SóPapos 2016 [1a. edição]
 9788587727817

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SóPapos

2016

MD Magno

SóPapos 2 0 1 6

NOVAmente e ditora

é uma editora da

Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2018 MD Magno Texto preparado por Nelma Medeiros Patrícia Netto Alves Coelho Potiguara Mendes da Silveira Jr. Diagramação e editoração eletrônica: Wallace Thimoteo Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso

M198a Magno, M. D. (Machado Dias), 1938Sópapos 2016 / M. D. Magno . – Rio de Janeiro : Novamente, 2018. 192 p. ; 14x21cm ISBN 978-85-87727-81-7 1. Psicanálise. 2. Lacan, Jacques, 1901-1981 – Crítica e interpretação. I. Título. CDD 150.195

Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 – Jacarepaguá 22763-260 Rio de Janeiro – RJ Tel.: (021) 2445-3177 www.novamente.org.br

Não meu, não meu é quanto escrevo, A quem o devo? De quem sou o arauto nado? Por que, enganado, julguei ser meu o que era meu? Fernando Pessoa

Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o diabo. José Regio

SUMÁRIO 1, 15 Comentários sobre o estruturalismo a partir de Função e campo da palavra, de Jacques Lacan – Fato e interpretação à luz da Teoria das Formações.    2, 21 Fala e instinto da língua segundo a Nova Psicanálise – Considerações sobre a ideia de Presença.   3, 24 Crítica à ideia de sujeito a partir da Tópica do Recalque – Comentário sobre o conceito lacaniano de sujeito.   4, 26 Analogias com a NovaMente a partir de Sete breves lições de física, de Carlo Rovelli – Wo Es war, soll Ich werden é: ‘cair no buraco de onde você pensou que tinha saído’.   5, 28 Vetores Regressivos, Estacionários e Progressivos em questões como Estado, poder, religião – Dissociação das formações na Pessoa.   6, 31 Analogia entre fim da história hegeliano e fim de análise lacaniano face à proposição da Análise Propedêutica e da Análise Efetiva – Sujeito é

contrapartida necessária da duplicidade corpo e alma – Razões para a proposição da Teoria Polar das Formações e do conceito de Pessoa – ‘Toda sexualidade é sui generis, ou seja, singular’ – Questões sobre arte e fim da arte.   7, 40 Comentários sobre a Oficina Clínica no âmbito dos dispositivos de Formação do Analista – ‘O mais importante na clínica é o vetor de escuta’.   8, 46 Relação da sexualidade com as Morfoses Regressiva e Progressiva – Gênero face às formações primárias e secundárias da Tópica do Recalque.   9, 48 Comentários sobre A ciência e a verdade, de Jacques Lacan – Esclarecimentos sobre equivocação e bifididade.   10, 53 Ideia de família a partir do Creodo Antrópico.   11, 55 Esclarecimentos sobre o aspecto Estacionário da culpa – Dois sintomas de fundação do Brasil: corrupção e patrimonialismo endêmicos.   12, 60 Fala e escrita a partir da Tópica do Recalque – ‘Falar é a expressão de uma escrita’.

13, 68 Considerações sobre despertar e realidade – Revirão e HiperDeterminação.   14, 71 Comentários sobre o conceito lacaniano de falo, a propósito de A significação do falo – Esgotamento do pós-estruturalismo.   15, 73 Neo-realismo em filosofia e a Teoria das Formações – Primário é dado e Secundário é produzido.   16, 81 Na história da psicanálise, não há evolução, apenas ficções diferentes –  Aceleração dos processos na contemporaneidade – Quarto Império e os algoritmos que resultam em aplicativos.   17, 89 Comentários sobre Kant com Sade, de Jacques Lacan – Sade faz uma análise do Poder – Gnômica, ciência e religião.    18, 96 ‘O Brasil é maníaco-depressivo’.    19, 98 Estertores do Terceiro Império – Sentido de progresso no Creodo Antrópico – Irredutibilidade do conceito de bifididade ao conceito de  sinthome, de

Lacan – Sobre a possibilidade de bifididade em nível quântico – Expressão da bifididade na língua – Interlocução contemporânea de Lautréamont, Nick Land, Georges Bataille – Abstração e esvaziamento por procedimentos de proliferação – Proliferação e esvaziamento, via topologia, em Lacan, e via autômato celular, em Wolfram.    20, 106 Origens e funcionamento da sintomática maníaco-depressiva do Brasil.   21, 109 Acepção de fundamento em psicanálise – Busca por fundamento é movimento abstrativo de postular um aquém constitutivo – Análise como entendimento da constituição de algo – Lacan considera entrada na ordem simbólica como condição constitutiva – Insuficiência da equivalência entre ordem simbólica e interdição do incesto – Fundamento, para a Nova Psicanálise, está no regime do Haver.   22, 112 Cultura como Morfose Estacionária – Processos de inibição de pensamento e movimentos regressivos na cultura – Intervenção da tecnologia nos processos Estacionários e Regressivos.   23, 116 Ética da Nova Psicanálise é trabalho constante de Indiferenciação – ‘A psicanálise não se mede pelo conhecimento que traz, e sim pela postura que põe no mundo’ – O que é e o que envolve a Postura em psicanálise.  

24, 123 Ética da Nova Psicanálise e o exercício da palhaçada.   25, 125 Inconsciente é estruturado unariamente – Suposição de “começo” unário no Haver e Quebra de Simetria da unariedade – Raciocínios topológicos sobre a unariedade – Binariedade do Primário – Pensamento plerômico para pensar unariedade e oposições – Esclarecimento sobre as noções de progresso, progressivo e evolução – Era da coexistência – Valor da obra de Georges Bataille.   26, 133 Conhecimento como domínio das coisas (epistemologia) e conhecimento como transformação (gnoseologia) – Diferença entre artificialismo e fake.      27, 135 Condições e consequências da formulação ‘O Inconsciente é estruturado no que ele se engaja’ – Sintoma do século XX é a linguagem – Discours, Figure de Jean-François Lyotard na contramão do século XX – Realidade do Recalque Originário permite a equivalência Haver = Inconsciente – ‘Deus é inconsciente’, de Lacan – Deus sive Natura, de Espinosa – ‘Inconsciente é Deus’ ou ‘Inconsciente é o Haver’ da Nova Psicanálise – ‘Linguagem é resultado do engajamento do movimento do Inconsciente nas formações do Haver’.   28, 147 Nobel de Bob Dylan é marca da entrada no Quarto Império – Referências de

fronteira nos Primeiro, Segundo e Terceiro Impérios – Eliminação de fronteiras no Quarto e Quinto Impérios – Possibilidades futuras de mapeamento do Primário e suas consequências para a psicanálise – Passo conceitual da nova tópica Primário / Secundário / Originário e seu alcance no Quarto Império.   29, 150 Causa Absoluta e causas múltiplas nos regimes do Haver e do Ser – ‘Emergência hegemônica do Originário’ no Quarto Império – Positivação do Sintoma Vira-lata.   30, 154 ‘Vetor da história hoje é no sentido da dissolução’ – Exercício de dissolução das formações.   31, 160 Formulação da tópica da Nova Psicanálise a partir do axioma Aàà – O trabalho teórico da Nova Psicanálise sobre as tópicas freudiana e lacaniana é de desconfiguração.    32, 164 Dissolução das formações no mundo atual – Comentário sobre o livro Fashion, Faith, and Fantasy in the New Physics of the Universe, de Roger Penrose – Modelo ou roteiro da natureza (Artifício do Haver) é ejaculação – Eleição de Donald Trump e seus vetores progressivos e regressivos.   33, 172 Cibernética é busca de redundância, psicanálise é dissolução (ana-lysis) de redundância – Movimentos de dissolução no Quarto Império – Circularidade

do Creodo Antrópico – Máquinas poderão ser o próximo Primário – Vigência do Princípio Antrópico resulta sempre em processo de autoconsciência do Haver.   34, 179 Modos de articulação do Inconsciente não são exclusivamente linguísticos. 

Anexos Sobre o Autor, 183 Ensino de MD Magno, 184

DATAS Os números abaixo correspondem às seções e datas dos SóPapos 2016 realizados na UniverCidadeDeDeus, sede da NovaMente:

Seções: 1 e 2: 23 janeiro – 3 a 5: 19 março – 6: 02 abril – 7 e 8: 16 abril – 9 a 11: 30 abril – 12 e 13: 14 maio – 14 e 15: 21 maio – 16: 11 junho – 17 e 18: 25 junho – 19: 09 julho – 20: 16 julho – 21 e 22: 23 julho – 23 e 24: 27 agosto – 25: 10 setembro – 26 e 27: 01 outubro – 28 e 29: 22 outubro – 30: 05 novembro – 31 e 32: 19 novembro – 33 e 34: 26 novembro.

1 Vocês estão estudando o texto Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, escrito por Lacan em 1953, e comentando sobre ele ter que dar respostas a vários autores. A Kojève, por exemplo. É, aliás, o que acontece a todos os pensadores. Hoje, podemos ver isto com mais clareza. Imaginem a pressão que ele sofria por ter, desde 1933, frequentado durante seis anos o seminário de Kojève. Logo após sua tese sobre a psicose paranoica, ele embarcou nessa trip. Para nós, é fácil ver, mas ele, Lacan, naquela época, tinha ainda que produzir o Lacan que conhecemos depois. Ele andava com Breton, Bataille, Klossowski, Balthus, Cocteau, etc., os maluquetes da cultura francesa, pessoal da pesada. Há, então, como sempre, briguinhas idiotas sobre quase coisa alguma. • P – Em dado momento do texto, Lacan foca a psicanálise como contida nos seguintes pontos: “Seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real”. Observem que a primeira frase é incompatível com as duas seguintes. A não ser que ele definisse mais claramente o que é fala. • P – É o que confere sentido. As duas frases seguintes exigem que a definição de fala seja esta. Nessa época, para ele, é fala oral, da língua. • P – Há esta referência, sim, mas é ambíguo. Lacan é ambíguo até para dar bom-dia. Nunca se sabe se ele está xingando. Nessa época, está fazendo um esforço enorme para reduzir a psicanálise ao discurso, à fala, à fala “bocal”. O decepcionante no Lacan estruturalista propriamente dito é isto. Tanto é que ele mesmo vai andando e acaba nas tripas do nó borromeano.

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• P – Na sequência, ele dirá: “O inconsciente é esse capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual seja: – nos monumentos: e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave; – nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência; – na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter; – nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história; – nos vestígios [traces], enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá”. É preciso muita fé na estrutura para dizer isto, que é compatível com a frase de Nietzsche: “Não há fatos, só há interpretações”. Como sabem, digo o contrário: “Só há fatos, não há interpretação”. Há, em Lacan, uma fé na interpretação, em restabelecer o sentido. É influência de Heidegger. • P – Influência também do primeiro Freud. Sim. Do tempo em que Freud acreditava ser capaz de capturar o sentido. Mas ele já tinha saído dessa. Observem que estamos falando de coisas sobre as quais já rolou muita água. Fica tudo lá longe. Como pode algo da segunda metade do século XX ser tão velho? É um sítio arqueológico, se não for um fóssil. O espantoso é repetirem ainda hoje, depois de tanta coisa que aconteceu e deslocou isso tudo. Aconteceu a morte do estruturalismo, coisa que os lacanianos não sabem. Aliás, não sabem de nada, são papagaios. Para alguém que acompanha o pensamento de Lacan, isso é evidente. Quando acompanhamos o pensamento seja de quem for, resvalamos, deslizamos. Acho essas coisas brilhantes e bonitas. Ao encontrá-las, fiquei encantado, mas está claro hoje que estão datadas. A última frase lida – “...e cujo sentido minha exegese restabelecerá” – é de uma pretensão tal. Jamais a exegese estabelecerá 16

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o sentido. É fé na interpretação, inclusive. Nietzsche dizer “não há fatos, só há interpretações” era algo brilhante naquele momento, mas como ele, que era contra qualquer coisa-em-si kantiana, pode dizer uma frase dessas? Isto porque dizê-la é dizer que jamais achará a coisa-em-si, mas que pode achar todas as consequências de seu trato com o quê, pergunto eu. Interpretação do quê? Ou seja, se não há coisa-em-si, não há como chegar a fato algum, mas, se só há interpretações, são interpretações do quê? Interpretação exige algum interpretável. • P – Uma interpretação de valor? O valor não é um fato? Se valor é oposto ao fato, é uma interpretação: é interpretação de interpretação... Valor é uma atribuição. • P – Isso que diz Nietzsche não é apenas anti-kantiano, mas também anti-comtiano. Augusto Comte era regressivo, hipostasiava a alma. É quase uma coisa-em-si. Passei para o lado oposto. Quando pensamos estar tratando de algo, estamos criando um fato novo. Mesmo ao produzir um valor, estamos criando um fato novo. Isso muda a Clínica. Não se vai fazer uma exegese que restabelecerá o sentido. Vai-se tentar remanejar de maneira que os fatos mudem de configuração, que são fatos novos, o que vai empurrando a vida. Para que tenho que acreditar que, lá no fundo, inconscientemente, há um sentido? Acreditar na coisa-em-si do sentido, no sentido enquanto coisa-em-si, no sentido em-si? Esta é a fé do estruturalismo, que há um ponto de chegada. Há, nele, um jogo de falta, etc., mas por que sua veemência no restabelecimento do sentido? É, no fundo, a fé de que se vai estabelecer a verdade. Não estou falando de Lacan, pois sua verdade desliza, ela é muito pessoal. Isso ainda tem compromisso metafísico. Parece Heidegger. • P – É da ordem do religioso. Tudo faz sentido. Lacan, no fundo, é um católico. Há sintomas que atravessam os tempos e, às vezes, falam alto: catolicismo, cartesianismo... 17

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Um francês culto é alguém infectado disso tudo. Nós temos outras infecções. É quase impossível para nós entender aquele momento de Lacan. O pouco tempo que convivi com essa gente deu para perceber, era tangível, o que acontecia naquele espaço. Infelizmente, quando dei de cara com aquilo, vi que estava moribundo, que tinha um cheiro de terminal. Já tive o vício freudiano, lacaniano, de interpretar, mas eliminei. O possível é fazer um fato novo diante do que é posto diante de você: apresentar com distorção, deformação... Não fazer assim, acaba virando o que o próprio Lacan está criticando nos outros que dizem que tal coisa é o Édipo, etc. É interpretativo e coagulante. Por isso que, contemporaneamente a Lacan, Deleuze, Guattari, Lyotard e outros começaram a dizer que aquilo era coisa de maluco, era uma prisão. Quando li o Anti-Édipo, vi que acabavam com isso tudo. Mas o que Deleuze e Guattari escreveram não termina com a psicanálise, e sim com esse tipo de psicanalista preso à interpretação. Lyotard também fez turbulência, embora menos. O AntiÉdipo é necessariamente um livro de época porque a complicação intelectual de Deleuze é grande. A Teoria das Formações torna aquilo simples. Muito que, em Deleuze é conceitual, nela é apenas conteúdo de uma formação. O mundo hoje é assim, cabe num desses aparelhos móveis que portamos. Por isso, falo de uma psicanálise portátil. É, aliás, algo que vem de Marcel Duchamp, inventor da valise, a obra de arte portátil. A suposição de interpretação é falsa. Ao interpretar, está-se fazendo outra coisa. Há um texto de Freud quanto a isso, Construções em Análise (1937). Observem também que o Inconsciente não tem tempo, é aqui e agora. Quando alguém relata sua infância, esta não interessa, e sim que, agora, ele está “infantil”, produzindo um teatro a respeito de uma suposta memória de algo pelo que passou e que já está todo estropiado, pois não era bem aquilo, era outro fato. Só há hoje. É o que diz a frase latina Carpe diem que, aliás, melhor, seria Carpe secundum. Só há o agora. É uma tarefa difícil e pouco ocidental ficar no agora. O Ocidente tem mania de conservação e as pessoas são muito nostálgicas do ontem, sobretudo quando têm alguma perda. É quando vemos mais a insuportabilidade do presente. A cultura oriental parece tradicionalista, mas é a cultura do agora. 18

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• P – No Ocidente há demasiada valorização da história. Mas o que é mesmo a história? Se história fosse algo que valesse, só haveria uma. Na verdade, é estória, ficção. Cada um aproveita supostos fatos só porque um outro contou. Jamais estive na Grécia clássica, mas como nos contaram sobre ela, acredito ou não. Quanto à história do Brasil, o que temos é um monte de mentiras. Há pedaços dela de que participei e vi que não foi o que dizem ter sido. Ou seja, estão criando um fato novo. Tudo é areia movediça, vamos lidando com os fatos, pois o resto é figuração. • P – Podemos acompanhar esses raciocínios na diferença que tentam fazer entre história e historiografia. Há uma corrente que diz que a distinção é desinteressante e até atrapalha, pois, na verdade, o plano do dito fato se mistura indissociavelmente ao narrado sobre ele, o qual é a historiografia. A historiografia se renova, inclusive, na possibilidade de inventar ou trazer o fato novo seja como descoberta do momento, seja como modo diferente de ver, que inventa outra história. É o problema de Heidegger com Historie e Gechischte, sobre o que já falei há tempo. Gostaria que ele mostrasse onde está a fronteira entre as duas. O que temos são autores referidos a seus gostos fazendo o que fazem. Sairá daí o que sair. A historiografia é tudo que se escreveu chamando de história. A pretensão de distinção data do tempo em que achavam que cabia estabelecer, como está no texto de Lacan, o fato histórico. Isto era Gechischte, a história de verdade. Interessante que Lacan declara não acreditar em história. Mas acredita no significante. • P – Você diz que só há formações. E o fato o que é? O fato é isto que acontece aqui e agora. E que, imediatamente, perdemos, ele escapa. Aí tentamos produzir fatos que consigam capturar o fato que perdemos. Fazemos cinema, filosofia, o diabo, para recapturar o troço, e não conseguimos. • P – Parece que a ideia de interpretação foi inventada por desconforto em relação às franjas, ela quer capturar as franjas das formações, totalizar. 19

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Querendo segurar, fechar o circuito. • P – Falando de fatos e da Teoria das Formações, lembrei-me de que Vila-Matas, em seu livro Não há Lugar para Lógica em Kassel, faz uma distinção entre causa e motivação. Diz que não interessa a causa, e sim o que motiva. O título é formidável. Vejam a tal história da arte, ela existe? Não! Sempre disse isto em minhas aulas de Estética, quando era professor. É uma invenção literária. Em Kassel, vê-se concretamente que isso não tem raiz a não ser que alguma Teoria das Formações possa comprovar... Já comprovou, aliás, pois há autores que, mesmo sem saber, estão na Teoria das Formações. VilaMatas é um deles. A única Causa que existe chama-se: não-Haver. O resto é tudo motivação. Fiz uma negligência em meu percurso, pois ouvia falar de certos autores que só agora estou estudando. Por exemplo, Aby Warburg, com Atlas Mnemosyne, e seu discípulo Georges Didi-Huberman, com Ce que Nous Voyons et ce qui Nous Regarde. Este, em português, O que Vemos e o que Nos Olha, perde o sentido que há em francês. Nous regarde pode ser o que tem a ver conosco e também o que está nos olhando, é o que nós olhamos e o que tem a ver conosco. O que estou dizendo sobre a Teoria das Formações está um pouco mais à frente, mas está nos trabalhos deles. Digo que só existe transa entre as formações: se estou olhando, só olho o que é olhado pelas formações que estão cá, e só é visível pelas formações que estão lá. Não é preciso de ninguém nessa jogada. Warburg, no início do século XX, começou a fazer uma história da arte radicalmente contra todas as histórias da arte disponíveis então. Ele afirmava a persistência dos sintomas através da história. É sempre a mesma coisa, os mesmos sintomas se repetindo. Os historiadores não fazem assim, dizem que isso passou para aquilo. Essa linhagem é, para mim, a Teoria das Formações avant la lettre. Com este ferramental, eles diriam melhor. É muita a falação deles.

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2 • P – Em nossa Oficina Clínica, realizada hoje de manhã, comentei o texto de Leonard Mlodinow, De Primatas a Astronautas, em que ele cita Noam Chomsky e Steven Pinker, para os quais a fala é um instinto, é como, para uma criança, a competência de ficar de pé. O argumento é que não existe sociedade em que não se fale, todas são falantes e orais. Nos termos deles, é mais da ordem do natural do que o fabricado posteriormente: a escrita é artificial e é o que produzirá a civilização. Em função disso, lembrei que a psicanálise emergiu com a questão da fala – a talking cure – e que ainda permanece hierarquicamente presa à oralidade e à presença física. Minha pergunta é: A quantas andamos em relação a isso, uma vez que as mudanças que a tecnologia promoveu na sequência trazem possibilidades de encontros e contatos virtuais em tempo real não disponíveis na época de Freud e Lacan? Primeiramente, há que definir Presença. As presenças estão se modificando. A presença física entre duas pessoas tem uma riqueza que a tecnologia ainda não entregou. Por exemplo, o cheiro, o gosto, a espacialidade... Por mais que se virem com 3D, não conseguem. Quanto a mim, faço questão da presença justamente porque o que está em jogo não é apenas a fala. Se fosse apenas ela, falaríamos por telefone, no qual, mesmo mediada, a fala em si é quase inteira. Acho bobagem, primeiro em Freud, depois em Lacan, o fato de o analista sentar atrás do analisando que fica no divã. Isto, embora tenha percebido que era por um vício que Lacan sentava atrás, pois prestava muita atenção ao que o analisando fazia. Às vezes, eu o via entrando em meu gesto. Ele acreditava no e interpretava com o gesto, sem dizer nada. Num filme sobre ele, acho que feito por Gérard Miller, uma ex-analisanda, já mencionei isto, fala sobre o geste à peau: Lacan se levanta, não diz nada e a toca no rosto após ouvi-la falar da Gestapo. Isto não é algo que Freud faria. Ferenczi, este sim, faria – e muito mais. Lacan, aliás, também, pois consta que comia analisandas.

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Voltando à questão do instinto da língua, temos, em nossos termos, a dizer que nada há no Secundário que não tenha herança no Primário. Em nossa espécie, trata-se de um animal que sofreu um traumatismo grave chamado Revirão. Os animais tentam oralizar, têm uma vontade de grito, de expressão. Quantos ganidos diferentes tem um cachorro? Os especialistas conseguem detectar quando querem comer, quando querem mijar: estão falando, há língua de cachorro. Já se entende muito do que um golfinho diz para outro, descobriram um verdadeiro dicionário da língua deles. Esta é a base, primária, etossomática, do que, mediante maior riqueza cerebral, anatômica, e com a entrada do Revirão, muito lentamente se tornará fala. Há que lembrar que somos a espécie que acumula e transmite. As demais não fazem isto. Leva milênios para um berro ser transformado em palavra. Surge um poeta traz um novo som e aquilo vai indo. Nossa espécie tem herança, os animais não têm, nada deixam a ninguém, morreu acabou. Só têm herança no Primário, no etológico, e não herança produzida. Eles não acumulam, isto é, não têm cultura, a qual é lata de lixo: um monte de porcaria acumulada dentro de casa. Lacan modifica muito do que diz nesse texto que vocês estão lendo, quando, bem depois, diz que é preciso prestar atenção à entonação, ao tom com que a pessoa diz o que diz. • P – Os praticantes não estariam por demais acomodados ao modelo oral e presencial da emergência da psicanálise? Isto, mesmo na contramão do que acontece na tecnologia? Não haveria, hoje, uma resistência das pessoas a comparecer num local, o que se torna algo cada vez mais difícil, já que a escola, as empresas, etc., estão mudando e a psicanálise parece insistir num setting muito conservador? A resistência à psicanálise, às vezes, é do trânsito das ruas, e não da pessoa. Entretanto, fazer uma análise por Skype, é algo a que me recuso. Vez ou outra, atender alguém que já conhecemos, é possível, mas não conduzir uma análise por inteiro. O quadro do monitor é pequeno e não captamos, por exemplo, certos titubeios do corpo que acompanham a fala e nos dão indícios importantes. • P – O vetor não está apontando para uma grande transformação nisso?

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Pois que se transforme primeiro. Ainda não se transformou o suficiente para incluir os pontos que mencionei. Se acontecer, aplaudirei, pois será possível ficar em casa diante de um aparelho capaz de nos dar todas as dicas do fenômeno. Há que considerar que é impossível educar uma criança à distância. Há um animal lá presente. Essa lei de não se poder mais bater nela é um erro porque o Primário precisa de sinais. Não há que maltratar a criança, mas ela, de vez em quando, levar um safanão, um aperto, um cascudo, faz associar coisa com coisa. A chamada educação a distância – mal chamada assim, aliás, pois é ensino, instrução a distância –, esta, é possível: é transmissão de formações secundárias. Ela já existe há muito tempo: ler um livro, por exemplo. O impossível é levar adiante o processo educacional de uma criança à distância. Há um animal ali e as transas têm Primário, Secundário e Originário. Só depois de acostumar-se é que uma quantidade enorme de coisas pode ser tomada apenas pelo Secundário. Vejam um exemplo bem tátil ainda. Primeiro, encontrei Lacan como livro que estudei bastante, o que foi muito diferente de topar com ele em análise e ver seu seminário. Nem filme reproduz direito essa temporalidade. Havia a entrada dele no seminário: umas mil pessoas no auditório da Faculdade de Direito, que era muito comprido, e ele vinha pelo fundo, atravessava a multidão. Certamente, achava importante ter esse contato. Portanto, não se justifica a impressão de ele ser um cara distante. Ele também fazia grossas sacanagens com os analisandos apenas com gesto. Uma vez, eu saía da conferência de alguém e ele estava na esquina, de frente para mim, falando com um grupo de pessoas. Fiquei na dúvida se o cumprimentava ou não. Ele sacou isso e, acintosamente, virou as costas para mim. Por outro lado, alguém dizer essa experiência por escrito é quase impossível. Ele se dizer. Os próprios poetas têm enorme dificuldade para dizer aquilo que pegam. Havia também o trato pessoal da sala de espera de Lacan. Ele, o tempo todo, lá funcionando: o ritmo com que chamava ou não alguém, o berro que dava para alguém na frente dos outros, era um esporro enorme com ódio, todos ficavam em transe.

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3 Sujeito, se não for uma noção moderna, é algo que recrudesceu a partir do século XVII... • P – Alain de Libera, em L’Invention du Sujet Moderne (Paris: Vrin, 2015), diz que Agostinho já tinha a ideia de uma alma substancial, a qual servirá de base para o que Descartes e Kant vão formular como Sujeito. O golpe da filosofia moderna – que ele localiza em Kant, e não em Descartes – é o de uma empiricidade, uma pessoalidade, uma hierarquia, que antes não havia. Havia, sim, uma ideia de interioridade meio difusa na Idade Média. Na Grécia, havia a ideia de hupokeimenon (Aristóteles)... Isso é filosofia demais, não nos interessa tanto. Os elementos que você mencionou parecem mais formações precursoras da ideia de sujeito. Embora o sujeito cartesiano não esteja tão construído como o kantiano, tenho a impressão – que pode estar errada – de que sujeito propriamente dito é coisa do século XVII. Descartes não acha que o logos pensa, e sim que ele, Descartes, pensa. Há um troço ali dentro que pensa. Aí todos, sobretudo os franceses, ficaram obrigados a ter sujeito. Lacan se esforça para arranjar lugar para ele num intervalo, num buraco. Para mim, isso é, conforme Nietzsche, o império da gramática sobre a fala. Como imaginar uma língua que não tenha isso? A impressão que tenho é de que, como a gramática tem sujeito, predicado, objeto, etc. para poder situar os acontecimentos de fala, as pessoas começaram a se identificar com o sujeito gramatical. Foi um processo que, de tanto repetir a língua, que é construída assim, identificou-se com ela. Mas, como já mencionei várias vezes, há línguas que não funcionam assim. Pena que não sei falar nenhuma delas. • P – Quanto a isto, Jakobson fala em enunciado, enunciação e shifter. É a tentativa de dizer que, quando você enuncia, há sujeito, mas quem produz o enunciado é outra posição de sujeito, que ele chama de enunciação. 24

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Usei muito o texto dele nos anos 1970, mas hoje vemos que, na verdade, trata-se aí de alma do outro mundo. • P – Sujeito é uma característica do pensamento ocidental. Voltando a Nietzsche, faço a suposição de que uma de suas críticas mais veementes à metafísica seja a falta de presença das outras formações. O Ocidente é viciado em Secundário, mas Nietzsche coloca de novo o Primário em jogo. Para ele, a metafísica não tem corpo, é uma loucura. E Kant é isso, apesar de suas tentativas de escape. Em meu trabalho, como sabem, é essencial o retorno do Primário com força. As formações primárias são poderosas e recalcantes dos movimentos secundários. Se tomarmos o percurso do cristianismo patrístico, por exemplo, veremos que é no sentido de eliminar o corpo, o Primário. São exercícios espirituais só para a alma, a mente, o espírito. Mas o Primário não pode e não tem que ser eliminado. Ao contrário, tem que ser conjuminado com o Secundário, pois funciona e é poderoso. Os romanos antigos cultivavam muito o Primário, mas, na hora de o Secundário funcionar, eram artificialistas. Se não fosse Constantino, Julio Cesar teria inventado o Terceiro Império sem o cristianismo. O Direito romano era ficcional: os romanos entendiam que estavam jogando ficcionalmente com as coisas, não procuravam verdade nos acontecimentos. Isto seria suporte bastante para a invenção do Terceiro Império sem cristianismo. Para este, a carne nada vale, e nele há o céu para irmos. Deu-se então essa doença mental do Ocidente de confundir as possibilidades de articulação linguageira com a, digamos, realidade da Pessoa. Tomemos a tópica de Lacan, Real, Simbólico e Imaginário. É cristã demais porque, nela, tudo se passa no mental, é res cogitans. A psicanálise, então, se resolveria na manipulação da língua, da linguagem. Depois, é claro, ele fica meio assustado com aquilo e começa a querer engrazar no corpo: Encore, un corps. Entretanto, ele fez questão – e não podia jogar fora, pois era tarde demais – de continuar a sustentar a ideia de sujeito com seu objeto a que fica afetado pela relação significante. Por isso, o quaterno de Lacan é: S1, S2, a, $. S1 e S2 com um buraco no meio que se chama Sujeito ($), e daí cai o objeto (a). Ora, observem vocês – que estão aí estudando o texto dele Subversão 25

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do Sujeito e Dialética do Desejo (1960) – que isto não subverte sujeito algum. Se olharmos para trás, veremos que é subversivo, mas é Aufhebung, pois retira sustentando. Quando, após o “suicídio” do estruturalismo, me dei conta disto, ficou claro que Lacan é bem século XX, das ciências humanas, e com resquícios cristão e católico. Nesse escopo, ele fez muita coisa, quase conseguiu se safar, mas tudo isso passou, está datado. Observem também que Lacan, nesse texto, está se referindo a Hegel, com sua história da história. Não parece que Hegel dá a volta e cai no mesmo lugar? A história tem até sentido, tem até aquele de onde Marx partiu... Ele chegou a desenhar o sentido da história com a revolução do proletariado como algo que estava destinado. Vejam que é coisa de maluco, é psicose. O passado está ficando longe demais, ele já foi mais perto. Antigamente, ele era ontem, mas agora, ao olharmos para trás, cadê ele? O conhecimento passado está ficando muito longe. Do século XX para cá já se passaram dois séculos.

4 Tenho em mãos o livrinho de Carlo Rovelli, físico italiano que escreveu Sete Breves Lições de Física (Rio de Janeiro: Objetiva, 2015). O autor sabe apontar os focos principais do pensamento da física hoje, inclusive com as heranças do século XX, de modo bastante simples e fundamental. (En passant, esculhamba com a universidade, que, segundo ele, só atrapalha as ideias). Recomendo que leiam, pois, se conseguirem fazer comparações, encontrarão os indicadores da mentalidade NovaMente que venho trazendo. Entenderão o porquê do Pleroma, da Teoria das Formações... Seria pretensioso se dissesse que estou 26

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transportando da física o que digo, pois cairia na crítica feita pelo físico Alan Sokal no final dos anos 1990 (quanto à impostura da utilização de conceitos matemáticos e físicos em textos literários e filosóficos, sobretudo de autores franceses). Mas, no texto de Rovelli, trata-se da mentalidade com a qual se olha o Haver e o mundo, a mentalidade que carreou para o século XXI – coisa que está fora da época linguística e linguageira de Lacan. É uma mentalidade inteiramente compatível com a psicanálise que produzo, que está fora da postura anterior. Como sabem, tive que incluir uma tópica de Primário, Secundário e Originário para encarnar o Inconsciente e o Haver. É claro que, por ser alguém de certa formação nas ciências humanas, Rovelli, no último capítulo, começa a falar em sujeito. Mas, coitado, ele não conhece a NovaMente. Apesar disto, meu Pleroma está quase desenhado no livro, a Teoria das Formações indicada várias vezes... Repito que o livro é esclarecedor do processo de produção da Nova Psicanálise. A ideia de cosmologia que ele apresenta é a que eu disse no Pleroma. Existem outras, mas essa é fortíssima hoje. A NovaMente tem inspiração na concretude do Haver, o que escapa demais do estruturalismo. É, aliás, a crítica de Nietzsche, de Deleuze, àquele estruturalismo mais puro de Lévi-Strauss, Lacan, etc., que toma tudo pelo simbólico. O pensamento de Lacan é católico, por ser trinitário, quase que Pai/Filho/Espírito Santo. Esse negócio de Pai, em Lacan, foi longe demais. É um rabo de Segundo Império. Basta ver algo que repeti durante anos por ter aprendido assim, mas que chegou uma hora em que a pergunta se colocou: o que a foraclusão do Nome do Pai tem a ver com a foraclusão da lei? É uma forçação de barra de seu seminário sobre as psicoses (aliás, correta, pois era para meter aquilo no paradigma em que ele estava pensando). Mas não há isso de significante que não entrou. • P – Quais foram suas balizas para fazer a virada que você faz por volta de 1982 com a introdução do Revirão? Isto antes ainda de dar uma arrumada com o Pleroma, em 1986. Foi o retorno a mim, o retorno de Freud. Pode parecer maluquice, mas repito que tudo isso foi produzido aos dezessete anos, ainda que com outros nomes. Naquele momento, eu estava envolvido com as ciências – matemática, 27

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física, etc. – e, certamente numa crise meio psicótica, inventei uma teoria. Se alguém a lesse, quase não reconheceria que era o que está na NovaMente. Vamos mudando para obedecer ao mundo e, de repente, vemos que há que voltar para aquilo. Nessa época, eu estava na Escola Militar e meus colegas me chamavam de cientista maluco. Mas se Lacan não pediu para ser outro, por que teria eu que ser? Freud não pediu para ser outro, e você, se puder, retorna a si mesmo. Si-mesmo não existe, é maneira de dizer que você caiu no buraco que lá já estava. O Wo Es War, Soll Ich Werden, de Freud, é isso: cair no buraco de onde você pensou que tinha saído.

5 Quando se mora num país analfabético como o Brasil, fica pior ainda ver todos perdidos no mundo. Além do mais, a queda radical dos parâmetros, dos valores, etc., deixou todos muito cínicos. É prato feito para os psicopatas (como, aliás, toda situação de poder o é). O que vemos é a psicopatia no poder. Parece que esse pessoal não tem neurônios-espelho, neles a empatia é zero. A facilidade com que trocam de casaca – não por uma postura ad hoc – é no sentido de interesses estritamente próprios. Quando falo em pensamento ad hoc, que joga com as formações, é no sentido da solução de algum problema, e não apenas de meu bem-estar ou meu poder. Hoje, o que acontece é que nem a ideologia está em jogo. Antes, para os comunistas, por exemplo, a luta era ideológica, neurótica, ou mesmo psicótica. O que vemos aqui é uma vontade psicopata de si que tem o mesmo design do que acontece com o mundo contemporâneo (só que a saída para o mundo não é psicopata, e sim diferocrática). O design é parecido, caiu sobre todo o planeta, mas qual é seu 28

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vetor, sua aplicabilidade? A saída é morfótica, é pela Morfose Progressiva, e não adianta querer voltar para a neurose ou para a psicose. Então, repito, como o psicopata vetoriza, aplica, esse design? O vetor vai no sentido puro e simples de se apoderar dos poderes. O design progressivo – que é o mesmo de que o psicopata se aproveita –, ele, é empático, e não anti-pático. Não é nem Estacionário, nem Regressivo, e sim um movimento. E como acabou o Terceiro Império e o Quarto entrou no mundo, aí se instalou em meio a uma bagunça generalizada. Os psicopatas, então, em vez de procurarem uma solução aqui e agora, se aproveitam em benefício próprio. O que fazer se o momento é necessariamente Progressivo? Basta ver o que acontece hoje como retorno das religiões enquanto constituição do Estado. Isto é regressivo, é psicose. Por outro lado, os Estados constituídos são Estacionários. A Europa, que é Estacionária, olha para o Oriente, vê que lá é tudo psicótico, e não sabe o que fazer. Mas não há mais volta. Há que fugir correndo para a frente, pois, se voltar, será para a barbárie. • P – O capital e a libido são Progressivos? Quanto a isto, Lacan acertou. O Inconsciente é progressivo. Não adianta espernear, cabe saber que ele é assim. Isto, para ser possível limitá-lo. Não se vai acabar com o capitalismo, que é doido e para o qual vale tudo. Há, sim, que, dentro dele, produzir limites para não prejudicar demais. É a mesma questão que se coloca para uma pessoa de ter que limitar suas moções inconscientes. Se soltar a franga, fica perigoso. Aí é que é útil nossa noção de Juízo Foraclusivo. • P – Já as religiões são Regressivas... Vejam o caso do Chicão, que governa um Estado Regressivo. Entretanto, dentro de sua Regressão, ele é bacana, moderninho. Enquanto a outra religião dá uma de psicótico brabo, ele finge que não é, e diz que é o futuro. Por exemplo, fala para os jovens que eles devem ser revolucionários – o que, para ele, significa: voltar para a Igreja. Então, quem é mais cínico? A sobrevivência desses dinossauros é espantosa – e é a maioria da humanidade ali metida. Então, apesar de os parâmetros anteriores terem se perdido, eles 29

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os ficam repetindo. Qualquer desses aiatolás é múmia e a Igreja finge ser moderninha por estar no Ocidente, mas ambos são a mesma coisa. Por outro, os evangélicos catequizam os pobres... A igreja católica também começou assim. Um Mangabeira Unger acha isto bom por manter esse pessoal assim seguro, contido. • P – A contenção é Regressiva? Contenção ou é processo de recalcamento ou é Juízo Foraclusivo. Faz parte de meu bom comportamento eu saber me limitar. Onde vou parar com isso? Regressivamente, estacionariamente ou progressivamente? Como a espécie é louca, isso que está existindo aqui agora entre nós, por exemplo, só existe porque há alguma contenção. Se não, estaríamos não sentados à volta da mesa como estamos, e sim nos estapeando. Não é isto que diria um Hobbes? • P – As leis e o Estado são contenções recalcantes? Sim, mas não precisam ser Estacionários ou Regressivos. Esta minha frase é esquisita, pois o pior é que ainda é preciso ser assim. Não temos uma humanidade produzida. O que temos é um bando de macacos, uma espécie muito retardada. Qual é a resultante política de qualquer situação no Brasil, sobretudo? Hoje, a extensa maioria está contra a situação tal qual ela aí está. Portanto, a tendência é esse lado conseguir algo. Mas se lhes perguntarmos por que estão aqui ou ali, veremos que não fazem ideia. É tudo sintomático, ou pessoal. Antes, a pessoa estava na pior e, depois, galgou um degrauzinho. Agora, ela está feliz só porque galgou. Vejam que as mentalidades são proporcionais. Quando se tem um mínimo de lucidez, mesmo que receba algo, você achará que está faltando. Não há garantia de associação entre as formações nas pessoas, elas são dissociadas. Alguém pode ser um gênio em física, e uma besta quanto a religião. É tudo encosto, depende do santo que baixar na hora. Ele não consegue fazer uma formação conversar com outra. Em casos de dupla ou tripla personalidade, por exemplo, a dissociação produz coisas terríveis. Uma personalidade pode ser brilhante e a outra malévola. Como as duas não conversam, aquilo faz mal à pessoa. Não é comum nos darmos conta de que, muitas vezes, quanto a tal assunto, somos uma pessoa, 30

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e, quanto a outro, somos outra. Todos temos um diabinho dentro, todos somos ruins, monstros. Fernando Pessoa sacou isto bem dentro dele e colocou para falar. Como, às vezes, a dissociação está no Primário, é preciso associar no Secundário para haver um mínimo de contenção. Já lhes falei sobre o que é um transexual infantil – e cada vez aparecem mais casos –, isto é, um garoto ainda pequenininho dizendo que é de outro sexo que não o anatômico por não suportar o seu. Ele é primariamente dissociado: o Autossoma é uma coisa, e o Etossoma outra. Aliás, ninguém é lá muito associado. O pessoal finge... O oposto é o lado do fanático, daquele que se considera absolutamente determinado pela anatomia. Até Freud caiu nessa ao repetir que a anatomia era o destino. • P – Dissociação é diferente de denegação? A denegação não ocorre entre duas formações, e sim dentro da mesma formação. A dissociação não precisa ser no Primário, pois o próprio Secundário é cheio de formações que jamais conversaram com outras. Percebe-se isto em qualquer pessoa, basta pegá-la distraída. Por exemplo, uma dissociação em nossa própria história é existir por aí uma psicanálise cristã.

6 Vocês, que continuam estudando o texto Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo (1960), observem que a frase – “o desejo do homem é o desejo do Outro” – foi formulada por Lacan, mas, praticamente, está em Hegel.

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• P – Diz Hegel que é como se a natureza fosse idêntica a si, e o homem é esse ser que nega, que nadifica as coisas e, no que faz isto, transforma-se. É o que chamamos de Revirão. • P – Mas não é uma negatividade? O Revirão, em última instância, é não: Haver / não-Haver. • P – Há aí uma categoria de Ser, que é pensada a partir de uma dialética, de uma lógica da negação, de Hegel, e de leitores hegelianos de Lacan como Vladimir Safatle... Isso existe até hoje. Está aí no Brasil, sobretudo por causa da vontade de Estado que há em Hegel. O pessoal interessado em luta de poder vai por essa via. Há neles uma pega e um manejo do Estado. • P – Mas o que Lacan valoriza em Hegel é a questão do desejo, da experiência... Sim. A última vez que xingaram Lacan de hegeliano, ele respondeu taxativamente que não era, que era anti-hegeliano. • P – Mas Hegel está na ideia de fim de análise, que tem a ver com seu fim da história. Por isso, Lacan inventou o tal fim de análise, que não havia em Freud, e que não é para haver. A única justificativa que deu para considerar fim de análise foi a viragem de analisando a analista. Para mim, isto nada justifica. Por isso, troquei esta imagem pelas ideias de Análise Propedêutica e de Análise Efetiva. A Propedêutica caminha até a pessoa incorporar a possibilidade de revirar, de indiferenciar. Depois, tem que continuar fazendo isso. A possibilidade tanto de revirar quanto de indeferenciar é algo que as pessoas não têm mais porque a Morfose Estacionária mandou parar desde a infância. Quando alguém consegue se virar sozinho, está na Efetiva. Fim de análise é balela, não existe. Lacan criticou todos os rituais da IPA e acabou inventando o chamado passe, que é algo puramente ritualístico. Não há modo de se decidir sobre o passe de alguém. É o tipo 32

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de lugar que é inapreensível. Vemos antes e depois, mas não temos como ver o momento da mudança. Vemos, sim, que mudou, mas não podemos apreender a mudança. Ela é evento. E evento não tem rosto. O processo, seja de quem for, Freud, Lacan, etc., é analítico. Em sentido lacaniano mesmo, há discurso analítico quando há progresso de conhecimento. Lembrem-se de que a história do psi é ainda muito curta, amarrada e Estacionária. Passos importantes foram dados, mas a história ainda é retardatária se comparada à da física, por exemplo. Nesta, há esforço de análise do dito para se poder dar um salto. O difícil não é inventar o novo, e sim livrar-se do velho. Quando se consegue liberar a mente do conhecido, o salto é fácil e o novo conhecimento começa a brotar. O difícil é fazer análise – isto é, livrar-se do Estacionário –, mesmo numa física. • P – Falando da sua Análise Efetiva, temos no Seminário O Pato Lógico um conceito de perversão que vai sendo deslocado até chegarmos aos SóPapos 2013, em que você propõe um novo conceito, o de Autarcia. Sim. O mesmo vale para a história do sujeito em meu trabalho. Desde o início, vocês podem perceber o nítido esforço para se livrar dele. Fiquei inventando várias coisas até que, um dia, tive que dar-lhe um chute na bunda, mandá-lo embora. Só pude fazer isto por ter condições de fazê-lo, após tanto analisar a ideia de sujeito dentro de meu percurso. Hoje, para mim, é uma ideia inconcebível, uma velharia, uma baixaria, um horror. Digo isto porque, desde que nasceu até o dia em que o matei, a ideia de sujeito foi a contrapartida necessária da duplicidade do pensamento – que é mais claro em Descartes do que em qualquer outro – quanto a corpo e alma. O melhor que Descartes consegue é falar em res extensa e res cogitans. Suas ideias de sujeito e objeto são compatíveis com corpo e alma. Se não se acreditar em alma – muito menos de outro mundo –, o sujeito morrerá. Quando nos tornamos um pensador monista como Espinosa, essas duas categorias desaparecem da frente. A visão passa a ser de tal maneira que elas não existem. • P – Hoje no Brasil, é como se a ideia de sujeito ainda vigorasse. Há crimes políticos que parecem não ter sido cometidos por ninguém. Não se sabe a verdade. 33

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Mas não há sujeito algum aí. Há, sim, Pessoas, como chamo. Estamos, então, considerando Primário, Secundário e Originário, e que, portanto, as Pessoas vivem na relação das transas dessas formações. Coisas como a verdade são aquelas que ficam estabelecidas como tais. Antigamente, pensávamos que as ciências duras, por exemplo, eram exatas. Isto não existe, pois são tão conjeturais, ficcionais, quanto qualquer outra coisa. Na história da física, que é o lugar de reconhecimento da dureza e da exatidão, a verdade já deu inúmeros saltos. Isto porque não é verdade? É verdade, sim, mas apenas aquela que pode ser estabelecida como tal. Por isso, a ordem jurídica pode errar, colocar um inocente na cadeia. No jogo do estabelecimento da verdade, aquilo caiu na cabeça dele. As pessoas ficam perseguidas pela ideia de justiça, mas esta é apenas algo que desejam. • P – Segundo a Teoria das Formações, a ideia de imputabilidade não arrola todas as formações. Por isso, justamente, é uma imputabilidade. Preferi trocar essa tralha antiga pela Teoria das Formações, que, aliás, é algo evidente na física, embora os autores nem sempre percebam. Basta ver o livro de Carlo Rovelli sobre o qual lhes falei da vez anterior. Depois de explicar tudo com clareza de Quarto Império, de século XXI, ele fala em sujeito. Ou seja, durante sua apresentação das questões da física, ele fala de uma mentalidade na qual não há sujeito ou objeto, e sim apenas relações, transas, mas, no fim, por não saber como dizer, traz o sujeito que, este, não é compatível com o que explicou antes. Por que, então, é preciso dar passos na teoria? Se tirarmos sujeito e objeto da teoria de Lacan, não há a teoria de Lacan. Estas duas categorias sustentam seu discurso até o final, mesmo que ele tenha tentado, sem conseguir, dissolvê-las. Consegue, sim, abstrair demais. O objeto vira objeto a e o sujeito um intervalo entre significantes. Mas lá continuam. Há lá alma de outro mundo, espírito (de porco)... A mentalidade do Quarto Império, no qual estamos entrando, é que nada há aí dentro, não há hupokeimenon, subjectum, é tudo para fora. Até hoje, quem deu esse passo com mais clareza foi Deleuze ao trazer o maquinismo e o rizoma no Anti-Édipo. Mas são metáforas que 34

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ficaram velhas, das quais a Teoria das Formações está livre por não ter conteúdo semântico. São apenas formações, resta ver quais são aquelas em jogo. Isto, sempre lembrando que não se dará conta de todas elas, pois, além de polarizar uma formação – que, por sua vez, é sempre um conjunto de formações de formações, no qual nunca saberemos qual é a menor formação (do mesmo modo que a física não sabe qual é a menor partícula) –, focaliza-se, mas há uma franja enorme que, de modo algum, nos deixa ver todas as outras formações possíveis que estejam em jogo. Aí inventamos, por exemplo, a ordem jurídica. Para-se em tal ponto, ficciona-se e coloca-se a pessoa na cadeia. Quem é o culpado de o ladrão ter roubado? Não pode ser aquele que tinha o que ele roubasse? Tentem dar conta disto. Se escutarmos analiticamente alguém, quantas vezes não deixaremos de, por exemplo, ver que a vítima é o assassino? Já, no procedimento da ordem jurídica, o que é significante é alguém ter matado outro. • P – Não é o mesmo que dizer que a mulher estuprada é que é a causadora do estupro? Aliás, é o que diz Lacan quanto à mulher ser a causa, pois ela é que é o objeto a. Esta é uma das indecências da ideia de sujeito-e-objeto. Como levantar o processo que resultou em determinado ato? Se tomarmos os códigos civil, penal, etc., veremos que estão arrumados da mesma maneira que a sexualidade na cultura. O fato de alguém ter nascido com tal ou qual anatomia determina do mesmo modo que, ao matar alguém, parece que seu ato de matar é que é o responsável. Não necessariamente, e a ordem jurídica não tem discurso para dizer que o culpado é o defunto. Um ou outro jurista, às vezes, chega perto de dizer isto. Então, ao buscar entender o sexo como sexualidade de uma pessoa mediante a anatomia, estamos fazendo uma barbaridade, pois ela é apenas uma das formações em jogo. E ela não é congruente com as formações etossomáticas e com as formações secundárias, por exemplo. A pletora de formações que entra na determinação da sexualidade de alguém é enorme. Assim, ao definir a sexualidade de uma pessoa pela anatomia – besteira, aliás, repetida por Freud: a anatomia é o destino –, tomamos apenas 35

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uma formação disponível como sendo a determinante. Não é, nunca foi. Tentei sanar este erro dizendo que não há associação necessária entre as formações. Mesmo dentro do Primário, Autossoma e Etossoma já não estão necessariamente associados. Depois, ainda vem todo o fato do Secundário, que chamam de cultura. Baseado nisto, eu disse que a homossexualidade não existe. Só existe hetero. A homossexualidade ou é um desejo infinito ou um erro de perspectiva. Isto porque toda sexualidade é sui generis, ou seja, é singular. Não há dois, nem três gêneros. Levantadas as formações em jogo, a sexualidade de um nada tem a ver com a do outro, é tudo hetero. • P – É comum a transição (que é como chamam) de sexo entre os jovens em Londres. Suponho que aqui também. Uma psicanalista inglesa me disse que, na escola de sua filha, uma menina, a Hebe, virou Jonathan. Entretanto, o Jonathan se veste de mulher... Ela quis virar homem para poder ser travesti. Para ela, o bacana é ser travesti. Como estabelecer um padrão de sexualidade? É impossível. Há certos grupos que se juntam em tribos, mas, entre eles, são completamente diferentes uns dos outros. Eles se estranham. Quando digo que o paradigma da psicanálise é sexual é que enxergamos tudo pela sexualidade. Então, se entendemos o deslocamento radical da sexualidade de uma pessoa em relação a outra – ou seja, que o sexo é sui generis –, acabamos com sujeito e com objeto. Isto porque essa dicotomização é da mesma ordem, e é forçada pela primeira aparência (o semblante, como chamava Lacan): corpo / alma, macho / fêmea, masculino / feminino... São coisas que apenas podem interessar à ordem reprodutiva, a qual, aliás, foi subvertida pelos anticoncepcionais, pela gestação in vitro, etc. Qual é o sexo da proveta? Após toda a trabalheira do pensamento até o final do século XX, realmente os parâmetros foram explodidos, realmente os paradigmas são múltiplos. O processo veio de tal maneira se tornando complexo que o troço explodiu. O que temos, então, são miríades de formações. Tratem, portanto, de escutar o analisando segundo as formações que ele apresentar, pois não temos parâmetro já dado para ele. Ele fala algo, podemos entrar na dele, e aí pode ser que caminhe, mas, repito, não temos parâmetros ou paradigmas para ele. Judith Butler, por exemplo, ainda 36

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discute gênero. Isto por ser filósofa, e não ter entendido que a sexualidade é sui generis. Jamais encontrarei alguém com a minha sexualidade, ou mesmo com o sexo oposto. Por isso mesmo, Lacan já tinha avisado que a relação sexual é impossível. O que temos é esfregação sexual, mas não relação, pois não bate. Estamos sempre transando heterossexualmente com o outro. O ideal seria conseguir ser homossexual, encontrar outro compatível, ou, pelo menos, o contrário, que encaixasse direitinho, mas isto é impossível, não existe. Todas essas formações de segurança antigas pifaram e as pessoas não estão conseguindo abandoná-las. Cada um tem que fazer um grande esforço analítico não para mudar de ideia, e sim para abandonar a ideia velha. Esta, quando se desgasta, a outra aparece, pois está na cara. É o que dizia sobre meu esforço em largar uma ideia e daí aparecer outra. O esforço é analítico, de reconhecer a insustentabilidade da ideia já tida. Ela é insustentável, sempre. No entanto, ela serviu. Por isso, digo que sou gnóstico e apoio a gnoseologia. É o que a gente tenta saber que segura as coisas, e, ao mesmo tempo, cria um sintoma Estacionário. Há, então, que re-saber, que reconstituir o saber – mas precisamos do saber. Cético não é algo que exista, é mentira. Basta conversar com um para ver que se trata de um neurótico que acredita até em papai noel. O próprio Sócrates diz “só sei que nada sei”, mas é uma asneira: ele é um poço de saberes. É urgente, então, na cabeça das pessoas, a reviravolta de século XXI, de Quarto Império. O mundo, em sua globalidade, está (se) virando sozinho, e, se não acompanharmos, seremos um fóssil dentro dele, tudo ficará incompreensível. A primeira atitude é reconhecer que o saber que tínhamos constituído é apenas um saber constituído, não há que acreditar nele como faz o neurótico que paralisa na hora por ter crença no sabido. Uma neurose é algo que estaciona num conhecimento. O conhecimento constituído não precisa ser criticado, pois, em seu modo, é aquilo mesmo. Lacan, por exemplo, em seu tempo, disse tudo certo, só que não serve mais. Apenas isto, é superado. A ideia de superação não é a de aniquilar o já produzido, de xingar o predecessor. Nem em Nietzsche é destruição, é, sim, superação, dar outro passo, ir a outro lugar, conseguir olhar com isenção, sem crença. Na história da psicanálise, mesmo aqueles 37

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personagens mais fantasmagóricos lá do início – Charcot, por exemplo – estavam tentando pensar para além do já dado. Só que as circunstâncias mudaram, e não é bem o que diziam. O saber dito agora é outro. O fato de exigir que a formação nova abranja o máximo possível, imediatamente faz com que ela, sozinha, se rasgue, extrapole. Quando se apresenta um conceito e se começa a exigir que ele possa arrolar o máximo possível de sua competência, ele se abre sozinho, escapa de si mesmo, se arrebenta. O conceito é uma fruta deiscente. • P – É o contrário de Hegel, que acha que o conceito tem uma história e, ao se desenvolver, chegará ao saber absoluto. Hegel tem um livro intitulado Curso de Estética: o belo na arte, que estudei passo a passo. É lindo, só que não presta. Ele tem tanta certeza de poder canonizar as artes – seu valor, seu estatuto... – que aquilo fica empedrado. Diz ele que a arte das artes é a arquitetura e toma o Partenon como exemplo. Se tomasse um templo da Índia, ficaria esquisito. Sou formado nessa área e, dado o academicismo artístico do mundo – nós aqui copiamos da França –, tínhamos que fazer na prancheta a arquitetura analítica de cada época, re-projetar o Partenon, o Gótico, o Românico... Hegel acredita nisso, fez o sistema das artes, que ainda está de pé por aí. Para ele, é só caminhar que se chegará à arte absoluta. É, hoje, uma bobagem total porque a arte acabou. • P – Mas não há uma história nisso? Não. Há, sim, registro. Basta andar pelas ruas das cidades da Europa que vemos o gótico, o românico, tudo lá registrado. Voltando ao que eu dizia, há duas maneiras declaradas por Umberto Eco de a arte ter acabado. A primeira, é a morte da arte, que aconteceu às produções ditas artísticas, sobretudo pós-Marcel Duchamp. Não se está interessado em nada de estética, e sim numa ideia. Trata-se, tirado de Leonardo da Vinci, de cosa mentale; e, tirado de Marcel Duchamp, de conceitualismo. Ou seja, a arte morreu, o que ficou foi o conceito. Os críticos, então, rejeitam os artistas que não são dessa ordem por quererem que as produções artísticas sejam conceituais. No entanto, o outro lado sobrevive: a possibilidade de 38

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fruição estética. Muitos artistas ainda estão nessa, continuam fazendo óleo sobre tela, por exemplo. Mas, se é preciso defender a posição estética em contraposição à ordem conceitual, é porque aquela também já morreu. Duchamp foi quem assassinou a arte: readymade é o que explica que o que quer que esta espécie faça é arte, articulação de algo com algo. A espécie é artista, como está no radical ART, do qual lhes falo há tempo. A fruição estética é muito ampla, pode ser apenas um corpo lindo. E comê-lo será obra de arte. É impossível estabelecer fronteiras aí como era a pretensão de Hegel. Por isso, aliás, Schopenhauer vomitava ao ouvir o nome dele. Temos, então, os dois modos de a arte ter acabado: sua morte, e a fruição estética tentando se sustentar de algum modo. Para sair da tese/antítese/síntese, de Hegel, coloquei no início dos anos 1990: tese + anti-tese / ek-tese = pró-tese. Salta-se fora (ek) e aparece uma prótese. Vejam que, repetindo, há que entrar urgente no Quarto Império para simplesmente podermos conviver. O excesso de guerras, de violência, que acontece no planeta é a velharia, o retrocesso, insistindo em se manter hegemônica. Como lhes disse da vez anterior, temos, de um lado, a psicose islâmica, e, de outro, o Chicão fingindo que não é mais psicótico (que, agora, é perverso). Mas a coisa é a mesma, isso é só fingimento. • P – E a polarização política que vemos no Brasil? A esquerda é uma velharia ideológica. Pior até que a direita. Para esta, que acredita no mercado, o mercado é aberto. A esquerda é ideológica demais. E o resto é todo religioso. Faz-se o quê, então? Há uma maioria de saco cheio desse ideologismo vagabundo e uma minoria que, não sei se por razões ideológicas ou de interesse, continua apostando nessa ideologia. Isso vai dar muita porcaria. Terá Marx, alguma vez, conseguido ficar livre de Hegel? Jamais. Basta olhar para o conceito de mais-valia para ver o absurdo que é. Já falei sobre isto há tempo. Marx faz as contas e descobre que há maisvalia sem considerar as outras formações em jogo no processo. Os desejos e a esperteza das pessoas, por exemplo. Tudo isso entra no preço. Como calcular a mais-valia na produção de um sapato pelo qual nos apaixonamos ao vê-lo exposto na vitrine? Sem esta paixão, não valeria nada. Qual é a atribuição de 39

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valor aí? Quais formações estão em jogo? Marx calcula exatamente baseado apenas num conjuntozinho de formações. É o mesmo que Hegel faz. A coisa é muito mais nefelibata, é sobre nuvens que nos locomovemos. Inclusive, hoje, a da Internet. Haveria um valor x que é a exploração do operário que fez o sapato, mas a quantidade de negociações, de tesões, que há aí no meio não deixa medir valor algum. • P – Mas como se deu o fato de haver poucos ricos e muitos pobres? Não se deu por mais-valia, e sim por esperteza e sorte. Por que os livros de Paulo Coelho vendem muito e os meus, pouquíssimo? Trata-se de jogo de situação, e não de sorte, no caso. Até dei sorte, não fui queimado em praça pública, estou aqui falando... Mas o jogo do mundo não é para o lado de cá, é para lá. A crítica maior a partidos e igrejas – no fundo, é tudo igreja – é que precisam da ignorância para sobreviver. Não é preciso ser comunista, ou de esquerda, para reconhecer que esses extremos são prejudiciais. Um capitalismo inteligente não permite tanta extremação entre pobreza e riqueza. Isto estraga o jogo social. Há que ser tão egoísta a ponto de querer que todos sejam ricos para não ficarem enchendo o saco dos outros. Este é o egoísmo de que fala Nietzsche. E, ainda, há que administrar o narcisismo de todos, pobres e ricos, para um mínimo de paz social.

7 Quero lhes falar sobre Oficina Clínica, que é um dos quatro de nossos dispositivos da Formação do Analista. Como sabem, os outros três são: a Análise Pessoal, o Grupo de Formação, e o Polo de Estudos. Já apresentei, 40

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em várias ocasiões, colocações teóricas que podem servir de referência para crítica do trabalho clínico de cada um ou para referência no momento de entender um acontecimento clínico. Mas, de tudo já produzido, o mais importante na clínica é o vetor de escuta. O vetor de operação da clínica psicanalítica é justamente o contrário do vetor da psicologia clínica. Esta faz alguns estudos e aplica sobre seu cliente. Ou seja, o vetor do psicólogo parte dele em direção ao outro para corrigir, ensinar, modificar – algo que, em última instância, pode ser chamado de normalização do paciente. Como dizem os psiquiatras, a pessoa tem “transtornos”, e o psicólogo tem que os tirar dela mediante aplicação psicológica. Ele supostamente já sabe do que se trata. O vetor na psicanálise – que é difícil tanto de instalar em sua formação quanto de aplicar – é o contrário. Não podemos devolver ao analisando nada que ele não nos tenha entregue. Como alguns relatos que ouço sobre nossas Oficinas Clínicas me dão a entender que o mais importante – o vetor de escuta – não está sendo bem operado, reitero que é preciso sempre ter o cuidado de não fazer um trabalho de psicologia, de projeção pessoal sobre os outros, pois é contraproducente e anti-analítico. E justo o que ouço é que está havendo muita projeção pessoal sobre os casos. Quando alguém apresenta algo na Oficina, já é relato de um acontecimento. Quando um suposto analista relata por escrito um caso a seus pares, há sempre que lembrar que a sujeira dele, analista, lá está em jogo. Ela pode ser defeito de escuta, ou de operação. Ou seja, isto lá já está e, se começarmos a projetar sobre o caso, nada acontecerá além de bate-papo. Não projetar é algo difícil, mas, se não for frequentemente depurado, além de difícil se tornará perigoso. Repetindo, não posso devolver ao analisando o que ele não me tenha entregue. Não posso ficar “achando” coisas. Às vezes, nada há a dizer porque simplesmente não chegou aqui. Isto vale para o que acontece tanto nos consultórios quanto na Oficina Clínica. Não me foi entregue o suficiente para eu poder pegar e devolver. Não podemos ter opinião sobre o que nos foi dito. Analista não tem opinião sobre o analisando, e sim reflexão. Isto, até mesmo do ponto de vista de espelho, que devolve. Há que, o tempo todo, estar ciente 41

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de que tenho o que devolver porque me foi dado. Tampouco tenho que fazer referências à teoria para achar coisas, pois a teoria é apenas um parâmetro de referências para minha crítica sobre os acontecimentos. No trabalho clínico... Detesto a palavra clínica, pois não há ninguém deitado ali (Aliás, quem fica deitado é doente ou puta). No trabalho analítico, tem que bater aqui e voltar. O que isto quer dizer? Como sabem, eliminei a palavra interpretação do campo analítico. Ao contrário do lema nietzschiano de que não há fatos, só interpretações, digo: só há fatos, não há interpretações. É falsa a suposição de que alguém possa interpretar algo que foi dito. Isto, desde o começo da história da psicanálise. O próprio título do livro de Freud, Die Traumdeutung, se refere mais ao entendimento, ao sentido dos sonhos. O sonho, em si, já é uma narrativa, já é um trabalho a respeito do essencial que está na cabeça da pessoa, já é uma operação analítica. O que o sonho quer dizer? Ele, aliás, diz muito mal dito, pois, caso contrário, o próprio sonhador saberia do que se trata. Aí, ele procura outro a quem fará uma narrativa. A narrativa do sonho é necessariamente sempre falha e faltosa. O sonho não cabe na narrativa por ter outras sensibilidades: táteis, de temperatura, de olfato... Quando narradas, elas geralmente somem. Se tomarmos um dito de analisando como narrativa de algo que não sabemos do que se trata, o que podemos fazer é tentar colher e verificar se ele nos entrega um sentido. Enquanto não nos entregar, nada entendemos, nada temos a dizer, não há que inventar sentido. E é comum, em análise ou na Oficina Clínica, alguém trazer a narrativa e percebermos que falta um pedaço. Ao ser informada disto, a pessoa pode lembrar que não colocara determinado trecho, e, então, entrega o sentido. É um sentido já sujo, pois é o sentido do narrador. Portanto, não se pode interpretar nada de analisando, e sim oferecer um fato novo, que é como aquilo bateu aqui e pode ser devolvido para ele. Ou seja, o fato desliza. O sonho já era um deslize; é narrado, outro deslize; é escutado, novo deslize – e, com todos esses deslizes, produz-se um fato novo capaz de deslocar o que foi dito. Apenas isto: ao deslocar, começa a proliferar sentido. Como disse, a própria narrativa já é um sentido dado, mas como é cheia de processos, segundo Freud – escorrega para cá e para lá, diz o contrário... 42

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–, há que esperar que seja entregue algo mais significativo. Se não, não há o que dizer. O sonho pode ser um grande disfarce para alguém não se defrontar com algo. Por isso, é preciso sempre muito cuidado quanto aos sentidos que possa entregar. No caso da Oficina Clínica, ao ouvirmos alguém falar – e todo ouvinte é meio estúpido, o outro tem que lhe ensinar do que se trata –, temos que estar cientes disso. Lacan dizia que o analista é feito uma criança que tem que aprender a falar a língua do analisando. Cada analisando tem que lhe ensinar qual é sua língua. Quando se consegue falar a língua dele, aí dá para conversar. Isto é o que é típico do vetor de lá para cá de que eu falava no início. Por isso, a análise é demorada. É assim mesmo, demorada: ou você pega, ou você larga! – não temos que temer críticas quanto a isto. Vejam, então, que todos os aspectos de nossa formação têm que ser superados para que possamos minimamente intervir analiticamente. Ou seja, como disse Freud, analisar é impossível. Vamos no que dá, vamos nos virando e isso rende efeitos. Diante de qualquer fato, também o fatualizamos. Não há interpretação porque o que se consegue devolver vai se misturar com uma porção de coisas da formação do analista. Todas da pior espécie, sintomáticas demais para uma escuta. Há que contar com o que chamo de indiferenciação. Se você não escutar se retirando – o que é difícil, quase impossível –, ouvirá apenas o que você quer ouvir. Às vezes, o analisando está dizendo tudo e você não escuta por já estar com o ouvido sujo. Aliás, talvez isto seja o que mais frequentemente ocorre nas sessões de análise. E o que é devolvido não tem apenas que fazer sentido, tem que ser congruente com o que o analisando disse. Se alguém disse algo e você sente logo a coceira de falar, está errado, aquilo é seu, e não dele. As pessoas devem falar, mas apenas se tiverem o que dizer. Não se trata de ter opinião, repito. A intervenção do analista não é opinião, e sim uma devolução com outras palavras, outras figurações. É um empurrão, um deslocamento. O analisando, às vezes, disse e entregou tudo, mas não sabe o que entregou. O analista é que devolve para ele. Se não entregou, ou você não percebeu, não há nada a devolver. • P – Você disse em outro momento que, na Oficina Clínica, devemos falar, e não ler algo que escrevemos. Por quê? 43

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O que quer que esteja escrito, está fechado, congelado. Há que deixar rolar, errar, tropeçar. Toda escrita é meio falsa, é um fingimento de boa articulação. Pensamos algo, começamos a arrumar no papel e passar a limpo. Observem que oitenta por cento do que foi publicado de meu trabalho, foi falação que outros escreveram. E ainda meto o nariz e mexo porque há muita bagunça lá. Mas é na hora de produzir teoria que podemos limpar, e não na hora da análise ou da Oficina Clínica. • P – Na Oficina Clínica, diferentemente da sessão analítica, a pessoa fala e há muitas outras ouvindo, aquilo bate em muitos espelhos. Não tem que bater em ninguém. O outro é que tem que entregar. Neste sentido é que falo em indiferenciação. Se for responder o que bateu em mim, imediatamente mandarei o outro embora, pois está enchendo meu saco. Há que ter a paciência de ficar ouvindo aquilo tudo para ver se faz sentido. O que acontece é o outro entregar coisas que não percebe que entregou – e isto não é intervenção minha. O analista é um ressoador do que lhe foi dito. Como sabem, um ressoador só ressoa o som certo. Na física, foi inventado por Helmholtz e é muito útil. Por exemplo, num instrumento de cordas, um violão, manejamos determinada formação das cordas, mas não ouviremos apenas isto, pois lá estão os ressoadores do instrumento que só vibram de acordo com o som da corda. Se a madeira do violão não responder àquela frequência, não há ressoador. Analista deve ser assim: se ressoou, ele percebe – e não está inventando, indo a teorias ou ideias suas para explicar algo. É o caso de Freud que, apesar de dizerem o contrário, nunca explicou nada. Simplesmente ouviu e colocou na mesa. O que nos interessa são os movimentos de significação que, frequentemente, desautorizam o conhecido sobre tal ou qual fato. Qualquer intervenção é no sentido do deslocamento das certezas que os analisandos nos trazem, no sentido de manter em processo. • P – Parece uma operação simples, mas o difícil está em esvaziar-se para perceber se ressoou. É igual à aprendizagem: não aprendemos por causa de nossa 44

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burrice. A burrice é o nosso saber anterior. É difícil, mas, se não tentarmos produzir isso, nada teremos feito, seremos psicólogos. Aliás, agora em termos de Clínica Geral, vemos as pessoas entregarem de modo bem claro. Observem o que acontece hoje no Brasil, em que uma “presidenta” perdeu as estribeiras, perdeu a contenção, e fica entregando tudo, a psicopatia inteira. Basta deixá-la falar que tudo nos é entregue. O mesmo acontece em análise. Se a pessoa faz transferência e entrega a posição, ela começa a dizer. Frequentemente, ela começa escondendo, mas, com o tempo, se distrai e entrega. A entrega analítica é um ato falho. • P – Na Oficina Clínica, as pessoas se veem levadas a dizer o que as afeta. Há alguma forçação para que haja entrega? Na Oficina Clínica, não interessa o que afeta a pessoa que vai falar. Interessa, sim, saber de sua operação como escuta. Cada um coloca o seu na reta, e, para isto, não é preciso forçação alguma. Basta deixar fluir. Não se está fazendo análise na Oficina, tampouco aprendendo corte e costura, ou tratando de seus sentimentos e afetações. A pessoa está com um problema clínico que será exposto e mostrado o que conseguiu de operação com aquilo. Ela poderá mesmo dizer que nada entendeu. Repetindo, na Oficina Clínica, tecem-se considerações sobre uma narrativa de caso para raciocinarmos um pouco e não fecharmos o assunto, pois nada sabemos. Se alguém, como já aconteceu, fizer uma narrativa direta de seu próprio caso, uma vez que, na Oficina, não se trata de análise pessoal, os demais tecerão considerações. É o que se pode fazer, pois nem sabemos se a pessoa está mentindo, se está sonegando o fundamental. A pessoa não está com seu analista nem tampouco transferida com o pessoal da Oficina, e sim entregando uma consideração. Não há, pois, que misturar, pois não há analisando na Oficina.

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8 Vejamos o caso da associação muito forte do corpo com a sexualidade, que beira a psicose. É, aliás, como sabem, a leitura que faço do Caso Schreber (diferente da de Lacan, ligada ao Nome do Pai). Trata-se, nele, de um HiperRecalque feito sobre a anatomia, que não combina com o tesão. Então, ele tem que virar mulher. Não se trata de alguma cirurgia plástica, e sim de metamorfose para que possa transar com o Grande Homem, que se chama Deus. Ele não pode ser Ganimedes e transar com um deus. Não há nele, portanto, a possibilidade de transar mesmo sendo de sexo “errado”, ou pensar em ser travesti, ou mesmo transexual mediante prótese. Ele pensou em ser transexual mediante metamorfose. Ele se olhava no espelho e via os seus seios, etc. Para ele se permitir transar com Deus – o qual tinha muito de seu pai biológico –, ele tinha que ser mulher. O HiperRecalque está aí, em não poder simplesmente transar. Schreber não procurou uma prótese, ou uma fantasia de travesti, por exemplo. Ele teve alucinações de metamorfose. Isto é que é psicótico, Regressivo. A maioria dos travestis não quer ser transexual, fazem questão de suas piroquinhas. Ele tampouco quis fazer cirurgia, ou seja, mediante o Secundário, ter acesso a transformações primárias. Fazer isto não é psicose, e sim Morfose Progressiva, em que não se alucina, pira ou entra em surto. Processar seu incômodo em ser uma moça com penduricalho e, mediante cirurgia, buscar transformar, isto não é psicose. O transexual que opera no mundo é um artista. Se os outros o acharem fêmea, ainda que por alguns momentos, já está bom. Tomemos a prótese e mudemos de lugar. Santos Dumont conta em livro que, aos oito anos, brincava de “passarinho-voa?”: “as crianças se reúnem em volta de uma mesa e uma delas pergunta: urubu voa? gavião voa? (…) Os demais têm de levantar os dedinhos rapidamente quando o animal citado voa. É preciso atenção para não indicar o bicho errado. (…) eu era motivo de troça porque levantava a mão sempre que perguntavam: homem 46

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voa?” Isto é psicose? Não! É Morfose Progressiva, é dizer: “Invento uma prótese e saio voando”. Schreber não quis, ainda que apenas na aparência, virar anatomicamente. Ele surtou e alucinou o corpo feminino. Não se trata de sua certeza, como disse Lacan, e sim de sua impossibilidade de manejar o Secundário progressivamente. Hoje, já há em alguns países a possibilidade de, quanto ao sexo, escrever “neutro” em documentos. Em um conto intitulado seosenhora, donasenhor ou & encantad&r de menin&s, que publiquei no livro Aboque/Abaque, em 1974, relato sobre uma pessoa que havia em minha cidade. Era enorme, cara de índio, com um volume que parecia teta, usava uma roupa cor cáqui, e tinha vários cachorrinhos ensinados com os quais fazia pequenos shows circenses para ganhar dinheiro. Um dia, duas pessoas brigaram, um atirou e a bala perdida atingiu sua bunda. Correu, então, o boato de que os médicos, no hospital, puderam ver que ele tinha os dois sexos. Fiquei muito impressionado com aquilo na infância e, depois, escrevi o conto. Eu me referi a ele substituindo o o e o a pelo &. Há menino e menina e há menin&. A distinção que faço entre Primário, Secundário e Originário é nítida. A distinção entre Autossoma, Etossoma e Heterossoma é mais heurística e didática porque não sabemos onde separá-los. É só para entender que essa coisa que apareceu no mundo tem uma arquitetura física e um modo de funcionamento, tudo misturado. Então, essa arquitetura e esse modo de funcionamento são uma tentativa de didatizar o processo. Já, no Primário, é o mesmo que dizer que, no Secundário, há zilhões de formações. Como separá-los? Só didaticamente. As definições de Autossoma e Etossoma são funcionalmente boas por nos trazerem enormes recursos teóricos que não havia antes. Basta ver os textos que escrevem sobre a questão do Gênero, que são confusos por lhes faltar a ferramenta que é a Tópica do Primário e Secundário, os quais não têm que ser necessariamente associados. A pessoa tem um Primário e pode desmunhecar pelo Secundário. E se desmunhecou, foi por ter tropeçado no Originário. Quando Bruce Bagemihl, que já citei várias vezes aqui por seu livro Animal Exuberance, prova que os animais têm comportamentos sexuais variados, está dizendo que é um caso estritamente de Etossoma. O Primário tem uma constituição, digamos, anatômica e uma 47

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constituição comportamental, e as duas não estão obrigatoriamente associadas. Isto, mesmo nos animais. Só que estes não têm recurso ao Terceiro, que é o Originário. Nossa espécie, então, é mais complicada. Pode-se nascer macho e heterossexual, no sentido auto e etossomático, mas, ao entrar na história, torna-se homossexual. Ou seja, levou uma cantada e foi para o outro lado. A complexidade é enorme. Quando há HiperRecalque no Secundário, como é o caso de Schreber, é impossível um macho transar com outro. HiperRecalque é colocar uma impossibilidade onde não existe, ela é meramente modal. Numa pessoa como Schreber, o HiperRecalque não permite sacar que pode ter jogo. Não há teatro ali. A única saída é alucinar. Aliás, já lhes disse que a homossexualidade não existe. É muito pobre tomar dois corpos anatomicamente parecidos e dizer que é homossexualidade. Gente não tem isto. Toda transa é heterossexual. Estou transando com outro, não importa qual seja seu corpo. Mas, por falta de referência teórica, os militantes da causa dita homossexual não querem saber da biologia, pois ela é fechada. Como não fazem ideia de pensar em Autossoma e Etossoma, para eles é uma coisa só e sua luta é toda no Secundário. O que digo é que a luta não é apenas política, e sim técnico-científica.

9 Vocês estão trabalhando o texto A Ciência e a Verdade (1965) e apontando que Lacan, apoiado em Alexandre Koyré, apresenta a ideia de que o Sujeito, na psicanálise, foi possibilitado pela “ciência moderna”... • P – Em Considerações sobre Descartes, Koyré faz uma leitura que 48

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busca abstrair ao máximo a ideia do cogito cartesiano: um sujeito que não fosse psicológico, não tivesse conteúdo, e que fosse puro pensamento. É este sujeito que Lacan toma para estabelecer o sujeito que emerge com a ciência moderna e que considera ser o sujeito em jogo na psicanálise. É estranho, pois o sujeito cartesiano tem ideias inatas, vários conteúdos... E Lacan também recorre a Heidegger para estabelecer sua ideia de sujeito. É importante, sim, sabermos de onde vem essa ideia – que já vem suja. Por que começar trazendo Descartes quando Nietzsche já lá estava? Hoje, é absurdo pensar assim, mas foi o passo possível na época. Temos que ler tudo isso com cabeça de museólogo. Esse momento é fecundo, o passo é grande, mas demasiado comprometido e não vale mais. • P – Isso ficou sem continuidade com o que aconteceu depois nos outros campos de conhecimento, que, com as tecnologias, não precisam da categoria de sujeito para constituir coisas tão complexas quanto. Lacan apostava que isso viria no futuro, mas morreu no passado, acabou junto com o século XX. Vejam que, nesse texto, Lacan não consegue definir coisa alguma. Ele fala, fala e o sujeito continua sendo uma brecha, mais nada. É um hábito típico de Lacan empurrar com a barriga e deixar para a próxima vez – o que, aliás, é algo bem bolado. E é compatível com sua definição: o sujeito Lacan é aquilo que um seminário representa para o outro. • P – Lacan também recorre a Heidegger, que diz que o cogito não é uma consequência lógica. O fato do “eu existo” não decorre do “eu penso”. No texto sobre Nietzsche, ele retira o “logo” e passa direto para a ontologia: penso, sou. Vejam a dificuldade de uma pessoa pensante para limpar a sujeira de ontem. É muito difícil ficar livre de um sintoma intelectual. Como Heidegger consegue retirar o “logo” e passar do “penso” para o “sou”? Em alemão (como em francês), não é possível dizer “penso” sem o “eu”, como podemos em português. Onde ele meteu o “logo”, pois se digo “eu penso, eu sou” há um “logo” aí? Mesmo que Heidegger esteja tomando a identidade entre o pensamento e o Ser, ao esbarrar na língua, nem a língua dele dá jeito. 49

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Nietzsche denuncia o sujeito como superstição subdita à gramática, o que me parece correto – portanto, subdita à gramática de alguma língua, pois não existe gramática em abstrato (só se for matemática). Esse momento, século XX, do qual estamos nos afastando mais ou menos rapidamente, é infectado demais de superstição. Ele precisa ser passado a limpo, pois não serve. É, aliás, meio nojento, com duas Guerras Mundiais, com a Shoah, com grande violência intelectual. Quanto a esta, basta lembrar do que diz Einstein sobre Deus não jogar dados. Ele, se é que existe, não faz outra coisa. Todos estão impregnados de alguém que faz as coisas. Para eles, todo ato tem um ator, toda ação tem um autor. Não tem! Do ponto de vista da Teoria das Formações, o jogo se inverte: o autor é produzido pela obra. Ele é cavalo de Oxum. Eu sou cavalo de Xangô – cada um é o cavalo que merece... Em Nietzsche, já se podia dizer isto sobre o autor. Foucault é quem trabalha bem a morte do autor. • P – Deleuze abre o Anti-Édipo falando sobre isso. O difícil é entender por que, depois, vai falar em subjetividades. Mas não se pode cobrar isto dessas pessoas, que são formidáveis. É muito difícil. • P – Mas ele já tinha dado o passo, por que não continuou? Freud fez o mesmo. Em 1920, coloca a Pulsão de Morte e, depois, volta. Qualquer pessoa tem compromissos sintomáticos graves. Freud concebe a pulsão de morte em compatibilidade com a física de sua época. Então: se entropia, logo pulsão de morte. E, se este é o campo, toda subjetividade vai para o lixo já naquela época. Mas não foi, pois, como eu disse, não é fácil se livrar de um sintoma intelectual, teórico. • P – Há também certa mitologia na ideia expressa em Koyré de que teria brotado uma ciência nova, sem precedentes. Lacan até a coloca como A ciência absoluta. Os trabalhos atuais questionam essa ideia de corte epistemológico. É só lembrar que a matemática já era usada pelos antigos, por Arquimedes, por exemplo. A ideia de que a ciência moderna brota de repente é puro wishful 50

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thinking. Serve ao estruturalismo, é uma conta de chegar: aquela não deu certo e a gente arredonda. Os chamados autores, isto é, as produções, são sintomáticos. Então, os desejos de estabelecer a diferença são maiores do que o rigor da articulação. É preciso tempo para esse wishful thinking desabar. Depende de muitas circunstâncias e acontecimentos ao redor. Qual é a influência do acontecimento na ciência? Basta ver que a ideia de ter havido um holocausto mexeu com os pensadores e virou um argumento filosófico e científico. • P – Diz Adorno, em 1949, que “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”. Ora, continuou-se a escrever poemas e a pensar. Basta ver Hannah Arendt que continuou a pensar, mesmo atacada pelos próprios judeus. É uma estupidez haver qualquer tipo de rivalidade em termos de pensamento. Há, sim, diferença, pois, se um engata por uma via e dá tal resultado, outro engata por outra via e dá tal outro. É, pois, a lata de lixo da cultura: pegamos o que é útil na hora. É, aliás, minha noção de ad hoc. Podemos, se for o caso, apenas verificar que alguém está fazendo wishful thinking, que é ingrediente de seu pensamento a vontade de dar certo, de fazer uma conta de chegar. Isto é uma crítica, e não uma rivalidade. A história da psicanálise é imunda justo por essa vontade eclesiástica de igrejinhas. É algo nojento, que não tem mais cabimento após o século XX. O que dá para fazer é irmos pastando... Pode-se apenas manter o rigor de uma linhagem, o que inclui certas coisas e exclui outras. • P – Lacan, neste texto, tem dois polos para tratar do sujeito. Um, do qual quer se afastar, é o aspecto moral e pedagógico da psicologia. O outro, do qual quer se aproximar, é o do estruturalismo. Para isto, toma o Lévi-Strauss do Pensamento Selvagem, no qual acha que está o sujeito dele, Lacan. O sujeito do índio. • P – Ele o chama de mitente (de mito). E há uma série de teses 51

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estruturalistas, da qual ele vai se aproveitar: a ideia de corte, de ciência pura, de sujeito vazio, de estrutura sem origem, sem história e sem precedentes. Ele também denuncia a “ilusão de arcaísmo”, que seria um ingrediente da psicologia: a tentativa de retornar a algum tipo de origem para entender a constituição de uma pessoa, de um indivíduo. Para o estruturalismo, trata-se do aqui e agora. • P – Em outro momento, ele vai falar em recalque originário, mas, dado o que colocou antes, este recalque perde o sentido. O recalque originário dele é o de Freud, que é uma conjetura sobre a possibilidade de fundação do recalque. Meu Recalque Originário é físico, pode-se pegá-lo. • P – E ele desconsidera certos textos de Freud, como O Sentido Antitético das Palavras Primitivas... Ele até pode fazer isto ao brincar com a língua. Quando, por exemplo, na sessão analítica, ficava jogando com o que o analisando disse. Ele não chama de sentido antitético, e sim de equivocação. Mas a maioria das equivocações é dependente de uma origem bífida, como digo. As sessões de Lacan eram cheias desse Revirão. Uma vez em que eu estava bem enlouquecido – por causa dele, aliás, que enlouquecia qualquer um –, pedi para vê-lo no sábado. Eu ia regularmente de segunda a sexta-feira e pedi para ir sábado, às dez horas da manhã. Ele respondeu: “Não, dez e quinze”. Em francês, é: dix heures et quart (pronúncia: dizerrecarr) Dia seguinte, bati na porta dele às dez horas. Lá veio ele de roupão, remela nos olhos, cabelo alvoroçado, gritando (coisa que ele fazia por qualquer motivo): “J’ai dit dix heures et quart!” Aí disse-lhe eu: “Pois é, entendi em português: vim aqui dizê-o-recado. Em minha língua é: donner le message. C’est ce que je fais maintenant”. Ou seja, dei uma de Lacan e lhe devolvi. Ele me mandou entrar e ficou por isso mesmo: “Je vous vois quand?” O efeito disso é apenas o de deslocar o sentido. Não é interpretativo. Mostra a fé que ele tinha no deslocamento pelo significante da língua. Nesse registro, funciona. É mero movimento, uma rasteira. É mera equi-vocação: tomar uma situação e equi-vocar com outro sentido. Os dois 52

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têm uma equi-valência de sentido enquanto deslocamento. Desloca-se daqui para ali, e a pessoa sai da repetição. • P – Mas isso não recompõe a bifididade. Não há isso na equivocação. Ela é depois. Freud sustentou um dualismo insustentável, mesmo tendo enxergado a bifididade no texto do Sentido Opositivo das Palavras Primitivas, por exemplo. Mas, como foi buscar nas palavras primitivas, não se tocou quanto a um conceito relativo a toda produção mental. E, com a necessidade de dualismo, continuou falando em pulsão de vida / pulsão de morte. Não viu que é a mesma Pulsão. Isto, embora deixe entender que só há Pulsão de Morte. Tanto é que Lacan toma isto e reafirma que toda pulsão é de morte. Acho, aliás, que o nome, pulsão de morte, deve ser trocado. • P – Você já propôs o termo Tesão. Tesão é a Pulsão enquanto tal. Pulsão é um tesão. E tesão serve para quê? Para acabar, para chegar a alguma paz. Deveria ser: Pulsão de Paz. Por isso, a todo momento, para qualquer ciência, é preciso passar tudo a limpo. Vejam que estou chamando a psicanálise de: ciência. A ciência não é necessariamente matemática – pensar que seja é coisa de Galileu –, pode ser olfativa, isto é, vai no faro. É produção de conhecimento, sim.

10 • P – Neste sentido, Lévi-Strauss tem razão. O que os índios faziam era ciência. Não discuto o fato de os índios estarem fazendo sua ciência. O que 53

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é discutível em Lévi-Strauss é o congelamento de alguns conceitos que são herdados do Segundo Império. Ele sustenta como um universal formações – aliás, comportamentais – do Segundo Império usadas para garantir o funcionamento do Neolítico. Não há universal algum na Interdição do Incesto. Em nossa época, a única interdição do incesto que haveria seria no estudo da compatibilidade ou não na ordem genética, que, hoje, pode ser lida. Pode-se mostrar a alguém que tal união de genes será danosa – e ele ainda poderá perguntar se não é possível dar um empurrão em tal gene, trocá-lo por outro... Onde, então, está o incesto em todos os que não são este caso? A interdição do incesto é fundação do Segundo Império – e garantido no Terceiro Império por vias típicas deste Império. Haja vista à Sagrada Família, que é um escândalo. Quando o povo não se convencia muito desse troca-troca, inventaram a Virgem Maria no século XII. Disseram para o povo que todos eram apenas repetição da Sagrada Família. A família, então, fica universalizada e potente. Maria, antes de ser a Virgem Maria, era só a mãe de Jesus, o qual, mesmo pregado na cruz a chamava de Mulher!, e não de mãe. Ela, aliás, é cópia da Ísis egípcia. • P – A invenção da família deve ter produzido uma calma geral, tranquilizou a todos. Foi mediante a família que conseguiram fazer o Neolítico. É o que sempre acontece, em qualquer nível, qualquer Império. Por isso, se acreditarmos em Descartes, estaremos ferrados. Considerar que uma das coisas a serem pensadas é o que ele disse é muito diferente de fazer, como fizemos, uma cultura alicerçada em Descartes. É uma doença grave, mas segura as pessoas. Nossa espécie é louca e não sabe o que está fazendo. As pessoas querem certezas. Por isso, o que vale é a crença. O conhecimento atrapalha demais. A família virou um Segundo Império inteiro, segurou toda a significação possível. Coisa que vai bater no Terceiro Império dentro da própria Igreja, que fica sustentando o Segundo Império. • P – Hoje, a mitologia em relação à família não estaria começando a desmoronar? Sim. Sobretudo porque se está mexendo no biótico. Família hoje 54

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é qualquer agrupamento que tenha interesse. Outro dia, foi publicada uma notícia no jornal sobre a oficialização de um casamento de três pessoas. Já veio tarde demais. • P – Mas não há, no cristianismo, uma crítica à família? O Terceiro Império tenta abstrair o Segundo Império. Há no Terceiro Império uma crítica ao poder temporal do pai, que era onipotente, tinha direito de vida e morte sobre sua prole. Ele é tornado abstrato e universal. Ou seja, é o que Lacan chama de Nome do Pai. (Por isso, digo que há muita coisa em Lacan de Terceiro Império, se não mesmo de catolicismo).

11 Lacan era encantado com a Igreja. Basta ler o recente livro de Catherine Millot, La Vie Avec Lacan (Paris: Gallimard, 2016), para entender as bizarrices e catoliquices dele. Ela teve a coragem de contar, e é ela quem lá estava presente como amante e analisanda dele. Uma vez, em Roma, encontraram um Bispo amigo de Lacan que lhe deu um exemplar dos Écrits para ser entregue ao papa. Ele tinha fascinação pelo mundo barroco das igrejas. Então, quando coloca o Nome do Pai é muita bandeira que ele dá. Aliás, se não fosse psicanalista, certamente seria abade como seu irmão. Então, o Terceiro Império jogou o pai no infinito como onipotente. O pai daqui de baixo é apenas um representante daquele de Lá. Ele pode ser ou não geneticamente um contribuinte. Tanto que deu no Padre da Igreja, que é o representante mais direto sem ser pai de ninguém. Já o papa, este, é o paizão, o representante mais direto como pai de todos. 55

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Antes, o pai era localizado, agora a paternidade é jogada na abstração. No Velho Testamento, o povo judeu tem seu Deus, ele é privilegiado por este Deus e é o povo eleito por Ele. O resto não vale nada. Se a pessoa não for judia, esse Deus não funcionará. É, aliás, um Deus sacana, quase pagão, fazendo das suas, como Júpiter. • P – Em Ciência e Verdade, Lacan menciona o texto de Agostinho sobre A Trindade e diz que pode ser tomado por nós como modelo. É: Real, Simbólico e Imaginário. Agostinho é brilhante, não é uma besta. Também recorro à trindade, mas não àquela. Por isso, falei em: Primário, Secundário e Originário. Observem que o Real, de Lacan, pelo nome Real, está ancorado nas formações espontâneas do Haver. É, aliás, ambíguo. Não sabemos do quê ele está falando, sempre o define pela negativa, pelo que não comparece, pelo que não cessa de não se escrever. Não é o mesmo que o Primário da espécie. • P – Em seu livro, Catherine Millot fala do Real para Lacan como sua irritação quanto a qualquer limitação. Um sinal de trânsito fechado... É o Lacan pessoa, que colocou isso como ética da psicanálise. É a ética segundo seu tesão. Aliás, cada um diz o tesão que tem. Vejam como é pesado. Ele diz que o estatuto da psicanálise é ético. Qual ética?: Não abrir mão de seu desejo. Qual desejo? Se todo desejo possível, segundo a perspectiva NovaMente, está na dependência da Pulsão como fundamento, ninguém abre mão de desejo. Podemos, sim, trocar: não tem Tu, vai tu mesmo – mas nem quando inventamos uma paralisia, estamos abrindo mão. O Morfótico Estacionário faz um grande investimento para manter-se estúpido. Por que paga tão caro por algo que nada vale? Ele paga caro para ter o conforto de ser estúpido. A estupidez é um conforto. Quando entende que pode ser mais barato se fizer de outro modo, deixa de ser neurótico. • P – Segundo Freud, isso acontece ao neurótico porque haveria uma culpa inconsciente. É como se a culpa fosse originária. Há algo que raramente se diz 56

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mais ou menos como direi agora. Repito e acrescento à pergunta que fiz: por que o Morfótico Estacionário paga tão caro para sustentar sua estupidez que é garantida por uma permanente culpa? É uma estupidez confortável garantida pela ideia de culpa. Culpa do quê? De algo que ele fez? Não! De algo que poderia fazer, mas não está fazendo. A culpa é futura, e não passada. Não é porque fez alguma besteira que está culpado. Aliás, quando faz besteira, ele se desculpa: não foi ele, e sim o outro. Ele está, então, culpado do tesão que tem de escapar de algo de que não pode escapar. Ele sente culpa do desejo que tem de escapar da paralisia. A Igreja entendeu muito bem que ele pensa em sacanagem e não pode escapar disto. Diz ela que há pecados por palavras e por pensamentos. O Estacionário pensa em sacanagem e fica culpado, mas não vai lá. Se não fosse Estacionário, iria, seria Morfótico Progressivo. Quando aquilo surge para ele, é quase psicótico, quase Schreber. • P – Freud colocou a culpa inconsciente em coisas como ter raiva do pai, da mãe... Freud está dizendo o que digo agora. Não é ter a raiva, e sim permitir-se tê-la. Isto é o que não pode. Se alguém pensa em ter ódio da mãe, imediatamente fica culpado. “Mas aquela vaca não merece?” Vejam que esta frase que acabei de dizer pode causar o linchamento da pessoa. Os espertos inventaram o dia das mães, daquela que, em qualquer família, é a odiada, que só enche o saco dos outros. Fizeram o inverso: se ela é odiada, logo todos são culpados. Se assim é, inventamos um mercado para todos comprarem coisas e lhe darem. E isto nada tem a ver com mais-valia, coisa que Marx não entendeu. É, sim, apenas, o jogo das transas e das culpas. A lógica é: – Quem mandou você ser neurótico? – Vou explorá-lo! • P – É melhor, então, o conceito de mais-culpa? Sim. A valia, isto é, o lucro exagerado é do tamanho da culpa do neurótico. O Estacionário sequer precisa das religiões para culpá-lo. Elas são apenas uma corroboração cultural. Ele fica paralisado e não pode dar passo algum. Ele morre de culpa da possibilidade de dar o passo. Por não saber que é uma culpa, aparece o sintoma como outra 57

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coisa. Vejam o caso concreto de alguém que, ao dirigir seu carro, não podia atravessar o túnel que dividia a cidade. Entrava em pânico, precisava sair imediatamente. Quando questionado sobre o porquê de estar doido para fugir de casa, de sua família, ele ficou estupefato. Entendeu que, se passasse pelo túnel, iria cumprir seu desejo de ir embora... Ao entender, pôde passar pelo túnel. • P – A culpa, então, foi forjada pelas religiões para controlar as pessoas? Não. Ela foi aproveitada. A porcaria já estava na cabeça das pessoas. A estupidez vem antes da convicção. Esses são aparelhos de aproveitamento da culpa para fazer um poder. Neurótico gosta da ideia de que é o outro que o sacaneia. Entretanto, ele é que é um babaca que sempre atribui ao outro quando lhe apontam um erro cometido: alguém o atrapalhou na hora em que ia fazer tal coisa... Nunca pede desculpa por ter errado. A burrice de Marx, como disse Freud, foi não entender nada sobre gente. Seu conceito de mais-valia não serve, pois diz respeito a gente, e não a “economia”, a “livro”, a bonecos. Culpar os “poderosos” é besteira, pois ninguém tem poder sobre o outro se este não lhe entregar o poder. Mas o neurótico entregou para não se sentir culpado: os atos serão do outro, sem culpa dele. Quanto a isto, lembro que o Brasil tem dois sintomas de fundação. É uma arqueologia sintomática. Primeiro, a corrupção é endêmica: todos nós somos corruptos por sintoma. Diante de qualquer problema, logo pensamos em dar um dinheirinho e em safar-se. Corrupção há em todos os países, mas nós somos intrinsecamente corruptos. E como o sistema não funciona, é preciso o jeitinho do suborno. Segundo, o Brasil é endemicamente patrimonialista. Isso em relação às menores coisas, aos comportamentos mais cotidianos. Num restaurante, crianças gritando e a família nada diz. Por quê? Estão em casa, tudo é deles. Se não fosse patrimonialismo, seria dito à criança que não está na casa dela, que não pode fazer aquilo ali num lugar público. Mas não há diferença entre público e privado. São, pois, dois sintomas endêmicos que não deixam 58

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o país andar. • P – E há coisas graves como só agora admitirem que Anísio Teixeira foi assassinado. Os peritos já haviam provado isto há bastante tempo. Foi barbaramente assassinado. Eu soube, na época, pelo jornal. Como já lhes disse, às quartas-feiras, eu passava a tarde toda com ele, aprendia coisas incríveis. De uma às seis horas, nos reuníamos na editora em que trabalhava. No dia que o pegaram, saí para encontrá-lo, mas desabou um toró e tive que voltar para casa. Domingo, abro o jornal e leio que ele morreu. Era 1971, ele tinha setenta anos, nasceu em 1901. Aliás, três pessoas importantes para mim nasceram nesse ano: Anísio, meu pai e Lacan. • P – Quem o matou, os católicos ou os militares? Os católicos-militares. Os bispos fizeram o possível para destruí-lo quando ele era mais jovem. Juscelino foi quem segurou a barra. Lembro-me de, um dia, ter chegado à editora e ele me pedir para ir com ele num lugar sobre o qual me explicaria no caminho. Era no último andar do Edifício Avenida Central. Estavam todos lá: Roberto Campos fazendo conferência para generais, almirantes... Anísio me diz que vai lá falar com eles e me pede para, de vez em quando, aproximar-me e dizer-lhe: “Professor, temos que ir, pois vamos perder o avião”. Ele fora chamado para ser cooptado, queriam que fosse ministro da educação deles. Coisa que ele não podia aceitar. Sempre que eu chegava perto dele, um general me dizia: “Larga o professor”. Isto, até ele se desvencilhar e irmos embora. Não demorou muito e li a notícia sobre sua morte.

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12 Algumas pessoas têm sérios problemas com a fala, com expor-se mediante fala. Outras têm dificuldade em lidar com a escrita. Isto foi comentado por Freud e muito tratado por Lacan. Neste, é sempre meio obscura a distinção entre o significante e a letra. Certos autores supõem poder distinguir estas duas funções associando a fala ao significante e a escrita à letra. Coisa bastante ambígua na obra de Lacan. Não estou aqui para destrinchar isto. Interessa-me, sim, em nosso campo, em meu aplicativo, tentar alguma distinção teórica. Temos a sorte, que outros não tiveram, de nos ter caído do céu uma Tópica nova com os registros Primário, Secundário e Originário. Freud caminha por aí, mas não nomeia assim em suas duas tópicas fundamentais. Como sabem, nossa tópica é:

Às vezes, temos dificuldade para entender como se passa de um registro a outro. Lembrem-se de que o Primário é composto de três formações: Autossoma, Etossoma e Heterossoma. Chamemos o ( ) de Autossoma, o ( ) de Etossoma, e o ( ) de Heterossoma. Não são três coisas separadas, está tudo engrazado. Na construção do que se chama de corpo humano, há o 60

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Heterossoma (os animais têm apenas os dois outros). O Autossoma é, digamos, o sistema de constituição biológica de nossa espécie. O Etossoma é bastante complexo e funcional para desenhar a ordem comportamental de qualquer animal, é um saber lá inscrito genética e epigeneticamente: aquele que nasce já “sabe” as coisas que estão na, digamos, escritura de seu Etossoma. Em nossa espécie, o Etossoma está misturado com o Secundário. Ou seja, também temos o Etossoma, mas está camuflado. Os etólogos não se arriscam a dizer muita coisa sobre isto, mas nós que somos cientistas de outra espécie dizemos que, além do Autossoma, temos o Etossoma, que é bastante complexo e está camuflado pelas consequências de haver Heterossoma. Heterossoma é a função revirante da espécie. Vejam que não é preciso ter várias materialidades, o que cada registro tem são funcionalidades diferentes: são funções do troço inteiro, e não coisas, células. Tudo está dentro do Primário, nada fora. Não há espírito ou alma de outro mundo. Então, porque existe Heterossoma, a ordem constitutiva das configurações – chamada de “razão comunicacional” – está toda inscrita aí dentro. E como há Heterossoma, resulta, mediante a transa do Heterossoma com essa funcionalidade interna e com a existência do externo, em haver a chamada linguagem humana, que faz parte do Secundário. É a espécie que fala e faz coisas a partir desta competência. É o que chamo de Secundário. A ordem se inverte: porque há Heterossoma dentro do Primário, produz-se o Secundário. Uma vez que o Secundário comparece, prova que este animal é Originário, radicalmente diferente das outras espécies. O Originário parece ser o último, mas não é. Se já não houver o Originário dentro do Primário, o Secundário não se produz. Quando ele se produz, evidencia que há uma ordem originária que é o Revirão ( ). Então, nossa espécie é louca, e isto não é só maneira de falar. E quando o Originário, que está dentro do Primário, funciona, torna-se Originário da originalidade desta nossa espécie. Na história do pensamento, ninguém se dá conta do Originário imediatamente. E mesmo depois de aparecer o Secundário, que é o responsável, ninguém que eu saiba, de Lacan para trás, se deu conta do Originário. A espécie não é propriamente falante, mas sim revirante. 61

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Por isso, vira falante. Segundo este nosso protocolo, nós não nos deparamos imediatamente com o falante já pronto, que começa a teorizar linguisticamente, sociologicamente, sobre o que há. Esse reconhecimento está fortemente em Freud – basta ver seus vários exemplos de reviramento da pulsão, da significação –, e não sei por que foi tão mal aproveitado: caiu no regime estruturalista da linguística e o pessoal ficou na função de lidar direto com a linguagem e dizer que somos a espécie falante. Não é. Ela é falante porque é revirante. Porque temos a disponibilidade da loucura – que os bichos não têm – de poder revirar tudo e ficar confuso dentro desse reviramento, muita gente se perde completamente aí dentro. Não sabemos se, ao nos depararmos com um ET muito esquisito, constataremos que ele não fala, que faz outra coisa. Observem, aliás, que o Creodo Antrópico de que lhes falo é outra história. É o creodo – o caminho necessário – de nossa espécie. Uma espécie extra-terrestre, se existir, terá outro desenho para o creodo. Creodo, para nós, é sintoma resultante de certas imposições do Primário: amãe, opai, ofilho, oespírito e amém. Nossa história e nossa pessoalidade passam necessariamente por aí, pois é sintoma gravado na espécie. Ela é constituída como tal. As IdioFormações, portanto, não são IdioFormações porque falam, e sim porque reviram e isto resulta num Secundário qualquer. Sabe-se lá qual, pode ser matemático. No que a coisa revira, até o Primário é questionado. Por isso, temos sintomas histéricos de conversão, sintomas psicossomáticos e, às vezes, invasão mesmo do Secundário no Primário causando doenças, lesões. Bicho não tem isso, ele é o que é. Quando vemos que ele pode deslizar, vemos que desliza no Etossoma, o qual já é bastante complexo, pois não tem obrigação alguma de combinar com o Autossoma. O bicho funciona sem criar caso com o programa que nele está instalado. A maluqueira humana não para de criar caso com seus programas etológicos. Ao considerarmos o Primário com seus três registros internos – Autossoma, Etossoma e Heterossoma –, como não acreditamos em alma de outro mundo, em Descartes, ou mesmo em Platão e Kant, nossa suposição é que há materialidade absoluta: o Primário está na constituição 62

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espontânea do Haver. Não confundir Espontâneo com Primário: o Primário é espontâneo, mas o espontâneo nem sempre é Primário, depende de onde aparece. É o que chamam de natureza em geral, mas é maior que isso. Nossa obrigação dentro do protocolo da NovaMente é, portanto, entender que isso tudo está inscrito no Primário. Nosso azar é que há reviramento. Já que temos o Heterossoma, este é nossa sorte. Podemos fazer coisas incríveis por desafiar as formações dadas do Espontâneo e mexer em tudo com a maior audácia. O essencial é que lá está inscrito, e de tal maneira que dá para ler. Tanto é que, hoje, cientistas podem tomar um cromossoma, ou mesmo um gene, e situar suas posições e combinações. Na verdade, isso é um texto. Se não quiserem chamar assim, chamem de textura. Digo mais, o Primário enquanto formação espontânea do Haver é textual. Isto porque o Haver também o é. Não há, repito, Deus ou alma do outro mundo para autorizar a Criação. É um monte de coisas agregadas e textualizadas. Ao beber água, estamos bebendo H2O. É o nome que damos, mas, lá dentro, tem H e 2O escritos. Se mudarmos a escrita, será outro elemento, outra constituição. Ou seja, se mudarmos os elementos, mudaremos o que ali se inscreve. É preciso ter isso claro para repensarmos a diferença entre fala e escrita. Lacan insiste em que há esta diferença, mas não explica direito. Apenas inventa as ideias de letra e significante. Não retomarei ou explicarei Lacan aqui, e sim direi que temos que partir da base de que o Haver é concreto, e sua concreção pode ser aparente. Se supusermos que a teoria quântica e a teoria das cordas são corretas, lá na última instância tudo será igual. Isto, até na concepção do cosmos. A explicação meio careta que os cosmólogos dão é que houve uma Quebra de Simetria: a diferença apareceu por acaso, pois, quando isso se cortou ao meio, não se cortou por igual. Mas não sabem muito, pois enquanto não definirem, por exemplo, o que são a matéria e a energia escuras, está tudo pifado para trás. Precisamos, portanto, entender que, se há um Primário composto de Autossoma, Etossoma e Heterossoma, o que quer que aconteça com nossas presença e expressão no mundo lá está escrito. Somos de uma espécie que nasce com uma configuração autossomática, com 63

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várias configurações etossomáticas e, por causa da loucura do reviramento, produzimos um campo enorme. Ao nascermos, já começamos a absorver tudo isso. Houve um tempo em que a língua era pequeniníssima, com dois ou três gritos, mas foram somando. Há que lembrar que, aqui e agora, ao abrir a boca para falar, de onde tiro isso que falo? Como não há mágica, tiro de todas as inscrições que competem aqui. Há um repertório imenso que, por ser motivado pulsionalmente, começa a se articular. Aí, surgem as maiores loucuras. Uma nova teoria, por exemplo. Então, o que faço quando falo? Estou exprimindo uma escrita. Estou lendo a redação que se faz aqui e agora. A fala é daqui para lá. Está tudo aqui, tem repertório, etc. É imenso. Como há o movimento pulsional, que é a loucura de nossa loucura, começa-se a produzir uma falação que não é senão a expressão do que está escrito. • P – Então, está tudo escrito? Nossa espécie inventa coisas. Assim, muita coisa é resultante da transa dessas escritas, que começa a proliferar. Diante de uma pessoa falando, se comportando, não esquecer que ela é marionete. Se tiver a sorte de passar por uma HiperDeterminação, ela colocará outra coisa, mas, de modo geral, não se usa a HiperDeterminação. Ela acontece de fora à pessoa. Alguém foi hiperdeterminado, conta para nós e compramos como mais um elemento de nosso repertório. Compramos do outro, não reviramos. Ou seja, algumas pessoas têm o azar de revirar. São aqueles malucos que ficam inventando coisas por aí. Repetindo, falar é a expressão de uma escrita, a qual é imensa por ter Autossoma, Etossoma e Heterossoma. Isso se cruza, isso transa e resulta em falarmos. Tanto é que, diante de uma língua que desconhecemos, nada diremos, pois não está em nosso repertório, lá não está escrito. Há que fazer uma lesão na cabeça das crianças e torná-las as estúpidas que falam tal língua. Se não falam todas, são estúpidas. Então, dito isso, o que é a escrita? Se, ao falar, nada mais faço do que expor o que está escrito – Maktub, diziam os árabes: ‘o que está escrito’ –, o vetor é do escrito para a falação. Quando 64

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invertemos este vetor, estamos escrevendo. Inverte-se ao querer tornar o que falamos da mesma ordem do escrito. Por isso, Lacan falava em letra e significante. Posso, agora e aqui, estar articulando um suposto pensamento, o que é bastante diferente de escrevê-lo. Daí que a transcrição do que falo é sempre ruim, cheia de defeitos. A transcrição é linguageira, linguística, toma a língua e diz o que a pessoa falou. Mas o ato de escrever – a instância da letra no Inconsciente, segundo Lacan – é uma inversão de vetor. Quero decantar em certa materialidade o que foi dito, o que digo, mas, no que se vai decantar, a escrita não tem o estatuto do dito. Tomemos um exemplo do século XX para cá: esses gravadores aqui sobre a mesa estão inscrevendo a minha fala. É uma das loucuras da humanidade que, para não perder o que é da ordem da falação, tenta, de alguma maneira, inscrever. Isto começou lá, quase na pré-história, com as primeiras inscrições, que eram tentativas de colocar na pedra o que disse o faraó, por exemplo. Alguém que não seja daquele campo – Champolion, qualquer um – achará muito difícil, pois aquilo nem está falado. É preciso o esforço de recompor uma língua que ele sequer sabe se era assim mesmo, e não era uma escrita sonoramente válida como o gravador. Isto porque está lendo o escrito e tentando tirar dele, quem sabe, uma língua falada. Mas é impossível. Dá apenas para fazer um arremedo. Do meio para o final do século XX, ficamos acostumados com a ideia de que a imitação do Primário cresce a cada dia. Inventam-se gravadores, computadores, etc., para materializar o que é da ordem do significante, segundo Lacan. Ou seja, materializar o que é da articulação que vem de outra escrita: vem de uma escrita, exprime-se e, de novo, queremos tomar e colocar em outra escrita. É um drama, ninguém consegue. Por isso, o escritor sofre tanto – por saber que não consegue escrever direito o que gostaria. Realizar isto só será talvez possível quando houver um computador quântico (porque bífido) com a competência de usar a bifididade em reviramento. Conseguimos inventar língua porque o Primário já é linguagem. Na transa com o Primário, já começamos a marcar ações ou o que for. Nossa teoria da escrita e da fala resolve algo de que o século XX padeceu. Por isso, existiu Derrida e sua gramatologia 65

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que, como sabem, é uma cabeça de muçulmano, cabeça de quem proibiu a figuração e resolveu escrever tudo. A arquitetura árabe não é geométrica como a grega, e sim gráfica. Tudo, para eles, é configurado a partir da escrita, inclusive as artes plásticas. A teoria que coloco para vocês hoje deve quase tudo à teoria da informação. É Oespírito. Observem que, mudando o suporte, muda o processo de transmissão. É o que diz McLuhan: o meio é a mensagem. Escrever sobre a pedra ou sobre o papel é diferente de escrever sobre o eletrônico. Filmar, por exemplo, já é escrever, já é inscrever – e é diferente do teatro, no qual se fala, se exprime. Ao filmar, já fazemos muitos cortes, muitas aproximações. O teatro não é assim, ele é da ordem da fala. O ator parte de um texto, enfia-o na cabeça, textualiza com seu próprio texto e se exprime aqui e agora. Já a escrita, caso do cinema, é o repertório do ator e a escrita do autor. Vemos, aliás, o pessoal da vanguarda teatral querendo fazer escrita. Beckett, Ionesco, Brecht, por exemplo. Observem que o improviso é o autor em cena – não é uma escrita. • P – Lacan, em sua obra, tinha a questão do falado e do escrito. O problema de seus seminários era o da transcrição que virava texto. Ele tinha a Radiofonia, a Télévision, cada meio diferente do outro... Algumas vezes, ele escreve, o que não é o mesmo que o seminário que, este, é uma transcrição, mas puramente como se fosse uma tradução de língua para língua. Quanto a mim, detesto “escrever”. Melhor dizendo, detesto fazer redações. Redação é pensar algo e colocar no papel. Escrever é outra coisa. Quando consigo, gosto. Vocês certamente reconhecem quando é transcrição do que falo e quando é escrito. Os escritores sofrem por ser muito difícil fazer a escrita do que estão pensando. Como dizer uma frase que pode suportar o que estão pensando, e não cortando, podando, situando, minimizando. Tanto é que a escrita mais escrita é a poética. Lacan dizia que não é possível ser psicanalista sem agir conforme a escrita poética chinesa. O que ele lá está recuperando é que a escrita poética chinesa é pura escrita, cada chinês faz uma leitura diferente. A literatura chinesa depende de quem lê. A ocidental é mais semantizada. 66

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Mesmo assim, o poeta a arrebenta e ficamos perguntando do que ele está falando. Sabemos, mas não sabemos dizer o que ele está dizendo. Somos pegos por sua escrita porque é uma escrita. Lacan dizia que, se alguém começa a declamar poesia, todos dormem. A mesma vetorização acontece em toda e qualquer produção humana. O que é, por exemplo, uma técnica que resulta numa tecnologia produzida? É a mesma coisa. Como inscrever o que é da ordem do Secundário como se fosse Primário ou como se fosse espontâneo? A escrita é da ordem do Secundário, por razão do Heterossoma • P – Há diferença entre inscrita e escrita? São a mesma coisa. Só fiz a diferença para percebermos que está inscrito aqui, que é uma escrita: está no corpo, no cérebro, e inclusive na transa com o exterior. Como eu dizia, o vetor da escrita é o mesmo da técnica, no sentido da produção de próteses. Parece que não se vê que qualquer tipo de prótese é uma escrita. Vemos algo no Espontâneo, articulamos secundariamente com aquilo, temos o desejo e a angústia de sua apropriação produtiva, aprontamos uma técnica que resulta numa prótese – e isso é uma inscrição, uma escrita. Sem certa exemplaridade do Espontâneo, ficamos meio paralisados, pois é preciso ser muito abstrato para inventar algo que não tenha sido sugerido pelo Espontâneo. Por exemplo, alguém, com inveja dos pássaros, articula toda uma engenharia para voar como eles, e consegue. É como, pois pássaro não voa assim. Até hoje, há gente que procura fazer uma prótese e inscrever em sua anatomia o pedaço que falta para ele ser pássaro. McLuhan chamava isto de extensões do corpo.

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13 Vejamos agora algo que pertence ao mesmo âmbito de composição de sonho e realidade. Sobre Chuang Tzu há a anedota de que ele sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era Chuang Tzu sonhando ser borboleta, ou se era a borboleta sonhando que era Chuang Tzu. Isto é uma asneira. Que parte da ingenuidade de Chuang Tzu estava dizendo isto? Lacan, com sua cabeça chinesa, tomou esse acontecimento poético – que, aliás, só vale por ser poético, e não por ter a ver com algum acontecimento que inclua a realidade – e disse que não existe despertar. Ao acordar do sonho, entramos em outro sonho. Mas isto não está correto, pois justo quando se está dormindo e sonhando, estamos livres de muitas inscrições da chamada realidade. Estamos sonhando numa transa de formação para formação do repertório que está em nós. Se a realidade entrar – por exemplo, houve mudança de temperatura, um barulho no ambiente, etc. –, vai pelo mesmo registro: primeiro se inscreve e, depois, se sonha. Quando não estamos dormindo, podemos fazer erros, alucinações, etc., mas entram em jogo outras formações que podemos chamar de realidade. Não chamo assim, pois a realidade é a resultante da transa de nossas formações com outras formações. Portanto, ao despertar, acordamos de certo modo. Não é que temos a lucidez ou a certeza de alguma realidade, e sim que passamos a incluir nas transas várias formações que não estavam sendo incluídas e que são externas. Não é a mesma coisa. É a mesma coisa quando alucinamos, pois, na verdade, estamos olhando para o Haver, para o mundo, com a distância do sonho. Aí, sim, estamos sonhando acordados. Não conseguimos acordar e, mesmo olhando para as coisas da realidade, elas se reconfiguram totalmente como sonho. Deliramos sempre, ainda bem. Eu, nunca tive maiores alucinações, mas, durante a última cirurgia que fiz, me deram remédios que me fizeram alucinar doidamente. Achei lindo, muito interessante. Eu estava acordado, não conseguia aceitar realidade ou verdade alguma que acontecia em volta 68

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e para as quais olhava. Além disso, incluía alguns elementos de sonho. Isto, na realidade, vendo. Sempre estudei e falei sobre isso, mas agora tenho a experiência, sei como funciona. Não conseguimos acordar mesmo entrando os elementos externos na transa, pois estes já entram reconfigurados como sonho. O mesmo ocorre ao pessoal que se droga. Já lhes recomendei a leitura dos quatro livros de Henri Michaux sobre o movimento psíquico, em que narra suas experiências com a mescalina e com os sonhos. • P – Há despertar na experiência de HiperDeterminação de alguém? É um tanto abusivo dizer que uma pessoa desperta. O Revirão é que desperta. É preciso tomar cuidado com certo misticismo do despertar, de alguém virar Buda. Ninguém vira, nem Buda. É o acontecimento da HiperDeterminação: de repente, isso revira e um lado do Haver, que nunca antes comparecera, comparece. Mas só comparece o que há. Jamais comparecerá o que não há, pois isto não é possível. Dizemos que o poeta cria, mas o que faz é roubar coisas que antes não compareceram. O que está em jogo aí é a HiperDeterminação, pois é possível revirar sem ela, por questões intelectuais, de considerar o outro lado, para lá ou para cá... Freud, por exemplo, considerou o sentido antitético das palavras primitivas, intelectualmente descobriu que isto faz Revirão e se aproveitou deste conhecimento para falar em reviramento da pulsão, da língua, do sintoma... Outra coisa, é alguém sofrer um Revirão quase que espontâneo. Se ele joga numa situação de Cura, aí, sim, foi hiperdeterminado. Emergiu para ele algo radicalmente novo. Pode ser algo muito pessoal o sintoma revirar num processo de análise. Ele, então, fica solto, pois, se algo tem duas caras, não é nada, nem uma coisa nem outra. Vejam que, sem surgir o Ponto Bífido, uma pessoa não tem permissão para variar dentro de sua realidade, não está solta para constituir realidades. Não estou falando do Real, e sim de realidade. Para os idealistas, não existe o mundo lá fora. Para os realistas, existe, sim. Só que a realidade se dá é na transa entre estas e aquelas formações. Portanto, é mera realidade, a coisa em si de Kant não comparece. Pode-se, pois, produzir um reviramento estritamente intelectual. Por exemplo, se, diante de determinado dito, eu perguntar por seu contrário, estarei fazendo exercícios intelectuais de utilizar o Revirão que 69

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está nas coisas, está aí. Isto é diferente de passar pelo desejo – isto é, pela angústia – do dizer, conseguir revirar e dizer: é HiperDeterminação dada. Posso provocar, mas não produzi-lo. É um acontecimento. Quando caiu em minha cabeça uma Tópica, é porque nada inventei, ela caiu ali. Aliás, não me responsabilizo por uma bobagem dessas. Sou vítima. É preciso entender que o chamado autor é a vítima. • P – A tatuagem parece ser algo da ordem do modo como você falou sobre a inscrição. Sim – e é meio imbecil. A pessoa está no desejo, se não na nostalgia, de inscrições. Em vez, de aumentar o repertório, desenha a pele. É querer acrescentar-se de escritas por um caminho em que o artista é outro. Ela vira tela, suporte, e não artista. Alguém começa a delirar. Como não sabe que é delírio, acha que é Deus, que Deus está falando com ele. Dá uma impressão de psicose, mas é porque ele não tem condições de distinguir seu delírio de algo externo. O psicótico ouve vozes mesmo. Mas há aquele delirante que não é o psicótico propriamente dito: sua produção é psicótica, mas ele não o é. Como não sabe explicar, acha que está ouvindo a voz de Deus. Ou, se não, está falando assim para os outros acreditarem nele. Qualquer religião é suspeitável por ser mero projeto de, primeiro, produzir conhecimento e, segundo, mediante esse conhecimento, impor dominação. É desse mesmo modo que a psicanálise passa por um processo de Igreja. O pior nela é a vocação eclesiástica, o que é algo desnecessário. Há vocação eclesiástica na física, na química, na matemática? Talvez não, talvez menos. A psicanálise imita a religião. Já escrevi: Psicanálise Arreligião. Entendam disto o que quiserem. Ela tem imitações da religião por esta ser a primeira forma científica de entender a espécie. Religião é conhecimento. Podemos chamá-la de filosofia ou de ciência, pois é disto que se trata. É a ciência de um primitivo idiota e ignorante – que vai explicar o mundo. Só que, ao invés de ser numa transa direta com as formações, é uma transa interna de delírio. Discute-se demais sobre a diferença entre a ciência e a religião. Alguns dizem mesmo que a ciência não precisa discordar da religião. Nunca precisou, pois a religião 70

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é um laboratório de conhecimento completamente retardatário, arcaico, ignorante, que não leva em consideração a transa entre as formações com cada vez maior aproximação. Ela inventa um esquema de conhecimento. Nos EUA, por exemplo, temos tanto um grande número de gente com aceitação científica da origem do Haver, com aceitação darwiniana da origem da vida, do aparecimento desta espécie, quanto um grupo enorme que é criacionista. Este último grupo acha que um pensou assim e outro pensou assado, mas, como é a mesma coisa, prefere este lado. Só que se esquece do esforço de aproximação cada vez maior das formações dadas, e, dado que inventou um esqueminha, este começa a produzir a realidade. É, aliás, o perigo da filosofia e também da psicanálise. Por isso, há sempre que ir à clínica e ver como funciona. É tudo muito delirante. Os filósofos do Ocidente estão todos falando bobagem – e todos estão certos. Estariam errados por quê, se pensaram o que pensaram? A briga entre eles é apenas para ver quem domina. Até Kant tem alguma razão. Na época atual, não se acredita em achar o filósofo certo. O que há são formações disponíveis para arrumarmos os fatos. Alguém empiricista, ao olhar por sua lente, não está errado. Já o idealista, ao olhar pela lente das fofocas de sua cabeça, tampouco está errado. Ambos estão certos em suas loucuras.

14 Vocês estão aí estudando o texto A Significação do Falo, de Lacan (1958). Para ele, o falo é o significante do desejo – e está presente em Freud com o 71

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nome de libido, a qual tem que ser masculina porque ele era homenzinho. Helen Deutsch e Karen Horney têm razão ao questionar isto, já que ele faz tudo em cima da própria história e do próprio Édipo.

Em 1936, Otto Fenichel escreve The Symbolic Equation: Girl = Phallus, cuja leitura fez com que eu me interessasse por Lacan, que tira seu conceito de falo deste artigo. Entendamos que qualquer autor está sempre subdito à ordem de seu protocolo teórico, tem que dar conta dele, e aí começam as proliferações. O protocolo de Lacan, como sabem, é: Real / Simbólico / Imaginário, que governa tudo. Um autor não faz o que quer, e sim o que a escolha protocolar mandou, ela é seu algoz. É igual ao neurótico. Ele tem que obedecer ao protocolo e às bases conceituais. Lacan vai até o fim tendo que apresentar cada coisa numa ordem de nó borromeano, num dos registros. Por isso, inventa um falo real, um falo simbólico e um falo imaginário. Ele toma o Édipo, de Freud, e submete à ordem linguageira, simbólica, do século XX. O Édipo fica mais limpo do que era, mas não fica bem limpo. A época permitiu que Lacan desse uma abstraída ao falar em Nome do Pai, foraclusão, ordem simbólica, significante do desejo, da lei, mas, ao explicar, ele coloca o pai e a mãe na jogada. Por quê? O que está o Édipo fazendo aí no meio dessa abstração? Se um casal lésbico adotar um bebê recém-nascido, como resolver o Édipo? Freud viveu aquela loucura com os pais dele, e achou que a estava ouvindo de todos. É possível achar isto, pois, sendo século XIX, início do XX, era obrigatório ser assim, com pai e mãe. O garoto fica apegado à mãe, o pai intervém, e há aquele que fica apegado ao pai, inventa-se o complexo de Electra, um monte de bobagens... Na verdade, a criança está apenas na disputa de alguém com alguém. Se quisermos abstrair mais, tiremos o alguém: a criança está na disputa entre duas formações competitivas. Vejam que Lacan dá um passo adiante ao falar de organização simbólica, mas, ao dar o exemplo concreto, ele volta. Lembrem-se de que ele tem um livro sobre os Complexos Familiares. Repito que isso tudo é muito velho, datado, esse mundo acabou. Não só acabou o estruturalismo como também o anti-estruturalismo 72

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pós-moderno, o pós-estruturalismo. No Brasil, isso ainda permanece, mas é retardado. • P – Mas a família ainda é pregnante e vigente em toda a sociedade. Isto não tem a menor importância. A importância para nós é que temos que teorizar com formações, sejam quais forem. Então, ao invés de, desde Freud, Lacan ter abstraído e dito que há duas formações em conflito com a terceira, colocou: papai, mamãe, neném... Daí Deleuze e Guattari terem feito a violência de escrever O Anti-Édipo (1972), um livro maravilhoso. O pós-estruturalismo está sendo vencedor nos hábitos culturais. Fora das igrejas psicanalíticas, ele está sendo o mais votado. Mas já chega dessa turma. Ela está ultrapassada pelos fatos e pelas teorias. Foucault e Paris já acabaram. Valem como destino de turismo, pois os gênios estão em outros lugares. Paris dos anos 1930 tem um sintoma grave chamado Kojève, que teve enorme influência sobre Lacan, Bataille... Ficaram viciados e, mesmo os que contestaram, estavam sob a égide de seus seminários. Lacan os seguiu durante seis anos. Isto faz um mal danado. O estruturalismo filosófico e psicanalítico – não LéviStrauss – são doentes do seminário de Kojève. Mesmo que Lacan negue, há um Hegel passando por dentro do que ele traz. A ideia de “desejo do Outro”, por exemplo.

15 O pós-estruturalismo está vivo, mas a contemporaneidade do pensamento não é mais nada disso. É parecida com a NovaMente, que nada deve a outros, 73

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pois falou antes (ou junto, mesmo sem conhecer a patota nova). Trata-se da patota contemporânea, que é neo-realista (e cita o neo-realismo brasileiro como sendo da maior importância: Machado de Assis, Lima Barreto, Jorge Amado, Graciliano Ramos...). Eu a desconhecia. Só agora a estou conhecendo e vejo que, na filosofia, fazem as mesmas exigências que fiz na psicanálise. É o caso de Maurizio Ferraris, mais perto de mim, de Markus Gabriel, um italiano, outro alemão... sem França. Eles – há outros – fazem algo parecido com o que fiz, têm a mesma postura, mas com o defeito de não terem uma Tópica adequada – como Primário / Secundário / Originário – que os ajudasse a raciocinar, e de não saberem o que fazer com o Haver, que chamam de “existência”. Neo-realismo quer dizer que essa turma passada, tanto do estruturalismo quanto do pós-estruturalismo, acredita demais em linguagem, na dominância do linguístico e do linguageiro, na ordem significante. Isto, esquecendo-se das coisas. Não precisei ler os neo-realistas para pensar o mesmo que eles. Eu não inventei, fui inventado: a situação me levou para esse lugar. Nenhum autor fez, ele foi feito. Ele deve ter algum sintoma esquisito que o faz pegar as coisas no ar. Freud, por exemplo, é alguém do século XIX judeu, e não podemos dizer que estava errado ao dizer o que disse. Aliás, não é porque Freud brigou com Jung que não vamos lê-lo. Dentro de sua loucura, pensou coisas incríveis. Como já lhes disse, a noção de arquétipo é importante, pois não é possível que o fato de o sol, por exemplo, surgir e se pôr todo dia não esteja inscrito aqui em nós. O arquétipo sol existe, tanto é que virou Deus em civilizações antigas. O início do monoteísmo se deu em referência a ele. Já falamos bastante de Amenófis IV, que produziu uma religião para derrubar a religião mitológica anterior, a qual também existia, era concreta. Jung tem razão ao dizer que somos cheios de inscrições arquetípicas, todas provenientes do dado do Primário e do Artifício Espontâneo. Em 2008, fiz um Falatório intitulado AdRem que, mesmo pouco desenvolvido, vai nesse sentido. Depois, falei melhor. Trata-se de que as coisas existem independentes de minha mente. Não são construções dela. Os neo-realistas não mandaram embora o sujeito como fiz (e o objeto foi junto), 74

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ficaram com ele. Isto vai lhes fazer mal. No que coloco a Teoria das Formações, parto para a exigência de haver algo independente de mim, e também de haver coisa para cá, sem falar de sujeito ou objeto. Os neo-realistas lutam contra a loucura do século XX que achava que tudo sai de nossa cabeça e criticam justamente a ideia de construção social. O pós-estruturalismo também se afasta da crença no linguageiro, mas continua com sujeito. Foucault, por exemplo, dá garantia à hipótese de que a ordem dos poderes é uma construção social, linguística, histórica. Não o vemos falar do poder do sol, e tudo parece produção da espécie, produção mental. Derrida tentou sair pela tangente tomando a ideia de letra – que Lacan colocara antes – para falar da escrita. Já fica mais perto, mas ainda parece que o mundo é determinado pela mente, pelas situações linguageiras, i.e., é produzido pela espécie. Como disse da vez anterior, letra, em Lacan, é: um gravador gravar. A letra é o que lá está inscrito. Disse ele que a letra não era o significante, mas o que fazer com um significante que, às vezes, é muito duro, parecido com a letra? Em Freud, a letra é a Bahnung, a trilha, a lesão, como chamei. Mas, hoje, temos uma tecnologia de tal ordem que ensinou a traduzir os elementos da filosofia, da psicanálise e das ciências humanas por tê-los concretizado, produzido em laboratório. Ela desgastou e aboliu esses conceitos anteriores. O grande Outro é a Internet, o tesouro dos significantes. E quanto mais a nuvem aumenta, mais nos tornamos nefelibatos: andamos sobre nuvens. O Google é o sujeito suposto saber. Então, ao concretizar tecnologicamente – e esta é a função da ciência: produzir coisas – os conceitos (que são tentativas de entendimento do que se passa na mente), torna-se possível o gravador ir gravando as falas, fazer um monte de inscrições. Ao falarmos, não estamos apresentando as inscrições, e sim falando a partir delas. Estamos as exprimindo por outra via, que Lacan chama de significante, mas ele próprio quebra a cara ao também dizer que a imagem é um significante. Lyotard, por sua vez, entra aí de sola ao afirmar que o sonho é um rébus. (Temos que entender que há vários Lacans, o processo vai se transformando até o dia em que ele fica mudo, não fala mais. É, aliás, o melhor trabalho que fez). 75

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O estruturalismo achava, quase que fenomenologicamente, que a construção é do lado de cá. Ele é construtivista: a determinação da realidade parte daqui para lá. É quase kantiano. O outro, enquanto articulado, é quem fala e determina a realidade. Mesmo em Foucault é assim. O neo-realismo não aceita isso: as coisas existem, acontecem e têm força de imposição. Imposição sobre nós, dizem. Não digo isto e os acho pouco abstratos por ainda terem “eu e o objeto”. Quanto mais conseguirmos pensar, articular e transformar em materialidade concreta – em tecnologia vigorosa que sustente (medicamente, comunicacionalmente, etc.) nossa vida, por exemplo –, mais perceberemos que aquilo existe mesmo, e não é construção da mente. Posso não existir, mas as coisas continuarão existindo. O mundo não acabará junto comigo. Na cabeça dos neo-realistas, as coisas existem e os sujeitos estão para cá. As coisas têm existência própria e impõem certas formações, digo eu. • P – Homem e mulher pareciam ser dados. Depois, foram tratados como construções e, em seguida, buscou-se desconstruí-los. Quando se mostra o que foi produzido na ordem simbólica, linguageiramente, não se está deixando de considerar o que foi dado. Na cabeça de estruturalistas e pós-estruturalistas, a determinação ainda é mental. A história da filosofia tem realismo e idealismo, e o neo-realismo vai contra isso. Como disse, o que não gosto neles é a pega que mantêm em sujeito e objeto. Para mim, sujeito é uma construção que pensa que está construindo. O que me interessa é que formações transam. E as formações de base são dadas, aquilo é dado, e vêm outras formações – também concretas porque escritas e podendo transar uma com outra, do lado de cá, por exemplo – e interferem. São apenas muitas formações em jogo, sem sujeito ou objeto aí. • P – Fazer análise não é desmanchar as formações? Seria, se realmente fizessem análise. Derrida colocou de lado a palavra análise e chamou de desconstrução, mas é a mesma coisa, só outro procedimento heurístico. Está-se confiando demais na construtividade do mundo pela espécie humana. A fenomenologia – Husserl, por exemplo – é menos lateralista por voltar para as coisas com muito mais realismo 76

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do que o pessoal da linguagem, da história. Foucault é alguém de textos, palimpsestos, bibliotecas. Observem que se trata de postura, pois mesmo alguém de laboratório pode ser idealista e achar que ele é quem está produzindo aquilo por ser ele que está pensando. O importante é a postura de achar que há dados. Não sou eu que está o tempo todo delirando ou alucinando, pois há dados concretos. No que há dados concretos, o estatuto da verdade muda. Lacan não tem dados concretos para este estatuto: a verdade é, praticamente, psiquicamente construída. Você dirá a “sua” verdade. Mas isto só é possível quando ela está escrita mesmo aí dentro. Isto assim como uma caneca que está aqui fora tem que ter uma caneca lá dentro. • P – Você também diz que a verdade é sexual. Em última instância, toda verdade é sexual porque estou falando (não de trepação, mas) da impossibilidade de estabelecer relação, qualquer tipo de relação. Tanto é que os realistas contemporâneos dizem que não há mundo por causa do raciocínio matemático da inclusão. Se há mundo, em que situação esse mundo está? Ele cresce para lá, e vai até o infinito... Para mim, Mundo é outra coisa. É como se estivessem dizendo que o Haver não é completo ou todo, pois não há maneira de raciocinar isto. Quando tento colocar registros novos – Primário, Secundário e Originário –, observem que o Primário é dado, não há discussão com ele. É possível domá-lo, contê-lo, aproveitá-lo, mudá-lo mediante intervenção nossa, mas, repito, ele é dado. Não há isto colocado em Lacan. Em Freud, há um pouco. Então, ao colocar essa Tópica, estou estabelecendo registros de Haver que não são do mesmo nível. Digo que “há o Haver e o não-Haver não há” e que Alei é “Haver desejo de não-Haver”, mas como não há o Haver se estou falando dele, chamando seu nome, raciocinando com ele? Há um desnível, pois existe o não-Haver no nível Secundário. Os neo-realistas falam como eu: Como não existe o unicórnio? Como não existe Deus? Se estou falando os nomes deles, logo existem. O teórico com vícios platônicos faz a suposição de que precisa provar que há um Deus no Primário, no Artifício Espontâneo, e não consegue. Aí Michelangelo faz aquele velho barbudo dedando Adão, mas 77

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por que Deus envelheceria se é eterno, está sempre no mesmo lugar? Já o Secundário, este, é produzido. É produzido porque há o Heterossoma no Primário. Ele consegue ser produzido a partir de suas bases primárias sem a materialidade do tipo da do Primário. É outra materialidade, está escrita, é letra, está lá, não há espiritismo aí. Os idealistas falam de alma, que não sabemos onde a enfiam. Então, se quiserem, podem dizer que o Autossoma é o corpo, o Etossoma a alma, e o Heterossoma o espírito. Qualquer animal tem alma. Até as mulheres a têm, mesmo que antigamente dissessem que não tinham. Ou seja, corpo, alma e espírito estão inscritos no Primário, é tudo material. Mas como há o Heterossoma, coloco-o no Primário e digo que é o Originário desta nossa espécie: é o que faz produzir esta espécie no que produz o Secundário dentro do Primário. Não podemos, então, dizer que qualquer coisa que o Secundário produza a partir de suas inscrições – que são materiais – não seja absolutamente existente. Por exemplo, dizem que é enganar as crianças falar em Papai Noel, mas elas têm que acreditar em tudo, lobisomem, etc., porque isso existe. O que têm que entender um dia é que isso é uma produção do Secundário, e não ficarem procurando existência no Espontâneo. Num livro antigo, publicado em 1974, Aboque/Abaque, fiz a seguinte brincadeira: CONVERSA ADSURDA A – Eu, sou realista. Dura lex sed lex. Quando fiz dez anos, Papai e Mamãe me chamaram e me disseram hones­tamente: “Meu filho, agora você deve saber: Papai Noel não existe”. B – Comigo foi um pouco diferente. Talvez eu também seja um... realista. Não me lembro bem quando, Papai Noel me chamou e disse, na verdade: “Meu filho, você tem que saber: Papai e Mamãe, não existem”. Isto porque papai e mamãe são secundários. Alguém já viu cachorro com papai e mamãe? Nós é que ficamos juntando papai e mamãe para produzir pedigree de cachorro puro sangue, mas é manipulação do biológico. Tanto é que não têm interdição do incesto alguma, e imediatamente comem a mãe. Eles têm é genitor. O Secundário é tão concreto quanto o Primário, mas é de 78

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outro nível. É produção industrial da espécie. Jorge Luis Borges é bom nisso. Produz um Secundário concreto, e ficamos de boca aberta porque aquilo existe. A briga, hoje, em torno do Gênero é porque o gênero é Secundário. A anatomia Macho e Fêmea é primária e pode mesmo vir com alguns enganos da ordem do Autossoma, mas aquilo é concreto, dado. Já Masculino e Feminino são produzidos. Ou seja, temos dados sobre os quais podemos delirar, mas há o dado. Em nível de Etossoma, já nos animais, há homossexualidade. É, portanto, outro tipo de dado da “alma” do bicho. Esta é que é homossexual, e não o corpo. Está escrito em seu Etossoma. É preciso entender que, às vezes, o gênero varia por razões etossomáticas: está escrito. Não se pode perseguir alguém pela anatomia que tem, pois é etossomaticamente que tem gênero contrário. A vigência secundária o fez escolher certo caminho. Aquele que sofre de seu gênero por razões primárias, não tem identificação, o que tem é identidade. Ele tem um autossoma macho e identidade fêmea no etossomático. Para outros, foi por via de identificação, é secundário, mas, repito, é concreto: é lesão cerebral, está lá. Há que respeitá-los, pois está escrito. É como no jogo do bicho: vale o escrito. Isso tudo é muito velho. Quem já escreveu uma solução sobre o problema do gênero foi Virginia Woolf, com Orlando (1927). Ela genialmente transcreveu a questão e lá deixou. Ela não se aguentava consigo mesma, e matou a Virginia. E havia aquele bando de malucos à sua volta fazendo o mundo novo. Aquilo parece com o acontecimento do estruturalismo na França • P – Mas Lacan também não mostrou que essas supostas realidades são fruto de uma construção cultural, inventada, chamando-as de Imaginário? No que diz isso, Lacan está dizendo que tudo é construído desse modo, mas não está partindo de um dado. Foucault parte da tese de que tudo é construído mesmo, inclusive na crítica do estruturalismo. Se tudo é construção, o arbitrário está valendo. O neo-realismo vem dizer que não é arbitrário, pois tem bases de dados concretos. Ou seja, o Artifício Espontâneo, que chamavam de natureza, está lá, não é maluquice de alguém. Algumas 79

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pessoas enlouquecem, têm alucinações, mas o Artifício Espontâneo está lá – e a alucinação também está escrita na cabeça delas. • P – A neurociência também está dizendo isto. Ela partiu do dado. No tempo de Lacan não havia neurociência. Quando Jean-Pierre Changeux escreveu o Homem Neuronal, em 1983, Jacques-Alain Miller pulou nas tamancas. Era o pessoal já dizendo que há dados em jogo. Hoje, temos neo-realismo filosófico, neurociência de laboratório, psicologia de laboratório, e o que tenho dito está em vários campos. Por exemplo, num artigo publicado na revista francesa Science et vie (out. 2015, p. 54-65), intitulado Pensamos de maneira quântica, o Revirão está lá escrito na totalidade do cérebro. Ele não é uma coisa, e sim uma função cerebral desta espécie. Nem estruturalistas ou pós-estruturalistas mostram os fatos. Ficaram com a tese de Nietzsche de que não há fatos e só há interpretações. Posso dizer que só há fatos e não há interpretações, pois, quando alguém pensa estar interpretando, está tomando um dado e produzindo em cima do dado, isto é, está criando um fato novo. Analista não interpreta, ele intervém no sentido de colocar um fato novo no fato velho. Lembrem-se de que os dois aviões que destruíram o World Trade Center não são imaginação, são fatos novos. O que se dirá depois é que será produção de fatos novos sobre o trauma do dado. O dado é traumatizante • P – Foucault também fala em evento ao tratar das formações discursivas. Para ele, evento é uma emergência espontânea. Não é provado dentro de seu teorema.

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16 As coisas estão se acelerando de tal maneira que o que quer que tenha acontecido no século XX virou peça de museu. É tudo de uma precariedade enorme. Procuro me informar sobre isto no sentido de saber se estou contemporâneo de mim mesmo. E estou – às vezes, estou na frente, mas é muito tristonho para quem fez um patrimônio, um repertório, para entender determinada configuração do pensamento e, quando acaba de entender, aquilo está morto. Aí, como lhe custou tão caro, fica enciumado querendo salvar, pois é difícil jogar fora e pegar outra coisa. Temos alguns autores bem contemporâneos, mas com uma formação anterior tal que lhes traz extrema dificuldade para passar adiante seu pensamento. Estão pensando bem, mas seus textos não conseguem se libertar dos conceitos e ficam querendo explicar para trás. Em vez de jogarem fora a noção de sujeito, por exemplo, permanecem presos a ela. Um bom exemplo é Markus Gabriel, que tem uma cabeça bem atual, mas se enrasca por não tomar a liberdade de ir em frente. Por outro lado, há aqueles que estão indo em frente e tentando dar conta dos acontecimentos, que, estes, estão mais rápidos que os pensamentos. O terrível é justamente isto: os pensamentos estão atrasados em relação aos acontecimentos. Basta olhar em volta para vermos a nova loucura, a loucura que mudou de repertório. E se olharmos de maneira retrógrada acharemos que tudo está degringolando. Ao contrário, digo eu, tudo está sendo criado de novo. E mais, com atraso. Por isso, acho que devemos ter uma metodologia mais adequada. A história da psicanálise é uma grande sequência de personalidades. Ou seja, as diatribes internas – ser junguiano, lacaniano... – são uma imbecilidade, isso já acabou. Vemos que são apenas pessoas, com seus repertórios, com suas sintomáticas, pensando de seus modos o mesmo problema. Não há evolução na história da psicanálise, mas apenas ficções diferentes. Podemos tomar 81

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um autor mais antigo, ou mesmo mais atual, verificar que ele é fraco, mas seu caminho serve. Vejam Wilhelm Reich, por exemplo, que se perde, não tem força para aguentar o que inventou. Aquilo não está errado, mas, como ficou pirado, perdeu-se porque – ao invés de entender que o movimento é intrinsecamente libidinal, isto é, que o Pleroma sofre de libido, de desejo de alguma coisa – quis capturar em termos de energia disponível. Jung, o mais mal falado do lado dos freudianos e lacanianos, também está certo ao se dar conta de formações mais ou menos constantes na ordem dos conteúdos e das produções literárias, artísticas, etc. Só que não é tudo – é, aliás, muito pouco. • P – A NovaMente não é uma evolução? Não necessariamente. É um enriquecimento. Podemos supor determinado autor que, por ter dado sorte, conseguiu determinado caminho que acrescenta, torna mais eficaz. Mas, no cômputo geral, o que temos é o problema sério de lidar com o Inconsciente – sobre o qual já se falava há muito tempo, aliás – e maneiras de abordagem que dependem grandemente daquela pessoa, daquele repertório, daquela sintomática, daquela história, mediante o que tal autor pôde armar seu aparelho teórico, que é um acrescentamento. Assim, NovaMente não é uma evolução. A evolução é a emergência do Quarto Império – o qual arrasta consigo a NovaMente. Retomando o que dizia no início, vivemos agora um período em que até os melhores estão meio perdidos. Isto porque, repito, o acontecimento, sobretudo no campo da tecnologia, está na frente dos pensadores. Estes, antes, estavam na frente do processo, diziam coisas que tínhamos que correr para poder acompanhá-los. Agora, os acontecimentos de mundo, de produção, de mercado – que é o que empurra a tecnologia com grande velocidade –, estão adiante do pensamento, que tem que sair correndo atrás. Faço, pois, a sugestão de operarmos de um modo que parta do contemporâneo, que tome como núcleo nossa produção teórica, vá para suas ramificações, veja as injunções que tem no passado, e busque ver se há passos dados ou não. Trata-se, hoje, de Arte (que, segundo minha nomenclatura, é: tudo 82

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que se articula). Há o pessoal do Aceleracionismo – palavra de que não gosto, pois podia se chamar apenas Aceleração –, Nick Land, por exemplo. Há também os neo-realistas, de quem já falei na vez anterior, que são como eu, contemporâneos. Acho ótimo, pois, assim, não sou maluco sozinho, estou bem acompanhado. Para eles e eu, não apenas a produção e o mercado estão mais rápidos que o pensamento, como ainda estão atrasados. Ou seja, o mundo está atrasado em relação a si mesmo. O mundo está retardado em relação a seu próprio acontecimento, não só na maneira de pensar, como na maneira de produzir. A tecnologia está na frente, mas é pouco. Ela é muito lerda por causa de sua prisão em aparelhos passados, que são inibidores do movimento de disparada que o século XXI precisa colocar em ordem. A tecnologia é devagar por querer dar conta para trás. Há, pois, que acelerar para o troço desabar sozinho. Do ponto de vista dos esquerdistas – marxistas, etc. – que participam do aceleracionismo, é preciso acelerar para o capitalismo acabar. Acho isto uma imbecilidade, pois o capitalismo não vai acabar, e sim mudar. Eles próprios chamam de pós-capitalismo, e não de anti-capitalismo. Nesta nossa espécie, louca e egoísta como é, todos, no fundo, são capitalistas. Está, portanto, havendo um movimento perfeitamente compatível com o que tenho dito. Fico muito satisfeito. Ou seja, pode não prestar, mas estou vivo hoje. O defeito que vejo nesses grupos de pensadores é ficarem procurando para trás. Daí eu não gostar dos aceleracionistas de esquerda, que vão buscar o marxismo para pensar. Nick Land não faz isto. Já lhes disse, há tempo, que a tecnologia virou um pensamento. Há um pensamento tecnológico capaz de produzir e modificar o mundo radicalmente. A garotada atual está operando assim. Com a aceleração da produção, inclusive das articulações possíveis, estamos entrando no Quarto Império, numa era em que, ao olhar para trás, importa apenas fazer o resumo do museu. Aquilo que aconteceu, mesmo tendo produzido um novo paradigma, é apenas um infarto intelectual. Sobraram apenas algumas ferramentas trazidas por alguns pensadores, mas o arcabouço – isto que ainda se discute nas universidades – acabou definitivamente. A era nova em que entramos é radicalmente diferente e tem o direito de ter a sua vez. Então, se temos uma teoria psicanalítica contemporânea, se temos 83

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referências dessa contemporaneidade em outras áreas, devemos dar um salto quantitativo e qualitativo e, do ponto de vista didático, partir do hoje para entender o que está acontecendo. Há que mudar o vetor, referir-se às origens, mas não partir cronologicamente delas. Trata-se de fazer um polo da contemporaneidade, o qual deve mostrar suas franjas. Qualquer garoto inteligente hoje fica saltando daqui para ali. Pensamos que ele fica perdido, mas, ao contrário, arruma direitinho em sua cabeça. Sendo que é preciso tomar um centro, alguma arrumação contemporânea com a qual se possa fazer uma espécie de polo. Se não, ficaremos perdidos demais. Estou entusiasmado com o surgimento dessa gente nova, que são meus colegas, que não me deixam mais sozinho no hospício. Em termos de pensamento, o Quarto Império está tomando a palavra. Certamente que com erros. Mas, ao invés de frear, de ter medo da tecnologia – essas heideggerianices do século XX –, esse pessoal acha que é preciso acelerar para aparecer o pós, o pós-movimento. Ou seja, deixar instalar-se o Quarto Império, que está chegando quase que automaticamente em meio a pessoas atrasadas em relação a este acontecimento. Elas estão atrasando o processo. Observem, quanto à psicanálise, que temos o vício de achar que ela nasceu com Freud. Não nasceu. Basta ler Henri Ellenberger para verificar isto. É um fluxo que vem de longe, que Freud tentou organizar, colocar certa ordem, segundo seus vícios, suas taras. Não podia ser diferente, pois ele era Freud. Mas quando se realizará o sonho de Lacan, que ele próprio não realizou, de fazer disso um algoritmo que vamos aplicando? Aliás, algoritmo sempre resulta em algum aplicativo. É este o paradigma do Quarto Império. • P – Algoritmo é um termo que vem principalmente da máquina de Turing. Cria-se, logicamente, uma sucessão de passos para a execução de uma tarefa. Sua programação é tão precisa que nenhum elemento pode sair da ordem, sob risco de erro de resultado. Isto, na lógica binária, pois já temos algoritmos mais complexos. Há autores que pensam que todo ser vivo é composto de algoritmos biológicos e que a física se organiza em torno de algoritmos de ordem natural, etc. Alguns me dizem que, ao tentar organizar trabalhos sobre meus textos, 84

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sentem muita dificuldade por causa do movimento explosivo que há neles. É porque coloco um elemento e, com esse elemento, vou explodindo tudo. É disto que estou falando. Não que os antigos não tenham isto, eles também tentam fazer conceitos como o Édipo, etc., que vão aplicando. Entretanto, são conceitos desenhados, figurativos demais. Deleuze e Guattari, por exemplo, já no século XX, jogaram o Édipo no lixo. “Haver desejo de não-Haver” é um algoritmo – ou, se quiserem, um conceito produzido algoritmicamente –, cuja resultante é enorme, aquilo dá filhotes. Como sabem, conceito quer dizer “agarrar”, pegar algo. Por exemplo, Euclides agarrou “soma do quadrado dos catetos = quadrado da hipotenusa”, um conceito que, aplicado na superfície plana, com linhas retas, etc., dá uma geometria inteira. Ao ser aplicada fora do plano, começa a falhar: a soma dos ângulos internos de um triângulo começa a não fazer 180 graus. É quando aparecem Lobatchevsky, etc., e, ultimamente, Mandelbrot. Há tempo, falei aqui de Stephen Wolfram e sua New Kind of Science, na qual a repetição do simples produz o complexo. Lacan, por sua vez, disse que a única coisa que criou foi o objeto a, mas, quanto a mim, acabei com o objeto (e com o sujeito). Interessa é essa mudança de mentalidade de que falo. O que ocorreu no século XX é muito anedótico para pouca produção. A obra de numerosos filósofos, se espremida, cabe numa única página que, colocada no computador, já cumpre seu papel. A mudança de perspectiva está chegando, mas somos todos viciados. Em meus livros, há um monte de bobagem antiga, pois o rabo lá está preso. Aliás, qualquer um que pense tem que fazer o esforço de soltar o rabo. Se buscamos pensar sem sujeito e objeto, vemos uma desconfiguração que mata cinquenta por cento do narcisismo. Basta pensar no tal direito de imagem, de que falam tanto, que é também algo diferente em nosso mundo tecnológico. Na verdade, minha imagem é dos outros, pois não me enxergo, não consigo me ver por inteiro. Observem, então, que, quando digo que acabei com sujeito e objeto, não é que tenham morrido. Essas coisas não morrem, isso é um vírus que retorna. Por isso, cuidado com ele! A composição que produzi partiu da história anterior, tem o rabo preso em Freud, Lacan, etc. A concepção nasceu aí dentro e abandonou determinados conceitos. Em algum momento, 85

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fiz a metáfora de, ao construirmos um edifício, montamos seus andaimes, mas, uma vez construído, jogamos os andaimes fora e ele fica em pé. Não é, pois, mais o caso de ficarmos reconstruindo os andaimes. Sem Lacan, não daríamos o salto que demos, mas, hoje, é possível ver aquilo como uma parafernália infernal que ele tinha que montar, enrascado que estava nas tripas dos nós. Em seu consultório, havia uma escrivaninha lateral cheia de nós intricados. Eu me perguntava sobre quando ele daria conta deles. J. B. Pontalis disse que ele morreria enforcado naqueles nós. Lacan até sacaneou o nome dele, J. B., que, em francês, soa gibet e significa forca. Mas, de certo modo, digo eu hoje, Pontalis tinha razão. • P – Você está dizendo que a tecnologia já fez a passagem para essa nova mentalidade? A tecnologia tem a forte tendência de, uma vez misturada, render outra coisa. Como já disse, ela dá filhotes. O que repito é que ela não está rendendo mais por causa do freio de que os aceleracionistas também falam: o pessoal tem medo dela. Eles pensam como eu, que a espécie humana será perfeitamente dispensável no futuro. E certamente será dispensada. Por isso, falo em IdioFormação, e não em humano. A humanidade produziu grandes massas de pensamento, complicadíssimas, filosofias que são um horror de conceitos, e que são praticamente inúteis. Elas se tornarão inutilidades bonitas, obras de arte... O que dá para salvar de Platão, por exemplo? Vejam também que ambientes inteligentes, etc., conseguem ser produzidos como efeito direto de tecnologia, sem, entretanto, alguma teoria que esteja sustentando essa produção. Qual é, pois, a concepção de uma espécie pensante que possa, pelo menos, comentar isso? Trata-se aí de produção teórica. A tecnologia faz filhotes, mas, dentro dela, é preciso correr atrás para arrumar concepções. Se não, fica parecido com a mera loucura das associações – e as pessoas vão passar mal com isso. E, pior, é o que acontecerá com a maioria. Os meninos do aceleracionismo dizem – e acharão que são cínicos – que vai morrer muita gente, e que é assim mesmo. O lixo é enorme, inclusive o lixo humano. Suponho eu que, dentro de alguns milênios, esta espécie terá acabado e sido substituída por IdioFormações muito competentes, menos mortais, mais 86

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duradouras. Sempre vemos na televisão uns fanáticos falando de ETs que, no passado, teriam visitado a Terra... Acredito piamente nos ETs, mas, para mim, eles não são de carne. Se for possível aparecer algum disco voador por aqui, não terá ninguém dentro, macaquinhos de olho grande... Só terá ninguém lá. O disco é a Pessoa. Será uma IdioFormação de lata, ou do que for. Se funcionar mal, desliga-se e troca-se a peça defeituosa. O encaminhamento da espécie se deve a que, por acaso, uma linhagem de primatas aqui neste planeta sofreu uma mutação: apareceu o Revirão e, daí, o Secundário. Este é um acontecimento daqui, mas não sei se, na órbita de outra estrela, o acontecimento também terá sido bio, mas sem primatas. E, após a espécie fazer a revirada e passar a produzir Secundário – que passa a intervir no Espontâneo produzindo próteses –, qual será o destino disto?: A prótese de nós mesmos. Certamente, com mais garantias, sem sofrer das pressões que o biótico atual sofre. Então, os robôs que estão sendo produzidos são muito atrasados, pois não incluem o Revirão. Mas é assim que começa a produção. O que a NovaMente preconiza há décadas é não mais pensarmos referidos a humano, e sim a IdioFormação. Aqui, estamos aprisionados nesta IdioFormação, mas quantas são possíveis? Elas certamente aparecerão, pois não só a espécie é curiosa e com vontade de produção, como a tecnologia começa a dar filhotes. Mistura-se isto com aquilo e, sem querer, dá um resultado inesperado. Imaginem, então, o que ocorrerá daqui para a frente. Mas lembrem-se de que ainda correrá muito sangue, pois há grupos com crenças demasiado sólidas em aparelhos religiosos supostamente diferentes. Antes, sem televisão e internet, ficavam mais distantes uns dos outros, o que diminuía as brigas. A velocidade tecnológica fez com que ficassem se esfregando e, portanto, se matando. Como não têm a mentalidade da época, insistem em crenças antigas. Como eu dizia, ao produzirmos um patrimônio, ficamos com grande dificuldade para demoli-lo. Vivi isto na carne quando, nos anos 1980, comecei a demolir o Colégio Freudiano. O pessoal ao redor entrou em pânico e correu para o polo do lacanismo, onde podia se sentir seguro por aquilo já estar demonstrado, provado, com sucesso. Isto é o mais natural acontecer. 87

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O lacanismo, hoje, já acabou e resta apenas como uma religião cheia de igrejinhas. Mas saibam que a sintomática brava de se ater a um repertório que não se mexe resulta em sangue. Um morticínio enorme, antes de surgir uma geração capaz de olhar para tudo isso com desprezo radical e interessar-se em aplicar pensamentos abstratos às situações. • P – O apego não é ao dinheiro, ao capitalismo? O apego maior é à burrice. Dinheiro é abstrato. A falta dele é que se torna problema. O pós-capitalismo é parecido com o Comunismo, só que por via do capital (o qual deixaria de ser denegado e a velocidade de produção e de manejo, sendo tão grande, espalharia). A bitcoin, por exemplo, já aponta para o fato de o planeta inteiro ter uma única moeda – que, aliás, nem existe, é pura informação. Não cabe em IdioFormação alguma a ideia de eliminar o capitalismo, pois a essência do capitalismo é a mesma da inteligência. É o lucro: “Eu quero é mais”. Se não fosse assim, o planeta teria parado com o surgimento dos macacos. Acabar com o capitalismo é acabar com o pensamento. A tese marxista de que o capitalismo destrói a si mesmo é correta, mas não da maneira que preconizam, e sim da maneira que ele se supera. O capitalismo tem que se superar cada vez mais. O que o tem travado é a mentalidade cultural que sustenta o financeiro que vemos vigorando mais. Se a trava for levantada, o dinheiro se derramará. Não acontece isto devido aos entraves que se colocam no processo. Afrouxados, o capital vaza para muito mais gente. Já observamos afrouxamentos no processo educativo, na repressão. Para a garotada de hoje, é possível não só todos transarem com todos como também, nessas transas, ganharem dinheiro. Observem, aliás, que as frases ditas por eles muitas vezes começam no masculino e terminam no feminino. Isto, junto com o fim da concordância, do objeto indireto, da crase... Está claro que a língua não entrega, não dá o que precisam dizer sobre as situações pelas quais passam. Um exemplo é o sintagma “a gente”, que é feminino, mas que é usado para dizer coisas como: “a gente é trabalhador”. E são frases perfeitamente compreensíveis. E entender tudo isso que está acontecendo implica o que Lacan dizia sobre depender do tamanho da goela de cada um. 88

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• P – Demolir repertório é também o que é para acontecer num processo de análise? Sim. Trata-se de esvaziar a falação e chegar a duas ou três coisas que, estas, tiveram um monte de repetições idiotas em seu decorrer. É o caso, sempre, do que cada um faz para ser contemporâneo de si mesmo. A maioria vive no passado. Quanto a nós, cabe fazer análise todo dia. Para retomar o que eu dizia antes sobre fazer um resumo do pensamento anterior, quero dizer que o agora atravessa o processo todo de produção de uma obra. Tudo que digo já está, em germe, em Senso Contra Censo: da Obra de Arte etc., publicado nos anos 1970. Há lá vários textos que são máquinas, pura engenharia. Num deles, intitulado Gerúndio, não há Freud ou Lacan, é um ataque de nervos. As concepções de qualquer autor se dão muito cedo, geralmente na adolescência. Depois, serão cinquenta anos para explicar aquilo. Minha concepção se deu aos dezessete anos. Como não sabia dizê-la, fiquei um burro velho tentando expressar aquela porcaria que me aconteceu. Não se tem a inteligência de abandonar. Na época, escrevi aquilo, mas joguei fora. Então, é mentira, já que não posso mostrar.

17 Com que objetivo vocês estão estudando aí o texto Kant com Sade (1962), de Lacan,? • Nelma Medeiros – Achamos que valeria a pena abordar o texto de Lacan se aprofundássemos o modo como ele propõe a leitura de Sade em contraposição à formulação ética kantiana. Sugeri, então, a leitura de 89

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uma seção de seu Seminário de 1996, Psychopathia Sexualis, intitulada A Ciência de Sade, no sentido de que, dadas as diferenças de abordagem, muda o próprio entendimento da obra sadiana, temos críticas ao modo como Sade serviu a Lacan e é possível abordá-lo segundo uma perspectiva mais ampliada. Para você, Sade é uma cabeça gnômica de registro e acompanhamento da disponibilidade do pathos humano. Sobretudo, no sentido progressivo em que a fantasia e o tesão irão em frente se houver suspensão de impedimentos. Sade, entre os textos libertinos de sua época, foi o mais sofisticado e o mais corajoso no apontamento desse vetor progressivo: se deixarem, gente faz isso. Na leitura de Lacan, comprometido que estava com seu tempo, fica ambígua a perversão da perversidade. Ou seja, em seu texto, que é próximo do seminário A Ética da Psicanálise, fica ambíguo se ele está apontando uma postura de afirmação de um interesse gozoso – e, daí, afirmar o “não abrir mão” às custas de, digamos, uma transgressão –, ou se está apontando que, se não houver entendimento psíquico desse jogo, há o risco de a resultante ser a transgressão no lugar da celeridade, e não no lugar que você designa como diversão. Como também fica ambígua a noção de perversão, em Lacan, se a relação com a lei é uma afirmação de postura, de desejo, ou se é uma transgressão no sentido de trazer custos em termos de desconsideração do outro. • Aristides Alonso – Consideramos também o modo como Lacan estava tomando a obra de Sade como avesso da Crítica da Razão Prática, de Kant. Enquanto um vai pela vertente da natureza, outro vai pela da razão pura... Sade vai pelo tesão puro. • AA – E seu texto se insurge contra essa leitura de Lacan, e mesmo contra a de outros como Klossowski e Bataille – você, aliás, diz que não sabe se faz isto “para salvar Sade ou a mim mesmo” –, ao afirmar que Sade é um artificialista, um cientista, aquilo é um laboratório, é alguém escrevendo. Não há como confundir Sade com sadismo, isto é, confundir a prática literária com o exercício dele próprio.

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O cara chamado Sade, ele próprio, não fazia esse sadismo. Ele escrevia. Basta compará-lo com Gilles de Rais, que, este, não escrevia, só fazia. O que é alguém estar só escrevendo? É tentar abordar certa realidade, explicando-a. E, mais, o terceiro lugar aí é de Joana D’Arc. Temos aí o tripé francês da perversidade: um estuda, o outro faz e a terceira sofre todas as consequências, vai para a fogueira por causa dos mesmos assuntos. Aliás, aqueles que podiam falar com Deus eram os místicos, que não precisam de intermediários, e os protestantes. A questão maior dos protestantes não foi direto com a – desculpem-me pelo termo técnico – putaria da Igreja, e sim com não precisarem de intermediário. Sade vê isto com clareza. Justo ele que, trancado na cadeia, resolvia sua situação erótica explosiva na masturbação. • P – Diz você: “O que quero é mostrar como Sade tem sido maltratado e mal lido por aí. Lacan faz uma das melhores coisinhas a respeito: intenta levantar a fantasia do Sade autor. Não acho muito bom. Julgo que Sade é alguém que armou um laboratório científico, e nele operou como cientista. Sua obra é ‘chata’…” Parece um livro de álgebra. No terceiro parágrafo, já estamos cansados de tanta repetição. • P – “... como repetem sem melhor reflexão, porque é ao mesmo

tempo um protocolo científico e um relatório das experiências em observação. Sade quer fazer a ciência disso. Disso o quê? Da Pulsão Humana e de sua Vontade de Poder. Se ele se aproveita das coisas quentes que se passam no nível do assim chamado ‘erótico’ (vamos falar com precisão: da pura e simples sacanagem), é porque ali seu exercício é evidente”. Kant é aquele filósofo chato que conhecemos. Lacan tem razão quanto a ele. Kant e Sade são expressões literárias. Não sabemos como Kant transava sua sexualidade, de Sade temos alguma notícia. • P – No seminário da Ética, de Lacan, Sade entra para reiterar a tese de Kant em cima da lei moral. Lei moral esta buscada no que Freud falou sobre o desamparo ser a fonte da moralidade. Lacan se aproveita disto para construir 91

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uma lei moral baseada na interdição do incesto, e coloca Sade para reiterá-la já que este fala sobre o direito de gozar do corpo do outro como lhe aprouver. A meu ver, Kant pensa isso mesmo sobre a lei moral. Sade, não. Ele está devolvendo o que lhe impuseram. Foram sádicos com ele. Desde jovem, trataram-no com sadismo. Então, se Kant acha isso, Sade sofreu disso e está devolvendo, como se fosse a ordem da lei, o que os outros fazem. Ele está contando o que eles fazem. É claro que exagerando metaforicamente. • P – Então, Kant seria uma posição puramente sintomática. Já, em Sade, teria análise? Sade é científico. Ao olhar em volta, o que vemos é isso que ele descreve. Lacan não ousou dizer que Sade era psicótico. Na verdade, ele está tratando com a lei. Cadê o Nome do Pai de Sade? • P – No texto de Lacan, temos que o imperativo, em Sade, seria: “Tenho direito de gozar de teu corpo, pode dizer qualquer um, e exercerei esse direito sem que nenhum limite me detenha no capricho das exações que me dê gosto de nele saciar”. Lacan faz uma máxima juntando fragmentos do texto sadiano. O dito é de Sade. Lacan junta como se fosse de Kant. Na verdade, Sade está fazendo uma análise do Poder. O poder que exerceram sobre ele foi devastador. Então, se tenho o poder, posso. Tanto que Gilles de Rais era da aristocracia francesa. Ele poderia ser um dos organizadores dos Cento e Vinte Dias de Sodoma. Aliás, Sade deve ter conhecido pessoalmente aqueles personagens todos. • P – Essa confusão entre descrição e prática talvez também tenha acontecido em relação à obra de Maquiavel. O pessoal acha Maquiavel um escroto, mas ele estava falando da escrotidão que havia ao seu redor. E falando afirmativamente, como se fosse a fala do Príncipe, ao descrever como eles efetivamente faziam. Maquiavel é apenas um cientista político. A confusão entre descrição e prática aconteceu também com a pornografia e com expressão da violência na televisão. Acharam 92

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que as crianças ficariam violentas por verem aquilo. Acho o contrário: é catártico. Se deixarem, as crianças fazem mesmo. Então, é melhor que fiquem com os games violentos. São expedientes arranjados para controle das feras que são a nossa espécie. Observem também que o dia de hoje é facilmente descritível por Sade, se transposto do sexo para outra prática, a da política, por exemplo. À medida que os estatutos morais, que eram diferentes em cada região, tiveram suas posições relativizadas mediante um acelerado cruzamento de comunicação – se lá pode isso, por que não aqui? –, os cinturões culturais de contenção começaram a explodir. Ontem, mesmo a Inglaterra apoiou o Brexit, um descalabro sem tamanho que não temos ideia de onde vai dar. No Brasil, com o Estado governado por bandidos, nem é preciso de Sade. A situação contemporânea é dificílima porque a tecnologia invadiu, abriu portas, cruzou informações e colocou dúvidas sobre as referências de cada um. Vai-se referir a quê, se é tudo esculhambação ou mania de tal ou qual poderoso? Vejam que o Nome do Pai foi para o beleléu. Aí, o pessoal corre para trás e fica repetindo uma lição antiga, uma missão ou uma missa. O que a psicanálise teria a dizer de tudo isso? Como pensar a resultante? Observemos as reversões sintomáticas. Tomando um caso como modelo, podemos ver aquilo disseminado em outras situações: o rapaz americano que matou os frequentadores de uma boate gay. Ele deve ser chamado de “veado”, pois é assim que ele sente, e não “gay”. Ele luta contra a própria homossexualidade. Uma instância – divina, moral, etc. – diz que ele está errado, que isso tem que acabar. Vem, então, a Denegação Projetiva sobre ele que, de vez em quando, frequentava a tal boate: “Mato-os todos e acabo com a veadagem!” Mas a veadagem é dele. Sempre que os gays são atacados nas ruas ou em outros lugares, podemos ter certeza de que foram atacados pelos veados enrustidos. Aquilo está neles, em suas almas, precisam exorcizar de alguma maneira. Se não, o que alguém, que não está sob repressão radical, teria a ver com isso? É esta reversão que está acontecendo em todas as instâncias. • P – É a lógica do Ubu Rei (texto que Lacan também menciona): “Com esse sistema, terei enriquecido rapidamente, então matarei todo mundo e irei embora”. 93

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Alfred Jarry é genial. A situação contemporânea é difícil por causa do fracionamento que ocorreu: tudo foi espatifado, e não temos mais referências para, pelo menos, conversar com os outros. Então, para fugir do caos, a pessoa se prende com força enorme num lugar que é destrutivo: sua posição é assassina das outras posições. É o contrário do que deveria ser, mas isso durará muito tempo. E não dá para misturar, pois, na cabeça dessas pessoas que, ao contrário de não terem referências, têm referências absolutas – caso dos fanáticos islâmicos e cristãos –, não dá para aceitar o diferente. Elas querem submeter os outros à sua ordem moral. Está rolando assim desde o tempo das Cruzadas. É, aliás, a causa do Sebastianismo português. Dom Sebastião morre em Alcácer Quibir (1578) defendendo a Cruz contra os muçulmanos. Mas, ao observar o cadinho ibérico das religiões – judaísmo, cristianismo e islamismo (os herdeiros daquele Livro maldito) –, vemos que, ali, conseguiram fazer acordos respeitosos, com pujança cultural e científica. Em Toledo, antiga capital da Espanha, vemos ainda hoje sinagogas, igrejas e mesquitas convivendo em termos arquiteturais. Os tais de Isabel e Fernando, casal real da Espanha, colocaram todos para fora para que o fanatismo católico vencesse. Era um lugar de referência: se, na península ibérica, pode-se conviver, por que não nos outros lugares? Eles acabaram com isso. Então, hoje, após esse confronto de fanatismos, com todo sangue que tiver que correr, a saída que vejo, se houver, é talvez conseguir-se inventar o que chamo Diferocracia. • P – Qual ideia teria permitido essa convivência naquele tempo? Acho que eram mais influenciados por pensamento do que por atitudes religiosas. Havia lá grandes pensadores judaicos, islâmicos e católicos. Era um lugar de pensamento. Basta ver os textos produzidos naquele tempo na península ibérica. O que me parece importante é eles discutirem pensamento, cada um com respeito ao do outro. A tendência hoje é a fragmentação. A União Europeia é frágil porque o momento é de dispersão, e não de acoplamento. O que temos é reforço de fanatismos e sintomas regionais. Como sabem, o que nos interessa é perscrutar a sintomática dos lugares. Ainda é dos lugares por ainda ser topológico, por haver países. Digo topológico porque, às vezes, um 94

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invade outro, as fronteiras não se sustentam. • P – Você disse que a força da psicanálise é descritiva, e hoje você reitera que conhecimento para valer há que ser mostrativo da situação, como mostraram Maquiavel, Sade e a própria psicanálise. Nesse sentido, você fala também sobre a monstruosa progressão, sobre a ideia de épura, a iluminação recíproca, a necessidade da positivação da psicanálise, ou seja, modos de o pensamento comparecer de forma gnômica... Como todo bom pensamento, o da psicanálise é obsceno. Coloca na mesa, não importa o que seja. É uma mudança de vetor. O resto tem vetor contrário. A posição mais científica é colher de lá para cá, e não projetar daqui para lá. A ciência finge ser assim, mas não se dá o direito de ser analítica. Ao fazer essa tentativa, a pessoa é logo massacrada. Todo conhecimento de ponta, isto é, que anda para a frente, começa lá atrás. A invenção da religião é a invenção da gnômica possível naquele momento, mas, como fica sintomatizada, tem que andar para a frente em outro lugar, pois, se não, fica-se repetindo no mesmo lugar. Mesmo Lacan diz que o cristianismo foi a grande incursão da cientificidade, o que acho verdade. A origem da ciência está lá. Dentro do movimento religioso, foi propiciada a continuação do saber. Basta ver Galileu, Giordano Bruno, etc., que eram de uma catoliquice só e quiseram continuar o movimento de ciência pura do início. Aquilo era a ciência deles. A ciência não nasceu de repente, e há sempre os retardatários. Muda-se de estágio, mas sobra um resto que lá fica permanente. Quando digo que o Quarto Império vem aí, não significa que todos se tornarão o novo Império. O Quarto Império aparecerá do modo que aparecer, e o resto é aquela miscelânea que esperará séculos para morrer. Até hoje, temos trogloditas por aí. São bolsões remanescentes que são regressivos.

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18 Então, se tivéssemos que fazer o diagnóstico do Brasil, qual seria o sintoma desta coisa, com toda a história que teve? Ele é doente do quê? O Brasil é maníaco-depressivo, PMD (os psiquiatras passaram a chamar de bipolar, mas é um erro, pois todos somos bipolares). Por isso, não consegue andar para a frente. Fica oscilando, vai numa direção e, depois, estraga tudo. Vai noutra, e faz o mesmo. Eduardo Gianetti acaba de lançar um livro em que, mesmo ele sendo um grande otimista, diz que a história do Brasil é: uma grande solução, uma grande cagada, uma grande solução, uma grande cagada... Com Juscelino, o Brasil era maníaco, depois, cai para a depressão... Não se pode fazer um bipolar tão violento andar para algum lugar que preste, pois ele anda para lá e volta para cá... Sintomas culturais nossos – o mazombismo, por exemplo – são sempre bipolares. O mazombo é um obsessivo quase psicótico. Ele mora na casa em frente. No Brasil, tem saudade de Portugal, lá, tem saudade do Brasil, não se assenta em lugar algum. Em outros países, a estrutura patológica é outra. Acho a América histérica, insatisfeita, dá ataques para todo lado. Agora, aqui, nós estamos num período de depressão. Resta aguardar a próxima mania. Quando se pula de um lugar para outro, embarga-se o progresso: não se consegue fazer o recalque de um dos lados, e o processo não continua. Ele vai para cima e cai – e fica sempre no mesmo lugar. É um jogo bipolar que custa uma fortuna. O Brasil tem grandes motivos para se orgulhar. Tem uma cultura única, própria, genial, mas que não presta por não funcionar. Ela é derrubada a cada momento. Não há aqui o sentimento do faturamento como há na América. Lá podemos odiar alguém, mas, se ele produz algo, também queremos. Aqui, busca-se calar quem produz, pois está atrapalhando. Portanto, não se anda para a frente porque não há frente. Maníaco-depressivo não sabe se a frente é na frente ou atrás. Então, como fazer um país inteiro entender que montou um aparelho personalógico, que a personalidade do Brasil é maníaco-depressiva? 96

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Vejam que Portugal não é depressivo, é apenas melancólico. O melancólico não tem os arroubos de progressismo que o maníaco-depressivo tem. É o fado, a melancolia de um estado de espírito, sobretudo português, que fica se referindo ao roxo da porrada que o outro deu. A melancolia, por outro lado, é o estado de espírito de qualquer pessoa que pense. E, ao mesmo tempo, ela dá em Portugal. Posso falar à vontade porque sou português também. Não esquecer que, na época dos grandes descobrimentos, Portugal estava à frente de todos. Lá, não era acesso de mania, e sim de sentimento cristão. Tinham que levar o cristianismo ao mundo e, já que o levavam, podiam roubar todas as colônias. Dom João I assimila os Templários vindos da França, inventa a Ordem de Cristo, e essa mentalidade faz o resto. Eles eram os capitalistas da época. Os portugueses não são depressivos, são tristes o tempo todo. Como sabem, em língua alguma há uma palavra correspondente a saudade. Então, repetindo, o que fazer com este país maníaco-depressivo? Primeiro, fazer com que seja entendido que o país não é apenas bipolar no sentido genérico, e sim maníaco-depressivo. Se não, irão nos engolir. Basta observar como, hoje, as pessoas estão deprimidas. Há uma certa depressão segurando tudo. O modelo de base é obsessivo: não fica lá, nem cá. Em termos genéricos, é Estacionário, mas o comportamento extremo é maníacodepressivo. Então, a situação é psicótica. Só a sentimos como psicótica no momento depressivo. No momento maníaco, pensamos que está tudo normal. Nosso carnaval é um momento de euforia, mas tem até música sobre a chegada da depressão: “pra tudo terminar na quarta-feira”. Na quarta, deprimimo-nos de novo. Aproveitemos o ataque de aparência histérica para, depois, voltarmos para a obsessão. Gianetti mostra várias maneiras dessa oscilação (na política, no calendário...), mas não saca o suficiente para nomear assim. O pior é o povo ser boçal. Como conversar com essa gente? Vejam que Mangabeira Unger acha que o surto evangélico que grassa no país pode ajudar a, primeiro, conter um pouco a bagunça da população, e, segundo, quem sabe?, dar um empurrão cultural. Acho que ele está sonhando muito, pois a tendência é ao fanatismo. Há ali uma postura fanática, e não reflexiva. São repetições de frases do Livro, numa hipnose radical de analfabetos boçais. Basta lembrar que o Velho 97

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Testamento é uma caixa de gatos, a narrativa de uma porralouquice judaica. O fato de estarmos atrasados em matéria de terrorismo não nos garante de que não chegará aqui. Ao olharmos para qualquer dessas religiões, não há como não ver que as pessoas podem até ser estacionárias, mas o processo é psicótico, regressivo. É um processo de reificação de algo que já foi deslocado. E como a carga recalcante é imensa, é dificílimo deslocá-la.

19 Estamos vivendo a morte definitiva do Terceiro Império. E está difícil o parto do Quarto Império, pois não há a visão. O pessoal tem que apanhar muito até perceber aonde está indo. Entendimento da morte do Terceiro Império existe por aí, mas não cola. Sem ter feito algum trabalho de comprovação, costumo dizer que, se não o tivessem matado, o Terceiro Império nasceria nas mãos de Julio Cesar, e não nas de Constantino junto com os cristãos. Julio Cesar estava vendo, mas não podia fazer aquilo como república, e sim como imperador. Foi assassinado por insistir no Império. O Terceiro Império entrou da pior maneira possível. A Europa, aliás, está bem atrasada em relação a esse movimento de implantação de Império novo. É mais fácil ele entrar, à revelia, em lugares como o Brasil e outras maluquices do tipo do que lá. A ideia de progresso é sempre técnica. Em meu Creodo Antrópico, não há ideia alguma de utopia. O Quarto Império pode até ser pior para a maioria. O processo não é de melhora, e sim de transformação. Para onde? Não sei. Aceito o progresso no sentido do enriquecimento cultural: mais disponibilidades – o que pode resultar na morte da humanidade. Desde que a coisa caminhe, isto 98

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não tem a menor importância. Se a espécie desaparecer, algo há de aparecer em seu lugar. E, pelos desenvolvimentos na área da tecnologia, parece-me que não estamos longe dessa substituição. Esta espécie está começando a cumprir sua função: um macaco, que teve distúrbio mental, que começou a revirar, e que, ele, vai inventar seu substituto. Para mim, este é um caminho normal, dado que se trata de uma IdioFormação que não é macaco. O macaco nos atrapalha demais, pois é muito imbecil. Se o pós-humano puder ser inventado pela tecnologia, ficaremos livres de muita macaquice. Fará merda também, mas é menos macaco. A ficção científica, e mesmo a ficção jornalística, fala de visita de ETs no planeta. Supondo que seja verdade, não dá para acreditar na ficção que fazem de que sejam uns homenzinhos esquisitos, pois, se houver ETs, já serão de outra função. Se algum disco voador tiver vindo aqui, veio sozinho, sem ninguém lá dentro. Ele é a Pessoa, com seu Primário, seu Secundário e seu Originário próprios. Quanto a nós, estamos na bica de produzir um computador assim, um computador-Pessoa. Ao dizer perto, não é temporal – pois pode demorar séculos –, é o conseguido em termos de criação. O conseguido é próximo disto. Não faço ideia do quanto demora para dar mais um passo. Mesmo porque há a repressão. Basta ver que certa fúria amorosa atual em relação à natureza é apenas neurose com nostalgia do passado. Já está claro que o planeta se vira sozinho, vai acabar com todos nós e sobreviver. James Lovelock é um dos que dizem isto. Para ele, trata-se de gozar a vida enquanto ainda podemos. Carpe diem... • P – Em fevereiro de 2015, você nos enviou um texto intitulado SÉ S.A. Num trecho, temos que: “E para terminar, depois de quasetodo aquele pensamento terminal, ver o Sim,toma! do incroyable James Joyce. Aliás bem compatível com tudo mais que foi DuChamp, como exemplo foi também aqueloutro regirante carRoussel, bem como dantes L’autreAmont, assim como aquela surrealistada que aliás foi frequentada por Lacan. Vontade de dizer direto o Umbivisto no seu Bífido existir: seu ex-sistir a qualquer lalangue – necessariamente re-partida, spaltungada na clivage, pela inarredável hemiplegia do clinamado regime macro desse nosso Haver. É claro que sem 99

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conseguir, apenasmente simular. Mas já é mais e mais e muito mais do que um sinthome singular”. O que é um sinthome singular? O que é simular o Bífido? Eu estava, talvez, querendo dizer que esse singular é mais do que a articulação sinthome que Lacan lhe deu. Sinthome é de Lacan, o que achou em Joyce. Ele tem uma desconfiança de que Joyce era psicótico. Não concordo. Não era psicose lá. Joyce era o tipo de antena, como eram os vários outros que citei nesse texto: Roussel, Duchamp, Lautréamont... Muita gente tentou dizer o Ponto Bífido: Mallarmé, Fernando Pessoa (às vezes)... Aqueles que conseguem se dar conta do funcionamento psíquico, ficam perplexos diante dessa coisa partida e querem dizer o inteiro. Lacan ao escrever Amódio está querendo falar o nome do troço, mas não tem. Não há língua que não seja bipartida, é tudo língua de cobra. Ou diz para cá, ou para lá. Aí é que o obsessivo fica em pânico, pulando de um lado para outro, e a histérica fica, como esses artistas, tentando dizer os dois ao mesmo tempo. Lacan, que se dizia uma histérica quase sem sintomas (o que é muita pretensão, aliás), também tentou. Os filósofos, coitados, não têm culpa, mas, como sofrem da mesma doença, a saída que, em geral, têm tido é pegar apenas um lado. Se outro filósofo pega outro lado, fica a celeuma entre Parmênides e Heráclito. São a mesma porcaria, basta juntar os dois. A história da filosofia, quase que inteira – digo “quase”, pois deve ter gente que chegou um pouco perto: Wittgenstein, talvez Nietzsche... –, é perneta, insiste em que vai achar uma solução por um lado só. É aí que acontece uma guerra entre facções opostas, uma guerra completamente imbecil (mas, ainda bem que alguns veem coisas, aproveitemos tudo). Esta mesma imbecilidade passou para a história da psicanálise. Imitaram a filosofia e ficam se dizendo lacanianos, reichianos... É uma besteira só, que não vale nada. Cada um desses disse algo importante. Uns, com mais precisão, montaram um aparelho melhor, mas é importante saber sobre o que cada um, dentro de sua sintomática de pensamento, conseguiu enxergar. Não cabe mais continuar com essa vontade eclesiástica de saber qual é o deus certo – o que, aliás, o Terceiro Império deve eliminar junto com ele. • P – Você diria que, ao apresentar o Revirão, este foi um modo seu de dizer a Bifididade? 100

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Foi a saída que achei. Me parece que, se funciona assim, funciona assim. Só sei dizer assim. Todos que citei são pessoas que foram capazes de perceber o Bífido – mas não há língua, não há artefato capaz de dizê-lo como tal. Poeticamente, essa gente simulou dizê-lo diretamente. Acho que nem o computador quântico conseguirá, pois vai oscilar, vai parecer um neurótico obsessivo. Talvez ele crie um problema de linguagem. • P – Mesmo na teoria quântica da informação, em que é um e outro, é um ou outro que informa. Não há sobreposição. Pensando bem, também pode ser defeito do teórico. Não há sobreposição porque não há mesmo, ou porque linguagem alguma consegue comparecer? Se o quântico é capaz dos dois, em algum lugar geométrico há sobreposição. Em alguma geometria, é um ponto só. Em nosso contexto de Haver, os físicos sabem da hemiplegia do Universo, dos 96% por cento que sumiram. A nossa é, pois, uma linguagenzinha dentro de um universozinho, uma titiquinha de quatro por cento de matéria bariônica. Talvez, com a matéria escura, essa percentagem suba. E se a matéria escura for uma matéria bífida? Bem, dizer isto já é delírio, pois não sabemos nada... Mas qual seria o nome dessa linguagem que o quântico viabilizaria? Uma linguagem bífida como o Ponto Bífido sobre a banda de Moebius? O ganho aí é que seria uma velocidade de oscilação tão grande que a informação ficaria bilhões de vezes superior à atual. A velocidade e a alternância serão tão rápidas que não conseguiremos lidar com esse computador. Vejam que a referência aí é uma superfície pré-unária como é o Plano Projetivo, sem referência alguma. É preciso furá-lo para surgir a banda de Moebius. Como sabem, nós brincamos já na banda de Moebius, na qual dá para sentir que virou. Tudo isso é o que podemos pensar agora. Talvez haja coisa melhor depois. As matemáticas estão em processo. Costumamos pensar que há uma porção de bolinhas penduradas no espaço com nada entre elas. Imaginem esse ‘nada entre’ como um aquário: estamos mergulhados de tal maneira num líquido esquisito comum que não o percebemos, assim como o peixe não percebe a água à sua volta (mesmo 101

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porque ele não é cientista...). O que vem por aí é muito esquisito, mas vai demorar para ficar claro. Como sabem, suponho duzentos anos para a implantação do Quarto Império. Já estamos nos cinquenta anos de duração do conflito. Quando o pessoal não mais aguentar a porradaria, começará a ler para trás aqueles que já estavam pensando sem serem escutados. Aí, depois dos cinquenta de porradaria, serão mais duzentos anos de obras. Vejam, então, que acabaram os séculos de pseudoestabilidade. A maioria ainda está puxando para trás, pensando poder corrigir da maneira antiga. Não conseguirá, pois não dá. A correção há que ser inventada. • P – Como você já observou, a linguagem que essas máquinas operam são criadas por nós. Mas há a possibilidade de elas, as máquinas, imbuídas de Revirão, começarem a fazer sua própria linguagem. Aí, não temos ideia do que virá. Quando começarem a produzir uma novilíngua, talvez seja um texto joyceano. Abram o Finnegans Wake – e vejam se conseguem não fechá-lo em seguida. Eu tinha tudo de Joyce e a respeito dele em minha biblioteca, mas os cupins lá foram e comeram justo essa prateleira. Foram seletivos, perdi tudo. Repetindo, não concordo com o que Lacan disse sobre ele ser psicótico. Se for um sintoma, dá para entender, mas, desde Ulisses, percebemos a tentativa de reduzir tudo a um dia, a um momento, e a uns Revirões violentos. Depois, em Finnegans, vemos que ele queria escrevê-los na língua. Segundo os críticos, ele o fez com o conhecimento de dezoito línguas. Joyce é alguém ensandecido com a questão de como dizer o dito. Vemos isto em muitos escritores, mas não de modo tão premente quanto nele. O que são os buracos na página de Mallarmé, no poema em que temos que ler apenas os intervalos? Desde a pré-história, nesta espécie, além de seu mal-estar no Haver, houve uma angústia, um mal-estar na linguagem. Nunca se consegue dizer. E quando se escreve um pouquinho, estranhamos. Há pouco estranhei o texto lido aqui que supostamente escrevi, mas não estou presente naquela escrita. Ela já era. Por isso, custei a entender. Quanto a isso, quem tem razão é Fernando Pessoa ao dizer: “Não meu, não meu é quanto escrevo, / A quem o devo? / De quem sou o arauto nado? / Por que, enganado, julguei ser meu o que era meu?”. 102

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É a angústia com uma linguagem que não diz, que não entrega. As pessoas, de algum modo, sabem como é Lá dentro. É o que digo ser o Conhecimento Absoluto: todos sabem, mas não sabem dizer. • P – Faz sentido, pois, se não soubéssemos, não nos angustiaríamos. Sim. Como sabem, não gosto de ler o que transcrevem do que escrevo. Não gosto desse autor. Faço assim para não ficar me repetindo. Se me dizem que eu disse tal coisa, não tenho compromisso com aquilo, pois foi o outro que disse. É uma estratégia: não quero saber enquanto meu. O mais comum é pessoas, às vezes com grande talento, fazerem certo tipo de obra e saberem repeti-la. São zumbis. Quanto a mim, não sei, não quero saber – e tenho a quem perguntar. Qualquer discurso, para sê-lo, deve ter coerência. Ou seja, o discurso deve ser coerente, mas não eu. Muitos querem ser respeitados pela coerência que têm em relação a seu coerente discurso. O discurso exige a coerência, eu não. É só ler, por exemplo, as boas edições dos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, que vêm acompanhadas de suas poesias. É preciso ler os dois, pois, nas poesias, ele diz o contrário do que está nos Cantos, é quase um cristão escrevendo. Os que citam Isidore Ducasse enquanto Maldoror nem sempre percebem que ele passou por dentro do Revirão. Ele tinha uma cabeça em Revirão, não escreveu uma coisa e, depois, outra. Certamente, ele, que teve uma vida tão curta, escreveu aquilo tudo junto, separando depois. Ele é um dos autores que comprovam a tese do Revirão. Breton também fez isto em seu romance, Nadia. Nick Land, que citei da outra vez, tem um livro intitulado A Sede de Aniquilação, ou seja, o título é: Haver desejo de não-Haver. É outro autor – bem doidão, aliás: escreve de modo não acadêmico – que está bem perto de nosso projeto. Ele está lendo Georges Bataille, que é alguém mais ou menos precursor nosso (e deu o azar de ter aparecido o estruturalismo no momento em que produzia sua obra – Lacan tomou até a mulher dele...). Bataille tem uma obra maravilhosa que li quase toda. Gosto da Suma Ateológica, que é Tomás de Aquino ao contrário. Outro livro dele é A Parte Maldita, sobre o dispêndio, sobre a entropia. Como disse, em sua época, não havia espaço para dizer “Haver desejo de não-Haver”, pois o sucesso era das sabichonas 103

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do estruturalismo. Observem que todo sucesso é censura. Não deveria haver sucesso, e sim distribuição. Quantos outros um pensamento de sucesso está matando? Lembro-me de que, durante a vigência do marxismo por aqui, não se podia abrir a boca. Sempre achei Marx um idiota muito ilustrado e o marxismo uma besteira. Já critiquei aqui o conceito de mais-valia, que é apenas uma maquinazinha que nada tem a ver com gente. Mas, prestem ou não os aceleracionistas como Land, esses autores são nossos colegas contemporâneos. Só não gosto do fato de Markus Gabriel, o outro autor que citei, e que já tem livro traduzido em português, andar metido com Slavoj Zizek. A matemática é uma simulação, às vezes de algo bem concretinho como 2 e 2 são 4, mas, ao buscar seus fundamentos, nos perdemos. Aí inventamos simulações. Basta ver a loucura de alguém, que vive no mundo bilátero, conceber o Plano Projetivo que mencionei há pouco. Concebê-lo, em matemática, é uma simulação. Efetivamente, não se consegue construí-lo. Talvez dê para construí-lo em movimento, se tivermos uns pontos, uns átomos que, girando, componham o Plano Projetivo. Uma banda de Moebius pode ser mostrada concretamente, é visível, mas, se tentarmos tapá-la com um círculo, jamais conseguiremos fechar, mesmo ele sendo de borracha. Podemos imaginar sua construção em 3D com pontos luminosos. Coloca-se um ponto na televisão, vai-se mexendo, mexendo, e o percurso do ponto foi o plano projetivo, mas onde está ele? O matemático chegar a intuir a existência desse espaço, isto acontece porque está lá dentro de sua cabeça. • P – Em última instância, então, a analogia não alcança seu propósito, não fecha. Sim, mas, infelizmente, não temos outro modo. Você certamente está mencionando isto por causa de minha escolha anterior de eliminar metáfora e metonímia, e dizer que se trata de analogia total. Leiam o livro Analogie: cœur de la pensée, de Douglas Hofstadter e Emmanuel Sander (Paris: Odile Jacob, 2013), em que os autores mostram que tudo é pura analogia. Lacan quis escapar dela, mas não conseguiu. E é justo porque a analogia é insubstituível que não conseguimos dizer. Vejam o esforço louco de Lacan depois que entrou 104

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na Topologia: vai indo, indo, e não consegue. Isto, a ponto de perguntarmos para que ela serve. Se vissem a loucura de seus seminários dessa época, veriam que era terrível, ele estava completamente perdido. Aliás, antes de ficar gagá, como efetivamente ficou, ele parou de falar, caiu no Wittgenstein do Tractatus: “Sobre aquilo que não se pode dizer, deve-se calar”. É o “melhor, não”, de Bartleby. Cabeça de gente é algo muito esquisito, muito estranho... • P – É como se falássemos mediante oximoros o tempo todo. O oximoro não é um paradoxo. Muito do que os filósofos chamam assim não são paradoxos, e sim bifididades. São oximoros. Camões, ao escrever que o amor é “fogo que arde sem se ver” ou “ferida que dói, e não se sente”, tenta dizer, mas não consegue (pois não é para conseguir). Prefiro dizer que paradoxo não existe. Há um pavor do lógico, do filósofo, diante da bifididade Lacan vai proliferando sua topologia enlouquecida. Um dia, em Paris, entrei na École Freudienne, e Nicole Sels, a bibliotecária, deu um grito. Diante de uma imensa folha de papel, ela tentava, a pedido de Lacan, desenhar um nó. Como estava perdida naquele emaranhado, assustou-se quando entrei. Nunca vi aquilo publicado. Vejam, então, como a coisa se encaminha: fica tão complexa que zera. Assim, por exemplo, diante de uma complexidade muito grande, se conseguimos ler de trás para a frente, aquilo vai dar no autômato celular, de que Stephen Wolfram se utiliza. O autômato celular funciona por pura repetição e cria complexidade, coisa que nunca acreditaram ser possível acontecer. Mas, quando chegamos a ele, acabou, nada mais há a dizer. É o mesmo que acho que acontece com as pessoas, aquilo se esvazia. Lacan não parou de falar por ter ficado gagá, ele ficou depois, já não reconhecia pessoas que, durante décadas, conviveram com ele. Ou, se não, chegou à sabedoria absoluta, só enxergava o Vínculo Absoluto: todos são o mesmo. • P – Benoit Mandelbrot sacou algo assim em geometria quando, certo dia, olhando um desenho, pensou que o que interessava não era saber o que resultava, e sim saber o que era preciso acontecer para que tal coisa resultasse daquele modo. A loucura é de nós todos. 105

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20 Camões, seus sonetos, Fernando Pessoa, o fado – todos melancólicos... • P – Manoel Antônio de Almeida, em seu livro Memórias de um sargento de milícias (1852), diz que o fado é brasileiro e foi para Portugal, e que a modinha é portuguesa e veio para cá. Foi uma troca. Não sei quem o inventou no Brasil, mas, efetivamente, o fado é a cara de Portugal. Amália Rodrigues está enterrada ao lado de Fernando Pessoa no claustro do mosteiro dos Jerónimos. Tomaram dois símbolos nacionais típicos. Já o Brasil, como disse, funciona de modo maníaco-depressivo. Ou é o máximo, ou é o mínimo. Há momentos de grande euforia: “Agora, vamos!” (frase brasileira típica) – mas não vai, cai em depressão. Estamos, agora, vivendo um momento depressivo, enorme. Notamos as pessoas mais ou menos deprimidas junto com o país. Mesmo em governo ditatorial de milico houve momento de euforia: “Prá frente Brasil!” É um estado psíquico que o país toma – e fica maníaco-depressivo. Vejam o “país do futebol”: 7 a 1. Como fazer? Não adianta dar corda para ele ser maníaco porque cai sozinho. O ruim no maníaco-depressivo é não andar para a frente, pois cai de volta. Por mais que sobre um resto de suposta produção, cai de novo. São restos esquisitos, aliás. Em meu tempo de vida, a maior euforia foi Juscelino Kubitschek. Resultou em Brasília, aquela cidade grotesca, parece construída para a ditadura. O que fazer, então, com essa sintomática para tentar ficar mais ou menos no meio? Ficar, às vezes, alegre, às vezes, triste, mas não maníaco-depressivo? Quais as origens dessa sintomática? Faço a suposição que a ordem depressiva foi imitação errada dos portugueses. Eles não são depressivos (e não têm a grosseria que vemos aqui). São, sim, tristes, melancólicos: vão à luta. Fernando Pessoa, aliás, reclama que esta disposição acabou. Portugal foi um país de vocação totalitária durante muito tempo, tanto é que, quando Salazar chegou, foi acolhido durante décadas. Eles estavam acostumados 106

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com aqueles reis absolutistas terríveis, que eram donos do reino. A ideia de patrimonialismo, muito alardeada aqui, acho que veio de lá. O rei que teve mais sucesso, chamado Manoel, o Venturoso, se apropriou do Brasil, da África, de uma parte da Índia, e de Portugal. Por outro lado, português não tem cabeça de corrupto, é no Estado que a corrupção lá ocorre. O brasileiro – todos nós – tem cabeça de corrupto, logo pensa em dar um dinheirinho para se safar das situações. Retomo a pergunta: Nós, que podemos entender, o que podemos fazer? Quem arrisca uma tese de cura para este país? Não temos força, sequer temos força de convicção. As pessoas preferirão escutar futebol, samba, etc., a escutar coisas que dizemos. Não há chance para um trabalho como o nosso de enfrentar a sintomática brasileira. Podemos entender, mas o que fazer se não há escuta? Não querem escutar essas coisas. Basta ver o que é vendido nas livrarias. Quem, hoje, lê Raymundo Faoro? Notem que o comportamento da geração x já mudou, ela leva jeito. Mas fará algo política e socialmente? E mais, nosso povo é analfabeto cultural. Mesmo quando finge que sabe ler, é disléxico social e cultural: é capaz de ler em voz alta, mas não sabe o que significa aquilo que lê. Por outro lado, a audácia intelectual no Brasil é mais fácil do que na Europa ou nos Estados Unidos. Se fosse francês, jamais faria o que fiz. Lá, a obediência intelectual vem primeiro, é preciso ser muito doido para passar por cima dela. Lacan, para tomar coragem, foi buscá-la nos malucos, entrou no meio dos surrealistas. Fora dali, era abominado. Os grandes pensadores ou poetas franceses produzem com muita coragem à revelia da situação: Rimbaud estava pouco se lixando, Mallarmé, um burguês comportado mas doido na literatura... Se não tivessem potência, nada fariam, pois o território intelectual estava todo ocupado, ninguém se mexia. Aqui, não é preciso essa coragem, pois falamos e ninguém ouve mesmo. Raymond Aron escreveu durante o período em que era proibido não ser marxista na França e no mundo. Era o comunismo larvar a que estavam submetidos Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, etc., e Aron escreve um livro cujo título diz tudo: O ópio dos intelectuais (1955). Contrapondo-se ao dito de Marx sobre a religião ser o 107

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ópio do povo, ele mostra o absurdo de intelectuais supostamente grandes estarem acompanhando um pensamento idiota como o marxismo. Mesmo assim, espantosamente, conseguiu chegar ao Collège de France... • P – No Brasil, é considerado de direita. Era referência de José Guilherme Merquior. Conheci bem Merquior. Ele não era tanto de direita assim. É coisa de comunista dizer que ele era de direita. • P – Se na França é assim, em Portugal houve autoritarismo mesmo. Não permitiu universidades aqui e deixou a educação nas mãos dos jesuítas. Eles deitaram e rolaram até hoje. Estão aí as PUCs pelo Brasil... • P – Neste sentido, o assentamento intelectual aqui se deu mal e porcamente. Ou era colégio jesuíta ou não era nada. Só no século XIX tivemos universidade. Já a Argentina é um país europeu. Logo após o Brexit, sai uma charge com a Argentina dizendo: a vaga é minha... Lá a psicanálise, bem antes de Lacan, foi comprada feita da Europa. E trabalharam direitinho. Estamos cercados também por lá. Talvez só dê para fugir para o Uruguai, que não tem característica... • P – A referência que você faz ao projeto de educação nacional, de Anísio Teixeira, indica, nele, um encaminhamento original para a educação no Brasil. Ele falava em excelência. É uma excelência que todos teriam? Não. Pensar que todos a teriam é “democratismo”. Trata-se de dar a todos a chance porque, assim, a excelência tem chance de aparecer. Não se pode ter o desperdício de não dar possibilidade a todos para que ela apareça.

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21 • P – Em seu Seminário Comunicação e Cultura na Era Global, de 1997, diz você: “por estarmos como estava Freud, para aquém da consciência, instalando sua metapsicologia, posso pensar que, estando para aquém do próprio inconsciente, generalizando-o no campo do Haver, (...) permite pensar que estou fazendo metapsicanálise” (p. 242) Aquém no sentido de mais perto do primitivo, do fundilho das coisas. O sentido não é de hipóstase, e sim de encontrar melhores fundamentos. O movimento não é retrógrado, mas de perguntar por que se está dizendo tal coisa, aquilo deve ter um fundamento. Não creio que tenha sido possível a invenção de Freud sem muito erro de superfície. Já era muito o que ele conseguia ver, mas, à medida que repensamos o processo, vê-se que ainda é muito superficial. Lacan viu isso e aplicou a Freud uma leitura com duas diretrizes. Primeira, fazer uma leitura compatível com o saber de sua época. Por isso, partiu para a linguística, o estruturalismo, a matemática de então... Segunda, ele tentou também passar a limpo. Há coisas que são sujeiras teóricas em qualquer autor. Consegue-se uma analogia para explicar, e a analogia fica valendo como se fosse a estrutura da coisa. O caso que sempre cito é o do Édipo, que é uma bobagem. Explica bem, mas deixa muito sujo. Lacan o joga fora e procura outro conceito, que chama de Nome do Pai em cima da ordem significante, como tentativa de aprofundamento e limpeza de área. Isto, em qualquer teoria, em qualquer área, tem que ser feito sempre. Basta lembrar que a física já acreditou em átomos, nome que significa que, para atrás deles, nada mais há, não há divisão possível. Vimos onde deu isso. O sentido do aquém, então, é de entender a constituição do que se está achando, pois deve haver algo mais profundo, mais estrutural, mais anterior. Em qualquer conhecimento, o progresso é cada vez ana-lisar mais, procurar entender do que aquilo é feito. Suponho que se chegará a um nível tal de 109

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abstração que é o que, em qualquer área, é o sentido da evolução da teoria. Quanto à física, isto é muito claro. Já Lévi-Strauss ficou cheio de si quando achou que tinha achado as estruturas elementares do parentesco. Mas elas são apenas uma questão de parentesco. O que há por trás? Por que é preciso ter parentesco? O que os pré-históricos estavam tentando fazer ao constituir uma ordem de parentesco? Lévi-Strauss acha que é para organizar o social, e que a interdição do incesto vem barrar a confusão na reprodução. Está certo, significa que estavam inventando uma sociedade. Mas era esse o caminho melhor? Estamos acostumados, desde a infância, a considerar a ordem do parentesco, e fazemos antropologia de campo para descobrir que aquilo foi constituído para organizar o social e evitar os cruzamentos indevidos na reprodução. É também verdade, repito, mas a pergunta continua: por que a humanidade seguiu esse caminho, e não outro? Não terá seguido outro, que não foi visto pelo antropólogo? Não terá a pesquisa antropológica perdido algum palco, algum teatro que não conheceu? Os antropólogos, os que conheço, pelo menos, sempre esbarram num teatro, numa cena. Margaret Mead, por exemplo – que é muito interessante –, vai aos primitivos buscar um teatro de comportamento: The Coming of Age in Samoa (Adolescência, sexo e cultura em Samoa, 1928). Ela, como os demais, descreve um teatro, procura mostrar uma correlação qualquer, e mesmo tenta entender por que aquilo existe assim. Lévi-Strauss chega a dizer que há necessidade de fazer aquilo para organizar o social e não haver cruzamento na reprodução. Se não, alguém seria irmão de seu tio, o que confundiria as cabeças. Para a antropologia recente, a interdição do incesto é uma necessidade de organização, e não de purificação biológica da espécie. A questão continua: surgiu no planeta a interdição do incesto por isso, ou por que houve uma observação, tipo científica, de que o incesto eventualmente produzia monstrinhos? O incesto repetitivo produz coisas esquisitas. Basta observar cachorros de raça muito pura, que têm defeitos gravíssimos. O viralata, que é o nosso pedigree é mais saudável, resiste galhardamente virando latas. Acho mesmo que é o que disse Oswald de Andrade sobre a definição do brasileiro. Antropofagia é vira-latismo: fuça a lata de lixo dos outros, e 110

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aproveita o que de melhor houver. É o pedigree da zorra total na reprodução, e não do incesto dentro do mesmo grupo. O que o incesto tem de ruim, se tiver, é da ordem do biológico, e não da ordem do sexo. A espécie humana separou sexualidade e reprodução. Portanto, cria-se um novo problema ético: pode-se transar com a mãe, o que não se pode é fazer filho com ela. O Ocidente vive preocupado com essa questão. Louis Malle fez um filme intitulado Le Souffle au Coeur, Sopro no coração, 1971, que trata do incesto como puro gozo e meio distante. Bertolucci, em La Luna, 1979, filma uma cena divina em que o filho é levado na cesta de uma bicicleta olhando para a mãe com a lua atrás. Uma fantasia como esta é difícil superar. É claro que o tesão pinta dentro da família, e traz um problema interessante por ser um recalque de segunda ordem mesmo em Freud. Para ele, o recalque originário é uma construção, não foi de fato encontrado como encontrei em minha formulação. Lacan só apresentou o recalque originário como produção da linguagem, o que é muito frouxo. Meu Recalque Originário é materialmente dado de fato, de direito, fisicamente: não há o não-Haver. A cosa não é tão mentale como se pensa, ela está no Haver. Há Recalque Originário no Haver. Nosso recalque é repetição dele, e não um construto. É o que estou dizendo sobre dar para trás, o aquém, pois a explicação de Freud se mostrou fraca, embora tenha sido importante ele achar aquilo. A de Lacan é da ordem da entrada do simbólico. A minha, repito, está no Haver: o não-Haver não há, a Morte não comparece, tudo é metamorfose. Estou dizendo que, do ponto de vista estritamente erótico, o incesto é uma banalidade, não há motivos para interditá-lo. Mesmo porque ele já aconteceu: todos já estiveram inteiros dentro da mãe. Hoje, então, que temos aparelhos científicos e tecnológicos para barrar a reprodução, podemos imaginar que a prática do incesto deve ter crescido no planeta. Entretanto, do ponto de vista reprodutivo, posso supor que, depois do Neolítico, pelo menos, a observação do resultado da reprodução incestuosa tenha levado as pessoas a acharem que é melhor não o praticar. Mas há tribos primitivas, isoladas, em que todos são do mesmo pedigree. São incestuosos depois de muitos séculos. Será isto, aliás, que faz com 111

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que sejam retardados? Como sabem, sou contra a ideia de manutenção da “pureza” dos índios apregoada por alguns antropólogos. Eles deveriam, sim, ser incluídos, trazidos para a civilização. A cultura deles é precária, e eles ficam na situação de retardados. E por que, após esses séculos todos, não deixaram de ser retardados? A Europa também era retardada, mas a civilização foi brotando. Então, o que acontece com esse pessoal que permanece na mesma situação? A pergunta dos antropólogos deveria ser esta, e não ficar justificando a cultura deles. Cultura e porcaria são a mesma coisa. Cultura se inventa. O que importa é a civilização, e não a cultura. É um absurdo antropológico, um princípio de exclusão metido a bonzinho, a intelectual. Essas tribos primitivas, suponho, ou têm um retardo genético, ou não permitem que a diferença brote. Apagam logo: se surgir um poeta, será logo eliminado. É espantoso que passem milênios morando naquelas casas de palha, quando o típico de nossa espécie é a criação, a produção, a acumulação... O nome disso é: estupidez, paralisia. Funciona como uma Morfose Estacionária.

22 Há, sim, na espécie, o mau hábito de assassinar seus poetas. Então, não se pode ser muito poeta, apenas um pouquinho, pois não há permissão para dar grandes saltos. Na tal cultura, que é uma Morfose Estacionária, se alguém for excessivamente poético, se não souber medir o passo, ou esconder-se um pouco, estará a perigo, mais ou menos condenado ao ostracismo ou a ser assassinado culturalmente. Quando se é pelo meio, poeticamente mais ou menos – Jacques 112

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Lacan, Marx, por exemplo –, toma-se porrada, mas consegue-se ganhar uma força qualquer de ajuda, sustentar-se... e, logo-logo, vira uma igreja. O primeiro perigo é o da própria vida, o segundo é o de calarem a obra. Em todo grupo humano, há um processo de sobrevivência, de resistência ao perigo, de receio de sair da zona de conforto, do status quo. Quando alguém pensa diferente, é um perigo. Isto por esse pensamento poder mexer na cultura de tal modo que ela se degringole. Aquele que produz também sente medo, mas é ousado: sapere aude, ousar saber, como dizia Kant repetindo Horácio. • P – Conta-se que Hipaso de Metaponto, a quem se atribui a descoberta do primeiro número irracional, foi expulso da escola dos pitagóricos (e, mesmo, que teria sido morto). Sua descoberta atrapalhava a perfeição dos números racionais, mediante os quais os pitagóricos buscavam descrever a geometria do mundo. Logo Pitágoras, que também queriam matar. Ele era louco, disse coisas horríveis como “em qualquer triângulo retângulo, o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos”. A maneira mediante a qual, por causa da época, temos a permissão de pensar no campo da psicanálise seria proibida há alguns anos. O que estou dizendo hoje seria tomado como indecência. Talvez alguns antropólogos ainda achem que é. Já lhes disse que religião é a ciência dos primitivos, mas por que os pensamentos científicos ou avançados acabam virando igreja? Ou seja, por que há uma forte tendência de pensamentos que não esbarram diretamente com o concreto virarem igreja? Porque a origem da ciência é a igreja. As religiões são sempre primitivas, retardatárias. Basta ler seus textos fundantes para vermos o besteirol. Aquilo vira instituição que tem que ficar repetindo o erro. A ciência pretende mudar de erro, mas, em seu começo, ela era religião. O pessoal olhava para o mundo e produzia ciência, ou seja, deuses. Esta era a ciência: o Olimpo é científico. Cabe entender que foi a maneira primeira de iniciar uma ciência, o conhecimento. Como a abordagem não é direta, fazem analogias, comparações, criam personagens humanos para representar tal conhecimento... Se o cientista não imaginar que o que tem é apenas um 113

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procedimento de aproximação, vira religião, retardo. As religiões pretendem fazer recalques definitivos, isto é, em meus termos, HiperRecalques. No período da Inquisição, gente da melhor qualidade foi queimada viva por suspender a certeza hiperrecalcante da religião. A suspensão, além de tirar a fé no pseudoconhecimento, também tirava o poder material da religião. Continua assim até hoje. Os ambientes inquisitoriais estão vivos em todos os lugares. Se não entendermos essa dinâmica, nada entenderemos. Tomam as pessoas, enfiam-lhes coisas em suas cabeças, produzem um processo ritualístico de repetição obsessiva, ameaçam-nas de ir para o inferno ou de lá serem colocadas... Temos, então, perseguição de modo religioso, de modo científico (um cientista perseguindo outro por este ter bolado algo diferente)... A psicanálise fez o mesmo, constituiu uma igreja chamada IPA e passou a perseguir todos que pensassem de modo diferente da ortodoxia freudiana da época. Isto, em vez de deixar o conhecimento rolar. No fundo, são todos assassinos. Em nosso meio, sou contra todo processo de exclusão. Não posso, em meu processo teórico, incluir um monte de coisas, pois estragaria o processo. Mas é só por isto. O outro está lá vivo, pensando. Sabe-se lá o que sairá dali? Como não podem fazer juízos foraclusivos, as pessoas fazem exclusões e destruições. Freud talvez pudesse ter dito a Jung, Reich, etc., que o que faziam atrapalhava ou mesmo destruía a construção dele, Freud. Eu mesmo, quando, dentro do Colégio Freudiano, comecei a falar diferente, tentaram me excluir e massacrar. Como não dei trela, fui em frente. Vejam que não se trata de brigar com a imbecilidade do outro, pois ele que fique com ela. Só há que guerrear quando ele nos atacar com ela. Aí sim, há que sair para a porrada. Por isso é que existe a polemicidade permanente dos conhecimentos. A ciência já andou bastante, mas ainda temos um pessoal aprisionado na crença no flogístico. O que fazer? Quando se muda de Império, é o Império que muda, e não as pessoas. O novo Império brota sozinho, por ser a resultante de um processo. Ele acontece à revelia. Vemos o dia todo pessoas com telefones celulares na mão, mas quem entrou no Quarto Império foram os telefones, e não elas. São poucos aqueles que caminham no Quarto Império, mas como ele brotou 114

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espontaneamente, todos ficaram acossados por ele. O inventor do computador não é de Quarto Império por tê-lo inventado. Ele só queria ganhar dinheiro, e aquilo trouxe o novo Império. Observem também, como não canso de repetir, que esse ambiente contemporâneo não foi conseguido por filosofia ou psicanálise, e sim com ciência e tecnologia. Há, no mundo, hoje, o perigo de entrar o Quarto Império: o perigo da comunicação. Tudo foi destrambelhado, e o Quarto Império precisa passar por esse destrambelhamento para poder nascer direito. A Joça que aí está não dará um passo sem, como digo, fazendo barato, cinquenta anos de porradaria e, depois, duzentos de implantação do novo Império. Basta abrir a janela, ou o jornal, para ver que a zorra já está instalada no planeta. Qual foi o passo rápido demais, que não notaram? A expansão da tecnologia eletrônica, que está derrubando tudo. A psicanálise, mesmo tendo tentado, não conseguiu fazer isto. Por outro lado, o que a tecnologia não consegue é reestruturar o processo, mas consegue destruí-lo. Como não tem volta, acho que devíamos acelerar, esculhambar depressa. É o que fazem os aceleracionistas de que venho lhes falando, aqueles filósofos que pregam a zorra rápida. Outro dia, contei e vi que tenho cinquenta livros publicados (o que é um absurdo, coisa de maluco). Como ninguém lê, é a minha sorte. Nem imagino um fundamentalista desses que vemos todos os dias nos jornais lendo meus livros. Nas livrarias, a livrarada sobre psicanálise é um monte de porcaria, de repetição, etc. Isto porque seus autores, não querendo tomar porrada, inibem seus processos de pensamento. Eles têm razão de ter medo. Meu mestre, Anísio Teixeira, ficou falando, e o assassinaram. Ele estava certo, mas tinha um problema: todos o liam. É um perigo deixar essa gente ler. Nosso momento, como disse, é de zorra total, não cabe procurarmos lógicas muito precisas porque não acharemos. Lembrem-se de que, desde o início do século XX, pensou-se que o planeta deveria ter apenas um governo. Seriam os Estados Unidos da Terra, ou algo assim. Mas não dá para ter, pois é tudo incongruente. A ONU, por exemplo, é apenas um enfeite, sem exércitos, um clube de poderosos manipulando coisas. Pode parecer paradoxo, mas só se conseguiria um governo mundial fracionando e todas as frações estarem 115

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ligadas. Neste aspecto, a Inglaterra, quanto ao Brexit, tem razão, pois o governo não é mundial e está tudo virando uma cagada. Basta ver a União Europeia sendo invadida pelos árabes. Os membros de países civilizados não podem deixar bárbaros invadirem. Caso contrário, acaba sua estrutura. O cabível é, quando for o caso, ir ajudá-los em seus países, e não trazê-los para cá. O contrário é hipocrisia. • P – Em termos do que você chama Diferocracia, isso não seria fechado e excludente? A coisa não é fechada porque excluímos, e sim porque o sistema é exclusivo. Não é preciso ter autoria. E mais, a situação da Diferocracia está muito longe de acontecer. O que acabará com isso será o aumento contínuo da velocidade de informação e, repetindo, a porradaria geral. Depois que morrerem umas três gerações, a conversa sobre o Quarto Império tem chance de começar. Não é uma evolução fácil, pois as pessoas não têm formação para sentar e conversar. Vejam que os brasileiros, os do Rio de Janeiro, pelo menos, se mostram mais inteligentes que os europeus quando vão às favelas para as arrumar, torná-las bairros.

23 • P – A Ética da Indiferenciação, trazida pela Nova Psicanálise é o exercício de, o tempo todo, buscar o outro lado das situações? Pode até resultar nisto, mas, como já está explicitado em vários textos, a Ética que combina com a Nova Psicanálise é simplesmente o esforço, o trabalho constante de aproximação do Cais Absoluto, de Indiferenciação. O 116

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resto é consequência. Como está dito na pergunta parece uma técnica dialética. As dialéticas prometidas por aí são orientadas demais, são filosoficamente orientadas. Repetindo, a única ética que me parece combinar com o teorema da Nova Psicanálise é a da Indiferenciação, a da aproximação do Cais Absoluto (de que lhes falo desde 1992). Uma vez isto conseguido, consequentemente a pessoa agirá de outro modo. • P – Qual a diferença para com o que Nietzsche chama de transvaloração? Nietzsche, filosoficamente, está interessado em questionar os valores para ultrapassá-los. Isto, pelo menos. Que eu saiba, ele não fala em dialética. A ética do Cais é muito mais perto do pensamento zen, da Indiferenciação. Não há transvaloração ou crítica de valores, pois o que se quer é não aplicar valores. Trata-se de, simplesmente, tentar um, digamos, olhar equânime. Qualquer coisa que afete sua sintomática imediatamente tomará um pito de você. Nesse momento, não tenho condição ou permissão de julgamento. Isso há! E se há, está certo. O jogo do ser, o jogo dos valores, é decorrente dessa postura. A mudança é só de postura. É o mesmo que a escuta do analista, digamos, em análise. • P – Mas, estando no mundo, é inevitável gostarmos disto, daquilo... Não se trata de gosto, e sim de valor. Não está certo ou errado, simplesmente há. É o pensamento que podemos ter a propósito da suposição divina. Ou seja, foi Ele que fez essa merda toda – a qual, portanto, tem o mesmo valor. Espinosa chamava isto de sub specie aeternitatis. Gostar ou não, depende de uma tomada de posição no Secundário e em suas relações com o Primário. Entrar no exercício da ética da Indiferenciação não tornará ninguém santo ou anjo. A sintomática de mundo da pessoa está liberada. Trata-se, sim, de uma postura de considerar o Haver. Isto não tem hierarquia alguma ou valor determinado. É uma postura, e não um pensamento. Quando se tem esta postura, fica-se liberado para, na escuta, por exemplo, acolher o-que-quer-que. Depois, na situação, mesmo em análise, vai-se promover movimentos do que se pôde acolher e entender. Se a escuta tiver parti-pris, contra ou a favor, 117

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já estará estragada. Não quer isto dizer que o analista, não tenha respostas cortantes ou mesmo comprometidas com o sintoma do analisando. Às vezes, tem relações de compromisso, mas o ponto de partida é da Indiferença. Só ela permite qualquer escuta. A analogia pode ser a da folha em branco, na qual ainda nada se escreveu: a folha é indiferente, nela se escreve qualquer coisa. Não gosto muito dela por parecer a ideia de meditação, de esvaziamento. Não se está esvaziado, reconhecem-se as diferenças, mas não se tem partido. Então, se alguém se analisou o suficiente para, ao considerar o mundo a partir da ética do Cais, a partir do reconhecimento de que o que quer que haja há e ponto!, sua postura muda. Parece algo simples, mas é o mais difícil. • P – Por que é difícil? Por estarmos tomados, habitados por sintomas primários e secundários. Não é impossível, mas muito difícil. No entanto, sem esse exercício, chafurdamos na lama das sintomáticas como qualquer filósofo, como qualquer um das ciências humanas, e mesmo da área das ciências duras. Um físico muitas vezes não consegue resolver problemas por estar chafurdado na história da física. Que loucura acontece na cabeça de um Einstein para conseguir pular fora de Newton? É o que chamo de HiperDeterminação, que, para acontecer, é preciso que, em algum lugar, a respeito de algo, a mente tenha ficado indiferente, perplexa. É o Pensamento Perplexo. Analisandos contam coisas que nos deixam de boca aberta. Já um psicólogo escuta, vai ao caderno de anotações e aos livros para saber o que fazer. É uma interferência pessoal, pois, para ele, as pessoas funcionam segundo tais e quais modos. “Pessoas” quer dizer: estatística. Estamos acostumados a uma formação dita intelectual, ficamos elaborando o tempo todo, sem saber desligar e, mediante o exercício de sua análise, entender que quebramos a cara. Quanto mais alguém se decepciona, mais neutro fica. Já lhes disse que a psicanálise é o exercício da decepção. • P – Mas, retomando a pergunta, no mundo não agimos segundo o que interessa e o que não interessa? Dizendo como você diz, fica parecendo uma posição de tolerância.

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Agir segundo interesses é agir a partir da sintomática. A postura de que estou falando, quanto mais a exercermos, mais teremos uma consideração indiferenciada. E isto afeta também os interesses e o que está sendo chamado de tolerância. Não gosto desta palavra, pois parece que o outro é uma merda, mas tenho que tolerar. É melhor pensar assim: o outro é uma merda – que nem eu. Que o outro é isto, sabemos, nada é pior que o outro, o outro é um inferno (Sartre), mas a segunda parte como fica? Lacan foi tão inteligente que disse que o Outro está lá dentro. Há grande dificuldade em incluir o exercício da Indiferenciação, pois não é uma prática do Ocidente. A psicanálise, aliás, é uma pedra no sapato do Ocidente. O que vemos por aí chamado de psicanálise, em sua maioria, é uma psicologia metida a freudiana. A psicanálise não se mede pelo conhecimento que traz, e sim pela postura que põe no mundo. Na cultura ocidental, repito, a psicanálise é contramão de quase tudo. Freud já tinha falado da postura, chamou-a de neutralidade, embora não soubesse explicar muito bem como chegar a ela. Lacan e Freud comentam sobre o confronto violento de discursos que há entre analista e analisando. Quando este vê aquele exercer alguma ação sobre sua fala ou seu comportamento, fica muito desconfiado, a ação não bate com seu saber. Ele não sabe que é a partir da postura neutra, pois a intervenção não é neutra. Ela é, primeiro, neutra, mas, isto, para ser possível devolver o que veio do analisando, e não o que o analista quer. A intervenção é no sentido de deslocar o que lhe foi entregue. E, para ficar na posição neutra, há que exercitar a viagem a um lugar de Indiferença. Em bom português de rua, é estar cagando e andando. Aí, sim, é possível escutar. Mas, se o analisando não estranhar o analista, o que estará fazendo lá? Lacan, como analista, era insuportável. Frequentemente pensei que ele só podia estar de sacanagem, mas logo depois via que era eu que estava. A ética é, portanto, a de entrar o máximo possível – ninguém entra definitivamente – numa posição de Idiferenciação. Se não for igual, é parecido com Espinosa. É também parecido com certas definições do zen. Fazemos teoria depois, com materiais, com lógicas, sendo que o importante é a postura ser indiferente, e não partidária. E mesmo o discurso teórico da psicanálise é na contramão. 119

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Tentarei exemplificar falando sobre onde chegam os grandes criadores, os enormes, os gigantes (a humanidade não é toda do mesmo tamanho). Por que há o interesse em fazer a biografia de alguém? Gente que dedica a vida para falar da vida de outro. Para explicar o quê? O inexplicável: que há uma pessoa que, por algum motivo, alguma pressão, chegou Lá. Onde? Numa falsa aparência de morte. À morte ninguém chega, mas é uma experiência mortal. Lacan dizia que é um dos modos de alguém ficar psicótico. Para ele, uma análise levada muito longe pode conduzir à psicose (à psicose dele, a minha é outra). Ele foi empurrado por alguma circunstância da vida – às vezes, não é análise, mas um acontecimento drástico – para a beira do abismo, para o que, tomando de Fernando Pessoa, chamo de Cais Absoluto. E no que bateu Lá, nada mais tem a fazer senão voltar. Como não há passagem para o não-Haver, o único jeito é voltar (ou, se não, falecer sem saber o que é a morte). Ele, então, entende que há que voltar e brincar de Mundo: produzir Mundo. O que queria mesmo era passar e ir embora, mas não há passagem. Melancólico, ao contrário, é o trouxa que, lá, fica olhando para o buraco dizendo nada querer. O outro diz: “Vamos à sacanagem!” E, ali dentro, se torna criativo, vai manipulando o Mundo, fazendo coisas. São esses os grandes fazedores da humanidade. Mas há outra maioria que também produz coisas, mas não passou Lá, imita os que passaram. De algum modo, também reconhecem que o que há a fazer é isso mesmo, ir ao Mundo. Vejam, pois, a enorme diferença entre imitar o Mundo e perder o Mundo: ter que retornar, e sua sobrevivência ser mexer com o Mundo. Trata-se de uma atitude lúdica, de brincar de algo, brincar a sério, fazer direito. Panis et circenses. A vitória sempre é desta frase. Os romanos sacaram tudo, fizeram até o Coliseu. Isto porque só há pão e circo, nada mais. Como a maioria não tem experiência de, digamos, transcendentação, percebe que o que há é isso, e vai imitando as formações. Ela vive bem assim. Mas como a maioria só brinca de pão e circo, se alguém falar mais sério, mais depurado, achará esquisito, nem ouvirá. Talvez, após muitos anos, venha a entender, mas apenas porque aquilo entrou no circuito dela. “Assim caminha a humanidade”. O difícil é, em termos de mundo, entender a contramão da psicanálise. 120

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Ela não tem acordo. Lacan dizia que ela era da ordem da discórdia. Não se pensa na contramão para fazer gracinhas ou para ser pirrento. É que, se não for na contramão, não se chega Lá. É preciso ir na contramão para chegar Lá e voltar com outra função. O trabalho é de volta. Não se trabalha daqui para Lá imediatamente, pois há que usar os recurso que aparecem. É muito difícil que o analisando, seja quem for, consiga acompanhar no durante, ou rememorar no depois, esse percurso. É demorado porque a resistência é imensa, mas vemos certas análises que foram bem-sucedidas, há o deslanchamento total da pessoa. Ela não sabe descrever o percurso e nem acha que o analista estivesse fazendo algo. Quanto menos ela percebe, melhor o analista funciona. Lacan, este, dava a impressão de nem estar ali. Ele conseguia se ausentar, e você não existia. Na sessão, ele ouvia algo especial e se ausentava. Ou seja, a sessão não terminava quando o analisando ia embora, e sim porque ele, Lacan, já não estava lá. Dá um mal-estar horrível no analisando. Aconteceu comigo algumas vezes. Ele não cedia. Acho-o melhor analista do que teórico. E olha que ele era bom. Analista é aquilo. Ele sabia desaparecer em presença. Ao mesmo tempo, se alguém enchesse seu saco por algum motivo, ele era capaz de o esculhambar aos berros na frente dos outros na sala de espera. Por outro lado, dava uma vontade de sacaneá-lo. Ficávamos bolando uma maneira de driblá-lo. É um bom exercício. Consegui duas vezes. Dei uma de Lacan com ele. Já lhes contei como foi uma das vezes, sobre “dizêorecado” e “dix heures et quart”. Alguns, a partir de uma HiperDeterminação, propõem a coisa e são malvistos. Já o sucesso imediato é prova de que o que se propôs não é grande coisa por, mesmo tendo mexido um pouco, ainda ser compatível com o estatuto e o exercício do habitual. Na música popular, por exemplo, com shows que enchem grandes praças, a multidão toda aplaudindo, temos, no palco, pessoas com o talento de saber mexer com esse lugar de neutralidade nas pessoas. Elas até sofrem deslocamentos, pois esse lugar é melhor do que elas próprias – e podem mesmo crescer. Mas, quando alguém propõe algo que realmente sofreu uma HiperDeterminação, o que vem primeiro, no mínimo, é a desconfiança por parte da cultura. O cotidiano é pão e circo porque o Outro 121

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lado é insuportável. Quando alguém equaliza os valores, nada vale nada – ou seja, vale tudo. Há que ser muito pensante para aguentar um pouco e cair fora. Queremos pão e circo por saber que, em algum lugar, Haver deseja não-Haver, é um horror. A maioria nem a ideia desse desejo consegue suportar. Então, se alguém quiser governar bem um Estado, deve, como os romanos, prover pão e circo para todos. É simples assim, mas o efeito é complicado. Partir dos efeitos, como fazia Freud ao tentar impor – é claro que aproveitando tudo que veio antes – a ideia de psicanálise no mundo, deixa tudo muito na base dos faits divers. Lacan deu uma filtrada naquilo. A psicanálise é jovem, tem pouco mais de um século, é preciso que vá se depurando ainda mais. Mas todo e qualquer conhecimento começa com a consideração dos fatinhos, e com apelo religioso. A religião é a primeira ciência, repito. Pensa-se que há uma disparidade entre ciência e religião, mas não é o caso. A religião é um modo bem primitivo de conhecer o mundo. O chato é ela durar. As coisas se transformaram e um bando de gente continua com aquela crendice – mas é a ciência deles. Não há norte-americanos que recusam Darwin baseado no conhecimento da Bíblia? Para eles, aquilo é o conhecimento, é a verdade do Haver. É, pois, a ciência deles, inseparável do conhecimento. E todo conhecimento, ainda o feito hoje, no começo, é religioso. São crendices dentro da cabeça que, depois, serão limpas, oportunamente. • P – Você falou em horror nesse lugar de Indiferenciação, mas não pode ser gozo? É o gozo quase que absoluto. Já notaram que gozamos mais no horror do que na felicidade? Por que há tanto filme de terror? Porque invectivam, fazem lembrar de algum modo, esse lugar terrível em cada pessoa. Mas é circo: a luz acende e aquilo acaba.

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24 Retornando, a ética da NovaMente é o exercício – dificilmente conseguido sem passar por análise (não é obrigatório passar, alguns, por vários motivos, conseguem) – de alguém sacar que essa Joça pode receber um olhar que considera tudo palhaçada. Qual palhaçada? O circo. A psicanálise é decepcionante, é angústia. • P – Para a não decepção basta acreditar no circo? É como no sexo, não é preciso acreditar, basta que se goze. • P – Existe uma oficina, um curso de palhaço que dura dois dias inteiros. Só pessoas indicadas são aceitas para participar, elas se tornarão “paspalhos”. Uma das atividades é o “emperdedorismo”... Enquanto a pessoa não reconhecer que é um verdadeiro palhaço, não estará entendendo nada. O palhaço é uma espécie de rebotalho do mundo. Fiz, em 2009, um Falatório intitulado Clownagens. Na ocasião, trouxe a estátua de um palhaço e disse que era meu retrato. Se fizermos uma consideração cada vez mais aprofundada de tudo, veremos que é uma palhaçada. Assumir que é um palhaço faz parte da Indiferenciação de cada um. Há, na Europa, confrarias de palhaço. É seriíssimo alguém considerar-se (não engraçado, mas) ridículo, risível, num palco. No Cirque du Soleil há palhaços geniais. Em Paris, Coluche, um palhaço famoso e genial, se candidatou à presidência da República, em 1980, dizendo: “Votem no palhaço certo!” Lacan foi chamado de palhaço. Eu o achava parecido com um anão de jardim. Ele era meio palhaço, suas roupas eram ridículas. Dalí, amigo de Lacan, também era assim, uma presença de palhaço. Já Chaplin, embora muito talentoso, ator excepcional, me soa falso, com aquela pregação vagabunda em seus filmes. Não sabe ser um Almodóvar que mostra como é e pronto. Em Tempos Modernos, Chaplin está fazendo a crítica do quê? É um filme reacionário ao achar que todos estão virando máquina. Já eram máquinas antes, só que 123

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agora estão sendo aproveitados como tais. Quando alguém quer ideologizar sua produção, de saída, fica logo falsa. Seja de que lado for. Basta ver Fellini, que é muito superior, não faz apologia de nada, apenas mostra como o homem é ridículo, grotesco, palhaço. Aliás, um de seus filmes, I Clowns, de 1970, é sobre palhaços. O palhaço é alguém que só fala a sério. Os grandes palhaços não riem. É, no ambiente da palhaçaria, uma maneira de julgar seu trabalho. Não consigo isto, se conto uma piada, rio junto. Eles falam como se estivessem falando um teorema de matemática. Nós rimos porque ele falou a sério de seu ridículo. Se fizermos exercício de permanecer neutros diante de uma conferência de filosofia, veremos que o conferencista é um palhaço. Como é possível alguém defender ideias tão absurdas, coisas que saíram de sua cabeça, ninguém tem nada a ver com aquilo. O pior é que aquilo pode ter serventia em algum lugar, em algum tempo. Não confundir serventia com o valor daquilo. • P – Há escritores que escrevem nesse vetor. Cervantes, com o Quixote, parece ser um deles. Na primeira parte, ele sonha com aquele mundo medieval, nobre, com princesas, etc., e a realidade é o contrário. Na segunda parte, ele é convidado a ir ao palácio, e lá vê que não é nada daquilo. Ele quebra a cara dos dois lados. Ele transforma tudo em ridículo. Cervantes era alguém porralouca, completamente sem caráter. Aprontou todas. Quando estava sem dinheiro, virava amante de um duque daqueles, e assim ia levando sua vida.

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25 Mundo se exprime nas oposições: Ser. Haver é absolutamente neutro. Tudo isso está no Esquema do Revirão:

R, de Real, é a indicação esquemática, e até didática, de que há um ponto bífido, de que o que está acima da oposição é unário. Minha tese, como sabem, é que o Inconsciente é estruturado unariamente. É no choque com os binários que ele tem que se polarizar. Mesmo assim, de vez em quando, derrapa, como Freud mostrou em várias ocasiões. Por exemplo, ao falar do sentido opositivo das palavras primitivas. Lacan, ao escrever Amódio (hainamoration), está falando desse terceiro ponto. Se for partido, dará amor e ódio. A impressão de linguistas e filósofos é que os opostos podem se encontrar. É a tese de Nicolau de Cusa. Ao contrário, a formação que suponho existir é: o unário costuma se dividir. Falo de cima para baixo, e não como eles, de baixo para cima. O Inconsciente é unário. Por isso, tropeçamos. Há o ato falho, etc., mas o mais importante é que, de vez em quando, esquecemos a oposição e confundimos tudo. Isto porque, no Inconsciente, não há separação. O próprio universo – que não faço a menor ideia do que seja –, o que temos como physis, já é partido. Os físicos consideram que, lá no “bang-bang”, a coisa que era unária explodiu e eles se perguntam pela antimatéria. Supõem que o Haver, o original, explodiu, mas não pelo meio, foi um pouquinho mais 125

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para um lado. Então, o que existe como universo material é o restinho, o que sobrou. Ou seja, como o inteiro não explodiu simetricamente, falam em Quebra de Simetria, ideia que me serve bastante. O que sobrou foi o excesso do outro lado. Segundo eles, as oposições explodem e somem – e tudo que há são quatro por cento da energia antes do bang-bang. É o que acham, a realidade pode ser outra. Só fazemos ficção, não sabemos se a matéria escura é o que dizem, o resto que sumiu. Todo o universo bariátrico (estrelas, etc.), aquele que tem peso, massa, é apenas quatro por cento de antes da explosão. O Haver pleno era o anterior, e o que dele sobrou é o que há. É o que chamo de Haver, isto é, o resultado do Haver pleno. Assim, tudo que há é só metade, deve ter a outra face que morreu, e mais uma porção de coisas. Nada no universo parece se comportar como nosso Inconsciente, tudo é partido. O Inconsciente não é partido, é unário, mas, como só pode se exprimir mediante formações em oposição, tem que entrar no jogo da oposição. O Inconsciente enquanto mente, e enquanto existência antes da explosão, é, repito, unário, não tem oposição. Basta perguntar a Parmênides, que diz que há algo antes, que isso é Um. Heráclito só pensou depois da explosão. • P – Em termos de topologia, o Plano Projetivo é o anterior? Ele é Um: não tem tipo algum de oposição, de borda, de entrada ou saída. É muito mais fechado do que a banda de Moebius. A suposição é que, quem sabe, a matéria já foi isso. É preciso haver duas explosões. Considero o Yin-Yang a intuição da coisa:

Esta forma total não é senão o Plano Projetivo. Se nele fizermos um furo, ele se tornará banda de Moebius; se fizermos outro furo na banda de Moebius, ela se tornará binária. A descrição que fazem dessa representação de Yin-Yang é a de uma coisa; ela sofre uma quebra, vira banda de Moebius; 126

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fura-se a banda de Moebius, e ela se torna bilátera, euclidiana. Acho que esses chineses, há milênios, de alguma maneira pensaram isto (sem a linguagem da ciência, é claro). Repetindo, se fizermos um furinho, um pequeno círculo, no Plano Projetivo – que não tem eira nem beira, não tem como entrar ou sair, estamos sempre dentro e fora –, ele vira banda de Moebius. Se fizermos um furo na banda de Moebius, o percurso vira bilátero. É como se tivessem a intuição topológica da coisa, sem nossa linguagem. A mente que surgiu no universo, repetindo sua construção, como suponho apoiado por vários físicos, é primordialmente um Plano Projetivo, que, no que se parte, fica unário. O Plano Projetivo sequer é unário, é algum troço. Digo, então, que nossa mente funciona como uma banda de Moebius: não consegue fechar tudo. Para fechar tudo, há que ser místico ou santo: não se falará mais, acabou. Pode acontecer de alguém chegar a um ponto tal em que não tem mais transa. O Primário pode até ficar transando, se lhe derem comida. Se não, não come. Há um pouco de Bartleby nessa situação e na fala dos místicos, tudo é a mesma coisa. Se nos aproximarmos da mente do Plano Projetivo, a diferença não mais interessa, pois tudo é idêntico. Se fizermos um furinho, aí começaremos a separar as formações, mas elas não têm oposição, sim e não são a mesma coisa. Há que fazer outra operação para podermos lidar com o que é oposto. Isto é uma questão mental. Não sei se é construtível hoje. Alguns físicos malucos acham que é possível reconstituir o unário na matéria. Se tomarmos o pensamento, dos primórdios até hoje, é evidente que é assim. Por isso, digo que está no I Ching, no Yin-Yang, no Tao... Pensaram do jeito que podiam, mas perceberam isso e tentaram fazer uma lógica (e não uma crendice, como vemos hoje). Freud se deparou com a unariedade, descreveu-a com clareza em vários textos, mas não soube explicar por que. Não lhe ocorreu a referência ao Oriente ou à Topologia que já estava disponível. Como o unário só se exprime como binário, o que acontece é vivermos escorregando. É muito fácil passar de um oposto a outro. O mais nítido é o que Lacan chamou Amódio. O amor, se tropeçar, não vira neutro, e sim ódio. Dizer, depois, que “viramos amigos” é acochambração diplomática no social. Suponho que 127

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todos tenhamos essa experiência. Há anos fiz um soneto intitulado Chega de Amor. O Inconsciente é isso. Não somos movidos a cio. Os animais não amam, têm cio do ponto de vista sexual e têm dependência de formações. Não ficam com ódio porque o outro transou com um terceiro. Não confundir a monogamia de certos animais com amor, aquilo é parceria para lutar no mundo. Não podemos confundir invenções idiotas do Secundário – religiões estapafúrdias, um monte de porcarias – com estruturas das coisas. Ou ficamos com tudo, ou ficamos fracionados. A espécie não aprendeu ainda a abrir as portas para tudo, e aí não haver rivalidade, guerra. Se tomamos partido, ferrou tudo. É o que todos fazem. É uma crise permanente ser, como somos, uma composição que é fundamentalmente unária e só poder operar no binário. Cada vez mais vamos tomando sentido na partição frequente. Tudo está partido, o outro lado das coisas tem que sumir, não tem direito de aparecer. Isso é a estupidez do mundo: aceitar o bilátero como se fosse tudo e querer matar qualquer diferença. Na cabeça do estúpido, aquilo não pode, e, se lá estiver ligado a um HiperRecalque, teremos um psicótico. Como Schreber podia querer transar com os homens se não era mulher? Então, tinha que virar mulher. Aí começa a virar mulher, não dá para os homens, e sim para Deus... Isto é um HiperRecalque: tudo só tem metade, não tem o outro lado. As guerras são fruto disso, de um grupo empacar em certo ponto e dizer que o outro lado não pode. Portanto, vão sair na porrada. O que sobrar vivo, será o certo. • P – O Primário é bífido? Não. É binário. Vez ou outra, até se confunde. Talvez a maior parte das invenções humanas tenha nascido do fato de alguém querer algo que não lhe é disponível no Primário. Ele força a barra para tornar disponível: não tem asas, inventa o avião. A função Progressiva – que, por estupidez, chamavam de perversão – da mente é tentar forçar a barra do não, de perguntar “por que não?” Aliás, na psicanálise, com a ideia de castração, surgiu a imbecilidade de que “tem que aceitar o não”. Castração não é isto, e não tem que cortar nada de ninguém. É simplesmente o fato de que a simetria foi quebrada, é a Quebra de Simetria. Surgiu o Recalque Originário, o qual, para Freud, tinha 128

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que ser conjeturado, pois ele só conhecia os outros recalques. Como nunca soube compor o Recalque Originário, dizia que era uma conjetura, uma vez que há o Secundário. Em nosso esquema, ele está composto: é simplesmente o fato de que o não-Haver não há. É o recalque primeiro, que repercute nos demais. Ele tem a chance de repercutir no Haver, e repercute, sobretudo, no Primário, o qual é limitado, é uma fraqueza, uma incompetência. Basta ver que, para manter certo boneco vivo, destrói o resto. Não há solução de continuidade entre o físico e o psíquico. A continuidade é total: monismo, unariedade. Por sermos meio burrinhos, por não sabermos lidar com as coisas meio misturadas, é que fazemos separações. Parmênides e Heráclito, por exemplo, deviam se juntar para terem os dois lados da questão e fazerem uma filosofia só. Parmênides ficou segurando o Um, Heráclito fracionou tudo, mas os dois têm razão. As oposições do mundo deveriam ser pensadas junto. Não como oposição, mas como parceria. Não confundir oposições com gradientes, ramificações ou novas considerações. Quando levam muito longe as oposições, o que aparece no meio é o paradoxo, que é a prova de que há um terceiro que não está sendo considerado. No Oriente, há um desejo de considerá-lo, mas não conseguem muito. Como sabem, digo que não existe paradoxo. Ele é uma limitação da língua. E como a língua constrói desse modo, chega um ponto em que ela revira. Não se perdem os sentidos aí, ganha-se todo o sentido: virou ao contrário e se mostrou por inteiro. Não há paradoxo nisso, e sim o outro alelo se possibilitando. Não é, portanto, paradoxal. É plerômico. O Ocidente vive da separação, mas quebrou a cara, chegou no final das teorias, e não sabe o que fazer se é tudo um só, se é preciso de uma formulação única para explicar o Haver. O Oriente partiu daí, o Ocidente teve que chegar aí. É grande o esforço dos físicos em querer achar a fórmula original, a Teoria de Tudo. Desconfiam, com certeza, de que há um começo unário disso tudo, de que deve ter uma fórmula única para o Haver. Traduzi isso com a fórmula: Haver desejo de não-Haver. Em minha fixão, é o axioma fundamental do que há. Sem essa fórmula, não há universo, não há nada. A “falta” de não-Haver é a Quebra de Simetria, que é capaz de proliferar em tudo. 129

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Em última instância, a simetria não é possível. Lacan enxerga isto descendo a linha até à impossibilidade da relação sexual. Não há simetria entre duas pessoas em hipótese alguma. O sexo é o lugar onde se prova isto. Ele nunca dá certo. Os orientais, para fingir que é possível, inventaram a Maithuna e ficam suspendendo o coito. A ideia por trás é a de tentar, por algum tempo, viver como se a sexualidade fosse unária. Mas, nalgum momento, aquilo escapa, ou broxa ou goza. É neste sentido que digo que o estatuto da psicanálise é místico, mas o paradigma é sexual. Indianos e chineses sabiam disso muito antes de Freud. Notem que é tudo muito simples. A universidade e seus professores é que complicam demais com suas explicações. Ela é uma segurança contra o Inconsciente. A filosofia é uma bobagem, mas divertida. A bobagem é que o filósofo exprime aquilo que a maioria não consegue fazer. Como a maioria não consegue se dizer, toma carona no dizer dos outros. Aliás, isto já é uma grande vantagem, pois, se não, o que resta é um animal. Quem produz teoria, filosofia, etc., é aquele que conseguiu se dizer, dizer de seu modo. Na literatura, isto só é visível mediante o estilo. Literatura é quando se consegue um estilo poderoso, um talento de observação do mundo, etc. Já a filosofia quer dizer como há, como é. Mas só pode dizer, sem repetir outrem, se conseguir submeter as experiências a um modo de dizer que seja próprio. É maneira de falar, pois não é da pessoa, e sim da situação da pessoa. Ela é vítima, médium, antena. As coisas, então, saem de acordo com tal antena. A extensa maioria toma carona, não teve a chance de ser vítima daquilo que cai na cabeça de alguns. E, se alguém chega a dizer, sempre dirá de acordo com seu momento, pois é o que há, o que está disponível. Eu não tive condição de ficar transmitindo Freud ou Lacan. Há uma coceira – e você tem que coçar. Aí começamos a falar merda, como todos, e nasce um discurso novo. Ele nasce sozinho, aqui só tem o útero, o bebê é independente. As pessoas têm dificuldade em passar por este pensamento porque ele é meio humilhante. Na verdade, percebemos que não valemos nada, que fomos usados, fomos abusados, literalmente enrabados pela situação. Quando alguém começa necessariamente a dizer, devia ir à Justiça, pois foi abusado. O único tribunal para isto é a Glória. Valeu a pena, ele gozou. 130

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Penso que a situação mundial, em todas as áreas, está se encaminhando espontaneamente para pensar em termos plerômicos. É quase igual ao Artifício Espontâneo (a chamada natureza). A humanidade tem uma produção compulsiva (a Wiederholungszwang, de Freud). Por causa da Pulsão, não sabemos parar, e a humanidade tem ido para a frente à sua própria revelia. O que carrega é a Pulsão – e, pressionada pelo movimento pulsional, a humanidade cria futuro. As pessoas fazem coisas porque estão com tesão. Como não suportam esse tesão, querem ficar livres dele. Aí gozam – na física, na química, na biologia... Os animais têm um processo semelhante ao pulsional, mas ficam satisfeitos. Quando acabou, acabou, matou a fome. A tal humanidade come, e fica pensando na sobremesa. Então, dependendo do que a Pulsão forçar na humanidade, pode existir progresso. Apesar do que pensam alguns filósofos, o progresso existe, ou seja, há enriquecimento. Progresso é enriquecimento em qualquer área. Ele não existe porque há grandes homens que o fazem, e sim porque há as vítimas que não aguentam o Tesão e fogem para a frente. Para elas, isto é quase obrigatório. Na história da humanidade, alguns idiotas, ao perceberem algo de que não mais gostavam, falaram em revolução. Qualquer revolução só produziu porcaria. Basta olhar para a revolução francesa ou a russa. Mas, mesmo assim, o progresso continua porque o Tesão não para. Quando algo enriquece o, digamos, patrimônio da humanidade, aquilo, como resultado, começa a influenciar de volta o que já foi feito e o Tesão que não acaba. Aí é que o progresso se faz. Isto não é revolução. O nome é: Evolução. O sentimento é progressivo. O Progressivo, como chamo, é o criador. Estamos, hoje, tendo a impressão cada vez mais nítida de que nada fazemos, que somos empurrados. A tecnologia, de repente, desandou – e danou tudo, agora não tem volta. Ninguém quer dispensar a tecnologia, pois ela é um tesão. Está claro que é a techné, a art, que nos empurra: e, depois que produzimos, ela continua nos empurrando de volta, é retrogressiva. À revelia de filósofos e pensadores, a tecnologia está empurrando todos, não se sabe para onde. Temos, agora, que entender que somos vítimas, que somos a resultante de um processo. Isto, para podermos acompanhá-lo. O Ocidente, com a tecnologia, desembestou toda ideia possível de revolução, pois aquilo é 131

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minado por dentro, vai se desfazendo. O Progressivo sempre vence. Por isso, as pessoas têm ódio do que chamam de “perverso” (termo que, como sabem, não distingue nada – daí chamar de Progressivo). Todos se viciam no que ele inventou. E isto não é atual. Basta imaginar, na pré-história, quando alguém inventa o machado, a palavra: já não são mais animais. A nossa é a época de inverter os pensamentos anteriores. E mais, em termos políticos, estamos na era (não da convivência, mas) da coexistência. Não tenho que conviver com pessoas cujos hábitos detesto, mas tenho que coexistir. Não é preciso destruir o outro para eu existir, pois há que coexistir. O século XX foi uma imundície, parece ter sido a neurose terminal do planeta. Como as pessoas são estúpidas, é mais fácil o progresso lhes acontecer do que elas o produzirem. Não há aquele que inventou o computador, foi o computador que o inventou. Aliás, neste caso, não apenas mataram como antes torturaram seu inventor, Alan Turing. Wittgenstein foi mais esperto, não se deixou cair na atitude de Turing. Ia para Manchester pegar os operários de lá. • P – Era “marxista”, distribuía a renda... Ele era gênio. Com grande dificuldade, produziu o Tractatus, e, depois, disse que não era nada daquilo. Quantos fazem essa virada? Freud não fez. Deixou mais ou menos entendido que toda Pulsão é de morte, mas não passou a limpo sua obra a partir da Pulsão. Não disse que não era nada daquilo que colocara antes, quis ficar com tudo. Era meio pão-duro, acumulador. Notem que Wittgenstein e Freud eram judeus, mas um abandonou e o outro acumulou. É uma comparação interessante, pois traz a pergunta – a ser eternamente respondida – sobre qual dos dois seria o mais analisado. Lembrar sempre que Wittgenstein tinha a salvaguarda de poder recorrer à fortuna de sua família. Não era o caso de Freud, que tinha que maneirar para sobreviver. Quero lembrar agora que é preciso ler Georges Bataille. Tive, recentemente, a impressão de que ele me influenciou demais. Li quase todos seus textos. Recomendo como obrigatórios: Suma Ateológica e O Erotismo. Na Suma, que me parece ser seu texto mais arrumado, ele produz e sustenta o conceito de experiência interior, que tem quase tudo a ver com o que digo sobre o estatuto da psicanálise ser místico. E há também seu texto sobre o processo 132

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de Gilles de Rais, que é fascinante. Gilles de Rais é o psicopata. Aqueles que pretendem lidar com psicanálise têm que conhecer gente como ele, como o Marquês de Sade, para ver como funciona a turbulência mental. Lacan é outro turbulento, mas não há que estudar apenas ele. Estamos num momento que cabe retomar esses autores: Stéphane Lupasco, Balthus, Klossovski... O estruturalismo e o pós-estruturalismo entraram em falência atualmente, e é preciso o pessoal tomar contato com esse passado quase que pré-século XX. É preciso acompanhar o que aconteceu, por exemplo, com Kojève e seu hegelianismo, pois os retardatários de hoje estão buscando o Lacan do começo para se tornarem hegelianos: Zizek, Safatle... Eles são retrocesso. Como sabem, falo em tese, anti-tese e sin-tese. A sin-tese hegeliana é um salto, e não uma conjunção. É um salto para a frente, e não a ideia de Nicolau de Cusa de juntar os dois, ou mesmo minha ideia de derivar os dois do Um. É, sim, um movimento histórico que resultará num passo dentro do caminho da história. Aufhebung é isso – e tem um cheiro de messianismo barato, que nos faz perceber na cabeça de um Safatle sua vontade de poder, de poder real, estatal, político. Em última instância, essa gente regressiva, no sentido de Hegel, quer afirmar o Estado de alguma maneira competente, com partido no poder. De preferência, Deus. Isto embora o próprio Hegel tenha deixado claro que o Estado é a polícia. Como sair dessa? É um pessoal contra a Grande Política, que, segundo Nietzsche, é aquela que acontece. Ela não é revolucionária, e sim eventual.

26 Temos o conhecimento como domínio das coisas e o conhecimento como transformação. A epistemologia é sempre falsa, pois a pessoa do filósofo não 133

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entra junto. Ele o toma como se houvesse objetividade, como se fosse capaz de escrever a realidade da coisa. Se a pessoa está envolvida com o conhecimento, ela vai junto. Por isso, gosto do artigo de Karl Popper em que escreveu que a falseabilidade só é assim se você acreditar. Há o bobajal epistemológico de achar aquilo sério, mas foi a maneira que Popper inventou para fazer um mínimo de juízo sobre o conhecimento. Isto porque acreditou naquilo. Ou seja, o epistemólogo é sempre falso. Ele está fazendo algo que depende da transa de suas formações com outras formações, e chama isto de objetividade. Viver em estado de conhecimento, sabendo estar participando daquilo até vale para chamar a religião de: um fóssil do conhecimento primitivo. Conhecimento primitivo é religião. O chato é ela querer permanecer. Aí, quando alguém tenta conhecer produzindo religião, está inteiramente envolvido. Não há, pois, epistemologia possível, e sim uma Gnoseologia com determinado formato. Quanto a isto, Foucault tem razão ao dizer que, na Gnoseologia, o conhecimento envolve uma transformação de si. Jamais consegui acreditar em Popper, pois, se a coisa não foi falseada, não existe falseabilidade. Por que a psicanálise não pode ser ciência por não ser falseável? Todo conhecimento é falseável? Não. Mesmo aquele de que se diz ser falseável, é apenas provisório. Isto, até que se dê um passo a mais. Quando se mostra que um conhecimento não é bem assim, que é outra coisa, não há falso algum, pois aqui é isto e, lá, aquilo. O ideal de certeza científica é um ideal do século XX. • P – Qual a diferença entre fake e artificialismo? O artificialismo busca produzir algum tipo de conhecimento sobre algo. O fake é um fingimento de engodo do outro, ele não está operando. Observem, entretanto, que há algumas pessoas que são tão fingidas que aquilo parece verdade. • P – Mas, no caso do maneirismo, é notório que ele se utilizou demais de aspectos que, em sua época, seriam considerados falsos, fajutos e inferiores. Isto, para a construção de seu processo próprio. Esse julgamento da época é que é... fake. Não prestou atenção ao processo e o julgou pela via da outra construção, a clássica. Isto é que é falso por não considerar o que os maneiristas estavam considerando. O maneirismo 134

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não é fake. Fake é o classicismo. O fake propriamente, no sentido em que falo, não se sustenta. Se o invadimos, ele logo desaba. E mais, fake são sobretudo pessoas, e não produtos.

27 Lacan disse que l’inconscient est structuré comme un langage. Eu, brincando com a língua – dos outros, é claro –, disse (em 1990): l’Inconscient est structuré comme on l’engage. Por que disse eu isto, que o Inconsciente é estruturado no que ele se engaja? E o que sustenta Lacan dizer como disse? Em primeiro lugar, o momento histórico. Desde o nascimento do estruturalismo de Saussure, que vai bater em outros lugares, a vocação do século XX é dar conta do que é a linguagem: o sintoma do século XX é a linguagem. Acho que, em época alguma da história da linguística, fez-se tanta... linguística. Basta ver os filósofos lógicos, Russell e Whitehead, Carnap, Círculo de Viena, Wittgenstein... Este, aliás, foi melhor: descobriu que era um jogo e se perguntou como ficava esse jogo. Então, como supostamente, desde Freud – pois, antes, não era necessariamente assim –, houve atenção, na escuta do que a pessoa tem a dizer, ao dito verbalmente, ficou-se com a impressão de que o Inconsciente se exprime dessa maneira linguageira, se não mesmo, linguisticamente. É o que faz Lacan, apoiado em tudo que podia assimilar da produção do século XX (mesmo quanto a coisas produzidas antes). Tanto é que, tempos depois, dirá não estar falando propriamente de linguística, e sim de linguistérie. Mas, no início, estava falando sim. Ao perceber que não devia, deu outro passo. Está 135

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certo, ele estava em sua lide com a questão – e, repetindo, a questão do século XX é a linguagem: todos preocupados com o fato de que há falantes. • P – Tudo isso em função do mentalismo, de como ter acesso à mente. E a linguagem parece ser algo acessível. Entretanto, se tomarmos o livro de Jean-François Lyotard, que sempre menciono, Discours, Figure (1971), veremos que ele derruba essa ideia. Ao fazer artes plásticas, arquitetura, etc., não estamos falando? Lacan se vale da desculpa de que não se faz isso sem, primeiro, falar. Ele tinha a ideia de que tudo tem que passar pela linguagem falada, pela fala. Achava que não se pode pensar um sistema matemático senão, primeiro, falando. Não é verdade. Há intuições matematicamente diretas, sem falação a respeito. É o que Einstein dizia sobre intuir o processo e, depois, tentar descrever. As construções jamais aconteciam em sua cabeça como frases, ele as via1. Um artista plástico, por exemplo, frequentemente não está verbalizando nada, mas intui, percebe uma formação. Tanto é que, depois, é difícil para ele saber o que fez e para quê aquilo serve. Aí, pergunta ao crítico, que, este, só tem emprego porque o artista não sabe falar, e não constituiu seu trabalho por meio de frases. Tomem alguém como Pollock, que frases tem ele? Ele é um rabiscador, e os críticos ficam falando sobre seus rabiscos. Além disso, críticos diferentes falam diferentemente daquilo. E todos estão certos: foi o que puderam dizer daquilo que o outro viu. O século XXI pensa como estou dizendo agoraqui. No século XX, tivemos os últimos estertores da vontade de poder no conhecimento do Terceiro Império. Lacan, então, com toda a parafernália de saberes que utilizou – notem que, no final da vida, ele se dá conta de que não era assim e, por isso, começa a topologizar, a tentar a matêmica –, ao mesmo tempo que diz que 1 “As palavras da língua, tal como escritas ou faladas, não parecem desempenhar qualquer papel em meu mecanismo de pensamento. As entidades psíquicas que parecem servir como elementos do pensamento são certos sinais e imagens mais ou menos claros que podem ser reproduzidos e combinados ‘voluntariamente’... Os elementos mencionados são, no meu caso, do tipo visual e outros do tipo muscular. As palavras convencionais ou outros sinais têm de ser procurados laboriosamente apenas numa segunda etapa, quando o jogo associativo de que falei já está bem estabelecido e pode ser reproduzido à vontade” (carta de Einstein, citada por Roger Penrose em A mente nova do rei).

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“o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, começa a fugir disto. Estabelecer matemas é fugir disto. Depois, tentar reduzir o acontecimento psíquico a uma pura nodulação concreta – pois não se trata de geometria abstrata, é concreta: é preciso construir os nós – é também fugir do que disse antes. • P – No L’Étourdit, Lacan diz que os matemas não são metáforas. Por trás da lógica que ele lá tenta urdir, há a ideia de que a matemática está dizendo o real. Mas ele também diz que le truc de la psychanalyse n’est pas mathématique. E se a matemática disser o real, está tudo bem, pois o real é indizível. Então, ele não está dizendo nada. Entendam que Lacan é cheio de truques. De qualquer modo, ficou no ar a frase “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. É a linguagem de Russell ou a de Wittgenstein? Para Freud, o Inconsciente era estruturado como um sonho, ou o Inconsciente era estruturado como um chiste. Ao perceber essas coisas, e para mostrar o aparelho funcionando, Freud foi à língua, às frases. Lacan deitou e rolou, e jogou tudo sobre Saussure, Jakobson, etc. Entretanto, se isto é verdadeiro, pelo menos não é suficiente para lidar com o Inconsciente (mesmo que o psicanalista meio trouxa pense que basta escutar frases, o que, como disse, foi o sucesso da psicanálise no século XX). Por isso, chamo atenção para o fato de a descrição do Inconsciente como linguagem partir daqui para trás. Ou seja, a frase de Lacan apenas se sustenta olhando a partir de um momento histórico de hipervalorização da língua falada. Mas, historicamente, como se ordenou o Inconsciente? Como linguagem? Não! A linguagem falada teve que nascer, não tem essa de Deus ordenar: “Fala, Adão!” Ela teve que brotar de competências possíveis da espécie. Assim, ao chegar aqui, havia uma quantidade enorme de sofisticações a respeito de milênios de falação – linguística, filologia, pensamentos filosóficos – sobre o que aconteceu e chegou aqui. Por isso, Lacan diz que o inconsciente é estruturado como isso aqui. Quando digo “o Inconsciente é estruturado”, isto é passado ou futuro? 137

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É ambíguo, pode significar que foi e que está sendo estruturado: sempre se estrutura como tal. Então, como suponho que não dá mais para dizer “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, fiz a “brincadeira” de dizer “o Inconsciente é estruturado no que ele se engaja”. O que é o Inconsciente? Segundo a estrutura aqui apresentada, como dissera Freud, é o resultado de recalque. Ele teve que colocar um recalque originário como conjetura para afirmar isto, mas nunca o explicou. Para ele, já que há recalque, pôde conjeturar que houve um originário. Meu esquema não afasta o Inconsciente do Haver, nem das produções relativas ao Haver. Faço questão de que o Recalque não seja conjeturado, e sim concreto. Minha posição é: há Recalque porque há um Recalque Originário mesmo no Haver. É o “desejo de não-Haver”, que é o único que descreve todo movimento pulsional, a Pulsão de Morte – e isto não é possível: o não-Haver não há, não comparece. Só comparece secundariamente como nomeação dessa falta. Ao dizer que o não-Haver não há, estou fazendo com que ele compareça na frase como suposta indicação disso que não comparece. Mas é secundário. O Haver, para fora e antes do Secundário – ou mesmo dentro dele, pois é ambíguo –, resulta de Impossibilidade de não-Haver. Se não-Haver fosse possível, nada haveria. A pergunta de filósofos bobos – “por que há o Haver, e não o não-Haver?” – é uma idiotice da língua, pois, se não-Haver houvesse para além do Secundário, repito, nada haveria. O não-Haver seria um buraco-negro absoluto. Assim, no que parto da concretude, o Haver é o Inconsciente. Há um Recalque Originário que resultou no Haver. E se esse Recalque é que funda a impossibilidade de sair, isso aqui é o Inconsciente. Lacan foi esperto ao não dizer que Deus é o Inconsciente, e sim que Deus é inconsciente, mas esta também é uma frase ambígua. Ou Deus é um cara que é inconsciente, ou Ele é o próprio Inconsciente. Na religião, Deus é onisciente. Para Lacan, se Ele é inconsciente, não sabe o que está fazendo, é uma criança brincando com dados. Espinosa, muito perto do que estou dizendo, teve uma saída brilhante: Deus é a natureza (Deus sive Natura). Então, Ele existe concretamente, pois é a natureza. Mas a natureza é pouco para ser Deus. Ele tem que ser o que há. Por isso, digo que o Inconsciente é Deus. Se houver a ideia de Deus – 138

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ideia, aliás, que não foge da cabeça de ninguém –, Ele é o Haver. Acho este um passo um pouco adiante de Espinosa. Então, dado que o Inconsciente é o Haver com todas as suas formações, por que estou dizendo que o Inconsciente é estruturado como quando há engajamento? Porque o que estou chamando de Inconsciente, enquanto Haver, é o modelo do que quer que haja, e, como sabem, nada há fora do Haver. Lembrem que fiz a suposição de que estamos aqui com esta problemática por ter aparecido no vivo, no biológico, uma espécie – ou várias que estão por aí, pelos universos – que repetiu o processo do Haver. É uma espécie que diz não por ter, dentro dela, em sua máquina, um movimento de Revirão: a espécie imitou o Revirão do Haver. O Haver é o Revirão: tenta não-Haver, não consegue, então revira para lá e para cá. Esta espécie, portanto, repete o movimento do Haver. Por isso, somos a loucura que somos. E podemos dizer: há o Haver como Inconsciente, e há o Inconsciente dessa formação do Haver que se repetiu dentro do Haver. Ou seja, há o Inconsciente enquanto Haver e, no seio do Haver – que, este, é inconsciente –, há a repetição de seu próprio princípio, que foi bater aqui nesta espécie e talvez em milhares de outras por aí. Assim, ao falar de nossa transa dentro do Inconsciente, e com o Inconsciente, estou dizendo que, dado que há Recalque Originário, dado que esta espécie repete o movimento do Haver, ela, além de uma grande complexidade biológica, cerebral – que certamente é o que foi capaz de nela repetir o que aconteceu no Haver como Recalque –, começa a verbalizar. Existe uma pletora de formações infinitas no Haver e dentro de nós, na transa de nossas formações com as outras construções derivadas da Quebra de Simetria. Esta Quebra é: não-Haver não há – então, isso fractaliza, explode tudo. Essas coisas explodem com desenho, como formações do Haver, e não sem desenho ou como o Haver em si. E essas formações transam umas com as outras. Chamarei isso de linguagem? Não! Quero dizer que são as formações do Haver, resultantes da Quebra de Simetria, da extrema fractalização e fratura do Haver, e que são caracterizadas, têm seus modos de funcionamento. Não sou obrigado a chamar isso de linguagem, pois não estou com referências à linguagem. Não sou do século XX, quero ser do século XXI 139

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e quero chamar isso de Formações, umas diferentes das outras, com as transas entre formações. Dado isso, por que surgiu nesta espécie a tal linguagem? A fala, a possibilidade de verbalização? Basta tomar esse Inconsciente completamente pirado, que chamo de macaco maluco. Os macacos malucos, que são os primeiros da espécie, eles, aqui em sua piração, já que podiam por terem um aparelho diferente, começam a verbalizar certas transas de suas formações com outras formações. Podemos, então, imaginar algo muito primitivo na origem da linguagem e da fala: eles tinham três ou quatro fonemas, mas que já podiam ser inscritos em algum lugar, ainda que fosse apenas no cérebro. Eram, pois, macacos bem primitivos, mas já com nossas competências e com seu Inconsciente que era repetição do outro (o não-Haver não há). Como eram macacos malucos, não sabiam o que faziam ou diziam. Os demais macacos eram sérios, tinham um programa, sabiam o que faziam e diziam. Entretanto, aqueles malucos tinham a competência de começar a marcar transas entre formações de diversas maneiras, graficamente e mediante sons que sabiam produzir. Marcavam as formações daqui e as de lá. Isto é o engajamento do Inconsciente, o qual – esta estrutura que nasce do Recalque e enlouquece o macaco – vai se engajando nas transas desse macaco: ele se engaja em fazer coisas e faz marcações de suas transas de várias maneiras. Aí pode falar com o outro. Vejam, então, que a linguagem é resultado do engajamento do movimento do Inconsciente nas formações do Haver. Portanto, não estou partindo de hoje, quando temos uma sofisticação linguística de conhecer. Isto é muito depois. Parto de lá, de como isso pode ter nascido e, durante milênios, ter provocado o surgimento de línguas (sintomaticamente, como disse Lacan). O que me interessa é que esta espécie nasceu da repetição, seja por complexidade ou pelo que for, da mesma formação do Inconsciente. O Inconsciente enquanto formação se repete, e o bicho fica doido, perde as referências. Como ele ainda tem muito de Primário, isto não o deixa enlouquecer completamente. Mas é maluquete, pois perdeu as fronteiras. E, no que a função chamada Inconsciente se engaja nos processos, cria-se o que 140

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chamamos de Inconsciente da espécie. Por isso, digo: o Inconsciente é estruturado por esse engajamento. • P – A diferença entre o Haver como Inconsciente e o Inconsciente dessa formação do Haver que se repetiu dentro do Haver é que o primeiro não registra? O primeiro registra, basta olhar para o que há. Vejam ali uma árvore, é um registro. • P – Mas a palavra árvore não é árvore. A palavra árvore é árvore – Lacan o disse (quanto a isto, estou com ele). • P – E o quadro de Magritte “Isto não é um cachimbo”? Se ele escreve isto, não é um cachimbo. A língua é doida, depende do Inconsciente. Ela resvala. Magritte, ao fazer essa metáfora tão forte de dizer “isto não é um cachimbo”, mostrando o que chamam de cachimbo, está sendo didático. Entretanto, se procurarmos em nossa vida, em nossa história, acharemos uma quantidade de vezes em que isto não é isto, e não é mesmo porque resvalou. Como já comentei em 2013, traduzi Lalangue – que Lacan tem motivos para escrever numa palavra só – por Alíngua, e Haroldo de Campos, sem ao menos me citar, esculhamba por escrito [cf. seu artigo, de 1989, intitulado O Afreudisíaco Lacan na Galáxia de Lalíngua (Freud, Lacan a Escritura)]. Diz ele que Alíngua é negativo, e que, portanto, tem que ser traduzido por lalíngua. Mas existe lalíngua em português? Não! Alíngua é que está certo, como artigo e como negação. Alíngua pira, é o que quer dizer Lacan: ela é e não é língua, pois não diz tudo. Lembrem-se de que ele diz: “Je dis toujours la vérité, pas toute parce que les mots me manquent”. • P – Entendo que a palavra árvore seja árvore, mas não que “isto não é um cachimbo” não seja cachimbo. Está vendo ali no jardim? Isto não é uma árvore. Não há sobreposição da língua com outras formações. Há transa. Então, se o maluco olha para um cachimbo e diz “isto não é um cachimbo”, está certo. E se diz árvore, olhem a árvore lá, está certo. É como diz Lacan: “Falo a palavra elefante, e o 141

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elefante entra na sala”. Entra mesmo. O problema está em que isso desliza por Imaginário, por configurações, e ficamos elefantizados. A língua substituiu de tal maneira a transa entre as formações que é possível a alucinação. Lembrem-se de que transa entre as formações é transa entre as formações do Inconsciente, não importa que seja meu ou do Haver. Alucinação só é possível por isso. Por que alguns alucinam? Os que não alucinam, aliás, são poucos. O certo, se não se mantivessem as barreiras impostas pela cultura, seria todos alucinarem facilmente. Basta ver a história da filosofia, em que cada filósofo alucinou o Haver de um jeito. O mais famigerado é o Sr. Kant. • P – Hegel é mais alucinado do que ele. Hegel é teatral. Pensa que vai construir a História e ela ficará bonitinha no palco. Kant acredita mesmo naquilo. É o chamado caga-regra. É preciso de todo um artifício já produzido para saber que, ao falar árvore, ela lá não está. Se essas amarras forem tiradas e a pessoa resvalar, estará vendo árvore mesmo. O elefante entrou mesmo na sala e ela é capaz de sair correndo com medo dele. Ou seja, sem certas amarras para fingirmos ter nítida separação entre as realidades, a alucinação começará. Basta prestar atenção a nosso funcionamento no cotidiano para ver quantas vezes alucinamos. Por exemplo, chamo de alucinação o fato de, de repente, olhar para um lugar e – como a formação, na transa com a formação de minha visão, é ambígua – dizer que há algo ali. Em seguida, vejo que não há. Acontece conosco a todo momento. O pior, aliás, é o segundo momento, pois será que não há mesmo? Vejam, então, que o que temos são formações com suas especificidades e suas transas. Isto não tem a obrigação de ser chamado de linguagem. O pessoal, muito depois, já adiante, tomou a língua, começou a aplicar e achou que ela dava conta de tudo. Mas, se desse conta, Lacan não diria a frase que citei há pouco para significar que a linguagem não é capaz de bem dizer: ela é pas toute. Diz uma porção de coisas, mas é um fracasso. A psicanálise não pode cair no engodo dos saberes que vão na contramão dela. É ela, aliás, que vai na contramão, é igual à Inglaterra (que, esta, tem o sintoma da psicanálise). As ciências e a prática científica chegam a dar chance a um Popper dizer a 142

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bobagem que disse sobre a falseabilidade. Mas o que temos aí são limitações e amarras, chamadas de método científico para não fugirmos aos protocolos. Gosto de Bachelard por dizer que isso escorrega a toda hora. O chato, aliás, é ele ter se tornado junguiano, mas, mesmo assim, o que traz é bonito e é bom. Ele começa a tratar as realidades fora do método científico – mas com espírito científico. Ou seja, para retomar o que foi dito no início, gnoseologicamente, e não epistemologicamente. A epistemologia de Bachelard não o é, é Gnoseologia. Ele não colocou ou reforçou ideia alguma de método científico, e sim de, repetindo, espírito científico. Basta ler seu La Formation de l’Esprit Scientifique, que é magistral. Há ainda seu O Novo Espírito Científico. • P – Mas ele não está falando de fronteiras, de estabelecer um corte epistemológico? Corte epistemológico é um ato. O pessoal que produz ciência faz o ato de recorte. Não é que a realidade tenha recorte. Se tivesse, não seria corte epistemológico, e sim o recorte que há no Haver. Ele quis explicar a produção de conhecimento científico por um recorte. E é assim: faz-se um recorte – por isso, está errado. Por isso, a ciência está sempre errada. Não é que ela seja falsificável, e sim que ela está sempre errada. Só que seu erro dá certo – quando se aplica dentro das possibilidades dos limites antes estabelecidos. Mas, aplicado fora deles, não dá. Aí bateremos, por exemplo, nos Principia Mathematica, em Goedel (completude / incompletude), em Turing (computabilidade / incomputabilidade), como fracasso. No Brasil, temos dois vícios graves. Primeiro, aquele que há em todo o mundo: pensar que é isso mesmo, quando não é em parte alguma. É aí que Magritte diz “isto não é um cachimbo”: há que “descachimbar” nossas cabeças. Segundo, o Brasil tem o estigma do positivismo, sobretudo nas Forças Armadas. Não há milico que saiba pensar não positivamente. Assim, na escola, quando nos dizem que dois e dois são quatro, acreditamos que o são definitivamente. Não aprendemos que só é assim quando se aplica esse tipo de pensamento. Se mudarmos o pensamento, não serão quatro, como sabem todos aqueles que conhecem matemática.

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Por isso, digo que o Inconsciente não está estruturado se não houver engajamento, se não houver aplicação ou transa. Aí, ele vai se estruturando. Tomem uma criança e vejam que ela começa a ser forçada a engajar-se em certo mundo. Seu Inconsciente fica marcado: terá tal neurose, e não outra... Ele é estruturado de acordo com esse engajamento. O Inconsciente das IdioFormações não é o mesmo para todo mundo. Meu Inconsciente não é igual ao seu. Há o pedaço em que o Inconsciente de tal pessoa desta espécie está desenhado demais. Tanto é que, ao fazer análise, o Inconsciente dela começa a mudar. Até seus sonhos mudam. É sempre a mesma construção que se repete em todo lugar e tempo, mas, quando se trata de falar de seu Inconsciente, não é o caso de vir com abstrações, pois seu Inconsciente tem sintomas pétreos. A análise, de repente, fará com que eles transem com outras formações. Assim, no que alguém engaja seu Inconsciente numa análise, ele começa a conseguir elasticidade, e a pessoa já não é mais a mesma. Mas, repito, o Inconsciente dele é diferente de meu Inconsciente. Não posso, então, justo porque o analisando não é eu, ser o psicólogo de cagar regras sobre ele. • P – Para você, Linguagem é Revirão. Não há definição possível do que seja linguagem. Digo que é Revirão por ser o que produz linguagem. Animal não fala porque não tem Revirão. Ele é mero subproduto, pois não nasceu com a “desgraça” de repetir a constituição do Haver. • P – Linguagem, para muitos autores, não se confunde com língua. Esta é um caso de linguagem. Por que você diz que formação não é linguagem? A linguagem tem formações, mas a recíproca não é verdadeira. O século XX pensou que fosse verdadeira: se há linguagem, tudo é estruturado como linguagem. Não! Linguagem é um modo, um tipo, de formação. Uma língua é um modo de formação, é modal. Não há que aplicar este modo de formação sobre as coisas, pois outras coisas são outros modos de formação. Não são língua nem linguagem, são formações estruturadas assim ou assado. Como uso a linguagem para mexer em outras formações, atribuo a essas formações a estrutura da linguagem. Não é. Se fosse, falaríamos tudo. Então, a linguagem 144

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é uma formação, mas nem toda formação é linguagem. Por operarem com linguagem sobre as formações do Haver, e porque, de certo modo, funciona, o erro desses séculos foi achar que uma tem a mesma estrutura da outra. Tanto é que há o Real como impossível de se dizer. Isto porque, repito, uma nada tem a ver com a outra. Se linguagem fosse compatível com todas as formações, Russell e Whitehead teriam acertado. O fracasso se deu porque eles estavam trabalhando com linguagens, e não adianta aplicar a linguagem às outras formações do Haver. Podemos ter algumas transas, mas outras não são possíveis. Linguagem e língua são um modo de constituir formações. • P – Em dado momento, você disse que formação é informação e conhecimento anotado. Para que seja informação e conhecimento anotado não preciso supor que sejam passíveis de transa e, para que haja transa, tenham alguma maneira de comunicação entre eles? É como o sexo. Lembrem-se do que foi dito n’O Pato Lógico (1979) sobre duas formações, cada qual com um monte de coisas. Algumas são transáveis – em analogia, pelo menos –, outras não. As que não são transáveis, só conseguimos definir mediante as que o são. E aí fica faltando o resto. Por isso, ciência e conhecimento não dão certo. Por mais que tenham encontrado um modo de analogia e de transa entre algumas formações dessas formações – cada uma é uma formação de formações –, isto resulta num saber, mas não todo, pois uma não é a outra formação. Podemos saber muito a respeito das formações do Haver, mas não tudo. Tomem o progresso da medicina, e vejam que é a insistência em conseguir o máximo de formações entre analogias de outras formações. Aquilo vai crescendo, vai se anotando, acumulando, e as analogias podem ir ficando mais claras. É analogia, e não metáfora (esta é uma forma de analogia). Vamos, pois, acumulando transas que deram certo. Como há uma analogia entre o que falo e o que lá está, o repertório vai aumentando. Observem, por exemplo, que se faz grande investimento no sentido de produzir uma vacina para nos livrar de certa doença, mas não se consegue uma analogia total. Consequência, o que estava fora da analogia, mata a pessoa (como está acontecendo com uma colega nossa neste momento): a vacina tem uma percentagem que não é 145

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capaz de ser dominada, e mata. Deixaremos de tomar a vacina, sob risco de morrer mesmo sem chance? É a falta de saber da medicina e da biologia, pois é preciso um grande esforço para aumentar a transa das formações que nada têm uma com a outra. Se as formações fossem mapeáveis ponto a ponto, em biunivocidade, saberíamos tudo. Em filosofia, costuma-se dizer que o simbólico não é o mesmo que o real, mas o que acontece é que as formações são dos mais diversos tipos e não transam completamente. É o que Lacan diz ao afirmar que a relação sexual é impossível. Generalizei ao dizer que é impossível entre qualquer pessoa e qualquer pessoa, e não apenas entre homem e mulher (pois não se sabe o que seja isso). Dá-se uma transada, mas não se consegue relação sexual alguma. Se conseguissem, virariam um pacote só, um andrógino. Isto porque falta, não se conseguem todas as analogias. Lacan tem o conceito de falta, mas, quanto ao que estou dizendo, a falta aparece mesmo, é concreta. O que existe é excesso. Assim, toda e qualquer transa sexual – pode ser até com uma cabra, uma vaca – é impossível. Freud notou isso de saída, que nossa vida é uma repetição infernal (Wiederholungszwang). Quanto mais velhos ficamos, aliás, é mais infernal ainda. O inferno é pura repetição, é nietzschiano. Vejam, então, que, para o nosso projeto, que é de lá para cá, não interessa já termos linguagens sofisticadas, e sim como esse animal veio a fazer o que fez. Há a questão eterna da vida, de como se passa do não vivo para o vivo. Até hoje, em termos de produção de formações, não se conseguiu uma analogia ao fato, algo mais analógico a essa passagem do que já se disse. Como nasce a vida? Não adianta dizer que veio para cá trazida de outro lugar. Lá era o quê? Como se passa da química orgânica para o vivo?

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28 Mais uma marca da entrada no Quarto Império: Bob Dylan. Acho-o genial, quanto às suas letras. As músicas são meio chatas, aquela coisa caipira e repetitiva – na verdade, ele quase que declama. O que me interessa é que o sacrossanto Nobel, assim como a sexualidade, está atravessando a fronteira do ponto de vista de gênero. É a prova de que o mundo está virando o Quarto Império, está bagunçando com as fronteiras. Era algo impensável até o ano passado. Para eles, era tudo separado, literatura era escrita. Nunca atravessaram assim em área alguma, nem de física para química. De repente, consideram a poesia dele, e a música a acompanha. Aliás, há uns cinquenta anos, Dylan teve um acidente de moto, perdeu massa encefálica – e ficou melhor. • P – Vila-Matas diz que o século tem o Ar de Dylan (título de seu livro de 2012). Assim como tem o Air de Paris, de Duchamp... Boa lembrança. Dois autores contemporâneos são Vila-Matas, na macia, e Houellebecq, na porrada. Acho sério esse acontecimento do Nobel – e vai invadir muitas áreas. Qual é, hoje, exatamente, a fronteira entre física e química? Ela não pode ser determinada. O que temos são passagens sucessivas, vão lá, vão cá, sem fronteiras, sem alfândega, sem guardas. E ainda é pouco, pois, suponho, quando o Quarto Império se instalar não haverá fronteira alguma. Serão passagens modulares de um campo para outro, sempre com uma região em que não se sabe onde está. O corte fronteiriço é uma questão de cultura antiga e uma questão de Império. O Primeiro Império, Amãe, é localizado: a pessoa é aquilo de onde ela saiu. O Segundo Império, Opai, começa a traçar currais humanos. O Terceiro Império, Ofilho, mistura tudo, mas transforma o curral físico da procriação em curral mental. Quanto mais ele caminhou, mais houve especialização de um campo de conhecimento e de função das pessoas no nível do Secundário. No começo do Terceiro Império, quando ainda não eram 147

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plenamente secundários, excluíam o sexo. São os homens, e não as mulheres, que cuidam dos currais secundários. Como o curral era secundário, aquilo foi misturando, deixando as mulheres entrar um pouco, até surgir uma função feminista. Elas começaram a fazer guerra, pois, se o curral é secundário, nada tem a ver com esse ou aquele sexo. Acusaram os homens de usar definições do Segundo Império para as qualificar. E, agora, devagarinho, vamos caindo no Quarto Império, que é uma expressão intermediária com o Originário. Aí vem a zorra total: não há qualificação ou definição capaz de fundar previamente um grupo. Pode fundar depois, mas não previamente. Cada pessoa tem sua descrição, tem seu mapa primário e seu mapa secundário. Cada um tem um mapa primário, que, dentro em breve, poderá ser descrito com nitidez. Aí é que voto na distinção entre Autossoma e Etossoma – o que dará o retrato biológico de uma pessoa. E o Secundário piora – ou melhora – mais a situação. Cada pessoa será descrita quase que completamente. Acho que, no futuro, nem de documento precisaremos. • P – Como ficaria isso quanto à intensidade dos recalques? Será possível mensurar um HiperRecalque? Acho muito difícil. Gostaria que fosse possível. Aí já não é da ordem do genético, é mais sutil, é tudo secundário. As definições de Recalque, de HiperRecalque, etc., são definições provisórias de instalação secundária. O Primário pode ter a ver com elas, pode dar uma tendência. Alguns psiquiatras, hoje, dizem que o psicótico é geneticamente psicótico. Não sei sobre isto, mas, quanto à psicanálise, suponhamos que existam no Primário, como Freud chamava, predisposições para a patologia. À medida que as ciências biológicas se acrescentarem, menor será o campo para nós. O campo psi ficará estreito – e, em sua região, talvez mais necessário do que antes. Daí que, quanto à psicose, é preciso parar de pensar em coisas como foraclusão de algum significante (como sabem não acredito em Nome do Pai, não sou do Segundo Império). Falo em HiperRecalque aí, mas, como foi colocado na pergunta, é preciso pensar na intensidade. Digamos, como os psiquiatras, que alguém, do ponto de vista constitucional, biológico, primário, tenha forte tendência à psicose. Que intensidade é necessária para se colocar alguém nesse lugar? Em sua 148

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história, que intensidades podem ter caído sobre ele que o fazem ir facilmente para um lugar que já lhe está fácil do ponto de vista etossomático? Sem ser behavioristas, se observarmos o comportamento das pessoas, notaremos que há desenhos etossomáticos nítidos. Vemos isto no bebezinho, de quem dizem, por exemplo, que é a “cara do pai”. Ou seja, observamos comportamentos que são do pai. É isto que chamo de etossoma. É um temperamento, no sentido biológico. O que temos a entender é a parte que nos cabe aí. Cinquenta por cento do que a psicanálise supõe sobre isso vai para o lixo, e ficará a parte que lhe cabe, que é: no movimento secundário, a pessoa se achar. É a parte mais difícil. Por isso, a psicanálise continua necessária para a pessoa se situar dentro do Secundário com respeito a seu próprio Primário. Por que pouco sabemos sobre o funcionamento do etossoma? Porque desenham uma pessoa desde criança. Já a nomeiam, começam a empurrá-la para cá, para lá. Meninas com boneca, meninos com bola... Não há essa distinção – como já não há no sacrossanto Nobel. Então, Dylan não é poeta? Também sou. Meus poemas se chamam SóPapos, Falatórios, Seminários... São minhas ficções. Então, neste momento em que se esgotou o Terceiro Império, justamente por isso, ele está correndo para trás. Gostaria que conseguíssemos mentalizar a nova estrutura que está entrando. Se não, com abordagens de Terceiro Império, nem perceberemos o que acontece aqui entre nós, nesta instituição. Deleuze tem razão ao dizer que a multiplicidade está se apresentando espontaneamente. A tal ponto que certos movimentos libertários de final de Terceiro Império já estão ficando bobos. O feminismo, por exemplo, que foi transformador já se depara com o caráter multifário de suas questões e pleitos. Se continuar apenas “feminista”, virará careta. A luta para hoje não é machista ou feminista, mas singular. Trata-se de tirar a pressão que está em cima do singular – coisa que a psicanálise tenta fazer desde seu começo. Lacan chegou a dizer que a ela é a “ciência do singular”. Isto é perfeito por acabar com a epistemologia. Então, qualificar, como ainda estão fazendo, os gêneros e enumerá-los é uma asneira, pois o singular não se conta. Fazer o rol do singular é impossível, ficaremos o resto da vida fazendo. É ainda estar aprisionado no passado. Temos que dar 149

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o passo conceitual na direção do Quarto Império. Por exemplo, como faço, incluir a nova tópica de Primário-Secundário-Originário, junto com o passo mais importante da abolição de sujeito e objeto, que são uma doença vinda do século XVII. Quando se abole a existência de sujeito e objeto, pulveriza-se. Cada grãozinho precisa ser tomado e considerado como formação. Ou seja, tudo é formação, todos são transexuais. A tópica lacaniana – real, simbólico e imaginário – fica presa em coisas como gênero. Ela, aliás, virou uma igreja malparida. Aqueles que estão dando os passos no sentido do Quarto Império desmancham, em sua produção, sujeito e objeto e propõem a nova tópica. Não que digam isso teoricamente, e sim que, no tratamento que fazem, o que era anterior some. Em Vila-Matas, quem são sujeito e objeto? Gramaticalmente, existem, mas onde estão? Então, o ato que importa não é Dylan, poderia ser outro. O ato é a eliminação da fronteira nessa região. Significa que o sintoma de Quarto Império já bateu lá. Há mesmo gente em lugares sacrossantos sofrendo sintomas de Quarto Império.

29 O Haver, em sua multifariedade de formações, é causa de desenho do Ser. O que chamamos de Ser, de Mundo, é causado por nossa atividade com as formações do Haver. O não-Haver, que supostamente não há, este, causa o movimento de busca dele mesmo. Então, é Causa absoluta de tudo, sem Ser, sem nada. Na área do Ser, isto é, de dizer coisas, o que está causando isso são as formações do Haver. O que movimenta o que quer que haja no Haver é o 150

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não-Haver. Essas formações do Haver e esse movimento são hiper-causados pelo não-Haver, mas, ao considerar alguma formação que quero estudar, o que está causando meu movimento é esta formação do Haver. Há, pois, uma Causa absoluta, e causas múltiplas. O que causa eu ser causado por formações do Haver? Há uma Causa absoluta, que causa inclusive os movimentos do Haver, e há as causas particulares. Assim, no empuxo de meu tesão causado pelo não-Haver, me debruço sobre uma formação em reflexo com minhas formações. Isto é cá embaixo, na ordem do Ser. E isso não tem fim, por não se conseguir dizer o não-Haver. É preciso, pois, discernir a Causa dentro do movimento, e não fora dele. O movimento está procurando pelo não-Haver, que, este, não há. A direção da Pulsão é no sentido de seu próprio desaparecimento, que não é possível. O universo não acaba. Aliás, nem começa. O que existe é um movimento – que podemos chamar de: movimento do saco cheio – querendo acabar com Isso. Como o Haver – igual a nós – tem o saco cheio de sua própria existência, vive correndo atrás de seu próprio sumiço, mas não consegue atingi-lo. Então, o que causou seu movimento foi aquilo que ele deseja, que é não-Haver. A causa está embutida no movimento d’Alei (Haver desejo de não-Haver). Não é que lá tenha não-Haver e eu vá atrás. Isto é a noção de objeto, é Terceiro Império. Não há objeto n’Alei, e sim movimento no sentido de parar tudo. Lacan já fez o favor de inventar o objeto a para nomear um tesão localizável na ordem do mundo. Ele o inventou para neutralizar todo e qualquer tesão. Mas, quando estou sentindo um tesão localizável, tenho que pespegar o objeto a sobre uma formação, se não, o tesão não vem. Lacan ainda está tentando explicar pela ordem do sujeito e do objeto. Em nosso caso, eles foram jogados fora e o que há é um movimento dentro do Haver que é de “Chega!”, mas o que acontece é que isto não existe: a Morte não há! Só há como nome dado àquilo que não tenho. E não é assim por alguma falta, e sim por um excesso. Corro atrás desesperadamente, entretanto, ele não há. Ele é prometido por meu movimento. Meu tesão está com saco cheio de si mesmo. • P – Sempre tive dificuldade em entender o não-Haver como causa, pois, para mim, a causa deveria estar fora. 151

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A causa está dentro. Você tem tesão em alguém? Não. Você tem tesão, ponto! Lacan teve que inventar o objeto a justamente para o tesão ser seu. Você produz um objeto. Não é no sentido da filosofia antiga em que há um objeto lá fora, o qual me dá tesão. Pode passar por mim a coisa mais maravilhosa, e não me dar tesão algum. Isto porque não é eu, não é meu comportamento. Se fosse assim, se acreditássemos nesse passado, curaríamos todo mundo psicologicamente. Repito, não há objeto e não há sujeito. Há uma grande formação, que chamo Haver, a qual se encaminha no sentido da Pulsão de Morte de Freud no sentido da Entropia da ciência: a tendência é querer desparecer. Mas não pode desaparecer simplesmente porque nunca apareceu. Não existe princípio, e não existe fim. A consideração das aparições é na ordem do Ser. As aparições, não se sabe o que são. Temos o mau hábito, sobretudo ocidental, de querer achar um começo. Os físicos se atormentam com o Big Bang. Antes dele não era nada, ou era tudo? Não lhes passa pela cabeça que a coisa apenas flutua. Como a gente costuma falecer, achamos que tudo tem que nascer e falecer. Não tem. Se você acompanha seu próprio psiquismo, ele começa onde, termina onde? Em que data? Uma vez que você se deu conta de que está aqui, você é eterno. Não acompanhou nascimento algum, e não acompanhará morte alguma. Eternidade é isto. Portanto, somos eternos por não termos começo ou fim. É o que diz José Regio, poeta português: “Mas eu, que nunca principio nem acabo, / Nasci do amor que há entre Deus e o diabo”. Temos todos os vícios que pertencem ao Terceiro Império de procurar onde começa para saber onde termina. Não há começo, repito, o que há é flutuação. Se for preciso manter o conceito de Big Bang, temos que pensar que é apenas um momento da explosão do que lá já estava em implosão. A coisa implode, implode, não tem para onde fugir, aquilo dá uma reviravolta e explode de novo. No Oriente, temos umas frases esquisitas, mais próximas do que estou dizendo. No pensamento ocidental, sobretudo aquele organizado do século XVII para cá, há sempre um começo e um fim. É apenas certo tipo de transa que pode ter um fim. E mais, o Inconsciente – que é o Haver – não suporta as ideias de fim e de começo. Se suportasse, se pudesse arcar com a ideia de fim, a pessoa morria e nos deixava em paz. Não sonharíamos com ela, não falaríamos dela. Uma frase do Terceiro Império que perdeu valor é: “Você 152

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acha que vai viver para sempre?” Acho. Como não acharia se não acompanho fim algum? Sempre sou eu, aqui e agora. Segundo a ficção que escrevo, é uma mudança radical de perspectiva, a qual se deve à emergência hegemônica do Originário no momento histórico presente. Não estou inventando nada, ele está surgindo aí. A perspectiva muda, a referência não está mais entre isso e aquilo, mas entre Ser e Haver. E não há como fugir, pois, se andar para a frente, será assim como digo. Ou, se não, estagnará e todos virarão animais, será a neo-etologia total. Aliás, a prova de que o Quarto Império está perto é o movimento de fuga para trás da maioria no mundo de hoje. Em algum lugar, percebem que, se andarem para a frente, tudo se pulverizará. O que vemos é reforço de religião, radicalismos ferrenhos, retorno de paradigmas antigos... Não é que estejam retornando, é fuga. Ainda bem que essa gente toda morrerá afogada, pois, nessa água heracliteana, não há como se segurar. A humanidade nunca passou por nada tão difícil, tão perigoso. Ficam fugindo para trás, se segurando no que acham que existe. Não dá para traduzir o Quarto Império no Terceiro, ou vice-versa. É o mesmo que a produção de uma teoria, de uma filosofia, etc. Ela só vale dentro. Não se traduz um filósofo em outro. Não há discussão possível, ou pega ou larga. Vemos a mentalidade igrejeira do Terceiro Império nas universidades com seus kantianos, seus heideggerianos. Nada temos a dizer sobre as escolhas de cada um, mas por que dizer, como fazem, que o outro está errado? O outro está certo ao pensar daquele modo. Se pensar daquele modo é assim, seria o quê? Cada um quer supor que sua indicação filosófica é a verdadeira. O Quarto Império é capaz de incluir o-que-quer-que. Quem está certo, Freud ou Jung? Os dois. Freud não é absolutamente inteiro para dizer tudo. Toda pessoa está absolutamente certa. Se não, não seria singular. O errado é que não suporto aquela pessoa, acho-a nojenta – mas ela está certa. O nojo é meu. A ideia de santidade, no cristianismo, e a de Buda, no Oriente, é conseguir ser indiferente, incluir qualquer coisa. É a nossa ideia de Indiferenciação. Você jamais conseguirá incluir tudo, há pedaços que não aguentará. Mas isto é porque você é pequeno. • P – É a ideia de antropofagia, em Oswald de Andrade. 153

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Sim. Será publicada em breve, em livro, a tese de Marcelo Henrique de Souza, que frequentou nossa instituição, na qual transforma a ideia de “complexo vira-lata” de Nelson Rodrigues em vira-lata complexo. Ele, metodicamente, dá a volta: não temos complexo vira-lata, somos vira-latas, só que complexos. Ou seja, ser vira-lata é um sintoma bacana do Brasil. É nosso pedigree. Vira-lata não tem fronteiras, ele fuça todas. Não há a lata dele. As outras culturas são latas como são os pensamentos até o Terceiro Império. Há a lata Kant, a lata Heidegger... O vira-lata vira todas. Vejam que não estou dizendo que o Brasil seja assim, e sim que o sintoma brasileiro é de vira-lata no sentido ruim. Entretanto, há aqui a condição, que talvez não haja em outros lugares, de transformar o complexo de vira-lata que todos temos em viralata complexo. É a cura, pois este é apenas vira-lata para aqueles que vivem de lata. Se saímos da lata, podemos perceber que vira-lata é um excelente pedigree, o de fuçar todas as latas para delas se aproveitar do que têm de melhor. É claro que de acordo com sua fome do momento. Nelson Rodrigues está certo ao dizer que brasileiro tem complexo vira-lata, mas, se tentar se curar, verá que é um vira-lata complexo. É preciso livrar-se do complexo de vira-lata, aquele de ficar olhando para os pedigrees dos outros e achar que eles é que são importantes. O importante é o vira-lata que vos fala aqui. Depois que aprendemos a virar todas as latas, ficamos inteiramente singulares – enquanto vira-lata. Ser cartesiano, por exemplo, é fuçar numa lata só, é pouco.

30 Na frase, de 2013, que vocês estão mencionando – “Meu projeto é progressivo. Interessa-me saber aonde a dissolução do conhecimento pode me levar” (em 154

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A Razão de um Percurso, Rio de Janeiro: Novamente, 2015, p. 233) –, o que importa é a atitude de dissolução. Se fizermos o exercício de dissolução de um conhecimento que temos ou vemos no mundo, acabaremos entendendo quais são os elementos formadores dessa formação. Um conhecimento dissolvido se torna uma formação de fragmentos, em que, todos juntos, podem funcionar em certa direção. Isto, sem que haja crença nele. A dissolução do conhecimento pode levar à plena desafetação de nossa transa com o conhecimento. Desafetado, ele passa a ser apenas um instrumento. Pensamos que cientistas, mesmo os matemáticos, são isentos, mas não são. É uma gente cheia de preconceitos. De preconceitos científicos, por exemplo. Muitos se odeiam, pois o outro fez uma equação melhor. O conhecimento acaba diante do simples fato de haver uma patota de saberes, como na universidade, em que as pessoas se digladiam como se suas escolhas filosóficas fossem uma questão religiosa, de guerra, de jihad. Ele se torna um instrumento de narcisismo, e deixa de ser um instrumento de operação. Em nossa época, daqui para a frente, até time de futebol é uma vergonha. Como alguém pode ser flamengo? É, sim, uma besta. Podemos, eventualmente, acompanhar um jogo, achar esta ou aquela equipe melhor, mas não somos isso. Se digo “sou kantiano”, sou “lacaniano”, a resposta é a mesma: sou uma besta, um neurótico, um Estacionário. É, repetindo, uma herança religiosa que passou para a filosofia. Em vez de curtir os saberes e as produções e colocar em exercício a que está sendo mais eficaz aqui e agora, estamos, de saída, limitados. Interessa, sim, o fato de alguém fazer o esforço de construir uma resposta às suas questões, que pode ser útil a muita gente. É apenas isso. Como o mundo está sendo dissolvido, se fragmentando, o que acontece de pior, e que vai atrasar (ou impedir) o Quarto Império – não é obrigatório chegar a ele, ele pode explodir antes –, é a maioria das pessoas, mesmo aquelas tituladas, correr para trás com medo do que está na frente. Na frente, é dissoluto. O futuro é dissoluto – felizmente! Conseguiremos nos libertar das afetações em relação a qualquer coisa. Observado com o máximo de indiferença, o vetor da história hoje é no sentido da dissolução. É sem apego, é um uso. Se chegarmos ao Quarto Império, tudo virará – e este é o 155

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nome correto – mercadoria. O que interessa às pessoas são as mercadorias: de que preciso agora?, o que comerei amanhã?, para que serve tal conhecimento? O vetor vai no sentido de que as pessoas querem se sentir bem o máximo de tempo possível. Toda vez que dissermos o verbo ser – ser filósofo, ser psicanalista –, há que pôr desconfiança nele. Já fiz a equação: ser = ter. Você é o que você tem. E é um saco: você tem só isso? E isto serve para qualquer pessoa, inclusive as mais ricas do mundo. A dissolução é sempre não-toda, pois, se o que há são polos com foco e franja, é sempre uma operação permanente de dissolução. Não se dissolve um conhecimento, mesmo porque, na história dos conhecimentos, quando alguém dá um passo é por ter conseguido dissolver uma forte formação que era determinante demais. Dissolveu aquela formação, o que ajuda a andar. Não podemos dissolver o que não sabemos, e o que não sabemos é muito maior do que o que sabemos. O que importa é que possamos transar. Vejam que o conhecimento primitivo é religião. Descobriam-se duas ou três relações, e fazia-se daquilo um aparato de fé. Era necessário fazer assim, se não, como o pessoal era incompetente e frágil, aquilo escorregava. Então, para sustentar certas organizações, faziam daquilo um ato de fé e, depois que algum gaiato tivesse promovido um ato de fé de conhecimento como religião, aquele que não conseguia fazer isto, se tivesse poder, tornava obrigatório. Esquecemo-nos de que nascemos criança e muita coisa do que chamamos conhecimento foi imposta à força. Então, há um princípio de crença acoplado a um princípio de força, de poder. Isto estupidifica qualquer um. É necessário um esforço enorme para sair do regime de obediência à sua cultura. Alguma das figuras supostamente pedagógicas, no sentido cultural – Anna Freud, Melanie Klein –, que apareceram na psicanálise sugeriu de que maneira se pode (mal) educar uma criança para que ela possa manipular as formações à vontade sem nelas acreditar? Esta é a questão da psicanálise, ao contrário do que faz a cultura que manipula a criança para ela acreditar que sua (da cultura) formação é verdadeira, boa, e mesmo melhor que a de outras. Muçulmanos fundamentalistas, atualmente, estão se achando melhores do que os demais – e matando aqueles que não acharem isto. Para eles, a prova de que Alá existe é a Síria estar destruída. 156

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• P – Qual o papel das fundações mórficas diante dessas imposições culturais? A cultura induz certas formações, mas há algumas que as pessoas acham mais agradáveis. Não se trata aí de uma imposição cultural. A cultura, ao contrário, costuma cercear, inibir, proibir a expressão das fundações mórficas de cada um, que são sua composição de base primária. Grande erro na história da psicanálise é querer tratar como secundária uma grande quantidade de formações primárias. Não se analisa dedão do pé. A não ser que se analise a pessoa e ela decida fazer uma intervenção ali. Neste caso, invadiu-se o Primário mediante o Secundário. De início, quase todas as pessoas são proibidas de serem o que têm. Elas são torcidas para entrar num figurino que já estava pronto, que era resultante de uma confusão multifária. O problema da psicanálise, em pedagogia, é pensar no que é possível fazer para alguém adquirir conhecimento, experiência, etc., sem ter que produzir crença. Ou o mínimo de crença para, depois, poder analisar. O que acontece é, de saída, recebermos uma multidão de definições que têm que ser as nossas. Logo, aquilo é falso. Se considerarmos as pessoas que lidam com psicanálise, veremos que têm uma enorme carga de definições nas costas, e grande dificuldade para conseguir se afastar dela. Consequentemente, como fazer para ser analista? A posição da ação psicanalítica é ao contrário de todas as outras. Sua ênfase é na descrença, na suspensão, na suspeição, na dissolução. Um cientista, por exemplo, busca arrumar um fluxo tal que dê um resultado que será aquele que ele gostaria que desse. Já a psicanálise nem curar analisandos quer. Aliás, como se curaria alguém, se não sabemos para que lado fica sua cura? Em psicanálise, trata-se do sentido original da palavra cura que é: cuidar. Cuidar de quê? Não faço a menor ideia. Sem esta postura, invertemos o vetor, viramos psicólogos: vamos produzir isso assim-assim. Em sua posição, o analista não produz nada, quem produz é o analisando. O analista está apenas operando no sentido contrário, dissolvendo, reafirmando certos momentos que possam ser mais úteis... • P – Seria um desprendimento radical? Não. Se o analista fosse desprendido, não faria nada. É um exercício contra a corrente das outras operações para ver se o analisando solta e passa a 157

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ser capaz de manipular as coisas de maneira puramente pragmática. O analista segue a corrente fundamental: a Pulsão, em sentido genérico, é a Pulsão do analista. Lacan dava importância a saber qual é o “desejo do analista”. É o desejo em estado puro, isto é, a Pulsão conforme sua Alei. Quem suporta que o desejo seja de não-Haver? Desejo de Haver é pura resistência. Vejam que não estou valorizando, dizendo que é bom ou mau, mas apenas definindo. O que quer que alguém deseje é: resistência. Lacan dizia, por exemplo, que só se resolve a análise na santidade. O conceito de santidade aí não é o da Igreja, em que é preciso fazer milagre. É, sim, no sentido do apagamento, da Indiferença, do Amém. É para onde o vetor está indo: o último Império, que certamente não existirá, será o do Amém, o do “assim seja”. Dizemos Amém ao que há: É assim. Custei a entender que Lacan inventou a intervenção absoluta na sessão: C’est ça! Não que ele deixasse de fazer algumas intervenções relativas. Vai-se empurrando a pessoa, mas, no fim, é isso. E não adianta nós aqui fingirmos saber fazer isso, ficarmos na macaquice do consultório imitando. Infelizmente, para aprender, imitamos. Depois, vemos que somos palhaços. • P – Lacan fala sobre a postura indiferenciante do analista de vários modos. Fala, por exemplo, em “afastar-se do serviço dos bens”. Qualquer um que tenha entendido a possibilidade da função analista, que é mera função, chega à mesma conclusão. Afastar-se só é possível contra a corrente, pensando em contrário, se não, o que se faz é entrar na procissão. A definição da função psicanalítica, no mundo, é negativa: não é isso, não é isso, não é isso... É o quê? Não é isso. Existe a Formação Analista – tanto é que só fazemos besteira. Onde está o analista? Ele esbarra na formação analista. Lacan foi esperto ao perguntar o que é a psicanálise, e responder que é a pergunta “o que é a psicanálise?” Se ela não for esta pergunta, a formação analista de alguém é falsa. Ele parou em algum lugar. É, aliás, o que mais ocorre nos consultórios. Qualquer um, sem querer, esbarra em sua própria formação. Não estou falando em seus sintomas, e sim que esbarra em sua formação enquanto formação analista, que é precária. Há que saber que é assim mesmo: C’est ça. Aí, escorrega – e não há saída. Se houvesse, incorporávamos a própria morte. Seria maravilhoso: “Estou morto”. Só um psicótico grave “consegue” isto. 158

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A história dos grandes santos – os místicos, e não os santinhos de pau oco – mostra que, para eles, o que interessava era ficar indiferente ao máximo, eliminar suas reações às diferenças. Se não conseguissem, não valeu. Jamais conseguiremos isto. Esforçamo-nos para poder ajudar um pouquinho – a nós mesmos, é claro. Mesmo os estilitas, aqueles anacoretas que ficavam no alto das colunas ou pórticos, têm certa arrogância ao quererem destruir o corpo porque está atrapalhando. Mas, sem corpo, vai-se pensar com o quê? Vai-se para que céu? Meu padroeiro, o santo do dia em que nasci, é Santo Antão, que resolveu isso sem apodrecer. Ficou setenta anos sozinho no deserto para ser testemunho de que é possível. O quê? Não sei. Ficava sonhando surubas, banquetes, desesperado, gritando para o diabo ir embora. Ele morreu com cento e cinco anos. À sua volta, no século IV, foi crescendo a Tebaida justo porque ele não se destruía. Quando estava bem velho, foi chamado a um concílio para provar que Deus existia. Lá foi ele e disse: “Eu vi!” Viu o quê? Não se sabe. Pacômio, outro santo, inventa o mosteiro para continuar a obra de Antão. • P – Não havia nele um masoquismo? É o que Freud chamava de Masoquismo Fundamental. O sadismo é uma transformação do masoquismo, é aplicar no outro aquilo que você gostaria que aplicassem em você. Como sabem, Alei (Haver desejo de não-Haver) é masoquista. Se não revirar, você morre. O que há, então, é S/M, sadô-masô, e não apenas M. É um inteiro, não tem alelo separado. Como disse, o Inconsciente é unário, unilátero. A expressão é que é bilátera. Para exprimir, é preciso ser S/M, mas, originariamente, é pré S/M, uma coisa só. Alei é masoquista, mas, como não consegue não-Haver, é também S/M. Acho que já notaram que o cristianismo é a religião S/M. Por causa disso é que ela dá muito certo: um sadomasoquismo permanente. As pessoas sofrendo para poder gozar, e achando o máximo olhar para alguém todo arrebentado sobre uma cruz. Freud tem a cabeça parecida com cientistas e filósofos. Inventou o aparelho psicanalítico – e não inventou sozinho, pois havia muita coisa antes dele – no limite do entendimento e da ação. Ao se deparar com o Inconsciente, 159

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não abandonou tudo para se tornar um mártir do Inconsciente. Freud é gnóstico, acredita no saber, de preferência com o mínimo de crença. Por quê? Porque o mundo é essa bosta, e o Deus que apresentam é falso. A sabedoria é diferente da santidade. A psicanálise finge querer produzir a santidade. O movimento é nesse sentido, mas a lucidez permanece. O santo é a loucura explicitada, a nossa é a loucura assentada, regimentada, com estatuto. Os gnósticos consideravam esse Deus de que as pessoas falam, aquele da Bíblia, como sendo de terceira categoria, um mero Demiurgo. Eles queriam pensar Aquele lá de cima. Queriam atingi-Lo por via de conhecimento, de gnose, e não de agnose. Notem que um São Tomás queria ir pela via do intelecto, da razão – queria intelectualmente dar conta inclusive de Deus –, mas a via da razão pode ser a do irracional. • P – Retomando sua frase do início, hoje – “Interessa-me saber aonde a dissolução do conhecimento pode me levar” –, poderíamos dizer que é uma frase gnóstica, e que, se essa dissolução fosse absoluta, levaria à santidade? Sim. Repito sempre que a Indiferença não é o desinteresse, e sim o máximo de interesse. Do mesmo modo, a dissolução do conhecimento é o máximo do conhecimento a ponto de tudo ser a Mesma coisa. Quando se indiferencia ao máximo, a afetação cai, é a anafetação como chamo. É um exercício dificílimo.

31 Foi preciso criar uma Tópica nova, como criei (Primário, Secundário e Originário), para ser compatível com o resto da teoria. Se o axioma de base e 160

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suas consequências são de um tipo, tudo deve ser adequado a essa axiomática. As tópicas de Freud e Lacan não servem para a teoria da NovaMente. Além do mais, o aparelho teórico precisa evoluir. Então, o que fiz foi colocar um axioma – Haver desejo de não-Haver – como base e, a partir dele, desconfigurar várias configurações do próprio Lacan. Não me interessa falar em quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Só há um, a Pulsão, o resto é consequência. Em Lacan, é quase que heterogêneo, quase um quadrúpede: tudo nele é construído sobre quatro patas (RSI + Sintoma, os quatro discursos). Aliás, em quem tem quatro membros (esqueçamos o quinto), há uma forte tendência a esse quadrupedismo. A psicanálise é jovem, e tem muitos conceitos que considero sujos. A partir de sua experiência primeira, na fisiologia ou na neurologia, e mais a experiência de outros, Freud tentou montar alguns conceitos que são muito figurativos. A coisa lhe aparecia e ele ia procurando configurações na história, na filosofia, na mitologia, na arte... São conceitos pouco abstratos. Ele tentava abstrair explicando o que queria dizer com aquelas configurações. Lacan fez uma leitura da obra de Freud, tomou as possibilidades teóricas de seu (dele, Lacan) momento – linguística, matemática... – e tentou reconfigurar a teoria com muito mais abstração. Ele não falou em Édipo, por exemplo. Apresentava outro conceito e organizava compativelmente com Freud. Era outra maneira de expor: passava a limpo. Fez isso muito bem, só que, do ponto de vista da vigência teórica, passou do prazo. Está vencido, pois permaneceu restrito a seu momento. Era um excelente teatro da época, que já acabou. As pessoas tendem a ser recalcitrantes. Já que alguém fez, elas ficam repetindo. Há anos digo que Lacan é um pensador terminal, não começa nada. É como se tivesse vindo um movimento, ele deu uma ajeitada – e terminou uma época de pensamento. Não apenas ele, mas todo o pessoal da época: Lévi-Strauss, Foucault... É um término, e não um começo. Até lá, eles entenderam, mas a realidade lhes puxou o tapete. Aquilo vai se dissolvendo com o momento histórico. Um dos maiores responsáveis é a tecnologia, com seu forte processo de distorção e dissolução. O que permitiu uma visão crítica que nunca antes acontecera no planeta. 161

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Quais pensadores, hoje, sabem explicar o que aconteceu? Não me vem nenhum à cabeça. Muitos tratam disso, mas não dá mais para pensar com as instâncias com que o mundo pensava. Lacan e seu momento são desenhados demais. O domínio estruturalista é uma construção muito dura para ser algo que possa ultrapassar sua época. Em momento algum do mundo, existe O conhecimento como tal. Se existisse, estaríamos felizes: conheceríamos, e acabou! Para animal é assim, tem certo conhecimento instalado e sua vida é aquilo. As pessoas sempre fazem a suposição de que o que sabem é relativo à realidade, é um conhecimento da realidade. Não é. É, sim, um conhecimento com a realidade. Na transa com a realidade, inventa-se conhecimento. Todo o percurso de nossa história até aqui é uma sequência de invenções. Que elas frequentemente, por serem bem-feitas, sejam capazes de se adequar razoavelmente à realidade, capazes de, efetivamente, fazer funcionamentos, etc., isso é verdade, pois é com a realidade que operamos, mas é tudo invenção. Nosso único conhecimento não inventado é aquele gravado no Primário. Esse saber do Primário é dele, Primário. O responsável por isso é a genética. Por que, em qualquer área da história da humanidade, vai mudando? Porque é assim. Algo é feito, funciona durante algum tempo, mas, a todo momento, a realidade mostra que não é bem aquilo. Afora isso, há momentos históricos de desequilíbrio. Vivemos, hoje, um momento que jamais existiu assim na espécie humana. É preciso, então, reorganizar o aparelho de abordagem. É enorme a quantidade de lixo que fico tentando tirar da história da psicanálise. Se prestarem atenção ao aparelho cada vez mais curtinho, mais sintético, que consegui para mim, verão que seu uso joga muita coisa inútil no lixo. Foi útil no momento de sua invenção, pois não se sabia fazer diferente, era o que havia, mas, ao ler Freud, hoje, vemos que se tornou exaustivo e chato. Escreve sobre neurose disso, daquilo, daquiloutro... Ele encontrava isso, descrevia; encontrava aquilo, descrevia... Não é necessário. Se temos um aparelho mínimo, ele encontra variantes, mas o aparelho é o mesmo: um teoremazinho a ser aplicado a qualquer coisa. Não é preciso uma multidão de faits divers – pois é disto que se trata –, uma neurose 162

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disso ou daquilo, pois o que há são pessoas que aplicam o mesmo aparelho de um modo, outras de outro. Não ficamos com os bolsos cheios de desenhozinhos para aplicar. Ao contrário, a cada um que escutarmos, buscaremos ver como o aparelho se monta para ele. Não há que confundir teoria com literatura. Já repararam que tudo passa pelo literário? Basta ler Platão para ver que é literariamente muito bom, e que, para pensar do modo dele o que Sócrates andou fazendo, teve que fazer literatura. Precisamos, hoje, dos diálogos de Platão para alguma coisa? Na melhor das hipóteses, podemos, de tal diálogo, tirar tal aparelho, de outro, tirar tal outro. Não é mais preciso fazer aquela literatura toda para tentar entender e explicar. Além disso, ao montar um aparelho teórico, cada um comete seus erros. Lá adiante, quando alguém buscar re-entender o processo, perceberá que aquilo seu era um erro. • P – Para tentar um aparelho novo, é preciso ter entendido o que é a psicanálise para além dos termos de Freud, de Lacan... Há que entender o que acontece nessa transa chamada psicanálise. Se tomarmos todo o anedotário freudiano, veremos que é imenso e que, nele, cada coisa é uma coisa. Não é. Outros, além de Lacan, também enxugaram muita coisa, reuniram coisas dispersas num conceito só. Lacan, por estar num momento excessivamente formulativo – o estruturalismo quer formular tudo na linguística, na antropologia... –, passou a limpo da maneira mais abstrata que conseguiu, reduziu bastante. Édipo, por exemplo, é uma anedota da qual Freud tentou tirar um raciocínio, mas, como as pessoas não tão inteligentes quanto ele, ficaram com a anedota em vez do raciocínio. Isto, aliás, é o mais comum no conhecimento das pessoas. Um autor faz um trabalho imenso para construir um aparelhinho de entendimento e, em vez de ficarem com o aparelhinho, ficam com a anedota toda. É mais difícil pensar em abstrato como fazem os matemáticos do que ficar com o anedotário comentando sobre papai e mamãe. Ninguém precisa de mãe, pai, nada disso, para ter uma estrutura parecida com o que Freud chamou de Édipo. Trata-se, na história, de uma coisa prendendo outra. Inventam o conceito de família e tudo que vem junto, e isto que, nas mãos de Freud, 163

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é um entendimento, passa a ser garantia da porcaria chamada família. Em nosso momento, já não sabemos mais o que é a família. Tentem descrever uma e se verão em grande dificuldade. Não há Édipo que aguente o que está acontecendo com o que se chamava de família. Família, como conceito, não presta para mais nada. Há que descrever cada situação de vinculação. Qual tipo de vinculação aqui existente? Há, inclusive, aderências neuróticas, dependências econômicas, mas não é mais um conceito, que foi excelente no Segundo Império. Segurou-o por inteiro, e foi até o fim do Terceiro Império. Ou seja, família é uma resultante do Segundo Império e vai exasperadamente até o fim do Terceiro: é nele que aparece a Sagrada Família do cristianismo. Era, aliás, imitação da família do cristo, a qual tampouco era uma família muito – católica. É muito esquisita a história daquele garoto sem pai.

32 Hoje, tudo isso está muito dissoluto. Acho mesmo que precisa ir para o lixo, inclusive o que digo. É preciso que vire lixo outra vez, pois alguém, com ajuda de computadores velozes, poderá fazer um cruzamento de saberes tal que permita uma teoria só. Não para a psicanálise, e sim uma teoria só para o Haver. Conto com isso. Na filosofia, por exemplo, cada filósofo tem as pegas de sua época, suas ideias e suas idiossincrasias. No fim, aquilo vira literatura, mas é possível retirar dali um conceito x. A dissolução das formações no mundo já começou, e a maioria, com muito medo, está correndo para trás. Mas não adianta, pois não tem volta, não há nada lá atrás. O que aconteceu historicamente é produtor de dissolução. São poucos os que correm para a frente. 164

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Quando digo que isso vai virar uma zona, não há novidade alguma. Já notaram que o Brasil, que era tão comportado a ponto de o patrimonialismo ficar à vontade para meter a mão no dinheiro do povo, não tem mais como ser assim? Isto, entre outras coisas, pela tecnologia: mexe-se aqui, começa a borbulhar ali. Basta ir aos computadores dos políticos que está tudo lá. É quase como fazer a leitura cerebral deles. Antes, ao serem questionados, respondiam que eram honestos, e não se tinha muito como contradizer. Basta ver a prisão, ontem, de dois ex-governadores do estado do Rio de Janeiro para entender que o patrimonialismo está sendo destruído por si mesmo e pelas condições atuais do mundo. A movimentação, a turbulência contemporânea fez subir o lodo aonde nunca subia, estava tudo seguro. A sujeira subiu sozinha, e não porque alguém tenha se corrigido moralmente. Todos aqui que leram Raymundo Faoro estão vendo que o Brasil que, desde que nasceu, era tipicamente patrimonialista, está entrando numa fase em que terá que inventar outra coisa, pois o patrimonialismo visivelmente se desmoralizou. Isto, não porque alguém específico o tenha desmoralizado, e sim porque a desmoralização apareceu. O Inconsciente não presta, acaba mostrando a bunda. Se o deixarmos movimentar-se – e, agora, mesmo tecnologicamente, o movimento está se dando –, tudo começa a brotar. É igual a quando, no mar de ressaca, vemos a merda boiando. Segundo alguns autores metidos com a parafernália tecnológica, vai ficar pior. Dizem eles que ainda não se conseguiu fazer a dispersividade da inteligência artificial, mas, quando ela começar a ficar banal – e isto é para daqui a alguns anos –, não entenderemos mais nada, não haverá como segurar. Não adianta 1984 ou Brave New World, pois está tudo muito pior de que seus autores pensaram. E vai ficar pior, isto é, o Inconsciente vai mostrar a bunda todo dia, vai ficar pelado. O Inconsciente, tal qual aquele rei, está ficando nu. Este é um dos motivos de precisar menos de aparelhos como psicanálise, etc. Fica uma nudez evidente, e aquilo refrega. Já notaram que a história da psiquiatria dinâmica e da psicanálise está diferente do que aconteceu na época de Freud? Onde estão as histéricas maravilhosas daquele tempo? Estão soltas, é um galinheiro só. Em qualquer lugar público podemos observá-las. Estão 165

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brandas, não ficam mais paralíticas – e ninguém mais cuida delas, pois não parece histeria. Sigilo, por sua vez, é algo que, dentro de cem anos, deve acabar para qualquer um. A tecnologia ficará tão sofisticada que, em algum lugar, o que acontece aqui, por exemplo, estará sendo acompanhado. Na verdade, diferentemente do que disse Deleuze, estamos numa sociedade sem controle. A dispersão é de tal ordem que perguntamos: quem está controlando o quê? E mais, o que aumentará será a liberdade. É tudo tão pulverizado que não temos centro de determinação. É tudo transa, há que conversar, transar – sem papo de determinação. Tudo é negócio, mesmo que ainda achem que o excesso de possibilidade de invasão – e não de controle – nos faz perder a liberdade. Mas para quem, se o poder suposto também está sendo vigiado? O conhecimento está se dissolvendo. Vejam que cientistas dizem que há teorias como a dos quanta, mas que não se sabe bem sobre seus desdobramentos, sabem apenas que são pequenos aparelhos de abordagem do que há, e todos meramente aparelhos de abordagem. Não afirmam mais que a física e a ciência dura conseguirão isso e aquilo. A ciência está molinha, desmunhecou completamente. Estou lendo o último livro de Roger Penrose, Fashion, Faith, and Fantasy in the New Physics of the Universe (2016), em que ele mostra que tal coisa é assim por ser uma fantasia, tal outra por estar na moda. E corrobora Popper que, em seus textos finais, disse que ciência, no fundo, é uma questão de fé2. A falseabilidade é apenas um aparelho para falar (não da ciência, e sim) da história da ciência. Em momento algum anterior da história, diríamos isso, pois seria uma agressão, uma heresia. Além disso, tal aparelho foi construído e ficou porque entrou na moda. Quanto a mim, sempre disse que a moda é o mais importante em tudo. O fenômeno da moda, que pensamos ocorrer só com roupa – Roland Barthes, por exemplo, escreveu Système de la Mode (1967) sobre a moda no vestuário –, está em todas as áreas. Seria importante alguém fazer a teoria da tendência na moda. É um fenômeno 2 “Manifesto, assim, a fé que tenho numa interpretação objetiva, acima de tudo por acreditar que somente uma teoria objetiva é capaz de explicar a aplicação dos cálculos de probabilidades em ciência empírica” (POPPER, K.  A Lógica da Pesquisa Científica, p. 164)

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psíquico coletivo? Ela está em tudo. Se Émile Durkheim, por exemplo, entra na moda, não tem mais vez para Gabriel Tarde. Este fica como curiosidade intelectual. Lacan entrou em moda radical – e está até hoje por aí numas “lojas maçônicas”... Darwin entra na moda, e Lamarck é afogado. Hoje, sabemos que este tinha razão. A moda é um poder disseminado, gruda, fecha portas. É uma estupidez, pois falas de outros são sufocadas – e ficamos mais pobres. A cultura do Quarto Império acabará com isso, escutará tudo, já que, do ponto de vista tecnológico, tem como fazê-lo, tem como deixar tudo vivo? Tudo está se dissolvendo, e o medo das pessoas faz com que corram para trás. E com razão, pois é difícil entender um tipo de sociedade tão disseminada, tão vascularizada, pulverizada, em que as coisas precisem dar certo porque o único jeito é – dar certo. Vejam que, relativamente a problemas de gênero e sexo, ainda temos gente trancada no armário. Mas que armário? Cadê? À medida que a tecnologia se desenvolve, não há mais armário. • P – Então, não haverá mais recalque? Não esquecer do Recalque Originário, que não nos deixa em paz. Entretanto, ao pulverizar, pode acontecer, felizmente, de não precisarmos de recalque, de podermos, a maior parte do tempo, viver em termos de Juízo Foraclusivo. Não se trata de recalque aí, e sim que, dado o que há a ser feito aqui e agora, é preciso excluir algumas coisas. E isto será excluído não por eu ser doente ou ter isso excluído em mim. Não é um recalque meu, é uma inteligência, de preferência artificial. É o que Penrose diz, que a zorra chegará. Com isso, duas ou três gerações irão para o lixo por não conseguirem acompanhar o movimento. Serão jogadas em parques humanos para morrer. São neo-espécies, que já estão em extinção. É, aliás, uma seleção tão artificial como foi a outra. O modelo do que chamam natureza – o Artifício do Haver, como chamo – vai ficando cada vez mais complexo, aparentemente mais invisível, mas está aí. O modelo fundamental de nosso mundo é o que quero chamar de Ejaculação. Há anos, eu, junto a outras pessoas, estava na casa de Gesa Heller, um artista húngaro que viveu e pintou no Brasil, quando ele abriu um livro de arte da sua biblioteca, esgotado. Ele queria nos mostrar a concepção de Deus que existe em certos lugares primitivos. Mostrou-nos uma gravura do 167

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século XIX: um caralho (de Deus) sendo masturbado e ejaculando o universo. Já notaram que, do ponto de vista biológico, uma ejaculação assassina milhões de espermatozoides. Quando ela consegue fazer um sobreviver, acertou o alvo. Tudo é, então, um bando de espermatozoides pensando estar livre, quando está absolutamente determinado. Um bando inteiro para salvar unzinho que, lá adiante, emprenhará o óvulo e produzirá uma pessoa, a qual se juntará às outras. Este é o roteiro do Haver. Pensamos estar livres, mas estamos cumprindo determinados movimentos para que um possa escapar. Isto, em todas as áreas. Trata-se de cumprir o movimento do Artifício do Haver. Ou melhor, isso é o movimento do Artifício. Como são maneiras diferentes de cumprir, e é tudo tão dispersivo, pensamos estar livres. Os espermatozoides que chegam estão apenas cumprindo uma função do Haver. Por isso ser muito elástico, temos a impressão de ter certa liberdade, mas o que há é apenas uma variância possível. São vários fluxos, dos quais, de milhões, sobra um. O Haver é aristocrático. Não há democracia do Haver, a coisa funciona passando a peneira. Daqui a cem anos, o pessoal ao olhar para o que foi a revolução francesa, por exemplo, dirá que era um bando de idiotas que pensavam ser livres. Vejam que não há escapatória, e sim ajeitamento para tentar ficar menos ruim. • P – Há uma superpopulação no planeta... Mas logo virá a peneira. Até por causa de nossa estupidez. O que acontece hoje na Síria, por exemplo, é uma imbecilidade – a favor do movimento do Haver. A eliminação é inevitável quando se trata de um bando de animais. A humanidade é imbecil. De vez em quando, escapa um: a peneira é espontânea. • P – Mas são os imbecis que governam. Porque imbecis querem ser governados por imbecis. Basta lembrar de Étienne de La Boétie sobre a servidão voluntária. Vejo que isso é um movimento espontâneo. Não sei, nem ninguém sabe, dar conta dele. Daqui a uns duzentos anos, repito, quando começar a implantação do Quarto Império, a história de pensamento do mundo virará folclore. Pessoas com outra mentalidade, com 168

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outra velocidade de inteligência artificial, acharão tudo isso coisa de tribo primitiva. E observem que estou falando de Nova York. Os cinquenta anos de porradaria que antecedem a implantação já começaram, e vai ficar pior. • P – Como ver a eleição de Donald Trump? É um fenômeno absolutamente compatível com a situação contemporânea. Já perceberam que a presença dele desmoralizou tudo? Não é porque ele quis, e sim por ter virado símbolo da desmoralização total. É tão contemporâneo que ninguém sabe o que fazer com ele. É um monstro perfeitamente compatível com a época. O mundo de hoje é Trump. Todos vendo fotos de sua mulher pelada, e ele certamente tendo orgasmos ao imaginar que se masturbam olhando. Percebi cedo que ele ganharia. A Hilária é burra, é antiga, mofada, e o povo percebeu. Votaram em Trump por dois motivos opostos. Primeiro, porque ele é retrógrado; segundo, porque ele é futurista. É capaz de jogar o troço no abismo, para a frente, ao mesmo tempo que dá a impressão de estar, como todos, correndo para trás. Entendam que ele é safado, um grande comerciante, e vai jogar com tudo isso. Do jeito que está o mundo contemporâneo, aquele que joga assim empurra para a frente – talvez para o abismo. É Morfose Progressiva, de um lado, e Morfose Regressiva, de outro. Isto, dependendo do lado que olharmos. Repetindo, as consequências são duas: olhado de um lado, aproveita-se daquilo para regredir, de outro, para andar para a frente. O troço é bífido: o cara não tem rosto. Ele gira, é um síndrome (como sabem, gosto de usar este termo no masculino) que fica revirando e todos sem conseguir entendê-lo. Ou seja, ele é compatível com o Inconsciente, é um Halo significante (com seus dois alelos). Preparem-se porque aparecerão outros do mesmo tipo. Acho que Putin é também um pouco assim. O que está ruim, no planeta, é as pessoas estarem alarmadas ou contra. Há que entender o lado para o qual o mundo está indo, e não tentar enquadrar os acontecimentos em liberalismo ou socialismo. São termos que já não servem para nada. O que temos, então, são pessoas usando ferramentas velhas, correndo para trás, para a igreja – é o lixo. Mas, repito, em muitos lugares, surgirão outros como ele. 169

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• P – A eleição de Trump pode ser pensada como um acontecimento? É um evento difícil de engolir. Não tanto para nós, que podemos pensar que é uma apresentação do Quarto Império chegando, com várias emergências explodindo por aí, todas fora do que as pessoas estão acostumadas. A prova do falecimento do Terceiro Império é ele estar regurgitando, estrebuchando mediante igrejas disso e daquilo, com essa gente toda como seu lixo. Na universidade, vivem de fé, pensando ser melhores que alguma igreja universal. Não são. A vantagem da psicanálise é ela continuar a mesma em suas condições efetivas, por mais que tenha tido que se modificar, variar no tempo em suas condições teóricas, etc. As condições de exercício da psicanálise podem variar nas teorias, mas, repito, é sempre a mesma: sua postura, a reversão do vetor, etc. Ela é o material sobre o qual temos que fazer a teoria. Desde que ela foi percebida, em qualquer época – mesmo antes de Freud existir –, este material tem sido sempre o mesmo, é a materialidade da transa psicanalítica. Esta é a realidade da psicanálise. É uma maneira de entender como é possível considerar o mundo a partir desse lugar psicanalítico, qualquer que seja a definição que a ciência lhe dê. • P – Que lugar seria esse? É preciso sentar nele para descobrir. • P – O que ocorre no Rio de Janeiro, com a eleição do “bispo” Crivella (de Igreja Universal)? Retrocesso. A não ser que ele venha a mostrar algum Trump nele escondido, coisa em que não acredito. É regressão mesmo. O candidato oposto a ele também era regressivo. O Brasil, aliás, sempre foi regressivo. Como puderam retirar um imperador brilhante e sensível para colocar aquele milico idiota, teodoro da fonte seca, no lugar? A família imperial era muito mais para a frente do que os milicos. As pessoas não querem andar para a frente, ficam procurando o colo da mamãe, lá atrás. • P – Mas o discurso de Trump, militarista, misógino e racista, não seria mais regressivo? 170

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Ele joga com os dois partidos. É um negociante bilionário, já foi à falência três vezes, todos perdem, menos ele. Ele sabia para quem estava jogando. Hillary estava crente em que a América era democrata. Repetindo, as pessoas não querem andar para a frente, ficam procurando o colo da mamãe, lá atrás. Nossa tarefa é tentar entender isso, e transmitir a postura da psicanálise, que é compatível com esse entendimento. O Quarto Império é o império desse pensamento. É um modelo de pensamento e ação compatível com o que está acontecendo, com o que vai chegar lá. • P – Isto, por ser um pensamento desrecalcante? Ou por ser desrecalcante, ou por poder conviver e considerar o desrecalcado, que desrecalca sozinho. É bem mais fácil governar sabendo que é impossível, do mesmo modo que o analista analisa tendo pleno reconhecimento de que não tem jeito (não espalhem, mas é isso mesmo). Por reconhecer isto, está salvo. As pessoas correm para trás, para organizações absolutamente jeitosas (igrejas, etc.), porque, preconcebidamente, imaginam uma ordenação que seria correta e feliz. E isto é impossível, não tem jeito, e não é por aí que se dá a análise. Ela se dá para a frente. Sabem onde fica a frente? Eu não sei. É igual ao fenômeno espermatozoide: a multidão vai para o lixo, e será outra coisa que sobrará para inseminar o planeta. Somos praticamente o que está destinado ao lixo. E não é preciso ficar infeliz por isso, vamos gozando por aí. O processo é cruel, não tem gentileza alguma conosco. Isto porque, se ele for o que posso imaginar, ele está indo para a frente, para sua realização. Não há que atrapalhá-lo, pois ele passa por cima de nós. Podemos acompanhá-lo, ser simpáticos, pegar uma carona, arranjar uma vida razoável... Se o Princípio Antrópico, por exemplo, for válido, para onde estará indo o processo? Para algo muito mais radical que o super-homem, de Nietzsche. Isto porque o movimento é espontâneo, não é obra de alguém. Não somos a obra, e sim o material com o qual a obra se faz. A arrogância desta espécie cada vez ficará menor. Somos uma imbecilidade ambulante. Se não fizermos algum esforço, jamais sairemos do lugar. Se o Princípio Antrópico 171

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estiver valendo, para as IdioFormações, que são a consciência do Haver – portanto, não estou falando de nós, somos apenas um tipo de IdioFormação –, o sentido é sempre de, cada vez mais, simplificação e abstração. O Haver é consciente? Sim. É consciente aqui nas IdioFormações. O que ocorre é que posso ter uma consciência imbecil. Neste nosso planeta, quem hospedou a IdioFormação foi o Primário idiota que temos. Ele tem a obrigação de funcionar como IdioFormação, mas seu edifício é muito vagabundo. Talvez em outros lugares já tenha mudado. Aqui, se continuar andando, também mudará. Se não continuar a andar, morrerá. Minha impressão é que essa massa toda, esse bando de espermatozoides, é para, lá na frente, produzir uma IdioFormação que não seja tipicamente animal, mamífera. Ela será produzida lá longe, nem é no Quarto Império. Será completamente substituível. A pessoa poderá até ser destruída, mas seu download será perfeito. A tecnologia atual ainda é porcaria. Acho esse caminhar muito divertido. Basta pararmos um pouco e anotar a quantidade de besteiras que segura uma pessoa, o que pode e o que não pode... No futuro, se ainda houver esta IdioFormação, veremos que funcionamos como macacos de luxo. Ou uma guerra entre Alá e Jeová não é coisa de macaco lutando para saber quem será o animal alfa? Repito, se andar, o movimento será para a frente. Se parar, será a destruição. O Haver é sábio: ou você anda para a frente, ou morre.

33 • Aristides Alonso – Estudos que tenho feito sobre teoria da informação e Cibernética têm me indicado que, em vários momentos da obra de Freud, podemos destacar coisas parecidas que ele fez antes mesmo do que foi 172

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produzido nesses dois campos. A Segunda Tópica, por exemplo – Ego / Id / Superego –, me parece compatível com o modelo de Norbert Wiener sobre o que chama de sistema de Informação / Feedback / Redundância. O Ego freudiano é uma redundância. Na transa com a dita realidade, é uma construção para achar meios de navegar naquele contexto. Juntei esses dois pedaços a partir de uma frase sua: “A criança é um estratego”. Há, nela, uma construção mental que vai se formando em face de sua experiência com o mundo, o que cria uma redundância. E o modelo freudiano das patologias é feito para acompanhar de que modo a redundância se torna de tal maneira coalescida em sua vida que ela não mais consegue lidar direito com as variáveis causadas pelos movimentos entrópicos. Por isso, chamei de Morfose Estacionária • AA – Haveria, portanto, em Freud, um viés cibernético avant la lettre. É nesta sequência que você traz as noções de máquina, de Haver e, sobretudo de Revirão, que, para mim, vale como uma teoria plena da informação. Mesmo porque a teoria binária da informação é nele inscritível. E a Transformática, a teoria psicanalítica da comunicação, pode ser compreendida como a operação de uma hipercibernética, pois a cibernética me parece fazer o contrário da psicanálise. Ela tenta criar mecanismos de organizar sistemas em desorganização. Já a psicanálise trata de invadir sistemas organizados para torná-los entrópicos. É o movimento do hacker com dois vetores. Este, quando trabalha a favor da empresa, busca evitar que o sistema seja invadido. O movimento do psicanalista é invadir para, de algum modo, tirar a redundância do sistema. A cibernética que haveria em Freud tem o objetivo invertido, visa a dissolução: ana-lysis. A produção de tecnologia que possa ter a ver com esse aspecto da cibernética é a busca de redundância, de produzir máquinas para funcionarem assim. Isto, tirante a ideia de computador quântico. Quando ele aparecer, é provável que percamos o emprego. Tenho curiosidade de ver as gerações que nascerão daqui a dez anos. Serão pessoas irreconhecíveis para nós. As máquinas novas estão chegando agora, ainda não entraram no uso comum do mundo. Os desenvolvimentos da inteligência artificial serão bem mais 173

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violentos que o próprio computador quântico, do qual já há protótipos. O choque que aconteceu com o advento de telefone, de computadores, de internet, etc., foi violento, mas o que vem será pior, mais dissolvente. E quanto mais choque comparece, mais as pessoas correm para trás. Qual será o efeito daqui a dez anos? Não sei. A geração daqueles que têm vinte a trinta anos hoje – e há alguns aqui nesta sala – já é muito estranha para os mais velhos, são monstros. Fingem que não é assim para não dar mais problemas. As pouquíssimas pessoas que acompanharam o processo e se adaptaram acham que está tudo direito, mas a maioria vê tudo com a maior estranheza. É uma diferença que minha geração não teve. Ela, que pegou grandes movimentos, não foi tão diferente das anteriores. A diferença, hoje, é mais potente. A geração anterior à minha se assustava com a minha geração, que era uma bobagem, era ouvir rock e porcarias do tipo. A geração de hoje tem um comportamento praticamente sem qualificação possível, errático. Aliás, ser errático é melhor do que nós. Do ponto de vista formal, o que está ocorrendo é a entrada do Quarto Império. Como sabem, ele está situado no meio (entre o Terceiro e o Quinto Impérios), não é nada, o que é terrível. É meio desbundado, como foi o Segundo Império. Ele está nascendo agora, e por razões externas à nossa vontade. O que aconteceu na mente das pessoas foi, por exemplo, esse aparelho móvel, celular, que todos temos conosco. Foi, aliás, o que disse McLuhan nos anos 1960: esta é a mensagem. É falsa a pretensão de estarmos pensando e implantando um mundo. As pessoas que usam esses aparelhos sequer precisam ter essa mentalidade, os aparelhos é que as carregam. Eles é que pensam. Vejam o caso das pesquisas em sociologia, hoje. São os programas computacionais que processam e produzem os dados. Portanto, desconsideram os ideologemas dos sociólogos. É claro que eles não concordarão com isto. Não foi à toa que, no Brasil, durante uns vinte anos, a Esquerda abominou McLuhan. • AA – Você, em 2013, usou a expressão homo zapiens para se referir à atual geração. Esta expressão é o título da tradução inglesa de um romance russo de autoria de Victor Pelevin, originalmente publicado em 1999, que trata dessa dissolução a que você se refere. Há também o livro Homo 174

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Zappiens: educando na era digital, de Wim Veen e Ben Vrakking, traduzido no Brasil em 2009. Os autores destacam as seguintes características da garotada zapiens: habilidades icônicas: incorporação de símbolos e ícones para busca de informação, cada vez mais pensam por imagens… Vejam aí o fracasso do lacanismo. • AA – ... outra característica, executar múltiplas tarefas, são multitask; zapear: só buscar o básico de um setting de informações; comportamento não linear: várias informações diferentes de canais diferentes; habilidades colaborativas para transpor e resolver problemas: são solucionadores criativos dos problemas; são pensadores digitais e aprendizes autodiretivos ou autodidatas. Não sabia que o termo já havia sido utilizado. Os autores descrevem justo o que pensei. Isso tudo é possível porque, a tecnologia ajudando, o cérebro se acopla, fica acoplado com a tecnologia recente. E a virada de postura do pensamento contemporâneo percebe, ainda que não tão conscientemente, o bobajal da história. Como sabemos, a história é uma lata de lixo. Se tomarmos a história da filosofia, por exemplo, e a colocarmos sob essa perspectiva, ela se resumirá a três páginas. Nada há de errado com os filósofos, pois tiveram que fazer esse esforço enorme, toda uma grande falação, mas que era para chegar a alguma armação possível. É só esta armação que interessa, o resto é anedota. Grandes professores, hoje, serão aqueles capazes de tomar os autores, enxugar, fazer uma diagonal, e dizer que trouxeram tal coisa, e acabou. E, pior, isso tudo é muito pobre. A quinta geração depois da nossa morrerá de rir de nossa bobice, de nossa ingenuidade. A aceleração está chegando e nossa pergunta é: a psicanálise resiste a isso? Ela sobrevive? A psicanálise que aí está não sobrevive. Se ela puder acompanhar a aceleração, ou melhor mesmo, vir à frente, ela virará o pensamento possível para esse momento lá adiante. É, aliás, no que aposto. Mas a burrice das pessoas é capaz de fazer com que deixem a coisa emperrar. Observem que, no que a aceleração tecnológica é dissolvente, faz um papel bem 175

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parecido com o da psicanálise, e talvez mais rápido. Se houver sobrevivência da psicanálise, em que grau será? Não será com lacanismos ou coisas do tipo. Há décadas, procuro um caminho, mas todos somos redundantes. Cada época oprime seus contemporâneos. Conseguimos mexer, mas não muito. Basta observar que, fora as análises que supostamente acontecem no planeta, todas as teorias produzidas cabem hoje em duas páginas. • P – Posso imaginar que a tensão entre Haver e não-Haver continuará aí, não importa quais sejam as mudanças. Mas a psicanálise será o quê? Haverá analistas? Serão robôs? Ou não serão mais necessários, pois o conjunto do processo é que será analítico? Será algo como os carros sem motoristas, que já estão circulando aí pelo mundo? Penso que o Creodo Antrópico, que tentei formular, ocorre sempre: ele volta para o Primário. Mas não este Primário a que nos acostumamos. Talvez as máquinas sejam o Primário, serão o Império d’Amãe. Se aceitarmos o que dizem alguns cientistas quanto a haver, no universo, um lugar habitável por algo a que chamo IdioFormação, a qual, comparada a nosso processo, esteja milênios adiante, quem é esta IdioFormação? Como é? Se o Princípio Antrópico valer, em algum lugar sempre teremos a consciência do Haver. Nós somos a consciência do Haver. Se não, o que estaríamos fazendo aqui? Para que o universo precisaria da gente? Deve haver uma necessidade de produzir, com algum Primário, uma consciência para o universo. Estou falando de consciência, pois inconsciente o Haver já é. A questão, repito, é: Como, dentro disso, pode nascer uma consciência? De várias maneiras. No futuro, quando esse material estiver bem desenvolvido, ele será a consciência do Haver. Carne e osso não serão mais necessários. Devem existir alguns robôs, cujo sexo será apenas pensante, sem essa imundície que é a nossa. Convenhamos que somos uns macacos de terceira categoria. • P – Também podemos imaginar que haja IdioFormações inferiores à nossa? Basta olhar nosso Congresso Nacional para ver. Esses aí são 176

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até pouco notáveis, mas vejam os cachorros, os macacos... São ensaios. Podemos ter certeza de que, em algum lugar, haja trogloditas. Troglodita é o quê? É mamífero, uma lagartixa? Não sabemos qual modelo o Espontâneo segue para resultar num processo de autoconsciência. Suponho mesmo que nossa espécie seja intermediária. A evolução parou aqui. Para nós, não há evolução darwiniana. Isto, por termos substituído a evolução pela tecnologia. Portanto, se a espécie viver o suficiente, esse tipo que conhecemos acabará. Serão IdioFormações que não precisarão de alimentação tipo digestiva, por exemplo, não farão cocô... Será possível fazer o download pleno daquela existência. Então, cadê a morte? Como sabem, para mim, A morte não existe, mas, quando pessoas perecem, é um enorme desperdício se não transmitiram para a frente, se não passaram para outro tipo de memória. Uma civilização com menos indivíduos – pois a nossa, com toda essa gente, é um horror (ainda por cima, com milhões de espermatozoides morrendo para um poder sobreviver) – é o bastante para serem zeladores da consciência do Haver. Quanto a isso, basta ver a imensidão da Biblioteca do Congresso, em Washington, com todos os livros produzidos no mundo. Já há projetos de reduzi-la a um pequeno reservatório informatizado. • P – Freud, para falar do Inconsciente, usa a metáfora arqueológica: há, nele, uma coexistência de camadas. É o Primário. • P – Ele está aplicando um tipo de pensamento cumulativo. Entretanto, se o Haver, o Inconsciente, é fractal e analógico, qual é a necessidade do acúmulo? O raciocínio é de resultados. • P – Mas eles não se equivalem em algum momento? Sim, pois o conteúdo é o que digo sobre a história da filosofia, é lixo. Mas há algo que, se perguntarmos, ela dirá até o que lá não está. Isto porque combina e sai. Aparece um Platão, por exemplo. Vejam que é 177

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possível fazer emergir um filósofo, que não está guardado como conteúdo. É assim que será: dados aqueles dados assim-assim, se colocados para falar, eles falam. O quê? Aquilo. Não se trata, pois, de acumulação de conteúdo, e sim de transposição de nível. Podemos, em algum lugar do Haver, ter uma comunidade de IdioFormações que não sejam da ordem do carbono, que sejam perfeitamente recomponíveis e substituíveis. Portanto, feito o download, qualquer um será Platão. Isto, por enquanto, pois, retirado o download, deixará de ser. Aliás, nós aqui estamos fingindo que podemos incorporar isso. Só que ainda é uma trabalheira infernal, pois somos arcaicos, nosso Primário é pobre. • P – Por isso, ao falar em fantasia, você indica que ela tem que ser entendida como miniaturização, como capaz de encontrar equivalência da formação daqui com as de lá. Ela é um algoritmo, um código de barras. Imaginem se pudermos emprestar nossa fantasia para o outro. Aí teremos a “relação sexual”. Lacan ficará desmoralizado. • P – Você acha que poderá não mais haver diferença entre Primário e Secundário? Se não houver, ficará bacana demais. Nós ainda temos o problema de tentar, mediante uma elaboração secundária trabalhosíssima, dar conta das emergências de Autossoma e Etossoma, mas, se ambos puderem conversar espontaneamente, teremos que o Analista, finalmente, será apenas uma função. Como qualquer função matemática, aliás. Gostei dessa ideia.

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34 • P – O que você quis dizer quanto ao fim do lacanismo quando foi mencionado que a geração zapiens se caracteriza pelo pensamento icônico? Como já desenvolvi de outra vez, Lacan diz que l’inconscient est structuré comme un langage. Isto virou um linguisticismo acompanhado de teorias da significação, etc. Ora, Lacan disse textualmente que o Inconsciente pensa com a fala. E mais, que todas as produções humanas têm que passar pela fala. Lyotard pulou, contrapôs com os artistas plásticos, que não pensam com a fala. Alguns, mais burrinhos, até pensam com ela, mas aqueles plasticamente situados não pensam. Já coloquei como epígrafe de meu Falatório de 2006 (AmaZonas: a psicanálise de A a Z), e repeti aqui outro dia, um trecho de Einstein: “As palavras da língua, tal como escritas ou faladas, não parecem representar qualquer papel em meu mecanismo de pensamento”. Acho isto também, pois sei pensar das duas maneiras: só com articulações formais, e depois procuro um nome. Quase que vejo a articulação, ela é não linguística. Diz ele também que “as entidades psíquicas que parecem servir como elementos do pensamento são certos sinais e imagens mais ou menos claros que podem ser reproduzidos e combinados ‘voluntariamente’... Os elementos mencionados são, no meu caso, do tipo visual e outros do tipo muscular”. Esse tipo muscular é verdadeiro. Basta observar atletas numa Olimpíada para ver que pensam muscularmente. É maneira de pensar. Eu, como tive uma formação militar, sei que funciona assim. É perceptível que estou articulando com o corpo. É claro que o cérebro lá está, mas não é língua ou imagem, são articulações no corpo. Em análise, devemos observar isso nos analisandos. Muitas vezes, falam mediante pequenos movimentos, mediante chiliquezinhos no corpo. Às vezes, algo que trago aqui, não tomei de livro ou pensei, me veio como movimento, quase que sinto a articulação. Não é algo extra-sensorial, como alguns chamam, pois, se não sentirmos, nada acontecerá.

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• P – Sentimos ou alucinamos esse movimento? Qual é a fronteira entre sentir e alucinar? Deixemos claro, não sabemos quase nada. Se Einstein pensasse olhando os textos dos físicos, paralisaria, não inventaria a teoria da relatividade. Ele entrou num movimento que é quase uma dança: as coisas se mexem e se encaixam. Se fizermos referência ao texto, isso não aparecerá. É preciso colocar o saber de lado e deixar a observação solta. A maioria das pessoas é redundante e textual. É o mesmo que o bobo do suposto analista escutar alguém pensando a respeito desse alguém. Se está pensando, ou se referindo à teoria enquanto escuta, não está escutando nada. Depois, é que ficamos encucados com o que aconteceu e tentamos teorizar. No que já sabe, você é apenas psicólogo. O vetor é ao contrário, diferente do que estamos acostumados como professores ou estudantes, em que o vetor é daqui para lá. O mais difícil é aprender a deglutir o lixo dos outros, aquele que vem de lá para cá. Se houvesse alguma passagem verificável, anotável, a analista, seria esta. Lacan falava em passe, coisa que, como sabem, sou contra. Uma boa pesquisa para vocês fazerem é descobrir como o vetor vira. A maioria dos analistas que conheci é de professor... Aqueles ligados à escrita literária têm que se perguntar como pensa um coreógrafo de gênio. Ele pensa com os corpos, e, muitas vezes, ao falar, o que ouvimos é meio despreparado verbalmente, não transmite nada. Basta acompanhar a apresentação de uma Deborah Colker para perceber que é igual ao que ocorre na cabeça de Einstein: um pensamento muscular. • P – Dizem que ela “acaba” com os dançarinos. O processo analítico, se funcionar, se for levado a longo termo, também acaba com a gente. É capaz de a pessoa perder a fala. Os seminários de Lacan são uma insuportável falação. No final, ele para de falar. Depois, ele apresentou demência senil brava, e morreu não entendendo nada do que acontecia. Não vi, já tinha voltado de lá, mas dizem que foi perdendo a fala, ainda sem evidência de demência. Aposentou-se do falar. Acho correto, pois, se alguém levar adiante o processo muito longamente, com a idade, falará para quê? Suponho que isto não ocorreu com Freud, ele era menos analisado. 180

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• P – Campos de Carvalho, escritor de quem você me falou nos anos 1970, recebeu, nos anos 1990, uma editora que queria relançar suas obras. Ela relata, no jornal O Globo de sábado passado, que “ele não dava um sorriso, falava aquelas frases sem pé nem cabeça [que pareciam saídas de seus livros] com a maior seriedade”. Ficaram o tempo todo da entrevista nessa situação. É isso. Tomem Vila-Matas, por exemplo, que é alguém que escreve à beça – no sentido de matar essa literatura. Sua pergunta central é: o que faço para sumir? Suponho que, quando ficar mais velho, depois de ainda escrever uns dez livros, não saberá escrever uma única frase. Raduan Nassar é diferente, disse tudo que queria em dois livros, e parou de escrever. • P – Hilda Hilst parou de escrever aos 69 anos. Desses, o mais antigo que conheço é Rimbaud, que parou aos dezoito anos. Virou contrabandista de armas.

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Sobre o Autor MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. Psicanalista. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de NovaMente, Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em SóPapos e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.

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Ensino de MD Magno MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 3ª ed., 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p. 7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 8. 1982: A Música Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 2ª ed., 264 p.

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10. 1984: Escólios Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p. 16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise - Parte II Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p. 19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 310 p.

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21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 224 p. 26. 2000: “Arte da Fuga” Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p. 30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2010. 260 p. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p.

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32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p. 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2014. 158 p. 35. 2009: Clownagens Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012. 210 p. 36. 2010: Falatório 37. SóPapos 2011 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p. 38. SóPapos 2012 [a sair] 39. SóPapos 2013 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p. 40. Razão de um Percurso (Conferências Simplórias 2013, para divulgação da Nova Psicanálise, realizadas na Universidade Candido Mendes) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2015. 41. SóPapos 2014 [a sair] 42. SóPapos 2015 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 176 p. 43. SóPapos 2016 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 188 p. 44. SóPapos 2017 [a sair] 45. SóPapos 2018 [em curso]

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Obra Literária 1. Oferta do Meu Mistério Livro composto e reproduzido pelo autor (mimeografado). Rio de Janeiro, 1966. 2. Aboque/Abaque: Crestomatia Rio de Janeiro: Editora Rio, 1974. 200 p. 3. Sebastião do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro / Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1978. 142 p. 4. CantoProLixo Aoutra editora / Matias Marcier, 1985. 90 p. 5. Kaluda (O Nando e Eu) Letras, Revista do Mestrado em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), edição especial, jan/jul 1995, p. 254-285. Republicado em: PUCHEU, Alberto (org.). Poesia (e) Filosofia: por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p. 29-50. Terceira publicação: Et Cetera: Revista de Literatura e Arte, n. 3, março 2004, p. 170-177. Curitiba: Travessa dos Editores. ISSN 1679-2734. 6. S’Obras (1982-1999) Coletânea de poemas. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. Editada por Fábio Campana, com coordenação gráfica e editorial de Jussara Salazar.

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Este livro foi composto nas fontes Amerigo BT, Garamond ITC Bold BT e Times New Roman e impresso de 2018 pela AlphaGraphics Guanabara sobre papel offset 80 g/m².