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Portuguese Pages 314 Year 2018
copyright © 2018 editora zouk
Projeto gráfico e Edição: Editora Zouk Revisão: Tatiana Tanaka Capa: Amí Comunicação & Design
Dados Internacionais de Cata Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 M433q Matos, Marlise Quem são as mulheres das políticas para as mulheres no Brasil: expressões feministas nas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres Vol 2 / Marlise Matos, Sonia E. Alvarez. - Porto Alegre, RS : Zouk, 2018. 312 p. : il. ; 16cm x 23cm. Inclui índice e bibliografia. ISBN: 978-85-8049-067-1 1. Ciência Política. 2. Sociologia. 3. Mulheres. 4. Feminismo. I. Alvarez, Sonia E. II. Título. 2018-1129 CDD 305.42 CDU 392 Índice para catálogo sistemático: 1. Ciência política : Mulheres 305.42 2. Sociologia : Mulheres 392
direitos reservados à Editora Zouk r. Cristóvão Colombo, 1343 sl. 203 90560-004 – Floresta – Porto Alegre – RS – Brasil f. 51. 3024.7554 www.editorazouk.com.br
Sumário Introdução Solange Simões 7 Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil: desafios da sua institucionalização Schuma Schumaher 21 As mulheres das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres são feministas? Solange Simões 57 As CNPMs e a configuração do campo feminista: sidestreaming e mainstreaming através do “feminismo estatal participativo” Marlise Matos e Sonia E. Alvarez 87 A percepção das relações de gênero e raça das delegadas em perspectiva comparada nacional e entre elas e entre as duas conferências Marlise Matos e Ian Prates 135 Mulheres negras na institucionalização de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma agenda em aberto Johanna Katiuska Monagreda 171
O debate sobre legalização do aborto e a Inclusão de diferenças nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres: direito ao corpo e feminismos jovens Laura Martello 211 Divisão sexual do trabalho e usos do tempo: a inserção temática e o feminismo acadêmico na SPM e as percepções das mulheres participantes das CNPMs no Brasil Breno Cypriano 257 Mulheres na política, as conferências e o ciclo democrático Flávia Biroli 297
Introdução Solange Simões1 O volume 2 desta coletânea de capítulos que analisam os dados da pesquisa “As mulheres das políticas para as mulheres: quem são aquelas que constroem o feminismo estatal participativo brasileiro?”, coloca o foco diretamente no entendimento das concepções e práxis dos feminismos das delegadas das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres (CNPM) de 2011 e 2016. A pergunta inicial foi, portanto: As delegadas das CNPM 2011 e 2016 são feministas? Responder esta questão requereu incluir e responder outras questões de pesquisa também levantadas e analisadas nos capítulos deste volume: Quais são as definições e concepções do feminismo das delegadas? Quais são seus valores? Quais são suas práxis? Quais são as trajetórias dos seus ativismos? Quais são suas relações com o Estado e com outros movimentos e instituições da sociedade civil? Quais são os contextos nacionais e internacionais nos quais seus ativismos emergiram e passaram por transformações? Quais são suas principais limitações e desafios? Ao fazermos todas estas indagações sobre concepções e práticas das delegadas, partimos do entendimento que o feminismo tem sido tanto teoria quanto práxis que englobam visões competitivas, estratégias de disputa e a interação de várias atoras e organizações políticas – todas habilitadas e constrangidas por fatores estruturais e históricos/políticos – e falamos neste Volume, portanto, em feminismos no plural e em feminismos contextualizados. Assim, apesar da centralidade dada a questões específicas por cada um dos capítulos, são vários os temas e abordagens comuns ou convergentes que perpassam as reflexões e análises dos feminismos neste Volume: com destaque para os contextos sociopolíticos – tanto nacional quanto internacional – nos quais os feminismos brasileiros e, entre eles, o feminismo estatal participativo, emergem e se transformam; as relações entre o Estado e a sociedade civil; as relações entre feminismo e Estado; as relações, disputas e convergências intra-sociedade civil e entre os movimentos feministas, entre outros temas. Consequentemente, nesta Introdução, ao invés de abordar cada capítulo em particular e segundo sua 1 Professora Associada do Departamento de Estudos de Gênero e do Departamento de Sociologia da Eastern Michigan University e Coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero da mesma Universidade.
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ordenação no Volume, ressaltaremos as convergências de temas e abordagens centrais aos feminismos nas análises de questões específicas levantadas por cada autor/a e capítulo. Os feminismos plurais presentes nas CNMPs 2011 e 2016 e analisados neste Volume refletem as transformações de gerações de ativistas e das chamadas ondas dos feminismos no Brasil nas últimas quatro décadas. Dadas as inter-relações entre as dimensões local e o global, as articulações entre os contextos nacionais e os contextos internacionais são imprescindíveis para as concepções e práticas dos feminismos das delegadas as CNPMs 2011 e 2016. No Capítulo 1, “Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil: desafios da sua institucionalização”, Schuma Schumaher nos mostra como os movimentos feministas no Brasil são constituídos e são, ao mesmo tempo, parte constitutiva do combate ao regime militar na década de 1970, da transição para a democracia nos anos 80, da democratização do país nos anos 90, dos processos de institucionalização e formulação de políticas públicas promovidos pelos governos petistas entre 2003 e 2016, bem como dos contextos internacionais, especialmente as conferências mundiais sobre mulheres, direitos humanos, racismo e população organizados pela ONU e os respectivos acordos assinados e ratificados pelos governos brasileiros. Ao analisar as trajetórias dos feminismos no Brasil situando-os em contextos históricos e sócio-políticos nacionais e internacionais diferenciados, o Capítulo 1 utiliza a noção de “ondas” mas, ciente das limitações desta metáfora, o capítulo não apresenta uma perspectiva de movimentos sem continuidade e sem diversidade interna. De fato, não ignorando as críticas a metáfora das ondas, veremos que é possível utilizá-la para diferenciar os contextos históricos, políticos e econômicos nos quais os direitos das mulheres e a igualdade de gênero são conceitualizados e promovidos por uma ampla gama de atoras, organizações e movimentos. Uma “onda” pode não significar necessariamente uma compreensão unificada ou linear do feminismo, nem implicar na delimitação temporal de tipos particulares de ativismo de gênero. Podemos utilizar a metáfora da “onda” no Brasil como correspondendo ao “contexto” econômico, social e político mais amplo, que possibilita e ao mesmo tempo constrange o processo da construção de identidades de gênero, das relações de gênero e o correspondente alargamento da agenda de ativismo de gênero. Neste volume, abordagens e agendas de lutas perpassam as ondas, e as ondas se distinguem mais pela maior centralidade, visibilidade e (re)significação que alguns temas e atoras adquirem, mesmo mediante a permanência ou continuidade da relevância das várias agendas. Na minha leitura dos capítulos deste Volume, abordagens e questões – como a relação dos contextos local e global, a relação entre Estado e sociedade civil; o mainstreaming ou transversalidade, o sidestreaming e a interseccionalidade – não apenas têm continuidade, mesmo que em renovadas
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concepções ou (re) significações, entre as “ondas” ou contextos históricos políticos, como também aparecem interligados nos diferentes contextos onde adquirem uma maior ou menor centralidade. A relação dos contextos local e global é crucial na explicação da emergência do movimento feminista no Brasil apresentada no Capítulo 1, seja através da experiência e exposição às ideais feministas de militantes de esquerda exiladas que retornaram ao país, seja na organização para a participação na primeira Conferência Mundial das Mulheres, organizada pela ONU na Cidade do México em 1975. Ademais, o contexto internacional é fator fundamental no entendimento não apenas da emergência da segunda onda do movimento feminista no Brasil, mas também para a ampliação da agenda feminista no Brasil e no mundo. Como argumenta Shuma Schumaher, o movimento feminista teve sua agenda ampliada em virtude do ciclo de Conferências promovido pelas Nações Unidas, que discutiram e deliberaram sobre os direitos das mulheres e igualdade de gênero (México 1995, Copenhagen 1980, Nairobi 1985, Beijing 1995) mas que também incluíram outros temas de relevância global como o desenvolvimento sustentável e justiça ambiental (Rio de Janeiro 1992); direitos humanos (Viena 1993); população e desenvolvimento (Cairo 1994); racismo, xenofobia e intolerância (Durban, 2001). É também importante notar que a Plataforma de Beijing, resultante da Conferencia Mundial de Mulheres da ONU de 1995, possibilitou um movimento para além das divergências entre as prioridades defendidas por feministas dos países do Globo Sul (principalmente econômicas e de classe) e dos países do Globo Norte (mais centradas no direito ao aborto, sexualidade, divisão sexual do trabalho) que marcaram a primeira Conferencia Mundial de Mulheres da ONU em 1975. Assim a Plataforma de Ação de Beijing de 1995 ampliou a agenda do feminismo transnacional ao adotar uma abordagem que ao demandar a transversalidade já apontava também para uma agenda interseccional, resultante do dialogo norte-sul, – antes mesmo da corrente quarta onda (como conceituada no capítulo 2) onde a interseccionalidade adquire centralidade. E também é importante notar que há uma relação recíproca entre o local e o global – os feminismos brasileiros não apenas foram impactados, mas também contribuíram e influenciaram a emergência de um feminismo transnacional crescentemente interseccional. O capítulo 1 ao descrever o processo de preparação dessas conferências, o qual fortaleceu os movimentos e suas articulações no país, mostra também como o Documento das Mulheres Brasileiras para a IV Conferência Mundial contribuiu para a ampliação da agenda feminista transnacional ao postular que “a luta das mulheres não pode prescindir do enfrentamento ao capitalismo, ao patriarcado, racismo e homofobia – que estruturam as desigualdades –, considerando
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a diversidade regional, cultural, racial, étnica, etária, orientação sexual, deficiência, credo e inserção política de cada uma”. As relações dos contextos nacionais e internacionais na produção de agendas feministas interseccionais – propiciando uma maior centralidade ao questionamento da “categoria mulher” enquanto uma categoria de gênero universal que ignora as diferenças raciais e de classe entre as mulheres – também é analisada no capítulo 5, “Mulheres negras na institucionalização de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma agenda em aberto”. A autora, Johanna Katiuska Monagreda, analisa o impacto de conferências regionais da América Latina e Caribe assim como as conferências mundiais da ONU sobre mulheres (Nairobi 1985 e Beijing 1995) e sobre racismo e discriminação (Durban 2001) argumentando que o momento mais importante de reconhecimento das pautas das mulheres negras pelo feminismo nacional e também de possibilidade de construção de uma agenda política que coloca no centro a interseccionalidade das discriminações de gênero e raça, foi o processo preparatório para a Conferência de Durban. Johanna Monagreda argumenta que com suas intervenções internacionais “as mulheres negras ganharam um novo fórum para levar as suas demandas, e essas demandas ganharam maior legitimidade frente aos governos nacionais, principalmente, a partir dos acordos e planos de ação resultados das Conferências Mundiais da ONU”. O capítulo 5 também nos oferece mais evidências para argumentarmos que a relação dos contextos nacionais e internacionais é uma relação recíproca ou de mão dupla ao considerar as contribuições das mulheres negras brasileiras à conferência de Durban através das reivindicações preparadas pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras. Como ressalta Johanna Monagreda, podemos considerar como um exemplo da força da participação das mulheres negras em Durban, o fato de Edna Roland, da organização negra Fala Preta, ter sido escolhida como relatora oficial da Conferência Mundial contra o Racismo. Ademais, como aponta o Capítulo 2 “As mulheres das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres são feministas?”, de minha autoria, no contexto do desenvolvimento do feminismo transnacional, há que se notar o pioneirismo das mulheres negras brasileiras no entendimento da interseccionalidade, tanto enquanto teoria como enquanto práxis, ao vivenciarem o gênero como intimamente interligado com sua identidade racial e posições de classe. Acentuando as conexões dos feminismos local e global, o Capítulo 2 busca situar teoricamente e comparativamente, as definições de feminismo apresentadas pelas mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro, em comparação com as definições correntes e emergentes nas teorias e práxis do feminismo transnacional. O Capítulo 2 argumenta que os feminismos brasileiros, construídos por
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várias gerações de mulheres, tem tido uma trajetória, convergente com as dos feminismos do norte global e do sul global, que vão do feminismo dos direitos dos anos setenta até o atual feminismo interseccional e emancipatório, o qual vai além da afirmação dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, e passa a utilizar o conceito mais abrangente de justiça social para propor igualdade para toda a sociedade, e não apenas para as mulheres. Para responder a questão inicial: As mulheres das CNPM são feministas?, o Capítulo 2 explora as respostas à questão sobre as definições de feminismo criando uma tipologia dos entendimentos do conceito de feminismo pelas delegadas que incluem as categorias 1) Radical negativo, 2) Igualdade de gênero, 3) Direitos, autonomia e empoderamento das mulheres, e 4) Emancipatória. Ainda buscando responder a questão inicial, em um segundo e terceiro passos na análise são incluídos indicadores adicionais do feminismo das delegadas: a) as suas atitudes (crenças e opiniões) em relação a questões relativas às desigualdades não apenas entre mulheres e homens, mas entre as mulheres, questões sobre desigualdades e discriminação com base na raça, classe, orientação sexual, e identidade de gênero, e b) seus também seus índices de associativismo politico e ativismo politico potencialmente intersecionais. O Capítulo 2 conclui respondendo afirmativamente que as delegadas as CNPMs 2011 e 2016 são majoritariamente feministas, e que seus feminismos são potencialmente interseccionais e emancipatórios, em sintonia com o feminismo transnacional em teoria e práxis. O capítulo nota que os movimentos feministas no Brasil e das delegadas das CNPMs evoluíram através de vários contextos políticos e de uma diversidade de ativistas e ativismos que exigiram múltiplos compromissos e alianças mais amplas – muito além de políticas de identidade estritamente definidas. Argumentase que as identidades intersetoriais e as correspondentes afiliações organizacionais múltiplas de ativistas evoluíram para o que chamamos de feminismo interseccional, no qual as intersecções geracionais e raciais são fortemente marcadas. Cabe chamar aqui a atenção novamente para o capítulo 5, onde a autora ressalta o papel crucial das mulheres negras – não apenas na chamada quarta onda, mas já sendo colocando na década de setenta – para o desenvolvimento de abordagens intersecionais nos movimentos feministas e, de maneira recíproca, dos movimentos feministas para abordagens feministas nos movimentos sociais e espaços de luta das mulheres negras: “Por um lado, o próprio discurso feminista se diversificou, assumindo para si um amplo leque de assuntos que interessam à realidade da vida das mulheres brasileiras: questões de classe, de reforma agrária, moradia, trabalho doméstico passaram a ser parte da agenda feminista graças ao fato das mulheres negras o disputarem para si e para o feminismo, se deslocando o sujeito mulher. Por outro lado, os discursos feministas circularam nos mais diversos
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espaços de luta dessas mulheres”. Como ainda mostra o capítulo 5, estas interconexões entre movimento de mulheres negras e feminismo podem ser observadas no ativismo político e civil das delegadas negras na CNPM 2016 – os dados do survey mostram que 48% das delegadas negras que participam de movimento feminista também tem alguma interação com a luta antirracista, seja através de organizações do movimento negro misto, do movimento de mulheres negras, ou participando de atividades e encontros. Como foi colocado brevemente acima, o Capítulo 2, ao buscar responder se o feminismo da maioria das delegadas é um feminismo potencialmente interseccional e emancipatório, analisa as atitudes das delegadas em relação à discriminação de gênero e de raça e em relação à inclusão de raça, orientação sexual e identidade de gênero na agenda do feminismo e mostra como as atitudes das delegadas são em sua grande maioria inclusivas. Por sua vez, no Capítulo 4, “A percepção das relações de gênero e raça das delegadas em perspectiva comparada nacional e entre elas e entre as duas conferências”, Marlise Matos e Ian Prates corroboram a predominância de atitudes ou percepções de gênero e raciais mais progressistas e destradicionalizadas entre as mulheres delegadas das CNPMs 2011 e 2016, mas buscam também explicar o conservadorismo de uma minoria das delegadas. Teoricamente, o Capítulo 4 aposta fortemente na possibilidade da constatação da existência de um processo em curso de destradicionalização societária através de um movimento dinâmico de coexistência entre tradição e destradicionalização (manutenção da tradição, re-tradicionalização e construção de novas tradições): “Desta forma, a tradição passa a ser compreendida como aberta aos processos de agência humana, sendo, pois, permanentemente reconstruída, reinterpretada, reinventada”. Empiricamente, o Capítulo 4 busca responder duas questões centrais: 1) Seria possível identificar percepções conservadoras e também tradicionais no que tange às relações de gênero e raça para o eleitorado no Brasil e percepções de gênero e raciais mais progressistas e destradicionalizadas entre as mulheres delegadas da 3ª e 4ª CNPMs?, e 2) Este tipo de percepção e de valores é afetado por algum outro tipo de variável sócio-demográfica, tal como escolaridade, renda e religião, por exemplo? Como? Quais são, afinal, as principais variáveis que condicionam estes tipos de percepção em nosso país e também entre as delegadas investigadas nesta pesquisa? Para responder a primeira questão, os autores comparam as respostas a questões de percepções sobre relações de gênero e raciais de um survey nacional de eleitores realizada em 2010 com questões do surveys das CNPMs 2011 e 2016. Mesmo reconhecendo possíveis problemas metodológicos relativos à comparabilidade entre os surveys (tais como diferenças entre os contextos políticos e culturais
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e entre os enunciados das questões), os autores distinguem quatro dimensões atitudinais medidas por questões incluídas nos três surveys: 1) o tradicionalismo de gênero no espaço privado (sustento da família e divisão do trabalho doméstico); 2) a percepção sobre discriminação difusa de gênero e raça (preponderância de preconceito e discriminação raciais); 3) o preconceito de raça focado em aspectos cognitivos/motivação (aprendizagem e raça); e 4) a destradicionalização de gênero (homoafetividade e aborto). Nas quatro dimensões atitudinais sobre gênero e raça, as delegadas das duas CNPMs apresentam valores percentuais com níveis bastante superiores de destradicionalização do que a média nacional no eleitorado brasileiro. Para analisar o processo de mudanças nas percepções e valores das delegadas entre os anos de 2011 e 2016, adicionando novas questões atitudinais incluídas no surveys da CNPMs (mas não presentes no survey do eleitorado brasileiro de 2010) os autores construíram dois índices: o Índice de Relações de Gênero nas Esferas Privada x Pública e o Índice de Discriminação Difusa de Gênero e Raça. Apesar das delegadas serem majoritariamente destradicionalizadas ou progressistas nos dois índices, os autores destacam, entre outros achados, que as delegadas das CNPMs são mais conservadoras no que tange às relações de gênero nas esferas privada x pública do que com relação à discriminação de gênero e raça. Para responder a segunda pergunta de pesquisa sobre as causas ou determinantes das percepções conservadoras ou progressistas, os autores, através de análise multivariada, buscaram identificar os efeitos de dimensões independentes sobre o comportamento dos dois índices. Entre 2011 e 2016 houve um aumento do grau de destradicionalização com respeito às percepções medidas pelos dois índices. Apesar do alto grau de destradicionalização das delegadas em geral, entre os fatores explicativos, destaca-se o impacto das religiões, com as delegadas protestantes e católicas tendo um grau um pouco mais elevado de conservadorismo nos dois índices tanto em 2011 quanto em 2016. No entanto, é importante ressaltar que este e outros capítulos neste Volume nos permitem perceber uma relação complexa entre religião e movimento de mulheres e feminismo. Como veremos mais adiante, o Capítulo 3, “As CNPMs e a configuração do campo feminista: sidestreaming e mainstreaming através do ‘feminismo estatal participativo’”, de autoria de Marlise Matos e Sonia E. Alvarez, nos mostra que “a participação nos movimentos religiosos é, e parece continuar a ser importante como porta de entrada, socialmente legítima e autorizada, para fomentar e recrutar o ativismo político das mulheres brasileiras”. Contribuindo para as análise de valores, feminismo e religiosidade neste Volume, no Capítulo 6, “O debate sobre legalização do aborto e a Inclusão de
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diferenças nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres: direito ao corpo e feminismos jovens”, Laura Martello mostra que em ambas as Conferências as delegadas mostraram-se majoritariamente favoráveis à descriminalização do aborto, mesmo ainda sendo este um tema controverso entre as mulheres que construíram as políticas para mulheres. A análise dos dados das CNPM 2016 nos mostra que a descriminalização do aborto em todos os casos é a posição de mais de 57% das delegadas, enquanto 28% é favorável a manutenção da lei como ela se encontra atualmente. Se analisamos o posicionamento das mulheres mais jovens, vemos uma diferença ainda maior, já que mais de dois terços das mulheres até 24 anos são favoráveis a descriminalização do aborto em todos os casos. O pertencimento religioso mostrou ser um fator de grande influência nas atitudes em relação ao aborto, com as posições mais conservadoras sendo mais presentes entre protestante e católicas do que entre as mulheres de outras religiões ou ateias. As protestantes são as que mostram a maior taxa de apoio à manutenção da lei como está (30% em 2011 e 44% em 2016), mas ainda há uma proporção significativa que também é favorável a descriminalização em todos os casos (28% em ambas as CNPMs). As católicas são majoritariamente favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos (38,3% em 2011 e 54% em 2016), seguido pela manutenção da lei como está. Ao verificar que o posicionamento favorável à criminalização em todos os casos apresenta uma taxa muito baixa, inclusive, entre as católicas e as protestantes, Laura Martello argumenta que “a perspectiva social das mulheres, enquanto grupo, ainda pesa mais que o seu pertencimento religioso”. Reforçando esta interpretação dos dados, os resultados dos surveys mostram que a autodeclaração como “feministas” e a participação em grupos de mulheres são os fatores que mais influenciam as atitudes favoráveis ou contrárias a descriminalização do aborto No Capítulo 6, Laura Martello também vai acrescentar o fator geracional à análise das percepções e feminismo e o articula com a crescente interseccionalidade da quarta onda argumentando que ao transpassar as diversas estruturas e espaços no campo do feminismo, e devido as suas forte orientação ao presente e às experiências concretas, “a articulação das jovens feministas se dá na interseção com outras categorias sociais, estando presentes suas experiências como jovens negras, jovens rurais, jovens lésbicas, jovens de origem popular e a partir da identificação com grupos culturais e ideológicos”. Contrariamente ao discurso recorrente de que as mulheres jovens não se interessam pelo feminismo, na sua análise dos dados do survey 2016, Laura Martello aponta que a totalidade das delegadas mais jovens – de 18 a 44 anos – se consideram feministas. O Capítulo 6 também discute como os feminismos jovens se mobilizam intensamente em prol dos direitos
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sexuais e reprodutivos e, em especial, em defesa do aborto legal, seguro e gratuito. Como Laura Martello relata, no contexto dos empasses sobre as decisões relativas ao aborto durante a 4a CNPM, foram feministas jovens que performaticamente entraram na plenária, “a maioria com os seios desnudos, entoando cantos em defesa da autonomia da mulher sobre o próprio corpo – impactando uma votação aparentemente empatada e levando o texto que versava sobre a legalização do aborto a ser incluído na versão final das deliberações”. De maneira convergente, o Capítulo 1, por sua vez, ao analisar as ondas do feminismo, não apenas afirma que A Marcha das Vadias (um movimento internacional liderado por jovens feministas) revigorou os feminismos, mas também ressalta a interessante continuidade de agendas feministas da quarta e segunda ondas argumentando que nas Marchas das Vadias “diferentes reivindicações de diferentes gerações de mulheres se encontraram nas ruas, recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e retomando palavras de ordem como ‘nosso corpo nos pertence’ ou ‘meu corpo, minhas regras’ fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970”. Ressaltando a importância das concepções e práxis renovadoras, no capítulo 6 Laura Martello também chama a atenção para o fato da participação dos feminismos jovens nas CNPMs 2011 e 2016 ter se dado através de um número muito reduzido de delegadas. A autora desenvolve argumentos e análises que alertam para as consequên cias da subrepresentação das feministas jovens para as políticas para mulheres. A relação entre Estado e sociedade e a relação feminismo e Estado (ou autonomia e institucionalização) são temas que também perpassam vários capítulos deste volume. Ressalta-se que o período de 2003 a 2016 foi marcado pelo fortalecimento institucional da igualdade de gênero no país – a criação da SPM – e a formulação de políticas por meio das Conferências e Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres criando uma nova relação de movimentos de mulheres e feministas com e dentro do Estado – o surgimento do “feminismo estatal participativo”. Uma das principais hipóteses de estudo é que esse novo processo brasileiro – reconhecido internacionalmente como um dos projetos mais amplos para a implementações das recomendações da Plataforma de Ação de Beijing sobre desenvolvimento institucional e formulação de políticas – transformou a integração anterior de questões de gênero naquilo que Marlise Matos definiu no volume 1 como feminismo participativo de Estado. Nessa nova forma de feminismo e em sua articulação com o Estado, houve uma participação de baixo para cima na definição de questões, recursos, implementação e processos de monitoramento. No período de 2003 a 2016, o Estado desempenhou um papel central na criação de mecanismos participativos institucionais para promover a igualdade de gênero, reunindo movimentos e organizações autônomas e promovendo sua participação na tomada de decisões e políticas públicas.
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O contexto internacional e, mais especificamente a Plataforma de Ação que resulta da IV Conferência Mundial das Mulheres em Beijing 1995, também vai ter um papel central na promoção da transversalidade (ou mainstreaming) dos feminismos brasileiros. A noção de mainstreaming proposta em Beijing, envolve fluxos “verticais” de atuação das feministas e dos seus discursos e práticas em direção aos partidos, ao Estado e às instituições intergovernamentais, às arenas onde se formulam, disputam e implementam projetos políticos e políticas públicas. O capítulo 1 nos mostra como o governo Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de implementar a Plataforma de Ação, firmou uma série de protocolos de cooperação com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da Saúde e elaborou, com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais, as estratégias para promover a igualdade. Contudo, a articulação “ideal” do contexto internacional de promoção da transversalidade com o contexto político nacional se dá apenas nos governos petistas (na terceira onda do feminismo na concepção de Shuma Schumaher, ou quarta onda, na concepção de Marlise Matos), especialmente com a criação da Secretaria Especial de Políticas Para Mulheres, com o status de ministério. É neste momento que a adoção da transversalidade e iniciativas para a despatriarcalização do Estado se intensificaram com a criação de novos mecanismos institucionais e formulação de políticas públicas para mulheres com ampla participação da sociedade civil, com novas propostas de relação entre Estado e sociedade, e entre feminismo e Estado. No Capítulo 3, “As CNPMs e a configuração do campo feminista: sidestreaming e mainstreaming através do ‘feminismo estatal participativo’”, Marlise Matos e Sonia E. Alvarez buscam avançar uma posição teórica que reconhece interações complexas entre Estado, sociedade política e sociedade civil, entre as próprias organizações dos movimentos e da sociedade civil em geral (dentre elas o feminismo), e entre as formas mais institucionalizadas de organização política (sindicatos, entidades profissionais, por exemplo). O capítulo 3 traça as trajetórias, os principais caminhos políticos trilhados e as formas de participação e articulação das delegadas as CNPM 2011 e 2016, e delineia as relações das organizações que elas representavam com outras entidades na sociedade civil e política e, também, com variadas instâncias do Estado. Com isto, o capítulo analisa como o mainstreaming ou fluxos verticais (em direção aos partidos e às instituições do Estado, inclusive aquelas “híbridas”, como os conselhos, que tem representantes da sociedade civil e do Estado) se vinculam ao sidestreaming ou fluxos horizontais “para configurarem um setor significativo do campo feminista brasileiro atual, cujos referentes principais são o Estado e as arenas de políticas públicas”.
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As instituições/organizações que tramam a rede do sidestreaming feminista das delegadas entrevistadas nessa pesquisa incluem as organizações do associativismo comunitário (e sua diversidade temática que aparece através das distintas questões com as quais lida: mulheres, moradia, bairro, donas de casa etc.), o movimento estudantil, o movimento negro, o movimento LBTG, o movimento de juventudes, o movimento indígena, o movimento rural, além das organizações sindicais e também das ONGs. E como exemplos de organizações que tramam a rede do mainstreaming feminista as autoras incluem os conselhos (instituições híbridas, mas que são viabilizadas pelo Estado), os partidos políticos, as entidades de classe (tais como a OAB e o CRM), e as organizações do próprio Estado (seja no Poder Executivo, no Legislativo ou no Judiciário). O capítulo 3 analisa a multidimensionalidade das articulações entre sidestreaming e mainstreaming mapeando quatro tipos de redes: 1) redes de trajetórias (que identificaram o caminho das trajetórias do ativismo político das delegadas entre as organizações e/ou movimentos dos quais elas participam); 2) redes de participação (que representaram as formas organizativas dessa participação politica das delegadas); 3) redes de articulação (que descrevem graficamente as formas como as organizações e movimentos nos quais as delegadas participam se articulam entre si), e, finalmente; 4) redes de fluxos (que visaram mapear a direção dos materiais e recursos que são produzidos pela organização/movimento do qual as delegadas declararam participar). As Redes de Trajetórias e suas interações mostram que quando as delegadas chegam aos movimentos de mulheres, elas já passaram por outras formas de ativismo anterior. Os movimentos feministas e de mulheres não se constituem nas principais “portas de entrada” para a maioria das delegadas, mas estão presentes nas trajetórias delas principalmente como seus elos intermediários. O mesmo ocorre, em parte, com a participação em Conselhos que algumas vezes são elos intermediários e em outros momentos também aparecem como pontos de chegada das trajetórias. Outra descoberta central do Capítulo 3 foi que a principal base política formadora do ativismo político das delegadas nas CNPMs brasileiras foi a participação em movimentos estudantis e nos movimentos ligados à religião. Mas, argumentam as autoras, “talvez, o principal elemento analítico de significância que precisa ser destacado sobre essas trajetórias refere-se à atuação das delegadas nos movimentos negros e também no ativismo de redes de mulheres negras. Para 2016, este ativismo se conformou em um ‘ponto de chegada’ das trajetórias das delegadas da 4ª CNPM. Isso demonstra a inequívoca importância do ativismo das mulheres negras na ocupação mais recente desses espaços das CNPMs”. Cabe lembrar aqui,
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como é ressaltado no capítulo 5, que em ambas as Conferências, a participação de mulheres negras (pretas e pardas) é percentualmente maior que o das delegadas brancas além de ser superior, em termos percentuais, à distribuição de mulheres negras no Brasil. Ademais, mais de dois terços em 2011 e mais da metade em 2016 das delegadas negras nas CNPM o fizeram como representantes da sociedade civil (movimentos, redes, sindicatos etc.). No caso das redes de Participação política, de maneira similar ao observado para as redes de trajetórias e das interações entre as trajetórias, as principais organizações de participação das delegadas são mais uma vez o movimento de mulheres e feminista e movimentos relacionados à igreja/religião, mas aparecendo no centro dessas redes a participação em partidos políticos. Merece aqui saliência a força de interação entre os movimentos de mulheres e feminista e as redes de mulheres negras, tanto em termos da quantidade maior das interações, quanto da força dessas interações. Em se tratando das redes de Articulação, as autoras destacam o fato de ter sido constatada menor densidade das articulações de rede para o ano de 2016 em comparação a 2011. Em 2011, a rede das articulações institucionais se estabeleceu centralmente entre os movimentos de mulheres e feministas, associativismo comunitário, movimento negro e conselhos. Já em 2016, apesar da trama de articulações ser menor, ela se deu através das interações com o poder executivo, o associativismo comunitário, os movimentos de mulheres e feministas e o movimento negro. No caso das redes de Fluxos de materiais, de acordo com o survey 2011 assim como o de 2016, os movimentos feministas e de mulheres dos quais as delegadas participam produziram material para outros movimentos feministas e de mulheres e a organização no 2º lugar para quem se produziu mais materiais ou ações foi o movimento negro, As autoras concluem que análises das redes reforçam alguns limites do ativismo estatal participativo: “ele não pareceu alcançar formas de articulações que pudessem funcionar como centrais para promover transformações substantivas nos padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero a partir do Estado”. Os dados analisados pelas autoras no Capítulo 3 confirmam assim a sua formulação de que “as ideias feministas hoje no Brasil realmente se articulam e viajam ao longo de múltiplas teias organizacionais e a partir de matrizes discursivas nas quais as delegadas das CNPMs fazem/fizeram parte. Elas certamente constituem e organizam o ‘subcampo’ do ativismo feminista no Estado, vislumbrando o ‘sidestreaming via mainstreaming’ e vice-versa das questões relacionadas a gênero, mulheres e feminismo nas políticas públicas”.
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É relevante também observar que ao analisar o sidestreaming feminista, o Capítulo 3 reforça e vai além das análises recorrentes nos outros capítulos deste volume sobre a interseccionalidade das práxis e agendas das delegadas das conferências, e oferece uma contribuição inovadora e detalhada das trajetórias de construção das interconexões entre instituições, movimentos e organizações nos quais as delegadas participaram e participam. Em uma outra contribuição as reflexões sobre as relações entre feminismo e Estado, o Capítulo 7, de Breno Cypriano, “Divisão sexual do trabalho e usos do tempo: a inserção temática e o feminismo acadêmico na SPM e as percepções das mulheres participantes das CNPMs no Brasil”, analisa mais especificamente a importância do feminismo acadêmico e sua complexa relação com a construção do Estado brasileiro e a formulação das políticas públicas do feminismo participativo de estado que vigorou em 2003 – 2016. Como mostra Breno Cypriano, “no Brasil, a Secretaria de Política para as Mulheres a partir das demandas das duas primeiras Conferências de Políticas para as Mulheres, empenhou-se para que as estatísticas oficiais brasileiras incorporassem quesitos referentes a sexo”. E aqui, mais uma vez, se ressalta também a importância das articulações dos feminismos brasileiros com o feminismo transacional, pois é a Plataforma de Ação de Beijing que demanda dos Estados signatários a coleta de dados através da metodologia dos usos do tempo, “a qual melhor permite a mensuração do ‘não trabalho’ realizado por mulheres no ambiente doméstico, e a demonstração empírica da subordinação econômica feminina”. Entre as perguntas do survey de 2016 analisadas por Breno Cypriano que abordam a divisão sexual do trabalho, destaca-se a pergunta estimulada sobre as iniciativas da Secretaria de Politica para as Mulheres para tentar superar os vários motivos que levam as mulheres a terem uma posição inferior aos homens no mercado de trabalho. Os principais motivos apontados pelas delegadas foram, em primeiro lugar, apoiar “projetos que visam desnaturalizar a divisão sexual do trabalho que estrutura as desigualdades na vida das mulheres”. Breno Cypriano conclui, a partir desta e outras análises que apresenta no capítulo 7, “que a discussão sobre o público e o privado, o cuidado, a divisão sexual do trabalho e os usos do tempo quando verificadas empiricamente são cruciais para o entendimento da política e das formas das mulheres de atuarem politicamente enquanto atoras políticas, tornando-se fatores imprescindíveis para a elaboração e formulação de políticas públicas.” Cabe notar aqui que o capítulo 5, “Mulheres negras na institucionalização de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma agenda em aberto”, acrescenta a perspectiva racial às considerações sobre o público e o privado nas abordagens e agendas feministas: “Enquanto o feminismo refletia sobre a
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divisão sexual do trabalho que designava às mulheres o lugar do privado-doméstico/ reprodutivo e aos homens o lugar público-político/produtivo, e sobre a necessidade de romper com essa divisão, esquecia que a ocupação do espaço público por parte das mulheres brancas (educação, trabalho, militância política) era possível porque outras mulheres racializadas ocupavam esse lugar do cuidado graça à divisão sexual e racial do trabalho doméstico”. As interligações entre gênero, classe e raça certamente são fundamentais nas distinções entre as esferas do privado e do público no patriarcado racial vigente na sociedade brasileira. Assim, a autora também argumenta como a participação de mulheres negras nas CNPM dá centralidade a demandas raciais históricas e resulta em diretrizes, tais como garantia de direitos trabalhistas para empregadas domésticas, na formulação de políticas de igualdade de gênero. Após esta breve exploração de temas centrais aos capítulos deste Volume – como os contextos históricos e políticos, nacionais e internacionais nos quais agendas feministas emergem se transformam e se (re)significam, as relações entre os feminismos locais/nacionais e o feminismo transnacional ou translocal, a interseccionalidade, as interconexões entre movimentos de mulheres e feministas com outros movimentos e organizações identitários e de classe, e as relações entre feminismo e Estado, entre outros – encerramos aqui esta introdução ao Volume 2 convidando as/os leitores/as a ler e explorar as indagações e reflexões específicas levantadas e proporcionadas por cada capítulo. Nesta introdução buscamos apenas apontar, mesmo que de maneira bastante sucinta, temas e questões centrais que perpassam os vários capítulos e suas análises de elementos centrais ao feminismo estatal participativo brasileiro, construído por mulheres e feministas de todo o Brasil representadas pelas delegadas as CNPM de 2011 e 2016.
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Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil: desafios da sua institucionalização Schuma Schumaher1
Introdução: ondas, estações, cenários, ciclos, etapas... A luta das mulheres para garantir espaço e reconhecimento na sociedade vem de longe e passou por diversas etapas e sobressaltos. O texto pretende retratar as diferentes “ondas” do feminismo no Brasil, considerando seu início no final do século XIX, quando inúmeras mulheres se rebelaram contra a tragédia da escravidão, lutaram pelo direito ao trabalho sem a autorização do marido, pelo acesso ao ensino de qualidade, pelo direito de frequentar universidades e de votar e serem votadas até a segunda década do século XXI, cujas lutas estão recheadas de novas protagonistas. Embora haja tensões e polêmicas quando se tenta descrever as trajetórias, impasses e conquistas das mulheres, usando metáforas como “ondas”, “estações”, “cenários”, “ciclos”, para se descrever as lutas e as transformações provocadas pelo feminismo ao longo dos séculos, não encontrei expressão melhor para falar da dinâmica das diferentes marés que a luta feminista enfrentou e enfrenta até os dias atuais. Constatando que a luta dos movimentos de mulheres, apesar da sua continuidade, tem ao longo da história apresentado novas agendas, novas prioridades e, sobretudo, novas protagonistas, dependendo das relações de poder que operam nos diferentes contextos social, cultural, econômico e político, mostrarei algumas importantes estratégias das mulheres para romper com as limitações que lhes confinava no mundo privado, para conquistar direitos de cidadania e ter voz no mundo público. Chamarei de primeira onda o processo de luta contra a escravidão, o direito de acesso à educação de qualidade e a luta pela conquista dos direitos civis, políticos e sociais das mulheres, que no Brasil vai durar mais de 50 anos.
1 Feminista e coordenadora da ONG Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), organizou o Dicionário Mulheres do Brasil (2000), reunindo verbetes sobre 900 mulheres que tiveram impacto sobre a história brasileira. Também coordenou a campanha “Quem ama abraça – Fazendo escola” e foi dirigente da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).
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Ao abordar esse período levarei em conta o refluxo na movimentação feminista, durante e pós-ditadura Vargas. A segunda onda teve início no final dos anos 1960 num momento de crise da democracia brasileira. Além de batalhar pela igualdade, pela valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer e contra a violência sexual, também lutou contra a ditadura militar. O novo feminismo estava apoiado, principalmente, nas ideias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em seu livro O segundo sexo, publicado pela primeira vez em 1949. A passagem para a terceira onda, nas últimas décadas do século XX, quando a sociedade brasileira vivia um momento importante na política, foi recheada de muitas críticas e polêmicas, especialmente pelas mulheres negras que questionavam o discurso da mulher universal, considerando-o excludente, uma vez que as opressões atingem de maneira diferenciada as mulheres. É nessa década que esquentam o debate e as tensões sobre a incorporação da questão racial na agenda feminista, sobre o conceito de gênero e seu binarismo e sobre a institucionalização do feminismo com o surgimento de várias ONGs e a implantação de mecanismos de políticas para as mulheres na estrutura do Estado. Judith Butler se destaca nesse período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões sobre corpo, gênero e sexualidade. Foi também nesse período que o movimento feminista teve sua agenda ampliada em virtude do ciclo de Conferências promovido pelas Nações Unidas, como a Eco 92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992; a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, 1993; a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; a IV Conferência Mundial da Mulher, Beijing, 1995; e a Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban, 2001. Considerado por muitos estudiosos o movimento social mais importante do século XX, o feminismo entrou no século XXI trazendo velhas questões, como por exemplo, a modesta presença das mulheres nos espaços de decisão e poder, além do acirrado debate sobre gênero na sociedade. Judith Butler se destaca nesse período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões sobre corpo, gênero e sexualidade. Uma quarta onda feminista, iniciada com a Marcha das Vadias somada à potente Marcha das Mulheres Negras e Primavera Feminista, emergiu e cresceu num cenário de acirramento das posições fundamentalistas contrárias à autonomia das mulheres, do debate sobre interseccionalidade e trazendo novas estratégias de resistência através das tecnologias virtuais e retomada das ruas.
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A primeira onda feminista Um olhar sobre o passado logo revela que há muito ainda a se desvendar, especialmente sobre as mulheres indígenas e negras. A história “oficial” ignorou suas culturas, ofuscou suas reações aos conquistadores e aos açoites e, sobretudo, o papel fundamental que tiveram na luta contra a dizimação de seus povos e na organização da resistência contra a escravidão. Políticas públicas, cotas e leis se tornaram parte integrante das bandeiras de lutas das mulheres desde a Revolução Francesa, no século XVIII. No outono de 1789, dois anos depois do lançamento da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, a jovem Olympe de Gouges publicou sua “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, na qual afirmava que as mulheres tinham necessidades específicas por serem mulheres, mas que deveriam ter os mesmos direitos que os homens. Nesse ano, como resultado dos debates na Assembleia Francesa nasceria a Constituição de 1791. Olympe apoiou a posição, minoritária e perdedora, de que deveriam ser considerados “cidadãos ativos” todos aqueles que, independentemente de sexo, tivessem lutado pela queda da Bastilha. Venceu a ideia oposta e só foram considerados cidadãos os homens acima de 25 anos. Às mulheres francesas foi negado o direito ao voto, só alcançado afinal em 1944. Olympe morreu executada na guilhotina como traidora, em 1793. É preciso lembrar que os séculos XVIII e XIX – bojos da Revolução Francesa e do positivismo – reverberaram nas Américas, acentuando e trazendo um caráter mais revolucionário às mudanças políticas e sociais. A Revolução Francesa exportou os ideais burgueses de “igualdade, fraternidade e liberdade”. E o positivismo resultou sendo, na sociedade brasileira, a primeira doutrina de amplo alcance cultural, na qual se propugnava um papel afirmativo da mulher como agente social (embora ainda reservando a elas ofícios específicos e adequados à “natureza feminina”). No final do século XVIII, o avanço das tropas napoleônicas em direção a Portugal mudaria definitivamente os rumos da história nos trópicos. Quando, em 1808, a família real portuguesa veio viver no Brasil, as principais cidades brasileiras passaram por rápida evolução cultural, mas o costume de reservar às mulheres o confinamento aos lares e à vida familiar não mudou. Até então, o privilégio do acesso aos cargos públicos e ao ensino era dos homens. Em 1809, foi criado um dos primeiros colégios para meninas de elite. Os ensinamentos consistiam em boas maneiras, trabalhos manuais, noções de francês, rudimentos de músicas e declamações, visando preparar as garotas para a vida dos salões e para a maternidade. Em geral ligados aos conventos, os colégios
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também ensinavam a rezar para afastar os “maus pensamentos”. Na primeira escola normal do país, criada em 1835, em Niterói, não eram admitidas matrículas de moças. Manter meninas e escravos no berço da ignorância justificava-se com preconceituosos ditos populares: “Mulher que sabe latim não tem marido nem bom fim” e “Escravos que sabem ler acabam querendo mais do que comer”. Contudo, escrever era uma ferramenta importante para as mulheres da época, embora a produção jornalística e literária das brasileiras se mantivesse confinada às páginas dos diários secretos. Indignadas, algumas corajosas pioneiras dispuseram seus talentos, suas inteligências e criatividade para desafiar o conservadorismo de sua época. As primeiras vozes levantadas timidamente no acaso do século XIX levaram a uma irretroagível insurreição feminina. Nísia Floresta, intelectual nascida no Rio Grande do Norte, é personagem marcante desses tempos, cem anos antes da conquista do voto para as mulheres. Escrevia sobre a escravidão, o sofrimento dos índios e a qualidade do ensino. Mas escrevia acima de tudo sobre a mulher. Suas ideias contestatórias foram publicadas no jornal pernambucano Espelho das Brasileiras, em 1931. Os textos de Nísia afirmavam que as mulheres tinham tanto direito quanto os homens a uma educação plena. Em 1832, lançou o primeiro de seus 14 livros – Direitos das mulheres e injustiça dos homens, tradução adaptada à realidade brasileira do livro Vindication of the Rights of Woman, da inglesa Mary Wollstonecraft, publicado em 1792. A defesa da emancipação feminina através da educação a levou a fundar um colégio para meninas com proposta curricular avançada, tornando-se precursora dos ideais de igualdade e autonomia das mulheres. Úrsula, escrito pela negra maranhense Maria Firmina dos Reis em 1859, é considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro escrito por uma mulher. Foi em São Luís que Maria Firmina fundou uma escola mista e gratuita para crianças pobres – iniciativa considerada ousada para a época –, na qual lecionou até aposentar-se, em 1881. As publicações do período, escritas e dirigidas por mulheres, tratavam dos mais variados assuntos e alcançavam um diversificado público leitor. Um traço comum a essa imprensa era não se ater apenas aos temas da culinária, da etiqueta e da moda, mesclando reflexões sobre assuntos fervilhantes, ousando defender a abolição da escravatura, a queda da monarquia, o acesso das mulheres às universidades, o divórcio e o direito ao voto. Ou seja, revolucionando a imprensa da época! Das lutas enfrentadas pelas mulheres para conquistar o acesso à educação, o ingresso nos cursos superiores representou uma das mais difíceis batalhas. Em 1875, Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de
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Oliveira que, embora aptas, tinham sido recusadas no curso de Medicina, decidiram “exilar-se” nos Estados Unidos para seguir sua vocação. A decisão ganhou grande repercussão na imprensa e debate na sociedade, que acompanhou passo a passo a trajetória delas em terras norte-americanas através da publicação A Mulher, produzida por ambas e distribuída periodicamente aos principais jornais do Brasil. Eram exceções. As jovens estudantes brasileiras foram obrigadas a esperar até 1879, quando finalmente o governo imperial se rendeu e permitiu, condicionalmente, a entrada das mulheres nas faculdades. Entretanto, as solteiras deveriam apresentar licença de seus pais. As casadas, o consentimento escrito por seus maridos. As duas primeiras Constituições Brasileiras, a de 1824 e a republicana de 1891, não chegavam nem a mencionar as mulheres no rol dos excluídos ao voto. No entanto, foram necessários mais de 40 anos de luta para conquistar esse direito. As mulheres sempre enfrentaram severos preconceitos na vida social e política brasileira. Em 1910, Leolinda de Figueiredo Daltro ocupou ousadamente a cena pública com suas ideias vanguardistas em defesa das mulheres e dos índios. Ao ter seu alistamento eleitoral recusado, fundou no Rio de Janeiro o Partido Republicano Feminino, cujo objetivo era mobilizar as mulheres pelo direito ao voto. A essa rebeldia estratégica se somaram dezenas de mulheres que, numa marcha memorável, tomaram as ruas da cidade. A proteção à maternidade e à infância torna-se tema de atuação pública das mulheres, assim como as difíceis condições no mundo do trabalho também começaram a fazer parte da pauta de suas preocupações nas primeiras décadas do século XX. Desvalorizada, desqualificada, a força de trabalho feminino era explorada a preços muito inferiores aos pagos ao trabalhador adulto do sexo masculino e, diante das restrições e das condições injustas, surgiram os primeiros protestos. Anarquistas como Tereza Fabri e Teresa Carini tiveram destaque em São Paulo na elaboração de um manifesto convocando as costureiras – um grande contingente de operárias na época – a lutar pela redução da jornada de trabalho para oito horas diárias. A participação das operárias têxteis foi significativa na greve geral de 1917. Fortalecidas, dois anos depois, elas organizaram paralisação histórica noticiada pelo Jornal do Brasil como a “greve das abelhas de luxo”. O movimento foi liderado por Elvira Boni de Lacerda, uma das fundadoras da União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas. As trabalhadoras também puderam contar com o envolvimento da militante comunista Laura Brandão, que durante anos escreveu, discursou e panfletou nas portas de fábrica defendendo as causas das operárias.
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E em 1936, a mineira radicada em Santos (SP) Laudelina de Campos Melo, indignada com o racismo presente, especialmente no mundo do trabalho, decidiu criar uma Associação de Empregadas Domésticas para defender a categoria, composta majoritariamente de mulheres negras, que eram preteridas na hora das contratações em favor de uma trabalhadora branca, e tornar públicas as péssimas condições de trabalho. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, com as mulheres “voltando para casa”, a proteção ao trabalho da mulher passou a ser preocupação dos homens públicos em nível internacional. O Tratado de Versalhes pioneiramente recomendou salário igual para trabalho igual, sem distinção de sexos. Abriu-se, assim, grande avenida para um movimento que desaguaria numa das mais importantes mudanças ocorridas no século passado: o movimento feminista. A partir de 1920, batizados de Ligas para o Progresso Feminino, grupos de mulheres se formaram em todo o país. Dois anos depois, a líder dessa emergente e triunfante corrente sufragista, a bióloga paulista recém-chegada da Europa, Bertha Lutz, organizou no Rio de Janeiro o I Congresso Internacional Feminista. Consolidou-se assim a criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, unindo em torno de si as ligas estaduais e exercendo papel central na mobilização das mulheres, na ocupação de espaços na imprensa, na montagem de estratégias para a conquista do sufrágio feminino. Porém, as feministas foram constatando, com indignação, que o engajamento na luta política e suas conquistas no campo da educação não foram suficientes para que os poderes constituídos reconhecessem seus direitos de cidadãs. Lideradas por Bertha Lutz, Carmem Portinho, Josefina Álvares de Azevedo, Maria Eugênia Celso e tantas outras, iniciaram uma campanha aguerrida em várias frentes e cidades. A fim de pautar o debate público e convencer os parlamentares, criaram diversas estratégias voltadas para a sociedade e para o Legislativo. Publicações, cartas à imprensa, seminários, manifestações artísticas e até panfletagem aérea eram armas de mobilização da opinião pública, dos congressistas e da população. A pedagoga mineira Maria Lacerda de Moura, colaboradora na fundação da Federação pelo Progresso Feminino, questionou o discurso “ameno e reformista” das sufragistas e optou por maneiras mais contundentes de atuar na cena política. Adepta do amor livre e plural, aproveitou todas as oportunidades para manifestar-se a favor da educação sexual e contra a moral vigente e as posições da Igreja. Reconhecia que as relações mantidas pelas mulheres com seu corpo, com os homens, na família e no trabalho eram temas mal discutidos pela sociedade. Reivindicava a inclusão no currículo de todas as escolas femininas da disciplina “História da mulher, sua evolução e missão social”.
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Musa do Modernismo, a escritora e ativista política Patrícia Galvão, a Pagu, escandalizou a sociedade tradicional com suas roupas extravagantes, seus cabelos curtos e chapéus, com o cigarro entre os dedos num tempo em que fumar em público era imperdoável para uma moça de família. Numa época em que as mulheres em geral viviam e se vestiam de forma recatada e discreta, Pagu foi símbolo de atrevimento – feminista assumida, escreveu romances, crônicas, poesias e dirigiu peças teatrais. Na sua mistura de militância comunista com defesa dos direitos das mulheres, Pagu, à frente do seu tempo, é ainda hoje ícone das lutas pela emancipação feminina. Seu nome batiza diversas iniciativas feministas contemporâneas. Com habilidade política e capacidade de articular alianças, as sufragistas foram conseguindo adesões em vários espaços e cidades. Até que, em 1927, a lei eleitoral do Rio Grande do Norte concedeu direito de voto às potiguaras. Ao ser eleita para governar a cidade de Lage (RN), Alzira Soriano se tornou, um ano depois, a primeira prefeita da América Latina. Com a brecha aberta pelas norte-rio-grandenses, ainda que seus votos tenham sido cassados, as mulheres continuaram insistindo no desejo de exercer esse direito. Um abaixo-assinado contendo 2 mil assinaturas foi entregue aos parlamentares com o objetivo de pressioná-los a aprovar o projeto de lei que tramitava no Congresso. O documento, amplamente divulgado pela imprensa e hoje preservado no Arquivo Histórico do Senado Federal, era um retrato da realidade das brasileiras de então. “Desde que uma só exista, não há motivo para que não sejam eleitoras todas as mulheres habilitadas do Brasil”, argumentavam as signatárias: Reclamando esses direitos, não fazemos mais do que fizeram e estão fazendo as mulheres de todos os países civilizados. É princípio do regime democrático, universalmente reconhecido, que, aqueles que obedecem às leis e pagam impostos, assistem o direito de colaborar, direta ou indiretamente, na elaboração dessas mesmas leis e votação desses mesmos impostos. [....] A economia doméstica e a organização da família estão inteiramente ligadas à organização social e econômica do país. São problemas coletivos que não toleram mais as situações individuais. Não podem deixar indiferentes as donas de casa, as mães de família, cujos filhos, na frequência diária de jardins da infância, escolas, oficinas, academias e cinemas, se acham expostos às vicissitudes do meio ambiente. O nosso Código Civil, afastando-se de outros menos liberais, deu à mulher brasileira uma situação privilegiada, considerando a esposa como companheira do marido e não como sua inferior, não lhe exigindo na sociedade conjugal obediência, mas sim colaboração. Sendo a mãe a tutora natural dos filhos, dotada de pátrio poder, elevou-se legalmente ao nível dos homens, cujas responsabilidades políticas está habilitada a compartilhar. (LUTZ et al., 1927 apud SCHUMAHER; VITAL BRASIL, 2000, p. 220).
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O texto segue discorrendo sobre a evolução das conquistas das mulheres em outros países e termina assinado pela presidenta da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino Bertha Lutz, suas diretoras e outros destacados nomes da sociedade brasileira. Em meio a tantas polêmicas e embates no Congresso Nacional, em 24 de fevereiro de 1932, as mulheres concretizaram a maior conquista do século XX: o direito de votar e serem votadas. Na conturbada e efervescente agitação dos anos 1930, outro desafio estava colocado: promover a candidatura das feministas para a Assembleia Nacional Constituinte de 1933. Entre os 254 votantes, contabilizando os eleitos e os representantes classistas, duas vozes eram de mulheres: Carlota Pereira de Queiroz, médica eleita por São Paulo, que se tornou a primeira deputada federal do Brasil, e a advogada alagoana, ativista feminista negra Almerinda Farias Gama, que, através de uma estratégia bem-sucedida da Federação pelo Progresso Feminino, representou o Sindicato das Datilógrafas e Taquígrafas do Distrito Federal. É dela a foto introduzindo o voto na urna, em julho de 1933, estampada em várias publicações desde então. A fim de se preparar para enfrentar as eleições gerais de 1934, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) voltou à cena patrocinando acirrada campanha nacional para eleger mulheres comprometidas com a agenda de direitos. Nessa fase, a FBPF dava os seus primeiros passos no sentido de se tornar o principal canal de representação política do movimento feminista no Brasil. Reunidas suas integrantes em Salvador, por ocasião da 2ª Convenção Feminista Nacional, a Federação traçou o novo plano de ação para a entidade, cujas diretrizes eram a organização de filiais nos estados onde ainda não existisse uma Federação e instituir um novo desenho hierárquico, composto por uma líder nacional, uma presidente estadual e várias secretárias regionais. A reestruturação da FBPF previu, também, a existência de dois tipos de sócias, as ativas e as colaboradoras voluntárias. Desse encontro resultaram também mudanças nos rituais da FBPF, com o uso de símbolos que caracterizassem a identidade, bandeira, hino e cores próprias, além da formulação do Decálogo Feminista, que passou a ser divulgado no Boletim – periódico editado pela entidade a partir do seu primeiro número, datado de outubro de 1934, com dez princípios. Diz esse que toda mulher deve: 1) Exercer seus direitos políticos e cumprir seus deveres cívicos; 2) Interessar-se pelas questões públicas do país; 3) Ter ocupação útil à sociedade; 4) Alistar-se e votar; 5) Votar conscientemente e criteriosamente; 6) Não entregar seu título eleitoral; 7) Dedicar-se à causa feminista, crente no
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triunfo dos seus ideais; 8) Votar somente em quem for feminista; 9) Baterse pela conquista e pleno exercício de seus direitos sociais e políticos; e 10) Trabalhar pelo aperfeiçoamento moral, intelectual, social e cívico da mulher. (SCHUMAHER; VITAL BRASIL, 2000, p. 223).
O sucesso da mobilização das feministas da FBPF nas urnas foi inegável. Nove mulheres foram eleitas deputadas estaduais: Quintina Ribeiro, por Sergipe; Lili Lages, por Alagoas; Maria do Céu Fernandes, pelo Rio Grande do Norte; Maria Luisa Bittencourt, pela Bahia; Maria Teresa Nogueira e Maria Teresa Camargo, por São Paulo; Hildenê Gusmão e Zuleide Bogéa, pelo Maranhão; Antonieta de Barros por Santa Catarina, sendo esta a primeira deputada negra do Brasil. Mas, com a decretação do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso até 1945. Os movimentos sociais, entre eles o feminismo, foram sufocados, encerrando-se temporariamente o mandato das parlamentares. Bertha afastou-se gradualmente da direção da entidade até deixar o cargo de presidente, em 1942, mantendo-se fiel à causa feminista até o fim de seus dias. Foi sucedida pela escritora Maria Sabina de Albuquerque, uma das suas antigas colaboradoras. Nos anos que se seguiram ao golpe de Estado de 1937, a maioria dos grupos de mulheres esteve vinculada aos partidos de esquerda ou protegida sob seu manto. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra o nazifascismo, começou uma efervescência política e ressurgiram associações de mulheres de linhas políticas diferentes, engajadas no esforço de guerra. As campanhas femininas para obter agasalhos para os pracinhas, os cursos de enfermagem, as dificuldades de abastecimento, a inflação, o mercado paralelo, a agitação social decorrente das ideias nacionalistas serviram de motivação para intensas campanhas envolvendo um grande número de mulheres. Lutando pela Anistia, elas se aglutinaram em diversas associações, como o Comitê de Mulheres Pró-Anistia, o Comitê de Mulheres Pró-Democracia, o Instituto Feminino de Serviço Construtivo e a Federação de Mulheres do Brasil (filiada à Federação Democrática de Mulheres). Com a finalidade de combater a carestia foi criada a Frente Única de Mulheres, que reunia figuras de diferentes matizes ideológicos. A partir de 1944, surgiram as Ligas Feministas, associações de mulheres com a orientação do Partido Comunista, que permaneceram por um curto período na legalidade. Entre as ligas, havia um órgão central, com sede no Rio de Janeiro e ramificações pelas diversas unidades da Federação. Além disso, foram criados na cidade do Rio de Janeiro diversos comitês de bairro. Em determinada época chegaram a funcionar cerca de vinte comitês, sendo que um dos maiores era o da Gávea, que tinha em torno de mil associadas. As ligas femininas tinham como pontos de lutas a resistência contra a demolição das favelas, a instituição
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de creches e bibliotecas infantis públicas, e a campanha pela independência nacional. Dentre as principais iniciativas das mulheres de cunho nacionalista figura a campanha “O Petróleo é Nosso”, bem como as campanhas contra a carestia. O vigor da luta contra a carestia pode ser avaliado pela criação pelo Governo da Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), como resposta às seguidas manifestações das mulheres nos anos 1950. A Liga Feminina da Guanabara teve seu auge de atuação no ano de 1961, quando reuniu um manifesto com 100 mil assinaturas contra a alta do custo de vida. Uma caravana de associadas levou o documento a Brasília. No mesmo ano realizou-se, no Rio de Janeiro, o II Encontro Latino-Americano de Mulheres, que contou com representantes de organizações feministas de diversos países. Os grupos de mulheres de tendência conservadora foram estimulados pelas elites que queriam derrubar o governo João Goulart. Uma das mais significativas organizações nessa linha foi a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde). Depois da reviravolta política, com a implantação da ditadura militar, as organizações de mulheres, mesmo as de vertentes conservadoras, praticamente sumiram do cenário político. Contudo, as organizações de mulheres progressistas acabaram por se fragmentar pelas divergências políticas e terminaram sendo extintas com a chegada dos militares ao poder, em 1964, interrompendo o sonho da participação política popular no Brasil. Sindicatos, associações e partidos seriam fechados ou “cooptados” pelo estado ditatorial. A cultura e a liberdade de expressão também seriam duramente perseguidas com a instituição da censura.
A segunda onda feminista No mundo ocidental, os anos 1960 foram marcados pela luta das chamadas “minorias” pelos direitos civis. Nos Estados Unidos, paralelamente à luta dos negros americanos por cidadania plena e os movimentos políticos contrários à guerra do Vietnã, viu-se o ressurgimento do movimento de mulheres. Essa nova “onda feminista” distanciava-se da sua primeira versão da luta pelo direito ao voto em fundamentos teóricos e em propostas de luta. O feminismo dessa segunda onda estava apoiado, principalmente, nas ideias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em O segundo sexo, publicado na França em 1949. Referência durante décadas para a nova organização internacional do movimento de mulheres, Simone questionava as relações sociais, estruturadas hierarquicamente e naturalizadas, que sustentaram durante séculos as desigualdades entre homens e mulheres.
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Sob a frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa francesa promoveu a primeira separação entre sexo e gênero, sem a qual, para muitas, não haveria feminismo possível. Ao retirar da biologia o caráter determinista do comportamento feminino, Simone de Beauvoir abriu espaço para as discussões sobre a igualdade das mulheres na sociedade e para o surgimento do que hoje se chama de estudos de gênero. Nos EUA, a nova fase do movimento de mulheres teve como ponto de partida a publicação, em 1963, do livro A mística feminina, de Betty Friedan, no qual ela denuncia as inúmeras estratégias de confinamento das mulheres na esfera doméstica e propõe novas formulações para a reorganização do feminismo. Ela busca explicar o que chamou de “o mal que não tem nome”, representando a angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa, cujas possibilidades de realização eram a família, a maternidade e o lar. Com o surgimento da pílula anticoncepcional, a prática sexual ganhou novos contornos – e possibilidades! –, começando assim um lento processo de separação entre sexo e reprodução. O uso de contraceptivos mais seguros possibilitou às mulheres planejar quando e quantos filhos queriam ter e viver sua sexualidade sem associá-la à gravidez. O novo método interferiu diretamente nas relações entre homens e mulheres, uma vez que podia ser usado sem o conhecimento dos pais, do marido ou de quem quer que fosse. Se por um lado as mulheres estavam “liberadas para o prazer”, sua condição legal ainda era bastante restritiva. Até 1962, o Código Penal brasileiro tutelava as mulheres casadas aos desejos e decisões de seu marido. A lei não permitia que a mulher trabalhasse fora nem viajasse sem o consentimento do “chefe da casa”. A difusão do novo pensamento feminista contribuiu para acirrar a insatisfação das mulheres com o tradicional papel que desempenhavam na sociedade. Alimentadas por novas informações, norte-americanas, italianas, francesas, inglesas e suecas ganharam as ruas para entoar palavras de ordem como: “Nosso corpo nos pertence!”, “O privado também é político!” e “Diferentes, mas não desiguais!”. Essa perspectiva marca uma ruptura com o modelo anterior que associava diretamente papéis e comportamentos das mulheres às diferenças sexuais e orgânicas, aportando novos elementos para as discussões sobre a questão da opressão das mulheres e a superação do sistema capitalista. De certa forma, estavam “livres” dos “orgânicos” valores morais que tanto oprimiam. A famosa história da “queima do sutiã” é bastante simbólica dessa busca de rompimento. Verdade ou mito, está colocada para a história da luta das mulheres como uma ruptura com os condicionantes representados no corpo das mulheres: “Se for cultural, vamos desconstruir!”.
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Como resposta à intensa mobilização de mulheres, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, promovendo, na Cidade do México, uma grande conferência internacional com a presença de delegações de diversos países. No Brasil, esses acontecimentos causaram enorme repercussão. Tanto a Conferência da Cidade do México, como a instituição da Década da Mulher pela ONU, deram alento à reestruturação do movimento feminista em novas bases. A despeito de o momento político nacional estar marcado pelo cerceamento das liberdades democráticas, sendo, portanto, impossível promover qualquer organização social sem o risco do confronto com os militares; sob o manto protetor da instituição internacional tornou-se possível a organização de seminários nos quais as mulheres puderam discutir os problemas comuns. Foi nesse contexto de crise da democracia, mas também de construção de novos modelos sociais, que emergiu o feminismo organizado dos anos 1970. Se por um lado a nova onda feminista lutou contra a ditadura militar, por outro batalhou também contra a supremacia masculina, a violência sexual e o direito ao prazer. As mulheres integrantes dos diversos grupos que se formaram na época vinham, quase na sua totalidade, dos agrupamentos de esquerda. A confluência de ideias entre as feministas, as mulheres dos movimentos populares, aquelas que priorizavam os partidos políticos e as donas de casa não se deu sem conflitos. O debate político nesse momento foi caracterizado pela polarização de posições entre luta geral, luta específica e a desconstrução do papel tradicional de mães e guardiãs da família. A segunda metade dos anos setenta foi, em grande parte, consumida por essa discussão, necessária e imprescindível, para se chegar na década de 1980 com inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo leque de posições feministas cujos rótulos eram por vezes reais, por vezes pejorativos. Havia as separatistas, as intelectuais, as pequeno-burguesas preocupadas com sexo, as proletárias preocupadas com a união entre luta geral e específica, as “estrangeiras” – ex-exiladas influenciadas pelo movimento feminista europeu –, as defensoras do movimento autônomo... No bojo dessa efervescência política nasceu o Movimento Feminino pela Anistia, que alcançou rápida repercussão por todo o país e teve como uma das suas principais articuladoras a advogada Therezinha Zerbini e a imprensa alternativa. O jornal Brasil Mulher, editado a partir de 1975, primeiramente no Paraná e depois transferido para a capital paulista, funcionou como um porta-voz do Movimento Feminino pela Anistia. Aos poucos, a agenda feminista tomou conta de suas páginas. Logo depois veio o Nós Mulheres, publicação paulista que
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circulou de 1976 a 1978. Já no primeiro editorial afirmava suas intenções: “fazer este jornal feminista para que possamos ter um espaço nosso, para discutir nossa situação e nossos problemas”. Distribuído nacionalmente, durou oito exemplares. Inúmeros grupos e diversos jornais eram criados com o propósito de denúncia da subordinação da mulher na sociedade. Dessa nova leva, destacava-se o jornal Mulherio, lançado em março de 1981, que nasceu e contou com o suporte da equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas e foi leitura obrigatória das feministas brasileiras por mais de cinco anos. Outros periódicos regionais seguiram o exemplo: Libertas, editado por um grupo de mulheres de Porto Alegre (1981); o Chanacomchana, publicado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista de São Paulo entre 1981 e 1987; e o Maria Maria, publicado pelo grupo Brasil Mulher, de Salvador, a partir de 1984. Com isso, o impacto da mudança de comportamento das mulheres, resultado da luta feminista, chegou também à grande mídia. Em maio de 1979 a Rede Globo de Televisão estreou o seriado Malu Mulher, protagonizado pela atriz Regina Duarte. O primeiro episódio exibia a separação entre Malu e seu marido – a lei do divórcio acabara de ser promulgada. Daí em diante, durante um ano e meio, o público assistiu à personagem principal batalhar sozinha por sua sobrevivência e pelo cuidado com a filha. Socióloga, Malu trocou sua condição de esposa pela de pesquisadora, engrossando, na ficção, as estatísticas da vida real: os anos 1980 registram 10 milhões de mulheres empregadas no país, número que cresceu para 25 milhões em pouco mais de 20 anos, quando um terço das trabalhadoras tinha pelo menos o segundo grau completo. Durante seis anos, entre 1980 e 1986, o programa TV Mulher, que ia ao ar diariamente na parte da manhã, mudava a abordagem sobre os temas femininos na TV – começam a sair de cena os cuidados com a família, trocados por conselhos da sexóloga Martha Suplicy e da feminista Irede Cardoso. Nas páginas das revistas para o público feminino, a jornalista Carmen Silva, autora desde 1963 da coluna “A arte de ser mulher”, publicada na revista Claudia, incentivava suas leitoras a ingressar no mercado de trabalho e a questionar as relações de poder em que os homens são os beneficiários. As publicações de mulheres ganhariam reforço, a partir da década de 1990, com o lançamento da Revista de Estudos Feministas (REF), iniciativa de um grupo de mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, na linha de teóricas norte-americanas e europeias, levaram para a academia as discussões sobre gênero, cultura e sociedade. Pioneira, a REF é uma das muitas publicações acadêmicas à época que se mantêm destinadas ao tema, e leitura obrigatória para conhecer uma boa parte da teoria feminista brasileira.
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Portanto, não é de hoje que as mulheres, através de centenas de publicações e coletivamente, verbalizam as desigualdades e injustiças de gênero presentes na sociedade e expõem outra lógica de ver e viver o mundo e seus movimentos. Poderíamos destacar diversas contribuições de mulheres, as quais promoveram de distintas formas rupturas de paradigmas dominantes e ocuparam espaços que até então lhes eram negados pelos cânones tradicionais.
Redemocratização e movimento de mulheres Da anistia conquistada em 1979, rapidamente o país mobilizou-se para recuperar o direito ao voto. O bipartidarismo – Arena/direita e MDB/esquerda – que reinava absoluto até então e colocava todas, as da luta geral e as da específica, num mesmo barco, caiu por terra. A chamada esquerda se reorganizou em vários matizes: social-democratas, socialistas, socializantes, comunistas, revolucionários, centristas avermelhados. A campanha das “Diretas-Já!” tomou as ruas, marcando o processo de redemocratização do país. De costas para o Estado, espalhados em diferentes partidos políticos, ou longe deles, os movimentos de mulheres e feministas seguiam crescendo. A multiplicidade de formas organizativas, a partir dos anos 1980, foi ganhando novos contornos e incorporando e novas sujeitas, até então invisibilizadas dentro do próprio movimento, como os grupos de mulheres negras, lésbicas, trabalhadoras urbanas e rurais, prostitutas, empresárias, produtoras culturais, educadoras populares e donas de casa. Vítimas das desigualdades salariais, da carestia, dos preconceitos, violência e do racismo, organizam-se em grupos de autoestima, de denúncias e de ação política. De acordo com a assistente social Matilde Ribeiro (1995): Resguardadas as particularidades, os movimentos feminista e negro ressurgem no Brasil em meados dos anos 70, em plena ditadura militar, tendo como eixos básicos a luta pela democracia, a extinção das desigualdades sociais e a conquista da cidadania. Porém, em ambos os movimentos as mulheres negras aparecem como “sujeitos implícitos”: partiu-se de uma suposta igualdade entre as mulheres, assim como não foi considerado, entre os negros, as diferenças entre homens e mulheres (RIBEIRO, 1995).
Nesse contexto, ganham destaque as discussões sobre as necessidades específicas das mulheres negras, ausentes da pauta feminista. Não foram poucas as ativistas negras que levantaram suas vozes para criticar o feminismo que na prática não assumia a agenda étnica/racial. Numa entrevista ao Jornal do MNU, maio-julho, de 1991, Lélia Gonzalez, intelectual e ativista negra, assim se expressou:
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No meio do movimento das mulheres brancas eu sou a criadora de caso, porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, criadoras de caso, não dá para gente dialogar com elas, etc. E eu me enquadrei legal nesta perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha que ser antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupadas com as questões que elas estavam colocando. [...]. O feminismo não terá cumprido sua proposta de mudança dos valores antigos, se ele não levar em conta a questão racial. (GONZALEZ, 1991).
Em diálogo com Lélia Gonzalez, outra referência do feminismo negro, Luiza Bairros, que mais à frente, em 2011, se tornará ministra da Seppir, atentava para o fato de que: Raça, gênero, classe social, orientação sexual reconfiguram-se mutuamente formando o que chamamos de um mosaico que só pode ser entendido em sua multidimensionalidade. De acordo com o ponto de vista feminista, portanto, não existe uma identidade única pois a experiência de ser mulher se dá de forma social e historicamente determinadas (BAIRROS, 1995, p. 461).
O reconhecimento das especificidades e desigualdades sociais existentes abriu caminho para que outros segmentos de mulheres tivessem vozes no espaço público. As reuniões setoriais de metalúrgicas, químicas e outras categorias deram lugar aos Encontros de Mulheres. A palavra mágica de então foi autonomia: em relação aos homens, aos partidos políticos e ao Estado. Esses encontros pautavam-se por discussões que uniam luta por creche, contra o controle da natalidade, por salário igual para trabalho igual. Ainda sem aparecer como prioridades estavam os temas do aborto, da sexualidade, do racismo e da violência. Nesse período, o movimento organizado de mulheres queria “achar um rumo”, “pôr a cara na rua”, unir esforços, se tornar uma força política reconhecida, construir possibilidades que apontassem para um futuro mais justo. Na época, o complexo universo de reivindicações se expressava nos encontros estaduais, regionais e nacionais. Aproveitando o espaço acadêmico para promover intercâmbio, as primeiras reuniões nacionais foram promovidas pelas feministas nos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Assim, em Fortaleza, no ano de 1979, realizou-se o que atualmente se convencionou chamar de Encontro Nacional Feminista. Um ano depois, no Rio de Janeiro, ocorria o segundo, uma reunião histórica com a participação de mais de 1.500 mulheres, entre professoras, estudantes universitárias e militantes do movimento.
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A efervescência desse encontro levou a que as feministas abraçassem essa estratégia de aproveitar o espaço anual da SBPC para realizar paralelamente os encontros nacionais feministas. Assim, em 1981, com a realização da SBPC na Bahia, o grupo feminista Brasil Mulher de Salvador organizou o 3º Encontro Nacional Feminista, cuja pauta prioritária era o enfrentamento da violência contra as mulheres, uma vez que acabava de ser criado, em São Paulo, o primeiro SOS Mulher. Participaram do encontro 20 grupos de mulheres, no total de 120 ativistas feministas. A partir de então, concomitantes com as reuniões da SBPC, as organizações feministas passaram a convocar regularmente encontros nacionais, cabendo aos grupos locais a responsabilidade da produção dos encontros. Foram organizados dessa forma: o 4º Encontro Nacional Feminista, em Campinas (SP), 1982; o 5º Encontro Nacional Feminista, na capital federal Brasília (DF), 1983; o 6º Encontro Nacional Feminista, em São Paulo (SP), 1984; o 7º Encontro Nacional Feminista, em Belo Horizonte (MG), em 1985. O crescente interesse das mulheres em participar desses espaços fez que a convocação e realização dos encontros posteriores acontecessem fora do âmbito da SBPC, inaugurando um novo formato, novas metodologias de integração, ampliação dos dias de debates e um espaço comum de convivência das participantes. Assim, o 8º Encontro Nacional Feminista foi realizado no interior do Nordeste, em Garanhuns (PE), em 1986; o 9º Encontro Nacional Feminista, em Petrópolis (RJ), em 1987; 10º Encontro Nacional Feminista, em Bertioga (SP), 1988; 11º Encontro Nacional Feminista em Caldas Novas (GO), em 1991; 12º Encontro Nacional Feminista em Salvador (BA), em 1997; o 13º Encontro Nacional Feminista em João Pessoa (PB), em 2000; e o 14º Encontro Nacional Feminista, Porto Alegre (RS), em 2004. Foi nesse período que, diante das notícias de vários assassinatos de mulheres por seus companheiros, a luta contra a violência doméstica explodiu. O que antes eram pequenas notas nos jornais ganhou as primeiras páginas com a indignação e denúncia do movimento feminista. As mortes de Ângela Diniz (RJ), Maria Regina Rocha e Eloísa Ballesteros (MG), e Eliane de Gramont (SP) tiveram enorme repercussão e tornaram-se exemplos de que o silêncio protegia os assassinos. O slogan “Quem ama não mata”, gritado inicialmente pelas mineiras, ecoou por todo Brasil. As passeatas, as denúncias públicas e os grupos de atendimentos acabam impulsionando a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência. A primeira foi implementada na capital paulista, em 1985, e em pouco mais de 15 anos contabilizavam-se mais de trezentas delegacias em todo Brasil. Em 1988, a TV Globo lançou a minissérie Delegacia de Mulheres, levando para a mídia um debate que havia sido impulsionado pelas feministas 10 anos antes.
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As reivindicações que envolviam os direitos reprodutivos estavam centradas na fecundidade das mulheres e no acesso aos métodos contraceptivos, com o Estado e os organismos internacionais posicionados numa perspectiva de controle da natalidade em detrimento da autonomia das mulheres. Um dos desafios para o movimento feminista foi enfrentar esse debate, enfatizando que o tema da saúde sexual e reprodutiva das mulheres deveria ser entendido na perspectiva dos direitos humanos. As discussões sobre a saúde da mulher já faziam parte da agenda feminista, mas o assunto pegou fogo com o regresso das mulheres exiladas, que pertenciam ao Círculo de Mulheres Brasileiras de Paris. Trouxeram na bagagem o polêmico tema do aborto, legalizado na França em 1975 e um dos eixos de luta do movimento internacional de mulheres. Em 1980, quando a polícia carioca “estourou” uma clínica clandestina no bairro de Jacarepaguá e prendeu duas mulheres pela prática do aborto, as feministas organizaram um protesto e, pela primeira vez, foram a público reivindicar o direito de escolha. O silêncio que envolvia o assunto estava definitivamente rompido e, desde então, ecoam as vozes das mulheres em defesa do direito à autonomia reprodutiva, com palavras de ordem como “meu corpo, minhas regras”, “pela vida das mulheres”.
Atropeladas pela democracia Nas eleições parlamentares de 1978, feministas – individualmente – apoiaram algumas candidatas que traziam na sua plataforma de campanha o compromisso de combater a discriminação sexual. Os partidos políticos, dois nesse período, não incorporavam em seus programas nenhuma questão relativa à mulher. Diante desse novo quadro, as feministas reagem de diferentes maneiras. Eva Blay descreve assim esse período que se inicia: Participar da política foi o dilema dos anos 80. O período pós-ditadura abriu algumas vertentes ao movimento de mulheres: continuar atuando nos movimentos sociais, entrar para o legislativo, para o executivo. Esta polêmica atravessou o movimento feminista e o movimento de mulheres. A decisão teve um cunho antes de tudo, partidário. As mulheres optaram por cada uma dessas vertentes, ora movidas pelas diretrizes de seus grupos, ora por opções pessoais. (Artigo Mulher e Estado – 1988).
Em 1982, nas eleições diretas para os governos estaduais, os movimentos de mulheres que contavam com aliados em alguns partidos políticos reinauguram sua relação com o Estado. Estimuladas pela volta da democracia, lideranças feministas do Rio de Janeiro elaboraram o documento “Alerta Feminista”, contendo
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propostas a serem apresentadas aos candidatos a governador. Em São Paulo, as feministas se dividiram no apoio a dois candidatos e as discussões se acirraram quando o grupo que apoiava o candidato do PMDB, junto com um programa de governo, propõe também a criação de um órgão específico, responsável pela proposição e defesa de políticas públicas relativas aos direitos das mulheres, na estrutura do Estado. Assim nasceram, em 1993, os dois primeiros Conselhos Estaduais dos Direitos da Mulher do Brasil: o de São Paulo e de Minas Gerais.
A lua de mel durou pouco... O Conselho de São Paulo representa um marco que divide o movimento de mulheres, tanto para as que acreditavam na proposta, como para as que eram contra. E o que estava em questão era estritamente a relação do chamado “movimento autônomo” com o Estado. Como garantir a autonomia do movimento? Quais as formas de organização dentro do governo? De que maneira as reivindicações feministas seriam atendidas? Como não serem cooptadas? A criação do Conselho foi ampla e publicamente debatida. Nesse momento é importante ressaltar que a escolha desse modelo de órgão, cuja proposta original era de composição pluralista e suprapartidária, foi torpedeada por parcela significativa do movimento de mulheres. Havia as que se recusavam a participar de qualquer organismo governamental por temer a descaracterização de suas reivindicações pelo Estado e a institucionalização do que havia de “radical, criativo e revolucionário” no feminismo, provocando consequentemente a perda da autonomia do movimento de mulheres. Havia também as que, militantes do PT, compreendiam o papel do Estado na conquista de algumas reivindicações do movimento, porém, por razões mais partidárias que feministas, optaram por abster-se. Segundo Ana Vicentini: o grito de alerta dado por alguns setores, se baseava na dificuldade que o movimento sentia ante o inevitável diálogo a ser estabelecido com os órgãos governamentais e na recusa quase pueril de alguns setores em ver no Estado um possível interlocutor... (Seminário “Feminismo no Brasil – Vislumbrando Novos Espaços”, NEIM/UFBA, 1988).
No processo que precede e envolve as eleições de 1982, fica claro que as mulheres redescobriram a “grande política” e o movimento de mulheres de então – organizado em vários grupos de reflexão, debate e atuação setorial, em quase todos os Estados – vai fortalecer e incentivar, mesmo que não intencionalmente, a participação da mulher nas instâncias de representação política da sociedade.
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Por outro lado, a “esquerda”, agora dividida e segmentada em vários matizes, volta seu olhar para a tal “questão da mulher”. Assim, a partir de 1982, parlamentares de diversos partidos se manifestam publicamente a favor de reivindicações feministas. No famoso 8 de março, passa a ser praxe a aprovação de moções de congratulação e apoio às mulheres no “seu dia”, por parte dos legislativos, que agora, além do mais, contam com algumas feministas em suas fileiras. E o feminismo avança no seu reconhecimento público! Albertina de Oliveira Costa, no ensaio É viável o feminismo nos trópicos? – Resíduos de insatisfação apresentado no Seminário “Feminismo no Brasil” – NEIM/UFBA, 1988, aponta: “A questão da mulher é suficientemente ampla, suficientemente em evidência e suficientemente legítima, para que os partidos de esquerda comecem a se interessar por ela.” Ainda segundo Albertina, fica também evidente “...a controvérsia que vai durar anos entre feministas e femininas. Entre a boa e a má luta da mulher.” Com o vespeiro aberto em São Paulo em 1982, em função da criação do Conselho da Condição Feminina, abrem-se no país novas vertentes para a discussão sobre a institucionalização das demandas feministas. Desde então vários Conselhos e Organismos de Políticas para as Mulheres (OPMs), vinculados ao poder Executivo e de natureza jurídica diversa – Secretarias, Coordenadorias, Subsecretarias, Superintendência –, nasceram para atender a uma forte reivindicação dos movimentos de mulheres e feministas; tendo como atribuição assessorar, formular, fomentar e monitorar as políticas públicas para as mulheres. Salvo exceções, padeceriam de falta de estrutura e escassez de recursos para a implementação da política e manutenção de seu quadro técnico, dependendo da “boa vontade” do governo e ou prefeito para a institucionalização da agenda de gênero nos âmbitos municipal e estadual.
Terceira onda... a caminho do planalto central Em 1984, em São Paulo, um grupo de feministas, envolvidas anteriormente com a proposta de criação do Conselho paulista, organizou o Seminário Mulher e Política, com a participação suprapartidária de deputadas federais, estaduais e vereadoras. Uma das conclusões desse seminário é a de propor ao governo federal a criação de um órgão nacional de defesa das mulheres. A articulação política necessária para tal propósito, tendo à frente a deputada Ruth Escobar, tem início nos bastidores do Planalto Central (que, naquele momento, começava pelo Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte). O “novo jeito de fazer política”, um dos slogans do seminário, lembrava muito mais um “velho
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jeito”, na opinião de algumas feministas, uma vez que os passos dessa articulação se davam sem prévia discussão com os grupos de mulheres e sem o reconfortante consenso que pautava a maioria das ações do movimento feminista. Temores e comentários se espalharam pelo movimento de mulheres do país, passando por questões que iam desde a polêmica participação num governo não legitimado pelo voto direto até as conversas ao pé do ouvido sobre a composição do órgão, para muitas um colegiado de “notáveis”. Foi no 7º Encontro Nacional Feminista, ocorrido em Belo Horizonte em 1985, que essa discussão ganha dimensões nacionais e pega fogo diante da proposta de criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher – CNDM. Muitas feministas presentes no encontro buscavam o apoio do conjunto do movimento para essa proposta. Outras, naquele momento, criticando a atuação dos cinco conselhos existentes, vislumbravam nessa proposta uma grande ameaça à autonomia do movimento. O Estado não merecia confiança e o sistema nos ameaçava: As teias do poder apareciam como uma intrincada rede repleta de “obscuras” e “malignas” intenções. O “Estado” e o “Sistema” se mostravam como grandes entidades alheias à nossa existência. “Estamos conscientes de que o sistema, através dos órgãos oficiais do Estado, reconhecendo a importância e o alcance das ideias feministas e de nossa militância e não podendo mais ignorar-nos, vem por isso assumindo nosso discurso ideológico.” ... “Sabemos entretanto, que é uma utopia acreditar que as ideias feministas sejam assumidas pelas entidades oficiais do Estado...” (Carta de B.H. – abril/1985). No entanto, ao final do 7º Encontro Nacional, “coerentes com esta postura”, segundo o documento, e reafirmando o repúdio à formalização do CNDM como se apresentava na proposta, as signatárias apresentam suas exigências: criação do CNDM mediante projeto de lei, como forma de garantir ampla participação da sociedade civil e das mulheres; garantia de dotação orçamentaria própria; identificação do órgão com a luta contra a discriminação e opressão das mulheres; qualquer parlamentar que venha a ocupar cargo no conselho deveria licenciar-se de seu mandato; viabilização da participação do movimento de mulheres na elaboração, execução e acompanhamento das políticas oficiais; o conselho deveria expressar as reivindicações do movimento de mulheres e das feministas, sem pretender representá-lo ou substitui-lo; e, finalmente, exigiam que o critério de composição do conselho fosse baseado na trajetória feminista de suas participantes. A polêmica instalada e as suspeitas de algumas feministas em relação ao Estado e de suas múltiplas possibilidades de cooptação não inviabilizam a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que se dá em agosto de 1985, através de projeto de Lei nº 7.353, aprovado pela Câmara Federal. O projeto trazia
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em seu enunciado que a finalidade básica do órgão seria a formulação de políticas com vistas à eliminação da discriminação da mulher. Esse objetivo foi desdobrado em algumas modalidades de ação específica, ali explicitadas, tais como formulação de diretrizes, elaboração de projetos de lei, assessoria ao poder Executivo, emissão de pareceres, acompanhamento da elaboração e execução de programas de governo e apoio ao desenvolvimento de pesquisas sobre a condição da mulher. Vinculado ao Ministério da Justiça, o CNDM nasce com autonomia administrativa e financeira e sua estrutura “híbrida” era composta por um Conselho Deliberativo – com a função de controle social, cujas integrantes eram representantes de diferentes setores do feminismo nacional, e uma estrutura de gestão, composta por uma Assessoria Técnica, Diretoria de Articulação Política e Secretaria Executiva. Na mesma Lei foi criado o Fundo Especial de Direitos da Mulher, para onde serão enviados os recursos orçamentários. A primeira presidente, escolhida dentre as conselheiras, foi a deputada Ruth Escobar (que se licenciou do mandato) e, depois, a socióloga e militante feminista Jacqueline Pitanguy. O corpo técnico era composto, na sua expressiva maioria, por feministas autônomas vindas de diversas regiões do país e trazendo na bagagem não só o pioneirismo, mas, sobretudo, o grande desafio de abrir espaço na estrutura política do governo, ser um canal de interlocução com os movimentos de mulheres, além da formulação e monitoramento de políticas públicas. Nessa primeira gestão, que vai de 1985 a 1989, o Conselho apostou em diferentes frentes e muitas foram as ações desenvolvidas. Investiu nas áreas de saúde, educação, trabalho (rural e urbano) violência, combate ao racismo, políticas de creche e legislação. A preocupação das feministas com a institucionalização de suas demandas e a possibilidade de descaracterização das propostas tornaram-se um desafio para o CNDM, que inaugurava a chegada das feministas na estrutura do governo federal.
Institucionalização das demandas feministas Em novembro de 1985, quatro meses após sua criação, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher lançou a Campanha “Constituinte sem mulher fica pela metade”, que tinha o propósito de ampliar a representação feminina no Congresso Constituinte, a ser instalado no ano seguinte, debater a situação jurídica da mulher e incentivar sua participação no processo de formulação da nova Constituição Brasileira. Imediatamente foi preciso enraizá-la. As técnicas do CNDM viraram peregrinas. Visitaram todos os estados, estimulando o debate e o envolvimento
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dos movimentos feministas e de mulheres e os respectivos conselhos na campanha e no processo. Paralelamente, o CNDM investiu numa campanha publicitária que incluía TV, outdoors, publicações e outros recursos de comunicação, e organizou em todo país debates, encontros e seminários para discussão e formulação de propostas, culminando na realização de um Encontro Nacional, em agosto de 1986, que elaborou e aprovou a Carta das Brasileiras aos Constituintes e lançou a segunda fase da campanha: “Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher”. Nas eleições de 1986 a representação feminina no Congresso Nacional foi mais que triplicada, passando de 8 deputadas federais para 26 deputadas constituintes, num total de 559 parlamentares eleitos. Numa forte conjugação de objetivos comuns, o CNDM, centenas de grupos de mulheres, conselhos, sindicatos e a bancada feminina juntaram esforços para que as propostas contidas na Carta das Brasileiras fossem incorporadas na nova Constituição que ia ser elaborada. E assim, defendeu propostas feministas no Congresso Nacional, algumas contra o próprio governo do qual faziam parte, como a licença-maternidade de 120 dias e a legalização do aborto, entre outras. A Carta das Brasileiras foi entregue solenemente ao presidente do Congresso, deputado Ulisses Guimarães, e também lançada em todas as Assembleias Legislativas Estaduais de maneira a evidenciar a organização articulada das mulheres e o caráter nacional de suas propostas. Estava dada a largada. A estratégia passava a ser, então, visitar gabinete por gabinete e tentar convencer os deputados e senadores da legitimidade e importância das reivindicações das mulheres. “O que estão querendo as mulheres?”, provavelmente pensaram alguns deputados que se apressaram em tentar desvalorizar o trabalho do Grupo, chamando-as de “Lobby do Batom”. Mas as mulheres não se intimidaram nem perderam o humor com essa provocação. Conseguiram transformar, estrategicamente, aquilo que pretendia ser uma afronta em mais um elemento da mobilização e força política das mulheres e da bancada feminina. O apelido foi parar nos jornais, mas não com a conotação pejorativa dos que subestimavam a força e a organização das mulheres. Daí nasce forte e decisivo o Lobby do Batom. Impossível dizer sua composição e seus limites, em número de pessoas. Todo mundo ajudava a telefonar, consultar, contatar, redigir, reproduzir, expedir, visitar gabinetes e persuadir indecisos. No Congresso, até o mais distante dos parlamentares esbarrava no recado: “Constituinte, as mulheres estão de olho em você!!!”. As integrantes do CNDM, a Bancada Feminina do Congresso Nacional e inúmeras organizações feministas participaram de todas as etapas do processo
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constitucional, nas subcomissões, nas comissões temáticas, na apresentação de emendas, na análise dos trabalhos do relator, na discussão dos anteprojetos e do projeto. Realizaram-se várias manifestações e vigília para acompanhar a votação final. Mantiveram um canal permanente com os Conselhos, com as feministas, com os grupos de mulheres, as categorias profissionais específicas, como as trabalhadoras domésticas e rurais, com o movimento de mulheres negras, indígenas, lésbicas, informando do andamento das propostas e transformando-se em um verdadeiro lobby nacional – o Lobby do Batom –, considerado um dos dois maiores grupos da sociedade civil organizada na Constituinte. Cerca de 80% das propostas das mulheres foram incorporadas no texto final. Para a pesquisadora Marlise Matos (2013): A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos sociais, introduziu instrumentos de democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular), instituiu a democracia participativa e abriu a possibilidade de criação de mecanismos de controle social, como os Conselhos de Direitos, de Políticas e de Gestão de políticas sociais específicas (MATOS, 2013, p. 5).
Regina Céli Pinto (2013) reforça as palavras de Matos (2012), ao dizer que a “carta foi o documento mais completo e abrangente produzido na época [...] e trouxe várias conquistas para as brasileiras” (p. 75). Registram-se dois grandes embates travados nas Comissões temáticas da Câmara no que diz respeito à autonomia das mulheres: um referente ao direito ao aborto (objeto de emenda popular), que o texto final não menciona, e outro, que era garantir explicitamente no texto a proibição da discriminação em razão da orientação sexual – embora essa demanda tenha sido pautada pelos movimentos LGBT e apoiada pelos movimentos de mulheres, também não foi incorporada por pressão dos parlamentares conservadores. Até a constituição do CNDM, o Estado não possuía política pública específica para a mulher, salvo alguns programas na área da saúde. A política do CNDM provocou, portanto, alterações no cenário nacional. Se foram pequenas, pontuais e fragmentadas, ainda assim, fazem parte do processo histórico. Podemos lembrar o nascimento de vários Conselhos Municipais e Estaduais, Delegacias de Mulheres, Casas Abrigo, creches nos locais de trabalho e mudança na legislação, entre outros avanços. De natureza híbrida, o CNDM foi marcado pela dualidade de sua atuação. Analisando sua curta trajetória, pode-se dizer que, nesse primeiro período, esteve muito mais voltado para a articulação com os movimentos de mulheres do que com o próprio Governo. Teve mérito de não haver jamais atuado partidariamente
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ou de ter se transformado em “cabide de empregos”. Tampouco foi “maternalista”, na medida em que sempre devolveu aos grupos de mulheres a responsabilidade de apontar suas prioridades. Vítima do sucesso, não foi capaz de garantir sua permanência, nos moldes originais, dentro do aparelho estatal. Em janeiro de 1989, o ministro da Justiça Oscar Dias Corrêa faz uma declaração à imprensa de que o CNDM já havia cumprido sua função, pois havia conquistado 80% das reivindicações na nova Constituição Brasileira e deveria passar por um enxugamento proporcional e ser transformado em apenas um órgão deliberativo. Ao cortejo das ações visando minar a atuação do órgão, em julho do mesmo ano, mais uma medida arbitrária surpreende as integrantes do Conselho e o movimento de mulheres com a nomeação de 12 novas conselheiras, sem identidade com o movimento de mulheres, provocando a renúncia coletiva da equipe técnica e integrantes do Conselho. Com a credibilidade abalada e para completar o estrago causado, logo em seguida, na “Era Collor”, uma Medida Provisória, n° 150 de 15/8/1990, acaba com sua autonomia administrativa e financeira. Em 1994, impulsionado pelo Fórum Nacional de Presidentes de Conselhos, uma nova proposta foi apresentada aos candidatos à Presidência da República – tratava-se da criação do Programa para Igualdade e Direitos das Mulheres, alocado na Casa Civil da Presidência da República, cuja estrutura contaria com um Conselho Deliberativo e uma Secretaria Especial. Com a posse de Fernando Henrique Cardoso em 1995, contrariamente ao esperado, o novo Governo reativou o CNDM sem estrutura administrativa, sem orçamento próprio e, usando de suas prerrogativas, decidiu sobre a composição do colegiado e nomeou a nova presidente sem consulta formal aos movimentos organizados de mulheres. A presidente Rosiska Darcy de Oliveira e as conselheiras assumiram os seus cargos com o compromisso de realizar as mudanças consideradas necessárias no interior desse mecanismo. Com o objetivo de implementar a Plataforma de Ação, resultante da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, firmou uma série de protocolos de cooperação com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da Saúde e elaborou, com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais, as estratégias para promover a igualdade. Em 1997, durante a reforma administrativa do Estado, apesar de ter alcançado uma maior visibilidade nos meios de comunicação e implementado uma série de ações como, por exemplo, o Programa Nacional de Promoção da Igualdade e Oportunidade na função pública, desenvolvido em parceria com o Ministério
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da Administração, o CNDM foi rebaixado dentro da hierarquia do Ministério da Justiça. Considerado um mecanismo institucional frágil e desproporcional à sua missão política, em 1999, mais uma vez, as articulações e redes nacionais se mobilizam para pressionar o governo com intuito de abrir o debate sobre a reformulação desse organismo. Nesse mesmo ano, uma nova presidente, Solange Bentes, e colegiado tomam posse. Em 2002, no último ano desse mandato, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, subordinada ao Ministério da Justiça. Sua competência e estrutura não foram definidas pela lei que o instituiu. Enquanto isso, o movimento feminista, longe do governo, estava cada vez mais revitalizado. Um exemplo do seu vigor foi a realização, no Congresso Nacional, em 2002, da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras com mais de 2 mil participantes. Precedido pela realização de conferências estaduais, o encontro nacional aprovou a Plataforma Política Feminista, documento que levanta desafios para a reconstrução da sociedade, do Estado, das relações inter-raciais, interpessoais e de gênero. Sobretudo, deixou registrado um jeito diferente de fazer política, garantindo espaço democrático onde as diferentes forças coletivas puderam se expressar. Ao mesmo tempo, as mulheres tiveram sua agenda de ação ampliada com um ciclo de conferências promovido pelas Nações Unidas. O marco inicial foi a realização da ECO-92, na cidade do Rio de Janeiro, da qual as brasileiras participaram ativamente do processo e construção do Planeta Fêmea, espaço privilegiado dentro do Fórum das Organizações Não Governamentais da conferência, que promoveu o encontro de representantes de vários países e culturas e possibilitou a elaboração da Agenda 21 das Mulheres. Seguiram-se as conferências sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) e População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), ambas tratando de assuntos de interesses da agenda feminista. O auge desse processo de integração internacional da luta das mulheres se deu com a realização da IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995). O processo de preparação dessas conferências fortaleceu os movimentos e suas articulações em todo o mundo e, no Brasil, a Conferência Mundial da Mulher abriu a oportunidade para a criação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), reunindo fóruns estaduais e articulações já existentes, estimulando a criação de novos espaços de debate em todo o país. Nessa agenda envolveram-se grupos de mulheres, organizações feministas, sindicalistas, associações profissionais e de bairros, representantes de partidos políticos, centros acadêmicos, além de outras organizações da sociedade civil que, também preocupadas com a cidadania e qualidade de vida das mulheres brasileiras, consideravam importantes os temas da IV Conferência. Foram realizadas mais de 90 atividades durante
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o processo, que envolveu aproximadamente 700 grupos de mulheres e produziu 22 documentos estaduais contendo diagnóstico sobre a situação das mulheres e propostas, que sistematizados foram colocados em discussão na Conferência Nacional de Mulheres rumo a Beijing, realizada em junho de 1995, na cidade do Rio de Janeiro, com a presença de feministas de todos os estados brasileiros. Como resultado dos debates foi aprovado o Documento das Mulheres Brasileiras para a IV Conferência Mundial, que frisou fortemente que a luta das mulheres não pode prescindir do enfrentamento ao capitalismo, ao patriarcado, ao racismo e à homofobia – que estruturam as desigualdades –, considerando a diversidade regional, cultural, racial, étnica, etária, orientação sexual, deficiência, credo e inserção política de cada uma. A forte articulação do movimento feminista e de mulheres, estabelecida no processo preparatório, e a consequente presença de centenas de brasileiras em Beijing, somada à capacidade de incidência e pressão junto às delegações oficiais, foi fundamental para uma postura progressista do governo brasileiro, que liderou as negociações e muito contribuiu para os avanços conquistados na Declaração e na Plataforma de Ação aprovada pelos representantes dos países participantes. A Plataforma de Ação de Beijing traz três inovações dotadas de grande potencial transformador na luta pela promoção da situação e dos direitos da mulher: o conceito de gênero, a noção de empoderamento e o enfoque da transversalidade. A ação internacionalizada seguiu no século seguinte: em 2001, organizações de mulheres negras se mobilizaram para participar da Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban/ África do Sul), resultando na fundação de duas grandes redes nacionais: em 2002, a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e, em 2004, o Fórum Nacional de Mulheres Negras. Sonia E. Alvarez (2014) destaca que: Os anos 1990 testemunharam a ascendência de uma nova forma de ativismo transnacional entre o crescente número de feministas na América Latina – um ativismo que tinha como meta organizações intergovernamentais e outros fóruns de política internacional dentro e fora do sistema interamericano, assim desejando alcançar projeção global ao pressionar por mudanças na política de gênero na linha de frente nacional (ALVAREZ, 2014, p. 62).
No final do século XX, começam a surgir as ONGs feministas com profissionais técnicos, tornando uma parcela significativa do movimento feminista mais institucionalizado, consequência das necessidades de produção de informações especializadas, articulação com os governos e ação política envolvendo diferentes setores dos movimentos de mulheres.
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Um novo ponto de partida Quando, em 2003, o governo Lula criou a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o Brasil deu um salto para a institucionalização das questões de gênero. A Secretaria foi criada com status ministerial, estrutura técnica, recursos financeiros e com o objetivo de promover a igualdade entre homens e mulheres, combater todas as formas de preconceito e discriminação provocadas pela sociedade patriarcal e excludente, através da indução de um olhar de gênero e raça na formulação das políticas voltadas para as mulheres em todos os órgãos governamentais. Dessa maneira, o CNDM ressurgiu como um colegiado integrante da estrutura básica da Secretaria, a contar, em sua composição, com representantes da sociedade civil e do governo. Isso ampliou significativamente o processo de controle social sobre as políticas públicas para as mulheres. O CNDM foi recomposto por 20 representantes da sociedade civil, indicadas por seus organismos, redes, articulações, de abrangência nacional, 3 especialistas em gênero escolhidas e indicadas pelo presidente da República e 13 representantes do governo (Ministérios). Sua presidência foi exercida pela ministra da SPM – Emília Fernandes, escolhida e nomeada pelo presidente da República. As principais demandas, construídas ao longo da história de lutas dos movimentos de mulheres e feministas, ganharam, então, um novo patamar. Havia, agora, um instrumento governamental de escuta, canalização, organização, execução e institucionalização da agenda das mulheres/gênero, oficialmente estabelecido. A pesquisadora Marlise Matos (2012) considera um ganho concreto para as mulheres “a emergência da questão de gênero na agenda governamental e a consequente implementação de políticas públicas direcionadas às mulheres, principalmente, na área de combate à violência e na atenção à saúde” (p. 36). O diálogo do governo federal – representado pela SPM/PR – com os movimentos sociais fluiu democraticamente ao longo do período, o que foi bastante positivo para o avanço de algumas conquistas. Além disso, em função da história e do perfil do novo governo popular, passa a ser um estimulador de demandas sociais, convocando Conferências Nacionais em diversas áreas. Com certo entendimento de que era necessário o envolvimento de todos os entes para que as políticas públicas se tornassem exequíveis e para que os objetivos de melhorar a vida das mulheres se concretizasse, o processo de realização da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2003, foi extremamente mobilizador e envolveu os governos federal, estaduais e municipais, bem como os movimentos de mulheres. Como resultado das discussões e votações, a SPM construiu o I Plano Nacional de Políticas para Mulheres (I PNPM), que sistematizou e propôs
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políticas públicas que atendessem às principais demandas das mulheres. O I Plano de Políticas para as Mulheres veio a se complementar nas duas edições seguintes, após a II e III Conferências Nacionais, com a inserção de novos eixos: autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento à violência contra as mulheres; participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental, inclusão social, soberania e segurança alimentar; direito à terra, moradia digna e infraestrutura social nos meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais; cultura, comunicação e mídia não discriminatórias; enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbofobia e enfrentamento às desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção às jovens e idosas. Para um maior detalhamento dos Planos e suas respectivas agendas, ver o Capítulo 4, escrito por Marlise Matos e Isabella Lins, no primeiro volume desta coletânea. Os compromissos de implementação da legislação nacional e a garantia de aplicação dos tratados internacionais que visavam ao aperfeiçoamento dos mecanismos de enfrentamento à violência contra as mulheres foram mantidos em todas as edições do Plano. Desse modo, propostas antigas e permanentes nas lutas das mulheres e feministas tornam-se políticas de governo, em torno das quais se ordenam programas e ações, através da transversalidade com outros Ministérios e órgãos governamentais pra sua execução. Isso fez que o debate de gênero entrasse na órbita do Orçamento Governamental (Plano Plurianual) e de outras políticas e planos de ação do Governo Federal, com a mobilização de diferentes setores dentro do governo e fora dele. As mulheres, em suas especificidades, saíram da invisibilidade! Em 2005, foi criado, pelo Decreto 5.390, o Comitê de Monitoramento do Plano, com o objetivo de acompanhar e avaliar periodicamente o cumprimento dos objetivos, ações e metas definidos no PNPM. Alterado em 2013, pelo Decreto nº 7.959, que acrescentou mais onze vagas para representantes dos órgãos de governo, ampliando sua capacidade de articulação e de monitoramento. Com a ampliação, o Comitê passou a contar com 32 órgãos governamentais e três representantes da sociedade civil do CNDM, garantindo-se, assim, a transversalidade em todas as fases do Plano. O Comitê cumpriu, até o golpe de 2016 (SANTOS, 2014), um importante papel na introdução da perspectiva de gênero nos Órgãos Federais, dando suporte à criação de Mecanismos de Gênero na estrutura desses órgãos, fortalecendo, assim, a institucionalização da igualdade da agenda feminista nas ações governamentais.
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Muitos debates e conquistas foram possíveis, à época, e isso se deveu, também, à articulação permanente entre governo e sociedade civil, juntos e cada um jogando seu papel. As mulheres brasileiras passaram a dispor de uma Central de Atendimento (Ligue 180); de uma lei para o enfrentamento e combate à violência, a Lei Maria da Penha; de equipamentos articulados em redes de enfrentamento e atenção à violência doméstica e sexual; de acesso a programas de redução da pobreza, ao Bolsa Família e à Minha Casa, Minha Vida. Muito embora as desigualdades permaneçam renitentes, programas sociais importantes foram implementados e consolidados para o enfrentamento da desigualdade social e o surgimento de um número expressivo de Organismos de Políticas para as Mulheres e Conselhos dos Direitos das Mulheres em vários estados e municípios. Nesses treze primeiros anos do “novo CNDM”, ele funcionou mais como um espaço de consulta e monitoramento do que como propositor de políticas públicas. Os fatos de o CNDM não ter uma estrutura própria, recursos orçamentários garantidos, de se reunir com muito pouca frequência, ter grandes dificuldades de propor sua própria pauta, ter pouquíssima visibilidade na sociedade acabaram por atuar de maneira discreta e pouco incidente. Ainda assim, na minha solitária avaliação política, ele se comportou bem. Sua harmônica existência com as diferentes gestões da SPM facilitou bastante a atuação do CNDM, quase exclusivamente voltada e colada nas ações e políticas desenvolvidas pela Secretaria como, por exemplo, a coordenação das quatro Conferências de Políticas para as Mulheres, participação na Comissão Tripartite para revisar a legislação punitiva sobre o aborto, acompanhamento do processo de formulação da Lei Maria da Penha e, ainda que timidamente, no GT de acompanhamento do Plano de Políticas para as Mulheres, entre outras. O papel desempenhado pelas conselheiras do CNDM nas Conferências foi fundamental para se garantir um debate amplo, envolver os poderes, os partidos, as categorias profissionais e estudantis e a participação do movimento feminista e suas diferentes expressões. Não podemos esquecer que, em qualquer avaliação sobre os caminhos e descaminhos dos Organismos de Políticas para as Mulheres e dos Conselhos, devemos levar em conta a conjuntura política e o governo do qual eles fazem parte. Se por um lado, a criação dos Organismos e Conselhos trouxe e traz para o cenário nacional o debate público sobre os direitos das mulheres e a questão da igualdade, por outro, seu poder de intervenção efetiva mostrou não dar conta de permear de forma efetiva a estrutura do Estado para a implantação de políticas mais permanentes.
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Vivemos na pele essa realidade com o impeachment que depôs a presidenta Dilma, em meio a vários ataques misóginos, na mídia, nas redes sociais e no Congresso Nacional, que através de uma coalizão de forças políticas antagônicas promoveram o que tem sido chamado por juristas, lideranças dos movimentos sociais e representantes dos partidos de esquerda “um golpe parlamentar-jurídico-midiático, um ataque à institucionalidade democrática”. Desde que assumiu o poder, o governo interino vem cumprindo um programa ultraliberal, que requenta boa parte do programa eleitoral da coalizão derrotada nas últimas eleições presidenciais e promove, de maneira ilegítima, mudanças ministeriais que representam uma brutal desestruturação de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos, sinalizando o aprofundamento de retrocessos nas políticas de educação, seguridade social, promoção da igualdade racial e nas políticas públicas para as mulheres, começando pelo desmonte da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. E para completar, acabou com o Ministério das Mulheres (e o da Igualdade Racial), transformando-os em Secretarias e nomeando para as pastas pessoas com posturas contrárias, por exemplo, aos direitos sexuais e reprodutivos, agenda historicamente defendida pelas feministas. Historiadores como Eric Hobsbawn (1995) reconhecem que a revolução cultural promovida pelas mulheres alterou a face do século XX, promovendo mudanças de comportamento, transformando os padrões familiares e abrindo espaço para a liberalização dos costumes, no bojo dos quais vieram outros movimentos reivindicatórios, como o de gays e lésbicas. Apesar de todo o preconceito que ainda envolve o feminismo, não há como negar que este foi o movimento mais bem-sucedido do século XX. A socióloga Bila Sorj (2015) diz que “está na hora de revermos essa narrativa profundamente inconsistente na qual não gostamos das santas, mas apreciamos o milagre”. Diferentemente dos demais movimentos políticos – como o fascismo, o nacionalismo e o comunismo –, o feminismo promoveu mudança de comportamentos sem utilizar a força e sem derramar uma gota de sangue.
Que onda é essa? Começamos a segunda década do século XXI alarmadas pelas previsões negativas que rondavam o contexto econômico, político e social, provocando frustações e intolerâncias e abrindo caminho para o aumento das violências físicas (feminicídios, extermínio da juventude negra, de indígenas e LGBT) e simbólicas (ameaçam tirar nossos direitos, querem controlar nossos corpos, difamações etc.). O avanço das forças conservadoras, alimentadas pelo fundamentalismo religioso que opera nas casas legislativas, tem apresentado inúmeros projetos de
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leis que visam limitar o acesso a métodos contraceptivos, transformar o aborto – em qualquer circunstância – em crime, aumentando a punição àquelas que a ele recorrem, colocando em risco a vida de milhares de mulheres por todo o país. Soma-se a essas ameaças uma perigosa alquimia que menospreza os direitos das mulheres e ações de grupos extremistas que buscam abolir da literatura educacional e das expressões culturais qualquer referência à perspectiva de gênero. A crise democrática que assola o país, o avanço do conservadorismo nas instituições e na sociedade, o desembarque de uma grande parcela das feministas do Governo, as novas perspectivas teóricas sobre o conceito de gênero fazem que o feminismo brasileiro viva um intenso momento de transformação. A presença de novas sujeitas e a abertura a uma perspectiva interseccional têm contribuído para ampliar a democracia no interior do movimento, reconhecer a diversidade, o multiculturalismo e a defesa dos diferentes protagonismos, da autonomia, da defesa do corpo enquanto território e da necessidade da redistribuição do poder e dos recursos para enfrentar as desigualdades de classe, raciais, étnicas, identitárias, de orientação sexual, geracionais e de cosmovisão. Indignadas com a tragédia da violência de gênero que os fatos apresentavam e a culpabilização das mulheres pela violência sexual, e estimuladas pelas mobilizações em outros países, em 2011, teve início no Brasil a Marcha das Vadias. Os protestos fazem parte de um movimento internacional nascido no Canadá, quando um oficial de segurança, ao proferir palestra na Universidade de Toronto, sugeriu que as mulheres “não se vestissem como vadias” como medida de segurança para evitar o estupro. A declaração causou revolta, pois mais uma vez o pensamento sexista transfere a culpa da violência sexual para a vítima, insinuando que, de alguma forma, são as mulheres que provocam o ataque. Ao longo de 2011 e 2012, diversas cidades brasileiras realizaram suas marchas, convocadas, através das redes sociais, por movimentos autônomos e espontâneos e, em protesto à culpabilização das mulheres pelo estupro, pelo fim da violência doméstica, física, simbólica e sexual, pelo fim do machismo e pela igualdade de gênero. O termo “vadia”, em geral usado para ofender as mulheres, foi ressignificado e usado para defesa da autonomia e liberdade de ir e vir com e como desejarem. Usando uma nova estética, as feministas, em sua grande maioria jovens, ocuparam as ruas, com as caras pintadas, roupas consideradas provocantes, corpos despidos e portando cartazes que diziam: “Se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias”. Podemos dizer que o jeito irreverente de fazer política e de enfrentar o patriarcado estava de volta. Dali em diante, as manifestações se espalharam como um rastro de pólvora, e por onde passou, a Marcha das Vadias revigorou os feminismos. Diferentes reivindicações de diferentes gerações de mulheres se encontraram nas ruas,
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recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e retomando palavras de ordem como “nosso corpo nos pertence” ou “meu corpo, minhas regras”, fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970 (RODRIGUES, 2017). As resistências através das ocupações, das ruas e da internet conjugam o feminismo dessa década. No ano de 2015, duas grandes marchas invadiram Brasília, além de dezenas de manifestações pelo Brasil afora. Em agosto, mais de 100 mil mulheres de todo o país ocuparam Brasília na 5ª Marcha das Margaridas, que teve como tema ”Desenvolvimento Sustentável com Democracia, Justiça, Autonomia, Igualdade e Liberdade” – eram as trabalhadoras com seus chapéus característicos, suas palavras de desordem e cartazes que expressavam suas lutas. Percorreram a Esplanada dos Ministérios e o Palácio da Alvorada levando a pauta de reivindicações, que entre muitas questões, propõe um desenvolvimento centrado na sustentabilidade da vida humana, na defesa da terra e da água como bens comuns, pela realização da reforma agrária, por soberania alimentar e produção agroecológica e pelo fim da violência contra as mulheres. Sai inverno, entra primavera e as feministas não deixam nem as redes sociais, nem as ruas. Reagindo à onda neoliberal misógina, elas foram as primeiras a ocuparem as praças, contra o PL 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, em tramitação no Congresso Nacional, que altera os procedimentos de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de saúde. A Primavera das Mulheres, como ficou conhecida a série de manifestações on-line e o off-line, em 2015 “foi a reação do movimento feminista ao delicado momento político e à dinâmica de uso da internet como potencial instrumento de mobilização dos movimentos sociais”, destaca a socióloga Priscilla Brito (2017). Um “mar lilás” tomou inicialmente as ruas do Rio de Janeiro para, na sequência, ganhar o país inteiro nos protestos contra as ameaças de retrocesso, contra os fundamentalismos e conservadorismos e fora tudo o que ainda oprime as mulheres. Como diz Priscilla Brito: o sucesso da campanha “Fora Cunha” não se deve exclusivamente à sua ação como “inimigo das mulheres” para frear o atendimento às reinvindicações do movimento feminista no tema do aborto. Em 2015 o deputado se tornou peça-chave do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), assim como alvo de denúncias de corrupção na operação Lava Jato, da Polícia Federal. (BRITO, 2015).
A adesão e repercussão que as campanhas virtuais tiveram mostrou ao feminismo que a internet pode ser um terreno fértil para amplificar suas vozes e suas demandas e construir espaços de reflexão e debates. A Primavera das
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Mulheres floresceu e tem rendido frutos até hoje. Haja vista as dezenas de blogs feministas e hashtags, além da mobilização para o último 8 de Março, quando o feminismo brasileiro e latino-americano gritou “Nem uma a menos. Vivas nós queremos!”. O 8M, como foi chamado o evento, pretendeu dar um recado articulado, demonstrando a força e o potencial de luta do movimento feminista, nestes tempos de resistência. Em novembro, foi a vez de as mulheres negras colorirem o Cerrado. Depois de três anos de construção e articulação nos estados e municípios, se juntaram em Brasília, na Marcha das Mulheres Negras, na mais potente demonstração de força política, para “denunciar a ação sistemática do racismo e do sexismo com que somos atingidas diariamente mediante a conivência do poder público e da sociedade, com a manutenção de uma rede de privilégios e de vantagens que nos expropriam oportunidades de condição e plena participação da vida social” (Dossiê sobre a Marcha das Mulheres Negras). Mais de 50 mil mulheres negras, vindas dos quilombos, do campo e da cidade, dos terreiros, das universidades, das periferias ocuparam as ruas de Brasília para expressar coletivamente suas denúncias contra o racismo, o genocídio da população negra, romper com os estereótipos do padrão de beleza ideal, denunciar a exclusão, a pobreza, o feminicídio, a violência e propor um novo modelo civilizatório para o País, centrado no bem viver e no rompimento com a violência racial que exclui e mata homens e mulheres negras, dizia o Manifesto. Devido a essa diversidade de mulheres, especificidades e demandas que a pesquisadora Magda Guadalupe dos Santos (2017), em recente artigo publicado, apontou que o termo “feminismo, atualmente, deve ser utilizado no plural, tendo em vista a desconstrução dos papéis sociais e binários entre sexos e gêneros que alimentam o patriarcado”. Magda Santos provoca uma reflexão ao citar a autora Sally Scholz, que afirma que “feminismo é um projeto crítico”. Sabemos que o caminho é árduo, hostil e escabroso, sobretudo neste momento da história, que questiona o governo ilegítimo e uma conjuntura complexa que demanda mudanças profundas. No entanto, o(s) feminismo(s) continuam desafiando o sistema capitalista, racista, machista, cis e heteronormativo, apostando num compromisso ético e ação política que melhore a vida das mulheres. Em sua análise sobre “A institucionalização do feminismo”, a autora Nádia Cantanhede (2012) enfatiza que: A intensificação das políticas neoliberais são um desafio e uma hostilidade para o feminismo, pois o neoliberalismo leva inevitavelmente a um aumento da desigualdade e des-democratização. Talvez estejamos a assistir a uma crise da institucionalização do feminismo para a qual ainda não temos
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respostas. Talvez o feminismo acabe por voltar exclusivamente à sua intervenção nas ruas de forma mais espontânea e menos organizada. Talvez vá aí beber a sua força, aos movimentos sociais, dos quais ainda faz parte, mas não em exclusividade ou talvez padeça do governo e encontre uma nova solução para continuar com o seu trabalho tão necessário aos direitos humanos.
Para finalizar, nunca é demais lembrar que, se hoje é considerado natural que as mulheres estudem, trabalhem, deliberem sobre seus destinos, sobre o exercício da sua sexualidade, e, afinal, sejam donas das suas próprias vidas, é porque o feminismo produziu uma revolução silenciosa e pacífica, capaz de mudar o padrão de comportamento de homens e mulheres nas sociedades ocidentais. As propostas de Betty Friedan nos anos 1960 – de que as mulheres poderiam compatibilizar a vida familiar com uma atividade no mundo do trabalho assalariado, com a cultura e com a política – hoje são tidas como normais até nas famílias mais conservadoras. O que já foi escandaloso, proibido, atualmente é desejável e absolutamente comum. Plural, sem dono nem estruturas de controle centralizadas e sem aspiração de tomada do poder, o feminismo segue revigorado, defendendo a democracia radical, erguendo suas bandeiras de liberdade e igualdade, acatando novos desafios e espalhando transformações por onde quer que passe.
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As mulheres das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres são feministas?1 Solange Simões2 Para os leitores deste livro poderia parecer evidente e lógico que as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016 fossem e se definissem como feministas – afinal, elas se empenharam em disputar concorridas vagas para representar suas comunidades, entidades, organizações e movimentos, e se aventuraram em longas viagens até chegar a Brasília para vários dias de discussões exaustivas sobre as melhores políticas para defender os direitos das mulheres e a igualdade de gênero no Brasil. Entretanto, descobrimos com a nossa pesquisa que, mesmo entre as delegadas das CNPMs, há aquelas que não se definem como feministas e que há também diversos e nem sempre convergentes entendimentos do que seja o feminismo. Fica assim evidente que, para responder à pergunta central deste capítulo – As mulheres das CNPMs são feministas? –, devemos iniciar nossa análise considerando definições de feminismo, e em relação a qual ou quais delas avaliaremos as concepções e práticas do feminismo das mulheres das CNPMs investigadas em nossas pesquisas. As teorias sobre o feminismo têm refletido, no Brasil como em todo o mundo, as experiências, conflitos e divergências dentro dos movimentos de mulheres e feministas. As trajetórias das práxis e teorias feministas percorreram trajetórias que vão (de acordo com o chamado feminismo radical) da centralidade conceitual dada à categoria sexo (e posteriormente, gênero) para o entendimento das desigualdades sociais, passando pela discussão da relevância do conceito de classe social para entendermos as desigualdades de gênero (de acordo com as feministas socialistas), até chegarmos ao corrente reconhecimento e consideração 1 Gostaria de agradecer e reconhecer a importante contribuição de Mauro Lucio Jerônymo (doutorando em Ciência Política / UFMG) na análise dos dados deste capítulo. Além de executar as tabelas e índices que construí para responder a questão de pesquisa central no capítulo, Mauro foi um importante e crítico interlocutor nas minhas escolhas sobre os passos e procedimentos na análise e interpretação dos dados. 2 Professora Associada do Departamento de Estudos de Gênero e do Departamento de Sociologia da Eastern Michigan University e Coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero da mesma Universidade.
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das diferenças não apenas entre homens e mulheres, mas também das diferenças entre as mulheres com base em fatores como orientação sexual, raça e identidade de gênero, entre outras clivagens sociais correlacionadas a desigualdades estruturais e sistêmicas. Pode-se afirmar que há um crescente consenso no entendimento do feminismo atual como sendo um feminismo interseccional, resultante do reconhecimento e entendimento das interconexões de gênero com outros fatores condicionantes das desigualdades sociais (COLLINS; BILGE, 2016; BOSE, 2012; MOHANTY, 2004). Consistentemente com as novas teorizações sobre as múltiplas e interligadas fontes de identidade e de desigualdade, os feminismos vigentes tanto em países do sul global quanto do norte global têm se transformado num feminismo potencialmente emancipatório, para o qual a superação das desigualdades de gênero implica a abolição de outras formas centrais de desigualdade social (MOHANTY, 2004; BOSE, 2015; MARCHAND; RUNYAN, 2011). O feminismo emancipatório vai além da afirmação dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, e passa a utilizar o conceito mais abrangente de justiça social para propor igualdade para toda a sociedade, e não apenas para as mulheres. De fato, Alvarez (2000) e Vargas (2008) observam que o feminismo no Brasil e na América Latina se tornou mais plural com a expansão dos espaços compartilhados da política feminista; com o aumento da visibilidade e da força de outras identidades do feminismo – feminismos pretos, lésbicos, comunitários e populares; com a organização de mulheres, sindicalistas, trabalhadores rurais etc.; com o envolvimento de feministas que procuraram influenciar e participar das políticas eleitorais; e com as novas oportunidades de interação em diversas instituições sociais e políticas. Ao investigarem as origens do conceito de interseccionalidade, hoje central na teoria e práxis feministas, Collins e Bilge (2016) também chamam a atenção para o pioneirismo das mulheres negras brasileiras que, vivenciando o gênero como intimamente interligado com sua identidade racial e posições de classe, tiveram um papel pioneiro no entendimento da interseccionalidade, tanto enquanto teoria como enquanto práxis. Este capítulo busca, portanto, situar teórica e comparativamente as definições de feminismo apresentadas pelas mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro, em comparação com as definições correntes e emergentes nas teorias e práxis do feminismo transnacional. De início, é importante observar que, considerando-se as faixas etárias das nossas entrevistadas (como pode ser visto no Capítulo 1 do Volume 1, quase cerca de metade das delegadas em ambas CNPMs têm até 44 anos e, a outra metade, 45 anos ou mais), podemos pressupor que o conjunto das delegadas, cujos
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entendimentos do feminismo investigamos neste capítulo, inclui as diferentes gerações de mulheres que ajudaram a construir as várias concepções e práticas do feminismo no Brasil nas últimas quatro décadas. E esses feminismos brasileiros, por elas construídos, têm tido uma trajetória, convergente com as dos feminismos do norte global e do sul global, que vão do feminismo dos direitos dos anos setenta até o atual feminismo interseccional e emancipatório. Iniciamos este capítulo, assim, com a nossa pergunta original reformulada para, já explicitar, a definição de feminismo que utilizaremos: Em que medida as mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro se consideram feministas e pensam o feminismo em uma perspectiva interseccional e emancipatória, na qual os direitos das mulheres e a igualdade de gênero estão interligados a fatores além da identidade de gênero – tais como classe social, raça, orientação sexual e identidade de gênero –, e que inclui a luta pela justiça social e igualdade para todos?
Quem se considera feminista, e como o feminismo é definido pelas mulheres das CPNMs? Feminismo, luta pelos direitos das mulheres e igualdade de gênero não são frequentemente vistos pelas pessoas como sinônimos ou equivalentes. De fato, para muitos – homens, mas também mulheres, que acreditam ou não nos direitos das mulheres e na igualdade de gênero –, a palavra “feminismo” continua a inspirar controvérsias e a provocar respostas viscerais, muitas vezes equivocadas e carregadas de preconceitos e fortes sentimentos negativos. E, como veremos neste capítulo, também entre as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016, existem aquelas que, mesmo reconhecendo os direitos das mulheres, consideram o feminismo como um movimento muito radical e negativo e com o qual absolutamente não se identificam. Além disto, mesmo entre aquelas que se definem como feministas, os entendimentos e definições de feminismo são diversos e nem sempre convergentes. Veremos a seguir como essas controvérsias emergem nos dados das pesquisas das CNPMs realizadas em 2011 e 2016. Em resposta às questões “Tem mulheres que dizem que são feministas. Você se considera uma feminista?” (Pesquisa 2011) e“Tem mulheres que se declaram feministas. Você se considera uma feminista” (Pesquisa 2016), a grande maioria, ou mais de oito em cada dez mulheres, em 2011 e 2016, se considerou feminista, mas cerca de 17%, tanto em 2016 quanto em 2011, não se consideraram feministas. Como seria esperado, porcentagens muito pequenas (1,7% em 2011 e 5,5% em 2016) dizem não saber se classificar ou dizer o que é o feminismo.
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Tabela 1. Autoclassificação como feminista ou não feminista Considera-se feminista* 2011
2016
Sim
Não
Sim
Não
82,40%
17,60%
82,30%
17,70%
*Em resposta às questões “Tem mulheres que dizem que são feministas. Você se considera uma feminista?” (Pesquisa 2011) e “Tem mulheres que se declaram feministas. Você se considera uma feminista?” (Pesquisa 2016).
O Capítulo 1, do Volume 1, apresenta e discute o perfil sociodemográfico das entrevistadas, fazendo a distinção entre as que se consideram feministas e as que não se consideram feministas. Assim, neste capítulo, gostaria apenas de observar que, apesar de acharmos algumas correlações curiosas, em geral, os dados sociodemográficos se mostraram poucos explicativos das autoclassificações das delegadas como feministas ou não. Considerando-se a raça, por exemplo, tanto em 2011 quanto em 2016, cerca de 80% das brancas e negras se identificaram como feministas; no caso das faixas etárias, as mais jovens (até 34 anos) se identificaram mais como feministas, mas a identificação também é muito alta entre as delegadas com 45 anos ou mais (cerca de 80% em ambos os casos), e a identificação como feminista curiosamente cai entre as delegadas na faixa de 35 a 44 anos, tanto em 2011 quanto em 2016. Quanto se trata da orientação sexual, há um percentual de cerca de 10% de diferença entre as heterossexuais e as lésbicas nas duas pesquisas, cerca de 80% e 90%, respectivamente. Se os dados referentes à identificação com o feminismo não causam muita surpresa, as análises das respostas às questões abertas sobre as definições de feminismo – “A sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?” (2011) e “O que é o feminismo para você? Você poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo, ou em que você pensa ao falar em feminismo?” (2016) – revelam, em alguns casos, a nomeação espontânea de ideias básicas centrais do feminismo, mas também a pouca menção ou mesmo a ausência de conceitos ligados a uma abordagem interseccional e a uma perspectiva emancipatória do feminismo. Contudo, antes de iniciarmos a análise das respostas, temos que indagar de maneira crítica o que uma pergunta aberta em um questionário de survey mede. Devemos analisar as respostas considerando não apenas seus conteúdos substantivos, mas também possíveis vieses metodológicos. Em primeiro lugar, é preciso indagar se as respostas abertas em um questionário de survey medem simplesmente o que é mais saliente no momento da entrevista, ou o que
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as entrevistadas consideram de fato como mais importante (SIMÕES, 2014; SUDMAN; BRADBUM; SCHWARZ, 1996; GEER, 1988). Há também uma percepção generalizada, mas equivocada, que uma questão aberta necessariamente levaria a respostas mais aprofundadas e refletidas. No contexto de uma entrevista de survey, utilizando o questionário como instrumento de coleta de dados, as respostas às questões abertas tendem a ser muito curtas, não claras e a não atender aos objetivos da questão, ou seja, não medir o que se pretendeu medir (SIMÕES; PEREIRA, 2004; SCHUMAN; PRESSER, 1981). Um recurso metodológico para esse problema de medição e validade dos dados é treinar os entrevistadores a utilizarem probes, questões curtas e adicionais para o esclarecimento das respostas (BEATTY; WILLIS, 2007; SIMÕES; PEREIRA, 2004). Entretanto, dado o contexto da condução das entrevistas – que ocorreram durante as conferências, quando as entrevistadas tinham suas agendas de grupos de discussão e trabalho interrompidas para a concessão da entrevista –, o tempo para se explorar e esclarecer respostas curtas e ambíguas às questões abertas foi ainda mais limitado, e restringiu o uso consistente e eficaz dos probes pelos nossos entrevistadores. Levando em consideração essas questões metodológicas, podemos analisar agora as falas das entrevistadas. Em primeiro lugar, buscamos fazer uma análise de conteúdo de discurso, verificando as palavras utilizadas e medindo o número de ocorrências das ideias e conceitos mais presentes na teoria e práxis feministas. Na nossa análise agregamos palavras que, apesar de pequenas diferenças semânticas, avaliamos ter equivalência conceitual. É preciso notar também que contamos o número total de vezes em que palavras foram usadas nas respostas a uma questão aberta, independentemente de terem sido usadas mais de uma vez em uma mesma resposta. As nuvens com as palavras usadas nas respostas às questões abertas (Nuvens de Palavras A e B abaixo) nos permitem uma visualização comparativa dos termos mais usados em 2011 e 216 entre as delegadas que se consideraram feministas e entre aquelas que não se consideraram feministas.
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Figuras 1 e 2: Nuvens de Palavras 2011 e 2016 A – Feministas
Respostas às perguntas abertas para as que se declararam feministas em questão fechada anterior – 2011: “A sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?”; 2016: “O que é o feminismo para você? Você poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo, ou em que você pensa ao falar em feminismo?”.
Figuras 3 e 4: Nuvens de Palavras 2011 e 2016 A – Não Feministas
Respostas às perguntas abertas para as que não se declararam feministas em questão fechada anterior – 2011: “A sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?”; 2016: “Em que você pensa quando houve a palavra feminismo?”.
Observamos que, tanto em 2011 quanto em 2016 (Tabela 2), entre as entrevistadas que se consideraram feministas, os termos que mais apareceram, respectivamente, foram: mulher (259, 277), direitos (124, 151), igualdade (110, 142). É interessante notar que a palavra “lutar” recebeu um número ainda mais alto
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de menções em 2016 (144), nas entrevistas conduzidas durante a CNPM realizada em maio de 2016 e em dias que coincidiram com o início do processo de impeachment da primeira mulher presidente no Brasil, Dilma Rousseff. É grande o número de delegadas que deram centralidade à práxis e à identidade nas suas definições de feminismo: • • • • • • • • • • • •
“O feminismo é a luta diária e cotidiana pelos direitos das mulheres.” “Luta, opinião, mulheres guerreiras.” “Defesa da mulher, erguer a bandeira, amor à identidade feminina.” “É lutar diariamente pela emancipação política, econômica, social, cultural das mulheres.” “Aquela mulher que sempre protege a outra mulher, dá as mãos para ela, vai junto, participa com ela.” “Movimento de mulheres, união, força.” “É querer transformar um mundo em um lugar melhor para as mulheres.” “É entrar na luta e defender o que é certo para as mulheres.” “Uma forma de lutar por igualdade e liberdade.” “Significa luta, força, para que as mulheres tenham mais direitos.” “Eu não sei direito a definição, mas eu penso que é a mulher que luta pelo direito das mulheres.” “Mulher que na maioria das vezes já sofreu por conta de ser mulher e a partir disso passa a lutar pelas mulheres.”
Cabe ressaltar que o conceito de gênero – que só começa a ser utilizado na teoria e práxis feministas nos anos 1980 – recebe um número bem menor de menções, mas que cresce um pouco em 2016 (36 em 2011 e 55 em 2016). Já o termo homem (44 e 47, respectivamente), que tem adquirido intensificada atenção com as perspectivas que ressaltam a necessidade de inclusão dos homens no movimento feminista, aparece apenas como parte das respostas que definem o feminismo como “igualdade de direitos entre mulheres e homens”, e seu uso permanece quase o mesmo de 2011 (47) para 2016 (44), apesar de ter recebido grande visibilidade nos movimentos, nas manifestações de ruas, na mídia social e em campanhas como a “He For She” das Nações Unidas. Nas palavras de uma delegada: • “O feminismo trata da luta por direito de igualdade entre os sexos apesar das diferenças. O feminismo trata das questões das mulheres que, são, sem dúvida, as maiores vítimas, mas também poderia significar uma libertação para os homens, que em alguns aspectos também sofrem com este sistema de violência em relação à imposição de papéis.”
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Duas entrevistadas ofereceram definições chamando a atenção para o fato de que o feminismo não é um movimento contra ou anti-homen: • “Feminismo é igualdade. Feminismo não é anulação do homem na sociedade.” • “Feminismo não é luta contra homens, mas contra uma estrutura que historicamente oprime as mulheres.” Apesar dos altos níveis de escolaridade das delegadas (quase 2/3 das delegadas em 2011 e 2016 têm curso superior ou pós-graduação, como discutido no Capítulo 1, Volume 1), conceitos que vão além das noções básicas de direitos e igualdade e que são centrais para elaborações mais abrangentes e refinadas do feminismo também recebem poucas menções – tais como autonomia (29 citações em 2011 e 31 em 2016) e empoderamento (7 e 22, respectivamente). O conceito de patriarcado, central para a explicação e compreensão das relações de gênero, recebeu apenas 10 menções em 2016 e 11 em 2011. É curioso observar que o conceito interseccional só recebeu uma citação em 2011 e em 2016; e transversal mencionado apenas uma vez em 2016 e em 2011 (transversalidade). De maneira semelhante, noções centrais ao feminismo interseccional também obtiveram um número muito reduzido de menções: raça (apenas 6 em ambos os anos), sexualidade (15 em 2011 e 14 em 2016), trabalho (15 em 2011 e 12 em 2016). Apesar do alto índice de sindicalização entre as delegadas (ver Capítulo 1), o sindicato não é espontaneamente mencionado em 2011, e apenas 1 vez em 2016 pelas entrevistadas ao definirem o feminismo. O termo “mundo” só apareceu em 11 respostas em 2011 e 5 em 2011, apesar da importância do feminismo transnacional na emergência e desenvolvimentos dos feminismos no Brasil e dos feminismos brasileiros para a o diálogo norte-sul e para a evolução da agenda feminista internacional: • “O feminismo norteia a luta das mulheres no Brasil e no mundo.” Também chama a atenção o fato de que, apesar da violência contra as mulheres ter sido apontada pelas entrevistadas como um dos maiores problemas enfrentados pelas mulheres no Brasil, nos estados e nos munícipios (Tabelas 5), a sua menção espontânea em definições do feminismo raramente apareceu (10 vezes em 2011 e 8 em 2016). É também muito curioso e indicador de uma possível perda de centralidade dos papéis tradicionais das mulheres (como mães e donas de casa), enquanto
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motivações para o ativismo de mulheres na esfera pública (especialmente se comparado com década de setenta, quando a defesa das condições de vida da família era motivação fundamental nos movimentos de mulheres), que a palavra “família” só foi mencionada 3 vezes em 2011 e 4 vezes em 2011. Mais ainda, a centralidade da família só apareceu em uma definição de feminismo (“Defender a família, se preocupar com a base estrutura familiar”). Por outro lado, contudo, a divisão sexual do trabalho doméstico e cuidado com os filhos foram também raramente mencionados, apesar da sua centralidade na manutenção de papéis tradicionais de gênero e da segregação ocupacional das mulheres, fatores considerados explicativos da persistência das desigualdade de gênero em várias outras esferas. Tabela 2. Número de citações de palavras em resposta à questão aberta “O que é o feminismo para você? Você poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo, ou em que você pensa ao falar em feminismo?” 2011
2016
Termo
Feminista Sim
Não
Sim
Não
Mulher
259
277
14
Direitos
124
151
Igualdade
110
142
Lutar
118
144
Gênero
36
55
Patriarcado
10
11
Autonomia
28
1
31
Empoderamento
7
22
Interseccional
1
Transversal
1
1
Homem
47
44
Raça
6
6
Sexualidade
15
14
5
Classe Trabalho
15
12
Sindicato
1
Violência
10
8
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É significativo que, de uma lista com termos frequentes e importantes em um discurso feminista, como mostrado na Tabela 2, apenas o termo “autonomia” foi citado, e apenas uma vez, pelas entrevistadas que declararam não ser feministas. E, em contraste com as linguagens usadas pelas delegadas que se identificaram como feministas, entre as delegadas que não se consideraram feministas, o termo “radical” foi o mais mencionado, tanto em 2011 quanto em 2016, e associado a visões negativas e fortemente contrárias ao que acreditam que o feminismo seja, como veremos mais adiante e como pode ser muito bem visualizado na Nuvem de Palavras B acima. Em alguns casos, porém, o uso do termo radical aparece mais associado a críticas internas ao movimento: • “Feminismo é você respeitar sua companheira, fazer crítica construtiva, existem feministas muito radicais.” Indo além da análise do uso de determinadas palavras e conceitos, analisamos a seguir as respostas sobre o entendimento do termo feminismo, e as classificamos em categorias que revelam alguns desentendimentos, entendimentos básicos e outros mais complexos e correntes do feminismo: 1. Radical negativo: uma visão visceralmente antagônica, muitas vezes caricatural do feminismo como sendo anti-homens ou “coisa de mulheres autoritárias e briguentas” (2011: 6,5%; 2016: 13,5%). Alguns exemplos: • “O feminismo é um movimento muito radical, não quer igualdade com o homem. Querem se sobressair mais que o homem.” • “Não sei te responder. São pessoas muito revoltadas com tudo, totalmente contra homens, mas não sei se em todos os estados é assim.” • “É uma radicalidade onde revolta-se contra o homem achando que todos os homens são iguais e que as mulheres são sempre vítimas.” • “Pessoas brigando, se descabelando, brigando, acampar, passeata.” • “Feminismo é algo radical pelo que eu conheci, há pessoas com quem não consigo dialogar. Não é pessoa maleável, vai defender até morrer. Uma causa que as pessoas defendem a ferro e fogo.” • “Pessoas arrogantes.” • “Feminismo é um exagero da condição de ser fêmea, ser mulher apropriando-se de características masculinas para impor uma identidade feminina.” • “O discurso é de equidade mas a prática é de superioridade.”
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2. Igualdade de gênero: definições que tendem a ser relacionais fazendo referências à igualdade com homens, mas que não enfatizam as dimensões transformadoras, de empoderamento e autonomia do feminismo (2011: 12%; 2016: 23%). Alguns exemplos: • “Lutar pelo direito das mulheres, igualdade de direitos em relação aos homens.” • “Não aceitar que só os homens podem, igualdade em todos os sentidos, somos igualmente capazes.” • “Um movimento em busca de igualdade entre os gêneros. Discorda da mulher ser superior ao homem.” • “Basicamente, é a equiparação de gênero, contra a cultura de submissão da mulher; quebrar os abusos que existem contra a atuação da mulher no âmbito político, profissional, público. Ter direito a ter direito. A igualdade de gênero é o que mais fundamenta o feminismo.” • “Saber que o homem desde o início da história é o que manda e a mulher obedece. Feminista é romper com esses laços do passado e assumir que temos direitos iguais aos dos homens.” • “Feminismo é a luta de igualdade entre os sexos; é a mulher ser considerada um ser de direito, como os homens.” 3. Direitos, autonomia e empoderamento das mulheres: definições nas quais os conceitos de “mulher” e “direitos” têm centralidade, mas que também incluem ideais de autonomia, empoderamento e liberdade (2011: 63%; 2016: 46%). Alguns exemplos: • “Ideia radical de que as mulheres são sujeitos de direito.” • “A ideia radical de que somos gente.” • “Ato de indignação ao sistema imposto do espaço e papel das mulheres na sociedade.” • “É libertador, traz emancipação, empoderamento, autonomia; é superar a opressão de gênero.” • “Empoderamento; movimento de luta constante que me permite chegar onde eu cheguei.” • “Feminismo é você ser dona do seu corpo, das suas ideias, mas também compartilhar. É você ter a tua vez e fazer valer o direito de ter a tua vez.” • “… não aceitar nenhuma atitude imposta, humilhante.” • “... é ter sua autonomia, ser dona de si, ter seu próprio pensamento.”
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• “Empatia, sororidade, se amar, empoderamento, mudança, liberdade, poder, amizade entre as mulheres, luta contra opressão, ser o que se é.” • “É a busca pela autonomia da mulher. Ter controle sobre a vida própria, corpo. Busca por direitos.” • “Desconstruir a figura do patriarcado na sociedade judaico-cristã. Desconstruir a história onde as mulheres estão subjugadas, ter autonomia sobre o corpo e econômica e ter uma educação libertária.” • “Lutar pelos nossos objetivos, ter o direito de decidir, mandar no meu corpo e na minha vida.” • “Minha concepção a respeito do feminismo se baseia na consagração dos direitos humanos de todas as mulheres, contemplando a pluralidade e autonomia das mulheres.” 4. Emancipatória: esta categoria foi utilizada para classificar todas as definições que apontaram desigualdades não apenas intergênero, mas também as desigualdades intragênero, ou seja, as diferenças entre as mulheres, com base em qualquer menção a um ou mais fatores em uma perspectiva intersecional (por exemplo, raça, classe social, orientação sexual e identidade de gênero), e também menções de ideais coletivos de igualdade e justiça social (2011: 15%; 2016: 10%). Alguns exemplos: • “Igualdade social, racial, étnica, econômica.” • “Lutar por uma sociedade sem patriarcado, anticapitalista, antirracista e anti-homofóbica.” • “No feminismo o olhar para as mulheres negras é recente e preciso pensar sobre a opressão dessas mulheres.” • “Participação do movimento LGBT, que participa mais da causa feminina.” • “É um projeto emancipatório, que envolve vários grupos já que as mulheres não são iguais.” • “É defender e lutar por direitos das mulheres independente de cor, raça ou opção sexual.” • “Feminismo interseccional que pensa e faz política para as mulheres da periferia, para mulheres trans; seria um feminismo voltado para as políticas públicas.” • “Ideário de equidade de gênero em toda a transversalidade que a temática contempla.” • “Equidade, enfrentamento ao racismo, sexismo e patriarcado. A questão da lesbofobia e o capitalismo.”
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• “O feminismo não é uma questão de teoria, é uma filosofia de vida, uma política, defende a construção de um mundo de igualdade, a transformação da sociedade para a conquista do bem-estar das mulheres como um todo, defende os direitos das mulheres. Tem sua abrangência sem excluir; no Brasil nós temos vários feminismos. Devemos respeitar essa diversidade. Não é apenas uma maneira de ser, é uma filosofia de vida.” • “É uma vontade de construir uma outra sociedade baseada na igualdade e que essa sociedade seja anticapitalista e não patriarcal.” • “Que as pessoas sejam vistas e tratadas com direitos e oportunidades iguais para todos e todas.” • “Para mim feminismo é um compromisso de ação política, em favor das mulheres e pela transformação do mundo. Nosso slogan é esse: ‘transformação do mundo pelo feminismo’.” • “Do meu ponto de vista, embora existam questões específicas, a emancipação das mulheres está intimamente ligada à emancipação social e, portanto, a luta feminista deve andar junto com a luta por uma sociedade justa e igualitária. Por isso mesmo, ao se organizarem as lutas, deve-se pensar que não existe a mulher, mas as mulheres, que se diferenciam conforme sua condição social, sua raça/cor, sua geração, sua orientação sexual, a região onde residem.” • “Construir uma sociedade justa e igualitária.” • “Feminismo é auto-organização das mulheres em luta para transformar o mundo e promover igualdade. É um movimento social e uma prática política.” • “Mudança radical na sociedade, mundo mais humano.” • “Emancipação humana, não só da mulher, igualdade como um todo.” • “Uma ideologia para mudar o mundo. Mudar a vida das mulheres para mudar o mundo, e mudar o mundo para mudar a vida das mulheres, garantindo que as mulheres sejam tratadas como iguais.” Apesar da força da convicção e da clareza de algumas respostas acima apresentadas, mais uma vez notamos que, nas respostas às questões abertas, entendimentos intersecionais e emancipatórios do feminismo foram pouco apresentados, proporcionalmente ao total de respostas (2011: 15%; 2016: 10%). Assim prosseguimos nossa análise buscando identificar perguntas atitudinais das pesquisas, ou seja, aquelas que medem as crenças e opiniões das entrevistadas e que pudessem melhor revelar o feminismo das delegadas das CNPMs 2011 e 2016. É o que faremos a seguir.
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Quais são as atitudes (crenças e opiniões) das mulheres do feminismo estatal brasileiro? As duas ondas da pesquisa incluíram baterias de questões que investigaram crenças e opiniões das entrevistadas em relação a causas e agendas feministas. Duas dessas baterias se mostraram particularmente reveladoras do feminismo das delegadas, mostrando a importância e prioridade que elas dão às desigualdades intragênero e também às desigualdades além das relações de gênero. Nesta seção do capítulo, portanto, consideraremos também, como indicadores adicionais do feminismo das delegadas, as suas atitudes (crenças e opiniões) em relação a questões relativas às desigualdades não apenas entre mulheres e homens, mas entre as mulheres, questões sobre desigualdades e discriminação com base na raça, classe, orientação sexual e identidade de gênero – questões centrais para o novo feminismo intersecional que tem se expandido e se afirmado, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Em ambas as pesquisas há uma bateria com perguntas abertas atitudinais sobre a percepção e opiniões das entrevistadas acerca: a) das principais desigualdades entre homens e mulheres, b) do que deveria ser mudado para melhorar a vida das mulheres, e c) dos principais problemas enfrentados pelas mulheres no Brasil, nos estados e nos municípios. Comparadas com as respostas ao entendimento de feminismo oferecidas com a pergunta aberta inicial, as respostas a estas questões, também abertas, podem surpreender pela prioridade dada aos problemas pertinentes a uma perspectiva interseccional do feminismo. Como pode ser visto na Tabela 3, mais da metade das delegadas em 2011 e em 2016 acreditam que as principais desigualdades entre homens e mulheres são relativas à classe (trabalho/profissional/salário/renda). Bastante abaixo, mas em segundo lugar, são citados outros fatores centrais para a perspectiva interseccional (como racismo/machismo/sexismo).
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Tabela 3. Desigualdades que existem entre homem e mulher – Em primeiro lugar* Ano Resposta
2011
2016
%
%
violência
3,9
3,3
trabalho/profissional/salário/renda
62,7
56,7
esfera privada e cuidado
6,2
4,7
racismo/machismo/sexismo
11,5
12,9
liberdade/sexualidade
3,1
1,9
política/poder
7,8
13,4
outros
2,2
2,5
Sem resposta
2,5
4,7
*Pergunta aberta: “Pensando no mundo de hoje, quais são para você as principais desigualdades que existem entre as mulheres e os homens? O que mais é desigual? E em segundo lugar? E em terceiro lugar?”
Na questão seguinte – sobre o que deveria mudar para melhorar a vida das mulheres –, mais uma vez são as questões relativas à situação de classe (equiparação profissional/renda em 2011 e trabalho/renda em 2016) aquelas mais espontaneamente citadas, seguidas pela participação política/poder/políticas públicas e autonomia/liberdade. O combate a discriminações/igualdade aparece com destaque em 2016. O racismo, sexismo e lesbofobia recebem poucas citações em 2011 e não são mencionados em 2016.
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Tabela 4. O que mudar para que a vida das mulheres melhorasse em primeiro lugar* 2011 % 8,7
Resposta combate à violência equiparação profissional/renda
Ano
2016 % 6,6 15,3
esfera privada e cuidado
3,4
trabalho/renda
24,9
combate a discriminações/igualdade
2,2 17,8
autonomia/liberdade
13,4
12,1
desenvolvimento
0,8
terra, campo e floresta
0,6
cultura, esporte, mídia
0,3
racismo, sexismo, lesbofobia
6,2
participação política/poder/políticas públicas
12,6
22,7
educação creche
14
12,3
saúde da mulher/direito ao corpo
3,9
3
outros
6,7
1,1
sem resposta
4,5
6,8
*Pergunta aberta: “Se você pudesse mudar qualquer coisa para que a vida de todas as mulheres melhorasse, qual seria a primeira coisa que você faria? E a segunda? E a terceira?”
Apesar de pouco mencionada nas questões anteriores, a questão da violência é destacada por cerca de 1/3 das entrevistadas como sendo o principal problema das mulheres, tanto no Brasil, quanto no seu estado e na sua cidade. Tendo em mente as menções relativas a fatores centrais na perspectiva interseccional emancipatória, é importante notar que os problemas mais citados em 2011 foram trabalho/renda, educação/creche, autonomia/liberdade, participação política/poder, políticas públicas e, em 2016, foram a participação política/poder, políticas públicas, combate a discriminações/igualdade e equiparação/profissional renda. Curiosamente, essa ordenação de problemas no Brasil se mantém muito semelhante para os estados e cidades, como pode ser visto na Tabela 5 abaixo.
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Tabela 5. Principal problema das mulheres no Brasil, estado e município
Respostas trabalho/renda educação
Brasil 2011 2016 % % 23,5 10,7 3,1
1,9
Estado 2011 2016 % % 14 11,2 5,3
0,8
Município 2011 2016 % % 16 11,8 3,4
1,1
saúde
3,6
3,8
4,8
4,1
5,9
4,1
violência
36,7
37,8
32,2
38,1
29,1
36,7
participação política
4,5
5,8
6,2
4,4
6,7
3
políticas públicas
2,7
7,4
5,2
desenvolvimento terra/moradia/comunidades tradicionais família/trabalhos domésticos
0
0,3
0,6
2,2
23,8
1,6
19,7
0,3
1,4
racismo, sexismo, lesbofobia
9,3
0,5
20,7
discriminações
0,8
5,5
7,4
desigualdades
20,7
13,4
6,3
outros
2,2
0,5
6,7
7,1
7,6
8,2
O questionário de 2011 incluiu uma bateria de atitudes relativas a itens proeminentes na agenda feminista nos anos setenta (a chamada segunda onda do feminismo) e relativos aos papéis tradicionais de gênero, à divisão do trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos. O questionário de 2016 expandiu essa bateria, introduzindo três itens relativos à relação do feminismo e políticas públicas com a questão racial, a orientação sexual e a identidade de gênero, além de quatro itens relativos à discriminação racial, lesbofobia/homofobia/transfobia. Pelo menos 8 em cada 10 das entrevistadas concordaram totalmente ou em parte com as seguintes afirmativas: • Os movimentos de mulheres e feministas devem incorporar também a luta contra o racismo como uma bandeira fundamental. • Os movimentos de mulheres e feministas devem incorporar o enfrentamento à lesbofobia/homofobia/transfobia como bandeiras fundamentais. • As mulheres afrodescendentes/negras e indígenas têm demandas específicas que devem ser contempladas nas políticas públicas.
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• No Brasil, as mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem discriminação em função da raça/cor. • As cotas raciais para as universidades públicas no Brasil representam um avanço social. Pelo menos 8 em cada 10 das entrevistadas discordaram totalmente ou em parte com as seguintes afirmativas: • As relações afetivas/sexuais devem necessariamente acontecer somente entre um homem e uma mulher. • As crianças negras, por causa da diferença de sua raça, têm mesmo mais dificuldades para aprender. • Os(as) brancos(as), em geral, são mais estudiosos(as) que os(as) negros(as). Essas novas medidas atitudinais do survey de 2016 – com indicadores de opiniões e crenças contrárias ao preconceito e discriminação racial, à lesbofobia, à homofobia e à transfobia – nos permitiram construir o Índice de Atitudes Prófeminismo Intersecional para a pesquisa de 2016. A Tabela 6 mostra que cerca de 1/3 das delegadas apoiam totalmente importantes valores e itens de uma agenda feminista interseccional, enquanto 2/3 tendem a apoiar. Chama a atenção também que nenhuma entrevistada discordou totalmente destes itens de uma agenda feminista. Tabela 6. Índice Atitudes Pró-Feminismo Interseccional (IAPFI)* CNPM 2016 IAPFI 2. Tende a discordar do feminismo interseccional
% 1,4
3. Tende a apoiar o feminismo interseccional
62,7
4. Apoia totalmente o feminismo interseccional
32,1
NR
3,8
Total
100
*Índice de Atitudes Pró-Feminismo Intersecional: Algum nível de concordância = 1; Nenhum nível de concordância = 0. Somatório varia de 0 a 7. Se somatório: igual a 5, então IAPFI = 4; menor que 5 e maior que 2,99, então IAPFI = 3; menor que 3 e maior que 0,99, então IAPFI = 2; igual a 1, então IAPFI = 1; igual a 0, então IAPFI = 0.
Neste ponto da nossa análise, após considerarmos as atitudes (opiniões e crenças) em relação a causas e a itens de uma agenda feminista, de acordo com
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as medidas e indicadores incluídos nas pesquisas de 2011 e 2016, encontramos – indo para além da autoclassificação das respostas das delegadas na questão aberta sobre as concepções de feminismo – evidências adicionais para classificar as delegadas das CNPMs como sendo majoritariamente feministas. É importante qualificar, entretanto, que apenas as questões fechadas atitudinais (afirmativas com as quais as entrevistas deviam concordar ou discordar) produziram um índice muito alto não apenas de atitudes feministas, mas de atitudes favoráveis a um feminismo interseccional. Nas respostas às questões atitudinais abertas (sobre os principais problemas enfrentados pelas mulheres no país, estado e município) as questões relativas à classe social tiveram muitas citações espontâneas, mas racismo, sexismo, lesbofobia foram raramente mencionados. Entretanto, ao encontrarmos evidências nas respostas às questões sobre percepções e opiniões para classificar as delegadas das CNPMs como sendo majoritariamente feministas, temos que ter em mente que, por um lado, a validade das medidas atitudinais em um survey pode ser questionada, dada a possibilidade de as respostas serem editadas pelas entrevistadas para expressar opiniões socialmente desejáveis ou politicamente corretas. Por outro lado, como é frequentemente encontrado pelas ciências sociais, e especialmente pela metodologia de survey, atitudes tendem, muitas vezes, a não serem consistentes ou correlacionadas a comportamentos. Portanto, buscaremos responder à nossa pergunta inicial – se as mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro são feministas – considerando a seguir as medidas mais “duras” da nossa pesquisa, ou seja, as medidas de seus comportamentos, das suas práticas e de seus ativismos. Esperamos que os comportamentos das entrevistadas possam nos ajudar a entender não apenas a extensão ou difusão do feminismo entre as delegadas, mas também a profundidade desses feminismos.
Qual é a práxis das mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro? No caso das nossas duas pesquisas, podemos buscar nas respostas às questões sobre o comportamento das entrevistadas indicadores para as suas concepções sobre o feminismo que vão além das respostas sucintas e pouco elaboradas para a questão aberta inicial e também vão além das respostas às questões atitudinais relativas a causas feministas, as quais podem ser, em parte, efeito de respostas socialmente desejáveis. Buscaremos, portanto, nas medidas de comportamento das entrevistadas, a confirmação de suas percepções e posições feministas, ou o que os seus discursos podem não ter revelado. Nesta seção do capítulo
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procuraremos conhecer as concepções do feminismo pelas delegadas não apenas considerando o que elas dizem, mas como agem. Para isto utilizaremos as medidas de associativismo e ativismo político das pesquisas 2011 e 2016. Em primeiro lugar, consideraremos a participação em movimentos de mulheres. Como poderia ser esperado das delegadas nas CNPMs, suas participações em diversas atividades, reuniões, manifestação dos movimentos de mulheres são bastante intensas: cerca de 80% em 2011, assim como em 2016, relataram participar sempre, cerca de 15% em 2011 e 2016 disseram participar às vezes e apenas 4% em ambos os anos nunca participaram. Além desta participação em atividades, em 2016, 74,6 % das delegadas relataram participar formalmente (ser filiada) ou informalmente (participar de reuniões) de movimentos ou redes de mulheres ou feministas. Contudo, ao indagarmos se as mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro são feministas, investigamos se, além da participação nos movimentos de mulheres, as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016 praticavam um feminismo interseccional, lutando contra discriminações e desigualdades para além do gênero. Buscamos explorar também seus conhecimentos e suas ações em outros movimentos, redes e partidos e estabelecer uma distinção entre seu associativismo civil e político e seu ativismo político. Para medir o associativismo civil e político, perguntamos sobre a participação em uma ampla gama de grupos, entidades e organizações, como enumerado na descrição da Tabela 7, que mede o associativismo em movimento ou rede de mulheres ou feminista, mas também em movimentos ou grupos que se organizam em oposição às desigualdades socioeconômicas ou de classe, em defesa do meio ambiente, em combate ao racismo, à homofobia, à lesbofobia, à transfobia, ou seja, em torno de clivagens sociais centrais à teoria e práxis interseccional. De início descobrimos que, em 2016, 35% das delegadas também participavam formal (como membro) e informalmente (participando de reuniões) do movimento negro; 19,3% de coletivos LQBT; 43,5% de sindicatos e 29,8% de movimentos ambientais e ecológicos. Colocamos agora uma nova questão para nossa análise: a participação e o ativismo múltiplo em e com agendas de classe, de raça, de identidade de gênero e orientação sexual seriam suficientes para conceituar o feminismo das delegadas como um feminismo interseccional? O conceito de feminismo intersecional requer não apenas a participação em múltiplos e diversos movimentos, grupos, redes e entidades, mas também a consciência, a vivência e a promoção das interconexões entre as lutas pela igualdade de gênero e aquelas contra os principais sistemas e estruturas de desigualdades sociais e políticas. Portanto, ao criarmos
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uma medida que apenas adicionou as múltiplas formas de associativismo das delegadas, consideramos ser mais conceitualmente correto nomeá-lo enquanto apenas um Índice de Associativismo Civil e Político Potencialmente Intersecional (IACPPI). Os níveis do IACPPI medem apenas o número de associações das quais as delegadas participam e pressupõe que, quanto maior o número das associações, potencialmente maior será a participação das delegadas em uma agenda múltipla e intersetorial que permita a expansão do feminismo para vários lugares, potencializando assim as oportunidades para interconexões das agendas de luta e uma práxis emancipatória, transformadora das atuais relações sociais de desigualdade, discriminatórias e de exploração. Como mostra a Tabela 7, é bastante alta a proporção das mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro com níveis altos de um associativismo civil e político potencialmente intersecional, mas com diminuição significativa entre 2011 e 2016. Em 2011, 23,5 % participaram em 4 a 5 entidades e 40% participaram em mais de 5; mas em 2016 os níveis caíram, com 28,2 % participando em 4 a 5 entidades e 24,1% participando em mais de 5. Essa tendência à diminuição nos níveis de participação também se revela no fato de que a porcentagem daquelas que não participavam de nenhuma entidade mais que dobrou, indo de 6,2% em 2011 para 15,3 % em 2016. Tabela 7. Índice de associativismo civil e político potencialmente interseccional Ano Níveis de IACPPI
2011
2016
%
%
0
6,2
15,3
1 ou 2
16
18,6
3
13,7
16,4
4 ou 5
23,5
28,2
acima de 5
40,6
21,4
Total
100
100
Índice de comportamento potencialmente interseccional A. 2011: Variáveis: Associação de moradores ou amigos do bairro; Associação de defesa do consumidor; Grupo de defesa do meio ambiente ou ecológico; Sindicato; Associação profissional; Centro Acadêmico, Grêmio ou união de estudantes; Igrejas e outros centros religiosos; Associação de assistência social; movimento ou rede de ativismo de mulheres ou feminista; Movimento Negro; Movimento Indígena; Movimento LGBT; Partido político. Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0; Somatório varia de 0 a 13. 2016: Variáveis: Associação de defesa do consumidor; Grupo de defesa do meio ambiente ou ecológico; Sindicato; Associação profissional; Centro Acadêmico, Grêmio ou união de estudantes; Igrejas
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e outros centros religiosos; Associação de assistência social; Movimento ou rede de ativismo de mulheres ou feminista; Movimento Negro; Movimento Indígena; Movimento LGBT; Partido político. Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0. Somatório varia de 0 a 12. Faixas do Índice: 0 – Não participa; Níveis de associativismo: 1 – 1 ou 2; 2 – 3; 3 – 4 ou 5; 4 – acima de 5.
Contudo, quando analisamos o segundo índice elaborado, o Índice de ativismo político potencialmente intersecional, os níveis de participação são bastante altos e se mantêm os mesmos em 2011 e 2016 – cerca de 90% das delegadas praticaram mais de cinco ações de engajamento político. Como mostra a Tabela 8, essas ações vão dos atos de se informar e conversar com as pessoas sobre política, assinar manifestos, a participar de campanhas políticas, de manifestações contra ou a favor do governo e em manifestações dos movimentos de mulheres. Tabela 8. Índice de ativismo político potencialmente interseccional Ano Níveis de IAPPI
2011
2016
%
%
0
2
3,8
1 ou 2
0,3
0,5
3
0,6
1,4
4 ou 5
6,2
4,4
acima de 5
91
89,9
Total
100
100
Índice de ativismo político potencialmente interseccional. 2011: Variáveis: Lê ou assiste noticiário sobre política; Conversa com outras pessoas sobre política; Quando tem eleição, tenta convencer outras pessoas a votar nos candidatos que você acha bons; Participa de reuniões de associações ou comunidades para tentar resolver problemas no seu bairro ou cidade; Participa de reuniões de algum movimento ou causa social; Participa de reuniões de partidos políticos; Quando tem eleições, faz trabalho voluntário para algum candidato ou partido político; Faz pedidos para políticos ou funcionários públicos; Assina manifestos de protesto ou de reivindicações; Participa de manifestações a favor ou contra o governo por alguma causa; Participa de atividades/reuniões/manifestações do movimento de mulheres; Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0 Somatório varia de 0 a 11 2016: Variáveis: Lê ou assiste noticiário sobre política; Conversa com outras pessoas sobre políticas; Quando tem eleição, tenta convencer outras pessoas a votar nos candidatos que você acha bons; Participa de reuniões de associações ou comunidades para tentar resolver problemas no seu bairro ou cidade;
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Participa de reuniões de algum movimento ou causa social; Participa de reuniões de partidos políticos; Quando tem eleições, faz trabalho voluntário para algum candidato ou partido político; Faz pedidos para políticos ou funcionários públicos; Assina manifestos de protesto ou de reivindicações; Participa de manifestações a favor ou contra o governo por alguma causa; Participa de atividades/reuniões/manifestações do movimento de mulheres; Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0 Somatório varia de 0 a 12 Faixas do Índice: 0 – Não participa Níveis de participação: 1 – 1 ou 2; 2 – 3; 3 – 4 ou 5; 4 – acima de 5
Indo muito além dessas medidas básicas de associativismo e ativismo civil e político potencialmente interseccionais, o Capítulo 3, a seguir neste volume, desenvolve uma análise refinada e complexa das trajetórias do associativismo das delegadas e demonstra teórica e empiricamente os processos de sidestreaming do feminismo, como conceituado por Sonia E. Alvarez (2000), a criação de “fluxos horizontais do feminismo”, ou seja, uma perspectiva que destaca a continuidade da discriminação de gênero, mas que vai além disto para valorizar igualmente o princípio de não discriminação baseada em raça, etnia, geração, nacionalidade, classe ou religião, entre outros. Acreditamos que as análises acima das várias medidas atitudinais e de comportamento das mulheres do feminismo estatal participativo do Brasil nos permitem responder afirmativamente à questão central deste capítulo e afirmar que a grande maioria das mulheres das CNPMs são feministas, considerando-se suas atitudes em relação a pontos-chave de uma agenda feminista e, também, considerando-seus níveis de associativismo cívico e político e ativismo político potencialmente intersecionais e emancipatórios. A partir dessa avaliação, contudo, uma curiosa questão se coloca: Como o entendimento do feminismo das mulheres das CNPMs se compara com as concepções de feminismo entre as mulheres no Brasil e em outros países?
Como o entendimento do feminismo das mulheres das CNPM se compara com as concepções de feminismo entre as mulheres no Brasil e em outros países? Dado o volume de pesquisas sobre percepções do feminismo e dos diretos das mulheres, poderíamos esperar encontrar um número grande de surveys, acadêmicos ou conduzidos pela mídia e outros grupos interessados no tema, que perguntassem diretamente, em questões abertas, se os entrevistados se consideravam feministas e também quais eram os seus entendimentos do feminismo. Contudo,
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não encontramos muitos surveys, especialmente mais recentes ou conduzidos na última década, que incluíssem estas duas perguntas. No Brasil, as autoclassificações e definições do feminismo entre as mulheres brasileiras em geral foram investigadas por dois surveys nacionais conduzidos pela Fundação Perseu Abramo em 2001 e 2010. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo, conduzida entre as mulheres brasileiras em 2010, não incluiu a pergunta de autoclassificação como feminista, mas na versão anterior da pesquisa, em 2001, esta questão foi incluída, e revelou que 28% das mulheres brasileiras se declararam ser feministas e 43% não se consideram feministas. O survey de 2010, realizado apenas meses antes do survey da CNMP de 2011, nos oferece, portanto, uma ótima possibilidade de comparação das definições do feminismo pelas mulheres da CNPM 2011 com as definições oferecidas pelas mulheres brasileiras em geral. Além da proximidade das datas de coleta dos dados, a análise comparativa das respostas também é metodologicamente possível, dado o nível de comparabilidade entre os formatos das questões (questões abertas), assim como dos enunciados das questões sobre o entendimento de feminismo nos dois surveys: CNPM 2011: A Sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo? Pesquisa Perseu Abramo 2010: O que você entende por feminismo? Mesmo só de ouvir falar, o que você acha que é feminismo? Em que você pensa quando ouve a palavra feminismo? De maneira geral, tanto as mulheres da CNPM de 2011, quanto as mulheres brasileiras em geral, entrevistadas em 2010, tenderam a associar feminismo com direitos das mulheres e igualdade com os homens, mas algumas diferenças e convergências podem ser destacadas: – Enquanto, mesmo entre as mulheres da CNPM de 2011, o uso de conceitos centrais da teoria e práxis feministas – como autonomia, empoderamento, interseccionalidade, patriarcalismo – não aparece com frequência, ao falarem em feminismo enquanto “direitos das mulheres”, as delegadas tenderam a elaborar a noção de direitos como sendo amplos – diferentemente das brasileiras em geral da Pesquisa Perseu Abramo 2010 –, entendidos como a “igualdade em todos os sentidos”, a “transformação social das condições de vida das mulheres”, ou a “mudança cultural” e “conscientização”. – O verbo “lutar” também foi proporcionalmente muito mais usado nas respostas das mulheres da CNPM de 2011. – Há, contudo, uma convergência interessante nas respostas negativas em relação ao feminismo – tanto as mulheres da CNPM de 2011, quanto as brasileiras em
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geral da Pesquisa Perseu Abramo, escolheram termos muito semelhantes – “autoritárias, mandonas, machistas, mulher que gosta de mulher, mulheres que se sentem superiores aos homens” – para expressar seus entendimentos ou desaprovação do feminismo. Curiosamente, o termo radical (e com conotação negativa) foi usado apenas pelas mulheres da CNPM de 2011. – Entre as mulheres brasileiras em geral, há uma maior ocorrência de equiparação dos conceitos de feminismo e feminino, com muitas referências a comportamentos “dóceis e a vaidade” das mulheres. Surveys internacionais recentes, especialmente os comparativos entre vários países em todos os continentes (como os World Values Surveys e os realizados pelo Global Attitudes do Pew Research Center), têm utilizado baterias de questões sobre percepções das desigualdades de gênero, mas não têm perguntando diretamente sobre as concepções que os entrevistados têm do feminismo. Esta distinção, no entanto, pode ser muito importante. Um survey relativamente recente, conduzido em 2014 nos Estados Unidos pela Economist/YouGov mostrou que apenas 35% das mulheres e 15% dos homens americanos responderam afirmativamente à questão “Você se considera feminista?”, mas quando responderam de novo à mesma questão, depois de serem apresentados a uma definição de feminismo que afirmava que “feminista é uma pessoa que acredita na igualdade social, econômica, e politica dos sexos”, aumenta para 69% das mulheres e 52% dos homens a proporção dos que se consideraram feministas. É importante observar, contudo, que mesmo depois da uma definição que pode ser considerada não ameaçadora ou radical, ainda assim 50% dos homens e 30% das mulheres nos Estados Unidos, em 2014, não se consideraram feministas. É interessante também notar que as mesmas porcentagens – 30% de mulheres e 50% dos homens americanos – não se consideraram feministas quando perguntados mais recentemente, em 2016, pela pesquisa Washington Post/Kaiser Foundation (sem a definição de feminismo) se se consideravam feministas. Estes vários surveys revelam que maneiras diferentes de se formular perguntas sobre identificação com o feminismo podem nos ajudar a explorar e melhor entender a evolução dos entendimentos e desentendimentos do que seja o feminismo. No nosso caso, esperamos que as nossas pesquisas das mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro, mesmo tendo sido realizadas apenas entre as delegadas das CNPMs, possam contribuir para o refinamento teórico e metodológico na elaboração de surveys que busquem melhor descrever, explicar e compreender as definições, práticas e trajetórias do feminismo.
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Considerações finais: contextualizando os dados dos nossos surveys e situando o feminismo das mulheres das CNPMs na trajetória do feminismo no Brasil e do feminismo transnacional Ao analisarmos as respostas dadas pelas delegadas às perguntas sobre suas identificações com o feminismo, o que entendem por feminismo e o que pensam e como agem em relação a causas feministas, é importante observar que as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016 representam e são participantes de uma longa trajetória de luta pelos direitos das mulheres, da igualdade de gênero e justiça social que foram construídos no Brasil, assim como em outros países, por movimentos de mulheres e feministas. Como observamos neste capítulo, o conjunto das delegadas incluiu as várias gerações de mulheres que ajudaram a construir as diversas concepções e práticas das chamadas quatro ondas do feminismo no Brasil, como é mostrado no Capítulo 3, a seguir. Portanto, para contextualizar e melhor compreender os dados analisados neste capítulo, é muito importante considerar, mesmo que de maneira muito breve, algumas das características centrais das quatro ondas do feminismo brasileiro – das quais as delegadas participaram e ao mesmo tempo construíram. Poderemos, assim, em seguida, entender como os seus entendimentos do que seja o feminismo, suas atitudes, seus associativismos e seus ativismos cívicos e políticos em relação às causas interseccionais das agendas feministas devem ser relacionados às suas experiências, assim como a sua exposição e ou contribuição às teorias que se originaram e ao mesmo tempo constituíram os movimentos feministas a partir dos anos 1970 no Brasil e no mundo. A sociedade brasileira pode ser vista como um caso e uma evidência de uma transformação notável – embora não exclusiva do Brasil – no sentido da igualdade de gênero que resultou de uma interação crescente da participação das mulheres em movimentos feministas, bem como em uma ampla gama de outras organizações e movimentos sociais, possibilitados por contextos nacionais e globais. As transformações das relações de gênero e do feminismo no Brasil nas últimas quatro décadas foram entrelaçadas e intimamente ligadas às mudanças nas estruturas socioeconômicas e nos regimes políticos vigentes no país. Os processos de igualdade de gênero que promoveram mudanças institucionais, econômicas, sociais e culturais resultaram inequivocamente do papel ativo das mulheres nos movimentos sociais e políticos envolvidos na luta contra o regime militar na década de 1970, na transição para a democracia nos anos 1980 (que chamamos de segunda onda) e na democratização do país na década de 1990
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(a terceira onda), bem como dos processos de institucionalização e elaboração de políticas de 2003 a 2016 (a quarta onda) (MATOS; SIMÕES, 2017; SIMÕES; MATOS, 2008; PINTO, 2003; ALVAREZ, 1990, 1994). Apesar das diferenças dos contextos históricos e políticos, muitas das transformações e dilemas centrais do feminismo no Brasil têm semelhanças importantes com aquelas dos feminismos em outros países, tanto do sul global quanto do norte global. Novas formas de pensar as relações de gênero chegaram ao Brasil através das mulheres de classe média, intelectualizadas, que estiveram nos EUA e na Europa como exiladas. Mas a centralidade dada pelo feminismo radical à categoria sexo (e posteriormente, gênero) na explicação das desigualdades sociais foi questionada por militantes feministas e socialistas, especialmente no contexto de luta contra a ditadura e o chamado “capitalismo selvagem” (PINTO, 2003). Nesse contexto, os movimentos de mulheres brasileiras são um exemplo de alianças bem-sucedidas entre grupos de mulheres feministas de classe média autoidentificados com a classe trabalhadora e mulheres negras. E isso não se dava apenas na luta contra o autoritarismo militar, mas também na luta por mais direitos para as mulheres. Também é relevante notar que, enquanto essas mulheres da classe média feminista também tinham vínculos estreitos com partidos políticos de oposição e organizações de esquerda, a classe trabalhadora e o movimento das mulheres negras eram apoiados pela Igreja Católica e pelas organizações de base do bairro. Consequentemente, seus problemas iam de uma agenda clássica de direitos feministas às demandas de melhoria das condições de vida da família (ALVAREZ, 1990; SIMÕES; MATOS, 2008). Ao analisarmos as trajetórias dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil (e as intersecções entre movimentos de mulheres trabalhadoras, de periferia e negras com os grupos feministas de classe médias e intelectuais na ditadura e transição democrática) temos também de ressaltar que o “diálogo local” entre os movimentos de mulheres e feministas no Brasil precisa também ser entendido a partir de suas conexões com o feminismo transnacional nos Encontros das Mulheres das Nações Unidas (de 1975 no México a 1995 em Beijing); na participação das mulheres brasileiras na formulação e implementação da Plataforma para a Ação de Beijing, uma agenda mais ampla e com abordagem mais interseccional das desigualdades de gênero; na ratificação pelo Brasil da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) e, especialmente, através dos relatórios produzidos pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres para submissão ao Comitê CEDAW da ONU, e as recomendações feitas ao Brasil pelo Comitê em resposta aos relatórios brasileiros (SIMÕES; MATOS, 2008; MATOS; SIMÕES, 2017; BASU, 2003; THAYER, 2001).
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De fato, nas últimas décadas, principalmente a partir das conferências mundiais de mulheres organizadas pelas Nações Unidas e da emergência do feminismo transacional, teoria e práxis feministas têm sido produzidas e expandidas pelo reconhecimento das múltiplas diferenças locais, assim como das convergências globais das condições econômicas políticas e culturais das mulheres. O feminismo em todo mundo se torna cada vez mais plural e atento às diferenças não apenas entre mulheres e homens, mas também às diferenças entre as mulheres e às interconexões entre suas identidades de gênero, suas identidades raciais, suas posições de classe e suas orientações sexuais, entre os vários fatores condicionantes das desigualdades sociais (MARCHAND; RUNYAN, 2011; YUVAL, 2006; TRIPP, 2006; ANTOBUS, 2004; BASU, 2003). Podemos concluir afirmando que as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016 são, em sua grande maioria, feministas que têm participado da construção dos feminismos no Brasil, e que neste processo têm desenvolvido uma prática crescente de um “feminismo interseccional”, e contribuído para as transformações – além das suas próprias atitudes e comportamentos individuais analisadas neste capítulo – das teorias e práxis coletivas dos movimentos feministas no Brasil e do feminismo transnacional.
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As CNPMs e a configuração do campo feminista: sidestreaming e mainstreaming através do “feminismo estatal participativo” Marlise Matos1 Sonia E. Alvarez2 Os feminismos contemporâneos se expressam em um amplo leque de espaços políticos, culturais, econômicos e sociais que se estendem muito além das organizações e redes autodefinidas como feministas e de mulheres. Elementos dos discursos e práticas feministas hoje se articulam nos sindicatos, movimentos negros e indígenas, grupos e redes estudantis e de jovens, movimentos LGBT, protestos de rua, partidos de esquerda, organizações autonomistas e anarquistas, movimentos urbanos e rurais, agrupações ambientalistas e de direitos humanos, e em um sem-número de movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil. As ideias feministas, portanto, circulam, viajam ao longo das múltiplas teias organizacionais e a partir de matrizes discursivas nas quais as ativistas se envolvem e se movimentam, estimulando a extensa difusão das mesmas. Esses “fluxos horizontais” constituem o que Alvarez chama de “sidestreaming” dos feminismos (ALVAREZ, 2010; ALVAREZ et al., 2011) e têm sido fundamentais para a configuração de um campo político (MATOS, 2008) ou “campo discursivo de ação” (ALVAREZ, 2014a e b) cada vez mais amplo e heterogêneo. Mas o campo feminista hoje também abrange algumas esferas estatais e partidárias, mesmo que precariamente e às vezes provisoriamente, por meio de processos que a ONU e os estudos sobre gênero e política se referem como “mainstreaming”, envolvendo fluxos “verticais” de atuação das feministas e dos seus discursos e práticas em direção aos partidos, ao Estado e às instituições intergovernamentais, às arenas onde se formulam, disputam e implementam projetos políticos e políticas públicas.3 Desde os anos 1980, em nível estadual e municipal, 1 Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFMG e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM e do Centro do Interesse Feminista e de Gênero – CIFG (UFMG). 2 Intelectual-militante e titular da cátedra Leonard J. Horwitz em Política e Estudos Latinoamericanos na Universidade de Massachusetts Amherst. 3 A noção de mainstreaming surgiu, internacionalmente, na IV Conferência Mundial das
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e especialmente após a chegada do PT ao governo federal em 2003, muitas militantes advindas dos diversos espaços onde circulavam os discursos feministas, tanto na sociedade civil quanto na sociedade política (partidos), passaram a transitar pelas burocracias e assessorias do Estado, trazendo com elas a sua “bagagem” feminista e tentando traduzir e implementar as suas agendas para o ambiente frequentemente hostil de um Estado ainda estruturalmente patriarcal, racista, lesbo-homotransfóbico e capitalista.4 Assim, o sidestreaming feminista indiretamente facilitou a incorporação – sempre parcial, seletiva e, muitas vezes, tergiversada – de alguns discursos e demandas feministas provindos da sociedade civil pelo próprio Estado, no caso do governo petista, pela SPM e o “feminismo estatal participativo”, e promoveu sua difusão ao longo do tecido social – ver Gonzalez (cap. 2), Carvalho (cap. 3) e Matos e Lins (cap. 4) do vol. 1.5 No caso específico das CNPMs, os fluxos verticais das feministas e as suas demandas para os espaços estatais juntaram-se e, muitas vezes, enfrentaram e confrontaram-se com aqueles oriundos da sociedade civil, efetuando uma movimentação discursiva multidirecional: um processo de “sidestreaming via mainstreaming” e vice-versa. São especificamente esses fluxos e as suas conjunções que mapeamos neste capítulo. Como vimos nos capítulos de Simões (vol. 2, cap. 2), Pinto (vol. 1, cap. 5) e Marques (vol. 1, cap. 6), a esmagadora maioria das participantes das duas CNPMs pesquisadas, tanto as representantes do Estado quanto aquelas da sociedade civil, se identificou como feministas: foram mais de 82%. Aqui, traçamos as trajetórias, os principais caminhos políticos trilhados e as formas de participação e articulação dessas participantes e delineamos as relações das organizações que elas representavam com outras entidades na sociedade civil e política e, também, com variadas instâncias do Estado. Com isso, pretendemos ilustrar e analisar como os fluxos verticais (em direção aos partidos e às instituições do Estado, inclusive aquelas “híbridas”, como os conselhos, que têm representantes da sociedade civil e Mulheres, realizada em Beijing (1995). Este foi debatido e afirmado, àquela época, como um conceitochave que fortaleceria a estratégia de luta das mulheres para que as suas reivindicações fossem implementadas pelos Estados, nas políticas públicas e de uma forma mais eficaz. Rapidamente o conceito passou a ser traduzido no português como “transversalidade de gênero”. Para leituras críticas das origens e contradições dos processos de mainstreaming, ver EYBEN, 2013; MUKHOPADHYAY, 2004; PRÜGL, 2009; WALBY, 2005, 2007. 4 Sobre a inserção de ativistas e ativismos feministas nas esferas estatais e intergovernamentais, veja ABERS; TATAGIBA, 2015; ALVAREZ et al., 2017; BANASZAK, 2005; PHILLIPS; COLE, 2009. 5 Sobre o feminismo estatal participativo, ver MATOS, 2010; MATOS; PARADIS, 2013; COSTA; SARDENBERG, 2010.
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do Estado) se vinculam aos fluxos horizontais para configurar um setor significativo do campo feminista brasileiro atual, cujos referentes principais são o Estado e as arenas de políticas públicas; construindo-se, assim, uma espécie de “subcampo” de ativismo feminista junto ao Estado.6 O que nos levou a pesquisar as trajetórias políticas das participantes das CNPMs foi, justamente, o fato de essas conferências serem espaços políticos híbridos, oficialmente definidos como lugares de “integração” de gênero e feminista que pretendiam operar transformações nas políticas estatais. Eles dariam destaque aos fluxos verticais dos feminismos e das demandas de gênero e feministas junto ao Estado brasileiro e também constituiriam lugares de protagonismo das delegadas, provindas de diferentes espaços de ativismo político anterior, ou seja, de diversos fluxos horizontais e verticais da militância feminista no Brasil. Mas quais seriam, afinal, esses fluxos? De quais redes de interações e ativismos vieram essas delegadas? Este capítulo pretende oferecer algumas pistas nesse sentido. Mostraremos que as trajetórias das militantes que circulam nesse “subcampo” de ativismo feminista junto ao Estado brasileiro, como as participantes de ambas CNPMs aqui pesquisadas, nem sempre iniciaram seu envolvimento político diretamente no movimento feminista e de mulheres, mesmo que a maioria tenha se identificado como feminista na hora da pergunta respondida em nossos surveys. Essas múltiplas experiências de participação e as trajetórias, redes e fluxos multidireccionais mapeados neste capítulo, através da metodologia de análise de redes, e os grafos dessas trajetórias aqui representados sugerem que muitas ativistas feministas começaram a sua militância política em outros movimentos/ entidades da sociedade civil e que as identidades e ideias feministas se gestaram, depois transitaram continuamente e, a princípio, então, se ressignificaram nos mais variados lugares da sociedade civil e política brasileira, no Estado e também em espaços políticos híbridos, como os conselhos e as próprias CNPMs. Portanto, prestamos atenção especial à trajetória do ativismo político dessas participantes, ao ativismo feminista e também não feminista e às relações de sidestreaming e mainstreaming da própria instituição/organização que a participante representava na Conferência. Como instituições/organizações que tramam a rede do sidestreaming feminista das delegadas entrevistadas nessa pesquisa, podemos 6 Se fôssemos aplicar o nosso mesmo survey em outros lugares onde atualmente transitam e se traduzem os feminismos, como alguns setores de diversos movimentos como os LGBT ou negros, ou espaços insistentemente autônomos dos feminismos, como as Marchas das Vadias (FERREIRA, 2013; GOMES, 2018; NAME; ZANETTI, 2013), e os recentes rolês anarco-feministas (ver CARMO, 2016; MARTELLO, 2015), sem sombra de dúvida, identificaríamos tramados de vínculos e articulações bastante diferentes dos que caracterizam o “subcampo” feminista articulado junto ao Estado focado aqui, mesmo com algumas, porém importantes, sobreposições.
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citar: as organizações do associativismo comunitário (e sua diversidade temática que aparece através das distintas questões com as quais lida: mulheres, moradia, bairro, donas de casa etc.), o movimento estudantil, o movimento negro, o movimento LBTG, o movimento de juventudes, o movimento indígena, o movimento rural, além das organizações sindicais e também das ONGs. E como exemplos de organizações que tramam a rede do mainstreaming feminista, citamos: os conselhos (que mesmo sendo instituições híbridas são fundamentalmente viabilizadas pelo Estado), os partidos políticos, as entidades de classe (tais como a OAB e o CRM), e, claro, as organizações do próprio Estado (seja no Poder Executivo, no Legislativo ou no Judiciário). Estivemos atentas ainda às inúmeras formas de articulação possíveis do ativismo e dos respectivos vínculos horizontais e verticais identificados: entre diferentes movimentos organizados da sociedade civil (negro, LQBT, rural e indígena, principalmente e, em menor escala, os movimentos ambientalistas e culturais) e o feminismo; entre o feminismo e o ativismo vinculado às formas de associativismo comunitário (focado em questões específicas de mulheres, de moradia, de luta nos bairros etc.); entre os feminismos e o ativismo de caráter mais institucionalizado (em movimentos estudantis: participação em grêmios, centros acadêmicos e organizações estudantis nacionais como UNE e Ubes); em sindicatos; instituições religiosas: católicas, protestantes e de matriz africana; entidades profissionais; conselhos em geral e conselhos da mulher em específico; partidos; e, finalmente, instituições vinculadas ao Estado (OPMs, poder Legislativo e poder Executivo). Focalizando as CNPMs como espaços híbridos, onde tanto as feministas como as integrantes dos outros movimentos de mulheres, que atuam dentro e/ ou fora das instituições formais, se articulam entre si, com outros movimentos, e com diversos funcionárias(os) do Estado, nosso interesse aqui é analisar e ilustrar (inclusive visualmente) a importância desses vínculos, entre e através, das mais distintas formas de ativismo. Queremos avançar uma posição teórica que reconheça interações muito complexas entre Estado, sociedade política e sociedade civil, entre as próprias organizações dos movimentos e da sociedade civil em geral (dentre elas o feminismo) e entre as formas mais institucionalizadas de organização política (sindicatos, entidades profissionais, por exemplo). A riqueza multidimensional dessas articulações será amplamente comprovada nessas análises. Não há apenas relações de oposição ou de cooptação (que basicamente se sustentam numa matriz cognitivamente binária). Vamos poder observar neste capítulo, ao contrário, a existência de verdadeiras tramas complexas de interações políticas, onde se evidenciam formas muito mais intrincadas de relacionamento que frequentemente são recíprocas.
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Conforme anunciamos, o nosso principal recurso metodológico foi a análise de redes sociais e análise de estatísticas descritivas básicas de redes sociais (ARS). Foram elaboradas várias redes, mas para os fins analítico-teóricos deste capítulo, foi decidido apresentar quatro tipos distintos delas, quais sejam: (a) redes de trajetórias (que identificaram o caminho das trajetórias do ativismo político das delegadas entre as organizações e/ou movimentos dos quais elas participam); (b) redes de participação (que representaram as formas organizativas dessa participação política das delegadas); (c) redes de articulação (que descrevem graficamente as formas como as organizações e movimentos nos quais as delegadas participam se articulam entre si); e, finalmente, (d) redes de fluxos (que visaram mapear a direção dos materiais e recursos que são produzidos pela organização/movimento do qual as delegadas declararam participar). Todas essas redes foram descritas para os dois anos pesquisados nos nossos surveys, a saber: 2011 e 2016. Em algumas análises foram feitos recortes parciais de redes completas (quase como se déssemos uma espécie de zoom na nossa rede), para se obter maior clareza em relação às interações. Dessa forma, neste capítulo vamos ver análises de sete conjuntos de redes diferentes. Vamos ver a seguir uma breve introdução sobre a metodologia das Análises de redes, e na sequência as análises das redes do ativismo das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs.
I. Analisando redes sociais e políticas: brevíssima introdução metodológica Importa aqui inicialmente destacar que parcela significativa dessas análises está em débito com base na forma de categorização das respostas dadas pelas delegadas em cada pergunta que lhes foi formulada na bateria que visava mensurar esse ativismo. Esse trabalho de codificação foi importante e rendeu muito esforço: foram vários movimentos de idas e vindas, pois foi necessário checar, nome a nome citado pelas delegadas, qual era organização a que a delegada estava se referindo, ou, quando ela não mencionava diretamente o nome da instituição ou movimento, identificar a qual categoria a sua resposta deveria estar alinhada. Apenas dessa forma tornou-se possível chegar à construção das categorias de organizações/instituições/movimentos (Quadro 1 abaixo), produzindo-se um esforço de consolidar o conjunto de respostas das delegadas. No limite, como as respostas são abertas (ou seja: a delegada respondente enunciou ou o nome da organização ou o seu tipo), cada investigador(a) pode construir a sua própria forma de categorização. Estas foram as nossas opções neste momento. Neste capítulo, as categorias criadas foram alocadas em três níveis de agregação (uma categorização mais ampla/nível 1, uma de nível intermediário/
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nível 2 e uma de nível mais específico, detalhado e desagregado/nível 3). Optamos por essa forma de categorização porque nem todas as respondentes disseram especificamente o “nome” da organização de que participaram, mas algumas delas apenas a localizaram genericamente. Essas categorizações estão descritas no Quadro 1 abaixo: Quadro 1. As categorizações das entidades/organizações mencionadas pelas delegadas
Categorização Categorização 2 – INTERMEDIÁRIA 1 – GERAL
Associativismo comunitário
Movimento Estudantil
Movimentos da Sociedade civil
Movimentos Mulheres e Feministas
Movimento Negro Movimento LGBT Movimento Juventudes Movimento Educação Movimento Cultura
Categorização 3 – DESAGREGADA Associativismo comunitário – Mulher Associativismo comunitário – Mulher Deficiência Associativismo comunitário – Deficiência Associativismo comunitário – Mulher e internet Associativismo comunitário – Mulher e Religião Associativismo comunitário – Mulher indígena Associativismo comunitário – Bairro Associativismo comunitário – Pais e Mestres Associativismo comunitário – Donas de casa Universidade – Escolas – Estudantil União Nacional dos Estudantes – UNE Centro Acadêmico Grêmio Estudantil Ubes Movimento de Mulheres Movimento Mulheres – Rede Mulheres Negras Movimento Mulheres – Mulheres Negras Mulheres Quilombolas Movimento Mulheres – AMB Movimento Mulheres – Lésbicas Promotoras Legais Populares Movimento Mulheres – Marcha Mundial de Mulheres Movimento Mulheres – Levante Popular Juventude Movimento Mulheres – Rural Movimento Mulheres – Ciganas Movimento de Mulheres – Indígenas Movimento Mulheres – Trans Movimento Mulheres – Clube de Mães Movimento Negro Movimento Quilombola Movimento LGBT Movimento Juventudes Movimento Educação Fórum EJA Movimento Educação Movimento de Cultura
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Movimento C/A Movimento Deficientes Movimento Direitos Humanos Movimento Pescadores Movimento Esporte e Lazer Movimento Indígena Movimento Rural Movimento Saúde
ONGs
Entidades de Classe Partidos IP – Inst. Híbridas
Estado
OAB e CRM Sindicatos Partidos Políticos Conselhos
Poder Executivo
Poder Legislativo Fonte: Elaboração própria
Movimento Criança Adolescente Movimento pessoa com deficiência Movimento Direitos Humanos Movimento de Pescadores Movimento Esporte e Lazer Movimento Indígena MST Movimento Saúde – Reforma Sanitária Movimento Saúde ONG ONG – Deficiência ONG – OSCIP Estadual ONG – Meio ambiente ONG – Ciganos OAB CRM Sindicatos Estrutura Partidária Conselho Mulheres Conselho Mulheres – municipal Conselho Mulheres – estadual Conselho Criança – municipal OPM OPM – estadual OPM – Municipal OPM – SPM Federal OPM – SEPPIR Prefeitura Secretaria de Estado – Municipal Secretaria de Estado – Estadual Agência Federal – CNPq Agencia Federal – ANA Agência Federal – Itaipu Agência Federal – IPEA Agencia Federal – CEF Ministério Federal Poder Legislativo – Municipal Poder Legislativo – Estadual
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Nas análises a seguir, vamos lançar mão dessas três categorizações que estão apresentadas nas colunas do Quadro 1 acima. Por outro lado, para serem analisadas a presença e a importância do sidestreaming via mainstreaming e vice-versa, foi realmente necessário descer às nuances, nos detalhes e especificações das categorizações. Todavia, entendemos que nenhuma categorização é perfeita, e essas escolhidas foram aquelas que atendiam melhor aos nossos interesses de investigação. Os dados apresentados a partir da metodologia de Análise de Redes Sociais (ARS) são muito mais compreensíveis quando queremos entender, como é o caso aqui, as dinâmicas de interação entre instituições e/ou entidades das quais as delegadas participam ou participaram. Melhor do que tabelas e gráficos, esse recurso metodológico e seus respectivos grafos nos permitirão ver não apenas o percentual de participação nas diferentes instituições, mas também a sua magnitude relativa em cada uma das análises propostas e as dinâmicas de suas importantes interações. Todavia, para que tenhamos uma visão geral sobre a participação e/ou ativismo das delegadas, vamos apresentar aqui apenas duas tabelas que definem os percentuais dessa participação em 2011 e em 2016, quando as delegadas elencaram as instituições e/ou movimentos que participam em primeiro, em segundo e depois em terceiro lugar. Tabela 1. O percentual da participação das delegadas da 3ª CNPM em instituições/movimentos/organizações (2011) PRIMEIRO SEGUNDO TERCEIRO n % n % LUGAR LUGAR LUGAR Movimento de Movimento de Movimento de Mulheres ou 67 39,4 Mulheres ou 24 27,9 Mulheres ou Feminista Feminista Feminista Conselho 18 10,6 Movimento Negro 13 15,1 Partido Político Poder Executivo 16 9,4 Conselho 13 15,1 Conselho Partido Político 12 7,1 Partido Político 9 10,5 Não Respondeu Entidade Entidade 11 6,5 8 9,3 Sindicato Profissional Profissional Movimento Movimento Negro 8 4,7 Poder Executivo 6 7 LGBTT Movimento de Associativismo 6 3,5 Sindicato 3 3,5 Saúde Comunitário Movimento Movimento Sindicato 5 2,9 2 2,3 LGBTT Estudantil Movimento Movimento de 4 2,4 2 2,3 Movimento Negro LGBTT Deficientes
94
n
%
14 34,1 7 4 4
17,1 9,8 9,8
3
7,3
2
4,9
1
2,4
1
2,4
1
2,4
Movimento Por Moradia
4
2,4 Movimento Rural
Religião/Igreja
3
1,8
Associativismo Comunitário
1
1,8
Movimento de Pescadores
1
1,2 Religião/Igreja
1 1
Movimento 3 Ambientalista Movimento de 2 Juventude Movimento de 2 Cultura Movimento de 2 Deficientes Movimento 2 Indígena Associativismo 1 Comunitário Movimento de 1 Educação Movimento em Prol dos Direitos 1 Humanos Movimento Rural 1 Não Sei 1 Total 170 System 191 361
1,2
Movimento por Moradia
2
Movimento de Juventude Movimento em 1,2 Prol dos Direitos Humanos Entidade 1,2 Profissional 2,3
1
2,4
1
2,4
1
2,4
1,2 Religião/Igreja
1
2,4
1,2 Total
41 100
1,2 Total
86 100 System
320
1,2 System
275
361
0,6
361
0,6 0,6 0,6 0,6 100
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Tabela 2. O percentual da participação das delegadas da 4ª CNPM em instituições/movimentos/organizações (2016) PRIMEIRO SEGUNDO TERCEIRO n % n % LUGAR LUGAR LUGAR Movimento de Movimento de Movimento de Mulheres ou 67 39,4 Mulheres ou 24 27,9 Mulheres ou Feminista Feminista Feminista Movimento Conselho 18 10,6 13 15,1 Partido Político Negro Poder Executivo 16 9,4 Conselho 13 15,1 Conselho Partido Político 12 7,1 Partido Político 9 10,5 Não Respondeu Entidade Entidade 11 6,5 8 9,3 Sindicato Profissional Profissional Movimento Negro 8 4,7 Poder Executivo 6 7 Movimento LGBTT
95
n
%
14 34,1 7
17,1
4 4
9,8 9,8
3
7,3
2
4,9
Movimento de Saúde
6
3,5 Sindicato
Sindicato
5
2,9
Movimento LGBTT Movimento por Moradia Religião/Igreja
4 4 3
Movimento 3 Ambientalista Movimento de 2 Juventude Movimento de 2 Cultura Movimento de 2 Deficientes Movimento 2 Indígena Associativismo 1 Comunitário Movimento de 1 Educação Movimento em Prol dos Direitos 1 Humanos Movimento Rural 1 Não Sei 1 Total 170 System 191 361
3
Movimento LGBTT Movimento de 2,4 Deficientes Movimento 2,4 Rural
2
Associativismo Comunitário Movimento 2,3 Estudantil 3,5
2
2,3 Movimento Negro
2
2,3
Movimento de Juventude Movimento em 1,2 Prol Dos Direitos Humanos Entidade 1,2 Profissional
1
2,4
1
2,4
1
2,4
1
2,4
1
2,4
1
2,4 2,4
1,8
Associativismo Comunitário
1
1,8
Movimento de Pescadores
1
1,2 Religião/Igreja
1
1,2 Religião/Igreja
1
1
1,2 Total
41 100
1,2
Movimento por Moradia
1,2 Total
86 100 System
320
1,2 System
275
361
0,6
361
0,6 0,6 0,6 0,6 100
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Como podemos ver, a participação em movimentos/instituições relacionados a mulheres e feminismo prepondera sobremaneira nas respostas das delegadas, tanto em 2011 quanto em 2016. Como segunda e terceira respostas de ativismo politico, temos (variando-se pouco em relação às posições) a participação em conselhos, no movimento negro e em partidos políticos. Todavia, essa afirmação assim apresentada, apesar de delimitar percentuais de participação, não nos permite analisar quase nenhuma outra informação.
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A Análise de Redes Sociais (ARS)7 nos permite, em contrapartida, o estudo e a compreensão de estruturas representativas de ligações abstratas e concretas entre: (1) algo, alguma(s) coisa(s) ou alguém (alguns/algumas) (2) e suas respectivas possibilidades de interação e fluxo dinâmico (3). No nosso caso aqui, se trata da (1) rede de participação e ativismo político das (2) delegadas das 3ª e 4ª CNPMs em suas relações dinâmicas e fluidas (3). Nas análises de redes sociais, importa ter, de forma visual, a expressão de um mundo que está em movimento. Para isso são necessários alguns indicadores de centralidade da rede e de ligações fortes e fracas dos nodos da(s) rede(s). Para isso, algumas métricas são especialmente importantes: a informação (quais ligações e quais fluxos da informação); o grau nodal (mede a atividade de um determinado elemento da nossa rede – aqui as instituições, organizações ou movimento – ou identifica nodos que são conectores e hubs; usualmente é medido contando-se o número de conexões presentes no nodo, ou seja, considera o número de contatos diretos), a intermediação (que mede as principais pontes e aquelas organizações do ativismo que podem controlar o fluxo de informação nas redes; ela é medida contando-se o número de vezes que está no caminho mais curto entre dois outros nodos) e a proximidade (que, por sua vez, mede aqueles elementos que têm maior visibilidade sobre o que está acontecendo na rede por estar na menor distância em relação a todos os outros elementos; aqueles com maior proximidade, que têm maior independência e maior capacidade de mobilização de informações por exigirem menor intermediação). As ligações fortes – contatos mais próximos – e as ligações fracas – mais distantes – serão aqui analisadas tendo como base esses índices de centralidade de proximidade. A análise de redes sociais avalia padrões de relacionamento e foi a principal metodologia empregada neste capítulo. Nas figuras descritas e analisadas a seguir, o grau pode ser observado pelo tamanho do círculo que conforma o nosso nodo; a intermediação se observa através dos traços que ligam os nodos e também pela grossura desses traços de ligação, e a proximidade entre os nodos (em algumas redes marcadas pela delimitação de uma figura de círculo) define a centralidade da mobilização entre os elementos analisados.
7 A ARS é considerada por Cross, Parker e Borgatti (2000) um importante instrumento para estudar relacionamentos que fomentam o compartilhamento da informação e do conhecimento. É uma ferramenta que permite a identificação de indicadores de padrões de relacionamentos que aprimoram a cooperação. Em síntese, é um recurso que respalda mais eficazmente a identificação dos atores mais influentes na rede, e está se tornando, cada vez mais, um recurso estratégico na estruturação e criação de ligações importantes.
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Assim, tendo compreendido muito rapidamente esses elementos principais, conforme já indicado na Introdução, vamos apresentar aqui as seguintes redes: (a) começamos pela rede de trajetórias de participação; (b) apresentamos a rede das instituições de participação das delegadas; (c) as redes de articulação/interação entre essas organizações; e, finalmente, (d) as redes de fluxos de produções (materiais e ações) dessas organizações citadas.
II. As análises das Redes de Trajetórias de ativismo das delegadas Iniciamos nossas análises com as Redes de Trajetórias referentes ao ativismo das delegadas. Estas foram produzidas a partir de dados gerados pela seguinte questão presente no questionário em ambas as pesquisas – 2011 e 2016): “Pensando em ordem cronológica, e na sua participação passada ou presente, qual foi a primeira entidade ou grupo do qual você participou formal ou informalmente? E o segundo? E o terceiro?”. As respostas foram categorizadas com base em três tipologias distintas, conforme apresentado no Quadro 1 (acima), cada qual com grau distinto de agregação (Geral, Intermediário e Desagregado). Para a elaboração destas redes abaixo descritas, foram utilizadas as categorias mais refinadas/específicas (Categorização 3 – Desagregadas). As figuras abaixo nos mostram, então, as principais trajetórias referentes ao ativismo político das delegadas participantes das 3ª e 4ª CNPMs brasileiras.8
8 Para organizar as figuras a seguir, foram realizados dois procedimentos metodológicos principais, a saber: a) um cálculo de índice que mensura se os movimentos tendem a “receber/receptores” ou “ceder/ doadores” de militantes. Valores positivos são indicadores de movimentos “superavitários” (recebem mais que doam militantes), valores negativos indicam movimentos “deficitários” (doam mais que recebem militantes). Para o cálculo, foi aplicada a seguinte fórmula: InDegree-OutDegree Índice = 100 InDegree+OutDegree * b) a categorização dos tipos de movimentos de acordo com o índice: altamente receptores do ativismo (vermelho), pouco receptores (laranja), pouco doadores (verde-claro), altamente doadores de ativismos (verde-escuro).
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A Figura 1 (ou Dígrafo,9 na linguagem das análises de redes sociais) abaixo representa o conjunto da rede completa das trajetórias especificamente para as respostas das delegadas da 3ª CNPM (2011). O tamanho dos nodos, nesta figura, representa o grau nodal total de cada tipo de movimento (grau nodal total = indegree + outdegree).10 Para facilitar a análise desta rede, optamos por selecionar aqueles atores (instituições, organizações e movimentos) mais relevantes dentro da estrutura. Essa foi, em alguma medida, uma seleção arbitrária, mas o que balizou tal decisão foi o critério de incluir e analisar apenas os nodos com grau nodal total superior ou maior que o valor 15. Dessa forma, restaram para a análise mais detalhada/desagregada 18 tipos de movimentos que representam 37,5% do total de instituições reportadas pelas delegadas. Entretanto, cabe ainda salientar que esses nodos abarcam 947 relações de um total de 1.090 relações observadas na rede completa. Isto é: esses 18 tipos de movimentos ou organizações selecionados são responsáveis por 86,88% das interações da rede completa. Essa rede completa destaca a complexidade inerente dessas relações, nos mostrando como são, de fato, empiricamente plurais as formas a partir das quais as delegadas de 2011 construíram a história do seu ativismo político, antes de chegar ao espaço político e deliberativo das conferências.
9 Na metodologia de Análises de Rede um “Dígrafo” corresponde ao nome dado à representação gráfica de redes orientadas e um “Grafo” corresponde ao nome dado à representação gráfica de redes não orientadas. 10 Na metodologia de Análises de Rede, o “Degree”/Grau nodal indica a quantidade de interações adjacentes ao nodo. Em redes orientadas, o grau nodal se subdivide em “InDegree” (que corresponde a relações adjacentes de entrada) e “OutDegree” (que são as relações adjacentes de saída). Dessa forma, em se tratando de uma rede orientada (cuja representação gráfica recebe o nome de Dígrafo), o Grau Nodal Total é a soma de In e do Out Degree.
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Figura 1: Principais trajetórias de ativismo político das delegadas – (Categorização 3), com cálculo do índice doadores/receptores de militância – 3ª CNPM / 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Para essa rede referente à trama das trajetórias políticas das delegadas de 2011 (e também na Figura 2 a seguir), importa destacar que a força da interação não está representada pela espessura da linha, mas pelo tamanho da cabeça da seta. E daqui surgiram alguns elementos analíticos interessantes. Os principais movimentos/organizações “doadoras” de militantes nas trajetórias das delegadas de 2011 foram: as instituições religiosas, o movimento estudantil e, com menor potência interativa, situam-se as instituições da Igreja Católica e grêmios estudantis (representados pela cor vermelha no dígrafo). De qualquer forma, por esse dígrafo, surge a porta de entrada da militância dessas mulheres principalmente em movimentos estudantis e em instituições religiosas. As principais instituições que doam militantes para as etapas seguintes das trajetórias das delegadas de 2011 são: os sindicatos, o associativismo de bairro e de moradores, o movimento negro, centros acadêmicos e as entidades profissionais (representadas pela cor laranja no dígrafo). Podemos afirmar que, quando as delegadas chegam ao ativismo nos movimentos de mulheres (ver quadrados verde-claros na Figura 1), já passaram pelas outras formas de ativismo anterior. Nas trajetórias das delegadas de 2011, as estruturas dos partidos e também da militância nos movimentos de saúde rivalizam com o ativismo em movimentos de mulheres, o ponto quase final dessas trajetórias políticas.
100
Observe-se que os movimentos de mulheres, os partidos e os sindicatos são as instituições que têm a maior força de interações (ver tamanho das setas). Cabe, afinal, notar que as maiores organizações “receptoras” de militantes (sendo estas também os principais pontos de chegada) nas trajetórias das delegadas de 2011 são: conselhos e conselho da mulher, a militância em movimentos ambientalistas e de direitos humanos e o associativismo comunitário especificamente em questões das mulheres. Como veremos nas Figuras 1 e 2 (Trajetórias – 2011 e 2016), podemos identificar então que as principais portas de entrada do ativismo das mulheres delegadas se assemelham – movimentos estudantis e em centros acadêmicos para ambos os anos analisados. Todavia, para 2011, é preciso acrescentar o ativismo de caráter religioso (através de movimentos ligados à Igreja ou religião), que não terá essa importância para o ano de 2016. Figura 2: Principais trajetórias de ativismo político das delegadas – (Categorização 3), com cálculo do índice doadores/receptores de militância – 4ª CNPM / 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Conforme vemos na figura acima, para as delegadas de 2016 a principal entrada no ativismo foi através da participação no movimento ambientalista e no associativismo comunitário ligado à questão dos bairros e da participação nos movimentos estudantis.
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Dessa forma, podemos afirmar que a principal base política formadora das delegadas das duas últimas CNPMs parece ser os movimentos estudantis e também movimentos ligados à religião. Além de serem as principais portas de entrada, podemos também afirmar que essas organizações ou entidades são as principais primeiras “doadoras” de militância, por assim dizer, nas trajetórias para o perfil das delegadas analisadas nessa pesquisa. Para essa rede completa das trajetórias das delegadas de 2016, podemos identificar como o(a)s principais movimentos/organizações “doadore(a)s” de militantes (esse padrão foi significativamente diferente do de 2011): o movimento ambientalista, o associativismo de base comunitária com foco nos bairros e o ativismo em centros acadêmicos. A militância em instituições religiosas não se apresentou como porta de entrada importante para as trajetórias das delegadas de 2016. De qualquer forma, também por esse dígrafo, permanece como porta de entrada da militância das delegadas de 2016 o ativismo em movimentos estudantis. No segundo nível de instituições que “doam” militantes para as etapas seguintes das trajetórias das delegadas de 2016, encontramos: os sindicatos, o associativismo comunitário focado em questões das mulheres, o ativismo nas instituições da Igreja Católica e evangélica, o movimento estudantil e as entidades profissionais. Já os pontos de chegada dessas trajetórias, entretanto, se diferenciam um pouco e de modo muito interessante. Para as delegadas de 2011 (presentes na 3ª CNPM) foram três as formas de ativismo mais recente que definiram o ponto final de suas trajetórias: o movimento ambientalista, os movimentos vinculados a direitos humanos e os conselhos de políticas públicas (incluindo os conselhos da mulher) e o ativismo vinculado ao associativismo comunitário, principalmente ligado à questão da mulher. Já para as delegadas da 4ª CNPM, todavia, além dos pontos de chegada dos conselhos e do associativismo comunitário (só que ligado à questão de moradia), temos principalmente a participação nos movimentos negros e o ativismo em redes de mulheres negras. Para além de serem os pontos de chegada, também podemos afirmar que essas entidades ou instituições são as principais “receptoras” de militância nas trajetórias das delegadas de 2016 analisadas nessa pesquisa. Cabe destacar a dinâmica da trajetória em relação à participação no movimento negro que se altera substantivamente em 2016, indo para a posição de ponto de chegada (e não mais como elo intermediário das trajetórias). Mais uma vez, os movimentos de mulheres e feministas se encontram no penúltimo estágio da trajetória das delegadas, rivalizando em importância com partidos, movimentos de direitos humanos e participação em conselhos da mulher.
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A presença dos conselhos como um ponto de chegada nessas trajetórias de ativismo é bastante compreensível: muitas delegadas das CNPMs estão vinculadas aos conselhos de direitos das mulheres ou a outros conselhos de políticas públicas. Os conselhos de mulheres costumam, inclusive, estabelecer a exigência da presença das suas conselheiras nesses processos deliberativos, colocando-as como “delegadas natas” no âmbito das conferencias de políticas para as mulheres (é o caso das CNPMs e também nas conferências estaduais e municipais). O mais interessante é perceber o deslocamento que consideramos significativo entre os dois períodos aqui analisados: os movimentos negros e as redes de mulheres negras, que, em 2011, eram apenas um primeiro elo intermediário na trajetória de ativismo e de participação das delegadas, se conformam, em 2016, como ponto de chegada dessas trajetórias. O que isso pode querer nos indicar? Uma hipótese explicativa forte para esse fenômeno parece ser a do fortalecimento desses espaços de ativismo no Brasil: os movimentos negros e de mulheres negras estando contemporaneamente mais atuantes e mobilizados no subcampo de ativismo feminista junto ao Estado. Isso demonstra a importância do ativismo das mulheres negras na ocupação dos espaços das CNPMs. Revela, pois, que elas devem ter se mobilizado mais intensamente, entre os anos de 2011 e 2016, para, finalmente, ocupar mais tal espaço de deliberação e diálogo com o Estado brasileiro. Revela ainda que, das dimensões das lutas identitárias, são os movimentos raciais e negros que têm se aproximado de forma mais intencional e objetiva do espaço das CNPMs, conforme vemos ser discutido mais longamente no capítulo 5 do volume 2, por Johanna Monagreda. Também os elos intermediários dos ativismos das delegadas são distintos para os dois anos analisados, conforme foi possível ver nos capítulos elaborados nesta coletânea por Celi Pinto e Danusa Marques. Observa-se que, para os dois anos, a trajetória de ativismo nos movimentos de mulheres e feministas se encontra na última posição intermediária, passando a disputar com os partidos políticos, os movimentos de direitos humanos, da saúde e o ativismo em conselhos a posição quase final das trajetórias. Partidos políticos, como podemos observar, são então elos intermediários mobilizadores de importância nessas trajetórias para as delegadas das duas conferências. Dos demais elos intermediários, a participação em sindicatos e em entidades profissionais são as opções subsequentes depois da entrada no ativismo (tanto em 2011 quanto em 2016), assim como o é também o ativismo comunitário (ligado à questão da moradia em 2011 e à questão da mulher em 2016).
103
Como é possível ver, existem organizações que marcam de forma importante as trajetórias das delegadas de 2016 e, entre elas, é necessário mencionar a participação em primeiro lugar (e de novo): nos movimentos de mulheres e feminista (o maior quadrado verde do dígrafo), nos sindicatos e nas estruturas partidárias. Para 2016, as instituições religiosas, que foram significativas em 2011, perderam seu efeito de concentrar as interações. Assim, as três instituições – movimentos de mulheres, sindicatos e partidos – foram aquelas em que as interações das trajetórias foram mais robustas (notar o reforço das linhas de ligação). E, de novo, as trajetórias das delegadas de 2016 também nos indicam a enorme pluralidade de instituições em que os feminismos já se encontram interagindo. Importa lembrar que, entre as delegadas, 41% afirmaram estar representando nas CNPMs movimentos de mulheres e/ou feministas, e mais de 82% delas se declararam feministas. Vamos observar essas informações agora a partir de outra análise: aquela que foca mais nas redes de participação e de interação entre as instituições (e não aquelas que focalizam a sua temporalidade). Figura 3: Rede completa das interações nas trajetórias políticas das delegadas da 3ª CNPM – 2011 (Categorização 3)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Como podemos observar, existem organizações que marcam de forma importante as interações entre as instituições do ativismo das delegadas e, entre elas, é necessário mencionar a participação em primeiro lugar de: movimentos de mulheres e feminista (o maior quadrado verde do dígrafo), os sindicatos, as estruturas partidárias e as instituições religiosas.
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Essas quatro instituições são aquelas em que as interações do ativismo foram as mais robustas (notar o reforço das linhas de ligação). Ou seja: conforme reportamos do ponto de vista teórico-analítico, as trajetórias e, sobretudo, as interações entre as distintas organizações que pavimentam essas trajetórias das delegadas de 2011 nos indicam sim uma pluralidade de instituições em que o feminismo já se encontra relacionado e/ou interagindo. Isso fica ainda mais patente quando observarmos as outras esferas institucionais da rede de trajetórias. Com grau um pouco menor de expressividade nas relações/interações, aparecem ainda nessa rede de interações das organizações o associativismo comunitário – moradores e a participação em entidades profissionais, em movimentos vinculados aos direitos humanos, nos movimentos negros e movimento estudantil. Orbitando o núcleo dessa rede, em um grau bem menor de interações entre essas trajetórias das delegadas de 2011, surgem por fim, as participações em movimentos ambientalistas, movimentos na saúde, em instituições da Igreja Católica, em grêmio estudantil e centro acadêmico e em conselhos e conselho da mulher. Apenas por essa rede mais completa, que traz as interações entre as diferentes instituições do ativismo das delegadas, nos é possível identificar a verdadeira trama de interações complexas dos movimentos de mulheres e feministas com outras organizações sociais e políticas. Apenas através de imagens/dígrafos/figuras como estas é que podemos, de fato, compreender como os feminismos e/ou movimentos organizados de mulheres estão interagindo para além de si mesmos, indo ao encontro e se relacionando com outras organizações na construção da trajetória das delegadas, e isto de forma extensa, intensa e complexa, seja com outras organizações da sociedade civil, seja com instituições híbridas. Cabe salientar ainda que, nessa trama de interações, identificamos importantes ausências: a pouca interação nas trajetórias especialmente com dois novos movimentos sociais muito importantes, a saber, os movimentos de mulheres lésbicas/LQBTs e os indígenas. Isso porque, para a questão geracional, apareceram nessa trama os movimentos ligados ao ativismo estudantil, mas para a dimensão das sexualidades e da dimensão étnica o mesmo não ocorreu. Parece claro que, para as delegadas de 2011, os movimentos LQBT e indígenas pouco compareceram nas suas trajetórias de ativismo –talvez porque tinham menor circulação no subcampo de ativismo feminista junto ao Estado. Os Gráficos 1 e 2, que iremos apresentar a seguir, são gráficos que representam a distribuição do grau nodal, ou seja, da quantidade de interações que cada nodo (no nosso caso aqui, o tipo de movimento ou organização) estabelece na
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estrutura da rede. Em cinza será representado o grau nodal total (degree),11 que mensura a quantidade de relações, independentemente se estas são de entrada ou de saída. Na cor laranja está representado, por sua vez, o Indegree, ou seja, aquelas relações que chegam ao nodo/tipo de movimento ou organização. Finalmente, em azul, está representado o Outdegree, isto é, aquelas relações que saem do nodo/ tipo de movimento ou organização. O índice mencionado acima foi construído, justamente, para representar a diferença entre o InDegree e o OutDegree, ou ainda: entre a quantidade de entrada e saída de interações e pode nos indicar, como vimos, se os movimentos ou organizações que estamos aqui analisando são “superavitários” ou “deficitários” em termos dessas interações da militância das delegadas. É possível perceber essa diferença, se positiva ou negativa, pela leitura da distribuição do grau nodal, conforme descrito a seguir. Gráfico 1 – Distribuição do grau nodal, 2011, rede de interações nas trajetórias
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Como se pode observar do gráfico acima, as dez primeiras organizações com mais interações na rede de articulações de 2011, por ordem crescente de interações, são: partidos (recebem mais militantes do que doam), movimentos de mulheres e feministas (recebem mais militantes do que doam), sindicatos (doam mais militantes do que recebem), instituições religiosas (doam mais militantes do que recebem), associativismo comunitário com foco em moradia (doa mais 11 Ver a explicação destes conceitos na Nota 10.
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militantes do que recebe), entidades profissionais (doam mais militantes do que recebem), movimentos de direitos humanos (recebem mais militantes do que doam), movimento estudantil (doa mais militantes do que recebe), movimento negro (doa mais militantes do que recebe) e associativismo comunitário com foco nas questões das mulheres (recebe mais militantes do que doa). Vamos observar agora o comportamento da rede completa de interações/ articulações entre as trajetórias para as delegadas da 4ª CNPM, de 2016. Assim como já descrevemos para a rede de 2011, o tamanho dos nodos representa o grau nodal total de cada tipo de movimento e, mais uma vez, optamos por selecionar os atores (instituições, organizações e movimentos) mais relevantes da estrutura. Selecionamos e analisamos aqui, afinal, apenas os nodos com grau nodal total maior que 15. Restaram para a análise das trajetórias na sua forma de categorização mais detalhada, então, 17 tipos de movimentos/organizações, o que representa 36,95% do total de atores. Entretanto, esses nodos, assim como se deu para a rede de 2011, abarcam 694 relações das 812 observadas no total, isto é: 85,46% das interações da rede se dão entre os nodos selecionados. As cores, mais uma vez, representam os nodos selecionadas para análise (em verde) e aqueles que ficaram de fora dela (em vermelho). Figura 4: Rede completa das interações nas trajetórias políticas das delegadas da 4ª CNPM – 2016 (Categorização 3)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
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Gráfico 2 – Distribuição do grau nodal, 2016, rede de interações nas trajetórias
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Como se pode observar do gráfico acima, as dez primeiras organizações com mais interações na rede de 2016, pela ordem crescente de interações, são: movimentos de mulheres e feministas (recebem mais militantes do que doam), partidos (recebem mais militantes do que doam), sindicatos (doam mais militantes do que recebem), associativismo comunitário com foco nas questões das mulheres (doa mais militantes do que recebe), instituições religiosas – Igreja Católica (doa mais militantes do que recebe), associativismo comunitário com foco em moradia (doa mais militantes do que recebe), centro acadêmico (doa mais militantes do que recebe), conselho da mulher (recebe mais militantes do que doa), associativismo comunitário com foco em lutas por moradia (recebe mais militantes do que doa) e movimento negro (recebe mais militantes do que doa). A preponderância de partidos em ambos os anos é indicativo de que as delegadas participantes das CNPMs representam, conforme mencionamos à Introdução deste capítulo, um “subcampo” do campo feminista mais amplo. Numa comparação dessas métricas entre as redes de 2011 e 2016 podemos afirmar que: 1) houve pouca mudança nos padrões de interações do ativismo das delegadas aqui pesquisadas entre os dois períodos, já que as dez organizações e/ou movimentos com maior numero de interações foram bastante semelhantes (sobretudo as três primeiras que foram exatamente as mesmas, em posições um pouco diferentes) nos dois anos; 2) para os dois anos aqui analisados, sindicatos, instituições religiosas, entidades profissionais e movimento estudantil aparecem como grandes
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organizações “doadoras” de militância entre as delegadas e, em contrapartida, os partidos, movimentos de mulheres e feminista, movimentos de direitos humanos, conselhos das mulheres surgem como as principais organizações/movimentos que são “receptoras” da militância. As organizações do associativismo comunitário ora aparecem como doadoras, ora como receptoras, e o movimento negro, que no ano de 2011 apareceu como doador de militância, em 2016, passou a operar como receptor da militância dessas mulheres.
As análises das redes de participação política Agora vamos às análises das redes de participação em outros movimentos, com nível analítico: delegadas, ou seja, a rede identificada das formas de participação (diferente das redes anteriores, esta aqui não reporta a nenhum padrão referente à ordem cronológica das trajetórias, mas de maior intensidade ou força de participação) das delegadas nas duas conferências aqui analisadas. Todos os grafos/figuras apresentados nesta seção foram produzidos a partir de dados gerados pela seguinte questão dos questionários: “De qual movimento social ou rede de ativismo de mulheres ou feminista você participa mais? De qual participa em segundo lugar? E em terceiro lugar?”. Vamos discutir primeiro as formas de participação a partir da categorização intermediária (categorização 2 presente no Quadro 1) e, na sequência, analisamos as duas outras formas de categorização (a 1, mais geral, e a 3, desagregada) também (dando uma espécie de zoom nas nossas redes). As figuras que representam essa trama de respostas sobre a participação política são as que seguem:
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Figuras 5 e 6: Rede das principais formas de participação das delegadas (Categorização 2 – 2011 e 2016)
PARTICIPAÇÃO - 2011
PARTICIPAÇÃO - 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Como se observou para as redes de trajetórias anteriormente analisadas, as principais organizações relatadas pelas delegadas se repõem: movimento de mulheres e feminista e movimentos relacionados à igreja/religião com uma distinção: a diferença é que surge agora no centro dessa rede também a participação em partidos políticos (antes os partidos se constituíam em elo intermediário do ativismo das delegadas). Sabemos que mais de 62 % das nossas entrevistadas participam de partidos e o desenho dessa rede confirma esse dado. A participação nos partidos, aquela em instituições ligadas à igreja e outra em movimentos de mulheres e feminista estão no núcleo central da rede de participação política. Já em 2011, além dessas três que permanecem centrais para a configuração da rede de participação, surgem também as organizações vinculadas à assistência social e a movimentos de bairro. Para 2016, essas duas últimas organizações estavam também presentes, mas num círculo um pouco mais ampliado de importância na rede de participação das delegadas, inseridas talvez num segundo grau de importância, juntamente com movimento negro e os sindicatos. Ainda nesse ano, as organizações de assistência social não estiveram no centro da rede (como estavam em 2011). Para os dois anos analisados, os movimentos LQBT e ambientais, as entidades profissionais, o movimento estudantil e os relacionados ao consumidor orbitam as camadas mais externas dessa rede de participação. As exceções são: as
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organizações sindicais, que em 2011 eram periféricas à rede e se tornaram intermediárias para 2016, e os movimentos ambientalistas, que fizeram o movimento oposto: eram intermediários para a rede da participação, no ano de 2011, e se tornaram periféricos para 2016. De qualquer modo, a rede da participação das delegadas revela um padrão de ativismo consistente nos dois anos, tendo-se o ativismo religioso, em organizações de mulheres e feminista e partidário, como seu núcleo duro central (em 2011 também se inseriam nesse núcleo a participação em movimentos de bairro e aquela em organizações assistenciais). E esse padrão de participação parece consistente com as formas de mobilização das mulheres que estejam em diálogo com o Estado: a participação em movimentos de mulheres seria esperada tendo-se como foco o tema das conferências que estamos analisando. A participação partidária também nos parece esperada, já que há um claro viés de participação das delegadas em partidos que comumente dão importância a processos de deliberação política, sobretudo o PT e o PCdoB. Esse aspecto será igualmente destacado nas análises subsequentes. Já a participação nos movimentos religiosos é, e parece continuar a permanecer, importante (historicamente foi e parece continuar sendo): trata-se de uma das principais portas de entrada socialmente legítimas e autorizadas para fomentar e recrutar o ativismo político das mulheres brasileiras. A participação em movimentos ligados à assistência social e às lutas nos bairros perdeu importância em 2016, podendo revelar que essas formas de ativismo passaram a ser superadas por outras formas em 2016, como o movimento negro e a participação em redes de mulheres negras (a Figura 7 a seguir revela essa dinâmica). Houve, pelos padrões observados nas duas redes, uma diminuição da coesão da rede para o ano de 2016, ou seja, a intensidade do relacionamento entre organizações foi em 2016. Há algumas hipóteses que poderiam ser aventadas para isso: talvez as delegadas estejam participando menos, talvez elas tenham tido menos recursos para essa participação entre os anos de 2011 e 2016, talvez o perfil das delegadas de 2016 seja mais pautado por formas de participação mais institucionalizadas em função das dificuldades de realização da 4ª CNPM (conforme descrito por Celi Pinto, no capítulo 5, vol. 1). Não há como termos absoluta certeza sobre esse ponto. Sigamos. Vamos agora apresentar as redes de participação das delegadas, onde foram utilizadas as categorias mais amplas/genéricas (Categorização 1, no Quadro 1 – ver cores da legenda, ou seja, onde diminuímos o zoom), e também as mais refinadas/específicas/desagregadas (Categorização 3, no Quadro 1, onde aumentamos o zoom).
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Figura 7: Rede completa da participação das delegadas da 3ª CNPM – 2011 (Categorização 1 e 3)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Esse grafo representa a rede de participação em diferentes tipos de movimentos (os nomes dos nodos indicam o tipo de movimento ou organização de que elas participaram). Já as cores, por sua vez, representam o tipo mais amplo de cada movimento (categorização 1, amplas/genéricas). Para facilitar a leitura e interpretação dessa rede, e em função da importância da participação em movimentos de mulheres e feministas, esta foi separada dos demais movimentos da sociedade civil e colorida com a cor roxa. Dessa forma, a legenda nos revela a categorização mais ampla. O tamanho dos nodos representa, como sabemos, o grau nodal de cada tipo de movimento (degree), ou seja: a quantidade de interações que cada nodo possui. O grau nodal dos dez tipos de movimentos mais relevantes dessa rede está representado na Figura 8 a seguir. A espessura das linhas é indicadora da força da relação: quanto mais espessa a linha, mais forte é a relação entre dois tipos de movimentos.
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Essas outras formas de categorização detalham aspectos relevantes para esse estudo: inicialmente cabe demarcar a complexidade e a riqueza presentes na rede de participação das delegadas de 2011. Quando separamos a participação delas em movimentos de mulheres e feminista, podemos, finalmente, enxergar com clareza com quais outros movimentos e organização os movimentos feministas estão, de fato, interagindo no campo complexo das formas de participação das delegadas. A partir da interpretação dessa figura, para 2011, as interações mais fortes e intensas dos movimentos de mulheres e feminista se deram com: as redes de mulheres negras, os partidos e o associativismo comunitário com foco nas questões específicas das mulheres. Dessa forma, como informação relevante, ao desagregarmos mais as categorizações, o ativismo em instituições religiosas perdeu em importância nessa trama. A partir do cálculo da métrica do grau nodal (degree), temos o seguinte gráfico, que indica quais são, para o ano de 2011, as principais organizações e movimentos que interagiram com os movimentos feministas e de mulheres: Gráfico 3: Valores da métrica do grau nodal (degree) dos movimentos/ organizações mais conectados na rede de participação das delegadas – 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
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É muito interessante observar, portanto, que a rede de participação das delegadas em 2011 nos permite evidenciar, com toda clareza, a presença do sidestreaming feminista, já que os movimentos de mulheres e/ou feministas estão interagindo e se conectando bastante a outros movimentos organizados da sociedade civil (principalmente: associativismo comunitário com foco nas questões específicas das mulheres e redes de mulheres negras; e com menor grau de conexão com as demais formas de associativismo comunitário, com destaque para o foco em mulheres rurais, os movimentos vinculados à saúde e os movimentos indígenas). Pela primeira vez podemos vislumbrar na rede da participação a importância das conexões que se referem a fluxos horizontais do feminismo no Brasil, simultaneamente, com as mulheres negras, rurais e indígenas. Os sindicatos são um elemento também significativo desses fluxos. Para além das organizações da sociedade civil, já descritas em sua importância acima, os movimentos de mulheres e feministas, em 2011, também estão conectados com o mainstreaming feminista: as demais conexões fortes da rede incluem, principalmente, as organizações/instituições híbridas (conselhos) e os partidos, revelando que as interações também estão produzindo fluxos verticais do feminismo para dentro dessas instituições. Cabe destacar que vão aparecer na rede (diferente da rede de 2016), as interações e participações com organizações do próprio Estado, sobretudo: os serviços de atendimento às mulheres, os organismos de políticas para as mulheres (OPMs) e as prefeituras. Como veremos adiante, a rede completa da participação em 2016 quase não apresentará conexões diretas com as instituições estatais (teremos apenas a presença da participação nos OPMs e, tenuemente, a participação do poder Legislativo). Para podermos nos aprofundar na nossa discussão sobre o sidestreaming feminista, deliberamos por recortar dessa rede completa das formas de participação em 2011 apenas para aquelas interações estabelecidas entre as organizações da sociedade civil. Vejamos:
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Figura 8: Rede parcial da participação das delegadas da 3ª CNPM – 2011 (apenas sociedade civil organizada)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Nesta Figura 8 temos, então, a representação parcial da rede de participação de 2011, onde estão presentes, para além, claro, dos movimentos de mulheres e feministas, aqueles categorizados como outros movimentos da sociedade civil. As cores distinguem entre movimentos de mulheres e feministas (roxo) e demais movimentos da sociedade civil (vermelho). O tamanho dos nodos representa o grau nodal de cada tipo de movimento (degree), ou seja, a quantidade de interações presentes, que cada nodo possui. Já a espessura das linhas é indicadora da força dessas relações. Quanto mais espessa, mais forte é a relação entre dois tipos de movimentos. As relações mais fortes, como podemos ver, se confirmaram na desagregação: elas realmente se dão entre os movimentos de mulheres e feminista e o associativismo comunitário com foco específico nas mulheres, as redes de mulheres negras e o movimento estudantil. Numa segunda escala de força interativa/conectiva temos, ainda, com importância: os movimentos de direitos humanos, os movimentos vinculados à saúde, o associativismo comunitário com foco nas mulheres rurais, as outras formas de associativismo comunitário e os movimentos indígenas.
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Já para o ano de 2016 temos alterações na rede completa de participação das delegadas que são significativas. Na rede completa de 2016, temos, como será visível e fácil de perceber, uma trama de articulações menor do que aquela evidenciada em 2011. Vejamos. Figura 9: Rede completa da participação das delegadas da 4ª CNPM – 2016 (Categorização 1 e 3)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Como é perceptível, o desenho das articulações da rede de 2016 é mais simples que o de 2011. Continuam como interações fortes as articulações entre os movimentos feministas e de mulheres com as redes de mulheres negras, os partidos, os conselhos e as entidades profissionais. E num segundo grau de importância destacam-se, para a rede de participação de 2016, as interações com: partidos, associativismo comunitário e movimento quilombola. Mais fracas são, afinal, as interações com movimentos LQBT, organismos de políticas para as mulheres (OPMs) e sindicatos. O Gráfico 4, a seguir, confirma a situação das principais organizações e movimentos que interagem com os movimentos feministas e de mulheres em 2016:
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Gráfico 4: Valores da métrica do grau nodal (degree) dos movimentos/ organizações mais conectados na rede de participação das delegadas – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
O que nos parece claro é que, nessa configuração de 2016, o sidestreaming feminista parece ceder lugar às articulações do mainstreaming feminista, já que articulações/conexões mais fortes da participação das delegadas estão em: entidades profissionais, conselhos e partidos (exceção feita à importância da participação em redes de mulheres negras). Para finalizar essa seção, vamos recortar apenas as articulações da rede de participação de 2016 dos movimentos de mulheres e feminista com as demais organizações da sociedade civil, assim como também fizemos para a rede de participação das delegadas de 2011.
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Figura 10: Rede parcial da participação das Delegadas da 4ª CNPM – 2016 (apenas sociedade civil organizada)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Aqui se destaca, mais uma vez, a força de interação entre os movimentos de mulheres e feminista e as redes de mulheres negras, tanto em termos da quantidade maior das interações (visíveis pelo tamanho do grau nodal), quanto da força dessas interações (medida pela espessura da linha que as liga). Num segundo estágio de relevância estão as interações estabelecidas com os movimentos LQBT, o movimento quilombola e o associativismo comunitário. Esse padrão também foi observado na rede de 2011. Todavia, merece atenção o fato de que diminuiu a coesão na rede de participação das delegadas para o ano de 2016: sendo que tanto o número de nodos quanto as interações entre eles são bem menores em 2016. Em 2016, a participação das delegadas nos movimentos de mulheres indígenas e rurais estabelece conexões entre si, mas estas estão desligadas dos demais nodos da rede de participação, incluindo os movimentos de mulheres e feministas. Esses elementos parecem indicar que as articulações do sidestreaming feminista, em 2016, sofreram claramente um decréscimo e que as dimensões étnica e rural perderam conexões de participação importantes. Merece ainda menção que, tanto para 2011 quanto para 2016, a participação das delegadas em organizações relacionadas a temáticas mais específicas – tais como: criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estudantil, movimento de pescadores, movimentos vinculados à Educação e também
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as articulações com os poderes do Estado – recebem e doam poucas articulações/ interações (quando essas relações são existentes). Essa informação nos parece importante porque são essas organizações aquelas principalmente vinculadas, ou às pautas identitárias (exceção feita ao movimento negro), ou a movimentos que são importantes em termos de renovação das formas de difusão das agendas de gênero e feministas, bem como nas possibilidades de mudanças (movimento estudantil, cultura, educação, esporte e lazer e juventude, sobretudo) culturais mais expressivas. Essa informação revela que há maior dificuldade de articulação das delegadas que estão inseridas nas conferências com as organizações mais renovadas e renovadoras, de fato, das pautas de gênero e feministas. Destaca-se, então, em 2011, como contrapartida imediata desse fenômeno, e diferentemente da rede de participação de 2016, a maior presença de interações e de participação das delegadas com o polo oposto institucional: a participação em instituições do Estado (os serviços de atendimentos às mulheres, OPMs e Prefeituras, no caso de 2011, e muito residualmente, a participação nos OPMs e no poder Executivo). Esse fenômeno duplo de dinâmicas, ora destacado, explica, ao menos em parte, alguns dos limites do ativismo estatal participativo: a rede de participação das delegadas parece não conseguir mesmo alcançar formas de articulações mais centrais com as organizações estatais que seriam, ao fim e ao cabo, aquelas responsáveis pelas efetivas transformações substantivas nos padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero e raça dentro da estrutura administrativa (a normatividade patriarcal e racista do Estado).
As redes de articulação Vamos analisar agora as redes de articulação com outras organizações, contendo então o nível analítico das organizações. Essas redes correspondem às respostas das delegadas às seguintes perguntas: “Em relação à entidade, à rede e ao movimento que você está aqui representando, essa sua organização, movimento, rede estabelece algum tipo de articulação (interação, relacionamento, trabalho conjunto) com outros tipos de movimentos ou organizações?”. As imagens abaixo nos mostram essas redes de articulação referentes à instituição que a delegada está representando na 3ª e 4ª CNPMs. Diferente da imagem anterior, esta outra rede refere-se a uma rede de fluxos de contatos/interações recíprocos (idas e vindas e sua dinâmica de articulação móvel) entre as distintas organizações/instituições.
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Figuras 11 e 12: Rede das articulações/interações entre as principais organizações que as delegadas representam nas CNPMs
ARTICULAÇÃO - 2011
ARTICULAÇÃO - 2016
Fonte: Elaboração Própria
Como a própria figura dessas redes deixa antever, há menor densidade das articulações de rede para o ano de 2016 em comparação a 2011 (notamos isso também nas redes de participação descritas anteriormente). Assim, podemos afirmar que a rede de articulações institucionais de 2016 se apresenta menos coesa, sendo que a distância média entre as organizações de 2016 aumentou e o índice de compactação dessa rede cai.12 Essas métricas são: distância média de 2011: 1,530; distância média de 2016: 1,621; compactação de 2011: 0,638 e compactação de 2016: 0,511. Para 2011, a rede das articulações institucionais se estabeleceu centralmente entre as seguintes organizações (por ordem de magnitude de articulações estabelecidas): movimentos de mulheres e feministas, associativismo comunitário, movimento negro e conselhos. De forma ainda significativa apareceram os fluxos de trocas/articulações também com o poder executivo e, finalmente, os movimentos LQGT; e, com menor intensidade de articulação/interação, partidos e entidades profissionais. Na periferia dessa rede de articulação, mas ainda com alguma
12 Distância média: para quaisquer pares de nodos, o algoritmo mede a distância mais curta entre eles. O resultado expressa uma média geral de distâncias mais curtas. Redes com distâncias menores são mais coesas, e com distâncias maiores, menos coesas. Compactação: índice que varia de 0 a 1, é um indicador de coesão. Quanto mais próximo de 1, mais compacta é a rede, e quanto mais próximo de 0, mais fragmentada.
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importância, em 2011, estão: sindicatos, movimentos de igreja/religião, movimentos de direitos humanos, movimentos relacionados à saúde. Já em 2016, apesar de a trama de articulações ser menor que a de 2011, ela se deu através, principalmente, das interações com o poder Executivo, o associativismo comunitário, os movimentos de mulheres e feministas e o movimento negro. Com menor expressão aparecem, então, as articulações com os conselhos e os movimentos relacionados à moradia. Um pouco para fora do núcleo central de articulações, em 2016, mas ainda com relevância, estão: os sindicatos e os movimentos rurais. E com menor expressividade de interações, mas ainda com alguma importância, situam-se os movimentos LQBT, movimentos de direitos humanos, movimentos ligados à igreja/religião e os ambientalistas. Conforme salientamos para as redes de participação, tanto para 2011, quanto para 2016, organizações relacionadas a temáticas específicas, tais como: criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estudantil, movimento de pescadores, de indígenas, vinculados à educação e também a outros Poderes, revelaram poucas articulações com a instituição que as delegadas representam. Destaca-se, então, em 2016, como contrapartida imediata desse fenômeno, e diferentemente de 2011, uma maior presença de interações com o polo oposto: o poder Executivo ganhará em magnitude nas articulações, bem como se destacam ainda as interações com sindicatos e movimentos rurais. O que esse fenômeno pode nos revelar é o fato de as delegadas de 2016 estarem mais articuladas, ou mais próximas do governo ou de entidades sindicais (tais como a CUT) ou movimentos mais umbilicalmente vinculados ao governo. De qualquer forma, esse fenômeno duplo de dinâmicas destacado explica, ao menos em parte, os limites inseridos no ativismo estatal participativo: ele não parece conseguir alcançar formas de articulações centrais com organizações que seriam aquelas primordialmente responsáveis por transformações substantivas nos padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero.
As redes de fluxos de materiais e ações Seguimos agora para as redes finais. Analisaremos então as Redes de Fluxos 1 e 2: a primeira referente à circulação e produção de materiais entre movimentos e organizações, com nível analítico: organizações; e, finalmente, a segunda, referente à circulação e produção de materiais – partidos, com nível analítico: organizações.13 13 Perguntas: “Seu partido produz material para formação/capacitação para organizações/movimentos ou redes de mulheres ou feministas” + “Seu partido produz material para formação/capaci-
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Assim, complementando as análises das redes de articulação propriamente ditas acima descritas, temos as redes de fluxos de materiais e de ações que são estabelecidas14 quando as delegadas dizem se articular com as organizações e movimentos. Vamos analisar apenas duas delas. A primeira refere-se aos fluxos de ações/atividades/materiais entre as organizações dos movimentos feministas e de mulheres de que participam essas mulheres e as demais organizações de participação, e a segunda refere-se especificamente aos fluxos de produção de materiais e outras ações entre os partidos políticos dos quais elas participam e para quais instituições eles estabelecem essas trocas. Elas serão analisadas abaixo: Figuras 13 e 14: Rede dos fluxos de ações e produção de materiais que são estabelecidos entre as principais organizações de ativismo de mulheres ou feminista das delegadas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Para os dois anos, como se pode perceber nas figuras acima, os movimentos feministas e de mulheres dos quais as delegadas participam produziram vasto material para outros movimentos feministas e de mulheres. Há, portanto, uma tação de outros tipos de organizações, movimentos ou redes?” + “Para qual outro tipo de movimento (ou redes)?” (Opções de resposta: estudantil, mulheres ou feminista, negro, LGBT, rural, indígena e/ ou comunidades tradicionais, sindical, urbanos, ecológico e/ou ambiental, outros). 14 Aqui as perguntas respondidas pelas entrevistas são: “A organização de mulheres ou feminista de que você participa produz material para formação/capacitação de outros movimentos ou redes de mulheres ou feministas? Esse movimento ou rede produz material para a formação/capacitação de outros tipos de movimentos ou redes? Para qual?”. Os tipos de materiais e ações foram preestabelecidos: e estes seriam: 1) Cartilhas/materiais escritos e audiovisuais; 2) cursos, eventos ou oficinas; 3) boletins informativos; 4) material on-line; 5) livros, publicações acadêmicas.
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atuação bem endógena aqui. Em 2011 e em 2016, a organização no 2º lugar para quem se produz mais materiais ou ações é o movimento negro, seguido com menor quantidade de trocas os movimentos LQBT e movimentos rurais, sendo que essa produção toda, em 2016, caiu em quase um terço. Ou seja, para o ano de 2016, analisando-se essa rede de fluxos de materiais e ações, o volume dessa produção caiu expressivamente, revelando maior dificuldade de se estabelecer essas trocas em 2016. Movimentos urbanos e sindicais estão numa categoria intermediária em termos dessas trocas, e, para 2011, os menores fluxos de trocas se deram entre os movimentos de mulheres e feministas com os movimentos indígenas e os ambientalistas. Conforme salientado, para 2016, quem ocupa o segundo lugar nesses fluxos/tro cas, conforme já mencionado, é também o movimento negro, seguido numa posição mais intermediária dos movimentos LQBT, estudantil e sindical. Mais uma vez, os menores fluxos de trocas em 2016 também se deram com os movimentos indígenas, urbanos, rurais e ambientais. A seguir analisamos os fluxos desses materiais e ações, tendo-se como foco os partidos.15 Figuras 15 e 16: Rede dos fluxos de ações e produção de materiais que são estabelecidos entre as principais organizações partidárias das delegadas
FLUXO 2 - 2011
FLUXO 2 - 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
15 A pergunta que deu origem a esses dados é: “Seu partido produz material para a formação/ capacitação de outros tipos de organizações, movimentos ou redes? Quais?”. Os materiais e ações foram os mesmos da rede anterior.
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Como podemos ver, há um papel muito importante do Partido dos Trabalhadores/PT e, em menor escala, do PCdoB aqui. São eles que produzem o maior volume de material (existe também uma sobrerrepresentação de participação de delegadas nesses partidos). Para 2011 e também 2016, os fluxos identificados no PT apresentam fortes conexões com os movimentos classistas (sindical, estudantil), mas também com as pautas de mulheres (em maior grau), do movimento negro e LQBT. Cabe mencionar ainda que é perceptível que a produção de material e ações caiu de 2011 a 2016.
Considerações finais Sobre as redes de trajetórias e suas interações
As análises das redes de trajetórias das delegadas (tanto em 2011 quanto em 2016) nos indicam a enorme pluralidade de instituições onde os feminismos já se encontram interagindo: ou seja, situa-nos na trama da formação e da interação dos feminismos com as inúmeras outras formas de ativismo, dando confirmação à presença do sidestreaming feminista no subcampo do feminismo estatal participativo brasileiro, revelando as variadas formas nas quais têm se estabelecido as relações e os fluxos horizontais do feminismo brasileiro. A principal base política formadora do ativismo político das delegadas nas CNPMs brasileiras foi: a participação em movimentos estudantis e nos movimentos ligados à religião. As principais organizações “doadoras” de militantes nas trajetórias das delegadas, de 2011, foram exatamente estas, sendo que ganharam destaque a Igreja Católica e a atuação em grêmios estudantis. Para as delegadas de 2011, as estruturas dos partidos e, também, da militância nos movimentos de saúde rivalizam com o ativismo em movimentos de mulheres, o ponto quase final das trajetórias. Os movimentos de mulheres, os partidos e os sindicatos têm a maior força de interações, sendo que as maiores organizações “doadoras” de militantes nas trajetórias das delegadas de 2011 foram: conselhos e conselho da mulher, a militância em movimentos ambientalistas e de direitos humanos e o associativismo comunitário especificamente em questões das mulheres. Ainda que a participação em movimentos estudantis tenha comparecido também em 2016, para as delegadas da 4ª CNPM, ganhou importância a participação no movimento ambientalista e no associativismo comunitário ligado aos bairros, sendo que a militância em instituições religiosas se deslocou para um dos primeiros elos intermediários para 2016. No segundo nível de instituições que “doaram” militantes para as etapas seguintes das trajetórias encontramos: os sindicatos, o associativismo comunitário focado em questões das mulheres, o ativismo
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nas instituições da igreja evangélica, e novamente o ativismo em movimento estudantil e nas entidades profissionais. Podemos então afirmar que, quando as delegadas chegam aos movimentos de mulheres, elas já passaram por outras formas de ativismo anterior. Ou seja: os movimentos feministas e de mulheres não se constituem nas principais “portas de entrada” para a maioria das delegadas participantes das conferências. Mas estes estão sim presentes nas trajetórias delas, principalmente como seus elos intermediários. O mesmo ocorre, em parte, com a participação em conselhos: que ora são elos intermediários, ora também compareceram como pontos de chegada das trajetórias (o que ocorre em 2016). Mas, talvez, o principal elemento analítico de significância que precisa ser destacado sobre essas trajetórias refere-se à atuação das delegadas nos movimentos negros e também no ativismo de redes de mulheres negras. Para 2016, esse ativismo se conformou em um “ponto de chegada” das trajetórias das delegadas da 4ª CNPM. Isso demonstra a inequívoca importância do ativismo das mulheres negras na ocupação mais recente desses espaços das CNPMs. Já destacamos que, para as redes de trajetória e interação entre trajetórias, não houve praticamente mudança nos padrões de interações do ativismo das delegadas aqui pesquisadas entre os dois períodos, já que as dez organizações e/ou movimentos com maior número de interações foram bastante semelhantes (sobretudo as três primeiras que foram exatamente as mesmas) nos dois anos. Os sindicatos, as instituições religiosas, as entidades profissionais e o movimento estudantil aparecem como grandes organizações “doadoras” de militância. Em contrapartida, os partidos, movimentos de mulheres e feminista, movimentos de direitos humanos, conselhos das mulheres surgem como as principais organizações/ movimentos “receptore(a)s” dessa militância. As organizações do associativismo comunitário ora aparecem como doadoras, ora como receptoras, e o movimento negro, que no ano de 2011 apareceu como doador de militância, em 2016 passou a operar como receptor da militância dessas mulheres.
Sobre as redes de participação política
Pela primeira vez, através desses dados, foi possível vislumbrar na rede da participação a importância das conexões que se referem a fluxos horizontais do feminismo no Brasil, simultaneamente, com as mulheres negras, rurais e indígenas. Os sindicatos e partidos também foram elementos significativos desses fluxos. Como se observou para as redes de trajetórias e das interações entre as trajetórias, as principais organizações de participação relatadas pelas delegadas se repõem: movimento de mulheres e feminista e movimentos relacionados à igreja/
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religião, mas aparecendo no centro dessas redes a participação em partidos políticos (antes os partidos se constituíam em elo intermediário do ativismo das delegadas). A participação nos partidos, aquela em instituições ligadas à igreja e também a que se dá em movimentos de mulheres e feminista são, afinal, o núcleo central da rede de participação política. Já em 2011, além dessas três que permanecem centrais para a configuração da rede de participação, surgem também as organizações vinculadas à assistência social e a movimentos de bairro. Para 2016, essas duas últimas organizações estavam também presentes, mas num círculo mais ampliado de importância na rede de participação, inseridas em segundo grau de importância, juntamente com movimento negro e os sindicatos. Ainda nesse ano, as organizações de assistência social não estiveram no centro da rede (como estavam em 2011). De qualquer modo, a rede da participação das delegadas revelou padrão de ativismo consistente para os dois anos, tendo-se o ativismo religioso, em organizações de mulheres e feminista e partidário como seu núcleo duro central (em 2011 também se inseriam nesse núcleo a participação em movimentos de bairro e aquela em organizações assistenciais). Esse padrão de participação parece consistente com as formas de mobilização das mulheres que estejam em diálogo com o Estado: a participação em movimentos de mulheres seria esperada tendo-se como foco o tema das conferências que estamos analisando. A participação partidária também nos parece esperada, já que há um claro viés de participação das delegadas em partidos que dão importância a processos de deliberação política, sobretudo o PT e o PCdoB. Já a participação nos movimentos religiosos é, e parece continuar a ser, importante como porta de entrada, socialmente legítima e autorizada, para fomentar e recrutar o ativismo político das mulheres brasileiras. A participação em movimentos ligados à assistência social e às lutas nos bairros perdeu importância em 2016, podendo revelar que essas formas de ativismo passaram a ser superadas por outras formas em 2016, como aquela vinculada ao movimento negro e às redes de mulheres negras. Ao separamos a participação em movimentos de mulheres e feminista, enxergamos com quais outros movimentos há interações nesse campo complexo das formas de participação das delegadas: (a) para 2011, as interações mais fortes e intensas se deram com as redes de mulheres negras, os partidos e o associativismo comunitário com foco nas questões específicas das mulheres (observamos como, ao desagregarmos mais as categorizações, o ativismo em instituições religiosas perdeu em importância nessa trama); (b) para 2016, permanecem como interações fortes as articulações entre os movimentos feministas e de mulheres com as redes de mulheres negras, os partidos, os conselhos e as entidades profissionais, e, num
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segundo grau de importância, as interações com: partidos, associativismo comunitário e movimento quilombola (fracas foram as interações com movimentos LQBT, organismos de políticas para as mulheres e os sindicatos). A configuração dessa participação em 2016, onde, como visto, os fluxos do sidestreaming feminista parecem ter cedido lugar às articulações do mainstreaming feminista (entidades profissionais, conselhos e partidos) – com exceção feita à importância da participação em redes de mulheres negras –, pode estar diretamente relacionada com o contexto de realização da 4ª CNPM. Conforme analisado por Celi Pinto (no Capítulo 5 do v. 1), as mulheres que participaram dessa última conferência ali estariam pelo esforço de fazer que esta acontecesse e, quem sabe, mobilizadas também pelo maior interesse em tentar “defender” a presidenta Dilma no contexto do golpe que já se anunciava. Os movimentos de mulheres e feministas, em 2011, também estão conectados com o mainstreaming feminista: as demais conexões fortes da rede incluem, principalmente, as organizações/instituições híbridas (conselhos) e os partidos, revelando que as interações também estão produzindo fluxos verticais do feminismo para dentro dessas instituições. Cabe destacar que vão aparecer na rede (diferente da de 2016) as interações e participações com organizações do próprio Estado, sobretudo: os serviços de atendimento às mulheres, os organismos de políticas para as mulheres (OPMs) e as prefeituras. Como veremos adiante, a rede completa da participação em 2016 quase não apresentará conexões diretas com as instituições estatais (teremos apenas a presença da participação nos OPMs e, tenuemente, a participação do poder Legislativo). Merece mais uma vez saliência e menção a força de interação entre os movimentos de mulheres e feminista e as redes de mulheres negras, tanto em termos da quantidade maior das interações, quanto da força dessas interações. Já as interações estabelecidas com os movimentos LQBT, o movimento quilombola e o associativismo comunitário surgem perifericamente tanto em 2011 quanto em 2016, sendo que diminuiu a coesão na rede de participação das delegadas no ano de 2016. Ainda em 2016, a participação das delegadas nos movimentos de mulheres indígenas e rurais estabeleceram conexões entre si, mas estas estavam desligadas dos demais nodos da rede de participação, incluindo os movimentos de mulheres e feministas. Esses elementos parecem indicar que as articulações do sidestreaming feminista, em 2016, sofreram claramente um decréscimo, e que as dimensões étnica e rural perderam conexões de participação importantes, reforçando-se a hipótese formulada nos parágrafos anteriores de que as delegadas de 2016 vieram mais fortemente mobilizadas pela manutenção institucional da CNPM e também do governo Dilma Rousseff.
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De todo modo, os dados da participação das delegadas reforçam o entendimento de que essa rede parece não conseguir mesmo alcançar formas de articulações mais centrais e diretas com as organizações estatais, aquelas responsáveis pelas efetivas transformações de fato substantivas nos padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero e raça a partir de dentro da estrutura administrativa, não sendo influentes de forma mais efetiva para desmontar a normatividade patriarcal e racista do Estado brasileiro. Sobre as redes de articulação Um dois primeiros aspectos a se destacar dessas redes é o fato de ter sido constatada menor densidade das articulações de rede para o ano de 2016 em comparação a 2011. Como vimos, em 2011, a rede das articulações institucionais se estabeleceu centralmente entre as seguintes organizações: movimentos de mulheres e feministas, associativismo comunitário, movimento negro e conselhos. Já em 2016, apesar de a trama de articulações ser menor, ela se deu através das interações: com o poder Executivo, o associativismo comunitário, os movimento de mulheres e feministas e o movimento negro. Foram poucas e menos intensas as articulações da entidade que a delegada representava na conferência com organizações vinculadas às pautas de: educação, criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estudantil, e também, com movimento de pescadores e de indígenas, além dos outros poderes de Estado. As primeiras referem-se a movimentos que são importantes em termos de renovação das formas de difusão das agendas de gênero e feministas, bem como nas possibilidades de mudanças culturais mais expressivas (movimento estudantil, cultura, educação, esporte e lazer e juventude, sobretudo). Essa informação revela que há maior dificuldade de articulação das delegadas com essas organizações que são, por sua vez, aquelas mais renovadoras e transformadoras nas pautas de gênero e feministas. Esses dados também referendam a dificuldade de penetração dos movimentos de mulheres junto aos movimentos indígenas e ribeirinhos e, fundamentalmente, em instituições do próprio Estado brasileiro. A exceção aparece para o ano de 2016 quando o poder Executivo ganha em magnitude nas articulações, bem como se destacam ainda as interações com sindicatos e movimentos rurais. Essa contingência das articulações estabelecidas entre as instituições de participação das delegadas reforçam a nossa hipótese formulada de que as delegadas de 2016 estavam mais articuladas, ou mais próximas do governo ou de entidades sindicais (tais como a CUT) ou movimentos mais umbilicalmente vinculados ao governo, para, justamente, se tentar “defender” o governo Dilma. Mas, de todo modo, tais análises reforçam alguns limites do ativismo estatal participativo: ele não pareceu alcançar formas de articulações que pudessem funcionar
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como centrais para promover transformações substantivas nos padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero a partir do Estado.
Sobre as redes de fluxos de materiais
Nos dois momentos, os movimentos feministas e de mulheres dos quais as delegadas participam produziram material para outros movimentos feministas e de mulheres e a organização no 2º lugar para quem se produziu mais materiais ou ações foi o movimento negro, seguido com menor quantidade de trocas os movimentos LQBT e movimentos rurais, sendo que essa produção toda, em 2016, caiu em quase um terço. Ou seja, para o ano de 2016, analisando-se essa rede de fluxos de materiais e ações, o volume dessa produção caiu expressivamente, revelando maior dificuldade de se estabelecerem essas trocas em 2016. Movimentos urbanos e sindicais compareceram numa categoria intermediária em termos dessas trocas e os menores fluxos de trocas que se deram entre os movimentos de mulheres e feministas com os movimentos indígenas e os ambientalistas. Os dados aqui analisados confirmam claramente a nossa formulação de que as ideias feministas hoje no Brasil realmente se articulam e viajam ao longo de múltiplas teias organizacionais e a partir de matrizes discursivas das quais as delegadas das CNPMs fazem/fizeram parte. Elas certamente constituem e organizam o “subcampo” do ativismo feminista no Estado, vislumbrando o “sidestreaming via mainstreaming”, e vice-versa, das questões relacionadas a gênero, mulheres e feminismo nas políticas públicas. Com as análises das redes aqui descritas conseguimos, sim, observar claramente quais foram os padrões dos fluxos verticais (em direção aos partidos, a entidades de classe e a instituições do Estado, inclusive aquelas “híbridas”, como os conselhos, que têm representantes da sociedade civil e do Estado) do mainstreaming feminista e também os fluxos horizontais (com o associativismo comunitário, o movimento negro, estudantil, LGBT, juventudes, indígena, rural, além das organizações sindicais e também das ONGs) presentes no sidestreaming feminista brasileiro. Podemos ter clareza então de que essas diferentes direcionalidades dos fluxos feministas (e também as suas convergências) já configuram um setor significativo do campo feminista brasileiro atual: aquele cujos referentes principais, como mencionamos, são o Estado e as arenas de políticas públicas. Essas formas de participação e ativismo político, até onde conheçamos, nunca haviam sido efetivamente mapeadas no Brasil. Temos a certeza de que este capítulo traz considerações muito importantes e conclusões bastante inovadoras para o campo dos estudos sobre movimentos sociais no Brasil e, especialmente,
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sobre as suas relações com o ativismo estatal. Esta pesquisa, tanto na sua forma metodológica, quanto no seu conteúdo, podem servir para aprofundamentos e a compreensão também de como essas relações podem estar se dando em outras arenas do ativismo junto ao Estado brasileiro e, sendo assim, abrem as portas para uma agenda nova para a Ciência Política brasileira.
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A percepção das relações de gênero e raça das delegadas em perspectiva comparada nacional e entre elas e entre as duas conferências Marlise Matos1 Ian Prates2 As intensas transformações nos valores, impulsionadas pelos avanços mundiais com a experiência da globalização, a intermediação dos fenômenos e das conexões em tempo real via internet, redes sociais e demais tecnologias da comunicação e informação, trouxeram-nos para um mundo infinitamente mais cosmopolita, interligado e complexo. Nesse novo desenho social, os valores exercem um papel importante tanto de atender às necessidades dos indivíduos (o que tradicionalmente sempre fizeram) quanto de atender aos objetivos coletivos. Os valores denotam a preferência por certos comportamentos, estratégias e objetivos, e constituem-se também em componentes essenciais das ações coletivas, fornecendo ainda, como sabemos, orientações para comportamentos e percepções individuais. O estudo dos valores tem sido abordado por inúmeras áreas do conhecimento. Na filosofia, os valores se constituíram como fonte de reflexão; na sociologia, os valores que fundamentam a sociedade e justificam as suas ações são frequentemente estudados (temos já realizado no país alguns surveys sobre atitudes e opinião em relação às desigualdades, às relações familiares e relações de gênero e raça, por exemplo); e, na antropologia, são essenciais na compreensão da cultura (TAMAYO, 1994). Na abordagem da ciência política, o estudo dos valores humanos tem sido fonte para inúmeros debates sobre ideologias, democratização, autoritarismo, conservadorismo e progressismo políticos, por exemplo. Nos estudos de gênero e raça, as pesquisas sobre valores nos permitem compreender se e como têm se dado as dinâmicas de transformação e mudança das sociedades que são tradicionalmente patriarcais e racistas, além de anglo-eurocêntricas e coloniais, no caso do Brasil. A importância de se analisar e estudar 1 Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFMG e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM e do Centro do Interesse Feminista e de Gênero – CIFG (UFMG). 2 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
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mudanças nos valores é que essa investigação nos permite obter informações sobre aspectos subjetivos das desigualdades de gênero e raça. A partir, sobretudo, das críticas epistemológicas feministas (HARDING, 1986, 1998; KELLER, 1984; HARAWAY, 1988; ALCOFF; PORTER, 1993), podemos ter a certeza de que as opiniões e percepções sobre as desigualdades (incluindo as desigualdades de gênero e raça) variam de acordo com a posição (standpoint ou o lugar de fala) de onde a pessoa observa e responde ao mundo. Dessa forma, é sempre esperado que sexo, nível de escolaridade, região, classe social, posicionamentos de gênero, etc. influenciem as percepções (SCALON, 2011). Neste capítulo, entendemos os valores na perspectiva de que estes são crenças duradouras de que um modo de conduta é socialmente preferível em relação a outros modos alternativos. No caso dos valores de gênero, como vivemos numa sociedade arraigadamente patriarcal, a expectativa em termos de percepções e valores é a de que a hierarquia política vá do mando dos homens sobre os corpos das mulheres. No caso dos valores relacionados à raça e etnia, como vivemos numa sociedade racista e genocida em relação aos povos tradicionais, com forte herança do projeto colonizador do qual ainda somos parte, a expectativa em termos de percepções e valores é a de que a hierarquia política vá do mando dos brancos sobre os corpos dos(as) negros(as) e indígenas. Vamos nos ater aqui a um subconjunto particular de valores conforme mencionado: aqueles relacionados a gênero e raça. O conservadorismo de gênero e de raça é um elemento valorativo/moral importante na sociedade brasileira. Diríamos que é uma força estruturante da nossa organização social. Em sociedades em processos múltiplos e complexos de transformação e com forte herança ibérica – autoritária e patrimonial –, como é o caso do Brasil (e de muitos outros países latino-americanos), permanece em aberto a preferência das pessoas, por exemplo, por um regime democrático ou não democrático, já que somos herdeiros de processos coloniais de violência e autoritarismo político. Raça, etnia e gênero são componentes muito salientes e marcados dessa forma de violência e autoritarismo. Hoje isso se impõe talvez ainda mais do que em anos anteriores. Nenhuma dúvida de que a normatividade patriarcal e racista, assim como os processos atávicos de elitização de classe, são marcas históricas da violência autoritária colonial brasileira, alimentam as nossas desigualdades, que reverberam até hoje no tecido social e político brasileiro. E os valores costumam ser veículos de transmissão dessas formas tradicionais e conservadoras de percepção (e, infelizmente, também de ações e de práticas). Esses elementos marcam e informam a nossa cultura, e são esses valores que, em grande medida, orientam parte significativa de nossas condutas e comportamentos. Somos herdeiros de uma sociedade
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profundamente violenta que tem nesses três elementos (e em suas combinações perversas) a química da manutenção de nossas desigualdades e injustiças sociais. Foram esses valores que construíram nossas formas sociais e políticas e elas orientam, até hoje, as ações individuais e coletivas no país. Entendemos que hoje seria bastante difícil negar esse fato. Estamos acompanhando todo o quadro geral de transformações vividas nesse campo no Brasil, sobretudo agora, a partir dos movimentos orquestrados e sistemáticos do novo avanço das forças conservadoras morais e ideologicamente de direita que se consubstanciam já em projetos de lei, tais como o “Escola Sem Partido”, a tentativa de criminalização generalizada do aborto no Brasil e nos enfrentamentos a que estamos assistindo em torno da famigerada “ideologia de gênero”. Em outros trabalhos (MATOS; PINHEIRO, 2012) estabelecemos os contornos do debate a respeito dos importantes processos em curso de destradicionalização e modernização societária e política ao redor do mundo (HEELAS; LASH; MORRIS, 1996; LUKE, 1996; ADAM, 1996) que também têm/tiveram incidência na sociedade brasileira, e este é, portanto, o pano de fundo das considerações deste capítulo. Aqui vamos lançar mão da análise comparada de dados oriundos dos surveys realizados com as delegadas das 3ª e 4ª CNPMs e também de outra pesquisa de survey, esta realizada com uma amostra de 2.002 eleitores brasileiros, aplicada em outubro de 2010 no âmbito do Consórcio Bertha Lutz (CBL). Participamos dessa pesquisa e àquela época foi elaborado um conjunto de indicadores sobre conservadorismo político, confiança em instituições e na democracia, além de outros que visaram mensurar aspectos e dimensões do tradicionalismo de gênero e raça nos espaços públicos e privados no Brasil. O presente trabalho pretende, a partir da segunda parte dessas informações do survey com eleitores de 2010, comparar as respostas dessa pesquisa com as respostas das delegadas das CNPMs. E, na sequência, comparar também as respostas das duas conferências nacionais em relação aos valores (2011 e 2016). Conforme já se sabe, durante as gestões Lula e Dilma, a ampliação dos mercados de trabalho e consumo, combinada à distribuição de renda e à mobilidade social, criou novas dinâmicas socioeconômicas para o Brasil. Pode-se dizer que esse dinamismo, ao afetar as percepções, atitudes e comportamentos, afetou também valores. Além do mais, importa destacar que os movimentos feministas, de mulheres, LGBT e étnico-racial, ao menos desde os anos 1970 (com aprofundamento no período mais recente após a Constituição Federal de 1988 – CF/88), têm funcionado na nossa sociedade política como verdadeiras forças democratizadoras, inclusive dos valores, revendo e produzindo novos padrões
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de comportamentos. Podemos levantar a hipótese de que a dinâmica combinada desses dois grandes eixos de transformações e mudanças – a expansão e avanço do ciclo econômico, juntamente com o fortalecimento e expansão das forças mobilizadoras dos movimentos feministas, de mulheres, movimentos LGBT e étnico-raciais – foi responsável por expandir nosso universo cultural, normativo, atitudinal e ético-moral, e essas transformações nos conduziram aos desafios da construção de novos valores em relação aos costumes tradicionalmente violentos associados à dominação patriarcal e racial/étnica. Os retrocessos que estamos experimentando no momento atual brasileiro podem ser compreendidos, inclusive, como formas de expressão moral, fortemente reativas aos “avanços” nesses valores a que assistimos nas duas últimas décadas no Brasil: a entrada maciça das mulheres nos bancos universitários e no mercado de trabalho a partir dos anos 1960, a Lei do Divórcio em 1977, a discussão sobre reprodução assistida e uso de barrigas de aluguel nos anos 1980, as várias mudanças para mulheres e população negra, indígena e quilombola promovidas pela CF/88, a promulgação da Lei Maria da Penha em 2016, as cotas para pessoas negras nas universidades, o casamento homoafetivo e a autorização para a adoção por parceiros do mesmo sexo, as reservas de vagas em concursos e carreiras para pessoas negras, o uso de nome social são alguns exemplos desses “avanços” relativos à pauta/agenda pública de gênero e raça/etnia. Após o processo de democratização brasileira, que vem se consolidando desde 1985, a primeira década deste início de século nos trouxe a “novidade” das disputas que giram em torno das questões de gênero, raça/etnia e sexualidade, que vêm, muito recentemente, ganhando centralidade pública sem paralelo na recente história democrática brasileira. A democratização brasileira gerou também a vontade e a busca de igualdade política entre pessoas e entre grupos. Para além da luta dos trabalhadores, talvez as mulheres, as pessoas negras e indígenas sejam os expoentes que mais reivindicaram o espaço público brasileiro com vistas a reverter quadros e valores históricos de opressão, violência e discriminação. A criação das Secretarias especiais, a exemplo da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), ambas de 2003, possibilitou, no plano federal, que tais questões fossem alçadas ao nível ministerial e passassem a estar presentes, de forma mais explícita, no cerne das políticas públicas. A realização das quatro Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres (duas delas analisadas aqui) mobilizou centenas de milhares de brasileiras interessadas em mudar o quadro de desigualdades e de exclusão societária. Dessa forma, as muitas recentes transformações econômicas, políticas, legais, institucionais e culturais vividas pelo Brasil nos últimos 30 anos trouxeram
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desafios de transformações também no campo dos costumes, dos comportamentos e dos valores com vistas a se construir uma sociedade efetivamente pautada numa “ética da igualdade”. Conforme afirmam Bandeira e Batista (2002): Às portas do novo século a sociedade em geral torna-se cada vez mais consciente das diferenças e multiplicidades sociais emergentes que a compõem, bem como da necessidade de regular os vários aspectos envolvidos nos relacionamentos sociais decorrentes dessas diferenças. Isso se traduz em uma identificação quase obsessiva de reivindicações que estabelecem novas linhas de demarcação no domínio das interações sociais. Estas podem ser susceptíveis de regulação com base em novos valores que pretendem gerar uma “ética de igualdade”, baseada no respeito (moral) e no reconhecimento (direito) das diferenças e dos pluralismos, que dependa cada vez menos de leis e procedimentos formais (BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 119, grifos nossos).
Essa busca por reconhecimento das diferenças de gênero, raça e etnia com vistas a se edificar finalmente no Brasil uma ética da igualdade é o motor de muitas das transformações no campo das percepções e valores. Além do mais, conforme salientado, as transformações nas formas de interação e o impacto das mídias (sejam as mídias mais tradicionais, sejam as novas mídias sociais) têm sido efetivamente responsáveis, frequentemente, por pautar os principais assuntos debatidos e difundidos sobre essas agendas, fazendo com mais frequência a discussão a respeito dos comportamentos tradicionais e estereótipos de gênero e raça. Essas forças mobilizam mudanças nos padrões de atitude e percepção em termos de gênero e raça/etnia da população. Estes são pautados tanto pela grande mídia quanto pelo ativismo on-line, sendo a internet hoje fonte fundamental de informação da nossa população. Trata-se de formas recentes de manifestar uma forma ativa de desconstrução da opressão e do preconceito de gênero e étnico-racial. Ainda nas palavras de Bandeira e Batista (2002): Diversas manifestações de afirmações identitárias, declarando o orgulho de ser negro, de ser homossexual, de ser mulher, de ser indígena, entre outras, denunciavam a existência de preconceito, discriminação e exclusão nas várias esferas da sociedade e preencheram as agendas das reflexões socioantropológicas. Marchas e declarações colocavam a nu a presença inquietante da violência nas relações sociais, como também reações se manifestavam contra os sujeitos-objetos de violência. De fato, os diversos movimentos tentavam enfrentar as atribuições identitárias negativas, opondo, ao sentimento de vergonha e do silêncio que tinha sido construído através de sociabilidades baseadas na negação da alteridade, o sentimento de orgulho. O sentimento de vergonha que se desejava combater, por ser homossexual, negro, mulher, velho, indígena, deficiente, pobre, entre outros, revelava a luta contra a
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atribuição social de um valor negativo à diferença do outro: o preconceito (BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 125, grifos nossos).
Nesse contexto de transformações intensas, tivemos a oportunidade única de ter participado e organizado duas pesquisas em temporalidades distintas e com perfis igualmente diferenciados que visaram identificar, entre outros vários elementos de discussão, aspectos relevantes em termos de transformação nos valores de gênero e raça/etnia no Brasil. A pesquisa realizada com o eleitorado em 2010, em algum grau, vai nos oferecer um pano de fundo comparativo em termos dessas percepções para compreender o lugar que as delegadas nas duas últimas CNPMs ocupam em termos desses valores. Seria possível afirmar que as delegadas que frequentaram as duas últimas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres têm percepções sobre gênero e raça diferenciadas das percepções do eleitorado brasileiro? Ou seja, seria possível identificar percepções conservadoras e também tradicionais no que tange às relações de gênero e raça para o eleitorado no Brasil e percepções de gênero e raciais mais progressistas e destradicionalizadas entre as mulheres delegadas da 3ª e 4ª CNPMs? Este tipo de percepção e de valores é afetado por algum outro tipo de variável sociodemográfica, tal como escolaridade, renda e religião, por exemplo? Como? Quais são, afinal, as principais variáveis que condicionam estes tipos de percepção em nosso país e também entre as delegadas investigadas nesta pesquisa? Essas serão algumas das questões norteadoras deste capítulo. Antes de apresentarmos os dados empíricos e suas análises, faremos ainda um breve incursão teórica numa moldura que enquadra, de forma mais abrangente, os argumentos e as análise que serão empreendidas dos dados. A parte final deste capítulo retomamos esses enquadramentos e teorias para recuperarmos algumas pontes de interpretação para esse processo dinâmico de transformação nos valores de gênero e raça/etnia no Brasil.
Teorias da destradicionalização e da modernização societária Este capítulo parte da constatação da existência de um processo em curso de destradicionalização societária (HEELAS; LASH; MORRIS, 1996), inclusive no Brasil – o foco dessa investigação –, que envolve uma mudança do lugar da autoridade “de fora” para “dentro” e refere-se ao declínio da crença em uma ordem natural e preestabelecida sobre as coisas, em uma ordem estável e mesmo imutável (como foi pensado incialmente o patriarcado e uma sociedade de segregação
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racial e étnica, por exemplo). Seriam os sujeitos que passariam a ser chamados a exercer a “sua” autoridade em face da desordem e da contingência da “modernidade reflexiva” ou tardia (HEELAS; LASH; MORRIS, 1996). Entre os muitos autores que elaboram considerações a respeito dessas transformações, é possível identificar a experiência de duas grandes teses que vamos muito rapidamente resumir aqui. Elas podem conformar o grande pano de fundo dos debates relacionados à busca de uma ética societária e padrões de ação política, finalmente, fundada em parâmetros concretos de igualdade de gênero e étnico-racial. A primeira tese insiste em destacar a presença do fim da tradição; trata-se de uma tese “triunfalista” e/ou “radical”, em que os principais interlocutores que defendem essa posição (THOMPSON, 1996; GIDDENS, 1991) vão relevar a chamada condição “pós-moderna” que suplantaria e estaria baseada na erosão da tradição. Tratar-se-ia de uma mudança radical sem precedentes em relação a transformações de outras eras, em que a destradicionalização envolveria uma substituição das vozes externas e supraindividuais de autoridade, controle e destino, por vozes internas, subjetivas. Tais autores destacam a transição em curso e elencam algumas características societárias que estariam sendo fortemente transformadas e/ou substituídas, tais como: um ambiente societário mais fechado (frio, repetitivo, ritualizado) que seria substituído por outro mais aberto (experimental, revisável); um tipo de percepção da ordem como algo relacionado ao destino (pré-ordenado) por oposição à sua conversão numa situação de escolha (reflexividade); a ênfase recaída também sobre processos movidos pelas necessidades que seriam substituídos pela contingência; um padrão de experiência social movido pela certeza de que viria a ser substituído por outro cujo caráter é de incerteza; a experiência da segurança sendo substituída pela de risco; a experimentação de uma cultura diferenciada (organizada) que estaria sendo substituída por uma espécie de cultura “differrida” (desorganizada e sem um único centro); de uma ênfase sobre o self para a sensibilidade de um permanente descentramento do sujeito; a passagem de uma ótica política das virtudes para outra vocalizada pelas preferências. Nesta tese, as culturas tradicionais seriam percebidas e interpretadas como dominadas pelo “destino”, envolvidas, excluindo as possibilidades de “escolhas” efetivamente subjetivas. Trata-se, pois, da ênfase sobre uma ordem comunal/coletiva/heterônoma/sociocentrada para a experiência de uma ordem individual/ subjetiva/autônoma/centrada na reflexividade dos sujeitos: são eles que precisam selecionar e escolher entre vozes morais e estéticas/estilísticas diferenciadas (o papel do social/cultural é reduzido a favor da construção dos próprios padrões de boa vida).
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A segunda tese preconiza, por sua vez, um movimento dinâmico de coexistência entre tradição e destradicionalização (manutenção da tradição, retradicionalização e construção de novas tradições). Representam essa corrente autores como Luke (1996) e Adam (1996), que tentam assinalar que aquilo que estaríamos experimentando seria um movimento de competição, disputa, interpenetração e interjogo de processos complexos de manutenção das tradições, reinvenção e reconstrução destas, por meio de mudanças trazidas pelas complexidades multivocais dos nossos tempos. As pessoas viveriam, assim, em tensão permanente, afetadas por conflitos entre vozes externas de autoridade (religiosas, culturais etc.) e outras vozes que emanam de seus próprios desejos, expectativas e aspirações. Dessa forma, a tradição passa a ser compreendida como aberta aos processos de agência humana, sendo, pois, permanentemente reconstruída, reinterpretada, reinventada. As culturas destradicionalizadas existentes seriam percebidas e interpretadas como contingentes e não excluiriam as possibilidades de “escolhas” subjetivas, mas não seriam interpretadas como resultado sistemático do colapso das vozes de autoridade socioculturais. Na prática, apesar da linguagem da autonomia, ética da igualdade e da escolha, seríamos todos controlados por rotinas, regras, procedimentos, regulações, leis, escalas, costumes etc. Dessa maneira, os tempos que estaríamos vivendo seriam de mistura de várias trajetórias possíveis, algumas mais informadas pela tradição, outras por processos mais individualizantes, outras dinâmicas sendo transformadas por reinvindicações históricas por igualdade baseada no reconhecimento das diferenças. Neste capítulo apostamos fortemente na possibilidade da afirmação dessa segunda tese. Passamos nos últimos 20/30 anos por processos relativamente estáveis de destradicionalização societária e de reconstrução dos padrões político-institucionais-legais em termos de gênero e sexualidade e menos em termos de relações étnico-raciais, mas para o momento atual, podemos falar inclusive que o backlash experimentado nesses campos é, de fato, uma fase de contenção (se não de retradicionalização) da expansão dos valores democratizadores. Voltando, então, as atenções para as relações das dimensões gênero, raça/ etnia e sexualidade – o campo crítico-emancipatório das relações de gênero (MATOS, 2008) –, entende-se “gênero”, aqui, como um campo estruturado e estruturante, uma construção social e política que determina relações entre os homens e as mulheres, mas certamente não numa perspectiva unidirecional: da exclusividade da dominação patriarcal (dos homens sobre as mulheres). Quando se mencionam as relações de gênero tradicionais, geralmente são imaginadas relações assimétricas, verticalizadas e hierárquicas de poder entre homens e mulheres, em que “o” homem domina e “a” mulher é subalternizada. O melhor exemplo de uma típica relação nesse formato é o próprio patriarcado que assenta suas
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bases na dominação e na hegemonia social e política estabelecida e cristalizada como tradicionalmente masculina. As relações de gênero destradicionalizadas, por sua vez, apresentariam uma miríade de outras possíveis formas de interação ético-político-sociais, em que predominariam, então, a presença e a sensibilidade/ valoração de relações desta vez mais horizontalizadas, simétricas, democráticas e igualitárias entre os gêneros, raças e distintas expressões da sexualidade. O preconceito, usualmente incorporado e acreditado a partir das percepções arraigadas nos valores que incorporamos é, nos termos deste trabalho, uma das molas centrais e um reprodutor eficaz da violência, da discriminação e da exclusão e, portanto, da violência. Os estereótipos ou os estigmas (ambas são formas de violência simbólica) relacionados às dimensões de gênero e raça/etnia seriam, assim, uma manifestação do tradicionalismo de gênero, raça e etnia e estariam referidos a um conjunto muito arraigado de crenças sobre os atributos pessoais “mais adequados” social, política e culturalmente a homens e mulheres, brancos e negros, homo e heterossexuais, sejam estas crenças individuais ou compartilhadas. Geralmente, os estereótipos e estigmas são fortemente associados a relações vividas, experimentadas de um modo historicamente tradicional e também historicamente colonial. Neste capítulo, tradicionalismo de gênero, raça e etnia refere-se à presença de padrões de percepção e de sensibilidade moral e ética – portanto normativos, valorativos –, de caráter fortemente tradicional em relação às interações no âmbito do sistema de relações de gênero, de raça e de sexualidade em nosso país. Os padrões de tradicionalismo de gênero, por sua vez, são entendidos como fenômenos que costumam ser operados por aquilo que a literatura pertinente já cunhou como “masculinidades hegemônicas” (CONNEL, 1995),3 em oposição às “feminilidades subalternas”. No escopo de um modelo binário, tal polaridade tradicional se expressa entre a mulher/cuidadora, dona de casa, afetiva, subjetiva e também social e culturalmente responsável pelos filhos e união da família, em oposição e contraste ao homem/provedor, chefe da casa, financeiramente responsável pela família, sendo que a mesma leitura pode ser desdobrada para os eixos de raça e sexualidade. Este script ou roteiro tradicional tem o poder, cognitiva e emocionalmente importante de estabilizar, orientar e nortear as percepções, bem como ações práticas no mundo, portanto, a capacidade de reconstruir ou manter sentidos que orientam tais ações. 3 É possível encontrar autores que constroem argumentações a partir do eixo do seguinte outro binarismo (por complemento ou suplemento à oposição clássica entre masculino e feminino): trata-se da discussão estabelecida entre masculinidade hegemônica por oposição à masculinidade subordinada ou subalterna (CONNEL, 1995).
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Permanece, contudo, ainda em aberto no país o que seriam aqueles padrões de interação e de sociabilidade de gênero alternativos e/ou mais destradicionalizados em relação a este modelo. Parece claro que estes estão em construção. Do ponto de vista das relações afetivo-sexuais, em outro momento, já foram feitas considerações substantivas sobre as “reinvenções dos vínculos amorosos” (MATOS, 2000) que recortam experiências claras desta natureza, assim como sobre o tema das “masculinidades contra-hegemônicas ou destradicionalizadas” (MATOS, 1998). Além disso, esse processo em construção tem como poderosos aliados os movimentos organizados de mulheres e, sobretudo, os movimentos feministas. Nesses espaços vêm sendo reconstruídas formas de sociabilidade e de cooperação solidárias entre mulheres e entre mulheres e homens, assim como entre diferentes outros atores dos movimentos sociais. Os espaços das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres podem ser entendidos como um loccus onde essas relações são estabelecidas. Em outro artigo (MATOS, 2010), indicou-se, justamente, a possibilidade de se considerar que os feminismos no Brasil estariam experimentando uma “quarta onda”, sendo que uma de suas mais recentes e principais características é a construção de circuitos de difusão feministas operados a partir de distintas correntes horizontais de feminismos – negro, acadêmico, lésbico, masculino etc. – e entre diferentes movimentos sociais. Nesse sentido: Se erigindo como algo que pode ser descrito como um movimento multinodal de mulheres ou a partir de diferentes “comunidades de políticas de gênero” (como tem sido mais comum se referir no Brasil), o feminismo, em parte significativa dos países da região latino-americana, na atualidade, não só foi transversalizado – estendendo-se verticalmente por meio de diferentes níveis do governo, atravessando a maior parte do espectro político e engajando-se em uma variedade de arenas políticas aos níveis nacionais e internacionais –, mas também se estendeu horizontalmente, fluiu horizontalmente ao longo de uma larga gama de classes sociais, de movimentos que se mobilizam pela livre expressão de experiências sexuais diversas e também no meio de comunidades étnico-raciais e rurais inesperadas, bem como de múltiplos espaços sociais e culturais, inclusive em movimentos sociais paralelos (MATOS, 2010, p. 85).
Para mensurar as dimensões do tradicionalismo e da destradicionalização nas relações de gênero, foram construídos indicadores que buscassem captar as percepções do eleitorado brasileiro sobre o lugar de mulheres e homens nos espaços públicos (especialmente na política e no mundo do trabalho) e nos privados
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(sobretudo no cuidado da família e filhos), bem como as percepções sobre o lugar de mulheres e homens no âmbito específico da política institucional. No que se refere à organização hierarquizada nas relações étnico-raciais, é crucial demarcar que o racismo é entendido como um fenômeno de longa duração, sustentado ainda na modernidade e que objetiva compreender a durabilidade da raça como um conceito social que independe do fundamento racionalista das ciências biológicas. A persistência da ideia de raça se vale de muitos dos valores e dos argumentos religiosos, biológicos, culturalistas e nacionalistas, que, muitas vezes, estão fortemente entrelaçados. Neste sentido, assim como ocorre com as relações de gênero, nas relações étnico-raciais está presente o script ou roteiro tradicional que se enraizou inequivocamente no Brasil a partir das relações de escravidão e exploração entre senhores(as) e escravos(as), largamente conhecidas e praticadas em diversos tempos e espaços, que encontravam justificação no direito de conquista – a escravização dos vencidos numa guerra – ou na religião – direito de escravizar pessoas fora do seu grupo religioso, por meio das guerras contra os “bárbaros” ou “infiéis”. A escravidão no Brasil colocou negros e negras numa condição evidente de opressão que, mesmo após a abolição, ainda se evidencia nas relações totalmente assimétricas e hierárquicas vividas por brancos(as) e negros(as) no país. Também buscou-se mensurar as percepções dos eleitores relativas a uma forma difusa de discriminação de gênero e raça e, mais especificamente, a discriminação racial focada em aspectos cognitivos.
A comparação entre o eleitorado brasileiro e as mulheres da Conferência Nacional das Mulheres de 2011 e 2016 Nesta seção do capítulo nos dedicamos a realizar algumas comparações entre as percepções apresentadas na pesquisa oriunda do Consórcio Bertha Lutz de 2010 com as respostas agregadas das delegadas nas duas últimas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres. As percepções, em ambos os surveys, foram mensuradas oferecendo-se aos(às) respondentes algumas afirmativas para que pudessem concordar (totalmente ou em parte) ou discordar (totalmente ou em parte). Trata-se, desta forma, de questões que se diferem das tradicionais questões comportamentais – o que os indivíduos de fato fizeram em determinado período de tempo; por exemplo, se trabalharam na semana referência – e de questões sociodemográficas – que dizem respeito às informações “objetivas”, tal como possuir ou não um aparelho de televisão. Nos surveys analisados neste capítulo utilizamos, portanto, as chamadas questões atitudinais, ou seja, perguntas que captam o que
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os indivíduos pensam sobre algum assunto e como avaliam determinadas questões e situações. As categorias de resposta, que variavam de “discordo totalmente” a “concordo totalmente”, com uma opção intermediária de “não concordo nem discordo” são as chamadas questões “bipolares”, em que o pesquisador assume que as respostas “opostas” têm a mesma intensidade para o entrevistado (SCHAEFFER; PRESSER, 2003, p. 76). No nosso caso, por exemplo, assumimos que pessoas que “discordam totalmente” da questão, “Principalmente o homem deve sustentar a família”, têm, nesse quesito, valores relacionados à destradicionalização de gênero diametralmente opostos àquelas que “concordam totalmente”. Apesar das limitações evidentes que essa posição metodológica carrega – principalmente porque reduz a cinco categorias um continuum infinito de possíveis percepções –, a utilização dessas categorias permite um grau bastante aceitável de comparabilidade entre temas diversos, além de ser aquela que menos causa viés às respostas (SCHAEFFER; PRESSER, 2003, p. 76). Uma ressalva deve ser feita, entretanto, com relação aos chamados aspectos cognitivos da metodologia de survey, especialmente no que tange às possíveis diferenças entre os significados inferidos pelos entrevistados e os significados pretendidos pelo pesquisador (SIMÕES, 2007, p. 244). Há um relativo consenso de que a resposta a uma questão envolve pelo menos quatro tarefas cognitivas: interpretar a questão; ativar a memória para retomar um comportamento ou opinião; formatar a resposta; e editá-la (SIMÕES, 2007, p. 244). Dessa forma, e voltando a um dos nossos exemplos, a questão “Os brancos são mais estudiosos que os negros” será interpretada de maneira distinta se vier ao final de uma bateria de perguntas sobre relações de gênero e raça – como é o caso – do que se vier ao final de uma bateria sobre as dificuldades encontradas pelas crianças no meio escolar. Temos ciência de que há especialmente dois tipos de limitação para a nossa comparação. Um que se refere às diferenças dos públicos entrevistados e outro de caráter temporal. Quanto ao primeiro, é tanto quanto evidente que o eleitorado nacional tende a interpretar as questões relativas a gênero e raça de forma distinta das delegadas das CNPMs. Isto se faz evidente, sobretudo, porque o tema enquanto pauta política é mais relevante para estas últimas do que para o brasileiro médio (pelo menos assim acreditamos). Quanto ao segundo ponto, o caráter temporal – um intervalo de 5 anos – torna o contexto um fator interveniente para a interpretação dos temas. É muito diferente, por exemplo, ser indagado sobre questões de relações de gênero num momento em que os temas ainda tinham menor saliência, como em 2011, do que em 2016, quando o tema já estava no coração do debate público – haja vista a
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forma como foi mobilizado de maneira extremamente sexista nas eleições de 2014 e na própria campanha pró-impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. Enfim, é bastante possível que, para as delegadas de 2016, o contexto tenha sido mobilizado cognitivamente para a elaboração das respostas de uma forma distinta do que para as delegadas de 2011. Sendo assim, essa observação precisa ser feita. Acreditamos, contudo, que feitas as devidas ressalvas e observações, os resultados aqui apresentados, de modo geral, podem ser considerados como um referencial empírico fidedigno do fenômeno que nos propusemos a observar e explicar. Isto porque, além do rigor com que a pesquisa foi conduzida – desde a formulação do questionário, passando pela sua aplicação e terminando na análise dos dados –, o nosso principal objetivo está na compreensão plausível de valores que orientam condutas, e não no sentido último que carregam. Posto isto, vamos às questões. Nos dois bancos de dados identificamos um total de sete variáveis com elevado grau de comparabilidade que foram divididas segundo algumas dimensões analíticas já discutidas em maior detalhe por Matos e Pinheiro (2012). A primeira delas foi o que chamamos de “Tradicionalismo de gênero no espaço privado”, contendo as seguintes questões: • Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010): • O trabalho doméstico é tarefa da mulher. • O homem deve ser o principal responsável pelo sustento da família. • Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016): • Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho doméstico. • Principalmente o homem deve sustentar a família. Os resultados comparativos sobre estas duas frases, que se referem, então, ao tradicionalismo de gênero no espaço privado, encontram-se nas tabelas 1 e 2 abaixo.
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Tabelas 1 e 2. Questões relativas ao tradicionalismo de gênero no espaço privado Frase 1: Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho doméstico Eleitorado Nacional
CNPMs
Masculino
Feminino
Total
2011
2016
Total
Discorda totalmente
14,3
11,2
12,7
0,3
1,7
1
Discorda em parte
21,2
18,8
20
0,3
0
0,1
N.C.N.D.*
13,2
12,4
12,8
0
0
0
Concorda em parte
40,3
48,2
44,5
2,6
2,8
2,7
Concorda totalmente
10,9
9,4
10,1
96,8
95,5
96,2
Frase 2: É principalmente o homem quem deve sustentar a família Eleitorado Nacional
CNPMs
Masculino
Feminino
Total
2011
2016
Total
Concorda totalmente
28,2
21,8
24,8
3,5
1,4
2,4
Concorda em parte
22,3
23,2
22,8
6,3
3,1
4,7
N.C.N.D.
11,3
13,5
12,4
5,5
0
2,7
Discorda em parte
28
31,4
29,8
17,3
13,6
15,4
Discorda totalmente
10,2
10,1
10,2
67,4
81,9
74,7
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM) e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM). * N.C.N.D. significa: “Não concorda e nem discorda”
Para ambas as questões, o primeiro ponto a se observar é a enorme diferença entre a média nacional (eleitorado) e a média referente às respostas das delegadas nas CNPMs. Com relação à primeira questão, aproximadamente um terço do eleitorado brasileiro (32,7%) discorda (em parte ou totalmente) com a afirmação de que o trabalho doméstico deva ser dividido igualmente, enquanto para as delegadas esse percentual sequer chega a 2,0%. Isso revela um padrão de percepção bem mais destradicionalizado das delegadas das conferências, mesmo se comparamos os percentuais dessa discordância com as mulheres eleitoras (que chegaram a 30% de discordância da frase). Para a segunda questão, então, temos que o nível de conservadorismo no âmbito nacional é ainda maior: praticamente metade dos(as) entrevistados(as) eleitores (47,6%) acredita que o sustento da família deva ser função principal do homem, ao passo que, para as delegadas, o percentual da concordância com a frase está apenas em 7,0%.
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O segundo aspecto se refere à mudança nos valores das delegadas. Apesar de demonstrarem um maior conservadorismo para a questão do sustento do que para a divisão do trabalho doméstico em ambos os anos, a tendência é de declínio para o primeiro. A diferença entre as conferências não é desprezível: delegadas entrevistadas na 4ª CNPM apresentaram padrões ainda mais destradicionalizados nessa percepção do que as delegadas da 3ª CNPM. Vejamos: os percentuais de discordância da primeira frase passam de módicos 0,6% para 1,7% e os percentuais de concordância com a segunda frase despencam pela metade: de 9,8% para 4,5%. Ou seja, nesse aspecto específico do conservadorismo de gênero nas esferas privada × pública (veremos mais adiante que esse padrão será constante para outros indicadores), o eleitorado masculino é o mais conservador, seguido do eleitorado feminino, das delegadas de 2011 e, finalmente, das delegadas de 2016. De um modo geral, portanto, podemos dizer que o tradicionalismo de gênero no espaço privado em nível nacional em 2010 era aproximadamente 5 vezes maior do que entre as delegadas. A distância entre as delegadas e a média nacional de 2010 aumentou ainda mais, para situar-se em torno de 10 vezes (embora se deva salientar que essa comparação não incorpora possíveis mudanças no perfil médio da população brasileira entre 2011 e 2016), uma vez que, comparando as duas conferências, identificamos que ocorreu uma redução de valores tradicionalistas ao longo do período (entre 2011 e 2016). Uma segunda dimensão analisada foi a percepção sobre discriminação difusa de gênero e raça. Embora as questões não sejam exatamente as mesmas nas duas pesquisas, acreditamos que elas expressam razoavelmente o mesmo tipo de valores e orientação de conduta. • Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010) • Mulheres negras sofrem mais preconceito que as brancas. • Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016): • As mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem discriminação em função da raça/cor.
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Tabela 3. Preconceito de gênero e raça – discriminação difusa Frases 3 e 4: Mulheres negras e indígenas sofrem mais preconceito que as brancas – CBL/Ibope/ As mulheres negras e indígenas sofrem discriminação em função da sua raça/cor – Nepem/SPM Eleitorado Nacional CNPMs Masculino
Feminino
Total
2011
2016
Total
3,1
2,5
2,8
0,6
2,5
1,6
Discorda em parte
14,3
12,7
13,5
0,9
2,0
1,4
N.C.N.D.
12,9
13,9
13,4
0,6
0,0
0,3
Concorda em parte
24,9
22,4
23,6
14,5
9,9
12,2
Concorda totalmente
44,8
48,4
46,7
83,5
85,6
84,5
Discorda totalmente
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM) e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM).
O resultado aqui é bastante claro e simples. Enquanto praticamente a totalidade das delegadas (96,7%) acredita que a raça/etnia é uma clivagem que perpassa a dimensão de gênero e atua como mecanismo independente de (re)produção de desigualdades/discriminação, aproximadamente 1/3 da média nacional não concorda com essa posição. Vale notar, contudo, que mesmo que aparentemente pequeno, há um aumento do percentual de delegadas que passam a discordar dessa posição entre 2011 e 2016 (1,5% e 4,5%, respectivamente). Embora possa parecer pouco expressivo (aumento de apenas 3 pontos percentuais), o dado parece indicar um aumento da negação do racismo mesmo entre as delegadas – algo que, por sinal, se confirma nas análises multivariadas que apresentaremos em maior detalhe na seção seguinte. De fato, as questões subsequentes permitem compreender melhor esse quadro. A terceira dimensão analisada foi aquela que nomeamos como “Preconceito de raça focada em aspectos cognitivos/motivação” e a mesma foi abordada da seguinte forma, partindo-se das seguintes frases: • Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010) • Os brancos, em geral, são mais estudiosos do que os negros. • As crianças negras têm mais dificuldade para aprender. • Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016): • Os(as) brancos(as), em geral, são mais estudiosos(as) que os negros(as). • Crianças negras, por causa de sua raça, têm mesmo mais dificuldades para aprender.
150
A rigor, do ponto de vista teórico, as duas frases supracitadas expressam categorias analíticas distintas: cognição e motivação. Ao sugerir que a raça determina a facilidade/dificuldade do aprendizado, supõe-se uma relação entre o grupo racial e o desenvolvimento cognitivo aos moldes das teorias racistas biologizantes e eugênicas do início do século XX (STEPAN, 2005). Num outro patamar, a relação entre o grupo racial e “ser estudioso” expressaria, afinal, o preconceito referente à motivação que orienta a ação social, seja pelas características individuais do sujeito, seja pela estrutura familiar na qual a criança está inserida. De fato, muito da percepção coletiva de que alguns grupos são menos motivados e inferiormente cognitivos do que outros – e, portanto, caracterizados, de certa forma, como “desviantes” (MERTON, 1968) – deriva em grande medida de desigualdades entre as metas culturais (o sucesso educacional, por exemplo) e os meios institucionais para alcançá-los (a desigualdade de acesso ao sistema educacional). Nesse caso, a percepção coletiva atribui às características adscritas do grupo (raça, etnia etc.) algo que lhe é inerentemente externo, ou seja, uma propriedade da estrutura social, no mais claro exemplo de rotulação e acusação (BECKER, 2009). As tabelas abaixo mostram que, no plano nacional, essa rotulação de caráter conservador ocorre em níveis semelhantes tanto para o nível da motivação quanto da cognição. Veja-se que o percentual de pessoas que discorda (em parte ou totalmente) das questões é razoavelmente semelhante, girando em pouco mais de 70%. Já entre as delegadas, a estrutura da percepção é fundamentalmente distinta. Se, por um lado, é verdade que o grau de destradicionalização nessa percepção é consideravelmente superior à média nacional, ele o é muito mais pronunciado em relação aos aspectos cognitivos do que em relação à motivação. Esse resultado é interessante porque demonstra que, por ser geralmente considerado em linguagem nativa um resultado mais “social” do que “biológico”, a dimensão motivacional – quando comparada à cognitiva – talvez encontre um conjunto de maiores barreiras para se destradicionalizar. E isso parece ocorrer ainda mesmo entre as delegadas que, como temos visto, apresentam um perfil de percepção muito menos conservador (ou mais destradicionalizado) do que a média nacional dos(as) eleitores(as) brasileiros(as). em todos os sentidos.
151
Tabelas 4 e 5. Preconceito de raça focada em aspectos cognitivos/motivação Frase 5: Os(as) brancos(as), em geral, são mais estudiosos(as) que os(as) negros(as) (cognitivo) Eleitorado Nacional CNPMs
Masculino
Feminino
Total
2011
2016
Total
Concorda totalmente
4,3
2,3
3,3
2,6
1,4
2
Concorda em parte
7,7
6,1
6,9
3,8
0,9
2,3
N.C.N.D.
13,7
11,8
12,7
3,2
0,1
1,6
Discorda em parte
67,1
73,8
70,7
4,4
5,8
5,1
Discorda totalmente
7,1
5,9
6,5
86
9,8
88,9
Frase 6: As crianças negras têm mais dificuldades para aprender (motivacional) Eleitorado Nacional CNPMs
Masculino
Feminino
Total
2011
2016
Total
Concorda totalmente
5,8
4,8
5,3
9,3
12,8
11,1
Concorda em parte
8,7
8,5
8,6
6,7
6,8
6,8
N.C.N.D.
12,9
12,2
12,5
2,9
0
1,4
Discorda em parte
65,9
68,1
67
9,6
7,7
8,6
Discorda totalmente
6,7
6,4
6,6
71,4
72,6
72
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM) e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM)
Por fim, a última dimensão que comparamos as duas pesquisas foi aquela que na pesquisa do CBL denominamos por “Destradicionalização de gênero”. As perguntas em cada survey foram as seguintes: • Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010) • Sou a favor da união de pessoas do mesmo sexo. • A mulher deveria ter o direito de decidir se continua uma gravidez ou se faz um aborto. • Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016): • Relações afetivas/sexuais devem necessariamente acontecer somente entre um homem e uma mulher. • Opinião sobre aborto (legislação); OBS: essa frase foi apenas para a 4ª CNPM (2016). As tabelas abaixo apresentam a distribuição das respostas a essas frases em termos de sua discordância ou concordância (totalmente ou em parte). Novamente, as delegadas apresentam valores percentuais com níveis bastante superiores de destradicionalização do que a média nacional no eleitorado brasileiro.
152
Também em ambos os casos, os homens apresentam um perfil consideravelmente mais conservador do que as mulheres. Tabelas 6 e 7. Destradicionalização de gênero Frase 7: Relações afetivas sexuais devem ocorrer somente entre um homem e uma mulher Nacional
CNPM
Masculino
Feminino
Total
2011
2016
Total
Concorda totalmente
4,2
4,2
4,2
16,9
9,7
13,3
Concorda em parte
51,1
42,5
46,6
10,2
4,9
7,5
N.C.N.D.
22,8
20,3
21,5
4,7
0
2,3
Discorda em parte
11
14,1
12,6
9,6
10,9
10,2
Discorda totalmente
10,9
19
15,1
58,7
74,5
66,7
Frases 8 e 9: Questões sobre aborto A mulher deveria ter o direito de escolher se Opinião sobre a legislação do aborto continua uma gravidez ou se faz um aborto Masculino Feminino Total CNPM 2016 Total Discorda
42,9
45,7
47,3
Proíbe totalmente o aborto
8,5
N.C.N.D.
15
13,6
14,2
Deixa a lei como está
29,5
Concorda
35,8
40,7
38,4
Libera totalmente
62,1
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM) e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM)
Quanto à primeira questão, mais especificamente, a mudança da posição das delegadas entre 2011 e 2016 é, como já observamos nos indicadores analisados anteriormente, bastante expressiva. O percentual delas que rejeitam a opinião de que se devem restringir as relações sexuais e afetivas a homens e mulheres era de 70%, em 2011, e subiu para mais de 85%, em 2016. Para a média nacional, os valores não ultrapassam 22% para os homens e 35% para as mulheres. Para a segunda questão, apesar de se tratarem de perguntas distintas, o padrão é razoavelmente semelhante. Mulheres eleitoras no plano nacional concordam com a liberdade de escolha referente ao aborto em proporção superior aos homens eleitores (40,7% contra 35,8%, respectivamente); enquanto 62,1% das delegadas são da opinião de que o aborto deva ser totalmente liberado. Ao fim e ao cabo, em que medida podemos dizer que o perfil das delegadas é diferentemente da média nacional com relação às diferentes dimensões de destradicionalização discutidas até aqui? Que haveria uma diferença, isto já
153
era razoavelmente esperado, já que estamos tratando das CNPMs de um público atento, especializado e comprometido com os direitos das mulheres e sua conformação em políticas públicas. O mais importante, contudo, foi demonstrar, a partir da comparação entre as duas pesquisas (em que pesem os debates metodológicos em torno das possibilidades metodológicas dessa comparação), que essa diferença não é apenas bastante pronunciada, mas que tem aumentado para um grupo específico dessas mulheres ao longo do tempo e nos períodos aqui analisados (2010, 2011 e 2016). A se notar as constantes manifestações de conservadorimos que temos observado no país, especialmente a partir de 2013, é possível irmos ainda mais além. Embora não tenhamos nenhum dado mais recente que nos permita uma rigorosa comparação com o survey nacional do CBL, realizado em 2010, há indícios fortes de que, para determinadas questões, o grau de destradicionalização de valores do brasileiro médio vem sofrendo retrocessos. Veja-se, por exemplo, que tem aumentado o percentual de pessoas a favor da pena de morte4 e da intervenção militar.5 Também não seria de se surpreender que, na média, tenha havido uma reação considerável com relação à destradicionalização de gênero e raça, haja visto as constantes manifestações contrárias às discussões do campo de gênero e feminista e que estão se aglutinando em torno do que se tem tratado pelo senso comum como “ideologia de gênero” e também em relação à rejeição das políticas de corte racial, em especial das cotas universitárias. Diante desse cenário, é bastante plausível sugerir que o processo em curso de destradicionalização nos valores relacionado a gênero e raça das delegadas tem aumentado ao longo do tempo e, em contrapartida, esse processo de mudança tem diminuído (ou até se revertido) para a média da nossa população. Isto torna ainda mais importante reconhecer o lugar político e o papel deliberativo que se tem avançado nas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, já que sabemos que estamos lidando com um segmento populacional bem particular em termos de dinâmicas culturais e valorativas de gênero e raça; trata-se de mulheres mais destradicionalizadas nessas duas esferas do que a média da nossa população/eleitorado brasileiro. Estas considerações e hipóteses igualmente evidenciam o quanto, no âmbito das transformações hoje em curso, tanto no espectro político 4 Dados da Pesquisa Datafolha publicada na Revista Exame em 8 de janeiro de 2018. Segundo a pesquisa, entre 2008 e 2018, o percentual de pessoas favoráveis a penas de morte subiu de 48% para 58%. 5 Segundo dados do Latin American Public Opinion Project, da Universidade de Vanderbilt, o apoio a uma intervenção militar para conter a corrupção no Brasil subiu de 36,0% para 48,0% entre 2012 e 2014. Disponível para consulta no site: / Acesso em: jan. 2018.
154
quanto cultural brasileiro, temos um gigantesco descompasso entre segmentos e públicos da população brasileira. Isso nos mostra, um pouco melhor, a magnitude dos desafios que se descortinam para os próximos anos no Brasil. Na seção seguinte analisamos, em maior detalhe, o que mudou, o quanto mudou e por que mudaram no que tange a esses valores para as delegadas das duas CNPMs. Os resultados que apresentamos não apenas corroboram em boa medida o que temos argumentado até aqui, mas também nos permitem apreender quais seriam alguns dos mecanismos que têm contribuído para alavancar essas tendências. Vejamos.
Comparando as percepções das delegadas nas duas edições da CNPMs: gênero, discriminação e mecanismo de transformação Para analisar o processo de mudanças nas percepções e valores das delegadas entre os anos de 2011 e 2016, elaboramos dois índices. Um primeiro que chamamos de Índice de Relações de Gênero nas Esferas Privada × Pública (IRGPP) e um segundo sobre percepções difusas acerca da Discriminação Difusa de Gênero e Raça (IDDGR). Esses dois índices refletem, de forma indiscutível, a aposta feita teoricamente na segunda tese apresentada nas seções anteriores sobre movimentos e dinâmicas de modernização e destradicionalização societária (a tese da coexistência entre tradição/conservadorismo e destradicionalização): aquela que enfatiza a presença sincrônica de pessoas com percepções tradicionais/conservadoras e destradicionalizadas. Assim, os nossos índices foram construídos metodologicamente da seguinte forma: primeiramente, realizamos a análise fatorial de componentes principais com todas as variáveis relativas às percepções com vistas a se identificar o padrão de associação existente entre as diferentes respostas. Posteriormente, selecionamos as variáveis que apresentavam um padrão de associação mais consistente na média dos anos aqui analisados e construímos, a partir daí índices de somatória simples6 formados por 5 questões cada um. As opções de resposta foram codificadas em valores entre 1 e 5, assumindo “1” quando designavam maior tradicionalismo, e “5” quando significavam maior nível de “destradicionalização”. 6 Optamos por não utilizar os fatores resultantes da análise fatorial como os índices em si mesmos pelo seguinte motivo: como o resultado da análise fatorial depende da distribuição das respostas, ele reportou fatores distintos para cada ano, de modo que os resultados não seriam, dessa forma final, comparáveis. Assim, a análise fatorial foi utilizada apenas como método exploratório da média dos anos para, a partir daí, construirmos nossos próprios indicadores pautando-nos nas respostas selecionadas. Para mais detalhes sobre métodos de construção de indicadores, ver Handbook on Constructing Composite Indicators (OECD, 2008).
155
Dessa forma, o mínimo valor possível de cada indicador é 5 (quando nas 5 questões o respondente expressa o maior grau de conservadorismo; 5 × 1 = 5); e o máximo valor possível é 25 (quando nas 5 questões a respondente expressa o maior grau de destradicionalização; 5 × 5 = 25). Posteriormente, para facilitar a leitura e a interpretação desses dados, os índices foram ajustados para valores entre 0 e 100. O quadro abaixo apresenta o conjunto das variáveis – na realidade as frases que foram perguntadas às respondentes em relação à sua concordância e discordância (totalmente ou em parte) – utilizadas para a construção de cada índice e os gráficos subsequentes, por sua vez, apresentam a sua distribuição de frequência para os anos de 2011 e 2016. Quadro 1. Variáveis (frases) dos questionários da pesquisa realizada nas 3ª e 4ª CNPMs utilizadas para a construção dos dois índices Índice de relações de gênero Uma mãe que trabalha fora pode dar à sua família um menor nível de vida Principalmente o homem deve sustentar a família Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa Em briga de marido e mulher não se deve “meter a colher”. Pessoa sozinha pode criar os filhos tão bem quanto um casal que vive junto. Índice de discriminação difusa de raça e gênero Mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem discriminação em função da raça/cor Movimentos de mulheres e feministas devem incorporar o enfrentamento à lesbofobia/homofobia/transfobia como bandeiras fundamentais Mulheres afrodescendentes/negras e indígenas têm demandas específicas que devem ser contempladas nas políticas públicas Movimentos de mulheres e feministas devem incorporar também a luta contra o racismo como uma bandeira fundamental. Cotas raciais para as universidades públicas no Brasil representam um avanço social.
Gráficos 1 e 2. Distribuição das respostas – Índice de Relações de gênero nas esferas privada × pública (IRGPP)
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
156
Gráficos 3 e 4. Distribuição das respostas – Índice de Discriminação Difusa de Gênero e Raça (IDDGR)
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
No que se refere à distribuição das respostas nos nossos índices, há dois aspectos principais a se observar. O primeiro deles diz respeito às diferenças mais gerais entre os dois índices aqui construídos. Como bem se pode notar, o grau de conservadorismo é, em ambos os anos, maior com relação às questões relativas às relações de gênero (no IRGPP) do que com relação à discriminação de gênero e raça (no IDDGR). O segundo aspecto diz respeito às mudanças no tempo. Nesse ponto, destaca-se o fato de que ter havido uma tendência de diminuição do grau de conservadorismo em ambos os índices – isto se evidencia claramente no fato de que diminuiu a concentração das respostas nos valores inferiores. Mas, ao mesmo tempo, isso também evidencia um maior grau de homogeneização valorativa, uma vez que há um aumento considerável do grau de concentração nos valores mais altos (que significa maiores níveis de destradicionalização), ou seja, as delegadas passaram a ter percepções mais homogêneas entre si, nos dois índices, em 2016. Em suma, não apenas houve mudanças sensíveis na média da percepção das delegadas em relação a esses dois índices – indicando menor destradicionalização em 2011 do que em 2016 –, mas também uma mudança na distribuição, indicando menor variabilidade valorativa com relação aos temas abordados em 2016 do que em 2011. Em síntese: • As delegadas das CNPMs são mais conservadoras no que tange às relações de gênero (IRGPP) do que com relação à discriminação de gênero e raça (IRGPP).
157
• Entre 2011 e 2016, aumentou, na média, o grau de destradicionalização para ambas as dimensões. • Entre 2011 e 2016, as delegadas das CNPMs se tornaram mais semelhantes entre si com relação às percepções relativas a essas duas dimensões. De modo a explorar mais detalhadamente estas tendências e também as possibilidades de suas causas ou determinantes, estimamos modelos de regressão que buscaram identificar os efeitos de dimensões independentes sobre o comportamento dos índices aqui criados. Assim, para os dois índices – o IRGPP e o IDDGR –, foram estimados três modelos distintos: • Modelo unificado: estimado para todo o período, de modo a identificar os efeitos médios das variáveis independentes, controlando-se pela variável tempo. • Dois modelos separados, um para cada ano, em que o objetivo foi identificar se houve mudanças nos efeitos das variáveis explicativas entre 2011 e 2016. As variáveis utilizadas no modelo foram: Quadro 2. Variáveis incluídas nos Modelos de Regressão Linear Situação conjugal
Estrutura familiar
Maternidade Idade Raça Religião
Características sociodemográficas
Escolaridade Renda familiar Inserção ocupacional Educação do pai
Origem social
Educação da mãe
A seguir apresentamos os resultados dos modelos e suas implicações substantivas. A tabela abaixo apresenta os resultados para o Índice de Relações de Gênero nas Esferas Privada × Pública/IRGPP. Em primeiro lugar, o ajuste dos modelos demonstra que as variáveis explicam com maior consistência a variabilidade das percepções em 2016 do que em 2011. Em outros termos, isso significa dizer que as percepções talvez estejam mais sedimentadas, entre as entrevistadas, no último ano do que no primeiro, indicando que há um padrão mais bem
158
estabelecido entre a localização das mulheres na estrutura social, as suas características individuais e, afinal, as suas percepções.
Dimensão
Tabela 8: Modelo de Regressão Linear / MQO – Variável independente: os valores do IRGPP Modelo 2011 Modelo 2016 Variável Beta Sig Beta Sig
Beta
Sig
34,99
***
43,92
***
32,48
***
Casada
0,02
-
-0,22
-
-0,36
-
Tem Filho
-0,55
-
-1,13
-
-0,79
-
Até 39 anos
-3,47
-
-6,82
*
-5,07
*
De 40 a 49 anos
0,14
-
-5,10
-
-1,98
-
De 50 a 59 anos
0,40
-
-4,24
-
-1,88
-
Mais de 60 anos
-0,89
-
-5,97
-
-3,06
-
Raça (Branca=1)
-2,78
-
0,92
-
-0,71
-
Protestante
-14,58
***
-13,92
***
-13,18
***
Afro-brasileira
-1,96
-
-5,63
-
-2,27
-
Espírita/outra
2,32
-
-1,32
-
0,85
-
**
-5,29
*
-6,57
***
-
24,31
***
0,24
-
-
24,91
***
7,24
*
-
27,79
***
9,00
**
**
2,46
*
3,17
***
-
1,67
-
2,79
-
-
5,03
-
5,58
*
-
5,75
*
4,09
*
Constante Família
Idade (ref = até 29 anos) Raça Religião (ref = sem religião)
Católica -7,75 Fundamental -11,71 Completo Escolaridade (ref = Fundamental Médio Completo -2,54 Incompleto) Superior -1,40 Completo Renda Renda (log) 3,98 Funcionário 2,54 Público Inserção Profissional/ 4,36 ocupacional (ref Empregador = desocupado) Assalariado 1,70
Origem Social Ano (2016=1) Ajuste
Modelo Único
Autônomo
6,99
*
4,81
*
5,81
**
Educação do pai
-1,60
-
0,82
-
-0,21
-
Educação da mãe
1,43
-
0,23
-
0,86
-
20,76
***
Ano
R2
0,094
0,147
0,341
R2 Ajustado
0,157
0,205
0,320
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
159
Sobre os efeitos que se podem mensurar a partir desse modelo, de um modo geral, destaca-se a presença de um padrão que perpassa as duas edições das CNPMs, e as variáveis que se mostraram importantes para explicar a variação do índice foram, principalmente: religião (ser protestante ou católico); renda; inserção ocupacional; e educação. O efeito da religião é o mais pronunciado. Mulheres protestantes têm, na média, um índice em torno de 14 pontos inferior às que se consideram sem religião, às espíritas e às que se declararam de religiões afro-brasileiras. Para as católicas, o valor do índice gira em torno de 6 pontos. Além disso, os valores são razoavelmente constantes ao longo do tempo – a variação não é superior ao intervalo de confiança –, demonstrando que esta é uma dimensão bastante sedimentada. Não foram encontradas diferenças para as que se declaram de religiões afro-brasileiras e espírita/outra. Em síntese: o conservadorismo relativo às relações de gênero nas esferas pública e privada é muito mais pronunciado em mulheres de religião protestante e católica, conforme se poderia, de fato, esperar. Para as delegadas oriundas de religião afro-brasileiras e espíritas, a percepção mensurada nesse índice é, na média, praticamente igual à de mulheres que se declaram ateias ou sem religião. A renda foi outro fator cujo efeito se mostrou praticamente constante e também bastante elevado. Para os dois anos, 1% a mais nos rendimentos eleva o índice em torno de 0,3 ponto. A título de ilustração: duas mulheres com características semelhantes, mas com uma diferença de salarial de 50% – por exemplo, 1 e 1,5 salário mínimo, respectivamente –, a diferença entre elas será de 15 pontos a mais no índice para segunda. Destaca-se ainda que como a renda é fortemente correlacionada com o tipo de inserção ocupacional, isso talvez explique o fato de que esta última dimensão se mostrou relevante apenas para explicar a variação do índice para as assalariadas e autônomas, justamente aquelas categorias ocupacionais com maior grau de heterogeneidade de inserção laboral e, consequentemente, de rendimentos: autônomas e assalariadas, na média, demonstram menores graus de conservadorismo no IRGPP do que desocupados, por exemplo. Para as ocupações mais estáveis – profissionais de nível superior e funcionárias públicas – não foi observado efeito significativo, muito em virtude, acreditamos, do fato de que esse efeito já havia sido captado pela variável “renda”. Por fim, a escolaridade demonstrou um efeito curioso, uma vez que se fez sentir somente no ano de 2016.7 Em 2011, não foi encontrado nenhum efeito dos 7 Para avaliar a robustez deste resultado, também realizamos testes qui-quadrado entre os níveis educacionais e os valores do índice. De fato, só foi encontrada uma relação significante para o ano de
160
diferentes graus de escolaridade na variação do IRGPP. Já em 2016, o efeito não apenas existe como também se fez sentir em larga intensidade. Em comparação às pessoas com Ensino Fundamental incompleto, o índice é 24 pontos maior para aqueles com Fundamental ou Médio completo. Para aquelas com Superior completo, esse valor é de 27 pontos. Diferentemente do que se poderia esperar, contudo, a diferença entre ter ensino superior e ter médio ou fundamental completo é muito reduzida (em torno de 3 pontos), demonstrando que a educação, a partir de certo nível (completado o Fundamental), têm um efeito apenas marginal nas percepções avaliadas no IRGPP. Isso reforça, em grande medida, a hipótese relativa à homogeneização ideológica das delegadas salientada anteriormente e, mais do que isso, de que essa homogeneização depende de outros mecanismos causais que não somente a escolaridade. Tomados em conjunto, os resultados apontam na seguinte direção: • Houve um aumento do grau de destradicionalização com respeito às percepções medidas pelo IRGPP entre 2011 e 2016. • Esse aumento se deu concomitantemente a um processo de homogeneização ideológica em sentido “progressista” no ano de 2016. • Apesar disso, delegadas protestantes e católicas continuam a ter um grau significativamente mais elevado de conservadorismo nesse índice do que as demais delegadas. Nesse quesito, os resultados são praticamente os mesmos entre os anos de 2011 e 2016. • Delegadas de maior rendimento têm maiores níveis de destradicionalização e esse efeito é constante ao longo do tempo. • Somente em 2016, a educação se mostrou uma dimensão relevante para explicar a percepção das mulheres com relação ao IRGPP. • A origem social das delegadas não se mostrou relevante, em nenhum momento, indicando que os eventuais efeitos da origem de classe sobre essas percepções tendem a ser anulados pela trajetória de vida das participantes. • Tampouco a estrutura familiar – medidas pela variável de estar casada/ em união e ter filhos – se mostrou relevante neste índice. Passamos agora à análise do nosso segundo índice, referente às percepções relativas à discriminação difusa de raça e gênero, o IDDGR.
2016 (e não para 2011), reforçando o resultado dos modelos de regressão.
161
Dimensão
Tabela 9. Modelo de Regressão Linear / MQO – Variável Independente: os valores do IDDGR 2011 2016 Variável Beta Sig Beta Sig
Beta
Sig
72,03
***
72,66
0,000
74,26
***
Casada
-1,22
-
0,62
-
-0,13
-
Tem Filho
-0,41
-
2,94
-
1,47
-
Até 39 anos
-4,88
-
-4,61
-
-4,47
*
De 40 a 49 anos
-5,50
-
-5,35
-
-5,43
**
De 50 a 59 anos
1,28
-
-3,89
-
-0,97
-
Mais de 60 anos
-6,06
-
-5,53
-
-5,47
*
Raça (Branca=1)
-1,53
-
-3,70
*
-2,63
*
Protestante
-6,82
*
-14,58
***
-11,54
***
Afro-brasileira
1,84
-
-3,97
-
-1,57
-
Espírita/outra
-5,49
-
-4,80
-
-5,69
**
-8,27
**
-7,33
***
-8,75
***
8,61
-
18,62
**
10,80
**
7,54
-
13,93
**
9,55
**
8,49
*
13,46
**
9,53
**
2,59
*
1,64
-
1,88
**
-8,25
***
-2,32
-
-5,13
***
-5,52
-
-1,58
-
-2,56
-
-2,07
-
-2,96
-
-2,30
-
Autônomo
-5,51
-
0,61
-
-1,70
-
Educação do pai
-0,66
-
-0,11
-
-0,02
-
Educação da mãe
-0,30
-
0,30
-
-0,22
-
2,45
*
Constante Família
Idade (ref = até 29 anos) Raça Religião (ref = sem religião)
Católico Fundamental Completo Escolaridade (ref = Fundamental Médio Completo Incompleto) Superior Completo Renda Renda (log) Funcionário Público Inserção Profissional/ ocupacional (ref Empregador = desocupado) Assalariado
Origem Social Ano (2016=1) Ajuste
Modelo Único
Ano
-
-
R2
0,115
0,113
0,98
R2 Ajustado
0,059
0,059
0,70
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Como mostra a tabela acima, os resultados apontam para algumas semelhanças e diferenças em relação ao índice anterior. A principal semelhança talvez
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seja o fator religião e, novamente, a percepção das delegadas protestantes e católicas são os principais vetores explicativos. Delegadas adeptas a essas duas religiões apresentam níveis sensivelmente maiores de conservadorismo do que as demais. Há, entretanto, um ponto a se chamar a atenção. O efeito do conservadorismo no IDDGR aumenta significativamente para as delegadas protestantes – e ele mais do que dobra entre 2011 e 2016, saltando de -6,82 para -14,58 – enquanto permanece razoavelmente constante entre as delegadas católicas. Outro ponto de destaque refere-se à relação entre renda, ocupação (ser funcionária pública) e educação. Razoavelmente importantes em 2011, as duas primeiras deixam de ter significância em 2016 – embora deva-se destacar que o resultado para funcionárias públicas era negativo em 2011, indicando maior conservadorismo do que para as demais categorias ocupacionais. Já a escolaridade, que havia se mostrado relevante em 2011 apenas para as delegadas com ensino superior, torna-se a principal variável explicativa em 2016, incluindo-se, aí, todos os níveis educacionais. As diferenças de raça que, sem se mostrarem importantes em 2011, apresentam diferenças significativas em 2016, com as delegadas brancas tendo, na média, um grau de conservadorismo em torno de 3 pontos maior do que as delegadas pretas e pardas. Como destacamos na seção anterior, este resultado vai de encontro ao aumento, mesmo que ainda incipiente, do conservadorismo racial entre as delegadas. Por fim, vale a pena um breve comentário sobre o modelo único. Como apontado anteriormente, esse modelo nos permite captar alguns efeitos médios das duas conferências sem, entretanto, poder distinguir seu comportamento no tempo. De um modo geral, seus resultados são bastante consistentes com o que já descrevemos acima, mas há um efeito que só foi captado por ele: o da idade das delegadas. Embora não seja possível falar das tendências entre 2011 e 2016, pode-se dizer que, na média, o grau de conservadorismo aumentou com a idade. O efeito é em torno de 5 pontos negativos para cada uma das faixas da idade quando comparadas com as das delegadas mais jovens, de até 29 anos (mas é importante destacar que esse efeito não é cumulativo). Em síntese, podemos dizer que: • Houve um aumento do grau de destradicionalização com respeito às percepções sobre discriminação racial e de gênero. Mas, como para esse indicador os níveis de destradicionalização já eram razoavelmente elevados em 2011, a intensidade da mudança foi menor do que a observada em relação ao índice de relações de gênero – IRGPP. • Delegadas protestantes e católicas têm um grau consideravelmente maior de conservadorismo do que as demais delegadas, destacando-se
163
• •
• •
ainda o fato de que, para as primeiras, houve um aumento significativo de conservadorismo no IDDGR entre 2011 e 2016. Apesar de importantes em 2011 (embora não muito), renda e ocupação perderam completamente o poder explicativo nesse índice em 2016. Já a educação, cujo efeito não se pronunciara em 2011, passa a ser, em 2016, um importante fator explicativo. Delegadas com Ensino Fundamental completo ou mais têm níveis de conservadorismo muito menos pronunciados, embora deva-se destacar – tal como ocorrera com o indicador anterior – que não há diferenças significativas a partir deste nível educacional. A variável raça passou a ter um efeito não desprezível em 2016 nesse índice (o que também era esperado), com mulheres brancas apresentando resultados inferiores das pretas e pardas. De um modo geral, as delegadas mais jovens têm menores níveis de conservadorismo no IDDGR do que aquelas com idade superior a 29 anos.
A análise combinada dos resultados de ambos os Índices permite que possamos alcançar algumas conclusões mais gerais. Em primeiro lugar, como a própria análise descritiva já apontava, é patente um aumento no grau de destradicionalização racial e de gênero entre as delegadas da 3ª para a 4ª CNPM. Isto fica bastante claro não apenas no crescimento dos valores médios do índice mas, sobretudo, no fato de que eles se concentram cada vez mais nos valores superiores, evidenciando um menor grau de heterogeneidade valorativa. Em segundo lugar, vale destacar que a religião se mostrou, além de constante, o principal fator explicativo de diferenças entre as percepções dos valores aqui mensurados. Esse resultado coloca em questão o fato de que determinadas preferências religiosas – que por definição se encontram no plano da tradição – terminam mesmo por atuar como um contrapeso a processos e dinâmicas em curso de destradicionalização em termos dos valores de gênero e raça, como de fato já está largamente documentado pela literatura. Não deixa de chamar atenção, contudo, que a questão não diz respeito somente ao fato de ser ou não ser de determinada “religião”, mas fundamentalmente ao tipo de crença que é professada. Protestantes e católicas apresentam um nível substancialmente mais elevado de conservadorismo nos índices e, mais do que isso, o padrão é praticamente o mesmo em 2011 e 2016. Por fim, vale destacar também o fato de que a origem social – mensurada pela educação dos pais – não demonstrou ter qualquer efeito sobre a percepção
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das delegadas medidas por esses índices. Se, por um lado, esse dado contraria uma tendência social geral, por outro vale atentar que as delegadas comungam de características semelhantes que, certamente, atenuam o efeito da origem através de um claro efeito de viés de seleção. Entre essas características – além do fato óbvio de serem mulheres com maior inclinação à participação política do que a média da população – pode-se destacar, apenas a título especulativo, a trajetória em organizações formais e as redes pessoais e sociais nas quais estão inseridas. Com efeito, redes que se formam em torno de objetivos políticos específicos podem ter um efeito homogeneizador sobre as crenças e os valores difusos dos seus membros (MARQUES, 2003).
Considerações finais As análises empreendidas neste capítulo nos permitiram demonstrar que houve, sim, na experiência do Brasil recente, um processo de mudanças e transformações nas percepções e nos valores relativos a gênero e raça. A comparação aqui empreendida entre duas pesquisas realizadas em temporalidades distintas e com sujeitos e objetivos igualmente diferenciados, em que pese as limitações metodológicas inerentes, nos permitiram demonstrar como, em quais direções e quais fatores determinantes estão fomentando, no nosso país, tais mudanças. Pudemos evidenciar que existe um padrão claro nas percepções entre os grupos aqui analisados no que tange às vicissitudes da dinâmica de transformações, de forma que é possível identificar espécies de “agentes do conservadorismo”, bem como “agentes da destradicionalização” em termos de gênero e raça no Brasil: o eleitorado masculino brasileiro tendeu a ser mais conservador nesses indicadores (sendo, então, nos termos dessas análises, o principal agente do conservadorismo observado nas duas pesquisas), seguido do eleitorado feminino brasileiro, das delegadas da 3ª CNPM (2011) e, finalmente, das delegadas da 4ª CNPM (2016 – as principais agentes da destradicionalização de gênero e raça identificadas nessas pesquisas). Especificamente em relação às delegadas, o principal objeto de investigação nessa pesquisa, conforme já demonstramos, elas se revelaram mais conservadoras no que tange às relações de gênero nas esferas privada e pública (nos valores encontrados no IRGPP) do que com relação à discriminação de gênero e raça (IRGPP). Podemos ainda afirmar que, entre 2011 e 2016, aumentou, na média, o grau de destradicionalização para ambas as dimensões. Além do mais, entre 2011 e 2016 as delegadas das CNPMs se tornaram mais semelhantes entre si, com relação às percepções relativas mensuradas nessas duas dimensões.
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Ainda sobre as percepções de gênero nas esferas pública e privada (mensuradas pelo IRGPP), parece-nos que, para as delegadas pesquisadas no último ano (2016), há um padrão mais bem estabelecido entre a localização das mulheres na estrutura social, as suas características individuais e, afinal, as suas percepções. Além do mais, há a presença de um padrão que perpassa as duas edições das CNPMs quando observamos o Modelo de Regressão para o IRGPP: as variáveis que se mostraram importantes para explicar a variação do índice foram, principalmente: religião (ser protestante ou católico); renda; inserção ocupacional; e educação. Sendo que o efeito da religião foi, pare esse índice, o mais pronunciado: o conservadorismo relativo às relações de gênero nas esferas pública e privada é muito mais marcado em mulheres de religião protestante e católica; para as delegadas oriundas de religião afro-brasileiras e espíritas, a percepção mensurada nesse índice é, na média, praticamente igual à de mulheres que se declaram ateias ou sem religião. Também para o índice que mensurou as percepções relativas à discriminação difusa de gênero e raça – o IDDGR –, o fator religião se revelou determinante das percepções. Delegadas protestantes e católicas têm um grau consideravelmente maior de conservadorismo do que as demais delegadas, destacando-se ainda o fato de que, para as primeiras, houve um aumento significativo de conservadorismo no IDDGR entre 2011 e 2016. A escolaridade, cujo efeito não se pronunciara em 2011, passou a ser, em 2016, um importante fator explicativo nas percepções avaliadas pelo IDDGR. Delegadas com Ensino Fundamental completo ou mais apresentaram níveis de conservadorismo nesse índice muito menos pronunciado, embora se deva destacar – tal como ocorrera com o indicador anterior – que não houve diferenças significativas a partir desse nível educacional. Ainda para o IDDGR, conforme seria esperado (dada a própria natureza sensível do tema para as delegadas declaradas pretas e pardas), a variável raça passou a ter um efeito não desprezível, mas apenas em 2016, com as mulheres brancas apresentando resultados inferiores de destradicionalização do que as pretas e pardas. Algo que se destaca dessas análises e que merece ser tratado nestas conclusões é a particularidade do perfil valorativo e de percepções das mulheres que são delegadas nas CNPMs; tal aspecto de caráter mais subjetivo das nossas desigualdades precisa estar em diálogo permanente com as forças institucionais existentes em tais dinâmicas também. De fato, as delegadas das CNPMs se distinguem da população em geral e também das mulheres brasileiras em geral, perfazendo um círculo subjetivo-valorativo-cultural bem mais homogêneo e fortemente mais destradicionalizado em relação às percepções de gênero e raça. Elas parecem operar, talvez, como um subconjunto de agentes que tem sido responsável por processos
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identificados, e já em curso no Brasil, de reformulação nos valores tradicionais de gênero e raça. Todavia, mesmo elas, conforme identificamos, estão submetidas às forças de ondas reversas e de retrocessos, assim como sempre estiveram submetidas às forças dos processos institucionais estatais. A estrutura e a ordem estatal brasileiras são abertamente conservadoras (senão autoritárias) no que tange a gênero e raça, ou seja: são historicamente patriarcais e racistas (MATOS; PARADIS, 2014). Ousamos afirmar, inclusive, que o conservadorismo associado às percepções de gênero e raça pode ser tratado como proxies de formas e percepções politicamente autoritárias (tanto dentro, quanto fora do Estado). E essa é, de fato, uma herança histórico-política não superada pelo Brasil. Como visto, se estávamos (como a análise entre os três momentos distintos de realização das pesquisas aqui analisadas demonstram: 2010, 2011 e 2016) numa tendência de mais forte destradicionalização subjetivo-valorativa-cultural em termos de gênero e raça, agora essa tendência disputa abertamente o espaço público com intensas forças retradicionalizadoras, especialmente as forças conservadoras das religiões de matriz cristã: protestante e católica, e as forças dos poderes de Estado. Estes, inclusive, fazem parte importante e constitutiva dos retrocessos e golpes atuais contra a nossa, ainda frágil, democracia brasileira. Há, pois, um grande descompasso cultural-valorativo entre as delegadas aqui pesquisadas e a sociedade brasileira. Mas mesmo assim, podemos observar que as deliberações tomadas nas CNPMs, mesmo operando fundamentalmente no campo da construção coletiva de esforços de expansão dos direitos das mulheres (via a construção de um complexo arcabouço de políticas públicas que convergiram para os PNPMs), também disputaram e tensionaram, em algum grau, a normatividade social patriarcal e racista brasileira. Os embates em torno, por exemplo, da aprovação de um princípio e mesmo de políticas públicas que tenham seu foco na descriminalização generalizada do aborto no Brasil é talvez o maior revelador dessa tensão valorativa, e ela está/esteve, de fato, presente no campo dos embates realizados dentro das Conferências. O capítulo 6 do Volume 2, escrito por Martello, trata – entre outras importantes considerações – desse importante momento de embate das CNPMs e merece a leitura. Fica-nos a certeza ainda do quão difícil significa realizar e travar esses embates no campo da esfera pública estatal: as CNPMs são efetivamente campos de batalha valorativa sobre como se construir um Estado que tenha políticas sensíveis e inclusivas às pautas de gênero e raça (entre outros marcadores sociais). Contudo, mesmo contando com delegadas com um perfil cultural-valorativo destradicionalizado, as deliberações e, posteriormente, a fase da implementação dessas
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deliberações vão, certamente, filtrando os processos de destradicionalização de gênero e raça, vão os disciplinando para, finalmente, conformá-los e formatá-los nas métricas da administração pública. Análise detalhada desses processos as(os) leitoras(es) poderão também encontrar no Capítulo 7 do Volume 1, onde Matos e Cypriano problematizam e debatem a avaliação das políticas públicas realizada pelas delegadas das duas conferências. É bem possível e provável que, nesse processo de metabolização conflitiva, a força inicial dos valores destradicionalizados vá rapidamente cedendo espaço à força centrípeta da normatividade patriarcal/ racista, esta atavicamente instalada, a partir do Estado brasileiro.
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Mulheres negras na institucionalização de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma agenda em aberto Johanna Katiuska Monagreda1
Introdução Acusadas de olharem o próprio umbigo, as mulheres responderam que esta é uma boa maneira de começar a olhar o próprio corpo e suas entranhas e, quem sabe, fazer surgir daí uma novíssima sociedade sem discriminação de espécie alguma. Wania Sant’anna, 1988 (apud CARNEIRO, 1993).
É sabido que, como fenômeno biológico, a raça não existe, mas, assim como o gênero, é uma construção social com implicações simbólicas e materiais na vida das pessoas. Tanto na sua dimensão histórica material, quanto na sua dimensão simbólica, o machismo e o racismo se combinam para produzir e perpetuar a exclusão social, econômica e política de mulheres racializadas, negras e indígenas. Daí que Lélia González insista em tratar o racismo e o sexismo como “um duplo fenômeno”, trazendo o conceito de racismo-patriarcal para salientar o caráter imbricado que adquirem ambas as opressões (GONZALEZ, 1982; 1984). A luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça tem se proposto a visibilizar as profundas desigualdades raciais que caracterizam a sociedade brasileira (GONZALEZ, 1988) e “vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e antirracista”, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, quanto a questão de gênero na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2003b). Desvelar o racismo também é uma luta encarada pelas mulheres indígenas, ainda que seja comum minimizar a luta indígena como uma luta por apenas diversidade cultural. A indígena Avelin Buniacá Kambiwa2 diz sobre o Brasil: “Somos um país extremamente sem memória. É preciso fazer um ‘letramento racial’” também sobre a questão indígena. 1 Doutoranda e mestra (2014) em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Ciência Política pela Universidad Central de Venezuela (2002). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM. 2 Indígena socióloga e representante do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.
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Ao mesmo tempo, a prática e a teoria das mulheres negras apontam que, dentro do grupo mulheres, existem diferenças de classe e raça que marcam a experiência de ser mulher. Consequentemente, autoras como Sueli Carneiro (2003a, p. 52) caracterizam o movimento de mulheres negras com a luta organizada contra a tripla discriminação: O atual movimento de mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições resultantes das variáveis raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos negros e de mulheres do nosso país, enegrecendo, de um lado, as reivindicações das mulheres e, por outro, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do movimento negro.
Cientes da dupla e tripla discriminação que mulheres negras enfrentam como consequências das múltiplas limitações impostas pelo racismo, o machismo e a condição de classe, neste capítulo se apresenta a trajetória do movimento de mulheres negras no processo de institucionalização das suas demandas, e se apresenta o perfil socioeconômico das mulheres negras que participaram nas Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres (CNPMs) de 2011 e 2016, a partir dos dados da pesquisa de survey: “As Mulheres das Políticas para as Mulheres: quem são aquelas que constroem o feminismo estatal participativo brasileiro?”. Segundo a síntese de indicadores sociais (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016), em 2011, a população residente no Brasil era de 197.825.297 pessoas, das quais 25,7% mulheres pretas ou pardas (50.891.944) e 0,21% (417.740) mulheres indígenas. Para 2015, do total estimado de 204.855.655 brasileiros e brasileiras, 27,1% (55.613.764) correspondia a mulheres pretas ou pardas, e 0,19% (400.809) a mulheres indígenas. Mais do que um quarto da população brasileira ocupa, invariavelmente, a base em todos os indicadores socioeconômicos, o que deveria nos atentar para as desvantagens históricas que enfrentam as mulheres negras e indígenas. O Relatório intitulado “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça” (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2017) oferece uma boa panorâmica das condições de vida das mulheres negras no Brasil nos últimos vinte anos: a taxa de analfabetismo entre mulheres negras tem sido sempre maior do que a média nacional e quase o dobro da taxa de analfabetismo dos homens brancos; a renda média tem sido sempre inferior à dos homens brancos, mas também inferior à das mulheres brancas. Embora a série histórica mostre uma valorização importante do rendimento médio do trabalho das mulheres negras (80% em vinte anos), a distância se mantém na mesma ordem ao longo de toda a série
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histórica – do maior rendimento para o menor rendimento: homens brancos, mulheres brancas, homens negros, mulheres negras. A maior porcentagem de mulheres sem renda própria também corresponde às mulheres negras. Na sua dimensão simbólica, o duplo fenômeno do racismo patriarcal produz e sustenta estereótipos e preconceitos que legitimam a inferiorização, a discriminação e as desigualdades raciais. Lélia Gonzalez (1984) já adverte o quanto as relações raciais e o imaginário sobre a mulher negra é perpassado pelas noções de “mulata”, “doméstica” e “mãe preta”, e como o mito da democracia racial oculta a violência simbólica dos estereótipos sobre a mulher negra. Mas também na dimensão política se observa a desvantagem histórica. Padrões de raça e de gênero limitam o acesso à representação política no Brasil (ARAÚJO, 2005). Mesmo quando metade da população brasileira está composta por mulheres, apenas duas ocuparam altos cargos no atual governo. A participação feminina no Congresso e no Senado gira em torno de 10%. Do total de representantes no Congresso, 1,6 são mulheres declaradas pardas, e 0,6 mulheres pretas, enquanto nenhuma pessoa indígena – homem ou mulher – foi eleita.3 A situação não é muito diferente no nível municipal: o número de vereadoras está abaixo de 15% e 1.287 municípios não têm sequer uma mulher na Câmara Municipal (SUB-REPRESENTAÇÃO..., 2016). Se a discriminação de gênero torna muito mais difícil para as mulheres participar da política, mulheres negras e, especialmente, mulheres indígenas parecem totalmente afastadas dos espaços de representação, como consequência da combinação perversa entre sexismo e racismo. A despeito desse panorama, as Conferências Nacionais se revelam como espaços de participação e deliberação amplos, abrangentes e inclusivos, que garantirem uma maior representatividade da sociedade brasileira (POGREBINSCHI, 2012). Grupos tradicionalmente excluídos da esfera política encontram maiores possibilidades de participação no âmbito das conferências, em parte porque o eixo temático de cada conferência, principalmente aquelas organizadas para discutir as políticas para grupos minoritários, implica um apelo específico à participação direta de mulheres, negros, indígenas, população LGBT, entre outros. É possível observar essa diversidade de participação nas CNPMs: mulheres indígenas, negras, ciganas, lésbicas, deficientes, quilombolas, jovens, ribeirinhas, empregadas domésticas, inclusive, privadas de liberdade, se articulam para ver suas demandas colocadas nas CNPMs e talvez assim conseguir influenciar na elaboração de políticas públicas que garantam, realmente, os direitos das mulheres. Nas 3ª e 4ª CNPMs, as mulheres negras delegadas representaram mais de 50% das delegadas; essa ampla participação pode ser resultado de um processo 3 Fontes: IBGE, 2018; HOMENS..., 2015
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histórico de luta e organização das mulheres negras. Na seção a seguir traçamos brevemente os passos da organização do movimento de mulheres negras no Brasil desde os anos 1970 até os nossos dias, focando exclusivamente na interação com o movimento feminista e com o movimento negro; desse modo, outras interfaces importantes que têm desenhado o movimento de mulheres negras, por exemplo, com o movimento de trabalhadores(as), dentro do movimento da diversidade sexual, na luta pela terra quilombola, entre muitas outras, ficarão por fora desta narrativa.
A consolidação do movimento de mulheres negras organizado Ainda há muito a ser escrito sobre a organização e o protagonismo histórico das mulheres negras nas lutas feministas. Este capítulo é um esforço por traçar a história contemporânea do movimento de mulheres negras do Brasil desde os anos 1970 até os nossos dias, com o intuito de salientar as ações que levaram à ampla participação de mulheres negras nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres. Enquanto o ativismo das mulheres negras adquire uma diversidade de práticas, reivindicações e formas individuais e coletivas – partidos políticos, grupos culturais, organizações religiosas –, este capítulo está focado no relato de algumas poucas militantes de organizações que hoje são reconhecidas como referências da luta antirracista e feminista no Brasil.4 Priorizam-se aqueles textos que têm por objetivo principal construir ou resgatar a memória de mobilização das mulheres negras, tanto nas organizações de luta antirracista, quanto nas organizações de mulheres negras e na interação com o movimento feminista nacional e com o Estado brasileiro. Escolhe-se a década dos anos 1970 como ponto de partida em consonância com a afirmação de Matilde Ribeiro (1995) de que o movimento contemporâneo de mulheres negras emerge das lutas antirracistas e feministas da década de 1970. Obviamente, como nos lembra Jurema Werneck (2010), as mulheres negras no Brasil criaram estratégias organizativas de resistência à escravidão que compreendiam as mais diversas formas individuais e coletivas de confronto com o sistema escravista. Portanto, a organização e o protagonismo histórico das mulheres negras nas lutas das mulheres e nas lutas antirracistas estão, há muito, conectados a esse passado histórico: a história do movimento negro e, neste caso, a história do movimento de mulheres negras no Brasil começam com a chegada da primeira 4 Alguns dos nomes que traçaram a trajetória do movimento de mulheres negras são resgatados por Schuma Schumaher (2017).
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embarcação escravista.5 Contudo, na década dos anos 1970 e 1980 vemos surgir uma compreensão mais apurada da interação do patriarcado e do racismo como sistemas de opressão que impactam a vida das mulheres negras, e vemos também uma disputa mais explícita por colocar esses temas na agenda dos movimentos antirracistas, nos movimentos feministas, e para dentro do Estado. Esse questionamento fundado na necessidade de se pensar as lutas na interação entre raça, o gênero e a classe aparece também em outras organizações, onde as mulheres negras tinham participação fundamental, tais como: o movimento de favelas do Rio de Janeiro, os movimentos de trabalhadoras domésticas em Belo Horizonte e em Salvador, as associações comunitárias, as comunidades religiosas afro-brasileiras, os movimentos quilombolas, os movimentos de mulheres rurais, o movimento estudantil e as organizações clandestinas de esquerda. No entanto, escapa do escopo deste capítulo aprofundar esses outros espaços de militância das mulheres negras. A principal característica do movimento organizado de mulheres negras é o que Matilde Ribeiro (1995) caracterizou como uma “dupla militância”, salientando o fato de que, cientes da dupla discriminação, a militância das mulheres negras tem uma interface tanto com o movimento negro, do qual muitas delas são militantes, quanto com o movimento feminista, do qual participam.6 Essa dupla militância não significa a subordinação das pautas das mulheres negras a nenhum dos dois movimentos. Pelo contrário, a busca de um referencial próprio, a partir da experiência de ser mulher negra em sociedades racistas e sexistas é o que define o movimento de mulheres negras7 (RODRIGUES; PRADO, 2010). A experiência de ser mulher é social e historicamente determinada e em sociedades racistas e sexistas, com profundas desigualdades sociais, a experiência de 5 Ainda que essa tentativa de salientar as lutas antiescravistas e as vincular com o movimento negro contemporâneo faça parte do discurso do movimento negro do Brasil, a primeira vez que escutei essa reflexão foi em um discurso de Larissa Amorim Borges, provavelmente em 2012. 6 Essa dupla militância também reflete a postura de mulheres negras como Lélia Gonzalez e Luiza Bairros, que entendiam que as mulheres negras deviam ocupar todos os espaços possíveis, inclusive os espaços de participação em partidos políticos e a disputar cargos de eleição popular. 7 Essa relação com o movimento negro e com o movimento feminista não é uma relação fácil e se complexifica ainda mais quando a pauta da diversidade sexual é colocada. Pensando na diversidade de pautas que conformam o movimento de mulheres negras, importa também fazer essa reflexão como crítica à heteronormatividade compulsória, que junto com o racismo, junto com o patriarcado, afeta a vida das mulheres negras. Infelizmente, não é possível, neste texto, abordar esse tema com a profundidade requerida, contudo Cláudia Pons Cardoso (2013) analisa as dificuldades de introdução das pautas das mulheres lésbicas nesse período. Outro movimento que transversaliza as discussões sobre mulheres negras é o movimento da juventude negra, que pode ser aprofundado nos trabalhos de Lima (2010), Pereira (2012), Borges; Mayorga (2012), Moura, Silva e Gomes (2017).
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ser mulher está marcada pela raça (BAIRROS, 1995). As sequelas da colonização e da escravidão permanecem ainda hoje tanto no imaginário social, produzindo imaginários e percepções estereotipadas sobre as mulheres negras; quanto nas desvantagens econômicas e políticas que se acumulam sobre as mulheres negras. Desse modo, as percepções e os preconceitos, a distribuição desigual do poder econômico e político, todos esses elementos se juntam para manter intactas as relações de gênero, segundo cor ou raça, instituídas desde o período da escravidão (CARNEIRO, 2003a). Os aportes das mulheres negras na reflexão sobre a condição de opressão e sobre a luta política das mulheres negras vão orientados a mostrar como raça, gênero, classe social, sexualidade se reconfiguram mutuamente (BAIRROS, 1995). Não se trata de pensar uma identidade comum para as mulheres negras, mas de reconhecer o fato de que a opressão de gênero e de raça coloca as mulheres negras em uma posição particular frente à dominação. Como afirma Werneck (2010, p. 10): As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos.
Como falado, as mulheres negras realizam uma dupla militância ao tempo que produzem um referencial próprio para as suas lutas. Para Luiza Bairros (1995), o movimento de mulheres negras surge: da necessidade de dar expressão a diferentes formas de experiência de ser negro (vivida “através” do gênero) e de ser mulher (vivida “através” da raça), o que torna supérfluas discussões a respeito de qual seria a prioridade do movimento de mulheres negras – luta contra o sexismo ou contra o racismo? – já que as duas dimensões não podem ser separadas. Do ponto de vista da reflexão e da ação políticas uma não existe sem a outra.
Nesse sentido, produzem uma nova compreensão sobre as formas de opressão ao salientar que racismo e patriarcado agem juntos sobre a vida das mulheres negras. A participação das mulheres negras em ambos os movimentos, nos anos 1970, se dá a partir de múltiplas tensões. Por um lado, as mulheres negras denunciam o silenciamento das pautas que lhes são caras sob o argumento de que iriam debilitar a pauta central – o movimento de negro desconsidera o gênero, enquanto o movimento feminista desconsidera a raça –; por outro lado, denunciam
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também a reprodução de opressões sexistas e racistas no universo interno de ambos os movimentos. O desafio de trazer as questões relativas ao gênero para o movimento negro, e a luta antirracista para o movimento feminista, tem em Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento as grandes referências: “Essas duas líderes deixaram como legado a certeza de que era essencial ancorar as ações na ‘feminização’ das questões raciais e na ‘racialização’ do ideário feminista” (SCHUMAHER, 2006). Daí que, como propõe Sueli Carneiro (2003a), enegrecer o feminismo e feminizar o movimento negro apareçam como uma necessidade impostergável para as mulheres negras: enegrecer o feminismo significava entender que, assim como a divisão sexual do trabalho configurou papeis à mulher, a divisão racial do trabalho configura papéis internamente ao grupo de mulheres. Sexualizar ou feminizar o movimento negro implicava entender que as desigualdades se acentuam graças à diferenciação sexual. Vale aqui colocar que as mulheres indígenas também têm salientado a necessidade de “indianizar a luta das mulheres”,8 como parte de uma das estratégias para dar visibilidade e centralidade à luta indígena nos diversos espaços de participação política, seja na luta feminista, na luta pela redistribuição econômica, seja na luta pelo poder político institucional. Dessa forma, racializar o feminismo implicaria uma melhor compreensão da imbricação da opressão de gênero e racial, mas também em novos aprendizados para enfrentar o patriarcado a partir, por exemplo, das práticas ancestrais de coletivização do cuidado e da resistência comuns às comunidades negras e indígenas. Gonzalez (1988), Carneiro (1993) e Bairros (1995), entre outras negras feministas, veem nessas tensões a possibilidade de se avançar nas práticas políticas feministas e antirracistas, e também de produzir uma compreensão conceitual mais aprimorada sobre como funciona o racismo e o sexismo, como se verá mais à frente. No entanto, ao se desconsiderar o gênero, diversas formas de discriminação racial podem passar desapercebidas e, ao se desconsiderar a raça, se invisibiliza um tipo de opressão vivenciada pelas mulheres racializadas. Com relação às lutas políticas, a prática de uma dupla militância faz que, mesmo quando criam organizações autônomas, as mulheres negras não abandonem o movimento negro misto, e reclamem presença nas organizações e encontros do movimento feminista branco. Nesse sentido, a história do movimento de mulheres negras, pelo menos entre os anos 1970 e 1980, pode ser contada junto com a história do movimento 8 Escutei pela primeira vez essa expressão na fala de Avelin Bunicá Kaiowá em um encontro sobre interseccionalidade organizado em 2016 em BH pelo Coletivo As Margaridas. Mas a expressão também é usada em muitos dos atos do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.
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negro, uma vez que as organizações do movimento negro desse momento tinham uma forte presença feminina, inclusive nas esferas de liderança. Rodrigues e Prado (2010) nos falam de diversas organizações vinculadas às questões raciais, onde as mulheres negras eram protagonistas: No Rio Grande do Sul havia o Grupo Palmares, que foi o responsável por propor a data de 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, como dia nacional da consciência negra. Em São Paulo surgiram organizações que pensavam a constituição de um Movimento Negro com projeção nacional, com destaque para o Grupo Evolução, criado em Campinas em 1971 por Thereza Santos e Eduardo Oliveira e Oliveira; o Cecan, Centro de Cultura e Arte Negra, de 1975; e a Associação Casa de Arte e Cultura AfroBrasileira (Acacab), fundada em 1977. Em Salvador é criado, em 1974, o bloco afro Ilê Ayê, que fomentou todo um clima para afirmação do Movimento Negro na Bahia, e o Grupo Nego – Estudos Sobre a Problemática do Negro Brasileiro, de onde saiu o quadro inicial de militantes do MNU da Bahia (BAIRROS, 2000; GONZALEZ, 1984; GUIMARÃES, 2002; HANCHARD, 2001). (RODRIGUES; PRADO, 2010, p. 450).
Olhar a trajetória de algumas dessas mulheres da liderança pode ajudar a viabilizar as discussões de gênero no âmbito interno do movimento negro. Em 1973, Beatriz Nascimento organizou pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes uma série de encontros para discussão do racismo e do processo de exclusão dos negros no mercado de trabalho. A presença de uma mulher negra não garante per se que o ser mulher negra seja problematizado no âmbito interno desses encontros, mas três anos depois, Beatriz Nascimento publica o artigo: “A mulher negra no mercado de trabalho”,9 muito provavelmente no marco dessas discussões. Desses encontros surge o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN – 1984 – Rio de Janeiro), fundado por Beatriz Nascimento e presidido então por Abgail Pachoa que, trinta anos depois, continua sendo a única presidenta mulher dessa organização. Nos anos 1970 e 1980, as mulheres negras faziam real a existência do movimento negro do Brasil: Luiza Bairros, em conferência citada por Cláudia Pons Cardoso, diz que em 1986 “o controle político do grupo [MNU] estava nas mãos das mulheres” (CARDOSO, 2013, p. 5). Mas além do lugar de liderança de algumas mulheres, em algumas das organizações do movimento negro foram criados Departamentos da Mulher, como foi o caso do “Teatro Experimental do Negro” que, em 1950, criou o “Conselho Nacional das Mulheres Negras”, sob a direção de Maria Nascimento, que tinha 9 Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 25 jul. 1976.
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uma coluna fixa “Escreve a mulher” no jornal Quilombo, dirigido por Abdias Nascimento. Desde início dos anos 1980, começou dentro do Movimento Negro Unificado (MNU), em diversos estados, a formação de grupos de mulheres. No Rio de Janeiro, Lélia Gonzalez fundou o Grupo de Mulheres e o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. E um pouco depois, em 1981, Luiza Bairros, junto com Ana Célia da Silva, Maria do Amparo, Teresa Alfaya e outras, criaram o Grupo de Mulheres do MNU da Bahia (PINTO; FREITAS, 2017). Muitos desses grupos funcionavam como espaços de formação das mulheres negras para a militância política, de construção de um discurso político próprio, mas também de afirmação da identidade negra e de formação e profissionalização. Quando essas organizações são consideradas dentro do grande guarda-chuva “movimento negro”, tende-se a invisibilizar a importância dessas organizações para a consolidação do movimento de mulheres negras. É importante salientar essas organizações como fazendo parte da história do movimento de mulheres negras, em reconhecimento ao protagonismo das mulheres negras dentro das mesmas e em reconhecimento à luta afincada por pautar a agenda das mulheres negras dentro dessas organizações, mesmo que com múltiplas tensões. Mas, principalmente, porque eu gostaria de reafirmar, junto com Ribeiro (1995) e Carneiro (1993), que as mulheres negras não se distanciaram do movimento negro, mas elas fizeram o trabalho da dupla militância, mesmo que tensa e cheia de contradições: Contudo, essa forte presença das mulheres negras “não se traduz em ocupação de espaços políticos ou visibilidade política na mesma proporção em que ocorre com os homens negros, o que é fruto da própria situação social e cultural da mulher que a condiciona a aceitar um lugar subordinado dentro de uma organização, embora respondendo por tarefas fundamentais para a mesma”. (CARNEIRO, 1993, p. 15).
Homens negros acabavam se projetando e sendo considerados “as” figuras do movimento negro, enquanto era suposto, para as mulheres, o lugar de apoio ou “na base”; inclusive dentro do próprio movimento, homens tentavam encaixar as mulheres nesse lugar subordinado. O reflexo de práticas sexistas dentro das organizações do movimento negro exigia refletir sobre a reprodução das práticas de subordinação das mulheres negras no interno do movimento, sobre a paternidade responsável, sobre a violência e opressão contra as mulheres que eles mesmos exerciam. Junto com as críticas ao movimento negro, as mulheres negras, dos anos 1970 e 1980, observam que a despeito das contribuições do feminismo para
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conceitualizar o patriarcado e a discriminação pela orientação sexual, o caráter eurocêntrico do feminismo produziu certa cegueira sobre o impacto da raça em sociedades onde a colonização histórica produziu hierarquizações raciais além de sexuais e, portanto, tem falhado em incorporar a discussão sobre outro tipo de discriminação sofrida pelas mulheres, a de caráter racial (GONZALEZ, 1988). Daí a necessidade de enegrecer o feminismo: “Enegrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro” (CARNEIRO, 2003b, p. 118). Mas também aponta para as limitações teóricas e políticas de se pensar um feminismo que desconsidera a raça em sociedades como a brasileira. A luta antirracista junto com os homens negros continua fazendo parte central do movimento de mulheres negras, até porque a compreensão de que elas produzem sobre o patriarcado é que essa combinação do patriarcado com o racismo produz gêneros inferiorizados: a opressão de gênero junto com o racismo mostra uma face na opressão das mulheres negras, mas tem outra face na própria inferiorização do homem negro com relação ao homem branco, um produzido como um gênero inferior e como um ser não humano; e o outro produzido como o gênero dominante, o patriarca. Mas o racismo patriarcal também produz diferenças substantivas com as mulheres brancas, que por uma parte tem a ver com estarem posicionadas como grupo em lugares diferentes da opressão de gênero, mas também com a produção de privilégios que implica a branquitude. Na formulação de Sueli Carneiro (2003b, p. 117) o racismo produz gêneros subalternizados e superlativos. Produz gêneros subalternizados: “tanto no que toca a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres brancas)”. E “o racismo também superlativa os gêneros por meio de privilégios que advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos”, colocando, sim, padrões inalcançáveis também para o grupo hegemônico, do qual as mulheres brancas são expostas, mas que principalmente coloca as mulheres do grupo racial hegemônico em situação de privilégio com relação às mulheres negras. Nesse sentido, para as mulheres negras, reclamar o movimento feminista para si implica questionar conceitos inclusive caros ao feminismo, uma vez que “as categorias utilizadas pelo feminismo neutralizavam tanto o problema da discriminação racial quanto do isolamento enfrentado pela comunidade negra na sociedade” (GONZALEZ, 1982, p. 100):
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padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e exploração que estão na base da interação entre brancos e não brancos, constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo.
Nos anos 1980 emergem diversos temas, e é uma década de intensa movimentação, segundo Oliveira e Sant’anna (2002), e também é uma década em que outras mulheres organizadas, mulheres negras, mulheres trabalhadoras rurais, ganham maior visibilidade e passam a reclamar os espaços de organização feministas na especificidade da sua opressão, introduzindo outros temas e outras reflexões na agenda feminista. Conceitos e práticas do feminismo são questionados quando colocadas no centro do debate as características patriarcal e escravocrata da sociedade brasileira. As reflexões sobre sexualidade, reprodução, divisão sexual do trabalho, o público e o privado, a noção de violência doméstica ganham novos contornos quando analisados na sua dimensão racial. A participação de mulheres negras no movimento feminista força as mulheres brancas a pensar o quanto do seu privilégio branco implica vulnerações de direitos para as mulheres negras. A luta por reconhecer o trabalho doméstico como um “trabalho” e em reconhecer direitos trabalhistas é reflexo disso. O trabalho doméstico ocupou um lugar importante nas reflexões e críticas das mulheres negras sob o entendido de que o racismo patriarcal faz que os papéis impostos às mulheres negras nos sistemas de produção e reprodução adquiram outros contornos. Enquanto o feminismo refletia sobre a divisão sexual do trabalho que designava às mulheres o lugar do privado-doméstico/reprodutivo e aos homens o lugar público-político/produtivo, e sobre a necessidade de romper com essa divisão, esquecia que a ocupação do espaço público por parte das mulheres brancas (educação, trabalho, militância política) era possível porque outras mulheres racializadas ocupavam esse lugar do cuidado graças à divisão sexual e racial do trabalho doméstico. Mas também esqueciam que a escravidão e a marginalização que o racismo impõe sobre os negros em geral fizeram que as mulheres negras no Brasil estivessem no espaço público, seja na forma de trabalho forçado no período escravista, seja na forma de trabalho pauperizado pós a abolição, desde sempre e
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que precisamente fosse o espaço privado, de consolidação da família e de cuidado, o espaço historicamente negado. Nesse sentido, Benilda Brito (1997) nos lembra que a experiência de ser dona de casa para as mulheres negras tem pouco mais de um século. Essa constatação não invalida a necessidade de romper com esses preceitos que pretendem naturalizar a dominação das mulheres, confinando-as ao lugar do cuidado e da maternidade,10 mas exige um análise e uma prática política que coloque no centro do debate os efeitos da construção social da raça. A discussão sobre o trabalho doméstico também exibia os limites de uma solidariedade de gênero que ainda precisava ser construída. Enquanto se refletia sobre a violência de gênero dentro de casa a que os homens submetiam as mulheres, as mulheres negras questionavam sobre a violência a que outras mulheres negras eram expostas, mas que tinham como agente outras mulheres brancas, no lugar de patroas: “ao colocar no centro do debate questões como a relação inter-pessoal-profissional existente entre patroas e empregadas, revelou-se algo mais sobre as relações cotidianas estabelecidas nesse espaço privado” (OLIVEIRA; SANT’ANNA, 2002, p. 202). Questionavam também sobre o silêncio das mulheres brancas frente às práticas de abuso sexual sofridas pelas empregadas domésticas, herança de uma cultura escravagista e que posteriormente foi entendido como assédio sexual no local de trabalho. E reclamavam que a luta pelos direitos das mulheres devia incorporar, urgentemente, a luta por direitos trabalhistas para empregadas domésticas, que na época nem era considerado um trabalho. A crítica ao imaginário social e às representações midiáticas sobre a sexualidade da mulher negra, a vulnerabilidade maior das mulheres negras e indígenas com relação à maternidade e ao exercício da sexualidade, junto com a crítica à política de controle populacional e a luta contra a prática de esterilização pelo caráter não suficientemente informado e compulsório dessa prática que tinha como alvo privilegiado mulheres negras e indígenas vulnerando seus direitos reprodutivos foram pautas importantes das mulheres negras nesse período (OLIVEIRA; SANT’ANNA, 2002; CARNEIRO, 2003b). Essas críticas não eram recebidas sem resistência, como declarou Lélia Gonzalez em entrevista ao Jornal do MNU, mesmo havendo quem se preocupasse com a questão racial no interior do movimento de mulheres brancas (PINTO; FREITAS, 2017):
10 Refletimos acima sobre o quanto os homens do movimento negro pretendiam sujeitar as mulheres a lugares de apoio dentro do próprio movimento.
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havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá para a gente dialogar com elas etc. [...] porque para elas a mulher negra tinha que ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as questões que elas estavam colocando. (GONZALEZ, 1988).
Nesse sentido, a movimentação das mulheres negras dá saliência à importância de reconhecer as mulheres como sujeito político, mas também de afirmar a diversidade e as desigualdades existentes entre as mulheres como sujeito político e reconhecer os privilégios que a branquitude permite e que sempre implicam perda de direito para o grupo racializado. A movimentação das mulheres negras obriga a discutir as diferenças existentes entre as mulheres que faziam parte de ambos os movimentos. E a despeito das reclamações de que isso levaria à divisão do grupo, a autonomização das mulheres negras ajudou a produzir compreensões mais acuradas sobre a forma como o racismo e o patriarcado estruturam a sociedade brasileira (CARNEIRO, 2003b; BAIRROS; 1995; OLIVEIRA, SANT’ANNA, 2002): Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva tem na luta antirracista no Brasil. (CARNEIRO, 2003b, p. 118).
Em que pesem as resistências, foi possível para as mulheres negras ganhar alguns espaços, construir algumas articulações com mulheres brancas e inclusive produzir algumas alianças, ainda que Rodrigues e Prado (2010) nos lembrem que a iniciativa da luta antirracista foi sempre das mulheres negras. Na década de 1980 também se criam algumas instâncias consultivas de formulação de políticas públicas para mulheres no âmbito nacional e estadual, e as mulheres negras começaram a disputar com mais força a sua representação nesses espaços e uma maior presença no movimento feminista no Brasil e na região. Carneiro (2003b) e Ribeiro (1995) constatam uma presença maior e mais organizada das mulheres negras no movimento feminista nacional e continental. No âmbito nacional, essa interação com o movimento feminista permitirá às mulheres negras ganhar algum espaço no sistema político institucional (RODRIGUES; PRADO, 2010). Em 1983, se cria o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, o primeiro órgão institucional destinado a zelar pelos direitos das mulheres e à formulação de políticas públicas contra a discriminação de gênero. Sueli
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Carneiro11 conta que essa iniciativa surge sem representação de mulheres negras entre as conselheiras. O fato foi alertado primeiramente pela radialista negra Marta Arruda; as mulheres negras, então, criam o Coletivo de Mulheres Negras para organizar suas ações e pressionar para terem representação no Conselho. Dessa ação, Thereza Santos se torna a primeira mulher negra no Conselho em 1983 ao assumir um cargo titular junto com Vera Lúcia Saraiva como suplente. Sueli Carneiro assume para a gestão seguinte em 1986. A esse Conselho se seguiram outros conselhos estaduais, em vários estados do país, onde as mulheres negras também tentaram garantir a sua representação. A atuação das mulheres negras trouxe o debate sobre o tema racial para dentro do Conselho, sendo incorporada a luta contra o racismo nas ações, o que levou a criar a Comissão da Mulher Negra, do CECF/SP: “Daí em diante, as representantes negras ficaram com seu lugar assegurado no Conselho, inclusive nas instâncias diretoras. A primeira afrodescendente a assumir a presidência foi a psicóloga e assistente social Maria Aparecida de Laia que, em 1995, foi nomeada para duas gestões consecutivas” (SCHUMAHER, 2006). Em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), para promover no âmbito nacional as políticas de eliminação da discriminação contra a mulher. O Conselho foi inicialmente vinculado ao Ministério da Justiça e hoje permanece vinculado à Secretaria de Políticas para Mulheres. Nesse primeiro Conselho nacional, Lélia Gonzalez participou como conselheira de 1985 a 1989. Em 1988, se estruturou dentro desse Conselho uma Coordenação do Programa da Mulher Negra sob a coordenação de Sueli Carneiro (RIBEIRO, 1995; SCHUMAHER, 2006). Em 2002, pela primeira vez uma mulher indígena formou parte do CNDM. A entrada de mulheres negras dentro de instâncias de governo se dá em variados âmbitos, na saúde, na educação, na cultura, e em órgãos de combate ao racismo e à discriminação racial, entre outros (SCHUMAHER, 2006). Nesse processo de institucionalização das demandas feministas e de busca de inserção, as mulheres negras foram conquistando espaço, o que favoreceu também a preparação das mulheres negras para participar de conferências e encontros internacionais. No processo da III Conferência Mundial das Mulheres Nairobi, 1985, o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo preparou um diagnóstico sobre a situação da mulher no Brasil, que incluiu o estudo “Mulher negra: política governamental e a mulher” de autoria de Sueli Carneiro e Thereza Santos, referência sobre a questão da mulher negra (CARNEIRO, 1993; RIBEIRO, 1995). 11 Cf. Sueli Carneiro (1950-). In: Mulher: 500 anos atrás dos panos. Disponível em: http://www. mulher500.org.br/sueli-carneiro-1950/
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Por sua parte, os encontros internacionais propiciaram o encontro das mulheres negras brasileiras com mulheres negras de outros países, e a consequente constatação da proximidade da sua realidade de enfrentamento ao racismo e ao sexismo, mas também a necessidade de fortalecer espaços de ação conjuntos. No III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em Bertioga (SP), participaram 850 mulheres, das quais 116 se declararam negras e mestiças. Desse encontro resultou a constatação de um certo “traço comum” na realidade das mulheres negras latino-americanas e na dificuldade de encontrar espaços de articulação específicos de mulheres negras, além da dificuldade da articulação com mulheres brancas. Esse debate sobre o feminismo e as questões de raça estava, portanto, acontecendo para dentro e para fora das fronteiras nacionais e ambos os espaços, internacional e nacional, se nutriam dos debates. A discussão que teve lugar em Bertioga, no contexto de um encontro latino-americano, prosseguiu para os encontros feministas nacionais no Brasil. Nesse sentido: O IX Encontro Nacional Feminista (ENF) ocorrido em 1987 em Garanhus/ PE foi mesclado por fortes pressões e críticas das mulheres negras em relação à ausência da questão racial na pauta. A partir de um intenso debate as mulheres negras decidiram pela realização do Encontro Nacional de Mulheres Negras (RIBEIRO, 1995, p. 449).
Então, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras aconteceu em Valença (RJ) em 1988. Matilde Ribeiro (1995) lembra que esse encontro foi severamente criticado, tanto por setores do movimento negro, quanto do movimento feminista, por entender que se produziria uma divisão no âmbito interno desses movimentos. No entanto, esse primeiro encontro representou a construção de um novo movimento social com reivindicações próprias, sendo ainda apoiado tanto na luta feminista quanto na luta antirracista. Proliferaram os encontros de mulheres negras: Assistimos em 1988 a uma ampla mobilização de mulheres negras em torno de suas questões específicas consubstanciadas nos diversos Encontros Estaduais de Mulheres Negras, realizados em estados como: Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santos, Goiás, Maranhão, Paraná, Rio de Janeiro e Distrito Federal, sendo que onde não foi possível a realização de encontros estaduais ocorreram outras iniciativas sobre a questão da mulher negra na forma de debates, seminários, jornadas etc., como foi o caso do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Sergipe, Pará, Paraíba, Alagoas e Amazonas. (CARNEIRO, 1993, p. 13).
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Mas, na avaliação de Sueli Carneiro (1993), o centenário da abolição formal da escravatura contribuiu de maneira crucial para a conformação de um movimento de mulheres negras. As articulações para a contestação da comemoração do centenário da abolição da escravatura e a denúncia contra o racismo e a desigualdade racial, ainda imperantes no Brasil, levaram a uma grande mobilização de toda a militância negra, incluindo as mulheres negras, que viram também uma oportunidade para se articular e apresentar reivindicações específicas: [...] o Centenário da Abolição constituiu-se principalmente no momento político propício para as mulheres negras expressarem com maior visibilidade um processo que vem sendo gestado há alguns anos, que é a sua crescente mobilização e organização na defesa de seus interesses específicos, o que é resultado da ação política de diversos grupos autônomos e institucionais, como o Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, o Nzinga Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista, a Casa Dandara de Belo Horizonte, o Grupo Mãe Andresa do Centro de Cultura Negra do Maranhão, o Grupo de Mulheres Negras do Cedenpa – Centro de Defesa do Negro do Pará, os grupos de mulheres do Movimento Negro Unificado, as mulheres das Comissões de Negro do PT, a Comissão de Mulheres Negras do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, o Programa da Mulher Negra do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, as Conselheiras Negras dos diversos Conselhos da Mulher e Conselhos do Negro, e mulheres negras dos Movimentos de Favelas do Rio de Janeiro. No interior dessas entidades, comissões ou grupos, vêm sendo construído um movimento específico, cuja originalidade reside no fato de ele surgir determinado pela ação política de dois outros movimentos sociais, o Movimento Negro e o Movimento Feminista, e buscar redefinir a ação política desses dois movimentos em função da especificidade que o inspira: o ser negra. (CARNEIRO, 1993, p. 13).
Enquanto as mulheres negras emergem como um sujeito político, isso não quer dizer que deixaram de participar do movimento negro ou do movimento feminista; em alguns casos criaram grupos de mulheres dentro de organizações mistas da luta antirracista, como foi o caso já mencionado do MNU da Bahia ou da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen); em outros criaram Organizações Não Governamentais (ONGs) de mulheres negras, como foi o caso do Geledés12 (1998), da Casa de Cultura da Mulher Negra no Estado de São Paulo nos anos 1980; do Criola13 (Rio de Janeiro, 1992) e da ONG Maria Mulher (Rio Grande do Sul, 1987); e ainda mulheres negras permanecem ligadas a movimentos feministas e de mulheres e participam dos encontros feministas e das 12 www.geledes.org.br. 13 www.criola.org.br.
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recém-criadas instâncias consultivas de formulação de políticas públicas contra a discriminação de gênero. Essa dupla militância exige também, na perspectiva de Suely Carneiro (1993), uma certa autonomia do movimento de mulheres negras, para poder dialogar em termos de igualdade com o movimento negro e com o movimento feminista.14 Essa busca de um referencial próprio se reflete na realização de encontros nacionais e estaduais de mulheres negras. Dentre os encontros nacionais, Benilda Brito (1997) elenca os seguintes: Quadro 1. Listagem dos Encontros Nacionais de Mulheres Negras Encontro
Lugar, ano
I Encontro Nacional de Mulheres Negras Valença/RJ, 1988 II Encontro Nacional de Mulheres Negras Salvador/BA, 1991 Seminário Nacional Políticas e Direitos Itapecerica da Serra/ Reprodutivos das Mulheres Negras SP, 1994 I Seminário Nacional de Mulheres Negras Atiabia/SP, 1993
Participantes 450 participantes de 17 estados. 430 participantes de 17 estados 55 participantes de 14 estados. 48 participantes de 9 estados. 67 participantes 58 participantes de 13 estados
II Seminário Nacional de Mulheres Negras Salvador/BA, 1994 Campinas, 18 e 19 de Reunião Nacional de Mulheres Negras abril de 1997 Belo Horizonte/ MG, III Encontro Nacional de Mulheres Negras 2001 I Encontro Nacional de Negras Jovens Salvador, 2009 200 participantes Feministas I Marcha Nacional das Mulheres Negras Brasília, 13 de maio de contra o Racismo e a Violência e pelo Bem 50 mil participantes 2015 Viver II Encontro Nacional de Negras Jovens Capela do Alto/SP, 280 participantes Feministas setembro de 2017 Encontro do Fórum Nacional de Mulheres Bahia, 14-15 de março Negras/FSM 2018 de 2018 I Encontro Nacional de Mulheres Negras Goiânia, dezembro 30 anos: contra o racismo e a violência e 2018* pelo bem viver
Fonte: BRITO,1997 e elaboração própria. * Quando do encerramento deste capítulo as organizações de mulheres negras do Brasil se encontravam em reuniões preparatórias para a realização deste encontro programado para dezembro de 2018. 14 Vale dizer que teve muita discussão em torno de qual seria o melhor caminho para a militância das mulheres negras, se no movimento negro, se no movimento feminista, se em organizações exclusivas de mulheres negras. Ver: Carneiro, 1993.
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Também faz parte das estratégias a ação do movimento de mulheres negras para ocupar os espaços transnacionais. Enquanto um setor do movimento de mulheres negras se mantém próximo das organizações de base, outro, como vimos, se organiza na forma de ONGs com as vantagens que isso oferece em termos de acesso a recursos de organismos internacionais, e também com relação à certa profissionalização e maior espaço de interlocução governamental, que as organizações de base e as associações de voluntariado não tinham. Com essa intervenção internacional, as mulheres negras ganharam um novo fórum para levar as suas demandas, e essas demandas ganharam maior legitimidade frente aos governos nacionais, principalmente, a partir dos acordos e planos de ação, resultados das Conferências Mundiais da ONU. Com relação à articulação com outros movimentos, a ação transnacional também trouxe alguns ganhos: a articulação com outras mulheres negras da região, com foi o caso do III Encontro feminista Latino-Americano e do Caribe (já mencionado); a conformação de redes de articulação de mulheres negras; ações conjuntas com feministas brancas para alcançar objetivos específicos da agenda de luta das mulheres negras e a articulação com outros movimentos antirracistas na região, além de uma legitimidade para as suas demandas. Com relação à articulação referente das redes de mulheres negras na região, em 1992 foi conformada a “Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Caribenhas” como um espaço de articulação e empoderamento das mulheres afrodescendentes para a construção e reconhecimento de sociedades democráticas, equitativas, justas, multiculturais, livres de racismo, de discriminação racial, sexismo e de exclusão, e promoção da interculturalidade.15 A ideia de conformar uma articulação internacional de mulheres afrodescendentes surgiu em 1986, no III Encontro Continental de Mulheres realizado em Cuba, com o objetivo de impulsionar uma política antirracista e antissexista na região; várias mulheres negras propuseram que se incluísse na agenda de discussão a problemática das mulheres negras na América Latina. Em 1990, no V Encontro Feminista de América Latina e o Caribe, realizado na Colômbia, se concretizou a ideia, e em 1992 se conformou a Rede na República Dominicana, com a participação de 400 mulheres dos 33 países da região. Em 1996, se realizou, na Costa Rica, o segundo encontro da Rede e nele participaram pelo Brasil: Joana Angélica de Souza, Lucimar Alves e Edenice Santana de Jesus. No marco da realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas de Intolerância Conexa, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, as mulheres negras criaram, em setembro de 15 http://www.mujeresafro.org.
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2000, a “Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras” (AMNB) para articular as ações de preparação e as reivindicações que seriam colocadas na conferência de Durban. Essa articulação foi coordenada pela ONG Criola – organização de mulheres negras do Rio de Janeiro –, o Geledés – Instituto da Mulher Negra de São Paulo – e pela ONG Maria Mulher, do Rio Grande do Sul, e foi sumamente importante para garantir a presença das mulheres negras organizadas na Conferência Mundial contra o Racismo.16 É interessante salientar, como exemplo da força da participação das mulheres negras em Durban, que Edna Roland, pertencente à organização negra Fala Preta, foi escolhida como relatora oficial da Conferência Mundial contra o Racismo. Após a Conferência, a AMNB passa a se dedicar ao monitoramento das recomendações e do Plano de Ação e a formulação de estratégias de desenvolvimento inclusivo para o Brasil, centradas na proteção e na promoção dos direitos; na geração de oportunidades no mundo do trabalho na cidade e no campo; na igualdade de tratamento na vida e no respeito à diversidade humana, sem racismo, sexismo, lesbofobia ou classismo, seja para o Brasil ou para a América Latina.17
Entre finais dos anos 1990 e princípio dos anos 2000, Sueli Carneiro (2002, p. 211) observa um “novo estágio de relacionamento entre mulheres negras e brancas no Brasil, sinalizando o aumento da cumplicidade e da colaboração na luta antirracista e antissexista”. Enquanto as mulheres negras levam a suas pautas produto de lutas para dentro do movimento feminista, o movimento feminista tem que se resolver com essas pautas, produzindo, como relatam Oliveira e Sant’anna (2002), um misto de constrangimento, culpa e obrigação. Mesmo que as mulheres negras já tivessem estabelecido o debate racial dentro dos espaços de organização feminista pelo menos desde os anos 1980, essas abordagens só começaram a ser incorporadas à prática do movimento feminista brasileiro ao longo da preparação das Conferências de Beijing e Beijing + 5. Essa introdução ao debate da questão racial para o movimento de mulheres cobrava um posicionamento com relação aos efeitos do racismo e a discriminação racial no Brasil: A omissão foi, e continua sendo, constantemente denunciada como uma prática que não contribui para a satisfação dos interesses e necessidades das 16 A revista Estudos Feministas dedicou o nº 1 de 2002 a um dossiê de artigos sobre a participação das mulheres negras na Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e as formas de Intolerância Conexas. 17 https://amnbnasconferencias.wordpress.com/quem-somos/.
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mulheres negras e que, mais grave, acaba se transformando em uma prática de conivência com as atitudes preconceituosas, discriminatórias e racistas. Ou seja, denunciada como uma vivência francamente contrária ao ideal de defesa dos direitos das mulheres apregoado pelo movimento de mulheres e feminista. (OLIVEIRA; SANT’ANNA, 2002, p. 202).
O posicionamento das ativistas feministas em apoio à luta das mulheres negras, contra a prática da esterilização forçada, por exemplo, rendeu a Lei nº 209/1991 (Carneiro, 2003b). Assim mesmo, as feministas se uniram às mulheres negras para manter o termo “étnico-racial” do artigo 32 das resoluções da Conferência Mundial da Mulher celebrada em Beijing em 1995, e assim “fazer uma referência explícita à opressão sofrida por um contingente significativo de mulheres em função da origem étnica ou racial” (CARNEIRO, 2003a), uma vez que o G-77 fez pressão para se tentar retirar o termo. Algumas autoras coincidem na análise de que o momento mais importante de reconhecimento das pautas das mulheres negras pelo feminismo nacional e também de possibilidade de construção de uma agenda política que coloca no centro a interseccionalidade das discriminações de gênero e raça foi o processo preparatório para a Conferência de Durban.18 Guacira Cesar de Oliveira e Wânia Sant’anna (2002) analisam a participação da Associação de Mulheres Brasileiras (AMB) na III Conferência Mundial contra o Racismo como produto de embates, confrontos e negociações que levaram a uma conscientização sobre a especificidade da opressão das mulheres negras. Após a explicitação do impacto do racismo na vida das mulheres brasileiras, ficava evidente a necessidade da AMB se envolver no processo de preparação da III Conferência Mundial contra o Racismo: “Seria muito difícil imaginar que a AMB optasse por essa estratégia de atuação sem que, em seu interior, houvesse mulheres negras forçando uma posição explícita nessa direção. (OLIVEIRA; SANT’ANNA, 2002, p. 203). O processo preparatório da Conferência possibilitou a aproximação da AMB com os movimentos de mulheres negras, mas também com outras organizações do movimento negro e de defesa dos direitos humanos. Segundo Oliveira e Sant’anna (2002), a Conferência Mundial contra o Racismo permitiu avançar “na conformação de uma ação coletiva e plural contra o racismo”, mesmo que a participação majoritariamente foi de grupos vinculados à luta antirracista e teve grande ausência de outros grupos da sociedade civil (OLIVEIRA; SANT’ANNA, 2002, p. 205). 18 O Jornal da Rede Feminista de Sexualidade e Saúde, que dedicou o número de março de 2001 à III Conferência contra o Racismo e aborda temas de raça e saúde. A AMB contribuiu na preparação do documento “Mulheres negras: um retrato da discriminação racial no Brasil”.
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O protagonismo que as mulheres negras vão ganhando dentro do movimento feminista nacional vai produzindo mudanças nas percepções e nas organizações do movimento feminista brasileiro. É possível perceber isso na introdução de setoriais específicos dentro das instituições de políticas para mulheres para se articular e atender às reivindicações das mulheres negras. Mas também fica manifesto nos enunciados e propostas da Plataforma Política Feminista, proveniente da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, realizada entre 6 e 7 de junho de 2002, em Brasília. A Plataforma reposiciona a luta feminista no Brasil nesse novo milênio, sendo gestada (como é da natureza feminina) coletivamente por mulheres negras, indígenas, brancas, lésbicas, nortistas, nordestinas, urbanas, rurais, sindicalizadas, quilombolas, jovens, de terceira idade, portadoras de necessidades especiais, de diferentes vinculações religiosas e partidárias. [...] (CARNEIRO, 2003b, p. 126).
O documento trazia entre as suas propostas temas que evidenciavam a ampliação da categoria mulher; nesse sentido, a primeira proposta é: “reconhecer a autonomia e a autodeterminação dos movimentos sociais de mulheres” e a diversidade de lutas dentro do movimento: a luta antirracista, compromisso com a igualdade étnico-racial, a luta contra a discriminação por gênero ou identidade sexual, a luta pela terra e pela moradia, a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, entre outras (CARNEIRO, 2003b). Essa diversidade de mulheres, com assuntos e reivindicações diversos, produziu mudanças relevantes no feminismo brasileiro. Por um lado, o próprio discurso feminista se diversificou, assumindo para si um amplo leque de assuntos que interessam à realidade da vida das mulheres brasileiras: questões de classe, de reforma agrária, moradia, trabalho doméstico passaram a ser parte da agenda feminista graças ao fato de as mulheres negras o disputarem para si e para o feminismo, se deslocando o sujeito mulher. Por outro lado, os discursos feministas circularam nos mais diversos espaços de luta dessas mulheres. As instituições do Executivo Nacional, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) também se configuraram como importantes espaços de luta e de formulação de políticas públicas contra o racismo e sexismo para as mulheres negras. A Seppir foi criada em 21 de março de 2003, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Transformada em Ministério em fevereiro de 2008, esse mecanismo institucional foi fundamental para a organização das mulheres negras e para a inclusão, na agenda política, de muitas das suas reivindicações históricas. Três mulheres negras de conhecida trajetória de luta pelos direitos das mulheres negras estiveram na chefia da Seppir: Matilde Ribeiro (2003-2008), Luiza Bairros
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(2011-2014) e Nilma Gomes (2014-2015). A Seppir participa do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e também tem um papel importante na formulação de políticas públicas para mulheres negras e na organização das CNPMs.19 Além disso, a Seppir tem distintos programas de apoio às organizações das mulheres negras na luta contra o racismo e o sexismo. Talvez uma das ações mais emblemáticas da Seppir seja a desenvolvida para regulamentar e garantir os direitos às trabalhadoras domésticas, reivindicação que faz parte das lutas históricas do movimento de mulheres negras. Dentro dessas ações está o Plano Trabalho Doméstico Cidadão, da cuja elaboração participou Matilde Ribeiro, então ministra da Seppir. A SPM também desenvolve programas e ações voltadas para o combate ao racismo e o sexismo, muitas delas em parceria com a Seppir. O crescente protagonismo das mulheres negras e a sua inserção nos espaços de promoção de políticas públicas ficaram evidentes na I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, organizada pela SPM em 2004. Nessa I Conferência, 44% das participantes eram mulheres negras.20 Assim, “consolidar a igualdade de gênero e a igualdade racial” é rapidamente enunciado como uma das diretrizes da política de gênero a ser formulada no Brasil. Essa consciência de enfrentamento ao racismo e ao sexismo também foi ressaltada pelas mulheres indígenas na I CNPM. No seu discurso, Dirce Veron, representante do Conselho Nacional das Mulheres Indígenas no CNDM, fez um chamado: E eu gostaria aqui, até vou levantar, eu gostaria de pedir mesmo para as mulheres negras, não querendo deixar as mulheres brancas de lado, mas para as mulheres negras, nós somos as mais discriminadas nesse país, vamos fazer um pacto, vamos nos levantar e vamos nos juntar porque eu acho que só assim que verdadeiramente as políticas públicas para a mulher vão ter mudança nesse país. (VERON, 2004, p. 79).
Cientes dos efeitos do racismo patriarcal, mulheres negras e indígenas firmaram, durante a I CNPM, uma “Aliança de Parentesco”,21 segundo a qual 19 Por exemplo, no dia 25 de julho de 2011 e em celebração ao “Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha” a Seppir, chefiada pela Ministra Luiza Bairros, realizou uma videoconferência titulada “Participação da Mulher Negra nas Conferências Nacionais”, que está disponível na íntegra no Youtube; nela participaram mulheres negras representantes de 16 estados do Brasil em interesse de avaliar os planos de políticas públicas para mulheres e pensar as propostas de políticas públicas para mulheres negras na conferência de 2011. 20 Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal – Ibam, disponível nos Anais da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. 21 Agradeço a Schuma Schumaher por chamar a minha atenção sobre esse documento. Ver mais sobre essa carta: .
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“Doravante índias e negras consideram-se parentes”. Esse acordo deve ser considerado um marco histórico nas lutas contra o racismo e o sexismo no Brasil. Nele, mulheres negras e indígenas reconhecem a semelhança da opressão colonial, a semelhança nos processos de exclusão histórica e a necessidade de reparação por parte do Estado e decidem se aliar na luta contra o racismo patriarcal e na conquista dos seus direitos. O dia 18 de novembro de 2015, no marco do Dia da Consciência Negra, mulheres negras e alguns coletivos de mulheres indígenas ocuparam a Esplanada dos Ministérios em Brasília, na Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver. Sendo idealizada pela “Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras” (AMNB), essa marcha é muito significativa da relevância que o movimento de mulheres negras tem adquirido no Brasil, porque foi uma marcha explicitamente convocada por mulheres negras, mas que tinha o intuito de representar na voz e no corpo das mulheres negras, a luta contra o racismo no Brasil. E de certa forma, essa marcha subverte uma lógica até então predominante, considerar como geral (de homens e mulheres) as ações protagonizadas no masculino, e considerar como específicas as ações protagonizadas por mulheres. A Marcha das Mulheres Negras foi sim uma marcha para visibilizar e denunciar a especificidade da violência que recai sobre as mulheres negras, mas foi também uma marcha para denunciar o racismo imperante na sociedade brasileira, contra homens e mulheres de forma que, por exemplo, a pauta contra o genocídio da juventude negra foi levantada, e foi também uma marcha para mobilizar os mais variados setores da sociedade civil na luta contra o racismo. Já o Bem Viver foi incorporado para sinalizar que acreditamos na necessidade de mudança do chamado “modelo de desenvolvimento”, combatendo, portanto, a mercantilização-financeirização dos recursos naturais/bens comuns, o consumismo exacerbado, o lucro insano, o capitalismo neoliberal, enfim. (BENTES, NILMA, 2016, p. 9)
É de salientar que durante a realização de Marcha das Mulheres Negras, o Brasil se encontrava em um clima de crescente instabilidade política com grupos advogando pela destituição da Presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseauf. O passo de uma Marcha democrática, antirracista e favorável a valores progressistas, como a Marcha das Mulheres Negras, provocou a ira de manifestantes pró-impeachment e pela intervenção militar acampados na Esplanada dos Ministérios. Com saudações nazistas, manifestações racistas e machistas, e inclusive disparos esses manifestantes colocaram em risco a vida de mulheres idosas, crianças e jovens que participavam da caminhada, ao tempo que trouxeram a tona uma das
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principais motivações do seu posicionamento político: frear a caminhada dos grupos historicamente subalternizados do Brasil, limitar os modestos avanços conseguidos nos últimos anos de aumento da participação política de mulheres negras, indígenas, brancas, pobres e da diversidade sexual, entre outros grupos tradicionalmente marginalizados. Nesse mesmo ano em outubro, após uma reforma ministerial na tentativa de garantir a estabilidade política, a SPM e a Seppir haviam perdido seu caráter ministerial voltando a ser apenas Secretarias, desta vez vinculadas ao recém-criado Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, do qual Nilma Gomes foi nomeada ministra. Em maio de 2016 tem lugar a IV CNPM com uma importante presença de delegadas negras. O impacto da participação de mulheres negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas fica evidente no fato de que raça, etnia e classe social aparecem nas diretrizes temáticas como se referindo a desigualdades estruturais que devem ser levadas em consideração para pensar políticas de igualdade de gênero. Desse modo, se coloca a exigência de promover políticas concretas que efetivem a igualdade e equidade de gênero, raça e etnia e a livre orientação sexual desde uma perspectiva antirracista, que levem em consideração também as especificidades de ser mulher negra, indígena, quilombola, ribeirinha. Inclusive algumas demandas históricas das mulheres negras e indígenas aparecem explicitamente entre as diretrizes como garantia de direitos trabalhistas para empregadas domésticas, de direito de terra e moradia, demarcação, homologação e/ou titulação dos territórios indígenas e quilombolas, para atender às especificidades da violência dos militares contra mulheres indígenas e ribeirinhas, e o reconhecimento de práticas tradicionais de saúde indígena e de matriz africana, entre outras. Em entrevista a Larissa Amorim Borges,22 Creuza Oliveira,23 militante que participou ativamente na organização das conferências, faz uma avaliação bastante crítica sobre a transformação efetiva dessas reivindicações mulheres em políticas públicas:
22 No marco do Fórum Nacional de Mulheres Negras 2018, minha amiga, militante do movimento negro, doutoranda em psicologia (UFMG) Larissa Amorim Borges se ofereceu a realizar uma série de entrevistas a mulheres negras que participaram das CNPMs; infelizmente durante o encontro a notícia do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco obrigou as mulheres negras a mudar a agenda do evento e iniciar ações de protesto e a demandar justiça pelo assassinato político de Marielle Franco e contra o genocídio da população negra. Deixo aqui o meu agradecimento a Creuza de Oliveira, a Iêda Leal de Souza por gentilmente nos conceder a entrevista. E a Larissa Amorim Borges pelo suporte para a realização deste capítulo. 23 Fundadora da Associação das Trabalhadoras Domésticas da Bahia. Presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e membro do Movimento Negro Unificado.
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A conferência da mulher, a conferência da igualdade racial, todas essas conferências foram importantes para nós mulheres do movimento negro, participamos ativamente da comissão para acontecer as conferências, né? Reivindicamos isso, apresentamos propostas, né? A gente teve coisas importantes, foi discutida a questão da mulher, a questão racial, a questão da mulher indígena, nem tudo que a gente pôs ali no plano das políticas, nem tudo foi atendido, nem postas em prática, muitas dessas propostas acabaram ficando só no plano de ação, mas não foi executada como nós mulheres negras defendemos na conferência de política para as mulheres. Muita coisa deixou a desejar e hoje vivemos um processo de retrocesso, se a gente teve dificuldade de conseguir, imagina agora ainda está pior, estamos vendo aí o retrocesso nas conquistas (Creuza de Oliveira, 2018).
Fica ainda como uma tarefa pendente uma avaliação do impacto das Conferências na formulação de políticas públicas para mulheres.
Perfil socioeconômico das delegadas negras que participaram nas CNPMs 2011 e 201624 É importante insistir que no quadro das profundas desigualdades raciais existentes no continente, se inscreve, e muito bem articulada, a desigualdade sexual. Trata-se de uma discriminação em dobro para com as mulheres não brancas da região: as amefricanas e as ameríndias. O duplo caráter da sua condição biológica – racial e sexual – faz com que elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal racista dependente. Justamente porque este sistema transforma as diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um caráter triplo, dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte, na sua grande maioria, do proletariado afro-latino-americano. (GONZALEZ, 1988).
Segundo a Síntese de Indicadores Sociais nº 36 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016), em 2011, 49,9% da população feminina no Brasil se declarou preta ou parda, esse percentual foi para 52,7%, em 2015. Nesta seção, se apresentam alguns dados que compõem o perfil socioeconômico das delegadas negras que participaram nas CNPMs 2011 e 2016 em comparação com dados socioeconômicos da população feminina negra do Brasil em 2011 e em 2015, por ser esse o último ano disponível na Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2016) e no estudo “Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça” do Ipea (2017). Para a identificação da raça ou cor das mulheres que participaram da pesquisa, se respeitou o critério de autodeclaração com um conjunto de respostas 24 Agradeço a minha amiga e colega de doutorado Mariela Rocha pelo apoio no processamento dos dados e pela leitura cuidadosa desta seção.
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fechadas coincidentes com a categorização utilizada pelo IBGE: branca, preta, amarela, parda e indígena, e se incluiu as opções “Não sei/Prefiro não declarar”. Entre ambas as pesquisas foram entrevistadas 723 delegadas, das quais 661 declararam cor ou raça. Os dados a seguir são analisados a partir dessa base de respondentes. As respostas das mulheres/delegadas que se declararam pretas e pardas foram codificadas na categoria negras. A análise a partir da categoria negra permitirá comparar com os dados de desigualdade racial e de gênero no Brasil, na mesma forma que apresentados no Relatório da Desigualdade Racial e de Gênero (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017).
Qual sua cor/raça? A distribuição percentual das mulheres delegadas na CNPM de 2011 e na CNPM de 2016 por cor e raça apresenta uma composição semelhante: a representação de mulheres negras delegadas em ambas as Conferências Nacionais é de quase 60%, quer dizer, daquelas que declararam ser de cor/raça preta ou parda25, enquanto cerca de 40% das delegadas se declarou de cor/raça branca em ambas as Conferências. A exceção vem a ser a participação de mulheres indígenas, que caiu de quase 4% na 3ª CNPM para 2% na 4ª CNPM, como se vê no gráfico a seguir: Gráfico 1. Qual sua cor/raça?
Em ambas as Conferências, a participação de mulheres negras e indígenas é superior, em termos percentuais, da distribuição de mulheres negras e indígenas do Brasil, tendo-se claro como referência a população total feminina (ver Tabela 1). O que é um dado interessante se pensamos sobretudo na sub-representação histórica de mulheres em geral e ainda mais de mulheres negras e indígenas nos espaços de representação política. A análise do perfil das delegadas nas duas últimas CNPMs parece sugerir 25 Em 2011, 99 mulheres se declararam pretas e 98 mulheres se declararam pardas. Em 2016, 98 mulheres se declararam pretas e 90 mulheres se declararam pardas.
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que o desenho institucional das Conferências tende a ser mais democrático, mais inclusivo e a representar mais justamente o componente racial da população brasileira. E coloca a questão de se as Conferências têm produzido padrões de participação na contramão dos padrões históricos de ocupação de posições de poder no Estado (seja no Poder Executivo e/ou no Judiciário) e de acesso às instâncias institucionais de representação por cargos de eleição popular (no Poder Legislativo), onde homens brancos estão absolutamente sobrerrepresentados. Tabela 1. Delegadas negras na 3ª e 4ª CNPMs em relação ao total de mulheres negras no Brasil. Número absoluto (linha superior) e distribuição percentual (linha inferior). Mulheres negras delegadas Mulheres negras do Brasil na Conferência 197 50.891.944 2011 58,6% 49,9% 188 55.613.764 2016/2015 57,8 % 52,7%
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM e Sínteses de Indicadores Sociais IBGE, 2016.
Com relação à zona de residência: rural ou urbana, em ambas as CNPMs, a maior parte das mulheres negras delegadas provinham da área urbana. Contudo, como se mostra na tabela 2, a distribuição percentual se assemelha muito à distribuição percentual de mulheres negras por área rural e urbana no Brasil, com uma pequena diferença em benefício da representação da população urbana, mas que estatisticamente não é significativa26. Tabela 2. Distribuição das delegadas negras por área rural e urbana na 3ª e 4ª CNPMs em relação à distribuição da população feminina negra por área rural e urbana no Brasil Distribuição percentual de mulheres Distribuição percentual de mulheres Ano negras área rural negras área urbana Delegadas Delegadas Brasil Diferença Brasil Diferença na CNPM na CNPM 20 8.642.686 176 42.249.258 2011 -6,8 5,8 10,2% 17% 88,8% 83% 2016/ 23 9.508.688 165 46.105.076 -4,8 4,7 2015 12,2% 17% 87,7% 83%
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM e estudo “Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça” do Ipea, 2017. 26 Ainda em 2016 participaram 4 delegadas de povos quilombolas, 1 delegada de povos ciganos, 1 delegada de comunidades ribeirinhas, 2 delegadas de ocupações e comunidades de resistência urbana, 7 delegadas de povos indígenas e 4 de comunidades rurais e assentamentos de reforma agrária.
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Outro dado interessante é o de que, enquanto a média de anos de estudo das mulheres negras de 15 anos ou mais no Brasil é de, aproximadamente, 7 anos de estudos, mais do que 90% das delegadas negras que participaram nas CNPMs e que responderam à pergunta sobre o grau de escolaridade se localizam acima da média. Em 2011, 57% das delegadas negras afirmaram ter ensino superior completo e em 2015 essa percentagem foi de 55%, como pode ser observado no Gráfico 2. Gráfico 2. Escolaridade das delegadas negras na CNPMs 2011 e 201627
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM
O relatório “Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça” (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2017) mostra as desvantagens históricas das mulheres negras e, especialmente no campo da educação, os indicadores apresentam um diferencial racial: mesmo que a taxa de analfabetismo venha caindo no Brasil, em 2015, último dado disponível, a taxa de analfabetismo de mulheres negras foi de 10,2%, enquanto a média nacional foi de apenas 8%. Para se ter uma ideia do que isso significa em termos de gênero e raça, a taxa de analfabetismo entre os homens brancos, no mesmo ano, foi de 4,9%. Evidentemente, os dados de escolaridade das mulheres negras delegadas das CNPM não refletem o perfil de escolaridade das mulheres negras do Brasil. 27 A parcela da população que não informou anos de estudo não foi considerada para construção deste gráfico.
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Contudo, esses dados refletem uma característica que já tem sido relatada com relação à participação nas Conferências: o perfil da participação apresenta certas características homogêneas em termos de escolaridade e, mas também em termos de renda, que diferem do perfil nacional (AVRITZER, 2012). Ao observar a renda declarada pelas delegadas, percebe-se que a média do rendimento mensal familiar das mulheres negras delegadas na 3ª Conferência foi de R$ 4.020,14 e em 2016 foi de R$ 4.567,19. Como se observa no Gráfico 3, em ambas as Conferências, o Estado foi o principal empregador das mulheres negras e indígenas, o que também reflete uma característica da participação nas CNPMs em geral: 52% em 2011 e 38% em 2016 do total de delegadas declararam pertencer ao setor público ou militar. Mesmo diminuindo a sua participação em 2015, as funcionárias públicas ou militares continuaram sendo a principal categoria de trabalho remunerado das delegadas negras. É interessante notar ainda que o setor público seja o principal empregador; a maioria das mulheres negras delegadas na conferência declarou participar em representação de setores da sociedade civil (ver Gráfico 6). Tabela 3. Número de delegadas negras por categoria de trabalho e distribuição percentual nas 3ª e 4ª CNPMs 2011 2016 Total Categorias de trabalho
N
%
N
%
N
%
Assalariada registrada Assalariada sem registro (e sem carteira de trabalho assinada) Autônoma regular (paga INSS) sem curso universitário Autônoma/fazendo bicos sem curso universitário Empresária
29
18%
26
17%
55
17%
11
7%
15
10%
26
8%
1
1%
5
3%
6
2%
2
1%
8
5%
10
3%
1
1%
0
0%
1
0%
Estagiária/Aprendiz remunerada
1
1%
0
0%
1
0%
103
64%
72
46%
175
55%
3
2%
13
8%
16
5%
9
6%
17
11%
26
8%
160
100%
156
100%
316
100%
Funcionária pública ou militar Outro Profissional liberal autônoma (com curso universitário) Total geral
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM
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Gráfico 3. Categorias de trabalho remunerado a que pertencem as mulheres negras delegadas na 3ª e 4ª CNPMs
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM
É possível constatar a existência de certas características homogêneas no perfil da participação nas CNPMs em termos de renda, escolaridade, emprego, por exemplo. Um desafio, portanto, é garantir que a realidade de baixo grau de escolaridade e baixa renda não se traduzam em empecilhos à participação de mulheres negras.
Mulheres negras e participação De acordo com Pogrebinshi (2012, p. 9): as conferências nacionais propiciam a participação direta de grupos sociais e culturais que logram ter seus interesses minoritários representados ao vê-los convertidos em políticas públicas desafiando, assim, o argumento de que cidadãos só se podem fazer representados nas instituições políticas individualmente, por meio de eleições, ou coletivamente, por meio de lobbies e grupos de interesse.
Pogrebinschi (2012) aponta que a garantia da participação direta dos grupos nas Conferências Nacionais propicia uma representação de interesses mais justa, uma inclusão real das diferentes perspectivas e uma redefinição da prática da igualdade política que não teria mais como precondição apenas a homogeneização dos grupos, mas a garantia de participação de negros, negras, indígenas, mulheres, entre outras coletividades historicamente excluídas:
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As conferências acionais têm, assim, a habilidade de fazer com que a agregação de preferências individuais resulte, de fato, em escolhas sociais – e, mais do que isso, ao destronarem o pluralismo pelo multiculturalismo e transformarem coletividades historicamente excluídas em sujeitos de direito, as conferências nacionais convertem minorias em maiorias, e fazem de interesses particulares políticas universais. (POGREBINSCHI, 2012, p. 9) .
Mais do que 80% das mulheres delegadas negras que participaram nas 3ª e 4ª CNPMs se consideraram feministas (ver Gráfico 4). Mais de 60% respondeu ser filiada a algum partido político (ver Gráfico 5). E 65% em 2011 e 52% em 2016 das delegadas negras que estavam na Conferência o fizeram a partir de representação de movimento social, sendo que participavam ainda em algum outro movimento social além do movimento que estavam representando nas CNPMS. Gráfico 4. Você se considera feminista?
Gráfico 5. Você é filiada a algum partido político?
201
Como mencionado, a origem da participação das mulheres negras na Conferência é majoritariamente oriunda da sociedade civil, sendo que, em 2011, 53% das participantes declararam representar a sociedade civil e 47% declararam representação governamental; em 2016 a diferença foi ainda maior, sendo que a representação da sociedade civil subiu para 65% versus 35% de representação governamental,28 como é possível observar no gráfico a seguir: Gráfico 6. Nesta conferência você é delegada representante do governo (federal, estadual, municipal) ou da sociedade civil (movimentos, redes, sindicatos etc.)?
Considerando apenas as mulheres negras que participaram da 4ª Conferência por representação de algum setor da sociedade civil, a grande maioria dessas mulheres, como era de se esperar, estava na Conferência em representação de alguma organização do movimento feminista, que abarcava os mais diversos temas de interesse, desde os temas que historicamente ocupam a agenda feminista, como maternidade, combate à violência contra a mulher, associações com agendas de luta históricas das mulheres ou organizações das trabalhadoras, trabalhadoras domésticas, movimentos de reforma urbana, movimentos de favela, da luta pela terra e direito à moradia, passando por organizações das mulheres privadas de liberdade, mulheres da economia solidária, mulheres catadoras, mulheres ciganas, do movimento de mulheres negras, do movimento LQBT, mulheres quilombolas. Aproximadamente 6% das delegadas negras, representantes da sociedade civil, falaram especificamente que estariam representando alguma organização do movimento negro na CNPM de 2016.29 Em outra pergunta, indagada a partici28 Foram retiradas 2% de respostas nulas para os cálculos. 29 Como delegada(o), qual é a entidade/grupo/organização/rede/setor ou órgão do governo que você representa?
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pação em coletivo ou associação do movimento negro, 21% das delegadas negras responderam que participavam como membros, e 27% falou que participava das reuniões e atividades do movimento negro. É interessante constatar que 48% das delegadas negras que participam de movimento feminista também têm alguma interação com a luta antirracista, seja através de organizações do movimento negro misto, do movimento de mulheres negras, ou participando de atividades e encontros, como se vê no gráfico a seguir: Gráfico 7. Você participa do movimento negro?
No entanto, o Gráfico 7 também mostra que, na mesma pergunta, 83% das entrevistadas brancas responderam não participar das atividades ou reuniões do movimento negro. Como entender esse dado? O movimento negro, assim como o indígena e o LGBTTI, costuma ser considerado principalmente identitário, mais do que como movimento de luta por direitos. E, de fato, uma dimensão importante desses movimentos consiste na produção de espaços de interação onde os grupos possam criar e fortalecer a sua identidade política e produzir, a partir de perspectivas e lugares de enunciação semelhantes, referenciais próprios para a sua luta.
203
Isto pode estar explicando a pouca participação como membro de mulheres que não pertençam ao grupo, mas não explica a baixa participação em atividades e/ou reuniões propostas por esses movimentos. E traz uma questão: se o movimento de mulheres negras tem construído um caminho de entendimento teórico e de construção de uma prática política que compreende a imbricação do racismo e do patriarcado, qual o protagonismo do movimento feminista nacional, das mulheres não racializadas na construção desse mesmo caminho?
Considerações finais Coloca-se assim, como desafio da esquerda no século XXI, registrar as ações das mulheres negras e faveladas que são marcas de conquistas e pigmentações de ações transformadoras, inventivas e potencialmente revolucionárias. Disputar o olhar, sentimentos e pensamentos para um mundo que vive mudanças todo o tempo e situar as ações existentes das mulheres negras, nesses territórios, superando em suas vidas o impacto do racismo institucional, é uma ação estratégica para esquerda no contemporâneo e ganha ênfase no cenário do golpe imposto no Brasil. Marielle Franco, 2017.
A grande participação de mulheres negras nas 3ª e 4ª CNPMs nos diz sobre a necessidade de se instituir uma agenda de defesa dos direitos das mulheres e de elaboração de políticas contra a discriminação que levem em consideração a interseccionalidade de gênero e raça. As Conferências como espaços de deliberação e de exposição das mais diversas demandas acolhem uma enorme diversidade de assuntos e reivindicações das mulheres, o que reflete os diferentes posicionamentos sociais e a diversidade das perspectivas delas. Mesmo tendo observado que a análise do perfil das delegadas nas duas últimas CNPMs nos parece sugerir que o desenho institucional das Conferências tendeu a ser mais democrático, mais inclusivo e a representar mais justamente o componente racial da população brasileira, importa salientar que ainda existem desafios gigantescos para romper com certas características homogêneas no perfil da participação em termos de renda e escolaridade: são as mulheres negras mais escolarizadas e com renda acima da média as que mais participaram nos dois processos deliberativos. Quase a totalidade das mulheres negras que participaram das CNPMs de 2011 e 2016 têm ensino médio completo, e sabemos que essa não é a realidade da população de mulheres negras do Brasil. Portanto, esses dados podem estar revelando a dificuldade de as mulheres com menor escolaridade e
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menor renda virem a participar, de fato, do processo das Conferências (municipais e estaduais) e de serem, afinal, eleitas delegadas nacionais para as CNPMs. Neste capítulo quisemos focar no protagonismo das mulheres negras nas lutas feministas e antirracistas. Contudo, não podemos ignorar que, em contextos de governos mais permeáveis a reconhecer a necessidade de garantir a participação de grupos sociais historicamente vulnerabilizados, e mais permeáveis a reconhecer a legitimidade das suas demandas, se abrem oportunidades de inserir essas demandas dentro do Estado e as traduzir em políticas públicas. Esse contexto parece estar mudando no Brasil. A 4ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres coincidiu com o afastamento da presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff. Quem esteve presente pôde constatar que um clima de instabilidade e desconcerto frente à possibilidade de retrocesso que se instaurou nos espaços da Conferência. Essa desconfiança se tornou ainda mais forte após o primeiro gabinete ministerial do governo interino ser conformado sem a participação de mulheres negras, ou indígenas, ou brancas, ou homens negros. É impossível não apontar a ironia, às vésperas do dia 13 de maio, dia da abolição formal da escravatura, e que o Movimento Negro tem ressignificado como de combate ao racismo, de assistirmos, no Brasil, à ausência absoluta de negros e negras na equipe ministerial e à diminuição do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, primeira medida no novo governo.30 Ainda que as competências em matéria de igualdade racial e direitos das mulheres formalmente tenham sido permanecidas no Ministério de Justiça e Cidadania, o sentimento de perda de direitos na decisão de realocar tão importante Ministério foi muito grande. Em fevereiro de 2017 foi recriado o Ministério dos Direitos Humanos, sem referência explícita às mulheres, ou à luta pela igualdade racial, mas a Seppir passa a fazer parte da estrutura organizativa desse ministério, enquanto a SPM volta a ser uma secretaria da Presidência da República. Torna-se indispensável investigar os efeitos dessas mudanças para as políticas de igualdade racial e de gênero no Brasil. Após décadas de militância e a experiência de participação contida nas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, infelizmente, as reivindicações históricas das mulheres negras continuam vigentes. A luta contra o racismo patriarcal e suas consequências na vida das mulheres negras continua vigente. O Estado brasileiro continua em dívida em sua obrigação de garantir o direito à vida 30 Ver Medida Provisória nº 726, de 12 de maio de 2016. Presidência da República. Disponível em: . Acesso em: jan. 2018.
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à população negra, vide os altos índices de homicídios contra a essa população que nos fazem falar de genocídio da juventude negra, os altos índices de encarceramento, violência policial, os altos números de feminicídios que afetam as mulheres negras, as limitações em acesso a bens econômicos, emprego, salário justo, o risco de perda de direitos trabalhistas, a sub-representação das mulheres negras nos espaços de poder político, o racismo contínua limitando o acesso à saúde, as mulheres negras continuam a enfrentar violência obstétrica. Com a falácia da narrativa de “crise econômica”, busca-se derrubar os direitos conquistados e, uma vez feito, serão as mulheres negras e pobres, moradoras das periferias, principalmente das favelas, que estarão ainda mais vulneráveis à violência e ao racismo institucional impregnado nos poros da formação social brasileira (FRANCO, 2017, p. 94).
A acertada análise acima é de Marielle Franco (2017), vereadora do Rio de Janeiro, assassinada no dia 15 de março de 2018. Mulher, negra, feminista, lésbica e favelada, seu mandato e seus projetos se caracterizaram pela luta antirracista, pela centralidade do feminismo, da luta pelos direitos da população LGBT, do direito à cidade, e principalmente da garantia dos direitos nas favelas em um período marcado por intervenção militar. No dia do seu assassinato, o movimento de mulheres negras celebrava a reunião do Fórum de Mulheres Negras no marco do Fórum Social Mundial. O tema desse ano foi a avaliação dos trinta anos do primeiro encontro de mulheres negras. De forma vergonhosa, para o Estado brasileiro, a luta das mulheres negras e indígenas em 2018 continua sendo uma luta por sobrevivência. Queremos finalizar com as palavras de Creuza de Oliveira, que, no marco da avaliação dos trinta anos do movimento de mulheres negras, reconhece a importância da liderança das mulheres negras para a sociedade brasileira e para o mundo, e a ainda afirma que: A gente sempre se organizou. As poucas políticas que conquistamos foi através da nossa luta e agora, nesse momento, as mulheres continuam se organizando [...] a gente não vai desistir, mesmo com esse retrocesso a gente vai continuar lutando [...] nós que sustentamos essa sociedade [...] não aceitamos nenhum retrocesso, não aceitamos nenhum direito a menos, a gente quer é direito a mais e não a menos, então a luta continua (Creuza de Oliveira, 2018).
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Entrevistas OLIVEIRA, Creuza. Entrevistada por Larissa Borges durante o Fórum Nacional de Mulheres Negras 2018, Salvador, 14 de março de 2018.
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O debate sobre legalização do aborto e a inclusão de diferenças nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres: direito ao corpo e feminismos jovens Laura Martello1
Introdução O golpe de Estado consolidado em 2016 (GERALDES et al., 2016; SOUZA, 2016) que retirou do poder a primeira presidenta eleita no Brasil faz parte de uma reação orquestrada por setores conservadores contra avanços conquistados nos últimos anos pelos movimentos feministas, negro e LGBT, especialmente no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Os avanços institucionais nesse sentido foram muito modestos, devido à composição majoritariamente conservadora do Congresso Nacional, mas nos planos social e político mais amplos é perceptível que houve uma grande difusão das ideias feministas. Essa difusão pode ser percebida pela efervescência de manifestações, mobilizações e intensa presença do debate feminista e de gênero nas ruas, nos ambientes de trabalho, nas famílias, nas escolas e universidades, na mídia e nos mais diversos âmbitos políticos e públicos. A ofensiva conservadora mostra sua articulação em torno do controle sobre o corpo da mulheres, da sexualidade, das normas de gênero e se encontra presente nos mais diferentes níveis, fortalecendo um discurso antifeminista em todos os âmbitos da vida cotidiana e, especialmente, nos espaços de maior poder político. Mulheres jovens, idosas, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, negras, ciganas, indígenas, deficientes e encarceradas têm sentido na pele essa reação violenta, mas têm também resistido firmemente e mostrado sua força, através de formas irreverentes e criativas, que expressam a amplitude que os feminismos jovens conquistaram e como as trocas intergeracionais também permitem maior comunicação entre mulheres de várias idades, de distintos pertencimentos étnico-raciais, diferentes origens de classe e profissões. As manifestações do “Fora Cunha” (contra o então presidente da Câmara que impulsionou diversos projetos de lei contrários aos direitos das mulheres, 1 Doutoranda em Ciência Política na UFMG.
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incluindo um projeto que restringia ainda mais os casos de aborto legal, que é descrito também no Capítulo 1 deste volume, por Schuma Schumaher), contra a violência sexual e contra o feminicídio foram as mais numerosas das últimas décadas. Tais mobilizações nos mostram que, ao contrário da suposta apatia frente à ofensiva política da direita no Brasil, as mulheres se encontram, mais do que nunca, organizadas, apoiando-se nos seus espaços cotidianos e articulando-se nos planos local e translocal (ALVAREZ, 2014) latino-americanos. A pouca reverberação de tais ações no âmbito do Estado e da mídia se dá às custas de muita repressão policial e de violência econômica e simbólica. Um dos momentos mais emblemáticos do golpe parlamentar ocorreu, justamente, durante a 4a Conferência Nacional de Política para Mulheres: a votação sobre a admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff no Senado Federal. Um dia após a participação de Dilma na abertura do evento, onde foi emotivamente aclamada pelas delegadas, grande parte das mesmas abandonou as atividades em curso nos grupos de trabalho, pois se sentiram instadas a tomar ação frente ao que estava ocorrendo: sendo retirado o governo que possibilitou a consolidação das políticas participativas e construiu uma estrutura institucional de Promoção de Políticas para Mulheres sem precedentes na América Latina, provavelmente as deliberações que debatiam não iriam se efetivar. Mobilizadas por tambores e cantos seguiram em direção à Esplanada dos Ministérios: mulheres jovens, idosas, adultas, crianças, negras, brancas, indígenas, quilombolas, de povos tradicionais, de comunidades de terreiros, lésbicas, heterossexuais, bissexuais, travestis, transexuais, professoras, gestoras públicas, comerciantes, donas de casa de todas as regiões do Brasil, em defesa dos direitos das mulheres e, sobretudo, do direito de manter o mandato da presidenta legitimamente eleita. Chegando lá, mesmo com quilômetros de barreiras físicas e policiais que garantiam a distância do Congresso Nacional, foram recebidas pela polícia com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, elementos que não foram utilizados com os grupos pró-Golpe, estes últimos vestidos de verde e amarelo, que se encontravam do outro lado da esplanada. A violência policial dispersou a manifestação e causou grande mal-estar físico e psicológico nas mulheres presentes, especialmente nas mais idosas. Nos dias seguintes, com a admissão do processo de impeachment pela Câmara, a presidenta foi afastada por 180 dias e tomou posse o então vice-presidente, Michel Temer. A Secretaria de Políticas para mulheres, que havia perdido seu status ministerial ainda no governo Dilma,2 passando a integrar o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH), sofreu nova 2 Medida Provisória nº 696 de 2 de outubro de 2015.
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ofensiva. Uma das primeiras ações do governo Temer foi a Medida Provisória nº 726, de 12 de maio de 2016, que extingue diversos ministérios, como o Ministério da Cultura, além de outros órgãos importantes para os direitos das minorias sociais, inclusive o MMIRDH. O Ministério de Direitos Humanos em seguida foi reinstituído e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial passou a ser parte de sua estrutura, apesar de não haver mais menção à questão racial no nome do ministério. A Secretaria de Política para Mulheres passou a integrar o Ministério da Justiça e posteriormente voltaria a ser ligada à Presidência da República. Ambas as secretarias passaram a ser órgãos subordinados a estruturas institucionais que desde então se encontram em mãos de religiosos e conservadores. Saímos da 4a CNPM com as secretárias Eleonora Menicucci e Nilma Lino Gomes já exoneradas e a sensação de que todos os anos de participação democrática e de difícil construção de políticas públicas para mulheres no Brasil tinham descido pelo ralo. Mesmo tendo sido retomados, em parte, alguns projetos da SPM, com a recusa dos movimentos sociais em dialogar com o governo golpista que tem avançado rapidamente contra direitos historicamente conquistados e, com o perfil conservador das novas dirigentes da Secretaria, vislumbra-se um enfraquecimento progressivo dos organismos de promoção de políticas para mulheres. As temáticas que trataremos aqui, portanto, têm em comum o fato de serem as pontas de lança da ofensiva da direita conservadora no Brasil, sendo, então, com certeza as mais mobilizadas pelo conservadorismo moral para obter vantagens no meio político, ameaçando a autonomia e a vida das mulheres. O debate sobre a legalização do aborto e a emergência dos feminismos jovens e de suas reinvindicações por respeito e autodeterminação, analisados de forma articulada, versam tanto sobre as perversidades do golpe, quanto sobre as resistências a ele. Apresentaremos, neste capítulo, a análise de alguns dados que se mostraram relevantes na percepção das participantes das 3a e 4a Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres, a partir da Pesquisa “As mulheres das políticas para as mulheres: Quem são aquelas que constroem o feminismo estatal participativo brasileiro?”, cuja metodologia, caracterização e resultados descritivos já foram apresentados nos capítulos anteriores. Os dados aqui analisados serão os referentes à inclusão da diversidade e das diferenças, especialmente no que tange à questão de geração, gênero, sexualidade e reprodução. Iremos abordar o debate sobre o aborto, analisando principalmente as percepções das participantes sobre a questão da legalização e descriminalização do aborto no Brasil. É importante ressaltar que não é nossa pretensão dar conta de todo o debate que compreendem as duas grandes temáticas trabalhadas, não sendo possível abordar os aspectos teóricos, políticos e éticos que implicam. Devido à extensão
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dos dados quantitativos a serem apresentados e às reflexões pertinentes, decidimos não fazer uma apresentação do histórico e conteúdo do debate sobre diversidade e inclusão das diferenças nas políticas participativas e na construção de políticas públicas para mulheres, tampouco do debate sobre aborto nas conferências de políticas públicas para mulheres. Tendo em vista que é possível encontrar tais debates de forma aprofundada em alguns artigos de referência na área, iremos incluir citações, quando pertinente, para que as(os) leitoras(es) possam consultar quando for de seu interesse. A inclusão de mulheres jovens nas Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres é um desafio que está longe de alcançar a representatividade desejada para esses grupos minoritários. Esforços realizados nessa direção foram resultado de uma grande pressão dos movimentos sociais e de uma intensa interação das mulheres desses segmentos organizados com a Secretaria de Políticas para as Mulheres. Nos planos municipais e estaduais também houve algumas iniciativas notáveis, também fruto da mobilização dos movimentos e reivindicação de demandas frente aos organismos locais e estaduais de promoção de políticas públicas. Mesmo com todas as mudanças positivas que ocorreram, a representatividade desses segmentos nas Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres ainda não pode ser considerada satisfatória nem no que tange ao número de delegadas pertencentes a esses grupos, nem no que concerne à efetivação do conteúdo de propostas aprovadas nos textos finais que contemplem suas demandas específicas em políticas públicas concretas para essas mulheres. A baixa presença de alguns grupos no corpo de delegadas nas CNPMs é o fator que aqui terá maior implicação nos resultados. Isso ocorre, pois mesmo a amostra do survey tendo sido realizada de forma aleatória e a estratificação incluir especificamente as mulheres deficientes (além do critério regional e por tipo de representação: sociedade civil e Estado), a sub-representação no contexto da CNPM acaba por ter implicações na acurácia da expressão das percepções desses grupos. Entretanto, tentamos corrigir ao máximo tais efeitos através de escolhas na forma de apresentação dos dados, fazendo observações sobre os limites das análises, quando se aplica.
A opinião das delegadas das 3a e 4a CNPMs sobre a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil
Estávamos na nossa sala de pesquisa, entre computadores e entrevistadas já no último dia da 3a Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, quando uma colega de trabalho nos chama ao celular, a mim e a outra coordenadora
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de campo: “venham para a plenária, está dando polêmica sobre a legalização do aborto!”. Chegando à plenária final, vimos que os ânimos estavam exaltados devido ao debate em torno da mudança no texto das deliberações finais de “descriminalização do aborto” para “legalização do aborto”. A votação, geralmente realizada por contraste visual da aprovação das propostas, não estava fornecendo um contraste perceptível. Ou seja, cerca de metade das delegadas estava a favor de que o texto expressasse sua posição favorável à “legalização do aborto”, enquanto quase metade queria que se mantivesse apenas o apoio à “descriminalização do aborto”.3 Mesmo depois de duas ou três tentativas, não estava fácil de determinar qual seria a maioria dos votos. Quando se estava chegando a um ponto em que já não havia mais alternativas, a não ser a votação por registro de delegadas, o que seria impossível diante do tempo gasto e do horário de saída dos ônibus, irrompe no auditório um grande grupo de mulheres com tambores, a maioria com os seios desnudos, entoando cantos em defesa da autonomia da mulher sobre o próprio corpo, o direito de escolha e a responsabilidade da garantia do aborto legal, seguro e gratuito pelo Estado como defesa da vida das mulheres. Enquanto parte das delegadas tinha um certo olhar de julgamento sobre a ação realizada por feministas jovens de diversas regiões do Brasil, grande parte das mulheres começou a cantar junto, e a apoiar. A ação das jovens feministas, além de irreverente e estratégica, soube trazer a emoção envolvida na questão pungente da legalização do aborto e encarnou, performativamente, a importância histórica pelo direito ao próprio corpo nas lutas das mulheres. Esse momento foi emblemático de como os processos de deliberação nos espaços de participação social também envolvem elementos de mobilização e protesto, para além do discurso e da fala. Nele, muitas delegadas que estavam tendo seu primeiro contato com ambientes de mobilização e articulação feminista puderam se sensibilizar com as demandas apresentadas pelas mulheres 3 A descriminalização do aborto implica a retirada de toda a legislação punitiva que incide sobre as mulheres que decidem interromper a gestação, assim como os profissionais de saúde que realizarem os procedimentos para levar a cabo tal decisão. Há diferenças entre o período da gestação até o qual se pode realizar tal interrupção em cada legislação, mas o mais recorrente é a permissão até a 12ª semana. A legalização do aborto implica que, sendo considerada como direito sexual e reprodutivo fundamental para as mulheres, a interrupção de uma gravidez indesejada seja realizada de forma legal, segura e gratuita através do sistema público de saúde. A importância que o feminismo dá à defesa da legalização, que vai além da descriminalização, se deve ao fato de que as mais afetadas com consequências e mortes devido ao aborto inseguro são as mulheres pobres, negras e indígenas. A legalização chama o Estado a se responsabilizar pela saúde e pela vida das mulheres que decidem interromper uma gravidez indesejada, garantindo assistência médica para que elas possam fazer o procedimento com o menor impacto e risco possível a sua saúde.
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organizadas em defesa de seus direitos humanos e refletir sobre a importância de o Estado incorporar essas reivindicações como condição para o respeito às diferentes perspectivas, experiências e posicionamentos e a garantia da vida das mulheres. Acalmados os ânimos, se realizou uma nova votação. O contraste de difícil distinção foi decretado pela mesa diretora, que se encontrava diante da plenária. Enfim, o texto que versava sobre a legalização do aborto foi, então, incluído na versão final das deliberações. Mas para as que estavam presentes ficou, mais que nunca, a impressão de que a temática do aborto ainda é um ponto polêmico e pouco discutido, até mesmo nos espaços dos movimentos de mulheres e feministas, e entre mulheres que trabalham na construção e implementação de políticas para mulheres, sejam elas ativistas, conselheiras ou gestoras. Quase todas as mulheres presentes pareciam concordar que nenhuma mulher deve ser presa ou punida por realizar um aborto. Porém, possivelmente devido ao pertencimento religioso e por outros possíveis fatores que abordaremos ao longo da análise dos dados do survey, muitas mulheres acabam não se posicionando afirmativamente frente à legalização do aborto. Isso mostra como o direito das mulheres de tomar decisões sobre o próprio corpo ainda não se consolidou como direito fundamental e necessário para se conquistar a autonomia. Também nos chama atenção para como ainda é necessária a conscientização sobre a importância da laicidade do Estado, fundamental, inclusive, para se garantir a liberdade de crença e religiosa e para proteção de direitos individuais básicos, como o de decidir sobre o próprio corpo e a própria vida. O direito ao aborto legal e gratuito é concebido como um direito sexual e reprodutivo básico para as mulheres em toda América Latina e no mundo como um todo. O maior obstáculo para a conquista dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres ao redor do mundo é uma forte influência das religiões, que tentam influenciar os processos de decisão de acordo com seus princípios morais específicos. O debate sobre a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil é uma das principais pautas dos movimentos de mulheres e feministas desde, pelo menos, o seu ressurgimento com maior força na década de 1970. O motivo de tal centralidade é o profundo impacto negativo que a criminalização do aborto possui na vida de milhares de mulheres, em especial das mulheres pobres, negras e jovens, implicando números altíssimos de internações devido a complicações e ainda um alto número de mortes. Mesmo com todos os esforços de mobilização dos movimentos feministas, não houve avanço dessa questão no plano legislativo ou no âmbito do poder
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executivo, principalmente devido ao peso que o debate sobre o aborto tem no campo político, implicando, muitas vezes, a perseguição de representantes que defendem a legalização ou a descriminalização. A questão também se tornou um elemento de pressão em momentos eleitorais, sendo que a pressão conservadora influenciou fortemente no posicionamento de candidatos e candidatas sobre o aborto. Já havendo ocorrido muitas vezes ao longo de nossa história política, em 2010, a polêmica voltou a ser um fator decisivo nas eleições, levando, inclusive, a uma declaração de Dilma Rousseff na qual se comprometia em não avançar na legislação que descriminaliza o aborto. A legislação brasileira atual autoriza a realização do aborto legal em casos de gravidez decorrente de estupro, de risco de morte da mulher em decorrência da gestação e nos casos de feto anencefálico, sendo esta última válida desde a decisão do Supremo Tribunal Federal pela ADPF 54 de 2012. O Estado brasileiro é constitutivamente um Estado laico, no qual princípios religiosos não deveriam fundamentar as leis e as políticas públicas, devendo estas seguirem linhas que contemplem cidadãs de diversas religiões e também as pessoas não religiosas. Apesar do caráter laico do Estado brasileiro, declarado na Constituição de 1988, a influência histórica da Igreja Católica se manteve através da presença de representantes católicos e, atualmente, vemos um aumento também da influência das religiões protestantes, que têm elegido cada vez mais vereadores e deputados que advogam os interesses de suas respectivas religiões. Juntos, católicos e evangélicos têm formado bancadas religiosas, que impulsionam uma série de projetos contrários aos direitos das mulheres, retrocedendo direitos historicamente conquistados e freando o avanço daqueles em discussão, em especial direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A fonte científica de maior confiabilidade que possuímos hoje sobre o fenômeno do aborto no Brasil consiste nas Pesquisas Nacionais sobre Aborto (PNA), realizadas em 2010 e 2016, pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis). Tais pesquisas foram realizadas a partir de amostras aleatórias representativas das mulheres alfabetizadas, através de inquérito domiciliar, utilizando-se a técnica de urna, que garante melhor o sigilo das respostas e, consequentemente, aumenta a probabilidade de respostas verdadeiras e confiáveis. A PNA nos mostra que o aborto é um acontecimento frequente na vida reprodutiva das mulheres brasileiras, sendo que, até os 40 anos, aproximadamente 1 em cada 5 mulheres já realizou um aborto. É um fenômeno que ocorre com frequência em mulheres de todos os grupos sociais: de todas as idades, sejam casadas ou não, mães ou não, de todas as religiões, de todos os níveis educacionais, de todas as classes sociais, de todos os grupos raciais, em todas as regiões do país, e em todos os tipos e tamanhos de municípios.
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Há, entretanto, uma heterogeneidade de sua distribuição entre os grupos sociais, sendo que a maior frequência é encontrada entre as mulheres pobres, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Também foi encontrado um maior índice de abortos entre as mulheres jovens, com 29% dos abortos ocorrendo em idades que vão de 12 a 19 anos, 28% dos 20 aos 24 anos, caindo para abaixo de 13% a partir dos 25 anos. Isso nos mostra que o aborto é um fenômeno que atinge mais intensamente as mulheres jovens e que, por isso, podemos identificar a legalização como um tema de extrema relevância para a agenda dos feminismos jovens. Apesar de atingir de maneira mais crítica às mulheres jovens, a incidência do aborto é alta para mulheres de todos os grupos etários e sociais. Os resultados da PNA nos sinalizam sobre como a questão deve ser abordada e a importância de que continue sendo uma pauta central para os feminismos: A frequência de abortos é alta e, a julgar pelos dados de diferentes grupos etários de mulheres, permanece assim há muitos anos. Entre a PNA 2010 e a PNA 2016, por exemplo, a proporção de mulheres que realizaram ao menos um aborto não se alterou de forma relevante. Ou seja, o problema de saúde pública chama a atenção não só por sua magnitude, mas também por sua persistência. As políticas brasileiras, inclusive as de saúde, tratam o aborto sob uma perspectiva religiosa e moral e respondem à questão com a criminalização e a repressão policial. A julgar pela persistência da alta magnitude, e pelo fato do aborto ser comum em mulheres de todos os grupos sociais, a resposta fundamentada na criminalização e repressão tem se mostrado não apenas inefetiva, mas nociva. Não reduz nem cuida: por um lado, não é capaz de diminuir o número de abortos e, por outro, impede que mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessários para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo. (DINIZ; CORREA, 2008).
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O survey realizado pelo Nepem/UFMG nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres perguntou a opinião das entrevistadas sobre a descriminalização do aborto.4 É importante ressaltar que houve uma mudança na formulação da pergunta decorrente da mudança na situação legal do aborto no país, através do julgamento da ADPF54, pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, que autorizou a interrupção terapêutica das gestações de fetos anencefálicos. Ao ter de modificar a pergunta por fatores externos, verificamos o quanto a formulação da pergunta influencia cognitivamente, gerando resultados muitos diferentes. Porém, devemos considerar que a própria mudança legal na questão e o debate público envolvido também pode influenciar nos posicionamentos individuais. Iremos apresentar então o resultado do survey realizado no que tange à opinião das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs sobre a situação legal do aborto no Brasil. Verificamos que em ambas as Conferências as delegadas mostraram-se majoritariamente favoráveis à descriminalização do aborto.
4 As perguntas realizadas nos questionários estavam da seguinte forma: 3ª CNPM – 2011 47. – Atualmente no Brasil, por lei o aborto só é permitido nos casos em que a gravidez cause risco de vida para mãe e nos casos de gravidez causada por estupro. Qual destas frases descreve melhor a sua opinião sobre isso: (leia até a frase 3, enumerando-as) 1. A lei deve ficar como está 2. O aborto deveria ser proibido por lei em todos os casos 3. O aborto deveria deixar de ser crime em todos os casos? 4. Deveriam ser ampliadas algumas situações em que o aborto é legal no país, a exemplo dos fetos com anencefalia 5. Outras respostas (NÃO LER): _________________________________________ 8. NS (NÃO LER) 9. NR (NÃO LER) 4ª CNPM – 2016 Q 46. – (C.E. p.15 ) Atualmente no Brasil, por lei, o aborto só é permitido nos casos em que a gravidez cause risco de vida para mãe, nos casos de gravidez causada por estupro e também em caso de fetos com anencefalia. Qual destas frases descreve melhor a sua opinião, sobre isso: (LEIA OPÇÕES 1 a 3) 1. A lei deve ficar como está 2. O aborto deveria deixar de ser crime em todos os casos 3. O aborto deveria ser proibido por lei em todos os casos 4. Outras respostas (NÃO LER – ANOTAR): _____________________________
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Grafico 1. Frequência das respostas das delegadas da 3ª CNPM (2011) sobre o tema do aborto no Brasil
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Como vemos no Gráfico 1, na 3ª CNPM aproximadamente metade (48%) das delegadas respondentes se declararam favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos. Já 30% defenderam a ampliação do direito de interrupção legal da gestação nos casos de anencefalia fetal, posição que tornou-se vigente logo em seguida com a decisão ADPF54 do STF. Além disso, 13% foram favoráveis à manutenção da lei como estava em 2011, e apenas 7% se posicionaram pela proibição do aborto em todos os casos.
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Gráfico 2. Frequência das respostas das delegadas da 4ª CNPN (2016) sobre o tema aborto no Brasil
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
De acordo com o Gráfico 2, percebemos que, com a mudança na interpretação da lei e com o debate público sobre a questão e, considerando a possível influência também da nova formulação da pergunta, o número de delegadas que se posicionou pela descriminalização do aborto em todos os casos foi ainda maior (57%), enquanto uma parcela também maior (27%) se mostrou satisfeita com a lei vigente em 2016. A porcentagem de entrevistadas que acredita que o aborto deve ser proibido em todos os casos (8%) praticamente não sofreu alteração com relação à pesquisa de 2011 (7%).
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Gráfico 3. Frequência de “outras respostas” categorizadas Opinião sobre o aborto das delegadas da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Quando analisamos as respostas abertas das entrevistadas que elegeram a categoria “outros” no Gráfico 3, percebemos que muitas das respostas eram variações das opções já apresentadas, mas como a questão é bem específica, decidimos criar novas categorias para classificar as “outras” respostas. Mesmo na opção aberta, a grande maioria (52,9%) foi favorável a uma lei mais ampla na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, incluindo nessa categoria descriminalização e legalização. Um número significativo (29,4%) apontou que seria favorável ao aborto apenas em caso de risco para a mãe, enquanto algumas sinalizaram pela realização de um plebiscito ou pela ampliação de políticas públicas para a saúde integral das mulheres. Novamente apenas uma minoria (5,9%) defendeu mais proibição. Com o objetivo de entendermos melhor quais as características das delegadas que se posicionam contra ou a favor da legalização do aborto, realizamos tabelas de cruzamento com os dados sociodemográficos mais relevantes, como região, renda, classe social, escolaridade e raça. Essas tabelas nos mostram uma tendência mais favorável à descriminalização do aborto em todos os casos entre os setores mais privilegiados da população. Porém, como as variações são pequenas e pouco significativas, decidimos não abordar tais temáticas para não tirar
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conclusões precipitadas acerca desses dados. Os elementos sociodemográficos que se mostraram mais significativos com relação ao posicionamento das delegadas sobre o aborto foram a zona residencial e a idade. Sobre a questão etária e suas influências no posicionamento das mulheres, abordaremos com maior profundidade na seguinte seção. Gráfico 4. Opinião sobre o aborto por zona resindecial urbana ou rural das delegadas da 3ª CNPM – 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
O Gráfico 4 aponta que as delegadas da 3ª CNPM provenientes da zona urbana possuem um posicionamento mais favorável à descriminalização do aborto (50%) que as da zona rural (30%). As mulheres da zona rural, por sua vez, apresentam grande proporção (37%) de apoio à ampliação da lei que foi realizada no ano seguinte, e significativo apoio (23%) à manutenção da lei como era em 2011.
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Gráfico 5. Opinião sobre o aborto por zona residencial urbana ou rural das delegadas da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
No Gráfico 5, vemos que tal diferença se mostrou ainda maior em 2016, pois as delegadas da 4ª CNPM de zona rural optaram em sua maioria (46%) pela manutenção da lei como está, enquanto apenas 32% foram favoráveis à descriminalização. O apoio à criminalização em todos os casos entre as mulheres de áreas rurais cresceu de 2011 para 2016 (de 10% para 14%). Já entre as mulheres de áreas urbanas, 23% são favoráveis à manutenção da lei, e o apoio à descriminalização total chegou a 62%. Uma diferença tão grande nos posicionamentos das mulheres que vivem em zona rural e urbana pode ser devido aos efeitos do conservadorismo e da pressão religiosa que são mais intensos no meio rural. Considerando tal possibilidade, nos voltamos para a participação em grupos religiosos e o pertencimento religioso das delegadas. Conforme se pode perceber no Gráfico 6, as delegadas que não participam de grupos religiosos têm maior tendência a um posicionamento favorável à descriminalização, sendo que a diferença entre aquelas que não participam
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de nenhum grupo e aquelas que participam como membros ou filiadas é de 37 pontos percentuais. Essa questão, entretanto, só esteve presente no questionário de 2016, não sendo possível comparação. Gráfico 6. Opinião sobre o aborto por participação em grupos religiosos ou ligados a Igreja das delegadas da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
O pertencimento religioso mostrou, portanto, ser um fator de grande influência. Como pode ser verificado nos gráficos 7 e 8, as mulheres que não possuem religião mostram-se esmagadoramente favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos (87,5% em 2011 e 94% em 2016).
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Gráfico 7. Opinião sobre aborto por pertencimento religioso das delegadas da 3ª CNPM – 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Entre as mulheres religiosas, entretanto, há uma grande variação de acordo com a religião a qual pertencem, sendo que as de religiões afro-brasileiras e espíritas são em grande maioria favoráveis à descriminalização em todos os casos (74% em 2011 e 83% em 2016), havendo baixíssima presença de um posicionamento proibicionista. As católicas também são majoritariamente favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos (38% em 2011 e 54% em 2016), seguido pela manutenção da lei como está.
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Gráfico 8. Opinião sobre aborto por pertencimento religiosos das delegadas da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Ainda analisando os gráficos 7 e 8, vemos que as protestantes são as que mostram a maior taxa de apoio à manutenção da lei como está (30% em 2011 e 44% em 2016), mas ainda há uma proporção significativa que também é favorável à descriminalização em todos os casos (28% em ambas as CNPMs). O posicionamento favorável à criminalização em todos os casos apresenta uma taxa muito baixa, inclusive, entre as católicas e as protestantes, mostrando que a perspectiva social das mulheres, enquanto grupo, ainda pesa mais que o seu pertencimento religioso. Entre as mulheres que são filiadas a partidos políticos, que são cerca de 60% das delegadas nas duas conferências, o posicionamento ideológico do partido (os partidos foram classificados como de esquerda, de centro e de direita) foi um fator que mostrou muita interação com a perspectiva da mulher sobre a legalização do aborto.
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Gráfico 9. Opinião sobre aborto por partido ao qual as delegadas da 3ª CNPM (2011) são filiadas de acordo com a classificação no espectro ideológico
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Observando os Gráficos 9 e 10, percebemos que as delegadas pertencentes aos partidos de esquerda são majoritariamente favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos (58% em 2011 e 71% em 2016). Entre as mulheres dos partidos de centro, predomina a corroboração com a lei estabelecida (39% em 2011 e 57% em 2016). Já entre as filiadas a partidos de direita, vemos uma maior variação na opinião, mas mesmo que predomine a concordância com a lei, e que haja uma significativa parcela favorável à descriminalização, parte significativa acredita que o aborto deva ser criminalizado em todos os casos (15% em 2011 e 33% em 2016).
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Gráfico 10. Opinião sobre aborto por partido ao qual as delegadas da 4ª CNPM (2016) são filiadas de acordo com a classificação no espectro ideológico
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Para além do pertencimento religioso e do fator ideológico, a participação em grupos de mulheres e a autodeclaração como feministas são também aspectos que mais mostram sobreposição com os posicionamentos das delegadas sobre o aborto. O Gráfico 11 nos mostra como a participação em grupos de mulheres ou feministas mostra forte interação com um posicionamento favorável à descriminalização do aborto no Brasil.
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Gráfico 11. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM (2016) por participação em grupos de mulheres ou feministas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
O Gráfico 12 aponta a grande diferença entre os posicionamentos das delegadas que declaram feministas ou não. Entre as que não se declaram feministas, a maior tendência em 2011 foi se posicionar em defesa da ampliação do aborto legal para abranger os casos de anencefalia (47%), havendo também uma significativa parcela favorável à descriminalização em todos os casos (32%) e, surpreendentemente, uma parcela muito pequena que defende a proibição irrestrita (5,7%). Entre as que não sabem o que é feminismo, prevaleceu o apoio à lei como estava, e entre as que não sabem se classificar, apesar dos 20% que defendem a criminalização em todos os casos predominou uma postura mais progressista, sendo que 40% ampliariam a lei apenas aos casos de anencefalia e outros 40% para todos os casos. Entre as que se declararam feministas, a maioria (51,4%) advoga pela descriminalização total do aborto.
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Gráfico 12. Opinião sobre aborto das delegadas da 3ª CNPM (2011) por autodeclaração enquanto feministas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Em 2016, a variação entre os posicionamentos se mostrou ainda maior, sendo que as feministas têm uma chance duas vezes maior de se mostrarem favoráveis a descriminalização que as não feministas (63,3% entre as que se declaram feministas frente a 28,6% entre as que não se consideram feministas). Entre as que não se declaram feministas e as que não sabem se classificar, apesar de uma taxa relevante de apoio à descriminalização (28,6% e 35,7%, respectivamente) a posição que prevaleceu foi a da manutenção da lei (47,6% entre as que não se consideram feministas e 57% entre as que não sabem se classificar. A porcentagem de delegadas que defendem a proibição do aborto em todos os casos se mostrou muito baixa, não passando dos 7%, exceto entre aquelas que não sabem o que é o feminismo. Esse dado nos mostra como o desconhecimento de questões fundamentais relativas ao debate sobre o aborto, em especial dados e argumentos apresentados pelas feministas, leva a uma predominância do posicionamento proibicionista.
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Gráfico 13. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM (2016) por autodeclaração enquanto feministas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Comparando os aspectos levantados ao longo desta seção, vemos que os fatores que mostram maior interação com a perspectiva das delegadas sobre a descriminalização ou não do aborto no Brasil são os de ordem política-ideológica. A diferença abismal entre os posicionamentos das delegadas quando comparamos as que pertencem a partidos de esquerda, centro ou direita é emblemática. Entretanto, vimos que nem 13 anos de governo de esquerda e de forte participação dos movimentos de mulheres e feministas na formulação de políticas para mulheres possibilitaram a conquista da descriminalização do aborto. Os avanços foram muito poucos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, em especial se consideramos o âmbito legislativo. Vimos que, no que tange ao pertencimento religioso, não é apenas a participação em grupos religiosos que está relacionada ao posicionamento das delegadas frente à descriminalização do aborto, pois há uma grande variação quando consideramos a qual religião pertence. Nesse sentido, fica evidente que o posicionamento político de algumas igrejas, como as evangélicas e a católica, é o fator de maior pressão sobre o posicionamento das fiéis, assim como o lobby das igrejas influencia profundamente no andamento da questão no plano político nacional.
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O contato com o feminismo pode ser considerado essencial para que as delegadas tenham conhecimento dos argumentos que fundamentam a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Contrapondo o direito ao próprio corpo e necessidade de evitar as mortes e sofrimentos por abortos inseguros, com o discursos predominantes na mídia e o senso comum que busca julgar e criminalizar as mulheres que decidem interromper uma gravidez indesejada, as delegadas podem ter uma compreensão mais ampla que fundamente seu posicionamento. O espaço das CNPMs se mostrou como um lugar que favorece tais debates por colocar no mesmo ambiente mulheres de diferentes inserções institucionais, ideológicas, religiosas, políticas. A intervenção das jovens feministas na 3a CNPM em defesa da legalização do aborto nos mostra não apenas que existe uma grande imbricação entre formas de protesto e deliberação política, mas também como alguns grupos estão ausentes ou menos favorecidos no debate, e que por isso buscam estratégias alternativas de vocalizar suas demandas. A relação entre o componente geracional, ideológico e o posicionamento frente à questão do aborto mostra uma interação complexa, que será objeto de nossa análise mais cuidadosa na seguinte seção. Iremos analisar o que podemos chamar de uma ausência das mulheres jovens nos espaços de deliberação e tomada de decisão acerca das políticas públicas para mulheres e seus graves impactos nas pautas, agendas e propostas debatidas e na sua efetivação em termos de políticas concretas, em especial no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos. Para tal iremos recapitular o histórico da emergência das jovens feministas, suas críticas ao adultocentrismo e às hierarquias geracionais nos movimentos de mulheres e feministas. Apesar dos avanços conquistados pelas jovens feministas com relação à incorporação de suas demandas nos Planos Nacionais de Políticas para Mulheres (SILVA, 2015), a baixa participação de mulheres jovens nas CNPMs no mostra que estamos diante de um problema grave e persistente de sub-representação das perspectivas feministas jovens, o que tem efeitos devastadores na construção das políticas para mulheres.
Inclusão das diferenças nas Conferências de Políticas para Mulheres e a luta por representação das feministas jovens O foco nas relações intergeracionais se deve à emergência recente das jovens feministas como um “sujeito político” no campo do feminismo, contestando diversas lógicas hierárquicas baseadas em pertencimentos etários e em tempo e trajetória no movimento. No âmbito da participação institucional no Estado (SILVA, 2009) e no contexto dos grandes encontros feministas latino-americanos
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(ALVAREZ, 2003), a questão geracional se manifesta na luta por representação das jovens feministas e na luta por reconhecimento das demandas específicas das mulheres jovens (MARTELLO, 2013). Na tentativa de compreender as demandas das jovens feministas e sua crítica ao silenciamento de suas expressões no movimento, consideraremos o adultocentrismo5 e etarismo enquanto lógicas de dominação. A emergência das “jovens feministas” como sujeito político no campo do feminismo observado no contexto latino-americano e no contexto brasileiro na última década tem confrontado um discurso recorrente de que o feminismo não impactou as mulheres jovens e que elas não se interessam pelo feminismo (GOMES-RAMIREZ; CRUZ, 2011; ADRIÃO; MELO, 2009; SILVA, 2009; ZANETTI, 2008). Advinda de diferentes espaços de difusão das ideias feministas como a academia, organizações não governamentais, órgãos governamentais de gestão de políticas públicas, espaços comunitários, grupos culturais, diversos movimentos sociais ou por aproximação autodidata (GOMES-RAMIREZ; CRUZ, 2011), a inserção das mulheres jovens no feminismo no período recente se caracteriza pela criação de organizações próprias, como a Red de Mujeres Jóvenes Feministas de America Latina y Caribe, a Red Latinoamericana y Caribeña por los Derechos Sexuales y Reproductivos, a Articulação Brasileira de Jovens Feministas. Conjugando a leitura de que contextos socioculturais com suas especificidades produzem condições de inequidade diferenciadas, com a crítica às formas desiguais de exercício de poder no movimento, as jovens feministas buscam a construção de uma atuação política e agendas próprias (GOMES-RAMIREZ; CRUZ, 2011). Não sendo um fenômeno exclusivo do feminismo, a recente organização da juventude, presente em diversos movimentos sociais, articula e mobiliza complexamente sua diferença geracional especialmente de duas formas: (1) juventude como identidade política, que aglutina demandas específicas e estruturas visando a mudanças na realidade, e (2) juventude como identidade que é acionada relacionalmente no processo de disputa pelos espaços de decisões nas organizações sociais (COSTA, 2008). Esses são dois processos identitários simultâneos e inter-relacionados das lutas sociais por reconhecimento jovem. Analisando a emergência das jovens feministas enquanto sujeito político, Áurea Carolina Silva (2009) situa o fenômeno no contexto da disputa pela noção de juventude como sujeito político, destacando a participação como principal característica das políticas para juventude: 5 O adultocentrismo é a dominação imposta pela ideia hegemônica em nossa sociedade de que a adultez possui uma qualidade de responsabilidade maior que as de crianças, adolescentes, jovens e idosas. É a orientação de todos os modos de vida que caracterizam as diferentes experiências etárias e geracionais por uma única temporalidade e espacialidade adultocêntrica.
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a chegada da identidade juvenil na esfera pública intenta desestabilizar a hegemonia existente e quase exclusiva do poder adulto, na medida em que reclama o direito de jovens participarem como interlocutores válidos nos processos de tomada de decisões que afetam a coletividade, principalmente as realidades dos próprios jovens. (SILVA, 2009, p. 51).
Segundo Adrião e Mello (2009), as jovens feministas entrevistadas em seu trabalho de pesquisa relataram que não encontravam espaços de constituição autônoma, nem no movimento feminista, nem nos movimentos de juventude, sendo que no feminismo não conseguiam ocupar espaços de liderança por serem consideradas “inexperientes”, por não terem longa vivência e conhecimento do movimento, nem representarem instituições que as legitimem. E nos movimentos de juventude elas acabavam ocupando os mesmos lugares conferidos às mulheres nos diferentes espaços sociais, ou seja, exercendo apenas funções “na base” ou apenas trabalhos operacionais e estando ausentes dos espaços de poder e decisão. Julia Zanneti (2008) argumenta que, como muitas jovens participavam do movimento feminista, não era reconhecida a identidade de “jovem feminista”, e tal reconhecimento não era demandado pelas jovens, sendo que até a última década não era possível falar dessa identidade. Para ela, as jovens questionam as relações que fundamentam o movimento ao reivindicar igualdade de participação e poder decisório quanto às pautas. Segundo Silva (2009), a atuação das jovens feministas questiona as hierarquias e o adultocentrismo, explicitando as assimetrias de níveis de participação dentro do movimento e decompondo a agenda feminista na perspectiva geracional, evidenciando as condições peculiares das jovens e ressaltando a importância da troca entre gerações e legitimidade dos saberes e experiências juvenis. A organização das jovens feministas no Brasil teve como primeiro espaço amplo de ação e articulação o Fórum Cone Sul de Mulheres Jovens Políticas – Espaço Brasil, conhecido como “Forito”, que começa a ser articulado em 2001, pela Fundação Friedrich Ebert – FES. Tendo uma duração de 8 anos, o Forito reuniu não apenas feministas de partidos políticos, mas também mulheres que atuavam em outros espaços e nos diversos movimentos sociais. De acordo com o depoimento de Fernanda Papa (SILVA, 2009), participante do Forito e organizadora da publicação que registrou a história desse projeto, as feministas do Forito estiveram presentes nas 1ª e 2ª Conferências de Políticas para Mulheres (2004 e 2007) e nos Conselhos de Políticas para Mulher, no Projeto Juventude – que se desdobrou na Política Nacional de Juventude –, nas Conferências e Conselhos de Juventude, de Igualdade Racial e nos Encontros Feministas Latino-americanos e do Caribe.
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Silva (2009) nos mostra que, apesar de haver menções às mulheres jovens no I PNPM ao citar vários segmentos de mulheres, essa é apenas uma alusão formal, pois elas eram contempladas somente em ações isoladas ligadas à inserção do mercado de trabalho e autonomia econômica, nos tópicos de educação e de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Já no II PNPM, todos os eixos temáticos especificam ações voltadas para mulheres jovens, ressaltando que as desigualdades geracionais afetam as mulheres em todas as dimensões das suas vidas. O próprio texto do II PNPM ressalta a presença de mulheres jovens no processo de elaboração do plano. Articulado com a decisão de fazer o enfoque geracional perpassar todo o texto do Plano, surgiu também um eixo específico voltado para o enfrentamento às desigualdades geracionais, com foco nas mulheres jovens e idosas. De acordo com Zannetti (2008) e Adrião e Mello (2009), o 10º Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, ocorrido em outubro de 2005, em São Paulo, no qual 25% das participantes eram mulheres com menos de 30 anos, também pode ser considerado um marco em que as mulheres jovens articularam ações a partir do lugar de jovens feministas para o encontro. Participaram da organização do evento e levaram suas reivindicações coletivas, inserindo o debate sobre jovens feministas na Programação oficial do evento e garantindo a presença de uma mulher jovem em cada mesa de “diálogo complexo”. Durante o Encontro, houve o Fórum de Mulheres Jovens, com a participação de cerca de 100 jovens de toda a América Latina e Caribe, articulando demandas, especificidades e estratégias e a oficina de diálogo de compartilhamento de experiências entre “jovens e velhas feministas” (intergeracional). No fim do Encontro, tomaram a Plenária Final, quebrando todos os protocolos, e 30 jovens leram conjuntamente sua Carta de reivindicações. O I Encontro Nacional de Jovens Feministas, em 2008, no Ceará, consolidou a formação da Articulação Brasileira de Jovens Feministas, com a participação de mais de 13 grupos de jovens feministas ou feministas com representantes jovens. Em 2009 houve o I Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas, em 2011 o I Seminário Nacional Jovens Feministas Presentes, com representantes de 17 estados da federação, e em 2017 o II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas. Essas atividades mostram que as jovens feministas estão atuantes politicamente, articulando-se e colocando cada vez mais a sua voz e suas questões para o feminismo. No momento “pós-processo de Beijing” vemos, portanto, um forte tensionamento das diferenças, sendo que, além das questões de classe, sexualidade e origem étnico-racial, agora se percebe também a presença da questão geracional. As jovens feministas, muitas advindas da difusão do feminismo em espaços como academia, organizações não governamentais, órgãos governamentais de gestão de
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políticas públicas, espaços comunitários, grupos culturais e diversos movimentos sociais, passaram a questionar a hierarquização intensificada pela especialização e profissionalização do movimento. Essas hierarquizações têm sido contestadas através da criação de estruturas próprias, da formação de redes locais, nacionais e transnacionais de articulação, já que sua condição de juventude as coloca em certa vantagem quanto à utilização de meios tecnológicos que potencializam a sua atuação e pelo próprio fato de essa ser uma forma já recorrente nos movimentos sociais no período de sua inserção. Transpassando as diversas estruturas e espaços no campo do feminismo, essas organizações próprias e redes de articulação têm possibilitado a significação da experiência de desvalorização de suas contribuições devido à sua condição de jovens. Trata-se de mais um impedimento à sua participação igualitária no movimento. Têm também potencializado o compartilhamento de suas vivências, consolidando a formulação de especificidades que caracterizam as jovens no momento atual e transformando-as em demandas e agendas próprias. É importante ressaltar que a característica de mutabilidade e forte orientação ao presente e às experiências concretas permitiram que a articulação das jovens se desse na interseção com outras categorias sociais, estando presentes suas experiências como jovens negras, jovens rurais, jovens lésbicas, jovens de origem popular e a partir da identificação com grupos culturais e ideológicos. Apresentaremos agora a participação das mulheres jovens nas 3ª e 4ª CNPMs, que ainda é muito inferior à proporção de jovens na média populacional. Estamos considerando jovens as mulheres que estão nas faixas etárias de 18 a 24 anos e de 25 a 31 anos. Manteremos, entretanto, as duas faixas etárias separadas para fins analíticos, já que existe uma diferença significativa entre as inserções institucionais, vivências e percepções dos dois grupos. Como verificamos no Gráfico 14, as mais jovens (de 18 a 24 anos) possuem uma taxa muito baixa de presença, tendo aumentado muito pouco, de 2,9% em 2011 para 3,7% em 2016. A porcentagem de mulheres entre 25 e 31 anos se manteve aproximadamente a mesma nas duas conferências. Já a presença de mulheres idosas (acima de 60 anos) é mais próxima à proporção da população nacional, e teve um aumento da 3ª para a 4ª CNPM: entre as de 60 a 66 anos a porcentagem passou de 8,9% em 2011 para 9,9% em 2016, e entre as mulheres de 67 anos ou mais passou de 2,6% para 3,4%.
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Gráfico 14. Porcentagem das idades por faixas etárias das delegadas da 3ª e 4ª CNPM – 2011 e 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Vemos, portanto, que há uma predominância massiva das mulheres adultas (de 32 a 59 anos), o que revela o adultocentrismo que estrutura os espaços das CNPMs e que foi tão criticado pelas jovens feministas. Trabalhamos inicialmente com a hipótese de que esse fosse um padrão das conferências de políticas públicas em geral; porém, quando analisamos o padrão etário das conferências comparativamente, concluímos que as CNPMs possuem uma disparidade ainda maior que a média no que tange ao critério geracional. Retomamos aqui uma tabela que já foi apresentada no capítulo metodológico, que nos mostra o quanto essa diferença é alarmante. A utilização de outras faixas etárias aqui foi devido à necessidade de equiparação com as utilizadas em outras pesquisas.
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Tabela 1. Frequência por faixa etária, médias e medianas das delegadas participantes das 3ª e 4ª CNPMs comparadas às médias das demais conferências nacionais (Brasil, 2011 e 2016) Faixa etária 3ª CNPM (2011) 4ª CNPM (2016) Nacionais (2011) Até 18 anos
0,30%
0,30%
0%
De 19 a 34 anos
18,50%
21,10%
47,40%
De 35 a 60 anos
69,70%
65,20%
42,10%
Acima de 60 anos
11,60%
13,40%
10,50%
Total
100%
100%
100%
Mediana
44,5 anos
45 anos
Média
44,9 anos
45,1 anos
Fonte: Elaboração própria com dados da 3ª e 4ª CNPMs. Dados Nacionais (2011) de AVRITZER (2011).
Se a participação de mulheres de 19 a 34 anos passou de 18,5% em 2011 para 21,1% em 2016, estas ainda permanecem 26 pontos percentuais abaixo da média de participação da mesma faixa etária nas Conferências Nacionais em geral, que é de 47,4%. Já a participação das delegadas de 35 a 60 anos, mesmo tendo caído de 69,7% em 2011 para 65,2% em 2016, ainda fica 23 pontos percentuais acima da média das conferências. Isso nos revela o quanto os espaços de construção de políticas públicas e participação política de mulheres ainda são os mais impermeáveis à inserção da juventude e os mais hierárquicos do ponto de vista geracional. A análise da opinião sobre aborto, ao ser segmentada pela natureza da instituição que as delegadas representam, ou seja, se estão na CNPM representando uma organização da sociedade civil ou algum órgão estatal/governo, não nos apresentou uma diferença significativa. Ao segmentarmos a natureza da representação por faixa etária, entretanto, vemos que há uma discrepância na composição da 4ª CNPM (2016), a Conferência que teve uma maior participação da sociedade civil proporcionalmente.
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Gráfico 15. Natureza da instituição que as delegadas representam por faixas etárias da 3ª CNPM – 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Na 3ª CNPM a composição da representação estabelecida em regulamento era de 50% de participação da sociedade civil e outros 50% de representantes do governo. Ao analisarmos sua composição etária, encontramos que nessa conferência se manteve uma proporção equilibrada entre as representantes dos dois setores, como vemos no Gráfico 15. Gráfico 16. Natureza da instituição que as delegadas representam por faixas etárias da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
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Gráfico 17. Se a delegada é filiada a partido politico por faixas etárias na 3ª CNPM – 2011 Na 4ª CNPM a proporção da representação foi alterada no plano estatutário e passou a haver dois terços de representação da sociedade civil e um terço de representação do governo. Nesse ano, a variação etária entre os dois setores foi grande (Gráfico 16): entre as jovens de 18 a 24 anos, 90,9% são provenientes da sociedade civil; já entre as de 25 a 31 anos encontramos o maior número de representantes do governo (58,8%); nas seguintes faixas etárias a participação das representantes do governo vai decaindo progressivamente; e as mulheres de 67 anos são todas provenientes da sociedade civil. Consideramos também importante analisar se há um padrão etário para a filiação partidária e para a classificação ideológica do partido ao qual são filiadas. Podemos ver no Gráfico 17 um padrão crescente entre as faixas etárias, havendo uma diferença de 42 pontos percentuais entre as mais jovens – 18 a 24 anos – que são filiadas a partidos (33,3%) até as de idade mais avançada – 67 anos ou mais (77,8%).
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Quando analisamos a classificação ideológica dos partidos aos quais essas delegadas são filiadas, vemos que também há um padrão etário nessa segmentação. No Gráfico 18 vemos que as mulheres jovens delegadas da 3ª CNPM são 100% pertencentes a partidos de esquerda.
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Gráfico 18. Partido ao qual as delegadas da 3ª CNPM (2011) são filiadas, de acordo com a classificação no espectro ideológico, por faixa etária.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Na 4ª CNPM verificamos uma mudança significativa na proporção de mulheres jovens de 18 a 24 anos que são filiadas a partidos políticos, chegando a 45,5%, um aumento de 12 pontos percentuais com relação a 2011. Já entre as mulheres de 25 a 31 anos – a faixa etária que tem maior número de participantes do governo em 2016, como vimos anteriormente –, a taxa de filiação partidária cai de 47,2% em 2011 para 23,5% em 2016. Nas seguintes faixas etárias a taxa de filiação partidária das delegadas volta a crescer progressivamente, como vemos no Gráfico 19.
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Gráfico 19. Se a delegada é filiada a partido políticos por faixas etárias na 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Ao analisarmos a classificação ideológica dos partidos aos quais as delegadas são filiadas, vemos uma diferença ainda mais marcante na 4ª CNPM. Nela, todas as mulheres jovens, de 18 a 25 e de 26 a 31 anos, são pertencentes a partidos de esquerda. Entre as outras faixas etárias, destacamos também as mulheres de 53 a 59 anos, que são 93,7% de partidos de esquerda, e as de 67 anos ou mais, que são 87,5% de partidos de esquerda. Os partidos de direita encontram mais expressão entre as mulheres de 39 a 45 anos (18,9% das delegadas pertencentes a essa faixa etária) e o pertencimento aos partidos de centro são mais frequentes entre as mulheres de 60 a 66 anos (25%).
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Gráfico 20. Partido ao qual as delegadas da 4ª CNPM (2016) são filiadas, de acordo com a classificação no espectro ideológico, por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
A autodeclaração das delegadas, enquanto feministas ou não, quando vista em uma perspectiva geracional, nos mostra que as mulheres no auge de sua idade adulta têm menor probabilidade de se autodeclararem como feministas. Em 2011, partimos de 90% que se consideram feministas entre as delegadas de 18 a 24 anos, chegando a 72,6% entre as de 39 a 45 anos, e novamente crescendo para 93,5% entre as mulheres de 60 a 66 anos. A exceção aqui ficou no alto número de mulheres acima de 67 anos que não se consideram feministas.
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Gráfico 21. Autodeclaração enquanto feministas das delegadas da 3ª CNPM (2011) por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Em 2016 vemos ainda de forma mais imbricada a relação entre a crítica ao adultocentrismo e o feminismo: entre as delegadas jovens de 18 a 25 anos da 4ª CNPM, 100% se declaram feministas. Essa porcentagem vai decaindo nas faixas etárias seguintes e se mantém por volta dos 78% entre as mulheres adultas. Entretanto, as mulheres de 67 anos ou mais voltam a expressar um alto índice (100%) de autodeclaração enquanto feministas. Como observamos no Gráfico 22, pode haver um padrão adultocêntrico que influencia a probabilidade de identificação com o feminismo devido ao pertencimento geracional.
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Gráfico 22. Autodeclaração enquanto feministra das 4ª CNPM (2016) por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
O pertencimento religioso das delegadas da 3ª CNPM, quando analisado numa perspectiva geracional (Gráfico 23), nos mostra que há uma grande diferença entre as jovens, as adultas e as idosas. Entre as jovens não há presença do espiritismo ou de religiões afro-brasileiras, e há uma presença muito mais expressiva daquelas que se declaram sem religião e das que pertencem a outras religiões. As mulheres pertencentes à religião afro-brasileira se concentram nas faixas etárias mais avançadas, tendo sua maior proporção (33.3%) entre as mulheres de 67 anos ou mais.
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Gráfico 23. Pertencimento religioso das delegadas da 3ª CNPM (2011) por faixa etária.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Na 4ª CNPM o padrão de pertencimento religioso por faixas etárias nos mostra variações muito interessantes (Gráfico 24): uma menor expressão de católicas entre os grupos mais jovens, havendo uma diminuição progressiva que vai de cerca de 60% entre as idosas, chegando a 16,7% entre as jovens de 18 a 24 anos; um crescimento na proporção de delegadas protestantes entre as mais jovens, havendo um aumento progressivo de cerca de 10% entre as idosas para chegar aos 33,3% entre as jovens de 18 a 24 anos; um crescimento quase exponencial das delegadas que se declaram sem religião, saindo de uma taxa de 9,1% entre as idosas, para chegar aos 32% entre as mulheres de 25 a 31 anos, e aos 50% entre as de 18 a 24 anos.
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Gráfico 24. Pertencimento religioso da deladas da 4ª CNPM (2106) por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Como nosso objetivo aqui é também observar os padrões geracionais no que tange aos posicionamentos sobre o aborto e pensar a relação entre os feminismos jovens e esse debate, apresentaremos a estratificação etária cruzada com os posicionamentos das delegadas sobre a descriminalização do aborto. No Gráfico 25 percebemos que é gritante a diferença nos posicionamentos sobre o aborto de acordo com as faixas etárias das delegadas da 3ª CNPM, sendo que entre as jovens de 18 a 25 anos 70% são favoráveis à descriminalização do aborto. Entre as delegadas das outras faixas etárias, mesmo havendo uma significativa presença daquelas que defendem a descriminalização, há uma maior expressividade da perspectiva pela manutenção da lei como era em 2011 ou pela alteração para abranger o caso dos fetos anencefálicos, posição já amplamente aceita em diversos âmbitos políticos e institucionais no momento da conferência. A opinião de que o aborto deve ser proibido em todos os casos quase não se faz presente entre as jovens delegadas, considerando aqui as de 18 a 31 anos.
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Gráfico 25. Opinião sobre aborto por idades em faixa etária das delegadas da 3ª CNPM (2011)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Na 4ª CNPM a diferença geracional se torna ainda mais marcante no que tange à opinião sobre o aborto, sendo que 90% das mulheres jovens de 18 a 24 anos se declararam favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos. Essa proporção continua alta entre as delegadas de 25 a 31 anos (64,7%) e vai decaindo até chegar ao ponto mais baixo entre as de 39 e 45 anos (43,3%), faixa etária na qual encontramos maior expressão daquelas que defendem a criminalização do aborto em todos os casos. Após essa faixa etária, a taxa de favoráveis à descriminalização volta a crescer. A proporção de delegadas que sustentam a manutenção da lei como está gira em torno dos 30% entre as mulheres de 25 até as de 52 anos.
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Gráfico 26. Opinião sobre aborto por idades em faixa etária das delegadas da 4ª CNPM (2016)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Os resultados do survey nos mostram que a autodeclaração como “feministas” e a participação em grupos de mulheres são fatores que mais influenciam para que as delegadas sejam favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos. O que nos mostra que não é o fator puramente etário que influencia na posição das mulheres, pois é possível ver que, quanto maior o tempo de contato com o feminismo, maior a chance de ser favorável à descriminalização do aborto, como vemos no Gráfico 27. Esse fator pode explicar por que as mulheres acima de 45 anos têm uma posição mais favorável à descriminalização do aborto do que as mulheres de 39 a 45 anos.
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Gráfico 27. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM por tempo de contato com as ideias feministras e/ou com o feminismo
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
A análise dos fatores ideológicos, políticos, religiosos e geracionais que interagem de forma complexa no campo de debate e participação para a construção de políticas públicas para mulheres não nos permite estabelecer determinantes causais dos posicionamentos das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs. Entretanto, os dados aqui apresentados nos indicam que a crítica realizada pelas jovens feministas ao adultocentrismo existente no movimento pode ter um sentido mais profundo que apenas uma demanda por representação proporcional das diferentes faixas etárias nos espaços de poder e tomada de decisão em torno das políticas para mulheres. Os dados nos mostram que há uma tendência a um maior conservadorismo entre as mulheres adultas delegadas das CNPMs que entre as jovens e as idosas. Interpretando tal dado em conjunto com a análise qualitativa que a participação nos processos das CNPMs nos permitiu, podemos concluir que há uma retroalimentação entre a estrutura hierárquica em termos geracionais no campo do movimento e uma manutenção de lógicas mais tradicionais e conservadoras nas dinâmicas do campo, seja quanto ao conteúdo das reivindicações e propostas, seja em relação às formas de expressão e manifestação. O lento avanço do debate sobre a descriminalização e a legalização do aborto em termos mais concretos
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no Brasil é um exemplo disso. E as jovens feministas estão contestando e criando alternativas para avançar na pauta dos direitos sexuais e reprodutivos e defender a vida das mulheres.
Conclusão O ponto central do debate sobre o aborto é a questão da autonomia das mulheres (BIROLI, 2014). Apesar de a SPM ter elegido o tema “Autonomia” como central na construção de seu programa de políticas públicas, o foco de tais políticas foi no âmbito da autonomia econômica, além do tradicional foco no enfrentamento à violência doméstica. Apesar de a ampliação do direito ao aborto figurar nas deliberações de todas as CNPMs, não houve ação ou política específica nesse sentido (exceto pelo apoio a pesquisas sobre aborto induzido no Brasil, como a PNA), nem de mobilização nem de difusão de informações sobre o aborto ou o apoio a mulheres que decidiram realizar aborto – no exemplo de linhas de atendimento adotadas por outros países. Nesse sentido, vemos como a criminalização restringe mesmo o acesso livre à informação que poderia salvar a vida de muitas mulheres. A I CNPM teve como deliberação aprovada a proposta de revisão da legislação punitiva sobre aborto. A partir dessa demanda foi criada uma Comissão Tripartite, composta por representantes do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil, que elaborou a correspondente proposta de anteprojeto de lei a ser entregue à Câmara Federal. Entretanto, era o momento onde foram publicadas as primeiras denúncias do Mensalão, e o governo recuou diante das pressões da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). O projeto foi apresentado pela então ministra Nilcea Freire não ao Presidente da Câmara, mas à Comissão de Seguridade e Justiça, e o desfecho foi desastroso: O anteprojeto da Comissão Tripartite, que foi incorporado na forma de substitutivo ao PL 1.135/1991 – de autoria de Eduardo Jorge (PT-SP) e Sandra Starling (PT-MG), então sob a relatoria da Deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) –, instituía o direito à interrupção da gravidez até a 12ª semana, e até a 20ª nos casos de estupro, exigindo do SUS e dos planos de saúde a realização do atendimento. Após 17 anos de complexa tramitação, em 2008 o PL 1135/1991 foi rejeitado, tanto na Comissão de Seguridade Social e Família, quanto na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Este episódio foi um marco, revelando o contexto de maior retração do debate sobre o direito ao aborto, tanto no Congresso quanto no âmbito do Executivo. (BIROLI, 2016).
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A questão dos direitos sexuais e reprodutivos esteve longe de ser uma prioridade nesses 14 anos de governos do Partido dos Trabalhadores. Uma das principais razões é seguramente a pressão política dos grupos de direita e conservadores, e mesmo de parte da base aliada do próprio governo que se identifica ou faz parte da bancada religiosa. Tendo sido um dos fatores de maior polêmica no debate da mídia em torno das eleições, os candidatos e candidatas foram pressionados a assumir publicamente um posicionamento contrário à descriminalização e à legalização do aborto (BIROLI; MIGUEL, 2016), que acabou impedindo que houvesse ações mais contundentes da SPM no debate sobre o aborto. Após o golpe, vimos o avanço conservador na Secretaria de Políticas para Mulheres, sendo a nova secretária uma mulher evangélica e favorável à criminalização do aborto em todos os casos, inclusive os já garantidos por lei. Com base nos dados apresentados constatamos que a criminalização do aborto em todos os casos é defendida apenas por 14% das delegadas da CNPM de religião protestante, enquanto 44% acreditam que a lei deve permanecer como está e 28% são favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos. A posição na nova coordenação da SPM representa, portanto, uma minoria conservadora dentro de seu próprio segmento religioso. As experiências de deliberação no âmbito das CNPMs nos mostram que, mesmo a legalização do aborto ainda sendo um tema controverso entre as mulheres que constroem as políticas para mulheres, essa, ainda assim, é a posição majoritária. A análise dos dados nos comprova que a descriminalização do aborto em todos os casos é a posição de mais de 57% das delegadas, enquanto 28% é favorável à manutenção da lei como ela se encontra atualmente. Essa constatação nos indica que as ações de promoção dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito das políticas públicas para mulheres ainda não refletem as perspectivas das mulheres participantes da CNPM. Se analisamos o posicionamento das mulheres mais jovens, vemos uma diferença ainda maior, já que 70% das mulheres até 24 anos são favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos. A baixa presença de mulheres jovens como delegadas nas conferências seguramente se reflete na pouca incorporação de suas pautas como prioridade na agenda e, especialmente, na concretização destas na execução das políticas públicas para mulheres. Os fatores estruturais que excluem as mulheres jovens dos espaços de deliberação foram denunciados pelas jovens feministas, mas apesar de toda a mobilização e articulação realizada ao longo das CNPMs e da incorporação de algumas demandas nos planos, o número de mulheres jovens presentes nesse espaço ainda está muito abaixo de sua real proporção na população brasileira. Estamos, portanto, diante de um persistente
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problema de sub-representação que tem impactado as políticas para mulheres. Os feminismos jovens, entretanto, não deixaram de se mobilizar intensamente em prol dos direitos sexuais e reprodutivos e, em especial, em defesa do aborto legal, seguro e gratuito. Uma série de estratégias de protesto, de comunicação e mídia alternativas e de apoio através de grupos continua sendo levada a cabo e, apesar da reação conservadora em toda a América Latina, as feministas seguem com todo vapor em sua campanha em defesa dos direitos, da vida e da autonomia das mulheres.
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Divisão sexual do trabalho e usos do tempo: a inserção temática e o feminismo acadêmico na SPM e as percepções das mulheres participantes das CNPMs no Brasil Breno Cypriano1
Introdução Em recente divulgação de resultados provenientes dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2016, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que, ao se considerar apenas o tempo dedicado aos afazeres domésticos e aos cuidados de pessoas, a desigualdade de gênero no Brasil é ainda um problema crucial, já que as mulheres trabalham praticamente o dobro do tempo (20,9 horas semanais contra 11,1 horas) em relação aos homens nessas atividades (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017)2. Porém, se observarmos a série temporal dos dados das pesquisas anteriores, reunidos no Portal do Retrato das Desigualdades em Gênero e Raça, entre os anos de 2001 e 2015, percebe-se uma ligeira diminuição dessa desigualdade na alocação dos usos do tempo, como apresentado no gráfico 1 (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2017)3. Há de se destacar que essa diminuição não se deveu pelo aumento da participação dos homens nas tarefas domésticas e de cuidados, mas, à diminuição gradativa do trabalho das mulheres em tais atividades, talvez pela diminuição do número de filhos, pela delegação do trabalho doméstico, geralmente, a outras mulheres, pelo aumento de creches no Brasil ou por outros fatores espúrios. O que se torna importante e central, neste caso, é evidenciar a relevância ao acesso dessas informações para 1 Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCP/UFMG). Agradeço o convite das professoras Marlise Matos e Sonia E. Alvarez para a participação nesta coletânea. Estendo os meus agradecimentos a Tatau Godinho e Cristina Queiroz, que durante a minha passagem como consultor em Gênero e Usos do Tempo na Secretaria de Políticas para as Mulheres me proporcionaram a possibilidade de compreensão da dinâmica das políticas públicas nesta temática. 2 Cf. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/ 18568-tarefas-domesticas-impoem-carga-de-trabalho-maior-para-mulheres.html 3 Idem.
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o planejamento, a criação e a execução das políticas públicas voltadas para a autonomia econômica e o empoderamento de mulheres, como também buscar alternativas para a transformação das desigualdades na divisão sexual do trabalho, buscando-se, afinal, a efetiva incorporação dos homens nas atividades domésticas e do cuidado. Gráfico 1: Média de horas semanais dedicadas a afazeres domésticos pela população de 10 anos ou mais de idade, por sexo (Brasil, 2001-2015)
Fonte: Ipea, 2017.
Diante dessas questões, este capítulo busca compreender como a temática dos usos do tempo e suas pesquisas foram introduzidas no século XX como uma forma de se auferir empiricamente sobre a vida cotidiana das famílias inseridas em uma sociedade industrializada, comparando, dessa forma, as atividades remuneradas/mercantis com as não remuneradas. Cabe ressaltar que, para os estudos de gênero (ou estudos de mulheres) e dos usos do tempo, ganharam visibilidade a partir da realização do ciclo de Conferências sobre a Mulher (1975-1995) realizado pela ONU, o que colocou em pauta a necessidade de se perceber o “não trabalho” realizado por mulheres no ambiente doméstico, ou seja, era necessário demonstrar empiricamente a subordinação econômica feminina. Dessa forma, a interseção entre gênero e usos do tempo seria necessária principalmente para a formulação e para a implementação de políticas públicas eficientes, onde são necessários informações e indicadores específicos. Cabe ressaltar que a importância deste capítulo no contexto deste volume, sobre os diversos feminismos no contexto das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, é, justamente, enfatizar a importância do feminismo acadêmico e sua complexa relação com a construção do Estado brasileiro e a formulação das políticas públicas.
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No Brasil, especificamente, por essa razão, a Secretaria de Política para as Mulheres (SPM),4 a partir das demandas das duas primeiras Conferências de Políticas para as Mulheres, empenhou-se para que as estatísticas oficiais brasileiras incorporassem quesitos referentes a sexo. Em razão desse objetivo, instituiu, em 2008, o Comitê Técnico de Estudos de Gênero e Uso do Tempo (CGUT), que contava com a participação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Participaram, como convidadas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU Mulheres, entidades das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e Empoderamento das Mulheres. Além da discussão temática sobre a divisão sexual do trabalho e os usos do tempo, o capítulo também se centra no esforço para destacar a importância política no Brasil em problematizar tal temática, visando aos aspectos institucionais e específicos destas estratégias e, por fim, realiza uma descrição e avaliação das percepções das participantes das duas últimas CNPMs, a respeito da divisão sexual do trabalho e suas avaliações quanto ao uso de tempo nas tarefas domésticas. Pretende-se compreender como se dá essa percepção para esse segmento de mulheres, inclusive comparando-se as suas respostas também à avaliação que teriam sobre como teria se transformado no país a situação das mulheres no tempo, especialmente no comparativo histórico e sobre como essa situação teria, afinal, evoluído. Atenção e comparação dessas percepções também são realizadas em relação a como estas responderam quando perguntadas sobre qual seria a maior desigualdade entre homens e mulheres no país e também qual seria o principal problema ainda a ser enfrentado pelas mulheres no seu município, estado, país. O capítulo se dividirá em: (i) uma discussão sobre a trama conceitual que fomenta as discussões sobre a temática da divisão sexual do trabalho e dos usos do tempo no campo teórico; (ii) a apresentação da inserção da discussão no contexto do feminismo acadêmico brasileiro; e (iii) as percepções das participantes das 3ª e 4ª CNPMs sobre a temática das desigualdades e divisão sexual do trabalho.
4 Utilizar-se-á aqui a referência ao órgão como Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), ainda que atualmente esta secretaria tenha perdido o status de ministério após a reforma ministerial e hoje seja uma Secretaria Especial vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania.
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O emaranhado conceitual feminista – a dicotomia público/ privado, cuidado, divisão sexual do trabalho, usos do tempo e patriarcado Esta primeira parte é uma discussão sobre a teoria política feminista,5 que busca na gênese e na história dos conceitos o entendimento a partir de um emaranhado nodal, que ao se articular dá sentido e estrutura a um campo de conhecimento produzido pelo saber feminista. A partir dessa noção, como discutido em Cypriano (2015), a divisão entre o público e o privado, a noção de cuidado, bem como o conceito de divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007) e a questão dos usos do tempo, são conceitos da teoria política feminista que trazem a perspectiva de politização do feminismo. Essa politização vem contribuindo para um entendimento sobre o patriarcado (como conceito centrípeto/central) que, por sua vez, originou uma visão crítica feminista do Estado e do debate mais específico sobre as políticas públicas numa perspectiva de gênero, ou a conhecida transversalidade de gênero. “O pessoal é político” tornou-se a afirmação que amparou grande parte dos projetos teóricos da maioria das pensadoras feministas. A problematização da discussão entre a dicotomia conceitual público/privado unifica os feminismos, já que todas as correntes possuiriam uma discussão específica sobre o conceito de público e o de privado, desde o feminismo liberal, o feminismo tradicional marxista, o radical, o socialista, o psicanalítico, o pós-moderno e até o pós-estruturalista, que se aproximam, também, no compartilhamento do conceito de patriarcado, tomando-o como central para a discussão teórica (ELSHTAIN, 1981). A partir desses esforços, a família (burguesa, nuclear e patriarcal, principalmente) se tornou, e vem se mantendo desde então, central à política do feminismo e um foco prioritário da teoria feminista.6 5 A partir da discussão sobre teoria política feminista discutida em Cypriano (2015), após expor uma miríade de elementos que informam sobre esse campo do conhecimento, faria sentido entender e definir a teoria política feminista como uma estratégia discursiva e de produção de conhecimento, que informa e é informada pela práxis do ativismo político e das múltiplas e diferentes experiências e relações entre as(os) atrizes/atores dentro desse campo, que busca, ainda que na sua acomodação disciplinar dos campos de que faz parte, a saber, a filosofia e a teoria política, o reconhecimento definitivo dessas áreas por poder informar outra visão e entendimento sobre “a” política. Esse esforço deve ser ampliado, inclusivo e informado, já que esse tipo específico de saber é consequência de articulações locais e globais, envolvendo permanentes disputas de poder, como também abrangendo uma multiplicidade política de atrizes/atores em esferas variadas. 6 Algumas críticas à concepção nuclear e patriarcal da família seriam: para Iris Young (1996), ao se analisar as questões de gênero e sexualidade como questões de justiça, nota-se que a tradicional concepção de família limitaria consideravelmente o alcance da justiça, já que o acesso à justiça seria
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O que acontece na vida pessoal, particularmente nas relações entre os sexos, não seria imune à dinâmica de poder, que recorrentemente tem sido notada como a face distintiva do político. Para Okin (2008 [1998]), o domínio da vida doméstica e pessoal e aquele da vida não doméstica, econômica e política não podem ser interpretados isolados um do outro, por isso, as feministas afirmam que a separação das esferas público/privada legitima a estrutura de dominação patriarcal de gênero da sociedade e protege uma esfera significante da vida humana (e especialmente da vida das mulheres) do exame atento ao qual o político é submetido. É relevante perceber, então, como as esferas “públicas” são generificadas, já que foram construídas sob a dominação masculina e pressupõem a responsabilidade feminina pela esfera doméstica. E é importante notar que esses conceitos foram construídos historicamente (OKIN, 2008 [1998]). Segundo Susan Okin (2008 [1998]), a noção do que é “o privado” referirse-ia à esfera ou às esferas da vida social nas quais a intrusão ou interferência em relação à liberdade requer justificativa especial, enquanto “o público” indica uma esfera ou esferas vistas como, geral ou justificadamente, mais acessíveis. Com isso, na teoria política faz-se o uso do conceito de público e privado para se referir à dicotomia entre Estado e sociedade e, também, à dicotomia entre vida não doméstica e doméstica, ou íntima. A primeira forma de distinção, referente ao liberalismo clássico, seria entre o Estado e a sociedade civil, enquanto, numa outra chave teórica, os “românticos” (KYMLICKA, 2006 [1990], p. 331) propõem a separação entre o pessoal ou íntimo da noção de público que abrangeria o Estado e a sociedade civil. Esse deslocamento, até mesmo já incorporado pelo liberalismo, significou um avanço para o feminismo, já que nas disputas sobre a primeira dicotomia (Estado versus sociedade civil), as teóricas feministas dariam maior prioridade à vida social do que à política e, através da segunda dicotomia, a noção do político seria mais presente para as lutas feministas e suas teorizações – “a politização do social” (Cf. FRASER, 1989). De acordo com Anne Phillips (1991, p. 95, tradução nossa):
constrangido às “formas ilegítimas” de família, como os casais homossexuais; para Bette Tallen (2008 [1990]), ao negar a centralidade de famílias homoparentais, principalmente às famílias conformadas por lésbicas, algumas teóricas feministas ignorariam a questão lésbica, e, por isso, levaria ao separatismo teórico das lésbicas, que, por sua vez, desafiam os papéis tradicionais na família, como também a noção de maternidade como uma metáfora política dominante; sobre as reinvenções dos vínculos amorosos, que se envolveriam em redes também sociais e políticas, centrando-se nas relações amorosas homoeróticas e heteroeróticas alternativas e nas configurações da família moderna, a discussão de Marlise Matos (2000) contempla as diversidade e multiplicação das relações familiares e amorosas na cena contemporânea, ou modernamente tardia.
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[...] novos tópicos estão sendo colocados na agenda política, e em vários casos [a] redefinição sobre o que conta como preocupações públicas tem transformado as oportunidades para as mulheres se tornarem politicamente ativas. A política que antes parecia definida por abstrações exóticas tem sido remodelada para incluir a textura da vida diária, oferecendo para alguns o que era a primeira abertura para o “debate político”.
A subordinação das mulheres na esfera privada, dentro de casa, se relacionaria à esfera pública, na medida em que a “[...] igualdade na família seria a condição para a democracia no Estado” (PHILLIPS, 1991, p. 102, tradução nossa). Ampliar, então, as concepções sobre poder e dominação, focando em diversos espaços, é uma das maiores contribuições teóricas do feminismo, que segundo a autora, teria sido notada por Bowles e Gintis (1986), ao demonstrar que dominação não diz respeito a um único lugar. “A” política deveria ser vista como uma questão “[...] do ‘devir’, como algo que não pode ser reduzido a uma oferta de recursos, mas que envolve transformar os interesses que são perseguidos” (PHILLIPS, 1991, p. 102, tradução nossa) e os principais locais da democracia ou da necessidade da democratização seriam: o Estado liberal democrático, a economia capitalista e a família patriarcal (o que conflui na ideia redimensionada da justiça social). De outra forma, esse dimensionamento pode ser reposto na compreensão politizada da família através das relações entre mulheres e homens e pais/mães e filhos que seriam estruturadas pela regulação estatal, pelas condições econômicas e pelo poder patriarcal. Diante dessa questão, para Elshtain (1981), a relação conflitual entre o “externo” e o “interno” à família geraria tensões que seriam causadas pela excessiva politização provocada pela vigência de uma esfera pública excessivamente forte, o que, então, causaria a seguinte enfermidade: “[pais e mães] que estão frustrados e humilhados, tornados dependentes e indefesos na vida do trabalho e na cidadania, terão dificuldade em incutir crenças como alicerces e maneiras de ser em suas famílias” (ELSHTAIN, 1981, p. 337). Carole Pateman (1993 [1988]) diz que seria, justamente, na discussão que as teóricas feministas liberais fazem sobre a dicotomia público/privado que os questionamentos referentes à busca pela universalização dos princípios e direitos insurgiriam e motivariam críticas. Isso converge para que toda a “teoria política feminista” trate a questão sobre “o” político, referindo-se a essa problemática. Assim, seriam a “denúncia” e a crítica ao caráter patriarcal do liberalismo (e das demais teorias hegemônicas) dois dos elementos-chave em toda essa discussão. Existem, ainda, divergências sobre esse tema dentro da própria teoria feminista, quais sejam: a variação do sentido e o alcance das críticas feministas ao conceito de público e privado (oriundo das diversas fases do feminismo e nas diferentes
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vertentes do movimento) e a discussão do movimento feminista contemporâneo sobre a própria existência dessa distinção. É preciso ressaltar, também, que o próprio liberalismo é impreciso, ambíguo ao definir público e privado, tornando a questão ainda mais complexa. Jean Bethke Elshtain (1981) cunha uma própria distinção entre o público e o privado que se baseia na noção de que as “atividades” seriam diferentes – isto é, há coisas que são políticas e outras que não são. Com isso, segundo Phillips (1991), ela chamaria a atenção para evitar o problema de se pensar “[...] que [se] tudo em nossas vidas é um problema político, então nós estaremos abertos a pensar que tudo tem uma solução política” (PHILLIPS, 1991, p. 105, tradução nossa). A associação entre o pessoal e o político não deveria se exaurir em toda e qualquer forma de democratização. Para Phillips, haveria distinções entre estes dois conceitos, o “pessoal” e “o” político, que se sobrepõem um ao outro: é recorrente haver interpretações enganadas quanto “ao que seria um problema político”, pois poderiam referir-se aos locais onde há a atividade de estender o controle sobre decisões que todos e todas estão envolvidos, como é no trabalho, ou referir-se também aos espaços tradicionalmente que seriam definidos como “a” política. Haveria um sério problema aí: o “feminismo consultaria justamente a ênfase exclusiva na ‘política’ como convencionalmente definida e tem salientado muitas vezes as questões mais imediatas de tomar o controle onde vivemos e trabalhamos”, e, como a autora alerta, “essa insistência positiva sobre a democratização da vida cotidiana não deve se tornar um substituto para uma vida política mais vivaz e vital” (PHILLIPS, 1991, p. 119, tradução nossa). De maneira geral, as contribuições feministas para politizar e democratizar as relações do privado incidiram nas seguintes ações detalhadas: Feministas têm criticado a ortodoxa divisão entre o público e o privado, apresentando um desafio poderoso e radical às noções existentes de democracia. Elas têm ampliado o nosso entendimento das precondições para a igualdade democrática, e trazido para a discussão a divisão sexual do trabalho em casa e no trabalho. Elas têm desafiado (ainda que com algumas importantes reservas) a noção de que o que acontece no privado é um interesse privado, e faz que pareça ser um caso sem resposta para a democratização das relações e decisões em casa. Elas alargaram a nossa concepção sobre as práticas que são relevantes, colocando na órbita da democracia a forma como falamos com o outro, a forma como nós nos organizamos, a forma como escrevemos. Elas se apegaram a uma visão de democracia como algo que importa em cada detalhe e onde estivermos. Com todas essas extensões maravilhosas, o feminismo permanece preso no que Sheldon Wolin (1982:
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28)7 considera como política do seu próprio quintal? (PHILLIPS, 1991, p. 115-116, tradução nossa).
Outra importante contribuição para o debate sobre as noções referentes ao político, ou à (des)politização de conceitos, é a contribuição do conceito de “cuidado” que, para Joan Tronto (1996, p. 151), seria imprescindível a uma “teoria política feminista”, já que este seria um conceito concebido como essencialmente apolítico. Para avançar numa direção oposta, ou seja, a de se politizar o cuidado, a autora sugere a seguinte conceituação: cuidado seria “[...] uma espécie de atividade que inclui tudo o que fazemos para nos manter, continuar e reparar nosso ‘mundo’ para que possamos viver nele o tão bem quanto for possível. Este mundo inclui nossos corpos, nossos egos, e o nosso ambiente, tudo o que nós procuramos se entrelaça em uma complexa rede de vida sustentável” (FISHER; TRONTO, 1991, p. 40 apud TRONTO, 1996, p. 142, tradução nossa, itálicos da autora). Através desse esforço, Tronto procura denunciar que a própria exclusão e a não tematização do cuidado (como de outros conceitos utilizados pelas feministas) nos espaços políticos seriam, em si mesmas, um projeto profundamente político. Logo, a recente discussão conceitual nessa direção envolveria necessariamente uma trama complexa de processos relativos ao cuidado que, por sua vez, revelaria uma forma estratégica na nossa atual situação política, como também uma vital atividade ontológica. Somado à discussão sobre o público e o privado, de acordo com Hirata e Kergoat (2007), bem como a questão do cuidado, as análises passaram a abordar o trabalho doméstico como atividade de trabalho tanto quanto o trabalho profissional. Isso permitiu considerar “simultaneamente” as atividades desenvolvidas na esfera doméstica e na esfera profissional, o que abriu caminho para se pensar em termos de “divisão sexual do trabalho”. (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 597-598).
Para essas autoras: A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator 7 O teórico político Sheldon Wolin possuiu uma visão demasiadamente realista (para não dizer pessimista) sobre os movimentos populares, já que, mesmo com a surpreendente variedade e abrangência desses movimentos, ele salienta que é necessário reconhecer que a sua vitalidade e importância democrática têm limitações políticas, devido ao localismo e a limitações. A política deve deter-se com problemas abrangentes, e não com questões paroquiais levantadas por esse tipo de movimento, evitando-se assim uma “política de quintal” (PHILLIPS, 1991, p. 48-49).
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prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc). (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599).
Diante de tal definição, as autoras acrescentam que haveria a necessidade de se pensar a divisão sexual do trabalho para além do plano conceitual, incluindo uma discussão sobre princípios e modalidades. Os princípios estariam relacionados à “separação”, relacionando à diferença entre trabalhos de homens e mulheres, e à “hierarquia”, a valorização diferenciada entre esses trabalhos. Com relação às modalidades, as autoras entendem, “[...] por exemplo, a concepção do trabalho reprodutivo, o lugar das mulheres no trabalho mercantil etc.” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 600). Diante da desigualdade na divisão sexual do trabalho, principalmente pela não valorização do trabalho reprodutivo e as tarefas do cuidado, segundo Barajas (2016), “[...] pesquisas sobre uso do tempo e trabalho não remunerado permitem mostrar que a carga de trabalho não remunerado, desigual, tem embasamento na discriminação contra mulheres.” (BARAJAS, 2016, p. 22). De acordo com essa autora, é importante ressaltar que as pesquisas sobre os usos do tempo ainda permitem quantificar o trabalho e contribuição “invisível” das mulheres, principalmente na esfera privada. Sobre a dinâmica dessa temática, Neuma Aguiar (2011) pontua que: Pesquisas de uso do tempo medem a quantidade de tempo despendida por uma determinada população em atividades cotidianas. Essas dimensões temporais servem para orientação prática e estão imersas na cultura. Os ritmos temporais estão vinculados a períodos históricos, e há mudanças nas práticas que demoram a ocorrer, e outras que são mais aceleradas. Uma das finalidades das pesquisas de uso do tempo é a da condução de comparações internacionais sobre as formas de organização do dia a dia das populações, permitindo observar distintos impactos da organização econômica, da estrutura política e de distintas formas culturais de orientação cotidiana. O primeiro grande projeto de impacto internacional foi conduzido por Alexander Szalai e associados em 1966. Para interpretar os dados do Brasil, Amaury de Souza (1976) inseriu os seus achados dentro de um quadro comparativo com os dados obtidos por Szalai e associados. Para compreendermos bem tal quadro, buscamos ajuda nos textos publicados da pesquisa internacional comparada efetuada por Szalai (1972). (AGUIAR, 2011, p. 74).
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Diante disso, a importância política das temáticas da divisão sexual do trabalho e dos usos do tempo deve levar em consideração que “[a] formulação, implementação e avaliação de políticas exige, para avançar na igualdade entre homens e mulheres, pesquisas (argumentos) em maior número e qualidade [...]” (BARAJAS, 2017, p. 22). Na configuração desse plano e emaranhado conceitual, há de se destacar que a política, tal como é compreendida pela dinâmica de construção do Estado Moderno, é patriarcal. O patriarcado, que é a ideia norteadora e centrípeta até hoje do campo feminista do conhecimento político, que anos mais tarde também foi um conceito muito trabalhado por autoras como Pateman (1993 [1988]) e Walby (1990), pode ser aqui, então, compreendido como uma forma de poder político que reforça o direito patriarcal como uma forma específica de direito político, singular, em que todos os homens exercem pelo fato de serem homens, não só na esfera privada como na esfera pública. Walby aponta a discussão sobre o Estado e o patriarcado em sua obra relativa à divergência das correntes feministas liberal, marxista, da teoria feminista de sistemas-duais e do feminismo radical. O que Walby conclui é que há certo avanço nas políticas de bem-estar, ainda que o Estado continue patriarcal como também ainda permanece capitalista e racista. Porém, ainda que as mulheres possam, com essas políticas, sar da esfera privada e entrar em certas posições na esfera pública, elas não conseguem acender a certas posições desejáveis em cargos públicos, pois não há ainda igualdade de ascensão nessas esferas de poder, como a autora observa (WALBY, 1990, p. 171-172). Para outra autora feminista, Catharine MacKinnon (1995 [1989]), o feminismo carecia de um tratamento teórico sobre o Estado, como também de uma abordagem crítica sobre o poder em uma forma institucionalizada e burocratizada. Pelo movimento feminista até então desconsiderar a dimensão de gênero como uma determinante da conduta estatal, dá-se a impressão de que a conduta do Estado era indeterminada, mas, ao contrário, o poder masculino dentro do Estado é sistêmico. Por isso, o regime estatal masculino é coativo, legitimado e epistêmico. Essa autora, portanto, propõe uma “teoria feminista do Estado” que insere e considera em sua discussão, sobre a análise do poder institucionalizado do Estado, as questões legais e a interpretação social da mulher. O debate internacional em relação às opressões e desigualdades entre os sexos era ainda latente e pouco problematizado na década de 1970, quando a Organização das Nações Unidas deu importantes passos. Em 1975 instaurou-se o Ano da Mulher e no período de 1975-1985 foi decretada a “Década da Mulher”, período no qual se realizaram quatro grandes Conferências Mundiais sobre a Mulher, entre os anos de 1975 e 1995. Do ponto de vista pragmático, esse processo de mobilização internacional assinalou que a intervenção sobre as desigualdades e as opressões sofridas pelas mulheres deveria ser assunto de Estado e que
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a formulação de políticas públicas voltadas para demandas específicas contribuiriam com a promoção da igualdade de gênero. Dessa forma, passou-se a utilizar, a partir da Terceira Conferência Mundial da Mulher, a noção de “transversalidade de gênero” (gender mainstreaming) tanto como um conceito, quanto também como uma prática das políticas públicas e sociais. Esse conceito é discutido, neste volume, também no capítulo que problematiza as redes de participação e ativismo das delegadas (capítulo 3). Atualmente, esse é um dos conceitos orientadores do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra Mulheres. Segundo Sylvia Walby (2005), ao incluir a perspectiva de gênero na agenda governamental, tal noção faz que se reoriente e transforme os paradigmas antes vigentes das políticas públicas (que geralmente são burgueses, patriarcais, brancos, heterossexuais). Dessa forma, ficou-se estabelecido que: Transversalidade da perspectiva de gênero é o processo de avaliação das implicações para mulheres e homens de qualquer ação planejada, incluindo legislação, políticas ou programas, em todas as áreas e em todos os níveis. É uma estratégia para fazer com que as preocupações e experiências das mulheres, bem como as dos homens, sejam uma dimensão integrante da concepção, implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas em todas as esferas políticas, econômicas e sociais para que as mulheres e os homens se beneficiem igualmente e a desigualdade não seja perpetuada. O objetivo final é alcançar a igualdade de gênero. (UNITED NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COUNCIL, 1997, tradução nossa).
Mas cabe destacar que tal perspectiva é fortemente contestada por analistas e teóricas. De acordo com Alyson Woodward (2008), as contestações surgem porque a transversalidade de gênero é uma novidade, sendo uma técnica e uma prática advinda da governança global. As contestações também são decorrentes, para a autora, da popularidade da ideia, já que o termo “transversalidade” tem sobrevivido, enquanto a discussão em torno da noção de “gênero”, propriamente, tem se perdido. A partir da noção de transversalidade, Woodward (2008) problematiza alguns pontos interessantes. O primeiro deles é que o debate sobre “igualdade de gênero” retomaria as discussões sobre igualdade versus diferença, que ficaram conhecidas como o “Dilema de Wollstonecraft”. A autora ressalta que, paradoxalmente, homens e mulheres devem ser tratados como iguais diante da lei, por buscarem os mesmos direitos, porém eles ainda manteriam suas diferenças. Outro ponto-chave para a autora seria o gesto ambicioso de se “integrar todas as políticas” sob uma mesma ótica. A última questão ressaltada pela autora é que gênero é uma concepção que ultrapassa o conceito de “mulheres”. Porém, como
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Woodward acrescenta, muitas políticas e relatorias de transversalidade de gênero vão entender esse conceito como “o problema da mulher”, ou como outra questão que não diz sobre as desigualdades entre homens e mulheres, e isso é um problema primário. Diante dessas questões de políticas públicas, o eixo sobre a questão de autonomia econômica das mulheres e as questões no mundo do trabalho foi uma das bandeiras que o movimento feminista discutiu extensivamente (ver o capítulo 1 de Schumaher, neste volume), tendo refletido bastante sobre a tensão existente entre a esfera pública e a privada. A dupla jornada de trabalho das mulheres e, depois, os estudos sobre o uso do tempo tornaram-se pautas importantes da agenda feminista. A teoria feminista denuncia a dualidade diante da questão da produção versus a reprodução e que, por muito tempo, a ideia de trabalhos complementares (trabalhos domésticos e de cuidado seriam responsabilidade das mulheres) foi uma estratégia de dominação utilizada por homens para manter as mulheres em posições socialmente desvalorizadas. A sobrecarga de trabalho com os filhos e o trabalho doméstico faz que as mulheres tenham menos horas do seu dia para lazer e descanso, por isso a questão sobre políticas públicas para se repensar a divisão sexual do trabalho e o trabalho doméstico, bem como sobre paternidade, tem entrado em discussão em países de bem-estar social e outros que estão comprometidos com políticas de gênero e para as mulheres. No caso do Brasil, pensando na necessidade de se produzir indicadores de gênero que subsidiassem a formulação de políticas públicas para as mulheres, a SPM, guiada pela Ação 11.2.22, do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (II PNPM) de “Instalar o Comitê de Gênero e Uso do Tempo no âmbito do IBGE”, criou o CGUT. Diferente do que estava no plano, foi no âmbito da SPM que se instalou, em 2008, o Comitê Técnico de Estudos de Gênero e Uso do Tempo, que contou com a participação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Participaram como convidados: a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU Mulheres, entidade das Nações Unidas para a promoção da igualdade de gênero e do empoderamento das mulheres. Segundo Lourdes Bandeira: O pioneirismo da SPM responde às demandas sociais das mulheres, expressadas nas Conferências Nacionais sobre os Direitos das Mulheres e consubstanciadas nos I e II PNPM. Seguramente as análises sobre o trabalho reprodutivo e a economia dos cuidados ainda são incipientes e padecem de falta de estatísticas adequadas. Perante tal fato, a SPM e IBGE juntaram-se em uma parceria para suprir esta lacuna e desenhar a pesquisa em curso, a PNAD Contínua, que investiga sobre os usos do tempo, na complexa dinâmica da divisão sexual do trabalho. (BANDEIRA, 2011, p. 59).
268
A partir dessa prática, a próxima discussão deste capítulo focará especificamente em um breve levantamento histórico sobre a produção acadêmica dos estudos de gênero, divisão sexual do trabalho e pesquisas sobre usos do tempo no Brasil e a relação dos núcleos de pesquisa sobre mulheres e feminismo presentes em todo o território nacional.
Estudos e pesquisas sobre as mulheres, feminismo e gênero e os usos do tempo no Brasil O feminismo acadêmico ocuparia, atualmente, espaços em várias matrizes disciplinares, porém, com o efeito da institucionalização, também surgiram os Estudos de Mulheres, Estudos de Gênero e Estudos Feministas, que envolveram tanto razões acadêmicas, como razões políticas (JAGGAR, 2009, p. 191). Segundo Wendy Brown (1997, p. 81, tradução nossa), “[o] desejo pelo status disciplinar foi significado pela pretensão de uma teoria e método distintos (assim como os estudos sobre as mulheres necessariamente desafiaram a disciplinaridade) e o desejo de vencer o desafio radicalizado dos primeiros objetos dos estudos das mulheres em institucionalizar esse desafio no currículo”. A partir da década de 1960, o feminismo acadêmico ocidental definiu metas para essas disciplinas, que passaram por disputas internas, apontando a fragmentação e as fraturas dos Estudos da Mulher, porque essa disciplina não seria de uma conversação única, mas estaria engajada em vários domínios do conhecimento e em diversas correntes teóricas. Também essa institucionalização foi, políticamente e teoricamente, incoerente, ao passo que seria implicitamente conservadora por circunscrever as discussões unicamente às “mulheres” como os principais objetos de estudo. Em represália a esse movimento, o papel de algumas teorias e autoras, como as teorias pós-coloniais, queer e raciais, foi de desestabilizar a categoria “mulheres” e, além de denunciar o determinismo biológico, atribuíram questionamentos importantes sobre as questões raciais e as sexualidades menosprezadas. Na década de 1970, principalmente, devido à “[...] questão da divisão entre os ‘estudos das mulheres’ e da teoria feminista, a insídia política da divisão institucional entre ‘estudos étnicos’ e ‘estudos das mulheres’, [e] uma divisão da mesma forma preocupante entre queer e teoria feminista [...]” (BROWN, 1997, p. 82, tradução nossa), algumas estratégias foram tomadas renegociando teorias, metodologias e os conceitos centrais. No Brasil, o trabalho de livre-docência “A mulher na sociedade de classe: mito e realidade”, de Heleieth Saffioti, defendido sob orientação do professor Florestan Fernandes, em 1967, inaugurava uma série de estudos feministas que
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se dedicavam a pesquisar a divisão sexual do trabalho, muito influenciadas na época pelas teorias marxistas e socialistas. De acordo com Heilborn e Sorj (1999), a temática de gênero era um dos interesses centrais da Ford Foundation naquele momento, por isso, as diversas dotações para pesquisas que a Ford Foundation, nas décadas de 1970 e 1980, investiu na área acadêmica possibilitaram às feministas, através da Fundação Carlos Chagas, a realizar pesquisas inéditas no cenário nacional. De acordo com Albertina Costa (1994), é durante a década de 1980 que a temática “cresce e se diversifica vertiginosamente”, o que dá início à institucionalização dos núcleos de estudo e pesquisa (ver Quadro 1). Segundo a autora, esses núcleos de estudo sobre a mulher e gênero funcionaram, no meio acadêmico, de forma diversificada cumprindo a “função tríplice”, extensão, ensino e pesquisa e serviram também como um meio de apoio aos cursos de pós-graduação e como uma forma de favorecer a formação de novas pesquisadoras e pesquisadores. Quadro 1: Primeiros núcleos universitários de estudos sobre relações de gênero (ano de fundação) Ano
Núcleo
1980
Núcleo de Estudos sobre a Mulher (PUC/RJ)
1981
Núcleo de Estudos, Documentação e Informação sobre a Mulher (Nedim/UFC)
1983
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim/UFBA) Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher (Núcleo Mulher/UFRGS) Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem/UFMG) Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Gênero (NEG/UFSC) Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero (Nemge/USP) Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (Ciec/UFRJ) Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem/UnB) Núcleo de Assistência ao Autocuidado da Mulher (Naam/USP) GT Sexo e Relações de Gênero/Núcleo de Documentação e Informação Histórica e Regional (NDIHR/UFPB) Grupo de Estudos de História da Educação da Mulher (Gehem/FAE/UFMG) Núcleo Temático Mulher e Cidadania (NTMC/Ufal) Núcleo Nisia Floresta de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações Sociais de Gênero (Nepam/UFRN) Gênero e Sociedade (Iuperj) Núcleo de Estudos, Pesquisa e Assistência à Saúde da Mulher (EPM) Pagu Centro de Estudos do Gênero (PAGU) (Unicamp) Núcleo de Estudos sobre Gênero Afetividade (NEGA/UFMG) Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (Geerge/UFRGS) Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina (Netmal/IMS)
1984 1985 1986 1987 1988 1989
1990
Fonte: COSTA, 1994.
270
No final da década de 1980, em 1989, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher realizou um levantamento de grupos, instituições e associações de mulheres através das relações dos participantes nos 8º e 9º encontros feministas, que aconteceram em Petrópolis e Garanhuns, respectivamente, e buscaram catalogar as principais áreas de atuação, os objetivos/atividades e a clientela destes. Diante desta publicação, foi feito um recorte dos grupos que realizavam como atividade “estudo-pesquisa”. Cabe ressaltar que a produção de conhecimento não se limitava aos núcleos acadêmicos, mas também abarcava instituições governamentais, como recém-criados organismos de políticas para as mulheres, conselhos, subsecretarias, mas também organismos não-governamentais e movimentos feministas e outros movimentos sociais. Quadro 2: Lista de instituições que realizavam estudo-pesquisa em 1989 (CNDM) UF
Tipo
Alagoas
Outros
Alagoas Distrito Federal Distrito Federal Distrito Federal Espírito Santo Goiás Goiás Goiás Maranhão Minas Gerais
Núcleo Cema – Centro da Mulher Alagoana Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre a Condição Feminina
Núcleo de Estudo/Ufal Instituições Comissão de Apoio à Mulher Governamentais/ Trabalhadora Rural Mirad/Sepai Núcleo de Núcleo de Estudos e Pesquisas Estudo/UnB sobre a Mulher – NEPeM Instituições Coordenação de Proteção Governamentais/ ao Trabalho da Mulher e do MT Menor Centro de Integração da Outros Mulher Instituições Secretaria de Estado da Governamentais/ Condição Feminina Secretaria Transas do Corpo – Ações Outros Educativas em Saúde e Sexualidade União de Mulheres de Outros Abadiania – UMA Assessoria de Assuntos para a Outros Mulher do Conselho Regional de Medicina Núcleo de Estudos e Pesquisas Núcleo de sobre a Mulher da UFMG – Estudo/UFMG Nepem
271
Ano de fundação
Cidade
1982
Maceió
7/1985
Maceió
2/1986
Brasília
12/1986
Brasília
11/1975
Brasília
4/1983
Vitória
3/1987
Goiânia
4/1987
Goiânia
8/1987
Abadiana
1987
São Luís
9/1984
Belo Horizonte
Minas Gerais
Outros
Pará
Outros
Paraíba
Outros
Paraíba
Outros
Paraíba
Outros
Pernambuco
Outros
Pernambuco
Núcleo de Estudo/UFPE
Pernambuco
Outros
Pernambuco
Outros
Paraná
Outros
Paraná
Outros
Paraná
Outros
Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro
Outros Outros Outros Outros
Grupo de Trabalho – A Mulher na Literatura Conselho Municipal dos Direitos da Mulher Belém/PA Associação Brasileira de Mulheres na Carreira Jurídica Subcomissão Paraíba Grupo de Mulheres Negras de João Pessoa Grupo Feminista Maria Mulher Centro Mulher – Centro de Estudos e Documentação Grupo de Estudos e Pesquisas da Condição da Mulher da UFPE – Gepem Grupo de Estudos da Mulher SOS Corpo – Grupo de Saúde da Mulher Associação de Mulheres de Carreira Jurídica/PR Conselho Estadual da Condição Feminina Movimento Popular de Mulheres do Paraná Centro da Mulher Brasileira Centro de Estudos e Pesquisas da Baixada Fluminense Ciec- Programa de Estudos Feministas Grupo Ceres
Grupo de Pesquisas sobre as Condições de Saúde e Trabalho da Mulher Grumin – Grupo Mulheres Outros Educação Indígena Núcleo de Laboratório de Estudos Sobre Estudo/IUPERJ a Mulher Mulheres por um Outros Desenvolvimento Alternativo (Mudar/Dawn) Núcleo de Núcleo de Estudos sobre a Estudo/ PUC Rio Mulher Outros
272
12/1985
Belo Horizonte
3/1987
Belém
4/1987
João Pessoa
3/1987 10/1974
João Pessoa João Pessoa
9/1984
Recife
9/1986
Recife
6/1985
Recife
3/1982
Recife
10/1985
Curitiba
10/1985
Curitiba
1980
Curitiba
10/1975
8/1986 3/1975 7/1987
3/1988
Rio de Janeiro Duque de Caxias Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio de Janeiro
8/1984
Rio de Janeiro
6/1980
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro Rio de Janeiro
Outros Outros
Rio de Janeiro
Outros
Roraima
Outros
Rio Grande do Sul
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo
Outros
São Paulo São Paulo
Núcleo de Estudo/USP Outros
Fonte: CNDM, 1989.
Núcleo de Recursos Humanos em Saúde OAB/MULHER – Comissão Feminina/RJ OAB/MULHER – Sub Comissão da Mulher Advogada Barra Mansa Conselho Municipal dos Direitos da Mulher Centro de Informação e Pesquisa Angelina Gonçalves – Cipag Associação de Mulheres de São Caetano do Sul
12/1980
Niterói
9/1985
Rio de Janeiro
7/1987
Barra Mansa
9/1987
Boa Vista
4/1986
Porto Alegre
5/1987
Centro de Memória Sindical 6/1980 Coletivo de Pesquisa sobre a 1975 Mulher Comitê Técnico Permanente de Estudo e Defesa dos Direitos 6/1988 da Mulher Conselho Estadual da Condição Feminina de São 4/1983 Paulo Conselho Estadual da Condição Feminina de São 3/1986 José dos Campos Conselho Estadual da 6/1986 Condição Feminina de Marília Grupo de Saúde da Mulher Div. Saúde Materna e da 12/1983 Criança Instituto de Estudos Interdisciplinares sobre as 1982 Relações Sociais de Gênero – Ieros Mulher – Imagens do 1986 Cotidiano Campos Núcleo de Estudos da Mulher e 1986 Relações Sociais de Gênero Rede Mulher 1983
São Caetano do Sul São Paulo São Paulo São José dos Campos São Paulo São José dos Campos Marília São Paulo
São Paulo São Paulo São Paulo São Paulo
Sobre a temática do uso do tempo, as pesquisas realizadas pelo húngaro Alexander Szalai, nos países da antiga URSS, e, no Brasil, por Amaury de Souza
273
(em 1973), foram seguidas pelo pioneirismo da professora Neuma Aguiar, tanto teórico, quanto metodológico, ao introduzir a discussão do uso do tempo para os estudos feministas e de gênero na academia brasileira, após a realização, em 1978, do seminário “A mulher na força de trabalho na América Latina”, na sede do Iuperj. Esse seminário foi o embrião para a formatação, tendo alavancado o grupo de trabalho nos encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), em 1979, conhecido como GT “A Mulher na força de trabalho”, que congregou pesquisadoras e pesquisadores que debateram as temáticas, tanto da mulher no mercado de trabalho quanto a discussão de novas metodologias para os novos estudos feministas, que recém surgiam no Brasil. Como Britto e Neto (1982) afirmam: A preocupação com a temática “Tempo de Trabalho”, de sua utilização na investigação microanalítica e de sua condução, em uma instância, a um corpo teórico abrangente, fico patenteada com a resolução do Grupo de Trabalho Mulher na Força de Trabalho da Anpocs, em sua Reunião Anual de 1981 de, na medida do possível explorar-se essa vertente na busca de uma avaliação tanto quanto possível, nacional. (BRITTO; NETO, 1982, p. 1).
Quadro 3: GT Mulher e a Força de Trabalho nos Encontros da Anpocs 1979/1989 Encontro da Ano Anpocs
III
Local
Trabalhos apresentados no GT “A Mulher na Força de Trabalho”
Alice Rangel de Paiva Abreu (USP) – O Mundo da Costura: algumas considerações sobre o trabalho assalariado e atividades independentes na indústria da confecção Fanny Tabak (PUC/SP) – Associações Femininas como Grupos de Pressão Política Lúcia Ribeiro de Souza (IBGE) – O trabalho feminino e a estrutura Belo familiar 1979 Horizonte Maria Moraes, Cristina Bruschini e Carmem Barroso – Unidades Domésticas, Organizações de Mulheres e Estratégias de Sobrevivência no Brasil*** Parry Sccott (UFPE) – A Produção Doméstica e a Mulher no Recife Zaira Ary Farias (UFC) – Aspectos relacionados com a situação da mulher – dona de casa face ao trabalho doméstico e extradoméstico: algumas notas
274
IV
V
Felícia R. Madeira e Maria Q. de Moraes (USP) – Notas Preliminares sobre a evolução do trabalho feminino no Brasil 68/78: algumas reflexões sobre o tema “mulher e trabalho”*** Cheywa Spindel – A mulhera na indústria do vestuário Amélia Rosa Sá Barreto Teixeira, Ana Clara Torres Ribeiro e Filippina Chinelli Casa e Fábrica: a organização política da Mulher trabalhadora*** Heleieth Saffioti – O impacto da industrialização na estrutura do emprego feminino Neuma Aguiar (Iuperj) – Um guia exploratório para a compreensão do Rio De 1980 trabalho feminino*** Janeiro Liliana Acero – La Mujer en el proceso de trabajo – una fábrica textil Maria Valéria Junho Penha (UFRJ) – A Revolução de 30, a família e o trabalho feminino Simon Schwartzman – A Igreja e o Estado Novo: O Estatuto da Família Selene Herculano dos Santos – A mulher de formação universitária em algumas empresas estatais Vera Maria Cândido Pereira (UFRJ) – A dupla subordinação das mulheres – análise de depoimentos de operárias têxteis Zahidé Machado Neto (UFBA) – Mulher e Estado – Funcionária Pública: A dona de casa nas “repartições” Alda Brito (UFBA) – Emprego Doméstico no Capitalismo – O caso de Salvador Alice Range Paiva de Abreu – Algumas considerações sobre a posição trabalhista de costureiras externas na indústria de confecção no Rio de Janeiro Francisca Laíde de Oliveira, Jane Souto de Oliveira, Rosa Maria Porcaro, Tereza Cristina Costa – Desvendando o trabalho da Mulher: notas para uma discussão Heitor Mansur Caulliraux (UFRJ) – Formas de resistência na indústria do vestuário Nova Heleith Saffioti e Vera Lúcia Botta Ferrante (Unesp/Araraquara)– 1981 Friburgo Mulher e trabalho numa zona rural paulista Maria José Carneiro – Ajuda e trabalho: a subordinação da mulher no campo Maria Valéria Junho Pena (UFRJ) – Lutas Ilusórias: As mulheres na política operária da Primeira República Marina Figueiredo de Mello (Puc Rio) – O mercado de trabalho: uma abordagem da participação feminina Zahidé Machado Neto (UFBA) – A força de trabalho da mulher no espaço do bairro Zaira Ary Farias (UFC) – A situação das mulheres na sociedade de classes: o valor social do trabalho doméstico
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VI
VII
VIII
Alda Britto e Zahidé Machado Neto (UFBA) – Tempo de Mulher, Tempo de Trabalho: Entre Mulheres Proletárias em Salvador*** Heleith Saffioti e Vera Lúcia Botta Ferrante (Unesp/Araraquara)– Trabalhadoras rurais: exclusão e contradição Maria Coleta Oliveira (USP)- O trabalho feminino e trabalho familiar: um estudo sobre trabalhadoras agrícolas em São Paulo, Brasil Mariza de Athayde Figueiredo – Orçamento de tempo: método aplicado Nova 1982 pelas Ciências Sociais nas pesquisas de campo*** Friburgo Neuma Aguiar (IUPERJ) – Orçamento de tempo em perspectiva comparada: uma proposta de pesquisa*** Zaira Ary Farias – Contribuições recentes para o estudo de orçamento de tempo: uma resenha*** Zuleica Oliveira, Márcia Vianna e Juarez Oliveira – Aspectos sociodemográficos do trabalho feminino nas áreas urbanas do estado de São Paulo: 1970-1976 Anamaria Beck, Claudia Maria Costa, Eugenio Pascele Lacerda, João Carlos Torrens – Um trabalho atoa: a produção e a comercialização da renda de bilro e suas implicações para a economia familiar Gilda de Castro Rodrigues (UFPB) – Camponesas no Cariri Paraibano Luciano Figueiredo e Ana Maria Bandeira Magualdi – Negras de tabuleiros e vendeiras: a presença feminina na desordem mineira no século XVIII Marcus Figueiredo – Estudo comparativo do papel socioeconômico das mulheres chefes de família em duas comunidades negras de pesca Águas de artesanal (costa atlântica) 1983 São Pedro Maria Malta Campos, Marta Grosbaum, Regina Pahim, Fúlvia Rosemberg – Profissionais de creche Maria Lúcia Sá Maia (UFPA), Edna Castro (UFPA), Edila Moura (FUA), Ernesto Pinto (FUA), Marilene Silva (FUA) – A mobilidade do trabalho feminino e a reprodução da força do trabalho: análise da família operária em Belém e Manaus Marise Vianna – Determinantes psicossociais da consciência social das empregadas domésticas de São Paulo: um estudo de caso Neuma Aguiar e Vanda Aderaldo – Trabalho feminino e propaganda governamental Águas de 1984 Sem informações São Pedro
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IX
X
Gilda Castro (UFPB) – O mito de Adão e Eva: A legitimidade da dominação masculina Cristina Bruschini – Mulher e trabalho : uma avaliação da década da mulher 1975-1985 Heleieth Saffioti – Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras Maria Moraes Silva – Trabalhadores e trabalhadoras rurais no estado de São Paulo Águas de 1985 Manoel Tourinno, Janett Ferreira e Margarida Zaroni – Modernização São Pedro agrícola na região cacaueira e o trabalho da mulher: efeitos do salário, tecnologia e estrutura fundiária Paulete Goldenberg – Mulher, trabalho e aleitamento: uma questão sobre reprodução social Rosa Lúcia Moyses – Sobre o processo e a divisão sexual do trabalho nas indústrias farmacêuticas e de cosméticos Zaira Ary (UFC) – Ciências Sociais e a “questão da mulher”: apontamentos sugestivos Campos 1986 Não foi realizado o GT do Jordão
277
XI
XII
Naumi Antonio de Vasconcelos (Ieros/PUCSP) – Reflexões sobre o poder macho – Ícaros, Laios, Édipos / ou/ Macunaíma, mon amour (1ª versão) Ícaros, Édipos, Laios: ascensões e quedas ou Macunaíma, mon amour (2ª versão) Edgar de Assis Carvalho (Unesp/PUCSP) – Poder masculino e Contrapoderes femininos em sociedades sem classes (1ª e 2ª versão) Norma Telles (Ieros/PUCSP) – A crise do poder do macho e outras crises (1ª versão) A crise do poder do macho (2ª versão) Marijane Lisboa (Ieros/PUCSP) – A crise de identidade do macho ( 1ª e 2ª versão) Zuleika Lopes de Cavalcanti de Oliveira (IBGE/RJ) – A crise e os arranjos familiares de trabalho urbano – mudanças e composição da força de trabalho urbano familiar (1ª versão) A Crise e os Arranjos Familiares de Trabalho Urbano (2ª versão) Neuma Aguiar e David P. Morais (Iuperj) – Crise e desenvolvimento – trabalho e gênero em uma plantação canavieira (1 ª e 2ª versão) Edila Ferreira Moura (UFPA) – A mulher frente à ação dos grandes Águas de projetos: formas de resistência e resignação (2ª versão) 1987 São Pedro Teresita de Barbieri (Unam) e Orlandina de Oliveira (Unam/Colegio de México) – La Presencia de las Mujeres em América Latina em uma Década de Crisis (1 ª e 2ª versão) Cheywa R. Spindel (Idesp/SP) – A mulher frente à crise econômica dos anos 80 – algumas reflexões com base em estatísticas oficiais (1ª versão) A mulher frente à crise econômica dos anos 80 – novas reflexões sobre um velho problema (2ª versão) Maria Dirlene Trindade Marques (UFMG) – Relações de poder e dominação sobre a força de trabalho feminina (2ª versão) Maria Helena Machado (Ensp/Fiocruz-RJ) – A participação da mulher na força de trabalho em saúde no Brasil – 1970-80 (1 ª e 2ª versão) Maria Aparecida M. Silva (Unesp) – O capital na agricultura e a nova divisão sexual do trabalho (1 ª e 2ª versão) Sandra Azeredo (UFMG) – Relações entre empregadas e patroas (1 ª e 2ª versão) Edgard de A. Carvalho – Pensamento selvagem e relações de gênero (1ª versão) Maria D. T. Marques, Silvia E. C. Morales e Heloisa Helena Gonçalves – Poder e dominação sobre a força de trabalho feminina (1ª versão) 1988
Águas de São Pedro
Não foi realizado o GT
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Michele Ferrand (CNRS-Paris) – Reflexões metodológicas sobre uma abordagem em termos de relações sociais de sexo (1ª e 2ª versão) Lena Lavinas (IPPUR/UFRJ) – Identidade de gênero: um conceito da prática (1ª e 2ª versão) Heleieth I. B. Saffioti (PUCSP) – Ideologia e razão dualista (1ª e 2ª versão) Alda Britto da Motta (UFBA) – Emprego doméstico: revendo o novo (1ª e 2ª versão) Mary Garcia Castro (UFBA) – A busca por uma identidade de classe XIII 1989 Caxambu pelas empregadas domésticas da América Latina e do Caribe (1ª e 2ª versão) Maria de Moraes Silva (UNESP) – Quando as andorinhas são forçadas a voar (1ª e 2ª versão) Naumi Antonio de Vasconcelos (Cenp) – Uma abordagem psicanalítica do machismo brasileiro (machismo e agressividade no brasil: um caso de desmame difícil) (1ª e 2ª versão) Florisa Verucci (OAB-SP) – A mulher e a família na nova constituição brasileira (1ª e 2ª versão) Fonte: Elaborações próprias a partir do site da Anpocs. *** trabalhos voltados para a temática dos usos do tempo.
Desde as acaloradas discussões das décadas 1979-1989 na Anpocs aos anos subsequentes, até a introdução na PNAD, pelo IBGE, de questões relativas ao trabalho doméstico, a importância da temática do uso do tempo ganhava importância no cenário nacional com os cursos de Metodologia Quantitativa na UFMG e com a realização do congresso da International Association of Time-Use Research (Iatur), também na UFMG, pela primeira vez no Brasil, em 2000. Os trabalhos e pesquisas acadêmicos de grande fôlego em uso do tempo no Brasil ficaram restritos a duas pesquisas realizadas em metrópoles brasileiras, uma realizada por Amaury Souza (1973) e a outra por Neuma Aguiar (2001). Segundo Neubert (2011, p. 48), outros trabalhos importantes de pesquisa vinculados ao grupo de pesquisa de Aguiar foram: “o estudo de Souza (2007) sobre o tema da masculinidade, a análise desenvolvida por Neto (2009) a respeito das atividades de deslocamento e a análise desenvolvida por Neubert (2006) sobre a dimensão da desigualdade ocupacional.” O desenvolvimento das pesquisas com diários nas capitais da Guanabara (realizada por Souza) e na Região Metropolitana de Belo Horizonte (por Aguiar), foram pioneiras nesse tipo de estudo no Brasil. Neuma Aguiar (1998) também desenvolveu a pesquisa de usos do tempo no contexto rural nas plantações rurais, utilizando o método dos diários e os desafios da sua aplicação com analfabetos.
279
No que tange à participação brasileira no evento da International Association for Time-Use Research (Iatur), desde a primeira edição no Brasil, em 2000, pode-se notar que foi após a criação do CGUT, em 2008, que nos anos de 2010-2011 houve aumento da participação brasileira no evento, que não ficou mais restrita em sua maioria aos pesquisadores da UFMG e ao grupo de pesquisa coordenado pela professora Neuma Aguiar. Passou a ocorrer a inclusão da participação de alguns pesquisadores de outras instituições, principalmente da SPM e do IBGE. Porém, de acordo com as atas das reuniões do CGUT, sistematizadas em Cypriano (2013), o papel da professora Neuma Aguiar em articular a relação do Comitê com a Instituição internacional foi crucial para a realização do evento em 2013 no Brasil novamente. Somada à contribuição da Professora Neuma Aguiar à temática de gênero e usos do tempo, na configuração desse campo do conhecimento há também a importância de acadêmicas que contribuíram direta ou indiretamente na construção da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Segundo Marina Brito (2015): Várias feministas acadêmicas e militantes ocuparam ou ocupam cargos comissionados na SPM. Algumas delas vieram a ocupar posições nesse staff por seu reconhecido papel na atuação em organizações da sociedade civil, outras por via dos partidos políticos ou redes formadas entre as feministas que, ao serem chamadas para a Secretaria, acabaram levando consigo colegas que conheceram durante seus trabalhos realizados na esfera da sociedade civil. A presença de mulheres com este perfil, atuando não apenas na SPM, mas também em outros Ministérios e agências estatais, criou alguns importantes canais de diálogo entre os movimentos e o Estado. Algumas das ativistas que assumiram cargos durante os anos 2000 continuaram a militar em movimentos feministas e de mulheres, mesmo que de forma muito menos intensa e recorrente quanto antes. (BRITO, 2015, p. 183).
Destacando-se a importância de Lourdes Bandeira, Hildete Pereira e Tatau Godinho e, posteriormente, da própria ministra Eleonora Menicucci. Todas estsas doutoras revelam a diversidade de reportórios na atuação feminista, visto o entrelaçamento de suas trajetórias como militantes, acadêmicas e também como femocratas. Sobressai-se, assim, dois fatores relevantes na trajetória da Secretaria de Políticas para as Mulheres: (i) as duas ministras que mais tempo ficaram na Secretaria eram docentes em universidades públicas; e (ii) havia o incentivo à contratação, tanto nos cargos comissionados como nas consultorias temáticas, de profissionais com origem acadêmica.
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Há de se ressaltar ainda a estrutura organizativa da SPM, que, desde a sua criação, se configurava em três áreas/subsecretarias: a de Enfretamento à Violência contra as Mulheres; a de Autonomia Econômica; e a de Áreas Temáticas. Pela própria dinâmica institucional e organizacional, desde a sua fundação, cabe destacar que a temática da divisão sexual do trabalho e dos usos do tempo era contemplada por essa dinâmica institucional. Para além da dinâmica dentro da SPM, há também de se lembrar da importância de pesquisadoras(es) dos outros órgãos que configuraram o CGUT, e grande parte também tinha uma relação estreita com o feminismo acadêmico (ver Quadro 4). Quadro 4: Participantes do Comitê de Gênero e Usos do Tempo entre 2009-2013 Órgão
SPM
Participantes Ana Maria Mesquita Breno Cypriano Cláudia Pedrosa Cristina Queiroz Daniel Piza Eleonora Menicucci (Ministra) Fábia Oliveira Gabriela Parente Guaia Monteiro Hildete Pereira Lourdes Bandeira (Secretária) Luana Pinheiro*** Luane Cruz Luciana Santos Marcela Rezende Mariana Mazzini Paloma Sanches Renata Laviola Renata Rossi Renata Sakai Rosa Maria Silva Rodrigo Giacomitti Silvana Zuccolato Tais Cerqueira Taís Machado Tatu Godinho (Secretária) Thiago Cantalice Valéria Moraes Vera Soares
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IBGE
Ipea
ONU Mulheres (Unifem) OIT
Ana Lucia Sabóia Bárbara Cobo Betina Fresneda Cintia Agostinho Cristiane Soares Danielle Macedo Fatmato Hany Jacqueline Manhães Lara Gama Cavalcanti Márcia Quintslr Ricardo Silva Roberto Neves Sant’Anna Rosane Oliveira Luana Pinheiro Marcelo Galiza Maria Abreu Natália Fontoura Paula Costa Paula Rincon Ana Carolina Querino*** Danielle Valverde Cleiton Lima Juana Lucini Shirley Villela Ana Carolina Querino Márcia Vasconcelos
Fonte: Elaboração própria a partir de Cypriano, 2013. *** as servidoras mudaram de órgão durante o período analisado.
Por fim, cabe destacar também a atuação do IBGE na contribuição para a disseminação da temática no Brasil, tanto para as pesquisas de uso do tempo, quanto também para a sua importante atuação dentro do CGUT. De acordo com Cavalcanti, Paulo e Hany (2009): A identificação da necessidade de se investigar o uso do tempo não é nova no instituto. Desde a década de 90, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) já vem investigando se as pessoas realizam afazeres domésticos e quantas horas por semana dedicam a esta atividade, além do tempo gasto no deslocamento casa-trabalho. Em 2001, o IBGE também realizou um pequeno teste de pesquisa de uso do tempo em alguns bairros do Rio de Janeiro, através do Curso de Desenvolvimento de Habilidades em Pesquisa (CDHP), que proporciona treinamento em pesquisa aos funcionários do Instituto. Em 2007, o IBGE sediou o Seminário Internacional sobre Uso do Tempo, realizado em parceria com o Unifem e com o apoio da SPM. O seminário reuniu representantes de institutos de estatística de diferentes países, de organismos internacionais e de gestores públicos para estudar as melhores práticas na obtenção de estatísticas de uso do tempo. A partir desta
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experiência acumulada e da participação do IBGE no Comitê de Estudos de Gênero e Uso do Tempo, o Instituto identificou uma boa oportunidade para a realização de um teste, inserindo então um suplemento da Pesquisa do Uso do Tempo no teste da PNAD Contínua, cujo período de referência da coleta foi de outubro a dezembro de 2009, em cinco Unidades da Federação (UF). No Rio de Janeiro, o período de referência da coleta é de outubro de 2009 a setembro de 2010. A PNAD Contínua é a pesquisa que substituirá a atual PNAD e a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), a partir de 2011, e fará parte do novo Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares do IBGE. Concluiu-se que este ambiente de teste seria propício para a inserção da investigação sobre uso do tempo, já que um tema novo e complexo como este precisaria passar por uma avaliação metodológica antes de ser aplicado em definitivo no país inteiro.” (CAVALCANTI; PAULO; HANY, 2010, p. 2-3).
Além das contribuições da SPM e do IBGE, haveria de se destacar a importante contribuição das pesquisas e estudos produzidos pelo Ipea, como cita, por exemplo, Fontoura e Araújo (2016).
O que as mulheres das políticas para as mulheres pensam sobre as questões da divisão sexual do trabalho e os usos do tempo? Esta última seção do capítulo contempla a parte metodológica e a análise dos dados referentes às pesquisas de survey realizadas pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem/UFMG) na 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2011, e na 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2016. Uma das dimensões da pesquisa foi compreender a percepção, para esse segmento de mulheres, sobre as questões referentes à dinâmica da divisão sexual do trabalho e os usos do tempo no Brasil. Há de se destacar que uma primeira consideração sobre o tratamento dos dados é o perfil das delegadas entrevistadas pela pesquisa (tanto da sociedade civil como do Estado), que vai de encontro à dimensão que aqui é ressaltada neste capítulo: a relevância e centralidade da dimensão acadêmica do feminismo. A maioria das delegadas respondentes tem curso superior completo ou pós-graduação, sendo 63% em 2011, e 64,7% em 2016. Somado ao dado de escolaridade, outro indício dessa questão é discutido no capítulo sobre redes de Marlise Matos e Sonia E. Alvarez, pois há também a evidência de que uma parte das trajetórias políticas dessas delegadas, dentro do feminismo, começou na militância em movimentos estudantis e universitários.
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Passando a discutir os dados de percepção das delegadas em ambas as conferências, os principais eixos de análise aqui tratados são: (i) as principais desigualdades existentes entre homens e mulheres; (ii) o problema das mulheres no Brasil; (iii) o que deve mudar para melhorar a vida das mulheres; (iv) questões de concordância e discordância; (v) os motivos que levam as mulheres a ter uma posição inferior aos homens no mercado de trabalho; e (vi) a visibilidade dos programas ou políticas realizados pela SPM. Destaca-se que na pesquisa realizada há a replicação de algumas perguntas da Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”.8 Na apresentação dos dados abordar-se-á, quando possível, essa comparação. Com relação à questão “Em sua opinião, atualmente qual é o principal problema enfrentado pelas mulheres no Brasil? E o segundo? E o terceiro?”, essa pergunta espontânea foi aplicada apenas na Conferência de 2016, elencando o primeiro, o segundo e o terceiro problemas das mulheres no Brasil e, posteriormente, codificados em categorias (Gráfico 2). Portanto, para essa pergunta não há comparação com a pesquisa realizada na Conferência de 2011. Sobre esse aspecto, percebe-se que quando as delegadas foram perguntadas sobre qual é o primeiro problema, há a relevância do problema relacionado à violência (39,7%). Porém, ao somar os três problemas elencados por elas, percebe-se que o problema relativo a trabalho e renda tem grande relevância (62%), juntamente ao problema da violência (60,8%).
8 A pesquisa foi realizada em duas etapas, nos anos 2001 e 2010 (em parceria com o Sesc). Cabe salientar que a pesquisa traz questões de atitude e percepções sobre temas, como: percepção de ser mulher, machismo e feminismo; divisão sexual do trabalho e tempo livre; corpo, mídia e sexualidade; saúde reprodutiva e aborto; violência doméstica; democracia, mulher e política (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2010).
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Gráfico 2: Problema das mulheres no Brasil (principal, segundo e terceiro)
Fonte: Elaboração própria.
Passando a analisar a questão: “Pensando no mundo de hoje, quais são para você as principais desigualdades que existem entre as mulheres e os homens? O que mais é desigual? E em segundo lugar? E em terceiro lugar?”, essa pergunta espontânea está presente nos questionários aplicados nas duas ondas da pesquisa (Gráfico 3). A resposta das delegadas, tanto em primeiro e em segundo lugar, dá dimensão do trabalho/profissional/salário/renda como a principal desigualdade entre os sexos. Em 2011, 96,2% das delegadas relataram essa dimensão, e, em 2016, 98,2% das delegadas. Cabe destacar que a desigualdade na política e no poder aparece como uma dimensão relevante em 2016, talvez por conta do processo de impeachment que a presidenta Dilma Rousseff sofria.
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Gráfico 3: Desigualdades que existem entre homem e mulher? Em primeiro lugar? E em segundo?
Fonte: Elaboração própria.
Diante dessas duas primeiras perguntas, constata-se que é evidente que a desigualdade de gênero para as participantes ocorre principalmente no ambiente profissional, na esfera do trabalho, porém quando se busca conceitualizar a noção de “problema para as mulheres”, este inclui também a ideia de violência e de discriminações. Essa comparação traduz algumas questões relativas aos problemas cognitivos que surgem em pesquisas de survey e percepção. Tal questão fica mais evidente com a pergunta “Se você pudesse mudar qualquer coisa para que a vida de todas as mulheres melhorasse, qual seria a primeira coisa que você faria? E a segunda? E a terceira?” (Gráfico 4). Muitas delegadas responderam que deveria ser alguma mudança relativa à equiparação profissional e de renda como um dos principais aspectos, mas questões como educação e creche, combate às discriminações e autonomia, bem como políticas públicas/participação política influem diretamente no combate à desigualdade na divisão sexual do trabalho e nos usos do tempo. Nessa questão o efeito da conjuntura política vivida pela presidenta Dilma Rousseff também nos pareceu evidente: 62,9 % viram a equiparação profissional e de renda como uma questão mais relevante em 2011 e 65,2% apontaram a participação política e no poder e as políticas públicas como os principais
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aspectos a se mudar, para melhorar a vida das mulheres. Há de se destacar que tal resultado também pode ser efeito de como o tema das mulheres na política foi sendo gradativamente colocado em discussão pública ao longo desses anos, muito em função, evidentemente, dos movimentos, da própria SPM, de como o governo incorporou a pauta, das campanhas de conscientização estimuladas pela Justiça Eleitoral, entre outros fatores. Gráfico 4: O que deve mudar para melhorar a vida das mulheres? Em primeiro lugar? Em segundo? Em terceiro?
Fonte: Elaboração própria.
Passando para uma lista de questões estimuladas realizadas nas duas ondas da pesquisa que estão relacionadas a temas ligados à família e a outras relações sociais no Brasil, perguntou-se às delegadas se elas concordam totalmente, concordam em parte, discordam em parte, ou discordam totalmente com as afirmativas colocadas – a opção não concorda, nem discorda não é estimulada, só foi anotada, caso a delegada falasse espontaneamente. Foram selecionadas quatro afirmativas: (i) “Uma pessoa sozinha pode criar os filhos tão bem quanto um casal que vive junto”; (ii) “Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e
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a mulher fique em casa”; (iii) “Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho doméstico”; e (iv) “É principalmente o homem quem deve sustentar a família”. A análise de tais afirmativas procura exemplificar como as colocações teóricas de autoras como Okin (2008 [1998]), Phillips (1991), Tronto (1996), Pateman (1993 [1988]) e Walby (1990), sobre as dinâmicas do público e privado, do cuidado e do patriarcado, são questões ainda em disputa dentro da própria luta das mulheres e feministas, neste caso, através da visão das delegadas. Como pode ser observado no Gráfico 5, a maioria das delegadas respondeu que concordam totalmente, em ambas as ondas da pesquisa, sobre as afirmativas (i) e (iii). Já sobre as afirmativas (ii) e (iv), há uma maioria que discorda totalmente sobre elas, mas há de se destacar que na discussão sobre “Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa”, há respostas que concordam com a alternativa, talvez por creditarem uma importância no papel da maternidade e do cuidado, ou talvez por acreditarem na ideia de “papéis sexuais” diferenciados, recolocando uma abordagem mais tradicional sobre o papel das mulheres na esfera privada. Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo, em ambas as ondas, tanto em 2001, quanto em 2010, foram realizadas três dessas questões (as alternativas eram diferentes, se concorda, se discorda e nem concorda, nem discorda): sobre a segunda afirmativa, “Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa”, 85% das respondentes concordavam, em 2001, e 75% em 2010; sobre a terceira afirmativa, “Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho doméstico”, 87% das respondentes concordavam, em 2001, e 93%, em 2010; e sobre a quarta afirmativa, “É principalmente o homem quem deve sustentar a família”, 55% das respondentes concordavam, em 2001, e 51%, em 2010. Evidencia-se que as amostras, por contemplarem públicos diferentes, apresentaram resultados discrepantes. Nas afirmativas (ii) e (iv) a tendência da amostra brasileira é concordar com as alternativas, apresentando uma visão talvez mais tradicional que a das delegadas das conferências, ponto que é discutido em maior detalhe no capítulo 4 deste volume.
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Gráfico 5: Se concorda, concorda em parte, não concorda nem discorda, discorda em parte, discorda totalmente com as afirmações
Fonte: Elaboração própria.
As últimas discussões sobre os dados referem-se à construção das políticas públicas promovidas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Diante da pergunta estimulada realizada em 2016, “Desta lista de programas e ações da SPM, qual você considera o mais importante?”, as respondentes indicaram como mais importante: o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher (26,1%) e o Programa Mulher, Viver sem Violência (23,4%). Os programas referentes à temática da divisão sexual do trabalho e usos do tempo ficaram em quinto e sétimo lugar: Fortalecimento da política de autonomia econômica das mulheres (11,4%) e Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça (2,7%).
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Gráfico 6: Indica qual Programa ou ação da SPM, dentro da lista dos programas avaliados, a respondente considera o primeiro mais importante
Fonte: Elaboração própria.
Abordando mais especificamente a dimensão da divisão sexual do trabalho, a pergunta estimulada “Existem vários motivos que levam as mulheres a terem uma posição inferior aos homens no mercado de trabalho. A Secretaria de Política para as Mulheres tem algumas iniciativas para tentar superar isso. Qual dessas inciativas você acha mais importante de serem realizadas pela Secretaria? E em segundo lugar? E em terceiro lugar?”, realizada na onda da pesquisa de 2016, apresenta especificamente algumas questões mais concretas referentes às melhorias em termos de políticas públicas que visam superar as desigualdades de gênero, que foram elencadas e centrais nas outras perguntas. Como pode ser observado no Gráfico 7, os principais motivos apontados pelas delegadas foram: em primeiro lugar, com 79,1%, apoiar projetos que visam desnaturalizar a divisão sexual do trabalho que estrutura as desigualdades na vida das mulheres; em segundo lugar, com 75,7%, articular com outros Ministérios e com os outros poderes de forma a garantir mais direitos trabalhistas para as mulheres; e, em terceiro lugar, com 64,4%, promover políticas públicas com foco na mudança e alteração do cotidiano e no uso do tempo das mulheres.
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Gráfico 7: Principais iniciativas da SPM para superar as desigualdades no mercado de trabalho (primeiro, segundo e terceiro lugar)
Fonte: Elaboração própria.
Cabe ressaltar que, além das alternativas colocadas na questão anterior, haveria alternativas para a utilização das políticas públicas como ferramentas centrais e formas de superação da divisão sexual desigual do trabalho e a desigualdade nos usos do tempo entre os sexos. De acordo com Bandeira e Petrulan (2016, p. 58): Outras importantes políticas, como a ampliação dos serviços voltados a idosas(os), instalação de restaurantes populares, ampliação da licença paternidade e/ou criação da licença parental são exemplos entre diversas possibilidades que poderão pautar a atuação do Estado brasileiro nos próximos anos para promover uma maior igualdade de gênero no que tange aos usos do tempo.
A partir dessas análises apresentadas, o que se pode chamar atenção neste caso é que a discussão sobre o público e o privado, o cuidado, a divisão sexual do trabalho e os usos do tempo quando verificados empiricamente é crucial para o entendimento da política e das formas das mulheres de atuarem politicamente enquanto atrizes políticas, tornando-se fatores imprescindíveis para a elaboração e formulação de políticas públicas.
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Considerações finais A importância de se discutir temas tão cruciais na construção das políticas para as mulheres, como é a questão da divisão sexual do trabalho e dos usos do tempo, serve para resgatar o esmero desprendido no Brasil para se construir um campo de pesquisas acadêmico e, após a entrada no Estado e em outros espaços públicos, tentar colocá-los na configuração das próprias políticas públicas, ainda que de forma muito tímida. Este capítulo serve também como registro histórico, por tratar da importância da criação de um Comitê específico na discussão sobre os usos do tempo no Brasil e ao mesmo tempo retraçar algumas de suas ações e repercussões no desenho das políticas públicas. Esses registros também buscaram resgatar a interposição entre a construção do campo de pesquisa e estudos sobre as mulheres, feminismo e gênero no Brasil, e as trajetórias feministas, que muitas vezes estão marcadas pelo entrelaçamento de múltiplas posições e repertórios nos cenários políticos e públicos: das militantes, acadêmicas e femocratas. Para aquelas que participaram do processo de discussão e construção de propostas para as políticas para as mulheres e foram analisadas pelos dados das duas ondas da pesquisa sobre as CNPMs, percebeu-se uma clareza quanto à relevância da temática da divisão sexual do trabalho e usos do tempo, porém não há clareza quanto à dimensão política/prática desta. Faltaria conhecimento sobre as políticas que foram formuladas no cenário brasileiro e/ou necessitaria de novas políticas para se resolver os problemas, como problematizado por Bandeira e Petrulan (2016). A SPM e as Conferências foram momentos importantes para se articular, na prática, a transversalidade de gênero, dentro de um Estado ainda patriarcal. Caminhava-se, talvez, para um tímido começo em esforços de despatriarcalização com tais iniciativas, porém, o cenário atual indica o caminho inverso, com o desmonte dos programas e políticas aqui citados. Caminhamos agora para uma repatriarcalização?
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Mulheres na política, as conferências e o ciclo democrático Flávia Biroli1 As análises da participação política das mulheres no Brasil contemporâneo e, especificamente, das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres, que são o tema deste livro, nos situam em um contexto específico, o do ciclo democrático que se abriu com o fim da ditadura de 1964 e, entendo, encerrou-se com a deposição de Dilma Rousseff em 2016. Independentemente da compreensão que se tenha do que houve em 2016, é inegável que profundas alterações nos afastaram do ciclo anterior. Além do desrespeito à competição eleitoral e a seus resultados, a ampliação do papel do Judiciário na regulação não apenas da competição, mas do espectro da pluralidade política, e a criminalização e desconstrução do principal partido de esquerda nesse ciclo, o Partido dos Trabalhadores (PT) – que, pelas evidências que temos até o momento, parece estar sendo acompanhada pelo enfraquecimento do partido de centro que teve também papel central na política brasileira desde os anos 1990, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), e de uma crise ampla do sistema partidário –, modificaram a face da política nacional. O processo político que tem sido caracterizado por uma série de pesquisadoras e pesquisadores como um golpe parlamentar (JINKINGS; DORIA; CLETO, 2016; BUENO et al., 2017) se estendeu para além da deposição de Rousseff. Destaco a adoção acelerada de uma política radical de austeridade e desregulação das garantias sociais, tornando o Brasil um caso para a compreensão dos novos padrões na adoção da agenda neoliberal em países periféricos e seus efeitos para a democracia. A Emenda Constitucional 95, aprovada em novembro de 2016 e que estabeleceria, por vinte anos, um teto para os gastos públicos que, na prática, inviabiliza o pacto social expresso na Constituição de 1988, pode ser tomada como expressão máxima dessa política, juntamente com a legislação trabalhista aprovada em seguida, em 2017. Essa legislação levaria à inclusão do Brasil, em maio de 2018, na lista dos 24 casos que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera como as principais violações das convenções de trabalho no mundo. 1 Universidade de Brasília – Instituto de Ciência Política.
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Em suas diferentes frentes, esse processo político incide sobre variáveis que foram consideradas fundamentais para a redução das desigualdades em todo o ciclo democrático, que se acentuou nos anos 2000 (ARRETCHE, 2018). A constitucionalização de direitos fundamentais nas áreas de saúde, educação, seguridade e moradia produziu o contexto legal de implementação de políticas públicas que, por sua vez, geraram expectativas sociais com papel significativo em um contexto eleitoral plural. A existência de partidos de esquerda competitivos, agora colocada em xeque com a criminalização e desconstrução do PT, também foi vista como um fator na incorporação da agenda distributiva por partidos em um amplo espectro ideológico. Pode-se, ainda, compreender que, em conjunto, esses fatores estabeleceram limites à incorporação da agenda neoliberal do Consenso de Washington, durante os anos 1990, e foram importantes para a construção do ambiente político que levaria o PT ao poder nas eleições de 2002, com legitimidade para implementar novas políticas e aprofundar políticas de caráter distributivo já existentes. Encerrando um ciclo, o ano de 2016 nos legaria um sistema político menos plural, um contexto ético-político alargado “à direita”, ampliando a expressão de visões antidemocráticas e anti-igualitárias, e limites rígidos para a manutenção de políticas de caráter distributivo, transformados em norma constitucional válida por vinte anos pela Emenda Constitucional 95. A agenda de gênero passaria a estar em disputa mais abertamente desde o início dos anos 2000, de um lado porque nesse período ganharia expressão a reação, capitaneada por setores da Igreja Católica, à legitimidade da agenda de gênero e da diversidade sexual nas conferências das Nações Unidas dos anos 1990; de outro porque a “politização reativa” (VAGGIONE, 2016), no ambiente nacional, assumiria crescentemente um caráter de reação aos governos do PT. Isso se deu justamente pelo fato de os governos petistas, em um contexto de ampliação da participação dos movimentos sociais que é discutido neste livro, terem incorporado mais diretamente essas pautas da perspectiva dos movimentos feministas e LGBT que atuaram no âmbito estatal no período e que foram, historicamente, bases sociais do partido. Mas é no processo aberto com a deposição de Dilma Rousseff que a reação às agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual se tornaria mais aguda dentro do Congresso e em alguns setores da sociedade brasileira. Mobilizada por grupos religiosos reacionários, numa aliança entre católicos e evangélicos que define o padrão nacional da campanha contra a chamada “ideologia de gênero”, coloca em xeque ao mesmo tempo as agendas mencionadas, a produção de conhecimento normativamente referenciada por elas e a legitimidade dos movimentos
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feministas e LGBT como atores políticos (BIROLI, 2018a). Nesse processo, estereótipos de gênero que pareciam marginais no debate público brasileiro voltaram às páginas de jornais e revistas de circulação nacional e circularam em outros espaços de informação e conexão (BIROLI, 2016). O ano em que Rousseff foi deposta corresponde também a uma fronteira nas relações entre os movimentos feministas e o Estado. Em diferentes graus, esses movimentos atuaram no ambiente estatal, participando do processo de construção do Estado e da consolidação do pacto social distributivo, em todo o ciclo democrático. O estreitamento das relações entre feminismos e Estado pode ser tomado, inclusive, como um dos aspectos que caracterizam o que entendo ter sido um ciclo dentro do ciclo democrático, isto é, o período iniciado com a chegada do PT ao Governo Federal, em 2003, em que se fortaleceu o caráter distributivo e participativo do Estado. Nesse período, a maior permeabilidade do Estado aos movimentos sociais foi expressa de diversas formas, sendo uma delas a ativação das Conferências de Políticas Públicas. No caso dos movimentos feministas e de mulheres, as Conferências de Políticas para Mulheres foram um espaço privilegiado desse trânsito dos movimentos no ambiente estatal. Compuseram o complexo institucional-participativo de promoção da agenda da igualdade de gênero e racial neste ciclo dentro do ciclo, operando em conjunto com a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM) e com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), ambas criadas no ano de 2003 e que tiveram status de ministério até o início de 2016, quando a reforma ministerial realizada ainda no governo de Rousseff, já sob forte pressão, as fundiu à Secretaria de Direitos Humanos. Embora os obstáculos à participação política das mulheres tenham se mantido durante todo o período, posicionando-nos entre os países com os piores índices de representação feminina no contexto das Américas e também mundialmente, o ciclo democrático permitiu a construção de novos direitos, em conquistas que resultaram da atuação política sistemática das mulheres nos movimentos, no âmbito estatal e no ambiente transnacional. Novamente, os anos 2000 veriam essa participação ampliar-se na medida em que aumentaria a oportunidade de participação das feministas no ambiente estatal. As reações de caráter conservador, de maneira contraditória, reconhecem a importância dos movimentos como atores políticos enquanto tentam deslegitimar sua agenda e sua atuação (BIROLI, 2018b, cap. 5).
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O ciclo democrático, contexto das disputas Permito-me, brevemente, recuar ao início do ciclo democrático mais amplo, antes de voltar a esse ciclo dentro do ciclo e à análise das Conferências neste livro. Ainda nos anos 1970, delineava-se o contexto concreto de desenvolvimento de identidades, normas e instituições que balizariam o processo político nas décadas seguintes. São muitos os eventos expressivos no final dessa década, entre os quais destaco as greves dos metalúrgicos nos anos de 1978 e 1979, a nova lei dos partidos políticos, em 1978, que marca o fim do bipartidarismo, e, no mesmo ano, o lançamento do Movimento Negro Unificado (MNU); em 1979, a lei da anistia mostraria a capacidade dos atores do regime de balizar o processo de transição, enquanto o lançamento do Partido dos Trabalhadores (PT) expressaria a potência do ambiente ético-político que tomou forma na oposição ao regime ditatorial, nos anos anteriores. Novas linguagens e identidades coletivas expressavam, por outro lado, as ambivalências internas ao campo democrático (SADER, 1988). A participação das mulheres na oposição à ditadura e a afirmação dos movimentos feministas como sujeitos políticos no novo regime se deram de modo que articularam visões distintas quanto à autonomia desejável em relação a partidos e ao Estado, ao diálogo tenso com o ideário marxista e com a influência de setores progressistas da Igreja Católica (ALVAREZ, 1990). A construção institucional dos anos 1980, que tem como marco principal a Constituição de 1988, expressaria, mais uma vez, a capacidade de atores influentes do regime de exercer controle sobre a nova institucionalidade, restringindo-a. Mas também revelaria os efeitos da inclusão de novas pautas e atores, na estrutura de oportunidades que se abriu. A igualdade constitucional entre homens e mulheres e a promoção de direitos específicos para as últimas, considerando o contexto de desigualdades existentes, é um de seus desdobramentos, algo a que voltarei a seguir. A constitucionalização de direitos universais em setores básicos, como saúde, educação, moradia e seguridade, estabeleceu o arcabouço de direitos para políticas de caráter distributivo e para sua centralidade política em todo o ciclo, como dito anteriormente. É certo que a incorporação da agenda neoliberal a partir do final dos anos 1980 limitou a efetividade desse pacto. Por outro lado, foi justamente esse pacto que ampliou as possibilidades de resistência e modulou essa incorporação, que foi seletiva e coexistiu com ganhos de legitimidade na agenda de direitos humanos e na agenda de direitos das mulheres, ativados em um ambiente transnacional de maior centralidade dessas agendas, com as conferências das Nações Unidas no período (as Conferências de Viena, em 1993; Cairo, em 1994; e de Beijing, em 1995, são alguns exemplos).
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Ao mesmo tempo, as novas formas de participação previstas na carta de 1988 estabeleceram o arcabouço institucional para uma relação renovada entre Estado e movimentos sociais, que seria ativada sobretudo a partir do início dos anos 2000. As Conferências de Políticas Públicas são um exemplo de como isso se daria.
Feminismos políticos, protagonistas no ciclo democrático “O feminismo no Brasil, antes de ser estatal, foi político, no sentido de ser ideologicamente engajado.” Essa afirmação foi feita por Céli Pinto, em seu capítulo no primeiro volume deste livro. Embora o trecho da autora, que aqui destaco, se referisse à atuação dos movimentos na oposição à ditadura, entendo que pode ser ampliado para se pensar nas características do feminismo como ator político em todo o ciclo democrático. Em outras palavras, compreendo que os movimentos feministas foram atores na construção do Estado democrático em todo esse processo. Ainda que de uma posição marginal, incidiram sobre a “ossatura” patriarcal do Estado, encontrando resistências, mas produzindo efeitos. A construção de organismos de políticas focados nas mulheres já nos anos 1980, como os conselhos municipais, estaduais e nacional de direitos e da condição feminina, é uma de suas dimensões. Criado em 1984 a partir da pressão continuada de lideranças que tinham, ao mesmo tempo, redes de contato entre elites partidárias e do Judiciário e atuação nos e junto aos movimentos feministas do período, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) seria fundamental, como foi descrito nos textos de Céli Pinto e Schuma Schumaer no primeiro volume deste livro, para que a larga sobrerrepresentação dos homens na Constituinte não significasse a exclusão ou mesmo marginalidade da agenda de direitos das mulheres. Em outro local (BIROLI, 2018b), discuti mais detalhadamente esse processo, considerando um ponto que me parece fundamental: a Carta das Mulheres aos Constituintes, que foi entregue em março de 1987 ao deputado Ulisses Guimarães, em conjunto com as emendas apresentadas pela bancada feminina (30) e com as emendas populares que versavam sobre os direitos das mulheres (4 entre as 122 apresentadas), mobilizaram noções de igualdade que mostram o engajamento em uma agenda distributiva e a preocupação interseccional tanto quanto o foco nas desvantagens específicas das mulheres. Trabalharam pela exclusão de qualquer forma de discriminação; pela igualdade entre homens e mulheres, pela constitucionalização de direitos universais em temas fundamentais, como saúde e educação; assim como por direitos específicos nas áreas de trabalho, seguridade, saúde e
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reprodução, expondo a posição das mulheres nas relações de poder e mobilizando as clivagens de classe, raça e sexualidade. A defesa do direito universal à saúde, na forma de um Sistema Unificado de Saúde (SUS), é um dos pontos relevantes para se compreender as diferentes concepções e dimensões da igualdade que foram mobilizadas. A Carta das Mulheres defendia a criação do SUS; a gestão e fiscalização desse sistema pela população organizada em Conselhos, por meio dos quais participaria de decisões sobre programas e financiamento; a garantia de Assistência Integral à Saúde da Mulher em todas as fases de sua vida, “independentemente de sua condição biológica de procriadora”, através de programas governamentais formulados, implementados e controlados com a participação das mulheres; vedava ao Estado e a entidades estrangeiras e nacionais, públicas ou privadas, a interferência no exercício da sexualidade e ações para o controle da natalidade. Por fim, o direito ao aborto, dados os obstáculos encontrados, ficou submerso na defesa do direito das mulheres a conhecer seu corpo e a decidir o que nele se passa e na pauta da “livre opção pela maternidade”. Não há um vácuo entre essa luta e os anos 2000, mas mudanças nos padrões de interação com o Estado. Eles se explicam pela menor permeabilidade do Estado brasileiro à atuação feminista a partir do final dos anos 1990, representada pela redução do recursos e enfraquecimento institucional do CNDM, por um lado. Por outro, no entanto, abrem-se novos processos de ação a partir da centralidade adquirida pela agenda de gênero e antirracista no ambiente transnacional. A “confluência perversa” (DAGNINO, 1994) entre a competência e potência dos movimentos e a agenda neoliberal produziu uma centralidade despolitizada. Adaptada ao “receituário neoliberal de muitos governos latino-americanos e instituições intergovernamentais no pós-Consenso de Washington” (ALVAREZ, 2014, p. 30), a agenda mais radical dos feminismos latino-americanos pôde ser transfigurada em pautas como a do “empoderamento das mulheres” (FALQUET, 2011, p. 121). A mobilização de agendas fortalecidas nesse ambiente não foi, no entanto, limitada aos pressupostos neoliberais. Isto é, organizações e lideranças ultrapassaram o espaço reservado a elas, apresentando também pautas alternativas e constituindo-se, como atores políticos, em tensão com o enquadramento estabelecido. Por isso me parece fundamental registrar, retomando discussão feita anteriormente (BIROLI, 2018b), que foi também nos anos 1990 e no processo de mobilização na esfera internacional que foi criada uma das principais coalizões feministas de abrangência nacional, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), fundada em 1994, segundo documentos da própria organização, “para coordenar as ações dos movimentos de mulheres brasileiras com vistas à sua consolidação como sujeito político” na Conferência de Beijing. A história da AMB é, de certo
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modo, a história desse cenário complexo de que venho tratando. Tem atuado nas esferas internacional e nacional, participando formalmente de processos políticos, com presença em Conselhos e Conferências. Ao mesmo tempo, atua na potencialização e organização dos movimentos, de marchas e protestos, e apresenta uma agenda radical de luta antirracista e anticapitalista conectada à agenda de luta das mulheres e da população LGBT. “Democratização radical do Estado no Brasil”, “controle social da população em todos os níveis de governo”, “igualdade de direitos e boas condições de vida para as mulheres, garantindo solidariedade e promovendo justiça social, econômica e ambiental, contrapondo-se à perspectiva neoliberal nos processos de desenvolvimento da economia capitalista na região”, são pontos enunciados como objetivo permanente da organização.2 Em 2000, seria fundada a Marcha Mundial de Mulheres, originada do movimento “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência”. O destaque conjunto à pobreza e à violência é significativo aqui. Segundo os documentos disponíveis, a Marcha defende “a visão de que as mulheres são sujeitos ativos na luta pela transformação de suas vidas e que essa luta está vinculada à necessidade de superar o sistema capitalista patriarcal, racista, homofóbico e destruidor do meio ambiente”.3 É certo que um referencial programático radical não garante radicalidade na atuação efetiva, dados os constrangimentos que existem quando mulheres que são parte desses movimentos atuam no âmbito estatal e nas organizações internacionais, em que pesa também o acesso a financiamentos que contribuem para a viabilidade e longevidade das organizações. Pode, no entanto, modular ações e incidir sobre as esferas formais de participação, o que ajuda a explicar a radicalidade da agenda das conferências realizadas no período. Assim, os movimentos feministas brasileiros adentram os anos 2000 carregando as ambivalências da década anterior. Também se recoloca a questão da relação com o Estado e do grau de autonomia dos movimentos em um novo contexto de oportunidades, aberto com a chegada do PT ao Governo Federal. Com a redemocratização, a fronteira entre a atuação no âmbito estatal e o ativismo dos movimentos se tornaria mais porosa, devido aos novos dispositivos de participação (LAVALLE; SZWAKO, 2015), como dito anteriormente. Nos anos 2000, entretanto, é que se abriria um período de “permeabilidade inédita do Estado” (ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2014) aos movimentos, uma das características do que venho chamando de ciclo dentro do ciclo. 2 Página eletrônica da Articulação de Mulheres Brasileiras, disponível em: (acesso em: 1o ago. 2017). 3 Página eletrônica da Marcha Mundial de Mulheres, disponível em: (acesso em: 1o ago. 2017).
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Feminismos nas Conferências As Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres, analisadas neste livro, são, assim, ambiente e recurso fundamental de realização da relação entre os feminismos e o Estado no ciclo dentro do ciclo democrático, aberto com a chegada do PT ao Governo Federal, em 2003. Sua análise nos permite refletir sobre duas tendências registradas pelas intelectuais feministas que organizaram este livro e que coexistiram nesse início dos anos 2000. Uma delas é o “sidestreaming feminista” (ALVAREZ, 2014, p. 17), isto é, “o fluxo horizontal dos discursos e práticas de feminismos plurais para os mais diversos setores paralelos na sociedade civil”, com a “resultante multiplicação de campos feministas”. A outra corresponde aos esforços para despatriarcalização do Estado (MATOS; PARADIS, 2014), com efeitos e limites discutidos de maneira competente em vários capítulos deste livro, que ultrapassa a análise específica das Conferências e nos proporciona uma compreensão ampla desses esforços e das barreiras encontradas. A coexistência entre o sidestreaming e os esforços de despatriarcalização no âmbito estatal não pode ser tomada como uma correspondência direta. Daí a relevância de se colocar a questão: quem são as mulheres que participaram das Conferências de Políticas para Mulheres? Quem são elas relativamente à sociedade brasileira, mas também quem são elas se consideramos o campo político-partidário, de um lado, e os feminismos em sua caracterização múltipla atual, de outro? O livro mostra que se trata de um grupo peculiar de mulheres. Altamente escolarizadas e com renda média também elevada, compõem um grupo peculiar também partidária e ideologicamente. Trata-se, ainda, de um grupo bastante engajado na participação estatal. Sua atividade nas Conferências não se restringe às de políticas para mulheres – pelo contrário: mais de 40% das participantes estiveram engajadas também em conferências nas áreas de saúde, educação e assistência social, entre outras. O capítulo de Céli Pinto analisa um fato relevante, o de que a participação envolve grupos próximos ideologicamente ao governo constituído, o que se revela nos dados sobre filiação partidária e colabora para explicar a ampla identificação das participantes com as políticas do governo, expressa de maneira bastante semelhante em 2011 e 2016, embora as conferências desses anos tenham se dado em contextos tão distintos. Como nos lembra a autora, em 2011 o horizonte de atuação dos feminismos, junto ao Estado, era reforçado pela chegada de uma mulher à Presidência da República, pela primeira vez na história do país; em 2016, a conferência coincide com o afastamento de Rousseff.
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Embora se trate de um grupo fortemente engajado, assim, na participação estatal e na política partidária, ele não se destaca fortemente do conjunto mais amplo das mulheres no que diz respeito às barreiras para tomar parte na política eleitoral, candidatando-se. Tratando-se de mulheres e, sobretudo, das negras (que são cerca de metade das participantes das conferências analisadas e quase 70% quando se consideram apenas as participantes da sociedade civil, sem contabilizar aquelas que integram governos), atividade política intensa e engajamento partidário não se traduzem em candidaturas e em sucesso eleitoral. Ainda que sejam ativas em associações da sociedade civil, na participação estatal e, em sua maioria, filiadas a partidos políticos de esquerda, as barreiras para a participação político-eleitoral parecem incidir também sobre elas. A forte identificação com o feminismo também não as peculiariza nesse quesito. Como escreveu Danusa Marques em seu capítulo neste livro, “a principal forma de atuação política [dessas mulheres] é não eleitoral e articulada a movimentos e associações da sociedade civil, como os movimentos de mulheres e sindicatos”. Pode ser, alerta a autora, que a participação seja um elemento na construção de candidaturas posteriormente, o que teria que ser investigado. E, se as Conferências fazem parte da própria dinâmica de construção dos feminismos no período, parece ser um ponto-chave, de fato, compreender em que medida essa experiência coletiva se desdobrará em candidaturas de mulheres. O ponto é que, para as mulheres, filiação a partido e altos níveis de engajamento político não correspondem à integração competitiva para a concorrência eleitoral, como exposto por Marques. Por outro lado, os dados indicam que pode existir uma peculiaridade no perfil das participantes se consideramos a multiplicação dos campos feministas. Se, desde os anos 1970, os feminismos têm se mostrado diversos em suas posições quanto à aproximação de partidos e do Estado, vista como um risco para a autonomia dos movimentos, no contexto das Conferências há um elemento a mais a ser analisado. Há uma correlação significativa entre a participação, a filiação ao PT e a partidos aliados no governo, como o PCdoB, e a identificação com as políticas assumidas pelo governo no período. Ao mesmo tempo, predominam as mulheres adultas, entre 32 e 59 anos, e a representação das jovens é pequena, levando a considerações, como as que foram feitas neste livro por Laura Martello, sobre a impermeabilidade desses espaços de participação a jovens que são parte importante do processo de multiplicação dos campos feministas. Pode-se refletir, assim, sobre a distância entre as experiências de participação institucional e os padrões renovados de atuação política entre feministas jovens que compõem coletivos em todo o país. Os dados da pesquisa parecem indicar filtros de ao menos
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dois tipos na trajetória política das mulheres atuantes politicamente no período, envolvidas em grande medida com movimentos e organizações feministas: (1) filtro no trânsito das jovens feministas dos coletivos e movimentos para a participação estatal, uma vez que, entre as primeiras, pode haver menor engajamento na política partidária, algo que parece ter sido chave para o acesso às Conferências; (2) filtro no trânsito das feministas, presentes ou não em espaços de participação como as Conferências, para a competição eleitoral, uma vez que atuar politicamente e fazê-lo nos espaços estatais não significam algo que esteja, para as mulheres feministas (e para a maioria de mulheres negras presentes na conferência), relacionado a uma atuação eleitoral como candidatas. Vale, ainda, observar outros aspectos da composição etária das Conferências analisadas neste livro. Embora a ampla maioria das mulheres que delas participaram se declare feminista, é entre as delegadas jovens, de 18 a 25 anos, que, em 2016, 100% se declararam feministas. Laura Martello nos mostra que essa adesão se repete apenas entre as que têm mais de 67 anos. Declarar-se feminista carrega diferentes sentidos, no entanto. Nem todas são a favor da descriminalização do aborto, embora a maioria o seja. E, nesse ponto, a incidência da religião entre as participantes parece ser um elemento importante. Visões de mundo religiosas, é bom lembrar, não compõem apenas os segmentos conservadores e antifeministas. Constituem também os valores e atitudes de mulheres que se declaram feministas, situam-se ideologicamente no campo da esquerda e dedicaram seu tempo à construção da agenda de políticas para mulheres. Penso em duas frentes em que essa conexão pode ser explorada. De um lado, visões religiosas podem limitar e constranger atitudes afins aos feminismos; de outro, em sentido distinto, a religiosidade de mulheres empenhadas na construção de políticas de Estado com forte orientação feminista nos mostra que é possível uma expansão de valores feministas para além das fronteiras entre pessoas religiosas e não religiosas. Se a laicidade se mostra inegociável historicamente para a promoção de direitos para as mulheres e para as pessoas LGBT, os pertencimentos religiosos dos indivíduos não implicam, em si, uma recusa desses direitos e da atuação política em sua defesa. Outra frente na análise dos valores das participantes, em sua relação com os feminismos, foi explorada por Solange Simões em seu capítulo. A autora nos lembra de que os movimentos de mulheres brasileiras expõem alianças bem-sucedidas entre diferentes segmentos, com forte participação de mulheres sindicalizadas, negras e integrantes de movimentos negros. As posições reveladas pelas participantes no survey que compôs a pesquisa mostram, no entanto, que o feminismo é visto por elas de diferentes formas, com menor ou maior aproximação de visões liberais, igualitárias e/ou interseccionais. A forte presença da associação
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entre igualdade de gênero e trabalho e entre feminismo e igualdade de classe tem como contraponto, segundo a análise feita por Simões, a menor atenção ao racismo e à homofobia. Um dado relevante, também destacado pela autora, é o fato de que, entre as mulheres que disseram engajar-se em algum ativismo para além do próprio feminismo, 43% atuem em sindicatos e 35% em movimentos negros. É possível, no entanto, que, menos do que exclusões, esses dados revelem o forte compromisso histórico dos feminismos brasileiros com a construção de um país igualitário, remontando ao que discuti no início do texto – o compromisso com a universalização de direitos, com um pacto social distributivo, com a democratização do Estado – e, ainda, à filiação da maior parte das participantes a partidos de esquerda. Pode ser importante, é claro, refletir sobre como ampliar as conexões entre a agenda distributiva e as agendas antirracista e da diversidade sexual, de modo que amplie a abordagem antipatriarcal. Trata-se, ao que parece, de uma agenda em aberto, para utilizar a expressão de Johanna Monagreda em seu capítulo sobre gênero e raça nas Conferências. Como dizem Marlise Matos, Breno Cypriano e Marina Brito também neste livro, a complexidade das opressões interseccionais precisa ser levada em conta de maneira mais aprofundada na avaliação das políticas de Estado implementadas e de seus efeitos. E, de forma mais ampla, parece necessário fazer frente aos retrocessos em curso hoje, de modo que fortaleça o que definiram como o “nó estratégico das políticas de gênero e feministas”, isto é, sua característica potencialmente antipatriarcal, antirracista e antiLGBTfóbica. Nesse ponto, é possível tocar em uma temática transversal a todo o livro, a análise do caráter patriarcal do Estado e dos limites ao processo de despatriarcalização – ainda que em um contexto favorável, de ampliação da participação e de capilarização social do feminismo. A indagação que, entendo, coloca-se a partir de muitas das análises apresentadas é em que medida a atuação feminista no ciclo democrático e, em especial, no ciclo democrático que se abriu com a chegada do PT ao Governo Federal, produziu políticas capazes de incidir sobre o Estado, transformando-o. Aproximando-se de outra forma da mesma questão, os organismos de políticas para mulheres, as conferências e os Planos de Políticas Públicas produziram políticas de governo e agendas com baixa permanência em circunstâncias de mudança política ou políticas que transformaram, mesmo que em medida pequena, a “ossatura” do Estado? De maneira geral, os textos parecem apontar para a tendência de despatriarcalização do Estado, enquanto analisam criticamente seus limites. A “ossatura” patriarcal do Estado é atualizada nas resistências conjunturais às transformações, ativadas no período de maior abertura à agenda feminista e ampliadas após a
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deposição de Dilma Rousseff, em 2016. Schuma Schumaer, em seu capítulo, vê na conjuntura política – e, eu diria, no equilíbrio de forças que a caracterizou – limites para a intervenção feminista no campo estatal. Essa intervenção não teria permeado “de forma efetiva a estrutura do Estado para a implantação de políticas mais permanentes”. Assim, o reconhecimento do protagonismo do feminismo nas transformações políticas, que ela ressalta, parece apresentar-se sempre em conjunto com a necessidade de compreendermos as atualizações do patriarcado no Estado e no cotidiano da sociedade. Um ponto que me parece fundamental é que, nas diversas análises deste livro, o diagnóstico dos limites à despatriarcalização do Estado não suspende a importância do Estado – das instituições em sentido mais abstrato, das políticas públicas e da alocação de recursos para essas políticas – para a superação das desigualdades de gênero. Na construção de pesquisas que promovem evidências importantes, como as pesquisas de uso do tempo, discutidas no capítulo escrito por Breno Cypriano, no processo de construção dos organismos de políticas para mulheres, analisado em detalhes nos textos de Débora Gonzalez e Layla Carvalho, revelam-se ao mesmo tempo os padrões da relação entre feminismos e Estado no período e a relevância incontornável do Estado. É, sem dúvida, de grande relevância que no ciclo dentro do ciclo democrático o Estado tenha, como dizem Matos, Cypriano e Brito, assumido a “responsabilidade de implementar políticas públicas que tenham como foco as mulheres, a consolidação da cidadania e a igualdade de gênero”, uma vez que “a atuação do Estado, por meio da formulação e implementação de políticas, interfere na vida das mulheres, ao determinar, reproduzir ou alterar as relações de gênero, raça e etnia e o exercício da sexualidade”. As Conferências aqui analisadas ocorreram em um período em que essa responsabilidade foi assumida, ainda que os efeitos dessa responsabilização estatal tenham sido limitados pela conjuntura política e pela “ossatura” patriarcal do Estado. O que ocorre quando o ciclo democrático se encerra? Em que medida o processo atual de fechamento da democracia tem o gênero como um elemento central? Entendo que sim. A centralidade do gênero no golpe de 2016 vai, parece-me, muito além da campanha misógina contra Rousseff e da ampliação dos estereótipos de gênero e de visões anti-igualitárias no debate público. No momento em que este livro é finalizado, o Estado brasileiro se desresponsabiliza, em larga medida, de sua condição de promotor de relações de gênero mais igualitárias. Isso ocorre com o desmonte de organismos de políticas para mulheres, que têm estrutura e recursos reduzidos. A adoção de uma agenda radical de austeridade também
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incide negativamente sobre a construção da igualdade de gênero, uma vez que a redução da oferta de equipamentos públicos e de recursos no âmbito da saúde, da educação e da seguridade afeta especialmente as mulheres, que são as principais responsáveis pelo cuidado e são, assim, oneradas de maneira singular pela mercantilização e pela transferência de mais responsabilidades para as unidades familiares. Políticas de governo que se definem, ao mesmo tempo, por alianças com setores reacionários e pela ruptura do diálogo com os movimentos feministas também incidem no ambiente social, somando-se a resistências à despatriarcalização e ampliando-as, em vez de fortalecer o papel do Estado na redução das desigualdades e das opressões. Apesar disso, os movimentos feministas têm se fortalecido. Plurais e capilarizados, contam hoje com as experiências nos espaços de participação institucional, entre elas as das Conferências aqui analisadas. Renovaram-se nos encontros que um período de maior abertura à agenda de gênero e da diversidade sexual produziram, nas próprias Conferências, nas marchas das Vadias, das Margaridas, das Mulheres Negras, renovaram-se também nos debates públicos que se deram em diversos espaços e que forçaram a entrada da temática de gênero nos meios de comunicação. O encerramento de um ciclo democrático não significou, é certo, a anulação dos feminismos como atores políticos ou a restrição de seu potencial.
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esta obra foi composta em Minion Pro 11/14 pela Editora Zouk e impressa em papel Offset 129g/m2 pela gráfica Rotermund em agosto de 2018