Literadura [1a. edição]
 9788587727770

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LITERADURA

Edição comemorativa dos 80 anos do autor

MD Magno

LITERADURA

é uma editora da

Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2018 MD Magno Pesquisa e organização do texto Nelma Medeiros Potiguara Mendes da Silveira Jr. Revisão Paula de Oliveira Carvalho Diagramação Maria Cecília Castro Capa e contracapa Foto de MD Magno por Dilmar Cavalher, 1990 (c) Jornal do Brasil-cpdoc Montagem da capa Wallace Thimoteo Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso

M176L Magno, M. D. (Machado Dias), 1938Literadura / M. D. Magno ; [pesquisa e organização do texto: Nelma Medeiros, Potiguara Mendes da Silveira Jr.]. – Rio de Janeiro : Novamente, 2018. 564 p. ; 23cm. “Edição comemorativa dos 80 anos do autor.” ISBN 9788587727770 1. Literatura brasileira. 2. Poesia brasileira. I. Medeiros, Nelma II. Mendes Júnior, Potiguara da Silveira I. Título. CDD- B869.8

Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 – Jacarepaguá 22763-260 Rio de Janeiro – RJ Tel.: (021) 2445-3177 www.novamente.org.br

Em 1966, MD Magno lança Oferta do Meu Mistério: poesia ultrapassada, seu primeiro conjunto de poemas: uma edição particular, composta e reproduzida pelo autor. Nesse opúsculo de 34 páginas, mimeografado, numerado e assinado, apresenta uma seleção de poemas escritos entre 1952 e 1965. Destaque-se, para efeitos de datação, o poema intitulado Homem, de quando ele tinha 13 anos. O presente volume, com sua obra literária (in)completa até agora, não segue uma ordem cronológica. Optou-se por iniciar com Aboque/Abaque (escrito entre 1964 e 1970), por ter sido seu primeiro livro publicado por uma editora comercial (em 1974). Segue Sebastião do Rio de Janeiro, escrito em 1975 e publicado em 1978. Depois, Cantoprolixo, publicado em 1985, reúne poemas de 1967 a 1984. Já S’Obras é uma coletânea de poemas de 1971 a 1999, publicada em 2002. Ao longo dos últimos quarenta anos, grande parte dos demais poemas foi publicada isoladamente em revistas, em capítulo de livro (Kaluda: O Nando e Eu), em boletins internos, em cartões postais, em meio a textos teóricos do autor, ou enviada por e-mail a seus colegas. O volume termina com Adolescências, poemas de 1952 a 1965, quase todos inéditos, dos quais foram retirados aqueles que compõem o primeiro opúsculo publicado pelo autor – cujo título pode dar uma boa chave para a leitura de toda sua obra literária: Oferta do Meu Mistério. OS EDITORES

O texto pode ser meu, mas o livro é de Rosane Araujo Paula de Oliveira Carvalho Potiguara Mendes da Silveira Jr. Nelma Medeiros Aristides Alonso

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SUMÁRIO B-A-BEL, 17 ABOQUE/ABAQUE (1964-1970) Intradução, 27 PRIMEIRO PORTE O filho ou o pai, 33 Domingos %, 37 O moço que morreu de piu, 42 Padre Ramão, 48 A cria que se cria cria, 60 Don’Anna Pimenta, 76 Meu último co/anto, 78 O conhoceiro, 86 Quase uma estória de infinito amor, 91 INTERLÚDIO Gorjais, 99 Datas, 121 SEGUNDO PORTE Apo-calipso ou canção de ninar nina, 149 R/D/M/N/D, 156 Seo-senhora, dona-senhor ou & encantad&r de menin&s, 159 Miloca e o sonho, 163 A obra ou a obra, 170 Poruporopotara, 178 A morte incerta do pai (ou do filho), 182 As possíveis palavras ou os vamarís combalhares, 191 Hisfiemt ou alê alé álea ou a revolição dos dedos, 195 7

Posfício, 198 Ouvido, 202 Nota, 203

SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO (1975) Dedicatória – J.M., 209 Apresentação – M.D.M., 211 RES REI, 212 Prefácio-Colagem – Fernando Pessoa & James Joyce, 213 ERASTE A EROMENO, 215 Ecdótica e Aleuromancia – M.D.M., 247 Carta de Erosão, 255

CANTOPROLIXO (1967-1984) UMA PENA..., 259 LOCO SOLO (de Pedro Nava), 261 RE(VE)LAÇÃO, 268 « LUTO, 283 DEZ SOMETOS DE OMOR Por um Corpo, 289 Para Narciso, 290 De Longe, 291 A Letra, 292 Passem, 293 Do Outro Lado do Muro, 294 Lição de Anatomia, 295 Chega de Amor, 296 Espelho, 297 As Nereidas, 298 REVIRÃO, 299 DOIS, 303 AELA, 305

KALUDA (O Nando e Eu) (1995), 307

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S’OBRAS (1982-1999) THE SUN OF A BEACH, 337 FASCINORANTE FEIÚRA, 338 PARA QUE HÁ PRECES, 339 MEMORANDO, 340 ILHAS, 341 MORAL DO SURJEITINHO, 342 SOPESADA NA PAUTA, 343 REVEZES DA MINHA SORTE, 344 SE QUERES BEM, 345 REMORDENDO A RARA ESCUTA, 346 DADOS OS SEXOS DOS ANJOS, 347 ANJO DELTA, 348 AVE ADÃO!, 350

DEMAIS POEMAS (1974-2013) 13.II.CINZA, 365 AmÓdio ReVida, 365 POEMA DADÁ, 366 TZVIETÁIEVA, 366 MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E TRÊS, 366 LE TEMPS ADVERSE I – Le Temps A du Verse, 367 II – La Chair, 368 III – La Route, 369 IV – Pentagone, 370 V – Oedipe, 371 VI – Défaillance, 372 VII – Dis-cours sur la Peau de Réalité, 373 VIII – Frère d’Héraclite, 374 IX – Qui?, 375 X – Tu est π-ère, 376 XI – L’Épreuve du Désert, 377 XII – Échafaussage, 379 DOZE NOTAS DE VIAGEM (SEU PER-CURSO) OU DOZE MARCAS DE TRANS-CURSO (CABOTAGEM), 380 9

OFERTA DO MEU MISTÉRIO (1952-1965) Dedicatória, 394 Oferta do Meu Mistério, 395 Homem, 396 Resolução, 396 Transcendentação, 397 Sentimentos de Causa Indefinidos, 398 Desamor, 399 A Lanterna Azul, 399 Calendário, 400 Criança em Cada Um, 401 Vácuo, 401 Depois da Chuva, 402 Boa Noite, 403 ????????????, 403 Fera Mansa, 404 Partida, 404 Alvo Desiludido, 405 Por Desamores, ao Nada, 405 Poema do Amor Anquilosado, 406 Bilhete a Papai Noel, 406 Amor Certo, 407 Supino Gesto, 407 Você no Mar, no Sol, no Céu, 408 Poesia do Bonde Conterrâneo, 408 Viagem de Volta Ao Amor da Amada, 409 Sol de Mucuripe, 410 Morena Ceará, 411 Marias, 412 O Bosque do Alambari, 413 Dor de Corno, 414 Poema do Extremo Norte, 415 Poema da Ponte do MAM, 416 Você no Meu Palacete, 417 Fim, 419

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ADOLESCÊNCIAS (1952-1968) Noite de junho, 423 Aquele homem, 423 Piano, 425 Caxias na chuva, 426 Alucinações, 428 Contrasenso, 429 Sombra que amei, 429 A vingança do Homem-Deus, 431 O riso da boca, 432 Valor, 432 Ronda dor, 433 Os cães, 434 Galo, 435 Traços, 435 Mãe, 436 Missa à Virgem-Maria, 438 Briga de jangadeiros, 439 Meu baú encantado, 441 Adeus, 441 A torre e o céu, 442 A gruta do amor, 443 Soneto de Dante Alighieri (da Vita Nuova), 444 Lembrança, 445 Conclusão, 446 As crianças também amam, 446 Por que a bailarina?, 447 A coisa mais esplendorosa, 448 Te amo, 448 Por que? , 449 Karna amo, 450 Você, 451 Homem de verde, 452 O inteligente Capitão P., 453 Fé esperança e caridade, 454 Vi e ouvi, 455 A ruga da boca, 456 11

Resposta a M. N. Sobre a ruga da boca, 457 Cortinas, 458 Vinte anos, 458 Aneurisma, 459 Silêncio fantasma, 461 Associação de ideias, 462 Quasi charada quasi poesia, 463 Honi soit qui mal y pense, 463 Uma janela, 464 Falsas cortinas, 465 A maçã do paraíso, 466 Poesia na noite tarde, 466 Estratégia, 468 Funerais do visionário, 468 Resignação, 470 Cabelo branco, 471 Misantropia, 472 Orgon, 472 Vida e zero, 473 Em defesa do amor proibido, 474 Opus 27 nº 2 “Ao luar”, 474 Versos?, 475 Tempo é tempo?, 476 Intuição e razão, 476 Depois da chuva, 477 A praça que já não existe mais, 478 O imbecil da minha rua, 478 Teu retrato, 479 Relendo versos de meu pai, 481 Quadra, 482 Da vida, 482 Não mates o amor, 483 Porrada, 484 Poema trigonométrico, 485 Eu fico de castigo, 486 A morte do filho que não nasceu, 486 Gavetas, 488 12

O grande erótico, 488 Medida transcendente, 489 No caso de existir mendacidade, 490 Cê besta!..., 491 Hora longe de voltar, 491 Um dia, 492 Paradoxo, 493 Marias, 493 A boceta de pandora, 494 Na rosa, 494 Latinório, 495 Viagem de volta ao amor da amada, 495 Portrait de amor, 496 Ladeiras, 497 Amor certo, 497 Alienação, 498 Torção do real, 499 Boa noite, 499 Inchação telúrica, 500 Púbis, 500 Fênix, 501 Alvo desiludido, 502 Cantiga de demente, 503 Destino, 504 Assim e assim, 505 Sentimentos de causa indefinida, 505 Tristeza, 506 Saudade baça, 506 Três hipóteses, 507 Nossa noite, 508 Humana mágoa, 509 Sonhando vão, 510 O mofo, 510 Transcendentação, 510 A lanterna azul, 511 Tristeza tem fim, 512 Samba em sermão, 513 13

Canção do Amazonas noturno, 514 Gênese, 515 Canção sem medo, 516 Anunciação Ave maria, 517 Exaltação, 517 Água de morro, 518 A luz no fim do mundo e o físico, 519 Astroave, 521 O poeta, 521 De centauro fauno e sátiro, 523 O grito, 524 Pigmalião, 526 Arte de, 527 Terra, 528 A beleza, 529 Olhos de ver, 529 Quando o sono vier, 530 A queda, 531 Que dirás esta noite? (Baudelaire), 532 O biscateiro, 533 Vaderretro, 534 “A juventude diante do sexo” de Gaiarsa, 535 Carta contristada a um adolescente, 536 Presente de U. S. Donzel, 537 Ao caro Charles (dito Baudelaire), 538 Trechos de Rimbaud Le bateau îvre, 539 O ídolo, 540 Luther King’s pray, 541 Preguiça, 542 Náusea, 543 Kuan-tzu, 544 P. T. Chardin, 544 O albatroz (Baudelaire), 545 Soneto 55 (Shakespeare), 545 A beleza (Baudelaire), 546 14

Canto astronáutico, 547 Lição, 547 Onde o se?, 548 Nexoforma, 549 Por ti, 550 O poeta, 550 Cartapoema a uma (ex)menina, 552

CRÉDITOS, 557 

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B-A-BEL Pequena intervenção no XVI Congresso Brasileiro de Língua e Literatura, UERJ, 25 julho 1984.

Não é sem-vergonha que aqui compareço, congressual se não congressista, a meter o meu bedelho aonde não fui chamado senão talvez – para “amenidades e certezas”, como diz o caro Rosa. É que um pouco de strip-tease não é sem alguma bem-vinda excitação; ao passo que o pudor, por outro lado, me amofina quando, como atiçou Lacan, “é preciso, de qualquer modo, filosofar um pouco sobre a natureza disso que se chama um congresso. É, em princípio, uma dessas espécies de encontro onde se fala, mas cada qual sabe que, qualquer coisa que diga, participa de alguma indecência, de sorte que é muito natural que ali só se digam nadas pomposos, cada qual restando ordinariamente apegado à manutenção do seu papel”. (Num Seminário de abril de 62). Nos entretantos, se eu o aceito, eu o cumpro portanto – e mesmo compro – não tudo, pois que a verba me falta; mas um tanto, de verdadeiro ou brigadeiro que já me vendam esses olhos – doces – da minha sogra Universal-Cidade. Unis-Vers-Cytère (Lacan), seguiremos nós todos para a ilha do consolo? Devo à Daisy, para esta ocasião, a relembrança da Torre. Naquela última Ciranda que brincamos, ela recitava o perguntar por que deveriam aqueles lá passar por tal castigo. De Babel a Babilônia, por diferença proliferante na riqueza de alínguas, já cá estamos de retorno à Cidade que se toma por eterna (embora já não more só em Roma) além de universal, no seu papel, propriamente higiênico, de zeladora do saudável de um Saber febril e constipado – e há muito que acamado no berço esplendoroso da sua larguíssima fama. Aqueles lá, queijo-deus para ratos em significantes, viram e reviram, roendo a sua corda, o furo mesmo que aprontavam para o Céu. Pois que, a cada volta de espira dessa Torre que Falo, sem saber decepassem da Linguagem alguma alíngua que, sozinha, como rabo 17

para aquém da lagartixa (como fez o Pessoa) logo afirmasse então seu rebolado, assaz particular, pelo campus das cem falas. É que o Plano-Projetivo-Deusurano, que é pura curvatura sem avesso ou direito nem borda nem contorno, já toma como furo uma intenção de fazê-lo – e passa ao Deussaturno a gerência dessa exígua margem de possível norteio (segundo Rosa a terceira) aonde a diferença, em contrabanda, inscreve os seus alelos promissores – que se ofereçam, a decepar, ao Pai Zeuzéros, em troca de um governo que impossível, mas exercitável. E vamos todos de castigo para o canto da parede – aonde quiçá se possa até cantar o seu recado no mural das sublimes ereções de uma beleza, de uma verdade, ou do fracasso mesmo. É lá que a gente escreve. É assim que se escreve. Mas de vária maneira: da literatura, da literadura, da literapura. O que melhor se atura da letra é o que se aterra: literatura. Ali se atura a falta de terra, com aterro – se fabrica uma ilha, por definição cercada de Nada por todos os lados; ou, se não, se desenha o litoral ao contrário, com a mureta circundando o poço-sorvedouro, o buraco negro da fala, a cacimba sem fundo ou com tampa n’Outra Face. Mutreta de dentista – a obturar nossas cáries com matérias degradáveis – de modo a que o sorriso nosso de cada adiamento se garanta, por enquanto, com beleza e conforto. Conversa para boi dormir – quando o Sujeito Vacum se acrescenta de ilusão maior ainda, afeito que é a ruminar pelo verde pasto Imaginário – aonde as de-pre-sépio, nutativas, respondem sempre sim ao dito ser suposto ao seu estar bovino no cuidado. No entanto, é agradável, é gratificante. Troços de divertir e prazeirar – se não de faturar – da besta-cela romanceira à cantada popular. Afetação da fantasia, literatura é sublimação, quer dizer, tesões ainda, mas agora em seu destino de paixão que se anuncia. Sim, que é “elevação do objeto à dignidade da Coisa”, segundo a fórmula de Lacan – mas num primeiro passe, pelo qual o compromisso objetal ainda refreia a rédea do Simbólico, num voto de figuração que tira algum retrato, sim, do nosso ego, mas que acochambra ainda o sintoma por metáfora expressiva. Grafitos na parede, recadinhos gozados, mais ou menos pitorescos, e mesmo até, por vez, maravilhosos. 18

Primeira gesta da escrita – aonde alguma até mesmo consegue algum repouso. Um passe a mais, e vem literadura – quando o Simbólico já despreza um quanto o Imaginário e se ausculta a si mesmo, em compromisso maior com a pega do Real. Ali se atura à margem, e mesmo como margem, fímbria da praia para o mar aonde Nada sobre Nada... o impossível escrito, se amomenta como vazio aonde não se vai – que dele só se sofre o vácuo-vento sideral enquanto que se agarra o barbante concreto que faz o rodo dessa ilha nossa terra, fazenda d’Esse Um (S1) sintomático, nosso ancoradouro principal. É marcação a brasa e ferro dessa letra, de dono, no lombo nu da verdade obscena que lá nos mostra a vulva oferta à Lei do Pai. Na parede, uma s’obra se projeta nalgum canto, aonde a assinatura estampa a sina escrita em letra dura como se fosse um real vero... Literadura é revelação, quer dizer, tesões ainda, mas que exibindo, ereto, o seu estilo. Conversa para acordar, a dança de tal mão que empolga uma caneta, com a música d’alíngua que lambe a sua cria em projeto de amuro – mas resguardando ainda um sonho futuroso, pois que o Amor é o seu melhor augúrio. Contudo, nos sidera, pois que, um tanto afeita ao real, nos assujeita à marca inapagável que ressitua cada sujeito em seu lugar devido de ilusão. É que, a verdade, Lacan mostrou sua estrutura de fixão. Mero pedaço que revela castração. Só depois, mais um passe – e se houver – a volta pro começo. A Morte é o horizonte. Aoutra Real, que não se escreve jamais. Averdade, que não há. Para-abordá-la, e de longe, é preciso que alíngua se decante em puro estilo, caneta como cureta – por um lado, ferramenta fundamental (ferramenta que funda o mental) e, pelo mesmo outro-lado, fundamento ferramental (fundamento que ferra o mental: e comemora O Fracasso – no que aspira pela Acoisa e finge que a d’escreve em neutralização forjada no não-senso radical de um dito amor pra além da Lei, e mesmo para além do amor do amor, amor que renuncia). Literapura é ascensão – levitação para ascese ao fracasso no Real. Castração radical que comemora o impossível na neutralização da textura, por invenção de um fingimento de Coisalguma mediante o travestimento daquela algumacoisa mais particular com a veste da 19

atextura, de modo a não cessar de inscrever, e como Obra, e por um ato propriamente poético, se não Acoisa Pura, pelo menos a navalhada textual da sangrada escrotura. É mais para o Silêncio do que para o papo – convidativo a instantâneos perpassares pelo despertar. Aí, nossa terra é aquela que nos aterra e que já não se atura – pois que ela é a Outra parte, pra além do litoral. E terra feita a mar – a mar de Nada, aonde cada qual é estrangeiro, mesmo vivendo para aquém do navegar. Fala-se tanto do vértigo da folha em branco com o qual se defronta, em crua angústia, qualquer um supostamente escritor. Pois é na literatura que, aí, se tapa o furo da brancura com aquelas figurações do nosso gosto de sonhar. E é na literadura que, aí, se arrolha o umbigo lívido da página com a trolha de uma letra – cuja verdade, só possível, repolariza então o campo das ranhuras que o estilho rabisca sobre a tábula rasa que ao mesmo tempo ele esconde e denuncia, repondo assim Acoisa em seu Outro-Lugar. Mas na Literapura – e só depois – então, o que se escreve? É como-se, é faz-de-conta, fingimento – de: de dentro mesmo do tricô do próprio texto, e com seu próprio tricotar, e já curtindo a nostalgia da vertigem, a saudade da Nada, da perdidíssima Origem, repetir a produção, primeva a cada vez, da própria tábua-lisa feita de inscrições, do próprio antigo e novo muro das rabiscações. É que a questão do suporte – na arte literária como na pictórica ou em qualquer outra façanha de inscrição – só se resolve na fabricação – mesma do suporte, a se operar literapuramente, só depois de muito se inscrever, para escrever a inscrição, quando o ato-poético comparece, como tal, retorcendo em brancura a carapinha da textura, fabricando O Papel, fabricando O Telão – com artimanhas matemágicas de pseudo-inscrever o Revirão (ou, como escrevera Joyce, o River-run). Noutras datas já fiz meia-forcinha para tocar um pouco exemplos da façanha, depois de a suspeitar, de papel passado, num Senso Contra Censo que muitíssimos poucos têm gostado de ler. Isto foi, redigido, num chamado Rosa Rosae que quer surpreender o Revirão, primeiro, de leve, no Grande Sertão, e depois, cabalmente, nas Primeiras Estórias do João. Isto foi também, falastrionicamente, num 20

chamado Corte (ou côrte) Real, um seminário aonde me espantei com As Meninas (dos olhos, naturalmente) que Velázquez nos fez – momento, aliás, em que, no mesmo século de Descartes, nos deu verdadeira freudiana resposta à questão do Sujeito que o outro nos postou (ou pelo menos é o que meu verbo acreditou). E tudo isto que agora citei bem pode estar à disposição de vocês. Eis aí o que, para hoje, só me ocorreu lhes amostrar. E quanto ao que me toca, só devo declarar: Primeiro: que a literatura não me interessa – senão como chance de mercado; Segundo: que a literadura só me interessa – no que me interessa uma verdade que eu possa faturar; Terceiro: que a literapura é o que, supremo, me interessa – pelo inter-esse em que me ascendo e em que me estrago.

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ABOQUE/ABAQUE (1964-1970)

Epígrafe: A deformação de um texto se aproxima, de certo ponto de vista, de um assassínio. A dificuldade não está na perpetração do crime, mas na dissimulação dos seus traços. Freud Perígrafe: Não meu, não meu é quanto escrevo. A quem o devo? De quem sou o arauto nado? Por que, enganado, Julguei ser meu o que era meu? Que outro mo deu? Mas, seja como for, se a sorte For eu ser morte De uma outra vida que em mim vive, Eu, o que estive Em ilusão toda esta vida Aparecida Sou grato Ao que do pó que sou Me levantou. (E me fez nuvem um momento De pensamento.) (Ao de quem sou, erguido pó, Símbolo só.) Fernando Pessoa Antígrafe: O cadáver delicado beberá o vinho novo. Surrealistas Grafígrafe: Mesmo se verdadeiro, é falso. Michaux

Sençura: Por ordem expressa do a(u)tor, este livro é IMPRÓPRIO PARA MENORES de qualquer (c)idade.

intradução: as veredas do hoje (meio-conto meio-roubado) L’intelligence la plus grande est au fond la mieux dupée: penser qu’on appréhende la vérité quando on ne fait que fuir, et vainement, l’évidente sottise de tous. Bataille Em terra de cego, quem tem um olho é rei Vox Populi Em terra de olhudos reis, quem tem um olho só é meio-cego ou meio-rei? Em terras desse EGO quem tem um molho erra em...

Então o conferencista pára, pergunta: – Que é futuro?: astronave, favela? Que é passado?: penicilina, barroco, juliovernes? Depois-de-amanhã, anteontem, hoje, serão águas mosaico-separadas para homem nelas lavar o entendimento? Ou será um Eu que trans elas livre nada, ludião? – Diz você. Que acha? – Sei não. Sei nões. Não jornalizo, não teleavisto: isto é a homens pro-fixionais de gueredar sobre tudo a respeito do que mais não-sabem. Arrisco: imajo. Sou vero professor: não sei de tudo, só sei de nada. Arquipenso, subpenso, só. Dou quepensar, não sei. – E a Verdade? – Verdades? Há-as? Misturadamente... Una? Provável, mas despossível de topadamente... – Portantum de porquantum racion’habem o pipi michurim freudim, talque o olho-torto sartrim, talque o lortomorto abismarxal, talque a espiral esperina antropina chardanina, talque a lingueta 27

proxeneta saussurrante, talque a estruturona manjadona da valsa satraussiana, talque talques? Mistriagens? – Não vejo: olho. – Não olho: vejo. Depois o conferencista sentou. Outrem queria falar. Se desse tempo e ganho. Levantou-se Camerum dediduro lanceando contra ele: – Você poetiza. Ou você goza. Se precisa é de certa solução. Temos que modernizar, comunicável. Tudo não depassa além: co-muni-car! Camerum berriladrou sua lengalenga, objetiva câmera impessoal. Só Ninguém compreendeu. Mas cabeças balanguearam sins presepiamente, desentendidas votantes, por direito geral de resolver sem ver e sem resol. Eu, desvotei: – Desprovo. Daqui tomando cinco, cinco só, nem somos quem. O círculo geral desgostou. Ensofazados na grande sala romba, docentes inrecentes ressentados de estudo semanal a ver refazer o quefazer malchamado magisterial. As novas moçadas só repelindo. Da geração gemebunda, os professores decidem repensar: coitadamente fingindo que assentados, deborcados no reproblema educacacional. Dino Trog beabou, muito professor: – Épre é pre. Ciso preciso comu... – ... nicar. (Seissão puxou adjutória). – Concó. Concó. Con, cococorou Dino Trog. R d o, é o que faltando pra empatar com Camerum. Três letras só. Dino Trog também concó-rdava: cocomu... nicacar. No que redisse Camerum, levantando-se orador: – Sobretudo... – Nicar. Interrompante, introferiu Dino Trog com finzinho do seu dito obstinaz. Seissão declarou que tinham lido todo o Tratado que o conferencista escreveu, mas que não tinham entendido nada nada. Ele estava ali era para explicar, pois não? Então que explicasse. Deixassem primeiro ele explicar. Então o conferencista continuou: – Como eu ia dizendo, um mapa, feito um mapa comum desenhado num espaço qualquer de representação: folha de papel, parede, chão, onda de mar, tá?, aonde vocês quiserem. Um mapa 28

desenhado como diagrama reticulado, como se chama, tá?. Só que é um mapa meio movimentado, quer dizer, como o mapa representa um certo estado de uma situação que na realidade se move, num instante dado ele é formado de uma pluralidade de ramificações, tá? – !!! – Vamos fazer de conta que cada ponto representa uma cidade, tá? Seja uma cidade material, de verdade, com todos os seus elementos reconhecíveis, seja o conjunto das leis com todos os seus legislantes, seja o conjunto das regras com todos os seus regrantes, seja o conjunto dos costumes com todos os seus contumazes, tudo isto regendo todos os comportamentos dentro dessa cidade com todos os seus comportados e descomportados, tá? Cada uma das ramificaçõezinhas que vocês estão vendo ali no quadro é um caminho, uma estrada, e pode representar uma relação entre duas ou mais cidades. Vamos dizer que, por definição, nenhum ponto é univocamente subordinado a este ou àquele. Cada cidade tem seu poder próprio, o qual pode eventualmente variar no curso do tempo, tá? Também, cada cidade tem sua própria zona de influência, ou ainda, sua própria força histórica original. É claro que, em consequência disto tudo, ainda que algumas cidades pudessem ser idênticas entre si, são, em geral, todas diferentes. O mesmo acontece com as estradas, que, respectivamente, transportam fluxos de cargas completamente diferentes e variáveis com o tempo. Existe, enfim, uma reciprocidade profunda entre as cidades e as estradas, ou, pode-se dizer, uma dualidade. Uma cidade pode ser considerada, também, como a interseção de duas ou mais estradas; correlativamente, uma estrada pode ser considerada como uma necessidade constituída a partir da correspondência entre, por exemplo, duas cidades quaisquer. Tratase, portanto, de um diagrama em retículas, ou melhor, em tortículas, no qual podemos, à vontade, elevar ao máximo a diferença entre os elementos; temos que pensar um mapa tão irregular quanto possível. Aí Seissão falou: – Ah!, quer dizer que tudo mexe, né? Nada tem lugar certo nesse mapa aí... – É isso mesmo. Isso mesmo. É assim mesmo. – Mas assim como?, se meteu Camerum. Posso garantir que ninguém aqui está entendendo coisíssima nenhuma. 29

– Mas é assim mesmo, continuou o conferencista. É o que eu estou tentando mostrar desde o começo. É muito complexo, confuso mesmo, indeterminado. Há sempre que se levantar a indeterminação. Só assim se pode... Mas Camerum não deixou continuar: – Ora vejam só! E era isto que o senhor tinha pra dizer... Nós já estamos confusos sozinhos. Não precisava o senhor para aumentar a confusão. Todos já lemos o seu Tratado e ninguém entendeu. E o senhor vem aqui pra fazer a gente desentender melhor. – !!! Foi aí que Camerum aplicou seu golpe mortal. Puxou do bolso um livrinho e a todos apresentou, no que perguntava ao conferencista: – O senhor não é também (frisou no também) autor deste... livro? – Sim, sim. É meu. Por quê? – Olha, gente, é um livro sabem de quê? De poesias. De poesias, senhores colegas. – Ah!, é um poeta, blasfemou Seissão. E Camerum: – E quanto à nossa conferência? O senhor não é um teórico especialista no assunto? – Sim, sou. Isto foi informado a vocês. – E cadê a solução? Vamos sair daqui mais confusos do que chegamos. – É poeta o rapaz, disse Seissão. E Dino Trog acabou: – É poé é poé é poé... Todos concordaram em que se tratava de um acabado charlatão. – “Que é futuro? Astronave? Favela?”

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primeiro porte

o filho ou o pai contudo chamava-te como ainda te chamo (além, além do amor) onde nada, tudo aspira a criar-se. O Filho que não fiz faz-se por si mesmo. Carlos Drummond de Andrade

Chegado em casa parecido quem pisou antes uma fez. Nem pisou. Não. Sendo só pés tapeantes no tapete, feito temente um sujo depois demais feder. A roupa amarrotada em ônibus: hiperlotação. Dedo filósofo na venta, de exato combinar com pés rascando no capacho e a malpergunta do chefe-de-seção pendida gozada, brincos, de urucunzados orelhões. Demorou, quasentrou, entrou. Cabispenso no até que gancha gravata, paletó, no cabide (de pé e espelho) antigo, da ante-sala. Depois, de mandado para de mandão virando a feita cara, do espelho conhecida (agora). – Mulher! Tou com fome. Dia duro na repartição? Trabalho, nem tanto. Mesmo nem. Somente a repergunta do chefe-de-seção. – Meleca! Sem água! O chuveiro só estando de safadeza. – Logo agora! Logo hoje! Um banho de ao menos fosse alívio; limpidez. Gadanhou o chefe-de-seção, esganou goelas superioras dele: Sabão – escorreguento, brancoso, espumiço, escapulindo de assassinas mãos, tomba ribombo, 33

derrapa por planos, rebate recantos, refugindo do homem nu, grotesco no perseguidor da irritação. Dominado sabonete, o homem se alevanta; mas lá vem torneira, esperando o cocoruto semovente, estática, virada repressão: choque seco, agulhado, doloriço... – Put-q-p’riu! Vai dar azar assim n’inferno! Não-tenho nã-tenho e n-tenho. E daí? O chuveiro respingou as uma-duas-três gotilhações no subcangote imisso. Depois deu água, engrossou mais, deságuas, forte. Sorte, muita sorte. Barba, se fazendo a gilete usada, um cada fio que rola em semisom de palavrão. Pensa: “... no fundo tem razão tem nada demais perguntar final de contas três anos e nada...” Nem que ousasse, de contar. À mulher? Conversas essas tidas por respeito. Se ele, o culpado? Se não? Se? Pois-que não, então. Calar: melhor. E pensador: “... mas falo porque falo que eu seria até tãozinho de bonzinho que até juro e ele no igual pra mim que tá ficando chato que de manhã eu volto no doutor...” Depois gritou: – Puxa! Tou tendo sempre que esperar? Uma porção? Tem duas horas digo: tou com fome! M’rda. A mulher espionando de banda, abeirante, desinquirindo motivos: “...coisas da repartição que quando-quando isso assim de chegar vomindo as tripas...”, quepensava. Disse: – Que isso, filho?! – Filho. Quês filhos? Remira-quemirava pestanas próprias, ele, envendo culpar a outra. Redizia: – Filho. Filho. E a mulher: – Que que houve? Lá. – Olha mulher, o chefe perguntou... aliás disse... sabe? Até me elogiou: meu relatório; aquele que. Muito cordato o Seu Marcílio. Muito igual. Me trata como filho! O chefe-de-seção? mais novo até. E até solteiro. E o homem se sabendo, bem-bem, sem os olhares assins dessa classe. Mas teve a 34

pergunta. Perfeita a gozá-lo, decerto. A ele, chefe de família. Chefe. Ali, mínimo, chefe. – Anda! Anda com a sopa. Tou com fome, eu já disse. – Quê que foi? – Que foi quê? Fome, claro! – Não, meu filh... – Filho uma pô! – ...que foi que perguntou Douto-Marcílio? – A sopa tá quente. Muito quente demais. Assim me queimo a boca. E coragem? Nem podia, se que não devesse: dizer. Mesmo porquanto não humilhasse a esposa. Se ela. Que. “...e pior muito pior se for eu...”, que pensou. Que ainda não pudera, nem querendo (ou quisesse?), devoltar no consultório: lá ido motivo de pesquisas. Voltara, ela? – Perguntou se... ãh, sinsinsim ...: se não temos ainda: filhos. Só. Nademais. E ele tem coisa com isso? Pigarros, a mulher. Colher calhou falir simulação: tinir no prato, tlim, de desmaio, ausentante queda. Começou comprido meiosilêncio, avolumado em peso, sem preciso fim. Como dizer? No nãodizendo? Houvesse, ela, dever?: – O médico... hoje fui lá. – Nele? – É. A dor-de-cabeça não passou e... E... tou muito também... gorda. – Ãh... tá gorda ... ? – Não. Nadisso. Regime. Preciso. Ele disse. E eu vi os também resultados... dos exames. O homem, puxetando, no embaixo da mesa, os pernipelos, tremoroso unquanto. Ora decisa?: a saber? Tomara a mulher culpada. Que não ele! Deus! – Não zangue. (Ela é quem arrisca). Ele disse do curável, tais vezes. – Daí? – É você. –? – Estéril. Um tiro: como se. 35

Reflexo em seu copo, na luz e nas cores, com som de seu sopro siflado no ar – o risoinho (cordato) do Chefe-de-Seção: ss...ss...ss... Estrupou o chão no copo. Refugiu amárgoas no banheiro, lavando muito a cara no branco da pia de água-fria fria. O pijama demolhado total. Chora junto, portando-se bebê, melado de gosmas e da branca e da parda e a da cor de açafrão, cachoeirante esregrada e na cara e no peito ao seu ventre e ao joelho enfincado no chão: – Não! Nãozinho! N-nã-nãao!

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domingos % Se não fosse pelos meus pais, há muito tempo eu me teria despedido. Apresentava-me diante do chefe e, de alma cheia, lhe teria feito sentir meu modo de pensar. ...Quando eu tiver reunido a quantidade necessária para pagar-lhe a dívida de meus pais – uns cinco ou seis anos ainda – não há dúvida de que o faço! Gregório Samsa, de Kafka

À vontade na engonha. Quiçá que esampado, ele a tinha, de invejantes do pai. Sentou na poltroninha, de madeira-e-palha, do alpendre, lambendo em olhos, boi, o sócores domingal. Na serra frontiça, se baseada a estatuinha do Redentor: um Cristo desenorme de cimento-em-ferros, por muito felizmente armado, grato, em altura e longe, minguante na distância, virado minúcio, minorado do iminente cru de megalito humano, com a cruz braçal do largo gesto, desarmado, ofertando a turistas, que talvez na barra, a bonitez mais domingueira da cidade. Porém: A Serra foi vigando...ando, só o Cristinho aparente se restando, miúdo, no lá-longe, se afastando. A serra abofava (ele) Augusto, que o nome era de grandes, historial, bem-soante. Demais (que) tinha, no peito, torrenciais de bravilustre sangue lusitano. Era feito um rei que estava, no trono-de-palhinha dele, os rebarbos brancalhões de sem sol: queném Rei-Zulu de ao contrário, fotonegativo. Ensaiou repensar na vida. A que levava não: a que tinha se prometido, não chegada. “Eh! Tudo virado Domingo!” Rascou os cotovelos, ronchos repetidos no balcão do dia-dia. Intuiu praias do outro lado, por trás dos edifícios, convidantes. Mas, de ir, fossem muitos trabalhos: se arrumar, pegar calções, toalha – e o carro velho, todavia conservado, lá embaixo esperando sem-fim-mente o 37

dono. Depois, esfurar a porção de ruas cheias, de sol, de gentes. Balroar nos demais (como não-ele) felizolhos como os de moças de chorte e tiracolo. Tremelicoso delas, sempre, meio queném cãozinho novo ou, mais, gatorro. Olhou, de carinho, o carro auto-imóvel, ficando olhando cada vez mais, terno, se como a pai, se a filho, fosse. Tradição dele era o carro. Mesminho deixado pelo defunto do pai, e que a mãe repunha honor de conservar. Ele próprio, mesmo, amava-o sem por-quês. Amor com apesar: que vária vez requereu trocas. Duma feita, só quis a banda-branca, nos peneus. Mudanças, modas. Que o carro se pusesse, de assim, mais anovado, idem, mais fazendo o sério, com linha, mais parecença ao dono. Ele, fundo siso, raso riso, mais garantido de usar a caratonha, rugal, severa, que nele cai tão bem! A mãe, não, vetou: “Muito caro! Esbaldição!” Augusto veneteou de sair. O carro estremunhoso, por parado a semana. Tinha que ser gastado um tanto e quanto aos domingos: mesmo porquanto não apodrecer, no aço das vísceras, por inação. Mas dava os trabalhos: fazer barba, meia hora exatinha no espelho, se vendo espe(ta)cular, metículo esfrançando também um cada fiozinho do bigode reto espetado que nele cai tão bem! Demais, carecia conservar o carro. Apesar que era proprietário, daquela casa cara, bem mobilhada, uns dinheirinhos de banco, coisinhas, terrenos de construir, bazarucos, nugas porcarias, carecia manter o carro. Principal. Nenhuma caução nas cotas, tidas do pai. Sociedade Anônima (que se pensa a tempos do pai) é carta anônima: não assevera, desconvence, vence. Por issos, tratar o carro, carinhá-lo. O gerente novo rompeu, derrepentino, dum casamento suspeitável de insincero. Tomou tudo: Lugar-Gerente, liberdades. Tresmudou de tudo, dismexeu tudo, mental confundidor. Invocou, de porcima, haver-se direito em permutar Augusto do seu posto, debaixá-lo do lugar sustido desde os tempos-dopai – um também cofundidor, de entre os primevos em firma – injusto, sem consideranda, vocando chonga ou menos à memória privilégia. Guardava o gerente. Tratava-o?: Bem se davam? Se visitavam; retangular cortesia. Mas, e porém, cuidoso. Mantinha as todas máguas do gerente, moço rapaz, rapace, só tantinho mais velho que ele próprio aos trintequantos. E resguardava. O gerente sabia de um tudo, que o tudo lidava. Sabia bastante trapaçar, querendo. E, para Augusto, era como se – o iníquil. 38

De uma feita, contou, de dedo, apojaturas de martelos e canetas: homens de oficina e de escritório, em menos grado com o gerente, e menos grau na firma. “Então?”, quediziam, “Teu pai fez isto aqui! Invoca os direitos!” Mas ele, nem não. Nem rebulia que não fosse por só dentros. Não em via caber chegar dizendo, “os direitos”, nas caras dos todos, do gerente próprio já meio desconfioso dos cochichos, cujo, que, por desbancar, mesmo pegou de oferecer o posto a quem melhor empresa lhe pusesse, lembrando as esfalfas do mando, e o responsável. Ninguém se meteu. Nem o mesmo Augusto – sobrenunca! – tão desmotivado de empreitadas. O outro, ronho, excolejado na pragmática dos macetes senvergonhas, no puteoso cotidiano. Ele?: não. Que desarrocho, à noite, entrado em casa! Lá, a mãe. Viúva. Velha quase. Seu pai, um morto. E a ele, filho, cabendo festelar-se nas encômias: substitudo, no lugar augusto, como o próprio seu nome, em casa e à mesa; a cabeceira e os tratos de Chefe (de família) sem descômodos de prole. Verdade que, à vez, marcável de raro, litania: a rabugem da velha, muito mãe, ucha e caturra, constante sensitiva das mudanças, no seu filho, dos humores. E as semprevindas recriminações da estúrdia da bondade, de não empecilhar as hajas do gerente, as viltas do patifo – valendo esse eufemismo (bondadoso) a pecha de covarde. Mas toda a falação, talmente abocabaque, antevinha aos elogios dos valores – nunca por ele Augusto se exibidos a quem fazendo os olhosde-desver. Modesto e abobarrado menos fosse: e o alicantino do gerente e semi-primo o havia de somar na conta merecida. Que lhe amostrasse, então, com quanto ventos se fabrica um bom tufão. Tudinho aquilo punha Augusto a, contristado, requerer que abandonassem aquele assunto. Que chegasse-cheg-asse-che-gas-se! Condescendessem, ali, seu belsossego. Que não lhe dessem cordas na memória... Etc. Se lembrava (de ab-início): renunciou escolas, de desejo espontâneo, mesmo em desgosto do pai; no dizendo como se queria, solto, delivrado, se mantendo, mantenedor, namorando sozinho – sem os dinheiros do pai porseguindo as hajas dele, pagando os engambelos de mulher. Agora, confesso de errado – tarde. Porém, mesmo, tomou matrícula, na Escola de Comércio, de uns tempos, recente, vendo pôr debaixo o gerente. Ser contador: gostava, saía até adevogado. Frequentou lições – dois dias. No de três, sobreveio a rebentina: aquela, de sem39

saber. Careceu férias. Se tratar. Foi no médico, historiou a tontura, o sua-frio. os treme-lhe-ques do corpo todo, sem porquês. Largou tudo denovo, de aconselho – e se curou com os remédios de embromar. A namorada agora estava longe: atrás. Àquele tempo, cartilhava no amor. Agora descobrisse que só si mesmo. Desamoroso, respeitando a mãe, franjando alguma simpatia nos colegas mais, carinhando o carro. Além, só Tereza só. Memoriou de a ir buscar depois (Tereza) da sesta de depois do ajantarado, por precisão e prometido. Ela: mais dos quarenta, ex-vedete do rebolado, agora funcionária. Só quem-quer, ou o-que, que ele tivesse, com-esperando a vida que se prometera: eterno domingo. Acendeu cigarro e decorou de comprar pedra nova pro isqueiro. Remirou a serra e xingou toda a ladeira do compromisso com Tereza. E o almoço, que demorando! Fomegerado, mudou-se para a sala, ligou TeleVisão. Muito olhador, sentado cambado em poltronão macio, menino, comportado: programa de calouros. Os candidatos vindo, a um-emum, com medo e desajeito, catando uma chancela, para as prendas da voz, num estro-pio de canção. Augusto pegou considerando o tal, compositor, um famoso, o chantre, ali feito imagem, bem na frente sua, entrado pelo fio em casa sua, com toda intimidez postado em sala sua, timbrando, chanço, no calouro, o-sim-e-o-não. “Bem que podia ser eu”, pensou. “Que até que eu dava pra músico. Ninguém não notou. Preciso é do comércio.” E tornou se aporrinhando com a subida da ladeira, pra maislogo, porcausa de Tereza. Primeiro, levar o carro no Antônio Português, o da garagem, que o mantasse, embuço e amado, múmio, até domingo que vem. Segundo, trepar ladeira, a pé, cherchar Tereza – ela: a cara pamonha sempre, sem compreender. Terceiro, para o cinema qualquer da Cinelândia, ver o faroeste de melhor reclame: adorava! De noite (quarto), se a gana desse nele, subir com Tereza em casa dela, se acoitar nas carnes velhas (quase), o tico ainda quentes – e se ninar, criançamente, ali nos forros dela, gozando o angustimorno de esperar: a vida mansa que se prometera. Desligou TeleVisão. Foi, no bufê, pegou de uma gaveta (a sua) a flauta doce, cromática, de boca. Sempre a tivera, ou fosse como se. Soprava-a, só domingos, no em-pré da refeição. Iniciou engrolante, das três que não sabia, em anos de exercício, a uma, a nênia, a mais molenga 40

melodia. Debruçado denovo, no paraventre do alpendre, remira-quemirando, leso, em idens olhos-de-sem-ver. Tocava, ou, sim, rerrepetia, a só melmelodia, disponível de sonho. Inventava, eidético, se-ver. Brancos Cabelos. Branco o também reto bigode, espetado, que nele cai tão bem. Viver somente ele: ninguém-ninguéns. Nem rebento nenhum (quantomenos dele), crianças, sempre obrigando os dendengues, não cabedores no jeitão severo que nele cai tão bem. Só uma empregada, de fornoe-fogão, cozendo, domingal, um frango todo-inteirinho só pra ele-só. Idem, talvez, um criado de quintal, tratador do sitiozinho nemoroso que ia, mínimo, ter. E uns dois cachorrões farejeiros, pra as caçadas de engodo – por desdoidar no estrupo de uns tiros, de alvos nenhuns, esfanicando toda em cada velha aflição. A mãe dá grito que a comida está na mesa. Augusto espertou reolhando à serra: tomou um súscito. Na mesa, principiou comendo devagar, zinho, chateando de o Domingo virar Segundafeira.



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o moço que morreu de piu Quem sabe, pelos tempos esquecidos, se as estrelas não são os ais perdidos das primitivas legiões humanas?! Cruz e Souza

As pessoas não morrem, ficam encantadas. Guimarães Rosa

Quando entrei no hospital, achei um homem, todo vestido, terno e gravata, sentado, junto do balcão da portaria. A ele me dirigi, não consegui resposta. Logo lembrei: num “hospital de malucos”, como se costuma dizer, todos, eu inclusive pois estava ali, tinham que ser suspeitos de não serem proporcionais a nenhuma perspectiva. Entrei, entrei, e mesmo por mim achei o doutor, amigo meu, a quem viera visitar. Sobre o homem de lá, da portaria, explicou-me o doutor: manso. Muito manso. Não causa mal nenhum. Acredita é que já morreu e, muito logicamente portanto, não pode falar com vivos, a não ser que sejam médiuns, reconhecidos, como eu. Vamos ver. Levou-me ao homem, me apresentando: famoso médium internacional que com ele desejava contato, para ao mundo relatar. Pediu-lhe, demais, que tudo me contasse sobre a sua morte: detalhes do fato, causa, e significação. Ouvi: – Anos atrás, eu era vivo, como o senhor. Eu era professor. Passei a vida querendo saber línguas e, de certo modo, consegui. Eu cheguei a ler dezesseis, falar nove e em sete eu podia escrever: esperanto também. Enquanto isso, eu punha no meu magistério de Filologia-eLinguística um carinho especial. Eis senão quando, eu resolvi comprar um gravador de som, coisa nova e cara àquela época, para melhor pesquisar. Minha morte começou com o gravador. Horas e horas eu passava gravando as falas das pessoas, por questões técnicas com as quais eu não pretendo aborrecê-lo. Até que, um dia, achei de gravar os 42

pássaros. Morando na cidade, ali pela Marquês de Abrantes, no Rio de Janeiro, sempre me impressionou como podia, entre aquela zoeira de carros e de bondes, acontecer que toda tardinha, exatamente antes do anoitecer, as árvores da rua pudessem ficar lotadas de tantos pássaros muito bem audíveis por cima dos motores, das buzinas e dos freios. Eu dei de gravar. Até então, cheguei a acumular dez ou mais rolos de fita com aqueles chilreios. Não sei por que – eu fiquei obsessivo. Um dia, o gravador se estragou: foi baixando, baixando a rotação e, numa baixa ciclagem, estacionou. Os agudos trilos engrossaram, se esticaram. De início, eu não liguei. De repente é que eu notei no acontecido e me pus a escutar: parecia voz humana, falando, falando, falando em multidão – mas eu, não entendia, não era uma língua, não podia ser, era só impressão. Mas aquilo me conturbou. Eu passei a ouvir cada vez por mais tempo aquelas fitas, em baixa rotação, e a gravar mais e mais, mais e mais a escutar. Eu aproveitei o acaso, tão efetivo em tantas descobertas da ciência: mandei que um técnico modificasse o aparelho. Eu queria ter qualquer velocidade de rotação, conforme necessário ao meu estudo. Um dia, o senhor não vai acreditar..., manipulando propiciamente as rotações, eu notei repetições, redundâncias, flexões, parti para a pesquisa das possíveis articulações. Muito em segredo, eu contei apenas a um colega meu, de profissão, hoje ainda entre os vivos e famoso gramático do Brasil. “Deixe de tolices. Você está ficando maluco?”, foi só o que ele teve pra me dizer. Eu desisti de dividir com alguém as preocupações. Eu segui sozinho, como sempre mostra a história do saber, o meu trabalho de desbravamento, em solidão. Em sete meses, eu já tinha um glossário, algumas regras gramaticais. Era uma língua, meu senhor, uma língua. Estranhíssima. Talvez a mais exótica que eu já vi. Mas uma língua, formal, da mesma ordem que a da humana falação. Eu não nego que fiquei assustado, mas eu não me acovardei. Eu segui meus estudos. Em onze meses eu já podia traduzir (não sei se devo pôr aspas nesse traduzir) para o português a maioria das conversas que eu pegava nas fitas, as fitas que eu agora chamava: o meu alçapão do saber. Ali eram ditas coisas incríveis: considerações sobre o espaço e o tempo situacionais, observações agudas sobre o panorama da região, comentários, posso dizer que analíticos, sobre os humanos que passavam e, até, eu cheguei a perceber certas frases, ambíguas, mas obviamente a meu respeito enunciadas, talvez por um 43

grupo desses pássaros que sempre ficava no galho bem defronte da minha sacada; frases que, eu confesso, várias vezes me fizeram corar. Então, cerca de cento e oitenta e tantas fitas, cinco grossos cadernos espiral com minhas traduções, e muitas notas, já fartavam meu pensar. Mas havia um mistério. Depois de ano e meio de estudos, eu já podia traduzir quase tudo, coisas de estarrecer, mas, por causa de dez palavras, ou não sei se palavras, cujo sentido, por mais que me esforçasse, eu não conseguia pegar, todo o restante das notas ficava comprometido, ininteligível, ilegível sem essas unidades, aliás pouco redundantes à primeira vista, mas que pareciam conter as chaves do sentido geral. Num dia, por essa capacidade intuitiva que se chama inspiração, cheguei a encontrar o significado, acho que correto, de seis das expressões. Foi um assombro. Este achado, embora incompleto, me permitia agora ler o texto inteiro com outra compreensão. Entendi partes confusas, precisei frases menos ambíguas. Isto, aliás, é forçar a expressão: porque naquela língua as coisas se diziam de modo tão estrangeiro, que em português as frases, traduzidas, não eram português. Por exemplo: “as azuis são bilaterais totais; as verdes são e não”. Que queriam dizer? As quatro que faltavam é que me mantinham em confusão. Um dia – este foi o terrível dia – eu achei a possível solução. Eu compreendi que as quatro que faltavam eram o núcleo de toda a questão. Nenhuma delas, uma vez isoladas das outras três, mantinha própria significação. Assim: para achar o sentido de cada uma, eu teria que armar uma difícil equação combinatória, a qual me daria o intersentido e o sentido individual. Supus, de imediato, e desenvolvi duas fórmulas possíveis. Sabe o que mais? Ambas conseguiram funcionar. Todo o texto começava a ter razão. Mas havia duas leituras possíveis, pois, como eu já lhe falei, ambas as minhas fórmulas funcionavam. Isto é que me angustiou – cada vez mais. Se eu lia com base na primeira, o sentido era todo, digamos assim, positivo; se eu lia com base na segunda, era negativo desta vez. Fiquei perplexo. Ali se diziam coisas terríveis – sobre os homens. Pude isolar, em meio à tremenda confusão dos chilreios, uma pequena assembléia que discutia justamente, sabe o quê?, a nossa linguagem. E diziam: que o homem parecia condenado à não-salvação por precariedade de sua língua, por incompetência no falar. Ou, se tomada pela outra fórmula: que o homem estava salvo de condenação, por possibilidades de sua 44

língua, pela competência do seu falar. Ora, qual dos dois enunciados deveria eu escolher? Num outro trecho, diziam: que os homens são como planetas num sistema solar; são absolutamente isolados, a não ser pelas leis gravitacionais que os mantêm aproximados, mas sem qualquer possível comunhão. O que, pela outra fórmula, seria: que os homens são as leis do sistema solar composto por suas aparentes individuações, portanto eles são a comunhão e não os planetas em sua irremediável separação. Qual escolher? Minha angústia crescia, crescia, e se tornava insuportável. Eu julguei, então, que dada a imensa quantidade de material e de provas que eu conseguira acumular, eu já poderia falar com alguém a respeito de meus estudos e do meu achado. Alguém capaz de me entender humana e tecnicamente e que, assim, não me deixasse sozinho na minha aflição. Levantei-me da minha mesa, de sobre a qual eu havia retirado o telefone, porque nela já se acumulavam o gravador, dúzias de rolos de fitas, resmas de papel almaço, muitos cadernos espiral, maços e maços de cigarro, cinzeiro abarrotado, e um galão do dissolvente que eu usava para manter limpas e perfeitas as minhas preciosas gravações. Fui para a mesinha ao lado, onde pusera o telefone, e disquei. Disquei para a casa daquele meu colega que de início não me quis ouvir sobre as incipientes pesquisas; mas, agora, ele não teria por que duvidar: eu podia provar. Alguém do outro lado atendeu. Era ele. Eu falei. Falei, falei, acho que falei várias horas, mas ele não queria entender. Falou novamente de doideiras, impossibilidades, alucinações. Foi nesse momento que eu quis provar. Disse isto para ele ao telefone. Disse que eu ia provar. Que ele esperasse só um minutinho. Que eu ia pegar uns papéis sobre a minha mesa, e para ele ditar. Eu alcei a mão, apressado, nervoso, naquela direção. E foi aí que aconteceu. Minha mão esbarrou no galão do dissolvente, o galão virou, estando aberto derramou, nisso que também bateu no cinzeiro, onde havia um cigarro aceso, o qual cinzeiro emborcou – e foi aquela explosão. Larguei o telefone e tentei qualquer coisa, mas tudo eram chamas e mais chamas e, em breve, o quarto ardia e eu sufocava e desmaiava pouco a pouco e caía e tudo se consumia, meus papéis, meus rolos, meu aparelho, minha mesa, o quarto, e eu também: eu morria. Assim morri. Agora, veja o senhor como funciona a mente humana querendo sobreviver. Enquanto eu morria, morria sufocado e queimado, mais sufocado do que queimado, pois na verdade não me 45

lembro de dor, minha mente funcionava fingindo a salvação. Era como num sonho. Eu sonhei que eu gritava, que me ouviram no apartamento ao lado e que também gritavam, que eu tentava fugir e eu conseguia chegar à sacada, que os outros me ajudavam e que eu saía, ainda capaz de, mal em mim, poder vislumbrar, meio de lado, que todo o velho casarão se incendiava. Mas o que sobretudo a minha mente pensava, o que quase só pensava, era nos meus rolos, nos meus cadernos, nas minhas notas, a obra de minha vida, da minha vida sempre e até então sem nenhum bom sentido. Veja o senhor. Passando por debaixo daquelas árvores, alguém como o senhor, sem as minhas preocupações para com as línguas, sem as minhas incertezas sobre a humana fala, esse alguém só teria pipilos. De muitos passarinhos, só conhecem, mal e mal, o seu pio: piu-piu-piu sem sentido. A mim, a sua língua era revelada: revelação que eu decantara nessa obra. Aquela obra cuja morte me doía muito mais do que a própria morte minha. Só a este ponto, e não ao incêndio, nem à minha morte física, só a este ponto minha mente retornava, só essa perda, enquanto eu ali morria, minha mente fixava. Foi assim. Eu já lhe disse tudo. Agora eu posso ir. A paz de Deus seja convosco, irmão. O maluquinho se foi, e eu fiquei por uns momentos em silêncio. Depois é que me veio a questão – que passei para o doutor: – Então, perguntei. Se ele acha que morreu, que justificativa ele dá, para si mesmo, por estar aqui? Quanto a falar comigo, está bem. Ele assumiu pareceres espíritas. Acha que sou médium, que ele é um espírito. Muito bem. E quanto ao hospital? – É muito fácil, me fez ver o doutor. Ele era simpatizante espírita antes de “morrer”. Leu muita coisa, como diz. Cita um conhecido Xico Xavier, médium famoso que “psicografa” livros vindos do além. Fala de um tal “Nosso Lar”, que desconheço. Lugar, segundo ele, onde, após a morte, os peri-espíritos doentes, ou sofridos, são tratados, antes de reencarnar. Acha ele que este hospital é o tal lugar. Foi assim que aconteceu. Achei tudo muito estranho, mas normal. Afinal de contas, eu estava num hospital, de malucos, como se costuma dizer. E lá se tem o direito de ser louco, corretamente, se é que se tem. Só lhes conto o que contei, porque, afinal de contas, sou médium, como se demonstrou e, como tal, não faço mais do que cumprir obrigação. 46

Aliás, há dois dias, telefonou-me o meu amigo doutor. Pediume que voltasse ao hospital, pois meu amigo “morto” deseja um contato com os vivos, pois acha que, talvez, ele esqueceu de me perguntar, talvez eu seja médium-psicógrafo e possa receber, por escrito, sua “obra” sobre os pássaros, ou pelo menos o que dela consiga lembrar. Muito bem. Irei lá. Deveres da vocação.

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padre ramão O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. Riobaldo O único comentário que poderia produzir um puro leitor, e que o restaria, é o pasticho. Barthes

Pois tem ruindades na gente que nem não se podemos maginar. Ora veje o senhor – que o pobre do Padre era bom-homem. Se a caridade é dar o sôbro pondo no feito propalação; isto ele não era não. Que pedido, infazendo o rogado: declarava de-direito a pedição. O que muito repetia era: – “Homem não roga”, ele dizia. “Pede é por precisão. Ninguém retira dos outros de prazer; porque é pecado. Mas quando o necessário, se tem que requerer os dados. É nisto que a gente são irmão.” Assim falou com nós de alguma feita, ni quando a nossa mãe cozeu de cama um mês inteiro, em antes de se ir de vez. Doenças misturada. Era uma pena de ver a mãe da gente: completa entrevada: escarótica: gemendo a isquiagra: uma tossura enxuta, só botando à vez um catarrinho que não era gripado; o figo estramonizado pojando fora; e obrando preto, custoso e em mau perfume. O Padre dizendo que ela havia-se de sarar: “Padecimento assim gente boa não tem dever de obrigação”. Porém, profundo se estava vendo: ele, provia outramente – botava cara preocupada. De corrente risadonho, que antes era, não se guentava em quantos dente dejunto da velha nossa mãe. Olha como essa gente não são ruim! Competia de audaciar um aquilo com o Padre? Sendo que ele puxava cada dinheirinho, de seus próprio, pra melhora e conforto no fim da nossa velha? Cuja, ele, em via morrer completa breve, só não narrando a nós senão p’os olhos. A velha dava ele por santo: e era do assim, bom mesmo, eu acho. Não fosse vestidura de batina, catecismo de evangelho, só. Era além do bom de gente bem nascente – dom. Porcima, 48

cartilhou rojado, industriou de viver, perviu os em-verdades-vos-digos original. Se via: ele sofria agora ali, com a gente, e muito dantes, de si. Não sofredura se sutar coração. Não. Contrário: mais que bom ficava o Padre, quã mais rojasse, ajunto ou separado, os contratempo. No-que, presenço, acrescentava a gente, cordial: nossa dívida é o perdão de nossos devedor. Mas era bom-vivão: alegria, era ali, ele. E prazeiroso. Não dessem testemunho que, por todo praticado Padre Ramão não espalhasse muito gosto. E satisfeito, no fim, é que era de ver; que, ele, ficava. Com tudo: tudinho! No aí é que reside perdição. Desperdições. Há o demo. Conheço ele, eu acho – na gente tem ruindades que nem não se podemos maginar. Ninguém quer gente boa contentada. No que reparam de molho as barba do vizinho, já tão se dando que as próprias tocha a arder. Cujos que dá, dadiveiam do seu dentro, ou do de fora, deviam de ser carrancas, famosear de não botar sabor na vida, maldar os prazer, fazer o sofredor. De ao contrário vem invejas volumosa, bocas bicuda de malfalação, sobróssos, raivinha dos jeitos anverso, milimplicâncias de infeliz. Mas, Padre Ramão, não era. O contente era ali. Dava um gosto de ver, ele comendo, tungando nos vinho da missa os poucado benfeito da Nhoêmia cozinheira dele, benfazejos bom-bocado. Mas ia lá, permita só pel’exemplo, o senhor, contava, bem no pino da janta, que tinha uma fome – inhanha de não ter o de comer, nem o pros filho, no baldonaipe ao-despois da penúltima safra de cana, no desemprego. Padre Ramão freiava, defastava a louça, franzia enjôos. Decretava-se de satisfeito cheio. Rezingava do apetite, resmonhava. Punha o senhor na mesa, comer o boião no lugar dele. Só, por despossível de possível, não excomesse o comido, mas que, vontade parecia dava nele de fazer, podendo-se. Mesmo eu – nunca fui com tanta missa, quanta igreja – só fui conhecedor de Pad’Ramão nas festa de batizado de Alei, o meu sobrinhozinho filho de Man’Osvina mais meu cunhado Carretão. O Padre era padrin, demais de oficiante. Aliás padrinho muito sempre, de demais muitíssimos filhado, de do-outro-lado-do-rio, os filho de todas quases pobreza dessa banda, de cá, filhados sem-tostão. Zé, pelide Carretão, vive té hoje de tocar os boi da sua carretona, de ele entregar cana cortada nas moenda. Tudo que coube de pegar, quase menino, depois de morta mãe mais pai morrido, foi o carroção, com essa parelha 49

de canga, com também a freguezia de entregação, ambas que Zé labora no até hoje. Por assim, Zé é moço pobríssimo, aliás conforme honrado, só guardando de sobra, do que gratifica a dinheiro, os três troco que arrebanha, pra ao caso de um zebu de seu lhe faltar, poder pôr côbro nele e rejungir o ajoujo: é a mão-na-obra dele, os pães do cada dia. Mas, porém esse até minúcio capital de separado, pra as arma de trabalho, Zé teve de soltar, no parto do menino-Alei quando nasceu. Doutores destas banda se-apresentam que todomundo de daqui são fazendeiro. Não botam sopa de colher pra ninguém. Preá que esquece o mato é jantarado: e debitaram de Zé cada artimana que ousaram naquela mulher dele, promode o filho a correto nascer. Foi nesse assim de ocasiões que eu primeiro escutei constar Padre Ramão. Que o mesmo, dia supresseguinte do natal de Alei, conforme discorreu-me Carretão, estacou, num derrepente, o motocicle, todo enlamado, na porta da palhoça de Zé; levando auxílio ajudal de dinheiro, poção, comida e reza. Morava Carretão, que-nem té-hoje ele mora, pra aqui na Cidadede-Palha, esta vice-cidadinha da baixada, treslonjura de apé, cá, d’outro-lad’o-rio, nomeada assim porcausdequê dos casebre – conforme é de sopapo e sapé. Mas a bonzisse do Padre era a mais, maior que o destamanho do estirão, mesmo de motocicle. E não era pouca vez, no motivo dos pobre de Guarulhos, ou mais de longe, que ele rompesse o Paraíba pela ponte de pau. Não sabe aquela que o senhor veio?, de trem?, feita de ferro?; pois é aquela não: a outra de pau, mais sul; sabe? Bem: rompia logo ali, na cabeça da ponte, basta alguém precisando. Só se esperar, de longe olhando, e ele brotava, a cavalo, no motocicle, poporòporôpocando, o avisante motor mais seu ronrôco desaguentando o Padre pesado, a garupa rompando, que apimpada de quitandas para os pobre. Não era homem de se favorear com voz macia, cortesia. Nem que valesse adianto lhe fazer os cafuné dos muito-brigado. Cometia, o cada, de feito total, dom de obrigação se tomada de empreito, querente e querido. Por assim se quando um os dado dele recebendo, não se metera de muito agraciado: lhe enjoava. Ele se punha alegrável mas era se um dono de casinhol daqui, seu devedor acaso, dele se reconhecente de obrigado, ordenava pra a mulher lhe preparar algum quituto: franguinho-de-leite, tofraco, caça de paturi ou queroquero. Que ele vinha comer ali-mesminho, ingurgitoso irreplegível, sentado igual que a gente pelo chão. Era sem luxos, que afirmava-se. Questionasse, era 50

de comer alimpo e benfeito, nem se, que sendo, sem talher – ia mesmo de mão. Gozava com os prazeres corporal: boa janta, boa cama, bom cavalo, boa pinga, piada boa, banho de rio, motocicle, e os demais. E mesmo de mulher, pois muito natural, que homem era, como professavam, no todo respeito, a sério, a povoagem de Guarús. Alguns filhado, boata-se que eram filho; mas isto fosse exageral maganagem, bem talvez, de bocaquente gente tamanduá que não repara o próprio do focinho. Ou vá que fosse? Não se vivia, quanto zinho, quase às custas dele? Filharia assim de pobre, e ele ajudando? Que que tem? Não sei. Não sou de religiões, senão da minha, e raro julgo. Quero ver homem, gente ermana, companheiro cidadã. O resto? Me se dá... Cada roca com seu fuso; cada homem nos seus uso. O senhor, nem eu, não vamos tirar disso daí que ele agisse o benfazer na coita de bonzinho, ou nas custa de coonestar. Acho que é porque não punha medo, nos perigo, ou perantes de más maquinação. Exemplo? Lhe conto exemplo, faço alto, amostro fato, separado. Os fio põe depois; ajunta o senhor. Eu queria dar era retrato, desenhado, com todas linha não igual. Misturo? Acha? Não? Eu falo assim, releve: não sei reto e seguido. Não sou escolar. Que mundo é bicho complicado; e nós, multiplicado. Não aprendo ajuntar. Mostro espalhado: exemplar. De acaso: Moreira-das-Chitas, o empregado mais velho da cidade, quarentano de casa, posto que dês quase desmamado, pichote, vigelabuta no meio daquelas peças de chitão, Moreira, reconhecido mais na loja que o seu dono próprio, invocou, de se não saber comos-quês, de escafugir cá desta prá melhor. O senhor entende: nem só de sem pão morre o homem. Dona-Rosa-Doceira avisou – e o Pad’introferiu. Desbostou nele aquela espinafra brabona, discursal, pregador, falinfalão brigoso, que narram. Alguns constróem outramente, que até força lhe encostou. E o Moreira-das-Chitas, nos arreceio de muito de mais tomar do Padre, nem mais matou-se: nunca mais. Nem era de menos. Fosse, aperdoe o comparo, que o senhor conhecendo os peso daquelas manopla forçuda? Que mãozonas ferrazes! Dona-Rosa-Doceira, patroa do salvado, dizque inda té hoje, ou quase, ainda mandasse, de agradecer, agradar, religiãomente, cada domingo denoite, uma canjicano-leite, completo cheirosa e alvejada, feita fresco na horinha, pra a ceia do Padre salvante do marido. Mas o incorúbirúbil do Das-Chitas, dele não gostava. Até, falo baixinho, me mande, ao pé do senhor seu ouvido, chamava o Padre fedaputa; curtiu rancores, lhe punha um ódio 51

que só vendo. Dá-se... Eu, não sei. Comigo, nunca tive uma justa com o Seo-Padre. Só via ele de vista, escutava era contarem, mas sem aviver. Mas, também lhe parece?, o Moreira não ligar da mulher dele DonaRosa, filhame, netume, dar aquela de artista, de biruta, ou de sei lá? – não é que merecesse mesmo umas chamada? Então ele não era seguro? Todo estável? Se fosse um zim de nós, vá-lá! Quantos anos de casa e com instituto? Até se aposentar ele podendo? Como é que ia constar com o mau exemplo? Pode? Aí está. Assim, conforme consagram, como também foi com a caçula de João-Pemba, aquele patola desengraçado de vasta pobrez. Este eu bem conheço. Jã-Pemba vive a noite acordado, alumiando, na sua lamparina carbureta, o porembaixo dos trem da Leopoldina, na Carangola lá, repondo a alguma falha, desarmando o algum defeito. É homem por demais preocuposo, e parlapato, danado de mentiroso, e preguiçoso, muito fornecedor de filho, que é um de em ano a ano, instante açodado nas falha do dinheiro, endividento. Jã-Pemba é muito créu de mandraqueira: credita as coisa-feita, faz mandinga. Apesar que catimbau, diz, tem medo-que-se-pela de vistoriar os trem nas pernoite do emprego. Diz: que já topou fantasma, defuntos morrido em desastres, que, até, assombração de bois mugindo as entristez, nos carro-vagões e gaiolas. Ora veje o senhor, que fés bocó! Por esses issos, tomava muitos pito do Padre, que o mandava mais na missa, sarar das inventice de pancrário e a muita lomba de acordar, de dorminhoco, cedo também nos domingo. Jã-Pemba punha agouro sobre o Padre. Não lhe achava macha virtude. O chamava de metido e de hipotrélico, dizia ter mais força com o outro lado. Que ele falava com as alma, e não o Padre. Que o Padre lhe tinha era inveja do poder mais forte, de religião. Que era é um rival de freguesia. Ora veje o senhor, dá-se, que um homem dado a exorcismar encosto, como afirmava-se, com tantos cliente, ou era que ele não falava com as alma cois’alguma, ou então que relatava medo no serviço com obra de sabedoria, de menos trabucar. Mas nem porisso o Padre não deixasse de amparar também os dele. Ver? Padre Ramão se estava, ia eu dizer, na beira-casa de Jã-Pemba, ali no Caju, jusaz do cemitério, zona de mato ralo emperigado. Lecionava alguém lá, Seimão Portela, eu acho, que me alembro que foi quem me contou, lhe instruindo uma abrição de fossa, com mais os demais vizinhos, pra o bem-ser das saúdes em suas casas lá deles. No meio do batente suado, escutaram, parantes, gritaçãozinha de criança. Correram lá todos. 52

Nem de menos não era: era cobra. A pequena de Jã-Pemba enxugava todos sangues, no apavorável, a vista trancando o medo, sapremada do bote. Os homens circunforam, pisa-quieto, mexe-pára. Até aí, pois sim muito bem. Mas, quéde as coragem? Ninguém não fosse? Nesse aí, Padre Ramão partiu seguiu de avanço pra a cobrona, no ajeito de salvar aquela vidinha de menina. Se o senhor pega epensar que foi bobagem, desdesengane. Desembucho: descrevo: não era cobrinha de brejo, de não meter os medo de arrepio, de com traulito penoso se acabar. Era, me dê ordem de franquia, demais de envenenada, bichona corpuda, serpente pirocona, corpo expesso, assim de grosso, com tesão de pôr de pé na arraiva do bote. Ninguém sabe os milagres: se hão?, não hão? Porém o Pad’arreitou-se e desviltou-se, as mão purinha, nem pau nem pedra. Quéde mais cobra? Matou. Pois tem bondade na gente que nem não se podemos maginar. Assim é dispersado. Volto atrás? Aqui até, contei bondades impertérrita: exemplar. Com isso vai talvez o senhor orçar julgamento. Homem de assins, concorde?, conclui ser mau-homem?, se esquecido de si, desvirado de avesso para o alheio do mundo, pensador nos outro, se dado, hipotecado por si às comuns felicidade? Por pois, eu não tinar como podem os terceiros, sujarem de fazer um semelhante aquilo a homem aquele. O senhor, primeiro, me absolva: se breco a curiosice que lhe incluo, desse ajeito de ver, é que reteso as rédea do desfecho. Sou divagão, digressiono: por questão de mais-justeza e mais-justiça. Sou homem evitador de garruchão na consequência. Eu, não empuxo, não açodo: vou lá, vou cá, permeio – de ao contrário se maljulga, se desverte a história, a convirtua. As malha de pescar tem várias linha; uma só não conjuga, escapa os lado. Que o Padre, por bem que bondadoso, foi homem bem posado, masculino positivo. No embora a fora se tornado, foi homem pessoal, de próprios vêres e querêres: não era desmanchado. Também politicava. Caso nunca se intrujava com a comarca, expunha ao meno atrás as influências. E era chefe de edis; dois pouco de um partido, chefe por fora, de só cochicha em recantos da igreja. Dava endereço às haja deles, em seções de câmara, quedizem, e a eles obrigava ser comparecentes, para o tal de aquóro, no afim de reclamar benfeitoria aos dele interessados. Com o prefeito de antão, se davam por compadre. Um bem também bonzinho homem, velho velhote intujuspético, barbicha no queixo, bigode na boca, me alembro, uma melena raliça, 53

tudo empratecendo, vestido fatiotal, muito lordez. Era doutor. Aliás da tiro-e-queda medicina, no só no que olhando já pondo e gnóstico, e portador de santos remédio, muito salvador de vidas, famigerado em todo aquele norte deste estado, recebendo atendedor as fila de povo na porta em casa lá dele, nos dia das consulta de-grátis para os pobre. Não tinha definitiva afastação: sarava os da própria laia, cidadãos, mas dava o sobratempo aos desprovido. O Padre mais o Prefeito – que dupla memorada destes povos! Se encangaram, resolúvel, de limpar o município, sarar as endoença, cinzentar unquanto os branquepreto, amainar as social-furunculose, que os jornais davam, fazer os curativo mais municipal. O pobrerio, mormente, lhes davam muita palma. Mas nem não deixava de haver os quiçá, os tudo-desconfio, acompanhando silente as manobra daquele governo, achando demagogice, soltando uma cuspada de nojo em cada agição de menoscaso aos eles, demolhando as raivagem nágua morna, até mais tida ocasiã. Estes, sendo, geral, mais pra havidas gentes, donos, demandistas, comprando caro advôgo de tiquinhas causa, contra pequenos, questã de terrazinhas, de pago de salário oprobrioso, demanda com posseiros... As doutoragem do Prefeito sendo assaz respeitosa para um alguém poder meter-se de achador de falha ou culpa dele. Era dono de nome de traditas famílias, de seclos antigo, incatucável, porfioso, manujugando poderes, na indobrável exerção dos seus mandado, no direito e na potência. Assim, os onzeneiro, não vendo de caberem chicanagem pro seu lado, intentavam de se ir de encontra o Padre: o coimavam de inverter a sueta sociedade, o pintavam de atazana do Prefeito, metediço em causa alheia, de pouco rezador e muito afoito em loisas do governo. Mas era? Acho apenas que o Padre só se afobava, de conseguir, era a vilazinha de tijolo e esgoto, de troca por essas casa de palha aonde a gente moramos pobrezmente. Se jurou de acabar com a Cidade-de-Palha; e neta edificar perfeitas mansãozinha de três cômodo, parecido lugar aonde mora gente. Atazanava, é que é correto, o bom do Prefeito, desejoso de pôr o assino dele no embaixo de acabado decreto sobre aquela obrinha. Mas isto não são bondades? Benfaturas? A não ser para arrazão de interesseiros... Se conseguiu? Nem e não – que já lhe narro, como visto foi, e será. Já faço velha idade; e dês de aquele tempo, de mocinho e menino, resido no aqui-mesmo. E o teto é palha: olhe e veje o senhor, com donos olhos. 54

Mas todo o assim não se vai de porcerto. Se são estórias? Bem talvez. O senhor nem nunca aponte a qualquer que o tudo eu lhe confiro desta estória. Se manjam de saber, sou capaz de dessossego. Se o tempo está corrido, na escrita, se passado, não eu estou, nem gente inda existente, interessados. Debaixo do cinzeiro, tuge brasa quieta viva; só chega um espano em cima, e o fogo – Deus’teja! – labareda reentonado. Desculpe arrojar: me invoca o que o senhor terá com o Padre. Parente seu? O senhor tem cara estranja, feito ele. Não? O senhor ri? Vai ver é de jornal?, adevogado?, da polícia ou governo?, questã de herança? Sei? Não quer não diga; conforme o senhor requereu e eu dei por topado. Mas a estória final, que lhe aprontou final eu digo, é que é que eu vou lhe amostrar: a ela nós vamo. Já. O senhor viajou, veio, mas não topou, de cá, ninguém de lhe contar. Mas, na cidade, o ex-Prefeito, ele entregou? Ah, bem! Lá ouviu de vário? Não sei se junta igual; faço que posso; só quase vi. A moça, aliás ex, ela, o senhor viu, de conhecer? Não? Pois bem: Das-Chitas, que era um que podia e sabia, e muito recontava, tem ano que morreu. Dona-Rosa se foi, morar com nora em Rio de Janeiro. Jã-Pemba, pilecado, o senhor diz que negou – foi assim: não quis no Padre nunca mais tratar. Carretão meu cunhado em casa não tá. De muita mais gente valia argumentar. De Zé-Jesus, MariaCostureira, Seimão Portela talvez, Dona Perpétua do leite, DadáConquem que é prostiputa, Zonô pedreiro, tudo gente de vida mais aproximada com esse Padre, por quadros que eu sei e que lhe narrarei, na hora que o senhor tem, se o tempo aguentar. Man’Osvina vem, liás disse que vem, depois, não sei. Em casa não estão. Só eu que menos sei. Mas é um papo a prazer o com o senhor. Ãhn? De nada. Obrigado eu. Voltando atrás porém: Naquela ocasiã, viçava aí a rôlazinha de uma filha de doutor da freguesia, sujeita muito afamada de formosa catitice, bruxazinha muito inha, de não romper calçada-de-passeio sem não botando em cabeça analfabeta ou literata a igualmente ideiosa safadez. Ofensas pensar que o Padre tinha que ser um capão! O troco da batina tem que ser uma irrisão? Tem? Salvar as fé, arrochar coragem frouxas para as glória de Deus, tem que ser por dons desnatural? Tem? Não sei. Divirjo. O demônio do Capeta é nas parte que reside, ou na caixa e coração, ou na bola e mentação? O senhor repare veja que homem resolvido é homem bem-gostado, descarregado, de alívio, e gostador. 55

Divinde, é catambuera: fruta gorada, imadurável, nem verde nem podre. Bem: A tal senhorazinha, por nome Don’Aurora, de fato era manhã detrás da noite. Bastável aparecida, aparecia, remarcada feito égua picança, soltando pirilâmpsias, os-inspirando aos todos, os expirando, redando as força-de-vontades, motivos macho. Dizque: era demais misseira, frequentadeira de altar, por flor e bordado, inventeira de quermesses festas diversã, muito doceira, e fabricando as costurinha para os pobre: caridade. Ali-vivia, afuçada na igreja, seu só divertimentinho, com as duas coleguinha mais dela, e com as demais velhona rezadeiras, arrumando invençõezinha de dar o algum dinheiro, que o Padre migalhava pra o ajuda-desgraçados. Na sacristia, arrumaram duas singer; e era um que-cose-e-cose o todo dia, com os paninho da chita e da flanela, do comprado e do dado, no resguarde do frio àquela deserdagem. Só do empório de Moreira, era dez peça de chitão por ano, e tudozinho em costuras fabricado. Ela, o senhor sabe, ainda existe, estando poraí – e que tudo do meu conto, sim ou não, lhe aprove ao senhor. E do muito que ouvi, se tudo não são verdade, meias-verdade devem de ser; que pois não dizem nossa gente que o povo aumenta mas não inventa? Tirando as acrescenta, muito deve de ter por debaixo desse tudo. Ela que fale. Ou desfale. Cuja que hoje é senhora-dona, casada e enviuvada, já passando por velha, mas todavia não perdida do belume tentador do Padre – que apontavam. Ela, são gentes de classe, professoreja pelaí, no liceu do governo, aonde dá as lição para os filho dos grades. Que-dizem: o Padre amentou. Pegou de forcejar meleza naquele ouvidozinho de menina, desconheceu-lhe mocice e familice, fazendo pisga das moral e mais-poderes circundante. Um dia, alevantou-se o aleive. Diz-que disse que uma beata disse que apanhou a moçazinha, ela – eu, não lhe creio – só de vestido-combinação na sacristia: o Padre estando lá. Afiançaram os ambos não saber um de outro. Que ela é quem provando umas costura, e mais a coleguinha mais dela, cuja também jurou desaver o tudo que inventavam. Será que podia? Era capaz. Que o Padre não era sembestunto: homem de muita ciência infusa. E mesmo que intrujado a mulherengo, fosse..., não me dou ver que um ele se abobasse em grau aquele, com filha-de-família, aclasseada. Mas foi um aproveito. A cadonga chorrilhou pela cidade, um diz-que-dizque. Num xis, a Praça-da-Sé se alotava, recheada de uma academia de gente 56

desaforaí com as más palavra: umas rabujas velhotinha candinhando um ror de coisas, uns dono de fazendas e parlenda, usineiros matraqueiro com seus carro, os viajante vendedores, bicompadres palradores, e o sarro de quantantas língua indestilando o nome do padre e mais o da mocinha, ensujentados. O senhor guarde: bom falador?: meio etender lhe baste. Padre Ramão ainda arrumou tempo. Num zás, e trás, correu na prefeitura, pôr o Prefeito ao par do havido, desdizer as porqueira, empenhar o ouro das honra pro compadre. O Prefeito creu tudo, indignável. Mandou de volta o Padre à sacristia, afivelou no cinto um pau-de-fogo e cartucheira, se decidiu pôr ordem e termo, reverter sua cidade ao sossego. Saiu: nem pôde. O Padre foi se trancar na Matriz. Sozinhozinho naquele oco santo esvaziado, perviu quadrados medo. Lá fora se desaforava berreiras praga. Outros alguns, que eu desconfio, azafamavam aquele escuso povo a pôr-se em covardias. Esganiçavam, lambuzavam no cuspe muitas culpa para o Padre. Comiciavam que a Menina-Aurora estava em paz de casa dela. Que não lhe tinha havido o todo sido. Que um doutor, depois de muita examinada, lhe decretara a donzelice dela. Mas só de pura sorte. Que podia ter se dado o completo, o acontecido. Que o padre era taro. Pecaminácio malfeitor. Sem glórias de batina. Proprietário pro eterno de uma gamela do inferno. Por limpa cristandade rumavam calhaus nas vidragem da igreja. E urrando para o Padre: “Sai! Sai, seu filho de uma vaca! Sai, cabrunco! Sai cá que eu já te amostro!” E o muito mais que não redigo: as desvergonha. Só um, que nem me alembro, rogava em prol do Padre: mas tinha fraca fala, de inamover aquela gente anti-exorável. O Prefeito, vetustinho, já chegou sem tempo. Quando apeou do carro, só viu era uma calma de praça e um silêncio de povo. Por que mataram o Padre? Aí me pego. Se o senhor quer ter história, à vera, escarafunche. Jornais, tem muito; li. Que sou leitor, eu, meio-primário fiz, de além curioso – do ouvir e do falar. Tem laudo em Prefeitura. E auto em justiça, eu soube. Procure e ache, o senhor. Depois me conte a mim. Saber, também eu quero; gostaria poder. Ter noção desenhada do inclusive por que é que, que eles, aquela bastura de gente arrebanhada, vararam hostes a Matriz a troncha-mocha, tresarrombaram as portas, idos catar a alma do Padre na até guarita dos sino, no cume da alta torre, que um bom badalãoleio. Imagine o 57

senhor, que desandaram de assuada pordentro daquele salão sagrado, na mesma berrância imundícia, lufando a sacristia, o domício do Padre, o detrás de cada altar e cortinado, debaixo até dos santos enroupado, e o porcima dos pátio dos altares. Tudo. Padre Ramão só entendia o nada. Rodeado daquele acervo de santos é que aguardasse um milagre? Acha o senhor? Mas os santo nem nem: é que será que milagre de casa não faz o santo? Reza-que-rezava, escafedido. Ninguém não descobrisse, fácil: se enfurnado no oco do altar-mor, o ventre de peroba, abrível em portinhol para os atrás do coro, aonde se guardassem os pano de enfeitar: de missas mais solene, procissão, enterros com luxúria... Se entregou naquela proteção de cafua, debaixo exato dos pé do Salvador de barro: padroeira estátua grandalhona muito pintada de ouro e encarnado vermelho, um Santo-Salvador de cara asserenada, a mão destra apresentando a nós um coração sol-raiado que enxergável bem no meio do peito, e levando um mundinho com uma cruz sobre, assentado direitamente aqui na canhota lá dele, e uns olhos muito azulão de baleba engastada. Nem não serviu: que o acharam. Já vou eu lá falando minúcia, dando retrato de estátua e cisco semportância. É que eu não posso: as coisa me carrega na lembrança. O senhor põe termo, não me ligue; compõe o aproveitável. E o Padre foi lixado. De algarido o arrancaram de lá. Debaixo dos tabefe, dos sopapo, das porrada. O batiam de mão, de pau, rebém, pedrada. Foram puxando ele de arrastos. Rasgando as batina. Lhe tomaram das mãos um missal que rezava. E os berrego! Quando viu, já no cá-fora da igreja, estava ido de arrastão, com as carne se-unhando no espinho das pedra, o quengo requicando nos burgau do calçado, as roupa rasgando nas farpagem do chão, com dois marmanjão parrudo atenazando de munheca em cada uma canela dele, e o resto muito, magaréfico, regirando de em-volta em maxambomba e só chutando e cuspindo e puxando e xingando e relhando e pisando e raspando e moendo e rasgando e torcendo e furando e partindo e batendo e afligindo e batendo e sangrando: e o Padre berrando, gritando, gemendo, mugindo, fungando... ando... Que parecendo um santo, um juda tremalhado em dia de aleluia. Ou gado. E o sangue besuntando aquele malcaminho – de crucificado. Um até lhe vazasse o olho da esquerda com uma lanceta afinada, e uma gosma espocasse branquela esparrinhando no chão. Depois o ali largaram. Só teve uns dois suspiro. 58

Depois, desmoreceu no derradeiro após. O povo se calado. Os maisbatedor, se safados. A praça esvasiada. Só uns muitos alguns, de longe, no acoitado espreito. Ficou somente apenas um descorpo infunicado, vermelho-e-preto, de sangue e trapos de batina: um bolo desconforme assassinado. O Prefeito chegou. Já não tinha culpado. Bem: só de fechar. Que o senhor se se alevanta é que se vai. Já? Já pega escurecendo; não prendo. Só basto de terminar. Sabe o senhor que, eu, sou machador, no matadouro. Tem ano-e-anos que desracho ao meio, porco, rês, cabrito, todos gado. Não tenho porquanto descostume. Quando baixo a machada no carname, estou de profissia; disso vivo, me pagam de fazê-lo – honesto feito. Se corto é rês, gado de corte. Humano não hei-de machadar, sem causas pordemaismente arrojada; e nem talvez. Tenho enjôo – respeitável. E o Padre estava tão lixado, e sangrando, cheiroso a sangue humano, a cabeça pocada, a vista furada, uma catinga, desventrado, tão despostado, as chãde-dentro quase à mostra, que as tontura porquase me desmaia. De envolta de seu corpo – daquela sobra de corpo – tinha até mosca e mosquito. E mesmo varejeira chupitava do canto o seu sumo do olho. E uma barata, até dando passeio, rebalangando de contente as anteninha porcima daquele aspeto de carrego de lixeiro. Fiquei entojado. Ora veje o senhor, eu disse, Padre Ramão – só um bom de homem. E ele ali, todinho desrevirado! Réu das raiva preparada? Da indústria que farçada em desagravo? Carretão que é mais viajado, pela cidade, papeando com pessoas vária, de patrão a empregado, acha ele que sim; que foi o causo: que os graúdo, porventurável, isto ele julga sem comprova, os sapremaram, com as razão da maganagem e do dinheiro, de tudo cometer. Mas Zé é politiqueiro; a gente não lhe jura se é verdade. Mas o Padre amarfanhado de gente mesmas quiçá por ele anteajudados... É nisto que me encabulo. Mesmo assim. E muito me invoco. Pois tem ruindade na gente que nem, não, ou nunca, se podemos maginar. Que nada! Não sei... Acha o senhor?

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a cria que se cria cria

(hinterlândia e cafona estorieta antiga com água, açúcar e alguma gosma – e com citações do “espelho de cristina”: “das moças virgēes”) E todo casamento faça-se conhoçudamēte e no a furto e diguisa que, se for mester, sse possa prouar per muytos. E quē a furto fazer casamento peyte c marauedis a elrrey e, se os non ouuer, todo o que ouuer seya delrrey, e pello que ficar seya o corpo à mercee delrrey. das ordenações de D. Afonso ii

CASOU NOVINHA SINCEROS / PARABÉNS / NOIVADO / JOVEM / PRENDA / FAMÍLIA / PT / ABRAÇOS Viveu porção 16 aninhos criançonha. Nom seria razõ, nē dereyto que no processo de nossa 1yçam seiam squecidas aquelas moças que som ē estado de virgijndade, daquellas que ha guardam ho tempo de seu casamento per ordenãça de seus padres. Rehistoriam quando casou: marido achando muingraçado ver Marianninha: mãe+empregada no faztudo: ela sóbrincando até bonecas – outra coisa nem sabendo de. (NOTA: Só se casada lecionada mãe+marido vira senhora dona.) § 1 - Homem marido já maduridoso refarto conhecente; as coisas-davida que-dizem. § 2 - Auroriacordantes cedocedo: acelerado o ele (hora trabalho) costumedando beijestalante à dela testa. A ela (donadecasante) ida 60

lições de lar mamãe vinda ensinar. Em casa nõ ouciosas, mas sempre ocupadas ē qualquer. § 3 - Marianninha mui mariannazinha pegou gostar aquela quevida meia-casada-meia-largada se-vivida desde belodia. ANTES PORÉM Principiada muimedrosa quando: Seo-Joachim pai solenizou, chamou moça perto oratório discursivo: “Nossafilha! Velhos qu’estamos demais cansados desta labutavida mas graças Bondeus japodemos garantir-te futuro”. Nem deve ser começado sem boo conselho. § 1 - Dona Mãe-Marianna indizia só-olhante espreitosa sondeira caras da filha nisso-que Seo-Joachim tresfalava se ela aventurasse porvez era poisé concorde denovo calastrava. § 2 - Sabeficada foi só vão casá-la tal Seo-Seixas de familial gente conhecida neto finadamigo pai-do-pai dela tempos Seo-Joachim pequemenino residente Barra chacarão bis-avô vice-visconde. (NOTA: Este titular apesar unquanto enricado só família longínqua pespegasse prenome nobre cujo agora por vero.) § 3 - Também escutou Marianninha havia virar senhoridona guardiã coletas muitiloisas entrasquais honra-de-marido quê-que-fosse. E cõ esto he neçessáreo ser obydiente a seu padre e madre e os seruyr com muyta dellegencia e açerca de seu casamento estar em seu mãdado e nõ que ella o faça sem elles. As virgens assy ensinadas som desejadas dos boos homēes pera casamento. COMEÇOS Sobrevieram entões visitanças Seixas admirando Marianninha noturnolhares ela muito se-invocada que tão sendo podim-de-coco. Ela: “mais parecença ser Seo-Seixas mecomerquerente exquisita fome me-olhichoca”. Causas e coisas intuviu certo-pouco dia de agarrão sem ninguém perto: tomou 2 do Seixas se-arrepiou dentro gozados tremeliques correu prá cozinha empinada despistante resingando quedemora quecustado almoço quefome danada que.

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ESPERA CAMISOLA / SEGUE / PORTADOR / VG / EXPRESSO / DOMINGO / PT / LISEUSE / AINDA / BORDANDO / PT / ABRAÇOS Custante só 2.mes; lenga-lenga. Mas pra Marianninha demais porção só enquanto acabar nubenxoval: terminação do ultimaz. Àquelas enxoval filhafamília a-seguia berço investimento só-carreira destinipraga. § 1- A mãe comanda general só pergunta Marianninha se não achando tudilindo claroquê se não Dona-Marianna enful-e-raivasse manso dizendo você sabe-nada-não deix’eu resolvo. OBRIGAÇÃO Tendo domingal visitar Marianninha & Noivo pais dele (nadamais-nadamenos: 2 velhões ela achando chatimaníacos completos boloridos por desuso suas pessoísses) devendo a conselho de Seo-Joachim muito prudêncio tomar benção, filiaz. Seo-Joachim precavia: “Quando se-casa se-arrasta família. Por-bem futura felicidade conjugal: tome bênção filial”. § 1 - Marianninha chateava descompreendendo ter-de. Ficava inteira manhã domingos metida fedorentissala velhões aonde olhante abissal 2 figuras ela achava excessivo velhiz para ser-de gente principalmente quando sol evidente. (NOTA: Deve-se aqui registrar a bem da verdade que expresso declaro de Marianinha ela sónotava o sol o céu o sal o sul o seu o sim o são domingos e feriados sem se-dar conta por quê). § 2 - E ela ali presa forçada encarada 2 carcomidifiguras inconcebíveis quase-carochinhas. Sim que: Marianninha não conseguisse descomparar cada vez lá ida, ca pouco vallem has abstynencyas, mesturadas com muytos peccados. No-que relia-e-lia denoite mesmestórias carochas parava instante comparativa. CAROCHA João & Maria disperdidos floresta longivislumbram, janelinha rubriacesa. Casinhol. Toctocavam atendia velhazinha bondadosa: “Entrem-entrem meus netinhos! Perdidinhos na floresta?” 62

“Sim vozinha. Molhados de chuva trementes de frio dobrados de fome” – a dupla Jãomaria respondia. “N’há-de ser nada meusnetinhos!” § 1 - A velha anfitriava: a roupa secava comida quentinha dava macia cama arrumava mas a porta ela trancava: Jãomaria prisionava. Comida pelo buraco baixo na porta alçaponado. Tododia por buraquinho: “Mostra o dedinho meunetinho” – a cada um falava – “Pra vozinha ver se já engordaram...” § 2 - E Jãomaria enfiavam ratirrabinho que caçaram: adiavam – dedinho mui magrinho. Ali com ela (Marianninha) fosse pior? 2 velhos de casal. Ela achava igualmente igual e desigual às-vezes ria da memória mas sempre perta deles se-sentia João-&-Maria-mente ela-sozinha – que Seixas nem João. SONDAGEM 3º mês marcado casamento Dona-Marianna aproximou perguntar demais-jeitosa quando Marianninha últimincomodou aí Marianninha coitada então mudaram denovo belodia ela desconfia mas logicou que não casar logo-quando “e se eu borrasse a cama... que vergonha”. Achou mamãe demais inteligente perguntar que só dormir mesma cama Seo-Seixas que vergonha quantomais acordar demanhã lençol emporcalhado. Oh. Porvez que já; no acontecido. Porém dúvida de vias foi perguntar e mamãe: “Coitadinha da minhafilha!” – e suspirosa – “Tão inocentinha!” – e risinho de mente – “Ele t’explica ele t’explica.” Ca o muyto nom pode ser boo, nem deve seer começado sem boo conselho. § 1 - Quanto a Marianninha: mesmou mas só achou muito ótimo sair logo casamento já ia aborrecida ficar noitinhamente sentadona Seo-Seixas todiperto demais-endereçado no sofá ela paradona ouvindo conversinha dele + Seo-Joachim falefalando política-&-negócio política&negócio. Muito melhor antigamente todo denoite pro quarto ler carochinha e/ou romance adoçado permitidos gostosura. Livro na mesinha. Um seu pequeno polegar na boca chupitando outro qualquer roçando solevinho partinha fazendo bongosto no fim que corpo soluçava era mais-gosto, ca pouco vallem has abstynencyas, mesturadas com muytos peccados. Depois soninho derramado corrida semitonta 63

para cama lençolfresquice. Mas por que não-poder-assim sendo ralhada entrado alguém se-despistava um-dia Tiguida Margarida Guida TiaGuida solteirona demais malicienta bocaquente cadonga completa ouvidolhibocas: “Que isso menina tá virando sapéca deix’isso pra quando casar!” § 2 - Casar. Tiguida lássoubesse um isso? Quem sab’... Marianninha entendeu? Não mas agora no sofá-da-sala seixeladeada reouvisse tiguidifalas: satisfeitificava estar bem perto de-volta antigos denoites lente quarto até dar gostinho bom corpotodo sono espalhar cama fresquibranda. CASAMENTO / SERÁ / MAIO / PT / FAVOR / APRESSAR / ENCOMENDAS / PT / BEIJOS DIA CHEGOU SINCEROS / VOTOS / MIL / VENTURAS / JOVENS / NUBENTES Com todo comum circo: Igreja (foi Mãe-dos-Homens promessa desde parto Marianninha Dona-Marianna semidificultou) juiz (foi Ti’Arante nem tio nem nada velhamigo) escrivão (com livraz) festança (discurso beira-mesa alotada comebebe salgado-doce branquibolo arquitetal barroquiflorido) miselogios fêmeos + cochichos machos (piada beira-ouvido) depois ida casa sozinha 2 noivos os demais quiçá mais s’engraçados na coisa (caraminholar lubricências afrodizes horimarcado estupro consentido). Depois mais-ninguém barrasse Seixas. ENFINSÓS. CONSUMADO TUDO / CORREU / BEM / PT / ENDEREÇO / NOTÍCIAS / SEGUEM / CARTA / PT / SAUDAÇÕES Fosse aqui lugar finalponto era escrever CASARAM E FORAM MUIFELIZES porém... depois de bonança vem tempestade aí Marianninha perviu muito-mais Seo-Seixas sozinho com ela 64

diversificava dono ares autoridades ela entendeu porção-coisas se-perguntada insolúvel. Não: Seixas nem explicasse que agia. Não ela vendo de-olho que nem via no escuro que. Sófazia quefazendo entendia ou pressentia: adivinhintuía. § 1 - Deu tempo descobriu que não tinha lá-esses gostos Seixas mas provava um tudo ele já não dando medo se-garantia. Começo dolorosa desgostava depois costumigostou já melhor que livro carocho + se-acarinho de antessono. § 2 - Assim viveu-se aninteiro Marianninha mais se-amulherando pra completo só faltando filho. DESASTRE Lá um-dia Seo-Seixas foi de casa no cedo costume deixou Marianninha fundassentada poltronão sala carenfiada costurinha camisa pagão mamãe ensinou caso talvez. Agora Dona-Marianninha aprendida manujugava casa empregada quefazendo ela sentadona entretida algum fazerzinho sómandante dentrospectiva suas ideinhas. Em casa nõ ouciosas mas sempre ocupadas ẽ qualquer obra de fazẽda. De longivagante nem deu chegar truz seu-pai Seo-Joachim mudipisante branquirrosto enxaguado todo sangue queném paninho que lidava. “M’nha Filh’!” – SeoJoaquim vociespremeu. § 1 - Marianninha levantou derrepentina preassustada fiuím longinho direitouvido rosto varicor branco a rencarnado peito esquerdo catapãocatapá malcompassado prevendo pai ataque às-vezes coração franqueando idade médico notificou ele assim podia empacotar. “Papai que é que é que o senhor que é que é que o senhor que é que...” FOI SEIXAS O velho fez quenada equanimou manutremente pálido cauteloso reticentifalou subfugindo em ladeios trazia más-novas primeiro queria muita calma não há-de ser nada Seixas indo trabalho foi carro. Pegou. Só machucado médico falou negócio de cabeça umpouco meio-grave mas dava jeito tem que ter. § 1 - Marianninha abestou ficada olhando pai cada olhão destamanho descreu lorota mas nem se-afobou. Que engraçado! tanta invenção 65

luxava imajar mas nunquinha enviuvou mental nem-se-alembrasse possível: despreparasse. Surpresa maior que susto apenas abobava pai parece tapeia coisa sendo séria. LAMENTO Seo-Joachim pegou matraquear: “São esses tais de modernismos é uma porcaria não se-pode nem ter mais sossego essas drogas de carro 60 km/h uma barbaridade é uma temeridade a gente andar hojendia na rua não há-de ser nada filha. Deus é grande não vai ser nada grave talvez só machucado fica bom. Deus tem que ser grande! § 1 - Tem? Marianninha não chorou nem-nada só deixou se-levar hospital pés insententes não amor-e-dor nem medo só sustinho só no inesperável. Ainda agorinha demanhã não estavam tão arrumadinho mundo? Para que mudanças? Chegasse trocas. Casar casou agora que? Descontrário? FADO S.A. Chegada hospital nem quarto nem nada diretiduzida necrotério ver Seixas morto nem assim chocada que feito o-imajara descrente seupai lorotal. (NOTA: Seminjustiça porquanto Seo-Joachim deixara genro rico ainda vivo). § 1 - Corpo cadáver encima mármorimesa tresesticado cercado geografal familhanças exato-divididas lados: cisseixino marianninhos transseixinos seixeanos. Aí Marianninha chorou deborcada encima defunto mais que dele apenas simesma desgracidesgarrada: “Logo agora logo agora logo agora – rechoraminguipensava – “que’estava ficando bom!” SEIXAS/MAL/PT/VENHA/URGENTE/PT/ABRAÇOS LOUVAÇÃO Do dia enterro guardou Marianninha folha assinos assim encimada: LISTA DOS COMPARECENTES ÀS EXÉQUIAS DO 66

ESTIMADO COMERCIANTE OLAVO DA PONTE SEIXAS DE SAUDOSA MEMÓRIA. Com letra belígrafo guarda-livros firma comercial onde trabalhou neomorto seguindo todos baixassinados nomes individuais e famílias. TRANSTORNO De volta enterro famílias resolvendo Marianninha desmantelava casa morava pais revertida passado retornada solteira em prática embora nome susseguinte (do marido) sempre em rabo seu-nome. E guardem-se de se mesturar muyto antre os homẽes, mas sempre se cheguem para suas madres. Seo-Joachim aposentado tornou trabalhar algum bico lá ele arranjou. Dona Marianna coitada pegou porção alunas cortecostura manter denovo filha condição agora até mais-cara que solteira. Mãe reocupada Tiguida total-faznada toma encarrego pagear viuvinha todo canto precisão cuidar viúva-nova todomundo não botasse boca-nomundo para inventifalas. E poderyã perder alg ũ bem por mentiras ou maldizeres que os varletes ou uys pessoas dellas poderiã dizer por pouca e pequena ocasiom. Solteirona Tiguida perícia tanta batebocar maldizente afiadeira linguona vidalheia sendo natural boa-guarda honra sobrinha. SEGUE/PORTADOR/RELÓGIO/OURO/ FALECIDO/SEIXAS/PT/ESPERE/ ESTAÇÃO/ SÁBADO/PT/SAUDAÇÕES

COM TEMPO CONTAMOS/SUA/PRESENÇA/MISSA/ ANIVERSÁRIO/FALECIDO/DIA/VINTE/PT/ABRAÇOS Aí passou-passou-passou-passou Marianninha desentristando querendo mesmo desvestir lutifechada roupa. Família não deixou ficava gesto senvergonha. Sobrava ela conformar ser até mais linda tudo preto. Seus vestidos bem feytos e limpos, sem hy tocar desonestidade, seus cabelos bẽ atados que nõ andem espalhados per suas faces, nem sejam çujos. 67

VEIO-SE A SABER MAIS TARDE QUE: 1 - quando-quando Marianninha ia armazém esquina pedir compras 2 - pagava a 2-quarteirões contas luz 3 - comprava fecheclér linha agulha e tal armarinho em-frente 4 - mais acaso buscava leite perto leiteria Seo-Castorino velhote trouxirroliço goiabissorriso bangueliboca bonachos modos. § 1 - Escapulas sem tiguidiguarda quando: Marianninha alçava cabeça olhando mundivolta achasse muito explorável. Pegou apreçar simplicoisas: gozava de-exemplo assistir Seo-Castorino despejar branquilácteos galões em latões de alumínio nos boquiabertos litros vidro. (NOTA: No-que estranhasse por que impensada lembrar insopitável finado Seixas quando-vivo em-vendo lactiescorro.) TIÃO Idivindas recados dela Tião verbou-se incoativo jogando migazinhas piadas nela. Tião?: forçoso graúdo mulatão profissão barbeiro outresquina estabelecido sempre a-seguia de-olhar toda dela passagem mormente leiteria deu depois seguir corporalmente até de-perto indo até mentir conversinadas baduláquias Seo-Castorino enquanto estada dela só ajeito vê-la adjunta botando desfalidolhos seu-corpinho tempo-todo no-que amornando voz feito em banho-maria. Ca o muyto nom pode seer boo nem deve seer começado sem boo conselho. Marianninha primeiro envergonhou porém de piadinhas foram aumentando ditas crioulo forçaquiforçalí cotidioso cada-vezmais conseguida atençãozinha dela pra o seupapo maneiro. Depois chegaram curtas respostinhas pois devem ser suas pallauras lympas e deuotas e nom de muyta lynguagem e mais-longas depois até delongas demorando ela cada-dia mais-um-pouco que costumava de chegar emcasa. Tião somando confiança chegando junto agora corpo até-queum-dia sem guar-te queném sem-querer debruçado balcão leite modo ver gato ele disse estava embaixo indo demais adperto Marianninha encostoso demais proposital raspante modo a ela dar sentido comestava rija vontade dele. Marianninha calafriou-se de-muito esquecido pela 68

espinha deixou mas despistosa s’embora foi mais correndinho pra casa aonde refugida banheiro bentrancada esconder novacor voltada à cara mirando-se impossível espelhinho pia assídua reparante ainda boa juventude mediu esperdiçava uncadinho por-dia dês pifado Seixas: até quando? Afrouxou dentro nó-cego anteaceitado lembrou-se-quelembrou cedendo dar-se gosto de sozinha ali-mesminha em-pé defronte espelho: Marianninha-Narcisa mente no mulato. UM DIA DEPOIS DO OUTRO Ajeitou ir mais-cedo bem-sozinha. Nom sejam guarrydas nẽ desassosegadas cõtra os hom ẽs quaesquer que sejam em especyal contra os de casa ca seria mingua de seu boo nome e peyoramento de sua honestidade. Tião viu passar seguiu atrás artimanhoso, arrisco do petisco ver dava certo armadilha. No leiteiro Tião riscou gestinho combinado o velho deu desculpinha pediu esperar ele já vinha só ia levar leite da vizinha 2-minutinhos Dona-Marianninha. Ela esperou: mais. § 1 - Tião ganhava caça. Que: a) malsaído leiteiro atracou Marianninha cantou de arrebentar tão seduzente b) ela desaguentou interna amarra: acompanhou Tião detrás leiteria onde era quarto Seo-Castorino morar sozinho aonde barbeiro disse ia mostrar ela coisa você vai ver só. (NOTA: Que aliás veio a mostrar quase sem tempo: pedra dura em água mole ... ) c) lá dentro deu nela abração beijo cantou quase de pocar carcaça dispedaços d) mas ela não se-deu logo não s’escorregando cá-fora porém durou bom minutão Nom sejam guarrydas nẽ desassosegadas cõtra os homẽs. A ESPIONA Poraí Tiguida não podendo mais induvidar. Demais perdigueira se-interpelava cedos da sobrinha demoras da sobrinha inconfiante na sobrinha. Que dês vez-primeira farou longe Marianninha com só69

olhares para leiteria viu quando ela. Agora entrada e negro atrás. § 1 - Logo mais pouquinho voltou Seo-Castorino cara sabenada despachou leite Marianninha ela vai pra casa Tiguida não toca nada não. PROGRESSO Mais 1 dia + 1 e mais Marianninha já deixava tudo Tião fazer nela lá quarto mesmo leiteiro insabida qu’estava: que cada quando Guida rastreava distância bastante ver carescondida. § 1 - João-&-Maria reperdidos na floresta até com bolinhas de miolo de pãozinho armavam de reachar caminho no fio de pãozinho de Ariadne muito bom é pra comer de passarinho. § 2 - Tião foi ficando cada-vez-mais com Marianninha 1 semana já toda mulher-dele 2 amantamentados ela chegada em-casa sempre demorada esbaforrindo de susto e gozada dizendo hoje leite veio tarde que chatice ficar menina-recadeira esperesperando tempão. Dona-Marianna até dando pena remorsando cansar filhinha pensando mesmo a-sub-trocar de alguém na tarefinha mas Marianninha dizendo que não que não fazia mal que ela tava só falando mas até gostava e passeio e tal. SUCEXO M A R I A N N I N H A / B E M / M E L H O R / P T/ M U I T O/ AGRADECIDOS/PT/SEGUE/EXVOTO/PT/ABRAÇOS Gamou definitiva Tião. Tinha gosto enorme só pensar dia susseguinte se-engasgada destamanhos mulato 2 anastomados. Tião sabendo de estudo porção talentos nunca apensados defunto Seixas. Marianninha submorrendo satisada. Com Seixas diferentemente sem-lâmpada desvendo melhor sentida só adivinhando de-tato roços corpo sem-noção ouvido só sabor maior quentengastado seu-centro sentidor. Tião não: poliverso ator de muitos atos inventador de estéticas tudo claro de-dia falando músico permitindo ver todibelezas também admirando nela cada partinha. Ela lhe-achava linda coisa grossicarne tepidiforme caprichalmente atorneada magicomóvel nãbo dimensionando insuspeitados portes. A vista queném microscopando gosto sentimento. Marianninha porfim no apaixonável se-curando indoença que via antetinha agora que não-tinha: Tião-Cataplasma – 70

ectogâmico – Trevo com a 4ª. folha. Ca pouco vallem has abstynencyas mesturadas com muytos peccados. GUIDA SECRETANDO Proveu buscar leite lugar outra. Chegada Seo-Castorino (combinado) já não’stava. Entrou pé-na-mão seguiu quarto. Achou Tião recosto cama esperador amante contumazado. Como qualquer crioulo de estória branquificou-se o preto susto ver Guida. Ela foi chegando perto foi chegando olhos bugalhados foi chegando toditremente foi chegando venta resfolgando bafoquente foi chegando voz rompirrachando boca dela foi chegando. GUIDA – Eu também quero (Tião negaceia) também sou gente deixa eu quero... quero... (tremetremente cimembaixo a tia). TIÃO (safaneando pro lado) – Sai coroca velha não coroca senvergonha. GUIDA (saltilevando) – Eu conto conto tudinho eu vi cachorro eu vi aqui. (Dedura portiburaco delator) TIÃO (negaceando) – Não peraí nunconta não damos um jeito você quer? quer Seo-Castorino é talvez você... GUIDA (não dá mais nenhum dos 2 ouvidos rabaneia saída gritesganiçando) – Eu conto eu conto tudo eu vi aqui seu sem-moral (tresdedura a porta do buraco) nêgo não desfaz de mim não vai ver Diabo. SÁBADO NÃO/VENHAM/NATAL/PT/SEGUE/CARTA/EXPLICANDO/PT/ABRAÇOS Família soube tudo? Certinho não: Guida arrumou de ter supeteado só. Sem pré nem antes. Donde: SEO-JOAQUIM: Quasidecidiu matar-se. DONA-MARIANNA: Muidesmaiou caiu de-cama constante ruminando Seo-Castorino ela não podendo compreender homem velho 71

pessoa tão decente parecida até apelido Seo-Casto vai-ver senvergonha alcoviteiro malcaráter. MARIANNINHA: (ou Marianna-Seixas ou Viúva-Seixas como chamada em-diante) Chora-que-chorava abandonada todos trancafiada seu-quarto perdida honradez e prazeres. § 1 - Seo-Joachim deu rompantes sórrompantes tirar satisfas esse tal barbeiro. Mas Guida de conselho: “Não-vai não-vai que ele te-corta com a navalha não-vai que eu não deixo. Vai dar escândalo. Vam’esconder ninguém mais sabe. E deuem seer suas pallauras lympas e deuotas e non de muyta 1ynguagem. § 2 - Resolveu-se bicudo segredo. Nem famílias Seixas saberiam. Porfora amansaram-se. Detrás boca-siri ebuliessências. O QUE NINGUÉM SABIA E restos história descontados? Tiguida olhando fresta todo-dia tudissabendo calastrona? Ao passo que anuía próprio gosto ir sózinha a inha. Entrando empós dela adentro leiteria leitero ausente (combinadamente) lá subrepta dentriduzida metendo envesgolho velhilascada portifresta aquele quarto inconjugal tudivendo sobrinha + barbeiro? E resto mais havido? MAIS DRAMA No-que passou tempo trouxe mais-nova oclusão: Marianna-Seixas gravidava. Negro a-emprenhara inda porcima. Outra pantana pantomima mesma cena. Bem: TUDO SE ARRANJA MARIANNA/SEIXAS/SEGUIU/ ONTEM/ PT/ JOAQUIM/ MELHOR/ PT/ REZE/P/NÓS / PT/ ABRAÇOS Seo-Joaquim terminou fabulando confrademente Frei-Rosário homem tido por sábia santidade figurão da cidadinha dono vias irmãs 72

sítio roça longe casa-e-caseiros fornida gente caridável. Marianna Seixas endereçada conversar a-sós com frade. Depois uns dias prosseguida prá roça envolta de Tiguida família chamando todomundo pra despedida botafora (NOTA: Sem barriga ainda) que ela ia inconformada sempremente do mortimarido descansar trocar ares cuidar saúde que viuvice fanava de entristez cá na cidade. E deuem seer suas pallauras lympas e deuotas e non de muyta lynguagem. PASSADO 1 ANO OU MAIS TUDO/COR R EU/BEM/PT/AGUA R DE/CA RTA /PT/ SAUDAÇÕES Vizinhos amigos todomundo informado Viúva-Seixas retornante breve avisara última carta pros papais. Milmelhorara quediziam pondo gordura cor na cara panos completo sem-luto roça sarou máguas. Muita questão informar demais preciso todomundo ela pediu trazer junta nigrinha pobrezinha habituou chamar de filha ser chamada mãe nascida de criada em-casa roça. Os velhos não vetavam: filha viúva bem precisada alguém dar dedicação. Além bebezinha perdeu mãe na própria partejada tendo inconhecido pai não prometendo legais dissabores. De entreconversa em casas várias Frei-Rosário incluiu matreiro elogios viúva Seo-Seixas chamando caridosa criar criaturinha. E poderyã perder alg ũ bem por mentiras ou maldizeres que os varletes ou uys pessoas dellas poderyã dizer por pouca e pequena ocasiom. Todos mamaram bofé seu recado ou pelo-menos fizeram que e Viúva-Seixas viu de volta a vila. DORES Maria das Dores do Santo Anjo na pia batismada ficou chamada só Dores no costume. Cevada de-tenrinha nas papas acarinhos Viúva beliscos fininhos Tiguida indiferentemente ou mau outros-todos sendo mais pra beidetunes. Amava visitas: dias bentratada exibida adengada depois era acabou-se-o-doce. Dona-Marianna-Seixas chamava minha-filha mas de-fato era: sem avós tia maisnada somente A CRIA. Que referida era a CRIA DA VIÚVA-SEIXAS protocolar se-informava. 73

DONA-MARIANNA (avó de-fato): “A cria de minhafilha” – apresentava. SEO-JOACHIM (avô natural): “A...” – idem. TIGUIDA (quem dera a ela...): “A cria de Marianninha” – dizendo envesgolhava. (NOTA: Tiguida foi única continuar chamando Viúva antigonome excarinhos minutivo). DORES: Mamãe-Marianna Dona-Vovó-Marianna Dona-Tiguida Seo-Joachim. Cresceu entaludou demais inteligente intevidente manjando fácil igual e desiguais redores sua-vida dela. § 1 - Passou passou tá passado. FOLHINHA Tudo-isso se-passou até margem milinovecentos & vintecoisa ou menos. Agora mil-novecentos-sessenta-quantos Dores capina quase-velhice. Casou novinha como a mãe verídica com semelhante semi-escuro companheiro vindo em tempo útil a parir 5 entre filhos-filhas todos marrons esgrouvinhados. LÍDIMOS/VOTOS/FELICIDADE/JOVEM/CASAL/HOJE/ UNIDOS/SACROSSANTOS/LAÇOS MATRIMÔNIO

DESVENDA Num dia (foi quando adolescia em torno 15) deu palavrinhas a rapagaz de esquina. (NOTA: Este a-maridou futuramente.) E guardem-se de se mesturar muito entre os homẽes mas sempre se cheguem pera suas madres e devensse guardar de prefyar nem auer razões com pessoa que seya em especyal com varletes. § 1 - Tiguida sempre olhuda encansável bisver se-bem-que demais-velha viu. Chegada em-casa futucou assim: Tá ficando sapeca? puxando à mãe que foi te-ter com preto?” § 2 - Trata-se esta frase da clássica ultimagota vaso Marianninha – a qu’esborda. Aquela mãe de Dores voou prá tia esbordoou-lhe taponas em focinho. Tinha tabefes nas mãos pendentes anos de-molho medo respeitos etc. – agora liberalizasse. Correacudiram deixadisso apartaram. 74

§ 3 - Marianninha passou porcima idades doenças nomes etc.: chamou sua-filha perto entregou verdades. GUIDA/SEGUE/HOJE/NOTURNO/PT/PASSAR/ TEMPORADA/FORA/PT/FAVOR/ESPERAR/ESTAÇÃO/ AMANHÃ/ABRAÇOS/PT/AGUARDE/CARTA/PT/ SAUDAÇOES CAROCHO MUNDO? João-&-Maria dupla carochinha em-vez dedo pelo portiburaquinho mostravam à velhamá ratirrabinho. A ogra de velhiz semicegada malvia ser dedinho inconformava. Quanta comida mais desse quanto-tempo dupla mais desengordava? § 1 - Até-que-um-dia mentou ver de-perto achando um desconfio abriu tranquiporta os 2 boca-espera rasteiraram megera refugiram pra casa. § 2 - N’estórias Dores-Marianninha – estórias de-verdade – não tem ratirrabinho? A velha vê distinto 2 maninhos. Mancomuna poder e papa Joãomaria? SIM? ROXA MÁGUA Disso em-diante (conta quem illo tempore conheceu que) a mulatinha bordou juz no próprio nome: foi Dores vida-toda quantotempo. Mesmo casada. Mas nem por tudo aquilo (se-deve assentar) deixou de ser A CRIA sempre cria de Marianna-Seixas A VIÚVA (como izabeldinglaterramente apelidada). Sem parentes nem-nada tapando sujissegredo por não emporcar na cor-postiça dela pulcribranquitude de familia por-postiça passada sempre tão branquinha tão distinta etc. etc. que lhe-dado tempo de até doutor professora padre freira se-constava. (Isto é que é fim bacaninha.) § 1 - Nom seria razõ nẽ dereyto que no processo de nossa 1yçam seiam squecidas aquellas moças que som ẽ estado de virgijndade... daquellas que teem prepósito de guardar virgijndade toda sua vyda por amor de Deos.

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don’anna pimenta Descrever o pensamento de Sade é uma coisa; outra coisa é descrever o sadismo de Sade. Klossowski

É certo que Sade tem essa Profunda convicção: de que o homem do egoísmo absoluto não pode jamais cair na infelicidade; melhor, ele será feliz ao mais alto grau e o será sempre, sem exceção. Blanchot

Seu nome verdadeiro, a pimenta inclusive. Em noite valpúrgia do tempo de oitocentos, a trinta de um abril de militanto, em touro e outono ela nascera vênus. Dou palavra da menos minha que também não levo crença em bruxarias, mas, fatual, de constato, que Ias hay, las hay. Claro que não conheci a ela, por lhe faltar idade, mas, pequeno, cursei jardim-de-infância em casa dela, no prédio velho, assombroso, que no futuro o governo ganhou pra sua prefeitura. No exato meio-dia, paravam tudo, tudo. As professoras mealhavam as crianças na só sala segura, caixa-forte dos medos, todas elas, nós, de esperar, conjurando, de passarem os rolos de uma dita nunca dita maldição. E pelo que diziam, naquela hora eu deveria escutar o barulhame: correntes se raspando pelas táboas de chãos de escada, salas, corredores, e chicotes vlaptindo, e elos tlinindo, e berros de dor dor, e choro e imploração. Depois passava. E a gente se benzia com sinal no pelo – e retornava ao profano. Ela, essa Anna, anacoluta, inversa anacoreta, teria feito, em tempos, daquele caseralho uma teia em masmorra, aonde ela lambia os beiços de sadista, como cachorra, como limpando secreções de gozo. Atenção: lembrar que havia escravos. Seu prazer era cálido. Dia inteirinho ela fazia nada – a não ser que houvesse acaso para dor ou/e mais sangue. 76

Inventasse, até, maneira exímia de aprontar galinha, de gosto especial que os convivas glosavam mostrando aplauso e hum-hum, pedindo mais. Descia na cozinha a ver porem a galinha – bem vivinha – de molho em água exato nos cem graus: começo imprescindível da receita, muito dela, do sabor sem igual. Traçou regras certinhas da comportamentada disciplina de uma grande escravaria que mantinha: seu harém de almalgia. Menor cometimento e vinha uma sanção – mas lei correta, que dentro de uma exata prescrição. Gostava de espancar escravas novas bem nuinhas, até cheirar a sangue, de espezinhar criolões de robustez gigante até vê-los murchar, pôr velhas de castigo, sentadas ao verão vestindo cobertor... e mais outras coisinhas que me esqueço, mas muito lembro quase de contar. Houve um dia do basta. As mucamas botaram-lhe na cama uma toalha fina, travesseira, no alcanço do seu cou (pescoço é para negro, e não pra ela que aprendera em Suíça as artes de bordar). E dois negrões surgiram resfolgados, sustosos de fazerem o criminaz benfeito, apraxiados, mesmo assim, do algum respeito. De um, Juca Feio, escorria-lhe jorrozinho de nhaca do sovaco cavo e lhe ia pelo torso em riachinho ignorando foz, frio suado, de apavor da Dona ograz. O outro, Jõe Lundu, só tremia das pernas, só das pernas, mas... Mas todos dois com justeza nas mãos. E foi aquele arrocho contra o sonho da megera. Depois veio esperneio e remelexo e travesseiro na cara lhe comendo a voz. No exato meio-dia, exatissimamente, por relógio de sol. Naquele tempo havia forca armada em praça, e pelouinho em frente à Sé, as monumenta, e havia claro algoz. Tudo fez uso para os negros deste exemplo, com toda a força de desalastrar. Depois, tudo acabou-se, à era doou-se. Ficou somente a lenda, em pura venda – de fazer troca ou de obnubilaborar. Que uma velha dos pretos, muito velha, lançadeira de búzios e coragens, declarou de ficar: que no momento de morrer a voz lhe foi negada, a essa Don’Anna, mas que, pensar, ela pensou. Pensou que todo dia ao meio-dia, para sempre, sua casa de assombros ouviria, pelo prazer com que ela agora, ali morrendo, ouvia, ou lembrava de ouvido, todo o seu gosto e modo de viver, gozar. Isto a velha afirmou porque, ao invés de flatus vocis, noutro som se exprimiu, morrente, a Don’Annal. 77

meu último co/anto ... Sim, ouvi de amor, em hora infinda, se bem que sepultada na mais rangente areia que os pés pisam, pisam, e por sua vez – é lei – desaparecem. E ouvi de amar, como de um bem a poucos ofertado; ou de um crime. Carlos Drummond de Andrade Aquém, muito aquém daquele fosso que ainda negreja no horizonte, nasceu Iralgema, a Puta dos lábios de fel. Alencar-1 Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, suportá-la1. (1 Digo, frequentá-la) João Cabral Deve-se deixar crescer as unhas durante quinze dias. Entretanto, não sou um criminoso. Lautréamont

Respeitável público! O fabuloso, o maravilhoso, o formidável, o inigualável, o inimitável Ticolim, o maior palhaço de todos os tempos, o maior palhaço do mundo! GRAN CIRCO MIRABEL. A beleza se escafandra em bojo e mar de toldo sujo. Em farrapos, o colorido amostra, só brilhoso (e convincente), toda momice deste grosso mundo. Cornetins e fanfarras. Repito a entrada para nunca mais. Cornetins e fanfarras. Atenção. Que olhem todos. Chego ao momento da glória. Olhem bem. Ponham toda atenção, se diverte, ausenta, esquece, não aprender o quê. No que o palhaço encanta: extrema ponta. O meu último vai ser como carta. Para esse (dito) público, “imenso público”, amável, adorado, que ao menos minha conta bancária respeita e obedece, no ritual de se manter no mesmo peso. 78

Em paciente, e tenazmente, de dieta – que se segue sem por-que nem quando, mas que a si mesmo alguém impôs (indiferente?). E tu, meu filho, meu não-herdeiro felizmente, tu a quem passo (só por maldade?, desdém?) os papéis do meu susto, bem sei que talvez os rasgasses, por boa maldade bem sua, ou que, por má bondade os publicasses – a livrar-se de mim. Mas, agora, nada importa a minha conta bancária: não tenho quem usá-la. A meus advogados entreguei, completo, o meu último talão de cheques, todos devidamente por mim assinados, de conferência indubitável no guichê sensual de fino mármore, liso estúpido altar de razão, brunido por não sei que não-escultora mão de homem ou máquina, para se cultuar acima de Deus e de si mesmo. Cago para minha conta bancária. Que eles a usem como queiram, por vício ou hábito, no modo exato e limpo de sacar. Secar. Agora não importa. Me importa só um pouco este troço que escrevo. E tu, meu filho, meu não-herdeiro feliz... mente (?), tu a quem passo os papéis do susto bobo, bem sei que talvez os rasgasses, por boa maldade, ou que, a livrar-se de mim, por má bondade os publicasses. Não te importe. Importa um pouco a mim. Não por qualquer recado, “mensagem”, besteira de mensagens, por algum fio dito de “comunicar”. Comunicar é o caralho. O que não há é fio. Cago para o estilo. Cago para a gramática. Cago para o léxico. Só não cago para a sintaxe: ela é que caga pra mim. Pouco importa até se não me reconhecem no que hoje escrevo. Não sou ninguém. Já fui bem comportado, escritor para alguém. Hoje não escrevo especialmente para ninguém. Não se trata de um conto, este troço ou qualquer carta, ou nada, ou qualquer merda seja. É só, se é, depoimento. Cru. Sem melos. Sem telos. Sem amor. Nem ódio. Nem mentira. Ou verdade. Apenas cago. E merda tem mau-cheiro. Sei que o “depoimento” (ou deposição) não será bem quisto, talvez seja negado, se sabido. Provável, algum viado chato, desses que insistem em se chamarem “críticos”, gaste laudas-horas para “pôr em claro” que se tratou somente de momento em desespero desse homem grande (a falta da imaginação e o adjetivo) que de repente deparou-se esborrachado. Com partes de freudista, vão “explicar” o já explicado e o inexplicável. 79

Os meus advogados conseguiram (seu último favor a mim, sem embargo bem pago) que estas laudas merdosas sejam resguardadas, isto é, que se tu quiseres, meu filho, pois que é a ti que as delego... Sairão com meu nome?: se quiseres, mas eu não as assino (as assino, assassino...) ...a língua é um brinquedo. Ficará essa dúvida? Um Mistério Inviolado de Nossa Literatura (manchete boa pra jornal de subúrbio). Terá sido do “grande escritor” coitado, que endoideceu no fim, ou sei que lá, o laudo mal escrito e desgraçado. Problema teu, seu bosta, meu filho. E quanto ao resto, fodam-se os críticos, fodam-se os literatos, foda-se o público e foda-se a história literária. Sem motivos para vivas. Daria um viva ao que fosse sagrado. Mas vamos ao “conto”, que ele começa muito no passado. E tenho pouco tempo: que me entoja lidar, mais longo prazo, com o que tanto só fiz e, por último, faço. Essa escrevinhação, no fundo, é uma titica. É que eu era um menino. Ah!, pois não. Já fui: menino. Infelizmente? Esta memória de merda é que me estraga (ou que me salva). Depois também fui desses que a burrice reclama chamar adolescente. Adolescente é a puta que os pariu! Adolescente é o homem, esse doente. Por algum dia, bestamente, eu descobri que amava. Foram uns poucos cabelos. Todos lisos e lindos de compridos, e pertencendo a uma galáxia ourada. De uma menina, talvez em mesmo modo infelizmente. O amor? Se era? Até ali não o soubera, eu, que todo o despendi por quase nada e agora sei não conhecê-lo. Eu tinha, sim, mãe e pai e irmãos. Mas não os amava (ao menos como, enquanto, o verbo era). Um costume de tê-los. Só hábito: de quem chegou mais tarde, achou porisso a casa já habitada, ganhou seu canto morno, lugar para comer defronte de uma tábua, deveu chamar por nomes certos os que ali se achavam, e ouvir ao ser chamado. Costume quase que aceitável, nem bom nem mau costume, a quem apenas chegava. Mas a menina loura era diversa; desejada. Não vale jurar, mas juro (não sem levar em conta a obrigação das glândulas) que era um desejo mesmo muito impuro, mas sagrado, pois nunca me elevava a carne só, de imperativo, embora entumescesse logo algo no meu tórax: que quase me afogava. Eu quis caçá-la. Seguia, perseguia, implicava, rondava, desajeitado, grosseiro, fera nova, gato assanhado, cão de três 80

meses. Dava lápis-propaganda, caderno amassado, gilete usada, e produzia somas perdulárias, mais que o necessário, para enfartar meu boletim talão-de-cheques da escola, notas altas de minha estudantil conta bancária, e só para encantá-la. Um dia, de cansada?, a presa ficou fácil. Pude tocá-la, vê-la (de perto eu digo – de nela achar a cor de cada pêlo, o gosto do rosto, o tato, o cheiro, e tê-la de brinquedo, de retrato, o vivo, o latejado, que a gente esconde atrás do travesseiro). A tive? Sei que não, se bem que sim, a tive. Por pouco, mas a tive. Virou namoro besta de ginásio. Nas aulas, perto embasbacado. E, logo, na saída, a mão dada através de uma cidade. Depois, a despedida, bojuda de até-logos, detrás de uma ramagem, na ponte de uma vala onde sangrasse um falso rio, fabricado: valão pequeno, feito a muque de escravos, de escoarem os ouros dos senhores lá da terra, em pranchas alongadas, tangidas pelo remo dos forçados, ou velas triangulares. Mas isto noutros tempos. No meu tempo (?), aquele valo estava morto. Apenas se esvaía sujo e lento, presente ao meu presente que fingia futuroso. Mas haverá? Futuro? De nada me valesse meu desvelo. Algum sentimento era tarde. Algum pensamento era cedo. Um dia, logo-logo, eu a perdi num jogo sem brinquedo. Por mais eu me fizesse e me enfeitasse todo para o pacto, fui pobre para a compra do segredo. Aquele sol me deixou por quem eu não julgava quase nada. A mim, que já me achava algum poeta e cheio de trucagem, menina me deixou por motorneiro. Verdade: tão mais velho e mais alto, coberto de muques, sabendo andar a prumo pelo estribo em seu bonde, e forte, apenas lhe bastando a exibição de seus poderes. Nas mãos calosas, de unhas de suja independência, mantinha, no entre-dedos, um leque folheado de dinheiro, tendo o poder infinito de apontar legislativo quem paga e quem não paga entre os passageiros. A quem daria agora, eu, aquele amor completo que sobrava? Em que bexiga enorme eu sopraria aquele vento que me inflava e que formasse um vão balão pra me vagar por um planeta finalmente vago? E assim me fiz poeta, narrador por cima, romanceiro. Meu nome, meu renome (que muitos hão talvez de defender, por próprio zelo, contra o que agora no papel deserto escravo escrevo), vem tão somente desse vento esperdiçado. E houve de outra gente; fáceis mulheres, amigos do alheio (não de mim, mas dos meus meios). Porisso, ao invés de tanto caso, que eu 81

podia contar por muitos dedos, direi só pouco, porei um et-coetera na página: já não preciso tanto conto e tanto enredo. Minha mulher me traiu desde o momento primeiro. Não que houvesse outros homens. Não. Jamais houvera. Nem depois. Fui último e primeiro. Não houve mais nenhum – nem mesmo eu mesmo. Nada falarei dela, de nós, de nossa “vida” sem soeza. Remeto ao meu romance publicado, Casa Vera, aonde somos claramente autor e enredo. Vocês sabem como o livro termina, dito melhor do que posso aqui fazê-lo, com fracasso exemplar da merda sociega. Depois houve um outro, romance que vocês também leram (não me falta modéstia, ao contrário, me puno, de haver escrito em best-sellers). Chamava-se Belino. Tratava de um amor de homem já maduro por um jovem efebo, em modo grego. Do dórico episódio fui protagonista. Mas sem amor danado. Foi meu filho. Nem o amei de modo pederástico. Apenas quando todo desespero – de encontrar qualquer sério parceiro – me arrostou com a promissão do meu deserto, meu último escorrego... Não foi paixão nem sexo. Chegado em casa, voltado do fracasso em todo encontro, saudoso de aconchego, doente de aceitar olhar ou fala, danado por um logro de parceiro, fui ao quarto do filho. Sentei na sua cama, onde ele estava, e já dormia. Confesso que eu chorava – e algum barulho meu deve tê-lo acordado. Coçou ambos os olhos, de estremunho, me olhou meio estafado, e, talvez sentindo um nada, ou mero susto, passou-me na cabeça, carinhoso, a mão de gesto. Pensei em compreensão, ou algo, ou reconhecimento. E no tombo em que estava, beijei-lhe ferozmente a boca azeda. O zebra, indignado, meteu-me um bom tabefe pela cara. E disto fiz romance – e bom dinheiro. Uma escritura bem lavrada do meu medo. Sabe, meu filho: todo papel tem vocação para higiênico. Se não, repara os teus desenhos... E tudo isso me levou ao meu momento, à glória de escafandro, ao fundo poço, ao buraco tapado onde estremeço (agora já não sei se em pena ou gozo). Naquele dia, fui danado para a rua. Devia achar começo, um ponto, um quadro, um traço de mim mesmo. Na esquina do sucesso, aonde meus amigos badalavam meu talento, em frente àquele bar onde (sempre) festejo não sei o que de 82

literário, ali me achei de chofre: diante de uma velha que conheço, miserável, pedinte por estado e pelo pacto (com a nossa “caridade”). Eu juro. Eu juro. Ninguém vai me querer acreditar de graça, mas eu juro: venci o meu contrato, fiquei apaixonado, assassinei meu belo. Aquela velha ruinosa me tomou de vez, me trouxe – nunca mais eu podia não querê-la: sua boca de esponja, sua pele geológica de crostas, sua carne de escaras, sua mente de postas, e na perna exibida à nossa covardia, a ferida em rubi debruada de jade – em pedra e podre. Eu beijo. Eu beijo. Levei-a para meu apartamento (então todo vazio), pro meu quarto. E a fiz dona de tudo, de rainha. Para ela, aquilo era um visto palácio. Meu apartamento, quase neutro, comum, do comunismo industrial da produção de massa, tolo e caro, ao que se apega qualquer classe (mesmo a chamada burguesa), meu apartamento só pequeno-burguês, a “personalidade” em público design, pra ela era o palácio. Fiquei parado, revendo a velha em seu deslumbramento, feliz ou quase, de parceiro assistir às alegrias dela. Depois, fui para a rua. A velha no meu braço, de senhora, e minha. E, para bom retrato, levei-a ao restaurante mais granfino que conheço – e aí começa a sagração da minha sina. Os jornais deram tudo. Só renarro, de modo a reafirmar o meu desvelo. Que lá, no restaurante, logo mal olhado. Tomei a melhor mesa, a velha do meu lado, e fiz para o garçom sinal de uma exigência (da qual ele fingia não tomar conhecimento). Mas chamei-o. Ele veio e, bastante relutante, anotou meus pedidos, com receio, a mão tremendo um pouco, os lábios apertados, a voz meio negada, olhando desde o alto, desdenhoso, em claro desagrado, em desaprovação de início apenas indicada. Foi lá pra dentro, voltou com seu gerente. Esse maître empertigado, olhou pra nós de longe e, muito agastado, abriu cochicho, e fez gestos precisos de vontade e de firmeza, e pôs no ouvido do garçom a frase requerida, a voz que ele buscava, o tom que ele já tinha e não usava. Retornado o garçom com ordens e franquias. Mandou que eu me mandasse do recinto. Que ali não se serviam essas pessoas, nem mesmo se comigo. Respondi-lhe: que eu exigia ser servido com a senhora. Que eu pagava. Que essa merda de casa é apenas um negócio. Trouxessem-me a comida sem demora. Porra! 83

O maître indignou-se. Avançou para mim com ares de fantasma de nobreza. Investiu com emproezas, superioridade. Todo mundo sabe o que fiz (pelos jornais falantes e falazes). O que me importa aqui não é o acontecido, pois não me arrependi. É fato e feito. O que me importa é a força da metáfora. Que, vendo aquela besta, eu pude compreender o João do texto e todo o Apocalipse. Jamais eu desenhara, eu, que tão frequentemente fui a restaurantes belos, jamais eu percebera a força de verdade que há nessa figura, o maître, como representamen desta sociedade. E é isto que eu declaro: abaixo os maîtres, os garçons, os lambisgóias de gravata preta, falso smoking-jacket, puxa-sacos do preço do desleixo, da fadiga do pescoço, retratinhos de bolso da moral burguesa. Aqui, na prisão, retorno ao verdadeiro, à minha carnadura despojada. E do meu julgamento escandaloso já distante um pouco, só guardo uma lembrança: a do desprezo. Em breve terei a condicional – e tenho todo um plano, que não falhará, pois nunca voltarei a ser o mesmo eu mesmo. Os que falham, é em retornarem o si ao mesmo mesmo. Quando escapar da prisão (e para isto já gastei todo o dinheiro), de tal modo serei outro que nunca mais me acharão. Ninguém nem vai pensar no que pensei. E, na ótica do sistema, ninguém pode enxergar o que não está nas lentes. Ninguém nem vai pensar no que pensei. Julgarão que morri, que me matei ou algo. Mas não terão assim. Agora é minha glória, o “romance” que não escreverei, o personagem inventado e que me guardarei – e viverei. Que nunca mais serei o eu que me conhecem, nem nunca mais verei esta prisão e – juro, juro – nunca mais, nunca mais escreverei. Entre todas as coisas que de mim construirei, será um analfabeto – e um belo João-Ninguém, por opção de pensamento. E tu, meu filho, que de mim só herdarás dinheiro, tu a quem passo para daqui a um prazo os papéis do meu nojo, bem sei que talvez os comesses, de ciúme ou raiva. Tu, que um dia talvez passarás por um lugar, perto ou distante, e esbarrarás num velho só desconhecido... e passarás... Mas eu, te vejo. De tudo esquecerei, ao menos para fora. E para dentro também – porei todo talento em desvendar o método. Só não quero esquecer, embora indiferente, o gosto, um dia tido, de ter, na ponta do meu 84

garfo, os intestinos de um sistema: ali lidimamente e bem representado num tubo de descarga, um merdoduto. Aqui termina o circo. E o papel do palhaço já não mais tem razão de ser cumprido. O bobo desta corte bem que sabe: não vale mais qualquer castigo: como não vale o quanto escrevo. Se paro e penso: cogito, me ergo e dou um pum. Ite. Circensis est. Domine exaudi cagationem meam. Et clamor meus ad te veniat, Golém.

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o conhoceiro O que é bonito deve ser visto. – da embalagem das calcinhas Zazá

A vista – o mais desolador de nossos sentidos... Tudo que não podemos tocar nos desola. Gide

O Correio da Manhã de sábado dezesseis de novembro de mil novecentos e sessenta e oito dava nota sobre o fato. Pedia-se à polícia alguma garantia para as moças de mar junto à pedra da praia. No Arpoador havia algum tarado, bom nadador de fato: mergulhando longamente sob elas, lhes tomava o biquíni, mas não por inteiro: somente a peça baixa. Casos havidos de algumas que perdessem no nado a partinha dos cimos, ficando em malençóis para escapar das águas cobertosas e atravessar o ágora de areia – com toda aquela gente olhante em onda para os cachorrinhos, os dois do seu colo, que Vão Gôgo ou alguém fez um garoto achar numazinha, que assim saiu da praia, contida e continente, tapando aos veres grogues da moçada, no que abraçandose com braços seus mimosos. Mas neste caso, inversamente, era a de baixo que ia, mas não por acidente – e sim por fôlego e perícia – de atleta e de artista. Pois, sim, pois ó, com que presteza de pelotiquice o submerso, subfugidamente, surrupiava a subpeça nímia. Ismênio. Este era o seu nome. Sua mãe era francesa – portanto o nome estranho. Ele mesmo nascera em terra gália, embora por papéis se desse em brasileiro. Mantinha até sotaque, em guturerres, enazais, ovós, e ubicos. E misturava línguas com senserimônia. Eu acho é que ninguém o achou além de mim – nem as donas dos trapos, nem polícia. Talvez ele mudasse de praia à prática 86

enfadonha de roubar sunguinhas, por outra costa ou por esta das pacíficas atlânticas. Mas eu, o achei – e só por acidente. Tinha lido o jornal de poucos dias, o que me pôs tenção dispersa ao caso “infame”. Eu estava na praia, ao topo lá da pedra, olhando paralelo para as águas que, debaixo, brincavam do seu surfe, jogando para o preto do granito as brancas pranchas-isopor da espuma delas. Nisso, o ouvido carregou meu devaneio, ao grito de uma jovem, vindo dágua, a qual num remelecho debateu-se, afogada?, mas logo muito atônita nadou para uma outrinha um quanto avante. Mas, visto lá de cima, o mar tinha uma sombra, semovendo por debaixo, que pude acompanhar, todo o percurso: deu volta pela curva em roda à pedra, e foi se aprochegando doutro lado. Num truz, lembrei do caso lido e me arguí do fato – e fui descendo farejeiro a pedra a um certo ponto, aonde, à minha vista parecia, a intenção da sombra emergiria. E não deu doutra coisa. Finquei todos os pés na pedra mais de baixo e pus mãos na cintura feito um bobo, antegozando, besteira, o susto e a sengraceira do patifo (no caso de ser mesmo o tal que achava). E era. Só vi mão periscópica brotando, prospectando o meu chão, e gadanhando um vermelho enxarcado – que só sendo pano; o qual veio achoar-se à pedra rente com meu pé: pisei-o. Então, veio a cabeça: Ismênio. Foi daí que o fiquei conhecendo. Se é que fiquei, oh. Se tudo eu preparara bem soeto, a modo de dar susto, caí numa bobeira. Que o moço, nem vexame. Que só disse: – Larga o pé, bicho!, que minha mão não é pedal de freio. E de então se estesou todo possível papo. Dei-lhe mão de subir à borda do pedrame – e lhe amostrei saber de toda a trama. Mas, ele, nem bolota. E disse: – Você é da polícia? (Fiz que não, de cabeça.) Pois este é só meu róbi. Se der galho, é cavaco de ofício, domage, tou cagando. Tenho un-ami que voa sem motor, planando. Quebrou costelas já, e perna, e pagou muito prejuízo. Mas continua teimosando no seu plano. O meu é este ici. Coleciono calcinhas, de maiô, qualquer, só de mulheres jovens. Mas só servem roubadas – e somente quando as donas tão 87

usando. Perigo, né? Mas vá você correr grandprix de carro... Um outro mon-ami já morreu deste cano. Fiquei quantinho perplexo – o que arrombou rumo aberto à nossa transa. Ismênio, a mim, se apresentou todinho. E pôs todo interesse em conhecer também meus arquiplanos. Perguntou se eu charlava o francês. Fiz que sim e, por diante, ele falava ora numa ora noutra, e também misturava as duas línguas dele. Lá pelo meio do papo quis saber do meu róbi. Tive que confessar que, na verdade, eu não tinha: nenhum. Melhor, que o meu talvez se misturasse mesmo com meus afazeres – vivo diário de livros e de mente, e tenho por róbi só mente e livros, meu diário. Mas, Ismênio, me respondeu que logo viu que eu tinha um róbi mesmo: – Você coleciona são cabeças. Não feito aqueles índios naïfs que as guilhotinam e murcham de cadeau. Você faz coleção de cabeças, mas do dentro. Eu, caçando as calcinhas, e você caçando essa caçada minha. Você quer minha cuca – eu vou te l’avouer. Convidou-me para o seu apartamento, logo em frente, em terras de Ipanema. Cobertura: de ver o mar o céu o sol o sul o sujo e as sungas, lá de longe, com as lentes de zum. Na amurada, do terraço, toda embandeirada, se desfraldando ao vento, hasteadas em pauzinhos, mais de cem calcinhas coloridas – por bandeirolas internacionais. Mas que diabo é isso?, me perguntei no calado. Ismênio é que me leu na cara – e respondeu, sem ter ouvido, em seu francês: – Olha mon-cher, pour être un connaisseur il faut qu’on naî soeur. Também eu, não entendi mais nada. Nem sei se vale de adianto traduzir a frase, que só faz som no francês: “pra ser conhecedor, perito, estar por dentro, é preciso que a gente nasça irmã”. É mesmo uma botada. Mas Ismênio me serviu com um alto uísque e ficou rebolando a droga e seus gelinhos pelo copo, enquanto que invocava alguma história, de configurar. – Olha, monsieur, trabalho desde a infância nesta obra minha, e sei o que dizer. Desde gamin que eu levantava a saia das mulheres, de maneira a não ver. Maman me deu trop de tabefes nesta cara por causa disso aí. Depois, nunca parei de procurar. Nem adianta a gente 88

conhecer mulher de carne-a-carne – a gente nunca se convencerá. Tem muitos que só fingem que já sabem – des éduqués – de modo a não échouer. Eu, não, fiquei sabendo, n’est-ce-pas?, de não saber – porisso fiz do meu baraço um trabalho de artista: meu circo, minha caça, meu xadrez – e meu échec-et-mat. E nisto sou dos bons, sou virtuose: quando eu entro no mar e arranco uma sunguinha, é feito uma navalha: ninguém não sente o corte – só vê, depois, sangrar. C’est merveilleux! – Mas olha, Ismênio, interrompi covarde. Qualquer dia você vai se dar mal com a polícia. É bom você parar... – Mais-non, mon-cher, parar, não paro. Já pratiquei do meu esporte em todo bom lugar. De leste a oeste, da Barra da Tijuca à Côte d’Azur. Fiquei um pouco impressionado. Esse negócio parecia já meio cafona pra Brasil, Copacabana, e tudo, – quanto mais pra francês... E eu disse alguma coisa para Ismênio, querendo, sem ser grosso, insinuar. – Mais-non, mon-cher, ele falou. A tour de bras il n’est pas trop pis. Même etourdit. Mas desta vez eu nem sei traduzir. Só pude perguntar: – E daí, ô rapaz, essas sunguinhas todas – e daí? – Ô mon frère, a mulher não existe, senão a gente nunca procurava, em todas elas, colosso ou nada no meinho das pernas. C’est drôle. Já cacei mais de mil – e até agora não me convenci. Não é de achar que se comprova, qu’on ne trouve..., mas essa busca, ela é que prova, em nós, por todas as mulheres, que – a mulher – não há. Quando ninguém mais procurasse, a mulher haveria, mon-cher, meu caro. Mas me diga, s’il-vous-plaît, se há quem não se invoque, não procure – nem elas, mon-coco, petit rapaz. Eu nunca mais ouvi falar de Ismênio, nem mais o vi, nem li denovo estrepolia sua por jornais. Sumiu no vento (ou no mar). Antígona, também, uma das filhas de Jocasta, tinha uma irmã chamada Ismênia. A primeira foi mandada à morte por seu tio, o rei Creonte, por meter-se com ele no meio da contenda entre os irmãos dela (Eteocle e Polinício, o primeiro a favor e o segundo contra as transas do titio). Todo mundo conhece que essa mana mais velha queria igual sepultura, em pátrio terreno, para o seu Polinício desgarrado. Ismênia ficou só por ali zanzando, na tragédia toda, e sempre hesitativa. Mas 89

quando a irmã se preparou pra morte, condenada, Ismênia a procurou dizendo de querer morrer com ela – e contam que Antígona afastou-a, docemente, e foi sozinhazinha para o seu destino. Também contam, entendidos, que desde então Ismênia logo some lá da lenda, de mistério. Ignora-se o seu fim (como eles dizem). Estranho – que ninguém desse atenção demais para esta filha do Rei Édipo.

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quase uma estória de infinito amor

(Psicanálise Selvagem, com citações de G. D.)

...ainda lhe faltaria cruzar a capital, o centro do mundo, onde sua escória se amontoa prodigiosamente. Ninguém poderia abrir caminho através dela, e menos ainda com a mensagem de um morto. Mas tu te sentas junto à tua janela, e imaginas isso, quando cai a noite. Kafka

Era um hino de amor. A voz, que escuto, é magoada e triste. – Harmonia celeste, Que à noite vem nas asas do silêncio Umedecer as faces Do que enxerga outra vida além das nuvens. Esta voz não é sua; É acorde talvez de harpa celeste, Caído sobre a terra! G. D.

Na noite desse dia em que, segundo o calendário, devia começar a primavera, no ano da graça de mil novecentos e sessenta e quatro, tanto X quanto Y foram dormir muito cedo. X, porque o cansaço de um dia exaustivo de trabalho lhe fizera um torpor por todo o corpo. Y, porque o sono lhe pegara, de bruços, os olhos dos livros, em sua biblioteca, e só pela manhã notasse o acontecido. Só sei, eu, e aqui vou registrando, por serem X e Y meus clientes. E não cometo gafe de profissional, blefando ética, pois só me afasta de método e saber o evento estranho: que, ambos, abandono; e encareço, meio perplexo, esse acaso – ou que não fosse –, me perguntando o seu poder de cura, ou de começo, a dispensar meu pacto. 91

Dia seguinte ao do ocorrido, ambos tinham sessão marcada em minha agenda. Sessão individual, cada qual, em horas afastadas. E posso garantir, por todas as pesquisas, que nem de antes se conheciam e nem se conheceram em meu trabalho: nunca se viram nem se ouviram; nenhum sabia de algum sua existência. Mas, eu, sabia. No dia anterior ao do ocorrido, ambos tiveram uma sessão comigo. E por trabalho já avançado, eu já traçara, de ambos, perfil dos dois fantasmas que acodem seus desejos. E jamais eu notara (talvez por reparar demais na fala e menos me importar com o resto e o corpo) que em proporção inversa se anulava, por unidade tida, aquela dupla, no que a imagem de X estava para Y, em fantasma, assim como a imagem de Y, em fantasma, para X: a gaia matemática. Se um buscava a figura alta mas não necessariamente alongada, os cabelos de caracóis pequenos, a tez clara, os olhos mansos mas pontiagudos, gesto expressivo, franco e variado, mente afilada, a invenção muito fácil, o gosto da dança, a música no trato, a fala cativante, em brilho de veludo, o ouvido cativado, a beleza nem sendo ao corpo necessária, mas virtude (se é que esta palavra...), sentido de beleza à flor dos sentidos, a inteligência bem clara mas ao poético vertida, o sexo não subdito à genitária cama, mas artesão e artista, e tudo isto centrado em respeito e recato, em carnaval sagrado, e em fidelidade... Se um buscava o perfil de silêncio e o porte esguio, a seda nos cabelos e o cetim na pele, a beleza sem mágoa, a entrega mais fácil, mas de escolha, a tez sapotizada, o gesto lento, a calma, o gozo terno, as mãos pesadas, os pés bonitos, lábios rasgados grossos, longo pescoço, o sexo perfeito em mármore helenista, a fala clara, a mente aberta mas ingênua, um anelo de apoio e receptáculo, a estada simples mas soberba, a pele quase sem pêlo, a alma dedicada, o andar sem peso, e a beleza, e a beleza, e um exatíssimo cheiro... Se um buscava isto e um buscava aquilo, muito mais do que digo, de modo a não pintar retrato nítido, em X se achava, e em Y, e vice e versamente, os compostos exatos. Mas de acaso insensato... O ocorrido, que neste relato inscreve data e referência, eram só sonhos. E nesse dia em seguida do ocorrido, ambos narraram, em sessão minha, os seus dois tidos – o que me fez mais tarde comparar as fichas, sacando, horoscopista, do azar, estranhas artes. 92

SUJEITO X SONHO 1 Eu sonhei durante a noite... Que triste foi meu sonhar!

SUJEITO Y SONHO 2 Era uma noite medonha, Sem estrelas, sem luar.

Eu estava num trem e havia muita gente na plataforma para se despedir de mim – mas eu não conhecia ninguém. O trem parece que estava vazio, só eu estava nele. Então todo aquele pessoal começou a me acenar com lenços brancos e o trem começou a andar imediatamente em grande velocidade, como se não tivesse que acelerar aos poucos. Aquelas pessoas se afastavam em pouquíssimos instantes. E o trem parece que subia também, pois eu os via de cima. De repente, era eu que estava só na plataforma de uma gare absolutamente deserta: não havia ninguém, embora tudo estivesse aceso. E eu ficava acenando na direção do ponto de encontro dos trilhos no horizonte, com um lenço branco, embora não houvesse trem. O silêncio era absoluto.

Eu andava por uma rua muito escura que desembocava numa praça muito grande. Não havia ninguém – e eu tinha muito medo de atravessar a praça e encontrar um ladrão. De repente havia uma luz no meio da praça, mas no chão. A luz refletia numas coisas brancas que estavam em volta dela. Me aproximei e verifiquei que eram muitas pessoas pelo chão, amontoadas, fazendo sexo em grupo ao redor de uma vela. Passei por elas muito naturalmente, como se passasse por entre crianças numa praça. Me lembro que no sonho fiquei em perplexidade com a minha naturalidade e indiferença, pois era mais de acontecer o contrário comigo. Sentei junto da vela, como se não estivesse acontecendo nada e comecei a ler um livro de gramática que eu trazia dentro do bolso.

Não sabeis o que o monstro procura?

Não sabeis a que vem, o que quer?

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SONHO 2

SONHO 3

Ah! Que eu não morra sem provar ao menos Sequer por um instante, nesta vida Amor igual ao meu!

Uma alma que me entenda, irmã da minha, Que escute o meu silêncio, que me siga Dos ares na amplidão!

Eu estava no largo da Carioca e olhava para o céu. Achei que era um dia lindo para praia, em vez de estar na cidade. Mas eu devia seguir pela Gonçalves Dias para encontrar alguém na esquina de Ouvidor. Os dados eram muito claros e o encontro muito importante. Mas eu não sabia com quem deveria me encontrar, embora eu tivesse uma certeza eufórica de que depois desse encontro todos os meus problemas estariam resolvidos. Na esquina de Sete de Setembro houve uma batida: dois carros se chocaram de frente, não sei como, e a cabeça de um dos motoristas rolou feito bola de futebol para a sarjeta. Uns moleques começaram jogando pelada com ela. Isto foi para mim um choque muito grande, pois tinha certeza de conhecer aquele rosto, embora não me lembrasse quem fosse. Comecei a gritar com os moleques, mas eles não me ligavam, ou não me ouviam. Continuei caminhando e parei na esquina do encontro

Eu estava no Cais Pharoux, onde trabalho. Era de noite. E eu estava de assento no píer com as pernas balangando e batendo com ritmo constante no cimento. Eu tinha um encontro marcado com o meu novo caso. Agora era amor. Pela primeira vez íamos dormir juntos e eu só queria correr para o encontro. Mas o chefe me mandou ficar ali, tomando conta do navio que ia chegar. Eu estava com muita angústia, com medo de não dar tempo de chegar ao encontro na hora marcada. Mas na verdade eu não sabia quem devia encontrar. Mas tinha certeza de que era o meu tipo exato e que pela primeira vez na vida eu ia dar uma trepada de verdade, satisfatória. O chefe chegou e disse que eu já podia ir. Saí correndo. E me lembro que os edifícios da Rua do Ouvidor passavam por mim como se eu estivesse de automóvel, velozes, mas eu estava correndo a pé. Eu tinha que chegar na hora certa à esquina da Gonçalves Dias onde o alguém me esperava. E enquanto eu corria minhas roupas não se aguentavam e iam arreben-

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marcado e fiquei olhando para a multidão dos rostos que passavam na angústia de encontrar a pessoa procurada. Mas eu não sabia quem era a pessoa. Então eu acordei chamando o meu nome.

tando e caindo – e eu ficando a nu. Passavam umas pessoas que me olhavam e eu tentava me tapar com as mãos e os braços. Cheguei ao ponto de encontro na hora exata – mas não havia ninguém lá. Então eu acordei assustadoramente.

Onde estás, meu senhor, meus amores? A que terras – tão longe! – fugiste?

Onde agora teus dias se escoam? Por que foi que de mim te partiste?

SONHO 3

SONHO 1

Em cismar sozinho à noite.

Mais prazer encontro eu lá.

Tornei a dormir e tive outro sonho. Eu estava num lugar cheio de árvores e caminhos, parecido com o Jardim Botânico. Havia uma porção de crianças com mães e com babás. Várias crianças eram bebês empurrados em carrinhos. No meio dessas crianças, uma menina empurrava um carrinho de bebê onde estava sentada, com fralda e touca só, não um bebê, mas uma velha que eu sempre vejo pedindo esmola na porta da igreja perto de casa. Então ela estendeu a mão como faz sempre quando eu passo. Mas reparei que ela não estava pedindo, mas oferecendo

Eu vinha dirigindo meu carro por uma rua estreita, cheia de curvas e cercada de muitas árvores, como a estrada Velha da Tijuca. A rua estava ladeada alternadamente por pessoas vestidas com roupas de frio, próprias para lugar de neve, ou coisa assim. Todo mundo com casacos grossos, gorros, botas, chapéus, cachecóis. À medida que eu passava eles cruzavam correndo pela frente do carro, fazendo gestos obscenos para mim, como quem diz que quer entrar para o carro para fazer qualquer sacanagem. Eu fiquei em pânico e queria sair correndo dali. Mas não 95

acelerava o carro porque tinha medo de matar um deles quando cruzasse pela minha frente

uma bala. Aceitei, peguei, mas era um caramujo.

Nossa vida mais amores.

Nosso bosque tem mais vida.

Aí estão os sonhos tidos. Talvez tudo seja perfeito. Talvez o encontro não se desse só porque não foi seguida, nos dois casos, mesma ordem. Ou porque, nos dois casos, o mapa se perdesse. A ordem não perdoa. E a lógica é esta – em qualquer mapa.

E tu dormes, ó Piaga, e não sabes, E não podes augúrios cantar?

E tu dormes, ó Piaga divino! E Anhangá te Proíbe sonhar!

Não chores meu filho. Não chores, que a vida etc.

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interlúdio

gorjais GORJAL, s. m. (ant.) parte da armadura que protegia o pescoço. Caldas Aulete

RISCO TOTAL: Poema retirado dos Escritos de Lacan. Pois o risco da loucura se mede pelo atrativo mesmo das identificações nas quais o homem engaja ao mesmo tempo sua verdade e seu ser. Longe de ser portanto a loucura o fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência. Longe de ser para a liberdade “um insulto”, ela é sua mais fiel companheira, ela segue seu movimento como uma sombra. E o ser do homem, não somente não pode ser compreendido sem a loucura, mas ele não seria o ser do homem se não levasse em si a loucura como o limite de sua liberdade. E para romper esta fala severa com o humor de nossa juventude, é bem verdade que, como teríamos escrito, numa fórmula lapidar, na parede de nossa sala de espera: “Não se torna louco quem quer”. Mas é também que não atinge, quem quer, os riscos que envolvem a loucura. Um organismo débil, uma imaginação desregrada, conflitos que ultrapassam as forças, não são o suficiente. Pode ser que um corpo de ferro, identificações poderosas, as complacências do destino, inscritas nos astros, levem mais seguramente a essa sedução do ser. Pelo menos esta concepção contém imediatamente o benefício de apagar o acento problemático que o século dezenove pôs sobre a loucura das individualidades superiores – e de calar o arsenal de golpes baixos aplicados sobre a loucura dos santos ou dos heróis da liberdade. 99

Pois se a obra de Pinel nos tornou, graças a Deus!, mais humanos para com os loucos comuns, é preciso reconhecer que ela não aumentou nosso respeito pela loucura dos riscos supremos. O CORPO Era um... digamos, homem que da penúltima guerra tomara parte, ou essa guerra é que tomasse parte dele. E sabem o que perdeu?: ambos os braços, rente com o sovaco. E ambas as pernas, rente com a virilha. No resto ele ganhou: tem medalha de herói. Aí, ele estava deitado na sua cama (naturalmente que houve alguém que o botou lá), no chamado decúbito dorsal. Sozinho no seu quarto, com a porta trancada, esquartejado de si e do mundo ao redor. O dia era chuvoso, num domingo à tardinha, e alguém ouvia, meio perto, um abominável futebol que interferia com a televisão que o homem olhava e ouvia, posta, aos pés de sua cama (naturalmente que não aos seus pés). Do lado ele mantinha o rádio e a vitrola no alcance da mão de alguém. Então veio chegando a noite e faltou luz (tanto a do dia, quando a da elétrica energia). Levou televisão, parede, quadros, tudo, tudo. Ficou somente a impressão de barulho de chuva miúda, um cheiro de chão, um pouco de friagem para divertir, e a impossibilidade de mover. Ficou sobretudo a sua quase impossibilidade de morrer, por próprio gosto, sobrando para isto apenas alguma greve, de não comer, para o que seria necessário uma força de mente sem igual e o afastamento definitivo de outrem que, embora o desprezando de comum, bem pouco para ele atentando e pouco o atendendo, logo nesse caso acorreria com voz de salvação, com soros e sondas e hospitais e intervenções, naturalmente que por sua (deles) própria salvação. Ele estava proibido de (querer) morrer. Começou a pensar nalgum divertimento que o fizesse sumir daquele zero, que o fizesse haver fora de horror. Pensou em coisas corporais primeiro, como sempre primeiro fazia, pois que era em corpo que, seu, o problema resistia – e não em abstrações. Lembrou de seu sexo, lá no fim pendurado, o ú1timo dos membros amputados, também nem seu, e agora seu limite de baixo, sua base e seu pé. Pensou que poderia masturbar-se, mas logo riu da insustentável diversão. 100

O negócio (ou ócio) era continuar pensando, pensando, até encontrar pensamentada solução. Sempre se espantara de jamais haver enlouquecido, o que sempre esperara desde aquela destroçante vez. Ao contrário do que era de se supor, considerava o fato de não haver enlouquecido como mais uma mutilação, como a sua loucura real, considerando que algebricamente estava certo, no que menos por menos sempre é mais. Houvesse enlouquecido – e teria por mente um corpo igual, conforme com seu corpo, e a harmonia haveria de chegar. Mas não. Pois assim não haveria mesmo qualquer mutilação como a que pelo cálculo real agora há. Dantes, pelo início do trauma, já tentara escafeder por boca e voz: tentara o canto. Se nada mais por fazer, cantaria de estourar por toda a semivida, mas sua voz não era de cantar. Então, naquele dia, sem luz, sem tudo, só lhe sobrando mesmo boca e ar, começou repetindo em alto tudo o que já lera e ouvira e que a memória acaso guardara e que a1guém pudesse até chamar de poesia. E começou a falar, falar, falar. E eis senão quando, nesse dia, ali naquele escuro, aquele imóvel verificou que falando já não era memória, mas tudo dito novo, tudo golfando, neutro, de sua neutra voz. * Te beijo na boca, vorazmente. Não sei se quero devorar-te os lábios ou a palavra. * Fábula do Leão e dos Ratinhos Aí, veio o ratinho, enquanto o leão cheirava o reino dos seus ares. Aí, o ratinho fez um sinalzinho com o rabinho, e então apareceram dez ratinhos. Aí, cada um dos dez ratinhos que haviam aparecido com o sinalzinho do rabinho do primeiro ratinho fizeram também um sinalzinho cada qual com seu rabinho, e então apareceram dez ratinhos para cada um dos dez rabinhos que para eles fizeram aquele certo sinalzinho. Aí, cada um dos cem ratinhos... e assim por diante até n+k ratinhos. Aí, enquanto o leão cheirava o reino dos seus ares, vieram os zil ratinhos: num zás de truz lhe roeram os culhões. 101

A um professor de litter-atura Ensinar como se redigiu em prosa a “vida” redatada em verso. A um pintor Senhor: O meu anjo Nenhul pousou, também, na tua tinta, seu cosmo de segredo em código de azul. Acaso Desobjetivo A 17 de janeiro de 1938, inaugurava-se uma exposição internacional do surrealismo. A 17 de janeiro de 1955, Oppenheimer declarava: “Num sentido profundo, que nenhum gracejo de mau gosto será suscetível de extinguir, nós, os cientistas, tomamos contato com o pecado”. A 17 de janeiro, o calendário católico aponta Santo Antão: setentanos no deserto: a prova pela rarefação. E veio Cézanne, dois dias depois. Um susto Num lugar proibido (todos os lugares são proibidos para todas as crianças) uma criança achou alguma coisa ou bola (que tudo, é bola, que rola e vem e vai). Assim, ponhamos “bola” e “lugar” entre o estranho das aspas, enquanto, de algum susto, a criança não se aspe de estranha. A “bola” era esquisita, de pesada, em gomos, de parecer com bicho ou com pedaço (pedaço só – mas sem saber de que). Mas a criança: encantada. Pela “bola” encantada, admirou-se, de reflorir de sorriso em rosto de comer. A “bola” parecia com uma bola ou coisa de importância (de adulto esconder, trancar à chave, proibir de mexer), ou com o mundinho de lata, e que era um cofrinho, que alguém, de presente, lhe emprestara, para usar e reter, mas que ela mais tomava de brinquedo do que de bom negócio de aprender. Pegou da “bola” e brincando: de rolar, lançar, sumir, e recolher. Mas, de uma vez, a “bola” rolou longe – e parou pelos pés de algum adulto que, abaixando e tomando, admirou-se, de murchar de franzido em rosto de morrer. 102

Chamou pela criança, a recolheu num gesto de conforto, e grave e cutilante lhe mostrou: onde você foi achar isto?, não brinque mais com isto, passe longe, e chame alguém pra resolver, isto não é brinquedo, não é bola, você já viu no cinema?, isto é perigo, é mal, é morte, o nome disto é granada, tem nome de tesouro, tem a forma de um fruto, mas é só morte, e mais que morte, é dor, você já viu no cinema?, isto é uma bomba, se a gente mexe aqui, solta o retém, a bomba explode, e você morre, e mais que morre, despedaça, e sangra, e dói. E o adulto tomou a “bola” e carregou. Também, que porcaria! Era um brinquedo engraçado, que dava pra ser bola, que-nem o mundinho de lata, que-nem pedaço (só pedaço, ou peça, que de algo ou de máquina sobrou de inecessário). E a criança ali ficou fincada, reta, de pé no meio (bem no meio) do “lugar”, com os olhos paralelos, e toda admirada, de sumir, de sentido, em rosto de nem ser. Piedade Na minha terra eu conheci um homem que, embora solto e profissional, era tido por louco. Mandou construir no seu quintal uma escada de pedra que acabava em patamar. E todas as manhãs ali ele subia, se pondo bem de pé. Abria um grosso livro, ou caderno, aonde alto lia, voltado para os céus. Ali ele escrevia, dia a dia, cada grosseira injúria nova que sabia, voltada contra Deus. Quinze minutos diários bem exatos, aquele homem curtia – sua única razão de em vão permanecer. Voltava-se gloriosamente para os céus e gloriosamente ele xingava a Deus. Jamais conheci outro homem tão religioso. Digo: jamais. OS MELHORES PERFUMES VÊM NOS MENORES FRASCOS – que são geralmente, (não de vidro) de cristal. RELIGIÃO: Catódico apostrófico romântico. Reclamação de literato niteroiense, da escola mazombista: 103

Nem, ao menos, por visita, um corvo negro E seu repetitivo nevermore. Mas urubu: ave, além de medíocre, nem bem nem mal agoureira. Vejam só! A “consciência” de estar Ah, onda de maravilha em que rebolo sem saber nem que rolo, nem sabendo se há onda onde eu rolo, sem saber por qual essência ou forma é (sou) vaga(o). Sermão sem montanha E quando derdes esmolas, não deixeis que a vossa mão esquerda saiba o que faz a vossa mão direita. E o vosso Pai que tudo vê em segredo, não ligará a isto a menor importância, se é que verá em segredo, se é até que verá, se é que será acaso o vosso Pai. Botada, aliás inútil – Ali está o cadáver de um rico. – Não. Ali está o cadáver, e ponto. Todos os cadáveres não passam de ser miseravelmente POBRES. Há que ser muito vivo. ACRÓPOLE: Poema achado nos Tristes Trópicos de Lévi-Strauss Melhor que Atenas, o convés de um navio no caminho das Américas oferece ao homem moderno uma acrópole para sua prece. De agora em diante, nós a recusaremos a ti, deusa enêmica, professorinha de uma civilização emparedada. Acima desses heróis – navegadores 104

exploradores conquistadores do Novo Mundo – que correram a única aventura total proposta à humanidade (enquanto esperassem a viagem à lua), meu pensamento se eleva para vós, sobreviventes de uma retaguarda que tão cruelmente teve que pagar pela honra de manter as portas abertas; índios, cujo exemplo, através de Montaigne Rousseau Voltaire Diderot, enriqueceu a substância do alimento com que a história nos nutriu, Hurons, Hiroqueses, Caraíbas, Tupis, estou AQUI! M’e H’ (pretexteorema) Quando M’ viu H’, ficou diamente com-pacta. M’ não sabia se H’ era M’ vendo H’ ou se M’ era H’ sendo olhada. Ora, dá-se! Nunca M’ tinha inquietado de talcoisas – mas era só de talvez que H’ era tão fofinha e ciscaciscava e pernespalhava toda terrinha do quintalzinho de M’. Mas era o 5ºalzinho de M’ ou M’ que era do 5ºalzinho? Como já disse, M’ ficou diamente com-pacta. E H’ era do 5ºalzinho ou o 5ºalzinho é que era da H’? Se o 5ºalzinho fosse da H’, M’ estaria em seus domínios (da H’). Se o 5ºalzinho fosse de M’, H’ é que estaria em seus domínios (de M’). Mas... se H’ é que fosse do 5ºalzinho, assim como M’ (também fosse do 5ºalzinho), aí é que seria muito tarde, pois quem era M’ pra M’, e quem era H’ pra H’, e quem era M’ pra H’, e quem era H’ pra M’? Quem era H’? Ela ou M’? E quem era M’? Ela ou H’? Afinal, quem é que estava ciscaciscando e pernespalhando? Era ela 105

ou H’. Ou era o 5ºalzinho? Como eu bidisse, quando M’ viu H’, ficou diamente com-pacta. O que um poeta-de-esquina chamou de Razãobrás: Nossa Razão é como a reina de Inglaterra, aonde um povo sensoríssimo e esmartreiro a tem por “A Mais Nobre”, “A Veneranda”,... lhe põe Coroa e Cetro – e não lhe dá Governo. CREDO (copiado de um caderno de notas de moçoila universitária) Creio em Freud, pai todopoderoso, criador do Id e do Ego, e na Libido, um só impulso nosso senhor, o qual foi concebido de Eros, nasceu do Princípio do Prazer, padeceu sob o poder do Princípio de Realidade, foi difamado, reprimido e recalcado, desceu às origens, no terceiro tempo ressurgiu de Thanatos, subiu ao Nirvana e está sentado à direita de Freud, pai todopoderoso, donde há de vir a julgar os neuróticos e reprimidos. Creio no Superego, na santa mãe Psicanálise, na comunhão dos Analistas, na remissão dos complexos, na ressurreição dos instintos, na vida erótica aqui e agora, amém. Copiado de um caderno de notas de um jovem jornalista. Posso garantir que há uma ânsia de certeza no modo como eu hoje espero pela chuva. O céu esteve pesado durante horas, sem a chuva cair. Mas é nisto que ponho a tensão-volúpia de esperar pela chuva, que há de vir, em brabejos de fera, seus trovões, e a rara mas muito intensa luz dos seus raios dos quais eu deveria ser irmão. Espero pela chuva como espero por um banho depois de andarilhar o dia inteiro pelo mundo e regressar, suado imundo, dos cansaços do mundo excessivamente profano e cotidiano. Fortuna Um autor escreveu (Axelos, Le Jeu du Monde) que “o que ainda não foi vivido e o que já está morto, pode às vezes ser entrepercebido. 106

Um tesouro escondido e invisível só existe no dia em que será descoberto. Antes disto, onde está ele?” Não sei: fui perguntar a um inveterado comprador de bilhetes de loteria. Resposta: “Um bilhete no meu bolso é a certeza de lidar com a fortuna em algum lugar ou tempo reservado. O ritual de cada compra de bilhete, que reelaboro antes de cada sorteio, me garante denovo o possível e me ressuscita de minha quase inexistência qualquer outra ou financeira. O bilhete é o mapa da mina, de a ninguém comprovar que não seja o da minha.” Trecho de carta de um pensador para um não-pensador: Encareço que me perdoes. Infelizmente, porém, não posso seguir-te. Teu universo é fácil demais. Eu, não posso entendê-lo. Trova popular Se os Príncipes do Sudão, Se o Rei de Bagdá, Se o nosso Conde D’Eu, Por que é que, eu, não posso? Trova popular em exigência da prova da viagem, igualmente à que apresentam os turistas menores: Todo Astronauta que parte, deve trazer, pelo menos, uma gravata, de Marte, e uma camisa, de Vênus. LEDOR Quando criança, eu tinha um bom divertimento. Lembrar que não havia disponível, nesse tempo, nem etc., nem etc., nem etc., nem televisão. Eu frequentava a pequena biblioteca pública municipal. Ia detarde, quase todo dia. E toda vez que eu ia, encontrava o mesmo 107

velho, sentado no mesmo lugar, fazendo os mesmos gestos, lendo o mesmo livro, mantendo o mesmo olhar. As vezes eu chegava primeiro e via o velho chegar. Vinha lento, quieto, olhando em volta, não pedia livro ou revista ou jornal, abria o seu pacote que trazia e que era um livro embrulhado, aquele que ele lia sempre sem cansar. E, na saída, o mesmo ritual. Ficava sempre no mesmo canto, entrincheirado, de costas para um ângulo de estantes, ninguém podendo pegá-lo por detrás. Depois de umas semanas, fiquei invocado. Gestão de descobrir o que é que o velho lê. As estantes não eram rentes com as paredes, talvez alguma técnica, de antanho, de conservação. E meu corpo franzino podia por ali, com jeito, se esgueirar. No exato dia azado, cheguei doloso primeiro, ganhei o esconderijo, e só foi esperar. Antes não fora, que a lição foi de espantar. Que o velho fez tudo igual e, abrindo o livro, então eu pude olhar por entre os livros que fiz de fortaleza e de ameias, o que foi bom fazer, pois o do velho numa fora livro: só por fora, falso livro e, quando abria, era apenas de espelho, fazendo-se notar, no ângulo comum que faz um livro lido, dua caras do mesmo velho que o terceiro lia, ou sei lá, ficavam os três a se olhar. E eu ali, apertado entre um muro e uma estante de livros, sem nem poder sair e nem poder falar. Redação de aluno de escola secundária em aula de português (A) e resposta não-remetida de professor (B), respectivamente intituladas: A. CARTA DESESPERADA A UM ADULTO Confusão, a confusão é tanta, tanta... Nuvens, trevas indevassáveis trevas. O Babel mental aumenta, a confusão é total, desamparo, me sinto no ar, sem base, apoio, mão. Não eu não, mas, sinto que eles estão mergulhando, cada vez mais. – GERAÇÃO APÓSGUERRA – Toda culpa dos que tentam se eximir, acorrendo a teses psicológicas, antropológicas, ilógicas, nada 1ógico; não é 1ógico a 108

maconha aos 13, não é 1ógico a prostituição antes mesmo da primeira menstruação, e o roubo. Resíduos. Industrialização. Virgindade? Não. Onde está a tese Mater-Pater? Il n’y a pas. “Prenderam meu filhinho só porque esfaqueou o guarda, um preto sujo”. Por quê? Por quê? falta a mão, a conversa. Você tem vergonha? ou medo? uma conversa com ele faria tão bem – desamparo paternal. O vício substitui o amor, o carinho. O carinho é tão indispensável, se vocês soubessem. Vocês sabem, eu sei. Então o que falta? dar o braço a torcer e descer a eles? É tão fácil... vocês não são ADULTOS? A operação já começou, não culpem os “beats” os “hippies” ou os “goodies” eles não têm culpa. Foram procurar compreensão entre os incompreendidos. É preciso que Você!!! faça algo, algo deve ser feito antes da derrocada geral. O Brasil o Mundo, tudo depende de nós dependemos de você por favor é tão pouco, uma palavra, um assentimento com a cabeça, um gesto, é pouco, mas suficiente. SALVEM O MUNDO. Por favor é tão pouco!!! PLEASE. B. CARTA CONTRISTADA A UM ADOLESCENTE Que mão estenderei ao teu olhar de medo? Que mão herdei da mesma ausência? Que enredo? Que nexo te posso oferecer, se estou perplexo, como tu, diante da mão que falta ao desgastado rosto? Tua palavra dura, de diamante, fere os ouvidos, mas não os sangra ou purga. Por ti e por mim-mesmo já de outras vezes levantei meu grito: os rostos se voltaram sim, mas eram cegos. A nuvem, a escuridão, não são indevassáveis; 109

quando o são, por olhos desarmados, é bastante outra-mão em nossa mão para o alívio do pânico. Esta mão, tenho – e te ofereço. Não é vergonha ou medo que teus olhos me inspiram – quero é vê-los e vê-los vendo o humano nos meus olhos, e a ternura, a indispensável ternura. Não preciso descer, ou subir, para este encontro: estamos lado-a-lado, só nos falta é nos vermos. Olhemo-nos pois. E eu te aceitarei e tu me aceitarás na toda grandeza e humildade do que somos e não nos xingaremos mais de ADULTO e ADOLESCENTE Sim, tudo depende de mim, de ti, – porisso existo e existes. E eu escuto o teu canto de desgosto. E te prometo (sim, porque é promessa) não trair nosso pacto de sangue: porque é de sangue o contrato que flui no teu e no meu corpo. Me falta a mão que não herdei: PODER E MANDO. Mas tenho a oferecer-te todo o resto: sangue e nervos e carne e vísceras e mente. E tudo isto por teu canto triste que eu sonhei mais alegre que o de pássaro.

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O psiquiatra é o melhor amigo do homem. Antigamente, era o cão. Mas agora, arranjou emprego na polícia. Fala de menino (nove anos), dito esquizofrênico, citada pela Mannoni: “Aquilo não parava de ferver, o sol se aproximava, aproximava; logo tudo era apenas morte, nada senão a terra que continuava a girar completamente sozinha. Tudo era morte apenas. Nada a não ser a terra que queimava e as águas que borbulhavam. E a terra começou a ficar cada vez mais pequena, até que bum, bum, bum. A terra se chocou com o sol e estourou numa explosão terrível. Não sobrava nada de vivo. O que restava da terra vinha agora do sol, apenas suas cinzas. E este foi o fim da terra. E em volta do sol, havia agora apenas oito planetas em vez de nove. O que aconteceu à terra era muito triste. Havia apenas um pouquinho muito pequeno de música. Até o rosto mágico estava morto...” CONVERSA ADSURDA A – Eu, sou realista. Dura lex sed lex. Quando fiz dez anos, Papai e Mamãe me chamaram e me disseram honestamente: “Meu filho, agora você deve saber: Papai Noel não existe”. B – Comigo foi um pouco diferente. Talvez eu também seja um... realista. Não me lembro bem quando, Papai Noel me chamou e disse, na verdade: “Meu filho, você tem que saber: Papai e Mamãe, não existem”. EU EU O meu santo pai era um homem do demônio. Sou do sertão do nordeste, vida dura. Hoje é moleza essa vidona de cidade. Naquilo era só uma casa em sopapo e uma terrinha. E tudo uma poeira, uma secura. A mãe e sete irmãos se foram para os tios, na cidadinha pobre, de esperar que meu pai e o mais velho, eu, dos filhos, com dez anos, vingassem de salvar sustento em colheitinha punga. Ficamos portanto só dois – e uma duna no meio. Conheço meu pai, por vida minha, de mais de seis lustros, e posso somar pelos dedos cada vez que ouvi palavra sua. 111

Daquela vez, duraram meses os trabalhos – forçando a terra a brotar com toda a sede dela. Meu pai saia do catre em hora exata, sem falar, e o gesto me bastava: hora de amanho. Punha o bule no chão, e era o café, pegava da enxó, da enxada; e era o pau e a terra-pedra, e assim vai, vai. Quando parava e dava à testa dele um conforto no ante braço e no cabo, era almoçar, ou seja, comer ali no chão a farinha e a batida, um gole de água e barro. Depois, mais sinal de trabalho, até novo antebraço, e era a volta e comer, o mesmo, a janta em casa, e depois ressonar. E tudo em nenhumas palavras. De som, se ouvia só seu respiro pesado. Mas loguinho ele dormia, ainda eu punha força de andar bem 1égua, aonde eu tinha achado uma pedra esquisita, muito grande, cavada numa toca de fundura. E em frente dela, qualquer barulho voltava, quase igualzinho, logo em seguida. Então eu parava, ritual, de frente para a pedra, e gritava meu nome, assim: gritava, gritava, quanta vez eu precisava, e vinha pra casa dormir desarreitado – de ouvir meu nome chamando, chamando, e vindo de outra voz. SE EU FOSSE... Duas Composições Infantis (de meninas de escola primária) A) ...UM GIZ. Se eu fosse um giz eu seria um giz branquinho... branquinho. Eu toda hora ficava rebolando pra lá e pra cá. Meu nome seria Branquinho. Eu sempre era usado pela D. Sandra; Mais nunca queria ser usado senão ia me gastar todinho todinho. Por que ela passa muito dever!!! Na caixa de giz eu tinha amigos mais eram todos vadios. Quando as professoras pegavam eles, eles falhavam eram tão vadios!!! Um dia fui para outro colégio que SACO ficar lá! Fui usado em matemática e a chata da professora me quebrou ao meio e eu fiquei sem a parte de baixo e quando eu queria fazer necessidades não podia por que já era minha parte de baixo! Daí então cresci e fiquei com a parte de baixo e já pude fazer as minhas necessidades e fiquei meia hora no banheiro. 112

Já tinha 18 anos e ainda estava riscando que uma beleza! Fiquei ficando velho e comecei a falhar! Fui ficando velho ficando velho e acabei Morrendo. Mais com a parte de baixo!

canto.

B) ...UMA SERINGA DE INJEÇÃO. Se eu fosse uma ciringa de injeção poderia passear por todo o

Eu estava em um hospital chamado hospital Miguel Coot. Uma vez eu fui parar no acento de um senhor muito sujo que fedia feito uma gambá. A ciringa ficou fedendo tanto que fui despejada em uma lata de lixo, perto de um mendigo. O mendigo meio bêbado pegou-me com toda a força e disse que coisa bacana! vou pegar para mim e dar um bom banho de caxaça. Depois de muito tempo fui parar em uma farmácia na Urca em que me recolheram e deram um banho de alcool e de agua fervendo e pois para vender. Assim de tardinha um senhor muito nervoso chamou: Mosso! Gritou o senhor muito agitado pedindo uma ciringa de injeção. Pagou e comprou o remédio para preparar a injeção. Saiu correndo para dar logo a engeção. Quando chegou na casa a menina ela estava estendida na cama e respirando mal. Quando aplicou a engeção ela sentiu uma dor terrível e morreu e na hora de interro da menina pegaram a ciringa quebrada enterrou-me junto da menina. * Do Livro dos Inventos de João Ternura: “Um supositório contra crises de angústia” – (Aníbal Machado) Nota: Já foi por Deus ou alguém inventado; mas venda ou doação foram camuflados no mercado (pelo menos de massa). * Início de a1gum poema assaz recitado: “Antigamente a escola era risonha e franca”. Bisonha e tranca, antigamente e sempre. * 113

“Ad angusta per augusta”: inversão de lema velho demais: talvez também Victor Hugo no ato IV do Hernani (que graças a Bondeus não li). * “Eu imagino que carrego meu cálice a salvo em meio a uma multidão de idiotas.” Isto Joyce deixou escapar. * Psicanálise, segundo Sartre: “Explicaremos O Contrato Social pelo complexo de Édipo e o Espirito das Leis pelo complexo de inferioridade. Isto é, gozaremos plenamente da superioridade que os cães vivos têm sobre os leões mortos”. * E ensinou Baudelaire que “a verdadeira, civilização (...) não está no gás, nem no vapor, nem nas mesas girantes. Ela está na diminuição dos traços do pecado original”. Quem diria?! * E o “normalíssimo” T. de Chardin mandou a gente “descobrir o universal pelo excepcional”. * Mais Novalis: “Os órgãos do pensamento são as partes genitais da natureza”. LÉRIAS Na casa de praia, de verão, só tinha fossa. Esgoto, não senhor. Lotero e Martinho, dois irmãos, quase branco um, quase preto outro, tomaram profissão: limpam, sobreviver, no espaço certo, as fossas burguezinhas, tirando de artesãos bosta, em carrinho, que vão lançar ao sol no mato ralo longe, a secar e a feder. 114

Por não sentirem do trabalho ou nome ou cheiro, bebem demais: plantam cana no esterco, de modo a vencer com. Aí, eles limpam a fossa daquela família. Mas, do porre: 1. Martinho abandona o serviço, vai, entra no mar, banha, limpa, de querer seguir danado um belo rabo, de saia, de crioula que passado pela praia. 2. Lotero, homem de mais desvário porre, camba e amolece e cai dentro da fossa, bem sentado. Se bebeu, foi de aturar a saturada aquela, ficar mais defastado. Mas a cana, que o separa, nela o faz mais completo entranhar, entronizado. Logo Martinho retorna, com tabefe na cara, de se ver. Tenta salvar Lotero do seu banho sujo, mas Lotero é que o salva do ar livre de fora, e da recém vergonha. E então, os dois merdícolas lá dentro, o roto e o esfarrapado, num e noutro se agarrando e se apoiando, e escorregando, falhando só sem poder de safar. Toda casa tem dona; e ela chega vai à porta da cozinha. Verificar se o serviço. E vendo aquilo tudo, perde altura e distância e espalha, artesiana, o ar com profusão de ralhas impropérias. Xinga Martinho, xinga Lotero, declara de uma vez por todas que não pode confiar num trabalho assim, desses, que são só dois bebões, irresponsáveis, que têm lá dentro da cabeça o mesmo do que aonde estão banhados. E diz: – Você não pensa, Martinho? Você não pensa, Lotero? – Penso, madame. Penso, logo, desisto. O que um dos dois, qualquer, responde, sem saber, cartesiano. SONETINHO ADOLESCENTE Se é só pra recordar, mulher e flor, recorda, então. Te empresto o meu descanto. Mas não te molhe o rosto nenhum pranto. Mas não te embace o olhar a menor dor. Recorda – simplesmente – o nosso amor. E enquanto recordando vais, enquanto procuras recompor o meu quebranto quando os olhos nos teus, traz o calor 115

do antigo dia e põe no sentimento desgastado de sonhos e de esperas, onde o desejo novo não conflui. Revive, sem saudade e sem lamento, toda a felicidade que não era e o terno amante eterno que eu não fui. Kerigma E ouvindo tergiversar a sua fala, no que tomando de pau de vassoura, ou quase, o louco disse: – Se é por mera obnubilação da crassa ignorância, eu transijo. Mas, se é volição de dolosamente tripudiar sobre a nossa magna prosopopéia, arremeterei inexoravelmente com esta metafórica bengala ao ápice de vossa energumênica sinagoga, fazendo eclodir a vossa pasta encefálica em miríades de particulículas mesentéricas. Problema pedagógico Rebelde revelado, crer não querendo na estorinha caseira de haver que honrar e pai e mãe e parteira. Pseudo HaiKai Olhou para mim num sorriso narciso: pensou que me viu. Do estatuto científico Aliás, há quem suponha, “sabendo”, que as Ciências Exatas são muito mais exatas do que ciências. O Kitsch? Pergunta de um repórter entrevistando um “cientista social” algo famoso por suas investidas futuríveis: 116

– Como acha o senhor que serão, no futuro, as relações interpessoais, as estruturas grupais, numa sociedade pós-tecnológica onde todos os valores poderão ter mudado em face da totalização pela tecnologia? Não acha o senhor que tudo será absolutamente diferente do que hoje conhecemos? Não desaparecerão instituições como as de hoje, tais como família, casamento, paternidade, etc.? Resposta do tal “cientista”: – Não. Não acho. Do jeito como as coisas vão, se tudo permanece, o senhor pode até imaginar uma civilização onde seja viável industrializar o homem, ou algo parecido com o homem, por exemplo, robôs. De minha parte, eu até imagino o que poderíamos chamar, data vênia, The Robot Family. De lata, donos de pós-humana civilização, humanóides de flandres, mantêm tradições – cacoetes eletrônicos da extinta humanidade. Fabricam arroz cromado, feijão de bronze, carne de plexiglás, tomam ice-cream-soda de gasolina e gelo-seco, e põem, na salada, derivados de petróleo, servidos, por azeite ou vinagre, muito elegantemente, em belos frascos de cristal, ao invés de almotolia. Conversa para-literata de Pseudo-Intelectual (PI – mocinha boa aluna, mais boa do que aluna, de faculdade bacana) com Intelectual-Pseudo (IP – literato de meia-idade, desses que até chegaram a publicar um “ensaio” ou algo na mais badalada revista “cultural” da ocasião), em mesa de bar da moda, de bairro da moda, tomando o chope da moda. À moda de Millôr. PI – Você gosta de G. R.? Eu também adorava G. R., até o dia em que me contaram, não sei se é verdade, que ele era veado. IP – Você está avacalhando com o nome do escritor-maior com insinuações que não pode garantir: isso é calúnia. Além do mais, ainda que fosse verdade, o valor da obra dele não fica alterado. PI – Ah, mas eu não posso. Tenho horror de veados. Eu não tenho certeza, é claro, mas imagine se provassem que ele era veado: você continuava gostando dele assim mesmo? Se ele fosse veado? IP – E você é burra. E eu estou aqui conversando com você. E até achando que posso gostar de você. Aliás, entre veados e burros, é só questão de zoologia. Quanto a mim, eu prefiro os primeiros. E estou aqui, não estou? 117

PI – ?! Lotralizar ou Lotralize: Texto escrito por um “afásico” (aliás muito manso e serviçal, além de sortudo – desinterno de hospício). No uso de urna nova plástica. Estagiar, distinguir de modo gerais. Bolichear de uma era do século. Nos complementar no desenvolvimento que dá as comparações de noções de tábula das vibrações em altos e dar em cotas nucleares nas formas normais de ressoar as nossas divisões para a escama de declinar as éticas nas suas perfeições. Em anseio a enxergar as partes mais desconjuntadas que possa tomar em eleito e subtrair as suas divisões e tomar em conta suas vibrações e observações de migras de raciocínio de elevações de plásticas pelo balanço do grau de todos e de todas cores dos líquidos da água do mar. Representa em diversas cores diministrando as partes de mais altos líquidos dos dos devidenes de raciocínio do primeiro homem em graus. Que lotralizou toda esta parte de alto nível de revelar a ciência de desejar, de conhecer em milhões de extensões, de remover o seu pensamento de sentido em altos relevos de águas que dá os detalhes em formas mais estreitivas em líquidos que dissolve em todo o limite de forças de graus de altas formas de sumir as parências nos complementares. Os homens pretendem possuir ao conhecer pelos canais de competências e respeitível em massa a ciência exemplar as divisões de raciocínio o estudo do dequadro de altos relevos que vem nos trazendo a forma de divulgações de altas extensões o alto rebojo. Das formas de éticas suplante o fundo deste espelho onde se vê a lua passar nos astros pelo espelho deste líquido e onde está a cota das vistas, das minas e das fosfanas. OS DEZ MANDAMENTOS DA (famigerada) COMUNICAÇÃO

tantas.

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1. Amar adeus sobre todas as coisas. 2. Não elevar teu canto e nome em vão. 3. Não lançar mérulas aos corpos nem dar aos sãos as coisas 4. Quem tem ouvidos para ouvir, houve.

5. Dar adeus ao que é de Cézar e para as rezas dar adeus. 6. Sanar pai e mãe. 7. Não ensejar a colher do próximo. 8. Só pegar conta a cast-dade. 9. Cada um na sua que o adeus é de todos. 10. E, contudo, não matar. * Há o politeísmo, ou seja, a existência de muitos Deuses. Há o monoteísmo, ou seja, a existência de um só Deus. Há o ateísmo, ou seja, a inconsciência de Deus. Há o zeroteísmo, ou seja, a existência do Não-Deu(s). Haja a deusistência, ou seja, a sualvação. RES REI Resenha do reide de um reso reiúno, ressupino e reincidente resvalante, contra um reino de respeito onde, à rei residiu a reio e que, com resinada reima respançou, por reixa, em resposta arreitada e rés ao reiterado resguardo da reinstauração resoluta de reivindicado resgate, por re-historiação, do restar reinícola – o que, resvés, se reificou resigno: reígneo. E o visto é queném fantasma – que a1guns veem, a1guns nãoveem. Uns só podem duvidar. Uns só podem creditar. 119

Nota: O livro com o título acima (res-Rei), pouco depois de acabado foi queimado pelo autor, restando apenas, por descuido seu, esta página de rosto que aqui publicamos, a qual tivemos o prazer de sorrateiramente surrupiar. (Talvez a1gum dia o livro se escreva novamente). Reescrição de A BELEZA de Baudelaire Sou bela, vãos mortais, como um sonho de pedra. E meu seio, onde todos sofrem alguma vez, Um amor, como a matéria, feito de mudez E eternidade, o poeta inspira e nele medra. Sou uma esfinge que reina sobre o azul. Alio As brancuras do cisne a um coração de gelo. E odeio o movimento apenas por sabê-lo O desalinho. E nunca choro. E nunca rio. E diante da altivez dos meus comportamentos, Que pareço emprestar aos grandes monumentos, Os poetas se consomem em sofridos estudos. Que, para fascinar esses amantes ternos, Guardo em meus grandes olhos de brilhos eternos Puríssimos espelhos que embelezam tudo

tudo

tudo

tudo * AH!

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datas E, na pior hipótese, a distribuição e variedade de todos os atos de minha comédia se desenrola em um ano. Montaigne

¿Quién no se ha demorado ante el severo Y tétrico instrumento que acompaña En la diestra del dios a la guadaña Y cuyas líneas repitió Durero? Borges



Se não a infância, o que havia então que não há mais? Saint-John Perse

1º./l (ano novo) ESPIRA (revendo, a Rotação de Cassiano Ricardo) É moto giro-e-traslado o mundo feito de espira – não da esfera (monocêntrica) da espera; sim da espira (policêntrica) mutável. Ex-esfera expandível, radialcentrífuga: 121

rampante relação tão baixo e tão cima. Vetor constante: elongamento e giro. Módul-rompante, a espira refoge ao cerco asfixiante (ar fixo hiante só numa brecha para o centro iantino). Busca amarelos ventos multilimpos. Revôos renovada, autobastante, auto-perseguida, espira que se espera em cada esquina. A Espira espera enquanto a Esfera ex-finge. 6/1 (Reis) EPIFANIA É de valer, à vera, algum Saber (por contado saber dando a Verdade)? Só de valer, e sim – que tudo, é fada, infídia e fundo, filme e fantasia. Não que do globo disto importe um nada; há, mas, outra noção de mais valia: no dizer-se por lendas de saudade, no saudar-se por laudas de dizer. Que uma verdade é menos só que um Mito. Quero dizer: um mito bem descrito. 122

17/1 (Santo Antão) ENCOMENDA A UM ARQUITETO Casa de absoluta habitação. Seja: hermética, redonda. E, contudo, que não careça de abertura essencial, que não lhe falte ortogonal desvão. De algo ou de concreto (de polido e duro), havendo (músculos) poder de flexão. Fora, rochosa; dentro, nácar lúceo – de pôr restreáveis veias e tendões. Se abre-feche por um servo-secreto reflexo de os seletos in-putar e de ex-cartar malvindo de intrusão. Aberta, lhe confluam céu e mar: tudo incluindo – provisória e acesa, que nada expurgue sem sabor saber. Que, exatamente, molde o meu feitio – sem menos e sem mais – com sua ilimitada imensidão. Fechada, que além disto não comporte e que, no entanto, de ampla e cordialmente, caibam os chamados, convivas do central. Que se instale em paisagern imarcessível: posto, ao Norte, lisíssimo horizonte; posto, ao Sul, só profundo, o mais abismo; posta, a Leste, a floresta adensante e para Oeste a cordilheira em pé. No verão, tenha sede embaixo do frescor; na Primavera, flor sobre os espinhos; 123

para o Inverno, recanto ensimesmado; e para Outono, fruto, e folha e chão. Pela Noite haja luz; e pelo Dia, sombra; galo, na Madrugada; faina de Manhã; à Tarde, guarde pouso e gestação; e à Noite durma, sabendo velar. Que, de Berço, o conchego; e clivagem de Forte; de Palácio haja o porte; de Choupana, o coração. Ao permitido se abra como ao mesmo: assimilado ao centro, é outro e não. Que ao vetado (nem coisa) negue assentimento: pelo não do seu não, secrete – seu processo – a perolização.

20/1 (São Sebastião) Reescrição do SÓCRATES E ALCEBÍADAES de Hoelderlin Por que é que adoras, tu, santo Sócrates, Tãomente o adolescente? Não conheces maior? Por que é que de amor reolham, Fosse um deus, teus postos-olhos, ele? Quem mais abissal pensou, o mais-vivaz é que amou. E sabe a excelsa juventude quem viu profundo o seu mundo. E a velhice, bem frequente, Vira o sábio para o belo. 124

21/2 (Brancusi) ESCULTURÁVEL A PEDRA – que toquei – despedrizou-se. A PEDRA, no que olhei, mis-ti-ficou-se. Contudo, a PEDRA ficava – lá estava vertiginosa à mente pausada em seu repouso. Dom de nada, a PEDRA agrava seu desperdício de ser para o meu ouso.

29/2 (Bissexto) Reescrição de O ALBATROZ de São Baudelaire Às vezes acontece que os marujos peguem, por só divertimento, um gigante dos ares: o albatroz, que dos barcos deslizantes segue, companheiro indolente, a viagem em fundos mares. Logo o põem sobre as pranchas do navio, vemos que miseravelmente arrasta as brancas asas, com vergonha e sem jeito, como grandes remos, em torno ao frágil corpo, o rei das altas gazas. Como é grotesco e fraco o pássaro viajante! Tão belo no seu vôo! E ali, feio, distoa. 125

Este lhe chega ao bico um cachimbo irritante, outro imita, coxeando, a fraqueza que voa. O Poeta se assemelha ao príncipe do espaço que priva a tempestade e se ri dos arqueiros. No exílio entre a canalha, só lhe impedem os passos as asas de gigante sobre o chão grosseiro.

CARNAVAL (cadê a festa) Bandeirolas e bandeiras, cafetinas, serpenteiras, confetinhos da besteira... Quero cantar (ele disse) dizer asneiras (disse) no estro brutal (estro animal?) das bebedeiras (bebedouro de rameiras) que tudo emborca (fingindo que não se enforca) e faz em cacos! (nheco-nheco, nhaco-nhaco: tofraco, tofraco) – Evoé Baco! – “Êta alegria besta, meu Deus!” Liberdade ainda que tarde! Depois da meia-noite é cedo ou tarde pro baile das fantasmias da cidade? Liberdade mesmo quando arde? Êta galinhagem de plumas e vidrilhos! (mesmo quando não se vestem plumas e vidrilhos). Carnaval paletó-&-gravata (em paetês), 126

funcional, funcionário, descomportando-se absolutamente dentro de regras, carnaval-regra, menorreico naco, porralouquice debatendo-se num saco. – Evoé Babaco!

4a Feira de Cinzas LAS SÁBANAS Que nos cubran las blancuras de las sábanas del sueño. Bajo su lápide oscura se olvidan otros ensueños. Trás la tela de sus blancos la vida se acecha al todo, por la iris de los arcos bajo los cuales pasamos. Que nos cubra la tersura de las sábanas de lino. Su rudeza, su impureza, sean nuestro remolino. Más allá de los azules de los oblicuos reflejos, hay dos ojos mui tempranos que nos miran sus secretos.

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Que nos cubran las securas de las sábanas desiertas, endonde nuestras rañuras de tiza se rascan rectas. Desde las plagas de arena se pasean los cronómetros por el lomo de la serpe llamada La Cronolenta. Que nos cubra la atadura de las sábanas del viento. ?Hay remédio? ?Hay suturas? Las panaceas del Tiempo? Hasta las ú1timas dichas, serán nuestras las pasadas que se trazan por las pistas de la cara de la Nada. Nos descubra el agujero del eterno y asaz momento. Por el doble su sendero somos viento y contraviento. Que nos cubran las blancuras de las sábanas del sueño. Bajo su lápide oscura no se olvidarán los truenos.

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Março (Começo Mesmo do ano) HÉCATE ?Es que soy presa, o soy dueño del ayer y de mañana? “Yó no creo en brujerías”, pero existen las brújulas: su imantada imprecisión, su nerviosa decisión y la inombrable adicción (bajo mis plantas esdrújulas), de las rutas fugitivas. Yó no creo en las venturas “pero que las hay, las hay”: desventuras de los niños por los horcados caminos (macheteados de molinos), doliendo en donde nos traem las enseñantes rupturas. Yó no creo en las ventanas, pero las abren mis sueños. 1o/4 PRIMEIRO DE ABRIL Meteu seus dentes na vida, não por viver: por saber. De não vivê-la em vivida, se fez a vida esquecida na lembrança de a esquecer. – Para que querer o Ser? – Por que desejar Saber? Fosse essa gana contida... Porque saber é ser e se perder. 129

14/4 (suicídio de Maiakovski) ...para que tenhamos visão (se bem que nunca exata) de estarmos talvez vivos. Nosso barco já não precisa leme. Vai, por tropismo, aonde finge o chamar qualquer aceno que alguém fez por acaso e com outro nome. Não que os queiramos, o acaso, o aceno, e o ponto, prometidos. Que apenas esperados aceitássemos que venham à nossa mão, sem desejo e sem não. Mas com luta – absoluta absurda gratuita – só de provar que talvez possamos ter essa impressão, nem má nem nem, de estarmos vivos, talvez bem. Ou mortos, talvez. Mas mortos com obrigação: de viagens e de portos – que já de-vez não interessam nunca mais. Nem sempre interessaram, bem talvez. É que só fossem ersatz de vezos e andas outras, que sem nome ou feição... 21/4 (Tiradentes) VÁ DE RETRO Desiste: Que todos os dinheiros não me podem comprar a tessitura. Não que eu não-queira e/ou queira (já não cabe) vender, senão que não me posso domar destinogestos que descrevo e que me escolho. Tens erro no negócio: pensar que me pertenço, que, próprio, me fabrico meu ser de vento e a transciência fina. Mas não, porque não passo 130

de ponto – em rua mais comprida que a memória. E ergues-te mão (e os ouros nela) defronte do meu rosto movediço, e as moedas de sol, de fogo, ou prata, nem roçarão nas minhas mãovelozes quantiqualificadas pelo movimento. Nem – mesmesmo se eu quisesse – não poderia estar na tua mira para carimbo e rótulo: sou um alvo muito rápido – impossível para o calibre uniforme do teu sorvo: que instante sou no tempo e mera posição no espaço.

22/4 (Descobrimento) A TERRA (Carta que pelo vaso caminha) Nossa terra tem palmeiras onde o vento sopra à flauta seu canto mágico, forte. Macunaimastronauta – pojadura, volição; nosso voto e nosso porte se comprimem de amplidão. E o mundo, seu dedo em riste (dedo culto e tecnicista), nos empurra numa pista que, sendo nossa, não é caminho da nossa vista nem marca do nosso pé. – Eis a terra. Eis a fé. Onde cante o sabiá (eis o timbre desse povo), aí nossa terra está: 131

aí que envelhece o novo e aí se revolve o velho, sábio e rude, vivo e mouco, cego esperto, ledo louco, para quem nenhum conselho vale além de ser conselho. Nossa terra é tão sozinha que nela o planeta espelha a solidão do seu ser: mas o vigir da centelha que espera uma sortezinha (num jogo do bicho azado), para imprimir o recado que nos mandaram dizer sem nos dar nenhuma dica. E nossa voz se fabrica não-sendo de alguém nem minha. – Eis a terra. Se caminha...

23/4 (São Jorge) CARTA (ACHADA) A UMA (EX)MENINA Na verdade, menina, já não existas mais (assim) menina. Os olhos estarão tresquantos gastos. Nem mais as mesmas fresca-brisa mãos. Porém, nem mais existas, menina assim ou de outra forma, preciso escrever-te esta carta anacrônica: preciso. Então (que) perdiziam que nem fosses: pura (dessa purez menor da retenção). Teu piano novinho, preto, e virgem, que eu ia martelar com nem afinco, horas esquecido (de nós, não – do cujo martelhado) naquele Bach bárbaro, impuro (dessa vera impurez de pretenciosa incompreensão)... Fosse o piano um pretexto?: Nem era. Não. Usava-o de cacoete, ou vício, ou, mais, um compromisso (ou medo, ou zelo submisso) assumido quase inteirinho por alheias bocas, azado em circunstâncias. Mas ficava sendo preciso enganar as ausências do meu (que sempre consertava) com teu piano emprestado – o virginegro – que, de nós dois, nenhum vai concertar jamais com próprios dedos. Teus dois parentes, dois acho que 132

primos (nem primos fossem...), os lembro: me fogem nomes (que desde lá me foram raros de guardar, como hás de bem lembrar se te ainda me existes). Teu próprio nome já não pego certo: confundo o som no longe estagno; nem, mesmo, definido, me garanto de como ressoasse, então, nos meus ouvidos (verde?). Mas tenho uma figura – tua? – mesminho assim menina, a quem agora escrevo em todo risco de já sendo bem tarde (mesmo sendo...). Teus primos (fácil chamar) também ficaram, meninos, ficaram queném tu: só eu passo mudado. Os demais, nada, tudo parou num passo de menino. Os dois miúdos, sumi-raquíticos, tão fortes sendo em seu pordentro armado no audaz de re-sacar mais-vida à vida (enquanto que eu, apenas a sondasse...). Dormiam nesse quarto gêmeo do teu quarto, em duas camas simplezinhas sobre o chão de táboas nuas, benlavadas. De noite permitias (que mesmo convidavas, se dizia) os todos dois na tua cama de menina: por secretar as seivas desta vida, por decifrar mitemas anatômicos. Meu gesto de talvez (um só) sei que chegasse para os teus olhos me chamando de Benvindo. Mesmo que a lua redondo-rebrilhasse seu brilhofalso emprestado (como o teu piano a mim), nem mesmo assim (minha mão-branca em tua mão-escura, minha venta adejando em teu cabelo esgrouvinhado, mais o cheiro afrodiz do teu sovaco glabro): nada me esquartejou vencido em teu colchão. Perdão! Perdão! Mas é que estavas um templo (se puro, impuro, é só questão de nímios dados). Vinha correndo rezar no teu contágio minha penúltima potente decisão. Mas estavas ali: nua. Nua que me amostraste uma vez só. Rapidamente nua, lampejada queném verdade, revelação. Mas nua só por dentros: no dentro meu fotogravada, no dentro de tu mesma revestida da implacável nudez da i(co)nocência. Invencido, deixei-te: insubmisso ao teu colchão macio (ou fosse áspero?) minha vitória era amargosa e desonrada? Um convite necessário inaceitado (dito com franja nos olhos, com lagos molhados nos dedos) e eu, dopado, desretorcido, penexcicado (usada bandeira rota no moral inusitado). De agora talvez nem me desses, mais, de graça, essa graça de aurora. Bem certeza te mudaram, te mudaste (como todos, todas, tudo) na coisa-com-dono ou coisa por vários socializada e, como se diz bem frequente, valendo por quase tudo, pagável com quase nada. Talvez por demais chorados (mal, demais, talvez, sabidos) só me afastem, não convidem, teus olhos gastos de agora. Porquanto, menina sejas, per-omnia-secula. Am...mém. 133

1o/5 (Trabalho) PODE COMPRAR QUE É BELO E BOM

Ó tesão, nosso refúgio e força. Joyce (Em homenagem a Gregório de Matos, que não gostava de trabalhar)

Do televídeo gigante a moça me bolina e vende gasolina com “algo mais”: tesão? Cada lindo pacote esconde de dourado a dada permissão de nossa morte. Quem compra um passaporte Pra fugir do outro lado? Eu ponho em meu cabelo a mágica pomada que faz qualquer mulher ficar gamada e pôr-se em pêlo. No cartaz luminoso está pintado em 20 x 10 metros teu retrato tão charmoso comendo a melhor marca de baton: dentadura di-amante lapidada com a pasta dentifrícia (com sabor de orgasmo) do reclame, com delícia morde o beiço da amante apaixonada que custa um tubo só. Na capa da revista está o artista da famosa novela de TV 134

grudado com a pública donzela: e eis que o galã sou eu e a moça é ela. ou qualquer um você. Teu carro assofazado de sintespuma uterina está forrado. Tem mornos de vagina nosso casaco de espermonycron. Teu colchão é uma coxa molidura que tem aguente e te afunda sem gastura. A nova geladeira fabrica uma geleira, mas por fora tem a lisura morna de uma bunda. O gelo é para o uísque da mulher-garoto com garras postiças de gata que enquanto serve a dose arranha carinhosa com a outra pata o meu escroto. A ponta bicudinha da caneta (esferorgástica) que excita o travelcheque sibarita. é a transformada plástica do bico de uma teta. Com meu cigarrofalo no bolso engatilhado, exalo, ao deflagrá-lo, um cheiro amado de boceta. Mas se mais nada escolho fora do mercado: 135

não é da carne – é do molho que me enfado. : Vida punheta. : Gozo postergado.

13/5 (Negros) THE PRAY (Hey! Don’t be numb. And hear my history story. And you will thank my name to exist (or his) – or will to kill your self (or me)...) Once upon a time. There was a boy whose name: MARTIN. He had a colored skin till his pervaded in sight. And then, he off-setted in green his undarkened dream. His father named LUTHER (him) because he will be so smart. The boy to be the KING (yeah!) of such a pink peace – inside the moving planet. And then, from day to day, he covered a zillion magazines – his photos praying like that: O Lord, send me an angel a White an angel or Blue, to teach me Your name and make me True. He was really very and too. ‘Cause his faith was kind (really: too much kind) and he believed in Love – just (I think) for love’s own sake (or something like that). And you could see him on TV with his black mouth praying like that: O Lord, send me an angel, a Blue-and-blue of peace – of peace – and a White of Virtue. 136

Just like that, as I said: very, too. He was a yellow mind with a shine like the sun – among a crowd of his people (not too kind as him) – and with his dark arms in the inhospitable air, he was praying like that: But send me not, O Lord, for my complete confusion, that Red an angel of bloodish destruction. But there was another boy whose skin was almost light (almost, ’said, ’cause really not) who loved the color of brown – and was going to meet the shit. And just for that (I just concern) he shotted a golden gun to kill the negro King. But singing as a Lark the Lord delivered the Dark. 12/6 (Namorados) Reescrição do SONETO 55 de Shakespeare Nem mármore, nem ouro em régios monumentos Hão de sobreviver à rima poderosa. Que a pedra sujará no desleixado tempo, Mas tu, rebrilharás no verso, luminosa. Quando houver cada estátua a guerra, enfim, tombado E arrancado o alicerce a cada construção, Nem Marte, nem seu fogo rápido alastrado, Jamais o teu registro vivo queimarão. Contra a morte e qualquer averso esquecimento, Hás de permanecer – e o meu louvor contigo. E até que o mundo esbarre no último momento, No olhar dos que nascerem encontrarás abrigo. Com meu verso, até o Juízo em que ressurgirás, Nos olhos dos amantes, sempre, viverás. 137

13/6 (Santo Antônio: nascimento de Fernando Pessoa) NÃO IDENTIFICADO Entre nada e este nada, a grande escada que não passa de degrau de sonho. E por cima da escada, mais alta do que a altura a que escada aspira, alada, a grande ogiva plana dos confins do mundo. Debaixo, a escada invertida (anti-degrau de contra-sonho) entre este todo e tudo – habitação de nada. À cabeça, por esférica e opaca, acima e abaixo sempre indiferindo. Apenas uma árvore, deitando-lhe raízes de a1gum modo e lado, aponta a direção por auferir-se ainda. No meio, uma mulher feita de ventre e de argamassa, como o espírito da luz come nesgas de treva. 19/7 (O homem pisa a Lua) CANTO ASTRONÁUTICO Que em lua nua jaz por peito estreito do mais serenazul e sonopuro, por lagovago donde o sonho ponho de planeta-ninguém que em vão procuro. No espaço lasso, estranhonauta, flauta do berilo mais fino apito aos astros; e a estrela, ao vê-la, e ouvindo cantoencanto, desfaz das leis e vem – segue o meu rastro. Que luz repuz detrás da testa em festa, capaz de as ofuscar, gentilestrelas? Que inveja as peja, que vergonha, ou ronha, meu rosto espelha contra o rosto delas? 138

Que sol guinhol me fiz? Que rei sem grei? Que passe de magia me sagrou? Que Zeus me deu da cosmonave a chave? Que força tenho eu? Que deus que sou?

6/8 (Hiroshima) PIGMALIÃO Eis o corpo (denso tangível) fruta pojada: fora, cutícula dourada; dentro, marmórea carne homogênea turgiafável que subdita à carícia (talha amável) de escopro heleno, mármore exultável. De lenho barroco, trançados gestos (que poucos), movimento gracinconsútil de arabesco. A mão do corpo (refeito dardo) arvorada, por moto inconsentido (romantiestilizado), herói do roubo ao céu do fogo. A mão plúmbea de-fendida das radiações de urânios rebelados. Mão mais queimor do que a limpa falicobomba inafrodisíaca, A – C – H do alfabeto inusitado, de ler eufemicrático, apartado em torres de (nem marfim) aço puro.

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7/9 (Independência) SETESSET Na dita estrada, por onde os pés desnudos padecem a contusão dos pontiagudos seus escrúpulos, passeia, no metal de tal coragem, a pátria, de domingos e descuidos erme e lassa, subconvulsa de apetites na esperança e estandida de sentido em vigilância, por futurível ver. E eis que se abre e parte exata e núncia, a desmedida fala; e o divo tato, com sigo templado, indo com ela siderado na infensa voz (solar) di-urna. Caminha em questa de finância a dedo ságito, indicada, de guapo prevedor. Haja o riso da dor: o fruto é depois da flor, depois da flor. 21/9 (Primavera) NEXOFORMA Projeto genuflexo, anfígeno, a forma. Hierática, de estátua em mole pedra, forma tépida, convexonegligente distraída forma: urgente refazer de cheiro e cor de mar (o sal e o gosto exótico). Esse ar parado – molosso gótico – porvezes refendido de vitralsorrisos de liame transparente em cada nexo. 140

Porvezes refendido de vitrais-sorrisos, projeta genuflexanfígeno, a forma, distraída forma: urgente formatépida, convexa, negligente refazer de cheirocor de mar, de sal e gosto exótico. Hierática, de estátua em molepedra, forma rompida em renovos de amplexo. De mar (o sal, o gosto exótico) por-vezes refendido de vitralsorrisos, a forma tepidoconvexa, negligente, projeta genuflexanfigeniforme: esse ar parado – molossogótico. Distraída forma. Estátua hierática de pedra mole. Urgente refazer de cheiro, cor, de sexo.

12/10 DIA DA CRIANÇA Que hoje renasço, completo me desmonto e me refaço, conforme sobrevida. Zonzo, repasso, de contrafeito a pasmado, esse novelo: rolo de filme turvo, emaranhado – sem saber por que ponta achar começo, sem pôr arte nem razão na decupagem. O balanço, o balido, o berço, o apito, o guizo, o brinquedo estragado, o chocalho, o brigue, o bumbo, o bico choramingo de informar zangaço, o cocô mal-molhado ou mal-enxuto, a fralda nunca seca, a coxa assada, o talco de fumaça, o banho limpo, 141

o céu ponta-cabeça, o pé na boca, a teta suspirada, a tia preta, o irmão que já falava, a irmã distante; fosse de um a cem seu vero número, a ...eira namorada, o ...eiro amigo, brotando a mesma fonte (poça) açucarada (amarga) do chão por onde um potro nossa fome pastar seu sonho imune e o fato infame. O braço quebrado, a perna quebrada, a vida quebrada jamais encanada... cada quebrado amor, ódio quebrado, sem colatudo possível no mercado. O esbarro exato da boca aprendiz com a quina fina acidental da infância, grifando, por demiúrgica, no queixo, rubrica, identidade, ou cicatriz. A fronde perluxal da mãe replena, meândrico e megárico mistério por nenhum fio (Ariane!) percorrivel, travoso fruto, dado que enxabido, borboleta auroral, tarda falena, ziflando de azas os moucos ouvidos. A estatura abissal do pai gigante – seu sapato de navio, paletó de régio manto – botando todavida o desafio de alçar ao inconcebível destamanho. Mas nós, que só pequenos, tão e quanto um pai-colosso que frágil, muito, era, embora monumento, de osso o mais cariável e de carne toda fraca, seduzível, mutilável, perecível. Grandes somos? Se, somente, no raro e exíguo amor por vãos de vago esforço. 142

12/10 (bis) (“Descobrimento” DA MÉRICA) Reescrição de AS ÍNDIAS OCIDENTAIS de Colombo Talmente dóceis e passíficos são que juro a El-Rei de não haver igual no mundo outra nação. No que eles se amam uns aos outros como a si. No que falam docemente e gentil, sorrindo a cada vez. Verdade é de dizer que se vestem de nus; mas é própria e decente essa adoravelzinha gente. 1º/11 (Todos os Santos) TRANS É para além dos outros que eu existo. É para aquém de mim que me demoro. A curva que projeta o eu em mim, rabisca paratrás seu parafrente. Não sou ninguém, porque fui uno e vário. Não me conheço desde há todo tempo. Alguém me apresentou num dia a mim, mas guardo má memória para nomes. Minha cara eu já vi nalgum lugar. Mas hoje há tanta gente parecida que não lembro onde foi que já me vi: nesse bar?, nessa esquina?, nessa escada? 143

Certa vez, saí correndo atrás de mim (pessoa que eu jurava que era eu); chegado perto, vi que me enganei: era eu não – era eu-mesmo, de chapéu. 2/11 (Finados) SONO CAFONO E se a morte der de ser apenas sono de se acordar outro lado, ah como estarei cansado! Que estarei cansado. Todo cansaço ou nulo ou desmedido cubra o horizonte como a noite ao dia. Tomara sol nenhum fure o levante em recomeço algum: nem vida ou lida ou via. Que se a morte der de ser apenas pausa de alento a novo assomo, ah como estarei com sono! Que estarei com sono apenas. 25/12 (Natal) ONDE O SE? Onde o QUE? Centro visual, eixo de carnação real para os DE e os PARA. Definitivo haver não fugitivo. SI 144

por qualquer transformação EM. Onde o QUÃO? Resoluto, cabal poder de encarnação e ver. Acabado ser do não reter- (-SE) em todo recriar-

31/12 1º/1 (A Biface de Janus) Reescrição de uns Trechos de BORGES Pelos vastos confins ocidentais do azul já empalidecem os planetas. O alquimista a pensar nas leis secretas, as leis que unem planetas e metais. E enquanto crê tocar com alumbramento esse ouro tal que há de matar a morte, Deus, que sabe alquimias, faz-lhe a sorte em pó, ninguém e nada e esquecimento. Olhar o rio feito em tempo e água e recordar que o tempo é um outro rio, saber que nos perdemos como o rio, saber que os rostos passam como a água. Sentir que na vigília há um outro sonho que sonha não sonhar e que essa morte que nossa carne teme é a mesma morte de cada noite, que se chama sono.

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Durar além do acaso e além da morte (e cada qual tem sua própria história). Mas tudo acontecendo nessa sorte de quarta dimensão, nossa memória. Que o presente é sozinho. Que a memória erige o tempo. Sucessão e engano fazem a rotina do relógio. O ano não é menos vão que o vão da própria história.

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segundo porte

apo-calipso ou canção de ninar nina CirandacirandinhavamostodoscirandarVamosdarameia voltavoltaemeiavamosdarOanelquetumedesteeravidroe sequebrouOamorquetumetinhaserapoucoeseacabou. Do folclore

Felizes, nós? Ah, talvez, talvez, Naquela terra, daquela vez. Fernando Pessoa

Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda! Cecília Meireles

“Menina dos olhos sem receio, teu sonho pelo meio por sonho terminou. Era doce e se acabou teu sonho, menina era vidro e quebrou...” Nina cantarolava mental, embalada na barca gravibunda que britando a motor o monge mar da baía. Do outro lado a cidade em breve grafaria épura de casas e edifícios; eletrocardiograma de cidade talvez morta. Nina diagnosticasse vida apenas vegetativa: o eletrencefalograma, certamente liso, será de desvelar ausente veravida? 149

Na Sul-Africa, um caso assim Barnard, doutor mecânico, como cedendo estepe ao furado na estrada, ou botando acessório, espetaculando corações de troca emprestada, sacados por tão-excessivamente bancário cheque-cardíaco, igual a qualquer outro em mundo esburacado de guichês. A barcaça, bamboleante na ressaca, tonteava Nina, pendulando sobre seu colo aquele músculo ensanguentado, eriçado de pinças, depositado ali sobre pernas dela por tecnimãos borrachenluvadas. Opresso respirar (o dela) ante dúvida absurd... entre duas: ou que ainda latejasse aquele autoviv’organismo encima dos joelhos dela, ou fosse o jongueio da barca que assim pulsante o parecesse. Agastava-a grossa gota do sangue penecoagulado, borboteante vagarosa de uma arterícola vasada, no iminente vir esparrinhar-se à saia. Brusquifechou revista e, no lugar de cirúrgica sangueira, assentou nas coxas dela belojovem iêiêiê. Este sim, bem posado, odontorriso alviplantado, cabelo meleno, feminil aspecto todavia garanhoso, versão recém do velho andrógino. Nina olhicarinhou a bentratada cara da capa. Lembrou-lhe logo Róger, galante herdeiro inglês dela recentiperdido: mesmo olho vagante amêndoo; igual plácido rosto; do lado esquerdo, a fonte do retrato parece titilava igual latejar subcutâneo da arteriazinha mal esconsa sob a transparentipele nylon. Nina sempre colava ali seu lábio para tatiescutar esse latejo, no que Róger descansasse o rosto vermelho entre os dois peitinhos dela, fundihaurindo grossigoles de ar, a boca peixeaberta deixando escorrinhar o fiozinho de baba dele no esterno dela. Róger resfolgava lento musical no perto-fim, suando o seu perfume todo encima dela, repousando-se depois ali mesminho parado, endoposto, no que Nina escutasse com o lábio a testa viva dele. Que almáquina injetasse, indiferente, neste aquele corpo (o próprialheio), contava pouca diferença para Nina. Decerto, é de antanho julgar que a coração se confiem amor e vida. Explicando à imprensa, os doutores, coisa sabida mas não difundida como agora em até revista. Seja: que vida se aninhasse, última instancia, em dentros da cabeça, exato lugar aonde se pensente? Sinais eletritransmissíveis da cortiça viva, rabiscados no desenrolante rolo de papel micromérico – que, fora desta gráfica certeza, não mais redenção conhecida. Contudo, que o corpo vomitasse os órgãos imputados era frustre, choque mesmo, para Nina. 150

Que droga se devesse introjetar no corpo, de modo a o convencer, dopado, para empréstimo? Por que não pode um Eu doar o seu pedaço, inecessário, à alheia sobrevidade? O sangue não se dava? E a nova vida? – que de algum já nela se incrustara, na rapidez de espirro de um orgasmo. Esta, não falira: dinheiro que não tinha (e dor que sempre trouxe) pagou por vomitá-la. De quem? – aquela gota respingada em dia errado. Sempre se perguntando inconcluída. Se de Róger, descidisse que, feliz, a guardaria na sanguínea matriz, para regá-la. Não forçaria àquele amante, nunca, nada, sequer saber que dele a poja: mais menos de casá-la, ou de mantê-la e o filho. Se dele, mesmo, seria um gosto o caroço plantado em terra sua. No entanto, mesmo, nem houvera um outro. E mesmo Róger não foi mesmo. Róger era l-i-v-r-e: voou como ela volitava, embora ser mulher, de tudo desgarrada, com força em próprio zelo decidida. Nunca o prendesse! Não e não. Decretara LIBERDADE, a pão-e-água fosse, a ferro-e-fogo, a dela respelhando na dos outrens. De todos que dormira, em todo antigo, ninguém marcou, de mesmo açucarado, esse não-sosso nas papilas do seu tempo. Só Róger, que a largou bem no meio da história, rumado em volta à ingla (amada?) terra, dele. Dele? Menina, chorar não paga pena, que a vida é só pequena e um sonho já passou. Era vidro e se quebrou, teu sonho, menina, e um amor já foi... A barca semiadernou para leste, insopitando um onóhooôhumm na lotação supeteada. Nina unhou, no que agarra, um ombro azulmarinho, do lado assentado. Firmada no espaldar da bancada fronteira, apequenou seu medo de naufrágio. A barca rangeu no casco, no que impou taquitempo nos motores. Nina desculpou-se com o terno-azul-marinho pela unhada. – O señor me descullpe! Estaba distraída cuando la barca... Disse, no que lhe catucou o mesmo ombro antealvejado. Para ela se virou cara recém-desamarrada, logo envesgada em 151

topológico esgar de não-foi-nada, semissorriso, elastitesta olhirrutilando lambidas cimembaixo às pernas dela e resto. Nina desprestou toda atenção àquele reclamo de nada e defastou para horizonte os olhos. Que navio aquele, pequeninho, no horizonte encurvado? Por cima do que, sentado, se faz cumprir a hidrostática lei dos seus dois centros, sem ser entornado? De aulas de física aprendera, em soma, o frágil, abstratas (poderosas) razões do instável do equilíbrio, o João-Teimoso, o japonês dos pratos, o cordibambo andador, os águias-do-trapézio, e o navio no mar: àquela lonjura ou mar ou céu tão bem servissem de água ao vago navegueio. Mas o amor é sempre igual. Não faz mal! Que outro amor vai chegar. Espera o carnaval e para de chorar. Espera o amor, menina, ciranda-cirandinha é preciso cirandar... Espera o amor, menina, no sonho do teu sono vai sonhando de acordar. Nina recolheu a vista para o perto e leu sobre a revista, em manchete rasgada: A MARCA NEGRA DA VIOLÊNCIA. Impensada virasse as páginas no colo. No que ajuntou, brutas, as negriletras, também sobre a rodela, roxa, lateral na coxa dela, agulhidoriu a marca-negrada-violência nela idem carimbada. Tatidedeou o machucado, carinhosa, paziguando-o. Um instante a dor ficou lá tida, sita, imprecisa entre o dedo (sua polpa sênsil auscultativa) e a dor-de-fato sobre a coxa da direita onde a porrada. Mas e não marca: já fora há todo tempo – que só perna de sonho almasse, em graxa, maculada. Menina, descuida o teu cuidado e esquece o teu pecado 152

se o teu mandar mandou. Se era doce e se acabou, teu sonho, menina, outro sonho ensinou. Essa a mancha, carne amassada. Curara por seis meses. Rescuidara – do auto retrato em dolor. Também nos correcorre de estudante e de polícia, Róger do lado, quase nada estrangeiro, reivindicando alguma liberdade... Qual? Aquela? Ou mero pique? Quem, sabê-la? E liberdade? O desejado? E o desejado? Não se sabe? Ou era só por Róger? Ou que nem fosse? O beleza de capa da revista, boquiaberto em festival cançoneta. Também Róger costumava: gratear na guitarra as unhas do raivor. Por descanções que embora mais de declinar sabor de sempremente, que ficasse, manescente, de estudar em cada poro a pele toda, em largo alcance, curso longo, de retido amor... Mas Róger já se fora – e Nina, agora, nem que dor. Pois ela que inventasse, se o quisesse, bem sozinha, canção de se cantar. Mas nunca lhe acenasse, menestrel ou bardo, em outra cirurgia, seu pedaçamputado – não doado, só só por falha do incapaz receptor. Menina dos olhos sem receio, teu sonho sempre veio por sonho terminar. Mas quem vive só de amar tem sonhos, menina, de amor para dar e cirandar... E Róger bem sabia: coração que não tinha; somentemente máquina do enxague, em alma exangue, bomba perfeita a sobrevoviver. Faltasse era um respiro que pulsante, nome do nome, trescomeço do haver. O mundo, a Nina, sempre só pequeno – mas sempre muito grande o raro fragmento se: só lhe propondo olhar de contraver. E que impossível implante transfracassa e antes do fazer? Nina era uma casa – só vazia por desgraça de habitante. E Róger, não 153

morava: um habitante, só, inábil, lábil, só deshabitante, botão falto de casa – e justo por a ter. E Róger bem sabia: tornava-se em demônio, confessava terror. Por que?, por que?, por que nunca parava, corrimão corrimundo, tropeçante, atrás de próprio nome, oprobiado ao que não conta no dizer? Mas, se vazia, Nina era uma casa: a restar e conter. Pois o amor é sempre igual. Não faz mal! Que outro amor vai chegar e enquanto é carnaval ninguém pode chorar. Espera o amor, menina, ciranda-cirandinha é preciso cirandar... Espera o amor, menina, fazendo meia-volta volta e meia vamos dar! A barca atraca ao píer de bambeio. E Nina abarca a troca margem/margem e abraça o seu meneio – em tremor sobre ver. A liberdade – e quê? A liberdade é outra, é outrem, é você? Nina só vê. O olhar é um coração com passo de transpasse, armando, em quadro, vista em cujas manchas me encontrar. Róger fora amputado. Ulisses para Ítaca gorada. Um sonho imotivado. Um ovo sem Colombo. Um lombo sem caroço: só calombo no liso de uma coxa. Um calo no pescoço. Um poço de rumor. Um não descobrimento. Um véu por vão desvelo. Torço novelo. Só novilho. Excoito ser. Nina olha a cidade e aprova a liberdade – mas de quê? Houvesse um habitante, ela, morada, doaria um horizonte ao rasgo do seu corpo, em terna cirurgia, namorada, um salto a chão cumprido. Haveria de haver. A liberdade é de ser morte, ou solidão. Ou: pronto golpe de entrega: triunfalmente uma abdicação.

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Ciranda-cirandinha, quando o Novo Amor chegar, todo mundo vai ter volta, volta e meia vamos dar! Nina, a niña. O nome: Andréia. De nada possuir. Só ser casa e coragem. Esperidão.

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R/D/M/N/D Por que a ausência de luz o perturbava menos que a presença de ruído? Por causa da segurança do sentido de tato de sua firme forte masculina feminina passiva ativa mão. Joyce

Redimundo é belo rapaz especialista em generalidades. Redimundo Denovo, seu nome. De que seja belo, desdigo. Ou, melhormente, redigo consertando: que, visual, alguém me ouvindo assim falar, me possa cobrar mais fino gosto, insabendo a belice onde é que é. De olhar, Redimundo apresenta uns quase-desconformes, a testa muito estreito-larga e o mesmo quanto baixalçada; e os olhos pequeninos meio grandotes para o rosto e o resto. A boca é voraz, serenamente, ficando eu sem saber se você sabe as formas de voraz: que apetitada no volume, recurvas sênseis no contorno, e um baile meio primevo no mascar, sofisticado. A cabeça geral não tem tamanho certo, no que milmove-e-move no redor e/ou mesmo cresce e encolhe. O restante do corpo é mesmo como um corpo, só que diferente: nunca se sabe onde é que a anatomia, no exato que lugar se encaixam braço e/ou perna, se o torso um exato rodo ou longo, naquele reboliço que o Denovo é. Aliás, Redimundo Denovo Saudado Moço, seu todo nome, sendo que também se pseudonomeia, a alguma cometida, dos nomes Zé Prafrente e/ou João Subtamente. No que se põe de pé, só mesmo deslocado: o corpo todo camba torre-de-pisamente para a frente, forçando constante um pé no adiante, puxavante de andar. Demais, a estatura é impegável, descontínua, movendo o largo e o alto francamente, sem nem aviso ou mais. Ainda na antessemana era ume-oitenta-e-quatro-e-três de altura; e agora já não: mudou. Remesso e desencontro o redimundimóvel corpo desigual. Menor, maior, inigualado, pois, a até si mesmo, se bem que sempre o sendo: si? Que o Redimundo é Quem? Me apresentei Prafrente em causa de Maria. Maria é muito mesma: desentende, desencontra os reais. E João, subtamente, 156

chamou-a amigal, de convidá-la a ir na casa dele armar comparações, explicador. A casa dele é na rua. Ninguém pode ensinar aonde mora o João Subtamente, e não se sabe do que é que vive esse Prafrente: penso que ele vive de ar. Segui-a companheiro, do lado de Maria, só de estar, quieta ajuda. Não propunha intenção. Já lá, fiquei vedor. Desparticipo: conto só, melhor, descrevo. Vá de crer quem quiser: me desobrigo. Eu mesmo, acho que nem. Olhe e veja, se achar, que até prefiro. Não sou de armar o circo pra ninguém. Só mostro – e faço que é mentira, não sou de acreditar. Vá que não fosse exato assim que eu mesmo visse? Vá que eu sonhando? De verdade, nem sono me faltando. Vá que? Só digo. Maria desabando de chorar. No que isso, Zé passava a mão grande na dela, serenador, enquanto que com a mão pequena enxugava o seu olhar, no que falou: – Não ligue não. Maria. O diabo da coisa é quando o encontro da precoisa com a posloisa. – Não adianta, Redimundo, retrucou Maria, nós não somos iguais. – Não, Maria, isso não. Igualdade é preciso, mesmo de mentira. Sem primeiro a igualdade, como pode a grande diferença suceder? Mas neca desta tal de caridade. Não, Maria, meu verbo eu como cru. Essa igualdade como eu como, não tem questão de amores amassados, nem gastura de ver pobre tristeza contorcida em seu mundo chiqueiro. Mas é por mais que eu vendo: pelo oco, Maria. Estrelas, Maria, passam fome também: muita demais. Maria Que Não Vê. As galáxias, Maria, se alimentam é com cinzento patê. Patê de cuca, Maria, é só o que chega para a fome de a1gum sol. Galáxia é moleque, Maria, e seu fogo tarado de re-ser: moleque Moloque e seu pé de incerto líbrio, que tem fome no umbigo, propício a se plodir de entrópias raivas, se não há de comer. Em nós é que apascenta seu rebanho-lobo, e é pensamento que ele pasta para haver. – E isso é verdade? – Claro que não. Só de dizer. – Ah, Redimundo, você é um mentiroso. Eu nem consigo nem achar você. Eu não quero galáxia, Redimundo, quero gente de povo, quero você: de carne e osso, nome certo, igual. Mas você é todo uma mentira, Redimundo, fala bonita, e só. 157

– Não, Maria. não somos de mentira. É que eu sou uma rima. Uma rima. Só. – Rimar, com quê? Eu quero uma verdade, Redimundo. Beijar a mesma boca, pegar na mesma mão. – Não, Maria, não fui eu quem fabricou este desmundo. Eu dele sou só rima: e rimo com você. – É, João? Pois eu não quero rima. Eu quero um gosto. – O negócio, Maria, é só fazer silêncio. Se a gente vai no escuro, qualquer som é de metralha, ou de polícia, ou de ambulância... – Mesmo a rima. – Sabe, Maria. você manja um poeta chamado Carlos Drummond de Andrade? – Acho que manjo. – Uma vez ele escreveu (ou eu) um verso assim: “Mundo mundo vago mundo se eu não fosse o Redimundo não seria nem rima – além de não ser solução”. Aí foi quando Maria deu um soluço – pra valer.

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seo-senhora, dona-senhor ou & encantad&r de menin&s Sua face é o corpo de uma dúbia pomba: uma asa de luz e outra de sombra. Une o Céu e o Inferno, e Deus e o Demônio: entre Adão e Eva busca seu nome. Cecília Meireles

Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. Guimarães Rosa

Prás bandas de Espírito-Santo, disse-se, até de escrito literato, quebém que o merecesse, figura carochável era, chamava-se ou o chamavam: Tenerá. Não pode: Tenerá soando aberto, mais pro marcado, de useiros fêmeos usos, embora duvidável pelo empuxado a futuro, mas do desafinável com o retrato que lhe pintavam nos folques do lugar. Rintintim sim, som de pontudo, afilável, de is fininhos e seus pingos redondinhos, olhinhos de tudo fotar, sem tom discriminado, primevim. Não pode: Menino vetou. Este mundo redondo não devia comportar quadrados nomes. Palavra sendo concreto de palavra, armada, conforme fôrma habital? Preguiça nossa sendo é de pancrário, costume demasiado no impensar, desacordado, de obrigatório rojado no repetidamente in-ser? Trabuca-se forjado em remontando o molde achado, sem degustar pôr denovo, de mais-coisa dizer: que tanto esforço menos pede, gozado e gostado, pra fazer... Por exemplo: Mar é fêmea em francês. Titia lhe ensinou; e a lua macha alemã com artigo masculino der, e tão difíssil do usar – quando mais fosse de neutra ser na fala deles, os tão ex-atos. Vejam só, Menino pensou, o lua: por que não? Mas tão palavra mar não sendo, mesmo, de quem lhe bem conhecer, de entrar, banhar, nadar nas incertezas: & 159

mar insexual, ou polisser, do gosto que lhe dê alguém que agora e ali, conforme pensentimento. Ora: Rintintim não sendo isto nem aquilo, ou aquilo ou isto, mas isto & aquilo, misturadamente, e não só aquilo e isto, mas e também muitos mais ous outros não clivadamente bimarcados, sendo aquilo e isto e mais aquiloutro e outraquilo, aqui ali lá e acolamente, aposto, em todo oposto raio da bola mundial, mais igualando esfero gnomo latejad&, imparável, respirad& e mexid&, cinêmic& amostrad&, tão bom de ser. Saber ninguém sabia de onde vindo aquele ali: Sêo-Rintintim. Alto largo, gordo largado, cercado de cãozinho a cada lado: sete no todo, bonitez de amestrados – e ele no meio, com a varinha na mão, pondo tudinho a dançar: mexer, virar, pular, ficar em pé de empino, passar aro de fogo, e... quase me digo... falar. Chegar bem perto? Nem nunca. Mamãe não deixava. Rintintim por proibido de chegar. A gente pode até ficar de longe olhando, aparando de gozar tanto espetáculo, mas sem aprochegar. Menino ficava horas tantas tresolhando, de quase toda vez que perandava ali seu Rintintim. Sim. Porque Sêo-Rintintim não existia – aparecia, chegado de magia, inteiro e pronto, com seu coro-cachorro, parando numa esquina, aonde armando o algum circo de onde fazendo esse mundo girar. Sêo-Rintintim não era aborrecido nem gostado: a gente olhava, e pronto: sem aplaudir nem reclamar. Ninguém tratava ele mal, nem bem tratava: só era olhado – com o que tinha gastado horas-olhos de adulto e de criança, chulas horas, por toda uma vidona de lonjura insabida, que muita só podia – de estar ali naquele genipapo, pardo engilhado da cara sem contraste (olho e cabelo também pardos), a roupa parda, em cima atravessada em talabarte pardo, e horizontal no meio em cinto pardo, e em baixo ao fim de calças botas pardas, tudo encimado por chapéu de feltro pardo – só mesmo dissonando (ou colorindo), no pescoço, escarlate cetim do longo seu lenço brilhoso, fechado ao meio com anel dourado. Nesse dia de Circo-Rintintim, Menino ali ficou sentado, ele e Maninha, que assentou do lado na sarjeta rua. Menino futucando com graveto o pó de terra coagulado, na canteira da pedra, depois que o riacho ali se foi com a chuva que o deixa trancado, ele e Maninha, dois 160

dias grandões, brincando só de nada ou de mexer no umbigo, esperando de viver e revidar. Quando o circo girou, Menino, olhante/olhado, novamente sentiu aquele incomodante separado (e no entanto almejado) que ele sentia em todo rintintim. Não sabia de que, mas separado, só SEPARADO que, segundo Eliade, é “separado de um estado indefinível, atemporal, do qual não tem nenhuma recordação precisa, mas que, no entanto, recorda no mais profundo de seu ser: um estado primordial que gozava antes do tempo, antes da história”, antes desta história, antes de ele e Maninha, antes de Papai-Mamãe, antes até de Tenerá-Rintintinho, antes de lama e graveto, antes da mão de mexer, antes do umbigo, antes da chuva, antes de ser. Ouvia disse-me-dizer que Rintintim era diverso: homemmulher. Porisso havia tetas? Quando ele andava balangavam no seu peito, forte como um forte, mamelões de mulher. Mas ela ou ele era de homem que trajava e que encenava, ninguém folgado de pagar pra ver: debaixo da camisa, divisasse quem quer, dois muques de colosso, de muita carne-e-osso em franca apotropez. Sabia-se tão forte que evitasse lutar com menos do que touro (de quem se lendava ter sido dele derrubado vária vez). E então? Homem? Mulher? Difícil de saber. Rintintim, com ninguém se metia; nem mesmo conversar: só fazendo era gesto, e pouca vez. Que ele falava só com a cachorrada, chamando nome e prenome, sabendo de um por um gostos e truques – e eles latindo e agindo e reagindo resposta pronta a cada vez. Não falava com gente, desdenhava: punha só seu chapéu no chão perto do “circo” e colhia os vinténs que lhe jogavam, que nunca de boca pediu. Mas, duma feita, alguém brigou com alguém perto da esquina, e alguém sacou de uma arma atirando no alguém. E o tiro trepicou na pedra da calçada e foi pegar nos trás do Rintintim. E foi o pracapá. Ele, sangrando, alevantou do chão aonde desse tiro emborcado, pegando os dois briguentos, do cangote, e fuçando um no outro, em cara-cara, até sangrar, como se ensina cachorro onde não deve mijar. Mas foi prá Santacasa: fazer operação de tirar bala, do alto da bunda, aonde o tiro lhe entrou. E, desse dia, bocavam na cidade, até Menino saber, que Rintintim fosse vistoriado pelo doutor e declarado de ter, junto, encontrado, pinto de homem e pinto de mulher. Como poder? 161

Menino olhava Maninha, e se olhava menino, e reolhava e olhava o Circo-Rintintim. Latindo, a cachorrada começou rodando, e Rintintim mandando, e virando, com a mão, sua varinha-condão de tudo comandar. E começou a música sem música: e foi abrindo a boca de Maninha e abrindo a boca de Menino, e abrindo todo olhar. Maninha pôs o pé esquerdo em cima do direito de Menino, e o circo a regirar. E Menino pôs o pé esquerdo sobre o esquerdo de Maninha, e a cachorrada: dançar. E Maninha pôs o pé direito sobre o esquerdo de Menino, e a risada rintintine e começa cantar. E no pescoço de cada cachorrinho uma fieira em guizos e sininhos. E o menino outravez sentiu seu separado e o gosto de ajuntar. E o pé direito de Maninh& sobre o esquerdo de Menin& sobre o esquerdo de Maninh& no direito de Menin& sobre o mundo a regirar. E o mundo todo foi ficando som e salva, e foi rintintinindo, e a música sem música se rindo em sino e guizo, au-au, risada. E, de repente, se não quando, o mundo todo foi ficando grosso e fino e foi virando um hino todo em ão. Os dois ali estatuados. Ele e Maninha. De pés dados. Sonhando aquele circo maravilhosão.

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miloca e o sonho (de pequenos casos na vida religiosa de Emília Almada)

A verdade é a eclosão do ente desvelado como tal. A verdade é a verdade do Ser. Heidegger

O rito é o repouso do Poeta. Joyce

De nascer, azarentou-se. Uma coitada. Miloca, Emília na pia, desde nascer desamorou. Se benjamim de mãe de dez, teve embora a cabeça amolgada nos ferrões do parteiro, a puxavante. – Parto danado, – a mãe contava. – Laborioso. Ora dá-se, o cabeção daquela: destamanho!, – abria um pavão nos dedos. – Nunca assim dos outros... Quando quando o fato se pautava. Miloca vigando no entremeio dumas raivenças de filho de parto, de tudo, de própria si. Depois, tempo de escola, prosseguida direta, na costumeira desde as manas, de interna prás freiras. Um colejão cor-de-ruço, amareloso unquanto, gastando um quarteirão todinho da Rua da Jaca segundesquina da Constituição. Por fora, o reclame de um sossegado bom lá dentro. Dentro é que Miloca, foi, viu coisa tonta: um viver malvivente, de mergulho, no meio das paredes sobrealtas, empelicadas de retratos carantonhos de santos santas padres madres preterboloridos. Porém... Sem muito, Emília lia, as lições, rubrimarcadas daquiaquí, por livros apoucados, que aprendia. Decorava, beníssima, qualquer porção, virada aluna boa. No catecismo, e história-sacra, primeira, medalhada, sabendo um tudo de mente. E perguntando a irmã: – És cristão? 163

– Sim!, – recitava. – Sou cristão pelas graças de Deus. – E qual o verdadeiro cristão? – O verdadeirocristão é aquelecrendo e professando doutrinelei de Cristojesus. Ladainhava tão direitamente, excelsa convicta, os carneirolhos tal aloprados, que a Madre até premonizava: vai ser freira. É de menino que fica a gosto o pepino. De estórias que sabia, era a da senha a com que mais se admirava: dos dois que se encontravam nem sabendo de quem. Dois santos perseguidos da polícia do Rei? Um peixe um desenhava, no pó do chão, com seu graveto. O peixe era Jesus representado. Se o outro nem ligava, nada não. Se um Peixe igual riscava – estava irmão. Porisso é que os cadernos de Miloca, ao canto em cada folha, com um peixe ela adornava – de ser da comunhão. Miloca foi beatando: nunca perdesse missa comunhão matina tedéu e procissão, sem confissão, provendo reparo às engonhas. Foi pondo idade e tamanhos, no catramonho unquanto, aumentado também de pernas e joelhos, aonde carimbas rodelas, o encardimento e a roncha, beatamente. E rerrezava. As todas rezas da memória se fazia escorregar na boca o inteiro dia. E esgravatava, nos gadanhos pelagrentos, bolinhas à rebria, de rosário em todo quando. Se entestou por-fim-mente de enfreirar: mesmar seu arrodeio. Se viu sendo? Presumiu ser votada à santez, por pelejar o mal. Se sonhava, queném Nossa-sehora-a-Mãe-de-Deus, masgando o quengo da serpe porembaixo dos pezinhos de purez. A cobrona er’o mal, comprida e roliça, delusa, ronha em seus rebolos, só mesmo o sendo, o Demo, assim movente, escumando gusparadas, a linguazinha no atrevido idivindo mexedor e ritmal jongueio, mesmo só o sendo: O MAL. Cujo que ela sujugava, lá que jeito fosse – mesmo estoporando a pau de punga reza. Miloca se preinventava sem pecado: vocação de imaculada. Fosse? Sim que verdade, e bem, podia flagrar, por quandiondes, de espaço a tempo, decerto difíceis de raros, dispersos escorregos. Mas fatais. Como um próprio, de exemplo, uma semanassanta: O Senhor-Morto, ali, deitado lindamente sobre o roxo do pano veludo, com debrum brocado dourando franjas. Lindo Morto-Senhor, policromada madeira de tempos seculosos, quiçá enformada a mãos habilidosas, quem sabe piedosas, de alguém mestre-santeiro de barrocas 164

horas. Lindo, ali, no meio, estirado, da capela. Longuespartida, coleante feita rosário cobra coisassins, de povo, a fila. O beijapé do Senhor-Morto. Rezas. Choros inventados. Babugem de porção de bocas mais, de todos tipimodos, beijando o mesmo imundipé por beijos e por eras esfrolado. E algum, vero, choro e pranto. Vai que, nisto, sustando as ditas e as pensamentadas rezas, brecando o beija o pranto o tudo, rompante, a voz-superior da Madre determina: – Um minuto de silêncio por menção do Senhor-Morto! Como clarinsoada da dona a fala em meio de soldados. Escutada ordem, exaticumprida total: inchada a capelinha do nadivento, desabarulho, inruído. Nem siussiu, som de respiro. Mesmo não-tudo, tudo não sendo senão siszum de moscas, asas, na faina delas da sobrevivência, industriando a gosmaria esbabada das beatibocas no defuntipé madeiro. Silêncio um-só, de basto se cosendo no ele-mesmo, tresestofando um bujão de paredes, adpojando ventrudos tamanhos. No fundo dos simesmos quietibulhentos, todo-mundo mudiquedo. Num repente, em sobressalto susto, brabo e rouco, esfero tal bumbum de anjo barroco, estrovoou-se um pum: Miloca. Ela fora. Mesmo entre freiras, mordidos beiços bifam sussorrisos. Ouvidos também risos doutras bandas. Zarabatanas d’olhos, à flatulenta, vesgou, severa, a Madre. O só. Porém Miloca disse o tudo no empós, em pé-de-ouvido confessor: o sacrilégio, debochativo quase, capaz de matador de alma. A penitência paga, era pura, porquanto. Paga e milpaga. Que incontentasse, a ela, a exígua penitência – que pouca ou malsofrida aparecesse ao seu afã de puridade. O padre lhe apontasse a penitência – a ela, lhe cabia encompridá-la multimultiplicada – e em cada sempre que a memória lhe picando uma humilhada. Miloca se apurava, apesar de escorregos. Memória assim de sempre, mantinha outra mazela de vergonha. Dia duma festa das de freiras: coricantiga a grupos sorrisonhos e a sozinhas louçãs, declamações braçais, cândidoumor obrigaz bancando a eternamente. Miloca posta de entoante adjunta com a sanfona, esta estufada e desestufada por uma outrinha, o malsonante vento. Tratada cançãozinha em versos invocados, batentes num moral de rala poetagem: “Garimpeiro do Rio-das-Garças, Garimpeiro sonhante de achar Nas cacimbas mais fundas do rio 165

Os diamantes de brilho sempar”. E Etceteramente... E tinha fim por concluindo a musiquinha: o rico dos brilhantes menoscaro (por balança de céu) que os ouros d’alma. Mas num porém Miloca resvalou-se: “nas cacimbas mais bundas do rio”, como soltou, no não-querendo, decerto atropeços dos beiços no sonar apressado: nervôsos. Mas declarou na pédeouvidiconfissão. Demais laborou penitência, por si e por muitos, por dela cuja causa, obduzidos de roldo no pecado: o daquela folgada rifaria, que seguiu. E, conseguinte, era pura. Esperar-que-esperar seu-dia de noivado, alvamente vestida o Senhor esposar. A tanto, o forçado largo preparo de pré-parar. No que espera, que-rezando e que-fazendo, mas sobretudo, rezar: mastigando, ruminante, a qualquer reza sobedescida constante à boca dela, mordizcaz, os beiços mexedouros, charneirante a maxila, no: avemariacheiadegraçaosenhoréconvoscobenditoéofruto vossoventredeuspadretodopoderosocriadordocéuedo infernosalverainhamãedemisericórdiavidadoçuraquees taisnocéusantificadosejaovossoelivraimedamorteamém. Naquele um-dia, a reza assaz comprida, cuja a fez desorbitar: beleza demasiada das estátuas lindonas sobre o altar. Ai, Miloca! Miloca e o seu desar. Que arte afinada a fizesse corar? A do santeiro matreiro. Em fôrma assim tão séria, respeitável, exorbitou de apurar. MariaVirgem era total grandiosa, tafulvestida em manto régio a douraduras contra azul de céucetim. Os longos dos cabelos, sendo verdadeiros, cascatos às madeixas milharais; cobrindo manto e cabeleira a maise-mais. Contudo, havidos nudos pés, e mãos, do nímio real, quase vero carnaz: rósea, lúcea, carnação, de se sofrer calor se se botasse a mão. Tanto instante a perfeição do tal santeiro que a Miloca impingiu desatenção, a distração da reza, a pensação, e, lá se escorregou, mais vez, nossa paupérrima – em mentever, ideal, os debaixos da estátua santual. No que ela menteviu, supeteou-se em blasfemália sem perdão: “Será que Nossassenhora tem peito? Será que Nossassenhora tem xota?” – Maldição. A cobrona, verdeverde, tomando banho em rosas, rerrutilou balebinhas de incrustados olhinhos vinditosos, no que Miloca, atofalhada, enfulou compondo beiço, tromba, rostral de ruvinhoso 166

humor. Só fôra essa safada a possível de a assim desbragalhar, justificou; no que punhemarrando duramente o seu peito, em meacul-meaculmeaculpando-se, enquanto que em seus olhos, se estringindo de escapar, vergônheas ante a vã cobra gloriosa, as grossas caudaizinhas mornas, asquais correu Miloca e debulhar em colo de sua Madre, cuja, por súbita, esqueixelou com assim derrepentina explodição. Assim e assim, Miloca seguiu, foi lá, foi cá, pecou, pagou, deveu, pagou, no que se aproximando a votação de abandonar o secular estado em que nasceu, rumada decisa e final para esconder-se em Deus. Ainda aquela noite a Madre a aconselhara a menos manha. Julgou de achar Miloca unquanto esconchavada em seu sonhoso amor de ser piedosa, naquela exponência de zelo, capaz de a deborcar em ruins desproporções. Que assim não se afoitasse, que ela esperasse e vigiosa orasse, sim, mas com redondas firmezas: mais valendo o a quem Deus ajuda do que aquele que, a força, sujuga. Miloca comutou de chorar, perchegada ao amparo-mãe da Madre; e após as confortantes laudas quotinoturnas recantar, recolheu-se às maciúras do colchão, aonde esparzir o seu-corpo diafaninho, espichada de carne e de alma sem pressão. Com tudo, que a sonhos não se dando o possível de sustar a enxerida intromissão, denovo deparou-se à matemática presença, por mais que a derreasse, da serpe assaz veemente em interpelá-la, dialétil e sarcaz solvendo em babas-ácido a mais lítica intenção. Se bem que em boa-mente, a bofé de vencê-la, ou convencê-la, Miloca abriu-lhe ouvido, à virótica falácia, lhe escutando o tão e o quão. Mas a fala final não foi com tom nem som. Que, ao invés de orada voz, escancarou-se a bicha a réptil bocona, com uma espessa risada, com onde escapuliu tinhosa mosca. Esta, incontinente, a Miloca tropismou-se, e incontinente entrou-se em algum de seus ouvidos. Zonzou Miloca no que o zumzum malício lhe excomichando o ouvido, interno, adoidando-a de perder a vista e o chão, nisso que ela metia algum de seus mindinhos, grampo, ou palito; e nada liberando o verrumoso inseto insonoroso que, balbúrdio, a fustigando, até desespero, sendo que, inesperada, viu-se armada de revólver, vindo de onde alguém não sabe, resoluta a deflagrá-lo dentre aquele ouvido, a fim de a mosca aniquilar. Não fora a sonial angústia, a despertá-la, nas grimpas do clímax, e lá, junta com a mosca, houvera bobalmente suicidado. 167

Suarenta, esguedelhada, sossentou sobre a cama, salva, redimiça, correndo vestir-se, esgueirando silente indensa para fora, descida meândrica esconsa ao parlatório – e de lá, enrustida, à capela, aonde a encontrasse a aurora, arrodilhada em volta dos joelhos, o chão na testa, penitente indormida. Como se deu, não se sabe, não sei. Nem ela, talvez. Só declaro, declara-se, vez que tido por dado incobertável, é que Miloca virou. Se pressurosa ou com mora é que não se podendo assertar. O que parece mais é que viver se developa a pulos demorados, bruscos custosos, imarcáveis em dial. Conquanto, deu-se: que, de rinha, niquenta assinatura com a serpente, alcançasse aguentá-la, em quando a empatizá-la, depois, gostar. Como foi? Como não-foi? Bem: De começo Miloca apraxiava. De reconstante esforço em desbastar a cobra litoglifada, glíptica, em seu cerebrozinho, desconcertava o fazer de cada ação. Parecendo que impodia, embora se sabendo por normal, a mão tremolava, a fala dislaliava, no até rosário e bordado, no até solfejo e confissão. Que o busílis lhe ficava em resolver a cobra, postada no plinto do altar, distraída dos pezinhos que a pisavam (barrocolosso macio), não demonstrando nenhum dos menores importúnios. Também Nossassenhora, dona dos pés, indiferençava: pouco se dando que por lá posasse a cobra, vez que era embaixo que estava, aparente jugulada, ou, se não, contudo homologando, à que lhe em cima, suprema reinação. Se não sendo por tudo isso ou se fosse, o exarado é que Miloca ouviu, por qualquer frincha em si triscada, greta mental quiçá num lapso de reza, que a própria estátua era geral, cobra e madona, insétil, sem maniquéias incisões. Dali a dialogar com a cobra foi coisinha ou menos, pouquinininho a mais em cada dia, e, papo-vem papo-vai, lento e largo, Miloca suxou. E eis que já por volta de bicentésima, ou tri, sonhou uma vez diversamente: que aí, ela ia, chegava na capela, a qual, gurgitosa de gentes, povoava-se, aliás, de nem bem própria gente, sim, e mas, de uma incontável de arcanjos: megalhões. Uns anjos tanto alegres que eles chega até batiam as palmas, a retumbado repapoco ritmaz. E a Maria, que também ela, batia, a mão na mão plaftplafando, risadeira e bonachonha. No que a cobra dançando belamente, em meio de arrodeio, gozadinha na abscena exibição, cheia de embófia fingida, 168

fazendo plicas no ar com o seu roludo corpo em sanfoneio. No céu do teto (ali pintado), uns gordichos anjinhos bebês, impudicos putos semfralda, a viram chegada, de primeiro, agora até belinda, uma Vênus-deMiloca, e alardearam araros – com o que os arcanjos, totais, fenderam bom caminho à vinda dela, nisso que passando a bater binárias palmas, a compasso agora tético do nome, cujo que, aclamável, milbradavarn: – Mi-loca! – Mi-loca! – Mi-loca! Enquanto que a Maria, recebendo anfitriôa, aos rasgabertos braços, marcharranchando lhe cantava: “Agora, dona Miloca, Entre dentro desta roda, Diga um verso bem bonito Pra escutar Vossassenhora”. Num sils a cobra correu hílare, espanou pontinha de chão com seu rabinho, lugar onde assentou-se, ao pé da bem-chegada recitante, pra ouvir tresatenciosa, chuchando o polegar do próprio rabo, no que Miloca escarlúrida enxaguasse o seu gogó com um rrhâann de encábulo, demais feliz no fundo em declamar o seu debute: “Que só pode o peixe-vivo Viver dentro é d’água fria. Como deverei viver (como deverei viver) Com a sua (com a sua) Com a sua companhia. Quem morreu de papavento Foi de sorte muito pouca. Peixe-vivo é deglutivo: Peixe vive (peixe vive) Peixe vive é pela boca.

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a obra ou a obra A bolsa ou a vida! O Ladrão Glosa: A ouça ou a vista. A pausa ou a pista. A touça ou a vide. A-ousa ou a-dista. O pouso ou o alpiste. O bolso ou o viço. O repouso ou o vício. O calabouço ou o vídeo.

Kyrie eleison! O latrinafáber e o cloacafáber não serão jamais senhores de nosso espírito. Joyce

O homem sentou para fazer a sua obra. Impôs-se, no entrequanto, alguma espera: de se-fazer a obra por simesma. Descostume agravado às modas de trabalho: a sedental postura e o corpo penso. Era de, então, dar-se um tempo: de reolhar a revista, da qual já lhe-falara à mesma tarde o primeiro assessor. Garantira-lhe este, sério homem de ar cuidoso, haverem desbordado as justas permissões, no imprimirem, em leituras de povo, agravos desonráveis e tresloucos, propícios de afundar em sujas poças quanta boa-intenção. Também o-secundara, ao primeiro assessor, o segundo, homem de já menos-tensas fibras, porém de costumeira boa-guarda, se por brios não sendo, ao-menos por deveres de seu-cargo, das leis e tradições. A bom plácito notou: a revista, de-fato, ultrapassasse, em grosso abuso, as denúncias pouco graves dos senhores, os assessores primeiro e 170

segundo, asquais se-constatavam, em nítida clareza, por cada página tornada e retornada pelo homem ali, sentado esperando de fazer-se a sua obra. O homem se-sentara para fazer a sua obra. Levava já dois dias de apreensões por aquela incompetência das vísceras, a amargá-lo em horas já de-si sobejo agres. A medicina, que sempre lhe-falhara em seu socorro, nem de ser buscada àquelas aflições. De pílulas e gotas se-fartasse, mas sempre o equilíbrio não vindo lhe-ordenar seus intestinos, ora demais seguros, parcimônios, ora em desandaduras de exaurir. O homem sentou para fazer a sua obra. Considerou primeiro a redação primeira sujeita a emendas aqui-e-ali, primado vernáculo, recalcada moral. Patinhava grávida mão com letra firme, enchendo lautas laudas do seu parecer, ao lixo encomendando, apesar, cada folha do não-dito dizer. Costumado ao serviço em cada osso do ofício, dificultasse, entanto, em cada redação de um seu pronunciamento judical. Temesse o respoucar de seus escritos diante de olhos outrens, sabidamente zombeiros, afeitos ao melhor escrever, afoitos destacando o dito ingrato, a frase troncha, o irrisório pensar. Munira-se, e porisso, de volumes, livros, nomes muifalados, de citar cultibundo em próprio esteio, grandissonando ditas de decoro, bofeteando obscenidades ali irrespeitosamente impressas, para além dos direitos cidadãos, em democrático exagero. O homem sentou para fazer a sua obra. A porta fronteira, de madeira, branca tinta, e seu ferrolho-não bastametálico, trancada, vetando de lhe-vir, de cômodo contíguo, ar-refrigério do ocultaparelho silenteficaz. Da minidiferença desse quente aborrecido, lembrou da precisão de no banheiro, ali também, plantar esse aparelho, ou outro, um mais-geral quiçá, que dando à casa-toda um constante de pele não-sentida, o regulado mundo sem variação. Seu ventre troava, mas obra não vindo. Esperava – no-que bolava uma nova dição, agora mais contida, mais incisa, enfeitada conquanto de brilhosas frases, no-que lhe-doeu. Demais não espremesse, que a hemorróida tornasse a tumescer-se, repondo aquela dor mais indecente que jamais sofreu. Era esperar-que-esperar. Natura non facit saltus, adoque rementou. Que Natureza não pula – benlembrou que o dito era aquele, o que usaria, ilustrando a ousança impensada de editores que vão, metendo pé-por-mão, bagunçando os mais sócios costumes, em colocar, no alcanço de menores, pouco bonitas cientificações. Magistradidespiu-se vestindo a fatiota pedagoga. O obsceno inexiste 171

de-si, professorou – é um acho educativo, de jeito a não grimpar as mentes imaduras com brusco saber de vida-veraz. Natura non facit saltus, bisbolou. Em cada certa hora, à modo-em-rebo, medida verdade se-servisse. Porém, conclusamente, a Natura facit ou não facit qualquer saltus?: arguiu-se insábio, dúvido, leibinízeo burriburidão. Decerto, havia de seguir aquela frase cabida exata sobre o necessário de dar qualqu’espessura ao prestes documento. De certa jeita, porém, chegasse a constatar, de vezes várias, que a Natura cometera o algum saltus, evidentemente. Foi bom no quando, à vez, no gozo dele. Naquele instante próprio al como assim sonhasse, no-que forçando outravez o reto doloriço, de nada lhe-valendo aquela força – fez apenas impadas e ganidos. Desistindo de ejetar o árduo estorvo, solevantou da sentina devolto pro escritório. Sentou para fazer a sua obra. Refolheando a revista, deparou nas fotos: a fêmea de homem, perniaberta, excretando dela a criação, feiaz na obscena postura amostrante; a do neném, das pernas pendurado, a mão do parteiro doutor o-empolgando, no cume do retrato, pelos terneiros tenros tornozelos, como a um porquipernil de feira o-soleva o feirante, nua carne ascosa, no aspeto salsíchil, gosmosa, inolhável; a moça desnua, carnaz, tumidibicos peitos frúteis, glândeos lábios na boca volúpil suspirosa, equinas ancas ciosas, tornicoxas muito adas, e o mais-mais, aquilo muito púnctil, conquanto fotográfico nublado, bastante destacável entanto de a1gum gosto voraz. Começou por ali a sua pecha e saga, demais redator de finos desacatos, legais, à editora turma, apontando, sagital, as supraditas envergonhas retratadas e ineconomicamente declinadas em fácil português adsubversível. Delineou, muito arguto, a porção subfugidamente introduzida de especulações, assaz safadas, de tônus sensual do público leitor. Destacou a censurável falta de recato, no indelfínico tratamento, assaz em prosa, dado ali a quantos segredáveis tantos fatos. Xingou, todo escorreito, aquilo tudo, satisficando afinal com a bom redijo em-pouco debuxado. Contudo, como assentado demais sobre o trazeiro, a mole borrachespuma da poltrona luxenta o-solevando, denovo projetou-se no banheiro, no-que sentisse o insopitado espasmo, sentando por fazer a sua obra. Nem-não, que logo não vindo o alívio santo que almejado. Um caso, será?, de purgante. A dor, ventrilouquice torcicólica, ronroneando bocaquíuza, apenas amainando miudamente aos sopros fricados desacompanhados 172

de mais sólida descência apaziguante, mimando em cara dele esgares comediantes, nutando-1he automática a cabeça, por sins torcedores, esquinando o seu-lombo: a grotescoreografia. Desesperado, mecreiam!, subiu as mãos palmosas e as-ajuntou defronte, no imo-peito em quasereza ao deus qualquer de toda fez, rogando o alívio bento – o qual não veio. Contudo, assossegado, no esganiço de algum flático excarrego, devolveu-se pro escritório, sentado agora no sofá fronteiro à cabiúna secretária de alvitampo fórmico. Repegando a revista e, a folheá-la, balangando lamentoso a cabeça para cada um lado, levo-e-destrógiro, da costura das páginas direitamente postas, meial, defronte às ventas dele. No-que negava, cabeceante, o cabível do nas páginas mostrado, incontenível subcônscio, pausava repetido, pousando lentes nos retratos, mormente o da moçoila supradita arrebitada, cuja unquanto o-comovendo em a1gum certo sentido. Naquilo que notou um que como aperto no solto respirar que dantes, adiantou, solerte, as páginas restantes, disfarçável, colhendo outros reportos menos implicantes. No entanto, para o final, havia um outro, agora de “pesquisas”, que assim lá na revista rotulado, sobre o que jovens pensam quanto a sexo, ou quanto a plexo, ou quanto a rexo, ou quanto a flexo, ou quanto a nexo, ou quanto a hexo, ou quanto a lexo, ou quanto a texo, ou quanto a vexo. Esta fora a pior – que os assessores, primeiro ou segundo a ele nem denunciando, a causa, talvez, por desaver fotografia: perguntas descabidas, respostas senvergonhas, de cinismo ambamente descarado. Houvera até menina (18 ou menos anos) que retrucando ao repórter perguntante (a ficha anonimável), que pílulas tomando por prazer desmedo. E cifras muito claras de dês quando, próprisatisandos, elas ou eles costumavam e quando, de primeiro, se-acoplaram, e depois quanto, e se com similares certas vezes. Tudo muito, muito numéricoaridado, recheio mas de viável desgoverno, ao captando povo ininformado de parceiros. Demais! Era. Nesse argumento aforçorado, brusquilevou-se denovo à secretária, a lançar a definita redação. O homem ressentou para fazer a sua obra. Pouco pôde, porém, encompridá-la: dois parágrafos depois, reteve-se estancado na forte e cólica dor da nova crise, em ciclo, de expulsão do seu vezo. Denovo no banheiro, re-essentou para fazer ou tentar a sua obra. E algo? Não: nada, ou nonada. Só cólica e recólica, e força e puxo e impada e vento e a aguda dor da veia em tumeção. Resolveu que o chuveiro, talvez, o 173

relaxasse, provendo a condição melhor de resolver-se. A ele foi, enfurnado no caixão do box, demolhado amniótico na maior temperatura aguentável, impondo longamente a ventruda barriga à lentura abundante da água-quente. Ali, acalorado em-loco, amenizouse, equanimado acarinhando a brando sabonete a parte dolorosa e o corpo-todo. No semi-alívio do repente, olvidasse de-total o seu trabalho; desaborreceu-se. Deu de mentar, indefeso, o que que fosse, chegando ao assovio, ao hum-hum-hum de boquifechado canto, e ao “bravo” de até ópera, talque o quem-canta-seus-bens-levanta, esbarrando repensar por dispersados fatos, invigilante, inaxiólogo. Correu pela cabeça urna porção de vistas falas cheiros casos. Reviu, da portinhola-memória ou de inventice, quanta coisa impossível de juntada e estapafúrdia se-coisando de vizinha. Jantar com o Coronel mais-tarde às 9-e-1/2 onde encontrar o caro Alberto no batepapinho Whiskey’d-soda, falar negócio d/ terreno p/ sítio-seu no alto-da-serra, podendo talvez assertar preço. Meias novas q/, eu não disse?, combinando bem-bem na calç/ nova esporte e a camisa, shi! q/ eu m’esqueci avisar q/ era vermelha nº 38 eu ach/ q/ o colarinh/ às-vezs apert/ muit/ e nes’cas/s... Eu levo Lúcia e menins p/ serr/ ou desç/ dep/ log/, eu fic c/ fusca aí Marion vai olhr roup’esporte p/-q/ d outra-vez ela reclam/d eu estr de tern p/-q/ ela nã-gost. Lúcia n/serr nã vai podr me-controlr de horár vai ser ótm p-q eu... eu desç log-log eu nen-vouesper almoç-cas-Albert p-q-eu dig-q-a-gent-desc dep/no-fim d-doming. Marion m’esper-pront a-gent sai-log. Ah! Tenh-q-telf q-marcr-vag-motel-sábd. Marion fic-fula se-eu-squec, q motel é melhr p-q-hotel-é-muit-mais-chat p-q tod-mund-fic-manjnd-a-gent e eu nem-saio-d-q-qurt-o-dia-inteirinh q vai-ser um-dia-inteirinh-d-paudentr-que-eu-vo-ficr-lá. Marion vai ser-gostos-assm-n-infrn mas-qdanad ela-rebol e nã-é-nem-quest-d-belez p-q o-corp-nem-é-tant-etem-alg-defeit-que-eu-nã-sei-bem-mas-talvz-sej-negóc-d-proprç mas-éaquel-jeitinh-desgraçad-q-ela-me-põe-doid-varrid-q-é-sóeuquerer-tá-metend-o-temp-tod. Nã-é-lá-tã-bonit-mas-serv-paca-pq-nã-é-feit-a-Lúcia-q-fic-paradona--aliás-nem-val-mesm-a-pen-euquerer-mais-cois-q-é-melhr-Lúc-fic-assi-mesm-p-q-essas-mulhrs-dhojendi-andm- muit-esuds-c-ess-negóc-d-valer-o-mesm-q-hom-e-eunã-quero-mulhr-pra-ficr-me-corneand-e-bast-uma-saidazinh-pseman-c-Marion-q-eu-fic-equilibrad--p-q-Marion-é-q-é-boa-mesm 174

p-iss...essas-putinhs-independents-metids-a-família-até-q-...só-é-chaté-Marion-ficr-faland-n-marid-del-e-n-filh-o-temp-tod-q-eu-nã-tenhnad-cm-iss-els-q-s-fodm-p-q-se-ela-qur-fodr-q-fod-e-o-corn-e-o-fil-dput-q-se-danm-q-eu-nã-tenh-compomiss-nenhm-c-ela-além-de-cam. Só-era-bom-q-ela-foss-um-pouquinh-mais-bonit-alémd-trepadeir-mas-ser v-assimesm-mas-s-foss-um-corp-mais-namedid-aí-é-q-eu-gamav-mesm...volenti-non-fit-injuria...Aqueld-revist-q-mulhreraç-puxavid-q-bun-e-q-peitinh-durinhs-d-silv. Se-Marion...émelhr-eu-parar-q-eu-hoj-nã-tenh-fod-nē-Marionnē-Lúc-q-mrd-f ic-me-tesand-e-dep-nã-dá-pé-amnhã-eu-tenhq-ir-trabalhr-d-qualq-jeit-senã-eu-ia-no-clubinh-q-eu-tenh-qterminr-c-essa-onda-d-revist-mas-puxa-como-essa-moçad-dehojendia-novinhs-novinhs-novinhs-e-ness-fod-fod-c-pílul-e-tudq-o-A lberto-me-diss-q-els-fazm-tud-d-deixr-o-cara-esgotadp-q-o-cachorr-a nd-a nda nd-c-meni-nov.E ssas-descarads-nã-t ñe-ñe-vergonh-d-dizr-ao-rpórt-a-sacanagm-dels-mas-eu-queria-sabermesm-n-bas-d-estatistic-c-quē-q-essas-viads-fodm-pq-dev-ser-cos-coroas-q-esses-rapazs-d-hojendi-parecm-tods-umas-bichas-cessas-calçs-apertadinhs-e-blusões-estampads-e-cabeleir-d-meninmoça-só-podm-mesm-é-ser-uns-viadões-pq-eu-m-lembr-naqueldia-q-eu-ia-c-Alberto-eu-mostrei-pra-ele-na-esquin-d-Santaclaraaquel-menina-rolicinha-q-nós-até-ficams-tesuds-c-a-abundação-dbundinh-dela-eu-nã-ia-mexer-nē-nad-só-quis-olhr-d-frent-p-vera-cara-dela-pq-n-meio-d-rua-agent-tem-q-ser-discret-mas-podiadep-a-gent-s-topar-qualqr-negóc-em-outr-situaç-ajeitadinh-aí-euolhei-quad-eu-passei-juntinh-dela-é-q-eu-fui-ver-q-ela-era-homemc-a-maior-cara-de-macho-mas-bem-q-eu-tinha-estranhad-o-andrd-sacan-e-els-ficm-bancand-q-é-só-quest-d-moda-mas-eu-nãovou-ser-tapead-assim-nã-q-esses-puts-só-podm-mesm-é-ser-viads. Eu-só-nãentend-como-é-q-os-pais-dels-nã-proíbm-uma-coisdessas-p-q-n-meu-temp-a-gent-nã-tinh-essas-frescurs-e-andav-feithomem-e-assm-mesm-só-pq-a-gent-era-um-pouc-mais-franzin-semmusculatur-p-fora-e-não-gostav-muit-de-esport-pq-a-gent-preferiaestudr-entã-os-colegs-pegavm-faland-e-soltand-piadinhs-q-a-gentera-marics-e-hojendi-els-ficm-tomand-n-cu-o-dia-inteirinh-eninguém-mas-nã-adiant-q-ninguém-vai-passar-pocim-nã-q-els-vãver-só-q-éprecis-acabr-c-ess-licenciosidad-pq-afinal-de-conts-tem175

q-ter-uma-moral-social-muit-bem-definid-d-contrár-vira-bagunç. Est-toalh-ja-stá-c-muit-uso-eu-fic-put-d-vid-c-ess-porcari-q-eujá-stou-cansad-d-dizr-a-Lúc-p-mandr-a-empregad-nã-deixr-dtrocr-pq-a-gent-fic-c-cheir-d-roup-suj-grudad-n-pel.--.A-Lúc-nãbot-ordm-nest-porcari-é-uma-merd-q-eu-j-to-cansad-d-mandr. Eu-vou-passr-aquel-colônia-p-tirar-est-cheir-q-porcari-eu-m-distraí-en-cheirei. Nã-verifiquei-q-a-toalh-sempr... Casa do Dr. Ferreira, gládio de madeira. O homem iniciou o esparzimento de cheirosa alcoólica lavanda, a qual foi palmeando massageante com a mão banhada do líquido borboteante e estancando a intervalos na roliça palma concha, partindo da espaçosa testa e cuidoso esfregando curvamente de-modo a não deixar pingar nos olhos. A homogeneidade da mistura urgindo de vez-enquanto ser mantida a solavancos do agitante braço a-fimde-dispersar o depósito alvacento sobre o fundo assentado quando estático. Aplicou seguidamente nos pomos malares, circunferenciando os roçamentos alizantes, e desceu de-seguida à bochechuda face, onde reteve o tato perscrutante, avaliando a centímetro quadrado a paga do barbeiro que de-manhã lhe-podara o facial pelame aramizado. Dali para as orelhas, escantonando dedipúnctil cada fina talha da rococoante folha acústica malpegada à craniana caixa já de-antes no banho xampuzada. Seguiu para o pescoço, a nuca de-começo, pressionando mais o idivindo mover, ajeito em relaxar gostosamente a tênsil nutativa muscular estrutura de atrás, e a de diante após, longipalmeando a comprida unidade que vai de esterno a mastóide e, no último descer, convexando mais as falangetas por alcançar maciamente a esternal fosseta e depois as algo-maiores fossas claviculares. Descido ao peito, esfregou amplamente forçoso a flácil musculação demais parca subposta ao adiposo cobertor dissimulante, freando brandamente em cada olho-cego das terrosas mamas que assim tumescíveis. Mais encharcando a mão para os sovacos, onde os cachos, de finos capilosos tufos, merecedores de eficaz mais-aplicado tratamento a desodorizante. Nos laterais costados espraiou muitoancho a líquida fartura perfumante, e depois no ventre, no-que notou, mais atentamente cabisbaixando, a dura carne erétil, grávida do sangue, mantida acesa a sem-querer aquele tempo-topo em que pensavoava: subfugida entre a gáussica curva da barriga e o tufo emaranhento da pentelhil pubiana mosca-de alvo, renitente esperançosa de conchego, 176

ou acarinho de mão apaziguante, independente pessoa quase, em seu-meio engastada, nutando o rolicorpo ao vegetativo pensar da incerebrada cabeçorra. Aborreceu-se com essa coisa o nosso homem e sobre ela espalhou as mãos umedecidas na colônia, fazendo uns cafunés sem-afeto, apenas tera pêutico e tológico acalmando-a nesse enquanto. Mas, no-que a-segurando pressionante, refez a1guns espasmos pela zona, os quais, por telegráfico endereço, se-encadearam em mais-trazeiro espasmo: correu para o seu trono. Mas, de não vir nem bolote num roldão de imediato, se-pos a causear com aquela estaca, priápico mourão demais rebelde, o qual, impertinente, lheimpunha uma questão desimportante: onde o botar? Se adentro pelo vaso, malcabia: além-do-que, tocando a louça fria, desse um estar nada bem, de pouco higienizante e incômodo ao contato. Se para fora, podia que se-desse, a meio de uma força, o esguicho de mictável substância, aqual, decerto, seria de alagar sujadamente o atapetado. Adentro ou para fora? Indecidido, restado a segurar defronte a coisa, se-decidia a meio da sentada, parando um flash-fotográfico instantâneo, no ar acocorado, alguma polegada acima da alva tampa em roda de coroa. O dúbil probleminha deflagrado, frustrou, por vias psicadas, mais este ciclo delivrante. Apoquentado, macambuz, a lento passo, tornou para escritório, sentando por fazer a sua obra. Bem-pouco lhe-faltando. Só ligeira relida no trabalho e mais algum parágrafo pequeno, o qual lançasse em três ou duas linhas, terminal. De momento lhe-bastando a finalmente redação lançada. Mas urgisse era esboçar dada atitude, rascunhar o indignado, cuja grafar mais-depois na sua ação. Como ousasse, assim-pois, uma revistassim desacatá-lo, a ele sim, legal portante, por direito e posto fato, da lei da ordem da justiça do seu povo? Aqui, amofinou-se, no-que concomitante contorceu de uma esperança que o-afretando para o vaso, onde adassentou para fazer a sua obra. Com uma lei não se-lude! Como haverão de ver. Amanhã! E nem com força ou nada, esvencilhou-se em flatonerre e bestourada de petardos. Amanhã mesmo! O primeiro na agenda. E foi assim que se-viu A O B R A.

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poruporopotara

Segundo o poema, a natureza deve ser pensada como risco. Heidegger

O entrevistador: “– Lhe perguntaram um dia se o senhor pretenderia escrever uma Ética, uma doutrina da ação”. Heidegger: “– Uma Ética? Quem pode se permitir hoje, e em nome de qual autoridade, propor uma ao mundo?” (entrevista de Heidegger a L’Express)

Não vou deixar ninguém estupefato. O título da peça, a gente articulou foi de termos canoros do nosso belo tupi-guarani deles, língua suprema, segundo uns sábios que escutaram. Parece que este termo quer dizer das artimanhas, do corpo e da mente, quando enxertadas de sabor bissexo, ou bissexto, ou melhor, a traduzir com mais clareza, correspondendo ao que querem significar as pessoas vulgares, como nós todos dizemos, com a expressão, dita chula, de fazer sacanagem, ou comer gente – luxuriosamente – com perdão da franqueza. Mas, deixemos esses horrorismos da fala, para nos atermos, em reflexo, a esse estranhamento que se amostra embaixo. Eram, já, duas mulheres. Não sei se devo dizer duas. Falo assim por, quanto a mim, só contar as cabeças. Assim se conta gado: tantas, tantas... Mas, acho errado: no gado o que interessa é volume de carne, pró-mercado. Mas, a este caso, de grande economia de matériaprima, e sendo gente, e tudo e contudo funcionando jóia, a contagem deve ser pelas cabeças, como hão de concordar, talvez, em tudo lendo. Que já eram mulheres, posso dizer, porque já menstruavam (embora, o ciclo, fosse um só, a rachar pelas duas). 178

Quando nascidas, a mãe bisperma, bífera (e que era índia), as deserdou desse instinto materno (que dizem que mãe tem, ou que tem que ter) e quis assassiná-las; o que faria simples, não fosse o seu doutor lá delas, eu caraíba, no hospital dito público, haver em outro instinto (biomédico, científico, assim-assádico) pesado o interesse por aquelas bimonstrinhas trimegistas. Tomei-as e cuidei-as – que aí bi-estão de figura marmanja e bem manjada. Nasceram pespegadas. Não tão fácil como certas conhecidas siamesas, que ambas inteirinhas, xipofagadas só por colagem de mediar anódina partinha, e que algum bisturi, bigúmeo delicado, possa soltar sem danos a nenhuma, ou matando uma só – no que à outra que sobra dando norma, de soviver como todos, sem apêndice falante, e sem uma obrigaz carnal diplomacia. Não-não, porque esta insétil artimanha de natura as fundiu, de economia, as duas mônadas, numa só mona – coisa assaz equivótica e bisonha, um bibelô surrealista, um biró mal gestado. Um caso complicado: nasceram um bípede, sendo uma só debaixo da cintura e, para cima daí, binária criatura, em perfeito binômio, bicéfalo, bitoráxico, quadrúmano, xe pó xe pó xe py, por biruta equação vivendo em rara biocenose. De pé, um ipsilone, ou psicone, em equilíbrio árduo, a bisesdrúxula andadura, cada uma comandando cada perna por binérvea trama. E pelo ventre, um bazulaque de vísceras. E pela cuca bíceps, estórias várias, por meta bicúspide, e embora a mesma história, uma bicameral nação solvendo as ordens biaxíferas, um monstro bífido, biflexo, bifólio: idêntico bifronte e biforme, quando olhado a perfil olhando opostos lados, bibabaca. Seguravam-se. Empatava. Tudo sendo, e fazendo, adjuntas, sem privados; té mesmo o privativo. Não conhecendo a solidão-a-um que conhecemos – nem conhecendo vera companhia além das próprias. Ninguém viu coisa mais segura, digo. Entre as cunhãtaí, naquele espaço bifendido, havia uma ranhura, um risco, marcando a proteção da sua estada. E nesse risco estava tudo. Não no corpo, que não tinha risco, mas no ar, no meio de entre elas, aonde a gravidade punha o centro que trazemos bem no meio da barriga. Nesse risco total acharam um ponto neutro de absoluta indiferença e garantia. Em torno desse ponto gravitavam o seu sentido, em torno desse nada 179

se sentiam no seu prumo. E a segurança é isto – ou não é nada. Confesso: que meu cuidar foi só curiosidade. Sabia que impossível separá-las – e uma ética me manda apoio a qualquer vida. Mas o melhor do meu empenho foi coisa de aangara, demônios de ciência: eu queria sabê-lo – esse demônio novo, saber no que é que dava, em mente e inconsciência, aquele ser completamente estranho à nossa norma e casa. Foi quando adolesceram que parei com tudo: larguei vontade, perdi meu interesse, tirei voto. Num fato só, choquei-me à competência – e deixei desse caso; só trato agora anódinas coisinhas. Elas cresceram do meu lado. Acostumei com aquela diferença divergente. Às vezes mesmo já me perguntara se eu não era errado, se minha biofilia, moralmente, não mancava. Mas, fui levando, até que elas cresceram – eu fazendo de veras que eram como as outras no diário, fazendo o mesmo em tudo: a mesma aprendizagem, a mesma fala, a mesma roupa, a mesma escola, a mesma vida (?), as mesmas engrenagens, a nheenga. Num dia, em onze anos, as surpreendi, bisbilhoteiro, atrás do meu biombo, cuacuba, em consultório, aquelas duas-uma, maraneyma, de bioquice acreditada, armando grossa bisca que me pôs alarme: as duas bilontrinhas, se bisando no bilu-bilu que faziam na ambyquyra, no bilrinho delas, biloto engastado na bilabiada única biboca da bimbinha, enquanto, com a bi-boca, produzindo monomáquina bivalve, em chupo bínubo. No que um dos dois bímanos, cruzado, bolindo os mamelinhos. E com a mão que sobrava o monóculo trazeiro, em cupeaba, refurando. Enquanto que os olhos, quatro, se fazendo um binóculo, de olhar olho com olho, em vão discernimento. As bitáculas bilateralmente respirando-se. As coxas se raspando, à falta de um biriba, sonhando uma bimbada, quiçá pra sempre só sonhada àquela vida, bímare, partida, bigênita qual Baco, porém tão bi-sozinha, autista-autófaga. Me fez pensar, aquele amor bilésbico e bilingue de unicórnio. Um auto-amor danado? Ou ecomonhangaba? Não sei filosofia. Só me lembro do mito. Filho de ninfa e de rio, o jovem belo não amasse a jovem bela Eco. Esta, ninfa também, o chamou de egoísta, e foi contar à deusa do silêncio, e ao seu castigo: e veio. A deusa deu-lhe a sede. Tirésias, 180

o poeta, taxara não poder o belo jovem achar a própria imagem, sem perder vida-vida. E, dando à boca fonte respelhada, o jovem achou Narciso – e se amaram para toda a mortevida. Tupã que as guarde. Aussubassaba.

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a morte incerta do pai (ou do filho) Eu sou um rei que voluntariamente abandonei o meu trono de sonhos e cansaços. Fernando Pessoa

Sou inapreensível na imanência. Porque resido tanto entre os mortos como entre os que ainda não morreram. Um pouco mais próximo do coração da criação do que é habitual. E, contudo, não tanto quanto o desejaria. Epitáfio de Klee

essa minha viagem está completamente fora de programa mas eu não posso descartar o aviso chegou de forma estranha não sei se telegrama carta telefonema é preciso mas indecifrável que eu tenho que embarcar imediatamente mas nada me dizendo certo sobre meu pai que é a causa da ordem mais lacônica não sei de quem provavelmente de minha mãe sempre com aquela mania de ser obedecida a qualquer momento nos caprichos mais tolos falando sempre demais com o costume dela de mandar nas pessoas de classe inferior à dela empregadas domésticas da escola noturna professorinhas lá prás negas delas que não sabem ler direito fazendo continhas que elas chamam as quatro operações as burras não sabem que não existe número certo de operações que as pessoas podem fazer se não forem barradas tapando os furos da imaginação delas aliás nunca teve muita imaginação para ver essas coisas simples porisso é que eu nunca fui de me abrir muito com ela porque ela não era capaz mesmo poisé de entender o que não está exatamente debaixo do nariz imperial dela sempre levantado na frente das ordens dela eu nunca vi foi ela obedecer ordens de ninguém ela parece filha de nobre herdeira de fortuna e nome e nunca teve nada uma semiproletária que vivia de trabalhar e do trabalho do marido dela meu pai coitado era um pobre diabo pensando que era livre 182

porque não era empregado era escravo o alienado mas de qualquer maneira eu tenho que atender o pedido e viajar para lá não que eu vá obedecer ordem nenhuma que eu não obedeço mesmo que eu sou um danado de rebelde que come titica todo dia mas fico dizendo pra mim mesmo que é titica e não é caviar não senhor que eu posso ser pobre mas não sou imbecil essa porcaria de táxi preto velho paca de marca americana cheio de barulho de catarro no motor eu bem que preferia um fusca novo carro pequeno não fica engasgado no trânsito dá um jeitinho de passar nem que seja pela calçada mas tem uma porcaria de guarda na esquina o chofér não quer sair comigo porque a banheira está na frente da fila eu tenho que ir naquele mesmo êta que viagem mais desgraçada uma porção de tempo no meio daquele monte de grossos esses roceiros tinham que ter um pouquinho mais de educação antes de poderem viajar num trem com ar refrigerado e tudo os cagões parece que não têm o menor conforto na casa deles mas não têm mesmo coitados eles usam todos os copos de papel eles bebem água até sem ter sede só para aproveitarem total o dinheirinho da passagem o papel higiênico da privada acaba antes até do trem sair da gare número um daquela porcaria de Leopoldina que estação mais catingosa também esta porcaria de lugar que é uma desgraça de pobreza ninguém não come direito quanto mais ter educação numa viagem de sete horas que enche o saco até de santo de barro o táxi está chegando na casa do meu pai eu só tinha dado o endereço porque eu nem sabia onde era o chofér é que achou a casa eu só estou com a maleta pequena na mão esquerda eu vesti a minha roupa escura não sei nem pra que botei acho que é mau agouro de saber que deve ser coisa de morte acho que é me lembro só do casaco três-quartos pesado pra burro grosso assim bom pra quando está muito frio porque é mês de junho eu acho que é julho não me lembro mais só vendo ah é junho mesmo acho que é eu me lembro de uns moleques soltando cabeça-de-nego na calçada aí eu fico danado da vida com esse barulho desgraçado logo agora que eu vou precisar de um pouco de sossego que eu nem sei o que vou fazer quando chegar eu preciso inventar uma coisa para dizer uma cara para o momento porque a situação é muito chata a casa do meu pai é pequena por fora tem um alpendrezinho de entrada meio afastado do murinho amarelo eu acho que é branco sei lá não interessa só sei que sai do murinho uma planta muito densa 183

verde meio empoeirada dessas que eles usam na minha terra para cercados sempre todo mundo com essa mania de gente da roça essa porcaria é infensa à civilização também pra que civilização que tudo é uma porcaria só que essa gente não aprende mesmo mas no fim acaba tudo mesmo em porrada eu estou há muito tempo afastado dos meus pais com a distância e os meus interesses completamente diferentes eu fiquei envolvido nessa vida de cidade grande amarrado no cipó do eumesmo que é uma bosta a gente ter de ter um eu-mesmo eu estou total afastado do interior sem nunca fazer essas viagens e de pessoas como essas que aliás eu devia mesmo ver mais vezes só pra não ficar chato essa casa pra mim ainda é desconhecida porque eu nunca visitei eles meus pais depois que moram aí eu só soube da mudança por notícia de carta ou será que foi meu irmão que me contou nem sei só sei que recebi o endereço e mais de nada agora eu chego em casa de estranhos na calçada estou na dúvida se talvez eu devesse bater palmas como eles usam no interior porque as casas de lá é difícil terem campainha na porta é plaft e plaft as mãos ficam doendo até um cabrunco daqueles ouvir que tem gente a gente fica esperando um tempão acho que é falta do que fazer esperar na porta deve ser programa para esses mulas mas o portãozinho do muro está trancado com uma corrente com um cadeado meio enferrujado que eu até sujei a mão e resolvi que eu não vou ficar batendo palma nem nada que eu fico com vergonha de ficar batendo palma no meio da rua não é teatro nem nada que palhaçada custava essa gente aprender que eletricidade serve para alguma coisa eu então vou pular o murinho que eu resolvi bater toctoc na porta da varandinha ali pelo menos é menos ridículo eu fui chamado de urgência como filho a quem se apela na emergência como parte do problema embora eu o estranhe e não ache meu porque eu estou muito deslocado indeciso meio sem jeito nessa história aliás eu sempre parece que tive cara de quebragalho de urgência meu irmão é muito bonitinho e tudo mas é um meleca na hora do pegapracapá é aqui o bestalhão que todomundo lembra ora essa eu devia era dar uma banana a porta da varanda tem uma maçaneta de metal cromado eu manobro ela a porta cede está aberta não tinham trancado por dentro parece que estão me esperando a qualquer momento por mais incerto que seja a cena que eu encontro é inesperada a sala é grande e espaçosa... 184

... não não quer dizer a mesma coisa grande é grande e espaçosa é espaçosa que bobagem e mais ainda espaçosa por causa de que muito crua não tem tapete cortina nada pra amaciar a vista sempre foi assim um requintado mau gosto desconforto ali é mato nem que não fosse por falta de dinheiro é mesmo mentalidade os móveis têm apenas um bufê comprido de madeira escura eu acho que é jacarandá talvez gonçalo-alves essas madeiras estão na moda e todomundo tem móveis delas puxavida que falta de imaginacão o bufê com pinta de muito velho eu acho que era mesmo porque eu acho que já conheço ele eu acho que era da casa da minha avó quando eu era criança gostava de abrir o bufê da velha e ficar cheirando dentro dele um cheiro danado de bom de madeira oleada roupa limpa doce escondido até parecia que o bufê da vovó tinha cheiro de segurança porque eu era criança e não sabia de nada não se eu soubesse mas deixa pra lá não adianta que eu tenho uma porcaria de problema pra resolver de pé em frente do tal bufê virada de frente assim pro lado da porta minha mãe parecendo que se postou ali há muito tempo à minha espera como é que ela podia saber que eu estava chegando naquele momento nem dá tempo de eu pensar como é que eu devo entrar nem o que dizer só que ela está vestida com uma roupa preta shii... a coisa parece que está dando certo essa coincidência com a minha premonição dizem que é bobagem mas eu sou danado pra inventar coisas que vão acontecer mesmo minha mãe está muito séria com aquela cara trágica de novela de televisão ela gosta muito de acompanhar essas novelas em capítulos que são uma porcaria artística eu nem sei quem veio primeiro se foi a novela que influenciou as posturas de minha mãe ou se foram as minhamães que têm pelaí que incentivaram os safados noveleiros de fazerem essa molecagem eles ficam ricos os vigaristas bostejando pelaí aquelas estorinhas de cornos assassinos etc. etc. o rosto de minha mãe está muito pálido e as mãos segurando um lenço branco pequeno meio rendado e um terço de cristal que tapeação de reza-que-reza não é nada disso na frente dela exato está estendida no chão uma eça muito baixa em cima da eça tem um ataúde de madeira escura entalhada no mesmo jeito que o bufê que está todo fechado eu acho que meu pai decerto está morto mesmo mas aquilo que eu estou vendo nem parece me chocar eu estou com uma serenidade a 185

toda prova de repente desusada que nunca eu tive antes muito lúcido diante dessa talvez fatalidade tudo se desenrola queném teatro cena a cena como esperando que o público entenda a cena anterior para seguir outra continuando o enredo pra pegar o fio da meada a cenadois é minha mãe num pranto desesperado contorcendo as mãos ora veja toda vez que se fala em desespero principalmente quando é de mulher tem que se falar em contorcendo as mãos mas é pura verdade que eu não estou inventando novela romantiquinha de TV a sala está cheia da voz clara dela muito forte dizendo quantas lamúrias repetidas de gosto declamativo ela vai lembrando automática misturando com os reproches à minha ausência constante exigindo de mim uma providência de enterro fastoso estamos apenas três o cadáver do pai a mãe e eu três pessoas e três móveis de cara sinistra o bufê eu não posso olhar que me lembro do cheiro a eça e a urna do enterro nada com a mínima cor que mania de aridez a cena toda preto-e-branco nem flor nem nada nem pelo menos uma parede um bocadinho azul nem um amarelo dum infeliz dum raio de sol perdido lá de fora que bem podia fazer o favor de entrar por uma fresta da janela puxavida eu só vou levantar o meu braço esquerdo em ângulo reto assim ó com o antebraço e o dedo indicador na linha da mão até o cotovelo num membro muito tenso não posso pensar em membro que eu me lembro no colégio os meninos desenhavam uma porção de pirulitos na porta da casinha aí o diretor botou todo mundo em forma exigiu que se acusasse o autor da pornografia que tinha desenhado membros no banheiro aí eu não entendi nada não e perguntei ao Marcelo do meu lado aí ele respondeu que membro é há-há-há-há meu braço parecendo o braço de quem ficou irritado comovido sei lá eu vou balançar o braço dizendo não diante do rosto espantado da minha mãe que eu não vou permitir esse negócio de enterro com luxo porque eu não vou fazer uma coisa dessas que meu pai tinha ódio disso meu pai era um simples com total desprezo por cenas pomposas das vezes que fez desses papéis cretinos como por exemplo no casamento do meu irmão foi por exigência dela porque ele tinha horror minha mãe dá logo mostras de que não aceita minha negativa mas coisa nova pra mim muito estranho obedeceu meu gesto não disse nada calada parada feito hipnose incapaz diante da minha decisão definitiva com uma inexpressão pesada estampada no 186

rosto que está de novo pálido e distante de sobrancelhas arqueadas superiores feito nobre fracassada aí eu pergunto que é que é que aconteceu e ela responde sempre devagar naquele costume dela de contar tudinho tintim por tintim queném quem está escrevendo uma estória com começo meio e fim tudo acertadinho uma beleza mas não importa beleza nenhuma que está tudo muito confuso ora essa não é mesmo para entender como é que pode acontecer aquilo ela começa contando seu pai depois de velho deu para gostar de sol e sai passeando pelo campo eu já disse que isso não é coisa de gente velha que ele deve se cuidar ficar em casa descansando ele antigamente gostava de ler você também devia dizer isso a ele quando nós estávamos novos ele só queria ficar lendo a noite inteira até tarde eu é que tinha vontade de dar uma voltinha chamava ele não ia nem pro cinema que naquele tempo tinha muito pouco não tinha nenhuma distração queném hojendia nem televisão teatro só de vez enquando é que vinha uma companhia de fora mas ele não me atende sai todo dia de manhã para dar essa maldita de volta que ele diz que precisa respirar ar fresco que afinal de contas esse negócio de livro é bobagem a gente fica lendo só para satisfazer a vaidade de um cara que não tem imaginação pra fazer outra coisa em vez de estar escrevinhando essas porcarias que eu já li tudo isso e não adiantou nada agora eu vou é ver de perto nem que seja só as plantas e a bosta de gado no meio do capim então ele sai mesmo andando que não pára mais eu acho que ele está mesmo ficando pancada ele tira capim do chão e fica um tempão olhando a folhazinha dizendo pra mim que beleza de poesia o capinzinho eu acho que é mesmo velhice você não acha aí eu achei melhor pedir ao médico pra não deixar então anteontem ele foi passeando sozinho no campo você não sei se lembra tem aquela elevaçãozinha bem no meio feito um morrinho eu já disse pra ele pelo menos não subir ali mas ele está mesmo pancada o pobre do meu marido coitado ele até se abraça com as cabras e faz cafuné no meio dos chifres delas ele era tão distinto um comerciante muito cotado agora você veja como é que a velhice faz com a gente o seu dia vai chegar também tenha pena do seu pai ele saiu andando com o nariz pra cima respirando fundo sem parar com uma cara rindo feito criança acho que só não sai correndo porque as pernas 187

não aguentam mesmo ele tem que andar devagar começou a subir o morrinho as cabras estavam lá em cima ele faz um esforço danado pra subir eu já estava mesmo pressentindo que ia acontecer com a força que ele faz todo dia quando ele subiu a cicatriz da operação que ele fez quando você era criança não sei se você lembra você não lembra nem da gente quanto mais disso aí a cicatriz foi abrindo abrindo mas ele não parou de subir completou a eventração que já estava muito grande e os intestinos começaram a escapulir pelo buraco ele foi perdendo as tripas mas ainda por cima as cabras parece que já conhecem ele vieram correndo pra receber festinha enroscaram as patas nas tripas dele começaram dando nó em tudo ele nem caiu nem nada no chão ficou de pé era uma coisa horrível de ver as cabras tripudiando nos intestinos dele nossa como eu fiquei chocado que coisa horrorosa que maneira mais insólita de morrer eu nunca tinha visto uma coisa dessas até parece um sonho minha mãe só dizendo calma calma acho que é porque eu estou fazendo uma porção de caretas só de imaginar minha barriga está dando uma porção de voltas parece que eu vou ter uma bruta diarréia minha cabeça tonteando mas minha mãe grita mais alto calma calma espere que você não ouviu até o fim já está pior do que ele ficou vocês são uns moleirões se fosse com vocês são uns bananas mesmo seu pai está lá dentro descansando mas achamos que não vai adiantar eu estou muito confuso e mais apavorado ainda e pergunto se ele não está dentro do caixão de madeira não está coisa nenhuma minha mãe responde ele só encomendou logo porque me disse que tem certeza que vai morrer de hoje para amanhã ele não gosta de dar trabalho a ninguém ele sempre se resolveu sozinho e dá graças a Deus de poder organizar a própria morte disse que quer falar com você por minha causa mas você não precisa se preocupar comigo porque eu também tenho tudo organizado foi ele mesmo que passou o telegrama eu não queria que você se incomodasse conosco mas ele insistiu de qualquer maneira foi bom você vir você conversa com ele você vai lá dentro ele está deitado no quarto eu então resolvi ir aonde minha mãe está me mandando só para poder despistar ficar um pouco sozinho e poder pensar que atitude tomar de início porque nessa altura eu já estou crente que minha mãe ficou maluca ou está 188

já com arteriosclerose ou qualquer outra maluquice de gente velha é claro que aquilo não pode ter acontecido até me dá uma vontade de abrir o caixão pra espiar mas eu vou lá dentro só pra despistar eu gosto muito de ficção e até já arrisquei uns continhos de science-fiction mas isso é demais pra minha imaginação puxa-vida pretendo não ficar velho assim é melhor a gente morrer antes a gente não sabendo o que está fazendo e criando uma porção de mal estar eu vou entrar pela porta no fundo da sala onde tem um corredorzinho de três metros maisomenos aí eu empurro a primeira porta da direita é o quarto deles não tem ninguém lá dentro minha mãe vem logo atrás e me encontra sentado na cama deles porque eu estou tentando organizar os miolos ela fica danada da vida porque tinha mandado meu pai ficar de repouso e ele já tinha desobedecido ela disse aposto que ele foi para a cozinha roubar melancia na geladeira ele adora melancia o doutor já proibiu quanto mais depois de uma coisa dessas vem cá dentro comigo pra falar com ele não fique aí parado que você não veio aqui pra isso eu resolvi fazer a vontade dela acompanho minha mãe e não é que meu pai está mesmo sentado à mesa comendo uma talhada de melancia madura que dá mesmo água na boca da gente aí eu fiquei definitivamente abestado já que está tudo muito maluco resolvi dar tudo por normal afinal de contas essa vida é mesmo uma maluquice e eu não quero mais entender coisa nenhuma já estou topando o que der e vier meu pai me recebe me cumprimentando como vai como se eu acabasse de estar ali ainda agorinha mesmo porque ele sempre foi assim pra falar com a gente aí ele começa a me dizer que só tinha me chamado por causa de minha mãe e começa contando a mesma história toda denovo e eu ainda mais espantado porque é igualzinha à da minha mãe mas continua no ponto em que as cabras estavam metendo as patas nas tripas dele meu pai continua contando que enquanto as cabras pisavam ele ainda teve a calma de ir recolhendo os intestinos e empurrando pra dentro com o dedo indicador da mão direita pelo buraco assim ó e aos pouquinhos acabou recolhendo tudo mas o pior que ele achava era a farofa que ele tinha comido no almoço daquele dia do acidente e começou a escapulir dificultando o trabalho e ele fica repetindo que está convencido de que se não fosse a farofa podia ter dado certo mas por causa da farofa ele decerto não ia mesmo escapar talvez infeccionasse e além do mais desde garoto que ele tinha 189

desejado estudar medicina mas nunca pôde porque era pobre teve que trabalhar muito cedo e perdeu o pai muito novo e se ele tivesse estudado medicina podia saber o lugar certo dos intestinos e não botava todas aquelas alças fora do lugar mas que ele não está sentindo nada demais só sentia era um tremendo mal estar dentro da barriga que está um bolo danado aquilo tudo desarrumado porisso é que ele de qualquer maneira ia chupando a sua melanciazinha porque refresca e dá algum alívio pois de qualquer maneira está esperando mesmo acabar tudo em um dia ou dois e não era a melancia que ia piorar as coisas mas mesmo com a desarrumação dos intestinos talvez o doutor pudesse dar um jeito mas o pior de tudo foi a farofa mas agora você já veio e eu não preciso mais me procupar meu pai então me abraça e me dá o seu primeiro beijo na minha testa dizendo até logo pra minha mãe e vai para a sala abrir a tampa do caixão e se meter arrumadinho dentro dele depois puxa a tampa do caixão e acena mais uma vez para nós com a mão esquerda arruma a mão esquerda em cima do peito como todo defunto direito e com a direita acaba de fechar o ataúde naturalmente que depois ele deve ter arrumado também a mão direita no peito mas esta parte nós não vimos mais.

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as possíveis palavras ou os vamarís combalhares Literatura é língua carregada de sentido. Pound

Embora seja loucura, há método nisto. Shakespeare

Maria-Pia vazerou pela ogdália sem pelerar nimbas. Merexou seus borelhos, empacta, persolindo haver baras sobre os bolhagos fanidos. Em cada pelerama haviam xorivado alçamos de citévicas. Contudo, Eulália remertou seus cabrúlios entre as bribaranas cálhis: lhus méris, líneta, maruável, esbarneu comifamas poratas, inveçando seu pai que bitirê na troda. Merexar gamopas? Não. Condrou pipedopáralos justos, guatrando cada mila com nengares franchudos. Assim, como não gisse tousa lável, retrochou percagrando mezís, os quais embergou na boloja, como se paruísse as maras joquíns. Destrupindo os borelhos, Maria-Pia soberou: – Eulália! Papai sempre nembicou pufas. Quando você bacurtiu meus bolhagos, eu nem argunhei. Para tocer suas membotas, não buta ter lhido vatas. Mas boscas agora! Ninguém fuqualirá mais meus cabrúlios. – Ora xá, Maria-Pia! Grande Porotema!... Repivou Eulália malherosa. – Vapra terma! Não pisconhe... Maria-Pia condescou suas rapes, mas como os tegunes não estivessem letos, pretargiu para embargar milas. Dentro da bista, nenhuma capata meria certa. Era insopitável inveçar seu pai, Dr. Basto, o qual nada asperou botigável. Ao contrário, despilou de haver nembicado, estroquinho Maria-Pia de que Eulália é que talvez pentasse os vamaris. Mas ela destrufiu de apintonhar Eulália, uma vez que, conesto, nada toria mais que um vamarí desborido. 191

Dr. Basto, sempre cantúdio, dovelou para a taga imbornindo de ouvir as cilotas da filha, como conespava, aliás, brugamente. Na fua, pôde ainda calotinar uma deça, mas pouco linto protôs: seguiu para a taga, sem pelo quino aspescar nenhuma tufa. Enquanto Maria-Pia perimava os daramos, Eulália ia sembolando cada vamarí que esborcava, com mãos ácrimas, ascutindo a cada pelaga os maruins de ates. Eulália, de fato, pira assim: mesmo que os cadros não paruíssem, ela sempre corimava os cabrúlios de vates, persuía os borelhos, comifava os bolhagos. Sim. Maria-Pia é que ingurgia os torcos, jalindo que, sem bogas, Dr. Basto não tulheria as butacas. O pai era “o alcano”; nada o guaria de tiçar os veros pantos, desde que nufas convesse linto. Eulália discondrou: – Não, Maria-Pia. Você nunca diatará de melopas. Quanto a mim, eu sempre berguei essas otís que você velama. Mas agora descombo: agora sei, teramente, que você não rejama. É bacelável! – Isto é o que você letaria – repivou Maria-Pia – mas não me isbeto das limbes de setembro. Lembra? João-Calos. Foi ele que pentou descádio. Foi ele: eu sei. Eulália alou enlúvias lives, conquanto cadres, sem ofrincar bates, remergível. Era oussim árquil, femicrada nos poraimes glúmeos, estinada de atraves. Que pizes lhe sotiam arpidos, como em melopas bultáveis, se tudo xorivava estriçado? Quem, lora de caramos, espiteria sentama fages por uma cafela aupúvea? Quando? João-Calos, talvez, na mirafeira detarde, junto das gates de incraves; descrassou seus molanes. Durante as patinas, conforme aluras, Maria-Pia não fenicou seus ligavos. Malava-se de coner e haver conido, nequente, niamente, apenas se compindo de alurar muitos fenestos. Era uma borgata – esquámida – essa maltrupada orgama que se esforia. Enquanto Dr. Basto reclipava, ela só promerou dispondáveis tagos que não cariam de forir, boncávil. Nada fagara: nada. E, embora se colesse, não ponaria de estravos, uma vez que tojara, antes, qualquer melinopa de esbarno. Já Eulália, domatida ao calafo, ela sim – é que meraria vido, mesmo a quem não tê, de afigar-se almalada. “Papai é que pronou”, gilou condada, “ele mesmo o birnou, ele mesmo o gramiu”. Desde marembo que se toriam os melapes. Jamais, confabo de tantos minós. Se João-Calos chunasse, seria de potelar. Pirte de 192

nar. Pirte de sar. Ou vasse que eatando vamarís, ele sim, não rebalisse nai? Se Dr. Basto lomasse, então ela bivaria os quadrúvios debaixo da porja, escofando os mecalhes para que nuva agarelesse. Mas até que ele reasse, ela turiu de nuva esgunar. Nisso que, excívia, Eulália borijava pela túnia, Dr. Basto regrinou, endrilando pela jota, mérido, com pantonhas de bites moratos, acoxando a filha de liver esguido uma taga: – Você parima? Não pisconha que lagaves tetes? Assim aspema a loça: néveis, mas combrados. Eu sei, eu sei. Ninguém sevia, apenas eu me eslacho! Já eram minte e dinta e os vamarís não sogavam. Maria-Pia pediu que Dr. Basto lhe admasse o bacone que rezia sobre a nava. Ao passo que espiava, ninte por ninte, as pales de João-Calos. – Vou lhe cader tudo. Tudo, ou quase. Não foi Eulália que meripou naquela lia. Fui eu. Eu e João-Calos. Dr. Basto bescatou-se. Nunca inafejara. Gilou despado enquanto autindo as clipas de Maria, a qual quelifava, muito pia: – Sim. Eu sei que o senhor não obtugaria. Porisso lhe esgavo. João-Calos não moniu nem borou; e logo que ele popar eu lhe anestarei seus mulotes. – Não é porisso, Maria-Pia. É oussim navo. Por bai que eu me rempo. Mas quase, quase remitei. – Então espere. É coliso bechar. A tirinta zonou, no-que Eulália depilou para a cota, como sempre logava, atuvindo que jasse João-Calos que morgava. E era. Era ele, manuvito, após um lino de abavo, com fúndias de periema. Eulália anecritou Maria-Pia da lochada de João-Calos, grejando pela jota da bominha. Entretanto, ranindo de cages, antes paliu para JoãoCalos: – Você fijaria melhor de não ter pido. João-Calos quelou, tramiu seus bulotes, fatuiu suas póvias, recidou seu pamo flu, o qual alezinhou num baquite antes de o pondegar no confário. Depois, assesmou à cafeira da piza, concomitantemente, marivado, ou quase, com a gódia Eulália, e junto a Dr. Basto. Maria-Pia trouxe a polorema onde os vamarís gamulosos perloravam. Dr. Basto nada argunhou; tão-pouco Eulália. Mas ele, João-Calos não era de encajular metivas coitas, pelo que dramiu: 193

– Que malipas são estas, Maria-Pia? – Vamarís, João-Calos, como sóe cafunir em zembro. Você não taga? – Não. Não compido... – Merivatas de palus... João-Calos livagou com pávia. Patou seu panucato sobre a temba, rejoso, no-que, com zis palavras, regrimitou a Maria-Pia: – Também você? Mas que mecrada! Sinto muito, Maria, mas eu não vou condescar; eu não pareito, acho que tenho o direito, ou pasgue, mais que prida, tenho o dever prodário, e quero, por cada crena, quero saber o que é que estou comendo! Maria-Pia dilou admada, fixolhando o jadro. Eulália e Dr. Basto se entrefugaram, no-que esta lhe apiu: – Viu, papai? Eu não disse? Como aginha. João-Calos se foi de agames. Lúgis, camirano, caminhou pela gave. As bledas motinhavam gátiras, escubochando as pamas de artos, como soíam fegar às truzes. Todas as perilas eram guates, com excessão, samil, de algumas lhoras que botigavam desigualmente letas.

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hisfiemt ou alê alé álea ou a revolição dos dedos Não se faz sentido de qualquer maneira. Barthes

O mundo contemporâneo torna possível a esquizofrenia, não porque seus acontecimentos o tornam inumano e abstrato, mas porque nossa cultura faz do mundo uma leitura tal que o próprio homem não pode mais reconhecer-se nele. Foucault

Hisfiemt dl emsiflwuap dientle, algm. Mentia, eutne eikdleoptme gns ejsotne a, eitjelaoe.. Qutjens, euteso! Eisjtoetjt dsantei keltodm ame eituealtuela ventoe a nejtoanz, bne tneot: elsnt eutosjtoade theotjsa eitja e em q em quente otej ghe aje glêmj; eitu em tue to eòtiela tie gjelgaowp à eitje ge, pêiq ajta dkgle; eti eitaôteu ekaoqtèjgleoapx, que tieoa etueida gneoa gjelao e, glaoe. E qi. Ek leatid oedi ne toria leoir nsa oem qutie alg eidot a, eitne dia toe, oiel aoe ãoeis eioqetoa eka melok eosjq eit edotiue at eng ena kd eia. Je sk dleistie qlowiec. Marique roak etoe ajlgoe ocz aeifje oapq elçẽotinejsoe ique toake que akd – eisuet eisue toe – ake gieut e âendieoê jd e estçqoeitiejd eitna giêntie aieà eitue aoeitu eàoietu kejg dnêltie e ô. eitu ektoape magke laldkemrndkaoxpe akeit ald eoam eitna diem, eitjamd! Eiau tei eot aie mf ajd ksoaime goe a. ektma cn (euenenfgs eitjanto, ei eixntoq eid) eitoça eotta eo cjei djcue laçe diorjdn e, eitndcgjheiao, eidnyejyig a diejg a. 195

Xoeitje aiej elto aotne gne aitne and je toa ne tia co, qien teeis me tia oe toa ent aoe t, ame tna o eitna? Qien tient ao oet ane ti eiamt qodkemc gnebt aotnebtja entbasent, anemynahe tam. Loeitua tnemrna don e tn e ia nelt nũe ai en glaça, e jflai en q eut euaieutna eitueo amek ame ne oa lerd, me aund ao e eitn aid oe, eotpai emfn: que tnado ent ao en ao que tn ajeltôa mè tndi tna ejtk. Oemt aue ths kéltia cur eht auent qieot ekflz, djr ao ptoeimá ckeai iẽ eáleot lqoe tnz bme toam elr o aôeitna eit en ao ent al ent ao ent o. Akleitm ao eot aleicnt eotpx, eçgoe eoam emtnv ja dir toa çaoeit jei eitja ot cnemgjeksot emt dup, dient oa met e, tid nt ie alei gnuei a oaie tn eit en ao tneldpotienanfie tha meit ant eo ant êoti e ûme idne laie tn àient i ent docint eia ũlm iena dhe toa oemt hodn oeptò, ue tu jentuj. Minet ai eitna lgoe ta algpeo ane tna eogpeoxicme fia, ent aof eitna já toa elgpy, e gneosne aoent dient aoe tn aleitn – me tna oe tnaòe tlao ent a, ment aotne gkelao tne toa tne toa ent aoe tna eotna ent ment aont eo: eitna to. Ame tnao dme t aoent aoent aoent ao, ent ao ejtedn tnép dkeo tne id nê, tneid not en tid nalog. A boei neul. Pjeisn ke n tb eid jektlsmt n èktnalnt eb tid e slçeotnaçzpektnabvpqornbajeog eij tn ejs nt beitiajt ne tidn eitnaoe tn djghc ent ei: ent anejtn. O ejt eitn ao tpo eisn eotna péltman kdja â jent aomengàienf rognzenw tiant em oekt ndkejtnsoap e toa, ejtna ro e. A eitna e ent aonèkf; entianêitnaon eitnaospw rntidm nalèienf dnwwamento aneitna ceuji neitna odkenzlámtneo. Eotj aoent aocment, akentoa, eitnão eotn ódmt apamêit éjtna peitnaòcne, eitnao enõtma. Keifnaov ejt emtbalèitndowpa, rnt anfíe. Entm alsç eoptnaoêj nxodmyn alemtiangke anej anco eotpa nõjeicnal eignàçzlent al mentk eotka, dle neitoanéitna neitna cmet. Entianneitnao aoent oan e ykem eotnao tneia eõtna, entoan toe: aoentoa neot aneotnap nentian en dkela. Qeitna emtia entianoen tnaoent nao nelsçtna memtna. Fkeltoan tneoan tmen aoena. Aneotna oent a, entoan, t en a; entoa etma eotna naozç-anvoentan. Ane tiânton ektna cloent aone oentoan aneot ientoantmentoanemtaonetina nektnad e namêitna oent anèit na tnao entia. Eotna oento aneotnap entoane, tna neotnaoent, entoan ceto né, tna eitba e oen toa neot ao ento nano entoa neòtnápne. Oneotna neotnapne tian. Aneon oen o ane tna eotnaoent. Oneotn eite tnae ektnáocntoqn, entoan to neotna poentoan. Wetiénto 196

neothàpcnrçgpêntna entoan dien, neotnaoent ano. Loentoa ientoanéitnao neitn neitnx entiane vneitna, neit a neitna. Leot eitnao, ientoànghcejêltnáoc e vnqot e eoleotnapz ntona en dientoa, entoa dkento znghon on en tidn enticn doêntoanvi neitnaone tnáocne ntoane, ntoe me ditnao entoxçao entoânzçs, entian cneitnang, entoaneitna cneitná. Opentoán tneon, neitná ndotn ant nei tna vnône tnao entoan. Ekt oen oan neotnapn entaon eotn aoent a, entoaent aon et, aneo tnaeont; e to ieotna neotnàone tnoan entoanetna. Çeitn eòtnd ne toan toên an e, ent aoh ent aon. Zieno entoa né oemtpa ne toane go entoa. Aoent anôe tnao e, aneòtank, entoa me toaneo: oentoa melt a eont. Lentoa neot ãoneotna one teitn. Entoan e neotna, ent ownyoànf ltnçáneôtnàow toanet a, neptnapêntoa endjtla, tianeozns nf kya nfodntona entoan, entoantoanetna. Fientôa entoa neio, neotnao tneôa, entoanòentoan entoâne; entoá entoancken fjgô ntoaneotnàofmgnaoent. Aneotnaoneotnao, entoaneotnaneot o nta gheotna envnccçslgien pan. Aneotnaoneitnaoneotnaone, ane tianeozns nf kya nfodntona entoan, entoantoanetna. Pneogn antoangoznçgnqotnapxn, en cmglantoanpentoanticnxbsotbaogjwnt, fndotnáo ento dntoantoan entoant ant neotnaoentoantoan entoantoa etnaoent antoa rnaotna entoa. Mdntoancbeotbaov eôtbaòebt beòtbaotba en antôan ento an neòtna entoa entoa entoa heog a cnéltna o eotna cneot, entôantoan nonto anêo neotna, entoangnzoroy, entoan tnaoêntaneòtna neotnao entoa engoa. Neoeotnàpcnel, oantôa, entoàneot, aone, tnáoent neotnàozneotna, ên neotnaozpoentpa, ento anr neòtna.

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posfício Sempre me pareceu que nossos concidadãos tinham duas paixões violentas: as ideias e a fornicação. A torto e a direito, por assim dizer. Camus

Ab hoc ab hac: a torto e a direito, do Latim.

Do analista, clama por atenção lacan: “que ele conheça bem a espiral onde sua época o arrasta na obra contínua de Babel e que saiba sua função de intérprete entre a discórdia das linguagens”. E aponta Axelos que “cada um – com um pouquinho de chance – é vitima de um estilo”. Tudo o que está neste livro é de verdade – quer dizer: de mentira (metáfora?, mito?). E entre essas palavras e essas coisas, que nos deixem repetir, com Foucault, que “mais de um, como eu sem dúvida, escrevem para não mais possuir um rosto. Não me perguntem quem sou e não me mandem permanecer o mesmo: esta é uma moral de estado-civil; a que rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”. Ou digamos, como se fosse letra de Salomão: “o sábio ouça, que em prudência vige; mais hábil se perfaça o entendedor, para pegar pro-verbos e parávoas, dos lúcidos as semas e os enigmemas”. Aboque-abaque é crestomatia, a direito e a torto, de vário autor (ilustres desconhecidos sem data), coligida, ou coligada, por leitor indicado: “sujeito” malconsiderável provisoriamente trans-visu-háptico, de caosmo isotrópico habitante multimpessoal. Pode ser tomada da Biblioteca borgiana, “ilimitada e periódica”, sobre a qual saibamos, talvez só isto, que “se um eterno viajor a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem – que, reiterada, seria uma ordem: A Ordem”. Sobre o “livro”, damos: Forma: Mosaico – o fragmentário, o angular. 198

Tempo: Sincronia – o justaposto, o superposto, o contraposto. Modo: Gerúndio – o verso, o anverso, o poliverso. Mas é um livro. É um livro. É um livro (?) colideorscópio de ab-errâncias, tendo: crises, contos, narros, etc., vistas, casos, falações: prosoêmicos parabolóides sintagmados: excriptos. É um livro texto. Cadáver esquizo. Aliquid. O que é?: O ouro louro de mundo porvindouro. A clara gema e a ingênua clara de ovo de neopovo. Pergunta arguta, sua resposta de aposta. Beijo assim-total do ouro e da bosta. Quem é?: vomit obliter tampon ado abandon cal

{

ab encob O DES lib inc co-mov poss com-preens con-vers esquec

} } }

ERTO

ível

Que, livro, é. E, coisa, é SOU: em OUS. E, livro, o que par’ouso?: Bifo o bafo da fada Oda. Conto o conto do ER, é com erro e acerto (S? T? V?). Mas conto o quê?: Sei não, que (e/ou se) m’esqueço... Ouvir chamando: – Fol-ano! Full-ano! Fun-ano! E o que se falta: – Ausente! Al-gente! Agu’ente! – “Ai, mas que saudade eu tenho do futuro!” 199

– Vou já. Que pelaí planando em meu flaneta seguro. – Self-guru? – In se guru. O que a-par-esse: Rabisco o risco do meu petisco. Mundal cachola binga e futebola. Vago no vácuo vaso de uma vaga. Vaso uma vaga em vago vale. Com viga de vide avio vida em que valha a vingar devagar, por vigente divagar, a via que vi que havia: a via da via da via da... E a pessoa das pessoas? Pergunte-se ao Fernando (propriamente dito) Pessoa: “Quebro a alma em pedaços e em pessoas diversas. Deus não tem unidade, como a terei eu? Acumulei em mim um milhão difuso de vidas mas nunca encontrei parceiros. O abismo é o muro que tenho; ser eu não tem um tamanho. Comigo fico, talvez não contente, porém nato e sem erro. Quem me dera um sossego à beira-ser como o que à beira-mar o olhar deseja”. E aos críticos: “Não me dêem conselhos: sei errar sozinho”. Toda essa abocabocagem (adocabobagem), o livro, foi cometido (da imprudência nossa) entre os anos (digamos “inesquecíveis”) de 64 e 70 deste século nosso esquecedor. Não há negar que, depois disso, mexeu-se ali e aqui – só porque ainda estava aí: mas de mexer em defunto enquanto, no velório, espera vez com lenço e flor. Agora vai pra fôrma dentro da qual, já dele nos livrando, patrocinamos-lhe as exéquias nesse ancho y ajeno “campo santo” de propriedade do chamado público leitor. Que a terra lhe seja leve – melhor: que seja ele o que leve a qualquer terra. Mesmo porque, naco mero, principiou com cerca de oitocentas ou, se bem não lembro, oito mil páginas: que só aqui já (ou ainda) não estão, porque não foram tidas de papel-passado, embora (sei) se escrevam soltas pelo aí. Dissemos: é livrotexto. Crestomatia (Khrestomateia) a se fazer o lendo (a lenda olhando, além do lhano) de pastagem, com 200

os olhos no debrum da pradaria. Escolha de(ser) autores. Alguma “didática” pelo livro-texto? Seja: o Texto é o livro – e não (piada velha) os seus textículos (aliás anódinos, estéreis, pro-fanos). Literatura? Não: filoletria, dada á “filofonia” de Satie. Letra alethéa (aletria?) por hermenáuticas viagens: peraí. Mas tudo sendo só é cabotagem, mera interna viagem (na sabente bobagem, quer dizer). Assim, ler o texto (e/ou escrevê-lo) é inscrevê-lo no lugar intertextuário de uma lida: tela: seus brancos. Se essa mesma inscrição não vai de nossas mãos, é que deixaria, de sê-lo, para ser escritura selada – e não já l(e)itura: procuração de e significância (banalidade embora – ou mais porisso). E, para fim, já vem nos socorrer Lacan denovo de nos lembrar trans-ferimento nesta papelavra: “Eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais que tu mesmo, (...) eu te mutilo. (...) Eu me dou a ti, (...) mas esse dom de minha pessoa, (...) mistério!, se transforma inexplicavelmente no presente de uma merda – termo igualmente essencial de nossa experiência”. E como diria Deus, seja feita à vossa Vontade. E Deus per(i)doa.

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OUVIDO1 Pensa-se que todo livro tem autor? Pois este, não: escrito por leitor. Claro que uma gente logo vai botar o escriba na manjada posição – de autoria –, o que aqui se justifica, só e se, notados nome e lugar. Mas, se você é leitor, tem de ter percebido que todo texto, comido e digerido, termina por virar bem outra geringonça na literária zorra milenar. Aí está. De qualquer modo, a (re)leitura é até capaz de interessar: da cafonice à pureza, da chiquitice à beleza, e da burrice ao pensar, teve um pulo tentado (e até falhado) por cima do buraco abismado do ler e do falar. Duma feita, disse alguém (que o viu), do Aboque/Abaque talmente aqui está, que o “autor” fazia era “um livro texto onde pudesse atingir uma não-linguagem, soando a português”2(!). Doutra feita, sabendo, certos nacos deste escrito, pronunciou-se algum dito imortal de academia3, a respeito do seu dito “autor”. Assim: que lhe deviam era “um prêmio de pasticho”. Que “ele nada fica a dever, em habilidade, a Paul Reboux e Max Muller, de À la Manière de..., ou mesmo ao pastichador Marcel Proust, dos Pastiches et Melanges” (sic). Disse e falou. Vai ver até que mesmo ou belo ou certo dito. Se, quanto à sacada parte da abocabocagem; já quanto à não sacada ... Agora aí está.

1 Isto não é a orelha da capa, mas a do texto: sonda, ouça, sonar – orelha de ex-cutar o seu olvido. 2 Jornal do Escritor, no 7, dezembro de 1969, p. 7. 3 O Sr. Raimundo Magalhães Jr., em Manchete, no. 903, Rio, 9/8/69.

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Nota4

Este livro foi escrito entre 1964 e 1970 e publicado em 1974 por uma editora cujo interesse inocente e coragem aparente só demonstraram sua carga de mal-entendido, por assim dizer, quando de sua distribuição: não foi necessária nenhuma censura ou proibição oficialmente explícitas para que seu “abafamento” corresse depressa por parte mesmo dos próprios “mecenas” de sua produção. Por outro lado, dadas as condições de antanho (num país aonde: pela direita, se pretende ditar a regra da moral e do governo; e pela esquerda, a da verdade e do saber), a tolice em vigor no seio de um grande FEBEAPÁ (“festival de besteira que assola o país”, como o chamara o saudoso Lalau) não fez mais do que “desconhecer” a existência (embora meio sufocada) do volume, certamente que em favor de experiências algo semelhantes mas “engajadas” de sobejo na canhota ou na destra das lutas do poder. Agora o colocamos, de novo, à disposição do nosso público leitor. Nele, as sucessivas experiências de linguagem comparecem por estilhaços formais, distribuídos da criação ao pseudo-pasticho, da significação ao puro sentido na língua ora vulgar ora erudita quando não abandonada por seus semantemas normais o que, desde outra visada que não a da crítica literária escolar, não consegue esconder a permanência de um estilo que se escreve, mesmo assim, isto é, apesar das más-caras de camuflagem que escolheu. É que um Eu não se compacta senão, por serventia social, na aparência de personalidade (aliás paranoica), restando, no entretanto, multifário na policefalia do Sujeito (na verdade, acéfalo) que ele finge que bem desenhou. Prova disto, um Fernando Pessoa (persona, máscara, ninguém) cujos ditos “heterônimos” não fazem surpresa a nenhum bom entendedor do paradigma freudiano que bem se dê conta de como um Ego se compõe. Nele, o que se tematiza vale mais pela ironia: chave mestra de suspensão, absolutamente necessária a qualquer eficiente reflexão capaz de superar dicotomias meras em todo projeto de sublimação.

4 Texto escrito pelo autor para uma reedição do livro em 1988 (não publicada).

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SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO

RES REI I

(Pentagrama)5

SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO

S A T O R A R E P O T E N E T O P E R A R O T A S

5

“Grécia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?” Fernando Pessoa

Pentagrama. Cinco letras. Cinco são os impérios, segundo Fernando Pessoa.

PRIMEIRA LETRA: GRÉCIA: HOMEROS6: SATOR

SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO Adolescens, tibi dico: surge. Lucas, 7, 11-15

O amor é que é essencial. O sexo é só um acidente. Pode ser igual Ou diferente. O homem não é um animal: É uma carne inteligente, Embora às vezes doente. Fernando Pessoa

6 “Um pequeno livro que percorre o círculo do fenômeno amoroso. E percorre-o num ciclo que poderei chamar imperial. Assim, temos: (1) Grécia, Antinous; (2) Roma, Epithalamiun; (3) Cristandade, Prayer to a Woman’s Body; (4) Império Moderno, PanEros; (5) Quinto Império, Anteros” (in Fernando Pessoa, Nota Preliminar aos Poemas Ingleses, Obra Poética, Rio de Janeiro, Aguilar, 1969, p. 587). Sonhamos o projeto de cinco livros que tratassem da coisa, Res Rei, a coisa da coisa, que tratassem da coisa freudiana: Grécia Homeros Roma Perieros Cristandade Paneros Europa Anteros Ainda Heteros

DEDICATÓRIA Para aquele que aqui nomeio por esta metáfora, com meu pedido de excusa: por ele não ser mais que só metáfora. Pois, como d’escrever um tal sintoma, se bem não se fingisse que ele o fosse? E sem que, por tomála, não se coalescesse, no seu trato, tantos da mesma gama didatora? Endereçando-se, também, o pedido de excusa, a qualquer que, só de aproximá-lo, inda que por escrito só, ou só por prenda fosse, se tenha acaso desleixado um tanto no contato. E àqueles que se doem recolher a s’obra resultada. A desdizer MALDOROR: “Adolescente, me perdoa. Uma vez saídos desta vida passageira, quero que estejamos entrelaçados durante a eternidade; formar um único ser, minha boca colada à tua boca”. Que possam, nesse dado, relançar esse nojo. Que boca suja – nunca – não se lava. E para ti, que vives em tremor, por teu temor da morte, sem topares que a morte é este teu temor: Temortemortemorte... J. M.

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APRESENTAÇÃO A leitura de um texto, caro leitor, se possível, já não é coisa fácil – por mais “banal”, ou “lúcido”, ou “claro” – quando se trata de escrita linearizada, com começo, meio e fim, e estória, e aquilo tudo... Tanto menos se fragmentária, musical, em mosaico, e alusiva. Pior ainda quando é texto inacabado – não pelo fim, mas pelo meio – tal como é caso do presente texto: interrompido com a vida de seu autor, que terminado, enfim, com a morte dele. Assim é que, segundo nossa experiência com este, não podemos deixar de tirar algum sentido de sua leitura sequenciada, de começo a fim (começo e fim pela ordem numérica das páginas), sem que deixemos de também sugerir a leitura em qualquer ordem, salteada, ao sabor da abertura aleatória em qualquer página, relendo as repetidas, e treslendo à vontade, manejo pelo qual um sentido não será necessariamente desencontrável. Contudo, se você fizer questão de algum roteiro, recomendamos começar pela última parte do volume titulada Ecdótica e Aleuromancia – a qual fomos nós que acrescentamos, na esperança, certamente que frustrada, de sacar alguma ordem que lhe rume as passadas. Caso discorde, escreva outra, mesmo utilizando nossos dados, no relance, e nos remeta logo. E, prometemos, o seu texto vai constar da edição que – assim ambos o desejamos – há de ser a próxima. MD

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RES REI Resenha do reide de um reso reiúno, ressupino e reincidente resvalante, contra um reino de respeito onde, à rei residiu a reio e que, com resinada reima respançou, por reixa, em resposta arreitada e rés ao reiterado resguardo da reinstauração resoluta de reivindicado resgate, por re-historiação, do restar reinícola – o que, resvés, se reificou resigno: reígneo.

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PREFÁCIO-COLAGEM7 From the Shaun-&-Shem Johnmary Maryjohn that in J-M is joy, sea forever like the beauthing as kit is sad. In the wakening Finn, whose song is the in-sister fury of the ole shaking-spirit. And from the fair-wonder-paleshower that out of the belt’s leaf meets the main ship of discovery inherited from Louis, the callmumm’s the word.

BODY’S’HE O bare female male-body such as a god’s likenesse to humanity!8 From the land of breach of promise with Brendan’s mantle whithening the Kerribrasilian sea and Mach’s pebbles spinning from beneath our footslips to carry fire and sword, rest insured that as we value the very name in sister that as soon as we do possibly it will be a poor lookout for that insister9. Take all the female loveliness of the earth and in one mound of death its remnant spill! But, by sweet Ganymede, that Jove found worth and above Hebe did elect to fill his cup at his feasting, and instill the frendlier love that fills the other’s dearth10: when I stabmarrooned jack and maturin I was a bad boy’s bogey but it was when I sent on to sankt piotersbarq that they gave my devil his dues: what is seizer can hack in the old wold a sawyer may hew in the green: on the island of Breasil the sildth of me perished and I took my plowshure sadly, feeling pity for me sored11: he weeps and knows that every age is looking on him of the to-be; his love is on a universal stage; a thousand unborn eyes weep his misery12: that love they lived as a religion offered to gods that come themselves to men13. 7 Colagem de textos tomados de (A) JOYCE, James. Finnegans Wake. London, Faber & Faber, 1964, 3a Ed. E de (B) PESSOA, Fernando. English Poems I: Antinous (1915), in Obra Poética, cit, p. 601 a 609, a que se referem as notas seguintes, de 8 a 22: 8 B, p. 601. 9 A, p. 442. 10 B, p. 603/604 11 A, p. 549. 12 B, p. 601. 13 B, p. 604.

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I gave you of tree. I gave two smells, three eats. My freeandies, my celeberrimates: my happy bossoms, my alfalling fruits of my boom. Pity poor Haveth Childers Everywhere with Mudder!14 I shall built thee a statue that will be to the cuntinued future evidence of my love and thy beauty and the sense of beauty giveth of divinity15. That was Communicator, a former colonel. A disincarnated sipirit, called Sebastion, from Rivera in Januero, (he is not all here) may fernspreak shortly with messuages from my dead ported. Let us cheer him up a little and make an appunktment for a future date16. When love meets death we know not what to feel. When death foils love we know not what to know17. Hello, Commudicate! How’s the buttes? Verscepistic! He does not believe in our psychous of the Real Absence, neither miracle nor soulsurgery18. Thy death has given me a higher lust – a flash-lust raging for eternity19. Love, love, my love! Thou art already a god20. Here you are back on your hawkins, from Blasil the Brast to our povotogesus portocall, the furt on the turn of hurdies, slave to trade, vassal of spices and a dragon-the-market, and be turbot, lurch a stripe, as were you soused methought of mackerel21. My love, my love, my god-love! Let me kiss on thy cold lips thy hot lips now immortal, greeting thee at Death’s portal happiness, for the gods Death’s portal is Life’s portal22. James Joyce & Fernando Pessoa

14 15 16 17 18 19 20 21 22

A, p. 535. B, p. 604. A, p. 535. B, p. 606. A, p. 535. B, p. 606. B, p. 606. A, p. 316. B, p. 606.

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ERASTE A EROMENO HO PAIS KALOS “Accusatus est quod currumperet juventutem” Socrates Vixit “Couple, adieu: je vais voir l’ombre que tu devins” Mallarmé

SOKRATES UND ALCEBIADES “Warum huldigets du, heiliger Sokrates Diesem Jünglingestets? Kennen du Grössers nicht? Warum siehet mit Lieb, Wie auf Götter, dein Aug auf ihh?” Wer das tiesfste gedacht, liebt das Lebendigste, Hohe Jugend versteht, wer in die Welt geblickt, Und es neigen die Weisen Oft am Ende zu Schönen sich.

SÓCRATES E ALCEBÍADES “Por que é que adoras, tu, santo Sócrates, Tãomente o adolescente? Não conheces maior? Por que é que de amor reolham, Fosse um deus, teus postos olhos, ele?” Quem mais abissal pensou, o mais-vivaz é que amou. E sabe a excelsa juventude quem viu profundo o seu mundo E a velhice, bem frequente, Vira o sábio para o belo. Hoelderlin

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Eraste a Eromeno: Os filósofos, Pausânias, teceram muitas preces (de fatura lógica) por saturar, num liso bem composto, a essencial fatura nossa. E um moço de Viena, artista de sucata, dos frangalhos do mito nos desse partitura. Que bem nos falta um teorema – solitário –, jamais talvez enunciável, regrando o som de cada volta que desenrola o caracol de história própria. Duas coisas não há: santo remédio e tida causa. Só nos sobra o retroz da intermediária narrativa, de costurar o avesso no direito, de achar, por versa e vice, o olhar (ou olho) do furacão sagrado em viço vício: gosto perverso e nosso em camuflar o abismo, maquilar o talho.

Eraste a Eromeno: Porisso é que eu te escrevo em morto, em Morte. Demando ao teu silêncio. De ti, tua sorte não me obriga olvido – mas sim, que o teu sumiço, a mim, me presta ouvido imenso.

Eraste a Eromeno: Ah, Pausânias, meu caro, abandonemos ganhar algébricas clarezas! Que um teorema, todo, é só, talvez, enunciado. E a arquitetura é puro logro: fantasmatematizado. Monumento a Narciso. – Tu és, Pausânias, apenas o que soo? Ludibrilhado. (Personagem apenas esboçado) (de uma novela inacabada) (que, do outro lado do mundo,) (um ser alado esteja lendo.)

Eraste a Eromeno: Eu te amo, Pausânias, quer dizer, eu te odeio, só porque soo, eu mesmo, heterogêneo a mim.

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Eraste a Eromeno: Estar sozinho, Pausânias, é estar, sozinho. Não nos valem: projetos e poemas. E estar, sozinho, é maneira segura de estar, acompanhado. Palavra ou qualquer gesto é corte, afastamento, que interpomos, em linha, falsa, de coser os cacos. Quanto melhor é não querer ser costureira – e recolher a agulha e desprezar o fio. De saber que essa linha não junta o que arremata – e que essa agulha é secreta e sem nota o seu furo.

Eraste a Eromeno: Não há outro coletivo senão do co-letivo: o que de Outro se aprenda nesta Escola de Samba: a ciranda, a giranda, gerando o que pudera ser um mundo, em só gerúndio. Há penas: zerúndio, zerando.

Eraste a Eromeno: E eu te escrevo, Pausânias. Escrevo a ti, Pausânias. Não que eu possa escrever Pausânias. Apenas d’escrever-te? E eu te escrevo, Pausânias. Não tomar a palavra – mas perdê-la. Dissolver um furo.

Eraste a Eromeno: Nascido na paixão de todos os RIMBAUD e porisso sem fuga ao VERLAINE professor. E como BAUDELAIRE, caçando um chão germano, onde “amar e pascer, amar e morrer: no país que te assembleia!”. Dessemblante.

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Eraste a Eromeno: Sou natural desta só ilha, vera, em cuja cruz ilhada habito o neutro em ponto, na interseção dos braços repartido. Sou da cor da placenta brasilada na seiva desse lenho que amentou galeras – bravas – de virem, por mares nunca dantes, buscar mais e mais sangue – embora que (ou só porque) pintado. Sou mesmo dessa cor, herdada de uma árvore – dita da vida e bem-e-mal e morte – que em outro paraíso arcou-se em desejada – a impossível, cujo fruto não há: só cor: de sangue? Cor de verdade: cinza-muro, branco-chave, preto-furo.

Eraste a Eromeno: Desde começo, por narrada história, a dúvida se teve (e se manteve) de ser/não ser a terra ou ilha ou Índia. E mesmo acreditou-se que uma bússola, de doida ou de safada, no reperder-se encontrasse um Oriente, que dantes já perdido, a ocidente do Ocidente de onde vinha e estava. Que talvez o achasse. Acidental Ocidentada.

Eraste a Eromeno: E haja um teorema. Na clara geometria – de escuramente João Sebastianbach. Bach oco: vazio irregular, elíptico, e não ortocultor de mensa clave. Mas tudo que orna a mente. Em arabesco de carne.

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Eraste a Eromeno: Meu desejo, Pausânias, teimoso de possível, caiu nessa armadilha. Que só tive uma vez. E, mesmo assim, é como desde sempre tido e em tempo idêntico perdido: esse meneio. Quando partido, na promessa vulgar do mais cedo retorno, ao todo inteiro, me mandei crer, que assim me foi querido, de urgente requerido, por mais que não me dessem, desse cedo, ou quando ou quanto ou quê. Que só tive uma vez, portanto, ou quase-tive. Mas o eterno é isto só, ou tudo isto: haver por toda história da própria lida escura – que ninguém lembra ou saberá –, uma clave tecida e retossida (fantasma bi-sonhado), mas sem vinda – a qual é sem noção que em vão tratamos – e que uma vez achada, pelo acaso, não passa nunca de uma vez achada. Futuro sim, mas imperfeito – como sempre e ainda – interminado.

Eraste a Eromeno: Também data de ambíguo essa de quando, baía mera, por maré golfada, bem mal insinuasse – a olhares marinheiros vistos e vividos – de haver mais que reentrância, e acrescentá-la em rio... (talvez de vê-la em abismo, ou falta originária). De janeiro? Quiçá fosse o birrosto de JANO perdendo a direção da caravela e o capitão perdendo no seu sono. Falta um dente na boca do Destino.

Eraste a Eromeno: E que hajas pé para um sapato exato, borralheiro que só te foi calçado em passo de calçada via a São-Tiago – aonde nossa fé peregrinasse em questa de sentido. E foi só nuvem látea. Cuja teta. Cuja peta. Virgem. Puta. (Se mentes me semeias) (teu desejo de outra messe.) (Esse amor declarado) (é só clamor de arado:) (Toda terra o esquece.)

219

Eraste a Eromeno: Sou da cruz ou do xis o ponto-morto, por onde, na mudança dos andares, se extravia a oposição dos descontrários. Por instante frequente, e impercebido, por mim perpassa a marcha dos volantes – tarefa sua de librar a história. Mas eu, que resto neutro indiferente, nem porisso me escapo ao descompasso: dos taquitempos – na tração dos fatos. Por fatos que nas faltas e nos fastos, nefandos e nefastos se retraem, brigando pela minha claridade, forçando uma alegria em minha chaga. Sou deveras, mais o sendo no que brinca a mão do jogo trágico inocente que, de um relance azado, grafa a cifra ao meu destino: em infinito e nada. Sou filho da cidade de verdade: ver de mentira, de ver a cidade. Só de ver se dá de...

Eraste a Eromeno: E houve, estácio, um de Sá ou de São cometimento, talvez de amor bisonho, fundado com a cidade – e cujo rosto encontrou, por só sentido, a flecha de inocente força indígena. Num vinte de janeiro, deu-se, a mil e quando, no que sebastianiza evento novo, por sorte e guerra e sonho e terra e morte. “E aqueles que por obras valerosas se vão da mão da morte libertando”. (Porque da morte a mão não recuando.)

Eraste a Eromeno: Entre os pendões e as calhas, se curte a cupidez das túrgidas caixas. A cremalheira cose campânulas nos cós das calças. As cravelhas e os cravos cometem sons de canos de descarga, em vez de cômodos compassos de canoras corças. Quem virá conduzir os carros do fracasso, como correm os da glória por canalha em lacraias?

220

Eraste a Eromeno: Para onde partiram as caravelas? Para o espelho? Ou a ele contrário perfurassem? Ou dele vindo e indo? Qualquer percurso é mesmo é vário. Ser vário é ser contrário, simultaneamente – e, simultâneo, aportar o ocidente no oriente foramente. Ou Índia ou Índios – dois extremores da mesma desesfera, desespero de igual circunferência. (A-mor-te.)

Eraste a Eromeno: E os rios desembocam sim (nalgum lugar: ou céu ou mar ou rio), mas não são boca só, na geografia. E, outra, a jografia, sonha um rio que só de beijo e foz: cartografando a rede desse cio; por qual boca ou baía redesenhado circunflexo percurso – do mito – como se sendo sua senda em rio.

Eraste a Eromeno: Viranda que na infância, de canções a giro, agiram em vidro o intransponível aro – o anel que não nos deram, nunca, falho, nos pôs o amor danado que se espira. Espera que do anel faz nós de sermos na maravilha da bossalidade.

Eraste a Eromeno: Desta cor que carrego em maquiagem, o sangue (ou brasa) empresta o espectrograma, mas recusa a sustância de alimento (e o calor do seu fogo). Mas navegar é isto. A vinda é quase sobra – e amor te é nada. E tudo é, quando o Sol fura o levante, o inefável instante, e a cor de sangue do hímen que se rasga. Em mortevida ainda. Ah, cor danada! Errasse alguém ou Newton, pois esta cor é todas do arco-íris – mas concentradas na infinita grama.

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Eraste a Eromeno: “Verde que te quero verde”, ver de letra, ver de sangue. Gavinhas do sentido. Docentinhas grávidas. Muco. Mangue.

Eraste a Eromeno: Emissário de El-Rei, te escrevo a carta da notícia mais exata. Quando ao mar me lancei, fui re-partido, por voz de capitão que desconheço, entre esta parte e a outra deste mito. Que eu narro só verdade e maravilha – de terra, céu e mar e povo. Descrevo tudo por fiel espelho e símil sorvo: rosto e lanterna, leme e vela e quilha. Diga, Pausânias, meu fiel espelho! Diga a Eu-Rei que neste mundo há bem mais belo. Diga!

Eraste a Eromeno: Caro Pausânias, sou o único mamífero voador.23 Os arqueólogos não sabem minha idade – e contam, de anos, só sessenta milhões. Não sou o mais veloz – aves há que me ultrapassam na corrida: porém, na agilidade, eu venço o beija-flor. Nunca me sabem, diante do espelho, que lado e ponto pegar. Não necessito muito mais do que o tamanho do meu corpo para dar volta de noventa graus. Minha pele sem plumas, como o cão de Cabral, em veludo de luto brilha diamantina, quando exposta a algum sol. E a noite não me vê. Adejo entre cristais e os faço ressoar sem toque, e sem quebrá-los. Mesmo no escuro, ou nele melhor, eu consigo enxergar. Com centenas de irmãos, podemos todos voejar, dentro de uma caverna exígua, sem esbarro nenhum. Meus dentes: de sorrir e de chorar, e de raivar – não rostro de ave (garra só) sem desvanescimento. Minha voz vai longe e vem, em prospecção. Meu ouvido é terceiro – e vejo em audição. Capto os ecos de qualquer sentido ou direção – e, em menos tempo ou num segundo 23 “Bípede ou quadrúpede, não anda com os pés, não voa com penas, vê sem luz, ave de dentes, sem bico, com mamas, tem leite e leva a cria no vôo” (Da História Natural e Médica das Índias Ocidentais, do Séc. XVII).

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só, eu traço a rota (sem-sentido) dessa profusão. Noturno sou, por fogo e sol. E esta aparência esdrúxula, este ar de um objeto que não há, me fez a alguns como mascote do maldito – mas sem mau dito que consiga me explicar. Demônio, Deus? É que aparentemente fujo às leis da Natureza – e quem lhe sabe as leis? Os tolos pensam que eu escapo às leis; mas na verdade, só ensino, A LEI. De certa forma Moby Dick é minha irmã, esse outro ser que ninguém sabe desenhar (embora branca enorme, marinha diúrna, e devagar, imponente alegórica, e eu tão pequeno, quase preto, aéreo, noctívago e veloz, despercebível metaforazinha). Na cultura de oeste, sou em símbolo da treva, do mistério, minhas asas se emprestando muito bem a Satanaz; mas na de leste eu sou só sorte-boa, vida longeva, felicitação. A agulha de cada bússola é minha habitação. Quando, no antigo chinês, você ganhar, sobre um cartão, dois de mim desenhados, responda em grave gratidão: é que desejam só bendade sua. Mas, no cartão, não são dois, só um – de um e do outro lado desse espelho que, sozinho, sem equilíbrio sou. No meu corpo pequeno escondo um vão vazio – maior do que o meu peso – e sugo, para a bolha do meu sorvo, toda a linfa de flor, inseto, peixe, fruto, animal (e sobretudo humano). E vivo vago, e vago presto, sem vagar. Empresto meu vazio ao seu pseudo-cheio, lhes lembro no meu beijo esse esquecido. Como Tirésias, tenho mamas, em leite verdadeiro. Meu descanso é na inversão ponta-cabeça. E no meu voo eu levo, apensa, minha cria, como a você consigo alçar para o meu voo. E subo. E caio. Soo.

Eraste a Eromeno: E (mais do que Albatroz baudelaireano) você sabe, Pausânias, sei ser esse morcego. Cégo-mor e vidente... ... mente.

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Eraste a Eromeno: Com tantos milhões de habitantes, num país de amor transido, e eu (que apenas o procuro, singular, uno, indivíduo – que encontrei no raro acaso, só perdi no meu cuidado) desencontro e não presumo. Pois que não posso fixá-lo – entomólogo falhado –, pô-lo em claro, dissecá-lo: sem auras de ver errado, percebê-lo ausente e ungido: pelo sangue do batismo de apartar – por negro – os homens, posto o corpo dividido. (Quis lhe dar do meu suspiro, quis doar-lhe a vaga e o vento. Mas.) Cumprem amor pela adição do que subtraem. : Mais nada tive d’arte ou de compr’arte: roupa de rei antigo, automóvel futuro, renome bacana, fã-clube de artista. Só tenho o esquecimento de que o mundo é mais caro, de que o amor é pão duro.

Eraste a Eromeno: Você sabe, Pausânias, que o perdi. Sebastião que tinha tudo, ou quase, que eu pedia. Tudo, não? Mas os cinquenta por cento da carne. Ou é que a carne é tudo? Que o perdi: num desastre do corpo, num deserto de carne. Agora, por ali, pastando areia ainda, ele marcha de quatro – ou três-por-quatro – até que data venha, permitindo uma fala. Ou falo...

Eraste a Eromeno: Eles dizem, Pausânias, que matei uma criança. Me acusam, prendem, julgam, e condenam. Só não me matam porque já mataram – ou assim pensam – um outro em meu lugar: a cruci-ficção do encruzilhado, Uma criança, apenas e talvez. Filho do Alguém. O Fidalgo. Ou bem só não matam, na tolhida esperança, que o mesmo inda o faça, absolvendo o cão de massa. Mas, eu, não matei a tal criança. Que não matei, Pausânias, inda não. Hei de matar, e certamente. De conseguir. E libertar. Exato e lei. Por que loucura e razão?

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Eraste a Eromeno: E o torso em onda estática, enfático nas quedas e ascenções do gozo errante. Uma vaga que passa, bem sozinha, só pedaço, no meio de um deserto – sem molhá-lo. Menino enxuto em meu sudário.

Eraste a Eromeno: Ah, santo, santo por beleza! Sebastião, seu bastião, meu bastião! E cujo corpo fluido as flechas do teu rei jamais mataram. E em cujo corpo, em carne e luz, as flechas só – mas não teu rei – regozijaram. Concorpo que promove, à vida, gozo e morte. Erosão do sagrado. Hei de me atá-lo. Hei de m’atá-lo.

Eraste a Eromeno: Sim. E agora? Sebastião do Rio de Janeiro? Não. Sebostieira do Rio de Janão. Pausânias, mais cuidado!

Eraste a Eromeno: Ser todas as mulheres de Benares – que Çiva, adolescente, converte e viça na visão: de tenro corpo e rijo falo. É a feira da fruta. Feira da fruta. Fruta feirada. A posta – de carne. Perde & ganha – dor.

Eraste a Eromeno: Ah!, meu tesouro, meus tesouros, de quem a minha fala brota, em ereção da Nada, como um silêncio à beira da deriva em mar de alteridade e desconforto. Ah! Morte ao meu ouro! Viva o pirata! E abaixo o tesouro!

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Eraste a Eromeno: E a dobra em broto vegetal do seu prepúcio: vergôntea, mitra, a má temática da flor. Nem por dentro nem por fora. Geometria de escândalo, fitologia do horror. Rosolor. Astro lábio. Tez ouro. ErRosa transvirada. Pele avessa do amor.

Eraste a Eromeno: Que EROS não abandome, Pausânias, o Amante eróico entre as paredes e a trancada porta. Em qualquer parte inda viceja, contra grades, nossa erva daninha. E haja paisagem e haja verde nesta cela, aonde ao ouro arda o mesmo voto e a mesma raiva. O amor é um gelo em brasa. Sol ferino. Ultra polaróide.

Eraste a Eromeno: Chícara pousada em pires pela bunda – e abrindo toda em boca ao pênis da chaleira. No fundo, café velho, em resto feito borra: esmegma agridoce de acirrar o gosto, de jato, em café novo, ao gozo repetido. No cinzeiro, o cigarro afunda, pela greta, em grelo acesso de esperar chupada – que o fume para o orgasmo da garganta, sobre o gozo, em café, a um ciclo recursivo.

Eraste a Eromeno: “Aqui jaz Estácio de Sá, primeiro Capitão e Conquistador desta terra e Cidade”. “Deve o Rio de Janeiro a este capitão mór eternas saudades, por cujo sangue goza a liberdade em que hoje se vê.24 Se vê... se vê... se vê... Tango à vontade. C.V. Vê se... V.C. Boca de espera, U do mundo. 24 PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, INL, 1945, Vol. I, p. 137.

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Eraste a Eromeno: Por este grande rio, de janeiro a janeiro, num só vasto deserto. Aonde El-Rei perder sua memória, em sonho inserto, amado por um Santo adolescente. Sebastiões recíprocos fantasmas. “Son el rey que em el mistico desierto / Se perdió y el que jura que no há muerto”25. Nenhum dos dois é sepultado.

Eraste a Eromeno: O MEM: “Cumprindo o voto do Capitão Mór Estácio de Sá, declarou Patrono da Cidade a São Sebastião, que reconhecido Protetor de todas as vitórias, se fizera mais visível no dia de sua comemoração festiva, conseguindo a Nação Portuguesa a última sobre os Índios; e ao nome do Patrono ajuntou o de Rio de Janeiro, como denominara Martim Afonso a terra, em que aportou no primeiro dia do mês de Janeiro de 1531. Ocupava naquela época o trono de Portugal El-Rei Don Sebastião, cuja circunstância ocorreu também, para ser mais memorável o Título da Cidade Nova”26. O Santo e o Rei, frechados juntos: da mesma cupidez de um anjo eterno, sob as vistas do deus inveterado. Libido versus Cupido: Zero a z’Eros. RIO.

Eraste a Eromeno: “A enseada, a que os Tamoios chamavam Niterói (cuja expresão no idioma português significa MAR MORTO), toda circundada de horríveis penhascos...”27 Por a Guanãbará aonde Assu-Lery contou que viu passarem as mobidiques – que os arcabuzes espantavam sem furar: Imbaleáveis baleias, fantasmas do morto mar, guardiãs do sarcófago, real.

25 BORGES, Jorge Luis, Obra Poética (1923-1967), Buenos Aires, Emecé, 1967, p. 200 (Los Borges). 26 PIZARRO E ARAUJO, cit., p. 45. 27 Ibidem, p. 27.

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Eraste a Eromeno: Paranã, Paranã, me entrega o vulto dele! Devolve, Paranã, meu Rei de Espelho! Sei que um dia virá. Santo e salvo. Aruá! Aruá! Um gigante de pedra dorme à beira de um lago respelhado. De peixes mortos, podre a podre, esplendorado. Chibilado.

Eraste a Eromeno: Minha carne na carne do teu verso. Meu reverso no ventre do teu sonho. Tua estranha paixão de manicômio. Tua verve de carne e de silêncio. Minha paixão da morte em teu segredo. E esse a-braço bisonho.

Eraste a Eromeno: A mancha, em sépia, de uma teta cega. Inútil? Desejada. (Mesma que m’amas sob a destrama em traje de Tirésias por segar verdades).

Eraste a Eromeno: Na pele, bronzidoura esse fidalgo, soleado. Filho do sol, filho do som, filho da praia, filho da luta. Pilantra e descarado.

Eraste a Eromeno: No meu barco sem leme, um leme oculto traça as rotas de um percurso em rumo à ilha que não vejo em mapa que não serve. Ir à deriva. Cujo leme. Forte.

Eraste a Eromeno: Sendo as mulheres todas que, de BIBLOS, tremorosas, por ADÔNIS em ti, Sebastião terror de deus. Andrógino? Em testemunho a Deusdemônia? Ex-arado.

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Eraste a Eromeno: Pausânias, eu vou te ensinar as mulheres. Nós vamos sentar juntos, a esfregar nossas cuícas, enquanto que tramamos: o que fazermos com elas. E só de imaginarem nossos sambas, já, de longe, elas refremem no arrepio: dos corpos que tocados por alguma ressonância, não de hormônios, mas de harmônicos: infra e ultrassônicos. Deixemos que elas pensem que requebram pelo som do nosso embalo. Uma a uma, nós as desencantaremos: até à solidão do lado a lado. E o que sobrar do nosso gasto – nosso de nós de nós outros mais elas – que se encomende ao outro lado – o além que (não existindo nem ao léu) no entanto atrai pelo assim-mesmo...

Eraste a Eromeno: E o monumento sintomal: desmembro exangue / ereto. De si mesmo, lado alado. Ornamento barroco. Caracol icarolado. Pássaro falho. Vivo e morto passaralho. Curvo reto, e jeitoso.

Eraste a Eromeno: Podemos falar das coisas, Pausânias. Não podemos exprimi-las. E o amor só é fato por articulação do mesmo gesto místico. Não-nascido, mas gestado. Arcobotante da fala, arco voltaico que falo. Num a rodo.

Eraste a Eromeno: FILOSOFIA: progenitura da pederastia. PEDERASTIA: pedagogia da filiatura. ARQUITETURA: filosofia da pedagogia. PEDAGOGIA: ortopedia da demagogia. DEMAGOGIA: dengomagia, pura. Falta a lei da rasura. Sintaxe da piada. Patropio.

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Eraste a Eromeno: “Rei de manto / de mentiras. / Rei? Não sei. / Rei viciado”28. Rei no Deserto extraviado. Extrarrei desertado. Elo, ela? Ah-sexuado. Nem homem. Nem mulher. Extralésbico extraviado. Só jeitinho. Patronado.

Eraste a Eromeno: Se faça, um pelo menos, gesto teu, bem curto embora, mas de grandeza tão que à gente entregue vulto. Nada! Não há mais monumento? Não há mais numomento?

Eraste a Eromeno: “Quanto é melhor, quando há bruma, / Esperar por D. Sebastião, / Quer venha ou não!”29 Nem só de pão: só de pão. Pão, pão; queijo, queijo. Mão, mão, beijo, beijo. Cão, cão; pejo, pejo. Vejo-o. Há quem o cobre? Por uns cobres...

28 JORGE DE LIMA, Invenção de Orfeu, Rio de Janeiro, Aguillar, 1974, Vol. III, p. 36. 29 PESSOA, F. Op. Cit.

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Eraste a Eromeno: E um padre que versava riscos sobre a areia, compôs, com tinta tosca, as fisionomias do torrão cindindo em rio: dizendo amena menos que as de norte – recifes e baías – a gleba capricórnea em píncaros e abismos. Mas terá sido esse país caçula votado de nascença à vã beleza? Ou à sabedoria? Para Mar, Mato e Morro. Eu? Rio, corro.

Eraste a Eromeno: De um porto vasto, fundo, forte e apaziguado – também conveniente a mais para estrangeiros. Cuja gana. Cuja gama. Cuja cama. Suya.

Eraste a Eromeno: Província de Sertão riquérrimo – de ouro, outros metais, e pedras diamantinas –, guardada à sonolência grave e estremunhada de um Gigante de Ônix e de espera. Paciente como a cabra que lhe grimpa a testa, aguarda confiado, e confiante, a Hora do Levante. Do sol? Do seu semblante? Eu zero. Tu zeras. Nós zéramos. Amantes e amados. Diamantados. Amentados. À folia.

Eraste a Eromeno: Europa, toda invejosa das vantagens que um Porto seu galgasse dessa terra, sonha avançar falanges estrangeiras – prefigurando outra nortista terra – vindo pôr unhas em nossas entranhas. Que já não gozam. Mas maneram. Pé: fura esfera. Himeneu destransado.

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Eraste a Eromeno: E toda a brava tropa de estudantes, que um Gurgel comandara ao cume do Desterro, entretanto e apesar ganhou parte da guerra que a outros entregou para perder o resto. Luto. Deserto. Ludo. Decerto. No maneiro.

Eraste a Eromeno: Hoje o Santo abandonou as flechas dele. E tem por armas só seu corpo de feridas. De cada furo, raio e luz – por frechas invertidas – espalha, quando passa, o sol do luto seu, da luta sua. E tudo há de queimar, um dia, a luz danada desses lasers do corpo eterizado em negro – em fogo que destrua e reconstrua, por morte que renasça do seu corte, a carne ao deus desnudo e ainda mudo. À muda.

Eraste a Eromeno: A boca refendida na palavra, em pomo ou cona aspira a ser fagada. E, afogada, promete a fala como afago. E... Fogo!

Eraste a Eromeno: E – ah! – como amodeio as metonímias todas, complotizadas para armar teu corpo! Arquitetura sagrada. Divina escritura. Ourina, medra pura. Em número de ouro.

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Eraste a Eromeno: Só ficamos nós dois. E, entre nós dois, esse tesão que temos no terceiro que não houve. Que para o meu triônfalo sonhado não há campo de Glória? Sobre o outeiro da Nada... Proporção divina, acochambrada.

Eraste a Eromeno: Sim, Pausânias, do Fado sou discípulo, nos dados. E agora, só aparo e nunca espero. Valendo o que aparesse; em troca de esperânsia. Em zero: à esquerda de zero. Vírgulas fora: independência e morte é o nosso tema. A bolsa e a vida: pelo assalto da fala. Ou do falo.

Eraste a Eromeno: Se construa a morada (e amurada). Você sabe, Pausânias: o homem é um caramujo que nasceu sem casca. Um verme nu, precisa de arquiteto. Haja o barroco danado: obsceno: incompleto: inumano: desalmado: corpo incorreto. Uma aposta / desse ente / fica n’ú/a/mala muito forte / toda a vida.

Eraste a Eromeno: “Chegados nunca chegamos / eu e a ilha movediça. / Móvel terra, céu incerto. / mundo jamais descoberto. / Aqui um mundo escondido / geme num búzio perdido. / ...essa ilha / que possui cabos não a ser dobrados”30. Torturados. Ajam cabos eretos.

30 JORGE DE LIMA, Op. Cit. p. 28, 29, 26, respectivamente.

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Eraste a Eromeno: E o novo pai ao velho filho: – Pedro, tu és fogo! E sobre ti constituirei a gana deles. Põe o penico na cabeça – revertido – antes que alguém t’o coloque sob o rabo – e te obrigue a assentá-lo, como trono ou torno. Ou loucura ou sossego. Haja o arrego. Pedro, tu és pedra ou pó? Lítico degredo.

Eraste a Eromeno: Lagos de sal, de nado leve e denso nada, chupados por uns beiços regretados. Cataventos que mandam outros Quixotes – pichotes, cujos pés ensanguentados, adolescendo entes, que seriam belos, se comessem, e não se assassinassem nas salinas dos senhores – de virem à guerra louca contra o sal da intida terra. As salinas insossas. As sulinas sem ouças. – Pedro, tu és óleo. E sobre ti eu erguerei a minha Torre. E as relíquias do-lar...

Eraste a Eromeno: “Senhores os tamoios de todo o Continente, desde o Paraíba do Sul, junto ao Cabo de São Tomé, (...) até além da vila de Parati”31. Da cachaça ao petróleo, e do petróleo a ela, tudo por dentro (de âmagos convulsos), por momentos distensos e contidos. Santomé, Santamoio! A ver pra crer o parati brotar da cana em pedra. Porre do chão, planta do pé do indígena perplexo. Cauim ruim que não se faz sem furo. Lama dourada a negro de olhos duros. Rios futuros. Rios. Futuros. Rio.

31 PIZARRO E ARAUJO, cit., p. 29.

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Eraste a Eromeno: Pará-Yiba: o falo do mar. E todo corpo é feminino; pespegar-lhe um galho... Entre nós dois, a coisa alguma, ou tudo, de impossível. Essa merdinha, um abismo. A fala d’a-mor. Yba-Para. Hajaíba. Hajapara. Mar! Que me valha o teu valo. (Que me falha o teu falo). Tudo por meio de razão extrema.

Eraste a Eromeno: Sou nascido e sou vivido à beira desse rio, aonde, ainda infante (Tio Heráclito ensinou) pude aprender que a minha sombra, nele, repartia, as águas todas entre os antes e os depois. E desde que tomei da água dele opaca, um verme me habitou: igual ao Rio aonde habito à margem de quem sou. O rio e eu fazem dois? Só depois, só depois. E o nosso amor é o que atravessa (barco ou ponte) aquele rio? A gente nada, nada.

Eraste a Eromeno: Paixão do Rei de França enamorado dela – a tersa terra – e, muito cavalheiro, pedindo lhe provassem ter Adão doado a gleba à gana portuguesa. Porisso é que no cabo aonde o mar lambia, e na baía onde ancorasse nenhum rio, naus galicanas paqueravam as ancas rijas dessa Índia nova (ou desse Adônis índio).

Eraste a Eromeno: Tesão do Rei da íbera grandeza em não perder seu sonho em falta à guerra, que cumpria, dizendo junto a Papa de ser sua, em Deus e Natureza, essa costa alizada em dorso de donzela. Como ela, como ela, a terra da mazela. Como a tenra gazela. Ainda.

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Eraste a Eromeno: Assucar. Sem açúcar. Sulco na terra para plantar gana. Suco de guerra podendo dar em cana.

Eraste a Eromeno: Adônis! Adonai! O dono, Adão nado. A dona, Ada de nada, nada, dada... Evoé, Ava! Kyrie Eleison! Adonai! Adônis. Fada. Falo com que mascaras o teu talho. Máscara com que batalhas por teu valo. Fala com que nacaras o teu falho. Fado. Fato com que me aclaras o que valha: fofo da Nada. Inconseguida.

Eraste a Eromeno: Toda revolta e todas as proezas se ajuntaram, por penas e por armas, para inscreverem, por papéis representados, falas e fatos da demanda nova. Por tiros e palavras se marcavam, soldados e escritores, em narrativas do desejo exasperado aos ouros e belezas. Por espadas e penas se riscando, na pele da morena intida terra, assinaturas de aspirado gozo. Torrão moreno em solitário orgasmo. – Houve? – Ovo... + π Fado

Eraste a Eromeno: Em todo pensamento, sobre a fé, sobre o logos, premiu-se uma reforma, pela Europa velha, modo a justificar-se: esse amor temporão, essa louca façanha. Em glória à desrazão proposta na beleza, em pós de gozo – errante e raro. Orante erário, agora. Por eras e por horas. Erras e oras. Por Eros e por Horus. Era de grandezão. Erosão usuária. Horrorizável. Contra a Reforma e contra a Contra, ôba-rouco – que sufocada a gritaria carnavália.

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Eraste a Eromeno: Em todas as boticas, nas cidades coroas, em pós e pingos, cofreadas porcelanas atesouram drogas, quiméricas acaso – e a mais rainha, dentre elas, esse “americanum”, dito elixir de eterna juventude (o grato afrodisíaco). Americanum canum canum... Hoje droga falsária. Até canonizável.

Eraste a Eromeno: O sonho dos cristãos se tranca nos mosteiros – que, lá fora, tanto se acaricia o símbolo cruzeiro, mas sobreadaptado a mãos de espadas. E não de espáduas ao desejo deles. Cruzadas e cruzeiros. Piqueniquismo turisteiro.

Eraste a Eromeno: Francês de vila, ganhão de terra estranja, troca o preto, das roupas uguenotes, por um arco-íris. E chega ao riso e à pluma – no encantar os índios. Tamoias disponíveis já lhe vendem sorrisos, e outras sutilezas, por uns pentes e espelhos de encantar francesas. – Olhe. – Óleo.

Eraste a Eromeno: Colligny, Colligny! Entre a lâmina justa da primeira espada e os ademanes carinhos da diplomacia (embora tosca), rolassem as cabeças – sobre a terra cortadas ou perdidas de logro. Et vive la justice, e viva o imaginário! – Espelho contra espelho? – Espada contra-aspada: trás-futura e trans-passada. (Ponham aspas em cada).

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Eraste a Eromeno: Aquele Henrique, infante assaz desconfioso (e inventor de uma estatística safada), julgando não poder haver tão mar distante, por umquarto de mundo, sem vasto e virgem continente. Foi ele quem, de lá do promontório cimo, por delírio regrado, desvelara essa terra inconsciente – e que a outro, a descobrir, menos faltasse. Que a recobrisse a gente. Bossalmente.

Eraste a Eromeno: Uma ixola otinticha32 pré-colombiana, achada em português por mapas reperdidos, descrita por um Bianco, desenhista de letras e de cartas, provindo lá da terra do maluco Nero. Como o resto. Que se dê fé – cá, pelo menos. Como o resto. Ainda.

Eraste a Eromeno: Ninguém sabe as leituras redescritas, gravadas sobre os traços de outras letras: desenho de uma carta desses mapas – que os pilotos consultam sem saberem: como são pilotados, eles próprios, quando e quanto. É pôr as aspas dentro de outras aspas. Nuas em pelo.

Eraste a Eromeno: tudo.

Sou aprendiz de não saber de nada – e tenho me esquecido quase Mas sempre sobra um resto: broche no púbis – di-amante-sol. “Humanum nihil a me alienum puto”33, puto, puto... Garotão marotável. Inda hei de m’atá-lo.

32 PERES, Damião. O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral, Porto, 1949, p. 26 33 Terêncio.

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Eraste a Eromeno: Garoto lindo, puro, plácido, assassino. Santo barroco de semblante luminado. Tara do peso do meu corpo: à carga do diabo. Cujo gozo divino. Assim como falo, como falo. E defeco um buraco. Hei de m’atá-lo; esse garotolhindo!

Eraste a Eromeno: “Uma frecha disparada então do arco dos contrários, atravessou infelizmente o rosto de Estácio de Sá, que depois de um mês de conflito terminou os dias cheios de glória, deixando entre amarguras os soldados companheiros, que empenhados a celebrar com seu capitão o heroísmo de suas armas e de seus braços valorosos, principiavam a abrir os alicerces firmes, onde se havia de levantar o mais singular e perpétuo monumento da Coragem Portuguesa”34. – Sabes? – Saibro.

Eraste a Eromeno: Eis que um pênis reteso compromete um tombo: de boca sobre a terra cujo peso o agrava. Na saliva uma gosma em cúspide que empuxa catarro em competência de empenhar a terra. Não conseguindo haver do sêmen farto banho, que haja banho de merda, já que não de sangue: e que se adube a terra. Que se abutre a ilha. Que se abutre a guerra. Que se abotoem guelras e braguilhas. Semen est verbum Dei, segundo Lucas oito e onze.

Eraste a Eromeno: Quem foi que te mandou às Índias, lusitano, atrás da cruz que tinhas por suporte, senão gente “infiel” a esse teu carrego? Turcas que amavam: cruzes não, mas o crucificável.

34 PIZARRO E ARAUJO, cit. p. 43

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Eraste a Eromeno: Tanto eras tonto quanto guapo e não sabias: cantar, índias e índios, para a sábia philia que te prouvesse, português, menos zangares. Com o que te abriste a toda hostilidade, das tribos deles, primitivas, de encontro às tuas primitivas tribos. Etno-eucaristia? Ou comungagem? Manducagem de corpos, interantropofagia. E antropologiasacanagem. Antropia: segundo lei da dermo-dinâmica, dos átonos.

Eraste a Eromeno: No entanto bem sabias, meu galego, que mais do que por armas e mandares – por nós de espelho e corda – é que podias concertar com aqueles leigos (como queiras, sem sabê-lo). Cabelos? Cabê-los. Bedelhos. Cabedelos...

Eraste a Eromeno: Mare Nostrum, mare nostrum. Mediterrâneo, bem como qualquer Mar que borde Terra por alguém amada. Alguém de qualquer tribo: voyeur das ondas entre o gozo delas. Medite, errôneo. Nostrum? Marre.

Eraste a Eromeno: E deu-se um grão problema (herança nossa ainda): de re-arranjar, num só recado, a conversão dos renitentes para a cruz de um Cristo, cujo reino, que descrito, em modo crente, pintada sobre as bolsas: das moedas aquéns destoutro reino. De além-rúmolo.

Eraste a Eromeno: Uma vez, já crescido, o menino expulsara, a tapas, do seu templo, os mercadores. Mas veio bem depois algum que em delegado seu se apresentara e abriu portinhas novas para os tais senhores. Muitos são os escolhidos. Chamados é que são poucos. Mil réis, por cada. 240

Eraste a Eromeno: Mas tudo havia de dar certo... Ao menos se conforme às Ordens que alguns homens, da novel Companhia, de algum tempo ajuntados por um só guerreiro... (Talvez encasquetado de tomar céu por força de batalhas.) – Companheiro, sentido! Tanto topete. Santa Crista.

Eraste a Eromeno: Era uma terra nova, das Arábias, que nascia. Mas já não se queria que ela fosse tão luxenta e sedutora. Da sensualidade do primeiro Pedro quiseram mineirar pedra sem jaça, sim, mas, e também sem brilho. Cafezinho bastardo... Fabricaram um calmante só de cafeína. Não precisa gostar: pode ser injetável: mineirinho. Que volte o Rei Primeiro.

Eraste a Eromeno: Amplas glebas do sul, aonde tantos jovens, e de todas as raças, mesmo belos e capazes, aquartelados pela disciplina dos cruzados – em ordem de cruzeiros. Mas onde estará ela, aonde está aquela? – A taça dos penhores (não taxa dos senhores)? Não há sangue nenhum, de Rei, a ser vingado? Tantos jovens – mesmo belos e capazes – menos guerreiros do que comportados. Donzelas conquistadas? Material para o bordado: gazes letais, negras agulhas, linhas de fogo. Algum sudário messiânico? Heil!

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Eraste a Eromeno: Zé Juz entra em Sodoma, pro baile a fantasia. Carregam seu sudário luminoso (lamês, vidrilhos, paetês e lantejoulas), de um lado a amada Lena, e do outro lado o Anjão apocalista do seu pé maravilhoso. Seu puer, seu puella. Latinório de nave? – Não: Sacristeria. Um hors-concours categoria luxo. Reconversão desrevirada pelo avesso. Grave.

Eraste a Eromeno: Bem do lado do rio, a forja de Volcano. Ali há só aço. Ali me asso. Só me asso. Some aço em meu abraço. Em que me abraso. Brasilado em aço duro. E açodado. Aço dado, pelo deus esmulambado, para as armas desses hércules de lama. O gnomo do vulcão, cambeta e mal trajado, nem porisso não tomasse a vênus maravilha para esposa e comadre. E, mesmo corneado, não largou de lutar, com aquela forja dele, por um trono entre os deuses. Um troninho de aço – aonde ele assentasse: seu corpinho de horrores e de escárnios, a fazer para os senhores. Desescravo.

Eraste a Eromeno: E o que mão de artista, por vetada, não fez em honor de Iacchos: os monumentos de pedra (sozinho se fizeram) levantados convulsos das entranhas da terra (polidos redondo por carícias: de água de chuva, grossa e quente, e de ventos impantes) em cabeças roliças empinadas e tesas. Pães de açúcar? Molosso apotropeico, aqui e ali, que se erigindo ao gozo requerido – tantas reproduções do mesmo deus perdido e aguardado: itaporapuãs do deus grassado. As cúpolas de pedra. As cópulas de sono. Rio.

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Eraste a Eromeno: Tempestades. Tempestades. São torós da água-benta que banha a cidade. E matam, destroem, e lavam sujentando. Depois, um sol rebenta – que leva, todas nuas, minas quase vestidas para a índia praia. Junto com o sol, o itaporapuã dos gatos se alevanta. Da fonte dos Desejos, vai brotar água-santa.

Eraste a Eromeno: “Sou o alvo! Das profundezas clamo por vosso amor terrível”35. Tivira, sarigüé! Arabutan tatá na tua costa abunda. – Eu sou, Pausânias, agora e sempre, apenas o que terás sido! Só mente? Um cavalo de Exu no terreiro da banda, ou contrabanda.

Eraste a Eromeno: Quando o primeiro maluco a se chamar Napoleão, botando a mão no peito, jurou seu claro lema, a gente lhe sorriu da terra tropicália. Era um olho fechado e outro aberto, pela ordem. Por que não? Por que não? Fiquemos com a receita – que a fala da loucura é divina prosápia. Verdade seja dita nesse contra-senso progressoso. E, a esculhambação fica inventada, graças a Deus, conforme ao humor da terra. Que não se feche o olho aberto. E nem se abra o outro. Que não se a perca – ela – essa fada careta. E vale quase tudo: da coiseta ao baralho. Cariôco.

35 de O Martírio de S. Sebastião de Gabriele D’Annunzio.

243

Eraste a Eromeno: – Eu fico. Eu fico. Redissesse o Pedrinho. (E eram mais de quem mil naquela praça.) – Onde estão todos eles? Onde estão todos eles? Debordados? – Já passou, esse filme. Tinha até um valentão, de pois, mais arretado, o qual lhes bradalhava: “Me siga quem já foi mandrabraseiro!” – É filme reprisado. Mas eu vou ver de novo, só pra saber se algum comercial de agora é novo. – Eu fico. Eu fico. Só de ver se fico para o povo...

Eraste a Eromeno: Adolescente, eu te digo: surge! Se ajuntem tantos num rebanho imenso, em plena praça (um a um), cortado em vácuos e interstícios deflagrados, na maior das folias – de geração que já nasceu, de todo amor e toda raiva, despejada. E mandem embora para o avesso das palavras as aparências desse espelho que não foi notado. E o verbo vero se conjugue, desde um futuro imperfeito, até que algum passado se declame num gerúndio. E se passe da morte sob o arco, íris no horizonte. – Quando? – Muito.

Eraste a Eromeno: Persigo, ao rés do giz do meu desejo, o traço sobre a lousa de Outra gleba. É o risco de passar o adolescente na areia de uma praia enfim deserta. E o encontro – mero acaso? – dos dois traços, marcando o ponto exato da (inocente) crueldade de não ser o meu cansaço: 1) pouso do incansável riso dele; 2) tudo que eu não soube de sabê-lo; 3) mais do que, doado, não fartou-se; e 4) e 5) e 1.000) e sempre... sempre.

244

Eraste a Eromeno: O ágora agora. E, depois, o pórtico. Para OUTRO. No que, sem ti, à beira-letra, tresobrigado a meviver, em pura escrevidão, grafando um chiste.

245

ECDÓTICA & ALEUROMANCIA MD

Co-agito, erro, gozo um. (não importa que descartes)

Devo posar nu para o artista Ascher como modelo para um São Sebastião. Kafka (Diário, 7 de janeiro de 1912)

Estabelecer um texto é, em última instância, operação conjetural: inventio, como se diz, n’alíngua de sua nascida, dessa função comprometida com a ficção que, fim de contas, não passa de ser o que se nomeia por autor – auctor, na caução do magister, de cuja mestria é em augur, na adivinha, que se pode aproximar aquele que quiser juntar sua farinha. E tanto mais quando o bloco não se finge de inteiro, e vai disperso, em fragmentos fracassados, pelo vento da lida – que não lhe agarra a voante poeira, a qual, empolgada, ainda quando ela se decante, mais é de se espalhar, pela batida, à luz que acaso a incendeie, numa galáxia, em nada pequenina, cujo vórtice não dá noção do seu sentido próprio – e isto é matemático. Daí que não se pode mais que sobraçar todo o pacote, e mais tudo que disponível se apresente em relação com ele, e entregar, meio arrumado, a outras rumações que lhes acresçam o porte – ou passaporte. Um enigma, nem é por decifrado – Lacan nos aponta – que ele deixa de sê-lo. Isto é: por de-cifrá-lo não se o faz soltar-se do seu selo: letra, marca, a prometer efeitos de sentido, mesmo quando é o momento de perdê-lo. Daí que é contrabando, o que se faz, talqual o operado pela banda de Moebius uniface que desconhece tanto direito quanto avesso. Operação, ou corte, que se resume em fracassar todo sentido, topando uma verdade aonde menos de esperar sua mancada. 247

Na produção deste volume, se cumpre parte de um projeto. Audacioso, embora, este se desfaz de pretensão no que recolhe, alheado e flutuante, o que de acaso lhe apareça, em momento fortuito – o que não é sem determinação bem rigorosa –, como de todo proveito. Sabe-se do projeto – aliás incompletado – de nosso Fernando Pessoa, a querer resumir36, nos cinco impérios do seu toro ou coroa, a questão do amor do homem. Em cinco poemas, ele esgotaria toda a receita... Que nós o retomemos, isto não quer dizer que a esgotamos. Apenas é retorno – da esquecida façanha. Mas, desta vez, o que se faz, é colher, segundo acaso construído, dentre textos numerosos, alguns que nos pareçam, de momento, preferenciais para o projeto. E que sejam de autores – de algum modo – perdidos e, de melhor jeita, que sejam – também de certo modo – textos que por perdidos se tomaram: tudo isso favorecendo o desmanchamento do autor, como uma ficção, e fabricando outra, que do autor pulverizasse ainda mais o pó da dispersão, contra o espelho de algum rosto. Assim é que tentaremos, seguidamente, se for o campo editorial propiciatório, a publicação dos cinco textos que compõem (que virão a compor, se for o caso) a coisa da coisa, Res Rei, com que aqui, de primeiro, nosso projeto apresentamos. E o texto presente, que nesta data restauramos (1975), Antinous sessent’anos depois, depois do de Pessoa, exatamente (1915), como boca de cobra, ou Ouroburos safado, a começar a sequência, que em círculo se cobre, sobre o rabo, começo do Finn, do seu velório que Joyce decifrou num fecho destrancado, e giratório, aonde nenhum ponto é de partida, ou de chegada, porém da Nada a reviravolta de si mesma estupefata, virarrevolta de algum Anjo, cuja mensagem, divina, não nos conta nada? E como decifrá-lo? Com tarefa como esta, não queremos nada: apenas reompô-lo – o que não é nenhuma justificativa de inocência, não estando, nós como ninguém, livres de interferir com interpretações que não queremos, mas assim mesmo quiçá que fazemos – mostrálo, sem hermenêuticas centradas, ou exegeses narcísicas, pelo menos confessadas. Já de outras vezes preferimos a hermenáutica – que não

36 V. nota 2.

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deixa, no entanto, de falar assim mesmo: mas de nós próprios, próprios nós – de amarrar com palavras. Falemos então do “autor” deste Sebastião remartirizado: trata-se de um homem morto, como melhor veremos. O Sr. J. M., de família de origens anglo-portuguesas, profissional do bom gosto, que arquiteto ao tempo da demanda dos nouveau-riches da cultura do design. A nosso ver, que conhecemos tantas de suas obras a pontilhar por este território, os papéis que editamos, esta s’obra, são o melhor de sua feita. Ainda cedo, muito jovem, instalou seu escritório e fez família bem feita: dois filhos, em casal, como se diz de mau jeito, ainda restam nesta terra barulhenta. Já tinha ele ultrapassado a quarentena, quando os fatos se deram a lhe fazer este filhote, temporão: Sebastião deste estado... Era homem belo, elegante, gentil e bem formado, gozando de toda social consideração e de muito respeito, e renomado, e mesmo rico um bocado, quando se deu aquele caso, ou, para ser mais preciso, aquele o-caso. O jovem M. J. (que por ironia do chamado “acaso” tinha como iniciais as mesmas invertidas, de J. M., como se nota), de dezesseis anos de idade, de família quase pobre, estudante em colégio, e tido entre os de sua conhecença como dos mais belos rebentos daquela faixa etária, foi, em si, toda a causa. A paixão de J. M. – sobre a qual já se falava à boca semi-fechada, mas sem maior alarde, já que passada por capricho em “grande” artista – recaiu sobre M. J., com quem, depois de vencidas poucas dificuldades, J. M. podia se encontrar em aproximações cada dia maiores. E por istomesmo ficaria tudo, não fosse, talvez, um acidente, e bem grave, e até com morte, que veio enfim pôr um desfecho àquela sorte. Ao fim das aulas, pela tarde, não muitas vezes, J. M. já se acostumara a pegar, em seu carro, o M. J., à saída da escola. De lá, tomada a ponte a atravessado o Rio, seguiam para longe, não para a distância aonde morava mesmo, com a família, o M. J., mas para lado oposto, aonde J. M. possuía uma cabana ou casa, meio de campo, meio de recolha. Daquela vez, foi a desgraça: estourando-se um dos pneus dianteiros, o carro desmandou-se, batendo violento num barranco, e depois capotado. A J. M., afora algumas escoriações e equimoses, nada grave sucedeu, a não ser que a M. J. se quebrara o pescoço, do que ele veio a falecer, em poucas horas, no pronto-socorro local, rezando 249

o laudo que por fratura de vértebras e esmagamento da medula. Não houve mesmo nenhum sangue, ou muito pouco. J. M. que, pedindo ajuda na estrada, tal como consta nos autos, tomou com aquele corpo desmaiado um caminhão, para o socorro, foi autuado, processado, julgado e mais tarde condenado – passando a cumprir pena de reclusão, num dos “casos” mais escandalosos por época e local. O Sebastião que recolhemos, por algumas indicações do texto37, ao menos em parte deve ter sido escrito na prisão. Apesar de condenado, no entanto, dado o tempo, os recursos se utilizaram. Assim, J. M. parece ter ficado, por não muito, numa alternância de idas e vindas para a prisão, e de penitenciária para penitenciária, até que, numa de suas libertações ditas condicionais, foi assassinado, deixando mulher e filhos em não desesperadora condição. Acabara J. M. de tomar café, na praça, no andar térreo do edifício de seu escritório, e se encaminhava já, pela calçada, para os elevadores do prédio, quando recebeu dois tiros, pelas costas. Promessa cumprida, dizem, pelo pai de M. J. (que parece que muito o amava) promessa que fizera, quando vira J. M. solto pela cidade, em sua primeira saída condicional. J. M., caído, morreu exangue à porta do edifício, arrodeado de pessoas sem nenhum socorro, enquanto o matador achava caminho e tempo de fugir e bom lugar de coita. Conta a lenda, aliás uma parte pouco divulgada, que quando Édipo matou Laio, na biforca da estrada, início da comédia toda, a pressa do maior, de passar por ali aonde o filho estava, lhe vinha de uma fuga, a qual esbaforido empreendia, do pai de algum menino que Laio tentara faturar sem permissão paterna, entre os gregos exigida para a transação ser correta38. De como os originais do Sebastião vieram ter às nossas mãos, exatamente, não falaremos jamais. Sua permanência se deveu a um engano: o advogado de J. M. ao devolver, à família do arquiteto assassinado, alguns maços de papéis que este deixara em sua guarda, enquanto preso, embrulhou erradamente um dos pacotes com os 37 Cf. p. ex. p. 50 38 Cf. BRISSON, Luc. Bisexualité et Médiation em Grèce Ancienne, in Nouvelle Revue de Psychanalyse, nº 7, Paris, Gallimard, 1973.

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pertences de um cliente outro, ao invés de com os primeiros pacotes, quando da retirada dos papéis, de J. M., do escritório de arquitetura. Assim, os originais foram parar entre mãos estranhas que, aliás, não deram por eles durante vários anos. Só depois de três falecimentos na família que, sem querer, os “herdou”, é que, por um percurso esdrúxulo, longo e complexo, chegaram até nossas mãos. Dos quais nos apropriamos, por direito de poesia, transformando seu conteúdo, que copiamos, em repetição, por ato nosso, e disfumando as referências pessoais e temporais de identidade, e assumindo em co-ou-pseudo-autoria, sua edição. Aliás, ao abrirmos o pacote, sobre a capa encontramos, com letra de J. M., a seguinte determinação: “A quem acaso encontrar estas notas, em caso de ausência definitiva de minha pessoa, rogo destruílas, queimando-as de preferência”. O que fizemos, cumprindo voto do autor. Não sem antes copiarmos quase tudo de seu conteúdo, e que agora aí está. Esquecemos, propositadamente, de copiar as datas que se epigrafavam a cada fragmento, por exemplo. Conta-nos Max Brod o pedido que lhe fez Kafka, à vista da morte, de que o amigo lhe queimasse toda a obra. Tema sobre que é preciso meditar, não podendo supôr um escrevente que se lhe faça, sem tremor, sem arrependimento, tal vontade que, aliás, possivelmente, nele mesmo não há. Tal pedido é mais de ser tomado como tentativa, de declaração de um desejo: de libertação daquela s’obra, ou, pelo menos, de convite à solidariedade, senão à conivência, pedido, a um outro, para partilhar da autoria que pesa sobre aquele que não se aceita, sozinho, nessa vaga de herói. E é também um reconhecimento e uma denúncia: reconhecimento da pouca autoria que, na verdade, cabe a cada “autor”, e denúncia dos co-autores, todos, que se escondem sempre por detrás do nome-assinatura que lhes empolga a voz. Inquirindo fascistas a Picasso sobre a audácia de ter feito Guernica, obtiveram a resposta feroz: “– Eu, não. Vocês é que o fizeram”. Ora pois. Os originais eram um maço de papel de desenho formato A-4, tipo vegetal, escrito a lápis grosso, pelo menos 3-B (o que a certos momentos dificultou a leitura, dado o borrado do grafite pelo atrito das páginas que, se via, foram bastante manuseadas). Pelas datas, que apagamos, como dissemos, talvez se devesse formar a sequência das páginas. Mas não era de se conjeturar assim. O próprio J. M. as arrumara em outra ordem, aproximadamente esta em que as apresentamos. As primeiras 251

nove páginas estavam numeradas de um a nove, independentemente das datas, e correspondendo à nossa distribuição. As três últimas, sem número, eram encimadas, no canto superior direito, onde nas primeiras os números estavam, pelas palavras, inversamente respectivas: última, penúltima, antepenúltima. É de se supôr que J. M. considerava definitiva a sequência das nove primeiras e das três últimas, estando o miolo maior, ainda em produção, à espera de outras considerações. Contudo, a arrumação das páginas fora da ordem cronológica, que aproximadamente mantivemos, parece ter sido uma escolha do autor. Em cada folha apenas um fragmento, todos eles encimados pelo título obstinado: Eraste a Eromeno, nomes dados, no chamado amor grego, respectivamente a amante e amado, sendo que podemos encontrar, em vocativo, por diversos trechos, o nome Pausânias, com que J. M., enquanto eraste (ou eromeno, não se sabe), chamava por M. J. enquanto eromeno (ou eraste, como pode), estando em nossa suposição que talvez J. M. retomasse o nome do amante do filósofo Empédocles, escritor de filosofemas para seu jovem amigo, de uma filosofia que, aliás, na tentativa gorada de harmonizar Heráclito e Parmênides, jamais deixou de ser uma pedra, talvez que real, no sapato dos filósofos de depois, e sobretudo dos perplexos e delirantes historiadores da filosofia. O mapa em anexo é, também, original de J. M., que copiamos. Ocupando uma daquelas folhas transparentes ou quase, acoplando-se exatamente sobre uma reprodução, tomada de livro ou revista, do S. Sebastião de Antonello: o rio atravessando-o pela cintura, a ponte entre o coração e o umbigo, a praça no baixo-ventre e no púbis, as estradas envolvendo o tórax, o todo sendo chamado, no desenho, Carta da Erosão (ao que não podemos deixar de associar o tema do desgaste da terra, assim como o de Eros, no aumentativo). Apenas acrescentamos a indicação do local do assassínio de J. M., já por ele incluído no mapa. É de se notar, sobre as águas do rio, a cruz indicativa das direções polares, N.S.L.O., em inversão quanto à cabeça e às pernas do Santo. De nossa abordagem geral, de todo o texto, do que muito não queremos falar, é de se supor que J. M. preparava um livro muitíssimo maior. Isto porque podemos levantar pelo menos os seguintes temas: descobrimento do Brasil; fundação do Rio de Janeiro; história do Rio de Janeiro; Sebastianismo; São Sebastião, seu martírio e seus mitos no Brasil; filosofia; pederastia; religião; moral; diferença sexual; e 252

muitos outros que o leitor talvez possa destacar em sua leitura e que, evidentemente, embora aflorados e às vezes desenvolvidos em parte, não foram esgotados pelo autor, ficando claro que a obra se interrompeu bruscamente com sua morte. Embora em fragmentos, o livro parece que pretendia abordar muitos temas, todos eles em relação íntima com a existência do Rio de Janeiro, como cidade e como estado, num vasto tecido, pontilhista, mas ultra-tecido em seus fios multifários. É de se notar que J. M. possuía grande erudição e cultura densa, além de manejo astucioso da língua portuguesa, se não de várias línguas. O texto é prenhe de alusões eruditas à história, à literatura, às artes, etc.39, bem como, o que é preciso ser trabalhado pelo leitor, de jogos com as possibilidades metáforo-metonímicas da língua, sobretudo no que diz respeito às articulações (inversões, acoplamentos, trocas, deslizamentos, etc.) de valores fonológicos40. É também de se destacar a visão topológica de J. M. quanto à geometria do corpo41. Sem deixar de apontar o entrelaçamento, constante, entre sexo, morte, loucura, e linguagem42, já sabidamente entrelaçados. Mas quereríamos realçar sobretudo, nos desvios d’alíngua, o humor que se anuncia e se sustenta: na piada e no chiste. Em apêndice43, quisemos sugerir a tradução de um artigo psicanalítico. Isto porque o cotejamento pode enriquecer a lida. Ali, seu autor, um psicanalista comprometido com o pensamento de Jacques Lacan e sua Escola, trabalha sobre textos e sobre o ato de morte, por suicídio, de um escritor japonês contemporâneo. Espera-se, sem maior comentário, que na aproximação dos dois casos, efeitos se deem do maior proveito, por acaso. As notas, apresentadas aqui em rodapés, as produzimo, poucas, aonde introduzimos referências de tomadas de outros textos, citações 39 Cf. p. ex. a alusão ao romance Verlaine-Rimbaud (p. 217) e à cegueira de Tirésias (p. 223), quando, ao contrário da nobreza de um albatroz, como em Baudelaire (aliás aludido à p. 223 também), J. M. metaforiza o poeta num vampiro, ou morcego (p. 223). 40 Cf. p. ex. à p. 231: “Pé: fura esfera”, onde queremos também ler: Fé: pura espera. Esta, em prisão imaginária; a outra, em ato simbólico, rompendo a ilusão de totalidade. 41 Cf. p. ex. p. 225. 42 Cf. p. ex. p. 224 e 228. 43 Texto de Paul Mathis, Ética e Sexuação (Lettres de l’École Freudienne, n. 16, nov. 1975, p. 140-147), não reproduzido nesta edição.

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de J. M. que não apontavam autor ou bibliografia, no original, mas que estavam entre aspas, e que pudemos, uma e outra, ao acaso, situar em seus contextos. Muitas outras alusões, mesmo algumas citações, talvez tenham nos escapado. Mas não queremos mesmo dar mais que indicações, porque, como dissemos, não pretendemos interpretar o texto ao editá-lo, preferindo mesmo que ele fale, ao máximo, por si mesmo. Daí que, ao invés de uma tarefa tecnicamente esmiuçadora de crítica textual, preferimos algumas observações esparsas, as mais anódinas, diante dessa farinha em fragmentos que preferimos auscultar, flutuadamente, ao que aconselhamos também nosso leitor, de modo, como uns antigos ou alguns hoje crentes, a tentar uma adivinha que, ao invés de adivinhação, em respostinha, ofereça outra questão para a merenda nossa de cada dia. Assim, trazemos então este Sebastião do Rio de Janeiro, como se nosso, o qual datamos, o texto, parafraseando o dito primeiro escriba desta terra, “deste porto inseguro de nossa ilha da velha cruz, hoje, quinta-feira, primeiro dia de maio de mil novecentos e setenta e cinco”, dia de muitos trabalhos em ano de graça pouca e, demais, com-fusão. MD

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CANTOPROLIXO

A Mario Camarinha da Silva, pelo reconhecimento concedido antes ainda que tantos não vissem. 258

UMA PENA... Seja o que for, não é nada que valha a pena que meto no tinteiro da encarnada alma que assombra de medo. Nada sem ela se assina nas costas da folha seca do deserto da piscina onde nada o que se perca. Nada com ela se fisga, senão o que à seta empresta um sujeito que consiga não querer senão a esta; que desdenhe cada pluma da fantasia e destaque, do bloco da Coisa Alguma, seu ensejo e seu sotaque; que prossiga além da cerca do nome da pátria antiga, quer seja romana ou grega sua porta de saída; que tenha e mantenha nome que não quer dizer mais nada que as mulheres com seu homem inda saibam o que se trata; cujo corpo só tem forma por renitência e conchavo; cuja regra só tem norma no que roga por escravo; 259

cujo falo, esnuda a fala, que açoita o discurso nela; cuja dor é só piada no canto em que se re-vela; Eu que escreve o seu vazio como pauta do horizonte. Eu que goza como rio... (porque a foz é a voz da fonte).

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LOCO SOLO de Pedro Nava Por isso, Senhor Fulano, entre dentro desta roda, diga um verso bem bonito, peça adeus e vá-se embora. Ciranda Aproveita macacada que amanhã não tem mais nada. Refrão de Terça-Feira Gorda O erotismo é a aprovação da vida mesmo na morte. Georges Bataille

Ninguém sabe melhor do que ninguém o que haja para além da morte certa: uma estepe deserta?, um paraíso?, o lago de Narciso?, o Nada puro? Que as plantas do futuro não se riscam no chão por onde ciscam passarinhos migrados de Outros ninhos venturosos, lares de plenos gozos conseguidos. Pelo contrário, os silos da memória, só-depois de uma história decantada arrumam por camadas e por horas – indistintos embora quanto à essência, por sua equivalência de alimento – os grãos de pensamento que engravidam. Por isso é que duvido, e não me afoito: era tarde da noite, ou era cedo, na manhã do seu medo de ir-se embora? 261

Podia ser agora ou ser jamais? Tanto fez? Tanto faz? Ou ser preciso, no relógio conciso da partida, dar ao jogo da vida um gol de placa; chutar a esfera exata em trilha reta, como um tiro sem meta mensurável que o Zagueiro mais hábil não barrasse? Se nada se passasse, se passou: telefone tocou, como o chamado de um país do outro-lado do planeta. Uma bruxa cambeta levantou-se, atendeu, e lhe trouxe, de recado, que um homem disfarçado o procurava urgente, um tal de Nava... Ele atendeu e logo percebeu que era a notícia (mas dada com malícia) que ele tanto queria e esperou tanto e tanto achou: – “Aurora já voltou. Olha, ela manda dizer que já se manda de manhã; que você venha, ã?!, depressa, logo, e traga o pau-de-fogo que ela adora... Sabe como é a Aurora... ela é pilantra... E disse que te encontra lá no banco; que ela vai falar franco desta vez; que chega pra vocês!, que vai ser tua... Então, desce pra rua. Ela te espera no banco da paquera, em frente aí, bem debaixo do oiti”. – E ele escutou. Como sábio escutou, e como otário. Do lugar solitário onde se assente, nossa escuta se ausente dos sentidos acaso preferidos por nós mesmos. E se abandone ao esmo intempestivo das surpresas do ativo de Outra Cena à qual nos aliena nosso lote de nascidos sem dote da Verdade. E mais cedo ou mais tarde saberemos 262

sartar do que não temos, livrar cara com o corte de uma apara que distinga as mutretas da Língua dessa cobra (que bifurca e se dobra) no eufemismo das verdades que cismam recalcadas no ventre das sonhadas maravilhas. O Ouroboros rodilha, de direito, no avesso do preceito da ordem mítica. E eis que a arte analítica do humor só se faz no frescor da contingência, na borda da emergência desse evento que sopra, de momento, em nosso olvido, não dicas do sentido, mas proezas por cima das defesas dessa rede sempre estendida, adrede, sob o fio de faca, em bamboleio, onde arriscamos nossas perdas e danos por um beijo da Deusa do desejo e da fortuna. E é preciso entrar numa para termos saída pelos termos do contrato pelo qual se arrematam, em equilibrismo, recíprocos tropismos assimétricos. É devermos ser éticos sozinhos, e pilotos vizinhos da loucura, pra ocupar sem usura esse lugar impossível de estar-se funcionário. – Lugar do Solitário que é mais Só: o artista de dar nó nos pingos dágua que chovem das anáguas da Sem-Hora. Desceu, malgrado a hora e, do chamado, falou ser trote brabo de mau gosto. Decidiu-se e, isto posto, todo nu, correu pro randevu da Sorte-Grande, se lento não obstante do cansaço dos seus Oitenta passos promissores. Bem sabemos as cores deste enredo: Aurora amara Pedro desde o berço – 263

e Pedro, do começo, a desejara. De vê-la cara-a-cara era o fascínio maior do que o domínio do terror; maior que todo amor e ódio todo, que o levasse de roldo, era o rojão de uma fascinação suprema e arcaica, sem lei clériga ou laica – e sem juízo em qualquer Paraíso ou nos Infernos. Olhá-los para ver-nos. A lição. Encontros que virão..., mas de revés – que os passos retrupés do Tempo idiota só nos levam de volta pro começo (onde se inscreve o preço da aventura). Vejo ao longe a estatura de Saturno, me preparo no rumo de investir; mas se tento atingir seu crânio calvo, ali sou Eu o alvo – que resvala quando a flecha se cala contra a borda retesa, cuja corda o arco enverga. E o tiro me carrega e me arremata na peça que a culatra enfim me prega, quebrando, em contra-regra, a fé do escore... Que Aurora não demore! Ele, esperando, enquanto aquele bando conhecido, à luz do poste antigo, desfilava: belos michês, brilhavam, putas lindas e travestis (de finas semelhanças com as múmias das lembranças de uma dúbia questão sobre o seu púbere organismo), sob o mesmo tropismo e mesmas graças das mariposas de asas cor de fósforo, na ronda dos horóscopos venéreos. Era um negócio sério, era a Vida ali tão bem vestindo as fantasias da sua estúrdia orgia cotidiana. E entre aqueles da cama e da sarjeta galinhava A Sujeita, a que ele urgia, 264

transbordando em vadia compostura: tinha as mãos na cintura de moringa que embebia na ginga do seu porte; um riso de deboche ou de convite na cara de inocente ou de bandida (e nessa cara linda e tão pintada, menina camuflada de senhora); bolsinha de Pandora a tiracolo; nos ombros, uma estola que entremeia de tarrafa ou de teia os nós do logro; jogado sobre o corpo efebo-e-vênus (nem mais torpe nem menosmente casto), vestido nem tão largo nem tão justo, de espelhinhos minúsculos bordado; e, como um fecho aziago ou redentor, no dedo indicador, grossa e brilhante, a pedra de um diamante negro, e duro. Ele acena do escuro, e ela vem assentar-se também no banco em frente, onde a conta corrente se fechasse no empate dos impasses financeiros do débito primeiro e da extorsão fundada na razão da sociedade que ele fez com a Vontade de Viver, apesar de saber-se inaceitável entre a massa infriável dos Iguais. – Agora eu quero mais. Quero o supremo e derradeiro aceno do Real. Já não sofro. O que é o Mal? Os meus receios largo em meu saco cheio de memórias: que a outrem façam glórias que desdenho. Dos ditos Bens que tenho, o meu legado melhor é ter calado o meu arrojo de gritar sobre o nojo, e a raiva, e o pejo, (aliás que sem remédio), que me inspira não a clara mentira do fascista, nem tanto o chantagista, ou o proxeneta, 265

tão pouco as borboletas dando à toa... – mas toda a “gente boa” que queria rasgar a Fantasia que Eu refaço com os trapos do Palhaço que Eu vesti. Contudo, estou aqui. Eu me virei mal ou bem e cheguei, por bem, por mal, quanto ao Meu Carnaval, à terça-feira, ao mar-de-graça à beira dessa quarta dimensão que retrata a Vez Real. E lhe peço, afinal: ó Dona Aurora, ó minha Mãe, senhora do meu cio, encosta o meu pavio no teu fogo, torna em sucesso o esporro do fracasso! Laçou-a nos seus braços com ternura, beijou-a com luxúria e, com a lascívia de uma fêmea cativa de animal, nela empurrou seu pau-de-fogo-e-bagos, no penúltimo sarro antes da fuga. E como quem conjuga o Verbo Não, subdito à desrazão do mé funai, orou para o seu Pai com viva voz: “Óidipos Tira-nós, daqui, depressa!” E calou quanta reza se declama no atoleiro da lama desta lida. Sob a árvore-da-vida, Aurora e Pedro sobre o solo de um credo que absurdo... Seu Pai ficara mudo? Sua voz, sequestrada na noz de uma espoleta, esperasse a completa calmaria que a mão de Pedro urdia contra a testa de Aurora que inda resta reclinada no tronco da sagrada seiva imunda. Um dedo se aprofunda no gatilho e prepara o concílio – antes que alma da canônica arma não se traia – pelo acordo das raias do destino com o vel do sibilino Revirão. 266

E a voz se fez trovão: seu Nome disse. Beijo letal, carícia do disparo do revólver mais caro ao coração. Na cabeça, a ração: bala de mel. Sangue do céu no solo comemora que já raia em Aurora o sol de Pedro; que o hímen do segredo foi libado, carne a carne, em pecado absolvente. A vida foi presente. Ele a viveu. Quem quer que se envolveu com este horror, nenhum sabe melhor do que ninguém o que ouve para aquém da morte certa: mal ou bem... gozo ou dor... ou mito... ou meta... (Louco solo da história canta aquela Sorte. Foi “tiro na memória”? Não. Matou a Morte.)

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RE(VE)LAÇÃO Comigo me desavim No extremo som do perigo: Não posso aturar comigo Nem posso fugir de mim. Sá de Miranda Mon âme, du coît matériel jalouse... Rimbaud Mas quando quererás voltar? Quando é o Rei? Quando é a Hora? Fernando Pessoa Para Bu, colo ou cama em que renasço e morro com frequência. E para Anísio, mestre que morri, no que nasci. E também para o deus Tino.

• Poeta presente, sujeito partido, reerijo o teu busto com ouro e com aço. Concreto no espaço meu cá e meu mundo. Refresco no tempo meu lembro futuro. Refaço no abraço meu sendo inseguro. 268

• De meu não tenho nada além do meu caminho. Sou herdeiro da estrada e vou sozinho. Dos donos emprestei mesmo o pó dos sapatos. Se o desejam, sou Rei – só por contratos. De tudo estou refarto e aberto a cada exemplo. No meu ponto reparto espaço e tempo. • Meu canto é de ter certeza por memória que me pesa. Sou a tocha antiga acesa que a mão reveza. Sou mar e nele me afogo. Sou cartas do próprio jogo. Sou crer e descrer de Logos. E fátuo fogo. Sou fio de cada roca e verbo de cada boca. Vento que tudo desloca com força oca. Sou dono dos meus arcanos na curva em que me confino. Nem deuses nem suseranos. Sou meu destino.

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• Recebo tudo – mesmo quando nada. A estrada do futuro passa em mim. No centro desta forma avelhentada, vou criança. Eu cuido, para o velho, o seu jardim-da-infância. Dou curso livre a inferno e paraíso. Sapremo a convergência por detrás. Fronteiriço ao fatal, meu quase-riso adia meu quase-pranto que, saber, se faz poesia. • Em arte de ver azul qualquer cor que se dê. E de esfera ter por forma de e para qual toda forma é. Na de escandir o gume no desgume de navalha que o fio não valha para o rasgo. E agulha de coser azul dossel de fundo pano céu com buracos deixados sem tecer. Arte de dar sem mais não ter que o nulo O do meio do sou. Na de, com fato de nudo vestir, recobrir o que é próprio desnudar. Arte de ir por ver e vir oticamente frustre-color-forme. Na de, de pouco nada, Ser enorme parir sem parto, gestação, gameta, falo. • Que tal arte não há, a puro intento apuro e paro e in-vento... 270

Há (puro) o tempo, o impuro intempestivo tempo. Agora é a hora em ágora de ser o pervisto e o porver. • Cada hora inexata foge, como nada, em tiques de relógio – meta-registrados – que se vão, como se nunca existidos, para o País de Além – que não tem solo. Espera. Que esperar termina nisso mesmo; que esperança, esta, de ser só de si mesma, só põe valor no que, por sê-lo, por si vale. Não mais. O horário é uma anedota que anotamos por vão desejo de ao possível tomar carne. E a hora? Passa. Que nela ser não passa de ser passar o paço a passo de compasso: refeição circular que não descreve caminho algum de reta ou garatuja. Os relógios só mentem – mesmo na tortura. Finge que não sofres do Tempo. Sê mais justo que a justeza dessa máquina que tenta, automática, a mágica de Cronos prender na sincronia da malha inconsútil. Terás uma heresia, como todo homem, a pagares – e é só – sob o tiro de um pecado, no momento. • Para o MOMENTO, nos baste o tempo de não ser, ou quase, ou ser de vento, diante do jogo sem regulamento: contínuo escape. 271

Para a CERTEZA, nos baste o curso aberto e o passo incerto – a escolha sem remédio e a lucidez ou o desespero. Para o SABER, nos baste a força ver e o fraco estar (a espera) e o medo de saber somente o medo. Para o QUERER, nos baste ousar e suportar segredo que se desvela em só relumbramento – e o poder de memória. Para o PODER, nos baste estar (o instante) e haver estado – e, estando, nos baste a permanência e nos baste o degredo. • Busca sobre não-ser assentar esse degredo. Em nenhum qualquer ser acharás algum repouso. Menos ainda sobre o ser que ao teu respelha. És um planeta isolado gravitando longe e solto. As leis que te agrupejam, como um rápido sonoro só hão de os intervalos – milenares – de entre os corpos 272

que regiram os autismos matemáticos do baile que só é dança por forma e se esteia em solitários. O solidário é por fora: leis de gravidade que só respondem às ordens do conjunto para os olhos, sem nada terem a ver com a carne dos planetas que giram por girar e existem sem vontade. Não te lamentes – a não ser por desfastio –, pois que palavra alguma é de comprar alguma pena, nem lágrima nenhuma de regar alguma planta, nem o é sorriso. Sê simples, neutro, vago, quase inexistente, a não ser no testemunho do endocentro – e este mesmo que não seja o teu tesouro, mas que o retomes só por teu lugar de condenado (ao só Desejo). • Quando o rosto se esconde atrás do monte, vira fonte. Quando demais presente, ausente o rosto riu do que me viu. Detrás do monte, depois do ocaso, pra além do acaso, escasso caso, posto horizonte, o rosto vira fonte – e nele bebo. • E o amor é uma conjetura. Vaga parede onde esbarra toda humana ficção. Dura 273

mole – de pedra em seu miolo de concreção e de dolo. Para ser, não fosse rios (com leitos e margens) presos, sonhantes de algum desvio que os deságue em curso alheio – não pela foz: pelo veio. • As causas para o amor nunca são Causa. São, por haver, detalhes do acidente: o choque desta mente nessa mente; seu pouso e meu repouso em alheia pausa. Em que língua se inscreve a reverente referência de esfinge (o desmistério), com presença remota impondo o império de dar, mandar, fundar, total e urgente? Que, em vigor, esse mando, mesmo ignoto, requer o amor assim, de éter na mente, requer sobre o sublime e sob o escroto. É sem Causa? É gestão. Do meu no teu teia um destino. Em malhas tão nitentes que habitas meus altares – és meu deus. • Vens como um deus obscuro. Como um rio de águas turvadas sob espumas claras, repetes coloridos verde-mata, chuvas grizantes, fulvos relampejos. Contra o teu dorso espesso e respelhado (algum retrato do meu rosto) espio a compleição da tua força densa: a multidão dos eus com que refratas 274

cada tremor e o sigma dos beijos com que, Narciso, em mim te acaricio – se não por nada, só por referência. • Perante um deus vulnero-me ao pecado. Que os deuses me fabrico por carência e não que sendo só de referência, porque é também por ser acrescentado. – Mas pouco digo pelo quanto falo, pois sei de acrescentar-me e acrescentá-los. • No entanto falho por indigência, pobreza e ausência do que me ordene. E rasgo o laço mais necessário – bendito e urgente. Gesto em que faço da prenda indene derrota larga, fissura larga, fundo o fracasso. • De mim, que nada mais sobre para além dessa derrota. Mas que esta falta só sobre no vazio que a comprove (pois que é falta por faltar-se). Que esse nada em que tropeço (remissão de todo fiasco) 275

desta falta crie um frasco e, do buraco, uma porta. • De uma porta, uma comporta, já desfechadas, torrentes de passagem, zil cadentes estrelas, podem correr. – Que tu sejas a retorta de onde destila o meu ser. Minha fala viva e morta de estrelas se banhe – e lava – no batismo que me agrava me lembrando o meu morrer. – Que tu sejas a retorta de onde destila o meu ser. Tua mão foi que escreveu com sal na minha boca (o “sal da terra” – um sal de paz & guerra), áspera, branda, rude, sábia, louca. – Que tu sejas a retorta de onde destila o meu ser. • Tua ausência: faca limpa em aço e haste; curva ponte despontada em tua polpa e em meu caroço. – E rasgo em minha face. Tua ausência: flor latente; latejada dor mordente 276

em minha carne mastigada e em meu cansaço: – Fratura em meu pescoço. Tua ausência: coágulo em meu ventre; nervo exposto; traumatismo ciclado; artéria rota. – Anemia crescente. Tua ausência: cor sem cor e informe forma; gás sem cheiro circundante e circundado em meu respiro. – E meu olho vasado. Tua ausência: compleição que já não colho; pedra rude posta em peso e, em fogo armada, bomba escura. – Minha mão mutilada. • Tuas mãos, as erigi no mito do meu ventre. E no que as possuí, as deserdei do teu comando. Como um rei ditador, mandei parar seus movimentos. E eis-me avaro de mim – sem próprias mãos e sem reinado. Teus potros pés só me ganharam por libertos – no entanto os ofendi determinando-lhes pegadas. Agora me capengo nos caminhos de não sendo e erro o meu querer em passos meus – mas nunca dados. Sou um doente de ti; bem sabendo que não curas. E a moléstia me sabe a não ser doença alguma. Os meus males são os eus que levo de mistura, 277

sem sabê-los quem são para armar conjuntura. Minhas dores são eu se dançando na praia, por fumos de ritos que hauri dos teus credos. Os meus vícios de ti são um síndrome por drogas e sem cura por drogas – nem as tendo ou não tendo. Minha nula desgraça nasce do teu gesto de se preencher de ti, negando o meu comando. Por tanto, é deste gesto que a mim me retrago. Teu romper já me salva... Teu livrar, minha graça... Minha dor não tem mãe. Nem meu pranto afilhado. Alegria sem pai. Sem filho o meu sentido. Um eu-mesmo, de outro nado, és meu rosto pintado em painel descorado e rompido e contudo... O meu repouso em ti pousará no suspenso semi-desejo de tê-lo por sonhar-te porto. Pois em ti o irmão gêmeo perdi que não nasci. E me vieste sem vir – porque és só prometido. • Há sedas de sussurro ao vento por meus pálios. Todo me aparatei para a chegada das chegadas. De ônix a safira fiz fingir a pedra ordinária. E me adornei com as sensações de múltiplas carícias. Os salões do meu templo teias e silêncios, mandei que perfumassem a puros fumos ários olorados de sono e pintados cor de espaço. E fiz prender nos desvãos dos arcabouços um som tido de mar sinfônico e miragens. Dos tetos fiz pender lúceos líquidos pingentes que ali de gotejar nos ombros louros aços. Em guirlandas acesas pus rubis de olhos e brasas. De um mago encomendei um tom da voz de prece, por a hora tecer para além de muros e áreas. Dois minaretes plantei no meio da ampla praça e, neles, dois louvando, profetas, o futuro. Duzentos cornetins fiz alinhar na esquina glabra para os estrídulos vivas e os graves aleluias. 278

Mandei brunir o bronze às cúpulas de sonho e entalhar de memória as quilhas dos navios. Os livros, espalhei abertos sobre a tez das táboas, no convés do castelo, por que o sol os procrie. As roupas do meu povo (que as teceu com lua nova) mandei que se exibissem em relâmpagos de esgares. Mandei forrar os leitos com felpas castanhas e com veludos de messe everdecer os meus pomares. Despácio atapetei meus quietos corredores com pantufas de passos muito atentos e lentos. Mandei fixar um beijo a cada fonte ou boca e lavar com sublime os córregos e riachos. Meu lago, que vasei na concha mãos de virgem, dei-o à sede o libasse ao tempo da oferenda. Na crista em que a montanha imita o meu granito, mandei fincar imensos marcos de infinito. E sobre a testa de todo eu e de outros todos risquei com cinza e dor o signo do tempo. Que tudo em luz tracei com bocejos exatos de esperar sono e sonho aos pés do Rei de Lei. • Mas o meu Rei não regressou das terras de mim mesmo. Não trouxe da cruzada os troféus do meu esmo. Eis que um Rei todo meu nunca enviado a mim e eis que, chegado, portou-se não perpétuo e afeito ao fim. Seu Grão Reinado ele exfez em pó de contragosto e de Rei que era eleito, sagrou-se Rei deposto. Sei nada sobre o fracasso e o nada do meu Rei leviano, de cujo alvitre é o reino o quanto estou pagando. Sei só que, sob espada em meu ombro, pelo que jurei, fraterno eu fui do Rei lhe sendo pátria e grei. E que, por vindo em falso, flébil flux falhado, não medrou meu preparo – ovo posto gorado. Que nem foi minha a Real presença. E o prêmio dado não foi a mim, senão que aos meus ciúmes creditado. 279

• O meu ciúme é: por detrás de gelosias de janelas antigas, olhar o que nem sempre segue o faro. Antes: resgatar a indiferença que a mim, lúcido, imponho contra evento suspeito ou fé sem nome. Durante: o cuidado da existência, por vigir no mantido. E a defesa total sem nojo ou medo. Depois: Evitar, de arrependido, desfazer o sentido que desenha o terreno e pinta o céu. Sempre: aviar habitação onde bote as raízes. E engastado restar no outro vão do mesmo. • Vieste do fundo do mar, machetado de estrelas, de algas e de plantas estranhas coberto, botando da boca uma fonte liberta de riacho salobro com peixes exóticos. (De há muito eu te esperava, prometido, porque te vi num sonho de certeza.) Assim me chegaste, terráqueo e celeste. 280

Teus pés, de gigantes, mal os banha o oceano. Nas mãos desenormes sustinhas, das raízes, árvores de um tempo que as deu mais frondosas. (De há muito eu te esperava, prometido, porque te vi num sonho de certeza.) Aquático e aquário, gêmeo meu, me vieste de quanto tempo antigo entanto o mais recente. Com um olho parado engastado no umbigo – relógio solar de perfeito presente. (De há muito eu te esperava, prometido, porque te vi num sonho de certeza.) Colar de selênio, chegado, trazias, e em volta do crânio os anéis de Saturno. Nas palmas das mãos, cicatrizes profundas riscavam caminhos das voltas de Urânio. (De há muito que o esperava, prometido, porque te vi num sonho de certeza.) Dizendo trovoadas, cantavas contente lições de ternura e de ríspido amor. Dos ventos, dos mares, dos bichos, das aves, as vozes seguissem teu dúbio cantar. (De há muito que o esperava, prometido, porque o ouvi num sonho de certeza.) Palavras? Dizias. Mas eu não me lembro (não sei se não lembro ou não posso esquecer); sendo eco das minhas – palavra inaudita – pintavam segredos do rosto de ser. (De há muito as esperava, prometido, porque as ouvi num sonho de certeza.) Teu tato maciço selou minha boca, raspou nos meus membros, depois me esmagou. Teu hálito háptil soprou meus vazios. Teu plexo grave meu ventre esfurou. (De há muito que o esperava, prometido, porque o sofri num sonho de certeza.) Do momento em diante deste sacrifício de um só, nos amamos – vigência de lei. Quer saibas, não saibas (por ser deus escuro), 281

no teu vaticínio estatuo o que sei: nem mundo, nem zero, nem fato, nem falha, nem causa, pecado, nem porta fechada, nenhuma heresia, desmancham este sal. Teu gosto, meu gosto, Teu verbo, meu verbo. Teus males, meus males. Teu bem, meu também. No risco do pacto sem sangue exarado, me explico um destino, me sagro de deus: me aumento e me estrago. E, fincado no chão, me empresto o teu manto e teu cetro – e me ganho, me ascendo e me apago, me faço outro irmão. Que há muito eu me esperava, prometido (de há muito eu me esperava redimido), porque resguardo um sonho de certeza, e... • ...quando o sono vier, dormirei sobre as rosas do teu corpo, oh deus semi-vivo aniquilável apenas no cansaço do meu sopro. Quando o sono vier, remeterei meu tempo ao teu desgosto – e todo gesto meu descreverá teu ato em cima do meu ato. E desfarei – quando o sono vier – os sonhos em verdades. E despirei as fábulas contidas na imensa desmentira do teu rosto. Com olho rude e vidrento, sereno e cru – meu olho inocentado – não tingirei de açúcar teu retrato: sangue e sal – que o verei no seu feitio desnecessário existente sem sentido. Teu rosto vago, neutro, fátuo: Nada. Teu rosto endereçado: tudo, tudo, Tudo. Quando o sono vier. 282

LUTO E haja só amizade verdadeira de uma caveira para outra caveira, do meu sepulcro para o teu sepulcro?! Augusto dos Anjos Tu crois que c’est l’oiseau qui est libre. Tu te trompes; c’est la fleur... Edmond Jabès

 Nous nosso que estais aí. Certificado seja o vosso numen. Vosso reino é devir. Só é feita a vossa vontade, de aquém da terra a além do céu. O não nosso de cada dia, data hoje também. E desprezais nossa dúvida, assim como sonhamos nossos devedores. E não nos deixais ser além de tentação. Nem nos livrais de todo bem. Que ao menos me livreis de mim...  Um soco. No meio das costas. Não na cara. Entre espáduas. Seguir à frente. É assim. Mesmo.  O guarda. Descerrou os ferrolhos. Do lado de fora era prisão: também.  Nem medo de morrer. Nem esperança disto. Duração. Duração. Para não vencer. Apenas resistindo ao vencedor. Ao pretenso.  Lembrando de trazer o poder máximo. Que já se traz, de nascença. Nado. Tido de graça. Contra qualquer opressão. E contra todo amor (ou prazer desmesurado). E contra toda desmedida dor. O poder de morrer.

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 Luto. Os trajes. Que variam com a cultura. Mas a veste que o descobre: as cores do arco-íris. A graça não tem cor – é brisa, leve. O luto: tudo aquilo que mancha, em tinta vária. Toda cor...  Luto. Um soco no meio da cara. Do outro. Que não atinjo. A morte já o pegou. Por detrás – e antes – do meu soco.  As mortes de fato. E aquelas que inventamos. Tua presença me empurra. Tua ausência me inflama. E esse pudor de esquecer o que nós fomos.  O ser amado e essa faca escondida no estômago. O inimigo e esse beijo embebido no escarro. Um judô descarado. Unha a unha, cada garra.  Uma estória de amor: “Adeus! Às armas”. A cicatriz na canela foi topada tua – sem querer, naturalmente. Do modo que mais doem, as caneladas.  No museu. Ou na praça. Querias saber se de pedra a tal estátua. A vista enganava, Também o liso tato. Bateste nela, com teu punho cerrado: e era. Agora a mim, a mim, a saber do meu jeito. A cada golpe teu, aprender do que sou feito.  Não chorar pelo morto. Agredi-lo. Violentá-lo. Talvez um golpe no umbigo dela, dela: Amorte.  Alegria. Corpo a corpo. De mente. Te amo. Te armo. Te dano. Te... Amor. Amor-te. Alergia. O inter-dito.  Crer em não-ser: todo poderoso. Criar dor de ser e nada. Ter seu nosso filho, senhor só. Concebido como espírito. Nascido no “castelo da pureza”. Padecido sob o poder de

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uma verdade. Sacrificado. Morto. Sepultado. Tombou, e no mesmo instante ressurgiu na morte.  Assim o digo, no último dia desta vida. Cada dia é o último. (Nunca houve o primeiro)  De luto, luto. Pelo que sobra: a falta.  Tiroteio: os aços do cuspe. Corpo-a-corpo: cutiladas de sexo. Não fujas. Qualquer lado é o mesmo. Alado. Não fales. O sentido é calado. Diz apenas: falo. Não o digas: fá-lo.  – Saltarei do teu pulo. – Pularei do teu salto. Queres que eu te ame. Mata-me.  Voou, e está sentado a qualquer lado de não-ser todo poderoso. De onde há de jogar a inocência viva ou morta. Crer no espírito? Na (santa) casa do ser? Na comunicação dos existentes? Na remessão dos pedaços? Na respiração da carne? Na vida, eter-na-mente?  Penso? Logro sou. Disso, luto. A-B-C-luto.  Um soco. Na boca do estômago. Para ver se ela fala. Pois que a outra só mente: de verdade. Cala! Kala. Possa a víscera servir ao São Silêncio.  Sun Tzu (“Toda arte da guerra se baseia no logro”) da guerra foi artista.  Queda-de-braço. Quéde o abraço? Luto. Sempre o mesmo. A bater-SE.

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 – Dores? – Douro! – Porisso é que te bato. Te martelo. Te bigorno. Te cinzelo. Depois de estares morto. Esculpindo o escopro contra o cadáver que sempre foste. Sempre fomos.  E tu, amigo, tu também foste ao jantar de Epicteto – com tua “pobre alma carregando um cadáver”. E como te serviste?  Newton: o branco é a mistura de todas as cores. Mentira. É o preto.  Um chute. Nas glândulas. O modo certo de atingir a nova sede. Lesar o futuro. Alterar o desejo. Mas pego no teu pé – estrago o teu percurso. Te mando para o inferno aonde moras. Não te sigo. A cada qual seu próprio fogo. Jogo é jogo. Me mandas para o amor que me persigo. Que me persigno.  Te amo: pelo meio. Me amas: pelo meio. Duas metades não fazem um inteiro. É preciso somar zero. Por este número, lutamos. Nosso amor, essa guerra. Te amo. Te mamo. Te dano. Te anodôo. Me envenenas. Não te domo. Enquanto isto, morremos. Porisso, colorido, nosso luto. Nossa luta o engalana. Claro engano.  Mas seria preciso – essa facada? E no entanto havia, anterior, uma ferida. Mas seria preciso – essa facada?  Não brinques de Zeus, Diós! Que tu também foste cortado ao meio. Vamos brincar de crianças. Que elas não esquecem o que cortamos delas. Mesmo quando não cortamos. Mas não ligam. Nem falam. Não reclamam.  – O Mestre mandou a gente saber. Portanto, saibamos. – Saber o quê? – Não sei. – Vou te bater por isto. – Então nos batamos. 286

 Luto. Apanho. Como dizem os profanos: “Levantar. Sacudir a poeira. Dar a volta por cima”. Não há cima. Então... dar a volta – e ponto.  Estou todo ferido. Um machucado só, todo o meu corpo. Intervalo: agora vou tomar banho. Depois, quero vestir todas as cores: me dá meu robe preto.  Vamos brincar de bandido? Eu sou o mocinho. Primeiro eu te beijo. Depois tu me bates. Assim ficamos quites. Pegas o teu cavalo. Eu, pego uma doença. Assim ficamos pagos. Aí tu vais embora mexendo no teu banjo. Mas eu, fico, escrachado. Aí você vai sumindo lá no fundo do finzinho. O filme vai morrendo no ziendi: No outro filme eu me vingo.  Vamos brincar de marujo. Tu, tomas o navio. Eu tomo a âncora. Enquanto corres o mundo, eu seguro este porto – para que ele não fuja. Nunca regressas. Nunca parto. Talvez nos encontremos.  E no entanto há o mar: a flor e o passarinho. Tudo vive no mar. Tudo tem guelras. Nadamos. Nadamos. A gente nada. Todo mundo nada. Tudo nada. Nada, nada...  Vamos à praia. Vamos ao mar. Nadamos? Eu tento te afogar. Tu tentas me afogar. Vamos lá ver quem ganha. Não vale. Já nos afogamos. O mar sempre ganha. Eu luto. Mas. Em matéria de luto, o mar tem mais manha.  O mar é preto.  O mar. A mar. Pássaro marinho: peixe. No herbário submerso, tudo é flor. O resto é – só – mais mar. Ar: mar vaporizado. Terra: mar solidificado. Éter: mar sublimado. Pedra: ultramar, ônix. O mar. A mar. Toda estrela é marinha. Negra. Não existem cometas... 287

 Ave marinha. Cheia de graça. Seu humor é conosco. Benvinda entre as mil feras. Benvindo é o fruto no nosso dente. E sus! Planta marinha. Mande o deus rojar por nós, pegadores. Agora que é hora de nossa morte.  AMEM!

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DEZ SOMETOS DE OMOR

Por UM CORPO rendi (lição) cifras e códigos, patemáticos signos raros e inconstantes. Por um corpo sofri, de sobresser, montante que recambia dádivas em troco pródigo: o desejo lustral a transferir seu fio, não de linha, de faca. Letra em boca hiante no semi-balbucio, só bestificante, de cortar o dizer que só deflui se rio. A mais, líquida fonte desmedida (ou vaga)! Não luz: galáxio-sóis em nuvens escaldantes (E a boca que se beija – a si – pensando chagas...) Lição de ser não-ser. Lição do fraco forte. Lição de transdecência – pelo esbordoante. Por um corpo escrevi – leixões de amoremorte.

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PARA NARCISO, lâmina de faca lisa, sem cabo, sem metal e fio: corte sozinho que a escansão perpassa o entre-miragens, face à luz do rio. Aja o que haja como raio ou acabado Farol que, sem retrato, ri e/ou chora nas margens do exarado e grassa por toda brecha de palavra ou cio. Àquele Vórtice, só letra, sem sentido, lei da eterna teia, umbigo disso que fala (que só ele o tem), tudo agradeço por havê-lo. Sigo pela deriva do seu leme. E nem, por causa d’Isso, vou de bem comigo.

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Tua voz veio DE LONGE e feriu meus ouvidos. Por isso sei que existes no eco de eu ser mudo. Não és ninguém nem eu: és justo esse a,b surdo, de haver palavra – e só por ela haver sentido. Tua lei chegou de longe e firmou meu contrato. Por isso sei que mandas no ato de eu ser máscara. Não sou ninguém nem tu – apenas sou a casca de um outro a quem me opões mostrando o meu retrato. Tua grei ficou de longe e orçou meu latifúndio. Por isso sei que fazes, de eu sozinho, povo. Não somos mais ninguém – somos não mais que um ovo: – que rola, sem quebrar, por cima do gerúndio? – que rola e vai quebrar na quina do gerúndio? – que rola e vai gerar gerúndio em ovo novo.

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Arme-se e ouça-se, por alça, mira e cano de água da morte em mar de unguento rude e fulvo que, aço fundido, ferve, em bolhas de atro sangue soprado ao vácuo a que se atira, nada, e some. Sonde-se, ausculte-se o respiro à geologia de ásperos sonhos, às camadas, pedra a pedra tersos. E os óleos minerais que afogam o poço em cuja sêde tosse a séde de outros olhos. Nunca se tragam nem se exvomem os eros nulos; zeros de dantes de facada, golpe, nome, marca, panfleto, telefone, lei, coreto, pedra talante, plinto, abóbada, zimbório, aonde a mestra do horizonte, em risco e talho, escreve a letra, escreve a letra, a letra, A LETRA...

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PASSEM os agoras ou bem ágoras estreitos e claustrofóbicos. Depois passem os leitos só verticais acomodando-se nos jeitos do sono vértigo, de pé, dos parapeitos. Passem as lousas ou bem lápides, estelas por onde a firma grafe o grifo destas eras: límpidas, lúcidas e lépidas fabelas de vagarosas e letais pretas estrelas. Passem os sóis, de obnublados chãos, por eitos de cuja lavra não brotasse mais que reza desde a infecunda e vagabunda terra tesa. Passem os lagos respelhantes por sabê-las, as parições das aparências, só refletos pedras e sol, praças e sono, avós e netos.

293

DO OUTRO LADO DO MURO não há mesmo nada: só Nada – cujo nome, é claro, não é Tudo. E tudo existe, só, é para aquém do muro, embora haja uma brecha aberta na argamassa. Qualquer que seja a transa em que nos engajarmos, nosso gozo é de chão – e o céu é uma miragem. Podemos aspirar por mais que sacanagens? É tudo que podemos – se não as pirarmos... Boca na boca, mão, boca no vão, na coisa, em frente, atrás, em cima, em baixo, vice-versa, olhos nos olhos, furo a furo, coisa a coisa... É tudo permitido – menos o assassínio. Não vale recorrer: devagar ou depressa, jamais nos venceremos – somos dois domínios.

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LIÇÃO DE ANATOMIA não define mesmo nada que à nossa gana acaso se esclareça. A dissecar um corpo, perde-se a cabeça e não se ganha mais de que trinchá-lo a esmo. Subditos Ao que fala em vãos do corpo escasso, nem seres nem não-seres, existimos entre e, qualquer que seja a marca que um de nós frequente, à outra não se vai somente por cagaço. O séquito dos anjos faz o nosso sexo (questão que nada tem de apenas bizantina). Por sermos entre, nós, podemos fazer nexo sem rosa e sem azul, sem menino ou menina, sem carne e sem postiço: a falta é nosso amplexo qualquer que seja o modo em que se desafina.

295

CHEGA DE AMOR – que os ódios mais fecundos nascem, crescem, florescem, frutificam é à sombra dele mesmo – e se trumbicam as intenções mais lindas deste mundo: aquelas que só levam para o inferno aonde o amor espera, pelo avesso, as ganas paranóides do começo, pra repeti-las em retorno eterno. Nossa hora é de Lei, de afastamento, de corte sem costura, de respeito, mais pra mesura que pra sentimento. Possa o amor impossível – só depois – pra além da Lei, ganhar um novo jeito: de dois não fazer um – mas fazer dois.

296

E não que eu seja assim – porém porque frequento justo lugar do meio e em cujo vão me apago quando me pedes que te escute como um lago, pra além de mim, onde a corrente faz o vento. Então me torno opaco. E pouco se me dá que creias nas imagens que te dão prazer, que adores as figuras que te sonhem ser – pois que separo, os aparatos, do que Há. Mas é raro o momento – e escapa, esfeito em água, por entre os dedos que só guardam sua conta como o resto sem cor de uma esquecida mágoa. E não que eu seja assim, porém por ele haver não como ESPELHO aonde o olhar enfim se encontra, mas onde cada olhar, de vez, vem se perder.

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Lúbricas, tênues, lânguidas, melífluas, enroscam-se AS NEREIDAS, nuas, lácteas, aos fustes das colunas relevadas nos vértices dos píncaros conspícuos. Negras e duras, líticas falésias bruçadas sobre o pélago soturno, qual precários bastiões que mal seguram das ninfas as vertigens, se retesam. Contudo se abrem pálpebras e cílios à divisão da nesga de horizonte que cabe a cada estúrdia maravilha. Quando se rasga a bífida corola, mal vale o caule estático no monte, pois o cume do abismo é que as invoca.

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REVIRÃO

“No começo era o Verbo e o Verbo se fez carne” entre nós e o seu germe – neutro, sem sentido. No começo foi tarde, ao passo que era cedo que o lance acontecido adivinhasse o caso de fissões e degredos que se desenhava. Entre nadas, o escasso afez-se à partitura dos sonhos que sonhava uma Fortuna ausente de intentos e bravuras e projetos trágicos – e só por acidente condensando formas e distinguindo o fático e exarando normas. E uma Lei primogênita e já necessária se inscreve sobre a argêntea capa dos espelhos, separando almas várias, sem réplicas gêmeas (de acordos e conselhos, mas nenhuns empates), ligadas por algemas mal adaptadas. Almas duplas que batem, em bífido relógio, tiquetaques do Nada de onde se evadiram, enquanto a sobra e o nojo as não separam ainda na díade que aspira um contingente NÃO, antes logo da vinda de Outra Solidão. E haja o que houver de sério ou de fortuito alinho, manda A LEI que um mistério (nunca resgatável) exerça o seu fascínio sobre o incompatível (por isso tanto amável quanto incomitente), por força do impossível, logo: desejado. O efeito o-be-di-ente disso que se passa resta (de eterno) atado, por não-todo o sempre, à causa que o traspassa como escusa falta que esquece o que a relembre e memoriza o olvido, à espera da mais alta queda de sentido.

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Manda a Lei que o segredo escrito em seu ditado me lance além do medo à margem do meu risco, sujeito, embora alado, à vez da minha sorte azada no petisco de um desejo tido por Outro cuja morte me condena à vida. E um golpe consentido estala minha cara em brecha repetida em duas não-metades: uma pouca, outra rara; uma agente, outra ativa; um lado não tem grades, o outro é sem abismo – e de ambos me cativa o alterotropismo. No entanto, me transfixa, o cravo desse nome, na táboa que prefixa o afã dos meus dizeres com o tom da letra afone que me denuncia à fonte dos prazeres que me foi vetada no gume desse dia que me escande a fala. E escorre, declinada, a veia pulsativa, lambendo, sem gastá-lo, o sangue de Outra carne, com a língua morta-e-viva de onde os meus sentidos se encontram sempre tarde e se perdem tão cedo entre amores cosidos, rombos de degredo. E aqui, mora o perigo: nem tanto o de Amar e desavir comigo, nem tanto o de Ser e só comigo estar. Que para estar comigo, não devo me perder nem devo me encontrar. Que para estar contigo, não devo me conter nem devo me espalhar. Nem círculo de giz, nem vento sobre areia. Nem mero zumbi, nem animal feliz. No caminho do meio, entre o agora e o aqui, meu risco é na deriva do leme que me veio de outra voz ativa. Pela força do NÃO que levo e que conheço, bem sei que Revirão passei, que cambalhota, tecendo pelo avesso a lã do meu destino, me virando na porta entre duas cidades 300

em comércio contínuo, embora que contrárias: recíprocas saudades pagando-se com graças de verves arbitrárias e óbolos impuros. Por isso imponho à praça o prumo do meu passo trôpego e firme e duro e tíbio como o vosso – humilde no que faço e altivo no que posso. Nem por isso resgato a dívida de Nada que assumo por recato (e não por covardia) – como um cheque assinado, apesar de sem fundo, que um outro sacaria, à vista do meu tédio, por cobrança do mundo à minha permanência; cobrança sem remédio e justa, por juízo, em função de anuência com que espero o troco, segundo o meu batismo na água desse rio cujo verbo translouco exprime a minha sorte na conta que eu confio paga pela Morte. E mais não posso, e devo então, por consequente, que cindir o que levo, à vez de cada jorro, em contrárias vertentes, de paixões opostas, entre as quais fica o morro da minha nascente, entre as duas encostas do cristal da fala: uma desce, outra ascende; uma afirma, outra nega; uma diz, outra cala; uma aprende o que larga, outra arrisca o que pega. E, para ambas as partes, é a outra que consagra o que numa se arenga no resumo das artes do meu ser capenga. No entanto ela se move, a fala, e EU com ela, empós do que comprove a falta de sentido inscrita na janela aberta pro Vazio – mas falta com partido, o mais particular, no bloco de eu sozinho: logo, probatória do nome que vou dar ao furo do repórter que estampa minha estória em letra cuja firma, carimbada na porta em que me reconheço, 301

é meu passo por cima e por baixo da estrada do direito e do avesso da minha jornada – é meu passe por dentro e por fora do vão do avesso e do direito do SIM pelo NÃO.

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DOIS Cada faca tem dois gumes; cada gume, dois acentos; fora o punho onde se assume a ponta e seus movimentos. Cada fogo tem dois lumes; cada lume, dois alentos; fora o chão que se consume em cinza, fumaça e vento. Cada faca é o resultado de um recorte temerário. Quem governa a ponta e o cabo nos trajetos do seu talho? Cada fogo é consequência de outro incêndio que já grassa. Quem começa essa presença ardente em minha fumaça? Cada faca tem dois gumes; cada gume, dois acentos. Cada fogo tem dois lumes; cada lume dois alentos. Dois gumes da mesma faca me rasgam num rombo só – costura que se arremata nos laços de um mesmo nó.

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Dois lumes do mesmo fogo me queimam num só clarão mais vivo no sol que morro na sombra do mesmo vão. Dois acentos de um só gume farão meu discernimento para além desse costume que prende o meu pensamento. Dois alentos de um só lume dirão que tenho razão dentro e fora do tapume que cerca o meu coração. (Dois lumes em cada faca. Dois fogos em cada acento. Dois gum’ escandindo Nada. Dois nadas em cada alento.)

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AELA Ou cedo ou tarde a Morte se apresenta. E, sem alarde, roçando a tua espádua em calafrio, fará de um só momento o resumo cabal do teu fastio. Se tu não morres por esse só contato, contudo escorre do teu bojo enfartado de ensimesmo, sem nojo e sem recato, o sangue de um vampiro ali surpreso. (É o mênstruo azul do cio da cadela que mora ao sul da sorte que não cabe na garganta de quem só fala dela sem jamais lhe tocar a vulva santa.) Mas se morres então, eu te olho mas não morro – senão por um tostão que perco para sempre do meu cofre. E sei que é sem socorro meu ver que nem mais-morres nem mais-sofres.

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KALUDA

(O Nando e Eu)

...não é mais belo do que o rio que passa pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que passa pela minha aldeia. O rio que passa pela minha aldeia se chamava Paraiba que fica para o Sul, como o Tejo, isto é, para o sul de algum lugar que para mim o situa. É esse rio já que consta que nascido – eu – naquela planície desses índios tidos então por malvados e que tanto amei, só porque os detestava. Mas o Tejo acaba sendo o rio que passa pela minha aldeia porque exijo de volta a fundação que algum dia obtive. Não se trata de modo algum de qualquer origem, nem digamos paraibana nem tejana, apenas fundações. De qualquer Homem a origem é no futuro, aquele que desde sempre já estaria por vir, naturalmente que trazendo a felicidade, aquela que terei tido no futuro anterior de algum talveztalvez: naquela terra, daquela vez. ♦♦♦ O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia: primeiro indício de que o inconsciente se torna consciente. E este exercício de desrecalque tem dois estádios: 1 – estádio Sócrates: só sei que nada sei. 2 – estádio Sanches: nem sei se nada sei. Vão se catar, shifaizfavoire! ♦♦♦ Digo e repito incessantemente o que o homem comum não pode entender nem pode mesmo escutar: a morte não há. Mas há esse interesse fissurado em cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, que prova o gosto de água daquela que nem ao menos virá.

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♦♦♦ E pior do que o teu é o meu Destino de nem ao menos ser o de para sempre guarda-livros, pois que me empenho em desfazê-los, rasgálos e dispersá-los para fora de vez de qualquer biblioteca a fingir conservação do que se fez, fez, fez... ♦♦♦ A vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! LESMA LERDA ♦♦♦ Aí estamos ambos frequentes, obscenamente frequentes, mas decentemente só para nós mesmos, nos martírios (que há) mais sutis do que os registrados como de santos e outros tolos eróis. ♦♦♦ Nós dois meu caro, nós duas minha descarada, aves fascinadas pela ausência de serpente, ansiosas como angustiados pelo desejadíssimo objeto não havente. ♦♦♦ Portugal é minha pátria. O Brasil é minha mátria. A língua portuguesa é minha frátria. Se é que alguém me houve. ♦♦♦ Órfãos da Fortuna, velut luna, lua volúvel nem pra menos nem pra amém.

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♦♦♦ Como se vê, tenho demasiada consideração pelos outros. Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Quanto mais, escrever! Isto é, para os outros imediatamente, segundo a senvergonhice fúnebre e festeira sobre as chagas de um morto. ♦♦♦ Nossa Deusa se chama Kaganda landanda. A Deusa da renúncia que é libertação: não querer é poder, como você disse porque sabe. Seu nome oriental é para nós acidental ocidentado. ♦♦♦ MERDA! SOU LÚCIDO ♦♦♦ Fornicar é preciso? Saiam desta argoputas e argonautas, desta vida de Pessoas. ♦♦♦ Da superfície da Terra faço um plano o mais qualquer: seja o dito de projeção, que retorço e torturo à minha bela vontade. Que me bastaria então para orientar-me. Abano águas com as mãos, de modo a enxugar um pouco o chão do Atlântico. E me ponho a encostar e roçar, boca com boca, anastomose, a foz daquele Tejo no estuário do meu Yba. Beijo de línguas – a mesma aliás – em fornicação bem molhada, uma na outra cuspindo e cuspindo a portuguesa desatada. A portuguesa é quantas línguas? Plural como Pessoas. Mas, ali, duas gozando, em seu fêmeo roçado.

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♦♦♦ Encostar na do Tejo o Yba erigido e eriçado (das flechas do tesão daquelas índias) numa cópula safada de emendar aquelas águas. Então navegarei – como é preciso – lado a lado sem saber jamais por onde passo desta àquela gosma delicada. Ou colar costas brasílias lá no colo d’ África, como aliás nos atemos enrabados? Mas Tejo e Yba, numa transa cruzada. ♦♦♦ Meu piropo infinito atravessa o Haver a buscar um infinito gozo. Corre e corre e ameaça esbarrar no impossível. Mas Não-Haver se recata e se mostra essa causa do Tesão Absoluto desse infinito baralho. E por fim eu espero – sem saber daquele que, Sujeito, abismado entre Haver e Não-Haver, o chamamos pelo Nome todo novo: o Deus felacioso sem beatas e sem padres. ♦♦♦ Declaro que somos gêmeos – capricornianamente, como é claro. Apesar de eu ter chegado depois de tua partida e, sobretudo, de sermos os dois assim quase que antípodas horoscópicos. Pertencemos inelutavelmente à raça dos navegadores e dos criadores de impérios. Pouco importe ao nosso desprezo e à nossa indiferença se reconheceis os trajetos de nossas rotas poderosas, ou se avistam o terreiro desse império glorioso que por debaixo dos fatos nós terçamos. ♦♦♦ De pé, teimoso, num passeio da Rua dos Douradores, espreito para o quarto andar por detrás da janela onde encontrasse um vulto de pessoa que me afirmasse só ares. Os passantes me espiam entre desconfiados e assombrossos. E eu garanto que o vejo a cada vulto que faz sombra na vidraça lá do alto. E me esparramo felizmente nos sossegos campesinos da cidade, Lisboa luminosa, onde o campo, como um vento – aqui tão fácil – nos invade. E aqui mesmo, nesta rua, posso ter bom sono. Mesmo de pé e teimoso na espreita do compadre. 312

♦♦♦ Então passeio pela Lisboa que tem dono. Nenhum Rei, ou Presidente mais afoito. O seu dono é o Nando, como sou eu, seu irmão gêmeo. Sim. Eu também era daqui outrora, antes ainda de como hoje regressar estrangeiro, a cada passagem, nova para mim que seja, velho de mim, e hóspede da estrada. ♦♦♦ Kaluda. To Kalon. Ludus. A beleza do silêncio. A beleza do brinquedo. De mãos dadas por Lisboa, vamos eu e o Nando, na maior sacanagem, produzir nosso silêncio. Mas não qualquer silêncio. Eu disse: o nosso. Sacanagem portuguesa. Como um beijo de língua. E outras sutilezas. ♦♦♦ No tempo de Lacan, esperava-se que o racismo viesse do futuro. Bons tempos aqueles, né não Nando?! ♦♦♦ Kaluda: pornologia transcendental, tratado poético dos gozos insuspeitos, linguística aplicada às felações do cérebro. Cozinha exótica do moluscoso das vulvas e dos falos pés de polvos. As al-faces e os al-moços. As al-famas e os al-tares. Dá-lhes boa! ♦♦♦ Que não esqueça o leitor que o que aqui se descreve é falação de analisando. O que somos: Nando e eu diante das ouças escancaras dessa Cida, nossa ad eternum analista.

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♦♦♦ Cida ou Sida, como a nossa amada praça da Rossio ou do Rocio. Aparecida. Cida. Ou Sida. Aparessida. Aquela que nos leva à síndrome que nos dispõe. Da qual dispomos. ♦♦♦ SIDA: Síndrome de Indiferença Dialética Assumida. Ou CIDA: Coeficiente de Indiferença Dialética Assumida. NOSSA SINA. Para Duchamp a sua Rrose Selavy. Para Nando e para mim nossa Amanda Aparecida (ou Aparessida). Mesmo assim: em ménage à trois. O seu nome francês é Aimée Selamor. NOSSA SIDA. SUI CIDA. Nossamor. ♦♦♦ KALUDA!!! ♦♦♦ E outra vez conquistemos a distância. Do mar ou nossa, mas que seja outra. Porra! ♦♦♦ E outra vez conquistemos à distância... ♦♦♦ NAVEGAR É IMPRECISO

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♦♦♦ Todos os dias Cida lê pela primeira vez a Ode Marítima com o seu dedo médio da mão direita, muito delicadamente carregado por cima do rosado grelo por maciúras ocultado. E ela sempre termina terminadamente, chegando junto com Nando ao termo do poema e da des-Sida. ♦♦♦ De pé no cocoruto em mármore da Minerva Cida aí presente, esse, o tenebrário corvo de Poe Poe. ♦♦♦ Só ficamos nós dois. E, entre nós dois, esse tesão que temos no terceiro que não houve. E na terceira que não ouve. ♦♦♦ Querido Nando. Você morreu tão jovem! Eu, não. Já faço hoje, dez anos mais do que você. E nem tivemos o tempo para sermos amantes. Cheguei só depois. Mas, deste século, pude curtir as três décadas do que me coube: cinquenta (anos dourados); sessenta (sacanagem geral); setenta (pensamentos gozados). Daí para cá, merda muita. Não sei o que ando a fazer por aqui. Ainda. Esperar por Dom Sebastião, quer venha ou não. Mas depois de tanta, é claro que ele virá. Que pariu! De algum lado ele virá! A revirar. Um Revirão. ♦♦♦ Às vezes te imagino a ler de pé, em voz alta, bem à frente da Brasileira do Chiado ali onde te puseram sentado de castigo para sempre no teu bronze – os papéis do dessossego. Iam te linchar de imediato! Por muito menos, aqui, hoje, tenho pago bem caro alguns pecados. 315

♦♦♦ Tenho pena desses garotos que adolesceram para cá de oitenta. Vão viver uma vida, não de cachorro mas, de iena. E nem ao menos vão ficar sabendo disto. Que pena, né não, Nando? Ou não? ♦♦♦ Seja o que for, não é nada que valha a pena que meto no tinteiro da encarnada alma que assombra de medo. ♦♦♦ Quem quer que se envolveu com esse horror, nenhum sabe melhor do que ninguém o que ouve para aquém da morte certa: mal ou bem... gozo ou dor... ou mito... ou meta... ♦♦♦ Também eu a tenho: a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. Fora o Homem com’Um. Que só aparece por aqui de vez em quando. ♦♦♦ Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. E aí é que a coisa pega! E quem quiser passar além do Cabo Não, vai ter que se lembrar do seu tesão. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o seu. ♦♦♦ Mas nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena. Severo. Imperador de Romas. Severíssimo, posso lhe dizer: Omnia fui, nihil expedit. Já fui tudo, nada vale a pena: Vão todos se foder! 316

♦♦♦ Histeria das sensações – ora estas, ora as opostas! RIVER RUN (Endossamos, Nando e eu, a homenagem de Joyce que queremos para Walt Grande Libertador.) ♦♦♦ Mas em compensação, todos os anjos são como tu, ajudantes do guarda-livros do Haver. Falanjos arranjados no rojar e no jazer. ♦♦♦ E temos que aprender de vez por todas o sentido-crocitar do corvo Nuncamais. ♦♦♦ É o mênstruo azul do cio da cadela que mora ao sul da sorte que não cabe na garganta de quem só fala dela sem jamais lhe tocar a vulva santa. ♦♦♦ O bare female male-body such as a god’s likeness to humanity! ♦♦♦ Para onde partiram as caravelas? Para o espelho? Ou a ele contrário perfurassem? Ou dele vindo e indo? Qualquer percurso é mesmo e vário. Ser vário é ser contrário, simultaneamente – e aportar o ocidente no oriente, foramente. Ou Índia ou índios: dois extremores da mesma desesfera, desespero de igual circunferência. A-mor-te. 317

♦♦♦ Para a obra que há que prometer ao nosso esforço alado em si, convoco todos sem saber: É A HORA! AQUI! ♦♦♦ Sou natural desta só ilha, vera, em cuja cruz ilhada habito o neutro em ponto, na interseção dos braços repartido. Sou da cor da placenta brasilada na seiva desse lenho que amentou galeras – bravas – de virem, por mares nunca dantes, buscar mais e mais sangue – embora que (ou só porque) pintado. Sou mesmo dessa cor, herdada de uma árvore – dita da vida e bem-e-mal e morte – que em outro paraíso arcou-se em desejada – a impossível, cujo fruto não há: só cor: de sangue? Cor de verdade: cinza-muro, branco-chave, preto-furo. ♦♦♦ Para Narciso, lâmina de faca, lisa, sem cabo, sem metal e fio: corte sozinho que a escansão perpassa o entre-miragens, face à luz do rio. ♦♦♦ Mas quando quererás voltar ó Nando? Quando é o Rei? Quando é a hora? ♦♦♦ Maioria silenciosa. É assim que se diz. Mas dela se fala demais: daquela como que sem voz. A esperar que porta-vozes, sufragados ou não, a venham resgatar. Agora não é mais, silenciosa: revirada ao contrário. Não só fala, deblatera – por zil bocas de tevês e de jornais. A quem melhor pensar, mais silêncio. Só o que há por agora a se fazer. A obra de arte por excelência. Suprema filosofia. Única prova de cura. Sublime beleza. Silêncio absoluto na múltipla água de uma única e calada voz. 318

♦♦♦ Passem os lagos respelhantes por sabê-las, as parições das aparências, só refletos pedras e sol, pragas e sono, avós e netos. ♦♦♦ Apoiado em cotovelo, como Europa, fito o Tejo com meu rosto Portugal. E diviso funambulante sobre a linha mirabolada do horizonte, o navio do erói. E ele vem de se esgueirar entre Cila e Caribdes; entre as Cachopas e o Mastro; entre as cordas nos pulsostornozelos e a cantada nos ouvidos feitos foz. E veio achar depressa o seu remanso na Utopia – no entanto Real. ♦♦♦ Torre de Belém. Quero molhar a minha cara nessa água de onde zarpara o meu tesão. Mesmas águas, mesmo chão. Quem foi que a Heráclito ensinasse o sonho errado? Mesmas águas, eu repito, mesmo chão. ♦♦♦ E não que eu seja assim, porém por ele haver, não como espelho aonde o olhar enfim se encontra, mas onde cada olhar, de vez, vem se perder. ♦♦♦ Cumpra-se ALEI. Que assim se escreve: A♦Ã (Leia-se: Haver desejo de não-Haver) ♦♦♦ É o que me sonhei que eterno dura! É esse que regressarei. 319

♦♦♦ E um místico vislumbre chama o que, no plaino trespassado, vive ainda em nós, longínqua chama – O Desejado. ♦♦♦ PARÁ YBA: O FALO DO MAR ♦♦♦ Sou nascido e sou vivido à beira desse rio. E desde que tomei da água dele opaca, um verme me habitou: igual ao rio aonde habito à margem de quem sou. ♦♦♦ TEJO TEJINHO TEJÃO ♦♦♦ Chega de amor – que os ódios mais fecundos nascem, crescem, florescem, frutificam, é à sombra dele mesmo – e se trumbicam as intenções mais lindas deste mundo: aquelas que só levam para o inferno aonde o amor espera, pelo avesso, as ganas paranóides do começo, pra repeti-las em retorno eterno. Nossa hora é de Lei, de afastamento, de corte sem costura, de respeito, mais pra mesura que pra sentimento. Possa o amor impossível – só depois – pra além da Lei ganhar um novo jeito: de dois não fazer um mas fazer dois.

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♦♦♦ O MAR É PRETO ♦♦♦ Não foi para servos que nascemos de Grécia ou Roma ou de ninguém. Tudo negamos e esquecemos: fomos para além. ♦♦♦ Infernando Pessoas. No plural, como qualquer de nós. Mas somos tão poucos os que se sabem vários. Sua multitudo não faria decisão. Politicamente meio inválidos perante a ditadura da maioria de qualquer democracia com vontade de poder. ♦♦♦ Vamos brincar de marujo. Tu, tomas o navio. Eu tomo a âncora. Enquanto corres o mundo, eu seguro este porto – para que ele não fuja. Nunca regressas. Nunca parto. Talvez nos encontremos. ♦♦♦ A MORTE NÃO HÁ ♦♦♦ Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso. Nada é inteiro. ♦♦♦ E o nosso erói veio estreitando pelo Gibraltar, fez volta pela costa e entrou na lisaboa para no Cais Absoluto de A1is Ubo a fundar.

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♦♦♦ E devemos ser éticos sozinhos, e pilotos vizinhos da loucura, pra ocupar sem usura esse lugar impossível de estar-se funcionário. Lugar do Solitário que é mais só: o artista de dar nó nos pingos d’água que chovem das anáguas da Sem-Hora. ♦♦♦ Por espadas e penas se riscando, na pele da morena intida terra, assinaturas de aspirado gozo. Torrão moreno em solitário orgasmo. ♦♦♦ Vou entrando Lisboa. Não de barco, de avião. Cá de cima, de primeiro, passo a mão carinhosa na cabeça, cabecinha do Bugio do farol. Aí o Tejo se estreita como por um efeito de esfíncter natural. Mas logo se larga e se alarga me dando a lisa-boa onde tem cais. ♦♦♦ Erros de português. Ilha de Vera Cruz: um erro de português. Rio de Janeiro: um erro de português. Zilbrazilbrazil: um erro de português. Mesmo assim o poema se fez. ♦♦♦ Eu que escreve o seu vazio como pauta do horizonte. Eu que goza como rio... (porque a foz é a voz da fonte).

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♦♦♦ E eis que a arte analítica do humor só se faz no frescor da contingência, na borda da emergência desse evento que sopra, de momento, em nosso olvido, não dicas do sentido, mas proezas por cima das defesas dessa rede sempre estendida, adrede, sob o fio de faca, em bamboleio, onde arriscamos nossas perdas e danos por um beijo da Deusa do desejo e da fortuna. ♦♦♦ Meu canto é de ter certeza por memória que me pesa. Sou a tocha antiga acesa que a mão reveza. ♦♦♦ Nosso silêncio é uma nau com todas as velas pandas. Ela vai. E vai para enfim descobrir os descobrimentos. ♦♦♦ Que tu sejas a retorta de onde destila o meu ser. Em flagrante delitro. Podes crer. ♦♦♦ Aquele Henrique, infante assaz desconfioso – e inventor de uma estatística safada. Foi ele que, de lá do promontório cimo, por delírio regrado, desvelara essa terra inconsciente – e que a outro, a descobrir, menos faltasse.

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♦♦♦ Um eu mesmo, de outro nado, és meu rosto pintado em painel descorado e rompido e contudo... O meu repouso em ti pousará no suspenso semi-desejo de tê-lo por sonhar-te porto. Pois em ti o irmão gêmeo perdi que não nasci. E me vieste sem vir – porque és só prometido. ♦♦♦ Nando. Você não sabe. Depois do Moderno veio o Pós-Moderno. E depois deste já está vindo aí a Pré-Merdona. A qual se seguirá rapidamente da Merdona propriamente dita. Só depois então se inventará um novo Século. O qual vai morrer de rir desse delírio que chamamos Vinte. ♦♦♦ U-tópico U-lisses amarrado ao mastro. Ouvidos destapados. Escutando as Cachopas alopradas. Experiência sado-masô inesquecível. Se rasgando nas cordas. Dizem que a língua portuguesa é neolatina. Populacho do Oporto que a falava já do latim tirada. Isto não é a verdade. É tudo pelo contrário. Foi U-lisses quem ensinou ao Tirésias local, antepassado do Nando, a língua das Cachopas que o comeram vivo lá no Mare Nostrum. Aí os romanos a aprenderam e tanto com o tempo a deformaram por influência dos gregos, que ela virou o latim dito vulgar que a sua gente então falava. O qual se tomou mais tarde clássico, justo por causa do pedantismo incorrigível de alguns romanos grecisantes. ♦♦♦ Nos ouvidos de U-lisses a VOZ ABSOLUTA

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♦♦♦ HÁ O HAVER (A) O NÃO HAVER (Ã) NÃO HÁ E viajar ainda é viajar, e o Longe está sempre onde esteve – em parte nenhuma, graças a Deus! Graças a Nós e adeus! ♦♦♦ E tudo em luz tracei com bocejos exatos de esperar sono e sonho aos pés do Rei de Lei. ♦♦♦ Quando o sono vier dormirei sobre as rosas do teu corpo, oh deus semi-vivo aniquilável apenas no cansaço do meu sopro. Quando o sono vier, remeterei meu tempo ao teu desgosto – e todo gesto meu descreverá teu ato em cima do meu ato. E desfarei – quando o sono vier – os sonhos em verdades. E despirei as fábulas contidas na imensa desmentira do teu rosto. Com olho rude e vidrento – meu olho inocentado – não tingirei de açúcar teu retrato: sangue e sal – que o verei no seu feitio desnecessário existente sem sentido. Teu rosto vago, neutro, fátuo: Nada. Teu rosto endereçado: tudo, tudo, Tudo. Quando o sono vier. ♦♦♦ Você já leu meu livro do não-A-só-cego? ♦♦♦ Sabe o que se deseja? Só se deseja não desejar. O resto é pura resistência à absoluta interpretação.

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♦♦♦ Lembrando de trazer o Poder Máximo. Que já se traz de nascença. Nado. Tido de graça. Contra qualquer opressão. E contra todo o amor (ou prazer desmesurado). E contra toda desmedida dor. O poder de morrer. ♦♦♦ Tua presença me empurra. Tua ausência me inflama. E esse pudor de esquecer o que nós fomos. ♦♦♦ Vocês já imaginaram se o Nando fosse Maomé? Então eu estaria... como se diz? É... fo... racluído. Felizmente que o Nando não é o Grande o Santo o Divino o Verdadeiro profeta. Mas será que isto baste para impedir que queiram, mesmo assim me matar? Já expliquei que só falo assim porque o Nando é mesmo meu gêmeo e meu compadre. ♦♦♦ DE LUTO, LUTO. PELO QUE SOBRA: A FALTA. ♦♦♦ E preso ao mastro, escutando a cantada das Cachopas ao pé dos seus ouvidos, e elas lhe metendo as línguas pelos buracos de orelha, U-lisses amarrado implorava desesperadamente que lhe soltassem uma das mãos pelo menos, para tentar socegar o seu piropo hiper-tenso. Mas elas não deixavam. O queriam a chegar ao seu terror extremo. E chegou. Mesmo. O sumo lhe escorreu sem toque e sem espremo. E dizem, marinheiros, que do chão do convés inda colheram quase um 326

copo. E o leite foi guardado para a cura de Penélope – que já andava engilhada de esperar tanto tempo. Que um banho desse bálsamo desenruga toda a pele. Talvez lenda. Talvez facto. ♦♦♦ Cada faca tem dois gumes; cada gume, dois acentos; fora o punho onde se assume a ponta e seus movimentos. ♦♦♦ Meu Revirão, segundo Nando e eu, é a fórmula mesma desse que Homem foi chamado. Que já quiseram morto. Também é a fórmula do próprio Haver aonde encarcerados habitamos. E onde pelo topo um Deus se conjetura – e que também quiseram morto. Como é que pode? Pois a morte não há, nem para Deus, nem para Haver, nem para Homem, conforme eu declaro e como Nando ex-citara: “neófito, não há morte”. E pronto. ♦♦♦ O teu nome se conjuga no gerúndio. No modo mesmo do Haver e do seu pleno-movimento. Haver Fernando. Fernando havendo. Nando... ando... vendo... endo... andoendo fingidor. Completamente. ♦♦♦ É meu passe por dentro e por fora Vão do avesso e do direito do Sim pelo Não. ♦♦♦ Haver desejo de não-Haver. Eis a Alei. E esse desejo é nosso pathos. Desse desejo somos todos patos. Submissos à vertigem inelutável desse ímpeto. De um rasgo de ir além de tudo, de passar além de Deus, e, abandonando o gládio e o escudo, galgar os céus. E pra depois dos 327

céus ganhar o impossível, onde, é assim que nós pensamos, se projeta a Grande Coisa, capaz talvez de saciar a nossa ânsia rouca que nem cessa nem não finda. Pois. O mar tem fim e o céu talvez o tenha. Mas não a ânsia de Coisa indefinida que o ser indefinida faz tamanha: do tamanho do Nada. ♦♦♦ Pra você ou para mim são CINCO IMPÉRIOS ♦♦♦ Manda a lei que o segredo escrito em seu ditado me lance além do medo à margem do meu risco, sujeito, embora alado, à vez da minha sorte azada no petisco de um desejo tido por Outro cuja morte me condena à vida. ♦♦♦ Tesão do Rei da íbera grandeza, em não perder seu sonho em falta à guerra, que cumpria, dizendo junto a Papa de ser sua, em Deus e Natureza, essa costa alisada em dorso de donzela. ♦♦♦ Meu Revirão se encontra bem por toda parte. Melhor porém em você, meu caro Nando, do que em qualquer outra parte. É porque somos da raça dos reviradores que, por mares nunca dantes revirados... Pois.

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♦♦♦ Adolescente, eu te digo: surge! Se ajuntem tantos pela praça, deflagrados na maior das folias: de geração que já nasceu de todo amor e toda raiva despejada. E mandem embora para o avesso das palavras as aparências desse espelho que não foi notado. E o verbo vero se conjugue, até que algum passado se declame num gerúndio. E se passe da morte sob o arco, íris no horizonte. Quando? Muito. ♦♦♦ Soldados não, mas sacerdotes, do Quinto Império. ♦♦♦ Há o que há – que o verbo Haver nomeia bem sem melhores retratos. E o que não há, não há, como está mesmo na cara. E o seu não-Haver desdenhando filósofos, só lhes coçam as polpudas papadas por causa das rebarbas, que eles portam, de cultura delirante e desbragada. ♦♦♦ O séquito dos anjos faz o nosso sexo (questão que nada tem de apenas bizantina). Por sermos entre, nós, podemos fazer nexo sem rosa e sem azul, sem menino ou menina, sem carne e sem postiço: a falta é nosso amplexo qualquer que seja o modo em que se desafina. ♦♦♦ Ou muito pelo contrário. Passados oitenta e noventa, talvez um outro tanto mais, quem sabe nos virá um Revirão irado, mandando para o lixo das histórias este século vinte desgraçado. Era de delírios e fracassos. De grandes sonnhos mal formados e ainda piormente realizados. Nazismos, comunismos, desejismos e psitacismo idiotas. E ciências tão loucas. Filosofias tão roucas. Racismos convencidos. E a conquista da grande liberdade para usar ou não usar alguma touca. 329

♦♦♦ E historiadores assim chamados, caro Nando, têm a cara-de-pau de falar em Primeira Guerra Mundial e em Segunda Guerra Mundial, como se não fosse claro que só existe uma única, a Perene Guerra Mundial, etc. e tal. ♦♦♦ Oh Nando, Nando, Nando! Entre Haver e não-Haver, a mole da indiferença é uma saudade de pedra. E, a qualquer momento, é uma angústia recente; onde entendo que antes de mim eu já partira outrora, tanto faz dantes quão futuramente quanto agora. E eu repito o teu reputo: O CAIS ABSOLUTO ♦♦♦ Grécia → Roma → Cristandade → Europa → a Verdade (que morreu Dom Sebastião). Amãe → Opai → Ofilho → Oespírito → Amém. ♦♦♦ O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado, insensivelmente evocado, nós os homens construímos os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira. O Grande Cais Anterior, eterno e divino! Grande Cais como os outros cais, mas O ÚNICO

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♦♦♦ E nós dois, nos cagando de medo, caro Nando, do medo ancestral de se afastar e partir, o misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo, e também por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco e nós viemos esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo que nos assina portugueses atirados de Sagres para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível – que não-Há, mas que queremos assim mesmo, por sermos tão perversos quanto o Deus que quisemos desenhar em Revirão. ♦♦♦ Gregos e Baianos. Turcos e Romanos. Judeus e Indianos. Cristãos e Africanos. Nipões e Muçulmanos. Me dêem já a descarga nisso tudo para a cloaca da História. Nós somos só-depois. Nós somos os Bacanos de um novo Pã para além dos Espíritos. Na sede dos Améns– que fica bem no meio da Praça dos Restauradores do Além (mar ou qualquer coisa). ♦♦♦ Lá no Alto é onde mora Santa Tereza (não a Terezinha, mas a Terezona). Haja vista ao Convento do Carmo. Não é por nada o terramoto que sacudiu aquela proa. São Jorge, do outro alto lado, fica só espiando, espiando, por detrás das ameias, para além dos canônicos. E você pela Augusta vai rasgado entre ambos. Entre Convento e Castelo indecides os teus passos. ♦♦♦ Para Walt! Para Walt! Se não assim eu gó...! ó! ó!

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♦♦♦ Ai, Nando! Esta nossa senvergonhice de nepotismo! O teu cadáver jazz no meu colo (reversado) como sendo o meu Antínoos. E eu levanto Lisboa como o monumento ao nosso ardor danado. Para a perpétua evidência futura do meu amor e da tua beleza oferecidos à nossa divindade. E vamos ambos senduvidamente para os arquivos da Estória. Aos gritos desatinos de desesperados: Love, love, my love! Thou art already a god! ♦♦♦ AVENIDA DA LIBERDADE Hein Nando? Mas é o cúmulo da nossa ironia! ♦♦♦ O elevador da Santa Justa nos ascende ao céu do Carmo. Depois nos cospe juntos para a Rua do Ouro. A César o que é de César. Adeus ao que é de Deus. Vendidos e comprados, somos só mercadorias mal negociadas. Que este Século não dure! Que nossa voz não se apague! ♦♦♦ No Martinho da Arcada, sento no teu lugar e encomendo o teu bife. Como o gosto mudou! De lá pra cá, as sensações se mesclaram – e só guardamos teus bifes nos bolsos dos teus textos. E então eu desisto. E me despacho a pé ao McDonald’s de D. Pedro IV. ♦♦♦ Significante mesmo é dinheiro. O resto é tudo significado. Por isso é que o dinheiro é belo – para mim como para o Nando (sobretudo porque jamais o teremos tido).

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♦♦♦ Do Terreiro do Paço faço o quintal da minha casa. E penduro minha rede entre as duas colunas do seu porto. E tiro todas as minhas perdidas sonecas, a esperar teu regresso pelo paquete que não parte. ♦♦♦ O Tejo é mais belo do que o Sena. Disto não há menor dúvida: é uma banalidade. O Tejo é mais belo do que o Tâmisa. Disto não há menor dúvida: é uma trivialidade. O Tejo é até mais belo do que o Nilo e tão belo quanto o Amazonas. Disto não há menor dúvida: é uma obviedade. O Tejo é mais belo do que o Hudson, do que o Potomac, do que o Charles, do que Mississipe, do que o São Francisco, do que o Etc. e do que o Iang-Tsé-Kiang. O Tejo é tão belo. O Tejo só... (dacapo)

Nota * Fragmentos de um livro inacabado, em dispersos fragmentos, sobre os fragmentos do que eu possa ter, Haver, com os fragmentos do Fernando Pessoa. 333

S’OBRAS (1982-1999)

THE SUN OF A BEACH Purgando os recalcantes batistérios, pudesse a inteligência mais arguta, frente ao grave prestígio do “mistério”, se outorgar claridade absoluta. Só há o Haver (e não-Haver não há) sem mínimo “mistério” que o garanta – só isto tentariam concertar as demandas daquele que se espanta... Contudo, nada vale, mesmo o Nada da radical Indiferença posta, em caução de conforto à nossa estada. Nenhum Bem, nenhum Mal, nos salvarão; nem os ouros da vida, nem a bosta. O jeito é dizer Sim – mesmo se Não.

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FASCINORANTE FEIÚRA M’eduza, Ponom, se é que tu podes depois que a tua cara-de-pau já não faz o meu rosto de pedra: porque me viro em magistral catoptria antes ainda da tua celenterada queimadura. Me rio, de janeiro a janeiro, janusado e sem paralisia, dessa tua careca pseudo-rastafari (a peruca de cobras) e da tua mordida de banguela com falso veneno de urtiga. Sua porca pelágica, acalefa, gorgonha, hidra de merda, craspedota, água-morta, alforreca mesquinha, beleza anti-marinha, fascinorante feiúra! É que Eu sou Oespelho, aquele que se-vira, a carne-muito-viva que revira, mais transparente do que a tua gelatina: o feitiço e o feiticeiro, o mistério postiço, o pornada obrigatório e o pavor do dentista. Porque sou Opoeta, no que sou também séssil: não me medas nem me usas; não me entendes; e te eclusas.

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(Recreio, Set/98, para Jussara)

PARA QUE HÁ PRECES #1 NOUS nosso que estais aí. Certificado seja o vosso Nume. Venha a nós o vosso Reino. Só é feita vossa Vontade, de aquém da Terra a além do Céu. O Pã nosso de cada dia nos dais hoje. E desprezais nossas dúvidas, assim como só perdemos nossos devedores. E não nos deixais ir além de tentações. Nem nos livrais de todo bem. Que ao menos me livreis de mim. Para o Amém.

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MEMORANDO Por favor que me queiram com tempo esquecer completamente inteiramente absolutamente qualquer que tenha sido o timbre do meu transe Que alguns restam por tempo longo ou muito longo nas lembranças Ninguém porém melhor ocupa a memória das mentes do que os esquecidos Que daqueles se recordam muito ou pouco alguma vez alguma gente Mas que destes todos lembram sempre sempre sempre: pelo seu grave e absoluto olvido No centro da memória se erige alta e perpétua aquela dura estela De onde todos se apagam os nomes dos banidos

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ILHAS Ossip Mandelstam é o nome de um lugar onde as pedras crescem como árvores E assim se arvoram como torres e outros pétreos vultos góticos Donde essa vilta rochosa do seu corpo proturbano sob um rosto de górgone E essa esturra nudez dos rinoceros Esse nome difícil é o de uma ilha: do famoso Arquipélago de Osmares São dezenas talvez ou centenas quem sabe São milhares Igualmente assim pétreas, rochosas igualmente, igualmente gravadas por uns riscos – de pesares, de torrentes. Torrentes de pezares. De prazeres, de gozos E armadas igualmente de esculturas, patetônicas e arquitéticas... Tantoutras, têm seus próprios duros nomes, mais ou menos semelhantemente convulsivos, mais ou menos ilustremente conhecidos Ou desconhecidos Mas igualmente bordadas dessas lajes grimpantes Se de estratos diversos, catedrais inacabadas Onde eu possa, no dia, sentar-me, também pétreo, para sempre, em brusco parapeito Desde onde afitar – eternamente – o soluto horizonte Por meu pranto de grifo e meu canto de gárgula

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MORAL DO SURJEITINHO Repugna-me a pertença. Só resto de passagem. Como ousa um mero hotel me exigir chamá-lo pátria? Sou cidadão da indiscernível. Só moro onde me gozam. Só gozo onde me aparam. No-mais é só-sonho de sonâmbulo. Grande delírio de-ambulatório. E deontologia de funâmbulo. (Todos os Santos-Finados/92)

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SOPESADA NA PAUTA sopesada NA PAUTA se que ornada cada réstea, seu número, por grama no lugar de quem conta porque chama fora adentro a tricúspide porrada rio do leito que me aspera a carne se, com fragores, sobressume o hiato reconduzindo o cume do abstrato à estercolínea condição que a sarne se outra vez outra moda faz ultrage, descompasso, tropeço, disfonia, na pulsão do que se age e se re-reage, há recurso, ao não-Há, que reinaugura a singularidade dessa via de possibilidade de uma cura

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REVEZES DA MINHA SORTE Revezes da minha Sorte, minha Vida, Paixão e Morte, dedico aqui e agora ao meu amor possível. Quem sabe se a você que mais, ainda, não me vê e nem me escuta, mais, ainda... Entanto eu te ofereço, Anjo, o albardo canto, Prova Real do eterno amor em que me espanto. Veramor de falanjo, como eterna flor. Rosa dos Ventos azuis do sonho antigo da minha direção, do meu sentido, azulescente rosamar rubro-marinho, incandescente azul celeste rosamor.

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SE QUERES BEM Se queres bem viver, morre primeiro, Se queres bem dizer, primeiro encontra teu silêncio – mas que não sejas mudo, Se queres bem comer, degusta primeiro a tua fome com requinte gurmetista, Se queres bem foder, primeiro não te masturbes, nem trepes, te esfrega em tua angústia, Se queres bem ouvir, primeiro fica surdo para ti, e depois para o mundo, Se queres bem cagar, jejuarás primeiro, até que possas expelir teu próprio corpo, um pouco por teus furos, Se queres bem ver, olha primeiro o teu umbigo, até que, ali, desistas de encontrar... o teu rabo perdido.

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REMORDENDO A RARA ESCUTA REMORDENDO A RARA ESCUTA / DO ANEL QUE A TRAZ QUANDO PISCA/ FAZ-SE A FACE E A FACE AFAZ-SE / À QUE ACOSSA AO GOZO E AO ASCO / OLHANDO A FRUTA QUE A FITA / COM A BOCA VORAZ E POUCA /

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DADOS OS SEXOS DOS ANJOS FACE A ECAF TRANSAS COM BI-NAÇÕES MASCULHINO vez e lugar como ocupar um rio azul em sangue o sol desejo só grito de amor a mão no punho e o chão nos pés

de haver por decidido províncias do horizonte mergulha em rubros mares se esvai no céu distante no rombo do silêncio nas cores do semblante espesso da gadanha de amado e não de amante

FEMINHINO vez e lugar como ocupar um rio azul em sangue o sol desejo só grito de amor nada que valha aos pés sem chão

de haver por decidido províncias do horizonte mergulha em rubros mares se esvai no céu distante no rombo do silêncio nas cores do semblante o ganho desprezado da suspirosa amante

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ANJO DELTA lá depois do sol detrás do céu pra além do mar existe alguém de rosto incerto e braços de abraçar a imensidão do sentimento e o pensamento de um lugar aberto ao léu fechado ao mal depois do além que é longe e perto aonde os anjos vêm comer na mão dos querubins assim... vem pra onde eu quero te levar no meu caminho pelo ar depois do sol pra além do mar ah vem voar! minha asa delta é o teu lugar debaixo dela eu vou chegar depois do além ou não chegar jamais lá... não não é chegar que me dará o meu lugar é voar pra lá... 348

...depois do sol detrás do céu para além do mar nesse lugar fechado-aberto eu quero te encontrar na imensidão do sentimento e o pensamento de chegar a ser alguém que pode amar um ser afim de rosto incerto e braços de abraçar nuvens e ventos e o sem-fim assim...

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AVE ADÃO! Não chores, meu filho; Não chores, que a vida É luta renhida: Viver é lutar. A via é combate Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos, Só pode exaltar. Gonçalves Dias

Não chores, meu filho, não chores – que a vida “vencida” ou “perdida”, foi tudo que tens. Se a vida é combate, no fim dá empate: nenhuma vitória se ganha de vez. Não tomes a vida por mero pedaço de um bolo de aço que queres comer; pois todo sucesso foi menos que um verso que escreva o teu Nome, se o sabes dizer. Não chores, meu filho, que a vida só erra. Ninguém ganha a guerra – não é por querer. Ser fraco ou ser forte, depende da morte que a cada momento terás que viver. 350

Não creias em Tudo – por bem ou por mal – pois Nada é igual debaixo do céu. Apenas defendas, de amada ou de amigo, guardado contigo, o amor que se deu. Não chores, meu filho; Não chores, que a vida foi toda vivida se sabes sacar; se sabes, sozinho, dizer SIM à vida “vencida” ou “perdida”, se a sabes contar. Mas todo conselho não muda o retrato que vejo pintado do teu malviver. Pudesses olhá-lo sem esse resvalo que trazes nos olhos de não querer ver... Tomara me ouvisses... No entanto concedo saber que o teu medo razão tem de ser. Por isso debates teu corpo em quilates no grande mercado do paga-pra-ver.

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Conheço que transas de todos os lados teus dias contados com muita noção. Que vendes recados, prazeres e estragos, com muita malícia, com pouco tesão. Mulheres por homens? Te importa ninguém, se todo o teu bem foi deles tomar. Um amor só de sexo Prescinde do nexo Que aos outros favores se pode cobrar. Somente requeres recibo assinado por cada pecado que vais cometer: de modo a poderes justiça fazeres no foro relapso do teu malquerer. Não chores, meu filho; que és bravo, que és forte, que és filho da morte... ...que aos outros revém – por fracos, fajutas, – viados e putas: conforme sustentas julgando-te alguém.

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Não curas que há outro, por mais juscelino que seja o teu hino de democração; por mais figueiredo que seja o teu ledo desejo de teres teu povo na mão... Se pedem teu voto de cumplicidade com alguma saudade de não viver só, respondes ao povo mostrando o teu ovo, mandando prá merda, dizendo: “aqui, ó!” Que queres teu bolso repleto do esperma das fúrias eternas do avilto metal. Que és filho da puta, que partes prá luta descaradamente, com gã sempre igual. Que, mesmo se amado, desvias das graças e quebras a taça do brinde legal. Que nunca declaras amores que amaras se a tua amizade não fosse letal.

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Que és lindo e maneiro, queimado na praia da fímbria da saia da mãe tropical. E que essa beleza te vale na presa que acossas na caça do São Capital. Que tomas na bunda cobrando dobrado; que assim ficas pago, etcétera e tal. Que, desse dinheiro, resgatas o cheiro cabal de boceta que pões no teu pau. Contudo “resguardas” teu nome paterno, tentando conter, no teu jeito de sério menino-família, teu sonho de milhas roubados aos mortos do meu cemitério. Mas nós bem sabemos que a tua família só vale por ilha do teu se-esconder. Cometes um crime? Cagaste o sublime? – defendes à dela dever pertencer.

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Renegas a jaula que finges que és contra, porquanto, pilantra, só queres somar. Mas quando te ferras nas cínicas guerras que tu mesmo instigas, já a chamas teu lar. Mas dizes, sem pejo, que transas rasgado de todos os lados; que és belo, que és forte, que as “honras” retiras de um grande qualira dos dias gonçalves, por cujo recorte tamoio nasceste, com gana de bravo, sem marca de escravo (“portanto” Senhor). Com o quê, tens direito de dar qualquer jeito na pública forma do nosso penhor. Subdito ao sucesso que a sorte reiúna subtrai da fortuna das massas falidas, aos ócios te cegas e almejas, sem trégua, vencer as batalhas da guerra perdida.

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Rezando nas missas, gritando nas praças, teus votos reaças de vã salvação, te esqueces da morte, suturas teu corte, mascaras com vidro teu roto culhão. Demandas mais verde que o verde das matas que tu mesmo matas por lucros seguros. Teu sonho ecológico é mais necrológio da tal “natureza” que vês no futuro. Sem saque adequado da tua postura na fala insegura furando as certezas, não vês que a quem fala – que escondes a cara na areia do mundo – não há Natureza. Teu fumo nos bofes, teu pó nas narinas, teu álcool na língua, teu pico nas veias, não fazem milagres – por mais que consagres teu tempo e dinheiro ao desejo que odeias.

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Só fumas defesas, só bebes coragem, só tens prá viagem bolinhas sortidas. Só trepas por vício, só gozas por picos. Não vives teus sonhos: cafungas a vida. Teus magos atletas nos grandes estádios, têm gols como gládios e bolas por feras. Embora o eufemismo sem sangue, um fascismo do mesmo regalo repete outras eras... Não chores, meu filho; que assim bancas macho (com todo o esculacho que já conhecemos). Teu “povo” mais rico de pão e de circo, terás no teu sonho de dono obsceno. Sodoma foi casta, Gomorra foi pura, perante a fartura da tua gandaia. Vendido ao que há de só publicidade, teu gosto sem marca nem tem própria laia.

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Ninguém vê o enterro da tua quimera, se bem que uma fera devore teus bagos. Se a lama te espera depois do já-era, na boca do beijo depões teus escarros. Navios veleiros pojados de negros têm menos degredos que o teu traficar. Se a tantos restara vergonha na cara, na LEI do começo te iriam enquadrar. Meu Deus, que desgraça! Meu Deus, que bandeira! Que tonta rameira sacode no pau? Andrada, retira-a! Colombo, com ira, recobre a vergonha que abril seu Cabral! No riacho se ouviram tal grito e o brabejo de alguém que o desejo soubesse escutar, já, ao berro do louco fizeram de moucos, venderam-se à ordens de tal “bel-estar”.

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Estrelas ouvindo, deliro, pasmado, divino recado por tudo que eu ouço. Pois, nítido, vejo, no triz de um lampejo, luzir o Cruzeiro no céu do teu bolso. Fernando Pessoa morreu, de cansaço e sufoco, no espaço de exíguo quintal; bancando o Izaías, denúncias vazias cuspindo na cara de um vil Portugal. Cobrando distâncias longínquas perdidas e ousanças sumidas da gente de então, do tempo em que a Glória só dava a quem mora num Outro planeta e com rara moção. Meu Deus, que países são tais, onde a Glória não tem mais memória e, com nulos tesões, tá dando a “poetas” que mais são atletas de praia ou jornal ou só bons maridões?

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(Mancada nenhuma vai mais verdadeira do que essa besteira de ser escritor que só tem por obras sovacos de cobra lavados com prêmios de puro favor). Camisa ouro-e-verde que à brisa balança morrida esperança de ser como um véu-tapume do lustro postiço dos bustos de heróis esculpidos em mero ouropel. Já vou pra Pasárgada morar com Outro Rei que saiba que a Lei confere um Lugar; que saiba que a fama difere da cama, por justo fonema que a língua nos dá. Vem cá, Liberdade, desdobra essas asas por cima das casas que apenas escondem, sem fala e sem voz, as sombras de nós, apenas borrados projetos de homens.

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No céu, mais estrelas, nos bosques, mais flores. No chão, mais amores que em outro torrão. Recrio, por isso, num tal paraíso, meu novo boneco e saúdo: Ave Adão! Não chores, meu filho; não chores, que a Morte talvez mostre o corte que trazes na mão. E, aos filhos vindouros, os veros tesouros talvez se demonstrem por Outra Razão.

Gregório de Mattos Psicografado por Magde Noeme

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DEMAIS POEMAS (1974-2013)

13.II.CINZA E absolutamente incôngruos com as asceses Que delineadas pelo pórtico das Sombras, Desenham-se bem nítidos montões de escombros No deserto das públicas moções díspares. EiaEia! E de nadanada se se adianta, No que concerne ao acerto de uma louca luta Travada na exasperação do Campo Gnoma. Sejam filhos do Pai ou bem filhos da Puta. Irmãos na torpedeada Sorte da Fratura, Cumprindo amódio mau&bom de sacanagem, Vão levando este Império numa duradura. Vamosver vamosver adonde vai dar Merda A coalizão das forças na total Besteira: Se A Coisa vira Santa ou só revira a Fera.

AmÓdio ReVida Na comemoração do seu dia, assim cantou a Ralé para o Profeta: Paraléns a você nesta data perdida. Muitas dificuldades, muitas mortes em vida! Mas se esqueceram do peso da Matéria Escura.

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TZVIETÁIEVA Querida desamiga: parece não, mas somos parecidos paracidas. Mas eu não se matei menina ainda ou já de comedida. Aí, onde querque não esteja: beijinho no Iessê, recomendações ao Maiaka. E pra você o meu rijo tamanho de partido. Utopia? Um tapinha mas que dóidóidói. E logo aviso que também me recuso: “Devolvo a Deus a entrada”. Eu também EU.

POEMA DADÁ Eu já ri, já ri, já ri, Do Nome do Pai Ubu

MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E TRÊS O Paraíso sim existe. Com certeza se presume. É a flor da menininha, treze anos, mulatinha. Inda sinto, nos meus dedos, seu perfume. 366

LE TEMPS ADVERSE En el centro puntual de la maraña Hay otro prisionero, Dios, la Araña Borges Para o Cadáver Esquizo. Em desamor e dessideração.

I LE TEMPS A DU VERSE J’ai vu le Logos, instalé dans la pupille, Conduire tous au temps en réseau de rétine. Cent fois de mille cents de cent fois de vues qu’embrassaient le Tout débouchant sur la vie; des fois de le-même en spires placides, polémiquement s’instalant chez le vide, gonflaient les entrailles des cités du monde avec la pâture des dieux de la ronde. Il était de la chair (pour ma raison la folle). Il était du néant (pour ma vision lucide). Se portant dur et molle, il brûlait dans l’humide. Du soleil dans la lune – engendrant l’androgyne.

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II LA CHAIR Ô Vénus! Ô Vénus! Je t’aime avant le Temps – dès l’aube de Phallus. J’ai bu le sang de châtrure dont ta chair m’est venue trop désirabe: il m’a rougit les joues, il m’a rongé les jambes. Il m’a rendu du Néant – pourtant châtiable… Cronos! Dieu de mon laps! Ô Promenade! Tu m’as donné Vénus. Tu m’as volé mon glaive. Mais j’ais volé ton vol et ta focille volage. Aîon! Ô Dieu-Santé! Ô Paturage! Je suis là! Je suis là! (J’ai du métal et j’ai de la chandelle.) Je suis trop las – mas je m’emporte aux anges.

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III LA ROUTE Il est propre de la route (donné qu’ailleurs on la déboute), s’ensevelir dans la retraite jusqu’alors quand l’heure est nette. Il se peut que – voix sans fil –, sous nos pas vains d’affair pueril, nous reprendrons l’ancien message de la route en son voyage. Les lointains se font mirage pour remonter le cours des âges. c’est qu’en haleine est fait Le Chose à reprendre dès qu’on ose. Retenu, l’amas d’années (si nous n’osons pas les osers), que sera-til dans le grand Temps? Peut-être, la route est vent...

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IV PENTAGONE Parce que l’Araignée n’a pas subi la loi de son poison propre, Dans la voile de son foyer lithique, elle danse le ball des heures liturgiques. Elle est belle, parce qu’elle n’as pas le douteux humain visage. Elle s’en va sûre, et exacte et géometrique, dans sa feinte de main, son pas de siècles, plus au delà de la boucle du verbe: où se cachent les ombres des dictées magiques.

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V OEDIPE Le Sphinx ne peut qu’arguer d’une seule question, quelle qu’y soit la formule qu’on la prête. Une (seule) réponse est vraie pour l’âpre enquête d’où tant de nous prendrons du Ouï par Nom. De quelle question s’agit pour nos aveugles soucis? Dans quelle réponse à nous s’avère l’assurée promenade au sein de mère, dont la Terre aux sillons sous pas de fleuves? Donc demandons Oedipe, le sans oeil (parce qu’il les a donnés pour bien le voir), malgré son Tirésias, malgré son deuil. Pour survivre à le Sphinx, nous dit le Roi, ne songez pas à l’HOMME. Car mon seuil a eté trop mal compris: tuez le Moi.

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VI DÉFAILLANCE J’habite Hasard, la floue maison du jeu, dont la fortune m’a donné tel nom, tel visage, et tel droit d’un coup-de-dés, du quoi j’en fasse un Moi pour dire le Mon. Les dieux? Ils sont des nains trop minuscules, don’t la chance a paru le démoniaque qu’entoure le clos d’écheance où me basculent des directions lointaines – trop chère chaque. Dans ce vague éternel au jeu d’échecs, Il y a prix à payer pour tel pari (ou peut-être à gagner de mon souci). Pendant l’enjeu, masquer la lutte avec les odeurs d’une flûte, en bois de rose, incapable et du poème et de la prose.

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VII DIS-COURS SUR LA PEAU DE RÉALITÉ Est ce que nous nous bretons sur l’hommeour de peau-peau? Est ce que je t’aime si profondement: dans le complet parcours de ta surface (de la peau de ta sûre farce)? La géographie de nos corps est danse; pas dense de souffrance, mais de face, vis-à-vis du point de vue jusqu’où Personne a monté. Est ce que je t’aime d’une hauteur suprême: ta peau (trop peu) pour problème... Tant pis s’il n’y a pas de pas sûr pour franchir la seule instance (que nous nommons la distance pour ne pas aller trop vite: notre meilleure perversion).

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VIII FRÈRE D’HÉRACLITE Fils du Feu et de sa Sagesse cosmique, je m’emporte au dessus de Je, sous le royaume de la gourmandise des rouleurs de toupies et deplaceurs de pions. Quand je suis un enfant je fus ce que je serai d’auparavant... Car le Temps ne s’accord qu’aux sûrs vents qui souflent au delà de l’envie et au dessus des champions. Ma bouche a decelé des morceaux les plus tendres de maison, car le ventre il a faim de patrie, car la tête elle est pleine d’azur et de nuages, et dans le coeur songent les clés de la saison.

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IX QUI? Qui est tu là dedans que m’en serres en frappant? Qui es tu là dehors que m’en erres tout’alors? Qui sont, vous que me direz par là même de mon verbe, les vacances de Moi-Même pour cet Autre que m’avère?

375

X TU ES -ÈRE

π

Et sur ton bras je leverai la tête de cet ange. Et dans ton coeur je plongerai la clef de cet âge. Et de tes reins je ferai les piliers d’une parole. De ton anus caché je bâtirai cette écluse aux marécages dont ta bouche, au plein air, au plein jour, elle sera le dompteur plus jeune et sage, en gardant les ouvre-rages de l’École pendant le vol d’oiseau des hauts messages: le nocturne grenier de la luxcide vérité.

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XI L’ÉPREUVE DU DÉSERT Est, pendant l’était du sera Il l’Est Où-est. Sommes vains dans les veins. Sillons sur mères. Thalassage: vient zillons sur mères. L’être a lettres à lester. Ou ouester où est tiers – vers le quatre. Nous, sommes: sommez. Sonnez sûr nier soumier sous mieux. Faute de mieux: dormir, rêver. Re-voeux: Ailleurs – soud milliers. Allons: à l’ER… La dieuté des dis-eux. On songe. Songe-on? Donc. Du père à la vipère. Vit, Pére! Mon Vit, mon Pére! Nom: Pierre. Il erre. La pire ère. Ô prière! Quoi V.G.? Je veux Ça voir. Demandons nous les grands maires? Non: pas les maires, pas les gras mères. D’après la grammaire, Les mères sont pas la mer: sont amers. Elles sont pas la mère à… mais la mère de... 377

Nous nous voulons le pur-pure: l’or et le roux-je sans peur, sans père. Fièvre sans ivre fin: paisible, paix ivre de rue en. Car je suis né em ferme. Champs en gnangnard. Lent heure du gnomon sol-air lumiterre. Mais il nie à queue de sable, deserte paine insule, basculant de joissance. Joue sans ce que le flatte, fleau gestique: la flûte flogistique de la flotte flibustière réussite. Non voulons voulons Ça voir. Est-ce que Ça lutte? Salut, Savoir! Donc, dans le fleuveraclite, les petits poissons: les ables, dont les petits pois sont le sable Donc…

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XII ÉCHAFAUSSAGE L’ère de Saturne a rapproché les dédains souterrains des sorcières hableuses à la puissance centripète des heureuses fées. Cependant, les fleuves couleront (sans héritages, mais doués de fleurs magiques d’aumône) par des véritables clairs de lunes que se reflètent dans les yeux de sable. C’est que tout s’écoule en y versant pour page les chaînons détranchés de la dernière bravade qui a composé les larmes à la plus amère Femme. Car l’amertume et la douceur là se mêlent, mais sans nier le faux échafaudage (bâti de nerfs, en réseau sans cadre) dont le mentir est le Temps privé d’horloge: L’ETERNEL ORAGE.

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DOZE NOTAS DE VIAGEM (SEU PER-CURSO) OU DOZE MARCAS DE TRANS-CURSO (CABOTAGEM)

O ATALHO PELO TALHO DE ANTES DA FALTA E QUEDA DESSE CORPO AO MAR DESERTO: “O CORPO DE (UM) DEUS, VIVO E DESNUDO” SAUDADE DE SUTURA.

E PARA ALÉM DO MURO DE UM CENÁRIO AONDE EM BERÇO E CAMA, ARMADO EM TEIA, O DRAMA SE ACENTUA.

PENSANDO A ANTIGA CHAGA AOS GESTOS QUE DENEGA: MEMÓRIA DE OUTRO CORPO EM TODA ENTREGA.

TRANS-PASSE QUASE MAGO. PELA IMAGEM. PÓS-TRIÉDRICO TRAJETO (DO ANTES) AB-OBJETO.

E A SOMBRA DE UMA PARTE NOUTRA PARTE. EM SOMBRA/SOMBRA ABOLE O LADO CERTO.

EIS QUE O DÉSPOTA SE ALINHA NA CURVA DOS PLANETAS. O HORÓSCOPO DOS CASOS RASGADO O DENUNCIA E PRENUNCIA CURSO ABERTO.

O CAMPO SE CONSTELA EM MICROFORMAS DANINHAS. E O REI QUE SE RETRATE.

E SE REFRATE PELO CORPO DA TERRA.

PARÁBOLA GRIMPANTE, DELIVRA, A ROTA ERRANTE. DAS TRÊS MANCHAS DE CARNE NA DERIVA.

NO TREM DA CABOTAGEM (SEM SEGREDO OU PONTE) TODO O MAPA SE ALARGA E SE DISPERSA.

POR LEQUE MULTIFÁRIO COLORIDO, O ESPECTRO VIBRANTE NO HORIZONTE.

NO ARCO ÍRIS SEU CORPO DE GIGANTE, O ACOIRIZONTE (DESSE COSE-E-RASGA).

OFERTA DO MEU MISTÉRIO poesia ultrapassada (1952-1965)

OFERTA DO MEU MISTÉRIO Vos entrego o meu mistério e o segredo que me é vida. Só posso contar de sério a coisa que me é sofrida. São reboliços de gente e inefável de linguagem fundindo na minha mente a suigênere paisagem. Mas há que senti-lo, sê-lo, pois mistério que é mistério, todo é de um, não de dois, Mas tecendo fio etéreo realizado em comunhões. pode espargir-se a existência pelos outros corações capazes da mesma crença. Ao que o queira, toda me abro, difícil, a compreensão; possível no que duvido, principiando onde acabo e finda... bem não sei não... que o sentir é tão comprido...

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HOMEM Nasce Cresce Vive (Ama) Cria ou consome-se: Murcha ou floresce. Depois – simplesmente – Fenece

RESOLUÇÃO Na mão deixei suspensa a roda gigante de vento em loucura.

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TRANSCENDENTAÇÃO Agora me aventuro em teu segredo sem laços de promessa ou sustos de surpresa. E desenrolo lento e torvelinho me desmascarando de mim mesmo. Me engrinaldo com teu sonho. Relevo-me total, inconsequentemente. Me atrito nos anseios persistentes de abandono despreocupado. Me cubro de arabescos decorando-me com teus gestos aglomerados em desmazelo. Me devolvo a mim e em ti – sou – também Agora.

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SENTIMENTOS DE CAUSA INDEFINIDOS (COMO NA MÚSICA)

Aqui, ali, acolá. Advérbiodelugarmente indefinível de repente. Qualquer parte. Incongruentes pontos de esconso caminho. Erráticas direções. Presentemente incógnitos sentidos opostos: horizontalidades abscissais, glissandos de impossíveis verticalidades. apenas sobem – gravemente – tumultos explodidos de abcessos. Borborinhos subterrâneos. Banalidades violetas.

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DESAMOR Poeira Cinza Fumaça – Se assemelha o desamor com essas coisas sem cor que o vento bate e devassa.

A LANTERNA AZUL Menino pobre na loja sabendo preço: – A lanterna azul? Olhar (cinza) de menino mimetizando mirrado sonho.

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CALENDÁRIO Calendário das abreviaturas, da brevidade dos dias idos e vindouros. Te amo calendário (quinze-trinta) dos salários magros, mesadas gordas, proletários e pleibóis. Calendário dos festejos, pagamento, espilação, armazém e prestação. Passeio no Corcovado, visita a mulher da zona, e muita sobra de mês. Calendário baleado de dias: dias limpos, dias sujos, dias verdes, amarelos, violetas, ou marrons. – Dias que se chamam números, como presos, loucos e soldados. Dias amarrotados nas ruas com paressiga rubro-verde e eventual pornografia; roça-roça oportunista no coletivo lotado sempre cabendo mais um. Calendário também das articulações, viviências, 400

pasmos, animalidades. Calendário farto de dias tremendamente individuais

CRIANÇA EM CADA UM A criança por dentro em cada um vem dos sonhos realíssimos, bisonhos, como o do velho bom, Papai Noel de massa que se espedaça espedaçando a infância.

VÁCUO Solidão seca. Suspiros sumidos. Sentidos selados. Sussurros. Sibilações de esses escorregadios, frustradores.

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DEPOIS DA CHUVA Verticalmente, aceleração de gotas contra parabolóides verdes ramas. Pés ensaiam selvagens riscos contraponto de espiras estelares. No trajeto indeciso espreito, meio sem luz, redes teares de imaginação urdindo bacanais. O fiapo nervoso, cerebral, de modo onírico masturba-se no crâneo: secreção de raízes antigas.

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BOA NOITE O sono é bom como as coisas naturais... A bruxa velha Noite entende curar tudo (assim que faz de tempos imemoriais). Entrega pois denoite tuas mágoas ao bom do sono. E sonhos destemidos da vigília escura farão canções ao claro de seu nada.

?????????????? Antes da galinha o ovo. Antes do ovo a galinha. Antes da galinha a ovo. Antes do ovo a galinha. ?????????????????????????????? Antes do ovo a galinha. Antes da galinha o ovo. Antes do ovo a galinha. Antes da galinha a ovo.

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FERA MANSA Dentro da jaula oprimida fera mansamente rebela-se. Por que grades entrecruzadas? Instituições criadas, convenções convencionalmente convencionadas, misturam lucros-prejuízos. Mas a fera mansa se acalma: odiosamente.

PARTIDA ausência sentida. Em cada canto uma lágrima. Em cada lágrima, vida.

404

ALVO DESILUDIDO Noite. Silêncio. Grito sufocado. Certeza incomprovada. Guiado o EU a incerto fim: alvo desiludido. Pernas que tremem. Chuva estiada e frio ainda Depois do gozo errado, Desperdiçado sobre fim deserto. Muita coisa deflui não sentida.

POR DESAMORES, AO NADA Quando abafares em ti a alegria, quando secares o teu pranto todo, quando esgotares toda a tua fonte e enveredares pelos desamores... Quando exaurires tuas dores todas e te anestesiares os sentidos, quando crestares todos teus fervores e derrubares cada crença tua... Vê que também serás – inexoravelmente – poeira no tumulto que fizeres dentro do nada em que te transformares E ficarás disperso para sempre na infinda nulidade e nos horrores dos que são nada por matarem tudo. 405

POEMA DO AMOR ANQUILOSADO Fiz um tumulto enorme na noite sem trégua dos malmequeres esfolhados. Me debrucei nos cimos das montanhas varrendo limites com olhares de franjas multicores. Me espojei em neves cumieiras, agônicas. Virei corisco num céu de lampejos verdes. Bebi cristais refrigérios, fluidísimos, de sonho novo. E engoli em volurosos goles os desejos incomensuráveis.

BILHETE A PAPAI NOEL Padrinho antigo de ingênuos que pedem. Velho de bondade acreditada. É quasi nada o que meu sonho pede: no meu sapato adulto em janela escancarada, o bem da amada. É quase tudo.

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AMOR CERTO O nosso amor por ser louvado verso bem simples precisa ter. Verso pequeno, bem curto verso, bem curto e casto, que amor contasse tão vasto e fundo como no mundo devera haver pra todo o sempre por todo ser.

SUPINO GESTO Gesto supino convida a conchego de entranha. Gesto de apelo. E cedo reverente ao gozo, imune a todo zelo. Gesto chamando, Supino, me amarra em teus braços. Abraços devoram com gesto de aranha.

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VOCÊ NO MAR, NO SOL, NO CÉU Aí, você vem. vem lá fingindo sol, da linha azul cosendo o céu no mar. Mar tem ondas você. Céu tem sol (você): os cabelos carinhando, o hálito queimando.

POESIA DO BONDE CONTERRÂNEO Bonde moroso moroso bonde moroso bonde moroso bonde Me levou na tua casa. – Bom dia! – Bom dia. Voltei pra não voltar mais lá. Me leva outra vez, bonde, moroso bonde moroso bonde moroso bonde moroso.

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VIAGEM DE VOLTA AO AMOR DA AMADA O chofer acelera e guia minha esperança de aconchego. Braços nus me esperam vestidos de desejo. O ônibus chupa a estrada. A nuvem com cara de Rei Momo se amamenta no mamelão gazeado de escuro Do ônibus chupo a estrada. Da barca chupo a baía. Chupo a praça, o morro, a rua chupo a noite pro outro dia e acelero e guio meu aceno de aconchego.

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SOL DE MUCURIPE Lá vem o sol chutando as montanhas danado da vida que o dia chegou. Ta brabo o coitado que agora é verão. Lá vem o sol cuspindo faísca que nem rodinha de São João! Lá vem o sol tostando mulheres na beira da praia, colando sapato no mole do asfalto que já derreteu. Lá vem o sol dançando na areia, bolinando as dunas, fugindo pro mar. Lá vem o sol madurando povos promessas de carne da safra de amor. Sol de Mucuripe, sol danado... Sol nordestino mais quente que Ypióca quando quica no papo. Sol jagunço, sangrando o oceano que nem peixeira no ventre dos homens que brigam na areia (camisa amarrada) por causa da Iracema 410

que não tem lábios-de-mel nem nada, nem cabelo-asa-de-graúna: Iracema mulher (índia?), escrava, Que tem dono e ninguém bota a mão.

MORENA CEARÁ Morena, me ensina teu jeito de beijo. Beija, morena jangada, tostada, esquentada de sol de nordeste. E prova que teu gosto é do desgosto que Iracema – tua avó – bebeu. Que és feita numa alquimia: sapoti, quentão, rola mansa, e fêmea de Lampião.

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MARIAS Ave Maria Cheia de Graça! Desgraça tanta... Marias tantas... Desaparecida. Só dores. Sem glória, ou cabeça. Marias tão virgens quão bem maculadas. Paridas. Jogadas. Caídas, tombando prá morte, caindo na vida. Maria. Marias...

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O BOSQUE DO ALAMBARI

(OU O POR QUE DE EU NÃO SER MILICO) O bosque do Alambari não é bosque como os de livros de estórias. No bosque de Alambari (bosque real todo meu) eu ia estudar ótica-geométrica nos dias chatos de chuva. Nos dias de luz, ficava contando, o dedo apontando o chão, a porção de retratos do sol na câmara escura das árvores. No bosque do Alambari, num fofo de folhas me deitava matutando: luz filtrada, frescor, cheiro agreste, e o Alambari rechiando paisano bate-papo com os bambus. De repente chega o tenente: – Tem dois minutos para entrar em forma com uniforme número seis.

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DOR DE CORNO Amigo não mexe comigo: veja o porre. Saí prá rua arriscando carinho. Veio a chuva, lavou a cara dos edifícios, encharcou minha camisa com suores de mulata vinte dias sem lavar. Não bole comigo, amigo: vera essência de alambique, e o porre. Não fala comigo não: já chega o barulho da rua, já tem o bbrruumm do motor e a pinimba do meu calo com o sapato de verniz que ninguém veio espiar. Me deixa sonhando assim: inventando que a mulata vai subindo para o céu me levando na barriga pra dormir na cama dela com dois anjinhos guardando. Amigo, não mexe comigo, veja o porre. E eu posso te quebrar a cara.

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POEMA DO EXTREMO NORTE Depois da tempestade, faces limpas de estrelas: sorriso. Sapos em coachos detrás das janelas de telas respirando o charco. Pirilampos azuluminescendo o caminho, espelho de lama, cheiroso de mangueiras. Principalmente o céu – morno e molhado – Equatorianamente macapês. Macapá, 1965

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POEMA DA PONTE DO MAM Ponte sobre o rio de metálicas águas (máquinas água) riscando o leito asfalto. Sensível curvo gestor de Nijinsky delicado. Voo debuxado de pássaro migrando sutil para cores e formas do sonhado. Anca de égua em cio, equinamente espojando a vontade do corpo no gramado pedra.

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VOCÊ NO MEU PALACETE Quando você for para o meu palacete, não passe a vida lá como sombra, por favor. No palacete cada canto é pra você: é pra você usar, é pra você tocar, é tudo seu. No palacete construído pra você (pra você, eu disse) É tudo seu, Embora o palacete seja meu. Não passe a vida lá como sombra, por favor. Quando sentar nas poltronas do palacete, nenhum cuidado dobre manso o joelho ou faça leve a mão para a almofada. Quando você percorrer os salões do palacete Não pise assim como se fosse em ovos. Pise bem firme, arranhe mesmo o chão. Quando o cansaço chegar de percorrer as alas do meu palacete, não recoste sem peso nas colunas. Se precisar da paisagem não evite o terraço; de lá siga o horizonte, corpo firmado contra o parapeito. Quando quiser se distrair um pouco, procure e achará no palacete o que lá tem de belo e só é seu, 417

embora o palacete seja meu. Percorra a biblioteca e amontoe os livros sobre as mesas. Escute os discos, dance ao som de cada música. No jardim, colha o adorno das flores. Passeie o bosque e nade na piscina. Depois (então, você já foi embora) quero você permanecendo lá. Que você estará no veludo da poltrona marcado do seu corpo. E estará também nas almofadas, com a impressão dos dedos no cetim. Que o chão do palacete é mais polido se arranhado da vida de seus pés. E ficará na pedra das colunas a pressão dos ombros. Que ficarão no parapeito os cotovelos e os peitos, no desgastado mármore. Que os livros todos terão a sua história e os discos gravarão as melodias que o seu corpo exala por bailar. Enquanto no jardim todas as flores se pintarão das cores do seu rosto e a água terá o seu perfume à sombra do seu vulto no arvoredo. Que você ficará para sempre no meu palacete construído somente pra você. Você (HOMEM) no meu palacete (MUNDO) onde tudo é seu, embora o palacete seja meu.

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FIM Fazer versos: ingrato passatempo. Ocupação difícil. Profissão dos que constroem arranhacéus de vento e cidades de bolha de sabão.

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ADOLESCÊNCIAS (1952-1968)

Fazer versos, o ingênuo passatempo. Afeição Perigosa. Profissão dos que constroem arranhacéus de vento em cidades de bolhas de sabão. Rio, 1958

NOITE DE JUNHO Noite de junho. Balões. Pistolas espoucam trovões, fogos, fogueira, clarões. ............................. Penumbra. Cinza. Paixões. Campos, 1952

AQUELE HOMEM Homem triste e solitário passando pela rua... Olhar vidrado, fixo num ponto imaginário... Os cabelos grisalhos, A barba grisalha, Os bigodes grisalhos escorregando pelos cantos da boca. Boca que a expressão é um traço de amargura. Passa por todos: Garota bonita, Casal conversando no banco da praça, Rapazes discutindo futebol, Velhos discutindo política, Moleques jogando pelada. Todos o olham. A ele pouco importa. Segue o caminho: Mesmo olhar, Mesmo passo, 423

Mesma expressão. Livro debaixo do braço, Óculos de lentes grossas, de aro grosso e escuro, Terno azulmarinho e bem cuidado, Cigarro aceso entre os dedos. Dedos de mãos firmes que se fecham friamente. Todos comentam a vida daquele homem solitário: Aquele homem sozinho, Que não fala com ninguém. Cético não acredita em amor E menos em filantropia. Vive lendo, sonhando... Sonhando com alguém, Com todos, Com ninguém... ......................................................................... Ele já foi alegre e brincalhão! Era muito jovem: Não tinha cabelos grisalhos, Não tinha barba grisalha, Não tinha bigodes grisalhos E sua boca sorria sempre... Era muito jovem quando amou... Amou alguma mulher... Mulher... Essa coisa desconhecida... traiçoeiramente... E ela fingiu que o amou... E feriu sua alma... Era ainda muita jovem quando amou... Aquele homem solitário... Amou o próximo, Amou a vida, Amou a Deus, Amou tudo, em tudo acreditou. Pouco a pouco um punhal se cravou no seu peito; Abriu ferida com aço frio de perfídia e fingimento... A solitude abraçou-o com os gélidos braços... Seu coração enregelou. ......................................................................... 424

E aquele homem triste e solitário que passa pela rua... Olhar vidrado, fixo num ponto imaginário... Os cabelos grisalhos, A barba grisalha, Os bigodes grisalhos escorregando pelos cantos da boca, Boca que a expressão é um traço de amargura, Coração endurecido pela vida, Alma fria, Fria e só... Segue o caminho, Traga o cigarro, Mesmo olhar, Mesma expressão... Mas ele é LIVRE. NÃO TEM ILUSÃO. Fortaleza, 1954

PIANO Sento-me ao piano, ou seja: ganhei mais desengano. Abro a tampa e, enfim, um sorriso, (embora...) para mim. As teclas no staccatto, dando uns gritos de tom, com os dedos bato. Tento harpejos debussynianos e ele chora outra vez meus desenganos. Chopin, se me apodera, é um piano chorão que vê quimeras. 425

Me apoio no Beethoven: são pragas que se ouvem (da quinta sinfonia em que o destino bate à porta – e me agonia). Esse piano é um amigo solícito, onde eu me abrigo. Soluça quando soluço, ri de mim minha risada. E se eu me calo ele cala. Igualzinho a mim se sente e tapeia minha dor. Sei que piano não é gente, mas parece amar de amor. Fortaleza, 1955

CAXIAS NA CHUVA Caxias na chuva, Pingando molhado, Debaixo do pau-brasi1; Brasil, donde o nome foi tirado E foi dado Ao País Na raiz Da lingua-mãe... Quando te vejo assim, Pingando, Pingando molhado, Molhado até os ossos do teu bronze – Bronze sobre o mármore, Mármore sobre o chão 426

Que então não era assim Nem pra mim Nem pra ninguém, Fico pensando: Como era diferente, Caxias, Quando ias Pingando, Pingando molhado, Molhado até os ossos da carne E sobre o cavalo ao invés de pedestal, No temporal Açoitando o campo de batalha... E a mortalha Do teu peito, Onde morreu Junto a ti a lembrança Da pujança Dos soldados teus!... Tudo mudou... Tudo agora acabou... E depois só ficou O Herói Na glória da história... E depois; que virá?... Fortaleza, 1955

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ALUCINAÇÕES Sonhar ouvir estrelas conversar com astros acenando cordial a cometas apressados Fugir ao terráqueo ao tenebroso e ser familiar ao grande cosmo Tomar dimensões fora de espaço e tempo ouvir corais hofmânicos travar com Cristo um longo bate-papo sobre o cinismo das religiões cumprimentar Gauthama que sereno passa e debater com Newton a lei geral das atrações De Beethovem cobrar mais nove sinfonias com harmonia de sons por existir rir com Bocaccio satirizar com Erasmo cuspir na cara de Omar e Constantino dar mais uma tragada e apagar o meu cigarro na bunda de Torquemada Dançar com Pavlova passear com Dante encabular Voltaire Isso tudo eu faço quando subo (ou desço?) dependurado em minhas espirais. Fortaleza, 1955

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CONTRASENSO Quando concebo, a priori, o Icognoscível, na pseudo-concepção do sub-consciente, impera na centelha do Eu, latente, a Luz – reflexo oriundo do Intangível. Qual ser fantasmagórico do horrível, a desdobrar-me, então, que a lei consente, alcanço do infinito o continente, tal conteúdo gasoso mui expandível. E nessa dispersão do corpo escasso, vou penetrando os mínimos espaços do universo por todo o bojo imenso. E quanto mais limites eu dilate, percebo mais que à Causa dar combate da mente do homem bruto é o contrasenso. Fortaleza, 1955

SOMBRA QUE AMEI “But a Walking Shadow”

Deixou-me tão sozinho no presente mas sei que existirá eternamente fotografada e ausente – em meu passado. Era uma sombra morta. Passou dizendo – Adeus! Nem disse: – Como vai? No sorriso, apenas lenço que acenando com um perfume antecipado de saudade... 429

E eu fiquei pedra no meio do caminho. Terrificado pelo amor que morrendo nascia num silêncio total de coisas mortas, curvado ao peso das trevas culturais. Tive rompantes de gritar aos mundos, rogar à Causa de que são oriundos o direito genésico das forças: reunir do cosmo toda a intensidade num ponto único de aplicação e, num lapso de explosão, desintegrar as consciências todas, e com brutalidade de animais pulverizar barreiras sociais. Mas (meu grito surdo, não ousado avante) abdiquei às forças ondulantes daquele movimento vibratório... E a pedra resta no caminho, inerte, lembrando a sombra que acenou passando sem me ouvir cantar: Deixou-me tão sozinho no presente Mas sei que existirá eternamente fotografada e ausente – em meu passado. Campos, 1955

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A VINGANÇA DO HOMEM-DEUS Jesus nasceu como qualquer homem. Teve desejos certos e frustrados. Amou de toda sorte dos amores, bebericou de todos os licores que a vida põe na boca dos marcados. E conheceu as múltiplas facetas de toda a raça humana. E riu. Chorou. Tentou descrer das aparências e começou pregando aquelas crenças que lhe tomavam a mente e o esmagavam. Mas neste esforço ele quebrou seu braço. Reconheceu completo o seu fracasso e quis vingar: vingou. Verteu seu próprio sangue no caminho e o fez beber como o melhor dos vinhos à multidão de cínicos parceiros. – Bebei! Sorvei-o aos tragos em meio a vosso riso e vosso engasgo. Porque chegado o fim também rirei! Fortaleza, 1955 431

O RISO DA BOCA Todos os risos que me saem da boca são desencontro do meu Ego bruto. E tão bastardos quanto o escuso fruto que põe na vida a prostituta louca. São tão falseados, que das vezes, poucas, que rio no imo, um riso apenas, curto, sinto nos lábios quando, a sós, perscruto qual a expressão que ponho em minha boca: De Santorini os dois risórios agem como em tropismo natural, só então mostrando os dentes – riso sem expressão. Sorrir sem graça é o que meus lábios fazem. Dentro de mim meus sofrimentos jazem, enquanto a boca ri sem ter razão. Fortaleza, 1955

VALOR

Avalia-se o mérito pelas resistências que provoca. J. Ingenieros Amo os meus inimigos, firmemente. Os quero todos, mesmo em quantidade. Experimento até felicidade quando encontro barreiras pela frente. Amo os meus inimigos – tão somente. Não imito neste amor a santidade que ensinou Cristo em nome da Verdade: Só os quero porque são a mim inerentes. 432

Amo neles o crápula, o bandido, o retrógado, o néscio, o carcomido pelo ódio-inveja – esse monstro interior. Pois quando fico a sós e estou perdido nas tergiversações do incompreendido, só eles é que provam meu valor. Fortaleza, 1955

RONDA DOR Na noite sem fundo havia noite interior onde reconheci estrelas. E mundos a girar e a girar me vendiam desejos que eu pagava com beijos. E o vento sussurrava como também girava na estranha sinfonia da dor. E eu tinha um vago imenso posto dentro na alma aonde a calma estava e que também girava. E a natureza me vendia amores, me acrescendo as dores. E eu que era sombra só vaguei no espaço 433

como as sombras outras me vendendo abraços a girar e a girar. Musas havia me vendendo fontes – e eu suspiros dava. E a girar e a girar eu só vendia dor... Fortaleza, 1955

OS CÃES Atento, à noite, em solidão, no escuro, aos cães das ruas, seu latir cruciante. E me estremeço todo a cada instante que o eco esbarra contra os lisos muros. Centelha rude, vã palavra obscura (de um rudimentarismo penfalante). Igual laringe, iguais cordas vibrantes: um grito ousando linguajar futuro? Quando de-noite, cães, as formas somem, e lucidez não tenho mais que dome o desatino do pensar cansado, perscruto, debruçado em vosso nome: serão projetos falhos para o homem, os homens sendo cães ultrapassados? Fortaleza, 1995 434

GALO Um galo cujo canto em meus ouvidos estica a madrugada de uma insônia. Mas, eu, não o vejo com a missão medonha de convocar demônios escondidos. Seu canto é triste em mim repercutido. Alguns dizem que é mágoa, alguns que é ronha, alguns que é voz de Deus, e há quem suponha que, enquanto durmo, o galo põe sentido. Galo, bom companheiro de vigília! Fiel Sexta-Feira para neo-Crusoé que vê na exígua noite imensas ilhas. Teu canto repetido no vazio, de galo para galo, o canto quer é me ensinar que eu não direi sozinho. Campos, 1955

TRAÇOS Triangulações circulares, elipses parabólicas, retas curvilíneas, pontos tridimensionais... Aberrações geométricas que se expandem. Louca visão de visionário e louco! Que importa se há retas, 435

se há curvas, que importa? Nada existe de reto no universo. Nem curva mesmo existe em correção. Eu quero traços, curvilíneos traços, traços quebrados, só traços desordenados... Traços que me levem à compreensão dos traços que tracei com a minha mão. Fortaleza, 1956

MÃE Mãe! Grito: – Mãe! Só eco me responde, com muita voz leva o teu nome a esses lugares onde o mundo chora. E eu vejo solitário o teu fantasma que me segue, como nos dias de incapaz infância, com a proteção do teu carinho. Mas é agora, Mãe, quando aqui jazo sozinho, que ao meu redor por cada parte 436

a natureza urde em sua rude arte leves canções com que tu me ninavas. E cada espaço tem luz que sintetiza pingadas gotas do teu leite: não leite que jorrou das tuas tetas, mas o outro de amor. E vêm os bois da cara preta, bichos-papões, lobisomens, o coletivo desses espantalhos que me assustaram outrora, mas não me assusto agora que fui ninado e sonho uma canção: Pressinto um bafejar de solo quente, materno colo, aonde aconchegar minha cabeça e ouvir um repulsar e uma voz quente que reza para mim, que reza debruçada em meu inverno à noite, a noite fria, a noite indiferente e o inverno que apavora, que vêm de dentro para fora. Fortaleza, 1956

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MISSA À VIRGEM-MARIA – Ave Maria! – Maria! – Maria das velas. Maria dos altares. – Ave Maria dos carinhos ternos! Ave Maria dos amores puros! – Ave Maria! – Ave! – Ave Maria dos sensualismos! Ave Maria das rameiras sujas! Ave Maria do ranger da cama! Ave Maria! – Ave! – Ave Maria! Oremus: Maria dos incestos! – Ora por nobis! – Maria dos abortos! – Ora pro vobis! – Maria dos crimes! – Ora pro sobis! – Maria da fome! 438

– Ora pro nobis! – Ave Maria dessas multidões! – Ave! – Ite. Missa est. (Ave Maria dessas podridões!) – Domine exaudi orationem meam! (Ave Maria! Só lamentações?) – Et clamor meus ad te veniat. (Ave Maria desses corações!) Fortaleza, 1956

BRIGA DE JANGADEIROS – Anacleto, venha cá! Eu sôbe que tu anda tuna pro lado da minha Raimuna. – Foi assim qui cumeçô a confusão, meu sinhô. O Anacleto, bom safado, cabra tisgo po mulé, tava c’a minha Raimuna tentando fazê banzé. Mas o dega, veio macho, cabra macho pra diacho, (discurpe essa arrimação) 439

num topô sê corneado: meteu pexêra na cinta, terçô dois gole de cana, e foi procurar Anacleto lá no currá das mulé. ~ – Anacleto fil-dua-égua, tu vai requerê pinico ou te esfuro na barriga mais buraco igual do imbigo! – Num peço pinico nada! Eu falo cum quem quizé! Si tu é macho completo, vem batê nesse Anacleto! Vem, seu bosta de girico! – Eu só dei uma pernada: o pai-d’égua arreiô feio com a cabeça na coxia: fissô que-ném melancia a cabeça do miolo. E uma furada acertei. Nisso, revém a Raimuna, se rebola em riba dele e pega a chorá foi muito. No que quando eu fui manjá que o cabra-da-peste ganhô: já tinha cumido a criôla esse Anacleto baitola!... Fortaleza, 1956

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MEU BAÚ ENCANTADO De uma vez (não lembro quando) eu tive um baú encantado. No baú tinha uma flauta que um hindu vendeu pro meu pai. Pegava a flauta e tocava umas notas de alegria. Quando o som da flauta hindu a naja também dançava. Fortaleza, 1956

ADEUS Foge deixando atrás a dor ultrapassada não olhes para trás quando o caminho dobrar a curva que desune o tempo quando alcançadas mais gratas paragens bate a poeira má do teu sapato pra não reter de aqui nem a mais seca lembrança vive lá teu presente amesquinhado acaricia e fantasia o teu futuro sem nem lembrança do que atrás deixaste. passado é coisa morta e sepultá-lo será teu grande gesto: fá-lo mesmo que seja o único da vida Eu também descartarei cada lembrança 441

e salificarei um cada germen que acaso me restar de tua ausência foge depressa: o tempo é coisa cara se a menor felicidade ainda te espera: não desperdices a razão da vida faze de conta que não sou nem fui decerto não havendo sobre a mesma terra alguém que se assemelhe um pouco a mim quanto a você – se eu retiver um pouco sobre a memória a tua sombra escassa – direi comigo: outrora foi meu verme. Fortaleza, 1956

A TORRE E O CÉU A torre sobe em fundo de escarlate, no pôr de sol: a mão de um deus guinhol e a mão rebel da Arte. A torre, obscena, no himeneu fura o horizonte; e o sol, fugido, esconde o ensanguentado céu. Que conluio secreto ali se avia e a sombra tece? Saudosa de outro dia, a torre permanece. Fortaleza, 1956 442

A GRUTA DO AMOR O amor ficou de boca aberta e eu vim andando andando e olhando. Vontade que deu de fugir desse amor... Mas o amor ficou de boca aberta e eu já estava na goela na goela vermelha vermelha de amor da boca do amor. Se a boca do amor não ficasse tão escura... Era escuro pra burro na boca do amor. E as estrelas da noite (da noite da boca) na boca do amor, pegaram fungando fazendo beicinho birrentas de amor. Mas eram só dentes da boca do amor. Na boca do amor... Sentei no tapete da boca do amor e a flor do meu lado me disse – “Já sabe? Você tem só gosto... só gosto de amor.” – “Que nada, sua boba! (outra flor do outro lado depressa falou) não vê que ele tem só gosto de sal?” 443

Na boca do amor... E eu estava tão doce na boca do amor!... Na caverna era escuro à beça. Eu estava com medo. Levantei tão depressa pra longe correr que dei com a cabeça numa estalactite da boca do amor. Aí foi pior! Que uma voz lá de dentro gritou tristealegre: – “Sibemol!” Na boca do amor... Sibemol Sibemol Ubajara, 1956

SONETO DE DANTE ALIGHIERI (da Vita Nuova)

Mora amor no olhar de minha amada. Porisso, tudo que olha se enobrece. Se cumprimenta alguém, este estremece. Todo mortal lhe lança uma mirada. Se abaixa a fronte, o tudo vira nada, em queixume todo ânimo esmorece, o orgulho morre, a cólera perece. Cumpre, entre vós, mulheres, ser louvada! 444

Toda humildade nasce da doçura de sua voz: a mais pura e mais afável. Feliz daquele que a encontrou primeiro! Quando sorri – sua boca então fulgura – se magnifica e torna-se inefável, por que é algo entre divino e feiticeiro. Campos, 1957

LEMBRANÇA É do passado o rasto percorrido por tempo um quanto longo em longa estrada. A jura deu perjura e, a voz fanada, puseste um adeus enorme em meus sentidos: “Ai, já me basta, eu deixo a caminhada! (fosse ai que nem ridente e nem gemido) Toma coragem, deixa-me, querido, segue outro rumo, não te custa nada!” Vim solitário e vou – por onde for. Fiz um silêncio cavo em meu desejo, medrei no orgulho, escorracei o amor. Hoje, em braços não meus, que te revejo, eu sei teu ser amado e que onde for terá meu gosto em cada próprio beijo. Rio, 1957

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CONCLUSÃO Onde guardar o coração ferido? Onde o guardar, se não cabe no peito? Feito assim desmedido, assim desfeito, assim mirificado, assim dorido... No mar, na terra, em toda parte espreito a nesga de uma gaze ou o colorido onde espalhar o coração partido. Onde o guardar, se não cabe no peito? Por dentro desta angústia em que me estrago, Noutra cidade, bato, a cada porta, perguntando o carinho, o terno afago. Mas, se é que Amor não mora neste inferno, espalharei minha ternura morta no eterno azul do firmamento eterno. Campos, 1957

AS CRIANÇAS TAMBÉM AMAM Amor de infância – sete e nove os anos. Que casalzinho! As formas imprecisas: Nela, o corpinho em superfícies lisas. Nele, o falsete, como voz de gamo. Mas vede, os que passais mimando a brisa, desvendo para trás os desenganos: Que amor tão grande têm nos verdes anos! Que vária gama o amor nos dois irisa... 446

O sorrir, o cantar dos serezinhos, O mesmo susto, idêntico tormento, já os ri, já os chorei por esta vida. Faz todo tempo. Sete e nove aninhos, já prontos à ternura e ao sentimento, deixaram em mim a coisa compreendida. Rio, 1957

POR QUE A BAILARINA? Se me perguntas que motivo existe para que eu ame aquela bailarina, vou te contar. Dirás que minha sina é pôr em tudo a gozação do chiste. Mas, se assim queres, se teu ver se inclina a desvendar este mistério triste, se neste ponto, assim curioso, insistes, ouve lá esta. Ouve bem, que é fina. Foi quando eu assistia ao seu bailado: Que círculo perfeito os pés traçavam! Foi tudo. Começou o amor que passo. Daí para a frente, estive apaixonado daquelas pernas longas que dançavam na catacrese exata de um compasso. Rio, 1957

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A COISA MAIS ESPLENDOROSA (Love is a many splendorous thing)

O amor é a coisa mais esplendorosa. É sonho inextinguível de ventura. Renasce, cresce, dura, e ainda perdura se emurchece sua flor maravilhosa. O amor, em cada vida, é como rosa: as pétalas compõem cada ternura, cada riso, e também cada amargura, que a mão do tempo arranca silenciosa. E se a rosa murchar, se ressequida der a impressão que o amor já se extinguiu, não creiam que apagou do amor o lume. Há sempre de ficar, bem definida, a memória da flor que se possuiu, pela vaga impressão do seu perfume. Rio, 1957

TE AMO, não pelo tom na cor dos olhos doces. Não por teu rosto, a pele, os teus cabelos. Nem te amo, amor, tampouco por quere-los, teus lábios – onde o meu querer quedou-se. Como esconder que não te quero pelos gestos do corpo? Ou mesmo que não fosse pela alegria que este amor me trouxe; por tudo enfim que aumenta meus anelos? 448

Mas outro amor: É mão que me domina. Altura a que me elevo. Luz, me ofusca. Transpõe minha razão. De ti me inundo. É amor do amor: A fonte de onde mina raro elixir que a eternidade busca. Amor do amor: o amor total do mundo. Rio, 1957

POR QUE? Por que, do amor que sou, tão pouco me asseguro? Que matéria me faz a leveza de pluma, se dentro do meu dentro grávida avoluma vaga forma sem cor em luz sem claro-escuro? Ou serão arremedos de medos futuros? Serão prantos lembrados? Ruminar de alguma desinvenção de sonho quando o amor esfuma? Ou serão quiromancias desta mão de augúrio? Não sei. Não saberei. Não posso. E não me importa. Desejo é que o fantasma estranho e mal preciso que bate irreverente à minha frágil porta, não seja igual a muitos que eu jamais conheço: alguns que batem, alguns que me entram a desaviso, e vão-se embora, ao menos, sem pagar meu preço. Rio, 1957

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KARNA AMO Se eu te amo? Sim, eu te amo sim. Eu te amo amormente, desde a perfeição anatômica dos teus pododátilos, à seção elíptica, ondulogenética, dos teus negros fios capilares. Eu te amo sim. Não vês que quando fixo os meus nos teus olhos e encontro a tua íris escura no contraste erótico da esclerótica, tremo? Sim. Tremo de amor. Eu te amo sim. Amo a contração dos teus risórios. O alabastro dos teus incisivos. Amo o teu músculo lingual e a temperatura da mucosa dos teus lábios. O estremecer das tuas glândulas mamárias. A ondulação macia de tuas costelas flutuantes. Amo o teu abdômen e nele o umbigo. Amo as tuas partes mesmo e para-genitais. Os membros flexuosos também amo. Amo os teus corpúsculos sensórios e os respectivos reflexos no teu apuradíssimo sistema nervoso. Amo os teus amplexos na reunião dos nossos corpos nus. Amo-te enfim amormente.

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Eu te amo sim. Não vês? Resende, 1957

VOCÊ Eu quero definir você. Mas você é meio fátua e meio ausente. Pego o dicionário e procuro indicativo a palavra mulher. Mas o dicionário, discricionário, me ensina tudo errado. E mesmo tudo que penso desta maldita palavra não quer dizer você. Que você pra definir talvez baste o espelho da poça d’água em chão depois da chuva. Na superfície o sol, olhando-se a cara que você tem. Enquanto que, no fundo, a interseção da lama é sua igual. Com tudo, ainda não pude definir você Irei ao dicionário pornográfico. Rio, 1957 451

HOMEM DE VERDE Um Dois Um Dois Homens de verde. Só ele, de verde, só ele não vê. Vai marchando apressadinho, undoisando o seu nervoso, com o medido movimento, com o bracinho a balangar. Ai, homem de verde... Acho que ele não vê mesmo não: sempre olhando pra frente, um ponto só na frente um ponto só: nuca de homem em frente ou nada não. Oressa, homem de verde! Será que nem esse pontinho compreendes? Um Dois Um Dois Passa árvore Passa bosque Passa grama Passa tudo muito verde Passa ele Passa macho Passa forte Superomem recheado de ideais: verdinhos, como o V.O. verdoso dos verdões. 452

Vai, homem de verde! Segue o teu caminho undoisado que ao três não chegará. Resende, 1957

O INTELIGENTE CAPITÃO P. O Capitão Peidaram não se chamava assim. Mas é que ele chega arrebitado pra locutar à Cia. com o nariz demais alçado e cheirando muito fundo. Então se chamou assim. – Cia. Sentido! De ordem do Exmo. Sr. Gen. tenho que dar um aviso (o Capitão dava muito aviso): Tem muito caso de “asiática”. É proibido aglomeração: não tem cinema, não tem piscina, não tem cassino, não tem nada onde tenha que ter aglomeração. Entendido?! – Entendido. – Ordem à Cia.! Pela direita! Sem intervalo! 453

Perfilaarrr! Amanhã tem marcha noturna! Resende, 1957

FÉ ESPERANÇA E CARIDADE Fé Esperança e Caridade. Nome mesmo daquela preta boa. Mas um nome tão comprido... ficou chamada Dufá. Dufá prá lá, Dufá prá cá, e a preta ia engolindo no sorriso o corredor fedorento do hospital que me nasceu. Dufá, parteira perita, com ela mulher não brecava: parto pélvico ou de membro ficavam normais pra Dufá. Obra certa que eu fiz na vida foi nascer com aquela preta: pelo menos um sorriso sincero que recebi. Dufá está morta agora (desconheço a sepultura). Ela está pra lá jogada sem fé, sem esperança e sem caridade. Campos, 1957 454

VI E OUVI

A Heitor Villa-Lobos, quando de seu 70º aniversário. Ele diz que tudo é destino, destino fatalista, destino que leva inexoravelmente o gênio para a glória. Ele diz isso tudo, mas se esquece... Esquece do que passou, do que não passou, do que andou e não andou, andará e não andará. Ele de fato se esquece da chuva burilando notas nas poças da infância, e não se lembra dos gritos percutindo sons e ritmos nos tímpanos da juventude. Ele também despreza as folhas novas guardando sinfonias nas gavetas da senectude e diz que tudo é destino. Eu vi o homem: a serena cara feia, a câmara acústica feia onde ouve todas essas vozes (e as mãos com que tenta exprimi-las). O corpo largado em formas simples, os pés obedientes procurando os últimos lugares. Vi Lobos e fiquei Besta.

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Eu ouvi o gênio: senti o menino, senti o adolescente, senti o jovem, senti o maduro, senti o velho, senti sobretudo o menino se espojando numa brasilidade diferente: como um sustenido jogado na parede, mais forte que a parede, lambendo sonhos. Ouvi Lobos e fiquei Ameba. Rio, 1957

A RUGA DA BOCA A ruga da boca não nasceu assim à toa, por um motivo qualquer, por um motivo banal. A ruga da boca nasceu – me lembro quando – por um motivo que você não quer supor. A ruga da boca não bem nasceu: foi arte de artista que não sou eu. A ruga da boca, na boca sem ruga, da ruga sem boca é que a ruga nasceu. Resende, 1957 456

RESPOSTA A M. N. SOBRE A RUGA DA BOCA Você nem leu meu poema e foi correndo pro espelho. Não descobriu minha ruga mas descobriu na própria boca uma ruga “modelada pelo tempo” Foi erro seu de querer ver no espelho. Que meu poema é de espelho – com nem aço e nem vidro, porém. Que está por trás dos olhos, refletindo a minha cara contra toda lei da ótica. A imagem não dista do objeto exatamente o dobro do objeto ao espelho: a imagem se confunde no objeto, se tocam, e objeto sente a imagem como a imagem sente o objeto. Se introfundem e se entretecem e se unificam separadamente. Meu poema é de espelho do cristal mais fino que não mente pro objeto: vê na imagem o seu destino. Rio, 1957

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CORTINAS cortina azul cortina amarela cortina verde cortina maravilha o meu desejo é ser também cortina cortina de qualquer cor cortina branca ou preta como for Resende, 1957 (cassino da intendência)

VINTE ANOS

(a E.T.L em seu 20º. Aniversário) Vinte anos. É o clamor da vida orgânica na plenitude das forças vitais. É o calor das células mais novas no vigor das formas corporais. É debutância de completo amor e ódio em total sentimento interior. É condição intrínseca das normas no duelo das grotescas formas querendo transformar-se na melhor. 458

É culminância dos desejos todos. É consonância natural das partes unificando-se num todo só. Virão depois as formas decaídas, na inflexão do gráfico da vida, tendendo para o aspecto final. Mas, hoje, como outrora e no futuro, permanecendo o que há no ser de essência. À frente rompe a meta – a desejada: por ela é que se tenta a caminhada. Porém, nem só para essa frente o olhar seja vertido no fanatismo natural dos brutos: Atrás se deixam às vezes belos frutos que, finda a jornada, podem tornar-se a meta desejada... Resende, 1957

ANEURISMA Foi primeiro sintoma: julguei-te meu tumor. Passaste a ser pra mim um corpo estranho (enfadonho) embora sendo parte do meu ser. Se demonstrava, então, ser necessário 459

lançar de mim aquela putrescência que me parasitava cada força. Tentei saber que espécie que serias de cancro pertinaz que me doía, mas que me punha em dúvida expurgar. Por fim, deixei de dúvida e de medo e resolvi tirar, se necessário, de mim tamanha e fétida imundície. Me pus a imaginar os teus humores podres e tive nojo: aparência asquerosa, sangrando o sangue-pus (vemelho-esverdeado). E, com resolução, me preparei para uma urgente cirurgia com o pseudo-bisturi do pensamento. Não fui até o fim (jamais iria). Quando eu me abri as carnes e te vi no fundo, vi que não eras um simples tumor: Tu és meu aneurisma. Me tiras vida. Me serves morte gole a gole. E, contudo, Não posso pôr-te fora sem morrer contigo. Resende, 1957

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SILÊNCIO FANTASMA Não. Não me deixem assim neste silêncio. Este silêncio enorme que me mata. Eu quero ouvir. Eu quero sons. Que sejam vozes. Vozes cortadas. Esganiçadas. Gritantes. Chocantes. Vozes estridentes. Que sejam vozes. Vozes cantando. Vozes em coro. Gritando alegrias. Gemendo dores. Mas eu quero vozes. Sim. Eu quero ouvir. Ouvir vozes. Ouvir ruídos. Ouvir latidos. Uivos. Relinchos... Não. Não me deixem assim neste silêncio que fala. Este louco silêncio que propala a ideia do meu sub-consciente. Não. Não. Eu quero ouvir. Eu quero gritos. 461

Quero gemidos. Dentes rangendo. Crepitar de fogo. Rogos e prantos. Mas eu quero ouvir. Me matem com ruídos estridentes. Eu quero enlouquecer com estrondos. Com reboar de raios. Com zunir de ventos. Mas não. Eu lhes rogo. De joelhos lhes suplico aos pés. E peço. E peço em toda a minha humilhação. Não. Não quero silêncio junto à multidão! Resende, 1957

ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS Meu abajur de cabeceira botando claridade na poesia de Drummond de Andrade que meus olhos desaltera, me faz lembrar embandeirada Pasárgada de Bandeira. E eu me ponho de novo nos degraus da escada do auditório aonde eu desenhava a giz ou com tijolo afáve1 a planta de minha não-casa. Desenho sala, corredor, 462

e vou presto à cozinha alimentícia, pra só lembrar a casa longe, como um perdido paraíso pra quem no inferno de Dante. Rio, 1957

QUASI CHARADA QUASI POESIA – Num nome de mulher perversa Deixei o fim da amargura. Uma e duas? – Uma e duas... Meu coração disse Maura. Rio, 1957

HONI SOIT QUI MAL Y PENSE antes da galinha tinha o ovo antes do ovo tinha a galinha antes da galinha tinha o ovo antes do ovo tinha a galinha Nunca pude filosofar, ou poetar, sem a especulação deste fato singular. Pois, se antes da galinha tinha o ovo, antes do ovo não tinha a galinha? Materialismo, ou espiritualismo? 463

Evolução, ou brusca formação? Mas fato é que antes da galinha tinha o ovo e antes do ovo só podia ter galinha... antes do ovo tinha a galinha antes da galinha tinha o ovo antes do ovo tinha a galinha antes da galinha tinha o ovo Rio, 1957

UMA JANELA Só basta uma janela De uma janela só vejo de dentro o que muito não cabe lá de fora Só basta uma janela (ou olho) uma pequena janela (ou olho) e nada mais Coitado céu se pensa que não o vejo na terra debruçado lá longe Perto de mim se afasta muito dela e de mim – do meu ciúme 464

Coitado céu se pensa que não vejo seus amores Céu, meu coitado, eu daqui vejo tudo sem precisar nem toda uma janela Só basta uma fresta (ou olho) uma fresta pequena e nada mais Resende, 1957

FALSAS CORTINAS Eu lia as tuas cartas junto à clara janela. Foi quando uma cortina de leveza e transluz me roçou de um carinho em vez da tua mão. Mas vinda pelo vento – foi o vento – o acaso de carinho sem própria decisão. Sem tua mão – que me acarinha pelo prazer de me acariciar. Resende, 1957 465

A MAÇÃ DO PARAÍSO Eva, olha a maçã que você me deu! São todas assim as maçãs do paraíso? Metade do sol, metade da sombra. Eu já comi a metade boa – a metade amarga eu não quero não. Eva, olha só a maçã que você me deu! E se eu recusar e não comer a metade da sombra? Terei outra maçã? Eva, olha só esta maçã que você me deu! Eu acho que não como não, Eva, que eu não sinto vocação de ser denovo Adão. Resende, 1957

POESIA NA NOITE TARDE É tarde. É noite. É muito tarde... Sentado à mesa, estudo. Mais fazer? Na rede da memória balanço o antigo amor: 466

Não nasceu nem morreu: passado, congelou. Faço denovo meus dedos muitas quilhas atrevidas no teu mar de louro cabelo. Meus olhos (dois potes sedentos) procuram a forma adolescente, prevendo rechonchudos seios – teus. É tarde. É muito tarde. É menos tarde, porém, que quando lá. Não tenho nada: nem é meu ar que respiro, nem carne pra me aquecer. Me falta um coração do outro lado. Não tenho ninguém nem você. Você eu matei com um tiro de desejos. Eu devia chorar porque não tenho nada. Mas tenho o nada. Que chorar? Só que ainda tremo, vendo você ainda me acenando: os degraus de mármore da escada, o corrimão de mármore da escada que eu não subi... por que? Já não me lembro. Rio, 1957

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ESTRATÉGIA – Um viado entrou no cinema. Já estava escuro. Sentou. Passou a mão na minha perna do seu lado e foi subindo e mais: levou um soco nas partes que ele também tem. – Você é uma besta! Isto não se faz com um digno viado. Rio, 1957

FUNERAIS DO VISIONÁRIO Quando eu deixar a vida não quero prantos. Não quero. Uma lágrima sequer não quero sobre os olhos: olhos que me viram, olhos que meus olhos viram... Lembrai dos meus olhos cascatas, cascatas de outrora e agora pedra, e agora gelo. Não quero mãos debulhando terços. Absolutamente não quero. As mãos que me tocaram, as mãos que as minhas mãos tocaram... 468

Lembrai das minhas mãos cavalos bravios, das minhas mãos às vezes potros mal nascidos. Não quero lábios dizendo preces. Lábios. Simples lábios-lábios. Lembrai dos meus lábios movendo o indizível pensamento. Não quero pés me seguindo: os pés que se afastaram, os pés que me trouxeram expressões arrumadas sobre os rostos. Lembrai dos meus pés – os meus pés agitados – correndo inquietos onde os manda o vento. Não quero luto. Não quero sobretudo o luto. Não quero gente de preto: só quero o preto, a limpidez do preto. Não choreis – ride. Não debulheis terços – tateai prazeres. Não me segui com vossos pés: – dançai. Não vistais preto – despi-vos. 469

Principalmente não quero marcha fúnebre ou quejandos. Marcha, só as aceitarei de carnaval. A tudo, vou preferir vosso riso – gargalhoal – que num sorriso vou quando eu morrer. Campos, 1957

RESIGNAÇÃO Vem, solidão, destino meu. Vem e me enche com teu vazio. Vem, e traz no vácuo do teu seio a ânsia que é meu vinho e me embriaga da ânsia que traz ânsias de outro anseio. Vem, dona total do meu cuidado. Vem, musa sensual da minha fonte. Vem e me roça de leve os dedos frios e faz estremecer a minha carne na lascívia gelada do teu beijo. Vem, noturna. Vem, dos dias e das tardes companheira. Cuida cada instante teu pupilo no paralelogramo das paredes. 470

Vem mansa, vem calma e triste e mansa vem e me toma nos braços lenhosos e cobre meu rosto de beijos – congela em mim amores e desejos. Rio, 1957

CABELO BRANCO Primeiro fio de cabelo branco. O espelho me contou que envelhecia. Não pode ser! Sou novo ainda! E eu via incrédulo e pasmado o meu desbanco. Fechei com força minha mão vazia: vontade de no espelho dar um tranco. Mas que bobagem! O espelho foi tão franco... Ter a verdade é mais sabedoria. Que importará meu cume todo em neve, quando a brancura da cabeça altiva como a montanha suba pela esfera? Que o gelo vem, solidifica, e serve, ao derreter-se, quando o sol reaviva, fertilizando nova primavera. Rio, 1958

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MISANTROPIA Volto pra casa: a casa está vazia. Entro no quarto: o leito anacoluto. Olho ao redor, ninguém. Então degluto o cuspo amargo da misantropia. No entanto, sonho: toco, vejo, escuto, a corpo, a forma, a voz, dessa alegria feita mulher que em vão desejaria: pressinto-a nos silêncios absolutos. É um ser risonho, carinhoso e belo que pinto em mentirosas pinceladas. Quando virá, trazendo a fonte pura? Ninguém me dá resposta ao que interpelo. Só me aconselha a voz oca do Nada, comigo em minha cama sepultura. Rio, 1958

ORGON É um calor dissolvente. O corpo é chama. O sangue acelerado chega à boca. com seu gosto suigênere. Voz rouca. A pele se arrepia feita escamas. Não sono: sonolência. Surge louca vontade que num instante ativa e irmana todas as forças. E a nervosa trama parece a tanta vida demais pouca. 472

É um belo sentimento. O corpo vibra, sob a tensão-prazer do ser perplexo, num suave estremecer de carnes quentes. Prossegue e cresce. Até que se equilibra essa vontade – ou fome, enfim – do sexo, na conclusão do orgasmo consequente. Rio, 1958

VIDA E ZERO Que importa a mim que tudo me repila, que tudo me revolte, importa a mim? A vida mesma dá princípio e fim, e em cada coisa nova se aniquila. A réplica dos fatos é vã. Sim. Há muito estou cansado só de ouvi-la. Louca perquirição que me fuzila o pensamento. A ideia é trampolim. O Nada, que se veste de carrasco, é o cínico vilão que faz veneno e nos serve no Mundo – sujo frasco. Equacionando tudo como quero, este conjunto é enfim demais pequeno. A operação final é simples: ZERO. Rio, 1958 473

EM DEFESA DO AMOR PROIBIDO Dizeis que o amor assim é amor por Deus proibido. Que foge dos princípios básicos do amor. No entanto eu vos direi que mesmo se assim for, não deixará porisso de ser requerido. Falais em Divindade – e Nela, com fervor, talvez acrediteis. Melhor assim, que é tido por verdade Ela haver o mundo concebido, do monturo fecal ao cálice da flor. Se no orbe tudo tem lugar determinado, esse amor que proibis, vosso Deus mesmo o criou. E, sendo filho Seu, não pode ser pecado... Ó vós! Tirai de vez a máscara da face! Deixai que os homens tentem o claro voo e o cumpram, amando o amor do jeito que ele nasce. Rio, 1958

OPUS 27 Nº 2 “AO LUAR” O trinômio sonoro de Beethoven, subindo no princípio da sonata, é uma angústia sonora que refrata a angústia transparente de quem ouve. Parece cobra iluminada em prata de lua que se queima em céu sem nuvem. As notas fazem espiras que revolvem seu fruste amor que se ata e se desata. 474

O ouvinte se confunde nesse harpejo que se dissolve e atrás se distancia, lembrando beijos que não foram beijos. Gotas e sonho, postergado canto, ébrias de dor fingindo de alegria. Vera sonata em vez de vero pranto. Rio, 1958

VERSOS? Há muito tempo não te mando um verso? Não conto no papel o amor que sinto? Como escrever se, agora, num infinito só de poesia encontro-me disperso? Cada minuto vale de soneto. E cada dia, de épico poema. Que vivo (já não sonho) à força extrema do amor que me tomou, total, o alento. Que importa mais que eu te escrevinhe um verso? É apenas uma frase no papel. Letras que o tempo esfumará decerto. Que o verdadeiro mestre da poesia o amor toma por arte e, por troféu, a própria vida e a luta em que porfia. Rio, 7/11/58 475

TEMPO É TEMPO? Num mês, te amei por ano-entendimento. Ou bem talvez um lustro-liberdade. Num mês, por esta relatividade que os tempos acrescenta, de um momento fazendo imenso tempo, ou o antagonismo de horas passarem com o zunir do vento, te amei, creio, um decênio-sentimento, quando o silêncio nunca foi mutismo. Num mês, te amei por século-amizade: pela experiência de sentir o mundo que me ensinaram os mais sutis dos Gênios. É pouco, a quem persegue a eternidade e quer viver demais cada segundo que o cálculo do amor fará milênios. Rio, 07/10/58

INTUIÇÃO E RAZÃO Te amo. Pressinto-te potência. Exata força misteriosíssima do fulcro de uma alavanca enorme – o sentimento: função realizadora, ideologia. De uma razão que o meu sentir impinge e que a razão pasmada aceita apenas, haurindo uma certeza incomprovada é que comprovo uma incerteza certa. 476

Te amo: é que existes indutivamente e existes se deduzo-te a presença no que percebo e em que a razão me ordena. Amo-te fé – que na intuição respiro. Te amo razão – da pouca que me valha. Te amo fantasma e te amo realidade. Rio, 1958

DEPOIS DA CHUVA Cessou a aceleração das gotas perpendiculares sobre o paraboloide verde das ramagens. Meus pés ensaiam os riscos selvagens do movimento contraposto ao das sequências estelares. E o homem, no deslocamento impreciso da viagem, espreita, meio sem luz, entre os teares da imaginação, os paroxismos regulares que o acometem de racional libertinagem. É masturbação onírica da vigília antegozando o ponto alto inatingido antes mesmo de conhecer as diretrizes. E o homem – seu Eu – se humilha, aguilhoado sempre pelo cerebral prurido que o prende meio solto às raízes. Rio, 1958 477

A PRAÇA QUE JÁ NÃO EXISTE MAIS Nas horas sossegadas volto à praça sossegada. Nosso banco já não existe mais. Nem árvores. O lago (que já não existe mais) reflete, refrata, retrata nós dois. Depois os também dois corações xilogravados no tronco costumeiramente secular. Dois corações, uma flecha: símbolo? (Há mitos, tabus) Já não existes tu. Pergunto às inexistências da minha própria existência: – Sou mais? Rio, 1958

O IMBECIL DA MINHA RUA Imbecil que passa com a boca rindo à toa, com as mãos jogadas pro ar, com essa cara de ontem sem amanhã.

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Eu queria ser você, imbecil da boca rindo, pra viver com a boca rindo sem saber por que, de que. E quando as suas pernas trazem você descendo ladeira-abaixo e o meu cérebro me levando ladeira acima cruza com você, eu queria ser você, imbecil sem amanhã, pra descer também com você, com as pernas me levando pra viver com você, como você? Rio (Catete), 1958

TEU RETRATO O teu retrato amor o teu-retrato que tu me deste amor esse teu rosto esse teu rosto amor que tu me deste O teu retrato amor o teu retrato que tu me deste 479

amor esse teu olho esse teu olho amor que tu me deste O teu retrato amor o teu retrato que tu me deste amor a tua boca a tua boca amor que tu me deste O teu retrato amor o teu retrato que tu me deste amor o teu amor o teu amor amor que não me deste Rio, 1958

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RELENDO VERSOS DE MEU PAI Meu pai, por que perdeste a poesia? Quando perdeste a tua poesia? Onde a poesia te deixou, meu pai? Um dia, (por que exatamente um dia?) meteste a mão no peito e o coração lá dentro era mais forte, mais forte nesse dia de poesia. Um dia, (por que não exatamente um dia?) também fugiste à tua poesia, sensaborão fitando a realidade. Que tem de realidade?: fantasia. Meu pai, por que perdeste a tua poesia? Que ela não era, ela, a fantasia: era verdade, a tua humanidade. Ouve a poesia mais um dia, pai! Ouve a poesia. Volta a seguir a que deixaste um dia, (um dia?) capitulado à desumanidade. Que a vida é ela, e sem ser ela a vida, quem viver? 481

Meu pai, retorna agora mesmo à poesia! Que foi talvez por má comodidade, talvez pela maldade, que na poesia não podias ter, deixaste (um dia) de sentir: viver. Rio, 1958

QUADRA Quando falo ao telefone, muitos beijos mando à toa. Devolvidos pelo fio. Nunca tidos em pessoa. Rio, 1958

DA VIDA Deixo que a vida corra em desabrida. Eu ficarei na espera do desfecho, seguindo indiferente a cada trecho, aguardando o momento da partida... – Ora porra! Mas que partida?... Rio, 1958 482

NÃO MATES O AMOR Não apertes a garganta do amor que o amor sufocado é amor anquilosado para sempre – eterna dor. Não apertes a garganta do amor. Deixa que ele livre e forte. Prefere mesmo a morte a ver asfixiado o teu amor. Não apertes a garganta do amor, que o amor que nasce livre e cresce é todo prece, raro perfume de completa flor. Que o amor sufocado drenará toda a vida incurável ferida. Que o amor sufocado vai tornar-te um cofre que sofre de fechado. Que o amor sufocado te apodrece no peito de um jeito que serás enojado. Rio, 1958

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PORRADA Eu nunca levei porrada. Mas também não dei, tá na cara. Mas sabe que eu bem gostava se tivesse vez-em-quando um tapa-olho pela cara à mostra, pra mostrar que a minha cara levou porrada de alguém que também levou porrada? Eu devia ter nascido cangaceiro no nordeste... Desses caras meio-machos (mas se dizem muito-machos) que saem logo na porrada no primeiro olhado avesso. Eu tinha de ser lavrador, boiadeiro, ou seringueiro, lá no meio do Brasil. Dessa gente aporrinhada que quebra a cara dos outros, que rouba a filha dos outros, que mete a faca nos outros, que come a mulher dos outros... Eu devia ser Brasil neste Brasil tão porrada... Rio, 1958

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POEMA TRIGONOMÉTRICO Oh que saudades que eu tenho dessa trigonometria! Quanta conta se fazia... O professor não era propriamente carrancudo, nem tinha pigarro seco ou molhado, nem olhar-de-canivete por detrás de bifocais: era só professor de trigonometria. O que me dá saudade mesmo de lembrar é o versinho mnemônico do mestre na decoreba das fórmulas adustas. Trigonometria ainda tem. O que não tem mais é sua pátria-poética que ficou pra lá pra trás. “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, seno A cosseno B, seno B cosseno A. Rio, 1958

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EU FICO DE CASTIGO Na escola primária eu gostava de tudo menos de castigo, como qualquer criança. – Ponto em procedimento! (e lá ia rebaixando a nota da matéria que eu menos acertava) Hoje até às quatro horas. Cem vezes: “Não devo brincar em aula”. A sugestão por vezes dava certo pelo menos até nova marotada. Dona Xixi era a mais ruim das professoras. E eu naturalmente não gostava de castigo. Mas se você mandasse, menina, juro que eu copiava quantas vezes: “Não devo me afastar do seu colo”. Rio, 1958

A MORTE DO FILHO QUE NÃO NASCEU Meu filho morreu. A morte o levou nas asas sem voo, nas cores das dores que o porco do mal na vida espalhou. Morreu meu filhinho que nunca nasceu. Meu filho querido 486

que é neto do pranto, bisneto do medo do medo que eu. Meus olhos nem choram. Por dentro é que peno chorando essa morte sem morte e sem carne do filho afogado na última cena. Meu filho não vive, que nunca viveu. Somente pra mim, no espaço sem nada, no tempo parado, meu filho nasceu. E bem cedo ainda, mal tido o seu parto da entranha da sorte, meu filho acabou, sumido pra sempre de assunto e de trato. Meu Deus! Que fazer? Meu filho não vive. Só resta saudade, lembrança esquecida, do filho adorado que nunca eu já tive. Rio, 1958

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GAVETAS Provavelmente não terei gaveta onde guardar a página esquecida. Velho papel com data muito velha, cadê essa mão que as letras desenharam? Minha página torcida de sangue e tempo tachada não caberá nas gavetas limpas de naftalinas brancas. Rio, 1958

O GRANDE ERÓTICO Sim. Gosto de ser poesia e sentir que sinto. É bom gostar a vida em todas as papilas. Provar o sensorial e o extra-sensorial que fica além do gosto. E gosto porque quero – ver poesia – mesmo sem grafia. Vale é a vida neste estado. Sentir cada coisa a toda hora – tudo no recente. Vale é ser poesia – mesmo só por dentro sendo. Como um círculo girando ao seu redor sem centro. Bebe-se angústia, às vezes. E a sede insaciada se desaltera em mais sede. Mas é bom que – ser poesia – é ser todo erotismo: Masturbação perene e admirada. Cópula eterna com as essências. Os dentes de luxúria mordendo a vida e os dedos mais sensíveis bolinando bicos de mamas túmidas de ideias. 488

É o ser que se enrosca convulso comovido na alegria unívoca do coito divino. E se ejacula, enfim, no mais comprido orgasmo, o sêmen indescritível de um poema. Rio, 1958

MEDIDA TRANSCENDENTE De muitas vezes debrucei-me, insone, a noite adentro e pelo dia afora, na busca da certeza que minora a angústia de saber que empuxa os homens. Procura da medida que comprove quantitativamente a qualidade: síntese estática, numa unidade, de todo esse universo que se move. Em qualquer dimensão que além da física, penso, repousa explícita essa incógnita que tanto quero e que todo me expira. Vê, por exemplo: minha mente é tísica perante esta medida enorme e insólita do amor trans-infinito que me inspiras. Rio, Jan/59

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NO CASO DE EXISTIR MENDACIDADE Se o odor de uma verdade incomprovada se transforma no opróbrio da mentira, deixa! Que o tempo mesmo te sugira e te comprove com a mudez do nada. Silêncio! Peço muito? Nunca expliques o que não podes explicar com a fala. Cabe – a verdade – ao coração guardá-la: e o coração fechado é como um dique. Tem teu segredo. A liberdade vive. O teu domínio a mais ninguém pertence. A mais ninguém. Prescinde desse alarde. Queiramos, não queiramos, somos livres. O arbítrio há, se pense ou não se pense. E aceita, ou não, tua forma de verdade. Rio, 12/5/59

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CÊ BESTA!... Não morrerei sem que chegada a hora. Tenho um desejo enorme de morrer, de me matar, safado desta vida, mas não farei jamais coisa tão besta: não morrerei sem que chegada a hora. Não morrerei sem que chegada a hora. Pode vir tudo: febre, mal do peito, lepra, neurose, dor de corno, cancro... Matar-me? Não. Que eu fico para o bolo. Não morrerei sem que chegada a hora. Rio, 1959

HORA LONGE DE VOLTAR Mal chego em casa vindo do teu colo, reespero a hora longe de voltar. Desejo abrasa, na cama eu rebolo. Pelas desoras não durmo esperar. Que mais te vejo, mais doido que fico de mais te ver, de mais te abraçar.

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Que mais te beijo mais doido que fico de a hora de mais mais longe ficar. Rio, 18/1/59

UM DIA Um dia eu te direi que amei somente. Um dia muito longe, eu te direi com tua própria boca que tudo foi questão de amar somente. Um dia (terás a mão pousada sobre o peito: a minha própria mão tornada tua), dia do sol mais cálido e mais claro (tão claro como o antigo dos cabelos) verás (nuvem depois do vento) que tudo foi questão de amar, somente. Idos: suspiros, sustos, medos, trêmulos anseios. Dirás (eu sei) por tua própria boca que tudo foi questão de amar-somente. Rio, 21/1/59

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PARADOXO O homem aprende primeiro a realizar as coisas mais difíceis. E se desloca dentro de si mesmo buscando compreender as facílimas coisas que só mais tarde, e só alguns, irão saber. Rio, 1959

MARIAS Ave Maria cheia de graça! Tantas desgraças com tantas Marias... Maria sem Glória, também sem Cabeça... Desaparecidas... Maria só Dores, Maria desvirgem que tão maculada... Maria parida, Maria jogada, Maria caída, do cimo despenha pra dentro da vida. Maria da vida na morte caída. Maria desgraças... Rio, 22/1/59 493

A BOCETA DE PANDORA Pandora fecha a boceta, fecha a caixinha dos males! Já bebi desejo à beça – agora eu quero que pares. Dela sai hálito acre: maldição, meu dessossego. Sai a dor das minhas dores. Sai o meu desaconchego. Fecha a fonte, fada falsa, que me cobras tédio e medo. Quero ser feliz agora. Fecha a fonte! Origem dos todos males, Pandora fecha a boceta! Que eu, cansado de desejo, Acabo bebendo nela... Campos, 1/2/59

NA ROSA Por que recusas se no alumbramento de meu ver a gostosura do teu corpo, fazendo de meus lábios par de ecopros, as formas do teu corpo eu vou fazendo? Dizes que há coisas que não são beijáveis, partes cobertas de vergonha e nojo, que até de olhar se considera arrojo... 494

Olha, repara a natureza: as flores, o sexo das plantas, pra cheirar é que existem – também para beijar... Mais uma vez: não sejas orgulhosa e me permite que te beije a rosa... Campos, 31/1/59

LATINÓRIO Qui Quae Quod Comigo ninguém fode. Hic Haec Hoc Ujus Ujus Ujus Todos êles são lambujos: Padre, sacrista, Papão (sacristia com tesão). Rosa Rosae UM A UM Ovídio, César, Catão. – Você disse Catão? – Não: Cá-pão! Rio, 2/2/59

VIAGEM DE VOLTA AO AMOR DA AMADA O chofer acelera e guia minha esperança de aconchego. Braços nus me esperam vestidos de desejo. O ônibus chupa a estrada. 495

A nuvem com cara de Rei-Momo se amamenta no mamelão gazeado de escuro. Do ônibus chupo a estrada. Da barca chupo a baía. Chupo a praça, o morro, a rua, chupo a noite pro outro dia, e acelero e guio meu aceno de aconchego. Campos-Rio, 1-2/2/59

PORTRAIT DE AMOR O teu retrato sob meus olhos o guardarei constantemente. E sentirei mesmo que só o nosso amor intensamente. Sobre o papel gravado hás-de reter o amor perenemente. Os anos vão-se e vai-se o ardor e vai-se a sede. Mas este amor há de durar no teu retrato o instante exato de eternamente. Rio, 5/4/59 496

LADEIRAS Ladeiras sulcadas no verde espesso de esperanças frustradas. Ladeiras poentas. Os braços estendidos fiz o gesto horizontal de empurrar as montanhas cerco fechado de infernos verdes: prisão. Ladeiras que não são caminhos livres. O beiço mordiscado. A mão no bolso agarra o lenço branco: ânsia de paz confidência de choro. Ou nem. Petrópolis, fev. 59

AMOR CERTO O nosso amor, pra ser louvado, verso mais simples precisa ter. Verso pequeno, bem curto verso, bem curto e casto, que amor contasse tão longo e fundo como no mundo não pode haver. Meu canto entanto, tão seco e chato, não pode tanto: 497

melhor calar. Seguir sentindo, seguir fazendo, nada dizendo senão de amar. Rio, 22/4/59

ALIENAÇÃO Onde, como e quando alienaste o meu suspiro? O sopro que era meu, prematuro se perdeu em ouvidos insensíveis. Onde, como e quando deixaste meus sentidos em dedos alheios e deste de beber a lábios grosseiros meu gosto cálido? Onde, como e quando ofendeste o teu deus e a lei do éden na prematura dádiva da rosa? Rio, 3/5/59

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TORÇÃO DO REAL O moço da farmácia me vende pílulas de sono para esfumar imagens torpes. O moço caixeiro é um artista. Ou pelo-menos o é o farmacêutico do laboratório. Rio, 12/5/59

BOA NOITE Boa noite! O sono é bom como todas as coisas naturais. A noite sábia (a bruxa velha Noite) entende curar tudo: que assim que faz desde tempos imemoriais. Porisso entrego de noite minhas mágoas ao bom do sono e ao sonho destemido que dos gemidos da vigília escura farão canções ao claro do seu nada. É madrugada e a vigília é meu açoite. E o sono é bom. Meu casto boa noite! Rio, 13/5/59

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INCHAÇÃO TELÚRICA A noite fomentou o sexo das bactérias e minha cara amanheceu redonda como bucho de mulher prenha, por cima do dente podre. A noite fomentou o sexo dos homens e a terra amanheceu com cara de lua. Rio, 21/5/59

PÚBIS Meu sonho estrangulado brilha na lágrima escondida Meu sonho sempre sonho meu sonho inconseguido meu sonho feito insônia meu sonho brasa fria meu sonho de fumaça E minha vida se esgarça num regaço de púbis maculado. Rio, 5/6/59

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FÊNIX De minha boca já bebeste os mais longos e mais quentes poemas. No entanto ainda te quero dar mais versos. Meu inteiro corpo, em frenesi de carne, já te contou meu gozo inesquecível. Meu inteiro sentimento já te banhou do vento que se arrepia em meu deslumbramento. Mas ainda te escrevo. E te escrevo de cantar o meu poema do teu carinho dentro do meu gosto. E mais escrevo agora que sozinho, posso sonhar-te apenas, te pressentindo em cada espera de desejo. Vejo extenuar-se o amor, vejo que morre, e vejo que renasce a cada hora ainda mais forte. Mal morto, mal nascido, Fênix não-mortal, revive as asas, reformado da antiga cinza: antigo e novo, antigo e forte, forte e recente. E que faz ninho dentro do meu gosto. Rio, 24/7/59

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ALVO DESILUDIDO Noite. Si1êncio. Grito sufocado. Certeza incomprovada. Guiado EU a incerto fim: ALVO DESILUDIDO. Pernas que tremem (chuva estiada e frio ainda) depois do gozo errado, desperdiçado sobre fim deserto. Quanta coisa deflui não pressentida quando julgar se julga coisa certa... Quanto remorso vão... Quanta canseira... Quanta paixão sobrando esperdiçada... (Quanta lágrima sobrou de uma alegria, quantas que faltam para o desespero). Ecos de pedra na surra das ondas. Pingos de chuva. Coisas em segredo. Atos falhados. Ais inenarrados. Quanta energia desgastada em nada... Quantos desejos feitos contenção... Quantos amores desamor – só tédio... E um pedido muito grande de perdão. Rio, 4/8/59

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CANTIGA DE DEMENTE Gente, gente, estou demente. Como posso não estar? Minha cabeça confusa, meu coração que recusa continuar a pulsar. Minhas mãos querem sossego. Querem ausência de atropelos meus pés cansados de andar. Mas existe ainda uma força que me impele para o ar – para o ar, pois nada vejo que ela deseje forçar. E tudo, mesmo isso tudo, por que? Razão, quer falar? Sentimento, conta ao vento pra que ele possa encontrar: Que procure pelo monte, que procure pelo mar, e esta ausência de desejo possa o desejo encontrar. Minha gente, minha gente, quer me contar? Me explicar esta coisa inexistente que no meu silêncio há? Amor (se existe), aparece e ensina a caminhar!... Estou parado e voando, quieto e mudo estou gritando. Que demência esta será? Gente, gente, estou demente. – Nem mesmo sei mais chorar... Rio, 5/8/59

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DESTINO Eu sei do meu destino (meu destino) de menino. Tenho-o timbrado na testa como um outro qualquer homem. Meu destino é sangue e sal. Compreensão, sim, alguma. Burrice, às vezes, mas poucas (cabotino, cabotino!). Disso de saco, demais. Coices darei por dez, recebendo por cem mil. As mágoas, esqueço-as todas, questão de, tempo, talvez. Não dispenso a maldição (desnecessário). Que todos os homens têm seu destino posto na testa, como eu. Sei que a minha maldição vai com a testa e com o destino vingando da minha mágoa dentro do próprio destino desses homens (como o meu)... – Vou queimando mais cigarros. Rio, 1959

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ASSIM E ASSIM Antes era assim. Pouco depois não era mais, por sorte minha. Agora é de novo, pra minha mágoa. Solidão seca, sussurros sumidos, sentidos selados, suspiros sonoros, sibilando sempre na frustração dos esses escorregadios. Tudo como antes, assim como o ai da dor que dá no cotovelo. Rio, 27/9/59

SENTIMENTOS DE CAUSA INDEFINIDA (COMO NA MÚSICA)

Aqui-ali-acolá. advérbio-de-lugarmente indefinível. Derrepente. Qualquer parte ou porte. Incôngruos pontos de esconso caminho. Erráticas direções invetoriais. Presentemente incógnitos sentidos opostos: horizontalidade de impossíveis verticalidades. 505

Apenas sobem – gravemente – tumultos explodidos de abcessos, borborinhos subterrâneos, bemolidades violetas. Rio, 16/1/60

TRISTEZA Não sei por que, mas este gozo da tristeza... Parece que a dor deita comigo nuinha na minha cama, me dando pra sugar a auréola amarga da sua mama. Dorme comigo. Dorme? Pois sim... Se enrosca em minha gana de carne fria em convulsão de chama. Que gozo inexprimíve1 tens, tristeza! Como é tão fria a tua carne acesa! Rio, 18/1/60

SAUDADE BAÇA Nossos olhos, nossos ouvidos, já se cansaram das mesmas formas, se saturaram dos mesmos ruídos. 506

Nossas bocas já se esgotaram em todas as blasfêmias, Nossas mãos – exaustas – já mal exprimem os gestos ofensivos. Contudo, nos enrascamos no mesmo mal que não se extingue nem nos separa: só nos amarra mais como cipós. Contorcidos, entrelaçados, enraizados num e noutro ser, seguimos sob o jugo do pesar das compreensões impossíveis. E os rancores e os risos (mais raros que os rancores) desenham cicatrizes que hão-de se reproduzir: ficar. E depois, as esperanças inesperáveis e um só profundo e seco ai. E uma saudade baça do fogo que se foi. Rio, 25/l/60

TRÊS HIPÓTESES A primeira hipótese seria a de comigo viveres mansamente – tudo paz. Uma eterna compreensão – inconcebível. Uma felicidade incomensurável. Carícias, perfume de cabelos, aconchegos de carne, 507

orgasmos sexuais. O vazio longo e sempre das coisas irreais. A segunda hipótese é de separação. Daqui onde estamos, rasgaríamos o caminho em dois iguais, com despedida irrevogável e a descoberta da impossível comunhão. Outro vazio imprevisível – e mais o triste da solidão. A terceira e mais possível das hipóteses, com voz de verdadeira, é a união (a intocável proximidade) de duas chagas, de duas dores, e também da alegria eventual: a unificação, a fusão, a flagelação, a crucificação. Quem sabe, redenção? Rio, 25/1/60

NOSSA NOITE Minha noite? Igual à tua: inúteis tristezas, ódios impotentes. Os monstros semi-humanos da minha mente (igual à tua) 508

escoltavam verdades sigilosas. Tive iguais remeximentos aloucados aos do teu corpo insaciado, tenso, tumultuado, modelando ambos infecunda canseira no branco impuro dos lençóis amarrotados: um retrato abstrato de virtudes mesquinhas de cambulhada com santas imundícies. Rio, 7/2/60

HUMANA MÁGOA Humana aventura – buscar sentido no eterno incompreendido. Humana loucura – saber o nada e querer ter sentido. Humana tolice – ficar desesperado e apelar para a loucura. Humana mágoa – ser vencido por qualquer razão certa e indecifrada que por humana sorte o sentimento tece mas não prova. Rio, 7/2/60 509

SONHANDO VÃO Sonhando vão as moças pela rua. Uma quer um namorado, outra brincos de rubi, outra quer um cadilaque ou quer sorvete. Mas nenhuma das três quer um amorzinho. Nem a terceira que tem nádegas descomunais. Rio, 4/2/60

O MOFO O mofo deu no fumo. O fumo ficou fraco. – Foi fumaça fedorenta? – Foi falácia famulenta... O que deu foi mofo no fumo. Rio, 2/3/60

TRANSCENDENTAÇÃO Agora me aventuro em teu segredo sem laços de promessa ou sustos de surpresa. 510

Lá desenrolo lento o torvelinho me desmascarando de mim-mesmo. Me engrinaldo com teu sonho. Relaxo-me total inconsequente. Me atrito com anseios persistentes de abandono despreocupado. Me cubro de arabescos decorando-me com teus gestos aglomerados em desmazelo. Me devolvo a mim e em ti sou também agora. Rio, 17/3/60

A LANTERNA AZUL Menino no balcão sabendo o preço da lanterna azul. – Cifrão Cifrão Cifrão. Olhos do menino (cinza) mimetizando mirrado sonho. Campos, 15/7/60

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TRISTEZA TEM FIM (Canção)

Pra que chorar, pra que desesperar? Tristeza vem, depois tem que acabar. Eu tenho o samba, a mulata e o violão. Tenho a cachaça pra enganar meu coração. E nesse dia que a tristeza me apanhar: samba, violão, cachaça, mulata, é bom! Mas também eu posso resolver: tristeza vem, tristeza vai, tristeza um dia tem um fim. Eu deixo o samba, a mulata e o violão. Deixo a cachaça, vou lutar com meu irmão. E nesse dia que a maldade terminar: samba, violão, cachaça, mulata, é bom! Pois também eu posso resolver: tristeza vem, tristeza vai, tristeza um dia tem um fim. Pra que chorar, pra que desesperar? Tristeza vem, depois tem que acabar. 512

Deve acabar. Tem que acabar. Vai acabar. Rio, 1964 (de “O SAL DA TERRA”)

SAMBA EM SERMÃO

(Salmos e Sermão da Montanha) (canção) – O Amor é meu pastor, nada me faltará. – Os lírios dos campos não tecem nem fiam, mas andam vestidos que nem Salomão. E as aves do céu não plantam nem colhem, no entanto, porisso de fome não morrem. – O Amor é meu pastor, nada me faltará. – Se teu filho pede pão, tu não dás pedra não... Vá, vende tudo que tens, e dá! Vem, quem me ama me seguirá! É mais fácil um camelo no fundo da agulha, que um rico no céu passar. 513

– O Amor é meu pastor, nada me faltará. Rio, 1964 (de “AGNUS DEI”)

CANÇÃO DO AMAZONAS NOTURNO Rio azul Rio mar Onde a lua vem se olhar no espelho seu. Macapá – sonho agreste que me deste em teu olhar flor menina do equador menina flor que meu sonho criou. Rio azul Rio mar Tua espuma é pensamento a flutuar. Macapá – flor morena teu segredo-sedução é saudade tão saudade que em você deixei plantado o coração. Macapá, janeiro de 1965 (dedicada à cidade e cantada na rádio local)

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GÊNESE (canção)

Quando a terra apareceu era tão triste e vazia que Deus mesmo chorou sobre o seu feitio, molhando a terra de mar. Mas seus olhos clarearam na alegria de nas águas Ele ter guardado a vida: iluminaram o planeta nas mesmas cores que um dia se veriam nos olhares da palavra feita carne quando o homem apareceu. Quando o homem apareceu era tão triste e sozinho que aos milhares cresceu, contra o seu fastio, cobrindo a terra de amor... Rio, 1965 (de “AGNUS DEI”)

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CANÇÃO SEM MEDO Não tenho medo não! Não tenho medo não! O Amor é minha luz; é a minha salvação! Os malvados inimigos investiram contra mim. Mas caíram destruídos pela mão da justa lei. Eu só quero ter direito de viver nesta mansão onde têm tantas moradas do Amor de salvação. Não tenho medo não! Não tenho medo não! Rio, 1965 (de “AGNUS DEI”) (Salmos, Davi - 27)

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ANUNCIAÇÃO (canções)

AVE MARIA Salve Maria cheia de graça. De tanta graça o Amor te notou. E te bendisse, Maria da Graça, Maria Bonita, Maria do Amor! Salve Maria, canto e poema do novo deus que teu ventre gerou. Tua criança é nova esperança do fim da maldade ensinar pelo amor.

EXALTAÇÃO

(Magnificat - S. Lucas - 1,46) Minha alma exalta o Amor, alegre em meu salvador que notou na humilde serva, bendita entre as gerações. Me fez grande o poderoso. E seu nome é sempre santo. É sempre santo! 517

Ele põe misericórdia nos que o querem de verdade em qualquer das gerações. Com seu braço decidido, os altivos expulsou da mente e do coração. Desceu do trono os soberbos e os humildes elevou. Matou a fome dos pobres e os ricaços despojou. Rio, 1965 (de “AGNUS DEI”)

ÁGUA DE MORRO

(canção) (por ocasião dos “dilúvios” cariocas) Se não vem água, não tem: tô carregando. Quando vem água, só tem: tô me afogando. Eu lavo a roupa, subo prédio e limpo a rua. Minha família come pouco e anda nua. Dizem que é nada, mas eu sofro o meu bocado. Desgraça pouca é tiquinho, no ditado, mas só pra mim. No morro não tem água: quando tem é inundação. Meu barraco foi completo: foi morada e foi caixão para a pobre da criança que nasceu sem proteção. 518

Chega! Que a minha reza nem Deus escuta! Quem não tem nada, não tem: vive esperando. Quem não faz nada, só tem: mas até quando? Rio, 1965 (de “O SAL DA TERRA” Nº 1)

A LUZ NO FIM DO MUNDO E O FÍSICO “No fim tudo será luz” – Fermi

No entanto no fim tudo será luz. Assim declarou O FÍSICO, baseado em cálculos estrambóticos que jamais hei-de in ou felizmente compreender. Mas tudo será luz. E a inútil vida desta bolota de terra a girar boba assim no – céu – onde outrora habitavam os chorados deuses falecidos, cheia (ou quase) de uma formiga impertinente e presunçosa resolvida a chamar-se HOMEM quando chamou por nome cada coisa, a bolota de terra, diz O FÍSICO, também vai virar luz. E tudo terá sido vão: não mais importará que o Homem digladie, no élan da fome ou da vaidade; que bilhões de livros se-amontoem, 519

que a menina tenha colhido a oferecida rosa ou o menino tenha colhido a rosa na menina. Mas isto será no FIM. Quando tudo for luz – segundo O FÍSICO. Agora, existem multidões de humanas formigas que – seja como for – hão de ser alimentadas, vestidas, calçadas, amadas, para o “nobre” direito à classe humana. Mas nem todas comem diariamente (segundo os jornais que não são absolutamente escritos pelos físicos), nem se-amam diariamente e porisso talvez (só porisso, dizem homens menos físicos), não comem tão diariamente. Entre o físico E o não-físico, entre o amor e o dinheiro, permanece intata, múltipla, concreto-abstrata, a grande-fome de amor e pão. E há déficit em luz para a razão. No entanto no fim tudo será luz. Segundo O FÍSICO. Rio, 1966 (de “O SAL DA TERRA”) 520

ASTROAVE O homem da espaçonave emite beijo (teleguiado) ao ente amado. Amor eletridecifrágel. Mensagem punctiforme. Ex-grave. Ex-orbe. Carícia de astroave. Rio, 1966 (de “O SAL DA TERRA”)

O POETA – Foste votado aos amplos das viagens, oh monstruoso, displásico navio. Tua figura (trágica) no porto é exótica e escabrosa: somente afeita aos vastos dos teus mares. – E eis-me presa do cais no liame das amarras... De espaços arquimúltiplos e águas várias, construí-me a natureza. O casco espesso esconde a maravilha dos brinquedos: joias e flores para mãos de amado e coração de puros. 521

Levo na proa a quilha de navalha e as cores todas numa só bandeira. Se busco os adiados do horizonte (a linha azul do engodo, as esperanças), é por chãos que os rabiscos não traçam: o mar – infenso às cicatrizes das fronteiras. Recolho adeuses, distribuo acenos: gestos nunca de irmãos (o enxovalhado gesto), mas ímpetos de amante. O sorvo da carência, os ademanes do apelo, as sedas de vivência, as fomes de substância, transubstancio em carne e sangue do meu corpo. – Mas oh, monstruosíssimo e grotesco! Vaticinante, o teu perfil esguio (fluidodinâmica forma de arremesso) mesmo assim é ridículo, inverossímil navio! – “Amai para entender-me!” Criou-me o inconformado mais profundo e adscreveu meu nome ao da Aventura. E eis-me presa do cais no liame das amarras: insólita figura... Rio, 1966 (de “O SAL DA TERRA” Nº 1)

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DE CENTAURO FAUNO E SÁTIRO Em canto clássico, enxuto, vou vertendo os arremessos. Vejo exato no inexato, corporifico o abstrato, desgeometrizo o concreto. De centauro, fauno e sátiro, herdeiro um-quanto dos três (as três condições humanas), homogêneomisturados no equilíbrio mais instável: cada qual peleja e qual mais sonha sagrar-se rei. Mas do terceiro é que faço a parte maior de mim: que amor-brutamonte ofende e o rapace é desigual; que se-dar por força é rude e se-dar por roubo é mau. Amor-dado despojado, não-comprado nem vendido (não-forçado), nem forcado: consumido de um jato só, no clarão. Meio-átimo explosivo refazendo os ondequandos. De alegria sazonada: cutiladas de diamante e flor. Multiamor exalo de acácias ao vento: que dispendem o cheiro grátis quanto o grátis colorido nada perdendo, nisto sendo seu-modo-de-ser. 523

Ganimedes, monto cabra e recorro exatos píncaros esmeraldossafíricos. E verto nectar do Olimpo aos semideuses e aos homens, guardando no chão da boca os paladares futuros. Rio, 1966

O GRITO Mil mil-anos são precisos Para o poeta decidir de não-cantar. Mas até lá ele cantava tanto mas tanto cantava que muitos invernos do tamanho das eras glaciais faziam ele virar uma cigarra bela feito a cigarra aquela (humildez de cigarra) batendo na porta sempre aferrolhada do triste formigão. Mil mil-anos são precisos para o poeta decidir de não chorar. Mas até lá ele chorava tanto mas tanto chorava que muitas correntes como amazonas iguais fariam o corpo dele o sal de um mar procele feito o mar aquele aberto àquela gente que fugida de muita escravidão. 524

Mil mil-anos são precisos para o poeta decidir de não gritar. Mas até lá ele gritava tanto mas tanto gritava que até lá nas estrelas desse um safanão. Sendo de braço amarrado sendo de boca lacrada sendo de fome curtida (fome nunca repartida pelos fartos de nascença ou fartos pela indecência) mesmo sendo são precisos mil mil-anos são precisos pra não ser mais escutado seu grito desassombrado de voz que entende e diz NÃO pelos fracos de nascença ou fracos pela indecência de quem come a quem trabalha cada migalha de pão. Rio, 1966

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PIGMALIÃO Eis o corpo (densotangível) fruta-pojada: fora, cutícula dourada; dentro, marmórea-carne homogêneoturgiafável que subdita à carícia (talhamável) de escopro heleno, mármore exultável. De lenho-barroco, trançados gestos (os poucos), movimento gracinconsútil de arabesco. A mão do corpo (refeito dardo) arvorada, por moto inconsentido (romantiestilizado), deusa do roubo ao céu do fogo. A mão-plúmbea de-fendida das radiações de urânios rebelados. Mão mais queimor que a limpa fàlicobomba inafrodisíaca, A - C- H de alfabeto inusitado, de ler aristocrático, apartado em torres de (nem marfim) aço puro. Rio, 1966

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ARTE DE Em arte de ver-azul qualquer cor que se-dê. E de esfera ter por forma de e para-a-qual toda forma é. Na de sentir o gume no desgume de navalha que o fio não-valha para o rasgo. E agulha de coser azul-dossel de fundo panocéu com buracos deixados de tecer. Em arte-dar sem mais não-ter que o nulo O do meio do SOU. Na de com fato de nudovestir recobrir o que é próprio desnudar. Arte de ir-por-ver e vir oticamente frustecolorforme. Na de, de pouco-nada, ser enorme parir sem parto, gestação, gameta, falo. Rio, 1966  

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TERRA a terra aterra lama pedra barro sujo merda a terra tenra o sêmen do arado falicossádico enterra cerra asperoventre pojado encerra grão de fé rompe brota medra a r (r) e t a Rio, 1966

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A BELEZA Antes de nós, milmuitas mariposas queimaram as asas no teu vidro glabro, oh lâmpada de enigmas! E o escravo ao doce jugo teu fugir nem ousa. Que gênio guardas, poderoso (elétrico?), próprio de (nestes tempos positivos...) nos obrigar, subditos mais passivos, de motu-próprio, ao teu governo estético? E os poetas vão cumprindo seu tropismo com ferros muito frágeis para abismos: pincel, palavra, sons e camartelo. És tão suavidespótica, Beleza, porque manténs, na tua força acesa, a eterna luz que tudo torna belo. Rio, julho de 1967 (paráfrase de Baudelaire)

OLHOS DE VER Entre cada-um e todos a mesma longedistância, o mesmo contido NÃO. Em cada olhar de abraço – embaraço. Em todo dar-de-mão – desatar de laço. 529

Em toda voz de cumprimento – adeus. Talvez nos cinzas todos que nós vemos residam radiações multicolores tentando um-olho que se-preste a vê-las. Rio, 18/07/67

QUANDO O SONO VIER Quando o sono vier dormirei sobre as rosas do teu corpo, oh deus semivivo aniquilável apenas no cansaço do meu sopro. Quando o sono vier, remeterei meu tempo ao teu desgosto e todo gesto meu descreverá teu ato em-cima do meu ato. E desfarei – quando o sono vier – os sonhos em verdade. E despirei as fábulas contidas na imensa desmentira do teu rosto. Com olho rútilo, vidrento, sereno e cru – meu olho incorrompido – não tingirei de açúcar teu retrato: sangue e cal – que o-verei no seu feitio desnecessário-existente-sem-sentido. Teu rosto estéril, neutro, fato: nada. Quando o sono vier. Rio, 1967 530

A QUEDA Com que direito suprimiste a todos – nós – na tua queda, levando a intimidade de olhos e nomes de nós-todos para o nada? Será que outra janela não se-abriu (senão aquela de vértigo e morte) para o esperado? Ou será que falhamos? Teu gesto é cerra cortina sobre nosso rosto: bofetada. Nos-humilhaste n’l ato, negando a todos nós a serventia, nos-reduzindo a formas sem conteúdo e sem sentido. Por amor? Por temor? Ou por vingança? Tão penoso o sangue em poça e a carne exangue posta ao lado! Que mistério conduziu teu divórcio com a vida: ócio forçado do corpo compulsiva e prematuramente aposentado? Que horror (ou tédio) fez com que abruptamente, qual rainha demente, a um só tempo decretasses e executasses o nosso banimento e a nossa morte? 531

Rio, 1967 A Leni morta que se-atirou do 8º andar pela janela.

QUE DIRÁS ESTA NOITE? Baudelaire

Esta noite, minha alma sozinha e sofrida, que dirás? Coração, e tu, que já não choras, que dirás à mais bela e boa, à mais querida, cujo divino olhar te-refloriu agora? – Cantará nosso orgulho sua graça e seu lume: nada pode igualar sua doce autoridade, é de espírito a carne, é de anjo o seu perfume, e seus olhos nos-vestem roupas-claridade. Seja dentro da noite em plena solidão, seja mesmo nas ruas entre a multidão, dança no ar seu fantasma como flama acesa. E às-vezes fala. E diz: sou bela e ordeno agora que por amor de mim só sirvas à Beleza. Sou teu anjo-da-guarda, tua musa e senhora. Rio, julho/67 (Tradução)

532

O BISCATEIRO Digamos que profeta Mas não de-profissão, ou de exercício: cromossômico. Quando nasci, já era muito antigo: tive sempre mais idade do que os anos. Como sempre tive rugas sobre o rosto, mesmo para os que encontrei, quando chegado. Correndo os olhos pelo mundo, vi que todos conheciam o meu retrato. E mesmo um aleijado, em Minas do Brasil, várias vezes meus esgares esculpiu. Por muito-conhecido e pouco-amado, não consigo dizer – nem sou cotado. Os códigos que os homens de interesses forjaram para as coisas estadadas não se-referem a mim – fiquei de-lado. E assim me-vão cabendo mesmo em qualquer-um que num correr-de-dedo à lista for sacado. Porisso esse ar perplexo diante do meu nexo: É que me-querem pedra. É que me-querem imagem. E se me arrisco e sou, desobjetificado, se eu me-procuro emprego no guichê do mundo, vejo no olhar de cada funcionário a comiseração ou o jeito refratário de quem me-sabe imprestável e importuno.

533

Na lista dos empregos conhecidos de um mundo assaz-urgente e distraído, pode ser que se-enquadre a de profeta mas a minha profissão não consta: a de poeta. Rio, 12/8/67

VADERRETRO Desiste: que todos os dinheiros não me-podem comprar a tessitura. Não que eu não-queira / ou queira (não me-cabe) vender, senão que eu não me-posso domar destinogestos que descrevo e que eu me-escolho. Tens erro no negócio: pensar que me-pertenço; que, próprio, me-fabrico meu ser de vento e a consciência fina. Mas não, porque eu não passo de ponto – em rua mais comprida que a memória. Ergueste mão (e os ouros nela) defronte do meu rosto movediço. E as moedas de sol, de fogoprata, nem roçarão nas minhas mãovelozes quantiqualificadas pelo movimento. Nem – mesmesmo se eu quisesse – não poderia estar na tua mira 534

para carimbo e rótulo: sou um alvo muito rápido, impossível para o calibre uniforme do teu sorvo: que instante sou no tempo e mera posição no espaço. Rio, 17/8/67

“A JUVENTUDE DIANTE DO SEXO” DE GAIARSA E eis que se-abre e parte o Homem (sem nome e arte) – des homem desarte. Anfractuoso se-cola os cacos o semideus e macaco (desdeus desmacaco). Parte. Naco. Alguém faz que o-dissolve e em nova forma o-resolve – que o-refunde em vivo molde. Homem novo (sem caroço) – rehomem descaroço) – Que aflora do velho poço. Move. Ouço. Rio, 1967 (agosto) 535

CARTA CONTRISTADA A UM ADOLESCENTE (Resposta à CARTA DESESPERADA A UM ADULTO) Que mão estenderei ao teu olhar de medo? Que mão herdei da mesma ausência? Que enredo? Que nexo te-posso oferecer, se estou perplexo, como tu, diante da mão que falta ao desgastado rosto? Tua palavra dura, de diamante, fere os ouvidos, mas não os-sangra ou purga. Por ti e por mim-mesmo, já de outras vezes levantei meu grito: os rostos se-voltaram sim, mas eram cegos. A nuvem, a escuridão, não são indevassáveis; quando o-são, por olhos desarmados, é bastante outra-mão em nossa-mão para o alívio do pânico. Esta mão tenho – e te-ofereço. Não é vergonha ou medo que teus olhos me-inspiram – quero é vê-los e vê-los vendo o humano nos meus olhos, e a ternura, a indispensável ternura. Não preciso descer, ou subir, para este encontro: Estamos lado-a-lado, só nos falta é vermo-nos. Olhemo-nos pois. E eu te-aceitarei e tu me-aceitarás na toda grandeza e humildade do que somos e não nos-xingaremos mais de ADULTO e ADOLESCENTE 536

Sim, tudo depende de mim, de ti – porisso existo e existes. E eu escuto o teu canto de desgosto. E te-prometo (sim, porque é promessa), não trair nosso pacto de sangue: porque é de sangue o contrato que fui no teu e no meu corpo. Me-falta a mão que não herdei: poder e mando. Mas tenho a oferecer-te todo o resto: sangue e nervos e carne e vísceras e mente... E tudo isto por teu canto triste que eu sonhei mais alegre que o de pássaro. Rio, 21/8/67

PRESENTE DE U. S. DONZEL Donzel do céu descido na astronave de prata ou lata pra me visitar, que pomba ou bomba assim demais custosa qual lerda merda trazes no sovaco? Presente quente, armado e destrutivo lego de grego pra novo troiano? Também não vem de fortebelonave que o mar, de azar, 537

já joga em meu gramado. E agora fora, cavalo de berilo, que há gente à frente de tua fome insana. Se é ver-pra-crer, superói desenhado, lambe o meu sangue que eu te escorro a tinta. Rio, Leblon, 27/1/68 (about viets)

AO CARO CHARLES (DITO BAUDELAIRE) E OUTROS RIMBAUDS ILUMINADOS, COMO O HEN Ao querido Charles, longe, estico a distância do meu nojo. Somos do mesmo nojo – de mão em mão passado detrás do tempo imoto e entanto deslocado: como no quatro-por-cem dos desportistas tentando um recorde absurdo de prêmio igual a sonho, o mais gratuito, o mais safado, de quem a vida demais tornou mais lúcido; enfim, o prêmio exótico da lucidez no paraísaverno. Nos juntaremos portanto em beijo desgraçado, de amor mais deslocado e mais verídico. Minha mão de borracha estica sobre o quando e agarra a tua mão de visgo e de pecado 538

(mas de santíssimo hierático pecado) que salva os puros na infusão do mundo. Dois potes cristalinos, no silêncio apartado e transparente, de sol corporizado: tendo luz própria (embora a luz ser negra) de improvável fulgor que banha de Verdade. Deixo que a mão refaça o teu pecado de ser/não-ser, de desvotar cumplicidades: o sonho é de quermesses contra partidas de jogo já marcado. Pelos olhos de malícia, sem malícia projetamos o filme da humana dissolvência: que o vemos claro, à transparência da própria-demência não-drogada. E estico a minha mão no teu passado, oh futuroso, cumplicemente, porque o futuro é nosso. Rio, Leblon, 3/6/68

TRECHOS DE RIMBAUD LE BATEAU ÎVRE E como ia descendo Rios muito calmos, não me sentia mais nas mãos dos sirgadores: uns índios em berreiro os flecharam por alvos dependurados nus em postes multicores. Algodões da Inglaterra, trigo dos flamengos, nenhumas equipagens mais me importariam. Mortos os sirgadores, findos os berregos, os Rios me-deixaram ir aonde eu queria. 539

Benziam as tempestades cada sol de aurora. Como a cortiça, leve, dez noites empós, dancei boiando às ondas – as embaladoras – nem saudade ou lembrança do olho dos faróis. Mais doce que na boca um fruto sazonado, a água verde em meu casco as madeiras esbarra, lavando a mancha azul dos vinhos vomitados, desgovernando o leme e partindo as amarras. Sei trombas, sei coriscos pelos céus rasgados, sei ressacas, torrentes, sei o entardecer, a aurora como um povo de pombos exaltados, e algumas vezes vi o que o homem pensou ver.

O ÍDOLO (soneto do cu) Obscuro e franzido como um olhinho roxo, respira, humildemente envolto pela espuma molhada ainda de amor que segue a doce fuga da branca bunda ao coração de sua auréola. Filamentos iguais a lágrimas de leite choraram, sob o vento que cruel empuxa, como pequenos coágulos de marga russa, e foram se-perder onde o declive os deite. Meu sonho às-vezes morde sobre essa ventosa. Minha alma, já do coito carnal invejosa, a-fez goteira fulva e ninho de suspiros. É a azeitona pasmada, é a flauta muito cálida; é o tubo de onde desce o celeste maná: Canaã feminino entre suores recluso. Rio, 8/6/68 (Em versão livre) 540

LUTHER KING’S PRAY O Lord, send me an angel, a White an angel or Blue, to teach me your name and make me true. O Lord, send me an angel, a Blue and Blue of peace of peace and a White of virtue. But send me not O lord, For my complete confusion, that Red an angel of bloodish destruction.

But singing as a Lark The Lord delivered the Dark.

Rio, 1968

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PREGUIÇA

(de uma frase do Hen) Eu queria ser mulher (mulher e ninfomaníaca)! Convidar os homens todos para o meu leito de fada, para dar a grande foda intermitente e comprida, durada de toda-vida, com paradas para nada... Com paradas de somente fazer o que de-fazer, descapaz de não ser feito: o de-cagar, de-mijar, de-vestir, de-passear, o de banhar, o dos dentes escovar e afiar... Que nem de dormir, parada: que trepar desacordada é uma glória de mulher. Homem é que não vale nada, que só tesudo resolve, sem o que já não lhe-sobe o instrumento do trabalho – trabalho sim, que o-seria, porque dele eu viveria. E trabalho inteligente: com a cabeça a gente sente, no-que a buceta porfia. Rio, 10/06/68

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NÁUSEA As ondas desse mar lá fora, obstinado, rebolam meu horror de tua carne inconfidente no horror geral do mundo. Meu cigarro intermi-ná-vel espirala a tolice desta mágoa, desta insônia, numa gris irrisão. De mim rio meu riso mais gargalhoal, silente. Um Carlito interior faz em mim, por mim, pra mim, gozadas cabriolas tristes: um clown eterno – vivo – vestido de organdi, exibe a obscena transparência da nudez supeteada. Seu eterno é de vida, de homens vivos comuns, submissos, pacíficos, acomodatícios, conformados, ajustáveis como qualquer outra peça funcional: humana hidra refabricada em cada palhaçada. A salvação se-esconde por detrás do toldo deste circo, no palco escarlate esporádico, montado para a tragédia – apenas vera se termina em morte – que na morte eterniza sem obrigar a maçada de sobreviver. Leblon, 17-18/12/68   543

SE DERES UM PEIXE A UM HOMEM ELE SE-ALIMENTARÁ UMA SÓ VEZ; MAS SE O-ENSINARES A PESCAR, ELE SE-ALIMENTARÁ TODA A VIDA. Kuan-Tzu PODER-SE-IA DIZER QUE TODA A VIDA CONSISTE EM VER, SE NÃO FINALMENTE, PELO-MENOS ESSENCIALMENTE... SER MAIS É UNIR-SE MAIS; MAS A UNIDADE SÓ AUMENTA SE SUSTENTADA POR UM ACRÉSCIMO DE CONSCIÊNCIA... VER OU MORRER. P. T. Chardin  

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O ALBATROZ BAUDELAIRE Por-vezes acontece que os marujos peguem, só por divertimento, um gigante dos ares: o albatroz, que dos barcos deslizantes segue, companheiro indolente, a viagem em fundos mares. Logo o-põem sobre as pranchas do navio, vemos que miseravelmente arrasta as brancas asas, com vergonha e sem-jeito, como grandes remos, em-torno ao frágil corpo, o rei das altas gazas. Como é grotesco e franco o pássaro-viajante! Tão belo no seu voo! E ali, feio, distoa! Este lhe-chega ao bico o cachimbo irritante, outro imita, coxeando, a fraqueza que voa. O Poeta se-assemelha ao príncipe do espaço que priva a tempestade e se-ri dos arqueiros; no exílio entre a canalha, só lhe-impedem os passos as asas de gigante sobre o chão grosseiro. Rio, julho/1967 (Tradução)

SONETO 55 WILLIAM SHAKESPEARE Nem mármore, nem ouro, em régios monumentos, Hão de sobreviver à rima poderosa. A pedra é patinada pela mão do tempo, Mas tu, neste meu canto, hás de luzir radiosa. Quando houver cada estátua a guerra, enfim, tombado, E arrancado o alicerce a cada construção, 545

Nem Marte, nem seu fogo rápido-alastrado, Jamais o teu registro vivo queimarão. Que, para além da morte e além do esquecimento, Hás de sobreviver, e o meu louvor contigo. E até que o mundo atinja o seu final momento, No olhar dos que nasceram encontrarás abrigo. Com meu verso, até o Juízo em que ressurgirás, Nos olhos dos amantes sempre viverás. Rio, julho / 1967 (Tradução)

A BELEZA BAUDELAIRE Sou bela, vãos mortais, como um sonho de pedra. E meu seio, onde todos sofrem alguma vez, Um amor, como a matéria, feito de mudez E eternidade, ao poeta inspira e nele medra. Sou uma esfinge que reina sobre o azul. Alio As brancuras de cisne a um coração de gelo, E odeio o movimento apenas por sabê-lo o desalinho. E nunca choro. E nunca rio. E diante da altivez dos meus comportamentos, Que pareço emprestar aos grandes monumentos, Os poetas se-consomem em sofridos estudos. Que, para fascinar esses amantes ternos, tenho em meus grandes olhos de brilhos eternos puríssimos espelhos que embelezam tudo. Rio, julho/1967 (Tradução) 546

CANTO ASTRONÁUTICO Que lua nua traz no peito estreito o-mais serenazul e o sonopuro do lagovago que em meu-sonho ponho no planeta-ninguém que em-vão procuro? No espaçolasso, estranhonauta, a flauta do berilo o-mais fino sopro aos astros; e a estrela, ao vê-la, e ouvindo cantoencanto, desfaz das leis e vem – seguir meu-rastro. Que luz me-pus por-sobre a testa em festa, Capaz de as-ofuscar gentilestrelas? Que inveja as-peja? Que vergonha, ou ronha, meu-gesto espelha sobre o rosto delas? Que sol-guinhol me-fiz? Que rei-sem-grei? Que dança de magia me-sagrou? Que Deus me-deu da cosmonave a chave? Que força tenho-eu? Que deus eu sou? Rio, 20/08/1967

LIÇÃO No teu-ser aprendi (lição) cifradocódigos de telepáticofonias mais distantes. Nos teus-gestos cresci – vigado-ser: Montante que me-converte dádiva; me-faço pródigo. É sonho o-mais antigo – de dizer sem-fio, sem-palavra, sem voz (não-som), sem boca-hiante no apenas-balbucio (eletro-ferro-imante), não-dizente o dizer que vai pordentro em rio. 547

Ai, ai, deliquifonte desmedida! Ai, vagas! Ai, luz: galaxio-sóis de nuvens escaldantes! Ai, carinho de lábio ajeito em pensar chagas! Lição de ser/não-ser. Lição de fraco a forte. Lição de transdecência pelo transbordante. No teu-ser aprendi lições – de AMOREMORTE. Rio, junho/67

ONDE O SE? Onde o QUE? Centro visual, eixo de carnação real para os DE e os PARA. Definitivo HOMEM não fugitivo. SI por qualquer transformação EM. Onde o QUÃO ? Resoluto, cabal poder de encarnação e ver. Acabado SER do não reterem todo recriarSE. Rio, 1966 548

NEXOFORMA Projeta-me genuflexo, anfígeno, a forma. Hierática, de estátua em mole pedra, forma tépida, convexonegligente distraída forma: urgente refazer de cheiro e cor de mar (o sal, o gosto-exótico). Esse ar parado – molosso gótico – porvezes refendido de vitralsorrisos de liame transparente em cada nexo. Porvezes fendido de vitrais-sorriso, projeta-me genuflexanfígeno, a forma, distraída forma: urgente formatépida, convexa, negligente refazer de cheirocor de mar, de sal e gosto exótico. Hierática, de estátua em molepedra, forma rompida em renovos de amplexo. De mar (o sal, o gosto-exótico) por-vezes refendido de vitralsorrisos, a forma tépidoconvexa, negligente, projeta-me, genuflexo, anfígenoforme: esse ar parado – molossogótico. Distraída forma. Urgente refazer de cheiro, cor: o transformado grão que poja – o SEXO. Rio, 1966

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POR TI Agora eu por ti paixão sóbria e grave (circunspecto-sub-límine) me-obrigo – ave – em teias de gaiola. Agora eu – de mãos para os voares (jamais para os liames) ganhas de acaso ao jogo dos fatores – por ti nas cruzes dos arames me-sacrifico os sonhos criadores. Agora por ti (o desejo a cutilada o espanto) iconoclasta fazedor de imagens se-obriga o santo a submissa testa aos pés da forma hierática. Rio, 1966 (de “O SAL DA TERRA Nº 1)

O POETA I De meu não tenho nada além do meu caminho. Sou o herdeiro da estrada e vou sozinho. 550

Dos donos emprestei mesmo o pó dos sapatos. Se o-desejam, sou rei – mas sem contratos. II Meu canto é de ter certeza por memória que me pesa. Sou a tocha antiga acesa que a mão reveza. Sou mar e nele me afogo. Sou cartas do próprio jogo. Sou crer e descrer de Logos. E fátuo-fogo. Sou fio de cada roca. E verbo de cada boca. Vento que tudo desloca com força oca. Sou dono de meus arcanos na curva em que me confino. Nem deuses nem suseranos: sou meu destino. III Enxergo tudo – mesmo quando nada. A estrada do futuro passa em mim. No miolo de uma forma acrescentada, vou criança. E cuido para o velho o seu jardim da infância.

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Dou curso livre a inferno e paraíso. Sapremo a acontecência por detrás. Fronteiriço ao fatal, meu quase-riso adia meu quase-pranto que, saber, se-faz – Poesia. Rio, 12/6/68

CARTAPOEMA A UMA (EX)MENINA De verdade, menina, não existem-mais (assim) menina. Os olhos estarão um-quanto gastos – nem mais aquele fresco em tuas-mãos. Mas, ainda se nem-mais existes menina-assim ou noutra-forma, preciso escrever-te o poema anacrônico. Então, diziam que nem-eras: pura (da purez bem-menor da retenção). Teu piano novinho, preto-e-virgem, que eu ia-martelar com nem-afinco horas esquecido (de-mim, nem-não, do próprio martelado) num Bach bárbaro, impuro, da vera-impurez da descompreensão... Fosse o piano um pretexto? – Nem era. Usava-o de antigo cacoete ou vício, ou, mais, um compromisso (ou medo, ou submisso zelo) assumido 552

quase-inteirinho das alheias-bocas, alienadas circunstâncias. Mas ficava-sendo preciso iludir as ausências do meu com teu-piano de empréstimo, o negrovirgem – que, de nós-dois, nenhum dominará jamais com os-próprios dedos. Os teus parentes, dois, acho que primos (nem parentes fossem?), os lembro. Me-fogem os nomes (que desde lá me-foram raros de lembrar, como hás-de recordar – se ainda existes). Teu-próprio nome já não-pego certo: tudo confunde nos longes – insondavelmente. Nem, definido, me-garanto como soava, de-então, nos meus-ouvidos. Mas há tua-figura, assim menina, pra quem escrevo agora, no todo-risco de já-sendo bem-tarde (mesmo sendo). Teus primos (fácil chamar) também ficaram, meninos, ficaram como tu: só eu me-vou mudado. O demais, tudo parou num passo de menino. Miúdos os dois, raquíticossumíticos, mas fortes no pordentro gigantado do audaz de retirar mais-vida à vida (enquanto eu, apenas contemplava). Dormiam no quarto junto do teu-quarto em duas-camas simplesinhas sobre o chão de tábuas. Nuas, benlavadas. De-noite permitidos (mesmo convidados) os todos-dois no teu-leito de menina: por secretar as seivas desta vida, 553

por decifrar poemas anatômicos. Meu-gesto de de-acordo (um-só) talvez chegasse para teus-olhos me-chamando de Benvindo. Mesmo que a lua brilhasse-e-rebrilhasse no brilhofalso emprestado (como teu-piano para-mim), nem mesmo assim: Minha-mão branca em tua-mão escura, minha-venta adejando o teu-cabelo esgrouvinhado, o cheiro afrodiz do teu-sovaco glabro, nada me-esquartejou vencido em teu-colchão. É que estavas um-templo! Se puro, impuro, é uma questão de dados. Vinha correndo rezar no teu-regaço a minha última potente-decisão. Mas estavas ali, nua, nua como me-mostraste uma-vez só, rapidamente nua (lampejo) que-nem Verdade, Revelação. Mas nua só por dentros: no dentro-meu tornada imagem, no dentro de tu-mesma, revestida da nudeza implacável da inocência. Invencido, deixei-te: nunca dobrado ao teu-leito macio (ou fosse áspero?), minha vitória era amargosa e desonrada. Um convite recusado, feito de apelos nos olhos, de apertões esfriados pelos dedos, e eu dopado, desretorcido, penexcicado: surrada bandeira, rota 554

no moral inusitado. De-agora, talvez não me-desses mais de-graça a graça da aurora. Bem-certeza transformaram-te (como todos, todas, tudo) na coisa-com-dono ou coisa socializada dos muitos (num preço de quase-nada). Talvez por demais-chorados já me-afastem, nem-convidem, teus-olhos gastos de-agora. Porisso menina sejas per omnia secula AMEM. Rio, 1966  

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CRÉDITOS ■ ABOQUE/ABAQUE Escrito entre 1964-1970. Primeira edição publicada por: Rio de Janeiro: Editora Rio, 1974. 200 p.

■ SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO Texto de 1975. Primeira edição publicada por: Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 142 p.

■ CANTOPROLIXO Reunião de poemas escritos entre 1967-1984. Primeira edição publicada por: Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 90 p. UMA PENA... Escrito em julho de 1984. LOCO SOLO (de Pedro Nava) Escrito em maio de 1984. Primeira publicação na seção de 07 junho do Seminário de Psicanálise de 1984, do autor, intitulado Escólios. RE(VE)LAÇÃO Escrito entre 1967-1970. Primeira publicação em LUGAR em comunicação, n. 2 (Revista). Rio de Janeiro: Editora Rio, 1° semestre 1973. p. 34-44. * LUTO Escrito em 1974. Primeira publicação em LUGAR em comunicação, n. 5 (Revista). Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 40-46. DEZ SOMETOS DE OMOR Escritos entre 1975-1982. Alguns dos “Sometos” foram publicados como cartão postal e distribuídos nas seções do Seminário de Psicanálise de 1982, do autor, intitulado A Música. “Chega de Amor” 557

foi posteriormente publicado em A Música (Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986, 2ed), p. 289. REVIRÃO Escrito em outubro 1983. Primeira publicação na seção de 10 novembro do Seminário de Psicanálise de 1983, do autor, intitulado Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso, posteriormente publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987, 2ed, p. 260-264 . DOIS Escrito em julho 1984. Publicado em Maisum: Boletim do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, n. 42, 03 out 1984. p. 1923 AELA Escrito em 1984. ■ KALUDA (O Nando e Eu) Escrito em 1995. Primeira publicação em LETRAS: Revista do Centro de Artes e Letras da Universidade Federal de Santa Maria, n. 10-11 (jan/ jun – jul/dez 1995), p. 254-285. Segunda publicação em REVIRÃO: Boletim interno da UniverCidadeDeDeus, n. 12, 15 jun 1996, p. 3-25. Terceira publicação em PUCHEU, Alberto (org.). Poesia (e) Filosofia (por poetas-filósofos em atuação no Brasil). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p. 29-50. Quarta publicação: Et Cetera: Revista de Literatura e Arte, n. 3, março 2004, p. 170-177. Curitiba: Travessa dos Editores. ISSN 1679-2734. ■ S’OBRAS (1971-1999) Coletânea de poemas publicada em livro do autor intitulado S’Obras. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. THE SUN OF A BEACH Escrito em 1999. Distribuído na Oficina Clínica do autor na UniverCidadeDeDeus.

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FASCINORANTE FEIÚRA Escrito em setembro 1998. Publicado em MEDUSA: Revista de Poesia e Arte, n. 2, dez-jan 1998/1999, Curitiba, p. 44. Segunda publicação em: CORONA, Ricardo (org). Cobra. Curitiba: Medusa, 2014, p. 26. PARA QUE HÁ PRECES Publicado em livro do autor intitulado Introdução à Transformática (Seminário de 1998). Rio de Janeiro: NovaMente editora, 2004, p. 71. MEMORANDO Escrito em novembro 1997. Distribuído na Oficina Clínica do autor na UniverCidadeDeDeus. ILHAS Escrito em outubro 1997. Publicado em REVIRÃO: Boletim interno da UniverCidadeDeDeus, n. 16, 30 nov 1997, p. 2. MORAL DO SURJEITINHO Escrito em 1992 e distribuído em seção do Seminário de Psicanálise do autor, intitulado Pedagogia Freudiana. SOPESADA NA PAUTA Publicado em livro do autor intitulado Arte&Fato (Seminário de 1990). Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001, vol. II, p. 195. REVEZES DA MINHA SORTE Publicado em livro do autor intitulado O Sexo dos Anjos: a sexualidade em psicanálise (Seminários de 1986-1987). Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. p. 216. SE QUERES BEM Publicado em livro do autor intitulado Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso (Seminário de 1983). Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 2.ed, p. 80.

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REMORDENDO A RARA ESCUTA Versos escritos cada uma das faces de um objeto em forma plana de um dado (hexaedro) estilizado (protótipo construído em 1983). DADOS OS SEXOS DOS ANJOS Publicado em livro do autor intitulado A Música (Seminário de 1982). Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2.ed. p. 325 e 326. Em 1983, foi feito o protótipo de um objeto em que o poema podia ser alternadamente lido ora com os dois últimos versos do “mascul-hino”, ora com os do “femin-hino”. AVE ADÃO! Escrito em 1982. Publicado em Maisum: Boletim do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, n. 38, 12 set 1984, p. 1833-1838.

■ DEMAIS POEMAS (1971-2013) 13.II.CINZA Enviado por e-mail em 14 fev 2013. TZVIÉTAIEVA Enviado por e-mail em 26 jan 2013. AmÓdio ReVida Enviado por e-mail em 24 jan 2013. POEMA DADÁ Publicado em livro do autor intitulado A Rebelião dos Anjos: eleutéria e exousia (Falatório 2007). Rio de Janeiro: Novamente, 2009. p. 110. MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E TRÊS Escrito nos anos 1980. LE TEMPS ADVERSE Escrito em 1971. Publicado em LUGAR em comunicação, n. 3 (Revista). Rio de Janeiro: Editora Rio, 1° semestre 1974. p. 21-34. 560

DOZE NOTAS DE VIAGEM (SEU PER-CURSO) OU DOZE MARCAS DE TRANS-CURSO (CABOTAGEM) Publicado na revista LUGAR em Comunicação, n. 1, 4º. trimestre 1972, p. 41-56. Rio de Janeiro: Editora Rio.

■ OFERTA DO MEU MISTÉRIO: poesia ultrapassada (19521965) Edição mimeografada: “Este livro foi composto e reproduzido pelo autor. Edição particular”. 1966

■ ADOLESCÊNCIAS (1952-1968) Poemas datilografados e reunidos em caderno com o título Poesia 195268, dentre os quais foram retirados (e alguns modificados) aqueles publicados em Oferta do Meu Mistério, referido acima. Com exceção dos dois abaixo, os poemas são inéditos. As datas em que foram escritos estão colocadas abaixo de cada poema. AQUELE HOMEM Publicado na Revista da EsPF: Escola Preparatória de Fortaleza. Ano xii, dez 1956, n. 13, p. 27. CAXIAS NA CHUVA Publicado na Revista da EsPF: Escola Preparatória de Fortaleza. Ano xii, dez 1956, n. 13, p. 73.

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