184 34 2MB
Portuguese Pages 219 Year 2020
MD Magno
SóPapos 2 0 1 8
SóPapos 2 0 1 8 Este livro transcreve a fala de MD Magno em 2018. Continuam aqui seus SóPapos, iniciados em 2011 (“deixando correr os papos no aleatório, mas sem jogar conversa fora”), após os Seminários (1976-1999) e os Falatórios (2000-2010). É a conversa sobre a Nova Psicanálise, ou NovaMente, desenvolvida por ele desde a década de 1980: reformatação que unifica o aparelho teórico-prático da psicanálise e o mantém em consonância com os avanços no campo do conhecimento. Os papos começam se referindo a Antígona: “Não existe lei alguma de mundo que seja da mesma ordem da Lei Absoluta. Todas são relativas”. É no âmbito dessa relatividade que “fazemos análise para tomar decisão, e não para chegar a alguma verdade. Ao tomar a decisão, estamos subditos à decisão que tomamos – isto é a Cura”. A decisão assim definida é um expediente necessário para encarar o fato de que, em nossa época, “estão todos fugindo para formações denegatórias. O que vemos, então, são os efeitos contemporâneos da pressão progressiva da tecnologia e a reação regressiva a esta pressão – coisa que vai durar e doer muito ainda”. O panorama acirrado e dividido que vemos desenrolar-se agora em 2020 já era evidente antes: a matança psíquica substituiu a matança física. Daí Magno dizer que “é preciso parar de pensar que há gente boazinha. Não sabemos, desde Freud, que analisandos usam a transferência para atrapalhar a análise e derrubar o analista? Uma neurose é uma paralisia radical, odiosa e odienta”.
A tendência do século XXI não é paranoica como foi a do século XX, “e sim Progressiva – aquilo que chamavam perversão –, para bem e para mal”. No mais, “a dissolução das paranoias está deixando as pessoas perdidas, e os movimentos são progressivos”, em direção ao Quarto Império. Ao contrário da falta, “o excessivo é o substrato desta espécie, só que estamos num momento em que as formações de contenção perderam a moral”. Não se sabe o que acontecerá, mas uma coisa parece certa: “não há como parar a tecnologia”. Em vários papos, o autor se detém na obra de James Joyce. Seu procedimento difere daquele de Lacan, que o reduziu à estrutura do sintoma. A referência ao Finnegans Wake é antiga em Magno, que, em 1982, dele retirara o termo Revirão (a operação clínica básica da Nova Psicanálise). A ênfase agora vai para a indicação desse texto como “a emergência e a formulação do Quarto Império”. Em 2019, essa perspectiva continuará a se desenvolver e ganhará um título: Joyce: Sense in Thomas. É o Joyce sem sintomas, o Joyce promotor da dissolução sintomática das línguas, como exemplo de dissolução do Terceiro Império (referência a Tomás de Aquino). E os papos vão se desenrolando sobre a psicanálise: ser a ciência do Inconsciente, e não ciências humanas; ser uma desgovernética; visar um processo permanente de Indiferenciação, sem apego a qualquer tipo de legislação; e mais, não poder tomar partido, pois sabe que tudo está partido. O analista é uma nuvem de formações diante de outra nuvem de formações; a Técnica da psicanálise é a sustentação da Postura do Analista (vocação da Indiferença) e acolhimento das formações do analisando (para a metamorfose)...
SóPapos
2018
MD Magno
SóPapos 2 0 1 8
NOVAmente editor a
é uma editora da
Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2020 MD Magno Texto preparado por Nelma Medeiros Patrícia Netto Alves Coelho Potiguara Mendes da Silveira Jr. Revisão Paula de Oliveira Carvalho Diagramação e editoração eletrônica: Wallace Thimoteo Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Magno, MD Sópapos 2018 [livro eletrônico] / MD Magno. -- Rio de Janeiro : Associação Cultural Univercidade de Deus - UD, 2020. PDF
ISBN 978-65-88357-01-9
1. Psicanálise 2. Psicologia I. Título.
20-45385
CDD 150 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427 Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 – Jacarepaguá 22763-260 Rio de Janeiro – RJ Tel.: (021) 2445-3177 www.novamente.org.br
O mundo efetivo é uma ilusão de ótica e de ética. A moral é uma idiossincrasia de degenerados, que provocou danos incontáveis. Nietzsche ...His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead. Joyce, The Dead ...I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes. Joyce, Ulysses ...A way a lone a last a loved along the... ...riverrun, past Eve and Adam’s... Joyce, Finnegans Wake
Corso/Ricorso Vico
SUMÁRIO 1, 15 Antígona em face d’Alei e do reconhecimento da relatividade das leis do mundo – Primado da decisão sobre a verdade na análise. 2, 17 Regime do omo sapiens traduz situação contemporânea de mapeamento total e permanente das formações – Fim da privacidade forçará reconhecimento das diferenças – Novas posturas de conhecimento. 3, 23 Sobre-humano de Nietzsche e Quarto Império – Formações denegatórias contemporâneos são efeitos da pressão progressiva da tecnologia – Risco e desastre. 4, 28 Postura da Nova Psicanálise é: crença zero – Postura da Gnose é de conhecimento, não de crença – Ciência contemporânea é parte da gnose – Bifididade, oposição e negação no Revirão – Existência in natura das oposições – Negação é operação do Secundário. 5, 30 “Si vis pacem, para bellum” – Século XX é paranoico e delirante – Tendência do século XXI é progressiva – Quarto Império: entre a paranoia do século XX e a progressividade do século XXII. 7
6, 33 Comentários sobre o livro O fuzzy e o techie, de Scott Hartley – Complementaridade entre tecnologia e trabalho mental – Mente em câmera lenta e mente em câmera rápida. 7, 37 Paranoia epistemológica do século XX desconsiderou o Primário – Retomada dos estudos sobre o Primário no século XXI – Comentário sobre o livro Lacan e Lévi-Strauss ou o retorno a Freud, de Mark Zafiropoulos – Primário é formação determinante na tópica Primário/Secundário/Originário – Indiferenciação pode alcançar o Primário – Etossistema e formações primárias. 8, 40 Questões sobre a temporalidade da mente – Câmera lenta permite ultrapassar os faitdivers e acompanhar sequência de acontecimentos – Diferença homem/máquina desde sempre indiscernível – Indiscernibilidade vai se encontrar com a máquina. 9, 44 Transformação de recalque em juízo foraclusivo – Comentário sobre o livro Rápido e devagar: dois modos de pensar, de Daniel Kahneman – Pensamento rápido é composto de etossoma e neo-etossoma – Pensamento devagar opera com e no Secundário – Indiferenciação em face da referencialidade excessiva do Primário, da reificação dos códigos e da regressividade das leis – Análise como processo de desreferenciamento – Quarto Império é desvalorização radical das narrativas e prestígios do século XX. 10, 49 Joyce, sintoma de Lacan – Ulysses descreve o término do Terceiro Império – Fórmula do Quarto Império em Finnegans Wake – Sim (de Molly Bloom) é 8
SóPapos 2018
chamada para Quarto Império – Antropofagia é invenção de postura de arte – Macunaíma como descrição do brasileiro. 11, 56 Estruturalismo operou sobre o procedimento da falta – Constituição faltosa é explicada pelo excesso dos processos desejantes – Sexo, propriamente dito, é quebra de simetria impossível de apagar. 12, 60 Consequências do movimento progressivo da espécie – Estatuto da guerra no Quarto Império: disseminada, permanente e deslocada para o Secundário – Movimento progressivo e sua referência à tecnologia – Poder estacionário no campo social, na cultura e na política – Antecipação de Freud em relação às questões da entropia. 13, 64 Conceito de Terceiro na Nova Psicanálise – Inconsciente, alteridade radical e análise repensados a partir do terceiro. 14, 67 Comentários sobre o livro A Metamorfose do Mundo, de Ulrich Beck – Metamorfose e progresso no Creodo Antrópico. 15, 70 Lacan e a paranoia do século XX – Postura clínica após derrocada do lacanismo – Reconstrução da teoria e da prática clínica dispensa categorias de sujeito e objeto.
9
16, 76 Ex-citação, In-citação e Re-citação como modelo de transa entre formações – Ética da psicanálise e do psicanalista é mística. 17, 81 Regime absoluto e regime de legalidade d’Alei – Vontade de fundação eclesiástica diante das incertezas – ‘Cinco Impérios’ é aparelho de significação sobre sintomas – Necessidade de conversa entre conhecimento e tecnologia e utilização ad hoc de formações no Quarto Império. 18, 88 Sentido = Haver desejo de não-Haver – Sentido como resultante de eventos que nos acontecem no Haver – Deus sive Habere – Análise é reconhecimento de que Sentido é do Haver – Excesso e ilusão de sentido na paranoia do século XX – Ilusão de livre arbítrio se explica pela possibilidade de HiperDeterminação – Analiticidade e disponibilização em psicanálise. 19, 94 IdioFormações são consciência do Haver – Pessoa é nuvem de formações com possibilidade de reconhecimento (da nuvem) – Posição da psicanálise diante do problema do sentido – “Sentido de cada um é resultante de um conjunto fortuito de formações”. 20, 100 Unicidade e multiplicidade (fractalização) pulsional – Ficções de big bang e big crunch dos cosmólogos – Conjecturas de físicos e cosmólogos sobre a constituição material do universo – Hiperdeterminação, sobredeterminação e ilusão de sujeito.
10
SóPapos 2018
21, 103 Sobredeterminação, HiperDeterminação e liberdade – Problema da liberdade é legítimo no regime das parcialidades e da luta de interesses. 22, 108 Morfoses (Estacionária, Progressiva e Regressiva) consideradas a partir do poder e grau do recalque – Autismo como deficiência cerebral e como recusa de mundo. 23, 111 Duas implicações da Teoria das Formações: psicanálise como ciência do singular e escuta clínica ad hoc – Recusa é denegação violenta, e não diretamente da ordem do recalque. 24, 118 Questões sobre prótese paraespontânea e secundária – Vetores do Secundário: imitação do Espontâneo e a articulação fora da analogia. 25, 122 Sobre graus e funções do HiperRecalque. 26, 127 Graus de resistência à pulsão de morte – Distribuição de renda x Sustentabilidade da dignidade mínima da Pessoa. 27, 131 Homogeneidade do Haver é em última instância – Relação entre a Tópica (Primário, Secundário e Originário) e as noções de Artifício Espontâneo e 11
Artifício Industrial – “A Identidade da espécie é o Revirão” – Questões sobre a analogia entre Inconsciente e computação. 28, 137 Aproximações entre computação quântica e bifididade – Quarto Império é condição de surgimento de prótese análoga à bifididade. 29, 140 “O que é o funcionamento de uma análise sem sujeito e no regime da transa de formações?” – O sentido é global e só-depois – Sobre a mestria no uso da droga.
30, 146 Questões sobre o sintoma brasileiro na cultura, na música, na política, no teatro, na psicanálise. 31, 153 A matança psíquica substituiu matança física – Crítica ao conceito de livre arbítrio e revisão da noção de liberdade – Estado mínimo: regular conflitos sem anatematizar sintomas. 32, 156 Acontecimento é suspensão radical – Comentários sobre Lance de dados, de Mallarmé, em relação à HiperDeterminação – “Todo ato de Criação é do mesmo nível da análise” – Noção de paixão a partir da transa de formações.
12
SóPapos 2018
33, 162 Sobre a postura e a técnica da psicanálise – Técnica NovaMente: sustentação da postura do analista (vocação da Indiferença) e acolhimento das formações (para a metamorfose). 34, 167 Psicanálise como teoria da comunicação (impossível) – Implicação recíproca entre os conceitos de Vínculo Absoluto e IdioFormação – Emergência de Quarto Império: vinculação absoluta e desvinculação relativa – A condição de reviramento vincula absolutamente.
35, 175 Efeitos gnômicos da alta circulação tecnológica – O ficcional nas ciências duras – “A cura é mortal” – Quinto Império como retorno do Primeiro Império em outro patamar. 36, 180 Lugar da psicanálise: interstício entre Ocidente e Oriente – Razões para novo manejo da análise. 37, 183 Transa de formações em lugar de linguagem, sujeito e objeto – Esclarecimentos sobre o conceito de homogeneidade – Relação entre fundação mórfica e sexualidade. 38, 188 Clínica Geral depende da Postura do Analista – Creodo Antrópico como chave de leitura para entrada do Quarto Império – Considerações sobre Transmissão (por contágio) e Informação (Oespírito). 13
MD Magno
39, 194 Comentários sobre movimentos regressivos no Brasil e nos Estados Unidos – O Ocidente é científico – Impossibilidade de consistência em função do Revirão. 40, 198 Comentários sobre o fim d a e spécie h umana – Revirão: q ualquer situação levada adiante demais virará ao contrário. 41, 203 “Toda vez que houver suposição de saber em outrem é transferência” – Yin / Yang é representação do Plano Projetivo com dois furos (unilátero e bilátero) – Recalque como resultante de luta entre formações – A posição política do psicanalista é Progressiva. Anexos Sobre o Autor, 211 Ensino de MD Magno, 212 DATAS Os números abaixo correspondem às seções e datas dos SóPapos 2018 realizados na UniverCidadeDeDeus, sede da NovaMente: Seções: 1 e 2: 06 janeiro – 3: 13 janeiro – 4: 17 janeiro – 5: 17 fevereiro – 6 e 7: 03 março – 8 e 9: 17 março – 10: 07 abril – 11 e 12: 21 abril – 13 e 14: 12 maio – 15 e 16: 26 maio – 17: 02 junho – 18 e 19: 09 junho – 20 a 22: 16 junho – 23 e 24: 23 junho – 25 e 26: 30 junho – 27: 07 julho – 28 e 29: 21 julho – 30: 28 julho – 31: 11 agosto – 32: 25 agosto – 33: 01 setembro – 34: 29 setembro – 35: 20 outubro – 36 e 37: 27 outubro – 38: 10 novembro – 39: 17 novembro – 40: 24 novembro – 41: 08 dezembro. 14
1 Vocês estão falando sobre Antígona, sobre a questão da Pessoa e da Lei. Diz ela que há uma Lei Suprema a que ela obedece: há que se submeter a Ela, e não às leis do mundo, às regras, que são suas imitações, são o interdito como imitação do Impossível. Não existe lei alguma de mundo que seja da mesma ordem da Lei Absoluta. Todas são relativas. Para alguns autores, Antígona diz o que diz por se tratar de seu irmão. Não! Ela está dizendo a Creonte, seu tio, que a lei dele é absolutamente relativa. (É o que vemos ao abrir os códigos, ou ao ouvir certos animais do Congresso Nacional: leis absurdas, mesmo imbecis. Aliás, não era de se esperar outra coisa). Depois, Creonte se ferra justo por não relativizar o poder. Não se ferra por desobedecer à lei, e sim por não a tratar como relativa no sentido de repensar, de negociar. É igual a um animal desses, de estado islâmico, que toma um ditame qualquer do Alcorão e o torna absoluto, sem possibilidade de conversa. É o fanatismo da lei. • P – Em seu Falatório de 2007, A Rebelião dos Anjos, você fala em três posições possíveis da Pessoa quanto à Vocação da Lei e da justiça: Invocação, Equi-vocação e Re-Vocação. Sófocles foi genial ao apresentar três passos e dizer tudo. Faz isto brilhantemente, sem fazer filosofia, o que é melhor ainda. Muitos autores dão opiniões, fazem interpretações dos dois primeiros passos, e poucos falam de Édipo em Colona. É difícil achar ali como acham nos dois anteriores. Acham de Édipo Rei e de Antígona certas coisas que parecem nada ter com Édipo em Colona, que considero o melhor de todos. Cego, apoiando-se nas filhas, e não morrendo – ele vira luz. • P – Estávamos retomando esse Falatório de 2007 para tratar do artificialismo do sistema jurídico. Temos dois sistemas jurídicos, o romano e o germânico. São diferentes 15
no texto, mas muito parecidos quanto à postura. O caroço do direito romano, e não só dele, é que a necessidade da decisão se sobrepõe à necessidade da verdade. Não há que ser verdade, há que decidir. Já busquei explicar isto dentro da psicanálise, e não sei se entenderam bem. As pessoas, em análise, ficam esperando que a análise vá até o ponto de convencimento em que o sintoma se afrouxe. O que lhes digo é para tomarem a decisão, isto é que é importante. Fazemos análise para tomar decisão, e não para chegar a alguma verdade. Ao tomar a decisão, estamos subditos à decisão que tomamos – isto é a Cura. Aquele que quiser procurar a verdade, morrerá procurando – sem tomar decisão alguma. É a procrastinação do obsessivo: não toma decisão, e fica discutindo para a frente. É preciso assustá-lo, mandá-lo parar com aquilo de modo brusco para ver se entende. • P – A característica do Morfótico Estacionário é acreditar que, um dia, se revelará a verdade da situação que o fará entendê-la e dela sair. É o caso de lhe dizer que a verdade que procura é que é melhor andar depressa, pois ele vai morrer. • P – O pedido de justiça para ele, é pedido de acerto de verdade. A verdade que ele quer, e nem está confessando. Em última instância, à ordem jurídica pouco importa que seja justo, e sim que seja decidido e nomeado. Por isso, pessoas vão até à pena de morte, conforme dizem, inocentes. Isto porque a verdade tem limite – Chega! Parou aqui! – e a justiça é um pedido, jamais a teremos. O limite é: Há que continuar o jogo! É igual ao que diz o artista do palco: O show tem que continuar, não interessa o que acontece. Se ficarmos, como os filósofos, discutindo durante o resto da vida, não iremos a lugar algum. Tenho uma definição definitiva para a filosofia: Muita punheta, e pouca porra! Uma das diferenças radicais entre psicanálise e filosofia é ter claro que há um momento que é de decisão. É, como dizia Freud, dar uma interpretação, ela ficar valendo e acabou. Se não comprarmos esta decisão, ficaremos o resto da vida ruminando. Chegou-se a alguma conclusão que dá para o jogo. Quando não der mais, chega! Essa decisão, em análise, é tomada quase por esgotamento. Não é de araque, pois 16
SóPapos 2018
aquilo foi trabalhado, trabalhado – e agora chega! Que volte na “próxima encarnação”, pois nesta acabou. O que mais vemos por aí são instituições ditas psicanalíticas ficarem até o fim mastigando o chicletão e procurando a verdade absoluta.
2 Quero lhes trazer algo que achei interessante no recente número anual da revista The Economist, com o tema The world in 2018. É um prognóstico do mundo em várias áreas, que traz uma entrevista ao mesmo tempo excelente e assustadora. Lá para trás, nas velhas antropologias, inventaram o termo homo sapiens sapiens – o que é uma descarada mentira ao quadrado – para significar nossa espécie. Quando, em 2013, fazia aquelas conferências na Universidade Candido Mendes, passou-me pela cabeça a ideia de Homo Zapiens. (Ideia que, depois, Aristides Alonso aqui presente, me disse que já existia, que já havia sido publicada... É igual a Santos Dumont, que pensou estar inventando o avião). Vejo agora, nessa revista, Kai-Fu Lee, CEO da Sinovation Ventures Artificial Intelligence Institute, escrevendo um artigo com a ideia de omo sapiens, sem h, que é o que vem aí superando o homo sapiens. Para ele, Omo quer dizer: on-line misturado (merges with) com off-line. Engana-se quem pensa que é preciso estar on-line para ser alguém invadido, devassado... O acúmulo de data feito pela computação misturará os dois campos acabando com toda e qualquer privacidade. Isto como algo a acontecer daqui a pouco. Satélites e drones 17
já têm capacidade de invasão por fora, de, sem entrarem, saber o que estamos falando aqui agora, por exemplo. Qual é a consequência “ética” disso? E a consequência analítica? De início, as pessoas se apavoram com a invasão. Este é o lado negativo, mas acho que há um lado positivo. Primeiramente, o Sujeito vai para o lixo, tecnicamente, acabou. É só um acúmulo de formações, a coleção absoluta das formações em jogo, sem sujeito algum. Além de todos estarem com a bunda na janela, qual é a consequência disso? De saída, se todos estiverem com ela na janela, a tolerância terá que aumentar. Depois, acaba a tolerância e começa o reconhecimento da diferença, com todo respeito. Se não, não dará para conviver. Estamos ainda num período com as formações se organizando para fugir para trás. Dizem que a direita, os conservadorismos, etc., vão voltar. Não vão! É uma aparência de fuga, e todos quebrarão a cara, pois o acontecimento de que o chinês do artigo está falando é dissolvente demais. Como digo, haverá umas décadas de barbarismo retrogressivo, mas não se aguentará. O movimento Progressivo de que falo não é democrático ou coisa que o valha. A ideia de democracia, aliás, não canso de repetir, já faliu há tempo, acabou. O que chamei de Diferocracia diz respeito à constatação de que agora tudo melou, e trata-se de encontrar o tipo de transa adequada. Vai doer para chegar, mas é melhor estarmos precavidos sem correr para trás: acelerar para a frente, ir entendendo. Ficará esquisito porque, à volta, tudo parecerá estar contra esta visão. Quem foge para a frente é a minoria pensante. O fenômeno é que, ao dizermos que “todos são iguais”, estamos mentindo. Primeiramente, porque Igualdade é algo impossível. O que digo é que Identidade Absoluta, em última instância, esta, é possível. Ninguém tem sintomas absolutos, universais, cada um é um macaco diferente. Por isso, o princípio dito democrático é falso, não há democracia em lugar algum, e há gente que é muito mais igual do que outras... Mesmo insistir na democracia é fuga para trás. Vamos voltar para a Grécia? Vejam que o Homo Zapiens de que falei é alguém cuja vida está on-line, o que produz efeitos os mais diversos. Já o Omo Sapiens é off-line não como efeito do on-line, e sim como a compleição completa da produção de data. Do mesmo modo eletrônico, tudo igual: a pessoa não precisa estar 18
SóPapos 2018
on-line para ser mapeada, pois o computador continua ligado em cada um. O computador não quer tudo o que a pessoa já é, quer mais, quer tudo que a pessoa pretenda ser e que esteja fazendo. São meios de acumular data sem necessidade de estar on-line – este é o ponto fundamental. Uma coisa é capturar as pessoas que estão on-line, outra é ter um sistema de data que nada tenha a ver com on-line. Os dois se misturam. Isso ficará misturado e resultará numa terceira coisa que é radical, que nem precisa estar on-line, pois já misturou. Ou seja, não é preciso estar zapeando o mundo, pois o mundo está catalogando a pessoa. Consequência: cada um perde radicalmente sua privacidade. Observem que, apenas por estarem on-line, as pessoas já tinham borrado a fronteira público-privado. Antes, havia um comportamento em casa e outro, controlado, na rua. Hoje, já se faz qualquer coisa em qualquer lugar. Logo, veremos gente defecando nas calçadas. Não estou falando de patrimonialismo, que é o pessoal tratar o patrimônio público como se fosse propriedade particular, e, sim, que a situação informacional em que vivemos permitiu a denúncia radical dessas práticas a que temos assistido diariamente. Não era possível isto acontecer antes. Alguém levanta o dedo e a coisa se mexe informacionalmente de tal modo que não dá mais para o gato esconder o rabo. O que temos, ao contrário de antes, são rabos escondidos com os gatos de fora. Não se trata de uma transformação moral, e sim de efeito da mistura de informação. Estão todos falando de tudo, ainda em regime on-line, mas a obtenção de dados não passa mais apenas por capturar-se alguém dentro de sua rede. Os dois, on-line e off-line, estão se misturando, resultarão num mapeamento radical... e nunca mais teremos “sossego”. O que se fará com a psicanálise quando isso for total? Será ainda preciso de analistas, ou eles mudarão de função? Se cruzarmos os dados excessivos de uma pessoa com tudo que ela faz on-line, esta será uma atitude quase que analítica. Tudo estará na cara. Já pensaram em como será quando o computador quântico estiver disponível? O efeito bom que vejo é, se todos são sem vergonha, estamos todos bem quanto a nossas relações. Não ficaremos falando dos outros, pois nosso rabo também estará visível. Serão computados dados segundo a captação de 19
dados, os quais serão cruzados com a transa da pessoa dentro da internet. Aí então se poderá dizer que “o rei está nu”. O mundo caminha nessa direção e as multidões caminham para trás, mas acho que serão dizimadas, vão para o lixo, mesmo que demore algum tempo. Os campos não serão mais de concentração, e sim parques humanos, como chamou Peter Sloterdijk. Para que não sejam completamente dizimadas, será preciso uma forma de governo que invente algo do tipo bolsa-sobrevivência. O mundo produtivo deverá montar algum expediente para manter uma multidão que não serve para nada. Vejam que a ideia é de inutilidade total dessa gente. E, para conseguir o Parque, há que pensar em coisas como forçar uma contenção da natalidade, uma esterilização. Não há condição de continuar a reprodução nos moldes que temos hoje. Talvez isso dure décadas. Acho também que, uma vez essa multidão desaparecendo, a gente que sobrará do lado de cá não terá uma atitude religiosa, e muito menos eclesiástica. Não colará mais. O que vencerá no conceito geral é a Engenharia, a engenharia mental, de produção... Engenharia vem de engenho, isto é, de inteligência funcional. Basta ver a cabeça de um Leonardo da Vinci, é de engenheiro. Isto, mesmo quando pinta a Mona Lisa. É uma cabeça de produção de montagens. É o Marcel Duchamp do Renascimento. Já Michelangelo é alguém sensível, com algumas taras especiais, mas não é um engenheiro. É muito esquisito alguém tomar um bloco de mármore e de lá – por via di levare, como diziam – tirar um Davi. • P – A fase em que estamos do capitalismo parece que, cada vez mais, prescinde do trabalho humano. “A gente somos inútel”, já diziam os roqueiros dos anos 1980. • P – Retomando o ponto do on-line/off-line, podemos dizer que nos encaminhamos para uma sociedade hiper-cibernética em que, conectados ou não, tudo que passa vira informação. Basta ver que, hoje, mesmo no meio da multidão, dada a profusão de câmeras captando os rostos, não é mais possível esconder-se. A sutileza do raciocínio do chinês está em que não é necessária uma conexão on-line para que os dados se produzam. É da mistura dos dois que 20
SóPapos 2018
temos o omo sapiens. Vejam que se fala hoje de grandes corporações que dominarão tudo pois terão os dados. Não terão. O que terão será a resultante. Antigamente, pensávamos em termos de monopólio, mas será monopólio de quem? Aquele que estará recebendo lucro dos dados é tão obediente quanto os outros do ponto de vista da apropriação do processo. Ele não é dono, o processo está acima dele. • P – O negócio da educação no Brasil – no restante do mundo também – está na mão de poucas pessoas. É um dos negócios que mais se expandiu. Junto com ela, vende-se a ilusão de se conseguir emprego. Assim, a estupidez será unificada. Não deixa de ser uma boa maneira para lidar com ela: é uma estupidez só. Vende-se também a ilusão de status. Dentro da universidade, eu lá presente desde aluno até o final de carreira como professor, acompanhei a passagem. Tive que lidar com ela. Estudei numa universidade careta, na qual catedrático era catedrático e tínhamos que calar a boca, pois quem sabia era ele. A certas perguntas respondiam que era matéria de vestibular, tínhamos que nos virar sozinhos para ter resposta. Minha turma tinha quinze alunos. Isso foi mudando, abriram a cancela do ponto de vista político, e o grande número entrou. Quando comecei como professor, dava aula do modo que aprendi, não respondia a perguntas imbecis já que os alunos tinham que saber a matéria dos períodos anteriores. Já eram quarenta os alunos em sala, mas a aula era para todos. Depois, passei a dar aula para cinquenta por cento da turma, ao resto apenas dava nota. Depois, para trinta por cento, e assim foi até chegar o dia em que não havia a quem dar aula. As falcatruas de secretaria eram algo absurdo. E quando fui diretor de uma faculdade privada, alguns professores vieram reclamar que davam nota para alguns alunos e ela era aumentada na secretaria. Foi na época da ditadura militar que essa situação começou. Abriram as portas para acalmar os ânimos da garotada. O importante, hoje, é saber que a universidade se tornará supérflua. Há que voltar à Idade Média on-line. Serão necessários apenas alguns registros de cobrança, de comprovação, etc. As profissões que precisam realmente de aprendizado técnico e prático serão ensinadas nas grandes corporações, e não na escola. Há grandes hospitais que já têm sistemas próprios de formação em medicina. 21
Ainda fingem ter características universitárias, mas o que querem é produzir seus médicos. A Idade Média era assim. O lixo cresceu demais. É preciso de atitudes radicalmente críticas. Estudar filosofia não serve nem para fazer filosofia. Quando tinha meus dezesseis anos, eu já tinha lido quase todo o Platão e admirava Sócrates. Depois, passei a achá-lo um idiota que disse “só sei que nada sei” e fez um enorme esforço para provar que, pela razão, é possível levar as pessoas à razão. Leva-se à merda, isto sim. Vejam que, aqui, com a boa vontade de vocês, tenho mais de cinquenta volumes publicados. Para quê, hein? Para a produção – porque, depois, há que passar a limpo. Quando alguém está produzindo, é razoável vir um lixo enorme junto, mas, repito, há que passar a limpo, destacar as chaves que servem para isso e aquilo assim-assim, e acabou. O parto foi difícil, mas a recepção tem que ser fácil. A gente do futuro não quererá passar por essa biblioteca de monstruosidades. Não que as pessoas quererão ser tolas e ignorantes, e sim que saberão de outro modo, simplificado. Uma de minhas tentativas com essa coisada que produzi foi que a psicanálise ficasse portátil, pequena. É natural que Freud tenha feito tudo que fez, pois estava perdido no meio da floresta tentando arrumar um monte de coisas. Hoje, não é mais preciso. Por isso, estudamos Freud e reduzimos. Em vez de falarmos de neurose disso e daquilo, trata-se de uma coisa só: Morfose Estacionária, por exemplo. Então, com o quê tal pessoa estacionou? Há que perguntar para ela para saber, sem precisar daqueles nomes todos. O lixo de Lacan, este, é enorme. Podemos aceitar que o autor do processo se perca e traga coisa demais, mas temos que passar na peneira para ver o que sobrou. Precisamos nos acostumar depressa com o futuro. Talvez, para adiante, a psicanálise não mais exista. Ela será uma postura mental diante dessa zorra toda sobre a qual lhes falei hoje. Pode ajudar uma pessoa a se organizar, a organizar suas taras, seus sintomas... Deve ter alguma prática de utilizar certo saber, que certamente será minimalista, para ajudar as pessoas a se encaixarem. A computação quântica, por exemplo, pode fazer um remanejamento das cabeças. O que ela promete é o que faço com o Revirão, isto é, apontar para uma mente que funciona assim. E há algo que não sei se será conseguido, e 22
SóPapos 2018
muito menos rapidamente, que é, apenas tecnologicamente, alguém chegar a uma postura mental compatível com o que chamo de psicanálise. Isto não é da ordem de algum saber, é, sim, uma ascese – coisa que neurociência e outras do tipo não conseguem produzir. O que já é ótimo é estarem ocupados com as redes de conexões, e não com as localizações. Lacan já dizia que la psychanalyse durera ce qu’elle durera. É, aliás, uma frase que nada quer dizer, mas ele já pensava que ela podia morrer.
3 Lacan dizia que ele próprio era psicótico. O tal rigor teórico funciona como uma psicose, pois nunca podemos nos afastar dele. É quase um HiperRecalque, intelectual que seja. Já o paranoico é um crente absoluto. Não estou falando da paranoia normal, que é um dos métodos para lidar com o mundo: ficar desconfiado a respeito do que se passa. O grande mestre deste tema é Nietzsche, que dizia para funcionarmos, articularmos, mas não acreditarmos em nada, nem no que ele próprio estava dizendo. Não acreditem em Zaratustra. Toda crença é paralisante. Para o SobreHumano, a pergunta é como fazer para lidar com o mundo em absoluta relatividade, em absoluta polissemia, polivalência. Aliás, muito do que pensam ser de Deleuze – a multiplicidade, etc. – é de Nietzsche. • P – Foucault fala sobre os filósofos da suspeita: Freud, Nietzsche e Marx. Marx é sistemático demais para ser incluído aí. A história e o comportamento mundial do século XX para cá, pelo menos, são paranoicos em cima de Marx. Era patrulha dia e noite nas universidades, por exemplo. 23
Aliás, acho Marx um idiota. Pensa, faz muito cálculo, muita articulação, mas sua base é falsa. Freud denuncia isto logo de saída: ele podia entender de economia, mas não fazia a menor ideia do que fosse gente. E há um elemento supostamente lógico e funcional, quase uma coluna vertebral no pensamento de Marx, que há muito tempo critico. É a chamada mais-valia. Aquilo não vale é nada. Marx se esquece de que há gente atrás desse raciocínio • P – Mas gente não explora gente? Não é por questão de economia externa que as pessoas exploram umas às outras, e sim porque, um mínimo de vivacidade mental que alguém tenha, estará à procura de um boboca para lhe chupar o sangue. Basta olhar à nossa volta. • P – Neste sentido, a ideia de escravo em Hegel é mais fundamental que a de trabalho. Mas a dialética do senhor e do escravo é mal resolvida. Não é por arrostar a morte que alguém é senhor, e sim pela porrada, pela força. Se retirarem de cima de vocês os mecanismos de forçação aos quais têm que ceder para sobreviver, como se sentirão? O que verão? Que vocês eram umas putinhas escravizadas. As pessoas pensam que são empregadas, mas são escravas. A escravidão jamais terminou em lugar algum, apenas deixou-se de situar um pequeno recinto para dizer que a escravidão lá estava. Nunca parem de ler Nietzsche, pois ele é muito solto, muito brilhante. Dizia, por exemplo, que as pessoas, em geral, precisam nomear pessoas ou grupos para aquela situação e aquele lugar parecerem que não estão aqui, estão lá. Certa vez, falei uma frase a respeito da qual me cobram muito: Dizem que a prostituição é a mais antiga das profissões, mas não é – é a única. Depende do que você está vendendo do seu sexo, seja na cabeça ou lá embaixo. • P – No Manifesto Comunista, Marx diz que, se o capitalismo triunfasse, estaria instalada a prostituição universal. Não estou dizendo que ele é um bobão? A prostituição já está instalada há muito tempo. Sempre foi assim. Estamos sempre vendendo alguma coisa 24
SóPapos 2018
nossa. Passamos a vida negociando desejos, e topamos ou não o preço que dão. Como as pessoas têm o mau hábito eterno de anatemizar a sexualidade propriamente dita, só atribuem prostituição ao sexo anatômico copulatório. Mas o resto também é. A sexualidade não está numa região da anatomia, ela está em tudo. O paradigma da psicanálise é sexual, não tem essa regionalização. Notem que, ao usar os chamados “palavrões” que costumo usar – para mim, são termos técnicos –, quero fugir dos textos acadêmicos que têm regiões de discriminação e nos quais há palavras que não são palavras. Os termos que busco usar são os expletivos do Inconsciente, saem da exclusão do sentido. O Inconsciente não tem discriminação quanto à expressividade. Os discursos de professores, por exemplo, têm tanta discriminação verbal que são a repetição absoluta. Ou seja, são Morfose Estacionária. Em nossa definição, não existem palavrões, e sim expletivos do Inconsciente. Nossa época é péssima em termos de entendimento do social. Estão todos fugindo para formações denegatórias. O que vemos, então, são os efeitos contemporâneos da pressão progressiva da tecnologia e a reação regressiva a esta pressão – coisa que vai durar e doer muito ainda. Se a reação for grande, o processo pode demorar mil anos. O último processo por que passamos durou do século IV (Imperador Constantino) até hoje. A tecnologia é dissolvente, é rápida, mas a reação é forte. Como a maioria extensa corre para trás, será preciso morrer muita gente para o processo avançar. Nem sei se esta espécie sobreviverá. Talvez a ideia de Quinto Império seja sem a nossa espécie. Tenho dois (não analistas, e sim) terapeutas. Preciso deles: Nietzsche e Fernando Pessoa. E acho que, se espremermos o pensamento de Nietzsche, veremos que ele descreve o Quarto Império. O que recolhia é da ordem do Quarto Império, ao qual ele chegou cedo demais. • P – Qual a razão do triunfo do modelo da Morfose Estacionária e da vontade de crença para o tipo de mente, de cérebro, que temos? É justo o contrário: tão disperso, desconhecido, aleatório, neutro... Espinosa falava em Conatus. Está na carne, no Primário. Você já mediu o tamanho de seu cagaço? Portanto, é perfeitamente normal que se adote o modelo Estacionário. O Primário desta nossa espécie é muito fraco, 25
dolorido, não ajuda nem para as transas dentro de seu sistema solar. Não podemos sair descobertos, pois explodiremos. É um Primário de superfície. Como diz Nietzsche, esta espécie é uma doença de pele do planeta. Temos, então, todos os motivos para sermos estúpidos. Sobretudo, porque dói. • P – Falávamos há pouco sobre a possibilidade de abordar qualquer sintoma como uma regularidade, o que esvazia as crenças em especificidades que tínhamos quanto a nós. Observem que se trata de uma formação em repetição. Assim, qualquer possibilidade de conseguir um algoritmo adequado via tecnologia produzirá essa especificidade industrialmente. Além disso, a quantidade de lixo que esta possibilidade de inteligência produzirá é colossal. Tenho a impressão de que noventa por cento do que supomos prestar hoje será lixo no Quarto Império. E mais, não há o incomputável, o que há é o ignorante, nossa ignorância computacional. Se a coisa é produzida assim, por que não é computável? Ainda não sabemos bem organizar essa computabilidade total, mas ela precisa ser computável, se não, não teria existência. Se tem existência, é algoritmo. E isso tudo é compatível com a psicanálise. Não com essa que gira por aí na cultura, mas com aquela mesma de Freud, da qual, passada na peneira, sobra sua razão algorítmica. Isso aqui é uma máquina, se soubermos transcrevê-la produziremos outra igual com base não carbono. E mais, esta nossa espécie sempre foi especialista em criar desastres. Mesmo não sendo de base carbono produzirá desastres, pois ela se arrisca. As demais espécies não produzem desastre, só violência. O Artifício Industrial é que é desastrado. Já o Artifício Espontâneo, que chamam de natural, é calamitoso. Prometeu e Ícaro, por exemplo, são duas personagens que ousaram (se arriscaram) ultrapassar o Artifício Espontâneo e produziram desastre. • P – Em 1989 (Est’Ética da Psicanálise, p. 30-1), você retoma os três impossíveis a que Freud se referiu (governar, educar e analisar), mais aquele que Lacan acrescentou (fazer-se amar), e diz que “há devir nessa historieta”. Então, governar, educar, analisar e fazer-se amar seriam possíveis “razoavelmente e progressivamente”...
26
SóPapos 2018
Não podemos partir para a ação já definindo que é impossível. Mas se quisermos governar colocando de saída um código para que ele se cumpra, é melhor nem tentar, pois não vai sair certo, dará em outra coisa. • P – ...e eu pergunto se, quanto a comunicar, poderíamos dizer o mesmo, que é possível razoável e progressivamente. Sim. Isto é, tem transa. • P – Você conclui o raciocínio dizendo que “haver cura depende dessa desistência de desistência”. Este é o desejo do analista: desistir de desistir. Nietzsche nunca disse isto – desistir de desistir –, mas é como se tivesse dito. Ou seja, vamos à merda! Vai-se fazer o quê? É o que há. Se você desistir radicalmente, problema seu. • P – Isto é o “melhor, não”, de Bartleby? No caso dele, não acho que seja desistência. • P – No caso de governar / analisar / educar não cabe o “melhor, não”? Sim. Só que não dá. Parte-se do “melhor, não”, mas vai-se em frente fazendo. O “melhor, não” é o reconhecimento das absolutas inutilidade e gratuidade de tudo. Aí, escolhe-se, pode-se dar um tiro na cabeça, sua ou do outro... Dizer “melhor, não” radicalmente é isto. Lembrem-se de alguns analisandos pseudo melancólicos e vejam se não é este o caso. Frequentemente, são falsos, querem apenas reclamar da vida, encher o saco dos outros.
27
4 • P – Os Quatro Discursos, de Lacan, servem hoje? O que quer que a humanidade tenha feito tem serventia. A postura do que chamam Nova Psicanálise é: crença zero – tudo é produção de instrumentos. Se servem, peguem e usem onde couberem. Para alguém dizer isto, teve que construir um instrumento capaz de dizer isto. A rigor, não é invenção minha – e tampouco peguei de outrem. Isso se repetiu em minha cabeça como um discurso que está no mundo, que é a Gnose. Não escolhi fazer o que fiz. De repente, ao perceber o que fazia, vi que era igual. O que aparece como discurso da Gnose na história é sujo de religião, etc., mas, se a espremermos, veremos que ela é a ciência de sempre. Digo isto porque a palavra gnóstikos quer dizer ‘intelectual’, aquele que quer conhecer. O gnóstico é um intelectual em oposição ao crente. A Gnose tinha que ser derrubada pela igreja porque o discurso da crença é o que sempre vence. Ela é uma postura de recusa a qualquer crença. Se existe Deus, o gnóstico não acredita, ele quer saber o que é. A tradição gnóstica atravessou os séculos e virou a ciência contemporânea. Ou seja, a ciência contemporânea é uma parte da Gnose. Como sabem, não tenho crença no que faço. Quero saber se funciona, se é um conhecimento, o resto não interessa. A Gnose é uma tentativa de salvação da ignorância. A crença é uma tentativa de salvação da fé cega. Em vez de salvar pela fé, o projeto salvacionista da Gnose é pelo conhecimento. Qualquer crença é desastrosa, sobretudo quando ela nos serve. Trata-se não de recalque, e sim de Juízo Foraclusivo. É um exercício difícil para as pessoas, pois elas vivem procurando crenças para se segurarem. Não sabem viver no vazio, em ignorância total, na merda, e aplicar os conhecimentos que têm para ver se funcionam. O crente nunca está na merda, a não ser quando esta lhe cai sobre a cabeça. Ele tem culpa, sofre demais – e não quer deixar de sofrer. 28
SóPapos 2018
O texto da Gnose é diferente do que estou dizendo, é igual a Nicolau de Cusa, para quem os opostos existem e a saída é fazer sua coincidência. Isto não existe, é impossível, pois a fundação é monista. O pensamento original é monista, não tem oposição, é contraditório em si. Como se manifesta contraditório, parte-se em dois. Pode-se começar do pensamento monista, mas vai-se terminar no binário. Nicolau de Cusa pensou que podia fazer o esforço de voltar para lá, mas é de lá que se começa. O Inconsciente é um escroto, nos dá rasteiras o tempo todo, pois jamais sabe se é para cá ou para lá. • P – Ele só tem inscrita a bifididade. O que funciona nesse computador, como no computador quântico, é a bifididade. O computador quântico será aquele que manipula o bífido em termos de oposição: a cada caso, coloca o oposto. Ele não tem como juntar. • P – Na dialética de Hegel, temos a negação, a negação da negação e a síntese. No caso do Revirão, não é este o funcionamento, e sim: tese + anti-tese / ek-tese = pró-tese. O que temos no Revirão é a Invenção. Se você estiver sentindo frio, não requisitará não-frio, e sim calor. O mesmo no caso da dor: a não-dor não interessa, requisita-se prazer. O não é um caso da oposição. • P – Para falar em oposição não é preciso de um não? Não sei. O que vem primeiro, ovo ou galinha? Vem primeiro não ou oposição? Acho indecidível. É sutil, pois em natureza, como se diz, não existe não. Nós é que inventamos um processo lógico no qual é possível substituir qualquer oposição pelo não. Quente e não-quente, frio e não-frio... Quando se diz não-quente é o quê? O oposto de quente é frio, com vários graus no meio... Por isso, não consigo decidir entre o não e a oposição. O não é invenção nossa. As oposições, estas, existem até in natura. • P – Em sua tópica, o não é Secundário. Sim. Um animal, ao correr para fora de uma floresta pegando fogo, pode dar a impressão de estar dizendo não ao fogo, mas o que está procurando é o frio. Está correndo para o lugar certo, que ele sabe qual 29
é. Algum maluco que estivesse nesta mesma situação poderia correr para dentro do fogo. • P – Opor é simplesmente colocar em outra posição? É colocar em oposição. Como disse, há graus. O oposto de quente é frio, mas há temperatura maior ou menor. Costumamos, linguageiramente, tratar as oposições mediante o não. A pressão do Secundário nos faz dizer não. Mas por que alguém diz não-isso? Não se diz não sem conhecimento do oposto. Há aí um saber do Primário que é terrível. O Secundário é maravilhoso, mas tem herança. • P – Ao falar em Recalque Primário, você não está se referindo apenas às formações primárias, e sim às formações do Haver? Pode ser, embora eu não chame o Haver de Primário. Aí é preciso falar em Primário do Haver. • P – Sua Tópica é uma Tópica das IdioFormações? Para que fosse uma Tópica do Haver, seria preciso menos ignorância de nossa parte sobre a estrutura do Haver, termos mais informações de ordem física, de matéria e anti-matéria... A tópica que apresento é uma Tópica de IdioFormações. Se o Haver é uma IdioFormação, ele que se apresente. E é um perigo, pois, se for uma IdioFormação, encarna-se um Deus primário, vira Pessoa.
5 • P – O que pensar sobre a intervenção militar que acabou de ocorrer no Rio de Janeiro? 30
SóPapos 2018
A situação deve ser tratada como guerra. É uma intervenção parcial, faz parte da Constituição. O Estado aí está para ser repressor – depois, faz-se a análise. O governo não estava dando conta da situação e o que está acontecendo sequer é anarquia, é governo duplo, do Estado e dos Bandidos. Há que escolher. O mundo não funciona na base de gracinhas. Não temos que pensar como Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo, pois o que funciona é a pressão do mais forte. Seja qual for a situação, não nos cabe fingir que o mundo não seja isto. Depois que se entende, é possível conversar, e não antes. As forças armadas são defesa nacional, contra o externo. Hoje, com internet, etc., o que é o externo? É o bandido que nos atrapalha a vida. O que fizeram os grandes pensadores políticos e militares da história? Alexandre não transportou o pensamento ocidental para os persas dando beijinhos. Ou Julio Cesar fez o que fez pacificamente? Nossa espécie é demasiado animal ainda, tem que saber que, se folgar, é guerra. Há pouca gente com alguma reflexão. Lembrem-se de que a natureza é violenta. Guerra é o limite depois da incompreensão. E mais, se queres a paz, prepara a guerra (Si vis pacem, para bellum). É preciso parar de pensar que há gente boazinha. Há limites. Não sabemos, desde Freud, que analisandos usam a transferência para atrapalhar a análise e derrubar o analista? O analista há que ser elástico e ter jogo de cintura para operar. Uma neurose é uma paralisia radical, odiosa e odienta. O reconhecimento da espécie é cruel. Crianças são as que mais sofrem. São indefesas, caem em famílias boçais que lhes dizem coisas as mais estapafúrdias, aquilo vira a segurança de suas vidas, e se mexerem ali elas acham que vão morrer. Elas são animais – são monstros do “é meu, é meu!” –, o Secundário é ainda muito frágil. É preciso dar-lhes injeções de Secundário para ver se funciona. Mas não é o que lhes fazem mais frequentemente. Ao contrário, reduzem o Secundário e introjetam Neo-etologia. No Brasil, o que reina é a boçalidade, não há civilização. Estamos saindo de um século, o XX, terminado em 1980, que, repito, é paranoico e delirante. Século em que o chefe político (Stalin, Hitler, Mao, Mussolini...) não é um estadista, um guerreiro, e sim um paranoico que manda matar aqueles de quem não gosta. Incluam aí filósofos tipo Heidegger... Alguns, 31
como Sartre, tomaram vergonha: tomou um susto quando viu o estrago que estava promovendo. Lembrem-se de Jacques-Alain Miller, que era maoísta. Como é possível andar com Lacan e com Mao? A estrutura e o funcionamento são paranoicos, mesmo que as pessoas não sejam necessariamente psicóticas paranoicas. A paranoia é uma construção mental em que alguns psicóticos se tornam paranoicos. É a suposição de que se toma uma formação que é absoluta, e se a impõe sobre si mesmo e sobre o mundo. Não tem conversa, jogo de cintura. A frase da paranoia é: “Eu sei”. Não se considera que a gente faz tentativas, pensa um pouco, constrói um aparelho para ver se serve para lidar com o mundo – sem crença alguma naquilo. Eu não sou maluco a ponto de acreditar em NovaMente, simplesmente produzo e aposto. A tendência do século XXI não é paranoica, e sim Progressiva – aquilo que chamavam perversão –, para bem e para mal. O Quarto Império fica esticado entre duas posições: a paranoia do século XX e a progressividade do século XXII que vai chegar. A dissolução das paranoias está deixando as pessoas perdidas, e os movimentos são progressivos. O excessivo é o substrato desta espécie, só que estamos num momento em que as formações de contenção perderam a moral, e aí fica a loucura que vemos desenrolar-se por aí o tempo todo. Vai demorar até que se invente um aparelho de contenção compatível com a época. Não faço ideia de como ele será. De uma coisa, sei: não há como parar a tecnologia. Tomemos a benção de McLuhan: o meio (medium) é (não a mensagem, e sim) a realidade. Vejam que estamos passando por uma transformação radical, e não por causa de alguma revolução. A tecnologia veio e esculhambou tudo. Como não quereremos abrir mão dela... • P – Você, outro dia, deu um exemplo de contenção citando o caso do matemático, que é alguém que opera contido pelas leis da matemática. Não se trata de leis, ele sabe que está contido pelas possibilidades da matemática. Mas o matemático não é o animal das ruas. O que fazer com esse aí? Minha contenção foi ter me ocorrido, ter caído em minha cabeça, uma formação teórica que me fez muito bem a ponto de me dar a impressão de que ficaria mais calmo no mundo. Organizei aquilo tudo, e agora tenho que ser inteiramente obediente a isso. Não posso falar fora dessa organização. Ou 32
SóPapos 2018
seja, estou contido por uma formação. Caso contrário, estarei destruindo o paradigma criado. Tampouco, repito, posso crer nele. É apenas uma aposta de que a maquininha pode ser útil e funcionar. E mais, faço a suposição de que ela seja compatível com nossa época. O que Lacan fez, embora seja genial, já não é mais compatível. • P – McLuhan dizia que a ansiedade de nossa época resulta, entre outras coisas, de buscar resolver problemas atuais com ferramentas de épocas anteriores. Consigo supor para o futuro, de um lado, uma minoria aristocrática, culta, inteligente, bem pensante, construindo um universo que sequer podemos imaginar ainda. De outro, uma multidão de zumbis vivendo às custas do que essa minoria produz: aguarda-se a morte deles, e evita-se que se reproduzam. Quando a tecnologia der mais passos, isso aqui ficará obsoleto. Eu mesmo já me sinto meio analfabeto, sem saber usar esses aparelhos tecnológicos do cotidiano. A maioria das pessoas vive em retardo, ainda não sacaram que somos intermediários. A salvação seria, pelo menos mentalmente, escapar disso e olhar com distância. Nietzsche, este, sacou muito bem e disse: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o sobre-humano – uma corda sobre o abismo”. O sobre-humano é de quê? De carne? Esta espécie está inventando seu substituto.
6 Recomendei a leitura de dois livros: Lacan e Lévi-Strauss (2003), de Mark Zafiropoulos, e O fuzzy e o techie (2017), de Scott Hartley. Ele, Hartley, mostra 33
que estamos longe demais de poder delegar tudo à tecnologia. É necessária a complementaridade da tecnologia e do trabalho mental, sobretudo das ciências ditas psíquicas. Há a indispensabilidade da operação terapêutica, educacional, da questão da afetividade, da intuição, da inspiração... O techie só dará certo para quem tiver esse outro lado. E mais, ele se dará mal se não o tiver. • P – Em 2000, você falou das três máquinas propostas por Daniel Dennett, que, segundo ele, seriam suficientes para a mimetização mentemáquina: a de Turing, a de Von Neumann, e a joyceana. Sua proposta, então, foi que, sem a inclusão da quarta máquina – o Revirão –, não teríamos essa junção. Na suposição de que esta sua máquina seja de último grau, os efeitos cerebrais seriam as reviradas em múltiplas possibilidades que o próprio cérebro tem. Sim. Agora, vejam o caso dos filmes em câmera lenta. Ele é em câmera lenta por ter sido feito ao contrário, com câmera rápida. Ao ser exibido, aparece lento. A câmera rápida, por sua vez, é aquela que filma de modo lento. Ela registrará, por exemplo, o longo processo de uma flor nascendo, o que será exibido em alguns segundos. Minha pergunta é: existem essas possibilidades na mente? Existe mente em câmera lenta e mente em câmera rápida? Suponho que sim. Certas pessoas visualizam as coisas em câmera lenta, têm uma lerdeza cerebral, e outras funcionam em câmera rápida. Destas que funcionam assim pensam que aquilo é da ordem do espiritismo, da santidade... Ao contrário, se uma pessoa com quem convivemos de vez em quando der um flash no processo progressivo – no qual prestamos pouca atenção –, dará a impressão de que ela vê (e os outros não) para onde está indo. Isto porque seu filme é rápido e ela já enxergou. Penso assim porque me dá vontade de entender certos mecanismos psíquicos vistos como binários ou como coisas que as teorias psicológicas conhecidas não sabem nos informar direito sobre o que são. Tomo um exemplo: o Taj Mahal. É um monumento, um mausoléu, belíssimo que, no século XVII, o imperador Shah Jahan mandou construir em memória de sua esposa favorita. É todo feito em mármore branco. Seu 34
SóPapos 2018
filho achou que ele estava dilapidando o patrimônio do reino e da família, matou seu irmão, o verdadeiro sucessor, e prendeu o pai numa jaula de cuja janela ficava vendo o Taj Mahal. O que me interessou nessa história é que ele só fez meio projeto. Normalmente, vemos em fotografias e filmes os fundos do palácio. A frente está virada para o rio, à qual só se chega de barco. O projeto abortado pelo filho era, do outro lado do Rio e de frente para ele, construir um palácio exatamente igual só que preto. Quero, então, pensar que o imperador leu a mente e lá viu algo que o fez pensar em construir, do outro lado do rio – que, supostamente, é a linha do Revirão – o mesmo monumento em preto. • P – Isto não poderia apenas ter a ver com noite e dia, por exemplo, e não com algo de sua mente? Ele nada saberia sobre isso. Não é preciso ter consciência para ficar doido. Ele pode ficar enlouquecido com uma visão tida, que é a visão de sua cabeça. Ele quis concretizar em uma obra de arte fabulosa o movimento de sua cabeça. Ele pirou depois que sua esposa morreu: o túmulo dela seria no palácio branco e o dele no preto. Como este não foi construído, seu filho o enterrou ao lado da mulher – um erro grave de Revirão, diga-se. O avô de Shah Jahan, Akbar – sobre o qual Borges escreveu um texto – já havia construído imensos palácios, que estão vazios. Só Borges para entender alguém como ele. Acho que são mentes com capacidades especiais que, até hoje, não conseguimos entender. Dou agora outro exemplo, este bem cabeludo, do qual até parece ser delírio falar. Em Fátima, Portugal, três crianças, três primos, disseram ter encontrado a Virgem Maria. Tiveram uma alucinação ou algo do tipo. Suponho eu que uma – Lúcia de Jesus (com dez anos), que morreu no convento – viu, contou para os outros que também começaram a ver. Mas o quê estava vendo? As profecias que lhe foram contadas e que ela escreveu. Supôs-se que as duas primeiras diziam respeito à Primeira e à Segunda Guerra Mundial. Já a terceira, ela diz que guardara durante muito tempo, pois lhe fora revelado certo cataclismo mundial com o fim da Igreja católica e o advento da punição dos céus. Como as duas primeiras foram lidas como guerras mundiais, estão supondo que a última se refira à 35
Terceira Guerra Mundial. Quanto a mim, supondo que ela tenha o aparelho esquisito de fotografar cada fotograma e isto resultar naquela alucinação toda, não acho que esteja falando de guerras mundiais. Acho que pode ser uma visão de encaminhamento para onde as coisas estão indo do ponto de vista de estrutura de mundo. Quando se lê a Primeira Guerra Mundial como acontecimento de certo momento, isto representa a crise daquele momento. A Segunda também. Já a Terceira é a crise atual e a entrada do Quarto Império. Então, a morte não é da Igreja, e sim do Terceiro Império. A pessoa percebe o encaminhamento – é o que quero dizer. A Igreja pode até ficar, pois isto não fede nem cheira. Mas o Quarto Império já entrou, e a partir de agora será uma dificuldade extrema, cada vez pior. Nunca vivemos um Império dividido. Como sabem, o anterior foi o Segundo, dividido entre o Terceiro e o Primeiro. Tenho memória de infância, de quando era muito pequeno, lembro-me de muita coisa (não sei por quê, é uma chatice). Descobri, quando tinha um ano, que via tudo em câmera lenta. Não era rápida, era lenta, repito. E mais, tenho para mim algo que já lhes disse: não sei explicar. Grande parte dos Seminários que estão publicados, fiz dormindo. Na preocupação de pensar (isto não acontece mais, pois estou de saco cheio dos Seminários: hoje é SóPapos, só aqui), eu acordava por volta de três da manhã com o Seminário pronto. Aí, anotava tudo para não esquecer. Dia seguinte, eu lhes falava aquilo (e vocês pensavam que era a sério)... Parecia um sonho, mas toda a sequência estava na memória. Ou seja, o cérebro descansou, a censura diminuiu, a pessoa fica inteligente... A burrice é um acúmulo de porcaria na cabeça que não nos deixa pensar. Cada um que dê seu depoimento para que seja possível descobrir o que seja isso.
36
SóPapos 2018
7 Coloquei isso para, de novo, chamar atenção para o fato de a paranoia do século XX ter abandonado demais o Primário. Freud foi mais sério, nunca o abandonou. Ele era um homem com cabeça do século XIX em progresso para o XX. Então, de acordo com a sintomática do século XIX, ele ainda dava muita importância ao Primário. Coisa que Lacan quase que destruiu, quase fez o Primário desaparecer. No final, ficou preocupado e começou a falar em Um Corpo no sentido feminino, etc. Já a estrutura geral de nosso século XXI é progressiva e, por outro lado, podemos considerar cada vez mais a presença do Primário. Sobretudo, porque as ciências biológicas e outras estão fazendo grandes leituras e vendo coisas importantes. Quando António Bracinha Vieira, autor de Etologia e ciências humanas (1983), nos visitou aqui, pudemos ver seu temor quanto a achar no humano qualquer coisa referente à etologia, ele dizia precisar de provas científicas. Não precisamos dessas provas, basta ver que o bebê é um bicho cheio de informações, de personalidade... Isto é Primário, mas, para eles, é apenas o Autossoma. Se entendemos que nele há também um Etossoma funcionando, veremos que o Primário é de uma riqueza enorme. Freud falava em predisposições, pois sabia que aquilo era um bicho. No século XX, sobretudo nas ciências ditas humanas, que eram meio flou, fez-se um esforço danado de cientifização para ficar parecido com a física. Queriam uma comprovação científica do sociológico. É de uma burrice que só mesmo sendo paranoico para pensar isto. Não é o caso, uma ciência é mole e a outra é dura. • P – Foi essa paranoia epistemológica que, inclusive, impediu durante muito tempo o estudo dos processos de pensamento que você mencionou antes, que não são declarativos, e sim processuais – a intuição, a inspiração... –, em que se dão saltos heurísticos, em que se têm insights, em que não se sabe como certas coisas foram descobertas... Como não há demonstração, exclui-se.
37
O século XXI já pensa que é conhecimento, sim: um de tal tipo, outro de outro. É a crítica que faço à paranoia da epistemologia, a ela não ter que reinar sobre as possibilidades de conhecimento. Quando, em 2013, resolvi tentar invadir a Universidade por algum lado, lá voltei e fiz uma série de conferências “simplórias”, como chamei e que estão publicadas com o título Razão de um Percurso. Depois, também lá, montou-se um curso de pós-graduação, de especialização em “Psicanálise e Ciências Humanas”. Dei este nome no sentido de ser palatável, de acordo com a mentalidade contemporânea um pouco para trás. Esta é efetivamente a mentalidade do século passado, não a de hoje, não a da Nova Psicanálise. Se não déssemos um jeitinho, as pessoas rejeitariam de saída. Por isso, no início, hoje, recomendei a leitura de Freud e Lévi-Strauss, de Mark Zafiropoulos, no qual é mostrada toda a dívida de Lacan para com Lévi-Strauss, a cópia que fez de grande parte da obra dele... Aliás, há que considerar que, em algum Seminário, Lacan disse que devia tudo a Lévi-Strauss. O autor mostra também algo muito importante para nós: a mentalidade da época, que era de tomar as ditas ciências humanas – a linguística, etc. – como arcabouço do pensamento. Ninguém melhor que Lévi-Strauss para desenhar e desenvolver plenamente este modelo – dentro do regime da paranoia do século XX, é claro – em cima de Jakobson e Troubestkoy. Vemos, então, a potência e a frequência das ciências humanas na cabeça de Lacan. Isto, em detrimento do que eu quis trazer. Real / Simbólico / Imaginário é coisa de cabeça de maluco – por isso, falei em Primário / Secundário / Originário. Vamos enfiar o Primário aí e, apesar dos etólogos, considerá-lo como formação determinante. Vejam, pois, que o forte não são as ciências humanas, mas qualquer tipo de conhecimento, inclusive as ciências naturais, biológicas... Há certas coisas que temos que perguntar a elas. Analistas lacanianos, sobretudo, quando enlouqueceram com esse negócio de R/S/I, deixaram de considerar que as pessoas tinham corpo, tinham etologia. Jacques-Alain até quis dar um jeitinho, quis acochambrar, ao falar de clínica do Real, mas não convence. O Real, de Lacan, é o impossível. O meu também. Portanto, não se esqueçam de que a Indiferenciação alcança o Primário. Nossa época é muito esquisita e vai 38
SóPapos 2018
demorar até limpar a linguagem usada até agora. Vejam isto que chamam de Gênero. É uma besteira dizer que alguém é psiquicamente menino ou menina. Chama-se: Etossistema. Já lhes disse que não há obrigação biológica alguma de o Autossoma ser correspondente ao Etossoma. Não é algo psicológico, está, sim, no Primário. Mesmo em nível de Genética, sabemos que a epigenética resulta em etograma. Mas até tudo isso ser mapeado, teremos muita confusão. Contrariamente ao que recitava Freud, a anatomia não é o destino. Destino não é Autossoma. O destino é o não-Haver. Em termos de século XIX, Freud acreditava que era o destino, que havia macho e fêmea. Lacan escreveu as duas fórmulas da sexuação para, depois, dizer que há homens que são mulheres e vice-versa. Isto era consentâneo com seu argumento de articulação, coisa que hoje está gagá. • P – Freud parece não ter acompanhado a tecnologia de seu tempo, parece que nunca foi ao cinema. Em 1920, é lançado um filme com impacto mundial intitulado Metropolis, no qual já aparece uma robô fazendo uma grande bagunça quanto à questão do gênero e da sexualidade. Alguém do século XIX vai ao cinema? Ele, Einstein e outros estavam inventando o século XX, mas com a mentalidade do século XIX ainda muito presente. Já Lacan, que poderia ser filho de Freud – e poderia ser meu pai, nasceu no mesmo ano que ele –, era um homem do século XX. Sua preocupação foi o filme japonês O Império dos Sentidos, em que a mulher castra o parceiro. É bem a cabeça dele, de seu tempo. Ele também falava de Marguerite Duras, de Le Ravissement de Lol V. Stein. Lacan tinha um analisando psicótico, que ficava falando sobre uma tal Formule Un – e ele não sabia o que era a fórmula um... • P – Retomando o ponto sobre as ciências humanas, você já falou sobre as ciências conjeturais, que é um termo de Bruno Latour; falou também da psicanálise como ciência caótica, e, depois, como Pensamento Perplexo. E mais, a psicanálise não se inclui entre as ciências humanas, pois, para ela, trata-se da IdioFormação. Homem seria um caso das IdioFormações. A psicanálise é uma ciência do Inconsciente. Para produzir as ciências humanas é preciso do conceito de humano – e a psicanálise nada tem a ver com 39
este conceito. Vejam também algo difícil de ser engolido: o fato de dizermos que o estatuto da psicanálise é místico. É o místico tal qual entendemos – “afastamento do mundo” –, e não o que comumente pensam ser o místico. É preciso sempre lembrar que há uma travessia que passa por dentro do conhecimento. É a isto que se chama Gnose. Gente que tem inspiração, vê de tudo, Nossa Senhora, o diabo, mas aquilo já estava na imagem da Igreja. Quando a pessoa é tocada por uma comoção – que se chama HiperDeterminação –, ela se depara com Tese + Anti-tese / Ek-tese, e tem, então, que se virar com a Pro-tese. Se isto não se dá por inteiro, começa-se a delirar. A poesia, por exemplo, na literatura, é o modo mais fácil. Alguém se depara com a Ek-tese e vai para língua lidar com a Pro-tese. Mas como fazer a teoria da relatividade sem matemática? Ao recair na língua, mexe-se com ela, é mais imediato. Já transformar um teorema em máquina é bem mais difícil. Qual é mais poiesis, poesia, a teoria da relatividade ou um poema de Manuel Bandeira? Aliás, sabem o que quer dizer Sofia?: Sabedoria ou A Libidinosa. Ou seja, a sabedoria é: Haver desejo de não-Haver – Pulsão. Sem tesão, que sabedoria teríamos? A Santa Sofia, em Istambul, é o Santo Tesão.
8 Disse-lhes da outra vez que, do ponto de vista perceptivo, alguma coisa era muito rápida em minha cabeça, e acho que nas crianças é assim. Em termos de câmera, disse que, na câmera rápida, há poucos fotogramas filmados para o que está acontecendo, e, na lenta, há muitos. Minha pergunta é: Qual 40
SóPapos 2018
é a temporalidade da mente (considerando-a como Primário, Secundário e Originário, tudo junto)? Não é mesma para todos. Faço a suposição de que há algumas pessoas cuja câmera, cuja percepção cerebral, é lenta demais. No que é assim, fica mais fácil para acompanharmos o percurso. Não é que as pessoas sejam tatibitate, e sim que, quando se vê tudo correndo, perde-se a noção do movimento. Quando se vê lentamente, percebe-se que passou dali para aqui, de lá para cá. Isto, no sentido de ficar com a percepção do movimento, do movimento histórico, por exemplo. Na situação do Rio de Janeiro, hoje, se, ao invés de nos envolver com os faitdivers e ficarmos perdidos no espaço, observarmos um acontecimento, outro acontecimento, outro..., ficaremos com a noção da sequência, separaremos os momentos. • P – É o que Duchamp falava sobre o en retard. Ele falava sobre seu Grande Vidro como “retard en verre”. Ou seja, aquilo fica quase que algébrico. Ele viu imagens, mas lá não as procuramos porque lá não estão. A descrição que ele faz é a de um puro mecanismo. Acho, pois, que há pessoas que têm isso espontaneamente, mesmo no campo da história. Há historiadores que não ficam contando fatinhos, mas percebem sequências. Busco, então, entender a temporalidade da mente. Não é a do Inconsciente. O que é uma pessoa retardada? Uma criança arriéré (como chamam os franceses)? O que se passa dentro daquela mente que faz com que ela seja retardada? Também existe o contrário, crianças que rapidamente pegam tudo. O que é isto? É apenas algo cerebral? O que é, em certas situações (de trauma, ou não), passar em segundos o filme todo da vida de alguém? O que deslancha esse mecanismo na mente? Por que há pessoas que veem o futuro? Que suspeitam que a situação está indo para certo lugar? Elas percebem o encaminhamento e supõem que, se o encaminhamento for aquele, lá adiante acontecerá tal coisa. Freud cansou de dizer que o Inconsciente não tem tempo, que ele se adapta às temporalidades. Não vi ninguém explicar isto do ponto de vista cerebral. Os cientistas dizem que as temporalidades são simultâneas, 41
que há várias temporalidades, que se pode mudar de temporalidade, mas isto é calcular, não responde às perguntas que coloquei. Em minha adolescência, visitei espiritismo, macumba, quiromancia, etc., e vi que a pessoa precisa de um motivo para desencadear algo em seu psiquismo. Diz estar lendo a borra do café, a bola de cristal, as cartas..., mas acho que o que ela faz é aproveitar-se disto para captar não-sei-o-quê. A maioria é trambique, mas há algumas que falam coisas muito esquisitas. Outro dia, pensei sobre Sir Newton – aquele que disse que “matéria atrai matéria na razão direta do produto das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias”, e Einstein, depois, dirá que não é assim (mas foi o que Newton conseguiu: pensar em termos de atração e repulsão) –, que era alguém muito doido e de grande competência. Ele invocou com dois textos da Bíblia dos judeus – as Profecias, de Daniel, e O Apocalipse, de João Evangelista –, passou décadas os decifrando, e deixou uma caixa de papeis escritos sobre eles (só encontrados recentemente). Achava que lá havia uma mensagem oculta, mas jamais disse a ninguém, pois temia a fogueira da Inquisição. Ele fez todos os cálculos querendo descobrir quando o mundo iria acabar. Para ele, seria em 2060. Suponho que tenha acertado, pois, em torno de 2060, o mundo dele, de Terceiro Império, acabará de vez, não terá volta. • P – Ray Kurzweil é outro que fica prometendo acontecimentos futuros. Diz que, em 2045, haverá a indiscernibilidade entre homem e máquina. Ficamos apostando no reconhecimento de coisas que não existem. Só pensamos que sabemos a diferença homem/máquina por besteira, pois já é – aliás, sempre foi – indiscernível. Agora, a indiscernibilidade vai se encontrar com a máquina, o que é outra história. • P – A indiscernibilidade é quanto a quem está no comando? E quem está no comando? Antigamente, era Deus. A humanidade tem inventado umas narrativas para serenar e as pessoas acharem que há um centro. Não há! Nunca houve! O que houve foi ocupação mental, militar, religiosa..., ou seja: ocupação. Olhamos para nossa própria pessoa, e como ela tem uma história, certa narrativa, referimo-nos a ela para achar que somos alguém e que 42
SóPapos 2018
esse alguém é tal. É um domínio de determinada narrativa, mas é falso, fake. Estamos apenas nos referindo a uma narrativa que arrumamos para nós. De repente, acontece algo inesperado, fora da curva, e ficamos sem saber quem somos. Isto é algo sério a ser pensado dos pontos de vista psíquico, político, social... Por exemplo: quem faz o crime? A lei é que faz o crime. Como lidar com isto? Temos crimes às vezes hediondos em países subdesenvolvidos como o nosso que nada são em outros lugares. É o caso do aborto. E mais, pensar sobre um caso como este é algo que não pode nos afetar, pois, do ponto de vista psicanalítico, nada temos a ver com ele. É apenas a narrativa de determinado imbecil. O que temos a entender é o funcionamento daquela formação, mais nada. Nosso ponto de vista visa um processo permanente de Indiferenciação. Não podemos ter apego algum a qualquer tipo de legislação na face do planeta. Somos descritivos do fenômeno, tentamos achar a formação – enquanto analistas, não nos interessa se ela é boa ou má. Enquanto cidadãos, podemos escolher coisas para nossas vidas, o que é interesseiro, egoico... Mas, quanto a refletir sobre o psiquismo de alguém, não há juízo ou interesse de espécie alguma. • P – É a maneira de facilitar o retorno do recalcado. Se não, estaremos impedindo o outro de possibilitar o retorno. As sociedades têm manias, cacoetes, modas. Antes, não era assim, depois pode não ser, mas, enquanto estiver em tal moda, perseguem-se certos comportamentos. Sobretudo, aqueles de pessoas que, por falta de condições, têm seu Primário aprisionado a essas perseguições. Os que têm dinheiro podem, por exemplo, fazer aborto em outros países onde ele não é crime. Quanto a isto, fala-se em ética, mas o que é? É o comportamento socialmente esperado? Não, isto é moral. Mesmo Heidegger, um pensador evidentemente nazista, pergunta numa entrevista a L’Express, que sempre cito, sobre quem teria condições de propor qualquer ética naquele momento. Logo ele que nem analista era faz esta pergunta. São coisas sobre as quais temos que refletir, pois, diante de um analisando, é preciso ter certeza de que nosso sintominha bobo 43
de algum moralismo não esteja agindo na sessão. E de que, se ele aparecer, possamos vê-lo como o sintoma que é. Nesta virada para o Quarto Império em que vivemos, a velocidade e a quantidade de informações está relativizando tudo. Já houve um tempo histórico em que as pessoas viviam aprisionadas a determinado lugar e sequer sabiam que, em outros lugares, havia outros comportamentos. Então, para aquele pessoal, aquilo era absolutamente a verdade, a lei, a certeza... De repente, começa-se a ver que lá fora não é assim – e por que, aqui, é?
9 O conhecimento dessa relativização geral está se acelerando de tal modo que não mais se sabe o que dizer a uma criança sobre comportamentos corretos. Isto é difícil porque, ao mesmo tempo que vemos tudo relativizado, que os comportamentos correspondentes tinham que ser ad hoc, mas não são, a criança precisa de algum rumo, se não, ela se perde. Ou seja, ela precisa de recalque, mas como é possível paulatinamente transformar recalque em Juízo Foraclusivo? O que mais vemos são crianças e adolescentes perdidos por aí em meio à relativização acelerada. Entendamos que a criança é um animal produzido por recalques. Se não fosse, sequer nascia. Ela é um bicho cuja produção é a exclusão de outras formações. No passado, pensou-se que era uma tábula rasa, mas hoje sabemos que ela nasce um animal cheio das piores e melhores coisas. Então, qual seria a função do Secundário? Seria agir de maneira antirecalcante, mas isto não acontece porque há o Etológico e o Neo-etológico. 44
SóPapos 2018
O Etológico, os comportamentos necessários para a sobrevivência, começa a imantar as formações secundárias, resultando no que chamo de Neo-etológico. A imitação primeira da criança não é a do funcionamento do Secundário, e sim a de tornar o Secundário semelhante ao Primário. Vemos que a criança é um animal horrível – não à toa Serge Leclaire escreveu On Tue un Enfant –, cheio de princípios recalcantes, vindos de sua espécie, de sua família, de sua herança biológica, e civilizá-la seria trazê-la para o Secundário. Mas, quando se traz para o Secundário, este está neo-etologicamente marcado. Na medida em que é herdeiro do Originário, o Secundário é dissolvente, mas a força estagnante da cultura é neo-etológica. Cabe a nós descrever o jogo necessário para paulatinamente transformar recalque em Juízo Foraclusivo. Assim, seria possível transmitir para a frente. Recomendaram que eu lesse o livro do prêmio Nobel de economia, Daniel Kahneman, Rápido e devagar: dois modos de pensar (2011). O pensamento rápido, em meus termos, é aquele composto de Etossoma e Neo-etossoma. Ele já vem pronto, mas, se for preciso recorrer ao Secundário, há que parar para pensar, aí é lento. O que ele está dizendo é uma banalidade: no que reagimos etológica e neo-etologicamente, é rápido, pois já está pronto. Já diante de um problema que não seja dessa ordem, há que parar para pensar, calcular... Mediante esses dois raciocínios ele construiu uma visão da ordem do mercado, das finanças. Isso é óbvio, mas as pessoas não sabem pensar assim. Ele, aliás, pensou isso por ser psicólogo cognitivo, e não economista. A tendência é tudo virar Neo-etologia. • P – Pesquisadores dizem que o processo de decisão depende do binômio luta/fuga, que é etológico. Ele seria indecidível. O que chamam de indecidível neste caso, não o é. Na situação luta/fuga, tomam-se decisões que estão na dependência de uma enorme quantidade de formações franjais que não sabemos quais são, e talvez ninguém saiba. Ocorre simplesmente que não temos todas as variáveis da situação. O Indecidível, este, é indecidível. Pensemos, por exemplo, em quais seriam os limites da (assim chamada) interpretação psicanalítica. Ela é focal demais. Portanto, não se deve pensar em interpretar nada, e sim propiciar que as formações surjam. 45
Trata-se de acolhê-las para ver no que darão. Sempre que se interpreta, para-se dentro de um limite focal, pois não se sabe como é o resto. • P – Cabe, então, dar um sentido ao que é dito? Não. Cabe tomar o sentido, pois a pessoa já nos dá o sentido. O sentido foi explicitado, a pessoa é que não o vê por estar envolvida na situação e sem a perspectiva necessária para ver. E mais, se a pessoa não o disser, nada saberemos. • P – No caso da lei, as pessoas também estão sem perspectiva e a tomam como reificada em algum código. A lei se torna regressiva. Pessoas sem reflexão – crianças, etc. – se deparam com um código que está reificado. Ou seja, o código transmitido é como se fosse, digamos, natural, dado desde sempre. Custa muito até descobrirem que é mero código dependente de uma série de peripécias e falcatruas. Mesmo porque, se alguém for muito longe – aonde, ainda bem (pois a maioria ficaria apavorada), as pessoas não vão –, perceberá que a coisa é tão pulverizada que não se tem referencial de espécie alguma. Se alguém entender todo esse processo, não terá referência. Poderá apenas lançar mão de alguma, mas não a terá. É o que chamo de Indiferenciação. No geral, as pessoas têm referência: Deus, a mãe, o pai, a escola... Vejam, quanto a isto, Michel Foucault. O pessoal tem dificuldade em lê-lo, pois ele é subversivo, dissolvente demais, demole todas as referências. E aquele que quiser ser analista terá que ser encaminhado para essa dissolução, para não ter qualquer referência dada, para apenas ter indicações de utilizações ad hoc. Por outro lado, não se pode escapar do fato de o Primário ser demasiado referencial. Todos querem se definir, querem viver – querem essas bobagens. Aliás, é preciso saber a hora de ir embora, coisa que só não sabemos por vivermos numa cultura imbecil que, assim como criminaliza o aborto, proíbe a eutanásia. No Ocidente, a culpa disto é o cristianismo. Não era assim no Império Romano. Vejam, então, nossa situação: viemos para um lugar em que é proibido morrer. Esta e outras coisas são consequência do 46
SóPapos 2018
processo de dominação de almas inventado pelo cristianismo. É a Pastoral, como chamava Foucault. • P – Você mencionou outro dia Hans Vaihinger, A Filosofia do Como Se, e disse que a operação mental é da ordem do ficcional. Anteriormente, você já havia falado em graus de reificação. Minha pergunta é: isso que já é massa neo-etológica pesada, uma imensa co-naturalização, uma grande primarização, antes não terá sido da ordem do poético e, na sucessão de repetições e transmissões, esta ordem artificialista vai sendo esquecida? Você fala em passagem de analogia para metáfora. O Terceiro Império, por exemplo, em sua criação foi uma invenção importante. Prefiro raciocinar analogicamente, e não metaforicamente. Falei que o terceiro grau de reificação seria a hipóstase. Na conversa, aquilo passa como se fosse um bloco único de significação, não se mexe. A língua é a culpada, pois aquilo vira um prefixo ou coisa do tipo. O Terceiro Império poderia ter sido romano, mas virou cristão, o que é uma porcaria. A cultura só vale no momento em que é criada – isto é poiesis. Quando passa a ser recitada, acabou, morreu. Falamos correntemente jargão, não fazemos ideia do que dizemos enquanto língua. Criticam a fala dos nordestinos aqui do Brasil (do Maranhão, sobretudo), mas são os que falam com clareza lógica. Ao ouvi-los, entendemos que um prefixo é um prefixo. Dizem, por exemplo, “pré-ocupado”, e não “preocupado” como nós. Ou seja, falam analiticamente de maneira lógica, dentro da composição da palavra. Hoje, aliás, causa confusão nas pessoas o fato de terem matado o objeto direto, pois o sentido frequentemente escapa ao que querem dizer. Tudo é lhe, acabou o o e o a. Em algum momento lá adiante, o novo referencial tomará conta, a maioria terá o mesmo referencial. Mas o caos da passagem que atravessamos durará muito, pois o Quarto Império, como sabem, é dividido. Nossa estupidez sempre vence, no fundo somos estúpidos convictos. A estupidez é fracionária por não haver a disponibilidade das pessoas. Há uma estupidez aqui, outra ali... Nosso momento é caótico por não reconhecermos que o 47
outro é tão estúpido quanto nós. Mesmo porque é cansativo, desgastante, viver num processo de desreferenciamento – coisa de que analista precisa: ficar o tempo todo desreferenciando. E ainda que a humanidade passe a ser pós-humana totalmente – só com robôs –, sempre permanecerá certa tendência, certa requisição mínima de estabilização. É o Conatus, de Espinosa. Estamos saindo de um Terceiro Império todo referenciado, no qual vários movimentos científicos, filosóficos, etc., foram estragando as referências anteriores. E chegamos ao Quarto Império, com uma grande dissolução ao mesmo tempo que, por medo das mudanças, com uma grande boçalidade instalada nas regiões. Isto vai sendo mexido pela tecnologia, coisa que demora muito. Já lhes disse que serão cinquenta anos de porrada e duzentos de instalação do Quarto Império, que é difícil por não ser compacto, e sim dilacerado. A quantidade de dissoluções, por um lado, e de invenções, por outro, resultará na desvalorização radical de todas as narrativas, dos prestígios do século XX (conhecer filosofia, arte...). Tudo isso já virou bosta. Não é mais preciso ter erudição, erudito é o computador. Serão, portanto, pessoas vazias de referencial cultural, pois virou lixo. Não nos apropriamos mais dele, que está ali guardado e ao qual temos acesso imediato. As pessoas serão vazias, ficarão curtindo prazeres, gozos... Chegará o momento que esse tipo de articulação se decantará, todos terão sei-lá-o-quê como referencial, e tudo ficará mais parecido. Agora, está desigual. Quando o próprio museu for para o lixo, as pessoas viverão de bem-estares, de saúdes, e nada terão a dizer. Nós é que somos cheios de falação, de cultura, de arte, religião... sem saber para quê. Fica só a Pessoa, pois quem é culto é o computador. Não haverá necessidade de cultura, de decoreba, e sim de articulação e treinamento emocional.
48
SóPapos 2018
10 Suponho que alguns de vocês já tenham lido o Seminário, livro XXIII, Le Sinthome (1975-6), de Jacques Lacan. Um seminário muito doido, aliás. Traz algumas questões topológicas, com as quais ele devia estar se divertindo – pois não servem para nada no livro. Ou seja, mediante seu protocolo, ele deu esse jeito de conseguir reduzir Joyce à estrutura do sintoma. É o sintoma de Lacan. Entendo de duas maneiras diferentes o porquê de ele fazer isso. Uma, é que talvez quisesse demonstrar como é a estrutura do sintoma. Outra, é que quisesse reduzir todo o percurso de Joyce, sobretudo após Finnegans Wake, a uma estrutura de sintoma. Isto poderia lhe servir para demonstrar que vale para qualquer um de nós. Ou seja, como ele diz: “ama teu sintoma como a ti mesmo” – você jamais conseguirá escapar de seu sintoma. Aliás, de preferência, fazemos análise para descrevê-lo bem – para “bem dizê-lo”, como também dizia Lacan –, inclusive no mundo: colocá-lo no mundo com significação, em vez de ficar sofrendo dele. Você investe seu sintoma no banco, não o deixa guardado em casa desvalorizando. Puxo esse assunto por ser a aplicação do protocolo de Lacan, do qual nada há a reclamar, está tudo certo. Infelizmente, há muito tempo, não é mais o meu. Como sabem, não há sujeito, objeto, essas coisas, em meu aparelho. Joyce me deixa invocado desde quando eu era jovem. Muitos dos que se aproximaram, sobretudo ultimamente, de Lacan foram dele para Joyce, Mallarmé, Lewis Carroll... Meu percurso foi o contrário, pois foram eles – mais Guimarães Rosa, um pouco de topologia... – que me levaram a Lacan. Nele, vi todos juntos. Isto faz diferença, pois, assim, não se fica subdito à ideia psicanalítica, não se fica fanático (há algum tempo, o lacanismo já virou um fanatismo). E no que aplico meu aparelho ao percurso de Joyce, a leitura é completamente diferente. Era natural – isto é, quase que espontâneo – Lacan 49
fazer como fez durante todo seu percurso e ver, às vezes (na análise de alguém, em algum raciocínio), a psicose como polo de redução. Ele chamava de psicose paranoica. Notem que, nos textos desse seminário sobre le sinthome, ele está sempre preocupado com onde enfiar o Nome do Pai, que, para ele, quando falta, é o responsável pela psicose. Ele não diz explicitamente, mas sugere a psicose de Joyce. Só porque a filha deste foi parar no hospício? Não concordo com isto. Joyce, sobretudo depois de Finnegans, foi abominado por questões morais. Foi chamado de devasso, disso, daquilo. Acho mesmo que, comparado com o que seja de fato devassidão, ele era muito pouco. Cito duas frases de Nietzsche que suportam o comportamento de Joyce: “O mundo efetivo é uma ilusão de ótica e de ética” e “A moral é uma idiossincrasia de degenerados, que provocou danos incontáveis”. São perfeitas, pois ninguém precisa de moral para nada. Precisa, sim, de contratos, de tratos. Para minha idade, seria pesado agora fazer um seminário sobre Joyce, mas quero tomar alguns pontos. Joyce nasce em 1882 e morre em 1941, aos 59 anos, pouco depois de Freud. Ele escreve Dubliners (1914), Retrato do artista quando jovem (1916), etc., leva quase dez anos para produzir Ulysses (publicado em 1922) e mais dezessete para o Finnegans (publicado em 1939). Ele não tinha preguiça ou pressa, devia saber o que fazia. Dezessete anos in progress, como os dezessete anos quase que concomitantes com a decadência de Freud, de seu câncer. Coincidências estranhas. Fiquei com a impressão de que ambos estavam esperando por meu nascimento para encerrarem a questão, para concluírem que estava, enfim, entregue... (Eis uma paranoia bonita). Por minha leitura e pela aplicação de meu aparelho, faço a suposição de que Ulysses, após algumas tentativas – melancólicas, é o caso de dizer... (Vejam a visão dele ainda jovem considerando as coisas: o último conto de Dubliners se intitula The Dead, que é singular e plural – mas os mortos eram as pessoas). Ulysses, um livro difícil, mas compreensível, segundo certos autores, tem o percurso copiado do Ulisses da mitologia grega. Alguns querem provar que o percurso é ponto a ponto. Não sei se devo concordar com isto, mas, se for verdade, é até legal, pois é como se Joyce estivesse tentando encerrar um ciclo 50
SóPapos 2018
em busca de outro: em algum ponto a coisa é circular, retorna. Podemos falar em ciclo porque ele era fã e seguidor do pensamento cíclico de Giambatista Vico, autor de Scienza Nuova (1725). Talvez tivesse mesmo que buscar na Odisseia o percurso de Ulisses para descrever o acontecimento de um dia (16 de junho de 1904), o périplo de Leopold Bloom. Por que será, aliás, que isso pegou a ponto de 16 de junho ser comemorado como Bloomsday? O personagem e o percurso do romance são muito descritivos – esta é minha suposição – da decadência do Terceiro Império. Ou seja, Ulysses é uma visão tipo Vico do término do Terceiro Império. Importante é que o texto termina com o monólogo de Molly Bloom, com ela gozando: “...I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes”. É o “yes, yes...” que se ouve nos filmes pornográficos. Mas Molly gozando não é a decadência do Terceiro Império, e sim a chamada para o que vem depois. O pessoal, na época, não suportou o livro porque faz todo o desempenho de decadência do Terceiro Império – de império cristão, etc. – para, no fim, perguntar: E agora? Agora, passemos adiante. Então, é o gozo feminino que é o caso, é o sim. As mulheres são invejadas por gozarem demais. Os homens são uns fracotes, na segunda já estão morrendo. O que vem depois? É o Sim! O Sim é o Quarto Império – que está descrito no Finnegans. Não está descrito como Império, e sim, digamos, como fórmula. (Em minha casa havia uns cupins eruditos que escolheram para comer todos os volumes de Joyce, a edição inglesa de Finnegans com minhas anotações, os cinco volumes da tradução brasileira...) A palavra Finnegans em latim, pelo menos em parte, é Fim. É, então, o retorno do Fim – Finnegans Wake – e a formulação do Quarto Império. Olhem o que está acontecendo no mundo, deem uma olhada no Finnegans, e verão a Zorra Total: a afirmação total de qualquer coisa, de qualquer ordem. Está tudo lá. Por isso, não considero que Joyce seja uma apropriação psicótica. É uma apropriação Progressiva. Lacan puxou Joyce para sua brasa. Puxo-o para a minha. O interessante é a data. O Finnegans, como disse, foi publicado em 1939 – é muito cedo para alguém já ter uma visão do Quarto Império, baseado na dissolução que vê do Terceiro. Há que 51
lembrar de que Joyce demorou dezessete anos fazendo, que jogou a primeira versão no lixo antes de inventar o Finnegans que conhecemos. Ele é uma antena terrível. Como sabem, foi do Finnegans que retirei a palavra Revirão. A última linha do livro é: “A way a lone a last a loved along the”, e a primeira: “riverrun, past Eve and Adam’s, (…)”, um fim que retorna. Falei com Glauber Rocha, na época, sobre seu livro mais louco, Riverão Sussuarana (1977), em que ele teria copiado mais ou menos a sonoridade de Joyce. Disse-lhe que o nome certo era Revirão... O Finnegans é, então, a emergência e a formulação do Quarto Império. Trouxe estas considerações como encaminhamento de leitura e maior desenvolvimento. Querem dizer algo sobre isso? • P – O conto The Dead termina com um verdadeiro monólogo: “...His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead”. É a narração sobre um marido insone pensando no que, antes de dormir, sua mulher lhe dissera a respeito da súbita lembrança – uma virada lá pela metade do conto – de um rapaz que se deixara morrer de amor por ela aos dezoito anos de idade. Ele, o marido, jamais imaginara que ela pudesse ter um sentimento daquela intensidade, e tampouco que fosse tão pobre a parte que ele, marido, desempenhara na vida dela. Esse texto final deve ser o prenúncio da Molly. Joyce passou toda sua vida com os mesmos problemas, com sua mulher esquisita, quase cego... • P – Joyce fez análise com Jung. Seu medo era ser psicótico porque sua filha era. Jung lhe disse: “Enquanto ela afunda, você nada”. Esta é uma interpretação preciosa. Aquilo nele não é psicose. Ele é que não sabia como lidar com o troço que lhe caiu na cabeça e foi construindo, construindo – e talvez não haja, em sua época, outro autor com essa visão de Quarto Império. Beckett, Svevo e alguns outros consideraram o Quarto Império, mas sem potência de mostrar sua fórmula. Duchamp, para mim, também é alguém de endereçamento de Quarto Império... Mas, pelo percurso do Terceiro Império morrendo, e jogando para a frente uma afirmação do-que52
SóPapos 2018
quer-que – pois é isto que o Quarto Império terá que atravessar (e sequer está conseguindo chegar ao começo) –, Joyce traz sua formulação. Então, como pode haver uma afirmação do-que-quer-que e, ao mesmo tempo, uma organização dos conflitos? Eis algo muito difícil. O Quarto Império é partido entre estas duas posições, tem uma força para cá e outra para lá. Por enquanto, vence a que puxa para cá. Certamente, aparecerá uma tecnologia que dará uma porrada geral... Para mim, Joyce entendeu a formulação, meteu tudo em termos de Sim no mesmo saco ao mesmo tempo. Como está na música dos Titãs: “Tudo ao mesmo tempo aqui e agora”. Ou seja, algumas pessoas sentem o processo bem cedo. Por isso, acho Joyce muito precoce. Se começou a escrever dezessete anos antes de 1939, em 1922, logo depois de Ulysses, aquilo passa de um ao outro livro pela Molly. Molly é a passagem. Pode-se traduzir o Finnegans Wake como Despertar de Finnegans, como Finnicius Revém, como Retorno de Finnegans... Prefiro Retorno por Joyce pensar com Vico. Corso/Ricorso, Revirão, NovaMente... são do mesmo saco, da mesma farinha. O Riverão, de Glauber, também (aliás, muitos não o entendem devido à sua visão doida e apocalíptica). • P – Retomo seus conceitos de Criação e criatividade, e de outros autores que pensaram nessa linha (Ezra Pound, por exemplo, que distingue entre inventores e diluidores). Pergunto: em termos de literatura brasileira – principalmente de Gregorio de Matos para cá, passando pelos românticos, pelos realistas, pelos chamados pré-modernos –, teríamos efetivamente um caso de Criação? Em certo momento, pensei que Machado de Assis fosse um caso. Hoje, não tenho certeza. Como sabem, coloco a Criação na ordem do Evento – e evento é singular. Suponho que não tenhamos tido um evento literário nosso. Temos produção literária da melhor categoria, mas não evento literário. Para mim, Machado é um tesão histórico-literário: escreve muito bem o já escrito. Aliás, acho José de Alencar superior a ele. Será que malucos como Sousândrade e Qorpo-Santo estariam na Criação? O que temos é a noção de Antropofagia, de Oswald. Esta é uma eventualidade nossa. (Também sou antropófago: fui lá comer o Lacan...) Ou seja, foi inventada uma postura de arte, de alguém 53
que come de tudo e caga numa merda só. É como dizia Gilberto Freyre: “Tiro leite de muitas vacas, mas o queijo é meu”. Toda vez que se consegue, de fato, ser antropófago e brota algo, este algo não há em outro lugar. O processo não é criativo de saída, quando se vai às vacas, e sim quando se faz o queijo. Quanto a isto, não se deve nada a ninguém. A Semana de Arte Moderna, de 1922, foi o que salvou a arte brasileira. E nos esquecemos de que temos um teorema inteiramente regulado e expressado: Macunaíma (1928). Pode-se jogar fora o resto da produção de Mario, pois Macunaíma sobrenada. Ele tomou o caos da produção do Brasil e fez apenas um personagem que revira para qualquer lado. É fagocitante, é a construção de nosso modelo, aquele que descreve o que somos. É a nossa fotografia, a fotografia desta joça. É um modelo propício para o Quarto Império por ser maneirista, e aqui no Brasil tudo é essencialmente maneirista – até a Justiça. Basta ver o ex-Presidente, ontem, se recusando a cumprir o mandado de prisão, dizendo que só irá para a cadeia amanhã [domingo]... São uma trama e um jogo bem nossos. • P – Macunaíma é uma peça de Mario de Andrade, que, segundo ele, foi escrita em uma semana. Ele tomou integralmente de um texto de KochGrünberg o personagem, que é venezuelano, no qual faz as mutações de mitos, de língua. Então, na vertente da Fanfiction, sobre a qual você já falou aqui, se pensamos que toda literatura é fanfiction – Cervantes, Shakespeare, Homero, textos bíblicos... –, onde estaria a ordem do Evento de que Joyce seria um caso? Segundo meu princípio – que, como sabem, não é Real, Simbólico e Imaginário –, há que situar o evento na borromeaneidade, se quiserem, de Primário, Secundário e Originário. Se procurarmos o evento literário apenas no Secundário, não o acharemos. Macunaíma, para mim, é um evento total. Dentro de uma ordem de nacionalidade, etc., pegou no mundo, como todos fazem, mas eventualizou como Caso. Então, se não for especificamente um evento literário, é um caso. Não é um evento da literatura, é um caso. É difícil dizer que Joyce não seja um evento literário – embora se possa questionar, pois lá sabemos onde ele foi buscar aquilo? Macunaíma é um evento que não é literário, é um evento como um caso total (Primário, Secundário e 54
SóPapos 2018
Originário). Quando alguém faz um evento estritamente literário, o evento literário é estritamente secundário. E para considerarmos que é um evento do Secundário, ele terá que ser predominantemente do Secundário. Se entramos na estrutura total, há eventos históricos. Macunaíma pode ser um evento da sintomática brasileira. Ou seja, a sintomática brasileira tornou-se expressa numa produção de arte que marcou o ponto. Se é um evento literário, não interessa. O próprio Mario disse que não é, que suas fontes estavam aqui e ali. O pessoal tem dificuldade de entendimento por pensar que cada brasileiro seja aquilo. Não é. Aquilo é a multidão brasileira, vários aspectos. Quando Macunaíma passa daqui para ali, ele está mudando de gente. O brasileiro é composto disso. • P – Haroldo de Campos elogia Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, mas diz que Macunaíma o superou em excelência. Haroldo e o irmão são apaixonados pelo Secundário, querem transformações produzidas pelo Secundário. Miramar é muito literário, machadiano. Macunaíma não é algo do Secundário, ele tem carne, fede, é quase uma Pessoa... Ele renasce estraçalhado, o que prova que isso está espalhado por aí. Ele vira constelação. Guimarães Rosa levou dez anos montando o Grande Sertão. Um dia, foi para a casa de sua amante – a filha dela que lá estava é que me contou –, ficou uma semana trancado num quarto e redigiu o livro. A digestão é longa, mas despeja-se rápido. Modestamente comparando com o que aconteceu com minha tese de doutorado, lembro-me de que levei sete anos lendo Primeiras Estórias sem entender, só anotando. De repente, saquei e redigi rapidamente. A gestação é que é longa. O mesmo me aconteceu com o quadro As Meninas, de Velázquez. Impliquei com o texto de Foucault sobre ele, não gostei, e fiquei debruçado com régua e compasso durante três anos até achar e apresentar em meu Seminário de 1981. • P – O sintoma do Brasil está calcado na ideia de família? É o Terceiro Império, que não é necessariamente regido pelas articulações sociais, e sim pela ideia de Paternidade. É o império do Filho, 55
da fraternidade, a qual pode ser buscada onde quisermos. Até no lixo que foi a Revolução Francesa. Vejam que o Segundo Império ainda está aí. Quando falo da passagem dos Impérios, trata-se da passagem de ponta, pois o resto está infectado pela sintomática dos impérios anteriores. Eles estão aí até hoje. Tanto é que podemos ter a questão terrível do retrocesso.
11 Há pequenas coisas que fazem uma enorme diferença. Sobretudo, uma diferença de protocolo de funcionamento (o que muda a estrutura de pensamento, e não o tesão de alguém). O modelo estruturalista, de todo estruturalismo, em todas as áreas, está assentado na Falta. Todos reconhecem que sentem faltas, dor de barriga... há coisas faltando. O que interessa é saber se o que é substrato desta falta é por um modelo de falta ou de excesso. Não cabe pensar que, se o modelo for de excesso, não sentiremos falta. Nosso movimento cíclico, e mesmo biológico, é gerido por uma falta ou por um excesso? Se formos geridos por um excesso, sentiremos falta. Estamos pedindo demais. Excesso é isto: pedir além da conta. Como temos uma constituição faltosa? Minha discordância para com a posição estruturalista é que nossa condição de gente, de psiquismo humano, é de excesso, é excessiva. Estas críticas ao estruturalismo já foram feitas por Bataille, por Deleuze, e fundamentalmente por Nietzsche. • P – A forma como Freud começa aquela situação com as histéricas e como vai encaminhando a questão indica que entendeu que lá havia uma experiência excessiva, uma intensidade para a qual não se dispunha de 56
SóPapos 2018
medida. Ele via uma dissociação que se situava aquém dessa experiência. Já a leitura de Lacan, que traz a falta, é por demais enviesada. Vem de Lévi-Strauss, cujo projeto Lacan comprou quase que por completo. O que se apresenta para qualquer um como demanda é claramente da ordem da falta. Se alguém demanda algo é porque não tem. Minha pergunta é: por que alguém quer? Porque falta? Quem mandou ele querer? Cachorro e cavalo têm isso? Eles têm necessidades – que podem ser chamadas de falta – do Primário. Já a falta nossa é gerida por um processo específico da espécie. Lacan achava que o que nos especificava era sermos falantes. Acho que ser falante vem depois. Somos falantes por sermos completos e revirantes – e somos amputados por razões de estruturas de vida, estruturas primárias... Não se apresenta completude alguma para nós. A função do Revirão é mostrar que estamos sempre agindo pela metade, sem condição de agir por inteiro. Aí, as histéricas ficam correndo atrás da junção, querem juntar tudo. E os obsessivos ficam pulando de um lado para outro: é isso / não é isso... Por que, diferentemente de outros animais, fazemos assim? Porque nossa estrutura é em Revirão. Estamos sempre sendo questionados pela ausência – e não falta – de um lado. E demandamos este lado, o que dá a impressão de que ele falta. É o contrário, ele está sobrando. Quem mandou que o pedíssemos? Ficamos pedindo por sermos excessivos. • P – Isso decorreria de uma operação de Recalque? O recalque de todo dia é descendente do Recalque Originário. Pensar assim não está em Freud ou em Lacan. Este, aliás, nem entendia o que era o Recalque. Freud colocou o recalque originário, tentava explicá-lo sem conseguir. Dizia que era uma conjetura para dela retirar a ideia de recalque. Mas não é conjetura, é mesmo, completamente concreto. Isto porque o não-Haver não há. Freud até tentou ir pela segunda lei da termodinâmica, mas sua ideia ficou meio frouxa. Folheando o último livro publicado no Brasil de Carlos Rovelli, A Ordem do Tempo, vi que ele está comigo. Diz que pensamos que as pessoas se movimentam por estarem cheias de energia, mas é por uma questão de entropia. O que nos move é a entropia. Os demais animais, que não são revirantes, são devorados pela entropia sem que façam conjetura alguma 57
sobre ela. Mas nós, por que não queremos aceitá-la? Ficamos procurando em laboratório remédios para viver mais tempo, algo para produzir a eternidade do corpo... É imbecilidade de quem? De Tesão. Isto porque vivemos em excesso, queremos mais e temos um aparelho que considera a entropia. Para os bichos, que envelhecem, todo dia é o mesmo. Se ele mudou dali para aqui, ele está aqui e pronto! E nós, onde estamos? Como não sabemos, começamos a inventar coisas. • P – Você, em 1996, ao falar da “monstruosa progressão”, trouxe o “silogismo da entropia”: se ficar, o bicho pega; se correr, o bicho come. Nosso drama é o de ter aparecido um aparelhinho que é o mesmo que está na suposição de Haver – o Haver é esse aparelho – e que se repete em algum lugar. Aqui se repetiu nesta espécie nossa. Ele, por pensar em oposições, questiona a temporalidade, a falta de coisa nenhuma... Você é quem fica inventando faltas. Não está faltando nada, mas você não sossega. • P – Fica até tentando inverter o vetor entrópico. Há um monte de cientistas tentando invertê-lo, mas não conseguirão. No que não conseguem, inventam tecnologias interessantes, agradáveis. É por aí, é o defeito da espécie. Os demais animais são felizes. Nós podemos ter do bom e do melhor, mas é uma infelicidade só. Está faltando o quê para nós? “Você tem fome de quê?”, como cantam os Titãs. É tudo uma fome. O verbo comer e a ideia de fome são uma espécie de analogia para todos os nossos processos desejantes por excesso. Comemos mosca, comemos de tudo... O estruturalismo operou sobre o procedimento, o comportamento, da falta. O comportamento da gente denota a falta o tempo todo, mas não se perguntou por que a gente sente falta. É pelo excesso. A espécie humana não sente uma falta imediatamente primária como o bicho que, ao ter fome, quer comer. Seu modelo é cibernético, mas com funcionamento automático. Nossa espécie, ao contrário, toma um excesso para além da fome e cria coisas como a arte culinária. Não nos contentamos com apenas matar a fome. Em algumas religiões, há uma verdadeira luta com isso. O estoicismo, por exemplo, dizia que, para não sofrermos muito, há que segurar o desejo; o 58
SóPapos 2018
budismo suspendia o desejo... Há dois modos de lidar com isso. Um, é a via de Nietzsche: sair desenfreado com seu desejo, botar para quebrar. Outro, é não querer se aborrecer, pois a vida está muito cansativa, etc. Há, pois, que esquecer-se do desejo, como apregoam os estoicos. Já notaram que, no decorrer da vida, ao levarmos uma porrada, logo ficamos estoicos? Estamos decepcionados, dizemos que não mais amaremos ninguém... Cada um busca regular seu movimento, para mais, para menos, segundo o gosto e o interesse do momento. A psicanálise tenta fazer com que a pessoa entenda que há que se mancar e aproveitar o que der. Não há que ficar lutando com seu tesão, e sim dar jeito de torná-lo artístico. Fazê-lo arte, inclusive a arte da sacanagem. As pessoas trepam mal por entrarem na compulsão erótica sem entender que é arte, que se trata de fazer uma obra de arte com todas as invencionices possíveis. Não se pode tratar a sexualidade humana como a do bicho, mesmo porque este é um broxa, só de vez em quando fica com tesão. A fêmea tem que entrar no cio para ele se lembrar. Nós não, só pensamos naquilo, o que tem várias faces. Pode ser qualquer tipo de arte. Qualquer tipo de arte, aliás, é pensar naquilo. Não há motor algum para nada que não seja isso. O fato de esse sexo estar alojado em certas partes e adjacências do corpo é apenas uma das situações. O sexo não é isso, e sim o que causa isso. O sexo é o fato de termos uma Quebra de Simetria impossível de apagar. De modo um pouco ingênuo, o estruturalismo constituiu a falta, que percebemos como garantia de seu processo teórico, sem se preguntar sobre o porquê da falta. Repito que é por causa do excesso. O mesmo ocorre com a sexualidade, cuja história é constituída sobre os efeitos eróticos. A palavra sexual está deslocada aí, não é o sexual. São os efeitos eróticos da sexualidade, o que não é o sexo de cada um. Este é um pobre diabo que vive sofrendo do empuxo do sexo que está lá longe. Empuxo do Sexão, como chamo. Entender isso é necessário para continuarmos pensando sobre a transformação contemporânea.
59
12 Vivemos um momento que não é de mera diferença ou de mera evolução, pois acontece algo muito para além do que se pensou até hoje. As pessoas continuam viciadas em pensamentos antigos, que terão que ser jogados no lixo para que tudo possa recomeçar. O próprio movimento progressivo da espécie chegou a um ponto em que aboliu, zerou, o para trás. E isto não é ir longe demais, é só o Terceiro Império que morreu. Como o Planeta, mesmo os não cristãos, está viciado em Terceiro Império, dá a impressão de uma grande mudança. Já houve outras mudanças antes. A própria entrada do Terceiro Império foi horrível, mas é ainda muito careta, muito referenciado. Como o Quarto Império não tem essa referência, fica um jogo difícil. Há quanto tempo dura a história da filosofia? Dois mil e quinhentos anos, o que é nada. O Segundo Império, disfarçadamente por baixo do judaísmo, já tem cinco mil. Mas ele é uma crença regional, não se tornou um império mais... Já morreu há bastante tempo, mas, como as pessoas são viciadas, ele ficou aí: uma religião, uns cacoetes... Acontece que a pessoa com mentalidade de Segundo Império está vivendo no Terceiro, e nada há fazer quanto a isso. McLuhan, repito, é quem tem razão. Pensamos que são nossos planos, nossos projetos, nossas produções que criam os processos. Não são. Se mudarmos a tecnologia, o mundo muda – e ficamos correndo atrás para ajustar. Vejam que judaísmo, islamismo e cristianismo ainda estão aí, mas o mundo não é mais isso. Aliás, o mundo não está nem aí, e as pessoas ficam fazendo esforço para dar conta do que acontece com ferramentas antigas. McLuhan já disse isto, literalmente. Elas se cansarão e, como eu também já disse, as gerações morrem. Nasce uma gente mais disponível para seu tempo. O que custam a entender hoje é: Acabou! Estamos em outro universo, o qual já está aí. Como não se conversa com ele, fica a guerra na face do planeta. Não é preciso mais de guerra mundial, ela está espalhada por todos os lugares. Vejam que o que temos hoje é uma guerra armada sobretudo no Secundário. 60
SóPapos 2018
Antes, era no Primário, o pessoal tomava tiro. O pessoal de extremo poder produz bombas e armamentos como teatro, para cada um mostrar ao outro que tem o pau maior. A guerra vai piorar, mas será no Secundário, será cada vez mais soft, com hackers – que são os soldados contemporâneos – fazendo grandes estragos. A guerra é lá em cima, acaba com a privacidade das pessoas e das nações. Ou seja, o planeta saiu do armário. É uma guerra permanente, espalhada e rapidinha, entre sistemas computacionais, que finge que vai fazer a guerra de verdade, aquela primária. E a maioria da humanidade já está em outro analfabetismo, o digital. A escrita foi para o beleléu. Aí é que entro com Joyce, sobre quem lhes falava outro dia, pois ele viu tudo isso. A informação completamente caótica, que língua está sendo falada? Ele que sabia dezoito línguas achou e disse o que estava vindo como acontecimento disseminado: todos falando javanês. McLuhan percebeu essas coisas porque sua vida foi em torno das técnicas. A coisa é tão rápida que vemos Lacan, que é de anteontem – nasceu em 1901, morreu em 1981 –, já estar completamente velho. Não porque não fosse bom, ele era gênio, mas estava em seu momento. Quando comecei a falar dele no Brasil, era apedrejado, fui chamado de maluco. E, num instantinho, ainda dentro da vida dele, aquilo colou e não mais descola. Sinto muito, mas repito: já se tornou velharia. Uma velharia de meras tentativas. Era notório em Lacan, em seu comportamento, que sempre estava em tentativa – sem conseguir. Por exemplo, durante décadas, fingiu ser matemático para, no final, dizer: le truc analytique ne sera pas mathématique. Ah bom, entendeu! Mas os lacanetas ficam repetindo coisas do começo, ou seja, repetem o processo dele que deu... em nada. Aliás, isto – ter dado em nada – é que é o bacana nele. • P – É um patamar que estaria levando para a sua teoria? Por exemplo. Não posso ficar livre disto. Se espalharmos esse acontecimento pelos processos de cognição, veremos que todas as áreas devem estar falseadas. Falei da psicanálise de Lacan por ela estar perto, por eu ter convivido com ela, mas, repito, isto aconteceu a todas as áreas, na biologia, na física... A física passada situava os 61
processos universais em função de energia. Basta ver Einstein: E=mc2. Agora, Rovelli, que citei, reconhece que o que move não é a energia, e sim a entropia. (Ganhei ponto aí, meu narcisismo cresceu, pois eu disse primeiro). A entropia é o que move, e a energia é resultante. Vejam que foram séculos e séculos para entendermos um pouquinho. • P – O próprio Einstein disse algumas vezes que a entropia devia ser considerada a lei número um da física, mas não criou um sistema para isso. Alguém como Einstein faz grande esforço para conceber uma teoria de base para, depois, desenvolver e fazer outras. Há um momento em que aquela teoria se fecha e, mesmo tentando, fica difícil para ele sair e fazer outra. Não há nada a cobrar dele. A cobrança vai para aqueles que nada fizeram. Aliás, quando digo que “Haver quer não-Haver” é uma constância – que remete à primeira lei da termodinâmica –, não se trata de uma constância energética como era o princípio de constância em Freud. • P – McLuhan, mesmo hoje, não é bem aceito. Tomem uma cabeça como a de Heidegger, que não tem condição de entendê-lo. E McLuhan entende Heidegger... • P – Quem estudou nos anos 1960-70, aprendeu que o importante são as ideias, e os meios não interessam. Mas vivemos um surto tão violento de tecnologia de ponta em que noventa por cento da humanidade atual não servirá para nada dentro de cem anos. É, como disse Peter Sloterdijk, um parque humano. Os americanos falam em useless. “Nós somos inútel”, como cantava o Ultraje a Rigor. É tudo uma questão de Poder. Que poderes foram capazes de calar o movimento – que, na verdade, nunca parou, mas está oculto, recalcado – de referência à tecnologia, ao meio? Freud dizia que o neurótico tem poderes, sim. Poderes estúpidos, que o mantêm paralisado na neurose. O social, a cultura, a política, também têm esse tipo de poder imbecil, que não deixa a coisa melhor tomar o poder. E é o mais espontâneo, pois sempre será a maioria estúpida. Muitos já disseram que a democracia é a ordem da estupidez. É a ordem do 62
SóPapos 2018
poder do Estacionário. Cientistas políticos dizem que, das formas de governo, ainda é a melhor. Não sei se é. Até o pobrezinho do Platão pensou melhor do que isso, que o governo devia ser dos filósofos. É uma situação difícil, pois a inércia é enorme – e ela não é inútil. Ela faz lastro para o Progressivo poder caminhar devagarinho. Isto porque, se ele desembesta, é o inferno. Não há como eliminar a redundância, se não, despiroca-se. Democracia não existe em lugar algum, é uma maneira de as pessoas fingirem que estão fingindo. O Brasil, por exemplo, é uma plutocracia oligárquica e, como disse Faoro, patrimonial. • P – A questão está no modo nosso de funcionamento entre entropia e neguentropia, entre redundância e caotização. Turing, mediante o algoritmo, inventou o caminho mais curto para cruzar uma enorme quantidade de informação. Vemos, pois, que sofremos de um turbilhão de possibilidades e pequenos caminhos e, ao mesmo tempo, produzimos pequenos sistemas que ajudam a dar a impressão de organização à briga sistêmica entre um campo de informação e um bilhão de possibilidades disponíveis. O impressionante é alguém do século XIX ter apontado para tudo isso, o Dr. Freud. Se soubermos lê-lo, perceberemos que ele estava vendo o funcionamento de tudo isso. A entropia é filha do excesso. Essencialmente, o desejo é de Impossível. Isto é que é o excessivo. Se fizermos a suposição de um Impossível Absoluto, que chamei de não-Haver, veremos que ele se rebate dentro do Haver como impossíveis locais, modais. A vida inteira o que fazemos é lutar com impossíveis modais. Muitas vezes os superamos – para cair no impossível modal, no impossível modal... A sede é de eliminar o Impossível, só que não há como. Falamos em interdições, deparamo-nos com elas, mas são apenas imitação do impossível modal, pura imitação secundária do que é modalmente impossível. Não é impossível, nem mesmo modal, são um abuso político criar-se uma proibição que finge que é impossível passar por tal fronteira. Toda lei é indecente.
63
13 Como não há os conceitos de Revirão ou de Terceiro em Freud e Lacan, eles não podem dizer, como digo, que o Inconsciente propriamente dito é Terceiro. Isto porque falamos antes nos dois alelos opositivos do Revirão, se não, seria primeiríssimo. Para conseguir alguma mutação no sistema de pensamento do Estacionário, seja para um ou para outro lado, o que se pode conseguir em qualquer análise é: levar a pessoa a considerar o Terceiro, sempre. Considerar e retornar à oposição, pois, do lado de cá, não há Terceiro. Percebemos claramente na chamada histeria que o movimento da pessoa é no sentido de querer juntar os dois alelos. Ou seja, é o modo errado de ir para o Terceiro. Não há a coincidentia oppositorum, pois o movimento é do Terceiro para cá, e não o contrário. Vejam que Nicolau de Cusa percebe, dentro dele, essa coisa histérica e pensa que há que tomar e juntar os dois para ir ao lugar certo. Perceber que há que ir lá é algo inteligente, mas querer juntar é histeria. Já o dito obsessivo fica pulando de um lado para outro. Mas não fica pulando porque as duas posições são dele. Uma é dele, a outra é do outro. O que cabe à psicanálise é ajudar a pessoa a reconsiderar sua posição, entender que as duas são possivelmente dela e que ela tem que se virar. Não adianta ficar pulando, há que escolher um lado e ir. Por que tem que ficar dando satisfação para os outros? Porque está escrito no projeto da polícia, ou seja, do Estado, como disse Hegel. É, aliás, o problema de Lacan com o tal Grande Outro. Ao falar em Alteridade Radical, estou dizendo que, se destampamos a panela do recalque e temos condições de abordar o Terceiro, começamos a ser nós e o outro. Assim fazendo, qualquer um se considerará uma Terceira Pessoa. Isto é a alteridade radical. Não ficará como o neurótico dizendo: “Eu sou assim”, “Eu sou assado”... Pensará, sim, que não sabe quem é, embora seja. Já perdeu a noção. É um exercício fundamental em que começa a olhar sua 64
SóPapos 2018
vida, sua história, seus comportamentos como um Terceiro. Acha engraçado aquele cara, as coisas que faz... Enquanto fala em termos de Eu, não está se vendo, não está enxergando nada. Mas como tomar essa posição terceira? Há que abandonar os dois lados, saber que há um que funciona para ele como sintoma estúpido e irrecuperável, e que, no entanto, há um lugar que possibilita observar isso como se fosse de outro. Alguém aqui tem a experiência de olhar para sua história, sobretudo aquela lá de trás, e perceber que nada tem a ver com aquilo? Que é apenas a história de tal personagem? • P – Suponho mesmo que, sem esta experiência, mínima que seja, não haverá o passo seguinte da história da pessoa. A história anterior fica perseguindo o tempo todo. É o que Freud veio dizer, que você fica eternamente uma criança, reclamando de papai e mamãe. É, aliás, espantoso que pessoas tenham papai e mamãe. Já repararam como neurótico tem família? • P – Mas isso não está mudando? O que está mudando atualmente é a transa lá fora, que acaba transformando alguma coisa. Mas, no espontâneo, não mudou para valer. Em algumas regiões mudou um pouco, e a consideração sobre isso está meio perplexa. Vejamos um exemplo aparentemente edipiano, mas que não o é. Desde quando, no percurso de alguém – analítico, etc. –, seu incesto está permitido? Quando está permitido, elimina-se a proibição e se entra no Juízo Foraclusivo. Todos quererem comer aquela senhora é um ponto fundamental, pois o Édipo, de Freud, é construído sobre a interdição, e não como possibilidade. Retomem o texto dele e verão que deixa chegar perto, mas precisa da sustentação analítica do Édipo. Se a pessoa resolve o tal Édipo, ela acabará comendo a mãe de algum modo – ou o pai, sei lá. Aliás, Eletra não existe. Observem que a interdição é um problema do Secundário, pois nada existe interditado no Primário. Existem maus resultados, mesmo entre os animais. A procriação meio de araque pode trazer um problema biológico. Se algum defeito genético ali estiver, as resultantes serão por ali, defeituosas. Artaud diz sobre Heliogábalo, cuja mãe transava com todo 65
mundo, que ele nasceu num leito de esperma. Era uma proliferação orgástica, sem um pai definido. Não dá certo tentar colar o Secundário no Primário. O Primário não tem interdição, e sim realidades, funciona assim, assado... O Secundário, que é soft, começa a querer fingir que é Primário. Mas não é. As leis são todas muito precárias, há que jogar com elas, e não acreditar. Acreditar nelas virou obrigação porque há a polícia. Sem polícia, o Estado iria à falência significativa. Como misturamos essas duas coisas na cabeça, não entendemos mais nada. Do ponto de vista de saúde psíquica, o incesto é absolutamente permitido. Pode dar problema, mas é permitido. • P – A interdição também dá problema. Também dá, mas, segundo Lévi-Strauss e Lacan, organiza o social. • P – Você está dizendo que comer a mãe está na fantasia de todos? Pior, a fantasia é ter comido a mãe. Foi você quem comeu a velha. Passou nove meses lá chupando o sangue dela, e depois mais tempo chupando seus peitos. Ninguém consegue mais comer alguém assim. Vejam, portanto, que se trata de um golpe de Secundário que organiza o social. Coisa que não há no mundo animal. Lá, a organização é primária. Em última instância, mãe é um conceito que colocamos sobre alguém. Não podemos esquecer que estamos lidando com conceitos de organização do social humano. Se conceituarmos de outro modo, tudo mudará. Depois que o Quarto Império começou a entrar, tudo se desarvorou. E, repito, antes de melhorar, vai piorar muito porque os conceitos anteriores perderam a significação. Até o fim do século XX, fim datável do Terceiro Império e começo do Quarto, os conceitos concretamente perderam a força. Isto porque a tecnologia dissolve tudo. Como sabem, digo que a ciência serve para virar tecnologia. Se não virar, terá que virar algum dia ou ficar aguardando virar. Para que quero saber as coisas? Para mexer no mundo, para melhorar minha vida. É tudo interesseiro mesmo. Acaba que, na inversão dos processos, a ciência é filha da tecnologia. Mesmo porque o homem primitivo não pensava em ciência, e sim em técnica: acender o fogo, matar o bisonte... Depois, isto passa a ser abstraído como força produtora de 66
SóPapos 2018
tecnologia sofisticada: ir à lua, a Marte, achar um buraco de minhoca para chegar a outro sistema solar... Ou seja, não quero saber de nada que não me seja útil. Ser útil é: tecnologia. Aliás, às vezes quero saber, mas não tenho recursos para transformar o saber em tecnologia. Terei que esperar o surgimento de outros recursos. Quem manda é techné, o que importa na vida é Arte, o resto é só figuração.
14 Como sabem, incluo a chamada natureza no que denomino Artifício Espontâneo, pois lá também há artifício, ou seja, articulação. A virada, insuportável para muitos, do século XXI é esta. Quanto a isto, leiam A Metamorfose do Mundo, de Ulrich Beck (Jorge Zahar, 2018). O autor morreu em 2015 antes de terminar de escrever e o livro foi finalizado por outros. Começa lamentando não existir ferramenta conceitual para pensar o que acontece hoje. Em seguida, procura os fenômenos contemporâneos no mundo para, daí, tirar a ideia de metamorfose. Vê, então, que o que está acontecendo não é apenas uma questão de mudança. Esta é interna a uma configuração. Por exemplo, o capitalismo já passou por inúmeras mudanças, mas continua aí. Não se trata mais disso, e sim de outra coisa, de metamorfose, de transformação: não é mais a mesma forma, é outra. O livro é meio chato, pois, ao invés de tomar um conceito e aplicar, toma todas as situações para, delas, retirar o conceito de metamorfose. Ele descobriu o que há tempo venho desenvolvendo como Creodo Antrópico. Quando se passa de um Império a outro, é metamorfose, pois entra uma situação que 67
descompõe, desconfigura, a anterior. Reconfigura-se no Império seguinte. (Quando era garoto, tive a paciência de ficar ao lado de uma lagarta até que virasse borboleta. É algo fantástico ver a lagarta paralisada, hipnotizada, até transformar-se. Dá a impressão de que uma forma é incompatível com a outra – no entanto, saiu de lá). No Creodo Antrópico, o que temos é a metamorfose da passagem em forma de ‘caminho necessário’ (que é o significado de ‘creodo’), mas não de transformação necessária. Ela pode paralisar-se em algum lugar. No caso desta nossa espécie, aqui neste planeta, ainda que demorando demais, a metamorfose funcionou. Vivemos, hoje, um período em que, mesmo as pessoas custando a entender, há que abandonar tudo que o século XX inventou, pois aquilo era paranoico, delirante demais. Alguns resultados podem ser aproveitados, mas não suas posturas. Estas já não servem para nada. Antigamente, falar em dissoluto era palavrão, mas, repito, a tecnologia é dissoluta, dissolvente, abstraente. Então, se, em vez de acelerar, a maioria está temerosa correndo para trás, como lidar com essa reação violenta? Por outro lado, não há saída, já que os próprios retardatários tampouco têm recursos que não sejam os tecnológicos, e não quererão abrir mão deles. A porradaria que vemos aí com religiões se disputando, com nacionalismos se afirmando, etc., é tentativa de correr de volta até para o Segundo Império. Mas se a pessoa pensa e articula logo vê que se trata é de ir correndo para a frente. Não canso de repetir que meu mestre e analista, Dr. Lacan, por mais gênio e maravilhoso que tenha sido, acabou! É impressionante que tenha morrido junto com o século XX. Ele, com aquela gente toda, LéviStrauss, Jakobson e outros, estava perfeito, produtivo, dentro da configuração do século e do Terceiro Império. A compreensão tão boa que tiveram do Terceiro Império significa sua morte, seu canto do cisne. Tudo isso não tem aplicação contemporânea. A tecnologia já esculhambou com a possibilidade de aplicação. Acabou a operacionalidade de conceitos que, lá atrás, tinham certo sentido. Por exemplo, se hoje já é possível a manipulação genética com alta precisão, para onde foi o incesto? Um conceito que segurou a organização da cultura do Primeiro até o final do Terceiro Império? Sem considerar assim, 68
SóPapos 2018
não se entenderá nada. E agora que se perdeu uma chave maravilhosa – a proibição do incesto –, a pergunta é: o que vai organizar o planeta? O autor do livro, Ulrick Beck, que fez uma grande e brilhante pesquisa, fica lamentando não dispor de um conceito para considerar a situação. Pensa ter inventado um com a ideia de metamorfose. Coisa que, aliás, já estava em Ovídio. • P – Você pode desenvolver o que disse sobre o caminho ser necessário, e não a transformação? Creodo quer dizer ‘caminho necessário’. É o caminho que há. Você o percorrerá ou não. O que acontece com a tecnologia hoje é ela estar obrigando o processo. Ela está pressionando para o caminho chegar ao Quinto Império (sobre o qual, aliás, não faço ideia de como será). Os primeiros Impérios demoraram milênios, com pequenas e prolongadas invenções, mas agora tudo está apressado. Por isso, acho que vai piorar muito até esgotar, até morrerem todos os vivos de hoje, e os que nascerem já nascerem com a nova tecnologia na carne, a qual será quase que sua natureza. Depois, tudo se organiza segundo essa disponibilidade. • P – Cairia por terra um mito segundo o qual o progresso é pacificador? A violência seria também seria uma espécie de creodo? O processo é violento na passagem. Entretanto, há processos de pacificação. Por exemplo, alguém com pneumonia no século XIII é de uma violência irrecuperável. Hoje, há um comprimido que, quanto a isto, pacificou o Primário, o que é um ganho enorme. • P – Mas o Secundário parece um processo permanente de violência. É um processo de transformação, de metamorfose. Sou contra o pensamento de que não há progresso. Há! E o progresso, para mim, tem sido pacificador. Com o saber que temos hoje, não é difícil perceber que tiramos uma porção de aporrinhações de nossa mente. Medos, sustos, terrores... Se não tivesse havido alguma pacificação, nós todos já teríamos sido jantados. As contenções sociais são pacificadoras (A polícia tem que servir para alguma coisa). 69
• P – No Rio de Janeiro, as contenções parecem piorar a violência. Basta ver a intervenção federal que há hoje na cidade. Piora porque não há essa intervenção, essa contenção. Ela é de mentirinha. O tamanho da dissolução no mundo hoje é grande demais, ela é extensa e profunda. Quem vai segurar? O próprio processo – e não as pessoas –, em algum momento, lá adiante, se segurará. A psicanálise pode servir para entender isto, ter paciência e buscar uma vida melhor possível dentro da situação. Observem que já tivemos um mundo organizado durante o Segundo e o Terceiro Impérios. Estava organizado dentro do momento e dos recursos então disponíveis. Atualmente, a organização última acabou e não se conseguiu inventar outra ainda. O próximo Império não é utopia ou alguma maravilha, será a mesma porcaria só que com um pouco mais de progresso, de recursos, de riqueza. Se o Quarto Império se instalar, demorará muito, milênios. Por isso, não há como ter ideia de como será o Quinto Império. Acho mesmo que esta nossa espécie acabará.
15 Quero, durante algum tempo aqui em nossa conversa, tratar da questão da Clínica. Notem que, lá nos tempos do Colégio Freudiano, começamos bastante lacanianos. O sentido era fazer de conta que estávamos acompanhando as posições de Lacan, que eram recentes e nem mesmo implantadas no país. Lembro de estar falando em Lacan e o pessoal ou não saber do que se tratava, ou aqueles que supunham ter ouvido falar serem contra. (Agora o lacanismo é mais que moda, é uma igreja internacional. Como foi a igreja de Freud. 70
SóPapos 2018
Aquilo é eclesiástico, sobretudo na medida em que estacionou. É, portanto, uma formação estacionária como outra. Todas as formações desse tipo – na filosofia, etc. – tendem à estagnação, à paralisação de seu movimento. Tanto é que, apesar de muitos terem pensado bastante, ainda existem patotas engraçadas na academia – heideggerianos, kantianos... –, a qual, aliás, é um museu de má qualidade. Por outro lado, o que faz qualquer um que esteja vivo em sua área é tomar os recursos que tem para pensar hoje). Retomando, vínhamos, então, na experiência, no ensino e na textualidade de Lacan. Como lhes disse de outras vezes, depois que tive a excelente experiência de conviver com o último período de Lacan – que acho que foi o melhor por ele estar destruindo o que dissera antes –, já voltei da França com a noção da decadência do processo. Como não podia começar aqui pela decadência, pois ficaria esquisito, sobretudo por eu nada ainda ter articulado, continuei dentro do processo para evitar a decadência e ver se nascia algo. Na época, não disse isto a ninguém, pois, se o fizesse, seria, com toda razão, uma debandada. O que acontece é que, se não tornamos eclesiástico o movimento, se o deixamos continuar em movimento, necessariamente – penso eu que em qualquer campo do conhecimento, mas sobretudo no nosso – há que manter o deslocamento, senão mesmo a metamorfose do pensamento, isto é, da teoria e da prática da psicanálise. Qualquer coisa que tenha ficado para trás, ficou para trás. Isto porque não é verdade, em absoluto, que o que se consegue discursar em termos de psicanálise seja universal. Podemos ter raciocínios e posturas universais, que servem para qualquer um em qualquer momento, mas a elaboração teórica do campo sempre estará subdita à ordem de seu momento. Freud, enquanto pensamento, articulação, era alguém do século XIX, que, escutando-o (pois era o século que se deitava em seu divã), tentou atravessá-lo, mas acaba nas brebas do século XX formulando vários aparelhos teóricos compatíveis com sua escuta e com sua intervenção diante dessa escuta. Ele fez isto de modo brilhante e genial, mas é preciso entender que, geralmente, a composição cênica e literária do que se diz desse momento certamente tem embutida – pois ele realmente estava pensando – vários componentes que 71
sempre serão encontrados. Entretanto, o mesmo não vale para a anedota de que ele se utilizou para explicar. A anedota edipiana, por exemplo, é mera anedota, o que interessa é o raciocínio que ela embute. Se este for passado adiante será enquanto um morfema qualquer que pode se dizer de outro modo. E tem que dizer de outro modo, pois a anedota envelhece. Já a conclusão teórica, esta, pode permanecer (ou mesmo ser derrubada na sequência). Assim, aqueles que se dizem freudianos hoje e continuam repetindo as anedotas são casos do que chamo de Morfose Estacionária. Como disse, o lacanismo desmorona em 1980 como instituição e é ultrapassado pela época. Ninguém diz nada fora de sua época. Pode até projetar, apontar futuro, mas é dentro do escopo do que está vivendo e operando. Portanto, repetindo, não existe pensamento fora de sua época. O lacanismo acaba junto com Lacan. E mais, ele foi o último estertor do século XX – século este que, a meu ver, está derrogado. É um século inteiramente paranoico, com comportamentos da pior espécie. Quem viveu lá não percebia por estar acostumado com aquele nojo. A teoria de Lacan enquanto século XX é uma teoria paranoica e sobre a paranoia. Ele a escolheu como modelo, e a construção de seu teorema cheira a paranoia. Lacan até disse ser psicótico, mas é o psicótico de época, e não de loucura. Ele funcionava na base da psicose, e mesmo reduziu a ela muita coisa que não pertencia à ordem da psicose. Joyce, por exemplo, de que falei outro dia aqui. Ele se salva um pouco não com Joyce, e sim com o Marquês de Sade. Seu texto Kant com Sade (1962) é quase século XXI. Aqueles que acompanharam meu percurso de tentativa de pensamento desde o início devem ter percebido como eu pisava em brasas. Tentava arrumar de alguma maneira, sobretudo por causa da fixação do sujeito. Inventei todo tipo de sujeito para escapar dele – até que ele morreu. Isto significa que busquei os aparelhos de nosso momento, compatíveis com o mundo em que vivemos. Não conheço outros autores que tenham feito isso. Há aqueles que ficam comentando Lacan, Freud, mas não tentam escapar do “sujeito”. Deleuze tentou, mas seu conceito de esquizofrenia ainda tem muita coisa antiga. Ele é brilhante, excelente, mas não escapou. Como eu disse, fez o que pôde em seu momento. 72
SóPapos 2018
Então, diante dessa derrocada e da tentativa de reconstrução, como fica nossa postura clínica? Há de tudo por aí, inclusive entre nós. Como o movimento foi lento, não vejo que tenha colado aqui uma posição de analistas restrita a esta nova construção. Sei que é difícil, pois à medida que, teoricamente – e, portanto, com consequências clínicas –, eliminam-se determinados conceitos por considerá-los mofados ou superados pela situação de mundo, tudo se reconfigura, não se pode mais manter a configuração anterior. Devemos conhecer estas configurações, pois têm riqueza, entendimento, mas não se pode manter a mesma postura, seu comportamento ou modo de pensar. (Nisto é que considero o lacanismo em todo o mundo uma igreja repetidora de rezas, de orações. É, aliás, algo que acontece com qualquer pensamento. As pessoas melhor pensantes já perceberam isso). Como se pode, então, reestruturar não apenas a teoria, mas igualmente a prática, sobre uma ausência de sujeito, por exemplo? No fundo, uma vez que essa categoria se repete quase que necessariamente na ordem da linguagem, da gramática, etc., ficamos impregnados de tal modo que continuamos a acreditar nela. Observem que o sujeito que está na gramática não é o sujeito de Lacan, é a designação de alguém que fala. O mais importante para sairmos do lodaçal do século XX, é eliminar o sujeito por ser impregnante demais e por já ter feito muita sujeira. Já se pensou sem sujeito no planeta. Ele não é um existente com corpo e alma, mas apenas uma ideia a respeito da constituição das pessoas. Infelizmente, a maioria dos pensadores e criadores de teoria e clínica continua com ele organizando seu pensamento. Vocês conhecem algum que não seja assim? • P – Bruno Latour, os aceleracionistas, Nick Land... Não são de nossa cepa, mas está começando a comparecer um novo pensamento contemporâneo em que o sujeito foi definitivamente derrogado. • P – Há também, no século XX, a cibernética, que trabalhava com sistemas, e não pensava em termos do humano, mesmo que se aplicasse a ele. É mais próxima de nós do que o pessoal subjetivo. Lacan mencionou a cibernética, mas não teve condições de considerá-la. Observem a ordem do 73
discurso. Quais elementos compõem a formulação? Estão lá sujeito, objeto, significante, ou seja, a regência do sujeito. Ele tentou matá-lo chamando-o de mero intervalo, mas não susteve a posição de que há uma constituição subjetiva para cada “sujeito”. Já é brilhante por ter tomado o sujeito e dito que era um buraco que ficava ali no meio. Entretanto, sobretudo para um francês, é muito difícil escapar do sujeito. Há sempre aquela saudade, aquela nostalgia, de Descartes. Lacan fingiu que foi buscar em Heidegger, mas o que fez é meio suspeito. • P – Há também Nietzsche, Wittgenstein... Há vários pensadores sem sujeito. Em nosso campo é que o pessoal não conseguiu sair dele. É uma questão de vício religioso, eclesiástico, de ficar repetindo aquilo sem crítica. Então, retomando: como articular teoricamente e se comportar clinicamente sem sujeito e sem objeto? Insisto por ser esta a matriz da questão aqui entre nós. Certamente, as pessoas estão impregnadas do anterior de tal maneira que, mesmo que repitam construções de nossa situação teórica, não estão pessoalmente se comportando dentro desse panorama. Já o expulsei, mas o sujeito não sai desta sala. De novo: como pensar, na clínica – teoricamente, várias coisas já foram colocadas –, sem sujeito e sem objeto? É um exercício que precisamos começar a fazer tanto teórica quanto praticamente. Como alguém se põe diante do analisando sem sujeito e sem objeto? • P – Há transas entre formações que não são simplesmente transitórias. Sua noção de trilhamento é importante no Primário, mas há uma transposição quando isso se lê no Secundário, o qual segue um equívoco ao tentar entender as situações específicas da IdioFormação. Identifica-se aí uma identidade, uma unidade e uma permanência que não são atribuíveis a ela. Como é uma situação que comporta sempre as mesmas formações, dá a ilusão de que uma identidade ali se estabeleceu e que esta identidade é o agente da ação, quando, na verdade, é apenas o processo que convocou as formações. As formações têm uma repetição da noção de sujeito que se deu no Secundário. 74
SóPapos 2018
A coisa se repete tanto que resta uma formação estacionária funcionando. Por outro lado, há que saber que, sem isso, infelizmente, não se vai a lugar algum, não se faz nada. Mas, em análise, o tempo todo, é preciso manter isso sob observação e tentativa de demolição. Pelo menos, para a pessoa achar suspeitas essas formações que ela carrega. O Secundário, em sua emergência, é nitidamente secundário. Na repetição é que ele imita o Primário. É o que chamo de Neo-Etologia. Mas o modo de pensar e de abordar as questões do analista nunca pode ser compatível com a estagnação. Esta é vista mediante tentativa de deslocamento, de entendimento, de pulverização. Chamo a atenção para que isto é diferente das posturas de Freud e Lacan. Ao observar o mundo, ou ao ouvir o analisando na ausência de sujeito e de objeto, o que estou tratando? Com o que estou tratando? Como funcionar diante disso? É preciso fazer estas perguntas. Evidentemente, estou falando com Pessoas – mesmo em nosso sentido de formações compostas de Primário, Secundário e Originário –, isto é, com essa trama de formações. Se um robô fizer isto, será uma Pessoa por ser uma IdioFormação. Chamo de Pessoa a IdioFormação comparecente diante de mim, a qual, por enquanto, só conhecemos a desta nossa espécie. • P – Há uma polifonia, um desentendimento entre as formações. Primeiro, em termos de existência, por terem idades diferentes. Segundo, por terem velocidades diferentes de processar as coisas. Terceiro, por experimentarem tempos diferentes. Ao nos aproximar disso, vemos que são muitas vozes. Você disse corretamente, isso é polifônico. Se não tivermos escuta para isso, nada escutaremos. Cada caso é um caso. Não podemos ser o mesmo diante de um caso que é outro. Por que Freud começa a escutar Édipo? Se todos só “falavam Édipo”, ele escutaria o quê? O que mais vemos são pessoas repetindo incessantemente sua composição neo-etológica. É aí que temos que tentar mexer de algum modo. Para tanto, há que intervir, conversar, trocar. A postura de silêncio supostamente lacaniana é mentirinha.
75
16 Aponto o que está num de meus primeiros livros, O Pato Lógico (Seminário de 1979, publicado em 1986) – é nele, e depois em A Música (1982), que eu estava começando a montar o aparelho da Nova Psicanálise –, como modelo da transa entre formações: ex-citação, in-citação e re-citação. Compativelmente com Freud, com a psicanálise, este é o modelo de qualquer Tesão e de qualquer transa sexual. É o modelo de qualquer transa, se não colocarmos sujeito algum aí. O que há são formações de um lado e de outro. Então, o que acontece a duas pessoas se um bom tesão comparece entre elas? Um é citado de fora (ex-citado) por determinadas formações que só podem citá-lo por serem compatíveis com formações que nele já estão. No que é citado de fora e há nele correspondência a esta citação, o processo é in-citativo: ele é suscitado de dentro, pois já bateu ali. Só falta agora re-citar (o que é o mais difícil). E isso pode ser pensado em termos de texto. Por que gostamos de ler tal autor, e não outro? Trata-se do mesmo tesão, da mesma noção. É que há determinadas formações que citam de fora formações que estão aqui, e outras que vemos que existem, mas não conseguem citar, não têm correspondência. Aliás, quanto mais civilizados formos, mais correspondência teremos. A transação fica maior. • P – É analógico? Sim. No sentido lacaniano e dos estruturalistas, é substitutivo. Isto por causa de Jakobson. Como ele infeccionou o processo com metáfora, metonímia, etc., a coisa está sempre em processo de substituição. A analogia pode permitir um processo de substituição posterior, mas não é substitutiva. É: bateu, valeu! Olhamos para alguém e ficamos com tesão porque, analogicamente, as coisas se encontram. O que para um é um pedido comparece lá no outro. Aquilo cita nosso movimento pulsional. No que cita, a incitação comparece aqui em nós. Só falta, então, recitar. Isto também em sentido odiento. É um processo 76
SóPapos 2018
que ocorre igualmente na produção das teorias, nas ciências... Por que algum cientista acha algo e outro não? Porque, com ele, deu para transar e, aí, transou. Podemos tomar a frase de Picasso – “cuando tuvieres ganas de joder, jode” – para entender o que acontece aí com todos. Cadê o sujeito, cadê objeto aí? O objeto sou eu ou é o outro? Não há objeto algum, só transa entre formações compatíveis, o que não significa que todas as outras formações sejam compatíveis, o que é óbvio em qualquer relação interpessoal. Por exemplo, podemos achar o outro um tesão, mas quando ele abre a boca, broxamos. • P – Há também o contrário, não damos nada por alguém e quando ele abre a boca achamos o máximo. Era o caso de Lacan. Como, ele que parecia um anão de jardim, conseguia transar com aquelas mulheres? Coisa sobre a qual já há vários livros publicados, inclusive por aquelas envolvidas. Eu o acho uma das figuras mais interessantes do planeta. Seu conceito de ética é absolutamente permissivo, o que fazia com que ele fosse libertino em matéria de erotismo. Entretanto, depois que saltei fora do sujeito, não posso concordar com que a ética da psicanálise seja “não abrir mão de seu desejo”. Como já cansei de dizer, ninguém abre mão de seu desejo. Simplesmente, às vezes, cala, pois as consequências podem ser violentas demais. A posição que o teorema da NovaMente pode tomar é: a ética da psicanálise e do psicanalista é mística. O fundamento é místico e o comportamento ético é em função dele. É a tentativa de superação das formações para chegar a uma neutralidade, a uma indiferenciação – que não é possível ser atingida, mas que está em exercício, sem o que não se pode escutar o outro sem imediatamente transar. Lacan ficava no jogo entre a transa e a não-transa. Era capaz de transar com a moça e colocá-la no divã, mudar de posição. Quero dizer que o ético ali não foi o desejo do transador, e sim o desejo do analista. Vejam que isto é algo bem difícil. A ética de Lacan é permissiva no sentido de que tem como meta última de uma análise reconhecer seu desejo e não abrir mão dele. Isto pode ser de qualquer naipe, de qualquer posição. A ética de Lacan termina aí. É importante a pessoa entender isso na análise, isto é, ela “se” enxergar e conseguir saber que seu desejo é assim-assim por ser sintomaticamente construído. Peço um passo 77
a mais, que inclui o reconhecimento do desejo dos outros – e não do Outro, de Lacan, mas das outras pessoas –, a dialogação e a superação – que, inclusive, é política – de indiferenciação. Fora desse processo, não há política entre posturas diferentes que se aguentem sem guerra. Fazer a suspensão implica uma habilidade de transa para, sem guerra, manter a diplomacia permanente. Por que há guerras? Porque não há reconhecimento do outro. Reconhecer o outro é o processo de indiferenciação, é a ética da psicanálise: “Nada tenho a ver com você, seus gostos são avessos aos meus, mas preciso suspender isso, pois, na diferença, você é que-nem-que-eu”. Embora antigamente já houvesse cruzadas, etc., as guerras do século XXI estão cada vez mais claras. O pessoal do islamismo, por exemplo, hoje, não quer reconhecer o outro de modo algum, tem que reduzir tudo a eles. É a doença concreta, em “estado” objetivo, se quisermos usar este termo. Não há diplomacia, não há conversa possível. É preciso, portanto, uma posição estatutária para poder jogar cá embaixo com olho na indiferenciação. Tanto é que tentei inventar o que chamei de Vínculo Absoluto. Se há um Vínculo Absoluto, todo o resto é conversável. É lá que é possível a tal comunicação de Inconsciente para Inconsciente de que falava Freud, e também a comunicação diplomática entre formações. Para dialogar em extremo, é preciso uma referência que valha para ambas as formações em jogo e que possa ser responsável pelo processo diplomático. • P – É a nota comum, de que você falou em 1996. Em música, uma das maneiras de passar de uma construção tonal para outra é mediante uma nota comum entre as duas formações. O mesmo vale para a transa entre duas pessoas, é preciso uma nota comum para dar samba. Refiro-me ao extremo. O conjunto de formações que compareceu diante das minhas só tem transas de ódio. É preciso, então, de uma referência inteiramente neutra, que suponho estar nas Pessoas, que é o Vínculo Absoluto, ou seja, o lugar onde todos doem da mesma maneira. Com referência a ele, dá-se um jeito de conviver, fazemos pactos, temos respeito. No caso do islamismo guerreiro contemporâneo – pois não é todo o islamismo –, de que falei há pouco, não há conversa possível. Então, para criar alguma conversa, 78
SóPapos 2018
há que entrar com a dor que se refere ao Vínculo Absoluto, ou seja, é guerra: mata, mata... Isso dói. De repente, eles se mancam e param. O mesmo ocorre na clínica psicanalítica. Como fazer para que meus sintomas não fiquem interferindo na transa com o analisando? Isto porque interferem. Não dá para ser santo, pois, de vez em quando, nos vemos com alguma recusa, algum mal-estar, diante do analisando. Temos, então, que fazer referência ao Vínculo Absoluto e não deixar aquilo entrar em jogo. Não há sujeito ou objeto aí, o que há são transas entre as formações, as quais jamais saberei aonde vão. É uma repercussão infinita. Jogamos no meio de campo, que é onde reconhecemos as formações. E quanto mais indiferentes conseguirmos ser, mais aceitaremos mais formações: tudo é igual, nada temos a ver com elas. Quanto à ética de Lacan, observem que, ao fazer uma demanda, peço que o outro faça para mim, mas, ao agir com meu desejo, sou eu que faço, estou pouco me lixando para o que o outro acha, quero e ponto! À medida que assumiu seus teoremas, Lacan era uma pessoa insuportável. Não adiantava demanda alguma, pois o desejo dele estava acima de qualquer coisa. Acho até que era demais. Falo de coisas banais como fazer escarcéu no restaurante porque não tinha o que ele queria comer. Lacanianos de hoje ficam fazendo silêncio, caras e bocas, coisas que não eram dele. Era-lhe claro que não é possível esconder-se atrás de uma postura de defesa e que há mesmo que correr certos riscos. Retomando o que disse no início, temos que conversar longamente sobre Técnica a partir do ponto de vista de que não há sujeito ou objeto. Acho, aliás, essa invenção muito esquisita: um sub-jectum dentro, e um ob-jectum fora. É preciso perguntar por que tal objeto é objeto para meu sujeito. • P – Parece que deveríamos perguntar por que a lata de sardinha estaria nos olhando. Refiro-me à passagem do Seminário 11, cap. VIII, em que Lacan teoriza a questão do olhar como objeto a: “E Joãozinho me diz: tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não”. Na sequência, Lacan comenta: “Primeiro, se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido, de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo, no nível 79
do ponto luminoso onde está tudo que me olha, e aqui não se trata de nenhuma metáfora”. A lata está me vendo, e é capaz de me seduzir, de fazer o diabo comigo. Na lata, é o caso de dizer. Vejam que mesmo em Lacan temos indicações de que não há sujeito no objeto. Se só houvesse sujeito do lado de cá, a lata não estaria me vendo. Seria eu que, subjetivamente, estaria considerando o objeto como algo que tivesse a ver comigo. • P – Diz Nietzsche: “Quando se olha durante muito tempo para o abismo, o abismo olha para você”. E não é preciso muito tempo não. Eu tinha fobia de altura até, um dia, descobrir – não foi analista quem me disse – que meu medo era por ter uma imensa vontade de me jogar. Jogar-se, aliás, deveria ser uma maravilha. Ao descobrir que era por isso, não cheguei mais perto. São provas sintomáticas que tenho de minha infância. Aos sete anos de idade, sentado num balanço, pedia para meu pai me empurrar com cada vez mais força. Ao chegar lá em cima, a gravidade é zero. Na terceira vez que fui lá, gritei “Shazam!” e fui, pulei. Foi de uma imbecilidade perfeita. Quebrei o braço e aprendi que a coisa não é bem assim, que a gravidade volta. Vejam que há, sim, correspondência do lado de cá. Há questões fundamentais para acompanharmos o movimento do Inconsciente. Caso que sempre cito é o da entrada do Terceiro Império via cristianismo. Um erro histórico da pior espécie. O cristianismo é sado-masô, precisa que haja certas maldades, certos sofrimentos, do tipo mulheres terem filhos indesejados sem poder abortar... Todos apaixonados rezando para aquele lá todo ferido na cruz. Que tesão é esse? A cultura grega não é sado-masô, é mais para o divertido. • P – O fato de o cristianismo ter colado até hoje tem a ver com o masoquismo primordial? Tudo tem a ver com o masoquismo primordial. Mesmo o fato de eu permanecer aqui. Alguém está vivo por quê? Por amar a vida ou por não 80
SóPapos 2018
conseguir sair dela? Por não ter cacife para ir embora? Quando a pessoa diz que ama a vida, isto é denegação? Tenho a impressão de que há algo esquisito, de total ambiguidade, aí nesse lugar. É preciso entender que temos o momento do nascimento, em seguida vem a vida. Ora, é cataclísmico, se não for criminoso, alguém chegar a existir. Há mesmo um movimento por aí que defende acabar com o fazer filhos no sentido de acabar com a espécie. Estão errados. No pré, aí sim, há que pensar que não se vai fazer. Machado de Assis já escreveu em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881): “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. É lúcido – até esse ponto. Mas, após alguém ter sido pego por todas as armadilhas e ter nascido, a postura muda radicalmente. Temos o Revirão do nascimento, e passamos a supervalorizar o fato de existirmos. Aí, matar os outros, ou mesmo suicidar-se, é estimado como delito. O momento do nascimento é ponto zero, o ponto neutro do Revirão. Este é que é o terror de nossa existência. Está no “Me Funai”, de Sófocles, que Lacan gostava de citar: Antes não tivesse nascido. Mas agora é tarde. Freud até faz a conhecida brincadeira de dizer que isso só acontece com muito pouca gente. Diz também Fernando Pessoa: “Se não te queres matar / Por que não te queres matar?” Todas essas são questões da análise, da clínica.
17 É necessário pensar a Lei em termos absolutos, pois, enquanto derivada d’Alei do Haver, é também preciso estabelecer limites legais. Todos os conteúdos legais são falsos, são apenas imposições. É como o que chamam hoje fake news. Qual notícia não é falsa? Onde fica a fronteira? 81
Tem que ser estabelecida socialmente, ou por um poder superior terrestre e terráqueo. O Secundário permite qualquer transposição e qualquer transgressão. O Primário ainda tem sérias limitações, que são do Autossoma. Quando se transpõem as limitações do Primário para o Secundário, já que se quer sobreviver dentro de determinada configuração, isso é mera construção. Basta olhar para povos primitivos com suas construções delirantes, com suas histórias fantasiosas. E por que as histórias de hoje seriam menos delirantes e fantasiosas? Que passo esta espécie teria que dar para demolir várias construções do Secundário enquanto impostas? Ao pensar assim, pisamos em nuvens, pois é a demolição das certezas, as quais só criam racismos e coisas do tipo. As certezas que acadêmicos, por exemplo, tentam fingir que não existem estão inteiramente embutidas em seus procedimentos justo quando repudiam o pensamento de outros. É, pois, uma certeza imbecil. Se não há certezas, por que demolir o pensamento dos outros? O nosso também é incerto. As vontades de significado e de fundação eclesiástica são algo terrível. Uma frase conhecida de Lacan é: “A religião sempre vencerá”. Acho que ele está querendo dizer o que acabo de dizer, e não que certa religião chamada religião vai vencer. Sempre vence por causa da estupidez humana de assentar um dito e tomá-lo como absoluto. Isto é religião, mesmo dentro da universidade e das instituições ditas psicanalíticas. Para chamar atenção a isso, fiz um Seminário intitulado Psicanálise: Arreligião (2002). Quando os achados de uma teoria, de qualquer espécie, viram mantra, acabou o pensamento. Ou seja, quando, sem entendimento, aquilo vira repetição, é reza. Como fazer para manter em suspeição, em questionamento, o slogan posto? Não se mantém, a religião vence. A frase de Lacan se aplica bem hoje – que já temos uma religião e uma igreja lacanianas. Notem que ele morreu ontem. Assim, para aquém do Gozo Absoluto, que não há, podemos ficar religiosamente aprisionados por uma menção de gozo. Não é preciso ser no nível do erotismo genital, pois é a mesma coisa no nível do conhecimento. Num pensador de boa cepa, quanto mais para cá em nosso século, isso mais acontece. Lá atrás, acontecia menos, era mais religioso. Platão, por exemplo, é 82
SóPapos 2018
uma religião clara. Basta ver como a ideia da existência de Sócrates é religiosa. Já Lacan, que é mais próximo de nós, foi alguém que disse que estava relendo Freud, mas era mentira, pois estava impondo à leitura de Freud a visão que queria ter. Era uma visão inteiramente compactuada com os saberes dominantes de seu século. O que fez depois? Demoliu o que disse e, no fim, nem mais sabia o que fazer com o que dissera (ainda que as pessoas continuem hoje repetindo aquilo que ele demoliu). Vejam que é maravilhoso. Ele não aceita gozo algum: “Não era isso que eu queria”. No meio do caminho, podemos aproveitar uma porção de conclusões, desde que seja mera aplicação. Não pode ser um fator religioso, eclesiástico. Ao contrário, é suspensivo. Não sou o primeiro e não serei o último a dizer isto, mas as pessoas se esquecem e buscam uma religião para frequentar, o que é o terror. Outro dia, um de meus médicos me disse que sua filha estudava psicologia em São Paulo. Como ele lhe dissera que eu era seu cliente, ela perguntou à professora que mais admirava se conhecia meu trabalho. Ela lhe respondeu: “O Magno é o Lacan do Brasil”. • P – Isso é bom ou ruim? Se sou Lacan enquanto repetidor, estou ferrado. Em termos de repetição, não sou lacaniano. Se for imitador, está bom. Pode haver outros, mas sou o único que conheço. Sou um gozador como Lacan foi, em todos os sentidos. É uma gozação. • P – Como pensar os Cinco Impérios quanto a essas questões de religião? Os Impérios são sintomáticos desta nossa espécie. São um sintoma do qual não conseguimos fugir. Historicamente, toma-se esse sintoma para montar um aparelho de significação sobre o sintoma. Pode ter sido diferente em outros planetas, mas aqui no nosso foi assim. Tomaram esse sintoma – o qual, se houver IdioFormação, deve estar por aí em vários lugares – e o historicizaram segundo determinado tipo de experiência do grupo. Entre nós, verifica-se com nitidez que Império algum passa, que o anterior sempre fica de resto. Basta olhar ao nosso redor para ver o Primeiro, o Segundo e o Terceiro Impérios ainda em vigor enquanto regiões inteiras de comportamento. Nada acaba. Deve-se, entretanto, prestar atenção ao comando do movimento – do 83
movimento, repito, e não das pessoas sintomatizadas –, que está lá na frente, no novo Império. O restante virará lixo histórico. Em nosso momento, já chegamos ao ponto de o lixo humano ser de noventa por cento. É o que Peter Sloterdijk chamou de Parque Humano. Em breve, com o aumento dos useless, os Estados deverão ter algo do tipo bolsa família para eles, igual a dar ração para porcos. É terrível colocar isto, mas parece que estamos chegando lá. O Terceiro Império ainda é a constituição da maioria do planeta. A impressão é de estarmos cercados por macacos utilizando computadores. Se deixamos de olhar para o fait divers, se nos afastamos um pouco do que acontece em geral, enxergamos com bastante clareza a situação. Como, então, é possível estar em processo de gozo? Isto, em sentido jurídico, de usufruto, em qualquer área, na teoria... A maioria fica repetindo a masturbação anterior – e não consegue chegar lá (em inglês é: to come). Depois que Freud resolveu decidir que entendia qual era o processo, tudo fica evidente. Antes dele, já se falava em Inconsciente, já se tentava definir e acompanhar os movimentos, mas ele monta um aparelho de lucidez que coloca o dedo na ferida. Não tem mais volta, há que ir para a frente. A grande derrocada do século XXI é, felizmente, saber que estamos todos perdidos numa selva de projetos. Por isso, digo que há que entrar no pensamento ad hoc. De repente, estamos diante de algum problema e achamos em Heidegger, por exemplo, uma soluçãozinha. Os procedimentos, em todo o planeta – procedimentos de quem procede (pois a maioria não procede) –, estão chegando ao ad hoc: uma parafernália que está na nuvem, a ser acessada e utilizada a cada caso. Aqueles que criam uns pedaços de nuvem têm certo rigor no sentido de não deixar virar bagunça, mas é só isso. A postura velha não tem mais lugar hoje. Como as novas gerações, ao invés de começarem pelo b-a-ba do conhecimento, começam pelo movimento tecnológico, olham para o conhecimento com desprezo e o abandonam. Isto é um grande prejuízo, pois há muito a aproveitar lá. O fato de o tecnológico ser dinâmico e movimentado, faz com que olhem para o conhecimento como fóssil. Era para ser o contrário, para o conhecimento entrar na nuvem todo despedaçado e aproveitável. • P – Quanto a esse primado tecnológico, poderíamos dizer que o 84
SóPapos 2018
mundo está mais processual e menos declarativo. O modo de conhecimento que formou as gerações anteriores foi mais declarativo, apenso a conceituações, a discursações sobre as coisas. A Nova Psicanálise sempre me pareceu tratar o conhecimento de modo processual. As novas gerações estão desprezando esse declarativo como puro fóssil. Não é. Elas têm que ser processuais sabendo usar o material declarativo. Se é processual, cabe ver que o conhecimento é uma riqueza que não pode ser jogada fora, ainda que tenha a cara de múmia de Terceiro Império – que, efetivamente, tem, basta entrar em qualquer universidade para ver. Por isso, temos essa dificuldade detectada por muitos de conversar com a outra geração. É que apresentam a múmia para eles, ao invés das resultantes. Como sabem, o Quarto Império é necessariamente dilacerado, fica entre o Quinto e o Terceiro, e a massa fica correndo para o colo do Terceiro – mas não encontra colo. Não adianta o Chicão inventar aqueles malabarismos, pois, ao chegarem lá, não tem. Antigamente até tinha, mas não tem mais. Chegará um ponto, que vai demorar, em que o Terceiro vira lixo e o sentido corre para adiante. Isto, não por ser hegelianamente necessário. E é preciso tomar cuidado, pois há gente por aí pensando de novo que é necessário: Zejeca, Safatinho... Acham, delirantemente, que darão uma de Hegel, que surgirá uma necessidade histórica... O que vem é, sim, um empurrão dado pela tecnologia, a qual tem um frenesi de misturar isso com aquilo e aquiloutro. É ela que empurrará o pessoal para a frente. E isto não é necessário, nada obriga, tudo pode simplesmente estacionar durante milênios. Nosso momento é o do jogo do cabo de guerra, com a corda, do ponto de vista quantitativo, sendo mais puxada pelo Terceiro Império. Entretanto, do ponto de vista qualitativo, quem está ganhando é o Quarto. A morte da ideia de Sujeito é cada vez mais evidente: não há sujeito que aguente o Quarto Império. Vejam também que não há condição de colocar todo o conhecimento no liquidificador e fazer uma homogeneidade, um modo só. A condição é de utilização ad hoc de formações. Por exemplo, se perguntarem a um freudiano, a um lacaniano ou a qualquer desses assentamentos psicanalíticos, o que acha da ideia junguiana de arquétipo, ele dirá que é inaceitável. Por que não pode 85
admitir que arquétipo seja uma função inconsciente? Só porque é contra Jung? Aliás, o mesmo acontece com aqueles que têm implicância com a psicanálise. Então se, mediante ideia de arquétipo, for possível produzir deslocamentos em alguém em análise, por que não a utilizar? Aí é que está o ad hoc. • P – Em 2015, você falou em refração para indicar que, a cada momento, pode-se tirar da caixa de lentes a mais adequada para melhor enxergar as formações ali em jogo. Não importa de quem seja, de Freud, Lacan, Jung, Melanie Klein... O Quarto Império só se instala desse modo. Se fulano e fulana conseguiram pensar algo fazendo exclusões, sendo rigorosos em seu pensamento para ver o que ele trazia e para onde levava, foi porque não há como plantar batatas e colher chuchu. Mas podemos tomar o que fizeram e aplicar a um caso atual. Note-se, portanto, que, ao produzir, não dá para misturar batata com chuchu. • P – A postura desse movimento processual supõe sistemas bem abertos. Por exemplo, a cibernética com a ideia de que tudo é sistema, e sua Gnômica com a ideia de que tudo é formação. São posturas dentro do mesmo escopo. E são necessárias no sentido (não histórico, mas) de que não dá para sair porque elas estão aí. Como estar diante de uma situação vendo as conexões que lá estão, seus movimentos, sem parti pris? O pensamento do futuro será assim. E se alguém, lá adiante, falar que o Magno já disse isso, será um caco que sobrou, a ser aproveitado. Para esse caco aparecer, teve que viver em meio a todo aquele chiqueiro, na maior sujeira teórica. Por isso, temos que ter a posição de indiferenciação, para acolher o que quer que venha. Aliás, quanto a isso, observem que a língua brasileira passa por grandes transformações. Por exemplo, não se usa mais o objeto direto – o que pode ser uma boa coisa, pois o sujeito vai junto para o lixo –, os pronomes oblíquos acabaram, ficaram todos retos, a regência sumiu, a concordância morreu... Mas, se não houvesse isso na história, ainda estaríamos falando latim clássico. Aquilo se deteriorou, virou “vulgar”, depois neo-latino, e agora está se tornando algo que não sabemos nomear. Professores 86
SóPapos 2018
ficam tristes porque a língua está sendo estropiada. Acho engraçado, pois as redundâncias vão caindo. Fico, aliás, impressionado em imaginar como a parte analfabeta dos romanos conseguia falar uma língua tão complicada, cheia de redundâncias. A elite falava latim clássico, depois veio o latim eclesiástico que, este, é fácil, leve, é um latim passado a limpo. O que nos cabe entender é como entrar neste mundo novo sem mágoa, sem saudade. O tristonho é pensar que, quando a maioria for para o lixo, para o parque humano, quem irá? Serão os outros? Ou somos “eu”? A regra de ouro é panem et circenses. Se tivermos alguma atividade fora disso, seremos lixo. • P – Vejo em Freud várias questões que, depois, foram desenvolvidas pela cibernética. E faltam algumas. • P – Ele intuiu várias coisas como sendo de aparelho sistêmico. Só que a cibernética, assim como a teoria da informação e as resultantes desse campo, surgiu com o intuito de organizar sistemas complexos em processos entrópicos. Isto é, dá para controlar, baixar a entropia razoavelmente se for como regular sistemas. A psicanálise tem as mesmas questões, muitas vezes parte de conceitos semelhantes, mas sua operação é ao avesso. Há grande dificuldade em entenderem isso, que a psicanálise é uma desgovernética. O pensamento dos lacanianos, por exemplo, é sistêmico. A NovaMente não é isto, mas, mesmo para passar para esse outro modo, é preciso passar por essa função de dissolução. Isto está ficando claro não como inteligência, mas como acontecimento. Ou seja, a postura psicanalítica está no mundo – não motivada por análise, e sim por outras coisas –, entretanto, as próprias pessoas que usam esse sistema dissoluto têm a mentalidade do outro lado, do anterior. Metade do cérebro para um lado e outra metade para outro, deve dar dor de cabeça. É bipolar. Psiquiatras dizem que a doença do século é a depressão, mas seria o quê? Se a pessoa não inventa um percurso mental dentro da zorra, ela passa mal. Faço a suposição de que meu percurso me deixa bem. Não passo mal, não tenho depressão, só tenho interrogações. Não estou contando com certezas. Notem que a melancolia é mais bonita. Se 87
for de última instância, será saudável. A melancolia verdadeira é saudade do futuro, e não do passado. O melancólico de baixa extração está com saudade para trás. Quem está com saudade para a frente, está numa tristeza alegre. É diferente. Há, então, que arranjar um aparelho de pensamento compatível para ficar fora, para suspender.
18 Quero colocar uma questão que tem perseguido a mente de filósofos, de religiões, etc., da qual deveríamos tentar dar conta da maneira que não é a deles, da maneira que a psicanálise pode dizer. Há em muitos pensamentos a questão intrigante do Sentido. A questão é: Qual é o sentido disso tudo aqui? Que sentido tem isso? A vida...? Filósofos têm chegado à conclusão de que não tem sentido, que temos que criá-lo, inventá-lo. Por outro lado, o pensamento mágico tem todo sentido: vai-se para o céu, voltamos para reencarnar... Mas, mesmo se formos para o céu, o que se vai fazer lá? Dizem até que o inferno é mais engraçado (pois é onde estão as pessoas melhores) • P – Você está falando de sentido como significado ou como direção? Para nós, é praticamente a mesma coisa. Se acompanharmos o tipo de arranjo da NovaMente, veremos que é claro que tem sentido, que tudo tem sentido. Antes de mais nada, como sabem, o sentido é para não-Haver. “Haver desejo de não-Haver”, este é o sentido. Mas para que serve isso? O que estou fazendo aqui? Então, mesmo que digam que a vida não tem sentido, digo que tem, sim. Qual? Alguém aí arrisca dizer algo? 88
SóPapos 2018
• P – Seria na mesma conexão em que você falou sobre a Fé, que nada tem a ver com a crença? A fé é um tesão. Tenho fé de que vai para lá. Por quê? Porque vai. A fé não leva adiante, é o caminho adiante que demonstra que há fé. Não preciso de fé para ir. No que vou é que surge a fé. É diferente de botar uma crença e ter que, todo dia, rezar para aquela fé não ir embora. Como tomar o sentido fora da angústia do final do século XX? De gente feito Camus e Sartre, que procurava o sentido e dizia que estávamos perdidos? Daqueles que diziam que não há sentido, que temos que nos virar? Repito, dentro do escopo de pensamento da psicanálise, minha suposição é que há sentido, e muito radical. O sentido está no vetor de base: Haver desejo de não-Haver. E passamos a vida cumprindo este sentido. Só que o sentido é só sentido, pois não tem o que encontrar, o não-Haver não há. E nos perguntamos, então, qual é o sentido de nossa existência, o que estamos fazendo aqui. O fato de haver sentido – que é o sentido de Haver –, mas que não se o encontra, pois só tem retorno possível, não quer dizer que esse sentido seja responsável por estabelecer sentido individual ou coletivo para nós. Como o sentido está dado, e é inarredável, que sentido há para mim estar aqui submetido a esse sentido? O engano, a ilusão, dos pensadores que foram por aí é que o sentido que realizamos não é nosso, não nos pertence, é o sentido do Haver. Se procurarmos qual é nosso sentido dentro disso, o jeito é fazer análise para ver se se vislumbra o encaminhamento nosso desse sentido. A coisa é dispersiva. Os sentidos das pessoas são os mais diversos. É tolo a pessoa procurar qual é seu sentido, como se tivesse um sentido dado. O sentido que posso ter para mim, dentro do sentido do Haver, é a resultante de meus eventos, do que me acontece. Mesmo quando tomo a iniciativa que chamam de livre arbítrio – coisa que, aliás, não existe – dentro do sentido do Haver, estou tomando a iniciativa possível naquele momento, e que não é tão minha assim. É resultante: um conjunto de forças e significações me põe ali. E como tenho a capacidade de Revirão, de HiperDeterminação – a capacidade não é minha, e sim do Haver –, algo hiperdetermina uma posição nova para mim. Ou não. Aí, ficarei o resto da vida repetindo as resultantes 89
antigas. O que é livre arbítrio? É enganação. Se pensarmos até a última instância, a sobredeterminação é enorme, é uma formação gigantesca, cuja resultante, nos embates com os acontecimentos, dá a aparência de estarmos tomando a liberdade de. Se, mesmo do ponto de vista analítico, não acabarmos com essa enganação, ficaremos eternamente em guerra na suposição de que sabemos qual é o sentido. As culturas fazem a suposição completamente idiota de saberem isto. É claro que, se fazemos esta suposição de saber, ficamos recalcitrantes na defesa e na imposição desse sentido. Pode durar um tempo, mas nunca dará certo. Estes pontos são importantes para a questão: qual é o sentido de fazer análise? Tem sentido isso? • P – Se o Haver oferece o Revirão, iremos aproveitá-lo ou não. Ficaremos presos aos sentidos resultantes da soma de eventos, ou faremos metamorfoses. Você está apontando para o limite dos sentidos. O que significa dizer “faremos metamorfoses”? Temos esta competência? • P – É menos “faremos” do que acolhermos algo que nos acontece. Sim. Onde sofremos com a questão do sentido – O que estou fazendo aqui? Oh meu Deus, que inferno! – é querermos saber qual é nosso próprio sentido. Não se tem. O sentido que se tem é o do Haver. O sentido a se entender nem é das pessoas humanas, e sim das IdioFormações, sejam elas quais forem, aqui, no inferno, no céu... E se, em algum lugar, algum planeta, as IdioFormações de lá já tiverem entendido isto... Aqui ninguém entendeu ainda, apenas inventaram – como estou fazendo aqui agora – soluções. Há soluções demasiado conteudísticas, anedóticas, da pior espécie, do tipo “o sentido é para Deus”... Talvez o mais lúcido a respeito dessa questão tenha sido Espinosa. Já imaginaram uma sociedade em que (quase todas) as Pessoas – IdioFormações de qualquer tipo – já tivessem entrado nesse entendimento e estivessem a serviço do Haver? Nós também estamos. Aliás, só estamos aqui a serviço do Haver, mas pensamos que somos importantes, que fazemos isso e aquilo, uma obra... Nem cocô é obra própria. 90
SóPapos 2018
• P – Eu pensava aqui justamente que você, hoje, está meio espinosista. O raciocínio é: uma determinação está determinada por outra determinação, o que faz uma cadeia causal infinita. Espinosa tenta mostrar que o que acontece acontece sempre dentro da determinação. Os arroubos de se achar fora, em algum momento, de alguma maneira, é o que estraga o processo. E as pessoas adoecem disso. Estou inteiramente espinosista hoje. Ele me parece ter dito a coisa mais lúcida: Deus sive Natura. Eu substituiria a segunda parte: Deus sive Habere. Também pode-se deixar só o Haver e tirar a primeira parte. Chamem de Deus se quiserem. Prefiro chamar de Deusa Suprema: Kaganda Yandanda. Isto para acabar com esse negócio de pensar que ela fará o que queremos. Deusa suprema tem que ser no feminino, pois o masculino não produz nada. Ou melhor, pode até produzir, mas nada reproduz. Nada esperem dessa moça, pois ela lhes dará o que lhe der na telha, o que acontecer. O que a psicanálise pode oferecer como solução quanto ao sentido nosso, ou das IdioFormações, ou mesmo das outras formações, é o sentido do Haver: o encaminhamento para não-Haver e, como isso não há, retorno. E fica esse sentido girando eternamente no espaço (ou no tempo, não sei). Então, se este projeto teórico estiver razoavelmente certo, uma das coisas que o analisando deve alcançar – não porque decorou ou ouviu falarem, e sim porque possa lhe ter acontecido em análise (a maioria do que há por aí como análise são coisas que leram em Freud e dizem que acharam isso ou aquilo, que superaram édipo...) –, o sentido que a análise deve tentar buscar e propiciar, é o entendimento de que o sentido não é dele. Não seja pretensioso, o sentido não é antropomórfico, você é apenas uma migalha do sentido do Haver. Importantíssima, mas você está aqui carregado pelo sentido do Haver. Levado adiante com todas as formações que constituem seu processo de encaminhamento dentro da sua situação. Fernando Pessoa dizia a metáfora correta: “Escravos cardíacos das estrelas”. Somos escravos, nem sei se cardíacos, do Haver. Vemos isso perpassar na história desta espécie quando certas religiões – o cristianismo, por exemplo – esperam que você encontre o sentido no encaminhamento para Deus. Ou seja, o sentido não é seu. Já era 91
um vislumbre de que você não tem sentido próprio. O sentido é do Haver, da sobredeterminação infinita, talvez, dentro do Haver – e você é levado a isso. E quando está dentro disso, no cumprimento de uma destinação que não é sua, você é que é dela. Você, narcisicamente, inventa uma glória, diz coisas como “fui eu que fiz”... A limitação narcísica provocada pelo Primário faz a história registrar histórias, grandezas, etc., que não são daquela pessoa. A pessoa é que é dela. Um dos sentidos da análise é conseguir reconhecer isto, mas não por ouvir falar, por aceitar intelectualmente, mas ver-se assim. Repetindo, o sentido não é meu, eu é que sou do sentido. A realização do sentido é do Haver. O sentido das IdioFormações é somente o de servirem à emergência do sentido do Haver, o qual emerge localmente de formas diferentes. Qual é conjunto das formações de alguém? Cada um fará emergir uma possibilidade de participação nesse sentido do Haver. Aí, as pessoas – que são as IdioFormações de nosso caso – caem nas mais diversas posições de bem-estar, de mal-estar, de pobreza, de riqueza... E o que o Haver acha disso? Está cagando (é a minha deusa). Não é problema dele. Deve ser nosso o problema de tentar fazer algo para que a emergência desses sentidos horríveis – que também são importantes – possa ser menos dolorosa. A vontade dos socialistas, dos comunistas em particular, é sermos todos iguais. Isto jamais acontecerá pelo fato de jamais ter existido e não ter por onde existir. Qual ordem política pensar dentro do reconhecimento de que todo e qualquer sentido emergente faz parte do sentido? • P – Reconhecer mesmo a emergência de alguém como Donald Trump? É necessário neste momento, está desenhando o momento como resultante desse troço aí. É o aborto do tempo. Portanto, não existe absurdo algum. O século XX foi muito doido e paranoico. Em sua segunda metade, foi impregnado de certa região no sentido de absurdo: a vida é um absurdo, teatro do absurdo... Não há absurdo algum por falta de sentido para as formações particulares do Haver. É apenas um possível. Quanto dói? Quando não se é psicopata, talvez possamos ter alguma relação de, digamos, neurônios-espelho, como quer Ramachandran, e nos 92
SóPapos 2018
incomodar com o sofrimento do outro. Isto é local. O fato de haver o horrível, não é absurdo algum. • P – Absurdo é o nome daquilo que não coube no sentido que você pretendeu. Aquela patota de meados do século XX de que falei no início – Sartre, Camus et caterva – é doente disto, queria saber qual é o seu sentido. Seu sentido é zero. Você é que é do sentido. As coisas nos acontecem. A impressão de livre arbítrio é a possibilidade de haver HiperDeterminação de vez em quando. Será que alguém pode tentar se disponibilizar para a HiperDeterminação? Os cristãos tinham exercícios espirituais para conseguirem se aproximar de Deus. Inácio de Loyola tem um livrinho intitulado Exercícios Espirituais, que é bastante engraçado. Repetindo, segundo nossos elementos teóricos, há alguma possibilidade de participação nossa na facilitação da HiperDeterminação? • P – Você chamou isso de Invocação. Quais são minha disponibilidade e minha participação na invocação da própria Invocação? Quero supor que a psicanálise deve servir não para irmos procurar a HipeDeterminação, e sim para ficarmos cada vez mais disponíveis para que ela nos aconteça. Isto não é a ideia de livre arbítrio, que é um círculo fechado, e sim de disponibilização. É abrir mão do que achamos ser nosso sentido. Quanto mais supomos que aquilo é nosso, mais estúpidos somos. Não é que não utilizaremos as coisas que estejam por aí, não estou falando de exercício de santidade, pelo contrário, minha fala é hedonista... A suposição é que, efetivamente, a psicanálise deveria se encaminhar para a disponibilidade, para a Indiferença, de modo a nada nomearmos como nosso. Lacan chegou perto de dizer que isso era a santidade, mas é, sim, a analiticidade – este é o sentido da psicanálise. A psicanálise também é regional, é um momento histórico, não faço ideia de aonde ela dará. O que podemos pensar até agora é que uma análise bem trabalhada, bem produzida, deve nos levar à Indiferença e à disponibilidade melhores possíveis, pois totais não teremos. Isso é coisa difícil, quase impossível, pois o Primário é muito imbecil. Aliás, como já disse Espinosa, em última instância, todas as formações, têm tendência a quererem ser si-mesmas. 93
19 Esta teoria que lhes apresento me ocorreu, não é minha. Não vi eu fazendo. Não vi, como está na litogravura de Escher, a mão desenhando a mão. Só vi que aconteceu, fui deixando que o acontecimento respondesse por mim: a gente faz apropriação indébita. Como fui eu que assinei, como está nos livros que dizem que são meus, quero os lucros. Quem precisa de lucros é o Primário, e não o Secundário. O Primário precisa de cada vez mais dinheiro, remédio, comida... Então, fingimos que é nosso porque passou por ali. O Primário precisa fingir que é o sentido. Na operatividade, aqui, temos sentidos dados e produção de sentidos, mas tudo isso é muito barato diante do sentido do Haver. Lembram-se de Carl Sagan? Ele tem uma frase perfeita: “Somos o universo contemplando a si mesmo”. Segundo meu modo, ele está dizendo: Nós, IdioFormações, somos a Consciência do Haver. O Haver é consciente de ser consciente. É o que, na filosofia, chamam de consciência de si. Não só estamos aqui conscientemente como temos consciência desse estar conscientemente aqui. Suponho que exista uma pressão dentro do Haver no sentido da consciência de Haver. Ele funciona no sentido de tornar-se consciente de si mesmo. Pensamos que somos nós que temos consciência de si, mas não, somos, sim, a consciência do Haver, a que ele pode ter no momento. O Haver é o Inconsciente. Qualquer IdioFormação, em qualquer lugar do Haver, é a consciência do Haver. IdioFormação esta que não precisa de base carbono para ser isso. Aliás, a função mais importante desta espécie aqui é produzir a IdioFormação não carbono, e ela desaparecerá. Ter consciência de que somos conscientes é o que os filósofos falam sobre nós. Então, retomo a pergunta: Para que existe tudo isso? O universo se encaminha em produções no sentido de ter consciência de si mesmo. As IdioFormações, as precárias ou as mais desenvolvidas, são a consciência que 94
SóPapos 2018
o universo tem de ser universo. Acho que essa é a resultante do que tenho dito até hoje. Há muita consciência pelo universo, qualquer animal é consciente. Lacan chegou a dizer, e já mencionei isto, que um aparelho de registro tem consciência. Uma filmadora é a consciência daquilo que ela filma, mas não tem consciência de estar filmando ou de que a consciência seja dela. O movimento da espécie das IdioFormações – as quais foram zeradas de sentido quando de sua emergência – no Haver é não só o de ter consciência do Haver como o de ter consciência de haver dentro do Haver, o que é a consciência de si. Digo isso porque esse seria o sentido da psicanálise enquanto ela existir. Portanto, proponho que não há falta de sentido, ele está aí: nós somos a consciência do Haver. Nossa existência aqui é produzirmos permanentemente a consciência do Haver. Este, aliás, é o procedimento da ciência, de suas construções, de qualquer coisa, mesmo o mal, na busca de exprimir a consciência que o Haver tem de si. Isto reduz a zero qualquer narcisismo. • P – O pessoal não gosta desta última parte do que você falou. Faz parte da consciência do Haver que o Haver se mata e mata os outros. • P – É um dos quatro caminhos para o Cais Absoluto, que você colocou em 1996: “O caminho da Matança e da Guerra. Chamemos, sem nenhum cinismo, de eroto-misticismo da impartição da morte”. É uma situação esquisita, mas me parece que é assim. Do ponto de vista do Haver, o mal é uma possibilidade. Só. Por causa da Deusa, que está se lixando se alguém vai se matar ou vai matar o outro. Não é problema dela, ela há. É aqui embaixo, nas relações menores das IdioFormações, que fazemos juízos, separações, tentativas de sobrevivência... • P – A consciência do Haver inclui as produções do Primário: as plantas, o cocô...? A Deusa produziu a flor e a merda. São possibilidades de Haver. Podermos ser contra por termos resolvido administrar o mundo de modo a excluir certas coisas. Essas exclusões não são cabíveis no Haver, são formações específicas. São, portanto, paralisias, da ordem da fixação, do Estacionário. 95
• P – Os verbos que você menciona n’O Pato Lógico – ex-citar, in-citar e re-citar – expressam ações não antropomórficas, sem sujeito. São parentes da ideia de Invocação da HiperDeterminação? Isso é espontâneo, não é criado por nós. Algumas formações daqui se deparam com algumas outras formações, e isto tem efeitos. Podem ser pró ou contra. O analista é capaz de passar por uma formação, assimilar, conceber uma formação, de tal maneira que ele não fala com ninguém, não escuta ninguém? Esta foi uma das razões de abolir o sujeito. Já notaram que sujeito escuta as pessoas? Mesmo o sujeito lacaniano tem ouvidos. Qual é o exercício de alguém fazer sua análise e resultar na possibilidade de sentar no lugar do analista porque não reconhece ninguém? Ele é uma nuvem de formações diante de outra nuvem de formações, está em troca com essas formações no sentido de a nuvem se reconhecer e até ter a possibilidade de, algum dia, reconhecê-lo (o que, aliás, é o mais difícil). Em análise, não se está diante de uma pessoa, e sim diante de uma nuvem de formações. E tampouco somos uma pessoa, um sujeito. Somos uma nuvem de formações. Isso está em processo de disponibilizar-se ao comparecimento das expressões do Haver. (É, aliás, difícil dizer disponibilizar-se, pois quem é o autor disso?) De tal modo que a Pessoa – esta que existe, com Primário, Secundário e Originário – tenha alguma chance de reconhecer a nuvem. É preciso que se monte uma formação que, ela, venha a reconhecer as formações. É a tal mão desenhando a mão, de Escher. Com isso, escapamos da filosofia? • P – A nuvem de formações inclui o Primário? Sim. Por isso, ela é mais ou menos desenhada. • P – Neste sentido, é possível pensar suas ideias de Ordem Implícita e de Creodo como uma espécie de teste, de experimento, do Haver? Sim. Uma espécie de laboratório de seu próprio sentido. Aí o Haver é uma Pessoa? Se voltarmos ao cristianismo, veremos que Deus é pessoal, tem filho (e o maltrata, coloca-o na cruz). Já falei do Haver como IdioFormação, mas não confundam isto com a pessoa do Deus católico. Os cristãos, aliás, como disse há pouco, talvez tenham tido certo cheiro quanto a isso. 96
SóPapos 2018
• P – A filosofia fala sobre o Ser se pensando. Heráclito diz: “Tendo ouvido não a mim, mas ao logos, é certo afirmar que tudo é um”. Bergson falará em élan vital. Heráclito é filósofo, ou é sabedoria antiga? Já se sabe disso há milênios. Não se conseguiu pensar fora disso. Pensa-se sempre parcialmente, por via literária, religiosa, filosófica... • P – A ontologia filosófica é bonita, mas fazem dela uma ética que é horrível. O modo como Bergson coloca as duas fontes da religião e da moral é quase fascista. E Deleuze gosta dele. Por que élan vital? Bergson falava do vivo, o qual é primário. • P – Há uma valoração aí. Há uma valoração dada. Não é a transvaloração, de Nietzsche. Vejam que temos o mesmo problema do filósofo, mas não estamos falando a mesma coisa. Qualquer um – religião, poesia... –, aliás, tem o mesmo problema, ainda que não saiba disto. Isto porque este é o problema: Qual é o sentido? Notem que a psicanálise inverte o vetor, não monta um aparelho explicativo, e sim procura a explicação – e quebra a cara, pois o que ela traz não é definitivo, não é o saber, é apenas uma posição diante do problema. Se buscarmos semelhanças, iremos até às religiões primitivas. Isto porque, repito, o problema é o mesmo. O como lidar com ele é que é diferente. Nós estamos tratando dele na possibilidade de uma Cura. O cristianismo, por exemplo, pensou uma solução que aponta o que é certo e o que é errado, que diz que há que rezar, pagar preços, ir para o céu ou para o inferno... Para a psicanálise, qualquer um já está no céu, já está no inferno, que dance dentro disso. O que faz você deixar que funcione sua nuvem de formações é reconhecê-la, dizer: “É isso”. Lacan inventou a resposta definitiva: “C’est ça!” Mas não basta dizer, é preciso reconhecer que é isso. Uma coisa decepcionante, no bom sentido, na sessão de Lacan, era pensar que podia vir algo, que era raro vir, pois apenas vinha: “É isso!” É preciso acabar com a paranoia fanática de que fulano pensou errado, 97
quem pensou certo foi sicrano. Todos pensaram certo, mesmo o imbecil. Se é o que ele pensa, logo é certo. Comparativamente, podemos escolher. Se não for assim, apenas será tentativa de congelar o sentido. O sentido de cada um é a resultante de um conjunto fortuito de formações. Se a pessoa não gostar, terá que entender que ela não está envolvida nisso, que são algumas formações, sobretudo comparativas, que abominam a situação. Aí Sartre tem razão ao dizer que o que importa não é o que nos acontece, e sim o que fazemos com o que nos acontece. Ou seja, tratemos de nos esfregar em outras formações para ver se juntam, se fazem coalescência. • P – Então, dá para mudar o que nos acontece? Não. Dá para misturar com outras formações, e sequer saberemos se a iniciativa é nossa. Pode ser apenas nosso desgosto – o desgosto, e não nós – que se junte com outras coisas. A porcaria de língua que usamos, com sujeito, predicado, pessoas, eu, tu, ele, nos faz acreditar que iremos mudar a situação. Não mudaremos. O possível é aproveitar as esfregas e caminhar. • P – A Teoria das Formações é uma linguagem? Pois é, como sair dessa? • P – Ela começa por uma reforma da linguagem, tem uma maneira de situar os acontecimentos que, em certo sentido, é disjuntiva. São formações em jogo. Quando se diz “eu fiz”, fica-se preso à ordem do ego ou do sujeito, o que é falso, pura má impressão, engano. Faço a suposição – science fiction – de que, em algum lugar, haja uma formação cultural ou estatal, sei lá o quê, em que as IdioFormações já tenham atravessado tantos desenhos e chegaram tão perto de pensar mediante formações que aquilo funciona de modo que parece que todos estejam hipnotizados. O próprio Primário é muito semelhante e, por estar demais submetido à função de formações, funciona assim. Podem até ser robôs. Nós somos afetados demais porque nosso Primário é imbecil. Somos sequestrados por ele. Basta pensar que, segundo a ideologia que está aí há milênios, as pessoas se reproduzem, têm filhos. Ninguém tem filho. Quem tem filho é o filho, ele se tem. Jogam-se milhões 98
SóPapos 2018
de espermatozoides sobre o pobrezinho do óvulo faminto, o desgraçado come um e aquilo cresce. De quem é essa criança? Foi preciso um sistema de dividir tudo, que começa no Segundo Império, para atribuir alguma paternidade. Aí, o espermatozoide vem comprometido com o avô, e nada tem a ver com o tal pai, que, este, apenas o estava guardando. E tudo isso foi reduzido a um grande teatro, com textos bem organizados, para tentar submeter a transa do Primário ao Secundário. Não deixa de ser uma grande invenção, pois já foi pior. • P – O que você diz hoje reitera o fato de a IdioFormação ser inocente, não ser responsável pelo que lhe acontece. Não sou responsável por isso, sou isso. Já lhes falei sobre isto [em 2001] quando tratei da imputação. • P – Você falou sobre sermos responsivos. Que respostas dou ao mundo a partir de eu reconhecer as formações que estão aqui? Eu quer dizer: esse conjunto de formações responde ao mundo. E o que fazer sobre as formações externas que determinam o que vale e o que não vale nas minhas formações? No Brasil, há séculos, temos o direito de roubar em função da mentalidade patrimonialista. É um direito que está acabando, o pessoal está indo para a cadeia. Como era um direito, como era considerado normal, fica algo esquisito de entender. O país é patrimonialista em todos os seus hábitos. Os lugares públicos são tratados como se fossem as casas das pessoas, com crianças gritando nos restaurantes, etc. Já notaram que não está na lei que políticos não podem roubar? Isto me leva a pensar algo absurdo, que é errado o que estão fazendo com quem roubou lá atrás. Talvez fosse mais eficaz não colocar pessoas na cadeia, mas registrar que a postura mudou, que quem roubou apenas deva devolver o roubado e cessar de fazer como fazia. É preciso criar o novo aparelho jurídico em que roubar não conste como direito implícito. Uma coisa é tomar as formações que estão em jogo e raciocinar com elas, outra, afastar-se, indiferenciar, e olhar a situação. Aí, teremos outra configuração. Há que relativizar de fora.
99
20 No escopo desta teoria, Pulsão é uma coisa só. É a força constante. Freud a chamava konstante Kraft. É a quantidade de coisas que adere a essa força que dá a impressão de multiplicidade do Tesão. Ela vai em frente e tudo adere a ela. É, pois, a Pulsão com suas aderências. Passou pela boca, é pulsão oral, etc. Onde ela passa, cola. Não existe uma pulsão oral, e sim uma boca que, dentro do movimento da pulsão, funciona desse jeito. No que o Haver se fractaliza, os cacos todos são carregados. O que quer que haja está no movimento para não-Haver. Tanto é que as formações morrem. Do ponto de vista científico – no sentido que a ciência ainda tem hoje –, temos duas versões em disputa. Uma, é a teoria do Big Bang, que é quase mágica, parte do nada – alguns dizem que, na verdade, é de uma partícula muito pequena – que explode e, desta explosão, vem a multiplicidade. É um começo a partir de nada, o que é algo que não entra em minha cabeça. E a outra – aliás, acaba de ser publicado O Universo Inacabado: a Nova Fase da Ciência, de Mario Novello, que é do meu lado –, para a qual não há isso de não haver nada: o Haver sempre houve e sempre haverá. Sua teoria é que o Haver sofre Big Crunch, implosão, depois explosão, implosão... Nunca chega a uma partícula, é algo extremamente denso. Esta é a ficção de físicos e cosmólogos que tomo para meu uso. As coisas vêm daí: a força pulsional toma todo o Haver e o comprime porque quer sumir. Como não tem como sumir, explode de novo. O Universo deve achar tudo muito chato, quer ir embora. Esta é a diferença entre uma força única e a multiplicidade por explosão. É a isto que chamo fractalização. O que quer que compareça após a explosão está submetido à mesma força, que quer, de novo, desaparecer. Ou seja, é uma respiração, o Haver respira: acumula, explode, acumula... Quando isso começou? Jamais começou. A espécie humana não tem condição de pensar o que possa ser eterno. A não ser em nosso caso: nós somos 100
SóPapos 2018
eternos por não termos tido começo e não termos fim. Não temos a menor noção de começo e, ao morrer, não teremos experiência alguma de morte. Logo, aqui no meio, somos para sempre. Somos uma imitação local do Haver. O que há em nosso redor são cacos, que serão vasos inteiros em algum lugar. Mesmo na ideia de Big Bang, se for tomada como paradigma, a multiplicidade é essa explosão. Do ponto de vista deste universo que habitamos, dizem os cosmólogos que, quando ele explodiu, não explodiu por igual. Um lado é maior que outro, ainda que seja por uma única partícula a mais. Por isso, por não ter quebrado em simetria, não encontramos facilmente anti-matéria por aí. Ou seja, o lado com uma partícula a mais venceu. • P – É mais fácil entender a explosão do vaso em cacos do que o movimento que vai se condensando. Podemos chamá-lo de gravidade, se quisermos. É um movimento condensante no sentido do não-Haver, no sentido de desaparecer. Só que não desaparece. É como nós: desejo algum é realizável, só damos lambidinhas. Então, se anti-matéria tinha quantidade menor do que matéria – +1 e –1 se destroem algebricamente –, sobrou um caco, que é o universo que aí está. Notem que tudo isso que vemos é apenas o pedaço menor que sobrou. O resto sumiu em termos, pois se explodir de novo, terá que implodir de novo. E pior, a ignorância dos cosmólogos é maior do que a nossa, pois não pensamos nisso. Quando pensam nisso, descobrem a própria ignorância. O que dizem é especulação em função da descoberta de outras energias e matérias. A energia e a matéria escuras talvez sejam a maior parte do universo. Por isso, digo que o processo de implosão é causado pela força da ignorância dos cientistas. Temos os vícios de a filosofia ter nascido da mera conjetura, sem aparato algum de pesquisa ou de cálculo. Heráclito, Parmênides – que, aliás, são a mesma coisa, basta misturá-los para ver que dá certo – e outros, do ponto de vista do saber acumulado, eram muito ignorantes e nos levaram a inventar essas coisas todas. Mesmo assim, tentaram pensar algo. Um achando que tudo era um, e outro que era múltiplo. Hoje, é possível dizer que é tudo um e tudo múltiplo.
101
Se quisermos resolver isso filosoficamente, estaremos perdidos, pois é um problema científico. A filosofia que trate de trabalhar sobre o que ela conseguiu achar, mas não é possível fugir do caso de que existe eficácia. Como sabem, pouco me lixo para a chamada epistemologia, que faz esforços de raciocínio para mostrar o que é o conhecimento. Sou do partido que demonstra mediante tecnologia: a eficácia é prova de conhecimento. Não se trata de, antes, decidir o que é conhecimento para, depois, mostrar. • P – A psicanálise teria uma tecnologia clínica? Sua tecnologia é o modo de lidar com a coisa em busca de uma eficácia. O pior é que tem eficácia. Se temos o Revirão como referência, podemos dizer que ele é a própria constituição do Haver, que se repetiu para a nossa espécie. Não se repetiu nas demais espécies, na geologia, pois aí tudo é muito paralisado. É, portanto, preciso um longo percurso para voltar a implodir de novo e explodir. O Haver implode e explode, mas as coisas que conhecemos não fazem isso. Nossa espécie faz isso em sua cabeça. Por isso, inventa histórias a partir dessa intuição que é inteligente, mas sua fixação é frequentemente estúpida. Basta ver a burrice de certas religiões de Segundo Império, que ainda estão à nossa volta e que, por falta de recursos intelectuais, inventaram que o universo é pessoal, que tem que haver um Deus pessoal que faz as coisas. Como foi assim que começaram a ter tecnologia, ficaram com essas histórias. Esta foi a ciência deles, e não dá para brincarmos de epistemólogos e dizer que um dia a ciência nasceu. A ciência foi se transformando e há a ciência dita moderna que deu um salto, mas aquela era a ciência do momento. Era o conhecimento que tinham e ao qual obedeciam. Então, pergunto: o Haver é pessoal? Vai ver que eles tinham razão, pois o Haver é uma Pessoa. Espinosa, a meu ver, fez uma limpa em todas as religiões. Disse ele que Deus é a natureza, e natureza, hoje, é: Haver. Ora, se Deus é Haver, é uma Pessoa, podemos conversar com Ele. Vejam que isso tudo não tem solução. Notem que não estou dizendo que Ele seja uma pessoinha como nós, e sim que é um Pessoão do qual somos meras partículas. Como já disse, somos a consciência do Haver. O Haver é consciente de si mediante essas formações chamadas IdioFormações. E 102
SóPapos 2018
deve ter umas bem mais interessantes que a nossa por aí. Sobretudo, não se esqueçam de que tudo isso é ficção. Dado tudo que conversamos semana passada sobre o Sentido, o que há é sobredeterminação radical, só que complexa. Como a franja é tão longa que não temos acesso a ela por completo, pensamos que o que vemos é suficiente. Não é, estamos vendo pouco. Então, além da sobredeterminação que está em todos os entes, se quisermos chamar assim, no caso da IdioFormação – que, para mim, somos nós e é o Haver –, há também a HiperDeterminação, que é acontecimento. Por isso, digo que a deusa suprema se chama Kaganda Yandanda. Ela não para para nada, não se mete com nada, ela é a Zorra que aí está. Ou seja, como a HiperDeterminação é meramente acontecimental e como a sobredeterminação é rica demais, não nos damos conta dela, ficamos pensando que somos nós que fazemos, que decidimos. É uma ilusão total. Quando quero alguma coisa, o que é isso? De onde vem esse querer? Temos que ter um mínimo de humildade para entender que somos mera titica de mosca no universo.
21 A questão que vem em seguida é: liberdade, o que é isso? Se pensarmos do ponto de vista do Haver, veremos que o Haver não é livre, que nenhuma de suas formações tem alguma liberdade. Elas são acontecimentais e resultantes das coisas. A espécie humana, com sua estupidez, como lê só até ali, pensa que ela é isso e que isso faz coisas. Mas, já que existe a palavra, o que é liberdade? Por que lutamos por alguma liberdade se somos sobre- e hiperdeterminados à 103
revelia? Parece, por exemplo, que criei uma teoria nova. É o oposto, foi a teoria nova que me criou. Sou um rebotalho do que se deu, e como só enxergamos até ali, damos autoria, dinheiro – então, tudo bem. • P – O Juízo Foraclusivo não indicaria algum momento de liberdade? O Juízo Foraclusivo (Urteilsverferwung) é uma bobagem regional. Em vez de restar aprisionado na ideia de definição de alguma coisa, por exemplo, coloco-a de lado, excluo. A teoria dos conjuntos não é mais do que a ideologia disso. Tomo um conjunto, fecho e excluo algo. O Juízo Foraclusivo expressa que, para continuar funcionando, tenho que fazer exclusões. Isto, ao invés de ficar dependente de recalques, de funcionar afetadamente por recalques. Aí, fazemos uma teoria. Ela é sempre falsa, pois não dá conta de tudo que está em jogo. É uma ficção, a qual basta ser funcional, que tenha certo conjunto de resultados. Não temos mais do que isso. Retomando o que dizia antes, pode parecer contraditório falar em sobredeterminação, que é (não infinita, mas) infinitamente grande; em HiperDeterminação, que é evento – não se pode hiperdeterminar coisa alguma (no que se faz certo esforço, pode ser que algo se hiperdetermine) –; e em liberdade. Cadê ela? Temos direito de falar em liberdade quando, em última instância, não há liberdade de espécie alguma? Mas, dentro do fracionado, do fractal, pode-se falar dela. Isto porque as formações são parciais. No que uma formação se sente tolhida por outra, aí é que se coloca o problema da liberdade. Uma formação, ao se sentir tolhida por outra, pede liberdade, pede não ter que ficar subjugada à pressão de outras formações. A ideia de liberdade é interna, e não externa. Não há liberdade alguma lá fora. • P – Pode-se dizer que, internamente, há hiper-opressões, que seriam HiperRecalques? Sim. É comum ver uma sociedade, que não é psicótica (não são indivíduos psicóticos), funcionar psicoticamente. Por exemplo, na igreja católica, que montou um aparelho violento de HiperRecalque, todos funcionam como malucos. As pessoas fazem sinais e rituais nas igrejas igualzinho aos doidos dentro dos hospícios. E pior, isto é feito em busca de poder para 104
SóPapos 2018
massacrar os que não querem ser psicóticos. É nesse mesmo contexto que ficamos impressionados, como falávamos da vez anterior, com acontecimentos que, propagandisticamente, são tornados diabólicos. E o resto? Basta observar que, perto de nós – numa situação de gozo político, inclusive –, aconteceu a Shoah, a tentativa de destruição dos judeus. Mas este é apenas um caso, que resulta num bode expiatório para o outro poder fazer o mesmo. Ou seja, se indicamos um bode expiatório, todo o resto ruim – pois esse acontecimento foi efetivamente ruim – fará o mesmo. Isto porque a tal humanidade jamais parou de fazer assim. O que estou dizendo é que uma multidão de formações – nações, etc. – tomou aquele casinho para chamar de o mal, e se colocar do lado do bem. É mentira, pois fomos nós todos que fizemos aquilo. E se tivermos a menor chance, faremos de novo. Basta ver, hoje, o que acontece com Israel diante dos palestinos. A igreja católica não se cansou de queimar grande número de gente boa que se recusava a agir psicoticamente. Temos, sempre, que fazer a leitura adequada, nossa, dos acontecimentos. Sobretudo, há que entender que esse tipo de acontecimento é uma das possibilidades do Haver. Se não queremos que aconteça, é preciso tomar mais cuidado, e não ficar xingando o outro. Não cabe acreditar que se funda certa região com tais ou quais crenças e que, portanto, seremos os anjos e o resto todo é mau. O bom e o mau somos nós. A psicanálise não pode tomar partido, pois sabe que tudo está partido. Uma filosofia é sempre excludente, mesmo que aproveite um caco ou outro das demais. É um sistema fechado, que sabe o que é certo e o que é errado. A psicanálise, por ser inclusiva, sabe que certo e errado são relativos, que dependem da formação em vigor. Ela sabe que é preciso incluir totalmente uma formação humana. Ou seja, alguém em pensamento analítico diante de outra pessoa tomará tudo dela como correto e normal: ela não tem erro algum, ela só é. Aí vem a vida em comum, que é onde começa o conflito, o qual há que ser administrado, sem diabolizar aquele que é o produtor do que está em conflito. A pessoa tem o sagrado direito de ser o louco que é, mas, como cria problemas, é preciso administrar de algum modo, inventar contenções para tentar eliminar o problema, e não a pessoa. Isto é justo o contrário do que a 105
espécie humana tem feito, que é diabolizar a pessoa, mandá-la para o inferno. Aliás, Chicão, que é esperto, ficou desconfiado com isso e até já aboliu o inferno. Vejam que a psicanálise não pode se fixar na ficção dos outros. • P – O que fazer com os psicopatas? Estes não têm jeito, precisam ser contidos de algum modo. E o mais cedo possível. Mas que “culpa” têm eles se os neurônios-espelho lá não se instalaram? Então, como são prejudiciais a alguém, têm que ser contidos dentro do interesse desse alguém. Vejam que é tudo dinâmico, que não é possível definir e acabou. • P – A Igreja é psicótica? Não. Ela funciona psicoticamente. Se fosse psicótica, seria possível dar algum jeito nela. Seu modelo de funcionamento é hiper-recalcante. Funcionar psicoticamente não é apenas coisa de psicótico: copia-se a porcaria da estrutura psicótica para montar um aparelho. Isto, do mesmo modo que o que chamam de democracia é pura neurose obsessiva (que, de vez em quando, dá ataques histéricos). Ela é uma montagem de suposta forma de governo que funciona quase que bipolarmente e, pior, de modo falso, mentiroso. O que temos é só um desejo de democracia, pois ela não há em lugar algum. A Grécia antiga fingiu que tentou instalá-la, mas era só para os cidadãos. O resto – mulher, escravo – não era ninguém. No Brasil, o que temos é uma patotocracia, sem possibilidade de entrada de ninguém novo ou de fora do aparelho já instalado. A posição do psicanalista diante disso é de suspeição permanente. A liberdade só existe na luta de interesses. As pessoas se desesperam atrás de dinheiro porque, nesse regime, nesse lugarzinho, ele dá liberdade. Saúde e poder também. É tudo regional. O Haver nada tem a ver com liberdade, ela não lhe interessa. O interesse é apenas fractal, local. É possível criar expedientes vigorosos de libertar um pouco algumas situações, trazer algumas folgas. O modo de pensar que a psicanálise inventou é diferente dos demais. Não estou dizendo que seja melhor ou pior, e sim que não cabe neles. Não cabe analista católico, partidário... Por interesses de raciocínio – 106
SóPapos 2018
nem é preciso ser pessoal –, pode-se votar nesse ou naquele mais apropriado à situação, mas este é um ato político. A psicanálise é a postura mental de nada ter a ver com isso. Sempre digo que nunca vi ninguém mais esquisito do que Lacan. Era alguém que pensou tudo que pensou e era esquisitíssimo. Basta olhar para suas frequentações. No entanto, fez o esforço de compor algum modo de pensar isso consequente com seu momento – o qual momento, repito, já passou. Aliás, acho que ele aprendeu mais com os maluquetes do surrealismo, do dada, que eram contemporâneos das construções daquele momento, contemporâneos da topologia de Lévi-Strauss, que é uma maluquice regional. Por sua vez, como sabem, Lévi-Strauss é uma resultante inteligente de Jakobson e Troubetskoy. Estes dois só surgiram porque aquele momento era coisa de maluco. Buscaram em Saussure uma tentativa de organizar a situação, o que vai bater na psicanálise, ela vira Lacan. Isto se chama sobredeterminação, e aí uma HiperDeterminação qualquer faz nascer o lacanismo. Nada disso é eterno, só vale enquanto deu. Basta acompanhar o processo que, com alguma (não total) clareza, vemos a resultante das coisas. É a normalidade do Frankenstein. Algo aconteceu que tornou, talvez, necessário o surgimento do interesse pela linguagem como organizadora do mundo. Isso já acabou, embora haja gente que continue rezando na mesma igreja. Lacan já disse que a religião sempre vence. Basta ver o caso de um paranoico propriamente dito que fundou uma filosofia e uma igreja junto: Augusto Comte. Aquilo é a invenção de uma armadura de tremenda violência sobre o real. A santa da igreja positivista, aliás, era a mulher de Comte. Isso colou muito aqui, está na bandeira nacional: “Ordem e progresso”. O chefe da igreja positivista no Brasil era Paulo Carneiro, que conheci e fiquei horrorizado. Ele tinha um apartamento em Paris que era destinado ao chefe da igreja. Em última instância, o positivismo seria a religião da ciência. O Exército brasileiro tem cabeça positivista. Fui embora de lá por isso. Entrei no exército porque quis. Achei que devia ter uma experiência militar e, sobretudo, tinha que sair da família, a qual é muito pior que o exército. Cursei a Escola Preparatória, que é o antigo segundo grau e tem um excelente ensino, sobretudo na parte matemática e científica. No 107
restante, é mais ou menos. À noite, nas horas obrigatórias de estudo, podíamos ir à sala de aula ou à biblioteca. Eu ia para a biblioteca, lá pegava o livro que queria ler, e quando algum oficial vinha inspecionar colocava outro livro sobre ele. Foi lá que comecei a ler Freud. Todo desenvolvimento da carreira, todos os cursos, todas as provas eram cientificamente corretas. Não se pode pensar nada fora daquilo. Depois, quando já era cadete na Academia Militar de Agulhas Negras, resolvi ir embora. Eu era bom aluno e aturava direitinho a situação. Havia lá uma biblioteca maravilhosa com vista para o bosque. Lá fui eu um domingo e pedi para ler um livro de cujo título já não me lembro. O capitão chefe da biblioteca olhou uma lista e disse que não poderia pegar aquele livro porque não estava incluído nas leituras do primeiro ano que eu cursava. Aí decidi sair. Não me imaginei chegar até general naquela situação. • P – Em que ano alguém poderia ler os livros de Freud que estavam na biblioteca? Em ano algum. O livro apenas constava na lista dos livros da biblioteca. Na Escola Preparatória, antes, não havia essa perseguição, era possível ler escondido.
22 Temos que saber que as definições de Lacan são estruturalistas e que as de Freud são cientificistas, querem a especificidade de cada definição. Com o tempo, passamos a ter o direito de tomar as definições em termos de grau. Há um gradiente que é de tal modo que, na fronteira, ele se mistura a outro. Lacan, como estruturalista, tinha a obrigação de dizer que psicose era isso, neurose 108
SóPapos 2018
aquilo e perversão aquiloutro. Isto não é a realidade, e sim o estruturalismo de Lacan. Se tenho a noção de Teoria das Formações, considerar as formações é mais elástico. O que é uma neurose? Isto é, o que, para nós, é uma Morfose Estacionária? Uma grande formação de recalques coibindo o funcionamento psíquico e da vida de alguém. Há um trabalho quase que infinito de começar a suspender as formações recalcantes para que a coisa vá ficando mais solta. Ao falar em HiperRecalque, é para não fazer uma diferença estrutural entre a Morfose Estacionária e a Morfose Regressiva (a psicose). Há diferença (não estrutural, mas) de poder das formações recalcantes. Elas são poderosas demais. Trata-se, portanto, de um recalque como outro qualquer, mas como foi construída uma formação de defesa tão violenta contra esse recalcado, ela fica parecida com a realidade. A quantidade de formações recalcantes é tão poderosa, tem tanta força, que algo fica funcionando como se fosse real. • P – Dá para suspender isso? Acho que, teoricamente, é para suspender. Lacan, como inventou a tal foraclusão, tinha a obrigação de dizer que não tinha cura, pois o significante não tinha entrado. Mas, mesmo assim, dizia que temos que cuidar do psicótico, que tentar alguma coisa. Não vejo como, pois está “foracluído”. Em nosso caso de Morfose Regressiva, suponho que seja muito difícil suspender uma ordem recalcante tão violenta. É uma questão de gradiente, de quantidade de recalque e de força recalcante. O caso princeps continua sendo Schreber. Leiam o livro do pai dele e entenderão que a violência pedagógica é tão grande que a única maneira de Schreber equacionar sua homossexualidade foi ter que virar mulher. Enquanto homem, não poderia, radicalmente, realizar aquilo. Buscou, então, transar com Deus e produzir filhos que seriam uma nova humanidade. Tudo isso por causa daquele pai maluco que proibia em definitivo a homossexualidade. Lendo o livro vemos o HiperRecalque vindo do pai. Como há um ponto que está preso, é um verdadeiro arrebite, não é possível relativizar. Observem que, nessa situação, a pessoa tem que inventar um sistema complexíssimo para permitir o retorno do recalcado sem retorno, passando para outro. Se Schreber tivesse namorado um rapaz, teria feito o retorno do recalcado, mas 109
era-lhe impossível por estar fixado como real. O que faz ele? Vira mulher e se casa com Deus. Aí, pode. • P – O HiperRecalque é imexível? Não sei. Só vendo o caso, as intensidades. Pode acontecer de alguém ter um surto psicótico, conseguir aproximar o hiper-recalcado e nunca mais ter nada. É comum, na adolescência, pessoas surtarem e depois nada mais acontecer. O surto é a invenção de um delírio qualquer para possibilitar cumprir o que está recalcado sem desrecalcar. Já o que chamam de perversão, um nome abominável que precisa ser jogado fora, isto é, a Morfose Progressiva é justamente a superação de recalques. Não confundir com psicopatia, que é defeito cerebral. Se alguém, desde a infância, consegue a proeza de ir suspendendo ou não fixando recalques, ele é de um à vontade enorme. Fica difícil de separar isso do psicopata, mas há separação possível. O Progressivo é macio, tem mobilidade, tem jogo. O psicopata não tem. • P – Você falou em Morfose Estacionária, Progressiva e Regressiva. Na Tanatose, na vontade de sumir, o que acontece? A Tanatose é nosso destino. Somos todos suicidas, com uma enorme vontade de sumir desta merda em que estamos. Se alguém for muito longe, acaba indo. • P – Você repetiu há pouco que psicopatia é defeito cerebral. Você já dissera que autismo e melancolia estavam na Tanatose e, também, que autismo era defeito cerebral. Como juntar isso tudo? Está errado o que eu disse, vamos corrigir. Faço a suposição de que existe funcionamento autista sem defeito cerebral. É uma espécie de recusa do mundo. Ou seja, há o autista com defeito cerebral e há o comportamento autista de recusa do mundo. Há aquele que, segundo Ramachandran, tem deficiência de neurônios-espelho, nos quais não aparece a empatia. Isto pode comparecer como psicopatia ou como autismo. Quando o Primário é atingido, nossa operação não vai lá. Mas qualquer um que entrar em recusa do mundo, 110
SóPapos 2018
parecerá um autista. E vemos pessoas se tornarem autistas. Um dia, expulsam o mundo. Lacan, por exemplo. Dizem que, no final da vida, ficou gagá, mas acho que, antes disso, tinha um comportamento autista. Me contaram que ele foi ficando calado. Lembrem-se de que, ao falar de mudança de Impérios, ela não é para todos. O novo Império surge e está em funcionamento, mas não para toda a humanidade. Ele deixa um grande lixo para trás. O funcionamento é para o Império, e não para todas as pessoas. Só para os que nele entraram, o resto é lixo do Haver. Será assim até o dia em que não haverá mais lixo. Não que se vá eliminar pessoas, mas haverá algo como bolsa-desgraça para aqueles ainda referidos aos Impérios anteriores. Suponho que onde ETs estejam uns cinco mil anos à nossa frente, lá todos sejam iguais, só tem incesto. Eles sabem muito bem que não são ninguém, que estão no movimento indo em frente. Como não sabemos isso, somos macacos, pensamos ser alguma coisa.
23 É possível, sim, como estão me perguntando, considerar o Recalque Originário como uma espécie de HiperRecalque, pois ele é o modelo de todos os recalques. O que acontece cá para baixo dele será HiperRecalque localizado. O Haver é psicótico. E dentro dessa loucura em que vivemos, há outras loucuras localizadas. Não canso de repetir que nossa espécie é louca. Em outro regime lógico que não o meu, Lacan dizia que o impressionante não era haver psicose, e sim todos não serem psicóticos. Repetirei agora algo incompatível com a teoria do Nome do Pai: qualquer 111
um, dada a situação, pode tornar-se psicótico, pode pirar. Alguns dão jeitinho para ficarem só histéricos, só obsessivos, mas qualquer situação-limite pode fazer uma pessoa surtar. Lacan também falava assim, mas, ao mesmo tempo, determinou a psicose como foraclusão do Nome do Pai. Então, é ou não estrutural? Para mim, não é, pois tem gradientes. Vejam que as duas coisas que Lacan dizia são incompatíveis. Como, mais para o fim de sua obra, ele disse que a pessoa pode surtar, acho isto mais certo que a foraclusão. • P – Como, na Morfose Regressiva, o HiperRecalque seria o mesmo que no Recalque Originário? Neste, o vetor é progressivo no sentido de não-Haver e no HiperRecalque é regressivo. Não é o mesmo, e sim repetição dessa possibilidade recalcante. Tudo dentro do Esquema que lhes apresento é pura ressonância. Se cá embaixo a coisa ressoar, é tudo o mesmo. Mas este debaixo não é o de cima. Tudo que há lá pode se repetir cá embaixo. A diferença é de grau, de situação. Por isso, não falo de sujeito, e sim de Teoria das Formações. Quais formações estão em jogo, caso a caso? É como se pudéssemos escutar cada pessoa enquanto absolutamente singular. Lacan também disse que a psicanálise é a ciência do singular. É algo absurdo poder haver a ciência do singular, mas é preciso de uma ciência do singular porque sempre temos que desconfiar da suposição colocada pela teoria. Faz-se uma teoria para poder ter recursos, mas devemos desconfiar dela. Se não, estaremos no paraíso da ciência do real. Basta ver que a física contemporânea já não mais acredita na universalidade de suas leis. Elas funcionam em certas regiões, o que não implica serem universais. Ao falar em certas regiões, isto pode incluir a cabeça do cientista, a qual, se fosse outra, talvez a teoria também fosse outra. O que está sendo destruído no momento contemporâneo é a suposição de universalidade e de absoluta consistência de qualquer saber. E se isso não existe, onde está a fronteira entre a ciência e o resto? Os epistemólogos é que precisam de fronteira. O Quarto Império é o império de dissolução das fronteiras. Como é a primeira vez que a humanidade passa por isso, estão todos muito perdidos. Não há porto seguro, dá apenas para o barco dar uma encostadinha. A Teoria das Formações preconiza a necessidade de posição ad hoc. 112
SóPapos 2018
Isto, inclusive em sua escuta clínica. Ela é ad hoc. Diante da postura pseudo de que se escutava um a um, mas se recorria à teoria fechada, temos que ver que uma coisa destrói a outra. A escuta é da ordem do não-sei, e a teoria, do talvez-eu-saiba. Nosso momento é difícil, levará tempo para se arrumar. Em todas as áreas está difícil sobreviver. Observem que, na psicanálise, como vocês estão fazendo aqui, ainda se continua procurando o desejo de distinção que havia em Freud. Ele inventou tanto tipo de neurose que nem sei como ele próprio não ficou junto. Tudo aquilo é bobagem – da melhor qualidade, aliás. Enquanto ele pôde produzir, era um avanço enorme. Ele estava observando bem, mas tinha por trás a mentalidade sobretudo médica de classificar cada acontecimento. Entretanto, se classificarmos segundo uma escuta ad hoc, veremos que ninguém tem a mesma coisa que o outro. Mesmo dizer de alguém que é histérica ou obsessivo é caso a caso, pois, às vezes, passamos longo tempo de vida em histeria, depois em obsessividade. Lacan manteve esses nomes, mas, de acordo com seu momento teórico, o que tentou fazer foi produzir estruturas para cada caso. Ao pensar dentro de uma situação, não dá para pensar fora dela – mas, ao pensar dentro dela, enriquecemos os modelos de maneira de abordagem. É ridículo, hoje, em análise, falar de Édipo, pois já foi reconstruído. No tempo de Freud, era algo excelente, uma grande descoberta, mas o momento atual desfez a possibilidade de ele ser usado. Lacan, então, montado nas costas de Lévi-Strauss, da linguística estrutural, montou um aparelho compatível com seu momento, cheio de oposições estruturais. Vemos lá formulação para tudo: os quatro discursos, os três registros... Ele precisava distinguir estruturalmente neurose e psicose, mostrar que eram coisas radicalmente diferentes. É nítido acompanhar em seu seminário sobre As Psicoses (1955-6) que ele não sabia o que fazia. Do meio para o fim, achou uma maneira de separar mediante a invenção da “foraclusão do Nome do Pai”. Aí, por ficar compatível com seu tempo, ficou sereno para pensar que cada caso tem uma estrutura diferente. Não há isso em Freud, e tampouco em nosso caso. O que temos são formações repetitivas, etc., que poderão não se repetir e que, ao acompanhá-las, percebemos que tudo é do mesmo naipe. Não temos uma estrutura da neurose, 113
outra da psicose e ainda outra da chamada perversão. Tudo é funcionalmente o mesmo dentro do movimento de possibilidade de recalque que há no Haver. Se tomarmos a antiga neurose, que chamo Morfose Estacionária, veremos que as formações recebem certa carga de recalcamento, que pode ser primária ou secundária, mas têm possibilidade de manejo. Mas se acontece de uma pessoa, sabe-se lá por que, há que ver caso a caso, ser pouco atingível pelo processo de recalcamento – pode ser por mera inteligência –, ela se torna Progressiva. Mais ou menos, depende da massa de recalcamento que recebeu. E se esse recalcamento foi excessivo, é o que chamo de HiperRecalque. Ou seja, se a coisa é hipostasiada por excesso de pressão, a pessoa fica com um núcleo duro em que não se consegue mexer. Isto porque ele começa a se comportar como se fosse da ordem do Primário. O cérebro é capaz de ser assim, é capaz de empedrar, de perder a maleabilidade. Basta ver pessoas estúpidas durante toda a vida. Alguns cientistas neurológicos estão perto de descobrir o porquê dessa perda de plasticidade em algumas regiões cerebrais. Vejam que o Secundário não empedra, é solto, topa qualquer coisa. E temos que entender que, se houve um processo recalcante suficiente, que dizemos ser um recalque formado, isto está no cérebro. Não podemos descuidar de pensar o que a ciência do cérebro está procurando, pois tem que estar em algum lugar, não é mágica. De repente, está em vários lugares do chamado corpo humano, mas deve sobretudo estar na região de articulação que é o cérebro. Por exemplo, alguém que conhece determinado assunto por tê-lo estudado bastante, se o deixar de lado durante uns dez anos, ao procurar de novo não o achará. Pode parecer falha da memória, mas por que ela tinha que falhar se a pessoa já soube aquilo? Há, então, que estudar o que o cérebro faz do ponto de vista da memória e, aí vem nosso caso, se as outras formações, ao encontrarem aquela fraquejada, a recalcam, viram processo recalcante de um saber. Vejam que é um processo secundário, mas que vai bater no cérebro, que fica duro, empedrado, para o funcionamento. O que estou dizendo é que o processo de recalque tem que ser explicado cerebralmente. É uma dinâmica de usos e de forças. Se alguém amarrar o próprio braço para trás durante um mês, ao soltar verá um mal funcionamento. O cérebro não é diferente. 114
SóPapos 2018
Vivemos uma época do pensamento que não é diferente da época do acontecimento de mundo. Os saberes estão em questão, em suspensão. No entanto, não se pode abandonar a ideia de saberes, pois ficaremos sem nada. O processo é totalmente dinâmico. O que o estruturalismo tem que não combina com o mundo de hoje é que sua dinâmica é empedrada, com definições fechadas. Por exemplo, ninguém é psicótico, há, sim, psicose ali. Se um dia ela evoluirá ou não, não sabemos. É preciso conhecer a pessoa segundo uma dinâmica ad hoc e dançar conforme a música. É isso que o mundo contemporâneo está tendo dificuldade em entender e viver. E mais, é clara a percepção disso por todos. É clara a ponto de vermos a denegação e a recusa funcionando com violência em quase todos justo por estarem vendo que é isso que acontece. A maioria correndo para trás, para religião, para crendice, no sentido de fingir que pode sustentar uma crença que segura o mundo. É só esperar que veremos tudo isso desabar, pois essas atitudes são incompatíveis com a situação. • P – O HiperRecalque é regido pela Lógica da Inconsistência que você coloca? Está na conta da fraqueza das formações recalcadas? Sim. Fraqueza, inclusive, biológica. As células cerebrais são frágeis. É por isso, aliás, que têm tanta maleabilidade. Estamos navegando no escuro com uma dinâmica de ação e de teoria sempre com interrogação. No entanto, alguma coisa funciona. • P – Há semelhança entre recusa e HiperRecalque? É possível, sim, uma recusa ser um processo de HiperRecalque. Uma recusa é uma denegação forte, violenta, e não diretamente da ordem do recalque. Toma-se um partido: estou vendo que não é e estou dizendo que é. Não é preciso haver retorno do recalcado, pois estou vendo. Meu Inconsciente está mentindo, está fingindo que não viu, e isto com muita força. Em vez de mera denegação, é algo surgir e eu denegar violentamente porque as dores desse ponto estão associadas a uma enorme massa de formações que dá poder à denegação. Ela fica forte. A teimosia demasiada de certas pessoas é mais ou menos da ordem da recusa. Lá no nordeste do Brasil contam a piada sobre duas 115
pessoas na cobertura de um prédio olhando para adiante. Uma diz: “Daqui dá para ver a areia da praia”. O outro diz: “É a água do mar”. Insiste tanto que descem para verificar quem está certo. Ao chegarem, o primeiro pega um punhado de areia e mostra ao outro que permanece dizendo que é água. Ele, então, fica com tanta raiva que joga a areia no outro. Este reage gritando: “Não me molhe!” Notem que a pessoa está vendo que é areia, mas não dá o braço a torcer, chama todas as formações defensivas e denega ao vivo. Há muita gente assim por aí. Sobretudo, quando o que têm a denegar é secundário, aí a discussão fica dificílima. Fica parecendo psicose. Basta ver o HiperRecalque construído como função de saber absoluto que acontece com religiões, de que falávamos da outra vez. Não há demonstração possível do contrário, não tem conversa porque a recusa funciona junto. Como disse, as pessoas não são psicóticas, é o aparelho que funciona psicoticamente. Elas ficam tão aderidas àquilo que, mesmo vendo que não é, recusam, recusam... Em nossa época, os processos de fuga para trás estão fazendo aparecer uma denegação de violência tal que não tem conversa possível. É o caso de coisas como terrorismo islâmico. Nunca a história da chamada humanidade foi tão difícil. Os Impérios anteriores eram estacionados, com muito tempo, muita força, muita arrumação. Até o Terceiro Império foi assim. Quanto ao Quarto Império em que estamos entrando, saiam da frente, pois ele é terrível. Já está tudo aparecendo por aí sem que as pessoas façam esforços para mudar junto. Alguns dizem que a psicanálise acabou, mas acho que ela jamais tenha sido tão importante e tão necessária. Isto, ela pensada do modo NovaMente. Pensada segundo a bobagem estrutural, estamos ferrados. Se nunca foi tão difícil, como disse há pouco, ao mesmo tempo nunca foi tão fácil. Se soltarmos a franga, ela vai, vai... • P – Ulrich Beck, no livro cuja leitura você recomendou, A Metamorfose do Mundo – finalizado em 2016 por seus colaboradores (ele morreu em 2015) –, diz que, na verdade, a globalização estaria começando agora. Se esta globalização acontecer, qual seria o destino dos sintomas regionais, nacionais, culturais? O sintoma do Brasil, por exemplo, se dissolveria, seria apropriado por outros, ou continuaria a insistir? 116
SóPapos 2018
Enquanto a neurose for recalcitrante, fica denso. Se for trabalhada, ela vira um sintoma como outro qualquer. É como acontece com uma pessoa. A psicanálise não está aí para dissolver ou eliminar sintomas, e sim para reconhecer o sintoma, aplicá-lo, jogar com ele, etc. Supor que, no futuro, surja uma globalização plena não quer dizer que as regiões deixem de manter seus sintomas. Só que, em vez de saírem na porrada para afirmá-los como únicos e melhores, brincarão com eles e com os de outros. Não é mais uma coisa isolada, posso lidar com uma pessoa cuja sintomática seja diferente da minha porque ela, a pessoa, é idêntica a mim enquanto sintoma: sou facilmente capaz de reconhecer o gosto do outro. Notem que isso não tem funcionado na história do planeta. Cada gosto acha que não só é o melhor como deve obrigar os outros a terem aquele mesmo gosto. Na cabeça das lutas que vemos acontecer o tempo todo está que o meu é o verdadeiro e que todos, para serem verdadeiros, também devem ser assim. Uma guerra religiosa é: converter o outro. Por que tenho que convertê-lo? Cada um goza por onde pode. O fato de a globalização crescer não elimina as posições sintomáticas dos lugares. Por outro lado, promove uma mistura tal que possibilita haver, geograficamente no mesmo lugar, uma porção de sintomas diferentes. Quanto a isto, algo importante é entendermos a moda. Roland Barthes, por exemplo, apesar de seu estruturalismo, em Sistema da Moda (1967), tenta entender os movimentos sobretudo nas roupas. A moda é uma espécie de turismo funcional. Ficamos de saco cheio de falar tal coisa, aí inventamos outra gíria... A espécie não se sente bem na repetição, não suporta saco cheio. Suponhamos que a globalização cresça muito, e o Brasil entre na moda. Não durará, pois isso enche o saco. Por isso, as grandes punições são sacais, torram o saco das pessoas. A Inglaterra quando era mais boçal do que é hoje, quando prendia um grande escritor como Oscar Wilde, condenava-o a fabricar e desfabricar cordas ininterruptamente até os dedos sangrarem. É a tortura radical. Vejam que, agora, o Brasil passa pela situação de que ninguém representa ninguém. Nossa perspectiva de entendimento disto é a da repetição sintomática, que é menos arrumada e mais pontilhada que uma perspectiva sociológica como a do autor que você está lendo. Estamos à beira de uma eleição presidencial em 117
que o sintoma que percorre a maioria dos eleitores é o de não representação. Antigamente, era possível votar no Cacareco, no Macaco Tião... Hoje, o que se tem é a representatividade do sistema, e não dos eleitores.
24 • P – Ano passado, você fez um esquema em que estavam: Haver (Artifício Espontâneo); brota o Revirão; surge a IdioFormação (com Primário, Secundário e Originário); e o Artifício Industrial (Prótese). Esta, a Prótese, se bifurcava em paraespontânea e secundária. Minha questão é: devemos empregar o termo Secundário apenas para essa competência de articulação, ou também incluir nessa série as resultantes históricas das reificações constituídas pela Neo-Etologia (as chamadas Formações Secundárias)? Você encarece um Princípio de Articulação como sendo o Secundário e outro como mais o que você chama de prótese paraespontânea? Não esquecer que o Secundário que conhecemos é o nosso. O resto é Primário. Um ET por aí, se houver, também estará articulando secundariamente, sei lá de que jeito. As articulações estão no Haver, em qualquer nível. • P – Qual a necessidade de um conceito como o de prótese paraespontânea? Por que não apenas Prótese? O que se ganha conceitualmente com esta distinção? Entendo que, se veio pela vertente secundária, há um Princípio de Revirão em operação por mais que a mimetização seja muito próxima até de formações espontâneas. Ao falar de próteses paraespontâneas, você dizia que certas formações são mais próximas, na mimese, das formações já disponíveis do Primário. Uma casa, por exemplo, tem uma 118
SóPapos 2018
espécie de semelhança, uma analogia, com uma caverna. Não é o caso de uma articulação matemática, de um poema, que seriam mais distantes da analogia direta com a mimetização primária de começo. Acho que mesmo a formação mais elementar que a espécie produza, e que as demais não produzem, passa por um processo de reviramento. Para meu uso, o ganho está em distinguir um pouco mais na observação do mundo. • P* – Entendo que há um ganho por descrever melhor a performance protética da espécie. Há próteses que intervêm diretamente nas formações do Haver, e outras que não têm esse nível de intervenção. Em nosso momento, a tecnologia avança rapidamente no sentido de aumento da performance protética, e o conceito de prótese paraespontânea propicia uma leitura mais precisa desse avanço. • P – Mas uma articulação secundária refinadíssina como E=mc2 também propicia uma intervenção muito direta no mundo, inclusive resultando na produção de próteses bem banais. Isso é de lá para cá, e não daqui para lá. A diferença é vetorial. A fórmula de Einstein – que, aliás, está sendo questionada por alguns físicos – funcionou porque fizeram aplicações suas no mundo. Outra coisa é, de um ponto de vista mais analógico, tomar uma construção do Haver e elevar à categoria de Secundário. O vetor é diferente, é daqui para lá. Se considerarmos a história da produção industrial, e mesmo tecnológica, veremos que as primeiras produções são daqui para lá, e não de lá para cá. Por exemplo, a locomotiva foi inventada com cara de carruagem. E a carruagem, ao ser inventada, tinha cara de quê? Veja que é imitação de uma coisa dada. Há outras que não são imitação de nada. É o caso da fórmula de Einstein que você citou. É o contrário, será aplicada ao mundo e mexerá nele. Ela não nasce de mera analogia, é articulada separada disso. • P – O domínio do fogo talvez tenha sido um dos hábitos articulatórios mais refinados da espécie, que resultou num conjunto enorme de outras formações... 119
Aqueles que primeiro inventaram uma maneira de produzir fogo estavam num modo absolutamente analógico. Já havia raios, fogo espontâneo, etc. Que o vento produz fogo é algo facilmente observável por quem não é mero animal. Não é possível que não se tenha percebido isso e não se fosse pesquisar. É o gênio do momento, que saca a analogia. Não é a construção de uma fórmula matemática, que será ou não aplicável às formações do Haver. Muitas fórmulas foram escritas e não tiveram aplicação. A de Einstein funcionou. Até que ponto funcionará? Não estou falando de tempo, pois ela funcionará para sempre, e sim perguntando sobre uma necessidade matemática que faça alguém construir outra formulação. Aliás, já estão construindo. • P – O termo Secundário, então, açambarca o conjunto das próteses que foram inventivas em certo momento, que se decantaram culturalmente e se reificaram? É secundariamente que você opera, mas, secundariamente, há dois vetores. O vetor da imitação do Espontâneo, daqui para lá, e o vetor da articulação fora da analogia, de lá para cá. • P – Há articulação que não seja analógica? Para mim, não. Mas, em cima, E=mc2 não é analógico. Uma formulação matemática é análoga a quê? Retiremos o Egito, Euclides, etc., e voltemos a Einstein. Analogia sobre analogia cria distância. É o mesmo que acontece na psicanálise. Lacan fez esse esforço ao falar em metáfora. Ele queria romper com as analogias da psicologia. Ao operarmos analogia sobre analogia, vamos tornando cada vez mais abstrato. E se é mais abstrato, é mais aplicável a uma quantidade maior de coisas. • P – Seu sentido de analogia é o da tradução de uma formação por outra. Não há outro modo de construir a não ser de formação por formação. Posso abstrair ao extremo, mas a operação é sempre analógica. O que há é, então, um refinamento do processo analógico? Quando se faz a analogia de algo que já foi operado, estamos na analogia sobre a analogia. Se tomarmos na música, o que há numa mudança 120
SóPapos 2018
radical de estatuto? O romantismo, por exemplo, é analógico com relação a isso por exclusão de alguns elementos e inclusão de outros, mas é analógico do analógico. Antes de fazerem música, já havia o canto dos pássaros por aí. Começa-se, pois, pela analogia do passarinho, mas como vão fazendo analogia sobre analogia, o vetor se inverte. A tomar o já abstraído e aplicar, o vetor é da abstração para a suposta realidade. É diferente de encontrar uma coisa na realidade e fazer uma metáfora. Por isso, disse que aquele lá teve toda a chance de produzir o domínio do fogo. Isto porque ele viu o fogo ser feito. • P – Minha questão é quanto a esse ver de que você fala. Já não há nele um ato de criação? Há ato de criação quando alguém repete o que viu para construir proteticamente. O fogo pega na mata sem a intervenção de ninguém. É roça-roça de galhos secos promovido pelo vento. Durante milênios, não se percebeu isto. Achavam que um deus qualquer é que colocava o fogo lá. Certo dia, um gênio pré-histórico olha para aquilo e “vê” o fogo nascendo sem ser colocado por algum deus. Ele, aliás, deve ter tido que tomar cuidado para que não o colocassem na fogueira, pois o mais comum é fazerem isto com aqueles que “veem” como ele viu. Ele tem uma disponibilidade que não é de animal, consegue articular aquilo de algum modo. Ele é o que chamo de Progressivo. • P – Talvez esteja havendo, de minha parte, certa confusão entre o tempo da invenção e o de sua decantação. Insisto em que há aí algo da ordem de uma amnésia da gênese, como chamava Pierre Bourdieu. Estou realçando o fato de que grande quantidade de invenções foi observada no acontecimento externo, sem gente que o estivesse produzindo. Assim como o Haver é todo articulado, quando se faz a articulação do vento com os galhos, esta é uma produção espontânea. Se alguém que não é um idiota completo observa isso, articula, aquilo, depois, se decanta em coisas banais. Em última instância, mesmo o vetor que vem do abstrato para o, digamos, concreto é passível de reconhecimento de observação. Mesmo Einstein, depois de ter equacionado, teve que vir ao Brasil e esperar um eclipse para ver se era aquilo mesmo. Estou, então, enfatizando que há vetores. Uns que 121
vêm diretamente daqui para cá, e outros de lá para cá, que são uma construção abstrata que se começa a aplicar no mundo. No meio de campo é difícil saber o que ocorre. Por exemplo, aqueles que construíram a geometria não euclidiana já a fizeram na comparação com a euclidiana. Tomaram-na como um ideologema da cabeça de Euclides. E, pior, entenderam que a geometria euclidiana é falsa. Basta ver que, fora da cabeça do matemático, in natura, não existe linha reta. Aquilo é idealismo. • P – Com isso, temos mais um elemento para entender como você considera o Maneirismo. É um segundo grau do analógico, pois, nele, frequentemente os artistas transam com transações artísticas já postas anteriormente. Foi o que disse há pouco sobre a música. • P – A geometria que você usa é fractal? Gosto de pensar em fractalidade de vários tipos, não necessariamente apenas repetição da mesma forma. São esmigalhamento e dispersão repetindo sempre o mesmo movimento. A fractalidade de Mandelbrot é formal demais, embora haja ali coisas muito aproveitáveis.
25 • P – Retomando a questão do HiperRecalque tratada aqui da vez anterior, em Pedagogia Freudiana (1992), p. 113, diz você: “Podemos, então, dizer que, para além de neurose, morfose e psicose, muito para além do Marrakech do cotidiano dos consultórios, temos uma 122
SóPapos 2018
Morfose‑limite, que não é superável: apenas pode‑se dançar com ela conforme aquela música. Superá‑la seria morrer, ou seja, não superá‑la. Na situação de horror à beira do Cais, há uma Fobia original, até mesmo sem angústia, para aqueles que resolvem escutar a música, o que Lévinas chama de horror sem angústia. É a fobia originária de todos nós e no lugar tão indecidível de não sabermos se a fobia põe como objeto fóbico o Haver ou o não‑Haver. Do que tenho medo nesse horror: de o Haver não me deixar encaminhar direto para o não‑Haver ou de o Haver me sugar de uma vez por todas para dentro do Haver? Quando se toma alguma decisão aí ou (a) cai‑se no misticismo radical de se encaminhar para o não‑Haver na loucura dos santos, ou (b) na angústia que acossa aqueles que pensam que vão ser tomados de dentro do Haver. Daí a angústia também ser coisa tão radical, tão fundamental, tão originária quanto a santidade de cada um de nós. Perversão original também, no nível da Morfose‑limite. Não foi por nada que Freud, com muita precisão até, encontrou isso regionalizado na fala última de seus analisandos com o nome de masoquismo primário. O que pode ser masoquismo primário, em Freud, que eu chamaria de masoquismo originário? A paixão mórfica, se não morfótica, quando o próprio Haver funciona como insistência pelo não‑Haver: “Quero morrer em teus braços, oh não‑Haver!, oh Deus!, me estraçalha, me come, me mata!” É o cúmulo do erotismo. Basta ler os santos. Naturalmente que Freud destacou com muita precisão masoquismo e não sadismo primário. Isto porque aquele é que é compatível com a ALEI, Haver desejo de não‑Haver. Por isso, masoquismo originário. Mas, na escuta da pregnância do Haver em sua música fundamental, é só dar uma guinadinha de 180 graus para tomarmos o próprio Haver como fetiche e entrarmos na perversão. Père-version, no sentido de Deus até: a perversão divina de retornar ao Haver como fetiche e querer fazer algum barato com ele. 123
Daí Freud também ter destacado que é impossível fazer qualquer abordagem do Haver fora do regime da perversão. Mas não é o mesmo regime da morfose porque esse objeto aí, o Haver, é absolutamente geral, genérico. E quando se começa a estraçalhar esse fetiche, que, por si mesmo, é já estraçalhado, absolutamente fractal, o que se está fazendo não é senão despedaçar sadicamente esse corpo enorme ou aquela teta gigantesca do universo, se quisermos ser kleineanos. “Ébrios de Deus”, alguns exercem rigorosamente seu masoquismo originário; ébrios da Carne, outros exercem rigorosamente seu sadismo originário. Está aí Sade que não me deixa mentir. Considerado assim, também posso falar de uma Neurose‑limite. De uma histeria originária, na qual qualquer intervenção simbólica é insuficiente para dar conta do assimbolismo radical na aproximação do não‑Haver: não há quem não se histericize diante disso. De uma obsessão originária, onde o indecidível da relação entre Haver e não‑Haver não pode fazer mais do que enlouquecer e pirar uma cabeça que fica nessa dualidade insustentável e inominável, a não ser dando um passo para a morte ou caindo de boca no Haver. Usando mal o termo, poderíamos também pensar numa Psicose‑limite, que deixa de sê‑lo, portanto, assim como, neste caso, neurose e morfose não o são. Indiferença radical lá no ponto de aproximação do Cais Absoluto e o lastro do Haver fazendo peso de hiper‑recalque. Daí a posição insustentável dos psiquiatras diante desses loucos. Não sabem o que fazer, dizem um monte de bobagem. Que tipo de loucura é a de Artaud? Todas as formas disso que chamo de Tanatose podem, como mostrei, comparecer com aparências de neurose, morfose, psicose, aquilo tudo de cambulhada porque a pessoa fica passeando por ali: fases maníacas, depressivas, aparência de autismo na indiferença para com o que é interno ao Haver. Um dia, Nietzsche desligou a tomada, aparentemente, e ficou olhando para o Haver com cara de quem estava do Outro lado. Alguns, por causa disso, viram santos, são canonizados. Por que não Nietzsche? Artaud? 124
SóPapos 2018
Começo por aqui a minha tentativa de aproximação desses casos, que, para mim, estão absolutamente distintos de neurose, morfose e psicose”. Após esta longa citação, nossa pergunta é: o Recalque Originário pode ser considerado um HiperRecalque? Pode. Por isso, dali para baixo, só tem maluco, e por isso também fui a Artaud, Nietzsche e outros, caras do extremo que não são canonizados por igreja alguma. Grande quantidade de canônicos, da igreja católica, por exemplo – fora bobagens como Madre Teresa –, é exatamente isso. E há também os heréticos que são isso. O próprio Mestre Eckhart é próximo disso intelectualmente, não pirou. Podemos falar em HiperRecalque por não haver possibilidade alguma de ultrapassar o que funda nossa loucura: todos são doidos, a espécie é louca. Ela sofre de um HiperRecalque e chega num certo momento em que não há a menor possibilidade de trazer algo de Lá. Vejam que só porque determinado aparelho tem várias funções intelectivas, não preciso me prender a apenas uma. Ou seja, uma das funções intelectivas do HiperRecalque é fazer com que o Haver enquanto tal tenha a mesma constituição de uma psicose. A psicose comum das pessoas é regional, não fica maluco total, maluco beleza. Nelas, o HiperRecalque não é in extremis, nos dois sentidos do termo, é local, pequenininho. As pessoas se perdem dentro da loucura do Haver, não ficam mais loucas, e sim menos loucas. O psicótico comum é menos louco do que o psicótico normal como chamo. Dependendo da aplicação, o conceito apontará para esta ou aquela função. Não existe na obra de Freud – e suponho que tampouco em seu pensamento, pois acho que não combina – ou de Lacan o que funda tudo isso que está na teoria que apresento, que é a ideia de nomeação do que Freud chamou de recalque originário. Ele o traz como conjetura, pois, se há recalques, deve ter um recalque originário. • P – Não causa confusão já que o nome da loucura máxima seria a Saúde, de que falava Nietzsche? Você estaria, então, como Deleuze, elogiando a esquizofrenia? Não elogio, apenas reconheço. Sou maluco, mas nem tanto. Deleuze 125
concebe o modelo da esquizofrenia como sendo o modelo para lidarmos com as formações do Haver, falando em meus termos. Ele reconheceu certo funcionamento que entendeu ser da mesma cepa. Isto não quer dizer que seja do mesmo lugar. O HiperRecalque do Haver não é do mesmo lugar de uma formação fechada, menor, cá embaixo. Se não houver o de Lá de cima, não há o de debaixo. Como devem perceber, a estrutura de meu aparelho é de ressonância da própria constituição do Haver. Não há outra maneira de funcionar. A única que há é a maneira do Haver. Se um HiperRecalque está funcionando na vidinha de uma pessoa, ela enlouquecerá neste tamanhinho. Não enlouquece total como aquele que está se referindo a Lá em cima. Por isso, falei de gente completamente doida – santos, místicos, Artaud – que deixou comprovada sua loucura. Nietzsche mais ou menos, pois sua loucura é antes dessa, é: sífilis. Dentro de sua loucura sifilítica, ele caminhou para Lá. Ele não enlouqueceu d’Isso, enlouqueceu de outra coisa e tentou ir para Isso. Já os santos e certos místicos enlouqueceram d’Isso, d’Aquele HiperRecalque do começo. Portanto, não têm características regressivas localizadas, vão loucamente para a frente • P – Se queremos escapar de um pensamento normativo, não é possível não supor certa analogia. O pensamento da NovaMente é analógico, considera que o que acontece numa escala contém o que acontece no Geral. Se distinguimos que aqui é assim e Lá assado, temos aí a origem de qualquer normatização, criamos um critério de distinção que vira exclusão. Não se escapa do Haver. O Haver é absolutamente pirado e imprevisível. Isto, mesmo do ponto de vista da física contemporânea. A loucura que há no Haver não é a repetição de uma historinha delirante pequena, e sim a repetição de um delírio completamente aberto. É o delírio em seu estado maior, máximo. Os físicos do século XXI também concordam com a imprevisibilidade do Haver: o Haver dá chiliques, delira, faz coisas incríveis. Já se sabe que as leis da física que temos aqui não são as mesmas de outro lugar. Multiplicaram os universos, já temos o multiverso. São os Diversos. • P – Acaba a ideia de lei? De lei da natureza?
126
SóPapos 2018
A ideia de Lei não pode acabar. Observem que a natureza tem uma lei que é analógica a outras formações regionais, que, por serem repetitivas, parecem ser universais. É tanta repetição, é tão devagar – o Haver é lerdo, é a lesma lerda –, que passamos séculos achando que tal repetição se refere a uma lei. Mas é apenas um momento. Carlos Rovelli, em seu último livro que já citei aqui, disse que não é a energia que produz, e sim a entropia baixa. Ou seja, a entropia é devagar. Se não fosse, nascíamos e já morríamos, ou sequer nascíamos. Basta ver que sobre cada criança que nasce é preciso um enorme e longo investimento até chegar a, digamos, um doutorado. Pior, termina o doutorado e continua sendo uma besta. E, dentro dessa bestice, fica repetindo, repetindo o academicismo. Um ou outro enlouquece e fura o processo. Isso tudo porque a entropia é baixa, as coisas estragam muito devagar.
26 Sabemos de pessoas que têm compulsão de transar o dia inteiro. Há um psicólogo dos anos 1950, de cujo nome me esqueço agora, que acompanhou um caso que me deixou perplexo. Era um menino que conseguia se masturbar sessenta vezes por dia. Pulsão de Morte é isso: suicídio sexual. Vejo este caso como uma aderência direta da Pulsão de Morte à repetição da sexualidade. Aquilo não para. Podemos, com Freud, chamar de compulsão à repetição, mas essa é de qual tipo? Há compulsão com várias aderências. Essa é qual? Ninguém ensinou, e o menino ficava lá se masturbando. É uma loucura localizada, algo que gruda direto na Alei (Haver quer não-Haver), com aderência na prática erótica local. Ninfomania é leve comparada com esse caso. Era uma pasta de carne deitada numa cama de hospital se masturbando sem parar até morrer. 127
Ele tomou a Pulsão de Morte, que, em qualquer um, é bem localizada ali e funcionou incessantemente. Não se trata de neurose ou psicose, e sim de transa direta com Alei. Em geral, temos uma porção de resistências à Alei. Fazemos qualquer negócio para não a cumprir. O tempo todo, usamos os aparelhos de resistência para fugir da Alei. Ela é inexorável, mas podemos ser devagar. Como disse, o Haver é lerdo, fica resistentemente segurando o movimento, embora não haja saída. Segundo os cosmólogos, daqui a alguns bilhões de anos a coisa retornará lá embaixo, a Alei será cumprida. Ela está em movimento de cumprimento, mas não está sendo visivelmente cumprida. Freud a viu sendo cumprida, chamou-a de Pulsão de Morte. • P – Poderíamos dizer que se trata de Tanatose nesse caso? É extremamente ligada à Alei. Em pesquisas sobre prática erótica, tipo Relatório Kinsey (anos 1950) e Masters & Johnson (anos 1970), no quesito frequência da prática copulativa, por exemplo, o que temos é uma curva de Gauss: desde aqueles que nunca praticam, entram num estado de recusa, até aqueles que morrem de tanto praticar. Assim como também é possível pirar. Alguém tão comportadinho sexualmente de repente começa a dar para todo mundo. Depois, para, já que a estupidez é o mais frequente. Nossa estupidez é pesada. Além disso, não é que a maioria seja estúpida, e sim que cultiva a estupidez, pois esta dá uma impressão de segurança. É como se conseguisse eliminar a pulsão de morte mediante algum artifício. Isto vale igualmente para a Academia, onde se cultiva a estupidez para fingirem que sabem, que têm domínio sobre o conhecimento. • P – Como se daria essa estupidez em relação ao capitalismo? Ela vale também para o capitalismo aplicado, que tem a função de acumulação de capital como segurança. O Haver é capitalista. É, por exemplo, asneira criticar o consumismo, uma vez que queremos consumir tudo, queremos devorar o Haver. Basta lembrar de Sidarta Gautama, que era rei, largou tudo para consumir outra coisa, muito mais do que já tinha. Como veem, não há parâmetro, é tudo movediço. 128
SóPapos 2018
• P – Marx falava da oposição entre os que detêm os meios de produção e os que apenas têm sua força de trabalho para vender. Daí, ser preciso distribuir a renda. Em termos de economia política, para mim não se trata de apenas de distribuição de renda, e sim de sustentabilidade da dignidade mínima da Pessoa. É uma vergonha ver pessoas vivendo em estado de pobreza. É um insulto para alguém que é da minha espécie. A crítica que fazem aos libertários é não terem uma continência do capitalismo desenfreado, mas não há país algum com economia totalmente libertária, o que há são países com tendência a um estado fortíssimo. Talvez isto esteja acabando, entretanto o Estado mete demais o nariz na vida das pessoas. O que tem ele a ver com algo como o aborto ou eutanásia, que são questões pessoais? As leis precisarão mudar para se adaptarem ao que já acontece de fato, ao que está em pleno uso. Friedrich Hayek, pensador de que gosto, ao contrário do que muitos pensam, não é libertário e concordaria comigo. Contra Marx, podemos hoje perguntar: na pré-história, quem detém os meios de produção? Inteligência é meio de produção. Quem for mais inteligente explorará o outro – isto é o capitalismo. Portanto, antes ainda de ter meios de produção técnicos, etc., cada um tem a sua pessoa com enormes meios de produção, tem a força que eventualmente outros não têm, nasceram sem. Faz-se o quê, então? Colocam os que nasceram sem para trabalhar para os que têm a força. É assim que acontece. Ou seja, já nascemos na diferença do capital, dos meios de produção. Há, então, que produzir leis de controle, para que não se exagere, não se destrua o outro. O que chamo de dignidade mínima são dispositivos de compensação para que não sofram demais. Vejam que o processo começa de pessoa para pessoa, e os menos burros vão se apropriando e dominando os outros. • P – Podemos dizer que há, no Brasil, uma junção do mazombismo com cristianismo no sentido de impedir o surgimento de qualquer originalidade. Aqui paga-se em dobro para produzir. O que quer que seja criado tem que se esconder para não ser destruído. Talvez após a morte do criador apareça. É o que acontece neste momento com Hilda Hilst que, em vida, não 129
foi reconhecida e é a homenageada da FLIP, a Feira Literária Internacional de Paraty. Demorou pouco até. • P – Justo aquele que se recusou a publicá-la nos anos 1980, hoje edita seus livros. Esse mesmo editor fez o seguinte comentário a uma citação a meu nome num livro: “O que está fazendo o nome desse cara aí?” Não conheço a peça e não tenho ideia do porquê do comentário. Vejam que é diferente da mentalidade norte-americana, que, diante de algo novo lá produzido, busca investir naquilo. É, aliás, para isso que serve o capitalismo: apoiar os criadores, pois valem dinheiro. Aqui, derrubam. E o contrário, vigora: dão valor a imbecis visíveis para não ofender os demais ressentidos. Acompanhei contemporaneamente e relativamente de perto três brasileiros. Um, Heitor Villa-Lobos, pessoa da melhor qualidade no planeta, que foi muito perseguido, mas venceu depois de ter sido bem recebido em Paris. Outro, Guimarães Rosa, também bastante esculhambado antes de ser considerado um dos maiores escritores do Brasil. E outro, meu mestre Anísio Teixeira, que, na década de 1930, após ter estudado com John Dewey nos Estados Unidos, estava consertando a educação no Brasil. Foi destruído pela Igreja e pela politicagem até ser assassinado nos anos 1970. Ele não era interesseiro, foi parar na Secretaria de Educação num momento em que os americanos lhe ofereceram a Serra do Navio no território do Amapá para extrair manganês e exportar. Ele poderia ter ficado riquíssimo, mas como o governador o convidou para a Secretaria de Educação, lá foi ele.
130
SóPapos 2018
27 • P – Uma casa, por exemplo, é uma formação secundária? Uma casa, como é feita? Ela resulta de uma formação secundária que faz mediação com as realidades. Sem a habilidade secundária, não há a casa. Se alguém consegue mexer na suposta realidade mediante formações secundárias, está produzindo novas realidades por mediação secundária. O Secundário pode ser lido onde quisermos: somos nós que estamos lendo. Sem o Secundário, não há Artifício Industrial. Como sabem, chamo tudo de Artifício, pois se há articulação é tolo falar em natureza. Há também o Artifício Espontâneo, aquele que está dado por aí. Que saibamos – não nos encontramos ainda com os ETs –, apenas a nossa espécie articula secundariamente. Mediante essa articulação, ela mexe no Artifício Espontâneo e produz Artifício Industrial: casa, mesa, cadeira, etc. Tecnologia. Há um grupo importante – cientistas, etc. – publicando textos com a ideia de que não haveria ETs. Infelizmente, estaríamos sozinhos no Universo. Acho delirante, pois, se essa moda pegar, a cabeça das pessoas ficará pior do que já está. Isso é pior do que religião, é o Terror. É um delírio matemático. Fizeram contas e concluíram que a probabilidade é que não haja mais ninguém. Anteriormente, outros disseram que era grande a probabilidade de haver muitos outros. Não temos que acreditar em nenhum deles. O que importa não é ser ou não real, e sim se a moda pegar. Como sabem, nada há de mais importante que a moda, em todos os sentidos. Ela é o terror, pois aprisiona, sequestra o pensamento, e não conseguimos sair. Só quando ela vira sozinha, aí pegamos outra moda. Esquecemo-nos de pensar o quanto vivemos na moda. Ela é prima da crença. Alguém ir à rua com roupa esquisita, diferente, pode ser linchado. Em 1956, Flávio de Carvalho desfilou em São Paulo vestindo uma saia – que, na verdade era um modelo futurista de casa – e a multidão o seguiu impactada. Façam isso hoje e verão o que acontece. 131
• P – Não compreendo bem a separação entre Primário e Secundário, já que o Haver é homogêneo. Ele é homogêneo, em última instância. Há que entender os parâmetros da teoria como parâmetros teóricos. É de se esperar que, em última instância, o Haver seja homogêneo. Já lhes disse que, na física contemporânea, a teoria mais próxima desse entendimento é a Teoria das Cordas. Ou seja, o Haver é produzido musicalmente, apenas por vibrações. Então, se tomo a ideia de que o Haver por inteiro, lá em última instância, é tudo por igual, é isso que chamo de homogêneo. Posso escolher a Teoria das Cordas como um artifício capaz de me dar essa explicação, pois, em última instância, o que há é mera vibração. Ao falar em Primário e Secundário, isso é relativo à nossa espécie e a qualquer outra igual por aí, se houver. Por isso, não falo em humano, e sim em IdioFormação. Ou seja, o que quer que funcione por aí secundariamente é desta espécie. Não há Primário e Secundário do lado de fora (lá só há Artifício Espontâneo): eles são nossa constituição. Os animais só têm Primário, com Autossoma e Etossoma, uma construção corporal e outra comportamental. Por não terem Originário (este vem antes), não têm Secundário, não têm uma função que os obrigue a colocar a loucura para fora como as IdioFormações têm. O Primário gira em nossas cabeças e, ao nascermos, já encontramos o Secundário assentado. Ele já virou Neo-etologia. Portanto, não confundir Primário, Secundário e Originário com Artifício Espontâneo e Artifício Industrial. São regiões diferentes da Teoria. Não cabe perguntar se casa é Secundário, pois este é da espécie louca, onde quer que ela apareça. • P – É como se você tivesse montado duas tópicas. Uma do Artifício Espontâneo, e outra do Artifício Industrial. Esta, seria a tópica da IdioFormação. Antes disso, aparecem vida, animal, etc., que não têm Secundário. Só têm Primário, sofrendo embates, transformando-se... Ao surgir o Originário, ele enlouquece o animal, que só consegue fugir da loucura inventando para si um pseudo-etossistema. Isto, para sossegar, para arrumar um pouco, para ver se o pessoal acredita naquilo durante algum tempo... Se não for assim, 132
SóPapos 2018
todos endoidecem. O espantoso não é haver doidos, e sim não estarem todos doidos. Como dizia Lacan, o louco delirante é que é o normal. A loucura é que carrega tudo. Nós outros, que supomos não ser tão loucos, temos um monte de assentamentos para segurá-la. Ao pensar uma teoria como esta que penso, estou segurando a loucura – pelo menos, a minha. É um aparelho para caminharmos e ter aplicação no mundo. Qualquer pensador – filósofo, cientista... – fez isto. A diferença para com o cientista é que ele faz para valer, aquilo resulta em produção concreta. Filósofo só bate-boca. • P – Uma tópica é incompatível com um lugar de ser. Frequentemente, buscamos definir se isso ou aquilo é primário ou secundário. Uma tópica é pensada quanto a uma relação entre formações, e não quanto a uma identidade. Não cabe pensar, como em Lacan, que isso é imaginário, aquilo é simbólico... A identidade é um subproduto, uma resultante do movimento. Lacaniano é isso, pensa que a mãe dele é imaginária. A identidade é uma paralisia das formações, que se compuseram e paralisaram ali. No panorama teórico da NovaMente, a Identidade de nossa espécie é voltar ao Originário. As demais identidades, que resultam em racismo, diferença política, etc., são subproduto. Se quisermos achar outra IdioFormação no Haver, só a reconheceremos quando ela apresentar o Originário. Não importará sua forma externa, ela será nossa colega. A Identidade desta espécie é o Revirão. O acidente que produziu tudo isso foi o Revirão. Fiquei satisfeito em ler no jornal de hoje que o Google, a IBM e a Intel estão adiantados na produção do computador quântico. Segundo eles, estão saindo da teoria e entrando no mundo real com operação cem milhões de vezes mais rápida que os computadores atuais. Chamam de superposição esse funcionamento imediato de zero e um. Sua estrutura é unilátera, como é a nossa mente. Estou curioso quanto a saber como explicarão o fato de um computador funcionar unilateramente. Há décadas, imaginei que nossa mente é assim. Fico satisfeito em ver que isso que acontece em nossa mente está sendo industrialmente produzido. • P – Como seria a interface desse unilátero computacional com o mundo binário? 133
Não há, em álgebra, uma equação que pode ser (+) ou (–)? Uso como analogia a própria equação do segundo grau, cuja lei é ax² + bx + c = 0 e tem uma solução positiva e uma negativa. Se ela tem duas respostas é porque a matemática sabe que, em última instância, a função mental é unilátera. E por que, ao rés-do-chão da álgebra ginasial, a resposta é dupla? É possível imaginar algo parecido com isso em nível mais complicado no computador que dá duas respostas imediatamente. O computador que usamos é recalcante, sempre exclui zero ou um. Ele é consciente. Estamos chegando à era do computador inconsciente, que pensa como nós – e não como o neurótico, que é estacionário por pensar como o computador idiota. Se tirarmos a tampa – e a análise deveria servir para isto –, não pensaremos mais desse jeito, não teremos exclusão. Dá para imaginar como serão as próximas gerações que já estiverem convivendo com esse tipo de resposta não exclusiva? Perto delas, somos macacos. • P – Esse computador seria capaz de pensar? Os dispositivos móveis que temos no bolso já pensam. Aliás, pensam melhor que a maioria dos brasileiros. Nascemos com nada na cabeça a não ser a loucura do Revirão e a pressão do etológico. E a maioria das pessoas, ainda mais em um país como o nosso, fica estúpida, estacionária. Depois que a estupidez toma conta, é praticamente impossível mudar. Ou seja, temos sido um computador estúpido. É fácil ver isso nas análises, diante de certas regiões estacionárias das pessoas em que não se consegue mexer. É uma dificuldade extrema relativizar um pouco. Mesmo que a pessoa queira, ela fica apavorada. Acha que, se mexer ali, morrerá. É o contrário, melhorará. Na prática, o pior da psicanálise é que se conseguem resultados em avanço, mas demora demais elasticizar uma formação, é dificílimo. Às vezes, fico de saco cheio – e é justo quando tenho que me perguntar se também não estou paralisado. Será historicamente possível a coisa avançar de tal maneira que as pessoas tenham mais facilidade de revirar? Hoje, temos mais facilidade de revirar do que tínhamos no passado, quando a coisa era mais sólida, sobretudo se considerarmos a cultura ocidental em que a crença se colocava quase que absolutamente. Atualmente, as coisas estão escorregando 134
SóPapos 2018
porque a tecnologia bagunçou tudo. Escorregar mais fácil é bom para a saúde. Uma geração metida no quântico muda de grau. Se tomarmos pela sexualidade, veremos que mesmo hoje, diferentemente de antes, ela está tão dispersa que já se sabe que é abstrata. Como ela é um texto, todos os funcionamentos valem. Por que não? Imaginem quando a compreensão do unilátero estiver disseminada. A pessoa poderá até ser ignorantona, mas o mundo girará assim. Isto, do mesmo modo como, hoje, o mundo está girando compativelmente com o computador binário. Como será, então, quando todos estiverem acostumados com a pressão do unilátero? Precisamos nos preparar para o ataque da resultante da tecnologia. Isto porque a resultante última da tecnologia é igualzinha a nós. Ou seja, não somos iguais a nós, e sim a um discurso preparado e montado. • P – Esse computador quântico será pulsional no sentido da IdioFormação? É o pavor de todos, pois esse troço, de repente, fará o que quer, pensará o que quer, gozará. Se levarmos às últimas consequências o conceito de gozo dentro da pulsionalidade do Haver, observaremos que está aplicado em qualquer lugar. Ele goza de haver. • P – Há uma tendência, na filosofia, de retorno a concepções animistas e panteístas. Não seria, por via meio torta, uma constatação dessa aplicação de pulsionalidade? É possível. Espinosa já tinha dado a dica, mas agora é pior: Espinosa virou um computador quântico. Pensar isso dá vertigem, e já está aí no mundo. E mais, é uma concreta demonstração de que a psicanálise anterior está datada, é um fóssil – de altíssima qualidade, mas datada. • P – Como funcionará o computador unilátero se ele pode revirar, mas não sofre pressão etológica? Ele sofre pressão cultural. Não sei como funcionará, mas, substancialmente, é o mesmo tipo de pressão. • P – O computador binário funciona de forma análoga ao Primário e, por isso, não pode revirar? 135
Não conhecemos o Primário por inteiro. O câncer, por exemplo, é um defeito do computador primário. O comportamento mais imediato parece ser binário, mas, se a teoria evolucionista tiver correção, algo, por acidente, revirará. A diferença para conosco é que nós reviramos, e o que revira no Primário é revirado de fora. Uma coisa é a mente que revira por si mesma, outra, são os reviramentos no Haver, que são pressionados de fora. Eles não têm o Originário funcionando. O Originário é o próprio Haver. (Sobretudo, não deixem de ver o perigo de aparecer Deus aí). • P – Mesmo com toda a tecnologia escorregadia de que você fala, não é surpreendente ver hoje, agora, acontecer o oposto do que ocorria há pouco tempo – suspensão de fronteiras, globalização – como construção de muros, exacerbação de nacionalismos...? Há anos, digo que a entrada do Quarto Império criou um monte de retrocessos e pavores. Temos, então, hoje, a maioria que foge para trás e alguns que continuam empurrando para a frente. Repito, tudo dependerá da tecnologia. Na hora que ela bagunçar mesmo, quero ver esse pessoal conseguir ser regressivo. O mundo puxará o tapete deles. Irão para o zoológico. O que não se está conseguindo articular, e por isso vêm ideias de nacionalismos, é que o princípio, como prega a psicanálise, é: em última instância, você é um sintoma, portanto, seja-o. Sintoma é seu modo de falar, sua maneira de ser, as bases de sua construção secundária e primária. Seja compatível com seu sintoma e diga a partir dele, e não a partir de sintoma dos outros. Isto não é nacionalismo, como dizem aqueles que não sabem o que falar e chamam assim. Um grupo qualquer, de qualquer lugar, falar a partir de sua sintomática especial é soberania. A psicanálise ensina cada um a tomar a palavra. Ninguém será capaz de dizer por mim. Se todos disserem desse modo, haverá conversa, transa...
136
SóPapos 2018
28 • P – Um dos cientistas, ao falar do computador quântico que você mencionou na vez anterior, disse que as línguas existentes não conseguem descrevê-lo. Aliás, os próprios cientistas disseram não saber bem para que serve o computador quântico que estão construindo. As línguas são estacionárias, mesmo quando se mexem. São precárias. Aliás, quando se mexe um pouco nelas, os imbecis dizem que é neologismo. Por outro lado, é o computador que dirá para que eles, cientistas, servem. O mais interessante é que, por ser unilátero, bífido, i.e., por ter chance de reviramento permanente, esse computador tem possibilidade de ficar louco, de pirar geral para qualquer lado. Talvez, até de ficar psicótico. Isso é da mesma ordem da nossa loucura. Loucura tomada em sentido genérico. Quando se propuser uma questão ao computador, não saberemos o que fará com ela. Igual a nós, que falamos um monte de asneiras até chegar a algo que preste. Essa é a loucura de todos, que não percebemos por estarmos amarrados na repetição, no Estacionário. Isso amarra as pessoas. Basta ver a loucura que fazem os poucos que soltam as amarras. São os poetas, alguns pensadores como Nietzsche, pessoas piradas (no bom sentido). As pessoas que querem uma solução careta para determinados problemas têm que, como esses engenheiros computacionais, misturar a loucura do bífido com um aparelho Estacionário para segurá-la. O computador quântico de que falam só consegue funcionar no nível da mistura. Se ficar apenas o bífido, é a loucura, eles não sabem o que fazer. Eventualmente, diante de uma questão, o computador pode dar um salto e cair numa boa solução. É que-nem-que nós: a gente pira – pois é, sim, uma piração – e dá um salto. O nome disso é HiperDeterminação. Podem esperar pelo robô-IdioFormação. Seremos dispensados. Até agora, pensamos em computadores em termos de fornecimento de respostas, mas eles também formularão questões, trarão problemas novos. Quem lerá? 137
Mediante qual interface? Eles construirão a própria linguagem. Essa língua – chamemos assim – terá um limite de Estacionamento. Ela é falada? Cadê o l’être parlant, de Lacan aí? Seremos nós tratados por eles como crianças idiotas? Esse Revirão é um terror que está vindo. Aliás, nosso primeiro impacto com qualquer criador é a impressão de loucura. Basta ver, na literatura, Mallarmé, Joyce... que, de início, foram considerados malucos. Demorou para assimilarem a linguagem nova que traziam. O mesmo aconteceu com certos pensamentos de ponta que, imediatamente, foram tomados como maluquice pelos Estacionários. Dizia-se de Lacan que, ao romper com a IPA, teria surtado. O mesmo aconteceu com Freud ao escrever o Além do Princípio de Prazer. Então, a pergunta é: o que está impedindo os engenheiros de ler o computador quântico? Quanto tempo demorará para assimilarem a linguagem nova que ele traz? Como ele dá duas respostas em bifididade, cabe escolher uma, isto é, cabe recalcar um lado. Vejam que a situação, em qualquer linhagem que imaginarmos, ficará do mesmo nível que é o Inconsciente. Assim como nossa maluquice, sobretudo quando sonhamos, é o bífido aparecendo de vez em quando. Para entender isso, o melhor é ler Freud, que, a todo momento aponta para a bifididade do Inconsciente. É depois que ele retorna e vai pensar como se fala com o neurótico, etc. Em Sobre o Sentido Antitético das Palavras Primitivas (1910) mostra que o Inconsciente funciona soltinho. Em última instância, se é bífido, é circular. Se andarmos muito, chegaremos ao mesmo lugar de onde partimos. Isto porque o lugar é um e é o mesmo. No cotidiano de nossa espécie, as pessoas não conversam com a bifididade. Os poucos que conseguem fazê-lo têm uma aparência esquisita de arte revolucionária ou de pensamento difícil de enquadrar. Pelo menos na vigília, as pessoas estão quase o tempo todo debaixo do recalque. A própria língua sobre a qual falávamos há pouco é recalcante. Se pensamos algo e queremos dizer, como fazer? Há que inventar, misturar, para buscar algum nome na língua. • P – O que a psicanálise expõe como bifidade aparece em nível tecnológico como prótese? A prótese reproduz o mesmo fenômeno da bifididade com outra 138
SóPapos 2018
articulação. Isso já foi tentado e experimentado diversas vezes em nível poético, filosófico, mitológico... Entretanto, sem posição de Quarto Império não há possibilidade de surgir como prótese análoga à bifididade. Faltará recurso “imperial” para tanto. O mito da criação se repetirá agora de modo visível sem mitologia, sem crença. Simplesmente, mediante tecnologia. A suposta humanidade tem medo da tecnologia. Mesmo filósofos de primeira linha ficam temerosos – talvez de perder emprego. Heidegger, por exemplo, já está desempregado há bastante tempo... (Nietzsche, este, não perdeu, pois nem achou emprego ainda). É, aliás, espantoso que ditos pensadores tenham medo da tecnologia quando justamente sobrevivem dela (injeções, remédios...). A história da humanidade é marcada pela evolução da tecnologia, todos os nossos confortos são tecnológicos. O tal homo faber faz, produz, como tecnologia. • P – O computador bífido terá tesão? Um tesão desenfreado que, se não for segurado, dará muito trabalho. Nós não sabemos que nosso tesão é desenfreado, pois somos reles neuróticos. Já o computador, se desapertarem tal parafuso dele, aquilo pode ser impulsionado para longe. • P – Os cientistas que lidam com o computador quântico em temperatura baixíssima, próxima de zero absoluto, dizem ter a impressão de que há lá um coração batendo. Não é difícil de acontecer, pois a chamada Pulsão pulsa. Ela não é em vazio. O universo respira, sua, ressoa. Acho mesmo que nosso coração seja análogo à pulsação do Haver. E mais, se a rapidez do processo for muito grande, logo cairá no Quinto Império. Como será isso? É difícil imaginar.
139
29 Por enquanto, ainda temos que lidar com o neurótico cotidiano em nossa vida. Conversamos pouco sobre a técnica dessa lida. As técnicas antigas não servem mais para gente contemporânea. Édipo, etc., são coisas furadas, mesmo quando comparecem. Já não são modos de compreender os acontecimentos. Minha pergunta é: o que é o funcionamento de uma análise no regime das formações e da ausência (e da inutilidade) do Sujeito? O que é o comportamento de uma análise sem sujeito e no regime da transa de formações? A ciência sempre começa pelo mais complicado, depois vai simplificando. A psicanálise precisa ser radicalmente passada a limpo e, para a frente, ser ainda mais passada a limpo. Suas metáforas são quase animais, de bicho, são metáforas do Primário, do tipo mãe, amamentação, Édipo... Mesmo falar em gênero é estar preso para trás, em macho/fêmea, pois estamos vendo que o computador goza com qualquer coisa. Não precisa ter sexo localizado porque ele é sexo. Trata-se de um nível radicalmente abstrato, compatível com a nova computação. • P – É possível pensar em sobredeterminações para esses computadores? Sim. Eles não têm corpo absoluto. Quando se conseguiria um robô compatível com a terceira instância? Sequer consigo pensar isso. Qualquer robô que venha a existir terá um corpo que, por mais maleável que seja, terá limitações, sobredeterminações. Quanto mais aproximarem o hardware do software, mais difícil fica de imaginar como será o corpo. Só conseguimos imaginar no regime do só-depois. Outro dia, falava aqui do sentido da vida, do mundo. O sentido é global, não é meu. Pior, qualquer sentido que procure para mim é só-depois. Temos sempre que lembrar deste conceito freudiano porque antes não tem. O raciocínio antigo, pré-pós-histórico, fica olhando para a frente e querendo ter a garantia do que vem, a certeza do que virá. Só sei de meu sentido quando ele 140
SóPapos 2018
chega. Só que não é meu. Se acompanharmos a biografia de qualquer pessoa que tenha um percurso – a maioria não o tem, só tem roça-roça –, veremos que, em vários momentos, aquilo poderia ter parado lá, poderia ter tomado outra direção. Há, pois, um randômico aí na história. É mérito de alguém ter chegado a tal lugar? Acho que não, acho que lhe aconteceu. • P – Em qualquer análise minimamente levada adiante, é perceptível que o caminho percorrido poderia ter sido outro. De repente, dá na telha de alguém mudar de rumo. De mudar de história. Só há transa entre as formações. Tiremos até as pessoas – que, por sua vez, são um conjunto de formações – e busquemos o que está transando ali. Se começarmos a operar dentro desta perspectiva, perceberemos. Nossa preocupação é com a Formação das pessoas que querem funcionar analiticamente dentro desse modo. O que faz o analisando? Tenta descrever a coisa. Coisa que é ele. O analista tem que, com suas formações e com outra configuração, conseguir devolver aquilo. • P – Seria algo parecido com a meteorologia? Lá não tem sujeito, tem: chover, ventar... Gostei da analogia. Escreva um texto sobre a meteorologia do Inconsciente. As previsões são todas falsas. Quando dão certo, viram verdadeiras. São verdadeiras só-depois. A meteorologia é vetorial, fica observando formações e seus jogos – mas lá fora. Quando são formações entre duas ou várias pessoas fica complicado percebê-las por causa da caretice do Primário e da história da humanidade com essa ideia idiota de sujeito. Desde a pré-história, havia a ideia de aprisionar a pessoa em vez de observar suas formações. Na história da, digamos, tipologia humana, autores de descrições de elementos anatômicos quiseram, mediante medidas, dizer qual era o caráter das pessoas. Lombroso é o mais notório. Maria Montessori foi sua aluna. Algum dia, a psicanálise morrerá. Ela é muito pequeninha. Seu 141
entendimento é grande, mas sua prática é difícil, demorada e ruim. Ela terá que virar outra coisa. Isto também acontecerá com a maior parte da medicina, pois há condições tecnológicas de diagnósticos imediatos e automáticos com receita acoplada. Basta termos um aparelho de leitura das formações. Não esquecer de que só há formações de formações, de formações, de formações... Quanto maior a capacidade de leitura das formações, maior a eficiência de ação. As pessoas estão com medo de serem dispensadas – sobretudo por ficarem rezando para as formações anteriores... • P – Máquinas poderão analisar sensações? Sensações são formações que respondem de certo modo a outras formações. Se conseguirmos a leitura dessas formações e daquelas formações, aquilo estará lido. Acreditamos em muita coisa metafísica, ou sei lá o quê, por não sabermos entender de outro modo, é só o que sentimos. No filme Barbarella (1968), Jane Fonda goza e faz a máquina gozar até quebrar. A máquina, se não tinha sensações, sabia fazer tê-las. • P – Já existem programas de leitura das sensações que a música produz nas pessoas. A música pura é um bom exemplo da ideia de formações em funcionamento. Não sabemos explicar as emoções supostas que ela causa na gente. Resta saber por quê, quando e como. É chato dizer, mas há certa hierarquia: a música é o lugar para, se não medir, perceber o nível de sofisticação de alguém. Ao ouvir um compositor sofisticado, a pessoa grosseira enjoa justo por não ver os detalhes, não escutar. Para as línguas imitarem o processo da música – porque imitam – têm que inventar uma sofisticação extrema em nível sintático, semântico, sonoro... O poeta se vira para ver se transmite algo que não está posto diante dele, tem que ficar numa abstração quase que musical. Lembro aqui, de novo, o cudedado, de Mallarmé, que é impressionante. Passamos anos tentando ler o poema, tentando entender que um lance de dados não abole o acaso. Mallarmé faz um percurso diferente do de Joyce, mas está diante do mesmo problema. Octavio Paz relaciona o poema de Mallarmé à Mariée, de Duchamp. São 142
SóPapos 2018
pessoas de saco cheio diante do aprisionamento da língua, que buscam forçar sua expressão. Artaud é outro, sobretudo quanto ao corpo e à cena teatral. No teatro, trata-se de colocar o corpo subdito a uma formação descrita extracorpo, ou seja, subdita a uma descrição do corpo com outro. O teatro comum, no nível Stanislavski, é imitação do comportamento de outro, imitação de coisas comuns, é uma clonagem. Imita-se o outro, não se ana-lisa o corpo e faz outro. Para Artaud, trata-se de fingir que se tem outro Primário. É uma metamorfose de outro bicho. Ao pensar nas sensações, vemos que não damos conta de explicá-las (quanto mais de fazer outras coisas com elas). Isto significa que existe uma pletora de formações em jogo e que conseguimos ler algumas. Na psicanálise é diferente? Nela, pode-se fazer uma refrega entre pessoas mediante uma transa entre formações, entre algumas formações, mas é complexo demais pensar que estamos dando conta. O máximo que se consegue é empurrar, fazer reconhecer. Algo que acho errado em teorias da psicanálise é os autores terem certezas demais. Em meu aparelho, não se pode dizer que isto é isto, e sim que há um jogo. Qual? Não sei. Até onde se pode jogar? Isso é que é parecido com o Quarto Império, que será assim. Notem que o mundo político de hoje está desarvorado pelo simples fato de algo comparecer diante de outro e relativizar tudo na velocidade da internet e da computação. Demorará muito arrumar isso porque a desarrumação é grande – e ficará pior. Até 1980, quando acabou o século XX, havia formações bem demarcadas: esquerda, direita... Isso acabou! Ninguém é mais isso ou aquilo, é ad hoc, há que resolver o caso do momento. O mesmo ocorreu com a psicanálise, que tinha conteúdo demais. O jogo das formações é nos prepararmos para não saber, para ver o que há para encarar. Cada um que entrar no consultório do analista é radicalmente diferente dos outros. E, pior, como já disse, o analista é radicalmente diferente dos outros a cada um que entra. Ele não é o mesmo. Isso em nossa época está funcionando como aparelho de entendimento, mas não está sendo considerado como tal. Basta ver os pais ainda dizerem que amam seus filhos por igual. Mentira, pois todos sabem que há sempre um que é “mais igual”. Como os funcionamentos são em sua maior parte inconscientes, 143
a vantagem que a psicanálise ainda tem é que a pessoa entrega, coloca na mesa, o que ela não vê e não sabe. O analista devolve o que recebeu, e há possibilidade de a pessoa ver o que foi entregue e não via. Isto já traz algum esclarecimento. O analista, às vezes, pode sugerir modos de lidar, mas são modos dele, analista. O processo de Formação do analista precisa fazer com que ele, em sua análise, aprenda a indiferenciar ao máximo para que essa devolução seja a mais limpa possível, tenha o mínimo dele. Não ter nada dele é impossível. Como escutar algo escabroso do outro sem juízo e dizendo “é isso”? A tendência é, de saída, uma formação que, para as formações do outro, é escabrosa deslanchar uma reação de juízo. A análise não pode permitir isso. Pode-se até fingir juízo visando a algum efeito, mas é hipócrita. O que tem que acontecer é a formação escabrosa ser entendida enquanto o fato que é e devolvida. A única maneira de a pessoa sair é conseguir enxergar isso. Nem que seja por injunção de outras formações. Ou seja, a pessoa pode continuar achando aquilo bacana, mas sabendo que pode suspender. Isto porque já não é a brutalidade do Inconsciente, e sim o entendimento de que algumas formações entraram e mostraram que ela é vítima daquele acontecimento, e que não precisa exercê-las à revelia de suas concepções. Se há o entendimento da escravidão em que se está, quando se vai exercê-las, a suspensão entra quase que automaticamente. • P – Isso vale para a relação com as drogas? É possível uma pedagogia da droga? Não abrir mão dela, mas ganhar mestria em relação a ela? Não sei, mas duvido. • P – É possível considerar a droga como mais um caminho para o Cais Absoluto (os outros que você coloca [1996] são: morticínio, sexo, arte e mística)? Sim. Mas quem fará isso? Que pessoa teria um conjunto de formações previamente adequadas para poder fazer isso já que entram outras formações aí em jogo? Em Henri Michaux é impressionante o domínio que tinha sobre a experiência com drogas: ele se drogava, produzia a obra e, depois, a considerava com a maior serenidade. Alguns pensam que, nesse caminho, podem fazer um 144
SóPapos 2018
mestre e segui-lo. Não podem. A ênfase está em quem vai seguir esse caminho. Antes disso, existe uma construção de formações que não deixa. Quanto à tal pedagogia de que você falou, se alguém for capaz de aprender o uso da droga, o talento será dele. Isto é, ele é uma pessoa que consegue aprender aquilo. Só aprende quem for capaz de aprender. O que estou dizendo é que a droga tem uma potência tal de invasão do Primário que a pessoa tem que ter uma construção própria que dê conta daquilo. Ela estará primariamente ajudada, e não estará tomada. Se não houver alguma formação, mesmo dentro da droga, que não esteja dialogando com isso a pessoa se perderá. É, então, preciso uma descrição completa do Primário e do Secundário da pessoa para pensarmos isso. É preciso entender o temperamento da pessoa. Trocando de drogas, o que acontece com rapazes que, digamos, são estritamente homossexuais? Há aqueles que querem curá-los, fazer pedagogia contra, mas é preciso entender que isso é Primário. O máximo que a pessoa pode aprender é como (não tirar, mas) governar aquilo. Há ali uma inscrição de nível etossomático que – como não canso de repetir – não combina com o autossomático. Não me refiro a gênero, não vejo assim. Vejo que a pessoa tem uma constituição autossomática de um tipo e uma construção etossomática de um tipo que supostamente não é a constrututividade do Autossoma. E não há como mexer nisso. Há, sim, como analisar, entender, aceitar, construir um modelo secundário de política disso... Suponho que alguém – aquele que conseguir, não são todos, isso é escalar – possa ficar elástico quanto à aceitação do mundo, mas seu uso tem limites. Uma pessoa dita normal tem um conjunto de gostos, uma formação que leva ao gozo, outras não levarão. Há que entender esse limite. Suponho também que a maioria das pessoas pode, mediante retirada de recalque, brincar de várias coisas, mas não é obrigatório. Alguém ser polissexual, este é seu sintoma, do qual ele sofre como sofrem outros que não o são. A questão não é transformar a pessoa quanto a seu gozo, e sim produzir a aceitação de todos os gozos. Se alguém, no decorrer da análise de sua tara sexual, achar que ela é pobre, pensar isto é indicativo de que pode ampliá-la, experimentar outros modos. Mas não é obrigatório e há limites. Basta ler a obra do Marquês de Sade para entender. 145
30 • P – Da última vez você perguntou qual seria o funcionamento de uma análise no regime da transa entre formações e dada a inutilidade do Sujeito. Colocar assim retira o entendimento de bases teóricas ocidentais, algumas da melhor qualidade... Esta é uma visão contemporânea e, faço questão de dizer, brasileira. Pensar assim não brota em qualquer lugar, há poucas condições de nascimento fora daqui. A assunção de nossa maluquice pessoal, nacional – não estou falando de nacionalismo, e sim da cultura que há por aqui –, dá em Macunaíma, por exemplo. Para ele, vale tudo a cada momento – que é o que, dito de maneira brasileira, caracteriza nosso século atual. (A linhagem do século XX não serve mais. A tese daquele pessoal é de época. Joyce, Beckett e alguns outros, estes, têm salvação por serem especiais...) Mangabeira Unger é quem pensa mais próximo de mim. Sua postura política combina com meu pensamento ao dizer que ainda vivemos no Brasil colônia. É o colonialismo mental, como ele chama. O país não pensa a seu modo e tampouco faz as coisas a partir de seu ponto de vista. E há uma maneira política que não deixa entrar essa via própria por insistir em copiar as porcarias dos outros. Basta olhar para a estrutura acadêmica do país, que é tardia e caricatura das piores que existem. Da França, sobretudo. A França, aliás, tentou invadir o Brasil e foi expulsa na porrada, mas, em 1816, mandaram vir a famosa Missão Francesa, que era o oposto do que fazia a vanguarda europeia na época. Veio um bando de gente de alta qualidade, mas de alta qualidade no retardo, para fazer a cara do país. Inclusive a do centro da cidade do Rio de Janeiro. Aquilo é uma estupidez, nem Lisboa é (se fosse, já seria mais nosso). Se já existia lá, por que fazer aqui de novo? É como se a besteira dos outros fosse melhor do que a nossa. Alguém, para mexer nessa estrutura, precisa estar disposto a apresentar um projeto que será abominado 146
SóPapos 2018
durante décadas. Por isso, duvido que o projeto de Mangabeira consiga ser implantado. Várias coisas que ele diz já tinham sido ditas por Anísio Teixeira na década de 1930 (e resultaram em seu assassinato). Quem são aqueles que foram autenticamente pensantes neste país? Saiamos do intelectual, vamos para a literatura, para a arte, para a música... • P – Por que, como você disse, pensar em termos de análise das formações seria específico do Brasil? Se fizermos a análise do comportamento do brasileiro, veremos que ele só transa assim. Mas, para ver isso, é preciso sair das obrigações acadêmicas, dos órgãos de produção oficiais. Nossa academia precisava ser a porcaria que é, com modelo na burocracia (portanto, de perversidade) e não no pensamento, no conhecimento? Max Weber deveria visitá-la. Veria pessoas cercadas de tal maneira que se transformam em animais burocráticos, sequer com tempo para ler algum livro. Para escapar, como disse, há que aceitar ser muito mal falado. Poderia ser diferente. Justo por ser fake, ela finge que funciona do modo importado, mas não funciona. É só fingimento de cópia. Nem cópia é. Quanto a mim, fui lá na França, mas para esculhambar com aquilo. Foi difícil, pois há que ir derrubando (não por chilique, mas) devagarinho aqui dentro. Hoje, considero derrubado. Não tem mais nada daquilo em meu aparelho. Quantas pessoas fazem isso no país? Na psicanálise, só conheço eu. Em outros campos, há alguns que ousam fazer escolhas originais, mesmo que em relação a invenções anteriores. Mario Novello, por exemplo, na cosmologia. Newton da Costa, na lógica... Como o pessoal ao redor sequer sabe ler aquilo, eles vão em frente. • P – Há um ingrediente messiânico na política brasileira? Isso há em toda parte. O que é uma Joana D’Arc? Ainda por cima, com Gilles de Rais em seu exército. Aquele serial killer de crianças. • P – Nas artes, o Brasil não conseguiu certa autonomia? Sim. Mas não com a arte que estava no museu. Sobretudo, com a arquitetura e a escultura mineiras, que são maneiristas nacionais. Aliás, já 147
disseram que a única escola que deu certo no Brasil foi a Escola de Samba. Já imaginaram a zorra que é aquilo? Joãosinho Trinta veio várias vezes aqui falar com a gente. Eu queria saber como ele conseguia colocar o pessoal todo na avenida. • P – Com o jogo do bicho por trás... Não temos que lutar contra essas instituições nacionais, e sim transformá-las em cultura de todos. O jogo do bicho foi inventado aqui pelo Barão de Drummond, não há em outro lugar. Como fazer para aproveitar o melhor possível o que a gente já é, e parar de só copiar besteira dos outros? Temos ótimos técnicos, os engenheiros (aviação, petróleo), por exemplo, mas com uma visão de mundo da pior qualidade. Ozires Silva, fundador da Embraer e ex-diretor da Petrobras, disse em entrevista recente que, num jantar em Estocolmo, perguntou a uns membros do comitê que indica nomes para o prêmio Nobel por que brasileiro algum recebeu o prêmio. Um deles lhe disse: “Vocês são destruidores de heróis”. Disse mais: “Quando um candidato aparece, contrariamente aos de outros países – em particular, dos Estados Unidos –, os brasileiros jogam pedra. Ele não tem apoio da população. Parece que um não confia no outro, tem ciúme”. • P – Na música, há gente boa, reconhecida internacionalmente. É o caso de Villa Lobos que, diferentemente d’O Guarani, de Carlos Gomes, tem o som da paisagem brasileira. Numa ocasião, eu estava na Amazônia, numa piroga, e chegamos a uma gigantesca cachoeira. Ouvi aquilo e percebi que foi dali que Villa Lobos pegou o som e colocou na orquestra. Tom Jobim e Dorival Caymmi também fizeram isso, trabalharam o som da nossa paisagem. Na área da música é permitido por ser extra-muros, por não estar presa à academia. Aliás, Mangabeira pergunta por nossa rebeldia. Por que, desde criança, nos deixamos estragar pela academia? • P – A NovaMente traz a Indiferenciação como postura para o entendimento do que acontece no (e com o) Brasil. Ainda na música, dizem de Hermeto Pascoal que ele toma qualquer 148
SóPapos 2018
som e transforma em música. Ele é indiferente: “Qualquer barulho é meu!” Não há barulho musical e barulho não musical. Este é um processo de Indiferenciação bem nosso. Não é desinteresse, e sim que: “Apareceu, é meu!” Não tem exclusão aí, pois tudo é a mesma coisa. Isto é algo que existe no comportamento brasileiro. Não existe na fala ou em seu suposto pensamento. Indiferenciação é ficar disponível para o que der e vier. Isto, sem obrigação. Da vez anterior, falei do limite de cada um, que é momentaneamente intransponível. Limite é para ser ultrapassado, mas depois. Se todos os limites forem retirados, calarei a boca, farei silêncio absoluto, nada mais há dizer. Só temos o que dizer por sermos todos sintomatizados. Retirado o sintoma, diremos o quê? A universidade começou como um ajuntamento de alguns interessados em estudar tal assunto, pesquisar sobre tal questão. Chamavam os que sabiam sobre aquilo para ensinar e distribuir aos outros. O interesse era no saber. Esse interesse é algo que, hoje, vai voltar, mas não na universidade. Esta vai morrer de inanição diante da disseminação da tecnologia. • P – Poderíamos dizer que o brasileiro, diante de qualquer tarefa nova, antes ainda de iniciar algum entendimento, olha atravessado, repudia, recusa aquilo que, na verdade, é seu? Sim. É a pessoa não apenas ficar falando mal dos outros, e sim passar por cima de si mesma. Se deixar o brasileiro à vontade, ele é legal – mas não tem o à vontade. O carnaval dá certo por poderem soltar a franga, dizerem o que quiserem. Mas, no fundo, é o terror. Vocês não são do tempo em que Portinari, Villa Lobos, Guimarães Rosa, Carmen Miranda e Anísio Teixeira eram tidos como monstros. Justo eles que fizeram as coisas – os demais, aqueles que os xingavam, fizeram o quê? Aqueles lá tomavam a palavra e diziam do nosso jeito. A pintura de Portinari, por exemplo, não é cubismo, é algo dele, daqui. Villa Lobos tomou a técnica de Stravinsky, o politonalismo, mas o que faz com ela não tem a ver com Stravinsky. Tem a ver com aqui. Assim como fui lá roubar o Doutor Lacan e fiz o que quis. Guimarães Rosa nada tem a ver com Joyce. Hilda Hilst, esta, também foi bastante sacaneada. Agora estão faturando com ela. Aliás, não se pode 149
deixar a pornografia na mão desses incompetentes, desses grossos. Ela tem que ser de Hilda para cima. Mas não é preciso ficar temeroso demais quanto ao encaminhamento das coisas no mundo atual. Há um fator chamado Internet. A tecnologia esculhamba tudo. Vocês acham que qualquer desses estudantes de hoje é compatível com a universidade em que estão? Aqueles que parecem ser, acho que estão fingindo. O fator de esculhambação da tecnologia não os deixa ser compatíveis. Os professores reclamam deles justo porque eles não estão lá dentro. Como não conseguem ficar lá e os professores querem ser acadêmicos, não dá certo. Então, como diz Mangabeira, há nos estudantes uma potência incrível, com a qual ainda não sabem o que fazer. Mas isto tampouco os faz entrar no papo da universidade. Há muitos professores aqui nesta sala, é bom que atentem para isso. Grandes hospitais já estão criando suas próprias escolas de medicina, o mesmo acontece com grandes empresas de engenharia, tecnologia – esta, sim, é a vocação inicial da universidade. Passei oito anos de minha vida ao lado de Anísio Teixeira, os oito anos finais de sua vida. Universidade alguma me proporcionou o que aprendi com ele. • P – E quanto às instituições psicanalíticas? Elas copiam a academia. Não há psicanalista no Brasil, há freudianos, lacanianos, kleinianos... São pequenas igrejas que copiam instituições americanas, inglesas, francesas, as quais, por sua vez, copiam a universidade. Há uma vontade eclesiástica de gente que abandonou a igreja católica e vai para a igreja de Lacan, que é a mais moderninha. Lá tem a burocracia do passe, por exemplo, coisa que Lacan jamais deveria ter instituído. Era uma tentativa de organizar sua Escola, mas quebrou a cara, pois certamente estava pensando que os outros eram analistas como ele. Observem que ele mesmo não copiou nada. Ao contrário, recusou-se à cópia da IPA. Ele tomou o seu momento e o colocou em uma pauta: sua psicanálise é a do século XX, a de Freud é do século XIX. Não há por que fingir que exista um saber universal e abstrato de tal maneira que seja permanente. Não é. O lacanismo está datado. Nosso caso é o de ver se conseguimos fazer algo hoje. Se der, deu. Se não der... Aliás, há tempo faço questão de que, aqui nesta instituição, tenha quase nenhuma burocracia. 150
SóPapos 2018
• P – E quanto à Formação do ator? Retirado o modo TV Globo, temos gente que faz coisa excelente. Justo por não estarem sob aquela pressão global stalinavskiana que mencionei da vez anterior. • P – Há o pessoal do José Celso que continua aí. A emergência do Rei da Vela nos palcos dos anos 1960, o que é? Aquilo é nosso do ponto de vista do ator, da cenografia, da direção, do texto, do público. Hélio Eichbauer, o cenógrafo, morreu há pouco. Foi ele o responsável visual por aquelas encenações. Já havia Nelson Rodrigues nos anos 1940, que também era nosso. Não tinha regras, tinha maledicência. Quando eu era jovem andava mais ou menos junto com Antunes Filho que, antes de ir para o teatro, era das artes plásticas. Éramos dois malucos falando loucura. Se não me engano, em 1963, no Salão de Belas Artes, ele fez um violino de palitos de fósforo, um violino incendiário. Era genial. Depois, ele foi para São Paulo e fez coisas incríveis no teatro... • P – A impressão é que hoje temos mais mediocridade do que antes. Antigamente, também havia muita gente fazendo porcaria, mas havia falta de possibilidade de expor. Hoje, vemos proliferar de tudo, pois as condições tecnológicas de difusão se tornaram disponíveis para qualquer um. Não cabe, pois, criticar dizendo que há mais porcaria do que antes. Certamente há gente boa por aí, mas é preciso procurar no meio da profusão generalizada da mediocridade a que estamos sujeitos todos os dias. A mesma tecnologia que dissolve tudo permite que tudo seja colocado no mesmo panelão. • P – Passei para você um exemplar de O Quinto Evangelho de Nietzsche (2000), de Peter Sloterdijk. Ele menciona que, em 1820, Thomas Jefferson, ex-presidente e redator da declaração de independência dos Estados Unidos, publica A Vida e a Moral de Jesus de Nazaré, que passou a ser conhecido como “A Bíblia de Jefferson”. Ele recortara e eliminara do Novo Testamento amplas passagens dos Evangelhos históricos: “...o esclarecido redator submete as palavras de Jesus a um duplo critério: de um lado, as 151
palavras simplesmente inaceitáveis; de outro, as palavras que Jesus teria que ter pronunciado, caso pretendesse receber o assentimento de Jefferson...” Trata-se aí de uma atitude não só de dizer a seu modo, mas também de fazer o outro dizer desse modo. Por que algo assim não feito por aqui? • P – Há a hipótese de que os Estados Unidos tenham nascido da Reforma e a América Latina, da Contrarreforma, que, esta, é retrô. Ele passou a limpo o Evangelho, retirou o que considerou porcaria. Ou seja, mandou à merda o texto da igreja católica. Os americanos seguiam aquilo. • P – A tese de John Dewey é que isso contribuiu para uma posição original na filosofia, que é o pragmatismo. Retire-se essa porcariada toda e sejamos americanos – esta foi a postura deles. Não há isto na filosofia do Brasil. Há, como disse, em outros lugares. Vemos a petulância e a liberdade de Dewey ao afirmar o pragmatismo. Ele estava falando sua própria língua, expressando sua própria paisagem porque esse era o sintoma. Não é Carlos Gomes que achava que tinha que ser o Verdi brasileiro. Já disseram de mim que eu era o Lacan do Brasil. Por favor, não façam isso comigo. Lacan foi um excelente analista para mim, mas nada tenho a ver com ele. • P – A um brasileiro não é dado exercer o papel de enunciador. Em seu percurso, isto é claro. Enquanto você se referia a Lacan era até ouvido. Após explicitar sua própria via, a situação muda. Não é permitido referir-se à floresta daqui. Referir-se às clareiras da Floresta Negra fica bem mais fácil. O sintoma de lá não é meu. Aqui tem tucano, papagaio, jaguatirica... Podemos buscar material em qualquer lugar, mas há que usá-lo de modo próprio. Jabuticabas.
152
SóPapos 2018
31 Grande parte da matança física que havia desde os tempos imemoriais foi atualmente substituída pela matança psíquica. Esta é pior. Todos parecem estar bem, mas estão sendo destruídos. A matança física pode se resolver até com polícia, mas a matança das Pessoas, das criações, dos tesões é mais grave, cotidiana e atinge a todos. Aquela é óbvia, esta é hipócrita, pois parece que nada aconteceu. Ela é de massa e rasteira. Só uma minoria consegue trabalhar a mente de modo a escapar de sua destruição. Ainda mais, há uma governança imbecil que mete o nariz na vida das pessoas sem a menor necessidade. Inventam-se pressões e sofrimentos para nada, só para encherem o saco. O que a lei tem a ver com o fato de alguém querer ou não fazer aborto? Sequer é algo que deve ser descriminalizado, há que ser retirado da jurisdição das leis. Está errado o Estado se meter tanto na vida das pessoas. E não se trata de alguma onda neoliberal, como querem chamar essa intromissão. Ao contrário, é uma esculhambação por estarem perdidos todos os contornos. Fica parecendo que a coisa está correndo solta quando não está. Quanto a algumas coisas fundamentais, ficamos completamente limitados pelo poder estatal. Quando cheguei hoje aqui, vocês falavam em livre arbítrio. Grande quantidade de tentativas falhas de nomeação, de concepção do que se trata aí se deve à falta de conceitos. O planeta e o pensamento estão precisando de conceitos novos. Sem ferramentas adequadas, pensamos mal. Os conceitos da NovaMente, desculpem a pretensão, são mais precisos do que os usualmente utilizados por aí. Que diabo é livre arbítrio? É, aliás, um termo que suponho ter sido inventado por alguma concepção religiosa. Segundo a teoria de nossa conversa aqui, o que é liberdade? Já tratamos dela diversas vezes. A palavra não é de se jogar fora, mas é preciso pensar sobre sua concepção. Do ponto de vista do Haver, a determinação é extensa e profunda. Há certa 153
possibilidade de acontecimento que resulta na ideia de HiperDeterminação, mas é acontecimento. A HiperDeterminação é da ordem do evento. Não foi a pessoa que teve liberdade, o acontecimento é que liberou alguma coisa. Então, segundo a Alei (Haver desejo de não-Haver), é liberdade praticamente zero, excetuando-se as possibilidades de eventuações. Se todas as pessoas, instituições, aglomerações, países, são formações em última instância sintomáticas, em que sentido podemos usar a palavra liberdade? Conheço um único caso, é a pessoa ter o direito de não ser pressionada e determinada pelo sintoma do outro. Observem que é inter-sintomático, pois estamos o tempo todo sobredeterminados e hiperdeterminados. Para lidar com isso, se apelarmos para um saber, um conhecimento, estaremos continuando a sobredeterminar nem que seja a nosso favor. Liberdade no sentido abstrato de livre arbítrio não há. Foi certo cristianismo que quis enfiar na cabeça das pessoas que elas têm o livre arbítrio de – serem corretas, de servirem a Deus. Ou seja, é livre arbítrio para obedecermos segundo o sentido dado por eles. A revolta dos gnósticos foi considerar esse Deus precário por inventar uma gente tão porcaria. Não é possível alguém onipotente e onisciente fazer isso. Para eles, era apenas um demiurgo que faz um monte de nojeiras. Imaginem o que um Deus que é capaz de seviciar o próprio filho não fará com os outros. O Deus verdadeiro, este, é absolutamente fora de tudo. É indiferente. Por isso, a partir do que disse Bussunda, ex-aluno meu, já falecido, inventei uma deusa suprema: Kaganda Yandanda. Abaixo da vontade de crença, tudo isso é ridículo. Como sabem, para mim, fé nada tem a ver com crença. Se colocarmos fé em nossa crença, aí estaremos ferrados. Podemos ter fé a zero. Fé é o exercício da Pulsão. Para as religiões, ter fé é ter fé naquilo que pregam. • P – Se liberdade for não ser determinado pela pressão do sintoma do outro, podemos pensar o mesmo em relação ao Estado? Os libertários já tentaram pensar um Estado mínimo. Robert Nozick, por exemplo. Não se trata de anarquismo, e sim de regular os conflitos e deixar o pessoal em paz. O grande problema é que não há condições de não vigorar algum Estado, seria o caos. De nosso ponto de vista, posso afirmar que cada um tem sagrado direito a seu sintoma, mas se isto virar regra será uma guerra 154
SóPapos 2018
permanente. Caberia, então, ao Estado regular. Quando se estigmatiza uma função sintomática, ela, em si, passa a ser crime – e o Estado abusa disso. Repetindo, se a pessoa tem direito a ser o que é, é preciso saber que isto atinge o vizinho, e o Estado seria o regulador dos conflitos sem anatematizar o sintoma deste ou daquele. Há milênios que os Estados inventam conjuntos de coisas que são condenadas por si mesmas, e não pelos conflitos que suscitam com o vizinho. Só é possível conter a situação diante do conflito. Cada época tem inventado coisas que são crimes em si, e isto está errado. Se tem crime, tem lei que, se for abusiva, a celerada é ela. O Estado dirá que um sintoma não pode ser determinante sobre outro, e não que a pessoa não possa ser assim ou assado. Cada época produziu suas anatematizações e as torturas correspondentes. A pessoa não pode ser criminalizada por ser o que é, mas há que inventar comportamentos de contenção porque a vizinhança pode não querer aquilo. Não se pode passar por cima do outro. Por exemplo, não se pode sair matando as pessoas. Seja terrorista consigo mesmo, mas não com os outros. • P – Uma das vias de acesso ao Cais Absoluto, segundo você, é a Impartição da Morte... Como sabem, não estou preconizando, mas apenas dizendo que acontece isso. • P – ...e eu gostaria de ter alguma exemplaridade desse acontecimento. A bomba de Hiroshima? Sim. Mudou a história do mundo e deixou todos em suspensão. Chegou lá pertinho. Não se deve praticar, mas é o limite entre os sintomas: a guerra. Jamais deixará de existir guerra. Se, ao invés de Recalque, produzíssemos Juízo Foraclusivo, talvez até a guerra diminuísse. Mas o que mais frequentemente é posto em exercício é o sintoma, e não o juízo. O que temos são guerras de sintomas. Daí a necessidade de um Estado global (que não é a ONU). Já vivemos numa situação global em que os sintomas se exacerbam a cada dia. Eles estão se pulverizando, mas com exacerbação. Basta olhar para um Donald Trump para ver. Superestimamos esta nossa espécie. Ela ainda é de macacos 155
muito atrasados. O que nos falta não é natureza, e sim o Artifício Industrial. A tecnologia precisa ser melhor. Não escapamos das feras cuidando da natureza. Escapamos cuidando da tecnologia. Criticam a tecnologia alegando que ela desumanizará o homem. Espero que o faça e tire o homem da dependência hegemônica dos sintomas imbecis que o acossam demais. Nunca se precisou tanto da psicanálise quanto hoje.
32 Acho que não existe Tempo em si. Alguns físicos concordam comigo. O tempo é contado em relação às formações sintomáticas e seu desgaste. O planeta girar, o sol surgir, etc., são formações do Haver. Se o são, são da mesma ordem de uma formação sintomática. Onde pegar o tempo sozinho? Sem correspondência sintomática será difícil. Por isso, Freud disse que não há tempo no Inconsciente. Não comparece temporalidade sem correlação entre sintomas. • P – O que seria, então, a emergência do Novo? Esta emergência é hiperdeterminada: o funcionamento das determinações salta fora. Cheguei a dizer (em relação a Hegel): Tese Anti-Tese Ek-Tese Pró-Tese. Ou seja, escapa-se do domínio da representação, da temporalidade, da calculabilidade – aquilo se solta. É como se algo acontecesse que, antes do acontecimento novo, passasse pelo Haver em estado puro, zero. Isto não cabe na dialética de Hegel. Podemos pensar que, mesmo do ponto de vista de nosso Inconsciente, observamos em nossa vida acontecimentos que vão para lá, para cá e, de repente, zeram, caem em 156
SóPapos 2018
outro lugar. Por que isso é um acontecimento? Por não conseguirmos situar nem o antes nem o depois. Depois, inventamos histórias e explicações. Isso nada tem a ver com a rigidez calculista de certas filosofias que quer fingir que acompanha e domina o acontecimento. Ninguém sabe o que aconteceu. Aliás, se souber, não é acontecimento. O acontecimento é à revelia. Depois, posso faturá-lo pelo que sobra, por seu resto, que é a Pró-Tese. Já se tentou dar conta disso mediante, por exemplo, a ideia de surgimento de um novo paradigma (Thomas Kuhn). Gaston Bachelard, por sua vez, fala em Corte Epistemológico: houve um corte em que parece que o anterior nada tem a ver com o consequente. Bachelard, que é genial, deu o nome de Corte por querer segurar esse corte na Epistemologia. A psicanálise, pelo menos, chegou a falar em puro corte. Não gosto disso, pois não há corte algum. O que há é Suspensão radical: zerou e caímos de novo. • P – Não é a ideia de um criacionismo, e sim de uma descontinuidade. Tomem o Cudedado, de Mallarmé (Le coup de dés [1897]), poema radical sobre o qual conversávamos outro dia, e verão que isso lá está dito, ou seja, não está dito. Ele se virou e fez um poema – que tem espessura, profundidade, perspectiva, diversas leituras – para dizer que não sabia, pois um lance de dados jamais abolirá o acaso. O lance (não exclui, mas) inclui o acontecimento, é hiperdeterminado. O que cai lá é outra coisa, mas o lance é hiperdeterminado. Notem que ele não estava falando do resultado, e sim que o lance de dados tem uma suspensão que não é acompanhável. Não é porque não sabemos, que haja uma ignorância aí, e sim que é aleatório. O que é alguém conseguir um raciocínio, um teorema novo em sua vida? Coloca-se no mundo como Prótese e fatura-se, mas de quem é? Quem é o verdadeiro dono? Dizia Fernando Pessoa: “Não meu é o quanto escrevo, / A quem o devo? / De quem sou o arauto nado? / Porque, enganado, / Julguei ser meu o que era meu?” Alguns desavisados dizem que ele está falando de Deus. Não! Ele está falando da HiperDeterminação incontrolável, incalculável, imensurável. Aquilo cai em algum lugar e esta queda é uma Prótese, pode-se usá-la. Temos o mito do gênio, do criador, quando se trata de algo que cai na cabeça de alguns. Mas há que jogar os dados, eles cairão de algum modo. Por 157
isso, falei em Ek-Tese, o fora do Tético. Depois que caiu é: Pró-Tese. Notem também que, sem fazer Tese e Anti-Tese, não se vai a lugar algum, pois fica-se de um lado só do alelo. Há que jogar os dados dos dois lados da banda. Jogar de um lado só é cálculo. • P – A intervenção analítica seria, pois, contar com a suspensão e considerar os dois lados? Considerá-los o mais indiferentemente possível. Vamos ver onde cai. Ditos psicanalistas e supostos teóricos da psicanálise fazem psicologia e raciocinam como se pudessem dizer: “Se isto, então aquilo”. Não podem fazer assim, pois é: “Se isto, então veremos”. O “isto” não é em termos daquilo que foi posto, e sim em termos do que é bífido. Quando se joga, cai e acerta alguma coisa. Não se está mirando em alvo algum, mas apenas deixando jogar. Neurótico é aquele que não sabe jogar, ele quer estar certo. Certo este que ele já sabe qual é. Ele já sabe o que deseja – e, é claro, não consegue. Se ele se lixasse para o lance de dados... • P – ... teria o Cudedado? É o caso de dizer. Estamos viciados no manejo sintomático das coisas. Não é possível construir um edifício sem cálculo, pois cairá. Mas, na perspectiva analítica, não é disto que se trata. É diferente da filosofia. Freud, aliás, em sua conferência sobre a visão de mundo (1933), citava Heinrich Heine que zombava do filósofo, daquele que “com seus gorros de dormir e os andrajos do pijama / Tapa os buracos do edifício do universo”. Vejam, então, que só é possível pensar em Tempo depois. Não existe temporalidade na HiperDeterminação. Se jogarmos os dados, é depois que buscaremos calcular um tempo que passou entre o lance e a queda. E isto nada quer dizer, pois o lance não abole o acaso. Fico impressionado como Mallarmé, sendo francês, pôde conceber seu poema. (Ele é o Joyce da língua francesa, embora nada tenha a ver com o método de Joyce. Não sei por que Lacan, ao invés de fazer seminário sobre Joyce, não fez sobre Mallarmé. Talvez porque Joyce se pareça mais com os truques de Lacan). Seus outros poemas não são assim. É claro que são poemas, certamente hiperdeterminados, mas é só no 158
SóPapos 2018
Cudedado que o vemos tentando segurar esse momento e descrever o evento. Descrever sem descrição, pois aquilo é – um lance de dados. Como não pode fazer profundidade, faz diferença de corpo das letras. Ele quer dizer que um está para cá, outro está para lá, está no fundo... Entramos em abismo ao tentar percorrer o texto. Por outro lado, observem que a forma soneto é muito calculada, mas o poeta fura o cálculo. Já lhes disse que gosto dos poetas que não dão bola para o verso livre, pois este frequentemente é um engodo, é apenas alguém vomitando palavras. Se há uma regra chamada Soneto fica difícil permanecer no bestiário e no bostiário do verso livre. Fernando Pessoa, Shakespeare, Camões, João Cabral, por exemplo, eram exímios sonetistas. • P – Mas, com relação à modernidade, o grande poeta do verso livre é Walt Whitman. É outro caminho. Whitman inaugura uma ruptura. Ele é Nietzsche, que jamais foi filósofo. O mood de Whitman é nietzschiano. Fernando Pessoa morria de inveja dele. Diz Álvaro de Campos (1915): “Abram-me todas as portas! / Por força que hei-de passar! / Minha senha? Walt Whitman! / Mas não dou senha nenhuma... / Passo sem explicações... / Se for preciso meto dentro as portas...” O tipo de provocação de evento de Whitman é esse: abrir portas, ir rasgando. O tipo de provocação de Mallarmé é o lance de dados, o acaso. O analista também é um provocador, um lançador de dados. Isto, de acordo com os dados. Ou seja, lançar os “dados” (que o analisando entregou) é provocar acontecimento. Quando Whitman, Pessoa e Mallarmé fazem o que fazem, provocam a possibilidade de acontecimento. Vejam que a psicologia nada tem a ver com a psicanálise, mas a poesia tem. Todo ato de Criação é do mesmo nível da Análise. Esta relança os dados – sem saber onde cairão. Daí alguns pensarem que o analista não faz nada, que é um vagabundo. É comum o analisando dizer que, após alguns anos de análise, mudou completamente, mas não viu o analista fazer nada. Ele não viu que o analista estava fazendo nada. Na análise, não há o bate-papo de psicólogo, vai-lá-vem-cá. Quando parece que há é que o analista está puxando o tapete, desequilibrando as formações. 159
• P – A questão do Tempo deve ser pensada sob um fundo de eternidade? Sim. Eternidade não é durar para sempre, e sim o sem tempo. Nossa vida, por exemplo, é eterna. Ao perceberem isto de algum modo, as religiões passaram a vender a eternidade e, assim, ganhar fieis. Mas sou eterno porque não tenho começo nem fim. Não lembrarei o antes ou o depois. Isso é sempiterno. Há grande diferença entre estar presente em qualquer momento e a descrição de um instante. Alberto Caieiro está sempre presente – e simploriamente. Quanto a Álvaro de Campos, cuidado com ele! Fernando Pessoa é grande, e já tinha matado o Sujeito em sua época. Não podemos confundir as arrumações sintomáticas com o fenômeno extra-sintomático. Antes de nascer, você já é prejudicado por um Primário horrível do qual será herdeiro. Depois, já estão confabulando a seu respeito – e, ao nascer, você está todo emporcalhado. Dizia Santo Agostinho: Inter feces et urinam nascimur. Daí para a frente o que tem é sintoma, sintoma, sintoma... Notem que, ao falarmos com uma criança, ela nos olha e nos imita, mas é grande a ambiguidade. Se você quer pensar fora disso é outra história, é o extra-sintomático. A psicologia toma os sintomas e quer educar as pessoas dentro deles. A psicanálise joga, joga, joga... e deixa a pessoa sair sozinha. • P – Se a física de Prigogine se dá entre Tempo e Eternidade, a NovaMente se daria entre Eternidade e Tempo? Prigogine está calculando. Já entre Eternidade e Tempo, o tempo é aquele que se supõe estar calculando durante o processo da eternidade. A eternidade de alguém não é temporal, ela é eternidade por não ter começo ou fim. É no meio que se temporaliza. Religiões que querem manipular esse “no meio” prometem a eternidade mediante os comportamentos que prescrevem. Trata-se aí de uma manipulação de domínio. Eternidade, entretanto, nada tem a ver com isso. Tampouco há que enlouquecer de pensar que o tempo não existe. Como dito no início de nosso papo hoje, o tempo não existe sozinho. Ele surge na relação e, aí, é computável. Por que olhamos para o relógio em vez de saber qual é o tempo? Se não fizermos assim, nos perderemos. Fico perplexo de ter conseguido fazer oitenta anos. Isto porque, às vezes, tenho doze, dezoito, 160
SóPapos 2018
quarenta... A cabeça nada tem a ver com isso. Não há a possibilidade de alguém ter noção do tempo. A sensibilidade de sabermos, por exemplo, sem olhar o relógio, que passou um minuto é algo muito segmentado, não nos dá noção do tempo. Notem também que quem precisa de tempo é o Primário, e não o Secundário. Em qualquer tempo, o Primário está no mesmo tempo. • P – Diz Whitman: “Sei que tenho o melhor tempo e espaço – e que nunca fui medido, nem jamais poderei ser. // Vadio numa jornada perpétua” (Song of myself [46])... Já disse que ele é o cara. O problema da extensa maioria do planeta é não saber responder sobre o que acontece hoje. Estão todos vendo o que acontece, mas não conseguem dar conta. Modéstia à parte, dei conta. A maior parte do que vi até agora é de gente – autores, estudiosos, etc. – que não consegue sair do século XX. Isto é, sair mesmo do Terceiro Império e encarar o Quarto Império. Leiam A Quarta Revolução Industrial, de Klaus Schwab, e vejam a dificuldade de um autor que não tem um conceito como Quarto Império para colocar o acontecimento dentro dele. O que faz é a descrição de uma revolução industrial. Depois, publica outro livro sobre aplicações da quarta revolução industrial e, de novo, temos uma descrição dos fenômenos tecnológicos do Quarto Império, mas, no restante, é um monte de bobagens. O que não é tecnologia é um retardo. Ou seja, a cabeça do autor acompanha a tecnologia, mas não consegue entender seu tempo. Pelo modo como coloca as coisas, ele é ingênuo ou quer manipular as pessoas. Fala de “o homem” e de coisas feitas “em benefício do homem”. Não há mais “o” homem – isto é referência de Terceiro Império –, e não se vai mais fazer coisas em seu benefício. • P – O que pensar da paixão no âmbito da transa entre formações? A paixão é um construto totalmente sintomático e não é ambíguo, com sobredeterminações de todos os tipos. Toda a fluência sintomática das sobredeterminações da pessoa é aplicada sobre outra pessoa – frequentemente, a pessoa errada. A massa sintomática faz a suposição sobre traços também sintomáticos do outro que não batem com os de cá. Alguns batem. Falar em transa de formações significa que algumas formações daqui são tão pregnantes 161
em relação às de lá que aquilo vira uma paixão. E as outras formações que não entraram no jogo? Elas sacaneiam tudo, estragam a brincadeira. Então, se alguém é suspensivo, não se apaixona. Dizemos coisas que parecem brincadeira, mas são verdadeiras. Por exemplo, “me engana que eu gosto”. É o que todos querem. Este – pedir para ser enganada – é um dos problemas desta espécie. Há que fazer um exercício de ascese para não pedir isto. Há, hoje, grande preocupação com o fato de os adolescentes não tirarem os olhos de seus tablets, de seus dispositivos móveis. Isto se chama: paixão. Eles encontram ali – encontram mesmo – os elementos de sua paixão. Entramos, sim, em estados passionais com certas coisas, e não apenas com computadores (estes apenas estão generalizando o fato). Na Escola de Lacan, alguns analistas propuseram a tese de que, no caso do alcoolismo, haveria uma transferência com a garrafa como se fosse a teta da mãe. Pode não ser nada disso, mas há uma relação passional com a própria coisa, a qual não corresponde, mas entrega. No caso, álcool.
33 • P – Como pensar a Postura e a Técnica da psicanálise em relação à Tópica (Primário, Secundário e Originário) que você propôs? A Postura e a Técnica do analista não existem no ar. Segundo os termos freudianos, os achados – pois são achados, e não mera invencionice do autor – resultam de um trabalho e de uma operação realizadas conforme a um parâmetro teórico que, como sempre digo, tem tudo a ver com seu momento. Ninguém pensa fora de seu momento (há, sim, os que pensam fora para trás, que nunca chegaram a seu próprio momento). Aqueles freudianos, aqueles nomes todos, com suas pequenas variações de interpretação ou de tentativa de 162
SóPapos 2018
acrescentamento, têm uma postura e uma técnica compatíveis com e regradas pelo pensamento de Freud que tem a cabeça do século XIX. Apesar das idiossincrasias e implicâncias de Melanie, Anna ou Reich, o escopo de todos é freudiano. Há variações de interpretação de processo analítico. Quando o pessoal foi para os EUA, houve a distribuição norte-americana do freudismo e virou psicologia do ego, de reforço do ego. Mas com ou sem ego, é Freud. Inverter uma postura freudiana, ela ainda resta freudiana, não se saltou fora. Isso só muda de aspecto com Lacan, que produz outro escopo para a psicanálise e, como também já disse inúmeras vezes, é um fenômeno do século XX. O mesmo aconteceu com Einstein (1905) e seu novo escopo da cosmologia e da física. Este também é alguém com cabeça de século XIX, aquilo não deslancha. É algo excelente, mas limitado em relação a coisas como mecânica quântica, etc. O paradigma mental, digamos, não mudou. Lacan mudou de paradigma. Era um analistazinho da IPA que, depois de sua tese sobre a psicose paranoica (1932), aprendeu o Freud em vigor. Sua tese sobre a Aimée é teoria da personalidade, não seve para nada, mas era a moda da época. Como Lacan andava com os maluquetes do surrealismo, que já eram vanguarda da loucura do século XX, estes bagunçam, chacoalham sua cabeça de tal maneira que ele vê que precisa se atualizar. Vai, então, estudar com Kojève e descobre Lévi-Strauss, o qual é quem faz sua cabeça. Ele tomou um choque cultural com a leitura de Lévi-Strauss por perceber que este era uma espécie de sumário do século. Passado o século XX na peneira, o que sobra é Lévi-Strauss, um professorzinho aqui de São Paulo que se vê num país de índios e começa a se interessar pela antropologia. Devia ser um grande divertimento visitar tribos e anotar tudo que via. Percebe, então, que tinha uma maçaroca de anotações com as quais não sabia o que fazer. E quem pariu Lévi-Strauss foi Jakobson, para quem o século XX estava entrando por via da fonologia e da linguística. Lévi-Strauss aprende com Jakobson e funda o século XX com sua – dele, Lévi-Strauss – teoria antropológica, que resulta no movimento chamado estruturalismo. Passa, então, a ler estruturas nas relações sociais que são remanescentes das estruturas linguísticas • P – A técnica de Freud é, sobretudo, associativa. Com Lacan, 163
pelo menos até o final dos anos 1960, o jogo técnico era a dialética, e mais amarrado do que em Freud. Freud viu que os deslizes da língua ajudam a perceber o Inconsciente. Mas há mais que isto em Freud. O que, a meu ver, ele descobre de fundamental na língua é o fato da reversão. Em Sobre o Sentido Antitético das Palavras Primitivas (1911), isto é claro. A simples ideia de Estrutura amarra demais e a perplexidade que há neste texto de Freud não permite amarração. Lacan não o leva tanto em conta e monta o aparelho dito estruturalista de pensar a psicanálise. Ele falava, e bem, para seu tempo – tempo este que acaba em 1980, junto com ele. Ditos lacanianos continuam repetindo aquilo, mas viraram peças de museu com seus trejeitos, trocadilhos e supostas equivocações. O fenômeno tecnológico bagunçou tudo. Para dar conta do mundo contemporâneo há que inventar tudo novamente. Custou muito começar a aparecer outra coisa mais ou menos compatível com o século XXI. E ainda não apareceu direito. A questão é: Como se produz o Quarto Império? Esta é a loucura contemporânea. Ao falar em Teoria das Formações, sinto-me compatível com meu momento. Como tudo está fracionado, pulverizado, há que catar as formações, considerá-las, colocá-las em jogo. Nada além disso. Então, o que fazer para falar do século XXI, do Quarto Império? O que vemos, como comentávamos da outra vez, são autores percebendo bem os processos de mudança, mas puxando-os para trás. Hoje, numa livraria, folheei O Novo Iluminismo, de Steven Pinker e vi a mesma coisa. Ele quer re-instaurar o Iluminismo, não percebe que aquilo acabou. O melhor que fazem é puxar para a frente para restaurar o para trás. Com esse tipo de cabeça não sairemos tão cedo da situação atual. Como o homem de Lacan é um sujeito, não dá mais para ficar com ele. Basta olhar para a cabeça do pessoal mais jovem – eles não sabem, estão perdidos – para ver como é o funcionamento de hoje. Tomam uma formação daqui, outra dali, juntam para lá, e vão fazendo espuma, como diz Peter Sloterdijk. Eles estão certos, são de hoje. Mas como teorizar isso? Temos que jogar no lixo os conceitos vigentes até o século XX. Não podemos pensar em termos de sujeito, de estrutura... Fui formado lá, e vocês podem acompanhar pelas publicações a dificuldade que tive para jogá-los no lixo. 164
SóPapos 2018
Tentei dar um jeitinho para manter o sujeito – Sujeito da Denúncia, Denúncia de Sujeito, Sujeito da Renúncia, Sujeito em Abismo – mas o esforço era o de se livrar daquele pensamento pesado. Um dia, ele sumiu de minha cabeça. Vi que pode ser qualquer coisa que consiga perceber as formações e mexer com elas. Isto pela simples razão de que as formações não têm fim, não têm limite, não sabemos aonde darão. Na melhor das hipóteses, só é possível jogar com elas. De preferência, quando der pé, jogar no Revirão. Não há dialetização melhor do que contestar o jogo com o jogo contrário. Em se tratando de Técnica, nosso processo precisa de duas coisas fundamentais. Primeiro, a sustentação da Postura do Analista, que é a vocação da Indiferença. Tudo tomado no mesmo padrão, no mesmo nível, seja o que for, não há graus de significação (para Lacan, há). Segundo, acolhimento das formações – com Indiferenciação, é claro – e movimento de tentar metamorfoseá-las. Não é o analista que faz a metamorfose, apenas implica com o analisando para que ele faça. E ele acaba fazendo, vai produzindo suas metamorfoses. Não é preciso mais do que essas duas coisas. Como fazer é que é comprido. Observem que não se trata aí de alguma desconstrução, como quereria Derrida, e sim de bagunceação. Trata-se de bagunçar as formações arrumadinhas entregues pelo analisando para que deslizem. São certezas bagunçadas que deslizam obrigando a pessoa a se aprumar, o que só pode ser feito se ela (se) inventar. • P – O século XX abandonou a certeza, mas produziu uma incerteza situada demais. É uma incerteza com curadoria. O século XXI é pior que isso, é tentativa de entrada do Quarto Império. Lá na frente será um terror para quem estiver com a cabeça do século XX. Não suportarão o fato corriqueiro de se entrar em esquemas, acessar algoritmos, ir jogando com aquilo, passar para outra coisa... O que continua é nossa estupidez de formação fixada no Primário. Isto já é terror, é estúpido. Então, como fazer daqui para a frente? A época de dissolução radical produzida pela tecnologia está chegando. Como situar-se dentro da dissolução? A situação de cada um tem que ser tão solta quanto o processo de dissolução para ser possível sobreviver jogando. 165
• P – No século passado me impressionou o surgimento da figura do DJ, que parecia nada ser. Talvez, um arranhador de discos. Hoje, ele toma de todas as músicas, sampleia, reorganiza, coloca algoritmos que mudam a cada apresentação. É algo que abole autoria, propriedade e mesmo a execução que é única a cada vez... Qualquer som entra no jogo. Gostei da metáfora. Como ser DJ de seu Inconsciente? Até o silêncio, como pensou Cage, entra no jogo. • P – DJs são MCs, você é MD. Sou DJ. Como o analista pode ser DJ das formações do analisando? Há tapinhas, não se faz análise de um dia para o outro. Há que ir empurrando para cá, para lá. Fazer deslizar é um ponto importante da Técnica. Sempre considerando que a Análise não toca em formações que não são analisáveis. Pode, sim, tocar em outras formações, com as quais a pessoa pode considerar as não analisáveis. TDAH, por exemplo, não é analisável. Analisável é a pessoa que tem TDAH. Trata-se de ver como ela lida com aquilo. Autores psicanalistas do passado trazem explicações para tudo em seus livros. Nós, não temos explicação para nada. O que temos são jogos de significação. Nossa técnica, aliás, é menos laboriosa e pedante do que as antigas. Faz parte da Indiferenciação você não saber e apenas estar numa mesa de jogo com as formações do outro. Quem faz a análise é o analisando. Isso é século XXI, é abertura para o Quarto Império. • P – No que diz respeito à chamada análise de crianças, é notório que textos de Françoise Dolto, Maud Mannoni, etc., eram assertivos demais. Elas sabiam o que estava efetivamente acontecendo na criança. Hoje, vemos que são textos datados. O campo magnético da criança, a chamada família, desmoronou, está uma baderna só. E não adianta ainda haver famílias estruturadas da maneira antiga, pois é pior ainda. Estão perdidas dentro da bagunça. É uma espécie de quisto, que não vai funcionar mais. Logo adiante, a criança escorrega para o mundo e cai. Muitas vezes, não há regime de contenção, os pais não sabem o que fazer. Aliás, querendo ou não, temos 166
SóPapos 2018
uma cabeça velha, cheia de maus hábitos. É difícil para nós pensar a nova situação. • P – A garotada anda bebendo muito ultimamente. Parece que tentam escapar por aí. Em meu tempo também era assim, bebia-se muito. O que a psicanálise pede e tenta prometer está sendo resolvido pela garotada hoje com álcool: explodir com as formações que podem ser opressivas. Mas, em vez de ser mediante liberação mental é mediante liberação química. Eles estão pedindo a dissolução das formações, coisa que pode ser feita na cabeça, sem álcool.
34 • Aristides Alonso – É preciso enfatizar a virada que há na psicanálise quanto à Comunicação. Lacan era categórico ao dizer que a psicanálise não era um sistema, uma teoria da comunicação. Por outro lado, a partir d’A Natureza do Vínculo (1993), Magno dirá que a psicanálise é uma teoria da comunicação, e que uma teoria plena da comunicação seria necessariamente psicanalítica. Isto muda o vetor de entendimento da ideia de comunicação em psicanálise. Lacan estava numa briga com a ideia de sua época. Estruturalistas como LéviStrauss, Jakobson, e mesmo os ciberneticistas, tentavam criar uma ciência que fizesse uma espécie de tábula rasa do sistema das relações simbólicas. Ciência esta que seria a teoria da comunicação. Lévi-Strauss, no início, até pensou nisto como uma Entropologia, que, mais que antropologia, colocaria a entropia no meio do sistema. Para Lacan, então, a psicanálise não pode ser aquela comunicação, dado que termos como Inconsciente e Pulsão não cabem 167
no modelo linguístico de Saussure, na cibernética de Wiener, e tampouco na antropologia de Lévi-Strauss. Eles acreditavam em significado. Este era um conceito para Saussure. Lacan concorda com a ideia de estrutura, mas queria uma estrutura que não fosse, digamos, tão filosoficamente fechada, que fosse subvertida pelo Inconsciente e pela Pulsão. Por isso, ele interfere nas noções de signo, de discurso, de alteridade, de sujeito, de consenso... O significado estaria no infinito da série dos significantes. Esta jamais se fecharia. Portanto, pensar uma teoria plena da comunicação, é pensar pelo vetor da pulsionalidade. Lacan estava brigando com aquela gente. Não é o mesmo sentido que podemos ter hoje. Comunicação é impossível. O Inconsciente é resvalante, não se tem comunicação plena com ninguém, mas dá para dar uma gozadinha no meio de campo. Repito que minha intuição mais genérica quanto a todo tipo de comunicação – por exemplo, o tesão – está no desenho que apresentei n’O Pato Lógico (1979): ex-citação (citação de fora) in-citação (citação de dentro) re-citação. Não lidamos com pessoas ou sujeito, e sim com formações. Ao olhar para alguém, não vemos a pessoa. Vemos lá alguns troços que ressaltam para nós, que são escolhidos por nosso olhar. Por isso, frequentemente quebramos a cara em relação aos outros. Há, de um lado e de outro, uma pletora de formações. Desse amontoado, algumas formações se encontram por estarem, digamos, vinculáveis. Vamos pelo sexo que fica mais claro: diante de alguém, ficamos com tesão porque nosso tesão está lá, esse alguém porta formações de nosso tesão. Isto é comunicação – que é impossível, pois, se chegarmos mais perto, as outras formações não se darão necessariamente bem. Algumas formações batem, mas o ideal da histérica – que é aquela que faz as teorias da comunicação – é que todas batam, que se encontrem e sejam felizes para sempre. Por isso, ao contrário, a psicanálise é a teoria da comunicação. Ou seja, não funciona. É a prova de que a única comunicação possível só pode ser de última instância. Trata-se do que coloquei como Vínculo Absoluto naquele Seminário de 1993 mencionado na pergunta. As demais comunicações são parciais, jamais funcionarão plenamente. Mesmo para organizar um grupo de estudos como este nosso aqui, 168
SóPapos 2018
é preciso apresentar formações que o outro possa incluir. E não há como impedir que isso vire patota, que fique meio preso. Ou seja, alguém só pode juntar pessoas a seu redor se as pessoas já tiverem formações coincidentes e se continuarem a produzir mais. Se não, não dá para conversar. O mundo está a zorra que está porque as formações imperativas começaram a desabar. Antes, tivessem ou não aquelas formações, as pessoas acreditavam, obedeciam. Havia um conjunto de formações que parecia ser de todos, mas isso vem desabando sobretudo pela dissolução trazida pela tecnologia, que desfaz as noções anteriores de tempo, espaço e outras. As pessoas passam a não conseguir um mínimo de transa para fora de seu vício. Surgem, então, polarizações de todo tipo. É o que, em nossos termos, chamamos de Revirão. Não há mais, no meio, nuances, e sim isto e seu oposto, aquilo e seu oposto... Ou seja, o Inconsciente está provando quem ele, Inconsciente, é. Isto, inclusive politicamente em todo o mundo. Como sabem, digo que haverá um processo muito longo de conflitos e, lá adiante, quando todos nós aqui estivermos mortos, será resolvido. É importante a psicanálise, pelo menos por esta nossa via, afirmar que há vinculação absoluta. No Haver, onde quer que haja formações de nosso tipo – i. e., que são IdioFormações –, seja qual for seu nível de crescimento, elas terão Vínculo Absoluto com Isso que Há. Por exemplo, no nível do Direito, ver-se-á que há um limite de alguém discordar de outro, pois, em última instância, esse alguém é o outro. Ou seja: Eu sou Você. Basta ir limpando as formações – primárias, secundárias, etc. – que estão me definindo para ver que, em nossa transa, não sei se sou eu ou se sou você. Fico em dúvida extrema. Notem que minha frase é “Eu sou Você”, e não je est un autre, em que Lacan deitou e rolou por querer uma concepção de alteridade total. Não penso em termos de Outro, e sim em termos de Mesmo. Quando temos a mínima simpatia com alguém, estamos no Mesmo. Quero ver termos simpatia com aqueles a quem temos horror (que é, aliás, o sonho do cristianismo, por exemplo). É algo dentro do estatuto da diferença, isto é, do negativo da comunicação. Mas é comunicação, pois como ter ódio pelo outro sem nos comunicarmos? Temos que ter formações tão opostas, tão reconhecíveis, 169
que sejam comunicativas. Ódio também comunica. O erro do cristianismo é fingir que uma metade inteira não existe. Achar que só há o amor já resultou em muito horror, em assassinatos generalizados. O recalcado, a toda hora, retorna e queremos matar até aqueles de quem gostamos. Eles nos importunam só por termos que gostar deles. Para a psicanálise, isto não cabe de modo algum. Para ela, trata-se do máximo de realidade e de visão. Uma cabeça analítica entenderia que “eu te odeio”, mas “temos que conviver”. De repente, te amo, então... O que é Vínculo Absoluto? É de última instância, é ser uma IdioFormação. Acabemos, pois, com a história de sermos humanos. Fora daqui, a compleição primária pode ser outra, não de carne. Se há IdioFormação, estou vinculado. Então, se em última instância tenho vínculo com cada um, e como este Vínculo não pode ser apagado, tenho que sagrá-lo. É a Sagração do Vínculo Absoluto, e não da Primavera como em Stravinsky. É vinculação das IdioFormações, repito, que estão necessariamente vinculadas porque reviram. E se nos reportarmos a essa Vinculação, talvez as outras sejam acalmadas. Não acabaremos com o ódio, mas poderemos acabar com a guerra. Não acabaremos com o amor, mas poderemos acabar com a bobice amorosa burguesa. Observem também que é possível uma vinculação desse tipo (não com as formações do Haver, mas) com o Haver como ideia de Haver. As formações do Haver são fragmentadas, e aí temos times, torcidas, partidos... Não se trata disso, e sim de que estou vinculado a qualquer IdioFormação, inclusive com o Haver enquanto IdioFormação. O Haver não pode não ser uma IdioFormação. Tudo que está sendo dito aqui corre na contramão do século XX. Nele, fez-se muita porcaria, a qual porcaria não se segura mais, pois tudo desabou. Pior, desabou tudo que veio desde o começo até o século XX. Isto, devido à situação de emergência imediata da IdioFormação. A IdioFormação está emergindo enquanto tal. Teremos séculos talvez até chegarmos a um acordo, pois o que emergiu é Vinculação Absoluta e desvinculação relativa. • P – É uma emergência de fragmentação? Sim, pois ainda não se entende a Vinculação. O mundo ainda não se deu conta da emergência da IdioFormação enquanto tal. Então, ao olhar, 170
SóPapos 2018
não se vê a Vinculação Absoluta, mas apenas a relativa. Nesta, é impossível concordar com qualquer um, e só se concorda se combinarmos ir em tal direção. Mas sempre com o risco de fuga para trás, para o time, para o partido, todos se agarrando em algo que não segura mais nada. A zorra está apenas começando, ficará muito pior. • P – Você acha que essa fragmentação faz parte do Creodo, do caminho necessário para o Quarto Império? Sim. Quando terminou a vinculação postiça do Terceiro Império, a situação explodiu. Como a IdioFormação é também fragmentada, trata-se de pensar sobre a invenção de uma civilização que sabe que a única vinculação é a Absoluta e que há que fazer um concerto de sobrevivência com as vinculações relativas. Isto, sem partidos e clubes definitivos. Estes servem apenas para a brincadeira, que, ao acabar, acabam também. Esta Pessoa está para nascer, demorará alguns séculos. Será alguém que funciona ad hoc, com abertura total. Por isso, disse que, desde o começo até o século XX, tudo isso foi abortado. Não adianta recorrer a filósofos, por exemplo, pois apenas têm serventia como elementos de descoberta e produção. Não posso ser aristotélico, lacaniano, freudiano... Posso apenas ir a eles e tomar algo que funcione. Acabou o partido. Há que construir um psiquismo de – como diz Nietzsche – dança absoluta com as formações, de aplicação imediata e ad hoc. As formações de permanência têm que acabar. O ficar, comum na geração de hoje, era impossível em meu tempo de jovem. Fica-se um pouco, e acabou. O Vínculo Absoluto é concreto, reconhecível nos outros. Eu não sou um ser falante, sou um ser revirante. As IdioFormações se definem por sua capacidade de reviramento, e estar nessa situação nos vincula absolutamente a todos. Alguém que achamos bandido, nojento, ele é nosso colega. O Quarto Império passará por um monte de lições para as pessoas terem um olhar indiferente: ao olharem para outro, estarão se vendo. Quando isso se organizar lá, surgirá algo de que não temos como fazer ideia hoje. • P – É um panteísmo que não acontece hoje? Não, mas é uma vinculação com Pã. Por isso, falei em Pânico Positivo. 171
• P – Diz você em A Natureza do Vínculo ([1993], p. 113): “Algum dia, falo sobre o pânico positivo, que é assumir a posição, entrar no fluxo de Pã. Por que, diante de uma situação pânica, devo sempre ser covarde? Por que não posso ser eufórico? A situação efetivamente é pânica, não há a menor dúvida, mas por que, diante dela, não posso apostar na crise? Por que se tem que apostar no cagaço? // Por que não posso apostar na Cura? Se não se apostar na cura, não se conseguirá levar uma análise, que o seja, adiante. Se alguém efetivamente conseguiu entrar em análise, chega certo momento em que parece que está doidinho, piradinho. Aí, você não aposta na crise do cara. Você vai regredir: ele vai ficar imbecil. Apostar na cura passa por essa maluquice”. Para nós, ao contrário do século XX, existe a cura. Não a conseguimos, por sermos imbecis e fracotes. A cura é isso. O Quarto Império está caminhando para a cura (quanto ao que acontecerá depois, no Quinto, não faço ideia). Ao se instalar, ele tem a vocação disso que chamamos de cura hoje. Portanto, a psicanálise será inútil, não precisaremos mais dela. O processo da psicanálise já foi definido de maneiras as mais abstrusas. A ponto mesmo de ser um “reforço de ego” nos Estados Unidos, o que é uma imbecilidade descomunal. Não se precisa dela para fazer reforço de ego, basta trabalhar na televisão que o ego fica inflado. Nossa versão de cura é o contrário. Quanto mais se disponibiliza, quanto mais se torna abstrato, nefelibato, aí é que se vira alguém de sua espécie. Ainda não somos mais parecidos com nossa espécie, e sim mais com macacos. Não se trata, então, de ficarmos presos a ideias de que Deus morreu ou coisas do tipo. Já está claro que Deus não pode morrer, justo por ter sido nomeado imortal. Em algum lugar, temos a possibilidade de situar esse conceito. Espinosa disse que Deus é Natureza, pois esta, para ele, era algo abstrato. Como não o é para mim – natureza é cacoete –, digo: “O Haver é Deus”. Ou seja, o Haver funciona, tem seu próprio movimento e nos carrega. É preciso sempre ter em mente que que Ele está pouco se lixando para nós. Basta entender que, num nível, Ele está desenhado secundariamente, é uma formação como outra, e, num nível de alta estirpe, é o que Há. E mais, por que é possível designar essa deidade? Porque estou absolutamente submetido 172
SóPapos 2018
a ela. Já lhes disse (em 1996) que a hipótese Deus é inarredável. Não há liberdade, ela é uma asneira. Algumas formações minhas podem estar libertas de algumas formações de um dominador outro, mas caímos dentro de um percurso, somos um fantoche. É um esforço danado buscar ser mais abstrato, buscar deixar de ser macaco. É preciso muita análise. Antes da emergência solta da IdioFormação, teremos uma constelação de conflitos. Atualmente, o pessoal ainda pensa que está lutando por alguma causa. Por isso, a porradaria será longa até entenderem que não sabem por que estão brigando. E mais, repito que não estou dizendo que o Quarto Império será algum paraíso. Ele apenas será completamente diferente do que temos agora. Pode ser um inferno. O importante é saber que nada do que foi feito antes se segura mais. Nada mesmo. • P – A situação estaria assim em função de a linguagem se deixar prender demais ao verbo Ser? Não tem importância usarmos o verbo Ser. Já lhes disse que o Ser é o que se diz sobre o Haver. As filosofias não têm Haver, só Ser. Tentam abstrair o Ser, o Ser do Ser, sem conseguir, é claro. Por exemplo, desta caneca à minha frente aqui, dela, enquanto havente, não tenho como considerar Ser algum. • P – Em seu Seminário de 2003, Ars Gaudendi, p. 330, você comenta sobre as crianças – sobre mim, então, que, na época, estava com sete anos – algo que não sei se entendi bem: “As crianças ficam na Internet colhendo narrativas para se preparar para algo e fazendo mitologias para se aguentar. Como essas mitologias são explosivas no mundo, precisavam se dar conta de que seu referencial (delas, crianças) não é a narrativa, e sim o modo de articular a narrativa. É isto que é difícil passar para elas, que sempre acreditam, como acreditamos quanto a nós, que é a narrativa que as articula”. Não acompanho isso de fazer mitologias para se aguentar. É o que digo hoje das pessoas. Não usei a palavra mito, mas falei em time, em partido... Lacan tem um texto intitulado O mito individual do neurótico (1953), em que está claro que se trata de mitologia quando nos referimos à nossa história pregressa. Parece que estamos no Olimpo, damos 173
uma importância tal àquilo, sofremos tanto, os deuses não nos largam... É um sufoco imenso, são verdadeiras fábulas de Esopo a que ficamos presos. No entanto, é uma historinha risível. Se fazemos análise, olhamos para aquilo e achamos que é de outro, pois aquilo não pode ser nosso. Enquanto estamos dentro dessa mitologia, ela é a nossa verdade. Ou seja, tomamos alguns paradigmas localizados e acreditamos que realmente são nossos. No cristianismo, temos algo inteligente quando alguém diz a Jesus: “‘Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo’. ‘Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?’, perguntou ele” (Mateus 12, 47-8). Vejam que ele não sabe, que se perdeu deles. Vocês estão aí com exemplares do Lance de Dados (1897), de Mallarmé, sobre o qual falávamos outro dia. É um texto que fechou o século XIX, e não abriu o século XX. Mas abriu, sim, o século XXI. Notem que aquele que escreve um poema teve que pensar cada caquinho, nós leitores é que nos enganamos com o efeito geral. Depois que faz a frase, ele mesmo fica estupefato. Não se pode fazer o poema com a emoção, pois vira titica. O poeta sabe descrever a emoção, e não apenas colocá-la no papel. • P – Olavo Bilac tem um poema sobre isso, A um poeta: “Longe do estéril turbilhão da rua, / Beneditino, escreve! No aconchego / Do claustro, na paciência e no sossego, / Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! // Mas que na forma se disfarce o emprego / Do esforço; e a trama viva se construa / De tal modo, que a imagem fique nua, / Rica mas sóbria, como um templo grego. // Não se mostre na fábrica o suplício / Do mestre. E, natural, o efeito agrade, / Sem lembrar os andaimes do edifício. // Porque a beleza, gêmea da Verdade, / Arte pura, inimiga do artifício, / É a força e a graça na simplicidade”. Bilac é um grande poeta. Os modernistas o arrasaram, pois o parnasianismo tinha se tornado poesia oficial e tinham que combatê-la. É o que falei sobre o time de futebol, indiscriminadamente dá-se porrada no outro time. Tentem fazer um poema parnasiano e verão como é difícil. Para mim, o soneto é a forma perfeita. É igual à sonata, na música. O peso do soneto está no último terceto. Basta ler Shakespeare, Camões... Do ponto de vista do Quarto Império, não se tem o direito, e nem se deve, esculhambar com nada 174
SóPapos 2018
do que já foi feito. Há bastante coisa boa, tudo na dependência dos caminhos disponíveis e que foram bem percorridos por muitos que lá estavam. Para elogiar minha teoria, tenho que esculhambar com a de Lacan? Ela é genial no século XX, mas sou outra pessoa, em outra época, tentando falar com boca própria. São apenas caminhos diferentes. O modelo do século XX de esculhambar com o outro já perdeu a graça, não faz mais sentido. Mesmo quando o caminho do outro tiver sido ruim, ele poderá nos ensinar algo.
35 Os autores contemporâneos parecem não saber que a vaca sempre vai para o brejo. Ao invés da palavra fracasso, que alguns usam, prefiro catástrofe, tal como define René Thom. Quando podemos nos dar conta da implicação de determinado input na cultura, o qual, por seu funcionamento, deteriorou um paradigma, etc., isto é algo explicável, não pode ser chamado de fracasso, pois é possível saber como aquilo funcionou. McLuhan é mais preciso quanto a isto. Para ele, se entrou um meio (medium) novo e vimos como deteriorou a formação que estava em vigor, temos aí algo explicável. Então, à pergunta sobre o que acabou com as fronteiras, desmoralizou os paradigmas, destruiu a epistemologia, pode-se responder que foi a alta circulação tecnológica. Um garoto da década de 1920, num mundo todo arrumadinho, não sabia que, adiante, havia uma tribo com conceitos opostos. Só o fato de haver um jornal publicando o que lá acontece faz com que se comece a relativizar e comece o fracasso do paradigma em vigor aqui. Qualquer formação cultural é necessariamente uma Morfose Estacionária à qual cada um se adapta ou 175
não. Quando se faz muita comparação com muita diferença o paradigma se esvazia. Viu-se que o que acontecia era uma opinião, uma ficção local. Então, como comportar-se depois que tudo se relativiza? Ou você se perde e corre para trás como faz a maioria, ou se aprende a situação, torna-se poliglota, fala-se várias culturas e pensa-se ad hoc. Não há outra saída, todas as culturas são fake. Hoje, o importante não é reconhecer o fake, e sim saber o que não é. O que há vigorando é só o poder mancomunado com o fake da cultura. Então, o futuro desta espécie depende de como lidar com isso que é claríssimo: a falta de fronteira determinada, a falta de fronteira cultural, o reconhecimento do mero ficcional mesmo nas ciências duras... Ao escrever um romance, tentamos ser verdadeiros pela verossimilhança. E qual é a verossimilhança de um compêndio de física? É a aproximação da matéria, a aproximação de algum real. Real este que também é ficção. O que difere é o material, a abordagem... Se a física não fosse ficcional, jamais sairia do lugar. Alguém aqui já pegou algum átomo? É mero discurso, mera conjetura, mas aquilo funciona. Arte e ciência, ambas são Arte – ART como chamo. Uma procura verossimilhança com comportamentos, outra com as coisas. Sempre estamos fazendo ficção, às vezes ficção calculável. A sociologia, por exemplo, é uma imitação disso. Ninguém tem mais o direito de dizer que determinado projeto não é científico. A ilusão de Karl Popper morreu com ele (que, aliás, sabia que ela morreu). Chamei de Gnômica a teoria psicanalítica do conhecimento – qualquer tipo de conhecimento – para tirar o ranço epistemológico e de certificação e diferenciação para com a ciência. É uma zorra, uma zona, que não dá mais para segurar com o ferramental anterior. Gnômica é, pois, a zorra do conhecer. Todos os campos têm aplicação. A macumba, por exemplo, funciona quando é para funcionar, quando não é, não funciona. O que funciona na física, a crença ou a certeza? A meu ver, repetindo, a postura de Quarto Império é ad hoc, dissoluta, provisória, eficaz (o que importa é a eficácia: se funcionou, então é)... A dificuldade das pessoas é conviver com esse ser nefelibato: o Quarto Império passeia sobre nuvens. Por não suportar isto, a maioria corre para trás, fica se segurando no já falecido. Por isso, falam em fracasso. O pavor é as pessoas estarem correndo para trás fingindo que lá há paradigma. Vai dar 176
SóPapos 2018
tudo errado necessariamente, e num ambiente de conflito insuportável. No “salve-se quem puder” só sobrenadarão aqueles que entenderem o fenômeno, se não recuarem e administrarem ad hoc. Falo sempre na Teoria das Formações, mas não a desenvolvemos direito aqui entre nós. Qual escuta tem essa teoria? Qual escuta tem aquele referenciado a essa teoria? Não pode ser uma escuta lacaniana ou freudiana. Lacan ficou simbolizando e linguisticizando, Freud passou a vida mitologizando o que entendeu. Dado que isso acabou, como escutar? Qual é a postura de orelha? Qual é a consideração daquilo que se apresenta para nós? • P – Quanto mais canais de escuta, melhor... Sim. E não é possível ouvir tudo. O que temos é, no máximo, um polo de ação. Aquele ser ali diante de você é um neo-animal – no sentido da Neo-etologia –, é preciso saber como ele se compõe. Onde é possível fazer um furo ali? • P – A Pulsão é violenta ou é neutra? Suponho que, por si mesma, a Pulsão não seja violenta. É o que Freud chamava de konstante Kraft, força constante, que tem sentido, direção, mas não tem significação. Ela vai no arrastão das formações. O que comparece são as formações arrastadas pela Pulsão. Um rio vai passando e arrastando coisas – e pensamos que a Pulsão seja as coisas arrastadas. Não é, ela é o arrastão. E só não vai direto porque arrasta as formações. Se não, iria diretinho para o brejo. A Pulsão vai encontrando resistências e – se gostamos de aqui estar – temos que agradecer que seja assim. Se não, já teríamos ido para o beleléu. Nossa pergunta é: Quais formações, neste momento, estão no arrasto da Pulsão? Elas determinam o comportamento. A Pulsão, ela, é neutra e mortal. A resistência é que faz a sobrevivência. Ela, a resistência, é decorrente da má formação primária e secundária. Sempre é má formação, não existe a boa formação. A boa seria a Pulsão que não tem formação. Essas coisas aparentemente paradoxais deixam as pessoas confusas. Sobretudo, a história da psicanálise é suja demais. É preciso limpar e entender que Freud chegou à conclusão da Pulsão, não partiu dela. Como foi uma conclusão, ele descreveu 177
resistência a resistência: a pulsão disto, daquilo... Até dar-se conta de que só havia uma. O pensamento da psicanálise nasceu assim – como qualquer outro, aliás –observando e nomeando até descobrir que, abstratamente, não é nada daquilo, que há um movimento pulsional e o resto é resistência. Resistência no sentido da eletricidade: faz resistência, esquenta e explode. Freud ficou na dúvida e chamou de pulsão de vida e pulsão de morte, mas a pulsão de vida é a resistência à Pulsão. Ou seja, não é pulsão alguma, e sim, repetindo, resistência à Pulsão. Pulsão só quer correr, fluir. • P – A Pulsão deseja não-Haver? A Pulsão nada deseja. Dizer que Haver deseja não-Haver é dizer que a imensa formação resistente chamada Haver tende para seu desaparecimento mediante o movimento da Pulsão. A Pulsão não deseja nada, nem não-Haver, ela está apenas fluindo. O Haver é co-movido por um movimento pulsional. Esta é sua energia. • P – A Morfose Estacionária seria uma resistência ao movimento pulsional? Uma resistência enorme, que começa a paralisar até alguns movimentos requeríveis pelas pessoas. As formações estão tão emperradas que paralisam tudo. Por isso, falei em Estacionário. A pessoa quer sair e aquilo não anda. • P – A Cura, no caso, seria um afrouxamento da resistência? Sim. E não sabemos aonde vai. A Cura é mortal. Sendo que, frequentemente, a morte é um santo remédio. Se não houvesse morte na espécie humana, estaríamos até hoje nas cavernas. Foi preciso morrerem aqueles imbecis para nascerem outros... Quando o Quarto Império tiver chance de acontecer, todos vivos hoje estarão mortos. Essa gentalha não estará lá para atrapalhar, teremos outra turma. Por outro lado, não é possível falar de algo que já não tenhamos frequentado. Alguém frequentou e nos conta. • P – Então, conta aí para nós sobre o Quinto Império. Não sou tão promissor assim, parei no Quarto Império. Mas você falou algo interessante, pois faço a suposição de que o Quinto Império seja retorno 178
SóPapos 2018
do Primeiro Império em outro patamar. Parece coisa de Giambattista Vico. Como sabem, em minha ficção, o Haver é recursivo e iterante. Não faço ideia do que possa ser o Quinto Império, mas suponho que, se isso fica girando desse jeito, será retorno do Primeiro Império num nível tal que Amãe será outra coisa. Suponhamos que, no Quinto Império, Amãe seja simplesmente o Haver. Isto é suponível, pois depende de como nos referenciamos. Imaginemos uma civilização que se referencie imediatamente ao Haver enquanto tal. Será Primeiro Império, mas é Lá em cima, houve um salto aí. Se Amãe do Primeiro Império for o Haver não haverá a possibilidade de pensar em Incesto, pois só haverá incesto. O que importa é arranjar uma boa ficção que possa nos nortear. Nada há a fazer além disso. Vejam que isso, dentro do Inconsciente de cada um, é tão sabido que a denegação justamente disso é correr para trás. Por que alguém corre para trás? Porque está sabendo para onde está indo. Se não, não correria e não teria medo. É o caso da regressão religiosa de hoje, decorrente do fato de as pessoas estarem vendo para onde estão indo. Estão denegando imediatamente, mas está tudo lá no Inconsciente. E tem mais, as pessoas falam a verdade o tempo todo. Só não ouve quem não quer. A diferença entre um analista e um não analista é que aquele escuta o que estão falando. A verdade está sendo dita o tempo todo. Daí Lacan ter dito “je dis toujours la vérité”. Este je aí não é Lacan, é Je. Tomem as ficções de Lacan. Para ele, je est un autre. Ele quer dizer que todos estão falando a verdade, só não se dão conta. Se fizerem análise, talvez se deem conta. A contemporaneidade é assim e quem, de algum modo, não constituir esse tipo de perspectiva está por fora e pagará por isso. Mesmo correndo para trás custará caro. Basta ver o Brasil hoje em pânico – porque a verdade está sendo dita. O Brasil é isso que vemos dito por todos os lados. Pensávamos que fosse o quê? Alguns aqui têm experiência do momento em que o analisando começa a falar para valer. O país está começando a dizer como é seu comportamento. É esse que vemos acontecendo por aí. Denegar é clarear. Uma pessoa de concepção de Quarto Império não tem partido, buscará soluções em qualquer lado.
179
36 A psicologia é educativa. Seus usos em clínica são pedagógicos. É um laboratório diferente daquele da psicanálise, pois sabe como é o certo e, portanto, busca consertar as pessoas segundo esse certo. Daí, a psicanálise, desde o começo, ser meio intersticial, ficar entre o Ocidente e o Oriente. Não por adesão cultural, mas por seu modo de funcionamento ser ambíguo, entre os dois. Por um lado, tem a vontade ocidental de cientifização; por outro, o manejo oriental em alternância do que vem. Isto, sem compromisso com nenhum deles. Ela quer saber, teorizar para ter alguma referência, mas, na hora do jogo, a melhor analogia é a dança: vai-se dançando com outrem. O psicólogo também quer a cientifização, lá de seu jeito – de preferência, estatística –, mas, em vez de colher, apresenta, oferece as formações. A psicanálise não tem informação prévia para apresentar ao analisando. Ela tem sempre que ver qual é, pois não faz a menor ideia. Vejam, por exemplo, a ideia de teste psicológico, em que fazem de conta estar colhendo as formações da pessoa. É um jogo viciado de saída, pois não se trata de coleta para ver o que fazer, e sim para enquadrar as formações na arrumação já prevista. Quando tinha meus dezenove anos, já fazia análise, resolvi ir ao ISOP, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional, da Fundação Getulio Vargas (fundado em 1947). Como me interessava por tudo, não sabia a que me dedicar. Durante três meses, fiz vários testes. Ao final, a psicóloga chefe diz que meu caso é especial, pois não tinham como endereçar meu processo. Diz ela que chamavam esse caso de “tipo Leonardo Da Vinci”: o que quer que você queira fazer dará certo. Eu já sabia disso, passei três meses indo lá para me dizerem o mesmo. Ainda bem que havia o analista que esculhambava com essas coisas. A dificuldade da psicanálise é a falta de recurso pronto. Cabe-lhe aprontar recursos a cada caso. Ela maneja o que recebe do analisando, o qual é quem determina o que acontece numa sessão. Cada um traz uma maçaroca 180
SóPapos 2018
de formações e, para cada um, é um teatro, uma cena específica. A única coisa parecida é o entra-e-sai. Alguém que se comporta segundo o projeto analítico, se pudesse ser visto de fora, pareceria coisa de maluco: o analista muda a cada analisando que entra para a sessão. Já o psicólogo é sempre o mesmo, despejando regras. Por isso, disse que a psicanálise fica no interstício dos costumes ocidentais e orientais. A vontade de ciência é uma tentativa de organizar a experiência, o laboratório é outra coisa. A psicologia em sua última instância de organização opera na afirmação de que isso é isso, aquilo é aquilo, dá até para medir com réguas. Ela brinca de ciência fazendo limitações de entendimento e fingindo estar fazendo medidas. Mas temos que considerar que há coisas enganosas. Quando fiz aqueles testes, havia, por exemplo, o teste musical em que alguns percebem as variações sonoras e outros não. O que isso tem a ver? • P – Em que medida o que chamamos de sensibilidade, insight, feeling, sacação – que devem ser algum tipo de cálculo –, poderá passar para a robótica sob forma algorítmica de calculabilidade matemática? Observe que não há universalidade alguma nessa calculabilidade. Por exemplo, a medicina. Se ela for submetida a uma robótica radical tem que saber que lida com o Primário. Se formos para o Secundário, há calculabilidade? Há, mas qual é o limite? Talvez seja impossível existir o psicanalista robô, mas quem sabe se no futuro aquele que quiser se aproximar disso que chamamos psicanálise não passará antes por uma calculabilidade extensíssima que levante as formações que nele estejam em jogo. O papo que ocorrerá será diferente da calculabilidade. O Primário desliza pouco, mas o Secundário é dependente de Originário, não há como calculá-lo. É aí que alguém como Alain Badiou quebra a cara com sua ontologia matemática. Ela vai bater onde? No não-sei? Fiquei até interessado nela no final dos anos 1980, mas há coisa que não cabe no cálculo. Notem também que os psicanalistas não levaram a psicanálise longe o suficiente para deixar de parecer com a medicina medieval. A teorização em psicanálise é fraquíssima, tem pouco mais de cem anos. Releiam Freud e verão que é cheio de anedotas, de mitologias. É desnecessário pensar daquele modo hoje. Anna Freud, Melanie Klein, etc., 181
são pessoas que caminham manipulando o que Freud disse. Elas manipulam o mesmo sem mexer em nada, apenas acrescentam alguma ideiazinha a respeito de tal ou qual ponto. O único passo que houve foi com Lacan, para além de divergências e discussões feitas pelos outros. O livro de Henri Ellenberger, A Descoberta do Inconsciente, que já recomendei que lessem, é excelente para mostrar isso. Freud montou um aparelho – anteriormente indicado por vários autores – que serviu para um grande esclarecimento sobre o Inconsciente. No meio, há uma porção de imbróglios – há até Jung, que era completamente pirado, basta ler seu Livro Vermelho (a exposição dele observando a loucura de sua cabeça) – que não devem ser jogados fora. Lacan passa isso tudo a limpo com as ferramentas de seu momento, com os instrumentos do século XX, mas aquilo ruiu mais depressa do que a ruína anterior do freudismo. Nos anos 1980 já não era mais daquele modo e, mais, aquele modo não dá conta do estado do psiquismo hoje. • P – Você, justo nos anos 1980, apresentou uma reformatação da psicanálise como proposta de adequação aos tempos que se inauguravam então. Como pensar hoje, após mais de trinta anos, a sua proposta? Aquela ainda está valendo? Observe que ela mudou muito. Acho que tenho algumas ferramentas que são a cara de nosso momento atual: o Revirão (apresentado em 1982), os Cinco Impérios (1994), a Pulsão (Haver quer não-Haver), a Teoria Polar das Formações (1996)... São instrumentos abstratos, com pouco conteúdo. Considerar as formações de uma pessoa – formações que não tenho de antemão, que precisam ser trazidas por ela – nos coloca numa postura diferente de análise. Foi o que pude fazer no que desconfiei de que aquilo estava apodrecendo. Fui a Paris num momento muito bom, pois vi pessoalmente aquilo se desmilinguir. Entendi que até era possível partir dali, mas não dava para lá ficar. Como dizia há pouco, a história da psicanálise é curta, suja, medieval e primitiva. Ela talvez tenha futuro, mas precisa ser permanentemente passada a limpo. É preciso surgir mais gente limpando até ela ficar pequeninha, um aparelho de tipo computacional como aquele que um 182
SóPapos 2018
Alan Turing produziu. Temos ainda muita rebarba, muita falação. Pretendo que meu aparelho seja minimalista. Há muito lixo em tudo que falei, mas foi preciso passar por ele para conceber esse mínimo que não considera sujeito, objeto, mas trata tudo como jogo de formações. Qual tipo de equivocação – e quanto a isto Lacan tinha razão – pode ser feito para que a pessoa deixe de ser ingênua e possa sacar as formações que, nela, estão funcionando? Daí que, como sabem, sugeri que o estatuto da psicanálise é místico. Trata-se de abandonar qualquer aprisionamento sintomático. O projeto dos místicos é de abandono. Eles pensavam estar falando de religião, mas estavam falando do psiquismo. Mestre Eckhart, por exemplo, é de enorme clareza em sua descrição do psiquismo, há pouco de religião nele. O erro comum é misturarem a função mística com a crença, o que paralisa o misticismo. Autores como Georges Bataille tratam o místico enquanto função psíquica. É preciso, portanto, afastar-se das formações para enxergá-las.
37 • P – Quanto a seu conceito de Linguagem, no Seminário De Mysterio Magno (1988), diz você: “...não há nenhum Mistério” (p. 114). E diante do que diz Lacan – “o Inconsciente é estruturado como linguagem” –, você pergunta: “mas o que não se estrutura assim?” Em outro momento, você diz que o estrato de seu pensamento é: Haver: Inconsciente; e Revirão: Linguagem. Nos SóPapos 2016, temos (p. 144-5): “A linguagem tem formações, mas a recíproca não é verdadeira. O século XX pensou que fosse verdadeira: se há linguagem, tudo é estruturado como linguagem. Não! Linguagem é um modo, 183
um tipo, de formação. Uma língua é um modo de formação, é modal. Não há que aplicar este modo de formação sobre as coisas, pois outras coisas são outros modos de formação. Não são língua nem linguagem, são formações estruturadas assim ou assado. Como uso a linguagem para mexer em outras formações, atribuo a essas formações a estrutura da linguagem. Não é. Se fosse, falaríamos tudo. Então, a linguagem é uma formação, mas nem toda formação é linguagem”. Me parece que sua definição de linguagem deslizou em relação ao que você disse sobre “Revirão: Linguagem”. O século XX abusou do termo linguagem. Como a abordagem das formações do Haver se fazia mediante linguagens óbvias, havia a suposição de que tudo fosse linguagem. Não é! Se tudo fosse linguagem, seria bastante fácil reduzir as observações das formações do Haver ao processo de uma linguagem comum. E isto, em última instância, não é possível (como, aliás, Alan Turing já havia entendido). Quando, lá no início, chamaram as articulações computacionais de linguagem, era uma metáfora, pois não se trata de linguagem aí. O momento era linguisticizante e linguageiro, mas a nomeação está errada. Trata-se, sim, da formação própria de determinada situação. • P – Para o pessoal de teoria dos sistemas, para os ciberneticistas, o que quer que haja é informação, a qual se arruma de certa maneira. Algo entrópico, caótico, desordenado, fractal, por exemplo, é uma ordem que não conhecemos. É possível cada vez mais descrever ordenações de dentro do Haver. Isto significa que se descrevem mais minuciosamente formações do Haver. Trata-se de descrição de formações. Essas formações não são uma linguagem, são acontecimento. Há um limite, pois há o Revirão. Ele há, inclusive, dentro do Haver. É lento e precário, mas existente. Portanto, o aleatório comparece. Se não temos como passar daqui para ali é porque o aleatório compareceu, então, aqui é uma formação, ali é outra, e não há como saber o que há no meio. Por isso, joguei fora linguagem, sujeito, objeto – e falo em formações e em transa de formações. Não posso descrever formações que não transam com as minhas. Este é o limite. O que aconteceu no século XX, sobretudo na 184
SóPapos 2018
França, com o estruturalismo et caterva, foi tomar o modelo da linguagem e o aplicar a tudo. Como este foi o modelo linguístico vencedor, passaram a aplicá-lo às formações do Haver chamando-o de linguagem. Isto nada mais é do que um cacoete deles. Escapei disso. Vejam que Sujeito é algo com uma história suja demais. Basta olhar para o momento delirante que é a perspectiva do Renascimento. Sujeito tem ponto de vista. O Haver não tem ponto de vista algum. Perspectiva é uma construção forçada, é um terror, fecha tudo. E mais, é caolha. Caímos na conversa deles porque o pessoal era geometricamente brilhante. A guerra de Picasso foi afirmar que não é assim que se enxerga e que era preciso multiplicar os olhares. • P – Você também disse que “o Inconsciente se estrutura como a gente o engaja”. Engaja no quê? No século XX, engajaram o Inconsciente na ideia de linguagem. A ideia de Inconsciente foi submetida à ideia de linguagem. Então, quando perguntei “o que não é estruturado como linguagem?”, esta é uma pergunta feita no regime da frase lacaniana “o Inconsciente é estruturado como linguagem”. Esse regime é que coloca a linguagem como modelo das formações do Haver. E se aí tudo é linguagem, o que não é? Por isso, larguei o sujeito e a linguagem, que são um tesão do século XX. É outro o tesão do século XXI, que já começa com a ideia de Quarto Império. A Zorra que estamos vendo ocorrer se deve ao pessoal estar perdido sem conceber ainda a formação em vigor. Então, ou corre para trás, ou para a frente. É normal a maioria correr para trás. Mas o que, então, há a fazer diante disso? Jogar fora o engajamento do século XX. Engaje-se em outra coisa. O Inconsciente jamais diz “eu sou o Inconsciente”, ele tem que se engajar em algo para poder ser explicitado. • P – Ele é performático? Sim. Se misturarmos as duas ideias – Inconsciente e linguagem –, ficará uma loucura. Não canso de repetir que o século XX acabou, que o Terceiro Império também acabou. O que temos aí não é mais o Terceiro Império, e sim seu lixo. 185
O Haver, em última instância, é homogêneo. Ao se fractalizar, as formações já não têm mais homogeneidade. Notem que, para os físicos atuais, a coisa mais homogeneizante produzida é a Teoria das Cordas, o que é pouco. Falta muito para chegar a uma coisa só que, inclusive, resulte nas Cordas, que esteja para atrás delas. Mas tem que haver essa coisa. O que acontece no Big Bang? As diferenças estão lá na pré explosão? O que lá está? Eis um problema deles. • P – Ao formular a Teoria das Formações – e não apenas o conceito de formações do Haver –, você não está encarecendo a ideia de homogeneidade? Pensemos em termos cosmológicos. Os físicos vão reduzindo, reduzindo, até à última instância. O que tem lá não é o átomo. Querem saber o que há por trás das partículas subatômicas. Não chegamos lá ainda. Sequer para dizer que há um único elemento. Meu conceito de homogeneidade é: tudo isso, em última instância, é a mesma coisa. É a Teoria do Mesmo. O mesmo se diversifica talvez por causa de quantificação desse mesmo. Os físicos dizem que o universo bariométrico é apenas quatro por cento da formação inicial. Cadê os noventa e seis por cento? É um resto por causa da quantificação, da Quebra de Simetria. • P – Por que você diz que tudo é formação? É o modelo que aplico. Assim como, no século XX, diziam que tudo era linguagem. Ao invés de distinções entre natureza e cultura, por exemplo, neste modelo, temos Artifício Espontâneo e Artifício Industrial. Eles são diferentes, mas ambos são Artifício. Não aceito a diferença entre natureza e cultura porque a coisa é a mesma. Os procedimentos e as articulações é que são diferentes. O que chamavam de cultura, e que chamo Artifício Industrial, a indústria humana, não tem como ser produzida senão mediante uma IdioFormação portadora de Revirão. Não comparece no Haver se não tiver isso. Se quisermos pensar evolutivamente, é um salto na ordem da evolução. Então, o parâmetro que homogeneíza é: tudo é formação. Eu é que não sei descrever, mas tenho que olhar para tudo como formações. Formações são polares, têm foco e franja (franja esta que vai se diluindo) – e têm limite: são 186
SóPapos 2018
focais. Elas são descritíveis mediante (não linguagem, e sim) sua transa com outras formações. Trata-se de tomar as formações que estão aqui e transar com outras. E isto é o máximo que se consegue, mas é pouco. É sexual: há uma hora em que goza, e acabou. Está tudo dito em meu Seminário O Pato Lógico (1979): é transa de formações. Se alguém quiser estudar sua sexualidade, qual lista – para falar como Umberto Eco – de formações ele tem em jogo para ser sexualmente funcional? Não cabe dizer que isso é isso e aquilo é aquilo, é uma lista. Faça-se a lista do protocolo do gozo sexual da pessoa, e ficará claro o limite. Repetindo, basta limpar a área para ver que o que está acontecendo é (não linguagem, sujeito ou objeto, e sim) transa de formações. • P – É o que estaria implícito no título do livro de Umberto Eco, A Vertigem das Listas. Notem que isso é limitado na hora da descrição, pois vai muito longe. Não sabemos até onde vai a franja de uma formação. Por isso, existe futuro para o conhecimento. Notem também que, ao falar em Fundações Mórficas (1992), falei de nossos problemas clínicos. É interessante observar numa pessoa quais formações são fundadoras. São formações pesadas, que não sairão de seu lugar com facilidade. Não adiantam rezas, psicologia, polícia, etc., em relação à sexualidade de alguém. Seriam apenas violência e burrice. Há, sim, que levantar, sexualmente, as fundações da pessoa. Há fundações. Aquelas primárias, de nível autossomático, não têm obrigação alguma de corresponder às formações etossomáticas. A correspondência não é necessária, é apenas acidental. Só isso já são fundações mórficas. A pessoa é estruturada, digamos, anatomicamente de tal modo: são as formações autossomáticas. No entanto, na hora da produção do bicho, a fundações etossomáticas, que também são primárias, vieram de outra composição que nada tem a ver com as autossomáticas. Aí, as pessoas ficam em pânico quanto a sua sexualidade, sobretudo quando a polícia está em cima. Não é o caso de ter pânico, e sim de descobrir quais são suas formações auto e etossomáticas. Fundações Mórficas 187
são isso. Ao observar as formações autossomáticas da origem de alguém, percebe-se o que antigamente chamavam de temperamento. Vemos que tal coisa veio direto dali e o desenho da pessoa começa a ficar claro. Alguém ser a cara do pai é um bom exemplo. • P – Você disse que a psicanálise tem pouca teorização, mas parece que é nossa época, nosso momento, que está sem teorização adequada. No melhor dos casos, autores trazem descrições, mas carecem de modelos de entendimento. Quando os autores são inteligentes, temos descrições maravilhosas – com explicações velhas. No geral, apontam para soluções amorosas. É ainda o Terceiro Império, sem entender que amor só serve para suscitar ódios. É preciso extinguir-se o cacoete (amoroso, subjetivo e linguageiro) para dar lugar àqueles mais novos que certamente já estão pensando por aí. Se observarem o que, genericamente, podemos chamar de movimento empresarial da garotada de hoje, verão que já é assim como estou dizendo. Eles não estão mais interessados em fazer concursos públicos para universidades. Estão se comportando de acordo com o século XXI, embora não tenham a teoria do que sacaram. É um exemplo não intelectual ou acadêmico, diz respeito a operarem soltos no mundo com suas empresas startups, incubadoras. Eles pensam ad hoc, jogam com as formações. Fico com inveja, pois minha juventude foi ruim demais, cheia de preconceitos e burrices.
38 O Quinto Império é uma conjetura. Nossa referência deve ser ao que é hoje. A sequência dos Cinco Impérios, o Creodo Antrópico, é de humanos. ETs, 188
SóPapos 2018
que não conhecemos ainda, de repente, terão outra sequência, pois trata-se do que acontece de fato na história de cada um. Não é preciso conjeturar o Império seguinte para entendermos o atual. Aliás, mal conseguimos entender o atual, o Quarto Império que está entrando. Supondo que estivéssemos no Primeiro Império, d’Amãe, não teríamos ideia do que seria o Segundo Império, d’Opai. A própria formação, em seu movimento, conduz para sei-lá-onde. Ela conduziu assim porque o animal que cada um é tem mãe, pai, essas porcarias todas. Outros animais de outros planetas podem não ter. Por isso, é conjetural. Se mal conseguimos entender a zorra de hoje, que chamo de Quarto Império, não sabemos o que será depois. Como lhes disse de outra vez, isso pode ser cíclico. Se o Haver for cíclico – por ser conjeturado assim –, é possível que todos os seus movimentos sejam cíclicos. • P – Então, ao invés de colocarmos o Quinto Império como referência para a Clínica Geral, deveríamos colocar a Postura do Analista? A noção de Clínica Geral é: o que quer que aconteça no mundo deve ser considerado do ponto de vista da Postura do Analista. Como também já lhes disse, acho espantoso que autores contemporâneos, por mais brilhantes que sejam, não tenham alvo, não tenham destino e permaneçam num descricionismo sem uma chave de leitura. Sem ela, não há como dirigir o processo. Há certamente gente pensando por aí, que também está enxergando para onde vai, mas, em geral, parece haver falta de observação da realidade e de traçado de um fio condutor. Talvez porque ainda estejamos muito no começo do Quarto Império e precisemos de algumas décadas para conceber essa chave. Para mim, a chave de leitura é: o Creodo Antrópico. Se outro autor disser a mesma coisa, ainda que com outros nomes, ele terá visto o que está ficando evidente demais. E vemos quando está ficando evidente quando vemos antes. Na década de 1980, comecei a dizer coisas que estão se concretizando no mundo. Logo, o que foi dito estava certo. Portanto, à minha revelia, havia alguma visão se mostrando para mim. Não é possível que só eu tenha visto. A tecnologia está obrigando a ver, mas a maioria, por estar apavorada, não quer nem olhar, fica tentando voltar para a idade da pedra. Não é questão de inventar 189
historinhas, inventar Creodo Antrópico, por exemplo, e sim que está na cara, estamos vendo. Por outro lado, quando vemos, temos que ser ignorantes. Se retivermos saberes de referência, nada enxergaremos. Na academia, a formação está tão enrijecida que, qualquer questão, é resolvida ali. Mas aquilo nada resolve, é apenas falação idiota diante da realidade. Talvez no passado não fosse idiota, fosse funcional. Na verdade, o que chamam de história da filosofia é uma espécie de repetição de Platão, da Academia, portanto. Ninguém, nem a Igreja católica, conseguiu se livrar dele. A grande dificuldade é aprendermos a perder. Estudamos, arranjamos diplomas e não queremos jogar fora aquele patrimônio e ficar pobres. Abominando isso tudo, enxergamos com clareza. Não interessa o que o Sr. Platão pensou, pois não cabe em nosso tempo. Nem é preciso destruir nada, mas apenas deixar na biblioteca e anular o valor. Como Clínica Geral, o que interessa é a possibilidade de olhar geralmente do mesmo modo, da mesma Postura. • P – Ouço por aí pessoas dizerem que está havendo uma destruição progressiva de vários modos de funcionamento social, de trabalho, de ganhar dinheiro... E, na sequência, dizem que é preciso (se) reinventar. Isto significa ter que jogar fora o que havia antes, recomeçar por outro viés... Se estiverem dizendo isso, já é bom. Se continuarem aplicando o mesmo modelo – que faliu –, para onde irão? Se hoje estivesse começando a vida, eu jamais seria professor. Propus para a Formação em Psicanálise aqui nesta instituição um modelo de Tutorias para os que estão ingressando. Eles vão somando as tutorias no sentido de haver aprendizagem técnica e reconhecimento de seus percursos. Hospitais importantes hoje já montaram seus próprios cursos de Medicina. O conceito de Universidade morreu e a escola se fracionará em aprendizados aqui e ali conforme as necessidades do momento. Daqui a uma ou duas décadas a virada será drástica, violenta mesmo. O que sobrará de lixo humano sem condições de adaptação será enorme. O que temos hoje de resto inútil é nada diante do que ocorrerá. As levas de refugiados que vemos buscando entrar na Europa ou nos Estados Unidos são daqueles que fogem de seus países, fogem da agressão, mas 190
SóPapos 2018
estou falando do lixo que a tecnologia produzirá. É apavorante – mas o pior é que está certo. • P – Qual é, para você, o sentido e o valor do Presencial em qualquer situação de Transmissão? A tendência é a virtualização do processo. Há certas aprendizagens que são por contágio. Já há aulas em que hologramas de professores estão diante dos alunos. O professor parece lá estar, mas o quanto de Transmissão não se elimina ali? Passa-se, sim, muita informação, mas a Transmissão que é contágio fica um pouco perdida. Isto, por enquanto. O nível da informação cresce aceleradamente, mas quer me parecer que o nível da Transmissão é de bicho para bicho porque nossa espécie ainda é assim, animal. Em outro tipo de espécie o contágio pode ser dispensado. Para nós, isso tem ancoragem na carne. Daí eu ter falado Amãe, Opai... Pode-se ensinar e aprender muita coisa, mas Transmissão é na carne, é pessoal. Todos sabem que sexo virtual não é a mesma coisa que o presencial. E mais, tudo depende de uma Erótica. Para mudar esse funcionamento, é preciso, primeiro, haver uma evolução da espécie, que é transformar-se em outra coisa que não seja carne. (Fazendo um parêntese: o que de pior pode acontecer não é ela se transformar em outro tipo de IdioFormação, destruir-se enquanto espécie, mas sim tornar-se um lixo funcional como vemos em qualquer zoológico. Estou falando da transposição – transposição não é transferência de cacoetes ou imitação reconfigurada – para outra IdioFormação sem que sobre para a anterior possibilidade alguma de conseguir acompanhar a nova. Basta olhar para a situação das tribos indígenas hoje. As novas IdioFormações não se parecerão com robôs, elas serão robôs). Já fiz algumas sessões de análise pela internet, mas parei, não acho que deem certo. É de propósito que uso os dois termos, informação e transmissão. Transmissão é como doença, tem que pegar, é contágio. Ainda não se inventou algo para substituir isso. A pessoa pode ter um enorme cabedal de saberes, mas há um roça-roça da espécie que não é dispensável. Informação é o que chamo de Oespírito, o Quarto Império: grande quantidade de transmissões independentes de contágio que pode transformar o mundo. O que sobrará para o animal? • P – A informação é articulatória, aleatória... 191
A Transmissão também articula, mas trata-se, para mim, do que Freud dizia sobre Transmissão de Inconsciente para Inconsciente. Na sessão analítica, há momentos em que ninguém sabe o que está acontecendo ou o que está fazendo. No entanto, está-se fazendo. Quando teremos uma leitura digital disso de tal modo que possa haver transmissão sem presença? • P – Você diz que a transmissão depende de uma Erótica. Na informação seria menos transferencial, mais difusa? Fazemos muita transferência durante a vida. Com autores, com Freud... Não estou falando da noção lacaniana de Sujeito Suposto Saber, e sim da suposição de que, na recepção desse saber, alguém o metaboliza de tal maneira que ele passa a ser a própria expressão desse alguém. Aí, parece até transmissão. • P – Minha impressão enquanto alguém de vinte e poucos anos é que, atualmente, o pessoal jovem está o tempo todo usando as tecnologias (redes sociais, vídeos, podcasts), mas a referência parece ser a coisas mais diretas, mais primárias, como questões sociais, ecológicas, da neurociência, das ciências cognitivas. O mesmo valendo para a sexualidade... Esse tipo de saber ainda está em muito atraso. Falta muito para um saber mais amplo e preciso. Se, dentro de algum tempo, tivermos uma leitura tão precisa de nossas formações e do funcionamento do Primário, isto fará com que os achados das neurociências, por exemplo, sejam verdade. Mas ainda é pobre e uma transa artística ou o que temos em análise – que é na base da transmissão – tem mais eficácia. Ou seja, não é porque o que essas ciências trazem esteja errado, e sim porque é pobre. Não se sabe o suficiente para ser possível fazer uma transposição para o nível neuronal ou cognitivo nos termos delas. O Primário é Primário, não sumirá. No passado, não só alguns místicos se esforçaram no sentido de eliminar o Primário, afastar-se dele. Isto, aliás, colou em várias fundações da Igreja católica, por exemplo. Em certos conventos a pragmática era de exercício de calar o Primário. Jamais conseguiram. Para isso é que existe assédio. Li que, ao fazerem reforma num desses conventos da Itália ou da França, não sei agora, encontraram um monte 192
SóPapos 2018
de cadáveres de bebês. As freiras, coitadinhas, tinham que encarar aquela situação de pós-aborto. A tentativa de calar o Primário e ficar apenas no Espírito jamais deu certo. Para começar a dar certo é preciso uma leitura tão precisa das formações concretas e das formações funcionais – isto é, Autossoma e Etossoma, em meus termos – que possa ser transferida para quem? Como? Eis algo distante de acontecer. A sexualidade é importante aí. Por que somos todos enlouquecidos em matéria de sexo? A explicação que tenho é que a Quebra de Simetria que se deu no Haver está embutida na carne. Que robô terá algum tipo de sexualidade que nada teria a ver com a nossa? Como sabem, trata-se de Secção, do Sexão. • P – A espécie está produzindo um tipo de sexualidade não reprodutiva que tem a ver com o que você conjetura como Anjo. Não será reprodutiva e o tipo de gozo que oferecerá não será orgásmico. Se o Haver existe em Quebra de Simetria, o Haver é sexuado e ele se instalou na carne, na carne até de animal, se instalou em amebas... Basta pensar num simples processo de cissiparidade na célula. Por que ela se estrebucha tanto? Ela dá um tremilique, está gozando. Não temos condição de pensar esse tipo de questão esquecendo-nos de que está ancorada na carne. Qual é a masturbação de um místico daqueles, louco, como Santo Antão que ficou setenta anos no deserto? É Deus. São João da Cruz ejaculava. Sobre Santa Teresa não se sabe o que acontecia. Ou seja, nem com Deus se elimina a ancoragem na carne. • P – Deus seria sexo virtual? É impressionante a pessoa fazer todo tipo de exercício espiritual – e gozar carnalmente. Uma sociedade de robôs gozará, transará, por onde? Lacan fez esforço para falar em jouissance phallique, jouissance de l’Autre, e não sabemos para onde isso vai, mas temos que levar em conta. Freud não estava brincando ao dizer que tudo tem a ver com sexo, pois trata-se aí da própria formação genérica do Haver que se instalou na carne dos animais. O grande drama contemporâneo é a maioria não querer saber sobre essas questões. Sabem usar dispositivos móveis, redes sociais, etc., mas como cacoete, e não como verdadeira transa com a tecnologia. Por isso, como digo, 193
o mecanismo de defesa que aparece é o de correrem para trás. Fica um sufoco generalizado, pois, se não corremos junto, como lidar com a situação? Fica-se numa posição frágil demais diante da manada. Basta ver que, nos Estados Unidos, ganhou-se a eleição desse modo para trás, com aquela pessoa. Aqui aconteceu quase o mesmo, só é diferente por lá ser protestante e aqui ser católico. É dos evangélicos, mas a mentalidade, o modelo, daqui é católica. O Brasil tem um sintoma grave de catolicismo. Lutero ao dar o golpe do protestantismo continuou católico e travesti. Não há “bispos” evangélicos cheios dos mesmos rituais? Tudo foi feito na imitação do vencedor que é a Igreja católica, aquilo é um império. O denominador comum é que são cristãos. A dificuldade de conviver com a psicanálise é que não há o álibi de correr para trás, e tudo fica muito claro.
39 Ao fazerem elogio da tradição ocidental, as leituras que estão sendo propostas pela mentalidade intelectual da próxima Presidência do Brasil se esquecem de que o Ocidente é científico. Tanto é que vários autores, no decorrer da história das ideias, disseram que o cristianismo seria a base do cientificismo. Já o conhecimento dessa intelectualidade que assumirá posição no país é zero em termos de achados da ciência. Como, ao tratarem da cultura, dos costumes, estão no século XIX, não dá para conversar. Por que não são cientificistas quanto a isso também? Por outro lado, têm razão quanto a algo que não sabem que têm. Por exemplo, quanto ao equívoco da globalização como vontade de generalização, 194
SóPapos 2018
como tentativa de eliminar as diferenças e promover a homogeneização de todos. Isto porque é possível pensar um globalismo que respeite a ordem sintomática de cada pessoa e de cada lugar. Está errado a tal globalização agir como se pudesse passar a borracha e desmanchar tudo que havia. E haver uma funcionalidade global não tem que ser uma funcionalidade universal. Este é um dos motivos de a Inglaterra estar pulando fora da União Europeia. Como todos sabem, os ingleses são sintomaticamente ingleses. Não se faz uma Europa como se fosse uma supernação destruindo as sintomáticas locais. • P – Para tanto é preciso da ideia de pátria? Qual sintoma está presente em alguém chamar o Brasil de sua pátria? Eis aí algo pouco trabalhado. Aqui, não temos acordo sobre qual seria a sintomática brasileira. Ela foi apontada pelo pessoal de 1922 e por outros, mas ainda não está clara. Está sendo mencionado por vocês um artigo publicado pelo futuro Ministro das Relações Exteriores, no qual é aventado que a vontade de poder, de Nietzsche, seria o lugar de Deus. Não dá para seguir esta inversão. Qual é o Deus de Nietzsche se o Deus de Nietzsche morreu? É o Super Homem (Übermensch). Ou seja, Deus baixou, mas não há isto no texto. Há grande ignorância, se não for boçalidade, do ponto de vista de cultura nessa tentativa de resgate do medievalismo. Portanto, a impressão que tenho é de que esse pessoal – Trump, etc. – não sabe o que está fazendo, embora tenha percepção da pulverização. Há que pulverizar para que todos os sintomas sejam respeitados. Depois, organizam-se as modalidades. A boçalidade está em desprezar a ciência e se preocupar com ideias sobre sexualidade de começo do século XIX. Do ponto de vista biológico, a sexualidade está sofrendo um impacto enorme. Daqui, no máximo, a uns dez anos veremos as consequências concretas. A reprodução humana virará uma indústria legível. Na televisão, Morgan Freeman apresentou um episódio do programa Through the wormhole sobre sexualidade em que cientistas dizem, por exemplo, que em breve haverá bebês geneticamente produzidos filhos de três ou mais pessoas. Não é mais papai-mamãe – que, aliás, é só brincadeira, divertimento.
195
Os movimentos regressivos quebrarão a cara logo-logo porque a tecnologia é muito dissolvente. O pessoal está correndo para trás por achar que bateu com a cara na parede e não tem futuro. E essa mentalidade emergente aí acha que chegou a Nietzsche, e não tem futuro daí em diante. Tem sim, e é completamente diferente do que imaginam, é enorme. Acabou o Terceiro Império, há que construir o Quarto Império. É a pulverização inclusive da sexualidade. Há quinhentos mil sexos, e agora? É preciso mexer na sintomática a partir do biológico, fazer pessoas geneticamente mais saudáveis e menos dispostas a doenças idiotas. Repito, esse pessoal está entendendo a pulverização e, como não sabe lidar com ela, vai quebrar a cara. O ruim é que demorará para quebrarem a cara, haverá muito atraso antes. Mas não há chance de fazerem parar a tecnologia. Para efetivamente darem para trás teriam que eliminar até o que já foi construído. O movimento é mais rápido. Por outro lado, a zorra está de tal maneira que é preciso inventar alguma ordenação, dar uma freada. E como não se pode frear uma multidão ignorante – no Brasil, na América... – mediante ensinamentos científicos, o freio está vindo lá de trás. Estão correndo para trás no mau e no bom sentido. O bom sentido é saber que é preciso de freios para a comoção contemporânea dos comportamentos, mas não para a tecnologia e o desenvolvimento. A psicanálise precisa saber jogar com isso. O pessoal da tecnologia de ponta está indo longe. É lá que está a verdadeira guerra. Como a NovaMente é um pensamento de ponta, temos ferramentas para entender. Entendam que Oespírito, o Quarto Império, não é antropomórfico, não tem configuração fechada, não tem retrato prévio. Humano não somos nós, é um conceito – um conceito que acabou. Só está valendo para os retardatários, que são humanos, têm mãe, pai... O Nietzsche sobre o qual aquele embaixador escreve é o Nietzsche de Heidegger. Nietzsche, este, viu com clareza que o caminho é super-humano, que o humano já tinha cumprido seu ciclo. Quem se mete com psicanálise não pode ser recalcitrante do ponto de vista ideológico, tem que saber que a situação está complicada, difícil e esquisita, mas tem que saber jogar com ela, pois há um jogo na mesa. Há que entender o que está acontecendo, e colocar-se perplexo. O resto da operação é maior do que 196
SóPapos 2018
o núcleo da operação. Esse resto será segurado mediante reação. Não tem como não ser reacionário. Cada um que trate de passar para o outro lado, o da tecnologia, porque o geral será de reatividade. A saída é a de considerar a situação sem tomar partido e esperar para ver onde desagua. • P – A ideia de Ocidente permanece. Ele é fragmentável ou é algo que resiste à fragmentação? É um sintoma. François Jullien é um autor que descreve bem a sintomática ocidental. Não há que lutar contra ou a favor do Ocidente, e sim entender que existe e deve ser respeitado como sintoma. Respeitar que exista, e não como pensa. Enquanto sintoma, ele resiste à fragmentação, mas o que está fragmentado dentro dele são vários sintomas capazes de ser cooptados por esses medievalistas no sentido de polo, foco e franja. O Ocidente é uma zorra, mas com uma cara. Democracia, por exemplo, faz parte dessa cara. Ela anda bem abalada ultimamente, o que significa que o cerne da democracia pode ser utilizado para eliminá-la. Elimina-se a democracia por dentro. Aliás, não é isto que fará a nova presidência? Se passarmos à esquerda, basta olhar para o que acontece na Venezuela. E mais, pode-se utilizar o sintoma do outro de maneira puramente estratégica. É o caso da China, que é Oriente, mas sabe brincar de Ocidente. E, depois, reduz ao pensamento chinês o achado que fez por via ocidental • P – Um dos cernes do sintoma ocidental seria uma enorme vontade de consistência por predicação, o que é algo que começou a ruir a partir dos anos 1930 porque a consistência enquanto tal é impossível já que ela revira. Portanto, não estragou por ter mudado de tese, estragou por dentro, por Revirão. Como o pessoal não tem essa tese, não sabe que, se for democrata demais, vira-se ditador. Tudo tem limite, se não, vira ao contrário. É preciso aprender isto para ser possível conviver com o século XXI. No Quarto Império, tudo é mais ou menos, pois o polo tem foco e tem franja. Se isso vai muito longe, mistura-se com outra franja e vira ao contrário. Não é por oposição, por contraste, vira por dentro, por insistência, reificação. Politicamente, para a governança do mundo, é preciso frear, pois o 197
pessoal em geral não acompanha o movimento. Mas não se pode frear tanto que vire Parque Humano com um bando de bonecos macaquinhos sobrevivendo em seu chiqueiro. Parece uma ideia fascista, mas não será conseguida na força, e sim na diferença, o que é horrível. Talvez se invente um substituto mais racional do que a Bolsa Família, será a Bolsa Retardo. O processo evolutivo da espécie está em outro lugar. Com ou sem Darwin, isso é processo evolutivo. Esta espécie não evolui mais biologicamente, está evoluindo para fora. Ela vai se substituir para fora. Por enquanto, ela pensa que ainda está no comando, mas já o perdeu para as próteses que foram sendo criadas ao longo de sua própria trajetória. A produção de IdioFormações que não são de base carbono, que aprendem por simples inputs de dados, é bem mais barata (e mais rápida) do que o custo de educação de uma criança.
40 Estou lendo um livro engraçado: Viva o Fim: Almanaque de um novo mundo, de André Carvalhal. É um jovem da área de design, e acho bom que a garotada fale sobre isso. Constato que há um pessoal novo enxergando as coisas e pensando sobre o que está acabando e o que já está começando. Não sabem o quê, mas veem que está mudando tudo, e mesmo sem saber os nomes descrevem direito. É preciso acompanhar como as coisas estão batendo nas novas gerações, pois elas é que pagarão o preço. E caro. • P – As gerações anteriores também não pagaram caro? Passaram por guerras mundiais... Minha geração teve uns trinta anos de boa vida (décadas de 1950198
SóPapos 2018
70). Depois, estragou. Isto não é papo de velho. Estou falando do interregno da mudança. A geração do autor desse livro pagará caro, a seguinte é que vai curtir. O interregno está pesado, difícil de entender e de propiciar condições de arranjo dentro do processo. • P – A geração que está em seus vinte anos hoje já não nasceu na nova situação? Nasceu na situação antiga. A zorra propriamente se instalou de uns cinco anos para cá. Como pais (ignorantes) e escola (gagá) não têm o que oferecer para um entendimento do que acontece, eles estão perdidos e o esforço de adaptação é muito grande. Acho, por exemplo, que, para além de qualquer wishful thinking de autores atuais, os robôs tomarão conta da situação. Esta espécie está condenada. Na melhor das hipóteses, como tenho dito, vai virar um zoológico. Penso mesmo que haja um Creodo espontâneo. A espécie é de macacos que conseguiram revirar, mas é de uma burrice enorme. Por isso, será completamente substituída. Nem quero pensar no Quinto Império, que não é nada disso que vemos aí. A evolução é no nível secundário, da produção da engenharia da espécie que vem. A situação da geração emergente quando os robôs estiverem entrando no comando será horrível porque não se poderá denegar. Aquilo estará lá já funcionando. Apocalipse é isso, a espécie ser dizimada. Bem feito. Quem mandou não pensar? • P – É uma Inconsciência artificial? Sim. À medida que o processamento cresce e se complexifica, ainda que seja à revelia do inventor, surgirá Revirão. Aí acaba esta espécie e a outra aparece. Esta não sentirá dor, não sabemos por onde gozará, terá uma estrutura física capaz de atravessar o universo... Cientistas, aliás, como Stephen Hawking, Miguel Nicolelis, são sintomatizados demais. Têm acesso a pensar a nova espécie, mas ficam temerosos em supor que deixaremos de comandar as máquinas. Não há evolução aqui compatível com a evolução da nova espécie. Ou seja, esses cientistas estão precisando de análise, pois não suportam a ideia que já têm do acontecimento. Como bate um cagaço psíquico, vão procurar para trás igual faz o povaréu ignorante com suas 199
crendices passadistas. Bom mesmo era o Dr. Silvana, personagem inimigo do Capitão Marvel... • P – Máquina tem consciência? Sim, como qualquer bicho. O que não têm, como já disse várias vezes, é consciência de ter consciência. Ou seja, não têm Revirão. Então, quando se produzir uma máquina revirante, ou ela aparecer à revelia – do mesmo modo, aliás, como apareceu nesta espécie pelo próprio movimento do biológico – pelo próprio movimento da máquina, não haverá mais conversa, ela é que mandará. Imaginem o que pode surgir de uma estrutura que tenha todas as características do humano e não precise carregar o macaco. Esse macaco que carregamos é pesado demais. Stephen Hawking enxergou com clareza o robô revirante e apregoou que devia haver um botão para desligá-lo. Quando surgir esse robô, será ele que desligará os cientistas. Repito, há uma ingenuidade que é falta de análise por não suportarem que é o fim da espécie. É Pulsão zero da parte deles. O importante não é a espécie humana, e sim Oespírito. Esteja localizado onde for no universo, pouco tem a ver com isso que vemos aqui. Aqui aconteceu com o macaco: uma evolução que, à revelia da macaquice, entrou em estado de Revirão. Tomar o sim pelo não, o não pelo sim, eis algo que não existe fora desta espécie. Lá fora, isso deve estar resolvido há muito tempo já. Em breve, isso acontecerá aqui. • P – Esta espécie foi assassina de outras. Dos neandertais, por exemplo. Não sabemos se foram assassinados ou não aguentaram o rojão da subsistência. A denegação da morte definitiva de tudo faz a pessoa ficar burra. Em última instância, os cientistas são humanistas. Se existir o Übermensch de Nietzsche, não será de carne e osso. A limitação não é do lado do pensamento científico, e sim do lado do pensamento analítico. Hawking diz que a robótica ultrapassará o humano e fica preocupado com o que fazer para estarmos na direção. • P – Isso é difícil de pensar, pois ninguém viveu um mundo onde não existissem os humanos.
200
SóPapos 2018
Freud tampouco. No entanto, colocou toda a base do Haver como Pulsão de Morte. • P – Mas ele não pensou a esse ponto. Não existia a revolução digital. Isto não é preciso para alguém que sabe pensar. Ele conviveu dezessete anos com câncer e combinou com seu médico para que o apagasse quando estivesse no limite suportável. É uma lucidez enorme. Não me preocupa o fato de a espécie acabar, pois somos aqueles encarregados de produzir a nova espécie. Teremos sido superados por nossa produção. Já lhes disse que somos a consciência do Haver aqui nesta região do espaço. Temos, pois, que produzir a permanência dessa consciência com mais leveza. Talvez, em outros lugares, isto já tenha sido produzido há milênios. Parece medieval o que direi, mas acho que isso tem destino, o Haver não está brincando, está funcionando. O Creodo é isso surgir em vários lugares. Justo esse tipo de acontecimento, na prática e na teoria, está assustando a maioria, que corre para trás. • P – Você ouviu o que o próximo ministro da Educação falou? Disse inspirar-se em Anísio Teixeira... Só que Anísio vomitaria ao ouvir o que foi dito. Anísio pensava a educação como escola de amanhã. Escolas aí pelo mundo já estão se tornando parecidas com o que ele disse. É preciso entender que nada depende de alguma racionalidade, depende sim das instâncias de poder. Disse de outra vez que qualquer posição que se coloque em qualquer área, em qualquer pensamento, essa posição tem que ser limitada, valer só no meio do campo. Se ela se expande, ela vai à franja e vira ao contrário. A situação a que chegamos aqui neste país – e em alguns lugares no mundo – é efeito da democracia. É difícil entender que ela tem hora, se não, vira ao contrário – como, aliás, virou. Esses aí que chegaram ao poder, chegaram lá democraticamente. • P – Isto é básico para entendermos o Revirão em sua radicalidade: qualquer situação levada adiante demais virará ao contrário. Este é um lema importante da psicanálise. 201
Temos que segurar pelo meio, sem ir muito longe na franja, pois do outro (mesmo) lado é o oposto. É para isto que serve o conceito. Há algo da sabedoria oriental aí: é preciso maneirar. Refiram-se ao Wu vei, ideia chave do Tao que diz respeito à não-ação, a não nos metermos, a deixar rolar. • P – Nas análises políticas do final do século XX para cá, muito se falou em crise da representação, mas, na verdade, o que se demonstrou foi o quanto a democracia foi representativa nessas últimas eleições. Todos estão ali representados. E muito bem representados. O que estou dizendo que foi Revirão é o fato de aqueles que ganharam agora terem sido lá postos justamente pelos que lá estavam antes. Se tivessem maneirado, talvez o encaminhamento fosse outro. Foram indo, indo, e produziram o contrário – que é igual a eles. O conceito de Revirão está inscrito há milênios no Oriente sem ter este nome. Nós aqui podemos tomar posição ad hoc, mas não tomar partido, coisa que nada tem a ver com a psicanálise. Não estou criticando quem está ou estava no poder, e sim a fé que se põe num mero artifício chamado Democracia. Pode não haver nada melhor, mas não há que colocar fé, ser fanático. Aliás, nem – ou sobretudo – da psicanálise cabe ser fanático. O pensamento é instrumental para cada situação. Qual é a techne, a Arte, para tal momento? Se a psicanálise funcionasse, ela, neste momento de travessia, seria o exercício mais solicitado. Só que o vemos por aí como psicanálise é quase zero. São ditos psicanalistas católicos, democratas, partidários... • P – Você já falou da psicanálise como “aparelho de simulação da suspensão dos recalques” (1995). Quais seriam os dispositivos de Simulação mais apropriados para o caso da psicanálise hoje? Sei que o exercício que propus funciona mal. Simulação é um aparelho produzido que seja o mais indolor possível para estar no jogo do processo. Não há como simular a suspensão do recalque, isto é resultante. Caí fora do Passe, de Lacan, por ser algo muito mal simulado. Nesta instituição aqui não há passe, há exercício, ginástica, malhação mental como já denominei. Há, sobretudo, o exercício dos quatro dispositivos da Formação do Analista. Para 202
SóPapos 2018
termos exemplos da dificuldade de simulação dos recalques, basta olhar para o sintoma grave, pesado, imbecil, que é o calendário: carnaval, dia das mães, Black Friday... Os animais regularmente correndo para a avenida, para as lojas. Na Revolução Francesa buscaram mudar o calendário, não deu certo. Já temos capacidade administrativo-tecnológica para cada um fazer seu próprio calendário, de encaixar seu modus vivendi sem estar atrelado a esse calendário papal idiota e ultrapassado. A burocracia estatal não aceita, pois teme perder o controle. Não estou falando de anarquismo, e sim que as regras podem ser outras. Podemos ter uma disciplina mundial em termos de calendário sem ser essa porcaria que está em vigor. Há sempre que obedecer a algum modelo. Qual? Veremos. Qual a razão de haver esse monte de feriados ligados a santos neste país?
41 • P – Outro dia você falava sobre informação e transmissão por contágio. Diz você em seu livro A Natureza do Vínculo, de 1993 (p. 215): “Quero mesmo supor que toda uma teoria da comunicação seja possível, e talvez só agora possível, a partir desses teoremas da vinculação. Toda e qualquer teoria da transmissão também, quem sabe, se torna favorecida em sua possibilidade de solução de alguns problemas se quisermos entender esses níveis e modelos de vinculação”. Lá, então, você estava incluindo a teoria da transmissão na mesma situação da teoria da comunicação. Estaríamos, hoje, passando por um momento híbrido em que certos lugares que eram favoráveis à transmissão por contágio (escolas, por exemplo) estão sendo destituídos em prol de aplicativos, etc., os quais dessexualizariam esse 203
processo de contágio evitando um modelo transferencial que implica um tesão em vigor? Acho que não. Temos o mau hábito de traduzir Transferência – coisa que até Lacan faz – pela palavra amor, amor de transferência. Lacan tentou limpar colocando a ideia de Sujeito Suposto Saber. A transferência, para ele, estaria assentada na suposição de saber a um sujeito. Mas se tirarmos o sujeito, veremos que toda vez que houver suposição de saber em outrem é transferência. Há vários graus de transferência. Assim, por que uma máquina bem construída não poderá fazer suposição de saber em outra? E mais, só aprendemos na transferência. Não há aprendizado fora dela. • P – Alguma relação dita humana é possível fora da transferência? Deveríamos poder fazer a lista das transas transferenciais das pessoas. Numa situação passional, por que fulano está apaixonado por sicrano? O que está ele vendo lá que o submete àquelas formações? A pessoa fica submetida a formações que encontra no outro. Isso é transferencial: o outro é quem sabe como ele goza, como ele vive. Por isso, é o conceito mais importante da psicanálise. As histéricas, então, capricham... Daí Lacan ter dito que só se pode fazer transferência com histérica, ou seja, há que histericizar a pessoa para ela poder entrar em análise. Ele fala em Discurso da Histérica junto com os outros. A histérica é a rainha da transferência. Entendam que o trabalho de limpeza do campo do saber psicanalítico é de redução de vários conceitos a apenas um. O conceito de transferência bem trabalhado come um monte de outros conceitos. Nesse Seminário que vocês estão lendo, traduzi por Vinculação e falei em Vínculo Absoluto, em transferência para com o Haver. Por que um cientista quereria saber sobre um fenômeno dito natural ainda desconhecido? Qual é o motor? Porque, no fundo, supõe que aquele saber lá está escrito e ele precisa ler. Ele precisa fazer alguma leitura de um saber lá inscrito. Para Galileu, tudo que podia transformar em matemática ele supunha estar escrito no Haver. • P – Qual relação existe, se é que existe, entre o nó borromeano e o Revirão? 204
SóPapos 2018
Já tentei de inúmeras maneiras fazer essa relação e não consegui. Em Paris, quando frequentei o curso de Pierre Souris, fiz muitas anotações. Coloquei essa questão para ele, que nada soube me dizer. Eu buscava a passagem da banda de Moebius para o nó borromeano – e acho que não há. Lacan ficou doido demais com isso. Sua mesa no consultório era uma bagunça cheia de nós. Acho que ficava o dia inteiro enrascado ali. Ele, preso à heterogeneidade de sua tópica RSI, precisava que cada acontecimento psíquico fosse designável por um acontecimento toplógico, quis reduzir cada formação a um objeto topológico e se perdeu. Não é preciso isto para haver mentalidade científica. A meu ver, Lacan é responsável por Alain Badiou ter tentado uma ontologia matemática. Não deixei de ficar interessado nela, estudei tudo aquilo, mas aquele projeto fracassou para mim. Tenho para mim que Lacan ficou preso na topologia sem conseguir sair. Aquilo é rebarbativo demais. Há três itens que já são suficientes para o pensamento: o zerolátero (o Plano Projetivo, o que é recortável antes para se tornar unilátero); o unilátero (a banda de Moebius, que já é um corte, a retirada de um círculo de dentro do Plano projetivo), e o bilátero (novo corte sobre a banda de Moebius). Os matemáticos fazem a suposição de que não dá para construir um Plano Projetivo materialmente. Ele não fecha por causa do material com o qual se tenta construí-lo. Suponho que o material para o construir seja o holograma, pois ele não fecha, são pontos girando. Não tem, portanto, materialidade suficiente para impedir sua construção. O holograma comparece tridimensionalmente, mas sua materialidade é mínima, passamos a mão através dele. Não existe Plano Projetivo in natura, no Haver. Pode ser que ele esteja em algum momento do Haver, mas este é problema dos físicos. • P – Não poderia ser construído na atividade cerebral? Sim. Mas a materialidade aí é transa, e não coisa. Depois que se constrói uma banda de Moebius, uma contrabanda como chamo, podemos continuar recortando infinitamente. Nunca mais voltará, pois seria necessário colar tudo de novo. Este tipo de raciocínio é suficiente, não é preciso topologizar tanto. Já lhes disse que o Yin / Yang indica que era isso que os orientais estavam pensando. Tentavam representar 205
o Plano Projetivo com dois furos. Ou seja: Plano Projetivo; unilátero; e bilátero. É o Terceiro grau que interessa. Quando, diferentemente dos matemáticos, digo que existe um Ponto Bífido capaz de percorrer a banda de Moebius, isso é Terceiro. A mente funciona assim. Como sabem, o Revirão é o percurso sobre a banda de Moebius • P – Mario Novello está apresentando um curso em que diz que “a causalidade local não é garantia de que o universo tenha uma causalidade global. Nem todas as leis da Terra têm validade em todo o universo. Costumamos expandir a teoria para campos não experimentais”. A cosmologia não tem como fazer experimentos, ela não é a física que trabalha em escala menor. Ela só tem conjeturas. Para meu interesse, prefiro a conjetura de Novello, pois, quanto ao que penso e teorizo, tudo é brasileiro. • P – Continua ele: “O universo teve começo? Isto é um absurdo, não pode existir isso”. Ele critica o Big Bang, fala em colapso e em universo em ricochete. Essas coisas estão em meu Pleroma (1986). Precisei fazer essa suposição para continuar trabalhando a teoria psicanalítica. • P – Diz ele ainda: “O universo é uma estrutura homogênea em um primeiro momento. Depois, há uma perturbação dessa homogeneidade. Em algum momento, deve ter havido violação da lei de conservação da energia. Quando? No início, no máximo de condensação”. Ele chama de momento de caos. Não chega a sumir. Quando digo “Haver desejo de não-Haver” é que não há não-Haver. Então, o que acontece é isso – até não haver. É assim: o universo respira, e tem sístole e diástole. Gosto de Novello porque não saí dele. Quando pensei o que pensei, pensei por minha conta. Depois, percebi que ele também pensava assim. Então, há dois malucos. Mais de um maluco dizendo a mesma coisa não é loucura. Já notaram que nunca um maluco tem o mesmo delírio que outro. Então, dois pensarem o mesmo é uma prova (não de epistemologia, mas) de verdade científica. Quando Novello apareceu, fiquei aliviado. 206
SóPapos 2018
• P – Freud fazia a distinção entre sonho e delírio. No sonho, estamos dormindo, no delírio, acordados. Há que provar que a pessoa esteja acordada. Estamos nós aqui acordados? O que estamos dormindo neste momento? • P – Lacan menciona uma história de Chuang Tzu sobre o sábio que sonhou ser uma borboleta e se pergunta: “Sou um homem que sonhou ser uma borboleta? Ou sou uma borboleta sonhando que se transformou num homem?” Não temos possibilidade de definir, pois isso revira. Se sonharmos que somos borboleta, imediatamente revirará para perguntarmos se somos uma borboleta sonhando a transformação em homem. O pensamento não começou ontem, e nem com a Europa, ele sempre existiu desde que há gente, IdioFormação. Chuang Tzu está falando de um saber produzido como explicação de alguma coisa do Haver. Quando entendi o que era Yin / Yang, vi que era absolutamente lógico, nada de religião ali. • P – Por que o Recalque paralisa? Onde está ele nesses raciocínios? O Recalque é resultante de uma luta entre formações. Ele ocorre muito depois disso que falei sobre Plano Projetivo e banda de Moebius. Nessa topologia, ele só é possível porque há um único Recalque Originário, que é dado pelo Haver. Depois, ele se repete de várias formas dentro do Haver. Se o não-Haver não há, o movimento desejante do Haver – isto é, a Pulsão – é recalcado. A Pulsão quer ir para onde não há. Este é o primeiro recalque que se repete em várias e várias formações. Freud conjeturou a possibilidade de um recalque originário. Para ele, tinha que haver um, mas jamais conseguiu explicá-lo. Consegui explicar cosmologicamente e o fiz repetir dentro do Haver. Podem dizer de meu pensamento que está todo errado, mas se, na origem, estiver certo o resto também estará. • P – Freud não tentava dar conta do recalque originário mediante as três protofantasias, como chamava: a sedução, a castração e a cena primária? Elas seriam atratores de todo o resto. 207
O Recalque Originário de que falo está muito longe disso. Freud descreveu cá embaixo e é recente demais. Como era lá no Originário? Se tomarmos, por exemplo, o Big Bang como tentativa de explicação de formação de Haver, perguntaremos em que sentido ele é originário. Nunca houve nada e começa a haver, ou sempre houve e se movimenta? Temos que escolher. Meu Big Bang existe sob pressão. “Haver desejo de não-Haver” vai encolhendo, encolhendo – e Buumm! Então, o Haver não tem começo ou fim. Esta é a tese do tipo de cosmologia que aceito. Criou-se uma dissimetria radical: o não-Haver não há, só há o Haver. Se é assim, não existe a possibilidade de ter havido uma criação. Isto, nem do ponto de vista religioso, nem do físico. O Troço há. Faz-se o quê? Quem manda sermos ignorantes? O mais difícil entre aqueles que se acham psicanalistas, ou que se referem à psicanálise para entender o mundo, é assumir a radical diferença entre a Postura psicanalítica, tanto teórica quanto prática, e as demais posturas. Vejam, por exemplo, que, recentemente, o país passou por um solavanco político que mexeu em tudo. O que psicanalistas têm a ver com isso? O que vemos são ditos psicanalistas se manifestarem como sendo de esquerda. De direita, são menos, pois ficou combinado que é meio vergonhoso ser de direita. Isso deve passar, já que vivemos um longo período em que éramos obrigados a ser de esquerda. Há mesmo psicanalistas católicos aos montes. Mas, enquanto psicanalista, o que tenho a ver com isso? Essas referências são minhas, me servem como referência? De modo algum! Há que escolher: ou é psicanalista, ou é partidário, religioso. Não é questão de diferença de discurso, e sim de Postura de Indiferença diante do Haver. Psicanalista não tem partido. Em caso contrário, perde sua condição. Há tempo trago comigo, no bolso, uma anotação que apresento agora a vocês: Qual é a posição política de um psicanalista? Segundo a teoria que seguimos aqui, temos três situações de Morfose: Regressiva, Estacionária e Progressiva. Se forem um ponto de referência para o psicanalista, esquerda e direita são o quê? São necessariamente ou Estacionárias ou Regressivas por serem fundadas sobre recalques. Não estou falando de partidos dentro da situação, e sim da situação. Se pensarmos do ponto de vista de esquerda, 208
SóPapos 2018
teremos um tipo de Morfose que, geralmente, é mais da ordem Estacionária, mas com cheiro de Regressiva, pois não sai do lugar. O mesmo vale para a direita, apenas com discursos diferentes. Pergunto de novo: qual seria a posição política do psicanalista já que ele aí está para tentar desmanchar a Regressiva e a Estacionária? A posição dele é Progressiva. Alguém da ordem do Progressivo em termos de Morfose é incompatível com qualquer outra. O progressivo lida com o jogo das formações. A ele não interessa quem esteja no governo, e sim cada ato, onde se situa e quais são seus efeitos. A política do psicanalista é de vanguarda. Tentaram banir este termo, mas sempre há uma vanguarda em algum lugar. Portanto, para aquele orientado psicanaliticamente não há como ser católico. Pode-se aproveitar de alguma catoloquice, mas não ser católico. Acho mesmo que a melhor forma de governo é a da Igreja católica. Ela não é democrática, é semi-democrática. Sua organização interna de poder é a melhor que já vi. A estrutura hierárquica não é de sangue, teoricamente é por mérito. Pode haver erros, mas quem decide são os cardeais, aqueles que chegaram lá em cima. E há o papa que manda mesmo. Não é porque alguma gentalha tenha votado. É, sim, uma democracia de aristocratas, de cardeais que elegem o papa. Eles têm um faro excepcional. Olham para o mundo e veem quando está na hora de um João Paulo II, de um Bené, de um Chicão... • P – Pode existir uma política Tanática? Sim, uma política suicida, destrutiva. Mas se for destrutiva dos outros, não será tanática. Napoleão Bonaparte, por exemplo, fez aquelas guerras todas contra os outros. • P – Terroristas islâmicos que se explodem são tanáticos? Estes são fanáticos. É possível ser fanático sem ideologia? Eles não morrem, vão ao paraíso ao encontro de virgens. Estão fazendo negócio. • P – Em Psicanálise & Polética (1981), você apresenta três poléticas: contar com o retorno do recalcado, Revirão, e produção de próteses. Elas poderiam ser expressão da postura progressiva do psicanalista? 209
É progressivo. Essa é a política do Progressivo. Como seria possível ser de esquerda ou de direita e incentivar o retorno do recalcado? Não há como. O balanço político no planeta, durante milênios, é sempre em torno do retorno do recalcado. O que aconteceu agora neste país foi o retorno do recalcado. E acontecerão outros mais. Já lhes disse que quando se vai muito longe dentro de certo modelo, ele revira, traz o recalcado de volta. Um excesso de democracia vira fascismo, e vice-versa. Para sobreviver, há que ser chinês antigo. É o Wu vei de que falei da vez anterior: nada de muita interferência. • P – Freud parece não ter sido tocado pelo pensamento chinês. Tenho a impressão de que a paixão freudiana pelo Egito é tentativa de conceber um Monoteísmo radical. Para ele, Moisés seria egípcio e tentou levar seu povo para o raciocínio de Akhenaton, mas foi vencido pelos adoradores do bezerro de ouro. Mesmo assim a religião deles é monoteísta. • P – Freud foi fortemente marcado por Goethe, principalmente pelo Fausto. Sobretudo, pela virada que ele dá na transa com Mefisto Goethe é quem é o transeunte, vai para lá e vem para cá. Ele percebeu, dentro dele, a virada de Fausto e Mefisto. Interessante é que Freud ficou encantado com Goethe, mas mesmo assim não definiu o Revirão. Ele deixou para mim. Há sempre um recalque. Depois de perceber tudo isso – o sentido antitético das palavras primitivas, a reversão da pulsão... –, ele não conseguiu destacá-lo como o diamante do raciocínio.
210
Sobre o Autor MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. Psicanalista. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de NovaMente, Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em SóPapos e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus ou on-line e publicados regularmente.
211
Ensino de MD Magno MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 3ª ed., 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p. 7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 8. 1982: A Música Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 2ª ed., 264 p.
212
SóPapos 2018
10. 1984: Escólios Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p. 16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 2a. ed. rev., 628 p. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise - Parte II Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 2ª ed., 622 p. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p. 19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 310 p.
213
21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 224 p. 26. 2000: “Arte da Fuga” Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p. 30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2010. 260 p. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p.
214
SóPapos 2018
32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p. 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2014. 158 p. 35. 2009: Clownagens Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012. 210 p. 36. 2010: Falatório [a sair] 37. SóPapos 2011 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p. 38. SóPapos 2012 [a sair] 39. SóPapos 2013 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p. 40. Razão de um Percurso (Conferências Simplórias 2013, para divulgação da Nova Psicanálise, realizadas na Universidade Candido Mendes) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2015. 41. SóPapos 2014 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2019. 284 p. 42. SóPapos 2015 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 176 p. 43. SóPapos 2016 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 188 p. 44. SóPapos 2017 [a sair] 45. SóPapos 2018 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2020. 216 p. 46. SóPapos 2019 [a sair] 47. SóPapos 2020 [em curso] 215
Obra Literária 1. Oferta do Meu Mistério Livro composto e reproduzido pelo autor (mimeografado). Rio de Janeiro, 1966. 2. Aboque/Abaque: Crestomatia Rio de Janeiro: Editora Rio, 1974. 200 p. 3. Sebastião do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro / Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1978. 142 p. 4. CantoProLixo Aoutra editora / Matias Marcier, 1985. 90 p. 5. Kaluda (O Nando e Eu) Letras, Revista do Mestrado em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), edição especial, jan/jul 1995, p. 254-285. Republicado em: PUCHEU, Alberto (org.). Poesia (e) Filosofia: por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p. 29-50. Terceira publicação: Et Cetera: Revista de Literatura e Arte, n. 3, março 2004, p. 170-177. Curitiba: Travessa dos Editores. ISSN 1679-2734. 6. S’Obras (1982-1999) Coletânea de poemas. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. Editada por Fábio Campana, com coordenação gráfica e editorial de Jussara Salazar. 7. Literadura Obra literária completa. Rio de Janeiro: NovaMente editora, 2018. 562 p.
216
Este livro foi composto nas fontes Amerigo BT, Garamond ITC Bold BT e Times New Roman.