeto político da hegemonia cultural (com o qual se identifica plenamente) não articula antagonismos, degenerescências ou conteúdos internos em oposição. Ao escamotear as divergências presentes no teatro brasileiro, conforme verificado entre as produções dos últimos anos 60, mistifica duplamente o real: referendando um diagnóstico que situa o problema fora do teatro e escamoteando a luta interna das esquerdas em benefício de uma já caduca frente. É pela instauração do poético em Pano de Boca que se atinge o político: sendo a palavra ambígua, polivalente, articulada e representativa, enseja apreensões dirigidas à totalidade da polis. Sabendo-se jogo, são elas manipuladas como instaurações de realidade, não pretendendo esgotar o real ou dele fornecer uma apreensão unívoca. Como diz Magra, “você tem de ter a coragem de enfrentar o caos interior que se forma para somente depois dele formado tentar integrar o novo, o mistério, o desconhecido, como coisa real... a nova realidade”. Obra aberta, Pano de Boca revela-se unificada, contudo, integrada e holística, passível de ser uma explicação para a crise como, na mesma chave, desnudar a perplexidade existencial de um autor diante de uma realidade densa, carregada de significações divergentes. A contracultura tinge Pano de Boca com inúmeras cores e tonalidades, jogando com séries e oximoros, evidenciando outro regime político na interação entre os homens e sua biopolítica, radicalizada enquanto linguagem simbólica. Ao contrário de Um Grito, que dissolve o poético ao aprimorar a mão única de seu discurso responsável, Pano de Boca instaura inúmeras veredas com suas vozes democráticas e incompletas. Com esse confronto entre os dois textos pretendeu-se recolocar os termos excessivamente genéricos com os quais Luciano Martins havia caracterizado a contracultura, apenas descritivos e presos às síndromes referenciais que põe em relevo. Não investigar o processo de conhecimento subjacente e a ideologia de uma “cultura” ou uma “contracultura” é, entrementes, não articular as pulsões que estão por debaixo daqueles padrões sintomáticos
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ou sindrômicos, revelando pouco sobre suas constituintes. Por outro lado, o confronto ajudou a evidenciar alguns diagnósticos observados quanto à dissolução do Arena e do Oficina e, mais que sugerir um embate estético entre as duas obras, colocar em evidência paradigmas comportamentais encontradiços no momento histórico onde nasceram, bem como o rol de preocupações em relação ao passado e à crise teatral.
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CAPÍTULO 12 O NACIONAL-POPULAR NO NOVO PACTO COM O ESTADO
O debate entre as tendências internacionalistas e nacionalistas ganha, nos primeiros anos da década de 1970, uma configuração cujos confrontos extrapolam em muito a mera questão política - ou tão somente cultural. Rastreemos algumas destas postulações para observar, a seguir, como evoluiu politicamente tal confronto.171 No ensaio de Ferreira Gullar Vanguarda e Subdesenvolvimento, espécie de bíblia utilizada pela hegemonia cultural de esquerda durante toda a década, diversos pontos de vista antes expostos por Geörgy Lukács aparecem reciclados: “quanto maior consciência tenha um país subdesenvolvido de sua realidade particular, maior consciência terá da realidade internacional e melhor poderá atuar nela e contribuir para modificá-la,
171. O ponto de vista clássico formulado por Stálin é o que segue: “Antigamente o problema nacional era considerado de maneira reformista, como um problema isolado, independente, sem qualquer relação com o problema geral do poder do capital, da derrocada do imperialismo, da revolução proletária. Supunha-se, tacitamente, que a vitória do proletariado na Europa poderia ser obtida sem uma aliança direta com o movimento de libertação das colônias, que o problema nacional e colonial poderia ser resolvido silenciosamente, ‘espontaneamente’, à margem da grande estrada da revolução proletária, sem a luta revolucionária contra o imperialismo. Atualmente deve-se considerar desmascarado este ponto de vista antirrevolucionário. O leninismo demonstrou, e a guerra imperialista e a revolução russa o confirmaram, que o problema nacional só pode ser solucionado em ligação com a revolução proletária e na base dela, que o caminho da vitória da revolução no Ocidente passa através da aliança revolucionária com o movimento de libertação das colônias e dos países dependentes contra o imperialismo. O problema nacional constitui uma parte do problema geral da revolução proletária, uma parte do problema da ditadura do proletariado”, in Stálin, Joseph. Questiones del Leninismo, Moscou, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1941, Moscou, p. 61.
conformá-la às necessidades das particularidades que a constituem.” (...) “Esta concepção, por sua vez, desmascara a posição cosmopolita que, subestimando a realidade nacional, admite a existência de um internacionalismo absoluto, independente das particularidades nacionais, ao qual estas deveriam se submeter. Tal atitude é típica da mentalidade subdesenvolvida, de importação, própria do período em que ainda não se formaram no país, forças materiais capazes de gerar diante dos problemas, as respostas que o definirão culturalmente.” (...) “O caráter nacional da obra de arte (literatura, teatro, cinema, etc.) é menos um objetivo a ser alcançado do que a condição prévia de seu surgimento.”172 Os argumentos voltam a martelar teclas já antes acionadas: a necessidade da obra ser particular e nacional, determinando assim o caráter prévio de sua existência socialmente válida. De modo que são retomados na década de 1970, por esse viés, os mesmos pressupostos urdidos nos inícios dos anos 1960, enfatizando-se agora a questão em voga das neovanguardas e seu diálogo com as tendências internacionais. Tal como ocorrera naquela ocasião com o conceito de povo, desinvestido de suas peculiaridades antropológicas para exprimir um indefectível caráter político atrelado a uma bem construída ideologia, os termos popular e nacional assumem, nesse momento, aquela posição, figurando nesse vocabulário como centros polarizadores de sua ação política. Ao atacar não exatamente os movimentos artísticos, mas o método estruturalista e suas implicações, Carlos Nelson Coutinho igualmente invoca o realismo crítico como modo de estancar as escaramuças das neovanguardas. Para ele: “o realismo como método (e não como estilo) pode ser considerado o fator que unifica a posteriori o nacional-popular no terreno estético, no caso do pensamento social esse fator parece residir numa concepção humanista e historicista do mundo, ou seja, numa concepção que afirma o papel da práxis humana na transformação das estruturas sociais e que concebe a ciência como um dos instrumentos para
172. Gullar, Ferreira. Vanguarda e Subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, 2ª ed., p. 80.
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iluminar e guiar essa práxis transformadora.” (...) “é o modo peculiar desta articulação”, onde evitando-se “o fetichismo das singularidades nacionais, consegue-se descobrir (na ciência) ou figurar (na arte) a concreta particularidade de nossa vida social”173 (grifos do autor). No caso do teatro, uma consulta a alguns textos de Fernando Peixoto, ex integrante do Teatro Oficina, demonstra suas preocupações vinculadas à tradução, em termos estéticos, de posições assemelhadas àquelas que Carlos Nelson Coutinho vinha veiculando referentes à teoria, aplicadas de modo sintomático em suas várias encenações. Em “Vinte e Uma Notas”, por ele redigidas na ocasião da montagem de Um Grito Parado no Ar, pode-se ler: “o realismo não é um limite, mas uma necessidade” (I); “os que estão interessados na pesquisa de um espetáculo nacional-popular não podem deixar de lado, e aqui já longe de Artaud, uma perspectiva indiscutível: gestos, símbolos, movimentos e agrupamentos de atores na cena, imagens materializadas, utilização de todos os elementos que compõem um espetáculo, incluindo palavra-espaço-som-luz, precisam ser buscados na vida real, na cultura nacional de um povo” (III); “um espetáculo nacional-popular tem raízes em seu instante histórico preciso e inescapável. Nas necessidades e problemas imediatos das classes subalternas” (VI); “cada cena pode permitir uma série de soluções cênicas. A opção por uma é uma opção de valores” (IX); “sem querer pretender a defesa da figura do encenador como eterna, a verdade é que seu extermínio, como proposto por muitos, coincide com os mesmos anseios de extermínio da direção social proposta pelas correntes anarquistas” (X); “a chamada vanguarda só possui sentido quando não é a vanguarda de um artista individual, mas a vanguarda de um povo empenhado em sua libertação” (XII); “cada vez mais me inclino ao estudo da sociologia do que da estética” (XVI); “não é hora de jogar tudo fora em nome de um novo abstrato” (XVI).174
173. Coutinho, Carlos Nelson. “Notas Sobre a Questão Cultural no Brasil”, in Escrita Ensaio, n. 1, Editora Escrita, 1977. Sua outra obra aludida é O Estruturalismo e a Miséria da Razão. 174. Peixoto, Fernando. “Vinte e uma notas (Esparsas & Incompletas)” in Teatro em Pedaços, São Paulo, Hucitec, 1980.
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A partir desses pressupostos, Fernando Peixoto compõe uma plataforma de ação divulgada em muitas entrevistas e artigos, baseado em quatro pilares: o teatro deve ser realista, crítico, nacional e popular. O principal discurso político que aglutina tais setores frentistas neste começo de década, prolongando-se até bem depois da atuação da Política Nacional de Cultura, encontra-se na configuração, ao mesmo tempo teórica e histórica, desenvolvida sob a égide da “dependência estrutural”. No Brasil, tal corrente passa a ser a pedra de toque do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e de um grupo a ele ligado ou a lhe referendar as teses. Forjada desde meados da década de 1960 no CEPAL e alguns outros centros estrangeiros, essa teorização pode ser assim apreendida: “a noção de dependência alude diretamente às condições de existência e funcionamento do sistema econômico e do sistema político, mostrando o vínculo entre ambos, tanto no que se refere ao plano interno dos países como ao externo”; onde “cada forma histórica de dependência produz um arranjo determinado entre as classes, não estático mas de caráter dinâmico. A passagem de um para outro modo de dependência, considerada sempre em uma perspectiva histórica, fundou-se num sistema de relações entre classes ou grupos gerados na situação anterior.”175 Prossegue Fernando Henrique, agora evidenciando o projeto político que deve fornecer suporte às suas conclusões: “Desde o momento em que se coloca como objetivo instaurar uma Nação - como no caso das lutas anticoloniais - o centro político de ação das forças sociais tenta ganhar certa autonomia ao sobrepor-se à situação de mercado; as vinculações econômicas, entretanto, continuam sendo definidas objetivamente em função do mercado externo e limitam as possibilidades de decisão e ação autônomas. Nisto radica, talvez, o núcleo da problemática sociológica do processo nacional de desenvolvimento na América Latina (...). É necessá-
175. Cardoso, Fernando Henrique e Quijano, A. Dependência e desenvolvimento na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
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rio elaborar conceitos e propor hipóteses que expressem e permitam compreender o subdesenvolvimento sob essa perspectiva fundamental. Esta deve realçar a contradição entre a Nação (o que obriga, portanto, referir-se de maneira constante à situação interna de poder) e o desenvolvimento considerado como processo logrado ou que se está logrando através de vínculos de novo tipo com as economias centrais.”176 De sorte que subjaz à conceituação de “dependência estrutural” a velha fórmula etapista de configurar o binômio classe/nação como tácito, auto evidente e solucionado; da mesma maneira como sempre a frente esqueceu-se de desvinculá-los. Desde o conceito de povo, do antigo ISEB, até essas novas teorizações em curso, a hegemonia de esquerda continua dourando sua pílula política, na esperança de que ela seja engolida sem causar estranhamento. Na busca desse novo pacto com o Estado, agora amparado numa teorização “suficiente” e “competente” para entender e considerar a ditadura militar e o novo modelo econômico implantado como uma etapa “estrutural” do processo histórico, nada mais impede os assim pensantes de voltarem à política de pactos e alianças com setores da oligarquia política ou da administração pública civil/militar. No que tange ao teatro, desde há muito tais cogitações vinham sendo estabelecidas e agora, com a configuração ideológica do nacional- popular, um novo diálogo cultura-Estado vai encontrar motivações para ser entabulado e levado adiante. Oduvaldo Vianna Filho já apontara, em 1968, não ser possível “tomar posição de fazer do teatro um imenso laboratório, desligado de suas condições comerciais, de seus atrativos para o público. (...) Não existe nada industrializável sem medidas que criem economias externas à produção.”177 E desde que ele, juntamente com Paulo Pontes, abandonara o grupo Opinião e articulara o Teatro do Autor, visíveis esforços vinham sendo encetados no sentido de cortejar subsídios oficiais bem como acercar-se das empresas de produção atuantes à sua volta. É desse esforço solidário que nasce, em 1969, a Associação Carioca de Empresários Teatrais-ACET para, três anos após, ensejar o surgimento de sua congênere paulista, a APETESP.
176. Idem, ibidem, p. 26. 177. Vianna Filho, Oduvaldo. “Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”, in Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial n. 2, Rio de Janeiro, julho de 1968.
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Tais associações, um pouco confusas em seus propósitos iniciais, ganham novo impulso a partir de 1973. Nesse ano a ACET tem sua diretoria renovada através de eleições, numa chapa onde figura como presidente Orlando Miranda, proprietário do Teatro Princesa Isabel, e Paulo Pontes, ocupando o cargo de secretário. Em longo memorial dirigido ao então ministro da educação Jarbas Passarinho, várias medidas de pacificação no diálogo entre teatro e governo surgem arroladas. Num trecho do documento pode-se ler: “Não nos cabe analisar neste documento os efeitos do excessivo rigor da Censura sobre a permanente e legitima aspiração de liberdade de expressão, para que os artistas e intelectuais formulem, de maneira cada vez mais íntegra, sua visão pessoal da temática que abordam em seu trabalho. Neste documento a ação da Censura está sendo ventilada porque sua ação excessivamente rigorosa é um dos fatores conjunturais que mais prejudicam a sobrevivência econômica da empresa teatral.”178 A seguir, são arroladas medidas de auxilio mútuo entre o governo e o setor teatral e, entre as propostas, figura “manter entendimentos com as emissoras de TV para a veiculação de jingles, spots e slides de teatro, possivelmente utilizando para sua confecção o know-how da AERP”, além de “dedicar espaço de teatro no noticiário da Voz do Brasil.”179 A aceitação da Censura é tácita, portanto. Reclama-se apenas de ser excessivamente rigorosa. Utilizar o know-how da AERP é creditar a uma agência de propaganda oficial, criada para promover o regime militar utilizando sofisticada tecnologia e técnicos em comunicação com treinamento nos EUA, a própria consciência enquanto criadores culturais; esperar, contudo, ser veiculado no programa de rádio A Voz do Brasil era pretender para a produção teatral a mesma vala comum da mistificação e da mentira reinantes nesse período, auge da repressão política no governo Garrastazu Médici. Por outro lado, a posterior citação do governo do Estado do Paraná, que vinha concedendo expressivas somas para grandes montagens que estreassem suas produções em Curitiba, completa o quadro de medidas que os
178. Documento citado por Pacheco, Tânia. “O teatro e poder”, in Anos 70/Teatro, Rio de Janeiro, Europa, 1980. 179. Idem, ibidem.
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empresários almejavam para tornar a empresa teatral aquele teatro “industrializável”, antes almejado por Vianna Filho, bem como a articulação da aludida plataforma de medidas “externas à produção”. Não apenas tais providências imediatas, bem como a elaboração de um mais articulado projeto de atuação para o teatro são iniciados a partir de 1974, época em que Ney Braga (o ex-governador que patrocinava as estreias em Curitiba) é indicado para o cargo de Ministro da Educação e Cultura e Orlando Miranda é promovido à direção do Serviço Nacional de Teatro, agora sob o governo Ernesto Geisel. A gestão de Miranda à frente do SNT, que abrange o período entre 1974 a 1981, quando foi transformado em Serviço Brasileiro de Teatro como órgão autônomo pertencente ao Instituto Nacional de Artes Cênicas, em 1982, revestiu-se de particular ênfase porque pela primeira vez no Brasil foi criada uma política nacional para o setor teatral, em forma abrangente e coerente. Com a criação dos quadros administrativos e executivos do SNT, a hegemonia cultural de esquerda encontrou uma via legal de manifestação e instalação e, através da determinação da política cultural então desenvolvida, a tão almejada posição no novo pacto com o Poder. O Serviço Nacional de Teatro fora criado a 21 de dezembro de 1937, pelo decreto-lei nº 92 do Estado Novo, por iniciativa direta de Getúlio Vargas. Estruturado como serviço, assemelhava-se administrativamente às demais agências então criadas, cuja subordinação direta ao presidente as mantinha sob controle pessoal. As gestões dos diretores coincidiam com a dos Presidentes da República e contam-se, até 1974, quinze diretores oficiais, além de alguns poucos que ocuparam o cargo em modo interino ou respondendo pelo expediente. Por sua iniciativa foi criada em 1940 a Comedia Brasileira que, extinta quatro anos após, deu lugar à Companhia Dramática Nacional, em 1953. O Conservatório Nacional de Teatro, destinado a cursos e aprendizagem, foi criado igualmente por Getúlio Vargas, ainda no Estado Novo, funcionando, porém, como Curso Prático de Teatro até 1953. Uma Biblioteca e um Museu, uma Secção Técnica e um Setor de Difusão Cultural constituíam o organograma administrativo com o qual o Serviço, em trinta e sete anos de atividade, pouco fez no sentido de apoiar e viabilizar em modo decisivo o desenvolvimento do teatro no Brasil. Muitos foram os reclamos da categoria, em diferentes fases históricas, contra as decisões do órgão que, surdo a tais investidas, manteve-se como privilegiado cabide de empregos públicos. Especialmente a penúltima gestão, sob
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o comando de Felinto Rodrigues Neto, a partir de 1968, havia colocado a categoria teatral em tal oposição contra o órgão e seu diretor que, nos anos seguintes, aumentam muito os reclamos no sentido de uma reestruturação mais ampla do Serviço. As medidas práticas que guiaram a gestão Orlando Miranda, bem como seu corolário político, possuíam o respaldo ideológico de um “plano-piloto” já testado no Paraná e contavam, ainda, com algumas experiências pioneiras de excursões nacionais bem sucedidas (onde o melhor exemplo, pelas influências diretas que fermentou junto à ACET, havia sido o de Paulo Autran, percorrendo o país com Liberdade, Liberdade e Édipo Rei). Ney Braga, como Ministro, é quem faz aprovar em 1975 a primeira “Política Nacional de Cultura”, num visível esforço em conciliar uma teoria para uma prática voltada a todos os setores culturais albergados no Estado, já desenvolvendo há algum tempo ações conjuntas. Nesse documento, lê-se: “Partindo do conceito de política nacional como a arte de estabelecer os objetivos nacionais, mediante a interpretação dos anseios nacionais, e de orientar a conquista ou preservação daqueles objetivos, é que se torna possível estabelecer a concepção básica da política de cultura. Uma política de cultura deve levar em consideração a ética do humanismo e o respeito à espontaneidade da criação popular. Justifica-se, assim, uma política de cultura como o conjunto de iniciativas governamentais coordenadas pela necessidade de ativar a criatividade, reduzida, distorcida e ameaçada pelos mecanismos de controle desencadeados através dos meios de comunicação de massa e pela racionalização da sociedade industrial. (...) Cabe ao Estado estimular as concorrências qualitativas entre as fontes de produção. Mas para que haja qualidade é necessário precaver-se contra certos males, como o culto à novidade. Característica de país em desenvolvimento, devido à comunicação de massa e à imitação dos povos desenvolvidos, a qualidade é frequentemente desvirtuada pela vontade de inovar; o que, por sua vez, também leva a um excesso de produção”180 (grifos nossos).
180. Política Nacional de Cultura, opúsculo do MEC, 1975. Trechos foram republicados em Arte em Revista, n.3, São Paulo, Kairós, 1980.
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Como salta à vista, são notórias as preocupações rumo à capitalização das atividades culturais, estimulando a livre concorrência e criando um protecionismo àquelas iniciativas selecionadas pela qualidade, explicitamente declarada como a de teor convencional (isto é, oposta ao culto da novidade). Sob o tópico “Essência da Brasilidade” arrolam-se os valores a serem preservados: “a primeira ação deve ser de revelação do que constitui o âmago do homem brasileiro e o teor de sua vida. Antes de qualquer medida, precisamos verificar a própria essência de nossa cultura. A preservação dos bens de valor cultural tem por meta conservar a memória nacional, assegurando a perenidade da cultura brasileira.” E mais não se diz. Ficam, assim, consignados conceitos abstratos e generalizantes como âmago, teor, essência, conservação da memória nacional e perenidade, para definirem o que seria a “personalidade do povo”. O tópico “Componentes Básicos da Política Nacional de Cultura”, refere-se às medidas práticas nos setores de folclore, literatura, patrimônio histórico, cinema, música, dança, artes plásticas, difusão cultural através dos meios de comunicação de massa e, naturalmente, teatro. Quanto ao último setor, reza o texto: “apoio à produção teatral nacional, tanto na área de criação quanto da circulação e consumo - o objetivo central é estimular a produção teatral brasileira”181 (grifo nosso). Essa ênfase no estímulo à produção fecha o circulo restrito daquilo que, no nível das empresas, colocava-se como o acordo tácito entre a frente cultural de esquerda e o Estado, âmbito maior do “milagre econômico” em curso. As associações de empresários teatrais, que conseguiram elevar à direção do SNT um seu legítimo representante, viabilizam desse modo seu pragmatismo. De fato, se for entendido que a conjuntura de concentração de renda conhecida como “milagre econômico” gerou uma classe média regalada e o Estado erigiu-se como um cofre forte bem dotado financiando os megaempreendimentos das multinacionais aqui instaladas, as características de ampla capitalização que norteiam a política cultural desse Estado devem ser entendidas como um desdobramento nacional dessas sobras de capitais. Pensa-se em curto prazo, com o olho na máquina registradora,
181. Idem, ibidem.
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tentando aproveitar um filão econômico-financeiro que não durará muito tempo, uma vez que todo “milagre” um dia revela seus truques e desfaz-se enquanto solução. Ou seja, ao contrário das difusas considerações e medidas que a “Política” circunscreve em seu discurso pomposo, a prática demonstrou um ajuste de interesses bastante coeso e a efetivação de um padrão de produção bem estruturado. Quem poderia, no período 1970-1974, atender as características burocráticas instituídas? Ou seja, articular um repertório nacional (que falasse ao “âmago” do brasileiro); desvencilhar-se das inovações, armando uma montagem “moderna”, mas enquadrada nos modelos convencionais do teatro comercial (cujo know-how havia passado pelo TBC e seus derivados); possuía lastro financeiro suficiente para manter uma empresa organizada e se dispunha a fazer figurar na veiculação publicitária a chancela do MEC-PAC-SNT e posteriormente da SEAC, órgãos do Governo Federal, em aberto colaboracionismo com o regime ditatorial? Tais requisitos materializaram, no plano da realidade, aquilo que era antes conceito e letra exortativa no texto da “Política” implantada, configurando um quadro de atrelamento da produção teatral às normas econômicas, ideológicas e políticas vigentes. A estrita organização da produção teatral brasileira como sistema empresarial encontrou, desse modo, sua fórmula de enquadramento, renegando ao ostracismo e à deriva aqueles que não aceitaram tal status-quo. Foi, portanto, através desse viés burocrático e econômico que o regime encontrou uma solução para o teatro; que dispensou, a exemplo do ocorrido com o cinema, um receituário de temas ou sugestões “ideológicas” para as produções. O teatro não teve seu Independência ou Morte, seu Don e Ravel, seu Jean Manzon, mas encontrou dentre muitos autores e produtores obras expressivas e know-how para conformar seu ideário de realizações alinhadas ao sistema. As vias econômico-financeiras encontradas não se voltaram para o financiamento direto de produções (como no cinema e alguns casos das artes plásticas), mas através de subsídios, materializados sob diversos formatos, tais como auxílios-montagem, custeio de viagens, compra de ingressos (campanhas das Kombis), prêmios de incentivo, bem como medidas relativas ao reforço da infraestrutura produtiva, como reformas em casas de espetáculos, financiamentos para equipamentos e aparelhagens, etc. A ênfase dispensada a um Concurso de Dramaturgia anual (ampliado depois para as categorias infantil e universitária), revelou-se um canal aber-
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to, dos mais expressivos, para o nacional-popular, como demonstra sua relação de vencedores nas diversas edições. A ascensão do “empresário”, fosse ele um estruturado comerciante ou um neófito ator ou atriz aventurando-se na concorrência econômica, marca de forma irreversível o teatro efetivado no Brasil nos anos seguintes, evidenciando o sucesso da implantação da “Política Nacional de Cultura” e seu jogo de interesses entrelaçados ao nacional-popular. Tal processo, certamente, não ocorreu sem contradições de várias ordens: a ação da Censura, a crise estética das linguagens cênicas, o confronto entre os novos grupos artísticos surgidos e suas indisposições com a mentalidade e a organização empresarial, a luta entre os veículos de comunicação de massa e o teatro, a crise de textos adequados, o refluxo econômico-financeiro no “pós-milagre”, entre outras. Constituem elas a via sacra da produção cultural, com seus mártires, devotos, praguejadores, insultados e locupletados, a densa matéria vivida que motivará um interminável bate-boca conhecido como “patrulhas ideológicas”. Voltemo-nos, agora, para o outro lado da moeda, um panorama do teatro não empresarial desse começo de década, contraponto à linha principal de desenvolvimento do teatrão. A primeira iniciativa de estruturar a atividade fora dos padrões estabelecidos pelas salas da capital de São Paulo (quase todas situadas no bairro da Bela Vista ou no chamado centro velho da cidade) enquanto captação de público, vinculada a uma decidida visão de teatro como “bem da comunidade”, associado à educação pública, chegou ao Brasil por inspiração francesa. Heleny Guariba, retornando de longo convívio com Roger Planchon, criador do Théàtre de la Cité, em Lyon, conseguiu interessar um grupo de jovens atores da Escola de Arte Dramática a formar uma nova companhia, estruturada em moldes daquela experiência francesa. A cidade de Santo André foi escolhida, em função de suas características culturais e econômicas. Assim nasceu o Teatro da Cidade, cujo primeiro espetáculo, em 1968, foi Jorge Dandin, de Moliére, conseguindo ainda a construção de um moderno teatro por parte do erário municipal, alguns anos depois. A concepção teatral de Heleny, arrojada para aquele contexto, foi explanada num pequeno artigo que escreveu em 1970, onde declara: “O conteúdo do texto é captado e interpretado no nível do receptor (o diretor). Esta recepção significa comentá-lo no seu universo de
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signos, isto é, na sua própria perspectiva ideológica. O diretor não só passa a ser figura dominante na comunicação teatral, como traz a claro um problema mais geral: o da historicidade do texto, isto é, de como é possível a montagem de um texto do passado em nossos dias. (...) Evidentemente o texto forma o núcleo ‘quase objetivo’ da mensagem, mas a mensagem é agora muito mais rica de sugestões. Novos elementos redundantes foram inseridos na mensagem, fazendo apelo direto ao universo de signos do público. Cada espectador realiza seu comentário, ao assistir ao espetáculo. São milhares de universos ideológicos que o captam e lhe conferem um conteúdo.”182 Com esse entendimento, calcado sobre os processos de comunicação e sobre a função interpretativa da plateia, na esteira da estética da recepção, o teatro deveria articular-se como discurso esteticamente estruturado e claramente ideológico; por outro lado, em sua proposta de uma cena voltada para a comunidade, não se separavam as categorias que integravam o público, não concebido como um teatro de classe, mas como serviço para a comunidade, de modo a permitir a cada classe “ler” sua própria relação com a mensagem artística. Tal enquadramento historicista, que mesmo na França acabou levando a um impasse, não poderia surtir o almejado efeito gregário no Brasil de 1968. Mas a almejada descentralização, mesmo fora dos prognósticos iniciais, acabou frutificando: o grupo Teatro da Cidade sobreviveu um bom número de anos em meio à turbulência, com grande adesão da comunidade, constituindo-se numa via alternativa ao teatro empresarial da capital. Outra proposta modelar foi encetada pelo grupo União e Olho Vivo, nascido no Centro Acadêmico XI de Agosto, em 1970, e que em pouco tempo passa a dedicar-se a um teatro itinerante, visitando bairros da periferia, num trabalho que extrapola a relação convencional (visitas a bairros, conversas com as lideranças locais, contato permanente com as associações de bairros, grêmios, paróquias, distribuindo questionários sobre a peça e realizando bate-papos com os espectadores). Algum tempo depois e já fora do meio universitário, o grupo consegue estabilizar-se e criar certo hábito de consumo em seus locais de apresentação. Iniciativa amadora, a renda auferida é destinada à manutenção do grupo, que se vale da “tática Robin
182. Guaryba, Heleni. “Teatro e Comunicação”, artigo no Anuário CET/São Paulo, 1968.
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Hood”, ou seja, para cada oito espetáculos na periferia vendia-se um para o público do circuito regular, viabilizando assim a itinerância. Tais experiências circunscrevem o União e Olho Vivo na esteira de uma cultura popular que tem suas origens no CPC e no MCP, passando pelo Arena e o Opinião, suas mais diretas fontes de inspiração. Entre seus espetáculos contam-se Rei Momo, Império Brasílico, Apito de Fábrica, Bumba Meu Queixada, Barbosinha Futebó Crubi, Morte aos Brancos, além de inúmeros shows musicais e outras atividades.183 Já anteriormente foi verificada a formação do Teatro Núcleo, em São Miguel Paulista, nascido diretamente da opção do ex-Núcleo-Arena em orientar-se pela via do amadorismo e fixar-se na periferia. Assim como ele, dezenas de outros coletivos de artistas seguem o mesmo rumo, quase todos ligados precariamente às igrejas, associações de bairros, grêmios estudantis, bibliotecas públicas, ou outros anteparos às suas atuações, marcadas por decidido trabalho de politização. Entre outros, destacam-se: Galo de Briga, Truques, Traquejos e Teatro, Expressão de Osasco, Alegria dos Pobres, Cordão e Forja. Recorrendo quase sempre às criações coletivas, as montagens demonstravam precariedade material pronunciada. Os diretores ou organizadores quase sempre possuem pouca ou nenhuma formação teatral, bem como os atores; os locais de trabalho são instalações mal equipadas e sem recursos para viabilizar uma apresentação artística, o que concorre para a itinerância; a conflituosa situação da linguagem que assola a tradição expressiva cênica, fazendo os limites artísticos se expandirem, dando lugar a produtos híbridos, uma teia de caminhos expressivos. Amadores, tais grupos lutavam com muitas dificuldades econômicas, além de enfrentarem a repressão política, razões que os levam a tentar uma saída conjunta. Data de 1974 o 1º Seminário de Teatro Popular realizado em São Paulo, congregando a maioria desses coletivos, organizados para discutir questões em torno do teatro popular, propostas e encaminhamentos práticos. Como primeira tentativa de coordenar tais atividades, cerca de quarenta grupos assinam um documento final que, antes de apontar caminhos para a viabilização das experiências, não foi além de uma carta de princípios, demonstração de que as táticas defendidas referiam-se às estratégias das facções políticas que os iluminavam.
183. Vieira, César. Em Busca de Um Teatro Popular, São Paulo, UNESCO/TUOV, 1977; e Bumba Meu Queixada, São Paulo, Grafitti, 1980.
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Somente em 1976, agora num Congresso igualmente realizado em São Paulo, tais grupos, depurados em sua coexistência não pacífica, conseguirão elaborar uma radiografia de suas constituições. É quando se dá o reconhecimento de que popular, mais que uma tática ou ideologia, é um modo de produção: “o principal elemento que nos caracteriza e aos grupos de teatro que, por enquanto, ainda chamaremos de ‘popular’ - é a produção. Isto porque para nós ela adquire uma configuração própria, ou por desejo consciente ou por necessidade objetiva do grupo, na medida em que não nos podemos valer dos recursos tradicionais nem dos recursos que poderiam nos oferecer nossa cultura subjacente, ainda sem formas próprias de organização e infraestrutura. Valemo-nos dos recursos desenvolvidos nas mais diferentes situações e aproveitamos todas as brechas. Nesse processo estamos criando o que se poderia chamar de know-how da produção pobre.”184 A década registra, igualmente, o nascimento de diversos outros agrupamentos artísticos fora do esquema empresarial, de incerta caracterização, mas que apontam caminhos diferentes das tendências até aqui percebidas. Grosso modo, podem ser entendidos como envolvidos com a cena enquanto manifestação artística, mas longe de exprimirem um vínculo político reconhecível ou classificável. São coletivos que herdaram - mormente a partir do influxo do Oficina – o estro para a criação voltada para a linguagem, encontrando no nível de sua organização fórmulas assemelhadas àquelas dos grupos que optaram pela periferia: semi profissionais, estruturados como cooperativas informais, unidos em torno de um projeto mais estético ou vivencial que doutrinário, através de uma dramaturgia de criação coletiva ou mesmo convencional, mas fartamente adaptada, voltados às identificações perante a vida ou o momento que atravessam. Tal ênfase junto às criações coletivas vem demonstrar o rompimento consciente quanto aos limites criativos e a abertura para novos formatos de vivenciar o fenômeno cênico. Em São Paulo, destacam-se o Pessoal do Victor, o Ornitorrinco, o Mambembe, o Pod Minoga, o Ventoforte, mas
184. “Sobre o Que Caracteriza o Teatro Independente”, texto mimeografado. Republicado parcialmente em Arte em Revista, n.6, Teatro, São Paulo, Kairós/CEAC, 1981.
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é o carioca Asdrubal Trouxe o Trombone o emblema mais característico da vertente. Outros conjuntos, numerosos no Rio e São Paulo, também surgem nos demais Estados brasileiros.185 A criação da Federação Nacional do Teatro Amador, em Teresópolis, em 1974, dá conta da abrangência e da articulação nacional adquirida pelo movimento. A partir de 1978, com a criação dos projetos Mambembão e Mambembinho pelo SNT (que consistia no auxílio a grupos fora do eixo para apresentações no Rio e São Paulo, depois estendido a Brasília e Vitória), um novo alento é verificável em todo o país, tornando a atividade teatral ao longo da década uma realidade em praticamente todos os Estados da federação, embora nem sempre em modo contínuo ou visando uma planejada ampliação de plateias. São essas as quatro tendências que emergem enquanto oposições ao sistema empresarial implantado pelo SNT e que devem, igualmente, ser tomadas enquanto cristalizações alternativas ao ponto de vista estético dominante, caminhos perceptíveis no transcurso histórico do período. Coisa que, portanto, enseja algumas considerações: a apreciação restrita do teatro comercial e empresarial praticado no eixo Rio-São Paulo, com ênfase na primeira metade da década de 1970, aponta para dois problemas que parecem insolúveis à primeira vista - a Censura e a restrição econômica. Todos os expoentes ligados às atividades produtivas, identificados ou não com a hegemonia cultural de esquerda, costumam proclamar esse período como “heroico”, “de resistência”, “de subsistência para não morrer”, “de reaprendizado pelo símbolo e pela metáfora”, entre outras considerações assemelhadas. Tal visada, entrementes, põe em relevo somente os fatores censórios e econômicos sufocando a atividade, sem conjecturar outros miasmas erodindo as atividades. Quando, por outro lado, como observado, o período apresenta expressivo incremento da prática teatral, ainda que de modo semiprofissional (os coletivos de periferia ou os experimentais) que, debaixo das mesmas contingências impeditivas, soube encontrar distintas fórmulas de ação e expressão. Estaria havendo erro de cálculo naqueles julgamentos ou são as perspectivas entre uns e outros que são díspares? Ao que tudo indica, existem aqui fundas refrações de avaliação, onde a de sintaxe é a mais evidente. Para o teatro concebido como empresa, a crise é
185. Para uma análise de conjunto sobre tais grupos ver Lima, Mariângela Alves de. “Quem faz o teatro?”, in Anos 70/Teatro, Rio de Janeiro, Ed. Europa, 1979.
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entendida tão somente como uma questão de mercado. Assim, de fato, o mercado parecia estar estrangulado, a atividade se tornado antieconômica ou até mesmo deficitária, o socorro do Estado surgindo como indispensável para sua continuidade. Aquelas referidas expressões parecem, então, verdadeiras: o teatro é heróico, resistente, subsistindo para não morrer. A estreiteza sintática desse teatrão revela-se na falta de flexibilidade para pensar qualquer alternativa de futuro, voltando-se sempre às experiências de um passado mais glorioso. Sobre ele pode-se dizer, como Luis Carlos Maciel citando Sartre, que “é um comportamento primitivo da consciência: é o reconhecimento de sua impotência, que quando superada afunda-se na esperança infantil e absurda de enfrentá-lo com um feitiço miraculoso que, naturalmente, sempre redunda em fracasso: a emoção.”186 Somente a componente emocional, até onde se pode avaliar, muito desenvolvida nas gentes habituadas a seu exercício diário, pode explicar essa esperança vã de enxergar no Estado o deus-ex-machina salvador de sua insolvência. Assim, mesmo as “altas” verbas dispensadas pelo SNT em sua fase áurea, recebidas pela categoria emocionada como uma “dádiva” do Estado, evidenciam que na prática nada mais fizeram que circular o pequeno capital dos beneficiados, mas em nada contribuíram para implementar a atividade com olhos dirigidos ao futuro, a partir de uma ação sintonizada em resolver ou ao menos aliviar a crise em anos vindouros. Nesse contexto, quem lucrou, lucrou; quem não lucrou, que lucrasse - avisa o pragmatismo de nosso tempo, racionalmente saltitante por sobre as emoções mais uma vez desanimadas. Numa sociedade de classes, o Estado é sempre controlado pela classe que está no poder. Essa regra elementar, quando emocionalmente esquecida, torna os homens cativos da ideologia dominante. Se houve um crescimento espantoso no número de grupos e de gente interessada em fazer teatro em toda a década de 1970, sob outros formatos que não os empresariais, há de se concluir que a crise deve ser colocada sob outra óptica. Hoje em dia, os grupos dos sindicatos, das empresas, das associações de bairro, das paróquias, das bibliotecas distritais de todo o Brasil, das comunidades, levam ao público formas teatrais as mais variadas. Ainda que tal hábito não tenha adquirido a relação de compra e venda, tais práticas apontam novos territórios, seja para quem se expõe seja para quem
186. Maciel, Luiz Carlos. “Quem é Quem no Teatro Brasileiro”, in Revista Civilização Brasileira, Especial n. 2 Teatro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
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assiste. Importa, portanto, investigar o caráter dessas relações em processo de gestação, redimensionando com acuidade o que representou (e ainda representa) o surto teatral que varreu o país nas últimas décadas. Assim, a crise deve ser buscada em outros indicadores, a partir de outros critérios e, em modo restrito, apenas para a prática exercida em moldes empresariais. É neste sentido que as atuações do Arena, do Oficina e do Opinião, no bojo de um muito mais amplo processo de renovação ocorrido na década de 1960, com as importantes iniciativas no Recife (MCP e TPE), Salvador, Porto Alegre e Belo Horizonte, representaram a desestruturação daquele modelo de produção. Pelos textos criados e encenados, pelas formas arquitetônicas inovadoras, pelas novas técnicas de representação forjadas, pelas revoluções ideológicas que veicularam, efetivaram uma práxis demolidora, realizando a tarefa histórica de implantar uma nova cena e criar novos padrões para o teatro praticado no Brasil, através de modelos associativos alternativos e socializantes. No momento em que o país, emergindo para um novo século, procura reorganiza-se e defrontar-se com outra conjuntura politico-institucional, muitos agentes culturais olham para o passado, seja em busca de elos perdidos que possam religar as correntes estratégicas, seja em busca de uma memória semi apagada. Num caso ou noutro cremos ter salientado o quanto as trajetórias do Arena, do Oficina e do Opinião iluminaram alternativas, dispares e conflitantes entre si, quanto ao modo de encarar e se relacionar com os acontecimentos históricos dos quais foram contemporâneos, do restante teatro brasileiro praticado à mesma época, dos processos ideológicos e da amplitude da cultura brasileira. Avaliá-los hoje, sob qualquer destas perspectivas, implica atribuir juízos que correm o risco de funcionarem como mão-única. É neste sentido e nesta ordem de considerações que, nos parece, não devem ser tomados como “exemplos” ou “modelos” a alimentar qualquer “retomada”. Tais caracterizações, aqui designadas precavidamente entre aspas e certamente fontes permanentes de desagravos e reparos de toda ordem, visam distinguir aquilo que a experiência histórica pode indicar, mas não deve repetir. Ou seja, os sujeitos históricos enfocados demandam serem antes percebidos enquanto “consciência real” e “consciência possível” (nas acepções propostas por Lucien Goldmann) em seus respectivos tempos históricos e conjunturas sociopolíticas. É a mentalidade escolar que aprecia invocar “exemplos”, bem como são os criadores menos criativos que primam
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por retomar “modelos”, uns e outros incapazes de apreender e interpretar processos. Lembrando Walter Benjamin, seria preferível que tomássemos a história como uma iluminação que acode no instante de perigo e nos livrássemos, definitivamente, da fórmula que postula ser a classe dos trabalhadores “a redentora das gerações futuras”, modo de perpetuar ideologicamente um ideal abstrato que “se alimenta da imagem dos antecessores escravizados e não no ideal dos descendentes liberados”.187 Ao recordamos os posicionamentos vigentes, quer no plano da prática teatral quer no plano ideológico, não apenas quanto ao conceito de povo mas quanto ao agente histórico por eles situado e defendido, vislumbraremos a constelação de abrangências inerente ao raciocínio de Walter Benjamin. A opção pela análise ideológica da produção teatral dos três grupos recortados, enfatizando-a em detrimento das demais constituintes do fenômeno cênico, visou estabelecer o horizonte de discurso que articularam frente ao desafio de um teatro político sintonizado com uma visão sobre a história. É dentro desse amplo espectro de antagonismos que se encontra o campo referencial mais significativo para ser pensado um novo teatro em futuro mais próximo ou distante.
187. Benjamin, Walter. “Teses sobre o conceito de história”, in L’homme, le langage et la culture, Paris, Denöel, 1971, p. 192.
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POSFÁCIO O TEATRO COMO FATO CULTURAL
Ao escrever este ensaio, entre 1980 e 1982, a leitura de Walter Benjamin era para mim recorrente há algum tempo, com destaque para suas análises sobre o teatro épico, o drama barroco e outros escritos, entre os quais as teses sobre a história. Bem como me dedicava a certas obras de Roland Barthes, especialmente Crítica e Verdade e Mitologias, delas servindo-me para estabelecer relações entre a produção da cena teatral e os mitos que as atravessavam. Em suma, eu olhava para nosso passado teatral recente a partir de uma perspectiva pouco convencional para os padrões daquele momento. Embora sem possuir grande bagagem de teoria histórica eu já me defrontara, todavia, com alguns embates espinhosos que acometem aqueles que manipulam documentos do passado, em função de meu trabalho como pesquisador no CEAC-Centro de Estudos de Arte Contemporânea. Ali, nos anos finais da década de 1970, promovíamos estudos e seminários e editávamos revistas que reuniam material documental relativo às atividades ocorridas vinte anos antes, período de grande efervescência e criatividade nos diversos domínios artísticos e, naquele momento, de difícil acesso ou perdido em publicações cassadas pela ditadura militar. Do entrecruzamento dessas injunções nasceu minha necessidade de entender a história dos grupos teatrais Arena, Oficina e Opinião à luz de outros enfoques que não os consagrados pela crônica histórica nem pelas posições ideológicas e pessoais irreversíveis de seus vários protagonistas e testemunhas, muito acirradas naquele final de década de 70, uma vez que alguns deles ainda se encontravam em combates contra a Censura e as arbitrariedades do regime militar.
Após algum tempo de trabalho, recolhendo materiais documentais (as fontes primárias) e lendo a montanha de material paralelo que acompanhava cada um desses documentos (fontes secundárias), me dei conta que o último acervo era não apenas numericamente surpreendente como, em variados aspectos, mais interessante que os originais. Configuravam uma trama de conceitos, uma rede de proposições ideológicas que remetiam, com ênfase, ao universo de atuação das esquerdas brasileiras e seu aparato de ideias, valores e princípios que constituíam a base de suas táticas e estratégias de ação. Ou seja, os grupos teatrais e o movimento sociocultural exprimiam, através de suas encenações, uma aguda observância àquelas ideias e noções, tornando os espetáculos quase decalques, às vezes enviesados, mas, ainda assim reconhecíveis, de um modo de pensar e agir. Em 1961 o historiador E. H. Carr afirmou que “quanto mais sociológica a história se torna, e quanto mais histórica a sociologia se torna, tanto melhor para ambas”,188 uma das primeiras vozes de uma vertente de estudos que, nas décadas seguintes, ganhou o nome de sociologia histórica. Pouco depois Peter Burke - algumas vezes presente no Brasil – ampliou tais perspectivas que, à luz da interdisciplinaridade, ganharam destaque e presença no cenário internacional sob o codinome de história cultural.189 Desde os anos de 1950, contudo, Fernand Braudel e seus colegas dos Annales vinham divulgando novos acentos em relação aos estudos históricos, empregando três unidades de tempo, isoláveis, todavia interdependentes: a structure ou longue durée (correspondente ao meio geográfico), a conjuncture (de média duração, focalizando o meio social), e o evenement (o acontecimento), efêmero e circunstancial, vinculado ao dia-a-dia dos mortais. Minimizando a primazia das formações históricas políticas, econômicas ou militares, hipervalorizadas nos enquadramentos de cunho marxista, os annalistes se voltavam para a conformação das mentalidades, as perspectivas ideológicas que animavam os homens e a vida em sociedade.190 Mas foi apenas por volta dos anos 80 que a quarta geração desses historiadores – Roger Chartier e Jacques Revel à frente –, decide rejeitar a designação de mentalidades para afirmar outro desígnio, a de história cultural.
188. Carr, E. H. O que é a história ?,Lisboa, Gradiva, 1983. 189. Uma boa síntese dessa interdisciplinaridade pode ser encontrada em Burke, Peter. História e teoria social. São Paulo, Unesp, 2002; bem como em O que é história cultural. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. 190. Braudel, Fernand. Écrits sur l’histoire. Paris, Flammarion, 1969.
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Para eles, as relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais, nem as determinam, mas constituem, antes, campos de práticas e arranjos de produções humanas, que não podem ser simplesmente deduzidos de uma dimensão extracultural em relação às experiências sociais.191 Outra referência marcante na mesma época foi representada pela revista New Left Review, de escassa presença entre nós, cujos artigos circulavam em cópias de mão em mão. Seus mais antigos colaboradores integravam o Center for Contemporary Cultural Studies, em Birmingham, celeiro de uma nova geração de pesquisadores progressistas que tomavam a cultura de massas e a atuação do proletariado inglês em vieses não apenas desafiadores como em cerrada oposição aos antigos padrões economicistas vigentes entre os marxistas. Os estudos concernentes às formações ideológicas - que aproveitavam muitas das observações antes efetuadas por Althusseur - causaram sobre mim forte impacto, estando os mesmos igualmente no alvo de minhas cogitações aqui reunidas. Todas essas inovações enfeixavam, quanto aos estudos históricos, preocupações assemelhadas já manifestas por Michel Foucault ao discorrer sobre as formações discursivas nos séculos do classicismo: uma recusa em destrinçar qual sua causa subjacente, para dimensionar de que modo efeitos de verdade eram produzidos no interior daqueles discursos, desprezando o fato sobre suas origens, para testar, antes, suas funcionalidades operativas. Ou seja, enquanto práticas. Ou, na terminologia foucaultiana, enquanto acontecimentos discursivos.192 E assim desaguaram, em minha formação intelectual, as leituras entrecruzadas de Benjamin, Barthes e Foucault, no momento em que escrevia este livro, ainda não articulando em toda sua extensão os pressupostos metodológicos advindos com a história cultural, mas já intuindo, pelos desvãos e desvios propiciados pela análise dos discursos, aquilo que era, em verdade, nada mais que o exercício de uma prática: como, onde e porque certos espetáculos teatrais foram produzidos e debaixo de que circunstâncias ideológicas encontraram suas justificativas e/ou articularam seus discursos.
191. Le Goff, Jacques. História e memória, Campinas, Unicamp, 2003. 192. A noção de acontecimento discursivo e seus desdobramentos estão em diversos escritos: Foucault, Michel. A arqueologia do saber, Rio de Janeiro, Forense, 2002; História da loucura na Idade Clássica, São Paulo, Perspectiva, 1978; As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1992. Para uma visão de conjunto, com destaques metodológicos, consultar Veyne, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história, Brasília, Ed. UnB, 1998.
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Nas notas de abertura à edição de 1982, escrevi: “aludi à escolha. Para retornar ao enfoque original, matriz que me dispôs à tarefa, tive de refugiar-me em minha solidão, minha individualidade e vivência, adensando uma perspectiva pessoal. Nesta pessoalidade, acredito, o que se segue poderá trazer luz ou mistério, esse eterno paradoxo que nos conforma.” Eu demorei algum tempo para sedimentar em toda extensão o subjacente a tais declarações. A escolha refere-se ao afastamento das metodologias de incidência teleológica, dominante naqueles tempos, e fora da qual qualquer investigação corria o risco de rejeição pura e simples. Nesse sentido, a sexta tese de Benjamin sobre a história me acossava intermitentemente: “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”193, uma vez que nos encontrávamos num quadro cultural onde se percebia as antigas proposições do CPC voltarem à discussão, quadro marcado pela recente fundação do PT, bem como pelas apresentações do “teatro do oprimido”, de Augusto Boal, ainda vivendo no exílio mas excursionando pelo Brasil em 1980.194 Tais fantasmas do passado pareciam emergir das sombras, e eu os percebia rondando nossa Elsinore, exigindo vingança e reparação de suas presenças naqueles instantes em que o regime ditatorial começava, lenta e progressivamente, a distender-se rumo às liberdades democráticas. Esse, o traço de pessoalidade. Os estudos voltados ao teatro brasileiro durante o regime militar foram marcados por duas visadas características: a crônica dos fatos (uma exaustiva apresentação de nomes e datas configurando, aparentemente, o teor “objetivo” que os conformava) e um acúmulo de entrevistas, depoimentos, recortes de jornais, fotos ou outros materiais documentais que garantissem a autenticidade do produto, bem como o afastamento do analista frente ao contexto da pesquisa empreendida. Eram estudos muito calcados sobre os modelos em curso nos centros de documentação, trazendo essa marca de origem à flor da pele. Faltava-lhes, pensava eu, o viés interpretativo, a interrogação sobre os significados dos
193. Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história”, in Obras Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, vol. I, 1985, p. 224. 194. Ao mesmo tempo em que o PT estava sendo articulado pelas lideranças sindicais do ABC, Celso Frateschi comandava um grupo teatral formado por bancários, participando de greves e revestido de nítido caráter de agit-prop. No mesmo ano Augusto Boal trouxe ao Brasil seu teatro do oprimido, com o grupo francês CEDITADE, apresentando-se no Rio e em São Paulo. Para a observação de tais movimentos ver meu livro O Espetáculo Autoritário, São Paulo, Proposta, 1983.
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materiais apresentados, mas, sobretudo, uma mais clara identificação das práticas que lhes eram subjacentes. Meu ensaio não seguia essa orientação, não registrava ocorrências factuais em pormenores documentados nem arrolava anedotas passíveis de insuflarem o imaginário da classe artística. Pouco me importava, naquele momento, as experiências pessoais de atores ou diretores envolvidos nos espetáculos analisados, mas, antes de tudo, os discursos que sustentaram à época do caudal de produção dos anos de 1960, como lhes atribuíram validade e a partir de que pressupostos os engendraram – ou seja, por quais motivos as produções cênicas ostentavam este ou aquele formato estético, este ou aquele recorte junto aos paradigmas da arte teatral. Foram essas as razões pelas quais decidi não utilizar nenhuma das dezenas de entrevistas gravadas na fase de pesquisa, hoje depositadas, juntamente com os demais materiais recolhidos e catalogados, no acervo da biblioteca Jenny Klabin Segall, anexa ao Museu Lasar Segall, disponíveis aos eventuais interessados. Esclareço que nada tenho contra a documentação, o material colhido em entrevistas ou sua apresentação no corpo de uma pesquisa – o que seria renegar a base da pesquisa historiográfica. Mas que, para os propósitos que me animavam naquelas circunstâncias, serviram elas tão somente como respaldo, uma vez que meu interesse primário não era documental, centrando-se sobre a articulação conceitual que propunham e suas possíveis interpretações. Estas são as circunstâncias pelas quais – penso eu - o texto precedente anunciou, quando de sua primeira edição em 1982, um enfoque que o remetia à história cultural do teatro brasileiro recente, conformado como um proto exemplar de uma visada analítica que, entre nós, era ainda pouco explorada e, em se tratando de estudos dedicados ao teatro, ainda menos comum. Ciente dessa deriva, o classifiquei como um tertius. Sua recepção engendrou, de imediato, duas correntes de opinião: os que o renegaram e os que acolheram suas considerações. No primeiro grupo foi possível identificar aquelas posturas orientadas pelo documentalismo (para as quais o manejo de poucas referências constituía pecado capital) e os teleológicos ou simpatizantes (para os quais situar o perfil ideológico dos protagonistas beirava a impropriedade). Tais reações configuraram-se desde rompimento de relações pessoais até a censura branca a mim impos-
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ta em certos periódicos, que passaram, sistematicamente, a recusar minhas colaborações. No grupo dos simpatizantes, igualmente, foi possível identificar duas correntes: a dos alojados em posições progressistas ou que, simplesmente, estavam cansados das interpretações marxistas reducionistas e economicistas e os identificados com o desbunde, uma parcela social à margem dos catecismos que veio se formando no estro da contracultura desde o início dos anos de 1970. Alguns meses após o lançamento do livro eu assumi, e ao longo dos anos 1980, a função de crítico teatral no jornal Folha de São Paulo, a mais significativa caixa de ressonância da imprensa brasileira naqueles anos, responsável por um turning point editorial que afetou todos os demais diários em anos subsequentes. Embora entre o ensaio e o jornal nunca tenha havido qualquer relação de causa e efeito, me vi subitamente dividindo a mesma tribuna que jovens jornalistas, ousados e irreverentes, em edições que ribombavam junto ao imaginário de um público que lhes devotava admiração. Hoje, revendo os textos para a imprensa escritos ao longo daquela década, percebo muito da crise que acometia os estudos teatrais, onde a falta de bússolas era flagrante. Encontrávamo-nos no limiar de nossa pós-modernidade, suportando os solavancos de uma expressão artística que queria ser high-tech mas era ainda movida a carvão. Nomes como Anne Übersfeld, Patrice Pavis, Marco de Marinis ou Fabrizio Cruciani eram totalmente desconhecidos, e os de Richard Schechner, Michael Kirby ou André Kostellanetz só acessíveis em raros artigos de publicações estrangeiras com pouca ou nenhuma circulação no país. Se, por um lado, ruía o edifício da teoria teatral centrada sobre o textocentrismo, por outro pouco havia o que erigir em seu lugar, dando ensejo aos desvãos e lacunas que marcaram aqueles anos, mesmo no plano internacional. Tais me parecem ser as razões pelas quais esse ensaio tenha causado tanta polêmica, ao sustentar um discurso afirmativo num quadro onde a palavra de ordem era esvaziamento e falta de referências, discurso esse que privilegiava menos a cabeça e mais o jeito de corpo. No texto está esclarecida a gênese do conceito de “povo” que surge com tanta desenvoltura nas cogitações em torno da “cultura popular” daqueles anos (e que ainda hoje aflora, aqui e ali); bem como se rastreia os primórdios daquilo que foi alcunhado de “colaboracionismo de classe”, uma paródica integração entre proletários e burgueses ombreados na luta contra o
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“imperialismo ianque” – conceitos fluentes no início dos anos 1960 e largamente empregados nas coxias, palcos, sets de filmagens e salas de espera que congregavam plateias identificadas com tal modelo ideológico. Como se depreende, a “arte de esquerda” já possuiu dias mais exuberantes no Brasil, como atestou Roberto Schwarz em lúcido ensaio escrito nos alvores da década de 1970195, uma das molas que me motivaram a arregaçar as mangas e iniciar a escritura de meu texto. A outra foi A Geração AI-5, do sociólogo Luciano Martins, que circulou no início dos anos 80.196 No crivo do analista, os jovens que “desbundaram” seguiram três motivações decisivas: o uso da droga, a perda de articulação no discurso e o modismo psicanalítico. Ou seja, vetores que propiciaram forte retração interior, ensejando o isolamento, a auto reclusão, a distância em relação às causas públicas ou políticas, enfaticamente interessados em si enquanto indivíduos e não mais enquanto “classe”. Ambos os estudos focavam a cultura, tentando situar como fatores sociais influenciaram comportamentos e atitudes individuais. Aceitando parcialmente alguns argumentos mobilizados pelos dois analistas, mas recusando o cerne de suas considerações, minhas explicações advinham de outro enfoque e outro modo de perceber tais fenômenos – não enquanto manifestações comportamentais isoláveis através de nomes ou indivíduos, mas enquanto formações discursivas que ultrapassavam esferas restritas e adquiriam a feição de práticas sociais concernentes. Mais especificamente, as práticas das esquerdas, aqueles conjuntos de opiniões passíveis de serem verificados enquanto acontecimentos discursivos. Em outros termos, eu tratei a cultura enquanto cultura, mesmo quando ela representou ou implicou numa ação política, certo de que palavras de ordem ou frases de efeito empregadas aqui e ali constituíam – e continuam constituindo – tão somente estratégias discursivas ocasionais, não configurando a qualidade ou o acerto de uma tática política que lhe está (ou é) vinculada, certa cartilha teleológica e programática. O que faria supor, por óbvio, a possível verdade dessa tática e não sua crítica, subsumindo assim um ideário político previamente eleito.
195. Trata-se de “Cultura e política, 1964-1969”, publicado originalmente em francês na revista Les Temps Modernes, em 1971. No Brasil passou a integrar o volume de ensaios O Pai de Família. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978; conhecendo uma edição independente pela mesma editora em 2004. 196. Luciano Martins. “A Geração AI-5”, artigo publicado em Cadernos de Opinião, 2/9, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1979.
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Nesses termos, a década de 1960 conheceu, no Brasil, a polarização de debates táticos entre as esquerdas, opondo não apenas crenças ideológicas assentadas como, especialmente, o confronto em relação às alternativas de luta. Até 1958, a esquerda estava aglutinada em torno do PCB, filiado à 3º Internacional, guiando-se em meio às oscilações da guerra fria e às determinações emanadas de Moscou, bastante amenas em relação ao caráter bélico da antiga doutrina. Em 1962 surgiu o PCdoB, a primeira dissidência séria dividindo a esquerda, mesmo ano que assiste a virada marxista da AP, corrente de forte extração católica. De modo que o insucesso da aliança de classes preconizada pelo PCB e o súbito golpe civil-militar de direita patrocinado pelos EUA em 1964 não deixaram dúvidas quanto à alienação de seus dirigentes frente à conjuntura do período. Os sucessivos rachas observáveis na sequência implicaram não apenas em esfacelamentos internos como, principalmente, revisões quanto ao teor e caráter da luta revolucionária. A opção pela luta armada em 1967 (Caparaó e, a seguir, a VPR) lastreou outras dissensões futuras, bem como expôs, em meio à bravura de muitos combatentes, suas frágeis bases de ação. Perdidas as diretrizes terceiro internacionalistas emanadas de Moscou, novos paradigmas surgem no horizonte, com relevo para os orientais (China, Vietnã e Coréia) e cubano, enfatizando a guerra de guerrilha como a alternativa mais consequente frente ao poderoso inimigo. Lênin e Stálin deixam de ser líderes exclusivos para dividir com Mao Tsé Tung, Ho Chi Min e Che Guevara não apenas o olimpo de condutas exemplares como, sobretudo, de táticas e estratégias renovadas. Assim, o papel e a função do intelectual e do artista sofreram redefinições, estando na base das discussões quanto ao engajamento. Às estritas recomendações stalinistas vigentes até 1958, outras atuações afiguram-se agora discerníveis, fazendo ressurgir discussões há muito adormecidas e mesmo soterradas por décadas. O vínculo artístico ao realismo socialista é quebrado, tornando possível uma rediscussão sobre o papel da arte e da função ocupada pela cultura no conjunto da ação política. Nossa década de 1960 albergou, em sua ampla gama de proposições, quase todos os trânsitos políticos e ideológicos que atravessaram o século XX. Expostas as bordas de meu projeto de leitura, é chegado o momento de explorar seu cerne. Por razões variadas, mas especialmente em função da conjuntura daquele momento, ele não se encontra explicitado no próprio texto, podendo ser surpreendido, todavia, através das intensidades que pulsam em suas entrelinhas.
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O centro nervoso do debate está ligado à noção de superação da modernidade. Como se sabe, existem inúmeras e contraditórias posições sobre a questão, o que evidencia, de saída, uma opção do analista frente a qual delas adotar, ao mesmo tempo em que deposita com seus argumentos aquele mínimo indispensável de crença que o impulsiona a seguir. As utopias preparam as revoluções, sem elas não há projeto a orientar a ação. E se utopia significa um outro topos – um território -, é porque se constitui na planície sobre a qual os sonhos são plantados, as edificações encontram seu regime e a polis vai se instituir, criando a densidade de relações humanas que conhecemos como sociedade. Há um mito que aduba e impulsiona toda nossa década de 60 – Brasília. Gestada e implantada nos anos que precederam sua inauguração, no cadinho quente de nosso período desenvolvimentista, seu projeto de cidade utópica galvanizou todas as forças da Nação, fazendo desaguar na disputa pela polis tanto os sonhos mais luminosos de um futuro de esperanças, quanto os vícios mais renitentes e provincianos enraizados em nosso passado. Espécie de esfinge interrogante, Brasília tornou-se a arena mais palpável das disputas ideológicas, políticas e artísticas que o Brasil conheceu naquele instante de alta modernidade. Quem mais acuradamente surpreendeu essa extensa gama de implícitos foi Mário Pedrosa, fixando-os em artigos que escreveu para a imprensa.197 “Fomos condenados ao moderno”, assevera Pedrosa ao pensar os fluxos de nossa posse da terra, sendo o barroco o primeiro estilo de vanguarda a caracterizar nossas cidades-oásis.198 E, se levarmos a sério as colocações de Jean Duvignaud, “o teatro é, sobretudo, uma arte que se implanta profundamente na existência coletiva, tanto por suas origens, pela utilização que faz dos papéis e das situações vivas, quanto pelos seus resultados e públicos que afeta e cria. Mais que as outras artes, o teatro tem que permanecer aferrado à religião em que nasce.” Razão pela qual, o teatro implica uma sociologia do conhecimento, “na medida em que a estética dramática implica em certa maneira de interrogar o mundo e a sociedade e, por isso mesmo,
197. Os artigos surgiram originalmente no Jornal do Brasil e em periódicos ligados à arte. Foram posteriormente reunidos no livro Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília por Aracy Amaral. São Paulo, Perspectiva, 1981. 198. Mário Pedrosa, op. cit., p. 347. No mesmo conjunto de textos dedicados a Brasília, o analista discorre sobre nossa formação enquanto país, recordando o surgimento de nossas primeiras cidadesoásis, ilhas civilizadas em meio à selva luxuriante ao redor.
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conhece sua inserção na trama da experiência coletiva”; onde “o homem, través da representação atuada, trata de lograr algo que não se reduz àquilo que pode experimentar na vida real; e, indubitavelmente, aquilo que pode superar pela dramatização figurada é mais importante que o que sente, por assim dizer, do fato de sua agregação a outros indivíduos”.199 A arte teatral está umbilicalmente vinculada à urbe, à polis, à partilha do sensível, o que me dirigiu, desde o início, a perquirir não apenas as raízes daquela discussão como, sobretudo, perceber Brasília – enquanto uma utopia, discernível ou indiscernível no texto - como a fonte mítica originária pulsando todo o tempo nas entrelinhas das cenas que os grupos ideológicos dos anos de 1960 encenavam. Ora, se estávamos condenados a superar a modernidade, para onde se dirigiam as setas disparadas pelos artistas que dominavam os palcos? Que artefatos eles dispunham, que saberes os moviam, que técnicas de representação utilizavam e, sobretudo, que palavras de ordem foram eleitas para seu léxico de discursos e ações? Há, portanto, no bojo de todas essas injunções, propostas, intenções e gestos, ideologias e programas de atuação, tornando aquelas encenações disputas pela hegemonia de pensamento, tornando os palcos não mais uma pacífica exposição de figure brasiliensis em busca de alteridade, mas máquinas de guerra em confronto num campo de batalha. Em seu livro Impressões de viagem escreveu Heloísa Buarque de Hollanda, apoiada nas proposições de Walter Benjamin: “o conceito de técnica literária dá acesso à análise dos produtos literários em seus contextos e é através dele que se poderá dizer a função política dessa produção. Ou seja: em que medida ela estará reabastecendo o aparelho reprodutivo do sistema ou atuando para modificá-lo. A função política da obra – não deve, então, ser procurada nas imprecações que dirige ao sistema ou em sua autoproclamação como obra de transformação social, mas, antes, na técnica que a produz – na conformação ou não dessa técnica às relações literárias de produção estabelecidas. É nesse sentido que podemos
199. Jean Duvignaud. Sociologia del teatro, ensayo sobre las sombras colectivas. México. Fundo de Cultura, 1966, p. 34 e 41.
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dizer que a poesia populista não desempenhava, apesar de seu propósito explicitamente engajado, função revolucionária.”200 Em sua lúcida análise da produção artística do CPC, a professora investigou os diversos ângulos que o movimento articulou, concluindo em seu diagnóstico: “fracassada em suas pretensões revolucionárias e impedida de chegar às classes populares, a produção cultural engajada passa a realizar-se num circuito nitidamente integrado ao sistema – teatro, cinema, disco – e a ser consumida por um público já ‘convertido’ de intelectuais e estudantes classe média”.201 Solidário com tais posições, o que procurei evidenciar em meu ensaio foi como se deu por dentro a articulação desse discurso de esquerda que, arrotando uma retórica de ação efetiva não passou de ilusória tentativa de ser popular ou revolucionário. Não apenas por não saber se desvencilhar das armadilhas técnicas propostas pela poíesis artística e cultural, mas, sobretudo, por cultivar sua autoimagem enquanto engajamento, enquanto povo solidário com o verdadeiro povo a quem tal produção pretensamente se dirigia. Ao lado dessa produção engajada, outra ocorreu à sombra, sem alarde, organizada sem as presilhas da determinação política: a poesia concreta. Reunidos em torno da revista noigandres, os poetas de São Paulo organizaram o que de mais instigante o concretismo poderia produzir até aquele momento, apostando na nova sintaxe poética como trunfo criativo. Seduzidos pelo desenvolvimentismo de JK e, de outro, pressionados pela ascensão do movimento de massa nos primeiros anos 60, eles igualmente tenderam a orientar sua temática para ângulos mais “sociais”; embora conservando, durante todo o tempo, a riqueza e a complexidade estética que os distinguia. Sobre essa atuação, Heloisa Buarque de Hollanda arremata: “sem dúvida, a atuação da vanguarda concretista instalou definitivamente a necessidade de pensar não só a modernidade, mas tam-
200. Heloisa Buarque de Hollanda. Impressões de Viagem – CPC, vanguarda e desbunde: 19601970. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 27. 201. Idem, ibidem, p. 30.
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bém as relações do processo cultural brasileiro com a informação cultural estrangeira. Definitivamente, instalou-se um debate que vai desenvolver-se, de várias formas, até nossos dias: a questão mesma da modernidade.”202 De sorte que o tropicalismo, ao explodir em 1967, retomava não apenas os contra sentidos abertos pelo CPC como integrava, pelo viés crítico, a grande utopia dos concretistas em produzir uma arte matizada industrialmente e destinada a dialogar com a produção internacional. A arte brasileira da década de 1960 articulava, efetivamente, na visão do crítico Mário Pedrosa, tais elementos propulsores para um salto, como se verifica: Deduz-se de tudo que o que é primitivo ou elementar pode ser contemporâneo. Contemporâneo e primitivo – brasileiro. O mundo planetário aberto dos astronautas e o mundo imenso dos subdesenvolvidos do hemisfério sul são contemporâneos e contraditórios, como por sua vez é o Brasil em face do mundo. O Brasil é ao mesmo tempo um anacronismo e uma promessa. Para certos de seus artistas, a tarefa contemporânea consiste em expressar esse anacronismo, como se se tratasse de uma operação de catarse, para a seguir subsumi-lo ao universal. Outros, porém, partindo do universal contemporâneo implícito na promessa, aceitam, já agora, no trabalho criativo, o condicionamento de amanhã e não o condicionamento de ontem.”203 Em outro artigo, ao fazer um balanço da trajetória de Hélio Oiticica até então, o crítico carioca põe em relevo aquilo que se concretizava enquanto um largo passo naquela direção: “arte ambiental é como Oiticica chamou sua arte. Não é com efeito outra coisa. Nela nada é isolado. Não há uma obra que se aprecie a si mesma, como um quadro. O conjunto perceptivo sensorial domina. Nesse conjunto, criou o artista uma ‘hierarquia de ordens’ – rele-
202. Idem, ibidem, p. 43. 203. Mário Pedrosa. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. (Aracy Amaral, org.). São Paulo, Perspectiva: 1981, p. 238.
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vos, núcleos, bólides (caixas) e capas, estandartes, tendas (‘parangolés’) – ‘todas dirigidas para a criação de um mundo ambiental’. Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma experiência do tato, do movimento, da fruição sensorial dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade.”204 Ou seja, a instalação Tropicália, mais que apenas criar um ambiente, almejou ser um projeto artístico demandando desdobramentos, interações, atualizações - devires – que incrementassem um movimento artístico sensorial inovador de amplas proporções. Era Brasília reinventada, outra polis de porvires, outra face da utopia brasileira. Coisa que o tropicalismo efetivou, enquanto articulação múltipla de pulsões dispersas nos vários campos expressivos da arte. “A formação da arte brasileira é cada vez mais uma síntese entre o que vem de fora e o que surge aqui dentro. Mas isto é a própria imagem do crescimento de coisa ainda informe, embora já polifônica, que é a Nação Brasileira. O Brasil é ainda uma fome canibalesca de cultura que vem da estranja e a vontade contraditória, e ainda contestada, de desenhar no seu espaço uma fisionomia, uma forma que lhe defina o todo em face do mundo”205, prossegue o crítico, em suas considerações sobre Brasília e sua arquitetura. Estamos, portanto, no cerne daquilo que já foi situado como projeto construtivo brasileiro, um percurso experimental nascido na distante Semana de 22 e que seguiu, passo a passo, acrescentando, a cada vez e com maior tirocínio, expansão e intensidade, suas bases conceituais e de ação, onde o tropicalismo surge como florada legítima e avançada. O projeto construtivo brasileiro é uma máquina de guerra, como o perceberia Deleuze, potente o suficiente para enfrentar polêmicas e inimigos. Minha
204. Idem, ibidem, p. 207 e 208. 205. Idem, ibidem, p. 244.
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leitura precedente quis, nesse território, tão somente evidenciar um passo, sua articulação de sentido no platô cênico.206 Embora os argumentos e a linha de raciocínio empregados no texto permaneçam os mesmos, a presente edição corrigiu erros tipográficos, suprimiu palavras e alterou parágrafos, removeu expressões muito datadas que já não mais fazem sentido em relação às preocupações de época. As notas de abertura seguem a edição original e as de rodapé atualizaram algumas poucas citações. As referências bibliográficas permanecem, uma vez que, para serem atualizadas, demandariam citar uma imensa gama de títulos surgida em anos posteriores. Um glossário foi criado para facilitar as consultas. Para que essa nova edição viesse a lume não foram poucas as minhas resistências, vencidas graças a um diálogo muito significativo ao longo dos tempos com amigos a quem me alegra agradecer e mencionar: Antônio Edson Cadengue, Raimundo Matos de Leão, Aimar Labaki, Silvana Garcia, Jomard Muniz de Britto, Rosyane Trota, Sílvia Borelli, José Mário Ortiz Ramos (in memorian). Agradeço ainda a prestimosa colaboração de Marco Vasques e Álvaro Machado, além de meus bolsistas de pesquisa na fase de editoração do antigo material. Abril de 2016.
206. Em duas outras oportunidades externei minhas considerações críticas e historiográficas sobre muitos dos temas aqui tratados e, para tanto, recomendo ao leitor uma consulta a “A Questão Experimental: a cena nos anos de 1950-1970”, in História do Teatro Brasileiro, João Roberto Faria (direção), v. 2, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2013, pp. 215-239; e “O Sol do Novo Mundo: Hélio Oiticica e o quasi teatro ambiental”, in História, teatro e política, Kátia Paranhos (org.), São Paulo, Boitempo Editorial, 2012, pp. 157-179.
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Glossário
Ademar Guerra - 138 AI-5 - 95, 103, 149, 155, 169, 170, 178, 220, 229 Alfredo Mesquita - 19 Amir Haddad - 63, 64, 149 Antonin Artaud - 136, 138, 144, 145, 147, 201 Antônio Abujamra - 84, 90 Armando Costa - 79, 97, 132 Augusto Boal - 18, 35, 36, 37, 39, 41, 46, 47, 48, 50, 51, 54, 65, 66, 81, 88, 90, 97, 103, 104, 105, 115, 133, 138, 141, 226 Bakhtin - 143, 144, 145 Benedito Rui Barbosa - 48, 65 Berliner Ensemble - 83, 110, 126 Bernard Dort - 83, 126 Bertolt Brecht - 10, 26, 39, 48, 49, 53, 54, 72, 77, 78, 80, 81, 83, 84, 85, 86, 110 117, 138, 149, 152, 155, 156, 158, 160 Cacilda Becker - 19, 24 Caetano Veloso - 128, 137, 138, 149 Carcará - 97, 100 Carlos Estevam Martins - 72, 73, 75, 76, 78, 182 Centro Acadêmico XI de Agosto - 62, 210 Chacrinha - 139 Chico Buarque de Hollanda - 134, 140
Chico de Assis - 41, 50, 72, 77 Centro Popular de Cultura - 9, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 85, 93, 96, 104, 105, 115, 132, 182, 193, 211, 226, 233, 234 Darcy Ribeiro - 75 Décio de Almeida Prado - 18, 27, 28 EAD-Escola de Arte Dramática - 28, 31 Edu Lobo - 104, 138 Ernesto Che Guevara - 65, 71, 120, 139, 230 Eugênio Kusnet - 91 Fauzi Arap - 10, 183, 187, 193 Fernando Peixoto - 18, 92, 110, 163, 187, 191, 201, 202 Ferreira Gullar - 75, 79, 97, 100, 113, 132, 133, 199 Flávio Império - 52, 73, 83, 87, 88, 140, 149, 163 Flávio Migliaccio - 33, 41, 50, 52, 72 Flávio Rangel - 45, 74, 101 Franco Zampari - 18, 19, 22, 33 Geraldo Vandré - 149 Germano Coelho - 74 Getúlio Vargas - 128, 133, 205 Gianfrancesco Guarnieri - 10, 33, 34, 40, 41, 43, 45, 46, 104, 133, 138, 152, 163, 187 Gilberto Gil - 138, 142, 149 Glauber Rocha - 124, 128, 149 Górki - 28, 91, 110 Grotowski - 136, 138, 139, 162, 167 Grupo Opinião - 9, 10, 47, 95, 96, 102,103, 131, 151, 203 György Lúkacs - 105, 199 Heleny Guariba - 209 Hélio Eichbauer - 123 Hélio Oiticica - 136, 179, 234 Heloísa Buarque de Hollanda - 14, 232 Henriette Morineau - 19, 91
ISEB - 55, 56, 57, 62, 72, 73, 93, 98, 125, 203 Ítala Nandi - 163 Jânio Quadros - 49, 69, 71 Jean Genet - 137, 158 João das Neves - 78, 97, 132, 151 João do Vale - 97 João Goulart - 69, 71, 95 Jorge Andrade - 41, 74, 88, 138 José Celso Martinez Corrêa - 48, 63, 64, 66, 67, 68, 110, 123, 124, 125, 126, 134, 140, 141, 146, 147, 155, 156, 159, 161, 163, 164, 166, 169, 183 José Renato - 27, 28, 32, 33, 34, 35, 36, 38, 40, 41, 44, 46, 47, 48, 50, 51, 83, 84, 133 Juscelino Kubitschek - 49, 56, 63, 125, 139, 233 Karl Marx - 25, 96, 148, 159 Lacan - 146, 147, 160 Lei de Segurança Nacional - 95, 149, 160, 181 Leon Hirshman - 73, 79 Living Theatre - 136, 165, 167 Luciano Martins - 170, 173, 176, 178, 179, 192, 193, 196, 229 Luís Carlos Maciel - 123, 179 Maria Bethânia - 133 Maria Della Costa - 24, 26, 45, 114 Maria Fernanda - 90, 166 Mário Pedrosa - 231, 234 Mário de Andrade - 19, 127 MCP - 74, 78, 81, 93, 104, 211, 215 Miguel Arraes - 74 Molière - 88, 103 Nara Leão - 97, 99, 100, 101 Nelson Werneck Sodré - 98, 99, 101 Nelson Xavier - 41, 72, 78 Noigandres - 30, 136, 173, 233 Núcleo-Arena - 153, 211
Oduvaldo Vianna Filho ou - 33, 34, 41, 46, 72, 73, 78, 97, 101, 109, 113, 132, 203 Orlando Miranda - 134, 204, 205, 206 Oswald de Andrade - 123, 128 Otávio Ianni - 69, 71, 102 Paulo Autran - 24, 101, 206 Paulo Freire - 74, 81 Paulo José - 73, 85, 86, 88, 89 Paulo Pontes - 97, 132, 203, 204 PCB - 34, 46, 57, 67, 77, 93, 96, 98, 99, 100, 102, 103, 108, 110, 114, 119, 230 Plínio Marcos - 132, 135, 138, 139 Regis Debray - 120, 149 Renato Borghi - 64, 68, 123, 142, 163, 164, 166 Roberto Schwarz - 102, 121, 229 Roland Corbusier - 46 Ruggero Jacobbi - 25, 26, 29, 31 Ruth Escobar - 137, 140, 152 Sábato Magaldi - 35, 41, 134 Sadi Cabral - 91 Sartre - 48, 63, 64, 66, 67, 180, 214 Sean O’Casey - 38 Semana de Arte Moderna - 127 Sérgio Britto - 24, 28, 51 Sérgio Ricardo - 133, 138 Serviço Nacional de Teatro - 47, 86, 205, 207, 208, 213, 214 Stanislávski - 24, 25, 31, 35, 39, 44, 46, 52, 54, 88, 91, 117 Teatro Brasileiro de Comédia - 8, 10, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 30, 32, 33, 37, 40, 45, 50, 51, 58, 65, 74, 85, 88, 89, 91, 101, 114, 116, 208 Teatro de Arena - 9, 10, 13, 18, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 37, 47, 73, 81, 97, 107 Teatro Oficina - 10, 13, 47, 48, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 74, 75, 89, 90, 91, 92, 93, 103, 109, 110, 123, 124, 125, 126, 128, 201 Teatro Paulista do Estudante - 25, 33, 34, 35, 40
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Tennessee Williams - 21, 27, 28, 31, 64, 90 TUCA - 122, 149 TUSP - 123, 149 UNE - 62, 70, 71, 72, 73, 75, 77, 78, 122 Vera Gertel - 34, 41, 72 Victor Garcia - 137 Walter Benjamin - 80, 141, 143, 216, 223, 232 Zé Keti - 97 Zulmira Ribeiro Tavares - 41, 52, 53
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