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Portuguese Pages 248 [256] Year 2017
Direito das Mulheres
www.lumenjuris.com.br Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida Conselho Editorial
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Grazielly Alessandra Baggenstoss Coordenadora
Direito das Mulheres
Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2017
Copyright © 2017 by Grazielly Alessandra Baggenstoss Categoria: Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Diagramação: Renata Chagas Revisão: Amanda Muniz Oliveira, Fernanda Donadel da Silva, Juliana de Alano Scheffer e Juliana Alice Fernandes Gonçalves A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE ________________________________________
A opressão é um véu, transparente e adocicado num discurso de mel. Lola Salles, in Medo
Sumário Prólogo – A Resistência das Mulheres Atuantes no Meio Jurídico............. 1 Grazielly Alessandra Baggenstoss Direitos Fundamentais das Mulheres Os Direitos Humanos na Perspectiva de Gênero: o Mínimo Existencial para a Garantia da Dignidade das Mulheres............................ 13 Grazielly Alessandra Baggenstoss Da Cidade à Cidadania: a Ocupação dos Espaços Públicos pelas Mulheres................................................................................ 41 Aline Amábile Zimmermann Fernanda Donadel da Silva Isis Regina de Paula Violências Contra as Mulheres Violência Contra as Mulheres: a Submissão do Gênero, do Corpo e de Alma...................................................................................... 73 Marília Cassol Zanatta Valéria Magalhães Schneider As Mulheres no Direito das Famílias O Papel da Mulher no Direito das Famílias Brasileiro: da Fraqueza do Entender à Igualdade perante a Lei?.................................101 Amanda Muniz Oliveira
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Perspectivas da Doutrina Civil Contemporânea Brasileira Acerca do Status Jurídico das Mulheres no Casamento............................121 Grazielly Alessandra Baggenstoss Gabriela Neckel Ramos Direito do Trabalho das Mulheres Trabalhadoras Catarinenses: Proteção Jurídica e Histórico de Trabalho.............................................................................. 139 Juliana de Alano Scheffer A Regulamentação do Trabalho Doméstico no Brasil............................. 159 Luana Renostro Heinen Marina Barcelos de Oliveira Assédio Sexual: Conceitos, Legislação e Análise Jurisprudencial em Santa Catarina.............................................................175 Jessyka Zanella Costa Marina Barcelos de Oliveira Assédio Moral: Conceitos, Legislação e Análise Jurisprudencial em Santa Catarina............................................................ 195 Juliana de Alano Scheffer Jessyka Zanella Costa Direito das Mulheres Como Resistência Nossa Resistência Não É o Silêncio: Música, Feminismo e Luta por Direitos a partir do Riot Grrrl,........................................................................................................................................ 223 Amanda Muniz Oliveira Epílogo – A Primavera Feminista............................................................... 243
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Prólogo A Resistência das Mulheres Atuantes no Meio Jurídico Grazielly Alessandra Baggenstoss
As formas com que as pessoas interagem entre si pautam-se em valores que caracterizam um determinado sistema ou programa de pensamento, o qual busca responder a questão do que se deve ou não fazer. A partir dos discursos manifestados por uma pessoa, seja eles de qualquer forma de expressão (verbal, corporal), é possível detectar qual espécie de programa de pensamento adota como mais adequado. A título de exemplo, citam-se (a) o sistema de pensamento kantiano, ou intencionalista, o qual sustenta a importância das intenções dos atos do indivíduo e (b) o sistema de pensamento maquiavélico, ou consequencialista, que prima pela atenção ao resultado de determinadas ações. O estudo de tais formas de interação pode ser denominado de ética, em que se perquire sobre os diversos modos de se refletir acerca da melhor forma de viver e da melhor forma de conviver1. Ao perpassar os registros sobre a nossa história, encontramos diversas éticas, adotadas (pelos detentores do poder político) e aceitas (por aqueles submetidos ao poder), em dados momentos históricos como, supostamente, a melhor forma de interação. Atualmente, temos o pensamento, pulverizado pelos campos teóricos e da práxis brasileira, a exigência de observância do direito-dever de tratamento igualitário, sem a acepção de pessoas em razão de qualquer condição que identifique uma determinada pessoa. Dessa forma, nega-se de toda e qualquer hierarquização entre as pessoas humanas, a qual tem o potencial de justificar subjugações. Contudo, lamentavelmente, apesar do reconhecimento jurídico da
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Em tal perspectiva, a ética não se qualifica como sinônimo do que seria o certo ou o justo a ser escolhido, mas, tão somente, a uma determinada forma de vivência e convivência.
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Direito das Mulheres
igualdade, vê-se, na concretude, determinadas hierarquizações nos discursos dos dias de hoje na sociedade brasileira. As distinções entre classes de pessoas humanas contribuíram na justificação da escravidão, na manutenção de condições de trabalho análogas a de escravo, na explicação da prevalência do pensamento eurocentrista, no enraizamento das desigualdades sociais. A partir, portanto, de uma nova forma de pensar a vida humana – afinal de contas, o que estamos fazendo com ela? -, observa-se direito e faticidade, especialmente no que tange ao gênero na perspectiva de mulheres. Isso se deve a fatores de variadas ordens, muitos deles aprisionados na enganada lógica de hierarquia, entranhada na mentalidade social, bem como em razão do desconhecimento do sujeito mulher acerca de seus direitos. Tais interações causam, inexoravelmente, consubstanciam-se em opressão. Assim, como consectário da hierarquização entre as pessoas humanas, tem-se a enganada naturalização de que o ser mulher é inferior ao ser homem. Daí, exsurgem-se os atos em detrimento aos direitos das mulheres: violência simbólica, violência sexual, violência psicológica; o assédio moral; assédio sexual, dentre tantos outros em que se denota, explicitamente, o desrespeito da pessoa humana mulher em virtude de sua condição feminina – a desigualdade de gênero. Na perspectiva relacional complexa em que se insere a questão do gênero, é possível frisar, ao menos, dois vieses das relações envolvidas na mencionada desigualdade: (a) a perspectiva da pessoa que afirma sua superioridade frente à outra em virtude de seu gênero (b) a perspectiva da pessoa que se conforma com sua suposta inferioridade. Em qualquer relação social em que prevaleçam condições opressoras de poder, verifica-se a estagnação da cooperação entre os indivíduos, especialmente em razão da falta de liberdade e a consequente impossibilidade de escolhas, o que impede e atrasa o desenvolvimento civilizacional. Entende-se que o Direito, especialmente ao consagrar a liberdade e igualdade, pode ser um instrumento para impedir ou reduzir opressões e, com isso, contribuir para a redução da desigualdade entre os gêneros. Assim, para que o direito seja um instrumento da igualdade, reconhece-se a urgência de que os indivíduos envolvidos nesse ciclo de opressão conheçam os direitos consagrados pelo ordenamento e possam, assim, romper com tais padrões opressivos. No entanto, na própria prática político-jurídica, encontram-se discursos que reproduzem discursos em defesa da desigualdade, não só prejudicando a 2
Direito das Mulheres
concretização dos direitos fundamentais mais basilares, bem como impedindo uma prática livre e saudável das acadêmicas e profissionais do meio jurídico. Para tanto, faz-se necessário detectar quais são as razões que pretendem justificar tais hierarquizações de modo a demonstrar a sua fragilidade enquanto argumento e o seu potencial destrutivo das interações humanas. Como é sabido pelo senso comum que permeia o imaginário coletivo brasileiro, há uma tendência em se estabelecer o modo de ser e existir da mulher, por exemplo: a mulher deve ser decente e honesta; deve agir de forma agradável e pacífica; deve permanecer, de preferência, no espaço privado do lar ou, se no espaço público, em local que não seja de tanto destaque; e deve aceitar ou tolerar as decisões que sejam tomadas para ela e por ela. Diante dessa tela, tem-se a forma de interação pautada na desigualdade entre homens e mulheres e na indiferença acerca da subjetividade da mulheres e de suas necessidades e exigências, enquanto sujeito de direito. Tal mentalidade verte e é reproduzida pelas mais variadas fontes de conhecimento, tais como a filosofia, parte da religião ocidental, o Direito e, também, a forma com que as mulheres são ensinadas, especialmente no espaço privado. Nesse pensamento, é imprescindível realizar uma revisitação recortada de fontes justificadoras da ética da desigualdade e da indiferença. Assim como todo o conhecimento transmitido no Brasil contemporâneo, encontram-se um protagonismo quase único dos homens, de sua narrativa e de seu destaque. Em tal perspectiva, o mundo definir-se-ia tão somente em masculino e ao homem seria atribuída a representação da humanidade. É o que é chamado, pela teorização feminista, de androcentrismo, em que o homem é a medida das coisas2. Para a breve revisitação proposta, trazem-se algumas ponderações sobre determinados ensinamentos filosóficos. A filosofia grega, especificamente, buscou, dentre outros significados, a definição da essência da mulher – a partir do homem. Buscou-se teorizar que as diferenças físicas entre homens e mulheres eram naturais e que as diferenças comportamentais eram justificadas biologicamente. Assim, a mulher era considerada tanto biológica quanto intelectualmente inferior ao homem – tal condição de inferioridade da mulher pode ser verificada em Política, de Aristóteles, em que se defendeu a ausência de plenitude na mulher por lhe faltar o logos, que 2
GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 15.
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seria a parte racional da alma. De tal forma, tendo o homem como parâmetro, considerava-se a mulher uma falha da natureza ou, ainda, como um macho falido, fraco. Nesses termos, somente quando gerasse um homem poderia ser considerado estar em sua melhor forma. Pela ideia de precariedade física, a qual se estenderia para uma precariedade intelectual, a mulher era reclusa ao espaço privado, assim como escravos e animais. Já em Immanuel Kant, tem-se a obra Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (1764). Nessa obra, Kant, a mulher, na obra, representa qualidades originárias do que seria belo, tais como piedade, compaixão, disposição e honestidade. Nesse quadro, à mulher estaria naturalmente destinada a agradar. Já o homem seria representado pelo Sublime, o qual seria simples, mas nobre, destinado naturalmente a agradar, mas também a desagradar. Assim, as mulheres serviriam especialmente ao agrado estético; já o homem estaria destinado ao respeito, visto sua nobreza que desagrada e agrada. Jean-Jacques Rousseau, por sua vez, defendeu a subserviência da mulher sustentando a sua menoridade natural permanente, em que a manteria em uma condição infantil independentemente da idade3. Na religião e na educação também se verifica a adoção do critério androcêntrico, criando determinadas representações simbólicas que se incorporam nas interações humanas. Em tais setores cognitivos, homens e mulheres, por sua vez, “convergem para si o imaginário social que lhes atribui simbologias próprias ao que se espera de seu sexo”4. No plano simbólico, a religião reveste-se com uma conotação disciplinadora e, ao mesmo tempo, consoladora. Sua inserção na cultura ocorre quando intenta estabelecer valores e normas, “ditando hábitos e costumes, normatizando corpos e esculpindo mentes, numa escalação axiológica que regra comportamentos”5. Com isso, os dogmas religiosos alcançam e influenciam a compreensão das pessoas especialmente nas relações entre homens e mulheres. A educação, por sua vez, transita no grupo social com a função de transmitir e veicular a cultura geral de um povo – a qual se mostra representada, em 3
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
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ALMEIDA,2006, p. 59.
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ALMEIDA, Jane Soares de. Os paradigmas da submissão: mulheres, educação e ideologia religiosa – uma perspectiva histórica. In SILVA, Gilva Ventura da; NADER, Maria Beatriz; FRANCO, Sebastião Pimentel (org.). História, mulher e poder. Vitória: Edufes; PPGHis, 2006, p. 59 e 72.
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Direito das Mulheres
tese, por um mundo plural e condizente com as mais diversas formas de relações sociais no contexto histórico de uma época. Por meio da educação, são alicerçados os valores culturais e religioso, em defesa de uma determinada ideologia e são configurados os parâmetros de “um espaço essencial de inculcação moral [...], nas quais também se ancoram as relações de poder”6. E aqui se alerta para o seguinte: a educação e a religião, por muito, foram consideradas como porta-vozes de uma aparente neutralidade – com vistas à manutenção da convivência pacífica no meio social. Sob tal justificativa, são encobertos mecanismos e interesses invisibilizados por um manto encantado da imparcialidade7. A normalização de comportamentos indicados pela representação simbólica reflete-se no olhar dominante nas relações de poder, em que se atribui defeitos e qualidades. Na sequência, à medida que determinada conduta é tida por “normal”, correta”, ou, ainda, “errada” ou “desviante”, há a repressão e sanção com a mesma força com a qual é criado tal esquema de simbologias nas relações humanas. No entanto, ao mesmo tempo em que esse discurso “neutro” confere normalidade a determinados comportamentos, também suprime a humanidade de outras ações. Assim, é nítido que não descrevem uma situação de “anormalidade”, ou de pecado ou de incorreção: mas, sim, produzem tal situação8. Ao se analisar, por esse prisma, o meio pátrio social, político e jurídico em que se encontram mulheres, é possível identificar as representações simbólicas estabelecidas pelos parâmetros morais da religião e da educação, as quais refletem nos discursos normativos que visam a manter padrões de seus comportamento. E mais: essa normatização de condutas transborda a fala e se concretiza em “ações concretas e atitudes discriminatórias difíceis de serem detectadas, porque são encobertas de poder inerentes à orientação e protagonismo sexual, nas quais as mulheres representam a parcela sobre a qual se exerce a dominação sexual”9. De plano, vê-se claramente que as representações simbólicas 6
ALMEIDA, 2006, p. 59-60.
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BENTO, Berenice. Corporalidades transexuais: entre a abjeção e o desejo. In WOLFF, Cristina Schibe; FÁVERI, Marlene de; RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Leituras em rede: gênero e preconceito. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007, p. 55. É o discurso de mel, rimado por Lola Salles (na música Medo) e mencionado por Helena Martinez Faria Bastos Régis, no artigo “O namoro qualificado e a desqualificação da mulher no direito de família”, in .
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BENTO, 2007, p. 55.
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ALMEIDA, 2006, p. 59.
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referentes ao sexo feminino emergem como categorizações distintas do mundo masculino, pois são interpretadas como portadoras de diferenças relacionais10. Na esfera educacional, há teorias que se pretendem científicas que sustenta o essencialismo de gênero. Esse pensamento defende que uma convivência relacional homem-mulher pautada pela superioridade da razão masculina, determinada pela sua anatomia convexa e, por consequência, ocupação inata do espaço público. Tal razão seria auxiliada pela emoção da mulher (a anatomia côncava), desde que, lógico, controlada conforme a vontade do homem e restrita aos espaços privados – daí se reforça a compreensão de que o lugar da mulher é no lar11. Um registro comprobatório de tal mentalidade, situado em momento pós-Revolução Francesa, é o escrito de Mary Wollstonecraft intitulado Reflexões sobre educação de filhas. Nesse livro, a autora promove a análise das restrições educacionais impostas às mulheres desde a mais tenra idade, a fim de que fossem mantidas em um estado de ignorância e dependência em um aprendizado com base em um currículo escolar muito restrito. Além desse objetivo de castração do desenvolvimento cognitivo, alerta Mary que os ensinamentos tinham, como conteúdo, o encorajamento para que as mulheres fossem dóceis e atentas à aparência, visto que, com tal perfil, obteriam êxito no casamento12. No campo religioso, particularmente, há um modelo normativo de mulher, advindo do século XIX, que traça a representação simbólica da mulher como uma pessoa que deveria nutrir as características de castidade e abnegação, a fim de se evitar o fomento da sexualidade feminina, que era considerado um perigo na época. O pensamento de sexo para a mulher considerada honrada está ligada à dessexualização do corpo: sob tal ideologia, a mulher não precisaria sentir prazer nas relações sexuais. Além disso, deveria manter
10 ALMEIDA, 2006, p. 55. 11 Cf. TIBURI, Marcia. As mulheres e a filosofia como ciência do esquecimento. Disponível em . Acesso em 02 jun 2016; CARVALHO, Maria da epnha Felicio dos Santos de; CARVALHO, José Luis Felicio dos Santos de; CARVALHO, Frederico Antonio de. O ponto de vista feminino na reflexão ética: histórico e implicações para a teoria de organizações. Disponível em . Acesso em 02 jun 2016. 12 Cf. GARCIA, op. cit.
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a castidade, mesmo no casamento, de modo que deveria se relacionar sexualmente apenas para a procriação13. Os dogmas religiosos sempre decidiram a definição e padrões comportamentais femininos14. No caso do Brasil, vê-se o Catolicismo influenciando a representação simbólica feminina ao impor às mulheres a imagem da Virgem e Mãe. Para tanto, a adoção de uma linguagem mística para delinear o papel feminino como santo, anjo de bondade e pureza – todas características que as mulheres deveriam apresentar para serem dignas de coabitar com os homem e com eles gerar e criar filhos. Segundo Almeida, tal “ideologia vai desqualificar a mulher do ponto de vista profissional, político e intelectual, ao partir da falsa interpretação da natureza humana de que a uma mulher em si não possui valores intrínsecos, mas que deve curvar-se aos ditames do amor e da submissão em nome de uma missão a ela destinada pelo sagrado”15. A partir dessa ideologia, a mulher, para ser respeitada, deveria (a) manter um determinado comportamento, desenvolvendo a abnegação, a castidade, a submissão, especialmente aos homens; (b) casar-se, mantendo-se casta; e (c) exercer a maternidade. Logicamente, toda a construção de seu comportamento remanesceria com o objetivo de alcançar um casamento. A partir daí, tem-se a visualização da tentativa de se naturalizar que a mulher não é sujeito por si mesma, mas somente quando à submissão de um homem – seja de seu pai, seja de um marido. Pensamentos como esses propõem que seja natural a secundariedade do ser humano mulher; ou seja, buscam regorgitar a naturalização da submissão da mulher. Na tentativa de a mulher apresentar conduta de submissão ao homem: [...] a Igreja Católica associaria a figura da mulher santa, feita à imagem de Maria, à pureza de corpo e espírito, enquanto a mulher desviante, 13 “O desejo e o prazer eram reservados ao homem, o qual, segundo o discurso médico, era biologicamente voltado para a essência carnal por conta da virilidade”. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013, p. 75. 14 “Esse olhar rebela – como traços essenciais da alteridade daqueles que estão em situação de dominados – fragmentos imperfeitos, “feixes de informações” que não são reveladores da profundidade e do pluralismo de sua cultura.no entanto, estes segmentos, muitas vezes reduzidos ao silencia, possuem formas próprias de se expressar por meio de tradições, costumes religiosos ou profanos, escritos íntimos, reveladores do sentido da História, encobertos em sinais e revelados nos contornos mágicos dos mitos” (ALMEIDA, 2006, p. 73), tais como os mitos de Lilith (explanado a seguir) e do pecado de Eva e Onã. 15 ALMEIDA, 2006, p. 74.
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Direito das Mulheres
transgressora, principalmente a prostituída, seria ligada à maldade, à perfídia, ao pecado e à decadência. Se a primeira era o espírito e a santidade, a segunda seria carnal e pecadora, levando os homens à corrupção do caráter e do corpo16.
Contudo, tanto a pecadora quando a pura deveriam se apresentar como submissas e dependentes, pois a ordenação social assim o exigia, e a ordem natural das coisas não deveria ser questionada por aquelas que eram destinatárias de um processo de controle ideológico altamente repressor quanto à sexualidade, que, conforme mencionada, deveria ser voltada somente à procriação, como se fosse um dever intrínseco à mulher17 – e esse pensamento fortalece a ideologia atual em que as mulheres são constantemente questionadas sobre quando terão filhos e confrontadas quando respondem que escolheram não ser mães. A sociedade ocidental fomenta a maternidade, a qual, pela ideologia, foi pontuada como pilar da sociedade e da força dos Estados e assim, tornou-se um fato social de relevância para o grupo social. Por conseguinte, os discursos políticos interferem no corpo da mulher, com o controle da natalidade e com o impedimento de se discutir, de forma racional e civilizada, sobre o aborto. Como regra geral, coloca-se a concepção como uma obrigação. Essa ideologia sobre a instrumentalidade do corpo feminino é inculcada na educação, a qual apresentará regramento acerca da sexualidade da mulher e do casal, perpassando toda a vida social do século XIX, estendendo-se ao século XX18. Para analisar os discursos que atingem a existência das mulheres que estejam entranhados no ordenamento jurídico brasileiro, em 2016, realizou-se o Projeto de Pesquisa e Extensão Direito das Mulheres, na Universidade Federal de Santa Catarina. Em sua atividade extensionista, o projeto promoveu a realização de palestras, consultorias e o I Congresso de Direito das Mulheres da Universidade Federal de Santa Catarina, realizado nos dias 16, 17 e 18 de novembro de 201619.
16 ALMEIDA, 2006, p. 74. 17 PERROT, 2013, p. 75. 18 PERROT, 2013, p. 55. 19 Anais do I Congresso de Direito das Mulheres da Universidade Federal de Santa Catarina disponível em
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Direito das Mulheres
Na atividade investigatória, o enfoque principal do trabalho acadêmico foi verificar a tensão existente entre o dever ser de nosso ordenamento jurídico e a realidade social. O direito preza claramente pela liberdade, igualdade e fraternidade como direitos inatos às mulheres. No entanto, tais direitos não se realizam em sua completude. A pretensão, então, foi abordar extratos da percepção das pesquisadoras sobre tensão, a partir de quatro temáticas: Direitos Fundamentais, Violências, Direito das Famílias e Direito do Trabalho. Uma de bases teóricas fundamentais das pesquisa foi equivocada negação de toda e qualquer hierarquização entre as pessoas humanas. Essas hierarquizações tem o potencial de justificar subjugações que, lamentavelmente, vemos nos dias de hoje em nossa sociedade brasileira. Como referência de ideal, balizou-se o Direito, especialmente ao consagrar a liberdade e igualdade, como um instrumento para impedir ou reduzir opressões e, com isso, contribuir para a redução da desigualdade entre os gêneros. Assim, para que o direito seja um instrumento da igualdade, reconhece-se a urgência de que os indivíduos envolvidos nesse ciclo de opressão conheçam os direitos consagrados pelo ordenamento e possam, assim, romper com tais padrões opressivos. Nesse sentido, reconhecemos que podemos auxiliar à emancipação social e política das mulheres que estão em posição de desigualdade, porém, que cada mulher deve emancipar-se a si mesma. Nesse intento, o Projeto de Pesquisa e de Extensão “Direito das Mulheres” propôs o diálogo acadêmico sobre tais institutos do ordenamento jurídico brasileiro a partir da ótica da igualdade de gênero. O resultado desse ano de pesquisa é este livro, o qual não pretende exaurir a temática, muito menos a sua importância. Esta obra é centrada nos eixos de trabalho mencionados, todos permeados pelo questionamento do discurso colocado às mulheres dentro do ornamento jurídico, e reúne os principais artigos desenvolvidos pelas pesquisadoras durante o projeto acerca das temáticas que mais lhes trouxeram inquietação. Diante disso, o objetivo desta obra é o incentivo à problematização sobre a questão de gênero e, por conseguinte, de alguns instrumentais teóricos e fáticos importantes à construção de novas formas de convivência, que contribuam tanto para a concretização do direito quanto para sua crítica.
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Direitos Fundamentais das Mulheres
Os Direitos Humanos na Perspectiva de Gênero: o Mínimo Existencial para a Garantia da Dignidade das Mulheres Human Rights in the Gender Perspective: the Existential Minimum for the Protection of Women’s Dignity Grazielly Alessandra Baggenstoss20
Resumo: A presente pesquisa apresenta o questionamento sobre qual a configuração normativo-jurídica para a garantia da dignidade das mulheres e os respectivos parâmetros de mínimo existencial. Para tanto, parte-se, com método de abordagem dedutivo e de procedimento bibliográfico, de uma visualização do reconhecimento internacional dos direitos humanos, e chega-se ao seu âmbito constitucional brasileiro, tais como direitos fundamentais, com uma ótica a partir da categoria gênero. Por fim, configura-se o status jurídico necessário com as bases dos direitos humanos capitais à liberdade, à igualdade e à fraternidade e com recortes históricos respectivos. Abstract: This research presents the question about the legal configuration for the protection of the dignity of women and the respectives parameters of existential minimum. To do so, with a deductive approach and a bibliographic procedure, study the international recognition of human rights and brazilian fundamental rights, with an observation from the gender category. Finally, the legal status to the bases of human capital rights to freedom, equality and fraternity and their historics parts.
20 Doutora e Mestra pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Professora Adjunta do Curso de Graduação e de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Modelagem e Compreensão dos Sistemas Sociais: Direito, Estado, Política e Sociedade”; Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” da UFSC.
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Grazielly Alessandra Baggenstoss
Palavras-chaves: direitos humanos; direitos fundamentais; dignidade da pessoa humana; direitos das mulheres; gênero. Keywords: human rights; fundamental rights; dignity of human person; women’s rights; genre.
1. Considerações Gerais No âmbito acadêmico, há distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais. Aqueles seriam os quais visam proteger o ser humano em toda a sua existência, a partir de um ideal histórico proveniente das práxis culturais que evidenciam esse sentimento de pertencimento do indivíduo em virtude do seu status humano. Esses direitos condizem com o Direito Internacional ocidental e estão positivados em tratados ou em costumes em tal esfera. Já estes, os direitos fundamentais, em síntese, potencializam-se no conjunto de direitos que objetivam a tutela da pessoa, estatuída em um ordenamento jurídico de determinada Estado, buscando-lhe assegurar um mínimo essencial que assegure a chamada dignidade da pessoa humana. No contexto jurídico, a dignitas é considerada uma característica conferida ao indivíduo desde fora e desde dentro, visto que refere-se ao outro (experiência desde fora), bem como com o que se confere a si mesmo (experiência desde dentro). Na primeis perspectiva, relaciona-se com o que se faz, o que se confere, o que se oferta para que a pessoa tenha sua dignidade. No segundo prisma, vincula-se com o que se percebe como sendo a dignidade pessoal a fim de que se desenvolvam as potencialidades de sua personalidade. Apesar disso, independentemente da definição de dignidade que um determinado indivíduo possua (dignidade desde dentro), todo ser humano a merece como sendo sujeito de direitos e, por isso, é “agente qualificado para demandá-lo do Estado e do outro (dignidade desde fora), pelo simples fato de ser pessoa, independente de condicionamentos sociais, políticos, étnicos, raciais etc” (BITTAR, 2009, p. 302-303). Em tal visão, apenas se verifica a existência da dignidade “quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada, em suas diversas dimensões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência ética como pratica diuturna de respeito à pessoa humana” (BITTAR, 2009, p. 303). É em tal panorama que se pretende analisar a configuração normativo-jurídica que caracterize o conjunto de direitos humanos às mulheres a fim de 14
Os Direitos Humanos na Perspectiva de Gênero: o Mínimo Existencial para a Garantia da Dignidade das Mulheres
que lhes sejam garantida a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Nesse viés, importa destacar que os dispositivos jurídicos a serem permeados estarão sob a ótica do gênero, que é a categoria central das teorias feministas contemporâneas. Para essa pesquisa, portanto, partindo-se da concepção de que feminino e masculino não são fatos naturais ou biológicos, mas, sim, construções culturais, compreende-se gênero o conjunto de normas, obrigações, comportamentos, pensamentos, capacidades e até mesmo o caráter que se exigiu que as mulheres tivessem por serem biologicamente mulheres. Assim, ao se fazer referência ao gênero, fala-se em normas e comportamento determinados para homens e mulheres em função do sexo (GARCIA, 2015). Com tal objetivo, a partir do método dedutivo, estuda-se a perspectiva dos direitos humanos, enquanto direitos reconhecidos pelas Nações Unidas, enquanto base de referencial teórico para esta pesquisa. Em seguida, articula-se o cenário dos direitos fundamentais, enquanto direitos reconhecidos pelo Estado Democrático Brasileiro. Com isso, faz-se a vinculação de tais direitos à pessoa humana caracterizada como mulher e verifica-se a dissociação da história de conquistas e de resistência para a concretização desses direitos essenciais à existência digna das mulheres.
2. Os Direitos Humanos, pela ONU, e os Direitos Fundamentais, pelo Estado Brasileiro: a Especialidade pelo Gênero A partir do final do século XIX, houve uma movimentação internacional para a formação de organismos internacionais visando à cooperação entre os países para tratar de assuntos específicos. Exemplo desses organismos é a União Telegráfica Internacional, conhecida hoje como União Internacional de Telecomunicações (ITU), fundada em 1865 foi fundada e a União Postal Universal (UPU), fundada em 187421. Nessa tendência, no ano de 1899, foi realizada a I Conferência Internacional para a Paz, em Haia, na Holanda, com a proposta de determinados países elaborar normativas para a resolução de conflitos de maneira pacífica, prevenir 21 Hoje, ambas são agências do Sistema das Nações Unidas. Disponível em https://nacoesunidas.org/ conheca/historia/
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as guerras e, quando eclodido o conflito, codificar as regras de guerra. Por seguinte, já no ano de 1919, criou-se a Liga das Nações, predecessora da ONU e fundada durante a I Guerra Mundial, em 1919, sob o Tratado de Versailles. Contudo, diante da inevitabilidade da II Guerra Mundial e a impossibilidade de a Liga das Nações evitá-la, essa instituição dissolveu-se. A história da II Guerra Mundial, então, demonstra a devastação de vários países e a barbárie de mortes de milhões de seres humanos – o que, na época, motivou a comunidade internacional a discutir sobre uma forma de encontrar diálogo entre os países a fim de que tais experiências não ocorram novamente. Após anos de projetos, diálogos, planejamentos e discussões, concebeu-se a denominação “Nações Unidas” pelo presidente norte-americano Franklin Roosevelt. A primeira vez de sua utilização formal da expressão, por sua vez, foi na Declaração das Nações Unidas, de 1º de janeiro de 1942, quando os representantes de 26 países assumiram o compromisso de que seus governos continuariam lutando contra as potências do Eixo. Cinquenta países reuniram-se, por seus representantes, para elaborar a Carta das Nações Unidas na Conferência sobre Organização Internacional, ocorrida em São Francisco de 25 de abril a 26 de junho de 1945. No entanto, a instituição formal das Nações Unidas ocorreu quatro meses depois, em 24 de outubro de 194522, depois que a Carta foi ratificada pela China, Estados Unidos, França, Reino Unido e a ex-União Soviética, bem como pela maioria dos signatários.. A primeira Assembleia Geral nas Nações Unidas ocorreu na capital do Reino Unido, Londres, em 1946, e, naquela reunião, decidiu-se que a sede permanente da Organização seria nos Estados Unidos23. Atualmente, a estrutura central da Organização das Nações Unidas – ONU fica em Nova York, com sedes também em Genebra (Suíça), Viena (Áustria), Nairóbi (Quênia), Addis Abeba (Etiópia), Bangcoc (Tailândia), Beirute (Líbano) e Santiago (Chile), contando com escritórios em diversas partes do mundo.
22 O dia 24 de outubro, atualmente, é comemorado em todo o mundo como o “Dia das Nações Unidas”. 23 “Em dezembro de 1946, John D. Rockefeller Jr. ofereceu cerca de oito milhões de dólares para a compra de parte dos terrenos na margem do East River, na ilha de Manhattan, em Nova York. A cidade de NY ofereceu o restante dos terrenos para possibilitar a construção da sede da Organização”. Disponível em
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2.1 Participação do Estado Brasileiro na ONU A vinculação da Organização das Nações Unidas com os Estados-membros refere-se e diversifica-se em consonância a demandas apresentadas pelos respectivos governos à ONU. O Estado Brasileiro, especificamente, participa da Organização das Nações Unidas desde o ano de 1947e é constantemente signatário de suas instrumentos normativos. O Sistema das Nações Unidas, no território brasileiro, está representado por entidades especializadas, fundos e programas que desenvolvem suas atividades em função de seus mandatos específicos24. O apoio desse sistema varia dependendo da agência específica, visto que cada uma delas desenvolve as tarefas de acordo com seus respectivos mandatos e atuam em áreas específicas. Geralmente, a atuação das agências é intercoordenada entre elas e com o Estado brasileiro – nas esferas federal, estadual e municipal – bem como a iniciativa privada, instituições de ensino, ONGs e sociedade civil brasileira. O objetivo principal é superar, de modo conjunto, os desafios de alcançar a criação e implementação de uma agenda partilhada para desenvolvimento humano sustentável. Em tal perspectiva, visando ainda ao crescimento do país e o combate à pobreza, o Sistema das Nações Unidas busca alinhar suas atividades às necessidades do Brasil. Como produto desse esforço, a ONU Brasil promove a elaboração de textos técnicos abordando seu posicionamento sobre diversos conhecimentos e sobre as áreas em que se verifica o mandato da ONU neste território. O objetivo principal é a reflexão sobre as problemáticas locais e regionais e trabalhar em busca de opções de solução.
24 A Equipe de País (conhecida por sua sigla em inglês, UNCT) está conformada pelos Representantes desses organismos, sob a liderança do Coordenador Residente. O UNCT é presidido pelo Coordenador Residente, posto normalmente ocupado pelo Representante Residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e tem, entre suas principais funções, a missão de definir estratégias, coordenar o trabalho da Equipe e compartilhar informações entre todos seus participantes. A elaboração de iniciativas conjuntas entre os diversos escritórios, avaliar o trabalho da ONU no País e coordenar a ação dos diversos grupos interagenciais, fazem também parte de sua missão. Seu principal objetivo é maximizar, de maneira coordenada, o trabalho da ONU, para que o Sistema possa proporcionar uma resposta coletiva, coerente e integrada às prioridades e necessidades nacionais, no marco dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e dos demais compromissos internacionais. Disponível em
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2.2 Pressupostos dos direitos humanos estabelecidos pela ONU O discurso da Assembleia-Geral das Nações Unidas apresenta, como justificação aos direitos humanos, o essencialismo25, o qual se pauta na crença na essência humana, a qual à se fundamenta na ideia epistêmica de que os direitos são natos aos humanos e que, dessa forma, são apenas juridicamente reconhecidos pelas Nações Unidas. O essencialismo é formado pelas concepções de inerência e de universalidade. A inerência representa uma característica pressuposta a todos os seres humanos. Isso significa que é antecedente fundamental do discurso dos direitos mencionados e, assim, justificam-se e podem ser impostos, garantindo-lhe validade material. A universalidade, por sua vez, consubstancia-se pela natureza ampla dos direitos humanos, os quais são estendidos a todos, indiscriminadamente. Nesse compasso, pode-se afirmar, de maneira genérica, que humanos são os direitos que todo humano possui, nascido ou nascituro. Pelo discurso referido da ONU, são peculiaridades desses direitos: a) inerência: a inerência dos direitos humanos significa que eles já existem na própria natureza humana e são apenas reconhecidos juridicamente nos tratados internacionais e pelas Constituições dos Estados-partes, pela sua positivação e transmutação em direitos fundamentais. Tal característica pode ser visualizada: (i) pela irrenunciabilidade: como os direitos humanos são inerentes à natureza humana, acaso se pudesse renunciá-los, se estaria a renunciar a própria condição de humano, ou seja, são inerentes ao ser humano. São, ademais, indisponíveis, pois que o titular de direitos deles não pode dispor arbitrariamente; (ii) inalienabilidade e imprescritibilidade: são as características que preceituam que os direitos não podem ser transferidos de titula25 O essencialismo é temática desenvolvida no trabalho de tese de Leilane Serratine Grubba, o qual pretendeu investigar o fundamento do discurso de direitos humanos da Assembleia-Geral das Nações Unidas, analisando os pressupostos da inerência e da universalidade, presentes nos principais textos de direitos das Nações Unidas. Cf. GRUBBA, Leilane Serratine. O problema do essencialismo no direito: inerentismo e universalismo como pressupostos das teorias que sustentam o discurso das Nações Unidas sobre os direitos humanos. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/133222. Acesso em abril 2016.
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ridade, seja por doação, por meio oneroso, etc., pois são inerentes à condição humana (conteúdo moral, individual, etc.) e não dependem de tempo determinado para o exercício da titularidade; b) universalidade: os direitos humanos são inerentes à natureza humana, motivo pelo qual pertencem a todos os seres humanos, independentemente de quaisquer diferenças; e c) indivisibilidade: a concretização de um dos direitos depende da concretização dos demais. Os primeiros direitos humanos a serem discutidos pelas Nações Unidas são os considerados de primeira por preceituarem, de forma aberta, universal e essencial tais institutos, os quais, atualmente, são estudados Direito Internacional por estabelecerem obrigações que os Estados necessitam respeitar ao tomar parte dos tratados internacionais. Esses debates originaram os primeiros documentos da ONU, tais como Carta das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos26, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. Posteriormente, a ONU concentrou seu trabalho e especializou-se em temáticas mais concretas, principalmente a grupos sociais enquadrados como carentes por diversas ordens. Assim, passou-se a abordar temáticas específicas, como questões de desigualdade racial e de gênero e violências27.
26 Segundo a Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal representa o reconhecimento universal de que os direitos básicos (humanos) e as liberdades fundamentais são inerentes (já existem a priori e são apenas reconhecidas juridicamente pelo Direito Internacional) a todos os seres humanos, inalienáveis e igualmente aplicáveis a todos, considerando-se que cada ser humano nasce livre e igual em dignidade e direitos. 27 Alguns dos principais documentos produzidos: Carta das Nações Unidas, de 1945; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1969; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979; a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação baseadas em Religião ou Crença, de 1981; a Convenção contra a Tortura e outras formas de Tratamento ou Punição Cruel ou Degradante, de 1984; a Convenção sobre os Direitos das Crianças, de 1990; a Convenção de Viena, de 1993; bem como a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, de 2008.
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2.3 Abordagem da ONU sobre direito humanos na perspectiva de gênero No espectro da abordagem internacional sobre direitos das mulheres, têm-se, como principais, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, os quais obtiveram natureza constitucional e foram ratificados pelo Estado brasileiro28.
2.3.1 Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW) Um dos focos trabalhados é a questão da mulher, disciplinada na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW), adotada pelas Nações Unidas (1979). Tal instrumento é identificada como a Carta internacional de direitos da mulher, por trazer a definição do que representa discriminação contra a mulher e uma proposta de agenda para ações nacionais com o objetivo de eliminar a discriminação. Em virtude do caráter universal dos direitos humanos, com a tentativa de ampliar a ideia de direitos humanos com o reconhecimento da igualdade da mulher, os Estados-partes obrigam-se a promover educação para a modificação, em seus territórios, dos padrões sociais e culturais de conduta individual, visando a eliminação de preconceitos e práticas baseadas na ideia da inferioridade ou superioridade de gênero. Além disso, busca-se a quebra de padrões mentais que originem, estimulem ou reforcem a desigualdade de gênero, tendo em vista que se entende que as práticas sociais, as normas jurídicas e à naturalização da desigualdade, por estereótipos, por exemplo, dão ensejo às limitações sociais, legais, políticas e econômicas que impedem o desenvolvimento das mulheres. Extrai-se da introdução à Convenção das Nações Unidas (1979) que, dentre os tratados internacionais de direitos humanos, a Convenção tem uma importante função de atentar a metade feminina da humanidade sobre os direitos 28 Esses tratados e sua inclusão no ordenamento jurídico fomentaram a positivação da Lei n. 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha. Cf. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
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humanos. Já no preâmbulo, o documenta discrimina universalidade e inerência dos direitos humanos em alguns apontamentos específicos: a) que a Carta das Nações Unidas afirmou a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade, no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre homens e mulheres; b) que a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirmou o princípio da não discriminação e proclamou que todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e direitos e que toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades nela estabelecidos, sem distinção de qualquer tipo, incluindo distinção baseada no sexo; c) que os Estados-partes das Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos têm a obrigação de garantir a igualdade de direitos de homens e mulheres para desfrutar de todos os direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos; d) que a discriminação contra mulheres continua a existir e ela viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito pela dignidade humana, tornando-se um obstáculo à participação das mulheres, em igualdade de condições com os homens, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, dificultando o crescimento da prosperidade da sociedade e da família, além de dificultar o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade (NAÇÕES UNIDAS, 1979). Na sequência, no seu art. 3º, encontra-se a reafirmação dos direitos humanos como universais e o comprometimento dos Estados-partes, nas dimensões social, econômica e cultural, à adoção de medidas necessárias para assegurar o pleno desenvolvimento da mulher, com a finalidade de garantir o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em condições de igualdade com os homens. Além disso, no Protocolo Facultativo à Convenção29, os Estados-partes assumem a Carta da ONU, declarando a fé nos Direitos Humanos fundamentais, 29 O Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 6 de outubro de 1999, reafirmou a Declaração de Viena e o Program a de Ação e Declaração e Pequim e sua Plataforma de Ação.
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na dignidade inerente, no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos entre homens e mulheres. Ademais, reconhecem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, especialmente a consideração de que todos os seres humanos, universalmente, nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que todos têm direito a todos os direitos e as liberdades nela estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie, incluindo a distinção baseada no sexo30.
2.3.2 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica contra a Mulher O texto da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (também chamada de Convenção de Belém do Pará) foi aprovado pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 09 de junho de 1994, sendo ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995. É um “texto sinalagmático em termos de reconhecimento internacional da necessidade de intervenção preventiva e protetiva da Sociedade, do Estado e da Família em casos de violência contra a mulher” (HERMANN, 2008, p. 86). Destaca-se, do seu texto, a urgente da verificação da violência contra a mulher como um grave problema de saúde pública (DIAS, 2010), bem como a própria conceituação do termo “violência contra a mulher”. Segundo seu artigo 1º, esta é “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Ainda, estabelece, “como dever dos Estados signatários” a oferta emergencial, por todos os meios apropriados, de políticas preventivas, repressivas e de combate à “violência contra a mulher, tanto na esfera jurídica quanto na esfera administrativa, de forma a oportunizar, de maneira eficaz e justa, o acesso da vítima à Justiça e mecanismos de proteção e assistência (HERMANN, 2008, p. 86).
30 Em seu original: “Noting that the Charter of the United Nations reaffirms faith in fundamental human rights, in the dignity and worth of the human per son and in the equal rights of men and women; Also noting that the Universal Declaration of Human Rights proclaims that all human beings are born free and equal in dignity and rights and that everyone is entitled to all the rights and freedoms set forth th erein, without distinction of any kind, including distinction based on sex, [...]” (NAÇÕES UNIDAS, 1999)
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O Estado Brasileiro, como participante da ONU e signatário dos instrumentos mencionados, possui o dever de acompanhar tais evoluções normativas e incorporar, em seu ordenamento jurídico pátrio, os compromissos consectários das convenções. Assim, especificamente, recebem a roupagem de proteção ao gênero, nos termos mencionados, os direitos fundamentais determinados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
2.4 Direitos fundamentais brasileiros: dignidade da pessoa humana e mínimo existencial A consequência do reconhecimento (e não instituição) dos direitos advindos da dignidade humana é a adesão dos institutos à pessoa, independentemente do estabelecido pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, são oponíveis tanto a todos os indivíduos de uma coletividade, ao Estado, e à comunidade internacional. De acordo com Nobre Júnior: [...] respeitar a dignidade da pessoa humana, traz quatro importantes consequências: a) igualdade de direitos entre todos os homens31, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida; c) não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou imposição de condições sub-humanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas também pelos particulares (2000, p. 4).
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em suas disposições iniciais, estabelece determinações em homenagem à instituição do Estado democrático de Direito, com sedimentação na proteção dos direitos humanos individuais e sociais e valorizando liberdade, a igualdade, a solidariedade, a segurança, bem-estar, desenvolvimento – com objetivos e metas visando à efetividade da dignidade humana. 31
Contemporaneamente, adota-se o termo “pessoa humana”, visando à contemplação das mulheres também.
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Assim, a base central para o Estado Democrático é o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, em expressão destituída de qualquer alicerce religioso ou metafísico, refletindo uma cláusula aberta que assegura a todos os indivíduos o direito ao tratamento necessário ao mínimo de vida digna. Para a sua concretização, especificamente, é necessário a verificação dos próprios sujeitos desses direitos, no que se refere à admissibilidade ou inadmissibilidade das formas de manifestação da autonomia humana (RABENHORST, 2001). Nesse sentido, está consagrado na Constituição Federal de 1988, artigo 1º, III: Art. 1º - A República Federativa do Brasil, [...] Democrático de Direito e tem como fundamento: [...] III - a dignidade da pessoa humana.
A adoção da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado democrático de direito representa o reconhecimento do ser humano como o legitimador do Estado e do Direito. Pela leitura do dispositivo e, também, em conjunto com o caput do art. 5º, assegura-se a dignidade à toda pessoa humana, independentemente de sexo, condição sexual, expressão religiosa, etc. Em outras palavras, a dignidade é prerrogativa de todo ser humano, na medida em que suas necessidades existenciais devem ser observadas e, especialmente, de forma que não prejudicado em sua existência, devendo fruir de uma esfera de condições mínimas para tanto. No plano jurídico-político, a dignidade consiste em um juízo axiológico inerente à pessoa, manifestada pela autodeterminação de si, pelas condições necessárias para a sua manifestação existencial e, também, pela pretensão de respeitabilidade por parte das demais pessoas. Assim, configura um mínimo nuclear jurídico que o Direito assegurar. Para a garantia desse mínimo jurídico, justifica-se o Estado, como ente instrumental a fim de que os interesses da pessoa humana possam ser atendidos. Em tal compasso, o próprio estado impõe a si limitações em sua atuação, de modo que ofenda seus propósitos ou atinja nefastamente o fim que o legitima, qual seja, a pessoa humana (AWAD, 2006). É correto afirmar, portanto, que a dignidade da pessoa humana configura delimitações e deveres ao Estado e ao grupo social; tal condição dúplice é,
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igualmente, pressuposto da participação do indivíduo na condução d a máquina estatal, como exigência de cidadania (SARLET, 2002, p. 47). Consectário do reconhecimento jurídico da dignidade da pessoa humana é a salvaguarda dos direitos da personalidade, os quais contemplam um conjunto básico e imprescindível do patrimônio jurídico de cada indivíduo e refere-se à a sua vida, saúde e integridade física, moral, psicológica, nome, liberdades física e psicológica, intimidade, privacidade, dentre outros. O Código Civil brasileiro define os direitos da personalidade como os relacionados às pessoas humanas em cada sistema básico de sua situação e atividades sociais. Assim, correspondem a um valor fundamental, iniciado pelo direito ao próprio corpo, que é a condição essencial da existência humana, do que é sentido, percebido, pensado e agido. Por tal razão, é defeso o ato de dispor do corpo, salvo por exigência médica, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes, salvo para fins de transplante. Além disso, é válida com objetivo científico, ou altruista, a disposição gratuita do próprio corpo, para depois da morte, ninguém podendo ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica (art. 15, do Código Civil). É a garantia de nossa corporeidade, de forma intocável (REALE, 2016). Decorrente da existência corporal, surge a identificação e, daí, a proteção ao nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome. Desse modo, não se admite o emprego por outrem do nome da pessoa em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória (art. 17, do Código Civil). Assim, também, é vedado, sem autorização, o uso do nome alheio em propaganda comercial. Por consequência, a divulgação de escritos de uma pessoa, a transmissão de sua palavra, bem como a publicação e exposição de sua imagem são protegidos contra terceiros. Além disso, a inviolabilidade da vida privada da pessoa natural também é direito personalíssimo, devendo o juiz, a requerimento do interessado, adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma (art. 21, do Código Civil). O Código Civil apenas enumera alguns direitos da personalidade que já são estabelecidos constitucionalmente. A Constituição Federal, no artigo 1º, já declara, como fundamento do Estado Democrático do Direito, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa.
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Com esses direitos básicos, a pessoa humana também porta outros direitos, tais como o direito à vida, a liberdade, a igualdade e a segurança, e tantos outros que estão nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal, traduzindo-se em faculdades sem as quais a existência da pessoa humana seria inviável. Assim, os direitos da personalidade consubstanciam-se como aqueles que todo ser humano possui como razão de ser de sua própria existência, sendo inerentes à personalidade, caracterizando-se como atributo essencial à constituição humana. Nas palavras de Reale: [...] cada direito da personalidade se vincula a um valor fundamental que se revela através do processo histórico, o qual não se desenvolve de maneira linear, mas de modo diversificado e plural, compondo as várias civilizações, nas quais há valores fundantes e valores acessórios, constituindo aqueles as que denomino invariantes axiológicas. Estas parecem inatas, mas assinalam os momentos temporais de maior duração, cujo conjunto compõe o horizonte de cada ciclo essencial da vida humana (2016).
Os direitos da personalidade as que ainda constituem possibilidade de ser e de agir para o maior número de seres humanos e, por isso, equivalem-se aos direitos humanos. Tais direitos são igualmente irrenunciáveis e intransmissíveis, impedindo a disposição de seu titular de se desvincular deles. Conforme ensina SARLET: A dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. [...] qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente (2002, p. 143).
Pela estrutura sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, todas as normas jurídicas devem ser interpretadas de acordo com princípio da dignidade da pessoa humana, bem como a elaboração das propostas legislativas, a aplicação do direito, pelos órgãos jurisdicionais, e o planejamento e a execução das políticas publicas. 26
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O conteúdo da dignidade da pessoa humana não pode ser colocada ao senso comum ou vulgarizada, sob o risco de ser esvaziada. Sua utilização deve se pautar por uma fundamentação racional a fim de que se fortalece e se espraia para as novas demandas sociais, de forma a contemplar inclusivamente novos direitos. A dignidade da pessoa humana inspira todos os direitos constitucionais e infraconstitucionais, a partir de uma coerência sistemática, e, dessa forma, sua proposta de definição é multifacetária e interligada aos subsistemas jurídicos. Deve ser alertado que o conteúdo da dignidade da pessoa humana pode ser harmonizado no caso em concreto, quando da sua aplicação e na sua condição de norma-princípio com outros princípios e direitos fundamentais, razão pela qual é tolerável que aceita excepcionais restrições, desde que se promova a igual dignidade de todas as pessoas – isso porque qualquer tipo de restrição à dignidade da pessoa humana seria considerada sinônimo de violação e desrespeito à vedação do retrocesso32. Além da liberdade, mencionada anteriormente, o princípio da dignidade da pessoa humana difundiu-se em reverência ao princípio da igualdade, vedando-se a degradação da condição humana de unicidade e tutelando-se prerrogativas necessárias mínimas a fim de que seja garantido patamar existencial imprescindível. Juntamente com a autonomia, consectária do direito à liberdade, o princípio da dignidade da pessoa humana oferta ao sujeito o direito de decisão, de modo autônomo, sobre seus projetos existenciais e realização pessoal e profissional (AWAD, 2016). Nessa perspectiva da dignidade da pessoa humana e mínimo existencial, conjugam-se os direitos fundamentais basilares da liberdade, igualdade e fraternidade, relacionados ao gênero, cuja normatividade deve ser analisada a partir dos incidentes históricos relacionadas à questão.
32 O princípio da proibição de retrocesso social representa “toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)”. Desse modo, é uma norma jurídica que veda a atuação do legislador quanto à instituição de novas normas jurídicas que representem uma reversibilidade dos direitos já assegurados. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latinoamericano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 3, n. 11, jul./set. 2009.
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3. A Faticidade dos Direitos das Mulheres: a Dissonância com a Narrativa Mainstream Em virtude da ausência de registros constantes sobre a vida das mulheres e seu protagonismo em diversos momentos históricos, é árdua a tarefa em transcrever sua história com uma base vinculativa e cronológica razoável – o que já é simbólico no que se refere à análise do discurso atinente à categoria. Apesar disso, é nítido que determinadas reivindicações sobre os direitos das mulheres não são recentes e são objetivo de lutas e manifestações em muitas épocas e locais. Assim, apresentam-se recortes da história europeia e da nacional, com destaque às normas jurídicas atinentes. Na Idade Média, especificamente na França, encontra-se um pequeno, porém forte, movimento contra as convenções sociais e a crença sobre a inferioridade e consequente incapacidade das mulheres para o aprendizado de determinados temas que caracterizassem manifestação de inteligência e reflexão, tais como filosofia e ciências em geral (GARCIA, 2015, p. 15). As mulheres da época, que se denominavam “preciosas”, reivindicavam a capacidade feminina para o pensamento crítico e o direito à educação, ao acesso à cultura escrita e à erudição. Na história das teorias feministas, esse movimento foi cunhado como protofeminismo. Na Idade Moderna, tem-se como destaque a atuação das mulheres na Revolução Francesa. Essa atuação denominou-se feminismo moderno ou feminismo em primeira. Nesse momento histórico, as mulheres reivindicaram o direito à igualdade aos homens, mas não questionavam os padrões de virtude os quais a mulher deveria apresentar. A participação das mulheres na Revolução Francesa foi essencial para o seu êxito, visto que atuaram ativamente em manifestações nas sessões da Assembleia constituinte, produziram de escritos sobre a revolução, criaram jornais e grupos femininos empenhados nas lutas pelos direitos civis e políticos. Também reivindicavam a abolição da prostituição e dos maus-tratos e os abusos dentro do casamento. Com relevo, tem-se Olympe de Gouges, autora da Declaração dos Direitos das Mulheres e das Cidadãs, de 1791, em que defendia que “a mulher nascia livre e igual ao homem e possuía os mesmos direitos inalienáveis: a liberdade, a propriedade e o direito à resistência à opressão”. Além disso, asseverava que “as mulheres deveriam participar na formação das leis tanto direta quanto in28
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diretamente por meio da eleição de representantes” (GARCIA, 2015, p. 43). Olympe, no entanto, ao questionar Robespierre, e 1792, foi acusada de traição e guilhotinada em 3 de novembro de 1793 “por haver esquecido as virtudes que convém a seu sexo e por haver se intrometido nos assuntos da República” (GARCIA, 2015, p. 49). Ainda na Idade Moderna, a agitação social do século XIX, especialmente os originados com a Revolução Industrial, fortificaram as reivindicações das mulheres, o que passou ser denominado de feminismo em segunda onda. E o movimento de destaque da época é o sufragismo, ocorrido nos Estados Unidos da América, entre os séculos XIX e XX. Contudo, o sufragismo foi um movimento de ocorrência mundial, verificado nas sociedades industriais, e apresentava reivindicação do direito ao voto e de direitos educativos. Essencial, aqui, apontar a participação de Sojourner Truth, escrava liberta do Estado de Nova York, que foi a primeira negra a assistir à primeira Convenção Nacional do Direito das Mulheres, em 1850. No ano seguinte, a abolicionista “pronunciou um discurso na convenção de Akron e nele enfocou os problemas das mulheres negras, asfixiadas entre duas exclusões: raça e gênero” (GARCIA, 2015, p. 49), demonstrando claramente que a pauta das mulheres sufragistas era referente a um feminismo branco e divergia da pauta imprescindível à também necessária libertação das mulheres negras. A terceira onda do feminismo nasce na Idade Contemporânea, em 1948, com a obra O segundo sexo, de autoria de Simone de Beauvoir. Até a produção desse livro, a autora afirma que não identificada as relações de desigualdade em sua formação. Somente após refletir sobre a educação que recebera e depois de pesquisa com um grupo de mulheres, assumiu sua postura feminista. Assim, diz-se que O segundo sexo tornou feminista sua própria autora. Em tal obra, Simone de Beauvoir traz conclusões importantes sobre a hierarquização entre homem e mulher. Uma delas é a forma com a qual é observada: a mulher é considerada o outro em relação ao homem sem reciprocidade e precisa ser ratificada pelo homem a todo momento. Ademais, traz uma categoria importante na dinâmica relacional, que é a heterodesignação. A heterodesignação representa que a mulher deve projetar em si não os próprios objetivos de vida, mas sim as projeções que o homem deseja nela. Por conseguinte, também relata que não há nada de biológico nem de natural que explique a subordinação das mulheres; o que houve foi a predominância que o meio social conferiu à pessoa que arriscava sua vida pela sociedade (nas guer29
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ras, em conquistas por territórios), em detrimento à pessoa que lhe dava a vida (GARCIA, 2015). Saliente-se, igualmente, que a autora proferiu a célebre frase “não se nasce mulher, mas torna-se”, a qual será utilizada posteriormente para fundamentar a teoria de gênero. Na perspectiva brasileira, verifica-se um atraso nas discussões tanto sociais, quanto políticas e jurídicas. Com relação ao direito de liberdade vinculado ao casamento, por exemplo, a cultura ocidental, muito influenciada pela Igreja, categorizado como base da sociedade, sendo um sacramento, indissolúvel que se consumava através do exercício da sexualidade e voltado à reprodução, determinou a presença das normas religiosas na legislação pátria é o Código Civil de 1916 que trouxe o casamento como indissolúvel, com finalidade voltada à reprodução e patriarcal, assim como era observado quando das normas do Sistema Canônico. Isso implica que, até a década passada, vigia uma norma jurídica que instrumentalizada o corpo da mulher à reprodução e ao manto do marido. O Código Civil Brasileiro atual trouxe algumas inovações, mas muitas crenças ainda se mantém sobre a consideração do corpo da mulher como secundário ao do homem em uma união heteroafetiva – como é o caso da defesa, de muitos doutrinadores contemporâneos, acerca do débito conjugal33. No que se refere a direito ao trabalho, o Código Civil de 1916, até a edição da Lei 4.121/1962, denominada Estatuto da Mulher Casada, determinava que a mulher deveria ter autorização do marido para trabalhar. O labor
33 A expressão débito conjugal tem origem no Direito Canônico, que significaria o direito sobre o corpo, principalmente o direito do homem ao corpo da mulher, a fim de atender ao caráter reprodutivo imposto ao casamento. Mais ainda, sob tal viés ideológico a consumação do matrimônio ocorreria na noite de núpcias, sendo possível a anulação do mesmo, caso a mulher houvesse perdido sua virgindade antes de sua celebração. Tal possibilidade de anulação não tem mais lugar na legislação e doutrina atual. Contudo, ainda se encontra presente a figura do débito conjugal, sendo defendida sua existência (DIAS, Maria Berenice, 2012). O débito conjugal, apesar de teoricamente ser uma figura imposta ambos os nubentes, independente se homem ou mulher, culturalmente refere-se a mulher. Ainda nos dias de hoje, reserva-se a esposa o espaço da casa e papel da procriação e ao homem o espaço público. A força física do homem ainda se mantém como poder sobre sua família e sua esposa. A mulher, apesar de ser igual ao homem aos olhos da lei, na esfera da sociedade conjugal, permanece muitas vezes em um papel de invisibilidade e sendo tratada como propriedade do marido. E é nesse cenário que o dever do débito conjugal se torna potencialmente nocivo, podendo justificar a violência doméstica e permitir o estupro marital. Cf. RAMOS, Gabriela Neckel. De quem é teu corpo, mulher? Disponível em . Acesso em 16 fev 2017.
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à noite também não era possível a todas as mulheres, antes do advento da Constituição de 1988. Já sobre a discussão acerca da representatividade da mulher, na elaboração da Constituição de 1891, ocorreram diversos debates no legislativo, que visavam garantir o direito ao voto pelas mulheres. Entretanto, nenhum projeto de lei foi aprovado, e alguns nem foram discutidos. Com base no texto da Constituição de 1927, que não previa vedações de eleitoras mulheres, o governador do Estado do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, elaborou, junto com os deputados estaduais, a Lei Ordinária Estadual n° 660/1927 que garantiu o direito ao voto pelas mulheres34. Na sequência, em 1928, foi eleita a primeira mulher a ocupar cargo político, Luísa Alzira Teixeira Soriano, para o cargo de prefeita da cidade de Lajes, também no Estado do Rio Grande do Norte, antes mesmo do direito das mulheres ao voto em 1932. Já em Santa Catarina, no ano de 1934, Antonieta de Barros, filha de escrava liberta, foi a primeira deputada negra a ser eleita. Ainda, após setenta e nove anos desde a conquista ao voto, o cargo de presidência da República Federativa do Brasil foi empossado por uma mulher, com Dilma Rousseff, pelas eleições de 201035. O conhecimento mínimo da trajetória histórica destes direitos impulsiona a uma reflexão sobre a eficácia das normas desenhadas aos direitos humanos e como, em razão das referências de valores de determinado contexto histórico, não contemplam a pessoa humana mulher. Hodiernamente, frisa-se que a reivindicações das mulheres transmutou-se às necessidades locais e regionais de grupos sociais específicos e o feminismo transformou-se profundamente – o que fundamenta a essencialidade dos direitos humanos. Em sua principal transformações foi a sua pulverização em vários locais, o que explica a correção de seu termo para o plural: feminismos. Contemporaneamente, portanto, os feminismos centram-se na diversidade entre as mulheres, abandonam-se (a) o uso singular da categoria mulher e (b) a luta pela igualdade absoluta ao homem (que seria a adoção do parâmetro masculino ainda). Assim, em defesa de que diferenças não devem caracterizar a desigualdade,
34 Com essa lei em vigor, Celina Guimarães Viana foi a primeira mulher eleitora registrada no Estado do Rio Grande do Norte. 35 Cf. SILVA, Fernanda Donadel da; ZIMMERMANN, Aline Amábile; PAULA, Isis Regina de. Representatividade politica das mulheres. Disponível em . Acesso em 16 fev 2017.
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busca-se o igualitário acesso às condições de vida que representem o mínimo existencial das mulheres. É nesse panorama que se faz o destaque aos direitos fundamentais da liberdade e da igualdade das mulheres, com a consciência de que a sua conquista foi tardia se comparada aos direitos fundamentais verificados pelos homens e em cotejo com a necessária ressalva de que a desigualdade de gênero, quanto faticidade, alicerça os prismas pelos quais são observados os direitos humanos e os direitos fundamentais.
3.1 Direitos de Liberdade Em mainstream, os direitos de liberdade são caracterizados como direitos humanos da primeira dimensão, os quais representam o início do Estado de Direito e, consequentemente, do reconhecimento das liberdades individuais a partir do abstenteísmo estatal. A positivação dos direitos de liberdade iniciou-se primeiras Constituições escritas, como resultado do de pensamento liberal-burguês do século XVIII e tendo como marcos a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Americana (1776). Contudo, como referido anteriormente, a conquista dos direitos da liberdade das mulheres é conquista contemporânea. Contudo, apesar de positivados, tais direitos ainda tardam a serem concretizados em sua plenitude e em amplitude a todas as mulheres. Esse conjunto normativo condiz com direitos civis e políticos, ou seja, com o valor de liberdade e de participação do Estado. O seu enfoque é a pessoa humana e revela atributos e subjetividade que, ainda, geram os direitos de resistência e de oposição frente ao Estado. Atualmente, no ordenamento jurídico pátrio, o direito de liberdade das mulheres está no bojo de diversos bens fundamentais, tais como a expressão, o sexo, o tráfego, a integridade física, psicológica, moral. Nesses termos, a expressão é protegida pelo direito à liberdade de expressão e de manifestação de pensamento em que as mulheres possuem liberdade para expor, de forma livre, qualquer pensamento sem que receie censura por parte do governo ou de outros membros da sociedade. A base de tal direito é preservar, inicialmente, a participação social e política das mulheres, bem como resguardar o fundamento da própria democracia.
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O sexo possui o manto da liberdade sexual, que trata da liberdade de exercício da própria sexualidade das mulheres, as quais são livres para exercê-la, independentemente da postura moralizante de um determinado grupo social ou de determinação impeditiva estatal. Isso significa, por óbvio, que a liberdade sexual das mulheres representa uma esfera de sua autonomia, enquanto sujeito de direitos, e não deve ser pautada pelo arbítrio de mais ninguém além da própria mulher. Assim, protege-se a pluralidade íntima e privada de comportamentos sexuais e condutas não lesivas. Da mesma forma, as condutas que visem denegrir esse direito represente ataque violento e intimidatório e seus autores também são passíveis de sanção penal36. O tráfego, por sua vez, indica a guarda da liberdade de ir e vir, em que se verifica o direito fundamental da mulher de se locomover por onde quiser, desde que respeitadas as normas jurídicas restritivas de determinados espaços e horários – assim como também se impede o acesso dos homens. Caracteriza-se, assim, como o direito à circulação, podendo ir, vir, ficar, parar, estacionar, observadas o ordenamento jurídico sobre acesso a determinados locais, independentemente da vontade de terceiros. A integridade física, psicológica, moral, espiritual é garantida pelo direito correspondente, que visa tutelar a saúde do corpo, da mente e das emoções das mulheres. Desse modo, são penalizadas quaisquer condutas que tenham o condão de atingir negativamente tais bens; exemplificativamente, é considerado crime violência física contra as mulheres (previsão no Código Penal em leitura com a Lei Maria da Penha).
3.2 Direitos de Igualdade O solo fértil para a positivação de direitos sociais, os denominados direitos de segunda dimensão, foi formado pela Revolução Industrial, a partir do século XIX, em virtude das péssimas situações e condições de trabalho em que o proletariado se encontrava Assim, eclodem reivindicações trabalhistas e normas de assistência social na sociedade ocidental.
36 Importante destacar que o status de pertencer a um relacionamento afetivo não afasta, da mulher, o direito à sua liberdade sexual. Por conseguinte, mantendo-se íntegra a sua autonomia, não possui nenhum dever de contrariar sua própria liberdade por vontade ou por pressão da pessoa com quem mantém o relacionamento.
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Tais direitos representam direitos sociais, culturais, econômicos, direitos coletivos; assim consistem nos direitos de igualdade (substancial, real e material, não meramente formal), consubstanciados por importantes documentos estatais, tais como a Constituição do México, 1917, Constituição de Weimar, de 1919, na Alemanha, e a Constituição de 1934, no Brasil. Destaca-se que não houve concomitância temporal e/ou espacial entre a conquista dos direitos da igualdade pelos homens e os conquistados pelas mulheres. Institutos consectários do direito à igualdade são o direito ao trabalho, à educação, à segurança e, importante ressaltar, igualdade no matrimônio. A Constituição Federal, no art. 5º, determina o direito à igualdade de todos, sem distinção de qualquer natureza. Tal dispositivo é combinado ao inciso XXX do art. 7º da mesma Constituição, que assegura proteção de salário igual, afirmando que é proibida a diferença de salários por motivo de sexo, idade, cor, ou estado civil. Desse modo, é direito da mulher trabalhadora o tratamento sem discriminação quanto à sua idade, sexo, cor, ou estado civil é irrenunciável, a fim de que seja preservada a igualdade de tratamento dos cidadãos. Em termos gerais, o direito à educação representa o ter acesso à escola e ao ensino, da mesma forma com que é conferido aos homens; de ser respeitada por educadores; ter igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; e ter reconhecimento ao direito de contestar os critérios de avaliação, podendo recorrer às instâncias escolares superiores. Especificadamente às mulheres, o direito à educação das mulheres é, historicamente, uma luta contra a errônea concepção da mulher como subordinada, subjugada, ao homem, na infeliz acepção de que seria um ser (quando não um objeto) inferior ou com razão restrita, quando em comparação ao homem. Em que pese a igualdade atual, prevista legalmente, há um ranço cultural de que as mulheres devem se condicionar à subserviência ao homem – o que vem sendo combatido eficazmente com os movimentos feministas contemporâneos. A importância de se retirar, constantemente, a igualdade entre homens e mulheres não é desnecessária, em virtude de nossa conjuntura jurídica, social, cultural e histórica. Assim, já no art. 3º, no inciso IV, determina como objetivo da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos, dentre outros, de sexo. Assim, em destaque à determinação constitucional da igualdade geral no artigo 5°, a Constituição Federal também ressalta a igualdade na prescrição paritária de direitos e obrigações entre homens e mulheres diante do casamento e dos filhos, no art. 226, § 5°, que estabelece que os di34
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reitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. Assim, pretende-se expurgar a concepção equivocada de submissão da mulher no matrimônio e reconhecê-la em sua clara posição de sujeito titular de direitos.
3.3 Direitos de Fraternidade Os direitos fundamentais a fraternidade passam a ser delineados a partir de meados do século passado, com a alteração da sociedade ocidental por conta da formação da sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e científico. A alterações nas relações econômico-sociais geraram novos questionamentos mundiais. A partir disso, tem-se a preocupação com o preservacionismo ambiental e a proteção das pessoas, vislumbradas em uma concepção macro. Diante disso, a pessoa humana é percebido em uma perspectiva coletiva e lhe são reconhecidos os chamados direitos de terceira dimensão, caracterizados como transindividuais, pois extrapolam os interesses do indivíduo e relacionam-se com a proteção do gênero humano. São nominados como direito ao desenvolvimento, direito ao meio ambiente, direito de propriedade sobre patrimônio comum da humanidade, direito de comunicação. Por surgirem em um contexto ocidental em que as mulheres já são reconhecidas como sujeito de direitos, as implicações dos direitos da fraternidade são paritários às mulheres37. Além desses, atualmente, há teorias defendendo a propagação das dimensões dos direitos humanos, tanto que alcançam o oitavo grau38. A quarta essa dimensão de direitos, na concepção bobbiana, seria decorrente da tecnologia 37 Sobre o tema é importante frisar que se fortalece uma robusta conexão entre as mulheres que se denomina sororidade (em pareamento à fraternidade, que seria concebida entre os homens). A sororidade, então, prima por formas de interação entre as mulheres estabelecidas pela profunda cooperação, aceitação e respeito às diferenças e que se expurgue as crenças de concorrência e de rivalidade entre as mulheres, as quais somente servem para promover o enfraquecimento das reivindicações e a desunião. 38 Alguns chegam a criar até a Oitava Geração (Dimensão), que seria o respeito à Segurança Pública. Cf. PEREIRA, Jeferson Botelho. As dimensões do Direito e a Segurança Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3949, [24] abr. [2014]. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2014. TORRANO, Marco Antonio Valencio. Quantas dimensões (ou gerações) dos direitos humanos existem?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4247, 16 fev. 2015. Disponível em: . Acesso em: 7 set. 2016.
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no campo da engenharia genética e os estudos concernentes ao patrimônio genético humano. Já para Bonavides, a quarta dimensão seria relativa ao movimento de institucionalização do Estado social e refletiria os direitos à democracia direta, à informação e ao pluralismo39, os quais já incorporariam a sua perspectiva como direito das mulheres.
4. Considerações Finais Laborar com a temática a questão de gênero, especialmente no que se refere aos direitos fundamentais, é ação de garimpagem, em que é necessário desmistificar o discurso hegemônico dos próprios direitos humanos, que são narrados como de abrangessem todas as pessoas, indistintamente. Contudo, vê-se, em um rápido descortinar da história das mulheres, que a essencialidade dos direitos mencionados, por muito tempo, não as alcançou, enquanto já era erguida aos homens e sustentada para indivíduos do gênero masculino. É o descompasso entre a normatividade e a faticidade das normas jurídicas estudadas que denuncia a diferença entre os gêneros e o sistema de pensamento que prepondera culturalmente – mesmo que com fundamentos pretensa e equivocadamente biológicos. O garimpo, então, refere-se à necessidade de revisitar os direitos e observar, com cotejo às mais diversas realidades vividas pelas mulheres, uma história velada de subestimação do papel da mulher ocidental no curso do seu grupo social e, especialmente, uma narrativa única de resistência às opressões de toda ordem – tal como a mortificação de seu corpo e de sua alma. Faz-se necessário, portanto, ultrapassar o discurso mainstream dos direitos humanos e observar, na realidade, como que ocorre a eficácias de tais normas. Os estudos dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, instituídos internacional e nacionalmente, são necessários para se alinharem os discursos jurídicos e a história das mulheres, na busca de implantação de melhorias de ordem jurídica e na promoção de novas possibilidades de relações sociais. Este trabalho, portanto, intentou trazer algumas noções para o início desta garimpagem e para ser um início para tal proposta, pois é imprescindível que os direitos essenciais sejam recontados pela fala das mulheres, a fim de honrar a sua dignidade enquanto pessoa humana.
39 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
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Assim, a configuração normativo-jurídica que caracterize o conjunto de direitos humanos às mulheres a fim de que lhes sejam garantida a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial é diversa do status jurídico que subsidia a existência masculina – o que se verifica tanto historicamente quando na aplicação das normas jurídicas mencionadas. Tal diversidade se justifica não necessariamente em razão das diferenças físico-biológicas constatadas entre a verificação binária dos indivíduos, mas, especialmente, em razão das crenças culturais que formatam o papel social das mulheres como secundário ao conjunto de atribuições relativas aos homens. Por conseguinte, os direitos capitais de liberdade, de igualdade e de fraternidade devem ser trabalhados de forma específica no tocante ao gênero, com um destaque às necessidades das mulheres enquanto sujeitos de direitos. Desse modo, faz-se possível garantir dignidade juridicamente estatuída, bem como o mínimo existencial imprescindível à sua vida segura.
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Da Cidade à Cidadania: a Ocupação dos Espaços Públicos pelas Mulheres From City to Citizenship: the Occupation of Public Spaces by Women Aline Amábile Zimmermann40 Fernanda Donadel da Silva41 Isis Regina de Paula42
Resumo: Historicamente, as relações de poder entre homens e mulheres são desiguais, e os papéis designados a cada um deles, tanto na esfera pública quanto privada da sociedade, são marcadamente definidos por estereótipos de gênero. Essas relações assimétricas cerceiam a autonomia da mulher para transitar entre o espaço privado – o lar, onde as responsabilidades são a elas atribuídas de maneira desproporcional, para o público – local das decisões, da política e da cidade. Soma-se a essa problemática a crise da democracia representativa, que corrobora para colocar as mulheres como minoria nos cargos políticos. Palavras-chave: Público. Privado. Feminismo. Direito das mulheres. Cidade. Representatividade política. Abstract: Historically, power relations between men and women are unequal, and the roles assigned to each of them, both in the public and private spheres 40 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, bolsista PIBIC pelo Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC e membro do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular – SAJU/UFSC. 41 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, advogada e pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC. 42 Acadêmica do Curso de Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do Projeto de pesquisa e de Extensão “Direito das Mulheres” da UFSC.
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of society, are markedly defined by gender stereotypes. These asymmetric relationships undermine the autonomy of women to move between the private space - the home, where responsibilities are attributed to them disproportionally, to the local public of decisions, politics and the city. added to this problem is the crisis of representative democracy, which corroborates to place women as a minority in political positions. Keywords: Public. Private. Feminism. Women’s rights. City. Political representation.
1. Introdução O presente trabalho visa abordar alguns aspectos relacionados aos espaços público e privado, à urbanização e à urbanificação das cidades, bem como a representatividade política e a crise da democracia, sob o ponto de vista da ocupação desses espaços pelas mulheres, destacando a invisibilidade feminina. A perspectiva de gênero, aqui considerado como códigos de conduta socialmente construídos e não como diferenças biológicas entre fêmeas e machos, é fundamento das relações sociais no contexto de ocupação dos espaços da cidade e da política, as quais são atravessadas por relações de poder que atribuem ao homem uma posição, historicamente, dominante. Além da importância de reconhecer o entrelaçamento entre a esfera privada e a pública, impõe-se a percepção da subordinação da mulher em ambos os espaços. A oposição entre o espaço público, onde têm lugar as decisões, e o espaço privado doméstico é fonte de restrição a muitos direitos das mulheres, alguns já conquistado, outros em via de aquisição, como o direito ao voto, à representatividade política, ao próprio corpo com o controle de natalidade e a regulamentação do aborto, dentre tantos outros necessários ao exercício da cidadania e à construção de relações fundamentadas na igualdade. Existe uma desigualdade quanto à ocupação de cargos políticos, e esta não pode ser simplesmente encarada como “natural” ou consequente das relações de poder a que estão expostos todos e, principalmente, a que se subordinam todas. Fundamental que seja avaliada como construção social, realidade que pode e deve ser criticada com o objetivo de possibilitar uma mudança satisfatória, fazendo-se necessária uma transformação no padrão masculino do espaço público e a conscientização da importância do papel da mulher na política, a fim
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de promover amparo para a manutenção dessa inclusão e dar real visibilidade aos interesses de mais da metade da população brasileira.
2. A Dicotomia Privado e Público A oposição entre o privado e o público é objeto de estudo de filósofos e pensadores liberais e alvo de críticas do movimento feminista, principalmente no que diz respeito à sua separação, que tende a associar o lugar da mulher ao ambiente doméstico e a sua exclusão da vida pública. A experiência do espaço privado e do espaço público é constituída de sentidos diversos para mulheres e para homens. Essa oposição, numa lógica liberal estruturada por relações patriarcais43 e de classe, mascara a submissão das mulheres aos homens porque pressupõe que existe universalidade na vivência de ambos os espaços por todos os indivíduos, o que não se verifica efetivamente (PATEMAN, 2013). Por conseguinte, torna-se dificultoso perceber a estrutura liberal de separação dessas esferas como pressuposto de liberdade e igualdade de direitos. A perspectiva de gênero, aqui considerado como códigos de conduta socialmente construídos e não como diferenças biológicas entre fêmeas e machos, é fundamento das relações sociais no contexto de ocupação dos espaços da cidade e da política, as quais são atravessadas por relações de poder que atribuem ao homem uma posição, historicamente, dominante (DRUMOND, 2016). Carole Pateman afirma que a base teórica para a separação liberal entre o público e o privado foi apresentada por John Locke em seu “Segundo Tratado”. Para ele, o poder político, exercido na esfera pública, só pode ser justificadamente exercido de maneira acordada e consentida entre indivíduos adultos livres e iguais. Tal poder não se confunde com o poder paterno, exercido sobre os filhos na esfera privada (PATEMAN, 2013). Nessa esfera também tem lugar o controle dos maridos sobre as esposas, na qual a vontade daqueles deve prevalecer, já que são “naturalmente” mais capazes e fortes. Pela lógica apresentada por Locke para a esfera pública, conclui-se que indivíduos naturalmente subordinados não podem ser livres e iguais, motivo pelo qual se encontra restrita a participação 43 Patriarcalismo entendido como sistema social que atribui aos homens um lugar central quer enquanto chefes de família, quer na vida política. Disponível em:
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da mulher na esfera pública, regida por critérios de universalidade, igualdade e consentimento. Consequentemente, a teoria liberal discute o mundo público separado da esfera privada doméstica, a partir de uma lógica patriarcal. Na luta para mudar esse ponto de vista, no momento histórico da Revolução Francesa, Olympe de Gouges escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791, por entender que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) não contemplava os direitos das mulheres, excluindo-as da participação da vida política. A distinção entre as esferas pública e privada também aparece na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, que entende as ações da pessoa humana por meio da racionalidade comunicativa, considerando que o sujeito adquire consciência de si mesmo e do outro através da linguagem e da relação intersubjetiva (BAGGENSTOSS, 2016). Assim, as instituições de poder existentes na sociedade seriam criadas a partir da comunicação, que propiciaria uma relação intersubjetiva capaz de encaminhar os indivíduos e a sociedade à emancipação. A teoria habermasiana parte, então, de um consenso social que, por meio do poder comunicativo, estabelece a estrutura do Estado e do Direito (CADEMARTORI; BAGGENSTOSS, 2013). Nancy Fraser critica Habermas por haver desconsiderado a influência das relações de gênero na sua teoria, ignorando a correspondência entre as esferas pública (local onde ocorre a reprodução material das sociedades – o trabalho social, por exemplo) e privada (reprodução simbólica, compreendendo a atividade de criação dos filhos, realizada pelas mulheres). Aponta, ainda, que a sua teoria reproduz as racionalizações ideológicas da subordinação das mulheres (FRASER, 1985). A autora defende que as práticas simbólicas, ocorridas na esfera privada, não são necessariamente opostas à reprodução material: os dois sistemas são amplamente entrelaçados e formam uma estrutura social una, e, para a sua compreensão, faz-se necessária uma teoria crítica que evidencie a integração interna de gênero, economia política e até mesmo raça (FRASER, 1985). As mulheres não estão totalmente excluídas da vida pública, tampouco a ocupação dos espaços públicos pelas mulheres se dá de maneira universal, sendo necessário um recorte de classe, etnia e sexualidade, a fim de não tomar como ponto de referência apenas o padrão da mulher cis44, branca, heterossexual e de 44 Abreviação de cisgênero: pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi designado no seu nascimento.
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classe média. Ocorre que tanto a crença de que a mulher deve ocupar o espaço doméstico e o homem o público, quanto o papel que se acredita que a mulher deve desempenhar em ambos os espaços são marcados pela dominação masculina. A exclusão das mulheres desse espaço público é, em grande parte, resultado da pretensa universalidade dos direitos e garantias fundamentais, que atribui uma falsa ideia de igualdade: O fato de que os valores universais sejam, na realidade, o desdobramento das perspectivas de alguns indivíduos e de que esses indivíduos tenham sido, historicamente, masculinos, brancos e proprietários coloca uma série de questões para a crítica democrática. O feminismo ressalta, em parte importante de suas abordagens, que os valores universais correspondem, na realidade, aos valores daqueles que estão em posição privilegiada na sociedade (BIROLI; MIGUEL, 2013).
As críticas feministas sugerem uma alternativa à teoria liberal (apresentada no presente texto de maneira condensada) ao entenderem que as relações estabelecidas na esfera pública e na doméstica não acontecem de maneira “natural” decorrente de características inerentes aos gêneros feminino e masculino, mas são histórica e socialmente construídas. E, tão importantes quanto a rejeição da ideia de naturalidade dessas relações são as inegáveis correspondências entre os dois âmbitos, que não podem ser analisados isoladamente. Corroborando o exposto, dados apresentados pelo Relatório do Desenvolvimento Humano de 2015, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)45, demonstram que os homens dominam o mundo do trabalho remunerado e as mulheres o do trabalho não remunerado. Ocorre que o trabalho não remunerado realizado, na sua maior parte, pelas mulheres é indispensável para que o trabalho remunerado possa ser exercido: manutenção do lar, criação dos filhos, preparação de refeições, cuidados com limpeza e higiene etc. são fatores que influenciam no bem-estar e no funcionamento de toda a sociedade. Se estas funções são consideradas responsabilidade principalmente da mulher, restam limitadas suas oportunidades de deixar esse ambiente doméstico e participar efetivamente do espaço público – do trabalho remunerado e da educação.
45 Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016.
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Não bastassem a invisibilidade da realização dessas atividades pelas mulheres e o acúmulo de tarefas para as que também exercem o trabalho remunerado, existe uma desvalorização da prestação de serviços que ocorre na vida doméstica, porque não são atividades remuneradas e não refletem em indicadores econômicos da lógica liberal. A relação entre os limites e a separação do espaço doméstico e o público, ou seja, a esfera pessoal e a política, tem inúmeras implicações para a mulher. Ressaltam-se aqui algumas delas: responsabilidade desproporcional com a manutenção da casa e criação dos filhos; jornadas duplas de trabalho para aquelas que exercem o serviço remunerado; vulnerabilidade das vítimas de violência sexual e doméstica por seus companheiros e cônjuges, protegidos pelo manto da privacidade; desigualdade ao acesso ao tempo livre para desenvolver outras atividades; no âmbito da política existe sub-representação da mulher46 e a consequente invisibilidade dessas e outras pautas como direitos reprodutivos e discussão da regulamentação do aborto. Esse panorama de desigualdades não pode ser simplesmente encarado como “natural” ou consequente das relações de poder a que estão expostos todos e, principalmente, a que se subordinam todas. Fundamental que seja avaliado como construção social, realidade que pode e deve ser criticada com o objetivo de possibilitar uma mudança satisfatória.
2.1 “O Pessoal É Político” Com a expressão “o pessoal é político”47 a crítica feminista ressalta que a esfera privada não é totalmente autônoma e está regida por um imperativo político que coloca o homem em posição dominante e as mulheres em posição de submissão (COLLIN, 1994). Essa afirmação evidenciou o caráter patriarcal do pensamento liberal que caracteriza a separação da esfera privada da pública e a forma como ocorre a inclusão da mulher em ambas as esferas. Flavia Biroli esclarece que: 46 Embora as mulheres constituam aproximadamente 52 % da população brasileira, são apenas 10% do total de parlamentares na Câmara dos Deputados, e ocupam somente 16% das cadeiras do Senado. Dados disponíveis em Mulheres são maioria da população. Disponível em: . Acesso em: jun. 2016. 47 Slogan criado na Segunda Onda do movimento feminista branco, na década de 1960, por Carol Hanisch.
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[...] a preservação da esfera privada em relação à intervenção do Estado e mesmo às normas e aos valores majoritários da esfera pública significou, em larga medida, a preservação de relações de autoridade que limitaram a autonomia das mulheres (BIROLI, 2014).
Para exemplificar, o ditado popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher” pode ser problematizado em mais de um sentido. Inicialmente, tem-se uma situação de violência e poder resguardada ao ambiente doméstico, e a suposta privacidade pode servir como instrumento para invisibilizar posições de poder e de vulnerabilidade, que ocorrem no ambiente doméstico e têm efeitos no espaço público. Ademais, utilizar o termo “mulher” tanto na expressão apresentada quanto em contextos nos quais se quer referir à esposa, limita a mulher a esse papel. Enquanto o status de mãe e esposa identificarem as mulheres, sua participação na vida pública será dificultada. Ressalta-se que, além da violência doméstica sofrida pelas mulheres que são mães e/ou esposas, existe a repressão contra as mulheres que não ocupam esse status, como as empregadas domésticas, as quais também se encontram em posição vulnerável que deve ser igualmente confrontada (SILVEIRA, 2013). “O pessoal é político”, neste quadro, quer significar que o que ocorre no ambiente doméstico tem importância para medir a igualdade das relações no mundo público: “a democracia requer relações igualitárias em todas as esferas da vida, inclusive a familiar” (BIROLI, 2014). Françoise Collin levanta uma crítica à afirmação de que o lugar da mulher seria o espaço privado defendendo que nem este lugar a pertence de fato, tendo em vista que o habita não como pessoa, mas como esposa e/ou mãe. Ainda que esteja efetivamente ligada à casa, este não é o seu lugar no sentido de pertencer a ela, de ser um lugar no qual possa desenvolver potencialidades ou ter autonomia. Assim, a casa é um local que está “dentro”, mas não é um espaço privado para a mulher. O espaço público também não traz referências para a ocupação livre e tranquila da mulher. Ainda que não haja impedimentos concretos à sua circulação e permanência, os códigos são majoritariamente masculinos. Há sempre a ameaça de violência que toma forma no assédio sexual, seja verbal ou físico, nas ruas e no transporte público. Para complementar esse quadro de desamparo, não existem espaços seguros de acolhimento que efetivamente recebam a mulher quando vítima desses abusos: as delegacias especializadas são frequente47
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mente alvos de muitas críticas pelo seu atendimento, as medidas são ineficazes e, assim, a violência é perpetuada. Ou seja, o espaço público tampouco garante privacidade para a mulher, que não encontra um local para exercer seus direitos, por exemplo, de ir e vir, nos seus próprios limites. Não existe um espaço que proporcione segurança para a mulher cujo fundamento seja os limites de seu próprio corpo, nem em um ambiente fechado, onde estão os limites concretos, muito menos em um local público, no qual se faz necessário estabelecer limites simbólicos (COLLIN, 1994). Além da importância de reconhecer o entrelaçamento entre a esfera privada e a pública, impõe-se a percepção da subordinação da mulher em ambos os espaços. A oposição entre o espaço público, onde têm lugar as decisões, e o espaço privado doméstico é fonte de restrição a muitos direitos das mulheres, alguns já conquistados, outros em via de aquisição, como o direito ao voto, à representatividade política, ao próprio corpo com o controle de natalidade e a regulamentação do aborto, dentre tantos outros necessários ao exercício da cidadania e à construção de relações fundamentadas na igualdade.
3. Urbanização, Urbanificação e a Invisibilidade Feminina 3.1 A Urbanização e a Urbanificação do Espaço Público Neste segundo capítulo, far-se-á uma análise conceitual, histórica e legislativa dos processos de urbanização, urbanificação e urbanismo dos espaços públicos, abordando-se questões como segurança e bem estar da população nesses espaços, especialmente pelo viés da ocupação da mulher, verificando-se a (in) existência de um lugar seguro para a mulher no desenvolvimento das cidades. A urbanização é um fenômeno de concentração urbana que verifica o crescimento superior da população urbana em comparação ao crescimento da população rural, e acontece quando a população que vivia em locais rurais migra para a cidade. Não se trata, portanto, somente do crescimento da cidade, está também relacionado ao crescimento da população que ocupa os espaços urbanos: uma cidade urbanizada não é uma cidade que sofreu uma urbanificação, e sim uma cidade com crescimento populacional urbano superior ao rural. Dessa forma, a cidade torna-se urbanizada quando mais de 50% (cinquenta por
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cento) da população passa a residir naquele local. Pode-se afirmar, assim, que cidades industrializadas geralmente são cidades urbanizadas (SILVA, 2008). Segundo José Afonso da Silva, a urbanização acarreta uma sucessão de problemas, como a desorganização social, problemas de higiene, saneamento básico, crescimento do desemprego, além de alterar as funções do solo e transformar a paisagem urbana (SILVA, 2008). No Brasil a urbanização aconteceu gradualmente. Nos anos 60, a taxa de urbanização era de 44,7%, em 1980, a urbanização teve um crescimento de 67,6%, e, na década de 90, a taxa atingiu 78,4%48. Nesse último período a urbanização é caracterizada como prematura, pois a população rural migrou para a cidade devido à falta de condição de vida no campo. Atualmente, o Brasil é considerado um país urbanizado. Os problemas causados pela urbanização deram ensejo à criação da urbanificação, que é a forma pela qual o Poder Público intervém no ambiente, modificando as áreas urbanas que já passaram por esse processo ou criando áreas novas. “O termo urbanificação foi cunhado por Gaston Bardet para designar a aplicação dos princípios do urbanismo, advertindo que a urbanização é o mal, a urbanificação é o remédio” (SILVA, 2008). Por outro lado, o urbanismo foi conceituado inicialmente como uma arte de embelezar a cidade. Ao longo dos tempos esse conceito sofreu alterações, sendo que hoje o urbanismo é conceituado como uma técnica de ciência, que visa alterar os locais habitáveis por meio da urbanificação. José Afonso da Silva adota o conceito de Hely Lopes Meirelles, segundo o qual “urbanismo é o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem e comunidade” (SILVA, 2008). Pode-se dividir a urbanificação em duas espécies: a comum e a especial. A primeira é a forma pela qual ocorre o parcelamento do solo, e a segunda é a renovação urbana. A urbanificação especial pode ocorrer de diversas maneiras, como a “renovação urbana (ou reurbanização), a urbanificação prioritária (ou preferencialmente), a urbanização restrita, a amplitude de distrito industrial, a formação de núcleos residenciais de recreio e a execução de obras de grande
48 IBGE. Indicadores Sociais Mínimos. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016.
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porte” (SILVA, 2008), podendo também alterar espaços relacionados ao lazer como parques, bibliotecas, praças e locais não-edificáveis.
3.2. Urbanificação e a Invisibilidade Feminina Sabe-se que a competência para corrigir os problemas advindos da urbanização é do Poder Público. Entretanto, como definir se é competente a União, Estado ou Município? O Brasil Colônia contava com algumas regras sobre os atos do direito urbanístico, mas não possuía nenhuma lei específica. O urbanismo era, então, dirigido pelas Câmaras Municipais, que elaboravam as diretrizes urbanísticas de cada Município. Inicialmente, a Constituição do Império nada dispôs sobre o urbanismo. Com a edição de lei complementar de outubro de 1828, atribuiu-se tal incumbência somente para as Câmaras de cada cidade, que deveriam garantir tranquilidade, segurança, saúde e comodidade aos habitantes das povoações. Um Ato Adicional à Constituição Imperial modificou a competência das Províncias e criou as respectivas Assembleias Legislativas, que poderiam versar sobre direito urbanístico, mas nada de inovador foi apresentado. Subsequentemente, as Constituições até 1969 tornavam competente a União para dispor sobre viação férrea e estradas de rodagem, deixando os Municípios com poder para versar sobre os assuntos que fossem de seus interesses, o que é compreendido como a função urbanística local (SILVA, 2008). A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao contrário das anteriores, ocupou-se do assunto de forma clara e direcionada, definindo que cabe à União elaborar e executar planos urbanísticos nacionais e regionais relacionados à ordenação do território, assim como o desenvolvimento econômico e social, conforme os incisos IX e XX do artigo 2149. A elaboração do plano diretor da cidade é da competência dos Municípios, devendo ser limitada naquilo que a legislação federal (que estabelece normas gerais) e estadual (normas suplementares) dispuser. Nesse sentido, conforme o art. 30, VII, da CFRB/1988, compete aos Municípios a realização do planejamento de controle e uso do solo, sua ocupação, 49 Disponível em: . Acesso em: ago. 2016.
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bem como a política de desenvolvimento urbano e a definição dos espaços públicos para garantia do bem-estar de seus habitantes. A Constituição definiu que o plano diretor é o instrumento básico para a definição de política de desenvolvimento e de expansão urbana, devendo ser aprovado pela Câmara Municipal, sendo obrigatório nas cidades com mais de vinte mil habitantes50. Denomina-se “plano” porque nele são estabelecidos os objetivos e os prazos a serem cumpridos, assim como quem deve realizar esses propósitos; “diretor” porque nele são fixadas as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município. No plano diretor temos os objetivos gerais e específicos: os gerais promovem a disposição dos espaços habitáveis e os específicos estão ligados à realidade que se quer transformar - por exemplo, o alargamento de determinada via pública, reurbanização de um bairro, construção de uma via expressa, construção de casas populares, redes de esgoto, zoneamento, loteamento, entre outros (SILVA, 2008). O Estatuto da Cidade, no parágrafo único do seu artigo 1º, estabelece que a lei disporá sobre “o uso de propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos”51. Quando o legislador fala em propriedade urbana em prol do bem coletivo, significa que toda propriedade privada deve ser submetida ao interesse da coletividade. Quanto à segurança e ao bem-estar, mais do que um dever estabelecido no Estatuto da Cidade, trata-se de uma garantia constitucional. Logo, o Plano Diretor deve ter por base essas três vertentes: propriedade urbana privada em prol do bem coletivo, segurança e bem-estar dos cidadãos e, queremos acreditar, das cidadãs. Faz-se a crítica porque existe uma grande diferença ao se analisar segurança e bem estar a partir do ponto de vista de um homem cisgênero e de uma mulher. Conforme demonstrado no capítulo inicial, os medos são diferentes, as violências, sejam elas simbólicas ou físicas, também, e a cidade não é projetada para abrigar as mulheres, afrontando determinações da CFRB/1988 e do Estatuto da Cidade. A insegurança atinge desde a mulher dona do lar, que está no espaço dito privado da sociedade, até a mulher que ocupa também o espaço público 50 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe sobre o Plano Diretor no seu artigo 182, §1º, e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 2001) trata do tema no artigo 4º, III, alínea “a”. 51
Disponível em: . Acesso em ago. 2016.
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da cidade. Esta condição ultrapassa as barreiras da violência material: pois a falta de segurança atinge o maior bem humano, a vida. Neste contexto, o medo relaciona-se com ameaça de uma violência física. De acordo com o explanado, a urbanificação e o urbanismo são de competência do Poder Público, que deveria buscar soluções para o problema da segurança, garantindo o ir e vir da mulher dentro da cidade, de forma que ela não encontre empecilhos para sair do privado e migrar para o público, conforme garantido nos referidos diplomas legais. Para exemplificar a insegurança nas cidades, têm-se a precariedade da iluminação nas ruas e o transporte público com poucas linhas e horários, que não garantem segurança, prejudicando principalmente mulheres. O assédio sexual nas ruas e nos transportes públicos é uma realidade para todas que necessitam se locomover pelas cidades. O bem-estar é outro problema: como uma mulher pode sentir-se bem quando é importunada cotidianamente com insultos travestidos de elogios, a maioria com conotação sexual, seja em momentos de descanso em praças, locais de lazer, ou no seu deslocamento diário pelas ruas, indo e voltando do trabalho, escola, etc52? A falta de segurança e bem-estar cerceiam a autonomia e independência das mulheres, levando-as a evitar ruas e caminhos que poderiam facilitar sua rotina, bem como as restringe ao espaço privado em determinados horários. Esses empecilhos advêm, dentre outros fatores, da dominação masculina, em que o homem pensa e vive o espaço público de maneira muito distinta da mulher, cabendo a ela o espaço privado que, muitas vezes também está condicionado às limitações impostas pelo homem53. “O poder político é apanágio dos
52 Para pensar este problema, as idealizadoras do site “Think Olga” criaram a campanha “Chega de Fiu Fiu”, contra o assédio sexual em espaços públicos. A jornalista Karin Hueck elaborou um estudo online para averiguar a opinião das mulheres sobre as cantadas recebidas na rua, e 98% das entrevistadas responderam que já haviam sofrido assédio, sendo que 83% rechaçam essa prática, 90% já trocaram de roupa antes de sair de casa com medo de sofrer assédio e 81% já deixaram de ir a algum lugar por esse motivo. Disponíveis em: e . Acesso em: ago. 2016. 53 A criação do vagão exclusivo para mulheres no metrô (nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília) é um exemplo de como as medidas não são pensadas para garantir a segurança e o bem-estar das mulheres, mas para dissimular o problema do assédio sexual, segregando-as. O “vagão rosa”, como é conhecido em alguns lugares, propõe a separação de homens e mulheres como solução para o assédio, confinando as mulheres a um espaço limitado, restringindo, mais uma vez, a sua liberdade.
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homens – e dos homens viris. Ademais, a ordem patriarcal deve reinar sobre tudo: família e no Estado. É a lei do equilíbrio histórico” (PERROT, 2006). O reconhecimento da mulher na esfera pública encontra dificuldades no dualismo sexualizado que valoriza o público e desvaloriza o privado, nas respectivas atribuições: A democracia grega já reforçava a divisão entre público e privado ao destinar o espaço da polis aos homens, e a esfera do òikos, às mulheres. A rua, o mercado, a cidade e a política foram definidos, longinquamente, como espaços masculinos. Paralelamente se estabelece a divisão entre produção e reprodução, cabendo ao homem o papel de provedor que traz recursos provenientes da esfera pública (polis) para o âmbito doméstico (òikos), espaço destinado às mulheres e voltado à reprodução dos membros da família (ALVES, 2001).
As mulheres que tentam migrar do espaço privado para o público encontram dificuldades além da resistência masculina. A falta de iluminação nas ruas, o transporte publico deficiente, a inexistência de lugares que abriguem mulheres que sofreram algum tipo de violência, a dupla jornada de trabalho, entre tantos outros problemas, constituem óbices para as mulheres que almejam ocupar o espaço público. Atualmente o espaço público segue sendo pensado somente para o público masculino, sendo de suma importância a representatividade de mulheres em cargos do Poder Público. Com mulheres ocupando cadeiras na Câmara Municipal, por exemplo, além de migrar para o Espaço Público, elas podem dar voz à invisibilidade feminina existente na elaboração do plano diretor, assim como encaminhar projetos pensados para a sua segurança e bem-estar.
4 A Esfera Política 4.1 A Perspectiva Histórica da Luta Feminista Brasileira pelo Voto e a Subrepresentatividade da Mulher na Atualidade Por questões metodológicas, esse capítulo se limitará a estabelecer uma ligação entre o período na história brasileira de consolidação do direito básico ao voto da mulher e a ocupação feminina no espaço político na atualidade. 53
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Foi no século XIX que apareceram mulheres na história brasileira que reivindicaram o direito ao voto. O que foi peculiar no Brasil naquele tempo é que não havia inicialmente um movimento organizado que lutasse pelo sufrágio feminino, mas sim mulheres que, individualmente, solicitavam seu alistamento eleitoral para terem tanto o direito ao voto como o direito a serem votadas. A historiadora Céli Pinto nomeou essa agitação de “sufragismo à brasileira” (JARDIM PINTO, 2003). Dois casos chamam a atenção no período. O primeiro deles, no Rio Grande do Sul: uma cirurgiã-dentista em 1885, Isabel de Souza Matos, que requereu e recebeu o direito a se alistar baseada em uma lei que facultava o voto aos portadores de títulos científicos54, o qual não demorou a ser suspenso: Com o advento da República e a convocação de eleições para a Assembleia Constituinte, Isabel de Matos, que se transferira para o Rio de Janeiro por aquela época, procura a comissão de alistamento eleitoral da Capital Federal na tentativa de garantir novamente o pleno exercício dos seus direitos de cidadã. O parecer do governo, contrário ao pleito da Dra. Isabel, seria o mote para exacerbar os ânimos feministas em torno da inclusão das mulheres no espaço político [...] (SOUTO MAIOR, 2016).
O segundo caso foi no Estado da Bahia, com Isabel Dilon, que se apontou como candidata à Constituinte republicana de 1891, e não teve deferido seu pedido de alistamento. Ainda assim, o tema do voto para as mulheres era atual e foi discutido naquela assembleia, mas o projeto não foi aprovado. Nesse espaço teve como defensores os futuros presidentes da República Nilo Peçanha, Epitácio Pessoa e Hermes da Fonseca. O que fica evidente é o tratamento desigual e a exclusão sofrida pela mulher, já que nem sequer é mencionada expressamente como não apta a votar no texto constitucional. Ela não era vista como um indivíduo dotado de direitos pelos constituintes e muito menos era considerada cidadã para exercer direitos políticos pela sociedade patriarcal (JARDIM PINTO, 2003): Art. 7 São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, que se alistarem na forma da lei. § 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais, ou para as dos Estados:
54 Lei nº 3029, de 9 de janeiro de 1881 (Lei Saraiva).
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1º Os mendigos; 2º Os analfabetos; 3º As praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior; 4º Os religiosos de ordens monásticas, companhias congregações, ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regras, ou estatuto que importe a renúncia da liberdade individual. § 2º São inelegíveis os cidadãos não alistáveis (BRASIL, 2016a).
Durante toda República Velha o voto feminino foi alvo de discussão e de requerimento por muitas mulheres. Entretanto, somente no Governo Provisório de Getúlio Vargas, após a revolução de 1930, esse direito foi instituído juntamente ao voto secreto na promulgação do Código Eleitoral (Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932)55. Há de se frisar, como o faz a historiadora Mônica Karawejczyk, que “[...] o sufrágio feminino não foi uma concessão de Vargas no ano de 1932, mas sim parte de um processo e de uma luta travada por homens e por mulheres no Brasil” (KARAWEJCZYK, 2016). Critica ainda a historiadora Branca Moreira Alves a invisibilidade do movimento feminista pela história brasileira: [...] a historiografia brasileira, se e quando se refere ao decreto de 1932 ou à Constituição de 1934 concedendo o sufrágio feminino, geralmente silencia sobre o movimento [sufragista-JFM/LSL], deixando crer que as mulheres se tornaram eleitoras por uma dádiva generosa e espontânea, sem que tivessem lutado ou demonstrado qualquer interesse por este direito (ALVES, 1980).
Em que pese essas críticas, importante, ainda, foi dentro do movimento feminista a criação do Partido Republicano Feminino (PRF), fundado em dezembro de 1910. O PRF vedava estatutariamente a participação masculina e teve como uma de suas militantes a professora baiana Leonilda Figueiredo Daltro, 1859-1935 (KARAWEJCZYK, 2016). Além da questão de direitos, falavam do fim da exploração sexual, de emancipação feminina, “adiantando em mais de 50 anos a luta das feministas da segunda metade do século XX” (JARDIM PIN-
55 O artigo 2º desse decreto estabeleceu: “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código.” (Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932).
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TO, 2003). Sua mobilização é colocada como análoga às radicais “suffragettes” inglesas, como aponta Teresa Marques (2016). Mais lembrada na luta pelo voto feminino do que Leonilda é a figura de Bertha Lutz, em parte por ter feito uma militância mais comedida. Sua atuação foi à frente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), associação fundada em 1922 (KARAWEJCZYK, 2016). Bertha foi indicada como representante de organizações feministas na Comissão Preparatória do Anteprojeto da Constituição de 1934 (SOUSA, 2016), a qual apresentava em seu art. 108 o seguinte texto: “São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei”. Lutz teve um papel político muito importante dentro do cenário brasileiro na conquista de direitos (inclusive, trabalhistas) das mulheres, tendo assumido por alguns anos o cargo de deputada federal antes da decretação do Estado Novo na Era Vargas.56 Deve-se recordar ainda, nesse procedimento de conquista de direito ao voto, o cenário inspirador dos anos 20 que pululavam diversos movimentos de descontentamento pelas contradições que trazia a república oligárquica. O Feminismo tem como irmãos o Tenentismo, a criação do Partido Comunista em 1922 e o Modernismo iniciado com a Semana de Arte moderna em São Paulo. Descreve Rachel Soihet: Esses movimentos revelam insatisfações — relacionadas com o nível econômico, a esfera política marcada, especialmente, pelo descontentamento com a corrupção característica do sistema eleitoral vigente —, mas também no que tange ao terreno das ideias, do comportamento, dos valores (SOIHET, 2000).
A partir dessa análise, fica claro como o movimento feminista no Brasil teve grande importância na consolidação de direitos políticos fundamentais para as mulheres e, nesse sentido, como há urgência de uma revisão histórica. Não é pauta no presente artigo trazer toda a história do movimento feminista nacional, mas ainda assim é preciso que se reconheça aqui sua participação atuante em todo o século XX no país e, principalmente, no período de redemocratização pós Ditadura Militar.
56 Disponível em: . Acesso em: 15. ago. 2016.
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Partindo para o cenário contemporâneo, percebe-se que o tema “mulheres na política” tem movimentando bastante o país e todo o mundo. Em 2015, dados divulgados pela União Interparlamentar (UIP)57, órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), em seu relatório “Mulheres no Parlamento 2015: Revisão Anual” indicavam que, de um total de 190 países, o Brasil possuía uma das mais baixas taxas de mulheres no Congresso Nacional, tendo ocupado a posição 116ª no ranking. Na época, a Câmara Federal brasileira era ocupada por 45 deputadas (9% do total) e 10 senadoras (13%); a média mundial fechou em 22,6%. Países do Oriente Médio, como Iraque e Arábia Saudita, além de latino-americanos como Uruguai, Paraguai e Colômbia, superavam o Brasil em assentos para mulheres no Congresso.58 De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas Eleições Gerais de 2014, elas representavam 52,13% do total de 142.822.046 eleitores e representaram apenas 28,93% do total de 21.582 candidatos a todos os cargos59. Após 80 anos desde a conquista dos direitos políticos, apesar de serem maioria do eleitorado, ainda ocuparam uma porcentagem muito baixa de cadeiras na Câmara. A 2ª edição do livreto “Mais mulheres na Política” (2015) da Secretaria da Mulher na Câmara dos Deputados e da Procuradoria Especial da Mulher do Senado Federal apontou essa desigualdade de gênero na ocupação dos cargos e fez críticas em relação às decisões tomadas no âmbito público que favorecem interesses privativos dos homens60: [...] somos 10% do total de parlamentares da Câmara. No Senado, ocupamos somente 16% das cadeiras. Além disso, onze partidos, dentre os 28 que elegeram parlamentares para a Câmara dos Deputados, não contam com nenhuma mulher entre seus representantes. E dezesseis estados não contam com representação de nenhuma mulher no Senado Federal (p. 8). 57 “A União Interparlamentar (UIP — ou IPU, em inglês) é uma organização internacional dos parlamentos dos Estados soberanos, cujo objetivo é mediar os contatos multilaterais dos parlamentares.” Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016. 58 Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016. 59 Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016. 60 Mais mulheres na política. Brasília: Senado Federal, Procuradoria Especial da Mulher; Brasília: Câmara dos Deputados, Secretaria da Mulher. 2015, 2. Ed. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016.
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O poder é um domínio ainda ocupado hegemonicamente por homens, campo no qual não há representatividade feminina de fato, dada a exiguidade de posições efetivamente ocupadas por mulheres. Em outras palavras, o poder sobre as decisões públicas, que deveria ser neutro em relação a gênero, é marcadamente masculino, o que resulta em pouca sensibilidade no mundo político diante de assuntos importantes para a qualidade de vida das mulheres. E, por outro lado, abala a representatividade das instituições políticas nas quais são tomadas as decisões que afetam a vida da nação (p. 17).
Essa falta de representatividade feminina na política nacional tem sido tão alarmante que em 2016 o TSE lançou a campanha “Igualdade na Política”, tendo em vista as Eleições Municipais daquele ano. Isso foi reflexo da Minirreforma Eleitoral (Lei nº 12.891/2013), que introduziu o art. 93-A na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), o qual prevê que, no período entre 1º de março e 30 de junho em anos eleitorais, o TSE “[...] poderá promover propaganda institucional, em rádio e televisão, destinada a incentivar a igualdade de gênero e a participação feminina na política”61. Em entrevista à Agência Brasil para divulgação da campanha, a ministra do TSE Luciana Lóssio abordou a questão da ocupação do espaço político pelas mulheres. A ministra apontou que elas já representam uma média de 44% dos filiados nos partidos e, portanto, a assertiva de que as mulheres não querem participar da vida política é falsa. Trouxe a crítica aos impedimentos partidários que se colocam para que de fato sejam eleitas: “[...] Elas só precisam que esses partidos tenham espaço para que concorram. Espaço e condições.”62. As condições e espaços que hoje são negados às mulheres dentro dos partidos políticos faz parte de uma artimanha eleitoral corriqueira na política brasileira de modo a não incentivar figuras públicas femininas. Ainda que a legislação eleitoral atual brasileira preveja a exigência de uma porcentagem de mulheres nas inscrições de chapa (tema que será debatido a seguir), a cota não é respeitada pelos partidos. Além disso, quando cumprem o número mínimo têm
61 Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016. 62 Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016.
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como único intuito obter acesso ao fundo partidário, o qual não é distribuído de forma a beneficiar candidaturas femininas.63 A campanha do TSE das Eleições de 2016 ilustrou perfeitamente a realidade brasileira: se hoje a população tivesse uma voz, ouvir-se-ia em pé de igualdade mulheres e homens; mas relativamente à voz política representativa, ao contrário, sobressair-se-ia esmagadoramente os homens em detrimento das mulheres64.
4.2 As Ações Afirmativas para as Mulheres na Política: o que já Foi Conquistado e o que Continua em Discussão Para que se aumentasse a ocupação do espaço público pelas mulheres dentro do Brasil, algumas mudanças legislativas aconteceram em 2009. Foram três as alterações: o preenchimento mínimo de 30% das candidaturas reservadas a cada sexo (ou seja, ao sexo feminino) em partidos ou coligações e um Fundo Partidário em cada partido com um mínimo de 5% de recursos para promoção de participação política das mulheres, além do que as legendas devem dedicar às mulheres no mínimo 10% de seu tempo total da propaganda partidária gratuita. Foi a Lei nº 12.034/2009, a primeira Minirreforma Eleitoral, que promoveu essas mudanças significativas, mas ainda insuficientes na perspectiva da representatividade feminina efetiva.65 Muitas resoluções da ONU, como na plataforma de ação mundial, aprovada durante a 4ª Conferência sobre as Mulheres, de 1995 em Pequim (China), incentivaram os Estados para que tomassem medidas com objetivos de alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas em todo o mundo. Dentre as medidas listadas na “Declaração e Plataforma de Ação de Pequim”, a necessidade da participação feminina nas esferas públicas de poder é apontada. 13. O fortalecimento das mulheres e sua plena participação, em condições de igualdade, em todas as esferas sociais, incluindo a participação
63 Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2016. 64 Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2016. 65 Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016.
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nos processos de decisão e acesso ao poder, são fundamentais para o alcance da igualdade, desenvolvimento e paz; 36. [...] um empenho por iguais direitos, responsabilidades e oportunidades, e pela participação equitativa das mulheres e dos homens em todos os órgãos e processos políticos nacionais, regionais e internacionais.
Os direitos das mulheres, na esfera internacional, são apontados como parte dos direitos humanos. Diferentemente da Declaração do Homem e do Cidadão na Revolução Francesa, em que não se falava de fato em universalidade, a Declaração Universal de 1948 veio num sentido oposto em que se obteve, por fim, um reconhecimento das mulheres como sujeitos de direito. Toda essa nova perspectiva de direitos humanos parte de uma luta para a consolidação da dignidade humana pautada por um horizonte de inclusão e de não discriminação. Para que isso se efetive, para além de uma igualdade formal em que “todos são iguais perante a lei”, objetivam-se medidas promocionais que busquem uma igualdade material pautada num verdadeiro ideal de justiça (PIOVESAN, 2005). Nesse sentido, políticas compensatórias como ações afirmativas são hoje colocadas como mecanismo para a aceleração da igualdade enquanto processo. Sendo a política um espaço de exclusão feminina e, por isso, materialmente antidemocrático, deve-se ter em vista as cotas como possibilidade de transformação dessa realidade. Anne Phillips faz a crítica que “os democratas liberais, em particular, acreditam ter estendido todos os direitos e liberdades necessários às mulheres ao permitir-lhes o voto nos mesmo termos dos homens. Isso é simplesmente inadequado.” E sob esse mesmo viés, Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil, afirma que a democracia só se realiza com participação feminina66. Na Câmara Federal brasileira, têm-se projetos de lei que buscam desde aumentar porcentagem do fundo partidário para campanha de mulheres (PLS 112/2015, 413/2015), até outros que visam à divisão do horário eleitoral (PLS 232/2013 e PLS 343/2013) e o aumento para 50% das cotas de candidaturas de mulheres (PLS 389/2014). Entretanto, a proposta que conseguiu chegar à
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discussão e ser aprovada pelo Senado, foi a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 98/2015 da Comissão Especial da Reforma Política. A PEC 98/2015 reserva uma cota mínima de vagas para cada gênero na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, na Câmara do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais. Esse percentual mínimo de representação seria crescente em três legislaturas subsequentes: 10% na primeira, 12% na segunda e 16% na terceira67. A Reforma Política pautada pela Bancada Feminina no Congresso tem sido num sentido ainda mais inclusivo na forma de fazer política. Essa composição pluripartidária de mulheres defende reserva de vagas na Câmara dos Deputados, no Senado Federal, nas Assembleias Estaduais, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais, começando com 30% e elevando-se gradualmente até que a plena equidade seja alcançada (50%). Acreditam também ser necessário um financiamento democrático de campanha com reserva de 30% dos recursos do Fundo Partidário para financiar candidaturas femininas e a previsão legal de punição para os partidos que não cumprirem as leis quanto a cotas de gênero.
4.3 A Crise da Democracia Representativa e a Problemática da Eficácia das Cotas Dentre as muitas questões apresentadas atualmente na esfera pública e nas ciências políticas, a crise da democracia é um dos temas, senão o principal, que mais gera discussão. Antes de se falar nesse conflito, precisa-se conceituar primeiramente a democracia representativa, já que esta é a forma de governo adotada pelos países democráticos ocidentais na contemporaneidade. Na Teoria Política Moderna, com a ascensão do pensamento liberal, John Locke destacou-se por defender a democracia representativa e a definiu, caracterizando o Poder Legislativo, vinculada ao poder dos representantes eleitos pelo povo: Se o legislativo ou qualquer parte dele compõe-se de representantes escolhidos pelo povo para esse período, os quais voltam depois para o
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estado ordinário de súditos e só podendo tomar parte no legislativo mediante nova escolha, este poder de escolher também será exercido pelo povo (BOBBIO, 1927).
Em contraposição a essa ideia de representação político-parlamentar, ainda no mesmo período, Rousseau é apresentado por Pateman como o teórico por excelência da participação política, além de afirmar a autora que “A compreensão da natureza do sistema político que ele descreve em O contrato social é vital para a teoria da democracia participativa” (PATEMAN, 1992). Nesta reconhecida obra, na qual Rousseau descreve o contrato social, pode-se depreender uma democracia participativa no trecho em que afirma: “As leis não são propriamente senão as condições de associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o autor das mesmas; compete unicamente aos que se associam regulamentar as condições de sociedade” (ROSSEAU, 2016). Rousseau, em sua obra, não descarta a existência de um legislador que detenha o poder, mas o difere da soberania, a qual deve reinar pela vontade geral: Digo, pois, que outra coisa não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o poder, não porém a vontade (ROSSEAU, 2016).
Após discriminar o que são a democracia representativa e a democracia participativa, pode-se então analisar as dificuldades que hoje se apresentam e que caracterizam a crise de representação política vivida pelos países ocidentais. Um fato que se transformou em fator da crise democrática representativa é a configuração das maiorias sociais como minorias políticas. A ausência de mulheres – colocada como uma minoria política no Brasil, como já demonstrado – nos cargos políticos é um desses casos. Representantes majoritariamente homens fazem política para seus supostos “representados” sem possuírem consciência das condições sociais que os caracterizam; no caso da mulher, sem observarem a violência de gênero sofrida diariamente por ela na sociedade patriarcal. A democracia representativa vive uma falta de política de presença nos espaços públicos de decisão. Nesse sentido John Burnheim, professor na Universidade de Sydney, sugere que os interesses são mais bem protegidos quando os representantes compartilham a mesma experiência e condições sociais de 62
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seus representados (BURNHEIM, 1985). Carole Pateman faz a crítica de que a democracia liberal ignora todas as identidades e diferenças e sugere indivíduos neutros, como cidadãos e cidadãs “abstratos”. Outro fator que precisa também ser levantado como gerador da crise é a questão dos grupos de pressão. O ideal do princípio de “identidade” na política da representação prega que sempre a vontade e os interesse dos governados irá coincidir com a vontade e os interesses dos seus representados. Afirma Bonavides que este princípio: [...] foi instrumentalizado – aqui com máxima eficácia – para colher vivos e sem deformações os interesses prevalentes dos grupos que estão governando a chamada sociedade de massas e lhe negam a vocação democrática (BONAVIDES, 2000).
Nesse sentido, Hans J. Wolff fala ainda de uma independência depreciada do representante, que se torna progressivamente mais “comissário” e, por conseguinte, menos “representante”. Bonavides entende esses grupos “governantes” da sociedade de massas como grupos de pressão e, para além de uma linguagem que os diminua a grupos de interesse, os define pela ação de influência sobre o poder político para a aquisição de interesses através de medidas de governo. Sua forma de atuação se dá tanto de maneira direta como indireta e oculta, em momentos inclusive eleitorais, tendo consequências nas organizações partidárias, na opinião pública e nos órgãos do poder estatal. O poder desses grupos é tão intenso que Bourdeau afirma que esses se transformam em “o modo natural de expressão da vontade do povo real” (BONAVIDES, 2000). Os dois fatores pontuais apresentados aqui como geradores da crise da democracia representativa – falta de política de presença e manipulação por grupos de pressão – dialogam diretamente com a problemática da eficácia das ações afirmativas para as mulheres na política. Quando se luta pela garantia de assentos para mulheres na política, inevitavelmente entra-se em conflito com os ideais liberais, já que há um cerceamento da liberdade daqueles que votam. Porém, ao destinar uma cota para essa minoria, afirma-se que a diferença sexual é politicamente relevante e, ainda mais importante, que a democracia deve reconhecer grupos. Anne Phillips explica que mesmo acreditando numa sociedade ideal andrógina, assim como os libe-
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rais, em que não haja diferenciação entre homens e mulheres, entende que não se pode ignorar o cenário social de exclusão atual que torna essa tese incabível. [...] Mas uma coisa é desejar esse futuro e outra, muito distinta, apagar as diferenças. As estruturas políticas e econômicas das sociedades contemporâneas exibem alto grau de discriminação sexual e racial e, onde há grupos definíveis, há inevitavelmente interesses de grupo. Portanto um dos princípios que deve informar as práticas de uma democracia é que os representantes devem espelhar a composição sexual, racial e, onde for relevante, nacional, da sociedade como um todo, e de que devem existir mecanismos para alcançar esse efeito ((PHILIPS, 2013).
Philips ainda encaixa em seu texto a grande questão que fica esquecida quando a luta se restringe exclusivamente à pauta das ações afirmativas para as mulheres: as peculiaridades de outros grupos minoritários que estão abarcados pelo gênero feminino.
5. Considerações Finais Não há como o feminismo fazer o mesmo discurso homogeneizador que os liberais pregam dentro de sua teoria da democracia e se esquecer das composições de raça, de classe, de sexualidade que também compõe o grande grupo “mulheres”. Cada um desses grupos também deve conquistar relevância politicamente, já que mulheres em diferentes condições sociais trarão diferentes demandas políticas. Ademais dessa limitação apresentada em relação às ações afirmativas, não há como evitar a discussão da incapacidade da democracia representativa em fugir da influência dos grupos de pressão. Diante de toda essa problemática, buscar uma (re)politização da democracia participativa como horizonte político apresenta-se como a luta com maior potencialidade para garantir um processo de efetiva justiça social e igualdade material no espaço público na contemporaneidade. Da cidade à cidadania, são muitos os obstáculos que impedem o exercício dos direitos, com liberdade e igualdade, pelas mulheres. Tal desafio tem início com a percepção da estrutura liberal de separação das esferas pública e privada, que não pode ser considerada consequência natural das relações de poder que permeiam a sociedade. Fundamental que seja avaliada como construção social,
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realidade que deve ser objetivo de críticas e reflexões a fim de promover uma mudança satisfatória. Para além das limitações expostas quanto à eficácia das ações afirmativas, bem como a questão latente da crise da democracia representativa, não se ignora que para que o espaço público deixe de ser pensado sob o ponto de vista de homens, brancos, cis, é de suma importância que as mulheres ocupem os espaços de poder, como os cargos políticos.
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Violências Contra as Mulheres
Violência Contra as Mulheres: a Submissão do Gênero, do Corpo e de Alma Violence Against Women: the Submission of Gender, Body and Soul Marília Cassol Zanatta68 Valéria Magalhães Schneider69
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo abordar a violências contra as mulheres, partindo da violência de gênero e especificando sobre violência doméstica e a Lei Maria da Penha, violência sexual contra as mulheres e violência simbólica contra as mulheres. Pretende-se demonstrar como é necessária a revisão dos significados que compõem não só os atos sociais, mas também como o interpretamos e como observamos o direito referente a tais representações. Palavras-chave: Violência contra as mulheres; Violência simbólica; Violência sexual contra mulher; Violência doméstica. Abstract: This paper aims to study violence against women, starting with gender violence and specifying domestic violence and the Maria da Penha Law, sexual violence against women and symbolic violence against women. It is intended to demonstrate how it is necessary to review the meanings that compose not only the social acts, but also how we interpret it and how we observe the law according to this representations. Keywords: Violence against women; symbolic violence; sexual violence against women, domestic violence. 68 Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”. 69 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina; Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”.
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1. Introdução Faz-se necessário, de início, esclarecer determinados conceitos para se compreender a noção de violência. Para Marilena Chauí, a concepção de poder refere-se à capacidade coletiva para se decidir a respeito da existência pública de um referencial coletivo, na medida em que se imponha como justiça pela lei, sem coação, como um âmbito de criação de direitos. Em outras palavras, o poder não dispõe de seu significado pelas instituições em que se manifesta – as quais expressam interesses específicos – e sim mediante o reconhecimento de direitos sociais, políticos, culturais e econômicos, em que a justiça não é meramente formal e o direito não é puramente interesse. Quanto à ideia de força, Chauí alega ser a ausência de poder, imperando um desejo de opressão de uma categoria social por outra, característica que configura as diversas espécies de exploração. Já a noção de violência perpassa tais conceitos, identificando-se como uma realização específica e referente às relações de força, tanto no que tange às classes sociais quanto a questões interpessoais. É, assim, a incorporação da desigualdade por meio de uma relação hierárquica, inerentemente baseada em dois polos antagônicos e determinantes: de dominação e de submissão (CHAUÍ, 1985). Nas palavras da autora, a violência perfeita se configura quando se obtém [...] a interiorização da vontade e da ação alheia pela vontade e pela ação da parte dominada, de modo a fazer com que a perda da autonomia não seja percebida nem reconhecida, mas, submersa numa heteronímia que não se percebe como tal (CHAUÍ, 1983, p. 35).
Sob a mesma premissa, tem-se a ideia de Spinoza de que a liberdade se refere à capacidade de autodeterminação para pensar, sentir, agir e querer, e não a escolha voluntária dentre as possibilidades (ARAÚJO, 2002). Assim, se observada essa noção de liberdade, a violência é uma violação a esta, uma vez que silencia o outro e sua capacidade de escolher, tratando-o como coisa e maculando também os direitos humanos, o direito de cada sujeito e sua autonomia. Elimina-se o outro da relação, e tal exclusão pode ser a morte do corpo físico e/ou a morte psíquica, subjetiva do outro, em que a vítima
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desaparece como sujeito autônomo e livre. A violência é o ato que impõe o ser sujeito de alguém, ao invés de ser (FELIPE, 2002).
2. Violência de Gênero Consideradas tais acepções, denota-se que a mulher se encontra muito mais suscetível à violência, observando-se que a violência de gênero se caracteriza quando executada contra a vítima por conta da sua identidade de gênero – mulher –, sem distinção de raça, classe social, religião, idade ou qualquer outra condição. Rachel Soihet explicita as formas de violência específicas da condição feminina: O desconhecimento do corpo, a ignorância sobre sua sexualidade, a exigência da virgindade como símbolo de honra eram algumas das mazelas impostas à mulher, impedida não só de usufruir do prazer, como de obstar a possibilidade de um filho não desejado, mergulhando tantas mulheres no desespero, no crime, na loucura, na prostituição. A imposição da maternidade, considerada ‘natural’ ao sexo feminino, em termos de uma determinação biológica, se constitui numa violência imposta a este sexo e que coloca a mulher num impasse existencial. [...] As relações assimétricas próprias do relacionamento homem-mulher, presentes desde formas primárias do poder masculino, apoiadas nos estereótipos de ‘minoridade’ ética da mulher, identificáveis no controle da conduta da mulher nas relações dentro do casal, até formas mais agressivas de violação da integridade física se constituem, igualmente, em formas de violência.
Para Heleieth Saffioti, a violência de gênero se caracteriza como um conceito amplo, abarcando vítimas como mulheres, crianças e jovens de ambos os sexos. Desde modo, a utilização do termo “violência contra a mulher”, apesar de transcender a violência doméstica, não abarca a violência de gênero caracterizada nas relações com crianças e jovens, tampouco os atos exercidos por mulheres agressoras. Assim, configura-se um tipo específico de violência que busca a manutenção da organização social de gênero, baseada na hierarquia e desigualdade de posições sociais sexuais, e é criado no interior das relações de poder, visando ao controle de quem o detém em menor escala (SOHIET, 1989).
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Como manifestação do sistema patriarcal, os homens, detentores do poder de designar condutas como corretas ou não, contam com a permissão ou, ao menos, a tolerância social para penitenciar aquilo que lhes simboliza um erro, sobretudo mediante o emprego da violência. Não significa que é impossível que uma mulher se utilize da força contra o homem (marido/namorado/ companheiro), mas, além de isso não ocorrer com frequência, não é um ato sustentado pelo objetivo de uma categoria social manter sua dominação sobre a outra (SAFFIOTI, 2016). Ademais, a autora sinaliza que a mantença dessa ordem patriarcal não implica necessariamente o uso de força física, e que a dominação está sempre vinculada à exploração: são duas dimensões do mesmo processo e constituem, em si, uma violência. Ressalta-se que gênero implica a significação das relações de poder. Diante disso, dá-se a necessidade de uma educação de gênero pautada de forma alternativa, que se afaste dos princípios norteadores da matriz dominante. É importante sua releitura como um fenômeno extremamente determinante no que tange à opressão, e igualmente necessária uma análise de como determinadas concepções se interiorizam aquém da consciência (tópico abordado mediante as premissas de violência simbólica, em capítulo posterior) (SAFFIOTI, 2016). María Acale Sánchez elucida que, pela expressão violência de gênero, pode-se auferir uma classe de violência que afeta os distintos gêneros pelo próprio pertencimento a eles e pela função que cada um desempenha tradicionalmente. Ainda assim, é prioritariamente perpetrada contra o gênero feminino, uma forma de violência a que a mulher é submetida por sua própria condição de mulher e pelo papel social que tradicionalmente lhe foi determinado, e que não se limita ao contexto familiar (SANCHEZ, 2006). Azevedo e Guerra abordam a violência de gênero, de forma geral, como um fenômeno das relações interpessoais, como se fossem constituídas externamente à estrutura social, separando tais relações da divisão de classes. Entretanto, as relações sociais se estabelecem conforme normas que moldam a sociedade por inteiro, não podendo ser concebidas como alheias a essa contextualização (AZEVEDO; GUERRA, 2016). Ao se afastar da noção de gênero, tem-se um encobrimento da violência contra a mulher, sobretudo ao se situar como violação aos direitos humanos. Com a busca pela democracia brasileira e a criação de Delegacias de Mulheres, no começo dos anos 80, as mulheres começaram a debater temas como 76
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as relações de gênero e a sexualidade, e as denúncias de violência contra a mulher aumentaram – revelando a necessidade de sua abordagem mediante ações de políticas públicas. Nesse contexto, os Direitos Humanos começaram a abarcar a proteção às mulheres no fim do século XX, passando-se também a entender a violência de gênero como uma das formas de sua violação. No Brasil, foram ratificadas Convenções Internacionais que lidam com o tema em comento, como a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (TELES; MELO, 2002). Na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, ratificada pelo Brasil em 1984, a discriminação contra a mulher foi definida como: Toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Ademais, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, organizada pela ONU em 1993, os direitos humanos das mulheres e das meninas foram expressamente dispostos como parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais. Assim, a violência de gênero foi explicitada, no art. 18 de sua Declaração, como incompatível com a dignidade e o valor da pessoa humana, sendo definida como qualquer ato violento baseado no gênero que resulte em, ou é passível de resultar em, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, incluindo a ameaça de tais atos, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada. Já a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994), ratificada pelo Brasil em 1995, prescreve, em seu art. 6º, que o direito de toda mulher a viver livre de violência inclui o direito de ser livre de toda forma de discriminação. Ademais, a Convenção conceitua violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no 77
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privado” (art. 1º). Ainda esclarece que esta violência pode ocorrer “dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; “(art. 2º, a), bem como ser exercida na comunidade e por qualquer pessoa” (art. 2º, b) e “perpetrada ou tolerada pelo Estado e seus agentes, onde quer que ocorra” (art. 2º, c). O relatório da IV Conferência Mundial da Mulher, da ONU, Beijing, China, de 1995, também aduz que a violência contra a mulher representa um impedimento para que se atinjam objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz, bem como viola os direitos humanos e as liberdades fundamentais. A Plataforma de Ação de Beijing estipulou que os direitos humanos da mulher incluem “o seu direito a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e decidir livremente com respeito a estas questões, livres de coerção, discriminação e violência”. A referida Plataforma também recomendou aos governos assegurar a eficácia das leis concernentes à violência contra a mulher, promover a conscientização sobre o tema e garantir o trabalho justo às vítimas. Portanto, conclui-se que a violência de gênero perpassa a violência intrafamiliar, doméstica, física, psicológica, moral, sexual, econômica, patrimonial e institucional. Cabe enfatizar que o limiar entre as formas de violência é muito tênue, considerando-se também que, não raras vezes, os atos de agressão não se dão de maneira isolada, tampouco deixam de repercutir em outros âmbitos diversos daqueles inicialmente violados. O conceito de gênero demonstra que os papéis designados às mulheres e aos homens, sedimentados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e pela dominação masculina, levam a relações violentas entre os sexos. Ou seja, o emprego da violência nesse caso provém de um processo histórico de estereotipagem dos indivíduos e de suas categorias sociais. Em termos numéricos, desde a sua criação em 2005 até meados de 2015, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 registrou 4.488.644 atendimentos. Somente no primeiro semestre de 2015, foram efetuados 364.627 atendimentos (média de 60.771 atendimentos/mês e 2.025/dia). Dos atendimentos realizados em 2015, 34,46% corresponderam à prestação de informações (principalmente sobre a Lei Maria da Penha); 10,12% foram encaminhamentos para serviços especializados; 45,93% concernem a encaminhamentos para outros 78
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serviços de teleatendimento (telefonia), tais como: 190 da Policia Militar, 197 da Polícia Civil e Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos; e 8,84 % foram relatos de violência contra a mulher. Além disso, do total de 32.248 relatos de violência contra a mulher, 51,16% foram relatos de violência física; 30,92% de violência psicológica; 7,13% de violência moral; 1,95% de violência patrimonial e 4,06% de violência sexual (4,06%), além de 4,23% de cárcere privado e menos de 1% de tráfico de pessoas. Registre-se, ainda, que em 70,71% dos casos as violências foram cometidas por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados ou amantes das vítimas. Cerca de 25% dos relatos referiram familiares, amigos, vizinhos, conhecidos como autores/as da violência70. Por conseguinte, conclui-se que a violência de gênero, que tem no elemento cultural seu grande baluarte, como forma de produção e de reprodução de violações contra as mulheres, é proveniente da objetificação da mulher como propriedade de um homem, restringindo sua independência ao limitar sua autonomia e liberdade. Assim, a violência contra as mulheres não é só uma manifestação da desigualdade sexual, e sim um instrumento para a manutenção dessa assimetria. Feitas tais considerações, é necessário esclarecer determinados mecanismos relacionados aos tipos de violência contra as mulheres e aos discursos de violência naturalizada.
3. Violência Doméstica e a Lei Maria da Penha Maria da Penha, mulher símbolo da luta contra a violência doméstica, teve uma história não muito diferente de grande parte das mulheres do mundo. Biofarmacêutica, era casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros, o qual tentou matá-la duas vezes em 1983. Na primeira vez, Maria levou um tiro nas costas enquanto dormia, deixando-a paraplégica; na segunda tentativa, que aconteceu apenas alguns meses depois, foi empurrada da cadeira de rodas para ser eletrocutada no chuveiro. Talvez uma das poucas diferenças dela para as demais mulheres vítimas diariamente de agressões no Brasil, seja o fato de que Maria da Penha sobrevi70 Cf. Balanço da Central de Violência, disponível . Último acesso em: 21 de nov. 2016.
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veu e lutou por mais de 20 anos pela punição de seu agressor. A justiça brasileira deixou o caso sem solução por muito tempo e sem qualquer justificativa para a demora do julgamento. Então, com a ajuda de ONGs, Maria conseguiu levar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), a qual, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica. No processo da OEA, o Brasil restou condenado por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recebendo a recomendação de criar uma legislação adequada a esse tipo de violência. Daí nasceu a Lei n. 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes. Essa Lei é reconhecida pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres71. Conforme dispõe seu artigo 1º, o objetivo de tal diploma consiste em criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher em acordo com os tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, observando-se que a conceituação de violência doméstica se refere a qualquer ação ou omissão capaz de prejudicar o bem-estar, integridade física, psicológica, bem como a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um membro da família. Essa violência pode ser cometida dentro ou fora de casa, por qualquer integrante da família que esteja em relação de poder com a vítima, compreendendo, inclusive, as pessoas que estejam exercendo as funções de pais, embora não possuam laços de sangue (DAY; TELLES; ZORATTO, 2003). A violência doméstica contra a mulher se diferencia das demais, pois é considerada “violência de gênero”, ou seja, a conduta não é motivada apenar por questões pessoais, e sim como forma de expressão da hierarquização estruturada em posições de dominação do homem e subordinação da mulher (KARAM, 2016). Apesar de associarmos violência doméstica à violência física, vale ressaltar que ela abrange muitos outros tipos de violência. A Lei 11.340/06 as classifica em cinco tipos: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A violência física é a mais fácil de ser identificada, ocorre quando existe qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher, ou seja, quando uma pessoa causa ou tenta causar dano não acidental, por meio do 71 Cf. . Último acesso em: 14 de julho de 2016.
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uso da força física ou de algum tipo de arma que pode, ou não, provocar lesões externas, internas ou ambas. É, inclusive, exemplo de violência física o dano à integridade corporal decorrente de negligência. A violência psicológica é bem explicada pelo art. 7º, inciso II, da Lei 11.340/2006: Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Os insultos, chantagens, isolamento dos amigos e familiares, ridicularização, ameaça, manipulação afetiva, são alguns dos exemplos de violência psicológica. Ao contrário, portanto, do que parece, a violência psicológica é muito mais comum, e talvez, até mais perigosa. Isso porque ela ocorre, muitas vezes, de forma discreta, sem que a vítima perceba, sendo aceita, na maioria dos casos, como algo normal, o que dificulta o seu combate. Quanto à violência sexual, ela é compreendida pelos atos ou tentativas de relação sexual por meio de coação ou uso de força física. Por outro lado, a violência patrimonial se caracteriza pela existência de condutas que configurem retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, bem como direitos ou recursos econômicos, como explica o art. 7º, inciso IV, da Lei 11.340/2006. Por fim, a violência moral ocorre quando existe alguma conduta envolvendo calúnia, difamação ou injúria. Com relação aos dados estatísticos nacionais acerca do assunto, apesar de esse ser um fenômeno antigo e relativamente comum, os primeiros registros foram feitos no final do século XX, e já nesse período, do total de casos de violência doméstica, 63% tinham como vítimas as mulheres. Há dados que demonstram que, ainda hoje, cerca de 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas a essa violência (SOARES, 2016). Outros dados demonstram que uma a cada 81
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cinco brasileiras declara espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência doméstica por parte de algum homem; um terço das mulheres admite que já foi vítima, em algum momento, de violência física; 27% já sofreram violências psicológicas; 11% garantem já ter sofrido assédio sexual72. A importância da Lei Maria da Penha no combate à violência doméstica contra a mulher é extremamente significativa, porquanto trouxe repercussão e visibilidade a um assunto por muito tempo negligenciado, silenciado e naturalizado. Entretanto, é questionável se o uso do direito penal se mostra adequado na busca de uma mudança de comportamento social, bem como no empoderamento feminino. Além do fato de criar, pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, uma lei com mecanismos que visam coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tantas outras são as inovações trazidas por ela. A primeira de todas consiste na questão da competência para julgar os crimes de violência doméstica. Antes da sua promulgação, cabia aos Juizados Especiais Criminais julgar os casos de violência doméstica, uma vez que eram considerados de menor potencial ofensivo. Muitas eram as críticas73 a esse modelo, por acreditar, sobretudo, que não era dado o tratamento adequado ao problema, resultando, quase sempre, na impunidade do agressor, ou num arquivamento massivo dos processos. Após a promulgação da lei, a competência passa a ser dos juizados especializados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Ainda, outra crítica ao julgamento no juizado especial é que as penas privativas de liberdades podiam ser substituídas por restritivas de direito, como, por exemplo, multa e doação de cestas básicas, o que agora não acontece mais, uma vez que é vedada tal substituição.
72 Cf. . Último acesso em: 14 de julho de 2016. 73 Com o juizado especial criminal, o Estado sai cada vez mais das relações sociais. No fundo, institucionalizou a “surra doméstica” com a transformação do delito de lesões corporais de ação pública incondicionada para ação pública condicionada. Mais do que isso, a nova Lei dos Juizados permite, agora, o “duelo nos limites das lesões”, eis que não interfere na contenda entre as pessoas, desde que os ferimentos não ultrapassem as lesões leves (que, como se sabe, pelas exigências do art. 129 e seus parágrafos, podem não ser tão leves assim). O Estado assiste de camarote e diz: batam-se, que eu não tenho nada com isso. É o neoliberalismo no Direito, agravando a própria crise da denominada “teoria do bem jurídico”, própria do modelo liberal individualista de Direito. (STRECK, Lênio Luiz. In: CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.)
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Outras mudanças advindas com a nova lei estão relacionadas com: a possibilidade de detenção do suspeito - hoje existe a possibilidade de decretação de prisão preventiva ou flagrante do agressor, devendo ser analisada com base nos riscos que a mulher corre; a desistência da denúncia, que só pode ocorrer perante o juiz, não mais na delegacia; as medidas de urgência, uma vez que pode o juiz decidir pelo afastamento do agressor da casa da vítima, bem como proibir de manter contato com ela e seus familiares; as medidas assistenciais - com o intuito de diminuir a dependência das vítimas de seus agressores, pode o juiz determinar a inclusão da mulher em programas de assistência governamental, além de obrigar o agressor à prestação de alimentos. As medidas de urgência, assistenciais e a possibilidade de prisão preventiva ou em flagrante são, provavelmente, as mudanças mais importantes. Isso porque além de a dificuldade da denúncia estar relacionada com o envolvimento afetivo existente entre vítima e agressor, também há uma grande contribuição para o silêncio da vítima o medo e a dependência financeira da mulher para com o seu agressor.
4. Violência Sexual Contra as Mulheres Especificamente quanto à violência sexual, esta se revela como um ato de abuso de poder e desejo de dominação, e não simplesmente um ato sexual74. Nesse sentido: Constatamos que ou a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de poder e ira. O estupro, então, é um ato pseudo-sexual, um padrão de comportamento sexual que se ocupa muito mais com o status, agressão, controle e domínio do que com o prazer sexual ou a satisfação sexual. Ele é comportamento sexual a serviços de necessidades não sexuais (KOLODNY; JOHNSON, 2016). 74 “Numa cultura onde o fato de pertencer ao sexo masculino significa ter liberdade para construir sua identidade com base na diminuição ou na exclusão das mulheres do espaço de poder, o estupro passa a ser um ato de confirmação e de afirmação do poder máximo do homem sobre a mulher. Ele expressa a mentalidade do macho primitivo que experimenta, através do seu corpo e no corpo da mulher, por um momento, o poder de ser homem, de estabelecer impérios, de penetrar pela força, de empregá-la sem restrições.” FELIPE, Sônia T. Violência e representação (quando a arma é o pênis): um estudo do caso do filme “Acusados”. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 15, n. 21, 1997, p. 120.
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A violência sexual se caracteriza por uma ação que obriga o indivíduo a manter contato sexual (seja físico ou verbal), ou a participar de outras relações sexuais com uso da força, intimidações, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou qualquer outro meio que invalide ou limite a vontade pessoal. Também se considera violência sexual o fato de o agressor obrigar a vítima a realizar um/alguns desses atos com terceiros. Sob outro olhar caracterizando o estupro, Vigarello (1998, p. 50) relata de modo esclarecedor: O estupro provoca uma lesão ao mesmo tempo semelhante e diferente das outras. Semelhante porque é o efeito da brutalidade. Diferente porque é muitas vezes pouco consciente no agressor, apagada pela efemeridade do desejo, ao passo que intensifica a vergonha na vítima, a idéia de uma contaminação pelo contato: a indignidade atravessando a pessoa atingida para transformá-la aos olhos dos outros. Daí a sensação de aviltamento criando obstáculos à queixa, inclinando a vítima a se calar e os observadores a acusá-la. Situação muito especial, em que a violência pode se tornar menos visível, empurrada para segundo plano, mascarada pela rejeição de que a vítima é objeto; situação aguçada ao extremo [..] por um conjunto de referências culturais, morais e sociais, transformadas em feixe de efeitos convergentes. Como o crime era antes de tudo blasfêmia e pecado, tinha consequências particulares sobre a vítima do estupro: aquela que fazia os gestos reprovados, mesmo contra sua vontade, podia ser implícita e silenciosamente condenada por esse próprio fato. Daí a especificidade muito nítida da violência sexual, acentuando a relativa tolerância a seu respeito: a vítima temia falar, o juiz temia inocentá-la. Isso equivale a dizer que a principal característica desses estupros [...] é a ausência frequente da ideia de violência por parte do agressor, o que os diferencia dos outros atos brutais. A visão do prazer apaga a agressividade, impondo o desejo como uma evidência à qual a vítima é confusamente associada.
É nesse contexto que se insere a concepção de cultura do estupro, a qual consiste nas “maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens”75. Trata-se de jus-
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tificar, com base em critérios morais determinados socialmente às mulheres76, a conduta violenta de quem as agride, afastando o reconhecimento dessa violência como tal e o inerente caráter de perversidade, de crime, de violação de direitos, de desumanização que a caracteriza. O engendramento dessa cultura se perpetua em processos de socialização cotidianos, mormente na justificação fundada na omissão diante dessa violência, na culpabilização da vítima, na reiteração da inferioridade feminina e na concepção de que o estuprador é apenas o desconhecido, o “outro”, o “louco”. É a repetição dos papeis de gênero, da desnecessidade do consentimento feminino para práticas sexuais voltadas para a satisfação de mera lascívia masculina – enquanto, na verdade, violência sexual é sobre relações assimétricas de poder77 e de objetificação, e não de desejo. É o conjunto do controle exercido pelo sistema de justiça criminal e por outros âmbitos, como escola, família, mídia, instituições religiosas e ordenamentos jurídicos a respeito de ensinamentos sobre a exigência de recato, cuidado e submissão femininos, opostos ao exercício de sua liberdade sexual e seus direitos reprodutivos. É, primordialmente, sobre a invisibilidade e condição secundária da mulher como sujeito de direitos e de autonomia. Nesse sentido, o Direito corrobora e normatiza a formulação e a continuidade desse processo de violência de gênero, em sua forma nítida e/ou simbóli-
76 “Uma certeza tradicional vem confirmar essa análise da aparência dos gestos realizados: a suposta ausência, na mulher, de um comportamento responsável, uma dúvida sobre suas decisões pessoais e privadas. Devemos dizer que a história do estupro se encontra aqui com a história das representações da consciência, e também com a das representações da feminilidade. Outro conjunto de razões leva, assim, a mascarar a violência sexual: as diversas maneiras de recusar à mulher um status de sujeito.” VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 43. 77 “Constatamos que ou a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de poder e ira. O estupro, então, é um ato pseudo-sexual, um padrão de comportamento sexual que se ocupa muito mais com o status, agressão, controle e domínio do que com o prazer sexual ou a satisfação sexual. Ele é comportamento sexual a serviços de necessidades não sexuais.” KOLODNY, Robert. C.; MASTERS, William H.; JOHNSON, Virginia E. Manual de medicina sexual. Tradução por Nelson Gomes de Oliveira. 1982. In: ANDRADE, Vera. Regina. Pereira. A soberania patriarcal. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 12, n. 48, p. 260-290, maio/jun. 2004.
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ca78 mediante leis79, tratamento judicial e institucional às mulheres vítimas de violência e discursos doutrinários. Para o Direito, a insurgência da concepção de gênero representou uma forma inédita de romper com a invisibilidade da mulher nos estudos e na construção dos saberes, uma vez que, até então, praticamente a totalidade destes se desenvolveu sob a perspectiva masculina e colocando-a como universal, como único ponto de referência. Assim, passou-se a problematizar as relações existentes entre criminalidade, sistema de justiça criminal e mulher/feminino, bem como a se questionar como os marcos teóricos das ciências sociais mantinham as desigualdades entre homens e mulheres disfarçadas sob uma aparente neutralidade (BARATTA, 1999). Nesse norte, o tema em comento passou a ser disciplinado de forma minimamente significativa no ordenamento brasileiro a partir das Ordenações Filipinas, em que se tutelava a honra da mulher virgem ou da viúva honesta, inexistindo os termos “estupro”, “violência sexual” ou qualquer outro vocábulo que lhe fizesse as vezes. Posteriormente, o Código Imperial de 183080 passou a reger os crimes “contra a segurança e a honra”, observando a adequação da mulher aos bons costumes e colocando-a como único sujeito passivo desses delitos. Referia-se a uma proteção à castidade e à expectativa de matrimônio, em que o casamento do agressor com a vítima constituía causa de extinção da culpabilidade (FERRAZ, 2013). Já o Código de 1890 trouxe a primeira previsão de homens e mulheres como possíveis sujeitos passivos dos crimes sexuais, apesar do ainda distinto 78 Cf. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 79 Conforme Michel Foucault, a sociedade é que determina, devido aos seus próprios interesses, o que deve ser criminalizado, utilizando-se a lei de linguagem própria, mediante um discurso e uma concepção de justiça pertencentes a uma determinada classe. Para o autor, a lei é moldada para todos em nome de todos, e “é prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a outros; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem que sanciona outra”, observando que a lei e a justiça não deixam de revelar a assimetria de classes. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões. Tradução por Ligia Pondé Vassalo. 8. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. p. 243. 80 Este incluía o Capítulo II nomeado “Dos Crimes Contra a Segurança da Honra”. A título exemplificativo, cita-se a redação do art. 222: “Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças com qualquer mulher honesta”, observando-se que no art. 219 constava a vedação do ato de “deflorar mulher virgem, menor de 17 anos”.
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tratamento entre mulheres “honestas” e mulheres “públicas” e do crime de adultério como possível conduta apenas feminina. Nas palavras de Hungria, a mulher honesta era (...) não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico penal) a mulher francamente desregrada, aquela que, inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda que não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interêsse ou mera depravação (cum vel sine pecunia accepta). Não perde a qualidade de honesta nem mesmo a amásia, a concubina, a adúltera, a atriz de cabaré, desde que não se despeça dos banais preconceitos ou elementares reservas de pudor (HUNGRIA, 1956).
Assim, o julgamento e a determinação punitiva estiveram sempre vinculados a características subjetivas da mulher como vítima, e analisavam seu comportamento moral-sexual pregresso. A lei estipulava punição ao agente do crime, mas não se poderia considerar eficaz no que tange ao reconhecimento dos direitos da mulher. Em 1940, foi promulgado o Código Penal vigente, o qual contemplava originalmente o Título VI – “Dos Crimes Contra os Costumes81” e o Capítulo I – “Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual”, em que se tipificou o crime de estupro, com a manutenção da concepção de mulher honesta.82 Já em 2001, a Lei n. 10.224 tipificou o delito de assédio sexual e realizou significativas alterações na compilação penal brasileira, podendo-se citar entre 81 Sobre o Título “Dos Crimes contra os Costumes”, Cezar Roberto Bitencourt considera que já era considerado ultrapassado mesmo quando da ocasião da promulgação do Código de 1940, porquanto não detinha equivalência em relação aos bens jurídicos que buscava proteger, transgredindo a concepção de que os vocábulos utilizados deveriam representar os bens tutelados ao identificar a imposição de um padrão mediano no que se refere à ética, ao moralismo sexual e ao aprisionamento da sexualidade feminina. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 6. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13. 82 Na exposição de motivos do Código de 1940, formulada por Francisco Campos, ele afirmou “Já foi dito, com acerto, que ‘nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais.” Disponível em: . Último acesso em: 21 de nov. 2016.
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elas que: eliminou o termo “mulher honesta”; descriminalizou determinadas condutas (como os delitos de adultério e de sedução); suprimiu o Capítulo III (que abarcava os crimes de rapto); retirou a extinção de punibilidade em caso de matrimônio entre a ofendida e o agressor; modificou o crime de atentado violento ao pudor mediante fraude, o qual passou a admitir qualquer indivíduo como sujeito passivo e/ou ativo. Por muito tempo, foi considerada aceitável a prática do estupro marital83, e a Lei n. 11.106/05 conferiu, então, nova redação ao art. 226, II, ao acrescentar o cônjuge como um dos agentes que ensejam aumento de pena no crime em comento. Posteriormente, a hipótese também foi tutelada pela Lei n. 11.340/06. A Lei n. 12.015/09 consignou o estupro como crime hediondo, alterou o nome do capítulo referente “aos costumes” por “dignidade sexual”, bem como reuniu o crime de atentado violento ao pudor e estupro em um único tipo penal, inserindo a concepção de estupro de vulnerável. Houve uma ampliação quanto à tipificação de condutas do estupro, abrangendo práticas relacionadas ao sexo oral e anal, além da já incluída conjunção carnal – ou seja, o crime passou a abarcar a realização de qualquer ato libidinoso, inclusive a penetração por meio de objetos (GRECO, RASSI, 2011). A Lei 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha, estipulou, em seu art. 7º, III, a violência sexual contra a mulher como (...) qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Passou-se, então, ao novo paradigma de que a tutela penal deveria ter como objeto a liberdade e autodeterminação sexual do indivíduo, criminalizando condutas praticadas sem o consentimento de uma das partes e com danos 83 Para Nelson Hungria, por exemplo, não havia ilicitude em tal ato, uma vez que pertencia ao exercício regular de um direito, proveniente de compromissos matrimoniais (dever de coabitação- art. 1.566, inciso II, do Código Civil), e, portanto, só haveria estupro fora do casamento. Disponível em: HUNGRIA, Nelson. In: MIRABETE, Julio Fabbrini e Renato N. Fabbrini. Manual de Direito Penal. 27ª ed. Parte Especial. Vol. II. São Paulo. Editora Atlas, 2010, p. 387.
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a esta, e não mediante designação de atos considerados moralmente contra o bem-estar social. Foi-se moldando a nova concepção de violência sexual no direito penal brasileiro, influenciada fortemente pelas novas conquistas femininas, reestruturação dos papéis sociais, inserção da mulher no mercado de trabalho e pela própria revolução sexual, ocorrida com a criação e a popularização dos métodos contraceptivos – os quais alteraram as relações sexuais no sentido de dissociá-las da função reprodutiva, possibilitando maior liberdade à mulher. Consolidou-se, no texto legal, a liberdade sexual como bem jurídico protegido, o direito ao corpo como parte do exercício da privacidade e o reconhecimento da sexualidade como um âmbito de compreensão e realização pessoal. Entretanto, realizando uma análise acerca do funcionamento do sistema de justiça criminal referente à violência sexual contra a mulher, Vera Andrade concluiu que este é ineficaz quanto à proteção das mulheres contra a violência, sobretudo porque não cumpre sua função preventiva (não impede novas violências) e não se atenta aos interesses da vítima, tampouco colabora para elucidar as questões de gênero e o entendimento da própria violência sexual sofrida. Ademais, duplica a violência exercida contra a mulher, uma vez que acarreta sua vitimização e se constitui como um subsistema de controle social e de violência institucional, marcado pela seletividade de homens e mulheres. Assim, acaba por denotar e reproduzir a violência e a desigualdade características das relações sociais e de gênero, porquanto recompõe as figuras estereotipadas vinculadas a essas relações (ANDRADE, 2004). Desse modo, a palavra da vítima é desvalorizada, tratada com desconfiança e, quando considerada, passa por um determinado direcionamento, mediante perguntas que induzem respostas específicas. A violência psicológica que lhe é exercida juntamente com a agressão física é relativizada, menosprezada, tornando seus traumas e seu sofrimento invisíveis aos olhos da justiça criminal e desencorajando a vítima a realizar uma denúncia contra seu agressor. Não há uma incriminação igualitária de condutas, distribuindo-se seletiva e desigualmente tanto a estigmatização de criminoso quanto a de vítima - nesta se encontra a figura da mulher promíscua, de moral duvidosa, enquanto a imagem daquele representa um homem “anormal”. Diante de todas essas assertivas, torna-se ainda mais evidente a necessidade de repensar o ensino e a atividade jurídicos sob uma perspectiva de gênero, que contemple a noção das possíveis decorrências físicas, sociais e psicológicas 89
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da agressão sofrida84, bem como de humanizar o atendimento à vítima de violência, mormente porque esta “[...] ao pedir ajuda, seja no âmbito da justiça ou da saúde, muitas vezes está sujeita a ser submetida a outra violência: a do preconceito, do julgamento e da intolerância” (FERRAZ, 2013, p. 272). Por ser a violência de gênero um modo de afirmar o poder e o controle sobre as mulheres, lembra-se que, “[...] lá onde há poder, há resistência, [...] as relações de poder não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência; elas (as resistências) são o outro termo das relações de poder“ (FOUCAULT, 1988, p. 921).
5. Violência Simbólica Contra as Mulheres Bakhtin (2016) nos alerta que a enunciação detém natureza social e não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, as quais se vinculam às estruturas sociais: Se a fala é o motor das transformações linguísticas, ela não concerne os indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde se confrontam aos valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema: comunidade semiótica e classe social não se recobrem. A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder.85
Assim, o autor afirma que a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado ao longo de suas relações sociais, en-
84 Conforme tutelado pela Lei 12.845/13. 85 Bakhtin também dispõe que “um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas,ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. [...] No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação, do símbolo religioso, da fórmula científica e da forma jurídica, etc. Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira.”
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quanto a palavra é neutra em relação a uma função ideológica específica, servindo como instrumento fundamental para diversas criações. Dentre tais significações, os elementos culturais contemplam necessariamente a questão da linguagem e da disposição de signos, e podem propagar tanto ideias de uma violência naturalizada quanto premissas de liberdade feminina e equidade, criando e reproduzindo, em processos concomitantes, as estruturas sociais. A concepção de violência simbólica, fortemente traçada por Pierre de Bourdieu, retoma o processo histórico da dominação masculina sob o viés dos modos de manutenção dessa opressão e da forma com que se incorporam determinadas premissas como se fossem naturais e imutáveis, mediante esquemas inconscientes de percepção e apreciação. Para o autor, os indivíduos estão incluídos no próprio objeto que tentam apreender, internalizando as estruturas históricas da ordem masculina por meio de concepções que são elas próprias produto dessa ordem de supremacia do homem, incluindo o fato de que “os teoremas simbólicos se distinguem conforme seu âmbito de produção e de recepção, caracterizando-se como meios distintos de legitimar outras formas de poder” (BOURDIEU, 1989, P, 14-15). Assim, para Bourdieu, esses sistemas de pensamento, ação e percepção expõem o homem e a mulher de forma caracterizadora e dicotômica e corroboram a naturalização de diferenças, fazendo com que a ordem de relações sociais dominantes pareça independente de relações de força e opressão. Ou seja, consagra-se a ordem já estabelecida mediante a disseminação de princípios pré-existentes, e a divisão socialmente construída entre os sexos parece consistir em uma ordem natural das coisas, presente nos habitus dos indivíduos e adquirindo legitimação. Desse modo, a ordem masculina se revela diante do fato de que prescinde de justificação, impondo-se como neutra sem dispor de discursos legitimadores (BOURDIEU, 2010). Destarte, a construção social da sexualidade explicita e confirma simbolicamente a conversão de determinadas propriedades naturais, tornando a arbitrariedade das relações sociais em necessidade da natureza – “lógica da consagração simbólica”. Apesar da concepção de que a definição social do corpo e dos órgãos sexuais resulta de uma construção social banalizada, o mecanismo de naturalização da opressão não se encontra exatamente nas diferenças, e sim nas percepções realizadas sobre elas conforme os sistemas práticos da visão 91
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androcêntrica. Isso implica uma organização social segundo os gêneros e associações a eles, vinculando ao homem o símbolo da virilidade e à mulher a ideia de passivo e secundário. Existe, então, uma construção arbitrária do biológico e das funções e simbolismos dos corpos, concedendo aparentemente um fundamento natural à dominação masculina, aos preceitos de sexualidade e à divisão do trabalho.86 A violência simbólica se configura, desse modo, como: [...] violência suave, insensível, invisível as suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento, ou em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um principio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado, de uma prioridade distintiva, emblema ou estigma, dos quais o mais eficiente simbolicamente é essa propriedade corporal inteiramente arbitrária (BOURDIEU, 2010).
Mariza Correa (2016) critica essa universalização da supremacia masculina concebida por Bourdieu, sob o fundamento de que o autor ignorou diversos trabalhos feministas realizados em contraposição a essa hegemonia. Tal posicionamento é corroborado por Arlette Farge, citada por Rachel Soihet.87 Não se desconsidera a crítica às excludentes disposições tidas como universais acerca do processo de inferiorização da mulher. Atenta-se, ainda, que as opressões atingem as mulheres de formas distintas. sendo necessário discuti-las de forma interseccional, sob os diversos prismas de classe, poder econômico, escolarização, etnia, profissionalização etc. Contudo, é importante registrar que a violência contra a mulher se torna senso comum, uma vez que se constitui no sentido das práticas, bem como implica que os atos de conhecimento consistam, muitas vezes, em atos de reconhecimento, de adesão à própria violência simbó86 Bourdieu apresenta o conceito de habitus como a inclusão de conhecimentos pelo indivíduo, denotando as manifestações culturais e as representações cotidianas que se formam e tomam significações ao longo da vida. Inserem-se nesse processo as relações no seio familiar, profissional, religioso, cultural, laboral, etc., as quais determinaram a transformação ou a manutenção de estruturas sociais. 87 Cf. SOIHET. Rachel. Gênero e Ciências Humanas: desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. In: AGUIAR, Neuma (org.). Rosa dos Tempos, 1997, p. 100.
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lica: as mulheres foram definidas conforme o interesse masculino e mediante o peso determinante de bens simbólicos, passando a servir como um objeto de troca, refletindo os poderes e direitos duradouros exercidos sobre elas88.
6. Considerações Finais Feitas todas estas considerações, é nítido que o Direito se encontra vinculado – e vinculante – em relação a tais conjunturas, podendo refutá-las, reforçá-las ou se manter inerte a elas. Bourdieu destaca que o Direito consagra a ordem estabelecida, colocando-se como uma densificação do poder simbólico de nomeação e “a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este” (BOURDIEU, 1989, p. 237). Nas palavras de Eugen Ehrlich, citado pelo referido autor, “o centro da gravidade do desenvolvimento do direito [...] não deve ser procurado nem na legislação, nem na doutrina, nem na jurisprudência, mas sim na sociedade ela própria” (BOURDIEU, 1989, p. 237)”. Nessa seara, o Direito, como ponte entre o presente e o passado, refletirá uma imagem anacrônica se não repensados seus fundamentos conforme rupturas paradigmáticas sociais – incluindo uma releitura da violência contra a mulher a partir da ótica de seus direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, cuja possibilidade de efetivação se vê a partir da abertura à desconstrução de signos tão naturalizados.
88 “[...] através da experiência de uma ordem social, ‘sexualmente’ ordenada e das chamadas à ordem explícitas que lhes são dirigidas por seus pais, seus professores e seus colegas, e dotadas de princípios de visão que elas próprias adquiriram em experiências de mundo semelhantes, as meninas incorporam, sob forma de esquemas de percepção e de avaliação dificilmente acessíveis à consciência, os princípios da visão dominante que as levam a achar normal, ou mesmo natural, a ordem social tal como é e a prever, de certo modo, o próprio destino, recusando as posições ou as carreiras de que estão sistematicamente excluídas e encaminhando-se para as que lhes são sistematicamente destinadas. A constância dos habitus que daí resulta é, assim, um dos fatores mais importantes da relativa constância da estrutura da divisão sexual de trabalho: pelo fato de serem estes princípios transmitidos, essencialmente, corpo a corpo, aquém da consciência e do discurso, eles escapam, em grande parte, às tomadas de controle consciente e, simultaneamente, às transformações ou às correções (como o comprovam as defasagens, não raro observadas, entre as declarações e as práticas [...]); além disso, sendo objetivamente orquestrados, eles se confirmam e se reforçam mutuamente.” BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina, p. 52-53.
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Permite-se, assim, que a distância entre linguagens distintas diminua: a capacidade de dizer o Direito, de conferir lugar de fala a seus agentes, de interpretá-lo e de ressignificá-lo é o que pode humanizá-lo, considerando que “somos um diálogo e podemos ouvir uns dos outros”89.
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89 Do poema “A festa da paz”, de Friedrich Hölderlin.
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O Papel da Mulher no Direito das Famílias Brasileiro: da Fraqueza do Entender à Igualdade perante a Lei?90 The Role of Women in Brazilian Family Law: from Weakness of Understanding to Equality under the Law? Amanda Muniz Oliveira91
RESUMO: O presente ensaio procura resgatar o papel do Direito brasileiro na imposição e naturalização da ideia da mulher como indivíduo submisso, a partir de dispositivos legais presentes no ordenamento nacional que contribuem para essa disparidade entre homens e mulheres, especificamente no direito de família. Para tanto, utilizar-se-ão as Ordenações Filipinas, a Consolidação das Leis Civis, o Código de 1916, a Constituição de 1988 e o Código de 2002, no intuito de apresentar um panorama geral sobre o papel da mulher definido em âmbito familiar pelo Direito. PALAVRAS-CHAVE: Direito de família, mulher, feminismo.
1. Introdução A desigualdade no trato de homens e mulheres é uma questão antiga. Enquanto o filho varão era ensinado a comandar e a cortejar, as donzelas apren-
90 Texto originalmente publicado na Revista Jurídica – Mestrado, do Centro Universitário de Maringá, sob o título A família de ontem, a família de hoje: considerações sobre o papel da mulher no direito de família brasileiro e em coautoria com o Mestre e Doutorando em História, Rodolpho Bastos. A presente versão encontra-se com algumas modificações, mais voltadas às questões jurídicas. 91 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Mestra em Direito pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI/UFSC. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Direito das Mulheres. Bolsista CAPES.
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diam a não levantar a voz contra pais e maridos e a manter sua virgindade intacta até a celebração do casamento. No ocidente, a família - assunto da moral, dos bons costumes e da religião judaico-cristã - deveria ser estritamente monogâmica, apesar de ser comum os maridos se deleitarem nos braços de cortesãs sem grandes preocupações. Já as esposas, deviam se portar com respeito e decência, sendo o adultério feminino em alguns sistemas jurídicos, um crime cuja pena poderia ser a morte pelas mãos do Estado ou pelas mãos do esposo. Todavia, esta configuração patriarcal familiar não é natural. As configurações da família oriental, ou mesmo das famílias formadas em tribos aborígenes diferem sobremaneira deste padrão ocidental eurocêntrico, o que nos fornece indícios não de uma organização familiar, mas de múltiplos tipos de famílias92. Neste sentido, pode-se observar que diversos elementos contribuíram para o enraizamento de um padrão familiar tido como absoluto e correto, como por exemplo os dogmas religiosos, que apresentam papéis bem definidos sobre o que é ser homem/marido, ou mulher/esposa. Assim, também os reis e os Estados auxiliaram na manutenção destes deveres masculinos e femininos, especialmente a partir do Direito: nas leis, podemos encontrar prescrições sobre direitos, deveres e crimes, inclusive no que se refere a organização familiar, quase sempre desfavorecendo a mulher. Desta forma, o presente ensaio procura identificar, no Direito brasileiro, as normas que teriam contribuído para a diferença de tratamentos entre homens e mulheres, especialmente no que se refere ao Direito de família. Tais leis podem ser compreendidas tanto como um aparato coercitivo, quanto um discurso representativo, no sentido de que se inserem em determinados espaços temporais, refletindo práticas e ideologias inerentes de cada época e sociedade. Verificamos, portanto, os dispositivos relativos à família nas primeiras legislações brasileiras, a saber: Ordenações Filipinas, Consolidação das Leis Civis e Código Civil de 1916, no objetivo de perceber como se dava essa intervenção, especialmente no que se refere à condição feminina. Por fim, foram apresentados os dispositivos relacionados à família atualmente vigentes no Brasil, como
92 Para mais informações checar ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; e TORRES, Anália Maria Cardoso. Relatório da Unidade Curricular: Sociologia da Família Teorias e Debates. Lisboa, 2010. Disponível em: < http://migre.me/uxx7r>. Acesso em 1º ago. 2016.
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a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002, apontando permanências e rupturas instauradas. Importante destacar que o objetivo deste ensaio não é oferecer uma análise completa e detalhada de todos os documentos legais supracitados, mas de apresentar exemplos das práticas discursivas presentes no Direito em relação à condição da mulher dentro do núcleo familiar.
2. A “Fraqueza de Entender” das Mulheres: as Ordenações Filipinas e a Consolidação das Leis Civis A família hoje é regulamentada pelo Direito brasileiro principalmente pelo Direito Civil, que trata, em geral, das relações entre indivíduos: contratos, vendas, sucessões, dentre outros. As primeiras leis a disporem sobre a família no Brasil são as Ordenações Filipinas, que atracaram em solo nacional junto aos portugueses no período colonial. De acordo com Flávia Vieira e Edvania Silva: O Estado Português, desde muito cedo, já demonstrava preocupação na codificação de suas leis. Por isso, desde o século XV, as leis do reino passaram a ser reunidas em um diploma normativo, dando origem ao que denominavam de Ordenações. Tais códigos levavam o nome do monarca que exercia o poder à época de sua publicação (VIEIRA; SILVA, 2015, p. 05-06).
Conforme Ruy Rosado, tais ordenações irão vigorar até 1916, pois: Logo após a Independência, a Lei de 20 de outubro de 1823 determinou vigorassem no Império do Brasil as Ordenações Filipinas, as Leis e Decretos de Portugal promulgados até 25 de abril de 1821, enquanto se não publicasse um novo Código. A Constituição de 1824 reconheceu a necessidade de se organizar, o quanto antes, um Código Civil e um Criminal, fundado nas sólidas bases da Justiça e da Eqüidade. Em 1830 e 1850 foram promulgados os Códigos Criminal e Comercial, respectivamente. Para a legislação civil, entretanto, adotou-se o critério de aperfeiçoá-la em duas fases: na primeira, seria feito o levantamento e a consolidação de toda a legislação vigente até ali (“formar um novo corpo, mas de direito já vigente”); na segunda, com o auxílio do que fora feito, tratar-se-ia
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de elaborar o texto do novo Código Civil (“formar um corpo novo de direito novo”) (ROSADO, 2003, p. 04).
Desta forma, em 1858 a Consolidação das Leis Civis, ou seja, a reorganização das Ordenações Filipinas realizada pelo jurista Teixeira de Freitas, será aprovada pelo Imperador, de forma que novas leis civis apenas entrarão em vigor em 1916, com o Código Civil de Clóvis Bevilaqua, que, por sua vez, foi revogado pelo Código Civil de 2002. Neste primeiro momento, serão analisadas às legislações mais antigas, deixando o Código mais recente para o próximo tópico. No que se refere às Ordenações Filipinas, estas eram divididas em cinco volumes: I) Direito Administrativo e Organização Judiciária; (II) Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; (III) Processo Civil; (IV) Direito Civil e Direito Comercial; (V) Direito Penal e Processo Penal. Em relação ao casamento até 1890, havia atos próprios que eram de responsabilidade das legislações eclesiásticas, pois somente a partir da Constituição de 1891 houve a separação entre Estado e Igreja, de forma que o instituto passa a ser assunto estatal (AMARAL, 2011, p. 08). Porém, nos vários livros das Ordenações Filipinas foi possível encontrar diversos dispositivos relacionados aos direitos e deveres esperados das esposas e maridos. No Livro II, Título 37, por exemplo, dispõe-se que mulher com renda superior a cinquenta mil reis precisava pedir autorização do rei para se casar, sob pena de perder seus bens. Mais significativos para o presente ensaio, entretanto, são os Livros IV e V. O primeiro dispõe uma série de regras relativas aos bens do casal, como por exemplo o Título 46 que estabelece o regime universal de bens como padrão93, válido apenas para indivíduos casados, e o Título 61 elenca uma curiosa regra que se refere ao Direito Velleano: uma norma que desobriga as mulheres a atuarem como fiadoras, em razão de fraqueza do entender. Observa-se aqui a proteção jurídica à família constituída sobre as regras do casamento religioso, pois a divisão universal de bens só seria presumida quando os indivíduos fossem casados. Uniões informais, os chamados concubinatos hoje conhecidos como uniões estáveis, encontravam-se desprotegidas desta proteção jurídica, o que sugere uma clara tentativa de instituir o casamento religioso como regra, em contraposição às uniões informais. Neste mesmo sentido, le93 Este regime poderia ser alterado conforme a vontade dos cônjuges.
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O Papel da Mulher no Direito das Famílias Brasileiro: da Fraqueza do Entender à Igualdade perante a Lei?
vando em consideração que o homem seria o grande proprietário, dono e herdeiro de patrimônios, as mulheres concubinas tendiam a ser mais atingidas por esta norma, pois não seriam sucessoras legítimas de seus concubinos. No que se refere à questão da fiança, infere-se uma tentativa jurídica de “proteger” a mulher, já que, conforme o pensamento representado na norma, ela teria menor capacidade de entendimento, podendo ser facilmente ludibriada para contrair dívidas de terceiros. Sobre a sucessão, o Livro IV, Título 95, dispõe que falecido o marido, a mulher ficaria “em posse do cabeça de casal”, sendo sua herdeira meeira para que se realize a partilha. Interessante destacar que a cabeça de casal é a pessoa responsável pela administração da herança e a quem os herdeiros vêm pedir partilha, de forma que a lei estabelece este papel a mulher como uma última alternativa. A nota de rodapé número dois encontrada na 14º edição das Ordenações Filipinas parece corroborar essa interpretação: Sobre não ser a da mulher uma posse verdadeira, nem em vida nem por morte do marido, não adoptamos a doutrina da sua nota na parte [...] em que das palavras – o marido por morte da mulher continua a posse velha, diferentes das que emprega com referência a mulher – fica em posse e cabeça de casal – infere que ela não tem posse enquanto vive o marido (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1870, p. 949).
Há nesta norma, portanto, uma explícita indicação de que a cabeça do casal só passa para a mulher em ocasião de sua morte, ou seja, trata-se de momento excepcional; na ausência do homem, não há a quem recorrer e por isso chama-se a mulher. Em relação às viúvas, o Livro IV, Título 108, há um dispositivo que as impede de usufruir livremente de sua posse, caso seja provado em juízo que gasta seus bens de forma indevida. Nestes casos, os bens da viúva são entregues a um administrador que irá gerir as finanças e controlar seus investimentos. Conforme Amaral: “Vê-se que, pelas Ordenações, a justificativa para tal atitude era ‘a fraqueza do entender das mulheres’. Havia quase o estabelecimento de uma consequência lógica de que mulheres viúvas seriam pródigas. Em relação ao homem, contudo, não havia previsão semelhante” (AMARAL, 2011, p. 09). Assim a lei já presume que a mulher viúva é mais suscetível de gastar desordenadamente sua herança, pois a mulher possuiria certa fraqueza
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do entender – justificativa utilizada também para retirar da mulher a condição de fiadora, conforme explicado anteriormente. De maneira geral, o discurso patrimonialista presente nas Ordenações Filipinas pode ser resumido da seguinte maneira: as referências encontradas sobre o casamento são em sua maior parte destinadas à proteção deste contrato, sendo esta a natureza preponderante atribuída ao casamento no período estudado. É que no código sob análise as questões vinculadas ao matrimônio giravam em torno, principalmente, da regulamentação dos bens e das obrigações entre os cônjuges, como a doação de bens feita pelo marido sem outorga da mulher e da proteção dos bens do casal, sobretudo nos casos envolvendo adultério (VIEIRA; SILVA, 2015, p. 07-08).
Já no Livro V, que trata das questões criminais, encontram-se punições severas no que se refere à sacralidade da família. Conforme a historiadora Helen Pimentel, o adultério é tratado em detalhes na legislação, sendo destrinchado em diversas modalidades (PIMENTEL, 2012. p. 76.). O Título 25, por exemplo, estabelece pena de morte para o homem que se envolver com mulher casada e, também, para a esposa adúltera; a pena é modificada, porém, caso o amante possua melhor condição financeira que o marido traído. Quando o homem é o adúltero, entretanto, a situação se modifica drasticamente, pois o Título 28 estabelece penas pecuniárias e exílio: “Enquanto a desonra de um marido é punida com a morte do amante e da esposa, o adultério de um homem casado nem recebe essa denominação” (PIMENTEL, 2012, p. 77). De fato, o crime é listado como Dos Barregueiros Casados e de suas Barregãs. O crime de bigamia, contrair matrimônio mais de uma vez, é encontrado do Livro V, Título 19, sua punição é a morte, tanto para homens quanto para mulheres. As penas não seriam aplicadas nas seguintes situações: “se o condenado for menor de 25 anos; se o condenado for fidalgo e casar com mulher de baixa condição e se a primeira mulher for fugida e não se souber se está viva ou não.” (VIEIRA; SILVA, 2015, p. 10). Observe-se que caso o bígamo se case com mulher de condição financeira inferior à sua em razão de desaparecimento de sua esposa, não enfrentará a pena. O mesmo não vale para senhoras fidalgas que se casem em razão do desaparecimento do esposo, demonstrando um tratamento diferenciado para homens e mulheres na mesmíssima situação. 106
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Outro dos crimes elencados no Livro V, Título 22 é o de casamento sem o consentimento dos tutores (pai, mãe, avô, senhor) da noiva virgem ou viúva com idade de até 25 anos. A pena é o exílio e a perda da fazenda; tal pena não será aplicada, porém, caso o noivo seja pessoa conhecida e o casamento seja mais vantajoso para a noiva que qualquer outro estipulado pelos tutores. Interessante destacar que o consentimento da noiva pouco importa; o que vale é ora a permissão dos seus responsáveis, ora o lucro financeiro. Com a Proclamação da Independência do Brasil em 1822, a situação jurídica da mulher no direito de família pouco se modifica. Neste mesmo ano foi promulgada a lei de 20 de outubro de 1823 que determinou que continuassem em vigor as Ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos reis de Portugal até 25 de abril de 1821,“enquanto se não organizar um novo código ou não forem especialmente alteradas”. Já a Constituição do Império, promulgada em 1824, determinou em seu art. 179, n. XVIII a “necessidade de se organizar, quanto antes, um código civil e um criminal, fundado em sólidas bases de Justiça e Equidade”. O fato é que esse dispositivo da Constituição foi cumprido apenas parcialmente: o código criminal é promulgado em 1830 e o código comercial, em 1850. Já o código civil deveria esperar o ano de 1916, já em pleno século XX e em plena República (o regime imperial brasileiro teve fim em 1889), de modo que a intenção daquela lei de 1823 (o que equivale a dizer: a vigência provisória das ordenações e da legislação portuguesa) acabou por se realizar somente 1916, ao menos se tomada a legislação civil de um modo global (FONSECA, 2006, p. 65).
Desta forma, em razão das diversas leis esparsas, da aplicação de jurisprudências e costumes, o imperador solicitou ao jurista Teixeira de Freitas que realizasse a Consolidação das Leis Civis, que entrou em vigor no ano de 1858. A Consolidação de Teixeira de Freitas possui uma parte geral, referente às pessoas e às coisas e, duas partes especiais: uma referente aos direitos pessoais, direito de família e obrigações e, outro sobre direito reais e sucessões. Saliente-se que a Consolidação não se trata de uma inovação propriamente dita, mas de um agrupamento do direito vigente à época, de maneira mais sistemática. Na Consolidação, é possível encontrar diversos exemplos da condição feminina no Direito e de seu tratamento diferenciado em relação aos homens.
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Inicialmente, no que se refere à capacidade para os atos da vida civil94, a Consolidação estabelece em seu artigo 8º que a maioridade se dá aos vinte e um anos, excetuando-se os chamados filhos famílias (aqueles que ainda dependem financeiramente dos pais) – sem distinção de sexo. Todavia, existia uma diferença sutil, perceptível quando do casamento: enquanto o homem, ao se casar, libertava-se da esfera de poder paterna e passava a ser “a cabeça” do casal, a mulher tornava-se juridicamente submissa ao marido, pois era ele quem detinha o poder decisório na esfera familiar (FONSECA, 2006, p. 03). Trata-se não de uma imposição legal, mas de uma construção doutrinária, chamada de poder marital e, por sua vez, embasada nos costumes. O jurista Loureiro afirma: Como, porém, a boa ordem exige imperiosamente que haja um chefe nesta sociedade, e não pode ser senão um dos dois; e como, por outra parte, a mesma natureza indica ser o homem, por ser o mais inteligente, o mais experimentado, o mais ágil em todos os negócios da vida, e ao mesmo tempo o mais forte; com razão e justiça devem competir a este alguns direitos especiais, os quais constituem o poder marital (FONSECA, 2006, p. 04).
O próprio Teixeira de Freitas, autor da Consolidação, seria contrário ao instituto, como ele próprio escreve: “Nada mais repugnante à verdade, que – essa imaginada deslocação de direitos, de que formou-se o poder marital, e resulta a incapacidade da mulher; - esse acusado roubo de faculdades, - a suposta incapacidade por criação da lei sem defeito natural da mulher!!!” (FONSECA, 2006, p. 05). Outro ponto que merece destaque no âmbito da Consolidação, refere-se à permissão para o casamento. De acordo com os artigos 101, 102 e 103, os filhos menores e as filhas que se casassem sem a permissão de seus responsáveis, estariam sujeitos a pena de deserdação e perca do direito de pedir alimentos. Essas penas aplicavam-se aos homens, independentemente da idade e às mulheres que se casassem sem autorização até os 21 anos. Caso a mulher ainda dependesse de sustento dos responsáveis, mas se casasse após os 21 anos sem autorização deles, não seria punida. Este dispositivo resguarda, na verdade, um pensamento conservador:
94 Assinar documentos, realizar compras e vendas e fechar negócios, por exemplo.
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Se a aplicação de pena para as mulheres se limitava à idade máxima de vinte e um anos é porque, nessa idade, a filha já deveria ter cumprido o seu papel social: o de se casar. Por maior que fosse a contrariedade do pai, em alguns casos, seria mais benéfico resignar-se com o casamento realizado a contragosto do que correr o risco de ter uma filha solteira em idade não muito atrativa para o matrimônio (FONSECA, 2006, p. 06).
Existe outro tratamento desigual que legitimava e normalizava a diferenciação entre homens e mulheres a partir do instrumento jurídico, que é a questão da deserdação dos filhos. A Consolidação, em seu Artigo 1.016, §8º, elenca a perca da virgindade como um motivo legítimo de exclusão da filha da linha sucessória; sobre os filhos, nada é mencionado. Assim: Pode-se notar a importância social que era dada ao matrimônio e à virgindade da mulher. Os matrimônios das mulheres eram, em grande parte, arranjados por seus pais, devido a interesses políticos, econômicos e sociais. Logo, era uma afronta muita grande desobedecer ao destino traçado pelo pai e se casar com pessoa que ele não aprovava. Já a virgindade dizia respeito à honra da mulher e à boa imagem de sua própria família. Em relação a esse assunto, Trigo de Loureiro, em sua obra, acrescenta, em nota, que “a severidade desta pena já não se compadece com a doçura dos costumes do nosso tempo.” (LOUREIRO, 2004: 319). Ou seja, o jurista destaca o desuso e injustiça dessa norma (FONSECA, 2006, p. 06).
Com estes exemplos, é possível vislumbrar o tratamento do Direito no que se refere aos papéis femininos, especialmente no âmbito da família. Mesmo que as Constituições de 1824 (Artigo 179, XII) e de 1891 (Artigo 72, §2º) estabeleçam a igualdade jurídica de todos perante a lei, a virgindade, a fidelidade, a subserviência ao pai e ao marido, e a naturalização de uma suposta fraqueza de entender, são elementos que irão normatizar a conduta feminina desta época. O início do século XX, porém, não trará tantas inovações, conforme veremos no próximo tópico.
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3. A Mulher Como Incapaz: o Código Civil de 1916 Apesar da desigualdade jurídica presente nas legislações pregressas ao século XX, melhor sorte não encontrarão as mulheres brasileiras quando da sanção do Código Civil de 1916, escrito pelo jurista Clóvis Beviláqua: o primeiro Código Civil brasileiro aprovado em 1916 instituiu o modelo oficial de família e, dentro dela, os modelos também de marido e de esposa com obrigações mútuas, mas em espaços distintos e hierarquicamente separados, conforme observou Elizandra Klem Coutinho. Esse aparato legislativo foi fortemente inspirado pela filosofia positivista de Augusto Comte que sustentava as idéias sobre o progresso da humanidade pela aplicação de princípios racionais e científicos. [...] As mulheres, nesta corrente de pensamento, eram consideradas guardiãs da moral da família, responsáveis pela manutenção da ordem da casa, pela educação da prole, além de servirem de musas inspiradoras para o marido e os filhos. Regina Caleiro argumenta que os positivistas republicanos pleiteavam “a complementaridade biológica, mental e social entre homens e mulheres, mas apesar de companheiras, as mulheres não eram iguais aos homens”. Neste sentido, o código civil de 1916 só foi aprovado depois de terem sido retiradas as “disposições liberais” como aquelas que ampliavam os direitos das mulheres dentro da família e o divórcio. Ele não só legislou o status, mas funcionou no sentido de manter a desigualdade e a hierarquia (MAIA, 2016, p. 94-95).
A partir da leitura do Código de 1916, essa observação se confirma. Tem-se, assim, no Art. 6º, II, que as mulheres casadas são relativamente incapazes para alguns atos da vida civil, necessitando da anuência do marido. Beviláqua apresenta suas justificativas: Não é a inferioridade mental a base da restricção imposta à capacidade da mulher, na vida conjugal, é a diversidade das funções que os consortes são chamados a exercer (...). Em tudo aquillo que exigir mais larga e mais intensa manifestação de energia intellectual, moral e physica, o homem será mais apto do que a mulher; mas em tudo aquillo em que se exigir dedicação, persistência, desenvolvimento emocional delicado, o homem não se pode equiparar à sua companheira. (Grifos na citação original) (MAIA, 2016, p. 100).
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Observam-se, nesse trecho, ecos de um pensamento essencialista, que crê piamente que o fato de um ser nascer com determinada genitália o tornará dotado de características particulares: o homem possui mais aptidão intelectual, moral e física; a mulher é naturalmente [sic] dedicada, persistente, emocional e delicada. Logo se percebe que o autor do Código de 1916 era um homem de seu tempo, etnia e classe social. O Artigo 219, IV, por sua vez, considera a ausência de virgindade por parte da noiva como motivo para anulação do casamento; e o Artigo 233 estabelece que o marido é o chefe da sociedade conjugal, cabendo-lhe decidir ou não sobre a possibilidade da esposa trabalhar fora de casa; dentre muitos outros dispositivos que reforçam a desigualdade de gênero no interior da família. Sobre essas atribuições jurídicas, a historiadora Cláudia Maia comenta O primeiro Código Civil brasileiro regulamentou os direitos civis, dentre eles, o casamento e o desquite. Como uma lei, mas, também e, principalmente, como uma prática discursiva, ele criou e assegurou os direitos dentro da sociedade conjugal. Dessa forma, embora historicamente as mulheres tenham ocupado lugar de destaque na família, constituindo-se, em muitos casos, em suas mantenedoras, o código civil, baseado na idéia de prestações e contraprestações mútuas, legitimou a divisão sexual entre trabalho produtivo e reprodutivo e tornou as mulheres casadas incapazes e dependentes. Assim, o código não proibia diretamente o trabalho remunerado das mulheres, mas criava um instrumento jurídico de controle da autonomia delas durante o casamento e após o desquite, já que caberia ao marido autorizar ou proibir a esposa a seguir uma carreira profissional. Além disso, o marido era oficialmente o chefe da sociedade conjugal, cabia a ele a representação legal da família, determinar onde iam morar, e, como detentor do ‘pátrio poder’ e do “poder marital” podia dispor dos bens tanto do casal como da esposa e, em caso de herança, era, freqüentemente, ele quem recebia como “cabeça do casal” (MAIA, 2016, p. 95).
Observe-se que a manutenção da ideia do homem como cabeça do casal, presente desde as Ordenações Filipinas, mantem-se no Código Civil de 1916. O Artigo 251 trará três situações nas quais a chefia da família incumbirá a esposa: quando o marido estiver desaparecido; estiver preso há mais de dois anos ou quando for judicialmente interditado para os atos da vida civil. Tratam-se casos
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atípicos, exceções nas quais não há outra maneira a não ser incumbir à mulher desta posição tradicionalmente masculina. No que se refere ao fim da sociedade conjugal, verifica-se que a redação original do Código regulamentava o desquite como forma de dissolução do casamento. Este, regulamentado pelos Artigos 315 e seguintes, só poderia ser realizado com base em adultério, tentativa de morte, injúria grave, abandono do lar por dois anos seguidos ou por mútuo consentimento de cônjuges casados pelo mesmo período. Importante ressaltar que o adultério deixa de ser motivo caso o cônjuge traído tenha contribuído para a sua ocorrência, ou caso perdoe o traidor: esse perdão era presumido nos casos em que se sabia da traição, mas ainda se coabitava com o traidor. Merece destaque, ainda, a questão da culpa como condição primordial para a ação de desquite: A culpa-condição para ajuizamento da ação de separação litigiosa. A culpa que, caso ausente da inicial de ação de separação, poderia gerar uma decisão preliminar, de extinção do processo por carência de ação, usando a linguagem do nosso Código de Processo Civil. Isso quer dizer que, se o cônjuge ajuíza a ação de separação sem acusar o outro de culpado pela separação e sem pedir que o outro seja julgado culpado pela separação, seu processo nem poderia seguir adiante, pois ausente uma condição para separar-se – a culpa do outro, que denominamos culpa conjugal. Nossa legislação familial exigia essa busca da culpa como condição da ação de separação, [...] no Código Civil (1916), artigo 317 (PIZETTA, 2002, p. 176).
Neste sentido, uma espécie de pensão alimentícia só era devida às mulheres inocentes e pobres, além do que a mulher condenada perderia o direito de utilizar o nome do marido. Além disso, os desquitados não poderiam contrair novo matrimônio com terceiros, dado o entendimento herdado da tradição romana de que o matrimônio seria indissolúvel. A necessidade de se comprovar a culpa para que haja a dissolução do casamento irá perdurar no Código Civil de 2002, já que a lei estabelecia a separação como requisito para o divórcio, e para se obter a separação o Artigo 1.572 afirmava ser necessário “propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum”. A situação só se modificará em 2010, com a Emenda Constitucional nº 66, que extinguirá
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o instituto da separação, podendo qualquer dos cônjuges exigir diretamente o divórcio, nem necessidade de separação e, portanto, de culpa. Diversas mudanças jurídicas no que se refere ao papel da mulher no direito de família começaram a ocorrer a partir da década de 196095, no Brasil. Tem-se a Lei 6.121 de 1962, conhecida como o Estatuto da Mulher Casada: O primeiro grande marco para romper a hegemonia masculina foi em 1962, quando da edição da Lei 6.121. O chamado Estatuto da Mulher Casada, devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal. Mesmo tendo sido deixado para a mulher a guarda dos filhos menores, sua posição ainda era subalterna. Foi dispensada a necessidade da autorização marital para o trabalho e instituído o que se chamou de bens reservados, que se constituía do patrimônio adquirido pela esposa com o produto de seu trabalho. Esses bens não respondiam pelas dívidas do marido, ainda que presumivelmente contraídas em benefício da família (DIAS, 2015).
É importante atentar para as permanências de certos papéis, não modificados pela legislação: Continuaram, porém, as desigualdades, dentre elas, a permanência do homem como chefe da família e detentor do pátrio poder, agora “com a colaboração da mulher”, e o direito de fixar o domicílio da família (embora fosse permitido à esposa recorrerão judiciário, caso o domicílio fixado lhe fosse prejudicial). Também continuou sendo obrigatório o uso do patronímico do marido e a permanência de direitos diferenciados que mantinham a hierarquia (MAIA, 2007, p. 284).
Já em 1977 seria aprovada a Lei 6515/1977, conhecida como Lei do Divórcio, que possibilitaria a dissolução do matrimônio em solo brasileiro: O passo seguinte, e muito significativo, foi a Lei do Divórcio, aprovada em 1977. Para isso foi necessária a alteração da própria Constituição Federal, afastando o quorum de dois terços dos votos para emendar a 95 Talvez frutos dos movimentos de contracultura e contestação da supremacia masculina, que emergiam com a segunda onda do movimento feminista: “As pressões feministas, sobretudo a partir dos anos de 1960, tornaram o casamento mais igualitário e ele foi perdendo sua força de controle. Nesse sentido, duas leis foram importantes: o Estatuto da Mulher Casada, lei 4.121, aprovado em 1962 e a lei 6.515 de 1977 que instituiu o divórcio.” (MAIA, 2007, p. 283).
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Constituição. Passou a ser exigida somente maioria simples e não mais maioria qualificada. Só assim foi possível aprovar a Emenda Constitucional nº 9 que introduziu a dissolubilidade do vínculo matrimonial. A nova lei, ao invés de regular o divórcio, limitou-se a substituir a palavra “desquite” pela expressão “separação judicial”, mantendo as mesmas exigências e limitações à sua concessão. Trouxe, no entanto, alguns avanços em relação à mulher. Tornou facultativa a adoção do patronímico do marido. Em nome da equidade estendeu ao marido o direito de pedir alimentos, que antes só eram assegurados à mulher “honesta e pobre”. Outra alteração significativa foi a mudança do regime legal de bens. No silêncio dos nubentes ao invés da comunhão universal, passou a vigorar o regime da comunhão parcial de bens (DIAS, 2015, p. 02).
As mudanças mais significativas no que se refere ao direito das mulheres no direito de família, porém, só virão em 1988, com a promulgação da Constituição Federal: Três eixos nortearam uma grande reviravolta nos aspectos jurídicos da família. Ainda que o princípio da igualdade já viesse consagrado desde a Constituição Federal de 1937, além da igualdade de todos perante a lei (art. 5ª), pela primeira vez foi enfatizada a igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações (inc. I do art. 5º). De forma até repetitiva é afirmado que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (§ 5º do art. 226). Mas a Constituição foi além. Já no preâmbulo assegura o direito à igualdade e estabelece como objetivo fundamental do Esta do promover o bem de todos, sem preconceito de sexo (inc. IV do art. 2º). A isonomia também foi imposta entre os filhos, eis proibida quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, todos têm os mesmos direitos e qualificações (§ 6º do art. 227). O próprio conceito de família recebeu da Constituição tratamento igualitário. Foi reconhecida como entidade familiar não só a família constituída pelo casamento. Foram albergadas nesse conceito a união estável entre o homem e a mulher e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226). Mesmo após a implantação da nova ordem constitucional, estabelecendo a plena igualdade entre homens e mulheres, filhos e entidades familiares, injustificadamente o legislador sequer adequou os dispositivos da legislação infraconstitucional não recepcionados pelo novo sistema jurídico. Mesmo tendo se trans114
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formado em normas sem qualquer eficácia, eis que apartadas da diretriz da Lei Maior, continuavam no ordenamento jurídico como letra morta (DIAS, 2015, p. 02).
Dentre os dispositivos ainda presentes no Código Civil de 1916, embora revogados, pois em discordância com a nova ordem constitucional, estava o relativo ao defloramento como motivo de anulação do casamento e, a família constituída por matrimônio como o modelo legítimo. É apenas com o advento do Código Civil de 2002 que estes dispositivos serão extirpados do direito brasileiro, criando, juridicamente, um cenário menos repressivo no que se refere ao papel da mulher na família, conforme será abordado no próximo tópico.
4. Igualdade perante a Lei?: a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002 O Código Civil de 2002 consolidou importantes avanços no que se refere à mulher dentro do direito civil e ao direito de família: a capacidade relativa, a necessidade de autorização para trabalhar fora de casa e a submissão à figura do marido são alguns dos dilemas superados, e tais disposições existem hoje como lembranças históricas da tradição machista que permeia o Direito. Especificamente no que se refere ao Direito de Família, ou melhor das famílias, tem-se por exemplo uma gama de princípios norteadores para a aplicação da norma: a dignidade, a igualdade, a proibição do retrocesso social, dentre outros (DIAS, 2015, p. 43); mas o princípio da interpretação conforme a Constituição como um dos principais, uma vez que preceitua que o Código Civil deve sempre ser interpretado à luz das normas constitucionais (DIAS, 2015, p. 39). Neste sentido, A chamada Constituição Cidadã patrocinou a maior reforma já ocorrida no direito das famílias. Três eixos nortearam uma grande reviravolta. [...]. Já no preâmbulo [a Constituição] assegura o direito à igualdade e estabelece como objetivo fundamental do Estado promover o bem de todos, sem preconceito de sexo (CF 3.º IV). Além da igualdade de todos perante a lei (CF 5.º), pela primeira vez é enfatizada a igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações (CF 5.º I). De forma até repetitiva, afirma que os direitos e deveres referentes à sociedade
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conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (CF 226 §5º). Também foi imposta a isonomia entre os filhos, ao ser proibida qualquer designação discriminatória relativa à filiação. Havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, todos têm os mesmos direitos e qualificações (CF 227 §6º). O próprio conceito de família recebeu tratamento abrangente e igualitário (CF226). Foi reconhecida como entidade familiar não só a família constituída pelo casamento. Neste conceito estão albergadas tanto a união estável entre o homem e a mulher como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (DIAS, 2015, p. 103).
Todavia, tanto o Código Civil quanto a Constituição Federal não estão imunes a críticas, especialmente no que se refere ao tratamento jurídico da mulher no direito e na família. Existe uma série de dispositivos que ainda compartilham, mesmo que de forma sutil, de uma visão estigmatizada da mulher (DIAS, 2015, p. 104-106). É o caso, por exemplo, do Artigo 1.600 e 1.602 do Código, segundo o qual em casos de adultério mesmo a confissão da mulher não afasta a presunção da paternidade; trata-se de uma forma de desprestigiar a palavra da mulher (DIAS, 2015, p. 104). Outro exemplo seria o Artigo 1.736, I, que estabelece que a mulher casada possa recusar agir como tutora, sem que haja equivalente para o homem casado: “Essa prerrogativa traz o ranço do regime de submissão, que condicionava a vontade da mulher à vênia do marido, tanto que o simples fato de ela ser casada a autoriza a declinar do encargo” (DIAS, 2015, p. 105). Dois pontos mais complexos merecem ainda ser mencionados. O primeiro trata da impossibilidade jurídica de escolha do regime de bens para maiores de 70 anos, uma vez que o Artigo 1.671, II, estabelece compulsoriamente o regime de separação universal, nesses casos. Para Maria Berenice Dias: Nada justifica a mantença dessa capitis deminutio, que gera presunção de incapacidade, sem atentar para o fato de que vem aumentando a longevidade e a qualidade de vida das pessoas. A regra denota preconceito contra a chamada “melhor idade”, o que é vedado pelo Estatuto do Idoso. A limitação, exclusivamente para a escolha do regime de bens, é desarrazoada, não se conseguindo identificar quem a lei pretende preservar. Ora, se visa a proteger o idoso, protege o homem, pois é ele que, com 70 anos de idade, tem muito mais chance de casar do que uma
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mulher sexagenária. Assim, se a lei protege o noivo idoso, desprotege sua “jovem” pretendente (DIAS, 2015, p. 105).
Importante destacar, porém que a regra vale para ambos os sexos, pois há sim certa igualdade. Um tratamento jurídico baseado na equidade, que levasse em consideração as práticas sociais, poderia ter tratado do assunto de forma mais sensível, posto que nesses casos os viúvos mais jovens, em sua maior parte mulheres, tendem a ficar patrimonialmente desamparados. Ou, de forma ainda mais plausível, o legislador poderia ter previsto que idade avançada não é sinônimo de “fraqueza do entender”, para utilizar a expressão das Ordenações Filipinas, e respeitado a vontade individual de cada cônjuge. O segundo refere-se à eleição do modelo heterossexual ou monoparental como entidade familiar, conforme o Artigo 226 da Constituição Federal e a exclusão do reconhecimento de entidades familiares poligâmicas, nos termos do artigo 1.727 do Código Civil. No que se refere ao dispositivo constitucional, foi necessária provocação do poder judiciário96 para o reconhecimento de famílias homoafetivas, embora as polêmicas sobre o assunto estejam longe do fim97. Já em relação às uniões poliafetivas, não há nenhum dispositivo legal que proteja os indivíduos envolvidos nestes relacionamentos, de forma que a lei não as reconhece como família. A grande crítica feita por Maria Berenice Dias recai sobre os efeitos patrimoniais, já que apenas os indivíduos em união estável ou casamento terão direito a alimentos e a partilha de bens, excluindo-se os outros consortes. Nas palavras da autora: Ao se vetar a possibilidade de reconhecimento a essas entidades familiares, se está subtraindo efeitos patrimoniais a um vínculo que - com ou sem o respaldo social ou legal - existe. Mas cabe perguntar: quem mantém uniões simultâneas? Não é um comportamento exclusivamente masculino? Não é o homem que trai? Assim, quem afrontou dogma da monogamia, cometeu adultério e deixou de cumprir o dever de fidelida-
96 A união estável homoafetiva só foi reconhecida no Brasil após julgamento no Supremo Tribunal Federal. Mais informações: . Acesso 18 jul. 2016. 97 Tem-se, por exemplo, o Projeto de Lei 6583/2013, mais conhecido como Estatuto da família, que ainda encontra-se em trâmite e no qual apenas uniões heterossexuais ou monoparentais poderiam ser consideradas família. Mais informações em . Acesso em 18 jul 2016.
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de? Logo, injustificável que seja beneficiado aquele que mantém um duplo vínculo afetivo. Questiona-se somente a ele a intenção de constituir família. Presume-se que o fato de manter duas entidades familiares significa que não quis formar família com uma ou nenhuma das mulheres. Assim, o homem sai do relacionamento sem qualquer responsabilidade, e o prejuízo é sempre da mulher. O que parece ser um castigo é um privilégio que só beneficia o parceiro adúltero, que não divide o patrimônio amealhado com a colaboração da mulher nem lhe presta alimentos (DIAS, 2015, p. 105-106).
É preciso analisar tal argumento com cuidado, ao afirmar que a manutenção de relações simultâneas e mesmo de traição são comportamentos exclusivamente masculinos, são falas que beiram o essencialismo – “é natural que o homem se comporte assim apenas por ser homem [sic]”. Observe-se que a lei novamente se atém a questão da igualdade jurídica sem observar a realidade social, pois é por questões extrínsecas ao direito que há um privilégio masculino: é-lhe ensinado desde cedo que não há problemas e é até aconselhável manter diversas parceiras, de forma que a lei poderia, novamente, ter agido com equidade, levando em consideração essas discrepâncias. Ou, novamente, deixado que adultos maiores e plenamente capazes estabelecessem suas próprias configurações familiares, inclusive com múltiplos consortes. Desta forma, apesar de importantes conquistas e avanços, o direito de família ainda precisa se atentar a questões importantes, motivo pelo qual é pertinente a afirmação de Maria Berenice Dias: “O Código Civil esqueceu de ver muitas coisas que não são novas. Essas omissões e esses equívocos do legislador fazem com que a sociedade continue a depender da sensibilidade dos juízes. A sorte é que o movimento feminista continua ativo e, ainda que vagarosamente, vem obtendo alguns ganhos” (DIAS, 2015, p. 107).
5. Considerações Finais O presente ensaio procurou demonstrar de que forma o Direito, especialmente o direito de família, contribuiu e ainda contribui para o tratamento desigual entre homens e mulheres. Neste sentido, buscou-se resgatar elementos presentes nas legislações brasileiras, desde as Ordenações Filipinas ao Código de 2002, no intuito de ve118
O Papel da Mulher no Direito das Famílias Brasileiro: da Fraqueza do Entender à Igualdade perante a Lei?
rificar e demonstrar como os papéis femininos são tratados diversamente dos masculinos em âmbito familiar. Como afirmado anteriormente, não se pretendeu analisar os referidos diplomas legais em sua integralidade, mas sim lançar luz a determinados dispositivos que reproduziam (ou reproduzem) certos discursos de desigualdade entre os sexos.
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Perspectivas da Doutrina Civil Contemporânea Brasileira Acerca do Status Jurídico das Mulheres no Casamento Perspectives of the Brazilian Legal Civil Doctrine About the Legal Status of Women at Marriage Grazielly Alessandra Baggenstoss98 Gabriela Neckel Ramos99
Resumo: Estruturada em três partes (recortes discursivos sobre educação e cultural referentes à condição das mulheres em relacionamentos sexual-afetivos; o tratamento jurídico conferido às mulheres no casamento no Brasil; a conferência do entendimento doutrinário atual sobre o status das mulheres no casamento, a partir do estabelecido no Código Civil vigente), a presente pesquisa pretende apresentar inquietações acerca do status das mulheres no casamento, a partir da doutrina jurídica brasileira contemporânea, utilizando-se o método dedutivo e pesquisa bibliográfica. Assim, apresenta-se como problema: “como a doutrina jurídica brasileira interpreta o status da mulher no casamento?”. Trabalha-se com duas hipóteses de resposta, ambas balizadas pelo binômio igualdade/desigualdade de gênero. A resposta igualitária irá informar a qualificação equivalente entre os gêneros no casamento; a resposta baseada na desigualdade trará a (des)qualificação das mulheres. 98 Doutora em Direito, Política e Sociedade (UFSC), Mestra em Direito, Estado e Sociedade (UFSC), Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, atuante no Curso de Graduação em Direito, no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) e no Programa de Pós-Graduação Profissional em Direito (PPGPD). Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”. É Membro Avaliadora de Artigos Científicos do Conselho Nacional de Pós-Graduação em Direito CONPEDI. E-mail: [email protected]. 99 Pesquisadora e bolsista de extensão (PROBOLSAS/PROEX/UFSC) do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”, graduanda do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
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Palavras-chave: Status jurídico das mulheres; casamento; doutrina civil brasileira Abstract: This research intends to present concerns about the status of women in marriage, based on contemporary Brazilian legal doctrine, using the deductive method and bibliographic research. The paper is structured in three parts: discursive discourses on education and culture concerning the status of women in sexual-affective relationships, the legal treatment accorded to women in marriage in Brazil, the conference of the current doctrinal understanding on the status of women in marriage, as the current Civil Code. Thus, it presents itself as a problem: “How does Brazilian legal doctrine interpret the status of women in marriage?”. We work with two hypotheses of response, both marked by the binomial equality / inequality of gender. The egalitarian response will inform the equivalent qualification between genders in marriage; The inequality-based response will bring the (dis) qualification of women. Keywords: Legal status of women; marriage; brazilian civil law’s doctrine
1. Considerações Gerais Frente à vinculação havida havido entre as determinações jurídicas e as crenças culturais e o seu abismo frente à faticidade, observa-se que, apesar da legislação ter se modificado buscando a igualdade entre o masculino e o feminino, não é o que se percebe verifica no contexto atual jurídico brasileiro. Embora a lei declare a igualdade, a mesma não é praticada nas instituições sociais como um todo, e assim, também não está presente na sociedade conjugal – isso porque a desigualdade, enquanto tradição cultural, está entranhada nas estruturas de poder e é reiterada pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. O mesmo ocorre nas relações entre homens e mulheres, em que a desigualdade de gênero não é dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência. Por tal panorama, o presente trabalho pretende apresentar inquietações acerca do status das mulheres no casamento, a partir da doutrina jurídica brasileira contemporânea, utilizando-se o método dedutivo e pesquisa bibliográfica. Assim, apresenta-se como problema: “como a doutrina jurídica brasileira interpreta o status da mulher no casamento?”. Trabalha-se com duas hipóteses de resposta, ambas balizadas pelo binômio igualdade/desigualdade de gênero. A resposta igualitária irá informar a qualifi122
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cação equivalente entre os gêneros no casamento; a resposta baseada na desigualdade trará a (des)qualificação das mulheres. Para tal estudo, a pesquisa está estruturada em três partes principais: a primeira, trata de discursos recortados sobre educação e cultural referentes à condição das mulheres em relacionamentos sexual- afetivos; a segunda, aborda o tratamento jurídico conferido às mulheres no casamento no Brasil; e, por último, tem-se a conferência do entendimento doutrinário atual sobre o status das mulheres no casamento, a partir do estabelecido no Código Civil vigente.
2. Recortes Discursivos Referentes à Condição das Mulheres em Relacionamentos Sexual-Afetivos Sabe-se que o Direito brasileiro contemporâneo é pensado como uma estrutura de comunicação albergada pelo manto da legalidade. Dessa forma, as discussões sobre questões politicas, éticas, morais, religiosas – ou seja, a concepção majoritária da nossa sociedade sobre o certo e o errado, o justo e o injusto – devem ser destinadas à arena política. A partir do processo legislativo, que é o local institucionalizado para o debate político do grupo social, as normas sobre regramento de condutas abandonam a sua roupagem moral para serem reconhecidas como jurídicas. Por tal espectro, resta clara a inferência de que carregamos o Direito com as mais diversas ideologias, bem como se vê que o seu intérprete fará determinado esforço para formatar o sentido da norma jurídica, impregnando-a com a carga valorativa que o próprio intérprete percebe de sua historicidade, a qual, especialmente no caso do brasileiro, apresenta dois eixos importantes de sua formação educacional, inexoráveis quando do exercício interpretativo: a religião e a educação. A religião e a educação são elementos representativos da cultura de uma determinada sociedade e estabelecem diversas conexões com várias formas da prática social, configurando as dimensões do pluralismo na convivência entre os indivíduos. Nessa perspectiva, incluem-se as representações simbólicas, que aqui são definidas como os significados conferidos a determinada pessoa, comportamentos ou fatos específicos. No plano simbólico, a religião reveste-se com uma conotação disciplinadora e, ao mesmo tempo, consoladora. Sua inserção na cultura ocorre quando 123
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intenta estabelecer valores e normas, “ditando hábitos e costumes, normatizando corpos e esculpindo mentes, numa escalação axiológica que regra comportamentos” (ALMEIDA, 2006, p. 59 e 72). Com isso, os dogmas religiosos alcançam e influenciam a compreensão das pessoas especialmente nas relações entre homens e mulheres. A educação, por sua vez, transita no grupo social com a função de transmitir e veicular a cultura geral de um povo – a qual se mostra representada, em tese, por um mundo plural e condizente com as mais diversas formas de relações sociais no contexto histórico de uma época. Por meio da educação, são alicerçados os valores culturais e religioso, em defesa de uma determinada ideologia e são configurados os parâmetros de “um espaço essencial de inculcação moral […], nas quais também se ancoram as relações de poder” (ALMEIDA, 2006, p. 59-60). Frente a tal perspectiva religiosa e educativa, homens e mulheres, por sua vez, “convergem para si o imaginário social que lhes atribui simbologias próprias ao que se espera de seu sexo” (ALMEIDA,2006, p. 59). E aqui se alerta para o seguinte: a educação e a religião, por muito, foram consideradas como porta-vozes de uma aparente neutralidade – com vistas à manutenção da convivência pacífica no meio social. Sob tal justificativa, são encobertos mecanismos e interesses invisibilizados por um manto encantado da imparcialidade (BENTO, 2007)100. A normalização de comportamentos indicados pela representação simbólica reflete-se no olhar dominante nas relações de poder, em que se atribui defeitos e qualidades. Na sequência, à medida que determinada conduta é tida por “normal”, correta”, ou, ainda, “errada” ou “desviante”, há a repressão e sanção com a mesma força com a qual é criado tal esquema de simbologias nas relações humanas. No entanto, ao mesmo tempo em que esse discurso “neutro” confere normalidade a determinados comportamentos, também suprime a humanidade de outras ações. Assim, é nítido que não descrevem uma situação de “anormalidade”, ou de pecado ou de incorreção: mas, sim, produzem tal situação (BENTO, 2007, p. 55).
100 É o discurso de mel, rimado por Lola Salles (na música Medo) e mencionado por Helena Martinez Faria Bastos Régis, no artigo “O namoro qualificado e a desqualificação da mulher no direito de família”, in .
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Ao se analisar, por esse prisma, o meio pátrio social, político e jurídico em que se encontram mulheres, é possível identificar as representações simbólicas estabelecidas pelos parâmetros morais da religião e da educação, as quais refletem nos discursos normativos que visam a manter padrões de seus comportamento. E mais: essa normatização de condutas transborda a fala e se concretiza em “ações concretas e atitudes discriminatórias difíceis de serem detectadas, porque são encobertas de poder inerentes à orientação e protagonismo sexual, nas quais as mulheres representam a parcela sobre a qual se exerce a dominação sexual” (ALMEIDA, 2006, p. 59). De plano, vê-se claramente que as representações simbólicas referentes ao sexo feminino emergem como categorizações distintas do mundo masculino, pois são interpretadas como portadoras de diferenças relacionais(ALMEIDA, 2006). Na esfera educacional, há teorias que se pretendem científicas, sediadas meramente na esfera filosófica por Aristóteles, Rousseau, Kant, em defesa da ideologia da época, que sustenta o essencialismo de gênero. Esse pensamento defende que uma convivência relacional homem-mulher pautada pela superioridade da razão masculina, determinada pela sua anatomia convexa e, por consequência, ocupação inata do espaço público. Tal razão seria auxiliada pela emoção da mulher (a anatomia côncava), desde que, lógico, controlada conforme a vontade do homem e restrita aos espaços privados – daí se reforça a compreensão de que o lugar da mulher é no lar101. No campo religioso, particularmente, há um modelo normativo de mulher, advindo do século XIX, que traça a representação simbólica da mulher como uma pessoa que deveria nutrir as características de castidade e abnegação, a fim de se evitar o fomento da sexualidade feminina, que era considerado um perigo na época. O pensamento de sexo para a mulher considerada honrada está ligada à dessexualização do corpo: sob tal ideologia, a mulher não precisaria sentir prazer nas relações sexuais. Além disso, deveria manter a castidade,
101 Cf. TIBURI, Marcia. As mulheres e a filosofia como ciência do esquecimento. Disponível em . Acesso em 02 jun 2016; CARVALHO, Maria da epnha Felicio dos Santos de; CARVALHO, José Luis Felicio dos Santos de; CARVALHO, Frederico Antonio de. O ponto de vista feminino na reflexão ética: histórico e implicações para a teoria de organizações. Disponível em . Acesso em 02 jun 2016.
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mesmo no casamento, de modo que deveria se relacionar sexualmente apenas para a procriação (PERROT, 2013)102. Os dogmas religiosos sempre decidiram a definição e padrões comportamentais femininos103. No caso do Brasil, vê-se o Catolicismo influenciando a representação simbólica feminina ao impor às mulheres a imagem da Virgem e Mãe. Para tanto, a adoção de uma linguagem mística para delinear o papel feminino como santo, anjo de bondade e pureza – todas características que as mulheres deveriam apresentar para serem dignas de coabitar com os homens e com eles gerar e criar filhos. Segundo Almeida: Essa ideologia vai desqualificar a mulher do ponto de vista profissional, político e intelectual, ao partir da falsa interpretação da natureza humana de que a uma mulher em si não possui valores intrínsecos, mas que deve curvar-se aos ditames do amor e da submissão em nome de uma missão a ela destinada pelo sagrado (ALMEIDA, 2006, p. 74).
A partir dessa ideologia, a mulher, para ser respeitada, deveria (a) manter um determinado comportamento, desenvolvendo a abnegação, a castidade, a submissão, especialmente aos homens; (b) casar-se, mantendo-se casta; e (c) exercer a maternidade. Logicamente, toda a construção de seu comportamento remanesceria com o objetivo de alcançar um casamento. A partir daí, tem-se a visualização da tentativa de se naturalizar que a mulher não é sujeito por si mesma, mas somente quando à submissão de um homem – seja de seu pai, seja de um marido. Pensamentos como esses propõem que seja natural a secundariedade do ser humano mulher; ou seja, buscam regorgitar a naturalização da submissão da mulher. Na tentativa de a mulher apresentar conduta de submissão ao homem:
102 “O desejo e o prazer eram reservados ao homem, o qual, segundo o discurso médico, era biologicamente voltado para a essência carnal por conta da virilidade”. Cf. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013, p. 75. 103 “Esse olhar rebela – como traços essenciais da alteridade daqueles que estão em situação de dominados – fragmentos imperfeitos, “feixes de informações” que não são reveladores da profundidade e do pluralismo de sua cultura.no entanto, estes segmentos, muitas vezes reduzidos ao silencia, possuem formas próprias de se expressar por meio de tradições, costumes religiosos ou profanos, escritos íntimos, reveladores do sentido da História, encobertos em sinais e revelados nos contornos mágicos dos mitos” (ALMEIDA, 2006, p. 73), tais como os mitos de Lilith (explanado a seguir) e do pecado de Eva e Onã.
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[…] a Igreja Católica associaria a figura da mulher santa, feita à imagem de Maria, à pureza de corpo e espírito, enquanto a mulher desviante, transgressora, principalmente a prostituída, seria ligada à maldade, à perfídia, ao pecado e à decadência. Se a primeira era o espírito e a santidade, a segunda seria carnal e pecadora, levando os homens à corrupção do caráter e do corpo (ALMEIDA, 2006, p. 74).
Contudo, tanto a pecadora quando a pura deveriam se apresentar como submissas e dependentes, pois a ordenação social assim o exigia, e a ordem natural das coisas não deveria ser questionada por aquelas que eram destinatárias de um processo de controle ideológico altamente repressor quanto à sexualidade, que, conforme mencionada, deveria ser voltada somente à procriação, como se fosse um dever intrínseco à mulher (PERROT, 2013) – e esse pensamento fortalece a ideologia atual em que as mulheres são constantemente questionadas sobre quando terão filhos e confrontadas quando respondem que escolheram não ser mães. A sociedade ocidental fomenta a maternidade, a qual, pela ideologia, foi pontuada como pilar da sociedade e da força dos Estados e assim, tornou-se um fato social de relevância para o grupo social. Por conseguinte, os discursos políticos interferem no corpo da mulher, com o controle da natalidade e com o impedimento de se discutir, de forma racional e civilizada, sobre o aborto. Como regra geral, coloca-se a concepção como uma obrigação. Essa ideologia sobre a instrumentalidade do corpo feminino é inculcada na educação, a qual apresentará regramento acerca da sexualidade da mulher e do casal, perpassando toda a vida social do século XIX, estendendo-se ao século XX (PERROT, 2013). E aqui estamos, século XXI. De hoje para trás, observamos os equivocados discursos morais que infringem tanto o simbólico social e político, como os discursos de autoridades estatais, como a policial e a judicial104. Todavia, observa-se o despertar sobre o erro de tais raciocínios: não se fundamente a ideologia da naturalização da submissão da mulher pautada no controle de seu corpo, na imposição de uma moral rígida e conveniente ao homem, na diferenciação biológica em comparação com este.
104 O que também realimenta a cultura do estupro, abordada por Marília Cassol Zanatta no artigo “Cultura do Estupro no Direito Penal Brasileiro”, in .
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Da mesma forma, não se sustenta a ideologia de desqualificação da mulher se ela não corresponder à representação simbólica que a educação e a religião a impõem. Sabe-se hoje, por exemplo, com mais consciência e amplificação que outrora, que a maternidade é uma opção de vida. Era, em discurso recente, uma fatalidade; atualmente, sabe-se uma escolha – o que já representa uma revolução (PERROT, 2013). A qualificação da mulher brasileira como ser humano, sujeito de direitos e deveres, é-lhe inata, como ela mesmo se percebe, como o Estado a reconhece, por meio dos direitos fundamentais esculpidos na Constituição, e como a comunidade internacional a considera, por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos e instrumentos internacionais correlatos105. No âmbito jurídico, portanto, sua qualificação como ser em si é nítida; no plano político-social, a sua legitimação não depende de ninguém: somente dela mesma. Sobre o meio social, encontramos, ainda, os ranços dessa ideologia rudimentar, questionando o motivo por qual as mulheres não se casam, qual roupa estava usando, exigindo sexo, dispensando tratamento à mulher como secundária à sua própria vida. Contudo, há tempos que as mulheres transbordam essa uma imposição de submissão e de coadjuvação. Desde sempre, houve resistência e protagonismo, determinando que o respeito é-lhes devido pela vida que palpita em seu corpo, pelo seu sangue que nutre a terra, pela sua própria existência – esteja vestida de Eva ou de Lilith106; esteja mãe casta ou mãe prostituta; esteja solteira ou casada, fiel ou impura, mãe e filha. Sobre o prisma jurídica, contudo, a resistência e o protagonismo das mulheres e a sua respectiva luta por condições de existência humana demoraram a surtir efeitos. Mais: atualmente, de forma fétida, ainda se percebe no teórico-jurídico e na prática brasileira a compreensão de que o corpo das mulheres é instrumental ao corpo do homem, seja na doutrina, no campo judicial, entre as autoridades policiais.
105 Resguardam-se, aqui, as discussões acerca do relativismo e universalismo dos direitos humanos. 106 Na mitologia sumeriana, Lilith era a Rainha do Céu e, com a formação dos dogmas religiosos hebraicos, sua figura foi incorporada à história de Adão. Nela, Lilith foi concebida como a primeira esposa de Adão. Na história, por ter se recusado à submissão sexual (pois compreendia que deveria se relacionar de modo igualitário) e por ter abandonado Adão, teria se tornado um demônio, conforme sustenta a mitologia judaica. Cf. LARAIA, Roque de Barros. Jardim do Ésen revisitado. Rev. Antropol. v. 40. n. 1. São Paulo, 1009. Disponível em . Acesso em 02 jul 2016.
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No âmago de tais discursos, encontram-se valores específicos representativos de ideologias107 diversas. Essas entrelinhas axiológicas também são encontradas quando se refere ao tal de débito conjugal (tema discutido em julgados recentes dos tribunais pátrios108, mesmo sem haver referência legal alguma), que significaria um pretenso dever de relação sexual de um cônjuge ao outro – especialmente da mulher em favor do homem. É a partir daí que segue a pesquisa. 107 Seja na acepção do senso comum, ideologia como um conjunto de interesses, interpretações e orientações defendidas por um determinado grupo social; seja, nos dizeres de Marilena Chauí, como uma máscara que esconde a própria realidade do grupo social a fim de se permitir a legitimação da exploração e da dominação (Cf. CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008). 108 Exemplos de julgados sobre débito conjugal: APELAÇÃO. ANULAÇÃO DE CASAMENTO. ERRO ESSENCIAL EM RELAÇÃO A PESSOA DO CÔNJUGE. OCORRÊNCIA. A existência de relacionamento sexual entre cônjuges é normal no casamento. É o esperado, o previsível. O sexo dentro do casamento faz parte dos usos e costumes tradicionais em nossa sociedade. Quem casa tem uma lícita, legítima e justa expectativa de que, após o casamento, manterá conjunção carnal com o cônjuge. Quando o outro cônjuge não tem e nunca teve intenção de manter conjunção carnal após o casamento, mas não informa e nem exterioriza essa intenção antes da celebração do matrimônio, ocorre uma desarrazoada frustração de uma legítima expectativa. O fato de que o cônjuge desconhecia completamente que, após o casamento, não obteria do outro cônjuge anuência para realização de conjunção carnal demonstra a ocorrência de erro essencial. E isso autoriza a anulação do casamento. DERAM PROVIMENTO. (SEGREDO DE JUSTIÇA). (TJRS – Apelação Cível Nº 70016807315, Oitava Câmara Cível, Relator: Rui Portanova, Julgado em 23/11/2006). SEPARAÇÃO JUDICIAL – LESÕES QUE A CARACTERIZAM. A IMPOSSIBILIDADE DE CONVIVÊNCIA MOTIVADA POR UM DOS CÔNJUGES, CARACTERIZADA POR ABANDONO PRESENCIAL E ECONÔMICO, E ADEBITUM CONJUGALE SÃO MOTIVOS MAIS DO QUE SUFICIENTES PARA CONFIGURAR A LESÃO.- ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO E INACOLHIMENTO DO RECURSO (TJMG – Apelação Cível nº 1.0079.05.1963712/001, Rel. Des. Francisco Figueiredo, j. 21.08.2007, p. 14.09.2007). APELACAO CIVEL. ACAO ANULATORIA DE CASAMENTO. RECUSA A COABITACAO SEXUAL. ERRO ESSENCIAL. INOCORRENCIA. 1 – O ART. 1550 DO VIGENTE CODIGO CIVIL ESPECIFICA AS CAUSAS DE INVALIDADE RELATIVA DO CASAMENTO, EDITANDO O ART. 1556 DO MESMO CODIGO PODER TAMBEM SER ANULADO POR VICIO DE VONTADE SE HOUVE POR PARTE DE UM DOS NUBENTES ERRO ESSENCIAL QUANTO A PESSOA DO OUTRO. 2 – A AVERSAO OU RECUSA DE COABITACAO POR PARTE DA REQUERIDA (CONJUGE VIRAGO) PODERA DAR ENSEJO A SEPARACAO JUDICIAL (LITIGIOSA E/ OU CONSENSUAL) DO CASAL, SUPOSTA VIOLACAO DOS DEVERES INERENTES AO CASAMENTO, NAO DANDO AZO A SUA INVALIDACAO POR ERRO ESSENCIAL, A FALTA DE PREVISAO LEGAL. 3 – EXCEPCIONAL, A NEGATIVA AO CUMPRIMENTO DO DEBITO CONJUGAL POR CESSADA AFFECTIO MARITALIS, PODERA ENSEJAR A RUPTURA DO VINCULO CONJUGAL EM FACE DE DEFEITO DE ORDEM PSICO-SOMATICA PREEXISTENTE E CONSTATADA A POSTERIORI, HIPOTESE INOCORRENTE NO CASO. APELACAO CONHECIDA E IMPROVIDA. (TJSC – Apelação Cível nº 116225-7/188, Rel. Des. Stenka I. Neto, j. 13.12.2007, p. 18.01.2008).
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3. Discurso Legal e Doutrinário sobre o Casamento no Brasil A família é tida como base da sociedade, contando a mesma, com especial proteção do Estado, conforme determina a Constituição de 1988 em seu art. 226. Assim, o casamento apresenta-se como uma das formas de constituição de família previstas em nosso ordenamento jurídico, sendo a mais antiga e protegida pela legislação pátria, bem como pela doutrina. O casamento tem sua origem ligada à religião, sendo também no nosso ordenamento jurídico, outrora, tratado dessa maneira, de maneira que se realizava o matrimônio apenas por meio de celebração religiosa. Assim, podemos perceber a grande carga ideológica que tal instituto jurídico carrega em si, sendo revestido pelo manto da legalidade. Diante disso, mesmo com o processo de laicização do estado, há uma difusão da ideia de que o casamento deveria ser indissolúvel, de que o homem ocupa um lugar de superioridade na relação conjugal, sendo sua força física transformada em autoridade e portanto, outorgando a ele o comando da família. Atualmente, de maneira velada, mas de fato presente, tais concepções, apenas de modificadas, ainda deixam marcas em nossos legisladores, nossas leis, nossa doutrina, no povo como um todo. Isto posto, resumidamente apresentada a origem da instituição do casamento, é possível compreender como são colocados certos institutos que acabam por ser socialmente aceitos, que é o caso do débito conjugal. A definição de casamento é assunto deveras controverso na doutrina brasileira, onde termos definições que o apresentam “como a união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo Estado, formada com o objetivo de constituição de uma família baseado em um vínculo de afeto” (TARTUCE, 2015, p. 43), bem como “ sendo um contrato especial de Direito de Família, por meio do qual os cônjuges formam uma comunidade de afeto e existência, mediante a instituição de direitos e deveres, recíprocos e em face dos filhos, permitindo, assim, a realização dos seus projetos de vida” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 118). Neste mesmo sentido, no entanto, de maneira abrangente encontramos a definição de casamento como “uma entidade familiar estabelecida entre pessoas humanas, merecedora de especial proteção estatal, constituída formal e solenemente, formando uma comunhão de afetos (comunhão e 130
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vida) e produzindo diferentes efeitos no âmbito pessoal, social e patrimonial” (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 179). A partir da concepção de produção de efeitos nas mais diversas esferas da vida dos cônjuges, encontramos na legislação pátria, o art. 1.566 do Código Civil que prevê os efeitos pessoais do matrimônio. Ali estão presentes o dever de fidelidade recíproca; vida em comum, no domicílio conjugal; mútua assistência; sustento, guarda e educação dos filhos; bem como respeito e consideração mútuos. É de suma importância se observar que o rol apresentado no dispositivo legal é meramente exemplificativo, existindo deveres inerentes ao casamento que não são abarcados pelo mesmo. Destaca-se, o dever da vida em comum, no domicílio conjugal, também chamado de dever de coabitação. É no centro de tal dever que encontramos a justificativa doutrinária para a existência do débito conjugal. “A doutrina mais antiga sempre retirou do conteúdo do dever de coabitação o sentido de estabelecer vida em comum, morando sob o mesmo teto e mantendo estreita conjunção íntima, através do relacionamento sexual. É dizer: o dever da vida em comum no domicílio conjugal teria um sentido mais amplo do que, simplesmente, morar sob o mesmo teto, envolvendo plena comunhão de vida, o que compreenderia, identicamente a satisfação sexual (debitum conjugale)” (FARIAS; ROSENVALD , 2016, p. 281). Portanto, o dever de coabitação seria mais do que apenas morar na mesma casa, seria a comunhão plena de vida no sentido mais íntimo, impondo o dever de manter relações sexuais na constância do casamento. Surge, então, o débito conjugal, sendo o exercício da sexualidade um dever, podendo o cônjuge exigir seu cumprimento. Encontramos na doutrina, respaldo para duas correntes, uma a favor e outra contra a existência da figura do débito conjugal. Em direção a parte da doutrina que se posiciona favoravelmente ao débito conjugal, encontramos Carlos Roberto Gonçalves se manifesta no sentido de que O cumprimento do dever de coabitação pode variar, conforme as circunstâncias. Assim, admite-se até a residência em locais separados, como é comum hodiernamente. Porém, nele se inclui a obrigação de manter relações sexuais, sendo exigível o pagamento do debitum conjugale. Já se reconheceu que a recusa reiterada da mulher em manter relações sexuais com o marido caracteriza injúria grave, salvo se ela assim procedeu com justa causa (2015, p. 193).
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Nesse sentido, também argumentam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho que Como decorrência do casamento, portanto, a comunhão sexual traduz, inegavelmente, um dever e, exatamente por isso, o seu descumprimento – embora não justifique violência física ou execução pessoal – poderá, resultar em consequências jurídicas ao infrator, como o divórcio, ou, até mesmo, a depender das circunstâncias da sua origem, a invalidade do casamento [...] (2015, p. 300).
Mais ainda, Tartuce, ao citar Silvio Rodrigues, manifesta-se no sentido de que a vida comum, no domicílio conjugal, constitui expressamente o dever do débito conjugal (2015, p. 104). Por sua vez, há parte da doutrina que se opõe a tal ideia. Nesse sentido, encontramos manifestações de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: Pensar na existência de um débito conjugal (e, pior ainda, como um direito de personalidade), encartado no dever jurídico de vida em comum no domicílio conjugal (CC, art. 1.566, II), é modificar o seu verdadeiro sentido, violando a dignidade humana e eviltando a sua liberdade afetiva sexual (2016, p. 282).
Maria Berenice Dias, ao posicionar-se contra a instituição do débito conjugal, ainda explica que tal expressão tem origem no Direito Canônico, que significaria o direito sobre o corpo, principalmente o direito do homem ao corpo da mulher, a fim de atender ao caráter reprodutivo imposto ao casamento (2016). A partir da manifestação da Maria Berenice Dias, torna-se evidente o fato de que o débito conjugal, quando aplicado, é feito de maneira desigual, nos chamando atenção para questões relacionadas a mulher, destacando assim, em que posição se encontram as mulheres dentro do casamento, e por sua vez, como isso se manifesta na doutrina brasileira.
4. O Status das Mulheres no Casamento a partir da Doutrina Brasileira Atual Conforme se pode perceber o débito conjugal, teoricamente seria uma figura a ser imposta a ambos os nubentes, independentemente se homem ou 132
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mulher, no entanto, culturalmente refere-se ao corpo da mulher. Ainda hoje, reserva-se à esposa o espaço da casa e papel de procriação e ao homem o espaço público. A força física do homem ainda se mantém como poder sobre sua família e sua esposa. A mulher, apesar de igual ao homem aos olhos da lei, na esfera da sociedade conjugal, permanece muitas vezes em um papel de invisibilidade e sendo tratada como propriedade do marino. E é nesse cenário que o dever do débito conjugal se consolida. Ao analisarmos os trechos apresentados, demonstrando o posicionamento doutrinário, podemos perceber claramente, naqueles que defendem a figura em questão, que estão ligados a concepção de casamento tradicional, onde se defende, se tratar de uma instituição formal, com o objetivo de reprodução. Neste viés, a família estaria à serviço da sociedade. Percebe-se que é negado aos cônjuges, como indivíduos que são, o direito da dignidade, à liberdade, à privacidade e à inviolabilidade do próprio corpo. Tal quadro se agrava ao tratarmos sobre mulheres, pois, diante da estrutura hierárquica estabelecida no casamento em uma sociedade patriarcal, torna-se propriedade de seu marido. Assim, combinado com a defesa da existência da figura do débito conjugal, abre-se caminho para que a mulher, não seja respeitada, perdendo o direito de ser respeitada em sua condição mais básico, impedindo, portanto, que tenha seu pleno desenvolvimento garantido. Titular de veres na sociedade conjugal, assim como o homem, a mulher deveria também ser titular de direitos, o que não ocorre. É possível se verificar da doutrina, estudiosos afirmando que diante de uma história onde as mulheres são colocadas como seres inferiores, atualmente deve-se dar mais atenção para que a igualdade material seja alcançada. No entanto, os mesmos que defendem tal posição, também são os mesmos a falarem que sim, o dever do débito conjugal existe, deve ser respeitado, devendo haver sanção em caso de descumprimento. A contradição torna-se clara. Acontece, que tais juristas, não se dão conta de que ao inserir tais afirmações em uma sociedade com predominância do machismo, maridos encontram respaldo para cobrarem de suas mulheres o cumprimento de seu direito de ter relações sexuais, podendo, em casos mais graves, respaldar atos de violência109, inclusive 109 A rede de apoio Mete a Colher (site ; fanpage ) promove a contramaré de tal pensamento ao promover uma Rede de Apoio entre as Mulheres, visando, sobretudo, as denúncias referentes às violências que as atingem.
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o estupro. Incorre-se no risco de se cobrar um dever que considera existente extrapolando os direitos do outro como titular de direitos e pessoa.
5. Considerações Finais Nessa pesquisa, questionou-se como a doutrina jurídica brasileira interpreta o status da mulher no casamento e verificou-se a confirmação da resposta baseada na desigualdade, que acarreta a desqualificação do status jurídico das mulheres frente aos homens na relação jurídica do casamento. A partir de recortes discursivos sobre educação e cultural referentes à condição das mulheres em relacionamentos sexual-afetivos, do tratamento jurídico conferido às mulheres no casamento no Brasil e da conferência do entendimento doutrinário atual sobre o status das mulheres no casamento, a partir do estabelecido no Código Civil vigente, observou-se que o discurso reprodutor dos manuais de Direito Civil obsta um pensamento reflexivo sobre os papeis estabelecidos legalmente aos cônjuges. E mais: apesar de o próprio sistema jurídico apontar para a igualdade dos deveres e dos status das mulheres e dos homens, a doutrina civil brasileira contemporânea ainda reitera crenças baseadas em normatizações antiquadas e atualmente nefastas à nossa realidade que pretende a igualdade material entre os cônjuges. Assim, tem-se que há uma confusão entre o casamento, que deveria ser tido como comunhão plena de vida, afeto, carinho, respeito e compreensão, com uma instituição pautada pelo dever de satisfação de um dos cônjuges, legitimando incorretamente, inclusive, o estupro. Diante dessa mentalidade inconsciente e inconsequente da condição mínima de existência das mulheres, a postura é a de que a mulher não se deve sujeitar o outro a uma posição de inferioridade na relação – o que é um desafio para quem vive a relação matrimonial, bem como para quem labora com tais normas jurídicas.
Referências Bibliográficas ALMEIDA, Jane Soares de. Os paradigmas da submissão: mulheres, educação e ideologia religiosa – uma perspectiva histórica. In SILVA, Gilva Ventura da;
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Direito do Trabalho das Mulheres
Trabalhadoras Catarinenses: Proteção Jurídica e Histórico de Trabalho Women Workers in Santa Catarina: Legal Protection and Historic of Work Juliana de Alano Scheffer110
Resumo: As mulheres representam parcela considerável do mercado de trabalho, mas que não recebe o mesmo tratamento destinado aos trabalhadores homens. Este quadro é encontrado em boa parte do planeta. No Estado de Santa Catarina, a situação não é diferente. Contudo, a legislação nacional prevê meios para promover a proteção do trabalho feminino. Assim, este artigo divide-se em dois pontos principais: o primeiro propõe uma exploração sobre como a legislação brasileira se construiu historicamente ao prever mecanismos de proteção ao trabalho das mulheres; o segundo apresenta breve histórico e análise estatística sobre as trabalhadoras de Santa Catarina, do século XVIII ao XXI. Palavras-chave: Mulheres. Direito do Trabalho. Santa Catarina. Histórico. Abstract: Women represent a considerable portion of the labor market, but they do not receive the same treatment offered to men workers. This picture is found in the most part of the planet. In the State of Santa Catarina, the situation is not different. However, the national legislation predicts ways to promote the protection of women’s work. Therefore, this paper is divided in two main parts: the first one proposes an exploration about how the Brazilian law was built historically to predict mechanisms of protection of women’s work; the second part presents short historic and statistical analysis of women workers in Santa Catarina, from century XVIII to XXI. Keywords: Women. Labour law. Santa Catarina. Historic. 110 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Servidora Pública na UFSC. Pesquisadora do GT Direito do Trabalho do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC.
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1. Introdução Seja em atividades remuneradas ou não, as mulheres sempre trabalharam (RAGO, 2012). Por mais que os registros históricos muitas vezes não ressaltem a atividade laboral feminina, no Brasil Colonial, por exemplo, elas foram fazendeiras, comerciantes, lavadeiras e escravas (DEL PRIORI, 2001). Já a partir do século XX, com a industrialização do país, uma série de mudanças acentuou a participação das mulheres no mercado de trabalho remunerado. Se em 1976 as mulheres eram apenas 28,8% da população economicamente ativa,111 em 2014, quase quarenta anos depois, elas representam 43,37% desta mesma população (IBGE, 2015). Analisando o caso do Estado de Santa Catarina, as mulheres ocuparam espaços na pesca, na agricultura, no setor de serviços, no comércio, na indústria e também na mineração. Portanto, ao se propor uma análise sobre o direito do trabalho das mulheres, oportuniza-se um enfoque sobre um contingente populacional economicamente ativo que foi ignorado em grande parte da história brasileira. Os registros destacam o trabalhador homem; a participação laboral, os desafios, preconceitos e conquistas das trabalhadoras nem sempre ficam evidentes. Apesar de a representatividade feminina no mercado de trabalho apresentar constante crescimento e corresponder a parcela significativa da mão-de-obra nos mais diversificados setores, o rendimento médio desta população continua abaixo da masculina, apresentando lenta diminuição da desigualdade na última década (IBGE, 2015). No Brasil, em 2014, dentre os trabalhadores formais, as mulheres receberam, em média, 72,44% do que homens auferiram. Esta diferença aumenta ao se avaliar o trabalho informal: elas embolsam apenas 63,08% do rendimento deles (IBGE, 2015). O estado catarinense, apesar de possuir um dos menores índices de concentração de renda do Brasil (IBGE, 2015), remunera de forma notadamente diferente suas trabalhadoras em comparação com os trabalhadores. Conforme relatório de 2015, considerando o estoque total de empregos formais existentes em Santa Catarina, as mulheres têm como remuneração o equivalente a 79% do rendimento médio mensal dos homens (SANTOS; ROSA, 2015). 111 FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. Banco de Dados sobre o Trabalho das Mulheres. Disponível em:. Acesso em: 10 mai. 2016.
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Corroborando a existência da problemática de gênero nas relações trabalhistas, a Organização Internacional do Trabalho - OIT (2011) aponta que a paridade entre a remuneração de homens e mulheres não será alcançada mundialmente antes do ano de 2086. Neste contexto, como forma de primar pela não discriminação e pela igualdade de condições e de tratamento no ambiente laboral, existem diversos tratados e convenções internacionais, bem como legislação nacional, que almejam proteger e promover o mercado de trabalho feminino. Este artigo divide-se em duas partes principais: a primeira se propõe a discutir como a legislação brasileira se construiu historicamente ao prever mecanismos de proteção ao trabalho das mulheres; a segunda traz breve histórico e análise estatística sobre as trabalhadoras de Santa Catarina, do século XVIII ao XXI. Deu-se destaque às mulheres em atividade laboral, diante das pesquisas que foram analisadas para elaboração deste artigo. Porém, tem-se ciência que um recorte de raça evidenciaria diferenças de tratamento no trabalho: as mulheres negras recebem menos ainda do que as mulheres brancas (MARTINS, 2001).
2. Mecanismos Legislativos para Proteção do Trabalho da Mulher No Brasil, a primeira norma regulando o trabalho da mulher surgiu em 1932 (MARTINS, 2001), pelo Decreto nº 21.417-A112. Em seu artigo primeiro, o referido decreto deixa claro que “sem distinção de sexo, a todo trabalho de igual valor correspondente salário igual.” Tal decreto proibia o trabalho noturno feminino, vedando a atividade em subterrâneos e minerações. Quanto aos aspectos reprodutivos, o decreto de 1932 proibia o trabalho da mulher durante as quatro semanas antes e depois do parto. Este período poderia ser aumentado em até duas semanas, por critério médico. Porém, durante esse afastamento, a mulher só receberia metade do seu salário, de acordo com a média dos últimos seis meses. Este pagamento seria efetuado pelo Insti-
112 BRASIL. Decreto nº 21.417-A de 1932. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2016.
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tuto de Seguro Social; somente na falta dele o empregador seria o responsável por este encargo. O art. 10 do referido decreto concedia duas semanas de afastamento em caso de aborto. Porém, se fosse considerado criminoso, tal licença era inexistente. Essa previsão continua existindo atualmente, pelo art. 395 da Consolidação das Leis do Trabalho113 e art. 93 do Regulamento da Previdência Social.114 Ainda havia concessão, de acordo com o art. 11 do Decreto nº 21.417-A, de direito a dois descansos diários especiais, de trinta minutos cada um, durante os seis primeiros meses subsequentes ao parto, para fins de amamentação – o art. 396 da CLT mantém esta previsão. Caso a empresa tivesse mais de trinta mulheres com mais de dezesseis anos como empregadas, esta deveria manter local para assistência dos filhos durante o período de amamentação – tal determinação foi abarcada pela CLT, em seu art. 389, §1º. O Decreto 21.417-A também proibia a demissão de mulher grávida por motivo único de gravidez – o que permanece no art. 391 da CLT. Este primeiro decreto a tratar sobre o trabalho da mulher não está expressamente revogado. Contudo, legislações mais recentes, como a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 e a CLT, acabaram por superá-lo. Dentre as sete constituições brasileiras, a Constituição de 1934 foi a primeira a tratar da temática. De modo pioneiro na história brasileira, vedou-se a proibição de discriminação em razão do sexo (OLIVEIRA, 2016). Em seu texto, vedava a diferenciação salarial e o trabalho da mulher em locais insalubres.115 A vedação do trabalho em áreas de insalubridade exibe apenas uma proteção aparente, que na realidade é discriminatória. Este tipo de proibição conduz à perpetuação de padrões ou estereótipos culturais (OLIVEIRA, 2016). A Constituição de 1934 também previu garantia de repouso antes e depois do parto, sem prejuízo de trabalho e emprego. Havia previsão de diversos avanços sociais (reconhecimento do voto feminino, ainda que não universal; proibição de
113 BRASIL. Decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: . Acesso em: 02 ago. 2016. 114 BRASIL. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999. Disponível em: . Acesso em: 02 ago. 2016. 115 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2016.
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discriminação em razão de sexo, garantia da licença maternidade remunerada (OLIVEIRA, 2016), instituição da Justiça do Trabalho (SÜSSEKIND, 2010) etc.). Em seu art. 131, §3º, a Carta Constitucional de 1934 declara que: Art. 131. (...) § 3º - Os serviços de amparo à maternidade e à infância, os referentes ao lar e ao trabalho feminino, assim como a fiscalização e a orientação respectivas, serão incumbidos de preferência a mulheres habilitadas.
A Constituição de 1934 deixa expresso o entendimento à época sobre a quem pertencem estas atividades (cuidado com crianças e serviço doméstico): às mulheres. O trabalho das mulheres, de acordo com esta construção de gênero, deveria ser a principal mão de obra para serviços que envolvessem maternidade, infância, lar e trabalho feminino. A própria expressão “trabalho feminino” deixa indícios de que o constituinte considerou que certas atividades são femininas, e outras não. Das funções citadas como prioritariamente de responsabilidade feminina no artigo, a maioria delas não é remunerada. A Carta de 1934 apresentou vida curtíssima. Isto em razão do golpe de Estado ocorrido em 1937, em que Getúlio Vargas assume e outorga nova Constituição (OLIVEIRA, 2016). De inspiração fascista, o texto constitucional manteve a igualdade entre todos perante a lei, mas omitiu a igualdade salarial entre homens e mulheres (OLIVEIRA, 2016). Com a Constituição de 1937, o trabalho noturno e em locais insalubres se manteve proibido para as trabalhadoras. Conservou-se igualmente a garantia de licença maternidade remunerada.116 De acordo com o professor José Afonso da Silva, a aplicação da Constituição de 1937 não foi regular. Grande parte de suas previsões não se consolidaram. Pois, na realidade, houve simplesmente um período ditatorial, com a concentração de poderes nas mãos do Poder Executivo (SILVA, 2005). Ainda na vigência da Constituição de 1937, a Consolidação das Leis do Trabalho é editada em 1943 – com o objetivo de reunir a legislação sobre direito do trabalho existente na época.
116 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2016.
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Os legisladores reconheceram as desigualdades existentes contra as mulheres, e destinaram, dentro do Título II da CLT (que trata das normas especiais de tutela no trabalho), o Capítulo III, exclusivo sobre a Proteção do Trabalho da Mulher. Este capítulo foi sendo moldado com o passar dos anos, principalmente para atender às exigências da Constituição Cidadã de 1988. Em 1946, em meio a um ressurgir democrático, é promulgada nova Constituição. Esta teve origem não em um projeto pré-ordenado, mas foi elaborada a partir das Constituições de 1891 e 1934 (SILVA, 2005). Deste modo, ela volta-se para o passado, sem muito analisar a realidade brasileira da época. A igualdade formal entre todos continua expressa nesta Carta Constitucional. A Constituição de 1946 vedava a discriminação salarial; proibia o trabalho insalubre para mulheres; instituía direito de assistência e repouso antes e depois do parto; e previa previdência em favor da maternidade.117 De acordo com o art. 6 do Código Civil de 1916, vigente à época, a mulher casada era relativamente incapaz, e assim precisava de autorização do marido para escolher sua profissão (art. 233, IV, do Código Civil de 1916)118. Na vigência da Constituição de 1946 foi instituído o Estatuto da Mulher Casada, pela Lei nº 4.121, em 1962, que eliminou a incapacidade das mulheres casadas.119 Ampliou-se, em parte, a liberdade de profissão e trabalho das mulheres. Em 1964 ocorre novo golpe de Estado. Os militares acessam o poder, e em meio ao regime ditatorial instalado, em 1967 outra Constituição é outorgada. O Executivo ganhou amplos poderes, em detrimento do Poder Judiciário e Legislativo (OLIVEIRA, 2016). Os militares alternavam-se no poder. O Executivo poderia fazer emendas à Constituição de modo independente. Neste contexto, foram realizadas alterações significativas no texto constitucional, que alteraram significativamente seu conteúdo – por intermédio de reformas como a Emenda Constitucional nº 01 de 1969 e os Atos Institucionais (OLIVEIRA, 2016).
117 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em: . Acesso em: 05 jun. 2016. 118 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2016. 119 BRASIL. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2016.
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A Constituição de 1967 proibia discriminação salarial (art. 158, III); vedava trabalho insalubre para mulheres (art. 158, X); garantia descanso antes e depois do parto (art. 158, XI); assegurava previdência social em razão da maternidade (art. 158, XVI); e previa aposentadoria aos trinta anos de contribuição para as mulheres, com salário integral (art. 100, §1º).120 De acordo com José Afonso da Silva, houve uma definição mais eficaz dos direitos dos trabalhadores nesta Constituição (SILVA, 2005). Contudo, isso não significa que estes foram garantidos no plano material. Dentre os retrocessos identificados, para trabalhadores e trabalhadoras, encontram-se: (...) a supressão da estabilidade como garantia constitucional foi substituída pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), como alternativa para a estabilidade; as restrições ao direito de greve, uma vez que, não era permitida a greve nos serviços públicos e atividades essenciais (artigo 157, parágrafo 7º), e a supressão da proibição de diferença de salários por motivo de idade e nacionalidade. (OLIVEIRA, 2016, p. 255)
Em um ambiente de supressão de direitos políticos e individuais, é esperável que os vulneráveis no mercado de trabalho (mulheres, crianças, negros, etc.) tivessem menos espaço para exigir e ampliar direitos. Com o fim da Ditadura Militar, após muitas lutas e debates sociais, a Assembleia Nacional Constituinte promulga a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988. José Afonso da Silva destaca que quando o Presidente à época, José Sarney, convocou os Senadores e Deputados para elaborar a Constituição, este não criou uma Assembleia Nacional Constituinte, mas um Congresso Constituinte (SILVA, 2005). Apesar disso, reconhece-se que a Carta Magna de 1988 possui previsões, de certo modo, avançadas. A partir de 1988, os direitos e garantias fundamentais estão à frente dos outros títulos na Constituição Cidadã – o que demonstra a valorização e a proteção do indivíduo frente ao Estado. Em seu art. 5º, a CRFB prevê a igualdade entre todos, sem distinção de qualquer natureza. Homens e mulheres são iguais, formalmente, em direitos e 120 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2016.
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obrigações. Em seu art. 226, a Constituição estabelece a igualdade de responsabilidades entre homens e mulheres com a família.121 Ademais, todas as formas de discriminação que atentem contra os direitos estão proibidas (art. 5º, XLI). Desta maneira, as mulheres estavam livres para trabalhar onde quisessem, incluindo trabalhos noturnos e insalubres. O pátrio poder converte-se em poder familiar, exercido por ambos os cônjuges. Ao menos no papel, os direitos e obrigações de homens e mulheres estão partilhados de modo equânime. Dentre os direitos conquistados por trabalhadores e trabalhadoras, encontram-se: relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa; seguro-desemprego; fundo de garantia por tempo de serviço; salário mínimo; irredutibilidade do salário; 13º salário; duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais; licença paternidade; aposentadoria e outros. Também se determinou a igualdade entre trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput). Voltados especificamente para a mulher trabalhadora, os seguintes direitos foram previstos: licença à gestante, com duração de cento e vinte dias (art. 7º, XVIII); a proteção ao mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos na forma da lei (art. 7º, XX); e a proibição de diferenciação salarial, “de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil” (art. 7º, XXX). O art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias garante estabilidade da gestante do momento da ciência da gravidez até cinco meses após o parto. Este mesmo artigo amplia a licença paternidade para cinco dias, enquanto lei não venha a tratar deste tema. É perceptível que a Constituição de 1988 significou importante avanço para os direitos e garantias fundamentais. Todavia, estas previsões de igualdade não são suficientes para resolver problemas de discriminação que as mulheres ainda sofrem em razão de gênero (OLIVEIRA, 2016). A partir de 1988, a legislação infraconstitucional precisou se adaptar para corrigir elementos de leis anteriores que discriminavam direta e indiretamente mulheres. Por exemplo, a Lei nº 8.921/1994 dá nova redação ao artigo 131 da CLT que trata de motivos que não podem ser considerados como falta ao serviço 121 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2016.
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retirando a expressão “aborto criminoso”, e deixando apenas aborto (OLIVEIRA, 2016). A correção foi efetuada parcialmente, pois o art. 395 da CLT ainda utiliza esta expressão. Nessa mesma linha, foi criada a Lei nº 9.029/1995, que proíbe “a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho (...).”122 A CLT sofreu diversas alterações para atender à Constituição de 1988. Vários artigos - tais como os art. 374, 375, 376, 378, 379, 380 e 387 – foram suprimidos, por conter cláusulas discriminatórias e previsões de horários de trabalho em desconformidade com a Constituição Cidadã. A proibição de discriminação em razão de sexo (art. 373-A), a garantia de local para amamentação para empresas com mais de trinta trabalhadoras com mais de dezesseis anos (art. 389, §1º), a previsão de estabilidade no emprego em caso de gravidez (art. 391-A), a licença-maternidade, inclusive no caso de adoção (art. 392 e 392-A), descanso para amamentação (art. 396): todos estes são direitos previstos na CLT. Polêmico é o art. 384 da CLT. Este prevê que antes do início de jornada extra, a trabalhadora tem direito a um intervalo de quinze minutos. Seria essa uma condição díspar para os homens trabalhadores? Segundo decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal em 2014123, este artigo não fere a igualdade entre homens e mulheres. A participação e pressão feminina realizada no período de concepção da Constituição de 1988 trouxe a conquista de muitos direitos. Contudo, essas medidas ainda não são suficientes para igualdade entre homens e mulheres, como aponta Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira: (...) no que diz respeito à participação das mulheres no mercado de trabalho ainda se observam limites e restrições de ordem social e cultural e, não apenas jurídica, que impedem concretamente o direito de igualdade de oportunidade e tratamento no emprego e na profissão, cujos resulta-
122 BRASIL. Lei nº 9.029 de 13 de abril de 1995. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2016. 123 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Intervalo de 15 minutos para mulheres antes de hora extra é compatível com a Constituição. Brasília, 27 nov. 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2016.
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dos práticos se refletem na exclusão social e no desrespeito a uma vida digna (OLIVEIRA, 2016, p. 268).
Conforme exposto, a igualdade feminina no mercado de trabalho só pode ser alcançada ultrapassando os existentes limites jurídicos e, principalmente, sociais e culturais.
3. As Trabalhadoras Catarinenses 3.1 Histórico das trabalhadoras catarinenses Para compreender as condições das mulheres catarinenses no mercado de trabalho, é válido um breve exame sobre a colonização e a história de Santa Catarina. Consultar registros históricos voltados às trabalhadoras não é tarefa das mais simples, haja vista que os documentos históricos eram, em sua maioria, construídos por homens, brancos e ricos. As referências consultadas, em sua grande maioria, versam sobre mulheres brancas. Ainda assim, dentro das limitações existentes, é possível traçar um panorama compreendendo mulheres e o trabalho no estado. O povoamento de Santa Catarina deu-se através da configuração de pequenas propriedades, de maneira vinculada a ações estratégico-militares de defesa e expansão portuguesa para além do estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas (PEDRO, 2004). Como aponta a pesquisadora Maria Joana Pedro (2004, p. 280): Grande parte do litoral catarinense e gaúcho foi povoado de forma planejada a partir de meados do século XVIII, com casais oriundos das ilhas dos Açores e da madeira. Essa forma de povoamento iria se repetir em meados do século XIX, como parte de um projeto de “branqueamento” e de preenchimento de “vazios” territoriais, dando o tom da população e da economia local. Diferentemente dos grandes centros exportadores, a região apresentou uma produção voltada para o mercado interno, escravidão de pequena monta e economia diversificada, resultando numa acumulação de pequeno vulto. A urbanização foi tardia em relação ao Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
No século XIX, a Região Sul do Brasil foi incluída no comércio agrário-exportador brasileiro, através do fornecimento de alimentos para o mercado 148
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interno. Isso impulsionou o crescimento das áreas urbanas, e culminou com a formação de um grupo com maior capacidade econômica nos grandes centros (PEDRO, 2004). Em Florianópolis, a elite era composta por “comerciantes, armadores, agenciadores e construtores de navios. Posteriormente, essas mesmas pessoas irão deter os meios de comunicação.” (PEDRO, 2004, p. 281) No fim do século XIX, os jornais – que eram gerenciados pela elite catarinense - traziam destaque para homens que integravam o poder judiciário, os chefes policiais, o exército, a administração, os que decidiam sobre educação, aqueles que faziam sermões religiosos, votavam e eram eleitos. Já as mulheres eram retratadas como as criadoras e educadoras das novas gerações (PEDRO, 2004, p. 282). Assim, para o homem, reservava-se o espaço público e a atividade laboral remunerada; para a mulher, cabia-lhe a casa e o cuidado com os filhos. As mulheres exerciam mais atividades urbanas em Santa Catarina do que em outros estados. Isso porque, como o estado catarinense possuía poucos negros livres ou escravos, os trabalhos urbanos da época, que nas outras regiões do país era efetuado por estes, no referido estado eram exercidos na maioria por brancos, e muitas vezes por mulheres (PEDRO, 2004). As mulheres estavam presentes nas antigas vendas e pequenas casas comerciais atendendo à freguesia, com auxílio ou não dos maridos. Por outro lado, nas grandes casas comerciais e nas atividades de transporte marítimo de grande monta, a presença feminina era escassa. Elas mantinham atividades na agricultura, nos engenhos de farinha de mandioca, na limpeza e secagem do peixe (PEDRO, 2004). Em Florianópolis, era sinal de distinção social quando a mulher era mantida em casa, realizando exclusivamente as atividades domésticas e de cuidado com os filhos (PEDRO, 2004). Na cidade de Blumenau, no fim do século XIX, percebe-se que as mulheres não estavam restritas ao trabalho doméstico, participando das atividades ditas produtivas. Estas mulheres, a maioria de origem alemã, colaboraram ativamente para o desenvolvimento industrial da região. A partir da formação do núcleo urbano, no início do século XX, a mulher blumenauense passou a ser excluída dos interesses econômicos familiares, devendo ficar restrita ao trabalho doméstico e familiar, principalmente entre as famílias mais abastadas (PEDRO, 2004). Ou seja, segue-se o mesmo padrão de comportamento da capital. 149
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No mesmo sentido, na cidade portuária de Itajaí, a valorização do isolamento feminino, do recato e dos bons costumes também existia - de modo destacado nas famílias ricas (FÁVERI, 2001). Os homens de Itajaí são retratados pela imprensa dos anos vinte como fortes e valentes, como marujos, em cargos de chefia – tudo isso para reforçar as posições de gênero (FÁVERI, 2001). Em Itajaí, havia mulheres em cargos de comando (barbearia, indústria de madeira e cereais, farmácia, hotéis, casas comerciais e agropecuária). Há registros de mulheres parteiras, que atendiam em grande parte as mulheres pobres da cidade (FÁVERI, 2001). Mais ao norte do estado, em Joinville - outra cidade de colonização predominantemente alemã - há relatos de trabalhadoras imigrantes que decidem partir para outras cidades (Rio de Janeiro, Florianópolis, Santos) em busca de melhores salários. Tal prática era malvista socialmente (SILVA, 2001). Apesar de pouco divulgado, as mulheres catarinenses trabalharam, inclusive, na indústria de mineração, na Região Carbonífera de Santa Catarina. O trabalho feminino nas minas de carvão se deu de modo mais acentuado entre 1937 e 1964, na cidade de Criciúma e proximidades (CAROLA, 2001). Em 1940, a indústria carbonífera estava com o mercado consolidado, e, para atrair mão-de-obra, as mineradoras construíram casas e infraestrutura para os trabalhadores e trabalhadoras. A classe mineradora que se formou era originária de famílias pobres de outras pequenas cidades e vilarejos do sul, que antes viviam da pesca e da agricultura. A principal atividade feminina nos primórdios da mineração (até 1960) consistia na escolha e seleção do carvão - elas eram “escolhedeiras” (CAROLA, 2001). Apesar de atividade insalubre, vedada por lei às mulheres, percebe-se que na prática ela ocorria de modo reiterado. Porém, entre 1955 e 1965 ocorreu a masculinização das minas de carvão, fruto de uma redefinição sexual do trabalho, que buscou desenvolver o perfil das mulheres das cidades do carvão como mães, esposas e donas de casa (CAROLA, 2001). Em análise realizada sobre os colonos de origem alemã e italiana do oeste catarinense, as associações de agricultores contavam apenas com o nome do marido nas placas de identificação. A partir dos anos oitenta, esta realidade começa a mudar, e o nome das mulheres passa a ser incluído. Com o advento da Constituição Federal de 1988, as mulheres passam a exigir que conste em seus títulos eleitorais a profissão: agricultora, para garantia de direitos sociais (RENK, 2001). 150
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Deste modo, o papel dessas mulheres do meio rural catarinense se alterou nos significados: não mais “do lar”, agora, agricultora; não mais “ajudante do marido na lavoura”, mas sim trabalhadora do campo. A visão de hierarquização entre o feminino (“a ajuda”) e o masculino (“o trabalhador principal”) é parcialmente quebrada, em razão dos direitos constitucionais conquistados (RENK, 2001). Na indústria catarinense, a mão-de-obra foi composta por mulheres e também crianças, além de homens. Todavia, (...) as imagens idealizadas que serviam de referência de distinção para a elite urbana foram utilizadas como justificativa, por parte dos empresários, para o pagamento de baixos salários e, por parte de muitos líderes operários, para a tentativa de exclusão das mulheres e crianças do mercado de trabalho (PEDRO, 2004, p. 292).
Como já exposto, a elite catarinense se diferenciava através dos padrões de isolamento feminino. Contudo, grande parte das mulheres não conseguia se identificar com este padrão, pois as condições econômicas de grande parte das famílias não permitiam a adoção deste modelo (PEDRO, 2004). Seja na roça, na pesca, nas indústrias, nos comércios, na mineração: as mulheres catarinenses atuaram com frequência de forma a quebrar o padrão de mulher voltada unicamente às atividades domésticas.
3.2 As trabalhadoras de Santa Catarina no século XXI A partir de sua construção histórica peculiar, dentre outros fatores, Santa Catarina é um dos estados brasileiros com maior número de empregos formais (SANTOS, 2012). Em 2013, pela primeira vez, a taxa de formalidade entre as mulheres ocupadas foi superior ao registrado para homens. No referido ano, a formalidade foi de 77% para as mulheres, e de 76% para os homens (SANTOS, 2012). A presença de mulheres no mercado de trabalho catarinense subiu de 34,3%, em 1986, para 41,68 %, em 2006. Porém, em 2008, as mulheres catarinenses representavam quase o dobro do contingente masculino de desempregados (COAN, 2008).
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Esta maior participação das mulheres na composição da força de trabalho catarinense se deve (...) a melhor qualificação profissional, ao aumento do grau de instrução e, como foi citado anteriormente, ao fato de que as mulheres, mesmo quando qualificadas, por medo de permanecer desempregadas, acabam por “agarrar” a primeira oportunidade que lhes aparece. Isto faz com que, em muitos casos, trabalhadoras bem qualificadas sejam ocupadas em atividades precárias, recebendo baixos salários. Não se pode esquecer que a redução da fecundidade das mulheres catarinenses também foi um dos fatores responsáveis pela maior participação de mulheres em atividades econômicas. O maior desafio a ser superado pelas trabalhadoras talvez seja as diferenças salariais que persistem (COAN, 2008, p. 58-59).
Quanto à taxa de fecundidade, que corresponde a um dos fatores de aumento da quantidade de mulheres na população economicamente ativa, os menores valores nacionais são encontrados em Santa Catarina e no Distrito Federal (1,57 filhos por mulher). A média nacional é de 1,74 filhos por mulher (IBGE, 2015). De acordo com relatório de 2015, “da população economicamente ativa no estado de Santa Catarina, isto é, das pessoas que se encontram trabalhando ou dispostas a trabalhar, as mulheres representam 44% do total.” (SANTOS; ROSA, 2011, p. 3). As mulheres também correspondem a 44% das pessoas empregadas no estado. Elas são maioria entre os trabalhadores domésticos (90%), trabalhadores na produção para o próprio consumo (59%) e não remunerados (78%). Vale destacar que estas atividades não são remuneradas, ou são funções com remuneração consideravelmente inferior às demais, como o caso das trabalhadoras domésticas (SANTOS; ROSA, 2011). Em contraponto com os homens, a maior parcela da força de trabalho feminina se dá na administração pública, em que as mulheres representam 62% do total de servidores. No setor de serviços, elas são 50% do total de trabalhadores; no comércio, 47%. Em Santa Catarina, a menor participação feminina é encontrada no setor de extração mineral, em que elas ocupam apenas 7% dos postos. Esta porcentagem é próxima à existente no ramo da construção civil, no qual as mulheres correspondem a 8% da força de trabalho (SANTOS; ROSA, 2011).
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Como já comentado, os desafios da trabalhadora catarinense concentram-se principalmente no quesito remuneração. Em média, elas recebem 21% a menos do que os trabalhadores. Fazendo-se uma análise por setores, a maior diferença se encontra na indústria de transformação, em que o rendimento feminino equivale a 66% o do masculino. A menor diferença se dá na construção civil, em que elas recebem 98% do salário dos homens (SANTOS; ROSA, 2011). Em todos os ramos de trabalho, os homens recebem mais do que as mulheres. Para um estado que está dentre os que melhor distribuem a renda no país124, tal diferenciação entre os gêneros aponta um problema. Esta distinção aparece também no momento da contratação. As mulheres, em média, recebem o equivalente a 85% do que os homens auferem ao adentrar o mercado de trabalho. Como recém-contratadas, elas têm remuneração média de R$ 1.070,30; os homens, de R$1.258,86 (SANTOS; ROSA, ANO). Apesar de receberem menos, as mulheres de Santa Catarina são 59,7% das pessoas com nível superior completo. E é justamente dentre os cargos que exigem maior educação formal que se evidencia ainda mais a disparidade de renda das trabalhadoras em relação aos trabalhadores (SANTOS; ROSA, 2011). Pode-se considerar que há uma segregação no trabalho, que restringe as mulheres aos cargos de menor prestígio e remuneração.
4. Considerações Finais A falta de documentação e valorização não é sinônimo de que o trabalho da mulher nos séculos passados era inexistente. Por exemplo: a agricultora catarinense sempre “ajudou” o marido na roça, mas a percepção desta atividade como trabalho só fica mais visível após a Constituição de 1988. Do mesmo modo, muitas mulheres da Região Carbonífera colaboraram com as atividades de mineração (insalubres), apesar da antiga vedação feminina para estas atividades. Na pesca, no campo, nas minas, na indústria, no comércio: a ocupação do espaço pelas trabalhadoras ocorreu, e ainda ocorre, apesar das restrições culturais e pela falta de amparo legislativo.
124 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Op. cit, p. 83.
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Somente em 1932 surge legislação brasileira especificamente para a mulher trabalhadora. E, mesmo assim, algumas “proteções legais” possuíam caráter discriminatório - como a proibição do trabalho noturno, por exemplo. Percebe-se que os avanços previstos pela Carta Magna ainda são recentes, e são o resultado da batalha de mulheres que atuaram e fizeram pressão na Assembleia Nacional Constituinte. Em Santa Catarina, as maiores diferenças de remuneração são encontradas na faixa de trabalhadores e trabalhadoras com maior nível de instrução. Elas recebem menos (cerca de 21%), apesar de estudarem mais. No estado, elas são maioria nos setores em que são piores remunerados. A distribuição do mercado de trabalho catarinense leva ao entendimento de que há áreas laborais dominadas por mulheres, enquanto outros campos continuam restritos aos homens. Esta divisão é resultado dos limites culturais e sociais quanto à questão de gênero em Santa Catarina. A garantia da igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho está prevista constitucionalmente, porém precisa de muito empenho político e social para se consolidar.
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A Regulamentação do Trabalho Doméstico no Brasil The Regulation of Domestic Work in Brazil Luana Renostro Heinen125 Marina Barcelos de Oliveira126
Resumo: O presente estudo é dedicado ao trabalho doméstico no Brasil, sua história e os caminhos trilhados até a sua efetiva regulamentação. Restará demonstrado que esta categoria de trabalho, majoritariamente representada por mulheres negras, apresenta, até hoje, indicadores socioeconômicos alarmantes. Diante disso, são esclarecidos quais direitos estão garantidos pela ordem jurídica atualmente, especialmente a partir da aprovação da Emenda Constitucional nº 72 e da Lei Complementar nº 150/2015. Também é apresentada a distinção entre empregada doméstica e diarista, discutindo-se a precarização dessa última. Por fim, abordamos as dificuldades acerca da sindicalização. Palavras-chave: Trabalho doméstico. Empregada doméstica. Diarista. Lei Complementar nº 150/2015. Sindicalização. Abstract: This study is dedicated to domestic labour in Brazil, its history and the paths to its effective regulation. It will be demonstrated that this work category, mostly represented by black women, shows, until today, alarming socio-economic indicators. Therefore, we clarify what rights are guaranteed by law now, especially since the approval of Constitutional Amendment No. 72 and Complementary Law No. 150/2015. Also, we present the distinction 125 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela UFSC. Professora da Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB e da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”. 126 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do Programa de Educação Tutorial PET-Direito UFSC. Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC.
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between domestic employees and diarists, discussing the precariousness of this last one. Finally, we address the difficulties about unionization. Keywords: Domestic work. Domestic employee. Diarist. Complementary Law No. 150/2015. Unionization.
1. Introdução Maria127, empregada doméstica, tem 76 anos. Ela trabalha há mais de 30 (trinta) anos para a mesma família. Seu local de trabalho, a residência da família, fica em um prédio de luxo localizado na capital de algum estado do Brasil. Maria chega para seu trabalho em uma manhã de segunda-feira. Uma falha no sistema elétrico de um dos elevadores impede que ele funcione. Isso não seria um problema, afinal, há outro elevador. Mas Maria é impedida de usar o outro elevador, pois o elevador que lhe cabe é somente o elevador de serviço. Não pode ela, uma serviçal, uma empregada doméstica, utilizar o elevador social. Seu lugar é outro, seu lugar é o espaço doméstico, o serviço, a cozinha, não o espaço público, não o elevador social. Esse relato foi produzido a partir de informações reais, colhidas em uma campanha que foi feita nas redes sociais por uma ex-empregada doméstica, Joyce Fernandes128. A campanha “Eu, empregada doméstica” recebeu inúmeras colaborações e relatos de empregadas sobre as situações humilhantes às quais são submetidas no ambiente de trabalho. O caso de Maria e das milhares de mulheres, empregadas domésticas, é revelador da posição social de desigualdade que essas trabalhadoras ocupam. Seu trabalho é pouco valorizado, não possuem lugar de fala e não são, muitas vezes, reconhecidas como trabalhadoras. A exclusão dessas trabalhadoras129 do acesso aos direitos trabalhistas marca também a trajetória da regulamentação do trabalho doméstico no Brasil. Elas só foram consideradas trabalhadoras em 1972, vinte e nove anos após a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho 127 Nome fictício. 128 Informações disponíveis na reportagem de Vanessa Bárbara (2016): . 129 Considerando-se que o trabalho doméstico é majoritariamente realizado por mulheres, optamos por utilizar genericamente a expressão “as trabalhadoras domésticas”.
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que assegurou direitos às demais categorias profissionais. Além disso, esses direitos foram sendo conquistados muito lentamente, a cada período de tempo um novo direito era conquistado. Manteve-se, assim, durante muito tempo, a desvalorização do trabalho doméstico, colocando essas trabalhadoras em posição inferior com relação aos demais trabalhadores. Propomos contar nesse artigo a história da regulamentação do trabalho doméstico no Brasil e expor a atual situação dessas trabalhadoras. Esclareceremos quais direitos lhes são conferidos pela legislação hoje, especialmente a partir da aprovação da Emenda Constitucional nº 72 de 2013 e da Lei Complementar nº 150 de 2015, lei que regulamentou vários dos direitos de modo a concretizá-los. Apresentaremos a distinção entre empregada doméstica e diarista, discutindo a situação de precarização dessa última. Também discutiremos os problemas e as dificuldades em torno da sindicalização dessas trabalhadoras. Os problemas se relacionam com a autonomização e o isolamento gerado pelo local de exercício do trabalho, mas também pela falta da contribuição sindical obrigatória que possibilitaria aos sindicatos meios financeiros para sobreviverem e desempenharem adequadamente suas atribuições. A maior sindicalização dessas trabalhadoras é um passo importante não somente para garantir direitos, mas também para realizar plenamente a inclusão e o direito constitucional à isonomia.
2. Breve Histórico do Trabalho Doméstico no Brasil O trabalho doméstico está presente no Brasil desde os tempos em que ainda perdurava nestas terras aquele que foi o mais longo sistema de escravidão da história ocidental (DORA; VASCONCELOS, 2015, p.14). Após a abolição da escravidão, em 1888, essa espécie de serviço atingiu o patamar de trabalho para aqueles que eram, agora, cidadãos e cidadãs livres. Entretanto, foi apenas 100 anos após a abolição, com o advento da Constituição Federal de 1988, que esta categoria de trabalhadoras conseguiu atingir seus direitos mínimos, e apenas em 2013 alcançou um real patamar de equidade (de proteção jurídica) em relação aos demais trabalhadores urbanos. Hoje, o trabalho doméstico representa uma das maiores categorias de trabalhadores do país (DIEESE, p.3) e um mercado muito importante quando
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se analisa a economia doméstica das famílias brasileiras130. Estudos recentes apontam que dentre as 6,019 milhões de pessoas que realizam trabalho doméstico no Brasil, 92% são mulheres e, dentre estas, 63% são negras (DORA; VASCONCELOS, 2015, p. 15). Ademais, ao contrário do que alguns poderiam esperar, essa discrepância evidente em relação ao número de mulheres negras e não negras no trabalho doméstico não para de crescer131. E o que é mais preocupante é que, conforme diversas estatísticas apontam, essas mulheres são exatamente as que estão mais sujeitas às piores condições de trabalho. A citar, por exemplo, o fato de que o percentual de trabalhadoras domésticas sem carteira assinada é maior entre as mulheres negras do que entre as mulheres não negras (DIEESE, 2013, p. 12). Evidencia-se, então, que desde os tempos da escravidão até a contemporaneidade, o perfil das trabalhadoras domésticas não mudou: a categoria ainda é majoritariamente dominada por mulheres negras e pobres, com condições de trabalho inferiores às demais categorias de emprego – reflexos claros de uma sociedade na qual ainda perduram a divisão sexual do trabalho, uma herança escravocrata, o racismo e a consequente baixa remuneração percebida pela categoria. De fato e por muito tempo, o que se percebia nos lares brasileiros (antes, em maiores números do que hoje) era uma mera reinvenção da escravidão (DORA; VASCONCELOS, 2015, p. 16), visto que muitas mulheres recebiam, em troca de sua mão de obra, nada mais do que casa e comida. Essa problemática ainda não foi totalmente superada, visto que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2011), ainda nos dias de hoje, mais de 30 mil trabalhadoras domésticas não possuem renda própria - um dado que indica trabalho análogo ao trabalho escravo.
130 “As trabalhadoras domésticas representam, segundo dados do IBGE de 2013, 7,8% da população economicamente ativa do Brasil. Trata-se da maior quantidade de empregos domésticos do mundo”. (PAESE, 2015, p. 56) 131 De acordo com o DIEESE, em relatório sobre o Emprego Doméstico no Brasil, “entre 2004 e 2011, a proporção de mulheres negras ocupadas nos serviços domésticos no país cresceu de 56,9% para 61,0%, ao passo que entre as mulheres não negras observou-se uma redução de 4,1% pontos percentuais, com a participação correspondendo a 39,0%, em 2011. Em todas as regiões do país, a tendência de elevação do percentual de trabalhadoras domésticas negras esteve presente” (DIEESE, 2013, p. 6).
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O reconhecimento do trabalho doméstico perante a legislação pátria e a conquista e garantia de direitos foram atingidos lenta e gradativamente, através de uma história de lutas das trabalhadoras. Em uma cronologia sintética, podemos compreender a ascensão da categoria da seguinte forma: I) em 1930, o Ministério do Trabalho reconhece a existência da categoria; II) em 1943, promulga-se a Consolidação das Leis Trabalhistas – todavia, o trabalho doméstico não é reconhecido como parte deste mercado de trabalho; III) apenas em 1972, com a força da Lei n.º 5.859, o trabalho doméstico é reconhecido e regulamentado pela primeira vez; IV) em 1988, com o advento da Constituição Federal, os direitos das empregadas domésticas foram ampliados, mas não foram igualados aos(às) demais trabalhadores(as) urbanos(as); V) em 2013 a Emenda Constitucional nº 72; VI) recentemente, em 2015, com a aprovação da Lei Complementar nº 150, houve a regulamentação da mencionada E.C. nº 72 e também o acréscimo do acesso à instituição do Simples Doméstico. A Lei nº 5.859 de 1972 foi a primeira lei especial dirigida às trabalhadoras domésticas. Dentre os direitos garantidos por ela, estavam a obrigatoriedade da filiação do empregado à Previdência Social e a anotação obrigatória na CTPS132. Apesar de se tratarem de conquistas importantes, a lei ainda estava muito aquém do esperado, visto que já havia diversos outros direitos garantidos aos empregos urbanos à época que não eram concedidos às empregadas domésticas. O momento antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 foi marcado por um período de unificação da categoria ao longo do território nacional e de intensificação das pautas e das lutas pelos direitos das empregadas domésticas. Em 1985, ocorreu o 5º Congresso Nacional de Trabalhadoras Domésticas em Recife, Pernambuco. Foi um marco importante para a categoria, um evento histórico que acabou resultando na criação do Conselho Nacional de Trabalhadoras Domésticas do Brasil, existente e atuante até hoje. Creuza Maria Oliveira, trabalhadora doméstica e atual presidente da FENATRAD133, relata sua experiência nesta época, como participante na luta por estes direitos:
132 Sigla para Carteira de Trabalho e Previdência Social. 133 FENATRAD: Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas.
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Fomos participando de congressos, de debates, de seminários, de encontros regionais. Depois a gente conseguiu os direitos da Constituição de 1988. Foi muito bonita a nossa mobilização em Brasília, tendo Benedita da Silva como nossa porta-voz. Tivemos uma audiência com o presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, que foi também um momento marcante. Estávamos lá com as camisas: ‘Constituição sem direito de empregada doméstica não é democracia’. (OLIVEIRA, 2015, p. 36)
A Constituição Federal de 1988 prometia pautar a valorização do trabalho humano, mas não trouxe a esperada igualdade das empregadas domésticas aos empregados urbanos. Ainda assim, trouxe alguns novos direitos à classe, uma vez que concedeu a aplicação de 9 (nove) incisos do art. 7º (salário-mínimo, irredutibilidade de salários, décimo terceiro salário, férias anuais acrescidas de 1/3, licença gestante, licença paternidade, aviso prévio, repouso semanal remunerado e aposentadoria) à categoria. Foi apenas em 2013, com a Emenda Constitucional nº 72 – também conhecida como PEC da Isonomia – que se alcançou a almejada igualdade entre as trabalhadoras domésticas e os trabalhadores urbanos. A E.C. nº 72 acresceu mais 19 (dezenove) incisos ao art. 7º da CF/88. Dentre estes incisos, 7 (sete) necessitavam de regulamentação por lei complementar – o que veio a culminar na Lei Complementar nº 150, promulgada recentemente, em 2015. Atualmente, encontramo-nos diante de um momento marcado pelo desafio da implementação da lei em todo o território nacional. A eficácia desta lei depende da expansão desses direitos e da superação de um obstáculo histórico: a informalidade. E esse é um obstáculo visivelmente grande, uma vez que no Brasil, em média, apenas 32,3% das trabalhadoras domésticas têm o devido registro na carteira de trabalho. (DORA; VASCONCELOS, 2015, p. 20) Para além da formalização, a garantia das condições de trabalho decente134 à categoria das trabalhadoras domésticas ainda tem uma longa trajetória a ser calcada. É evidente que a herança escravocrata do país deixou efeitos duradouros no sistema político135, social e econômico, que não seriam facilmente supe134 A definição de trabalho decente é dada pela OIT - Organização Internacional do Trabalho, e pode ser consultada na “Convenção e Recomendação sobre Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos” de 2011. 135 Os argumentos que fundamentam esta afirmação, bem como as possibilidades de contra-argumentação, podem ser consultados em CFMEA, “Direitos das Trabalhadoras Domésticas: comentários sobre legislação atual, conquistas e lacunas”. Brasilia. 2007.
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rados. Além disso, há especial dificuldade em atingir essas trabalhadoras, visto que muitas se encontram isoladas em seu ambiente de trabalho, sem o alcance ou acesso aos recursos que lhes poderiam possibilitar lutar por seus direitos.
3 Os Direitos das Trabalhadoras Domésticas e sua Regulamentação Hoje no Brasil Depois de um longo período de exclusão e de diferenciação entre o trabalho doméstico e as demais atividades laborais, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 72 de 2013 e da Lei Complementar nº 150 de 1º de junho de 2015, finalmente os direitos trabalhistas foram estendidos em sua plenitude às empregadas domésticas. Concluiu-se o que Maurício Godinho Delgado nomeia fase de inclusão jurídica dessas trabalhadoras, que havia se iniciado em 1972. Por isso, pode-se afirmar que a LC nº 150 de 2015 foi responsável por aproximar significativamente as empregadas domésticas e os outros empregados, com exceção do auxílio creche, pode-se afirmar que os demais direitos foram assegurados. Além de prever direitos e regulamentar outros, a LC 150/2015 estabelece condições específicas do contrato de trabalho doméstico. A seguir sinalizamos quais são os direitos assegurados hoje às empregadas domésticas no Brasil. A LC nº 150/2015 colocou fim à polêmica jurisprudencial e doutrinária sobre a distinção entre diarista e empregada doméstica. Em seu artigo 1º conceitua empregada doméstica e esclarece que a prestação contínua de serviço doméstico deve ser realizada mais de 2 (duas) vezes na semana para que se configure o vínculo empregatício. Assim, a diarista é a prestadora de serviços domésticos de forma descontínua, até duas vezes por semana. Não se estabelece o vínculo de emprego entre a trabalhadora diarista e seu tomador de serviço e a ela não se asseguram os direitos trabalhistas, justamente porque a sua prestação de serviço não cumpre um dos elementos caracterizadores do vínculo de emprego - a não eventualidade. O trabalho prestado pela diarista é eventual. A diarista permanece em uma condição em que seus direitos não são plenamente assegurados, ela se configura como uma profissional autônoma e dela se exige que seja capaz de garantir por si própria sua inserção na previdência social para que possa desfrutar de aposentadoria no futuro ou, ainda, manter seu 165
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sustento em caso de ocorrência de algum acidente de trabalho ou de qualquer doença que a impeça de trabalhar. A vulnerabilidade vivenciada pelas diaristas é muito grande e, se ficam doentes, não trabalham e consequentemente, não recebem salário. O ritmo de trabalho também é mais intenso, uma vez que fazem em um ou dois dias, a limpeza de toda a casa. Por outro lado, o trabalho por dia pode representar para essas mulheres, além de uma jornada mais flexível, a combinação de emprego doméstico e outras atividades, como a realização das tarefas domésticas em suas próprias casas, além de melhor remuneração por hora trabalhada. Permite também que busquem outro trabalho que ofereça melhores condições. O crescimento do número de diaristas aponta para uma mudança de perfil do trabalho doméstico, mesmo antes da ampliação da legislação. O aumento do salário mínimo, a diminuição do tamanho das famílias, das residências e a incorporação de novos hábitos, entre outros fatores, podem ajudar a explicar parte dessas mudanças. (DIEESE, 2013, p. 10-11)
A condição paradoxal das diaristas – maior autonomia, porém, menos direitos – apresenta-se, segundo o DIEESE, como resultado de uma mudança na sociedade brasileira. Já a empregada doméstica trabalha de forma não eventual, mais de duas vezes na semana. Seu trabalho cumpre os demais requisitos para a configuração do vínculo de emprego: subordinação, onerosidade e pessoalidade – conforme estabelece o art. 1º da LC nº 150/2015. A lei não menciona o critério da prestação do trabalho por pessoa física, porém, pode-se afirmar que está subentendido. Também há requisitos específicos do emprego doméstico, estabelecidos pela LC nº 150/2015: a finalidade não lucrativa e a prestação do trabalho no âmbito residencial da pessoa ou da família. Se esses requisitos fáticos não estiverem presentes, por exemplo, o trabalho não seja prestado no âmbito residencial, mas na sede de uma empresa da família, não se configurará o emprego doméstico e não será aplicável a LC nº 150/2015, mas incidirá a CLT e/ou outras leis específicas, conforme o caso. Com a adoção da EC nº 72 de 2013, foi assegurado às trabalhadoras domésticas o salário mínimo mensal ou o piso regional, nos estados em que houver; jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais, observância das normas de higiene, saúde e segurança no trabalho, vedação à discriminação 166
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que implique diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivos de sexo, idade, cor, deficiência ou estado civil. A EC nº 72 de 2013 também previu a inserção da trabalhadora doméstica na previdência social, o que foi regulamentado pela LC nº 150/2015 que passou a prever a contribuição de 8%, 9% ou 11% pela trabalhadora, conforme sua faixa salarial e reduziu a contribuição do empregador para 8%. Assim, a trabalhadora doméstica tem direito à aposentadoria pelo INSS conforme os termos e requisitos estabelecidos pela CF, art. 201, § 7º, quais sejam, 30 (trinta) anos de contribuição e 60 (sessenta) anos de idade para as mulheres. A empregada doméstica também tem direito ao seguro contra acidentes no trabalho, a contribuição social para garantir esse seguro é de 0,8% da remuneração, a ser paga pelo empregador, segundo a LC nº 150/2015. Também é direito da empregada doméstica perceber adicional noturno nos casos em que realize seu trabalho entre 22h e 5h. A hora é considerada mais curta (52 minutos e 30 segundos) e será remunerada com acréscimo de 20% do valor da hora diurna. O adicional por viagem também foi assegurado à doméstica que precise se deslocar acompanhando o empregador em viagem, sendo que a remuneração das horas prestadas em viagem será de 25% maior do que o salário-hora normal. A empregada doméstica que realizar sobre-jornada receberá pelas horas extras, que podem ser cumpridas no limite máximo diário de 2 horas. Estas serão remuneradas com valor 50% maior do que a hora normal. A LC nº 150/2015 também estabelece a possibilidade de se criar um banco de horas quando as horas extras mensais ultrapassem 40h. O tempo excedente terá validade de 12 meses. Como contribuinte da Previdência e pela regulamentação da LC nº 150/2015, a empregada doméstica também passou a ter direito ao seguro desemprego, nos mesmos termos dos demais trabalhadores - quando se trate de desemprego voluntário, no caso de dispensa sem justa causa. Um dos grandes avanços da LC nº 150/2015 foi garantir, ainda, o FGTS que, antes da lei, era facultativo. Assegurados esses direitos, aos poucos se completa a inclusão jurídica das empregadas domésticas e se reconhece a importância desse trabalho que tem sido tão menosprezado e diminuído na sociedade brasileira.
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4. A Sindicalização: de uma Conquista Histórica aos seus Desafios Atuais Como observamos até agora, a história do trabalho doméstico no Brasil é profundamente marcada por intersecções de opressões136 entre gênero, classe e raça. Essa história é também construída por mulheres negras. O movimento das trabalhadoras domésticas, através de importantes figuras de lideranças, “garantiram visibilidade para a luta por reconhecimento profissional e igualdade de direitos em relação aos demais trabalhadores”. (PAESE, 2015, p. 58). Uma dessas figuras foi Laudelina de Campos Melo. Laudelina foi citada em diversas obras e trabalhos acadêmicos, além dos próprios capítulos da história. Era uma figura política fortemente atuante. Participou do movimento negro tanto na sua cidade natal – Poços de Caldas, em Minas Gerais – quanto no Estado de São Paulo, nas cidades de Santos e na própria capital. Foi militante, inclusive, da Frente Negra Brasileira e filiada, também, ao Partido Comunista. (PAESE, 2015, p. 59) Durante toda sua vida, revezou entre o trabalho como empregada doméstica e a militância pelos direitos da categoria. Laudelina deu início ao movimento das trabalhadoras domésticas, quando fundou, em 1936, a primeira Associação Profissional dos Empregados Domésticos de Santos, com o objetivo de conquistar o status jurídico de sindicato. Além disso, fazia parte de grupos culturais que tinham o objetivo de “construir e fortalecer a solidariedade da população negra” (BERNARDINO-COSTA, 2007, p. 79). Assim, dialogava com todos (as), até mesmo os mais estudiosos, e inclusive almejava falar com o Presidente da República. Sua história de vida e o seu papel transformador na sociedade foram profundamente abordados na obra de Bernardino-Costa (2007), levando-o a reconhecer que [...] já na ocasião da fundação da primeira associação de trabalhadoras domésticas, constatamos a interação das trabalhadoras domésticas com diversos outros atores sociais. Esta interação passa a ser fundamental não somente para o desenho de projetos políticos, mas para a construção de novas interpretações e significações acerca da nação, do traba136 Kimberlé Crenshaw, professora de Direito da Universidade da Califórnia, foi uma das primeiras mulheres a surgir com a ideia de interseccionalidade nas formas de opressão, na década de 80. Para maior aprofundamento na questão, consultar CRENSHAW, 1997.
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lho doméstico e das relações raciais no país. (BERNARDINO-COSTA, 2007, p. 80)
A concretização do trabalho que havia sido iniciado por Laudelina – qual seja, o direito à sindicalização – aconteceu em 1988, com o advento da Constituição Federal. Atualmente, com este direito garantido, existem 24 sindicatos cadastrados na FENATRAD137, presentes em 13 estados. Ainda assim, este número é pouco expressivo. De acordo com PAESE (2015), a grande maioria dos sindicatos de trabalhadoras domésticas existentes encontram-se desestruturados, muitos deles sem conseguir obter seu registro formal, especialmente por conta de ausência de condições e meios para desempenho de suas atividades. A OIT (2012, p. 24) orienta que os sindicatos, assim como os órgãos públicos, “deverão encaminhar as situações a si levadas pelos trabalhadores, prestando assistência e fornecendo informações relativas aos contratos e às rescisões de trabalho dos contratos de trabalho.” Além da atuação na assistência e assessoria em direitos, caberia aos sindicatos promover campanhas em prol das trabalhadoras domésticas e negociações coletivas com sindicatos de empregadores. Entretanto, devido à expressiva ausência de sindicatos de empregadores, por conta de suas características próprias, a maiorias dos sindicatos não consegue dedicar-se às demandas coletivas como seria esperado. Sobre isso, PAESE (2015, p. 61) afirma que “ainda não há uma perspectiva concreta”. Um dos principais fatores limitantes para a atuação dos sindicatos das trabalhadoras domésticas é que estes dependem das contribuições espontâneas de suas associadas, ou seja, não contam com a contribuição sindical obrigatória, o que se revela “insuficiente e inviável dado o baixíssimo grau de sindicalização da categoria e dos altos graus de atomização da categoria”. (PAESE, 2015, p. 58) Para as demais categorias de trabalho urbano, a contribuição sindical obrigatória – também conhecida como “imposto sindical”, é descontada igualmente de todas (os) da categoria e se direciona a sustentar a estrutura do sindicato e suas atividades. A Lei Complementar n.º 150/2015 deixou de contemplar esse 137 FENATRAD é a sigla para Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas. A FENATRAD mantém relações com todos os sindicatos de trabalhadoras domésticas do país, incentivando o fortalecimento das entidades. As informações sobre os sindicatos atualmente cadastrados encontram-se disponíveis em: . Acesso em: 19/08/2016.
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aspecto fundamental. Infelizmente, a falta da contribuição obrigatória é o principal fator responsável pela inviabilidade de existência dos sindicatos. Todavia, mesmo com a falha em garantir o sustento econômico dos sindicatos, a nova legislação traz expectativas muito positivas para que se possa atingir um novo padrão nas relações de trabalho doméstico (PAESE, 2015). Em síntese, apesar de ter sido historicamente desvalorizado com a negação de direitos, o trabalho doméstico no Brasil é também marcado por muitas lutas e conquistas. A construção e o fortalecimento dessa categoria nasceram dos braços das próprias trabalhadoras domésticas e da união entre estas. O que se espera do futuro é que essas mesmas trabalhadoras tenham cada vez mais reconhecimento, tanto perante seus (suas) empregadores (as) como perante o próprio ordenamento jurídico, para que possam exercer suas profissões com a certeza de que terão respeitados seus direitos e garantida a dignidade da pessoa humana.
5. Considerações Finais No país que sustentou a escravidão por quase 400 anos, as trabalhadoras domésticas demoraram muito mais do que isso para conquistarem direitos e serem respeitadas em sua dignidade e por seu trabalho. Apesar da importância do trabalho doméstico tanto para a organização da vida social, quanto para a realização de distribuição de renda e fomento econômico, as trabalhadoras que desempenham essas atividades ainda são constantemente desrespeitadas, como ficou demonstrado na campanha “Eu, empregada doméstica”. Nesse grupo de trabalhadoras, as negras são, além disso, aquelas que enfrentam as piores condições de trabalho e remuneração e estão em maior número na informalidade. Esse quadro é preocupante, pois revela que nossa sociedade está marcada profundamente por nossa herança escravocrata, que gera racismo e contribui para a atual divisão sexual do trabalho. Na longa luta pelo reconhecimento dos direitos das trabalhadoras domésticas, o primeiro ato estatal que lhes garantiu a condição de trabalhadoras com alguns direitos (férias e ⅓ de férias, 13º salário, acesso à Previdência Social) foi a Lei n.º 5.859 de 1972. Com a Constituição Federal, esses direitos foram ampliados, mas elas continuaram uma subcategoria, na medida em que a inclusão não foi total. Em 2013, a Emenda Constitucional nº 72, conhecida como “PEC 170
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das Domésticas”, possibilitou a isonomia de direitos entre trabalhadoras domésticas e demais trabalhadores urbanos, porém, alguns desses direitos dependiam de regulamentação para serem exercidos plenamente. A regulamentação veio com a Lei Complementar nº 150 de 2015, que assegurou a essas trabalhadoras o acesso à Previdência (com redução de alíquota para o empregador, visando possibilitar maior efetividade a esse direito), adicional noturno, adicional de viagem, horas extras e banco de horas, FGTS (que passou a ser obrigatório), seguro por acidente de trabalho, seguro desemprego e salário família. Não foi regulamentado, no entanto, o auxílio creche. A LC nº 150 de 2015 também estabeleceu a definição de empregada doméstica, estabelecendo que é aquela que presta serviços, no âmbito residencial, para pessoa ou família, mais de duas vezes por semana. Com essa previsão, distingue-se a empregada doméstica da diarista. A diarista presta serviço de forma eventual e não tem direitos trabalhistas assegurados. Ela possui maior autonomia e deveria receber uma remuneração que lhe possibilitasse garantir por si só acesso à Previdência e ao sustento em caso de doença, pois estaria impossibilitada de trabalhar. A diarista enfrenta, assim, o paradoxo de possuir maior autonomia, mas sem acesso aos direitos trabalhistas. De todas as maneiras, a Lei Complementar n.º 150 de 2015 representa um dos mais significativos momentos na conquista de direitos trabalhistas pelas empregadas domésticas no Brasil. Elas são, agora, reconhecidas como uma categoria profissional portadora de direitos trabalhistas. O desafio é tornar essa legislação eficaz para que tais direitos sejam efetivamente realizados e essas trabalhadoras tenham sua dignidade, finalmente, respeitada. A pulverização dessas trabalhadoras dificulta a fiscalização quanto à observância da legislação e também é um obstáculo para sua sindicalização. O direito à sindicalização foi resultado da luta de muitas mulheres – dentre elas, Laudelina de Campos Melo, que fundou a primeira associação de empregadas domésticas, quando ainda não lhes era permitido constituir um sindicato. Consagrado na Constituição Federal de 1988, trata-se de um direito que carece de efetivação: somente em 13 dos estados brasileiros há sindicatos de trabalhadoras domésticas, em um total de 24 sindicatos cadastrados na FENATRAD. Além da pulverização dessas trabalhadoras, cujo local de trabalho – a residência – dificulta que elas se reúnam em espaços comuns, a inexistência da contribuição sindical obrigatória complica a estruturação adequada desses sindicatos. 171
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A sindicalização dessas trabalhadoras poderia ser um mecanismo para lhes permitir o conhecimento de seus direitos e também meio para fiscalizar sua efetivação. Ao sindicato caberia realizar, de um lado, a educação em direitos, e, de outro, poderia representar junto aos órgãos públicos responsáveis pela fiscalização – Ministério do Trabalho e Emprego e também o Ministério Público do Trabalho – denunciando o descumprimento da lei. A árdua trajetória das trabalhadoras domésticas no Brasil na luta por direitos e por respeito resultou em reconhecimento. São, agora, trabalhadoras e a lei lhes reconhece praticamente os mesmos direitos que os demais trabalhadores. A luta pela concretização desses direitos é, no entanto, uma constante. Além de direitos, a sociedade brasileira também deve a elas respeito e dignidade.
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Assédio Sexual: Conceitos, Legislação e Análise Jurisprudencial em Santa Catarina Sexual Harassment: Concepts, Legislation and Jurisprudential Analysis in Santa Catarina Jessyka Zanella Costa138 Marina Barcelos de Oliveira139
Resumo: A violência sexual é uma prática maliciosa que afeta homens e mulheres não importando classe social, idade, orientação sexual, raça, ou etnia. Uma das formas de manifestação dessa violência é através do assédio sexual. Por definição, o assédio sexual se revela nas relações trabalhistas, em que, necessariamente, há relação de subordinação entre empregado e empregador. As mulheres são as maiores vítimas nessas situações e sofrem as consequências mais gravosas à sua saúde física, psíquica e emocional. Por fim, apresenta-se um estudo jurisprudencial qualitativo das decisões proferidas pelo Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, o qual responde pela jurisdição de Santa Catarina, buscando enfoque em uma análise de gênero. Palavras-chave: Assédio sexual. Mulheres. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Abstract: Sexual violence is a malicious practice that affects both men and women regardless of social class, age, sexual orientation, race, or ethnicity. One of the many ways that this kind of violence manifests itself it is through sexual harassment. By definition, sexual harassment can only be revealed in labor relations, in which, necessarily, there has to be a relation of subordination 138 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Servidora Pública da SES/SC. Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC. 139 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC.
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between employer and employee. Women are the main victims in these situations and suffer the most serious consequences to their physical, mental and emotional health. At last, a qualitative jurisprudence study is presented, based on the decisions handed down by the Regional Labor Court of the 12th Region, which is responsible for the jurisdiction of Santa Catarina, seeking to focus on a gender analysis. Keywords: Sexual harassment. Women. Brazil’s Jurisprudence RLC 12th Region.
1. Introdução Não direcionada a apenas um gênero humano, a violência sexual é uma prática que atinge homens e mulheres em todas as idades, raças, classes sociais e etnias. No entanto, de acordo com o Ministério do Trabalho (BRASIL, 2016), as mulheres são as maiores vítimas dessa violência que se caracteriza como meio de exercer controle e poder sobre elas nas relações trabalhistas. Essa opressão pode se apresentar sob a forma de assédio sexual. Apesar de não ser um problema estritamente trabalhista, é nas relações de emprego que causa as consequências mais gravosas e onde se apresenta com mais frequência (BRANCO, 2013, p. 697). Isso se dá porque nas relações trabalhistas tem-se, necessariamente, a subordinação jurídica do empregado ao empregador, que presta seus serviços de forma pessoal, com poder disciplinar, mediante remuneração. O assédio sexual é crime previsto na legislação brasileira e viola os direitos humanos à medida que fere a dignidade humana, infringe o direito das trabalhadoras à segurança no trabalho e à igualdade de oportunidades, além de ocasionar danos a sua saúde. Segundo estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 50% das trabalhadoras em todo o mundo já sofreram assédio sexual e somente 1% dos casos é denunciado (BRASIL, 2011). Dessa forma, tem-se o sigilo e o silêncio como maiores aliados da manutenção dessa violência sexual.
2. Assédio Sexual: Conceitos O assédio sexual no ambiente de trabalho pode ser caracterizado pela insistência inoportuna do assediador sobre a vítima, constrangendo-a por meio de 176
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cantadas e insinuações constantes, com o intuito de obter sexo ou vantagens sexuais - ou seja, toda conduta sexual não desejada140. De acordo com Maria Luiza Pinheiro Coutinho, o conceito de assédio sexual também pode ser definido como insinuações, contatos físicos forçados, convites ou pedidos impertinentes e devem apresentar, pelo menos, uma das seguintes características: a) ser uma condição para dar ou manter o emprego; b) influir nas promoções ou na carreira da vítima; e c) prejudicar o rendimento profissional, humilhar, insultar ou intimidar a vítima (COUTINHO, 2006). A discriminação da mulher, no ambiente laboral, tem-se revelado de várias formas. Uma delas é a que decorre do assédio sexual141. A regulamentação do assédio sexual visa proteger as mulheres no ambiente de trabalho, visto que elas são a maioria das vítimas dos assédios sexuais. (LIMA, 2010, p. 65). O assédio sexual acaba recaindo sobre as mulheres, pois é muito comum que os postos de chefias sejam comandados por homens, enquanto as mulheres, sobretudo as mais jovens, ou as que estão no começo de carreira, são os alvos mais vulneráveis, vez que possuem medo de perder o emprego, ou até por insegurança, circunstâncias que induzem aceitação ou flexibilidade face às ofensas e insinuações. Esse tipo de assédio possui duas modalidades: ocorre por meio de chantagem ou intimidação. De acordo com SANTOS (2002, p. 43), a chantagem é definida como: [...] a prática de ato, físico ou verbal, de alguém visando a molestar outrem, do mesmo sexo ou do sexo oposto, no trabalho ou em razão dele, aproveitando-se o assediador da condição de superior hierárquico ou de ascensão econômica sobre o assediado, que não deseja ou considera uma molestação tal iniciativa, com a promessa de melhorar, manter ou de não modificar o status funcional da vítima ou mediante ameaça de algum prejuízo profissional, com a finalidade de obter satisfação sexual.
Observa-se, portanto, que o assediador se utiliza da chantagem para obter da vítima algum favor sexual, sob ameaça da perda de um determinado benefí-
140 Conceito adaptado de PAMPLONA FILHO, 2001. 141 Neste mesmo sentido, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1995 - CEDAW) classifica o assédio sexual no trabalho “como uma das formas de violência contra a mulher”.
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cio. Deste modo, fica evidente o abuso do assediador sobre a vítima, não sendo necessário nenhum ato de violência. Em relação à intimidação, SANTOS (2002, p. 47) ressalta que esta se conceitua: [...] pela atitude do patrão, superior hierárquico ou dirigente público, ou mesmo de colega de trabalho, de solicitar atividade sexual importuna ou indesejada ou qualquer outra investida de índole sexual, com intenção de restringir, sem motivo, a atuação de alguém no trabalho ou de criar uma circunstância ofensiva ou abusiva ou um ambiente de trabalho hostil, ainda que o assediado não venha sofrer punição ou a perder a posição funcional ostentada antes do assédio.
Diferente do assédio sexual via chantagem, em que existe uma relação de poder entre o assediador e a vítima, na intimidação isso não se revela importante. Neste caso, o assediador torna o ambiente hostil para a vítima, não sendo, necessariamente, seu superior hierárquico. De acordo com Margarida Maria Silveira Barreto, o assédio sexual se manifesta em: [...] contato físico indesejável, insinuações e piadas grosseiras, comentários jocosos e burlescos, ameaças, fofocas, maledicências, ironias e exibição de material pornográfico associados a promessas de promoção profissional. (BARRETO, 2013, p. 138).
O assédio sexual possui diversas formas práticas e morais (BRASIL, 2011), mas podemos destacar: esfregada de corpo a corpo; beliscões; apalpadas; exibição de fotos e vídeos que sugerem atividades sexuais; carícias; olhares; convites para festas íntimas; passeios a locais tranquilos ou qualquer insinuação desse gênero; repetir sistematicamente observações sugestivas; piadas ou comentários sobre a aparência ou condição sexual; enviar reiteradamente desenhos animados, desenhos, fotografias ou imagens indesejadas e de teor sexual; realizar telefonemas, enviar cartas, mensagem de texto ou e-mails indesejados, de caráter sexual; promover o contato físico intencional e não solicitado, ou excessivo ou provocar abordagens físicas desnecessárias; apresentar convites e pedidos de favores sexuais associados a promessa de obtenção de emprego ou melhoria
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das condições de trabalho, estabilidade no emprego ou na carreira profissional, podendo esta relação ser expressa e direta ou insinuada. Há, ainda, formas de assédio sexual que são indicadores de riscos ‘invisíveis’ à saúde da mulher, evidenciando a trama das relações hierarquizadas e autoritárias a que estão submetidas. São elas: interditar a fisiologia; fiscalizar as consultas médicas; inferiorizar; desqualificar profissionalmente; espalhar boatos; assediar e chamar a atenção em público; estimular rivalidades; entre outras (BARRETO, 2013, p. 140).
3. Regulamentação do Assédio Sexual no Brasil No Brasil, o assédio sexual é crime142. A Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001, introduziu no Código Penal o artigo 216-A, tipificando o crime de assédio sexual com a seguinte redação: Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
A vítima deve denunciar o fato para que, se comprovado, sejam aplicadas as sanções penais possíveis. Há também direito à indenização por danos materiais e morais que são processados na esfera cível (BARROS, 2007, p. 887). De acordo com o artigo 225, do Código Penal, a ação penal será pública condicionada à representação, pois apesar de ser de interesse público, esbarra na esfera privada da vítima, e será promovida mediante denúncia ao Ministério Público. No âmbito trabalhista, o assédio sexual também implica rescisão contratual, de acordo com BRANCO; NEVES (2013, p. 703), como também, aplicação 142 FILHO, Rodolfo Plampona. op. cit, 2001. O autor ressalta que: “Por se constituir em uma violação do princípio de livre disposição do próprio corpo, esta conduta estabelece uma situação de profundo constrangimento e, quando praticada no âmbito das relações de trabalho, pode gerar conseqüências ainda mais danosas”. O Código Penal tipifica somente o assédio sexual por chantagem, porém o assédio sexual por intimidação só gera efeitos na esfera trabalhista, como a rescisão indireta ou a dispensa do assediador por justa causa. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_ leitura&artigo_id=1826. Acesso 16 ago. 2016.
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das sanções disciplinares ao assediador que pratica o crime, como advertência ou suspensão e até demissão por justa causa, conforme previsão nos incisos ‘b’, ‘d’, ‘h’ e ‘j’ no artigo 482 da CLT, se a violência está sendo cometida entre colegas. Confira-se: Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: b) incontinência de conduta ou mau procedimento; d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena; h) ato de indisciplina ou de insubordinação; j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem.
Se o assediador é o empregador, o contrato será rescindido de forma indireta e ainda será cabível o pleito de indenização por danos morais (BRANCO, 2013, p. 703), por força do artigo 483, da CLT, nas alíneas ‘a’, ‘b’, ‘c’, e ‘e’. Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; c) correr perigo manifesto de mal considerável; e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama.
Independentemente do caso, seja o autor do assédio empregado ou empregador, a pretensão versará também sobre indenização por dano material ou moral, dada a violação do direito à intimidade, por força do disposto no art. 5º, X, da Constituição Federal. Se não há no direito infraconstitucional norma expressa proibindo todas as formas de assédio sexual, a sua vedação encontra fundamento nos art. 3º e 5º da Constituição Federal, os quais proíbem preconceitos de sexo e quaisquer
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outras formas de discriminação, assegurando igualdade de todos perante a lei e entre homens e mulheres quanto a direitos e obrigações143. Muitas vezes a vítima encontra dificuldade em obter provas com relação à prática do assédio, uma vez que o mesmo ocorre, na maioria das vezes, em ambientes fechados, quando não há ninguém olhando, sem comprovação de testemunhas. Para o ajuizamento da ação, seja na esfera criminal, trabalhista ou cível, a vítima terá que ter, no mínimo, algum lastro probatório a comprovar o assédio que sofreu no trabalho. (BRITO; PAVELSKI, 2012, p. 12) No entanto, o ônus da prova – ônus probandi -, incumbe a quem alega o fato, por força do artigo 818, da CLT. Caso não o faça, acarretará a perda na causa (BRITO; PAVELSKI, 2012, p. 12). Comprovar o que alega é um direito que a parte possui. Nos casos de assédio sexual não cabe inversão do ônus da prova (GUEDES, 2008). No entanto, admite-se a aceitação de qualquer meio de prova, inclusive gravação de conversa, imagens, vídeos, bilhetes, entre outros, não se exigindo prova robusta e inconcussa da vítima, visto que esse crime ocorre às escondidas, sem a presença de testemunhas. Nesse sentido, manifesta-se o Tribunal Superior do Trabalho: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ASSÉDIO SEXUAL PRATICADO POR COLEGA DE TRABALHO. DANO MORAL. RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR. O assédio sexual consiste no ato de constranger alguém objetivando a prática sexual, ato este que se revela nas formas verbal e não verbal. Inclui contatos físicos de cunho libidinoso, utilizando-se o assediador de intimidação ou ameaça, dentro do ambiente de trabalho ou fora dele, sempre a advir da relação profissional. Trata-se, assim, de uma grave e execrável violência à dignidade e à liberdade do ser humano no seio laboral. É certo que o ônus da prova incumbe à parte que alega (art. 818, CLT), sendo 143 Nesse sentido, a “Constituição sedimentou-se o entendimento de que os homens e as mulheres são iguais em direitos e obrigações, pois a Carta Magna proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, estado civil, idade e cor. Importante lembrar que a liberdade é considerada pública e, portanto, a obrigação de respeitá-la é imposta pelo Estado. Percebe-se que não há diferença, na Lei, entre a liberdade do homem e a liberdade da mulher”. LIMA, Maria da Glória Malta Rodrigues Neiva de. A proteção da igualdade de gênero no ordenamento jurídico nacional e internacional e os mecanismos asseguratórios. Rev. TRT - 9ª R. Curitiba a. 35, n. 65, Jul./ Dez. 2010
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da vítima do assédio o encargo de provar sua ocorrência, não podendo ser presumida. No entanto, a prova deve ser flexibilizada nesse aspecto, porquanto consciente o assediador da natureza abominável de seus atos, realiza-os de forma furtiva, longe do alcance de câmeras de vigilância e de olhares de terceiros, mostrando-se o ilícito de difícil comprovação em juízo. Desta feita, a jurisprudência é pacífica em dispensar prova robusta do assédio sexual, entendendo-se comprovado apenas com a mera prova indiciária. Em se tratando de uma espécie de prática contra a liberdade sexual, normalmente o assédio não tem testemunha ocular, devendo neste tipo de conduta ser valorado o depoimento da vítima, juntamente com indícios e presunções. Assim, é possível que a vítima não faça prova direta do assédio, mas prove que o assediador teve um comportamento de desrespeito à dignidade dos seus colegas de trabalho, tendo o costume de assediá-los. O fato de não ser o assediador superior hierárquico afasta o tipo penal, mas não descaracteriza o ilícito sob o enfoque trabalhista, haja vista a incidência do art. 932, III, do CC. No caso dos autos, a Corte local manteve a condenação em dano moral, concluindo que a ausência de negativa das tentativas de assédio, além da demissão do empregado após a ciência do fato, conduzem à convicção da ocorrência do assédio sexual. Intangível essa moldura fática (TST, Súmula nº 126), não se viabiliza a revista por violação aos arts. 7º, XXVIII, da CF, e 186, 927, ou 932, III, do CC. Agravo de instrumento desprovido. (AIRR - 1012855.2012.5.04.0541, Relator Ministro: Arnaldo Boson Paes, Data de Julgamento: 15/10/2014, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/10/2014).
O que o supracitado excerto reafirma é que o ônus incumbe à parte que alega - porém a prova pode ser flexível, eis que os atos do assediador ocorrem clandestinamente, sendo difícil a comprovação em juízo. Por isso, a jurisprudência é pacífica em dispensar a prova robusta, dando relevo especial à palavra da vítima. Importante ressaltar que o assédio sexual desencadeia uma série de problemas psicológicos nas vítimas144, podendo ocasionar danos irreparáveis em suas vidas. A ofendida pode sofrer com tensão psicológica, angústia, medo de ficar sozinha no posto de trabalho, sentimento de culpa e autovigilância acentuada (BARRETO, 2013, p. 140). 144 Nesse sentido, BARRETO (2013) relata que “o assédio sexual agrava doenças pré-existentes, evidencia a violência sutil que permeia o ambiente de trabalho, degradando as condições e as relações entre os pares” (BARRETO, 2013, p. 139).
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Há várias formas de se evitar o assédio sexual. Uma delas é instituir medidas preventivas no ambiente de trabalho, devendo a empresa estabelecer uma política de conduta e código de ética, a fim de motivar o respeito mútuo entre os trabalhadores. Destaca-se também a importância de divulgar informações sobre os assédios e criar procedimentos para recebimento de queixas/denúncias, bem como assegurar garantias aos trabalhadores que fazem a denúncia, com a obrigação de manter a sua privacidade. A base da prevenção se dá através de procedimentos reclamatórios, isto é, a partir do momento em que há a reclamação da vítima inicia-se a tomada de providências, no intuito de evitar e desestimular o assédio moral e sexual (BRITO; PAVELSKI, 2012, p. 20). A denúncia é um instrumento extremamente importante nesses casos. Dizer não ao assédio sexual é não aceitar mais que mulheres sejam vistas como objetos sexuais ou como vítimas frágeis do poder dos homens. Dizer não ao assédio é afirmar que as mulheres podem e devem ter controle sobre a própria sexualidade. É mostrar que se pode igualar a voz e o poder da mulher na sociedade não a submetendo aos papéis sociais tradicionais. Ponderoso ressaltar que pouco importa a roupa que a vítima está usando. Sua vestimenta não significa nenhum sinal verde para qualquer tipo de violência sexual. Cabe ao empregador fiscalizar o ambiente de trabalho, coibindo o abuso de poder nas relações laborais e exercitando medidas para impedir tais práticas, de modo que as relações no trabalho se desenvolvam em clima de respeito e harmonia. Não obstante, a vítima também pode realizar algumas ações para coibir a prática dos assédios, como também para servir de prova numa possível ação judicial (BRASIL, 2011). São elas: resistir e anotar com todos os detalhes das humilhações sofridas; dar visibilidade às humilhações e investidas, procurando ajuda dos colegas, principalmente aqueles que já passaram pelas mesmas situações; buscar apoio dentro e fora da empresa, junto de colegas e/ou familiares; evitar conversar com o assediador sem testemunhas (ir sempre com um colega ou representante sindical); procurar seu sindicato e relatar os fatos; denunciar os assédios no Ministério Público do Trabalho e Emprego ou nas Delegacias Regionais do Trabalho do seu Estado.
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Ressalta-se que competência para processar e julgar ações relacionadas a assédio sexual ocorridas no ambiente de trabalho é da Justiça do Trabalho145. Por fim, devemos destacar que a culpa nunca é da vítima. Só existe assédio porque existe o assediador, e é essa figura que devemos combater. Infelizmente, somente a proteção legal não é suficiente, os meios processuais falham por inviabilizarem a ocorrência do assédio nas relações de trabalho. É necessário que a sociedade se conscientize no sentido de que a vítima, em especial a mulher, merece ser respeitada enquanto ser humano e sujeito de direitos.
4. Análise Jurisprudencial Através de uma análise simples da jurisprudência catarinense, foram encontrados diversos casos paradigmáticos envolvendo assédio sexual. Dentro desse tema, as principais discussões dos órgãos colegiados se dão acerca dos seguintes aspectos: sobre a indenização, em si – quando ela é devida e quando não é; sobre o quantum indenizatório – quanto é devido para que seja justa a reparação ao dano; sobre elementos probatórios – de quem é o ônus da prova ou quais provas são consideradas válidas. O entendimento pacificado pela jurisprudência é o de que a indenização sempre é devida quando efetivamente comprovados a prática de um ato ilícito e o dano moral gerado subsequentemente por este ato (ou seja, com o devido nexo causal estabelecido). Tal entendimento encontra-se colacionado abaixo: INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. Comprovada a prática de assédio sexual, moral, a violação à honra, à dignidade, ao decoro, à integridade moral, resta configurada a ocorrência de dano, ensejador de indenização compensatória. (Processo: Nº 000405729.2013.5.12.0040. Relator: Juiz Jorge Luiz Volpato. Publicado no TRT/ SC/DOE em 12-05-2016)
145 Nesse sentido, Rodolfo Paploma salienta que: “A Emenda Constitucional nº 45/2004, modificou substancialmente as regras básicas de competência da Justiça do Trabalho, tendo destrinchado o caput original do art. 114, ‘asseando-o’ e limitando, em seus artigos, a nova competência trabalhista. Desta forma as denúncias deverão ser realizadas nos sindicatos de cada categoria, no Ministério do Trabalho e Emprego ou nas Delegacias Regionais do Trabalho e Emprego de cada Estado”. (PAMPLONA FILHO, 2001, p. 123)
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Nesse sentido, é importante destacar que as provas são elementos basilares para a possibilidade de indenização. Assim sendo, não há como exigir a indenização sem o mínimo de segurança probatória sobre o ato causador de dano. O Tribunal Superior do Trabalho sustenta, também, que a indenização é devida pois afronta a dignidade da pessoa humana, que é princípio constitucional. Ademais, relembra alguns elementos importantes para que esteja caracterizada a conduta de assédio sexual, como se demonstra abaixo: Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO ANTES DA LEI Nº 13.015/2014. ASSÉDIO SEXUAL. AFRONTA À DIGNIDADE HUMANA DO TRABALHADOR. QUANTUM INDENIZATÓRIO. O assédio sexual fere o princípio da dignidade da pessoa humana estabelecida pela Carta Magna em seu art. 1º, inciso III. (...) Assim, é devida a indenização por danos morais quando demonstrado o comportamento absolutamente impróprio do representante legal da reclamada que, em evidente abuso de autoridade e valendo-se de sua posição hierarquicamente superior, pressionava a reclamante com o fim de obter favores de natureza sexual. (Processo n.º AIRR - 672-75.2011.5.15.0132. Relatora: Ministra Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 15/06/2016. 2ª Turma. Data de Publicação: DEJT 24/06/2016)
Entende-se, portanto, que para que esteja caracterizada a conduta de assédio sexual é preciso que estejam presentes a intenção de chantagem, de vantagem, de extorsão ou de obtenção de privilégio a partir do posto de trabalho. Além disso, a conduta precisa ser repetitiva ou persistente. Ou seja, é preciso estar evidente que a situação se trata de típico abuso das relações de poder, que advém da posição hierarquicamente superior do assediador em relação à vítima assediada. Os atos de assédio podem até ocorrer fora do ambiente de trabalho, entretanto a posição privilegiada do superior hierárquico deve ter sido utilizada como instrumento de opressão para que se consumasse o ato ilícito. Neste sentido, é elucidativo o relatório da Juíza Maria Aparecida Caitano, no processo n.º 03359-2008-038-12-00-1, no qual esclarece que o assédio sexual, para que seja configurado, deve valer-se, necessariamente, do posto de trabalho como um meio de extorsão de privilégios ou vantagens indevidas. Para identificar estes casos, o que a jurisprudência costuma considerar frequente185
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mente são as características de persistência e ameaça, que são fortes evidências do assédio sexual. É importante esclarecer que a indenização não é cabível quando não houve a recusa pela parte da suposta vítima de assédio ou quando a conduta de uma das partes era autorizada pela outra. Geralmente, esse tipo de situação ocorre quando as partes já se constituíam como um casal, quando a relação entre as partes já ultrapassava a relação de colegas de trabalho. De toda forma, o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região posiciona-se no sentido de que se era possível presumir-se o consentimento (ou seja, se houvesse uma relação preestabelecida) ou se não houve a clara refutação pelo assediado, não é devida a indenização (Processo: Nº 06880-2009035-12-00-2. Relator: Juiz Amarildo Carlos De Lima. Publicado no TRT-SC/ DOE em 19/10/2010). Em algumas situações, é possível que a vítima tenha sido coagida a aceitar o ato do assediador, por medo de perder o posto de trabalho ou por quaisquer outras ameaças. Se este for o caso, certamente o direito de indenização não será indeferido. Todavia, cabe à própria vítima o ônus de provar que foi coagida e de justificar o seu “aceite” – geralmente utilizando-se do depoimento pessoal. Entende-se que a jurisprudência, ao estabelecer a restrição da necessidade de recusa, visa apenas se proteger da utilização indevida dos fins da Justiça do Trabalho. Ou seja, não raramente, encontram-se situações em que as partes litigantes recorrem ao processo judicial apenas com a finalidade de vingança, utilizando o pretexto do ambiente de trabalho para levar o litígio à esfera judicial. Superados os pontos de quando a indenização é devida ou não, cabe discussão sobre qual é o quantum indenizatório justo para cada caso em análise. Destaca-se que a jurisprudência preza pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para fixação destes valores. Neste sentido, a indenização deve trazer satisfação ao dano causado à vítima, trazendo-lhe algum conforto moral e psicológico, além de, ao mesmo tempo, servir como desestímulo à reincidência do assediador. Ademais, seguindo diversas orientações doutrinárias sobre responsabilidade civil, a jurisprudência também leva em consideração a capacidade financeira do opressor (ou a capacidade financeira da empresa para qual o opressor presta serviços), para que haja proporcionalidade, e o grau de culpabilidade do ato, para que
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seja uma decisão razoável. (Processo: Nº 0007176-15.2013.5.12.0002. Relator: Juiz Roberto L. Guglielmetto. Publicado no TRTSC/DOE em 12-07-2016.) Como não há previsão legal expressa sobre o valor da indenização, é comum que o quantum indenizatório seja discutido até a instância superior, qual seja, o Tribunal Superior do Trabalho. Nessas situações, o TST costuma se basear nos mesmos princípios supracitados e as decisões são tomadas levando-se em consideração o poder aquisitivo das partes em cada caso específico. Sobre os elementos probatórios, preliminarmente e apesar de já ter sido mencionado, destaca-se que o ônus probatório é sempre da parte reclamante, por se tratar de fato constitutivo do direito pleiteado e também por ser impossível a produção de prova negativa pela parte reclamada. É entendimento já pacificado que, nos casos de assédio sexual, a inversão do ônus da prova é impossível. (Processo: Nº 0005520-26.2010.5.12.0035. Relatora: Juíza Viviane Colucci. Publicado no TRTSC/DOE em 13-08-2012). Apesar do ônus da prova ser do reclamante, o Tribunal da 12ª Região não é omisso em relação às dificuldades experimentadas pela vítima de assédio sexual para produzir provas em sua defesa. Assim sendo, a jurisprudência autoriza a utilização de diversos meios de provas – gravação de conversa, imagens ou vídeos, bilhetes, entre outros – sem, contudo, excluir o ônus da prova da parte autora, como pode-se observar em: Ementa: ASSÉDIO SEXUAL. ÔNUS DA PROVA. Não se ignora a dificuldade que a vítima enfrenta para provar o assédio sexual por ela sofrido, porquanto os atos que o caracterizam são praticados habitualmente longe de testemunhas. Apesar disso, o ônus de demonstrá-lo é da parte que alegou o fato (art. 333,I, do CPC e art. 818 da CLT), que poderá ser ultimado por elementos indiciais indiretos. (Processo: Nº 0000484-11.2012.5.12.0042. Relatora: Juíza Maria De Lourdes Leiria. Publicado no TRTSC/DOE em 14-03-2013).
Conclui-se que a jurisprudência, apesar de flexibilizar bastante as possibilidades de obtenção de provas, é exigente quanto à necessidade de provas para possibilidade de indenização.
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5. Considerações Finais Mulheres e homens sofrem diversos tipos de violências sexuais. Aquelas, especificamente, sofrem de forma mais recorrente e sistemática nos casos de assédio sexual – uma das formas de manifestação dessas violências. O assédio sexual está muito presente no ambiente de trabalho, apesar de não se manifestar apenas ali. Ele consiste em manifestações explícitas ou implícitas, constantes ou não, de cunho sensual ou sexual, sem que a vítima as deseje. Às vezes se manifesta de forma sutil, podendo ser apenas uma ‘cantada’, ou um ‘convite para sair’, até mesmo uma promoção de cargo para a mulher. Apesar de existirem algumas modalidades de assédio sexual, a lei brasileira tipifica apenas o assédio sexual por chantagem (Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001, que introduziu no Código Penal o artigo 216-A). Por sua vez, o assédio sexual por intimidação só gera efeitos na esfera trabalhista, como a rescisão indireta ou a dispensa do assediador por justa causa. Mesmo sendo mais recorrentes os abusos sofridos pela vítima do seu superior, o assédio sexual também pode ocorrer entre colegas de mesmo nível hierárquico. No primeiro caso, aplica-se o artigo 483 da Consolidação das Leis do Trabalho, em que a/o empregada/o pode considerar o contrato rescindido de forma indireta e ainda pleitear indenização por danos morais. No segundo caso, aplica-se o artigo 482 do mesmo diploma legal, em que o abusador pode ser demitido por justa causa. É a Justiça do Trabalho competente para apreciar os pedidos de indenização por assédio sexual decorrentes da relação de emprego, conforme o artigo 114, da CRFB/88, alterado pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Dentre as consequências que a vítima sofre, além de perder o emprego, há fatores sociais e psicológicos que desencadeiam sequelas, às vezes, irreparáveis. A vítima tem seu rendimento profissional reduzido, é induzida a achar-se culpada pelo acontecido, pode desenvolver transtornos psicológicos, angústia, ansiedade e autovigilância acentuada. O assédio sexual é apenas uma das violências sofridas pela mulher. Essa prática degrada o ambiente de trabalho, que deve proporcionar, primordialmente, respeito à dignidade humana. A construção de um ambiente de trabalho saudável e sem violências é de responsabilidade de todos.
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Cabe ao empregador fiscalizar o ambiente de trabalho, coibindo o abuso de poder nas relações laborais e exercitando medidas para impedir tais práticas. Introduzir uma política de ação reclamatória, em que a vítima se sinta segura a denunciar seu abusador - para que este seja punido e suas ações evitadas - é de suma importância, visto que a base da prevenção se dá através de procedimentos reclamatórios. Cabe à vítima denunciar os abusos, seja nos setores apropriados da própria empresa, seja no Ministério Público do Trabalho e Emprego ou nas Delegacias Regionais do Trabalho. Também é fundamental resistir e anotar as humilhações sofridas; procurar ajuda de colegas para que os abusos ganhem visibilidade e saiam do aparato de proteção do silêncio; buscar auxílio de familiares e tentar sempre conversar com o assediador na presença de outros colegas. A partir da análise dos julgados do TRT da 12ª Região, observou-se que as principais discussões dos órgãos colegiados abordam os aspectos de indenização – quando é devida ou não; sobre o quantum indenizatório – quanto é devido para que seja justa a reparação do dano; e sobre os elementos probatórios – de quem é o ônus da prova ou quais provas são consideradas válidas. Nesse sentido, é entendimento pacífico da jurisprudência que a indenização sempre é devida quando forem, efetivamente, comprovadas a prática do ato ilícito e o dano moral consequente. O Tribunal Superior do Trabalho sustenta que a indenização é devida, visto que afronta a dignidade da pessoa humana. Os critérios para determinação do quantum indenizatório adotados pelo TRT da 12ª Região vão ao encontro do Tribunal Superior do Trabalho. Aqui, preza-se pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para fixar o quantum indenizatório. Analisa-se a capacidade financeira do assediador ou da empresa para qual o assediador trabalha, para que haja proporcionalidade, e o grau de culpabilidade do ato, para que haja razoabilidade. A indenização deve trazer satisfação ao dano causado à vítima, além de desestimular a prática reincidente do assediador. Em relação aos elementos probatórios, afirma-se que o ônus é sempre da parte reclamante, visto a impossibilidade da inversão do ônus da prova nos casos de assédio sexual. Por fim, entende-se que a responsabilidade por manter um ambiente de trabalho saudável é de todos e que a vítima nunca é culpada pela violência que sofre.
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_______. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Processo n.º 000552026.2010.5.12.0035. Relatora: Juíza Viviane Colucci. Recorrente: FÁTIMA ZANANDREA AGOSTINHO Recorrido: CONDOMÍNIO MERIT PLAZA FLAT RESIDENCE ROGÉRIO ZOSCHKE. Florianópolis. 13 de agosto de 2016. _______. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Processo n.º 000717615.2013.5.12.0002. Relator: Juiz Roberto L. Guglielmetto. Recorrente: TATIANE ANTUNES DOS SANTOS Recorrido: MRM MALHAS LTDA. Florianópolis. 12 de julho de 2016. _______. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Processo n.º 068802009-035-12-00-2. Relator: Juiz Amarildo Carlos De Lima. Recorrente: IANI LOUREIRO FERNANDES BAGGIO Recorrido: MANOEL DEMETRIO CARDOSO. Florianópolis. 19 de outubro de 2016. _______. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Processo: nº 000196265.2014.5.12.0048. Relator: Juiz Jorge Luiz Volpato Recorrente:RAQUEL REINERT KLEINE Recorrida: COMUNIDADE EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA EM RIO DO SUL - HOSPITAL SAMÁRIA. Florianópolis. 12 de maio de 2016 _______. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Processo: nº 03359-2008038-12-00-1. Relatora: Juíza Maria Aparecida Caitano. Recorrente: SADIA S.A. Recorrido: SONIA MARA RODRIGUES. Florianópolis. 08 de janeiro de 2016. _______. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Processo: nº 000405729.2013.5.12.0040. Relator: Juiz Jorge Luiz Volpato Recorrente: MERCADO ABC LTDA. - ME Recorrida: LUANA STEFFENS SILVESTRE (REPRESENTADA/ ASSISTIDA POR SILVANIA STEFFENS). Florianópolis. 12 de maio de 2016. _______. Tribunal Superior do Trabalho (12ª Região). 2ª Turma. Agravo de instrumento em recurso de revista. N.º 10128-55.2012.5.04.0541. Relatora: Ministra Maria Helena Mallmann. Brasília. 24 julho de 2016. _______. Tribunal Superior do Trabalho. 7ª Turma. Agravo de instrumento em recurso de revista. Nº. 10128-55.2012.5.04.0541. Relator Ministro: Arnaldo Boson Paes. Brasília. 15 de outubro de 2014.
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Assédio Moral: Conceitos, Legislação e Análise Jurisprudencial em Santa Catarina Moral Harassment: Concepts, Legislation and Jurisprudential Analysis in Santa Catarina Juliana de Alano Scheffer146 Jessyka Zanella Costa147
Resumo: A partir das últimas décadas o assédio moral passou a ser mais pesquisado e identificado como fenômeno corriqueiro nas empresas. O constrangimento moral do trabalhador, as metas impossíveis, a exclusão, as violências nem sempre perceptíveis: o artigo busca conceitos de assédio moral no Brasil, trazendo a análise da legislação aplicável voltada ao direito do trabalho. Por fim, realizou-se estudo jurisprudencial quantitativo e qualitativo das decisões proferidas pelo Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, o qual responde pela jurisdição de Santa Catarina, buscando enfoque em uma análise de gênero. Palavras-chave: Assédio moral. Direito do trabalho. Jurisprudência TRT 12ª Região. Abstract: Since the last decades, bullying has become more researched and identified as a common phenomenon in companies. The moral embarrassment of the worker, the impossible goals, the exclusion, the violence is not always perceptible: the article seeks concepts of moral harassment in Brazil, bringing the analysis of the applicable legislation focused on labor law. Finally, a quantitative and qualitative jurisprudential study was carried out on the decisions handed
146 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Servidora Pública na UFSC. Pesquisadora do GT Direito do Trabalho do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC. 147 Graduanda de Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do Grupo de Trabalho em Direito do Trabalho do Projeto de Pesquisa e Extensão Direito das Mulheres da Universidade Federal de Santa Catarina.
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down by the Regional Labor Court of the 12th Region, which is responsible for the jurisdiction of Santa Catarina, seeking a focus on a gender analysis. Keywords: Harassment. Labor law. Jurisprudence TRT 12th Region.
1. Introdução Como fator de aviltamento do ambiente de trabalho, o assédio moral é um problema antigo, mas que só recebeu atenção e interesse nas últimas décadas (HIRIGOYEN, 2008). Com o estímulo à competitividade e ao individualismo, torna-se comum a ocorrência desse evento na sociedade. Em sua lógica perversa - a qual se desenvolve por meio de comportamentos, palavras, gestos e escritos que podem trazer danos aos direitos da personalidade da pessoa trabalhadora - o assédio moral destrói o ambiente de trabalho. Em razão dos desgastes psicológicos que acarreta, diminui os níveis de produtividade, favorece o absenteísmo (HIRIGOYEN, 2008) bem como as demissões por parte do empregado. No ano 2000, um a cada dez trabalhadores europeus (treze milhões de pessoas) relatou que já esteve sujeito à intimidação no trabalho. Nesta pesquisa, apontou-se que mulheres correm mais risco de sofrer constrangimento moral no trabalho do que homens (RENAUT, 2016). De acordo com estudo de 2015 - realizada pela Fundação Europeia para Melhoria de Condições de Vida e de Trabalho - um em cada seis trabalhadores europeus experimentou alguma forma de assédio (perseguições, assédio, abuso verbal e violência física). Do universo de mulheres, 17% experimentou este tipo de assédio, contra 15% dos homens. Estas porcentagens são superiores às da pesquisa realizada em 2000148. Já uma apuração nacional de 2006 - realizada em São Paulo, com 2.072 trabalhadores de empresas dos setores químico, farmacêutico e similares - apontou que 42% dos funcionários e funcionárias já haviam sofrido humilhações e constrangimentos no trabalho. Deste grupo, 56,8% era formado por mulheres, e 43,2% dos homens (BARRETO, 2013). 148 EUROPEAN FOUNDATON FOR THE IMPROVEMENT OF LIVING AND WORKING CONDITIONS. Primeiras conclusões: Sexto inquérito europeu sobre as condições de trabalho. 2015, p. 7. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016.
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Em 2007, em uma pesquisa brasileira com 2.069 profissionais bancários, verificou-se que a média de relatos de mulheres que sofreram assédio moral no trabalho era mais elevada do que a média masculina. De acordo com os pesquisadores do sistema bancário nacional, dentre as variáveis sociodemográficas que foram analisadas, somente o gênero e a orientação sexual da vítima conduziram a diferenças no índice de assédio. As mulheres, seguidas pelo grupo de homo e bissexuais, relataram ter sofrido um maior número de situações constrangedoras (MACIEL, 2016). Entre os docentes e servidores técnico administrativos da Universidade Federal de Santa Catarina há pesquisa de 2011 indicando que 27,6% dos entrevistados sofriam assédio moral. Destaca-se que não foi feita diferenciação quanto ao gênero das pessoas assediadas (NUNES, 2016). Em outro estudo, com 174 servidores (docentes e técnicos administrativos) da Universidade Estadual do Pará, apontou-se que 20,7% sofreram assédio moral. Do total de entrevistados, 16,1% eram mulheres, contra 5,7% de homens, representando assim diferença significativa entre os gêneros (SOUSA, 2012). De acordo com o exposto, percebe-se que tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas de assédio moral no trabalho. Entretanto, a violência contra as mulheres pode ser mais recorrente em alguns setores, como as pesquisas relacionadas acima apontam. De acordo com o pesquisador Nunes, a cultura machista predominante também dificulta a iniciativa do homem em buscar ajuda, o que pode ser uma das condições para tal resultado diferenciado (NUNES, 2016). Por outra perspectiva, a histórica discriminação contra as mulheres no ambiente de trabalho também pode justificar a diferença nos resultados de assédio. A diversidade de gênero nem sempre é respeitada, determinando impactos diferenciados no acesso e nas relações laborais149. Na literatura, não há pleno consenso de que o gênero é uma variável no quesito assédio moral. Contudo, enquanto a maioria dos homens declara ser assediado uma vez a cada semana, as mulheres indicam ser assediadas quase diariamente (OLIVEIRA; SOARES, 2016).
149 BRASIL. Senado Federal. Assédio Moral e Sexual. Brasília, 2011, p. 05. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2016.
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Neste contexto, é possível identificar uma crescente corrente de preocupação por parte dos legisladores, dos organismos internacionais de direitos humanos, dos profissionais da saúde, entre outros, de identificar, delimitar, prevenir e reprimir o assédio moral (NASCIMENTO, 2000). Desse modo, este artigo propõe-se a trazer conceitos de assédio moral no ambiente laboral, exibir a legislação brasileira existente e fazer uma análise jurisprudencial de decisões recentes do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região acerca do tema, com enfoque na situação das mulheres.
2. Assédio Moral: Conceitos O assédio moral é toda e qualquer conduta realizada pelo assediador e direcionada à vítima. Caracteriza-se por meio de gestos, palavras (orais ou escritas) e/ou comportamentos de natureza psicológica que expõem a(o) trabalhadora(o) a situações humilhantes e/ou constrangedoras, trazendo danos à sua personalidade, dignidade ou integridade física ou psíquica (HIRIGOYEN, 2008). De acordo com o entendimento de Margarida Maria Silveira Barreto, pode-se dizer que o assédio moral são ações de repreensão, cobranças, ameaças, intimidações, constrangimentos e humilhações na relação entre trabalhador e superior hierárquico, que ocorrem durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções (BARRETO, 2013). Isso faz com que o ambiente de trabalho se transforme num local de tristeza e sofrimento, e não raro se estendem ao ambiente familiar ou mesmo às relações com amigos. Sônia Mascaro Nascimento define assédio moral como uma conduta abusiva, de caráter psicológico, a qual atenta contra a dignidade psíquica de modo prolongado, responsável por humilhar e constranger o trabalhador, ofendendo sua personalidade, dignidade ou integridade psíquica - e que almeja degradar as condições de trabalho ou excluir o empregado (NASCIMENT0, 2009). O professor e desembargador Sérgio Pinto Martins relata que nas situações de assédio moral são necessários ao menos dois sujeitos, o ativo e o passivo. Nesse sentido, “o sujeito ativo do assédio moral pode ser um empregado qualquer da empresa, o chefe, o gerente, o diretor da empresa, o dono da empresa. Enquanto o sujeito passivo é a vítima do assédio moral” (MARTINS, 2013). São situações repetitivas ou sistematizadas de humilhação, degradação, vexatórias, hostis, vulgares ou agressivas: gritar, falar mal, apelidar, contar piadas para caluniar, ridicularizar, ordenar tarefas impossíveis ou incompatíveis com a 198
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capacidade profissional, isolar a(o) trabalhadora(o), entre outras, que ocorrem no ambiente de trabalho, durante o horário de trabalho e no exercício da função do trabalhador, visando diminuir a autoestima do ofendido ou a sua desvinculação ao posto de trabalho. Para sua caracterização, são indispensáveis a habitualidade da conduta e a intencionalidade - o fim discriminatório (AGUIAR, 2016). Apesar de ser comum a visão que o assédio moral ocorre apenas nas relações hierárquicas, este pode ocorrer em quatro espécies: vertical, horizontal, misto e coletivo.
2.1 Assédio Moral Vertical O assédio moral vertical é aquele que ocorre entre as pessoas com níveis hierárquicos diversos (NASCIMENTO, 2009). Como nos casos de empregador vs. empregado, subordinado vs. superior. São cotidianas as situações que envolvem a agressão de um subordinado por um superior (HIRIGOYEN, 2008). Normalmente, o superior abusa de seu poder sobre seus subordinados, fazendo estes acreditarem que tal situação é comum, e não algo anormal e errado (como realmente é). Os subalternos também se submetem a essas situações em razão do grande medo que sentem de serem dispensados, pois seus superiores exigem maior produtividade, diminuindo os custos e aumentando os lucros. Contudo, somente o medo de ficar em situação de desemprego não justifica a submissão das vítimas de assédio. O agressor, de modo consciente ou não, cria uma rede de mecanismos que podem atar psicologicamente as vítimas, as quais se veem sem condições de reagir (HIRIGOYEN, 2008). Caso mais raro é a situação inversa: quando o subordinado agride o superior (HIRIGOYEN, 2008). Porém, Sônia Nascimento Mascaro aponta que esta situação “não é tão rara como à primeira vista possa parecer, principalmente no serviço público” (HIRIGOYEN, 2008).
2.2 Assédio Moral Horizontal O assédio moral horizontal é aquele que ocorre entre sujeitos de mesmo nível profissional, ou seja, de colega para colega, inexistindo entre eles relação de subordinação (HIRIGOYEN, 2008). 199
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Essas agressões podem ocorrer pela dificuldade em lidar com a diferença. De acordo como a pesquisadora Marie-France Hirigoyen, nas categorias laborais tradicionalmente reservadas aos homens não é fácil para uma mulher ser respeitadas (HIRIGOYEN, 2008). O assédio horizontal também pode ocorrer pelo sentimento de inveja, inimizade pessoal ou competitividade. Portanto, é fundamental que a empresa desenvolva meios de trabalhar com os conflitos humanos (HIRIGOYEN, 2008).
2.3 Assédio Moral Misto Por sua vez, o assédio moral misto exige a presença de pelo menos três sujeitos: o assediador vertical, o assediador horizontal e a vítima. Aqui a vítima é agredida tanto por seus superiores quanto pelos seus colegas. Ocorre nos casos em que o superior começa a excluir a vítima e os outros empregados fazem o mesmo por medo ou por quererem se posicionar ao lado do superior (NASCIMENTO, 2009).
2.4 Assédio Moral Coletivo O assédio moral coletivo é cometido pela empresa contra vários de seus trabalhadores. Os exemplos mais recorrentes são aqueles que envolvem políticas ‘motivacionais’ de venda ou de produção, nas quais os empregados que não atingem determinadas metas são submetidos a situações vexatórias e humilhantes (MUÇOUÇAH, 2016).
3. Regulamentação do Assédio Moral no Brasil Não existe legislação federal específica sobre o tema, apenas projetos de lei em andamento – como, por exemplo, os projetos de lei nº 4.742/2001 e nº 4.591/200. Já existem algumas leis estaduais (Rio de Janeiro, Paraíba, São Paulo e Rio Grande do Sul) e municipais (SOUSA, 2012). A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece as hipóteses de rompimento unilateral do contrato de trabalho quando ocorrer falta grave de uma das partes. O referido diploma dispõe sobre o assédio moral em seu artigo 483, que trata das hipóteses de rescisão indireta do contrato de trabalho 200
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(BRASIL, 2016c). A regulamentação ocorre nesse artigo porque, na maioria das vezes, a (o) trabalhadora(o), não suporta a carga psíquica da humilhação e pede a rescisão do contrato de trabalho, realizando, deste modo, a vontade do empregador ou dos colegas150. No entanto, se a violência está sendo cometida entre colegas, aplicam-se as sanções disciplinares como advertência ou suspensão para demissão por justa causa, conforme previsão do artigo 482 (KODAMA, 2016). A teoria do assédio moral tem assento no princípio da dignidade da pessoa humana (PEDUZZI, 2016), um dos fundamentos da República, como prevê o art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil. Decorre também do direito à saúde, mais especificamente à saúde mental, abrangida na proteção conferida pelo art. 6º, e do direito à honra, previsto no art. 5º, inciso X, ambos da Carta Magna (BRASIL, 2016a). Importante ressaltar que o assédio moral causa sérios danos à saúde física e mental da(o) trabalhadora(o), além de prejudicá-la(o) no seu desempenho profissional, social e familiar151 (AGUIAR, 2016). Por isso, a Constituição Federal, em seus art. 5° e art. 7°, XXX, e a CLT, art. 483, protegem a integridade da(o) trabalhadora(o) no seu direito à intimidade, dignidade, igualdade, honra e vida privada. O artigo 483 da CLT aduz que o empregado poderá considerar rescindido o contrato de trabalho e pleitear a indenização correspondente quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; 150 Teresa Cristina Della Monica Kodama relata que, “ainda sem regulamentação jurídica, o assédio moral pode ser caracterizado por condutas previstas no art. 483 da CLT (...). No caso do assédio ser praticado pelo preposto a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seus artigos 482 e 483 vem positivar as condições pelas quais o empregado pode ser dispensado por justa causa relacionado ao assédio moral ou sexual para que tenha o seu contrato rescindido, o legislador coloca as condições para ambas as partes” (KODAMA, 2016). 151 “Os sucessivos ataques dirigidos à vítima ensejam distúrbios psicossomáticos e psicológicos, sendo de mais comum ocorrência a cefaléia, transtornos digestivos e cardiovasculares, insônia, fadiga, irritabilidade, ansiedade, burnout (estresse por acúmulo de trabalho), crises de choro, sentimento de inutilidade e fracasso, dificuldade de concentração, obsessões, fobias, crises de auto-estima, depressão, angústia, sentimento de culpa, aumento de peso ou emagrecimento exagerado, redução da libido, aumento da pressão arterial, abuso de álcool, tabaco e outras drogas e pensamentos suicidas” (AGUIAR, 2016).
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c) correr perigo manifesto de mal considerável; d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama; f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários. § 1º - O empregado poderá suspender a prestação dos serviços ou rescindir o contrato, quando tiver de desempenhar obrigações legais, incompatíveis com a continuação do serviço. § 2º - No caso de morte do empregador constituído em empresa individual, é facultado ao empregado rescindir o contrato de trabalho. § 3º - Nas hipóteses das letras “d” e “g”, poderá o empregado pleitear a rescisão de seu contrato de trabalho e o pagamento das respectivas indenizações, permanecendo ou não no serviço até final decisão do processo (BRASIL, 2016b).
Desta forma, a CLT protege a (o) empregada (o) que sofrer as situações elencadas, resguardando seu direito à indenização. A responsabilidade civil pela prática de assédio moral é subjetiva. Deste modo, fundamenta-se: (1) na ação ou omissão dolosa ou culposa do agente; (2) existência de dano e (3) nexo causal entre a conduta do agente e o dano (NASCIMENTO, 2009). Como em muitos casos a vítima acaba pedindo demissão ou abandonando o caso, esse dano pode gerar perdas de caráter material e moral, que devem ser indenizadas (SINASEMPU, 2016). É possível a cumulação de indenizações, por dano material e moral, pois decorrem de causas distintas (NASCIMENTO, 2009). A indenização por danos materiais pode abranger: a) os danos emergentes (o que a vítima efetivamente perdeu, como no caso que a pessoa que trabalhava fica doente em função do assédio, tendo gastos com tratamento médico e medicamentos); e b) os lucros cessantes (o que a vítima deixou de ganhar, como no caso da(o) trabalhadora(o) que pediu demissão porque foi assediada(o), deixando, consequentemente, de receber seus vencimentos) (NASCIMENTO, 2009). Sônia Mascaro Nascimento entende que:
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O dano moral configura-se pela violação ao direito geral de personalidade, atingindo interesses sem expressão econômica. O dano material, também chamado pela doutrina de dano patrimonial, refere-se ao dano que repercute sobre o patrimônio da vítima, suscetível de aferição econômica. Quanto ao dano estético ou da imagem, importante ressaltar que parcela da doutrina os classifica entre os danos morais. Outra parcela entre os danos materiais e há quem considere um terceiro gênero (tertium genus) (NASCIMENTO, 2009).
No caso dos danos morais, a prova é do fato (assédio), isso porque não há como produzir prova da dor, do sofrimento, da humilhação. Então, uma vez provado o assédio, presumem-se os danos morais (NASCIMENTO, 2004). Sob a ótica da vítima do assédio moral, a(o) assediada(o) pode requerer a rescisão indireta do contrato de trabalho, ou seja, requerer que o contrato seja rompido como se ela(ele) tivesse sido demitida(o), pleiteando também as verbas rescisórias que seriam devidas nessa situação (dentre as quais, o aviso prévio indenizado, a multa do FGTS etc.) (SINASEMPU, 2016).
4. Possibilidades de Responsabilização na Esfera Criminal O assediador, normalmente, também comete crime de calúnia, difamação ou injúria, ficando obrigado a pagar indenização por danos materiais e morais. Não obstante não existir previsão no Código Penal de crime de assédio moral, há vários projetos no Congresso Nacional que o tipificam e o acrescentam no artigo 146-A (NASCIMENTO, 2009). Entre eles, destacam-se os seguintes: a) Projeto de lei federal nº 2.593/2003 (introduz alíneas ao art. 483, da CLT); b) Projeto de lei federal nº 2.369/2003 (define e proíbe o assédio moral, impõe o dever de indenizar e estabelece medidas preventivas e multas) que foi apensado ao Projeto de Lei nº 6757/2010152; c) Projeto de lei federal nº 5.887/2001 (tipifica como crime a conduta enquadrada como assédio moral, introduzindo a alínea “A” ao art. 146 do Código Penal, impondo pena de detenção de três meses a um ano e multa), que foi apensado ao
152 Atualmente o projeto de lei encontra-se pronto para Pauta na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP). Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2016. Acesso em: 01 jul. 2016.
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Projeto de Lei nº 6757/2010; e d) Projeto de lei federal nº 4.742/2001 (também introduz o tipo no Código Penal). Sérgio Pinto Martins ressalta que: [...] A lesão corporal importa não só ofender a integridade corporal de uma pessoa, mas também a saúde (art. 129 do Código Penal). A pena é de detenção a três meses a um ano. Em razão do ato praticado pelo assediador, o assediado pode tentar o suicídio. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a prestar-lhe auxílio para que o faça é crime previsto no artigo 122 do Código Penal. Instigar tem o sentido de estimular. A pena é de reclusão de dois a seis anos, se o suicídio se consuma, ou reclusão de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Há aumento da pena se o crime é praticado por motivos egoístas (art. 122, parágrafo único, I, do Código Penal). Constrangimento ilegal é a utilização de violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qual quer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela manda (art. 146 do Código Penal). A pena é de detenção de três meses a um ano ou multa. As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas (MARTINS, 2013).
Nesta perspectiva, identificam-se várias situações que podem ser caracterizadas em condutas já tipificadas no Código Penal, tornando possível a responsabilização penal do assediador (lesão corporal, eventual instigação ao suicídio, ameaça, etc.) (MARTINS, 2013).
5. Jurisprudência Para melhor compreensão sobre o tema, fez-se a análise jurisprudencial do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com jurisdição sobre o Estado de Santa Catarina. Foram analisadas decisões proferidas entre janeiro e meados de julho de 2016, as quais continham em sua ementa o tópico assédio moral. Das vinte e oito decisões analisadas, dezesseis possuíam empregadas mulheres como partes, o equivalente a 57% de todo o universo analisado. O presente artigo dará enfoque, sempre que possível, aos casos abrangendo mulheres trabalhadoras.
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Primeiramente, em uma análise quantitativa, pode-se observar o maior ingresso de ações pleiteando indenização por dano moral em decorrência de assédio baseados em xingamentos, apelidos e repreensões públicas realizadas pela chefia. Estes três elementos foram agrupados por aparecerem frequentemente de forma associada. Tabela 1- Ingresso de recursos envolvendo assédio moral entre janeiro e julho de 2016 no TRT da 12ª Região.
Fonte: autoral.
Há casos de repreensões realizadas em frente a um grupo de colegas e em frente a clientes. Nestas situações, o sofrimento psicológico é verificável. Supervisores que utilizam expressões de baixo calão para se referir aos funcionários, ou que atribuem determinado apelido que causa constrangimento, colaboram para a degradação psíquica das empregadas e dos empregados. O agressor, ao minar as qualidades da vítima - com gestos e palavras depreciativas, afetando seu comportamento, sua competência e sua inteligência - pode convencer o próprio agredido de sua baixa valia. A vítima poderá interiorizar esses entendimentos negativos como verdadeiros e será afetada enquanto ser humano.153
153 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Recurso Ordinário 0000203-25.2015.5.12.0018. Recorrente: A. Angeloni& CIA. Ltda. Recorrida: R. M. C.G. Relatora: Desembargadora Teresa Regina Cotosky, Florianópolis, 24 jun. 2016.
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A segunda maior causa de ingresso no TRT da 12ª Região, nos primeiro meses de 2016, com alegações de assédio moral é a cobrança de metas. Porém, quando realizadas de modo cordial, as cobranças não configuram assédio e deixam de ensejar indenização por dano extrapatrimonial. Conforme exposto pelo Desembargador Nivaldo Stakiwicz, relator do Recurso Ordinário 000149937.2014.5.12.0012: O simples fato de a ré cobrar metas, mesmo que sistematicamente, não implica ofensa aos direitos de personalidade. Como qualquer outro labor, a cobrança de metas é uma atitude que deve ser considerada como corriqueira nos dias de hoje e pode até gerar dissabor, no entanto, não se confunde com a ofensa à sua honra ou imagem. Não há prova, ainda, de que a cobrança de metas tenha sido feita de forma vexatória (...)154.
A cobrança de metas não corresponde automaticamente a assédio moral. Entende-se que há previsão constitucional de reparação a dignidade da pessoa humana (art. 5º, X, CRFB). Por outro lado, como exposto no Recurso Ordinário 0000377-43.2015.5.12.0015, o empregador, no exercício do poder diretivo, pode estabelecer metas e exigi-las. O que este não pode é fazê-lo de maneira humilhante e vexatória, que atente contra os direitos da personalidade do empregado. Houve dois casos em que a acusação de assédio foi associada ao estado gravídico da empregada. Em um dos julgados, o pleito não foi deferido por falta de provas155. Na segunda situação156, a empregada - após ficar grávida - começou a ser chamada por apelido discriminatório (“guriazinha”) pela chefia. Após o retorno do período de licença maternidade, as condições laborais da trabalhadora se deterioraram ainda mais: a chefe parou de designar tarefas a ela, deixando-a ociosa. Entendendo haver dano decorrente das condutas da empregadora - apelidos discriminatórios e inatividade compulsória, o tribunal majorou a indeni154 Idem. Recurso Ordinário 0001499-37.2014.5.12.0012. Recorrentes: Caixa Econômica Federal e M.S.R. Recorrida:M.S.R e Caixa Econômica Federal. Relator: Desembargador Nivaldo Stankiewicz, Florianópolis, 04 mar. 2016. 155 Idem. Recurso Ordinário 0000823-87.2014.5.12.0045. Recorrente: A.D.B.S.S. Recorrida: Havan Lojas de Departamentos Ltda.Relatora: Desembargadora Teresa Regina Cotosky, Florianópolis, 09 mar. 2016. 156 Idem.Recurso Ordinário 0004033-19.2014.5.12.0055. Recorrentes: T.D.C. e Ouro Fino Metais e Louças Sanitários Ltda. Recorrida: Ouro Fino Metais e Louças Sanitários Ltda. e T.D.C. Relatora: Desembargadora Águeda Maria L. Pereira. Florianópolis, 19 abr. 2016.
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zação por dano moral de dois mil reais - concedida no juízo de origem - para quatro mil reais. As decisões envolvendo a gravidez corroboram o entendimento da pesquisadora Marie-France Hirigoyen, a qual indica que o período gestacional de uma empregada muitas vezes desencadeia o assédio moral, por torná-la alvo do agressor. Este mecanismo pode ser compreendido como “um efeito perverso da proteção ao trabalho” (HIRIGOYEN, 2008). Pelo critério utilizado para seleção dos acórdãos analisados - o conteúdo das ementas - apenas um acórdão englobava situação de assédio sexual e moral associados (a vítima era uma mulher). Deste modo, quando se exibe as informações anteriormente expostas não se está trabalhando com dados referentes ao assédio de caráter sexual. Uma análise abarcando assédio sexual provavelmente alteraria em muito a porcentagem de casos envolvendo trabalhadoras mulheres. Tabela 2 - Ingresso de recursos envolvendo assédio moral com mulheres entre janeiro e julho de 2016 no TRT da 12ª Região.
Fonte: autoral.
207
Juliana de Alano Scheffer Jessyka Zanella Costa Tabela 3 - Ingresso de recursos envolvendo assédio moral com homens entre janeiro e julho de 2016 no TRT da 12ª Região.
Fonte: autoral.
Na categoria “outros” foram enquadradas situações tais como: pleito de indenização por controle de utilização de banheiro, por utilização de vestiário (os empregados entendiam ser constrangedor trocar de roupas diante de colegas de mesmo gênero), assédio moral e sexual associados, greve, alegada falta de higiene no ambiente de trabalho etc. Quanto à utilização de banheiros (RO 0000010-74.2014.5.12.0008 e RO 0001319-33.2014.5.12.0008, casos referentes à mesma empresa, um trabalhador e uma trabalhadora), o tribunal entendeu que na situação em questão não havia limitação de utilização, mas uma escala de horários aliada à recomendação para substituição do posto por outro colega para utilizar os sanitários. Não houve prova de que havia punição se o empregado se dirigisse ao banhei-
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ro fora do horário preestabelecido, tanto para o trabalhador quanto para a trabalhadora em questão. A restrição ao uso de toaletes, caso exista efetiva fiscalização das pausas, não é considerada razoável pelo Tribunal Superior do Trabalho, e enseja indenização (GUEDES, 2016). Nos recursos ordinários em questão, o TRT da 12ª Região não considerou a comprovação do efetivo controle à utilização dos sanitários. Nos referidos acórdãos citados, envolvendo utilização de banheiros, também havia alegação de indenização por assédio moral por utilização de vestiário coletivo. Os empregados deveriam trocar de roupa na empresa do ramo agroindustrial antes de iniciar as atividades laborais, expondo-se em roupas íntimas aos colegas de mesmo gênero, em ambiente próprio para isso. Alegou-se constrangimento e assédio moral por esta breve exposição. Não foi este o entendimento do tribunal e do juízo de origem, que avaliaram não estar configurado o assédio. No caso de assédio sexual e moral, o tribunal concedeu indenização específica pelo dano moral oriundo de assédio moral, e outra indenização em decorrência de assédio sexual. O tribunal reconheceu o assédio moral em situação envolvendo trabalhadora que teve seu contrato de trabalho extinto nos dias seguintes ao término de uma greve a qual ela aderira. Manteve-se a indenização concedida em primeiro grau no valor de cinco mil reais157. Nesta circunstância, entende-se que a fundamentação para a indenização poderia se manter apenas citando o dano causado pela despedida arbitrária, sem invocar assédio moral. Isso porque a prática de assédio se caracteriza pela repetição de condutas e a despedida arbitrária não foi um ato repetido ao longo do tempo. Reconhece-se que uma agressão moral pontual como a que ocorreu com a trabalhadora pode atingir a dignidade do indivíduo, sendo cabível indenização por danos morais. Todavia, isso não significa que ocorreu assédio (NASCIMENTO, 2009). Ainda no âmbito do TRT da 12ª Região, foi concedida indenização de dano moral por assédio moral em razão de falta de condições higiênicas no
157 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Recurso Ordinário 01229-2013-019-12-00-3. Recorrentes: Marisol Vestuário S.A. e J.K. Recorridas: J.K. e Marisol Vestuário S.A. Relator: Desembargador Roberto Luiz Guglielmetto, Florianópolis, 14 jan. 2016.
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ambiente de trabalho.158 O empregado trabalhava em local considerado sem higiene, não possuía local para sentar e participava de reuniões sentando no chão. A indenização foi majorada pelo tribunal ad quem para cinco mil reais, contra os dois mil reais previstos inicialmente pelo juiz de primeiro grau. Do total de acórdãos analisados, quinze deles concederam indenização em razão do assédio moral sofrido (53%), de modo bem distribuído entre os gêneros. Por este viés, não se depreende discriminação nas decisões em razão do gênero dos empregados. Tabela 4 - TRT 12ª Região: Reconhecimento de direito à indenização por dano moral em decorrência de assédio moral.
Fonte: autoral.
É possível perceber que o depoimento oral é a ferramenta mais utilizada para a produção de provas concernentes ao assédio moral. Verificou-se que quando associado a outro elemento probatório, há maior inclinação para o reconhecimento do assédio. De acordo com Sônia Mascaro Nascimento, deve-se considerar a impossibilidade de exigência de prova robusta por parte da vítima, admitindo-se, inclusive, a presunção do dano (NASCIMENTO, 2009). Em muitos 158 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (12ª Região). Recurso Ordinário 0002217-89.2015.5.12.0047 -16. Recorrentes: T.F e Arm Telecomunicações e Serviços Ltda. Recorridos: Arm Telecomunicações e Serviços Ltda.E T.F. Relator: Desembargador Jorge Luiz Volpato, Florianópolis, 05 jul. 2016.
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julgados analisados, o tribunal entendeu haver dano in reipsa, adotando a mesma linha de Mascaro. Com relação ao quantum indenizatório, o patamar adotado pelo TRT da 12ª Região concentra-se na faixa dos cinco mil reais (em 53% das ocasiões analisadas em que houve reconhecimento de dano moral)159. O valor mais elevado de indenização registrado foi de quinze mil reais (em 20% dos acórdãos). Tabela 5 - TRT da 12ª Região: Valor das indenizações concedidas a título de dano moral em razão de assédio moral, entre janeiro e julho de 2016.
Fonte: autoral.
A definição do quantum indenizatório em caso de dano moral não é tarefa simples, em razão da subjetividade de realizar este arbitramento. Os critérios recorrentes para definição do valor da indenização utilizados pelo TRT da 12ª Região encontrados foram: o caráter pedagógico da indenização, avaliação das condições econômicas de vítima e ofensor, grau de culpa, extensão do dano, conforto à parte lesada, proporcionalidade e razoabilidade.
159 As indenizações de até 20% a mais ou a menos foram englobadas na mesma categoria de valor. Por exemplo: uma indenização de quatro mil reais integra o grupo de indenizações com valor de cinco mil reais.
211
Juliana de Alano Scheffer Jessyka Zanella Costa Tabela 6 - Número de ocorrências dos critérios para definição do quantum indenizatório nos acórdãos analisados.
Fonte: autoral.
As indenizações por dano moral concedidas pelo Tribunal Superior do Trabalho - em razão de assédio moral - adotam como principais critérios, dentre outros: (...) um exame moral da conduta do agente ofensor, a análise das suas condições econômicas e dos lucros eventualmente obtidos através da conduta lesiva, o que reforça a utilização da função punitiva da Responsabilidade Civil, posicionamento este respaldado pela doutrina nacional de forma majoritária (GUEDES, 2016).
Deste modo, o caráter punitivo-pedagógico da indenização por dano moral é aplicado de modo difundido pela jurisprudência brasileira - informação corroborada pela análise realizada junto ao TRT da 12ª Região. Este critério teria dupla função, aproximando-se do direito penal: a prevenção especial, para evitar que o ofensor pratique novamente o mesmo tipo de lesão; e a prevenção genérica, a fim de dissuadir terceiros de praticarem ilícito semelhante (BORBA, 2013).
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Todavia, o critério punitivo-pedagógico, quando aceito, precisa ser utilizado com cautela, pois o ordenamento brasileiro veda expressamente o enriquecimento sem causa (BORBA, 2013). A utilização da análise da extensão do dano pelo TRT da 12ª Região vai ao encontro do artigo 944 do Código Civil, que preceitua que “a indenização mede-se pela extensão do dano” (BRASIL, 2016b). Para análise do grau de culpa do ofensor, dolo e culpa possuem o mesmo sentido (GUEDES, 2016). A Justiça do Trabalho vem aplicando a Súmula 341 do STF, que determina que a culpa do patrão pelos atos do preposto é presumida160, sendo este o entendimento do TRT da 12ª Região. Se o principal caráter da indenização civil é compensatório, buscar o conforto do ofendido, para que este se torne indene, é uma relação lógica e acertada no tribunal. Por outro lado, a avaliação da condição econômica do ofendido pode causar certa polêmica. Se o objetivo é reparar um dano sofrido pela vítima, ao se adotar indenizações diferentes devido à condição econômica do trabalhador, pode-se interpretar que a dor de trabalhadores com maiores recursos financeiros é maior.
6. Considerações Finais O assédio moral, apesar de seu estudo ter se iniciado recentemente pela literatura, vem sendo aplicado com regularidade pelos tribunais, como fundamento para indenização para danos morais - e materiais, quando cabível. Aplica-se a teoria geral da responsabilidade civil, e pode-se conceder ao empregado a rescisão indireta do contrato de trabalho. A violência causada pelo assediador pode não deixar marcas físicas, entretanto é capaz de causar sérios efeitos na psique das pessoas atingidas. Esta violência pode se dar tanto por ações quanto por omissões. A continuidade dos atos de constrangimento é importante para caracterização do assédio e do dano extrapatrimonial. As provas testemunhais, na minoria dos casos, são insuficientes para convencer o magistrado da ocorrência de assédio. 160 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 341. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2016.
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Dentre os atingidos, a análise do TRT da 12ª Região demonstrou o que as outras pesquisas consultadas já trouxeram: as mulheres são as maiores vítimas de assédio moral nas empresas, ou ao menos são aquelas que com mais frequência tomam uma atitude diante deste constrangimento. Os critérios para determinação do quantum indenizatório adotados pelo TRT da 12ª Região vão ao encontro dos aplicados pelo Tribunal Superior do Trabalho. As indenizações dos acórdãos acompanhados por dano moral em razão de assédio variaram entre quatro mil e quinze mil reais. Por fim, entende-se que as empresas precisam trabalhar práticas preventivas de assédio moral, conscientizando gerentes e supervisores quanto à adoção de condutas mais adequadas. As metas empresariais podem ser alcançadas sem pressões, humilhações, exclusão e xingamentos - em um ambiente saudável de trabalho, que prime pela cooperação entre as pessoas.
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_______. Recurso Ordinário 0000377-43.2015.5.12.0015. Recorrente: S.N.Recorrido: Extremo Oeste Agência de Crédito - Extracredi. Relator: Desembargador José Ernesto Manzi, Florianópolis, 19 fev. 2016. _______. Recurso Ordinário 0000597-91.2014.5.12.0042. Recorrente: J.A.C. Recorrido: Parque Harry World Cabanas Hotel Ltda. Relatora: Desembargadora Águeda Maria L. Pereira, Florianópolis, 23 jun. 2016. _______. Recurso Ordinário 0000823-87.2014.5.12.0045. Recorrente: A.D.B.S.S. Recorrida: Havan Lojas de Departamentos Ltda. Relatora: Desembargadora Teresa Regina Cotosky, Florianópolis, 09 mar. 2016. _______. Recurso Ordinário 0000928-43.2014.5.12.0052. Recorrente: F.L.R. Recorrida: Bosch Rexroth Ltda. Relatora: Desembargadora Viviane Colucci, Florianópolis, 28 jun. 2016. _______.Recurso Ordinário 0001014-24.2011.5.12.0018. Recorrente: Fundação Hospitalar de Blumenau. Recorrida: G.E. Relator: Desembargador Garibaldi Tadeu Pereira Ferreira, Florianópolis, 06 abr. 2016. ______. Recurso Ordinário 0001048-88.2015.5.12.0040. Recorrentes: E.S.S. e WMS Supermercados do Brasil Ltda. Recorridos: E.S.S. e WMS Supermercados do Brasil Ltda. Relator: Desembargador Amarildo Carlos de Lima, Florianópolis, 21 jan. 2016. ______. Recurso Ordinário 01229-2013-019-12-00-3. Recorrentes: Marisol Vestuário S.A. e J.K. Recorridas: J.K. e Marisol Vestuário S.A. Relator: Desembargador Roberto Luiz Guglielmetto, Florianópolis, 14 jan. 2016. ______. Recurso Ordinário 0001319-33.2014.5.12.0008. Recorrentes: V.R.S e Seara Alimentos Ltda. Recorridos: Seara Alimentos Ltda. e V.R.S. Relator: Desembargador Roberto Basilone Leite, Florianópolis, 07 abr. 2016. _______. Recurso Ordinário 0001327-31.2015.5.12.0022. Recorrentes: Detroit Brasil S/A. e B.F.S. Recorridos: Detroit Brasil S/A. e B.F.S. Relator: Desembargador Roberto Luiz Guglielmetto, Florianópolis, 06 jul. 2016.
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_______. Recurso Ordinário 0001335-65.2015.5.12.0003. Recorrente: S.F.R.C. Recorrido: Serviço Social do Transporte - SEST. Relator: Desembargador Jorge Luiz Volpato, Florianópolis, 28 jun. 2016. _______. Recurso Ordinário 0001471-56.2015.5.12.0005. Recorrente: ServengCivilsan S/A Empressas Associadas e Engenharia. Recorrido: J.R.C.S. Relatora: Desembargadora Ligia Maria Teixeira Gouvêa, Florianópolis, 10 mar. 2016. _______. Recurso Ordinário 0001499-37.2014.5.12.0012. Recorrentes: Caixa Econômica Federal e M.S.R. Recorrida: M.S.R e Caixa Econômica Federal. Relator: Desembargador Nivaldo Stankiewicz, Florianópolis, 04 mar. 2016. _______. Recurso Ordinário 0001750-31.2014.5.12.0020. Recorrente: A.M.T. Recorrido: A.K. Relatora: Desembargadora Mari Eleda Migliorini, Florianópolis, 26 fev. 2016. _______. Recurso Ordinário 0002043-07.2014.5.12.0018. Recorrente: Cooperativa de Produção e Abastecimento do Vale do Itajaí - Cooper. Recorrida: K.C.T.D. Relator: Desembargador Jorge Luiz Volpato, Florianópolis, 05 jul. 2016. _______. Recurso Ordinário 0002081-54.2012.5.12.0029. Recorrentes: M.K.C., Ambev S.A.e União. Recorridos: M.K.C. e Ambev S.A. Relator: Desembargador Jorge Luiz Volpato, Florianópolis, 02 mai. 2016. _______. Recurso Ordinário 0002128-63.2015.5.12.0048. Recorrente: C.Q. Recorrida: Maluvale Atacadista Ltda. Epp. Relator: Desembargadora Teresa Regina Cotosky, Florianópolis, 28 mar. 2016. _______. Recurso Ordinário 0002217-89.2015.5.12.0047 -16. Recorrentes: T.F e Arm Telecomunicações e Serviços Ltda. Recorridos: Arm Telecomunicações e Serviços Ltda. E T.F. Relator: Desembargador Jorge Luiz Volpato, Florianópolis, 05 jul. 2016. _______. Recurso Ordinário 0003002-48.2014.5.12.0027. Recorrentes: Via Varejo S.A e V.L.O. Recorridas: Via Varejo S.A e V.L.O. Relator: Desembargador Irno Ilmar Resener, Florianópolis, 26 abr. 2016.
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_______. Recurso Ordinário 0000341-10.2015.5.12.0012. Recorrentes: C.W.A.A. e Associação Paulista para Desenvolvimento da Medicina – Programa de Atenção Integral à Saúde – SAMU/SC. Recorridas: C.W.A.A. e Associação Paulista para Desenvolvimento da Medicina – Programa de Atenção Integral à Saúde – SAMU/SC Relatora: Desembargador Lília Leonor Abreu, Florianópolis, 30 jun. 2016. ______. Recurso Ordinário 0003899-45.2014.5.12.0005. Recorrentes: C.B.S. Recorrida: Barigui Veículos Ltda. Relator: Desembargador Amarildo Carlos de Lima, Florianópolis, 19 abr. 2016. ______. Recurso Ordinário 0004033-19.2014.5.12.0055. Recorrentes: T.D.C. e Ouro Fino Metais e Louças Sanitários Ltda. Recorrida: Ouro Fino Metais e Louças Sanitários Ltda. e T.D.C. Relatora: Desembargadora Águeda Maria L. Pereira. Florianópolis, 19 abr. 2016. ______. Recurso Ordinário 0004375-75.2014.5.12.0040. Recorrentes: A.C.S.L. e WMS Supermercados do Brasil. Recorridos: WMS Supermercados do Brasile A.C.S. Relator: Desembargador José Ernesto Manzi,Florianópolis, 18 fev. 2016. GUEDES, Fernando Grass. Assédio Moral no Direito do Trabalho e a Aplicação da Teoria da Indenização Punitiva no Quantum Indenizatório. Mar. 2015. 126 p. Dissertação - Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2015. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2016. HIRIGOYEN. Marie-France. Assédio Moral: A Violência Perversa no Cotidiano. Trad. Maria Helena Kühner. 10 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. KODAMA, Teresa Cristina Della Monica. Cartilha de orientação sobre os direitos trabalhistas da mulher. São Paulo: OAB, 2012. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2016.
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Direito das Mulheres Como Resistência
Nossa Resistência Não É o Silêncio: Música, Feminismo e Luta por Direitos a partir do Riot Grrrl161,162 Our Resistance Is Not the Silence: Music, Feminism and Fight for Right from Riot Grrr Amanda Muniz Oliveira163
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo verificar se e como o movimento (também) artístico, riot grrrl, contribui para a conscientização de determinados públicos sobre o direito das mulheres. Partindo do pressuposto de que algumas produções artísticas-midiáticas são capazes de informar as pessoas de seus direitos bem como permitir a circulação de certos discursos, procuraremos demonstrar como os direitos das mulheres são abordados neste meio. Palavras-chave: riot grrrl, punk feminista, direito, arte. Abstract: The present work aims to verify if and how the (also) artistic movement, riot grrrl, contributes to the awareness of certain publics about women’s rights. Assuming that some artistic-media productions are capable of informing people of their rights as well as allowing the circulation of certain discourses, we will try to demonstrate how women’s rights are approached in this environment. Keywords: riot grrrl, feminist punk, law, art. 161 Texto originalmente publicado nos anais do I Congresso de Direito das Mulheres, ocorrido na Universidade Federal de Santa Catarina em novembro de 2016. 162 Trabalho apresentado no I Congresso de Direito das Mulheres da Universidade Federal de Santa Catarina, realizado nos dias 16, 17 e 18 de novembro de 2016, na UFSC, e publicado nos Anais disponíveis em 163 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Mestra em Direito pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI/UFSC. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Direito das Mulheres. Bolsista CAPES.
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1. Introdução Em um dos shows da banda Kaos Klitoriano, disponibilizado no YouTube164, é possível ver as integrantes discursando sobre um polêmico assunto: o aborto. Além de abordarem a realidade de diversas mulheres mortas em clínicas clandestinas, o destino das crianças abandonadas também é uma questão levantada; os comentários são recebidos com gritos e aplausos e na sequência a banda inicia a canção Direito ao Aborto. A abordagem de um tema tão controverso em um espaço aberto a um público predominantemente jovem, pautado na música e também na diversão, ilustra e exemplifica a ação do chamado movimento riot grrrl, que por meio do punk rock (mas não apenas) busca trazer à tona diversas pautas feministas. Neste sentido, o presente trabalho busca compreender se e como este movimento pode auxiliar na luta por direitos das mulheres. Inicialmente, é preciso lembrar que o Direito não possui respostas para todos os problemas. Tem-se por exemplo a realidade das mulheres grávidas vítimas de estupro em São José - SC, que enfrentaram uma série de obstáculos para que um Direito positivado no Código Penal de 1940 pudesse finalmente ser usufruído por essas mulheres a partir de 2013165. Se a mera letra da lei não é capaz de solucionar e modificar questões relativas aos direitos das mulheres, é preciso então que busquemos elementos externos ao Direito, visando compreender algumas nuances que escapam ao preto e branco dos códigos e legislações. Desta forma, compreende-se que as artes e as produções midiáticas caminham lado a lado com Direito em dois pontos principais: o primeiro deles, é relativo a disseminação de determinado conhecimento. Algumas produções artísticas-midiáticas são capazes de informar as pessoas de seus direitos, como a simples leitura de um código jamais faria. O segundo, refere-se à circulação de discursos. A arte/mídias podem ser utilizadas para dar voz a problemas, angústias, situações peculiares, de um jeito tal que uma conversa apressada entre juiz e advogado das partes (que por si só já é um intermediário, um tradutor dos problemas de outras pessoas) jamais transmitiria.
164 Disponível em: . Acesso em 09 dez. 2016. 165 Para mais informações, checar: . Acesso em 09 dez. 2016.
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São essas, portanto, as principais questões que motivaram a produção de um artigo sobre um movimento também artístico peculiar e extremamente importante para a luta em prol dos direitos das mulheres: o movimento riot grrrl. A própria expressão riot grrrl (com três letras r) já denota certa agressividade, subvertendo uma palavra relativa ao feminino dito como frágil. Frequentemente traduzido como “motim de garotas”, o riot grrrl se inicia nos anos 90, mas tem suas bases no punk rock. O movimento punk surge nos anos 70, tendo como característica principal a simplicidade musical (três ou quatro acordes), a sonoridade rápida e agressiva, e letras que abordam questões do cotidiano, problemas sociais, anarquismo, dentre outros. Marcado por um visual agressivo e a filosofia do faça você mesmo, o interesse maior seria a crítica dos padrões estabelecidos e não propriamente a música. As mulheres também sentiam essa necessidade de usar a música como forma de fazer cair por terra suas mordaças, mas teriam de enfrentar além do preconceito para com o “diferente”, o preconceito de gênero – inclusive dentro da cena underground. O blog Moda de Subculturas166 resgata a banda britânica de punk, X-Ray Spex, formada em 1976, que tinha por vocalista Poly Styrene e desde aquela época já dizia “Some people think little girls should be seen and not heard / But i think / Oh Bondage Up Yours!”167. Um elemento crucial, porém, estava ausente dessa geração dos anos 70: o feminismo. Nas décadas de 60 e 70, a chamada segunda onda do feminismo estava em voga: a urgência seria a alteração e desenvolvimento de novas instituições voltadas a combater a subordinação da mulher. Conforme Flávia Leite (2015), estes anseios foram respondidos com a ideia de uma pletora de direitos inexequíveis: concessões formais foram cedidas sob a forma de “direitos das minorias”, que por um lado amortecem os conflitos e transmitem a ideia de uma inclusão, mas por outro são inexequíveis e uniformizadores. É neste contexto que podemos situar o movimento riot: pertencente a terceira onda do feminismo, essas garotas compreendem que a categoria mulheres
166 Disponível em: . Acesso em 09 dez. 2016. 167 Disponível em: . A frase foi traduzida no blog Moda de Subculras da seguinte forma: “Algumas pessoas pensam que garotinhas devem ser vistas e não ouvidas / Oh submissão, vá tomar no cu!”.
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ao mesmo tempo que inclui, gera exclusão, pois padroniza. As demandas de mulheres lésbicas e negras, por exemplo, são diferentes das demandas de mulheres brancas e heterossexuais. Por isso há uma desconfiança em relação ao feminismo institucional, que clama por essa homogeneização de mulheres, e sob a atitude do faça você mesma (herança punk), essas mulheres passam a se organizar, debater e problematizar as questões vivenciadas por cada uma. Desta forma, o este trabalho será dividido em três partes: inicialmente, será abordada a origem do riot grrrl nos EUA; em seguida, trataremos da chegada deste movimento ao Brasil e por fim, apresentaremos a análise de alguns materiais produzidos pelo movimento, como fanzines, festivais e músicas.
2. Girls To The Front: a Origem Americana do Riot Grrl Um dos nomes mais importantes quando o assunto é riot grrrl, é o de Kathleen Hanna. Além de se interessar por estudos feministas e de participar de grupos femininos voltados a assistência de vítimas de violência sexual, Kathleen frequentava a cena punk de Olympia, EUA. Estudante de fotografia na Faculdade Evergreen, soube que uma amiga com quem dividia o dormitório havia sofrido uma tentativa de estupro. Em resposta, Kathleen organiza um desfile de moda na biblioteca da faculdade sendo que cada vestimenta portava frases que narravam o ocorrido168. Após conhecer o fanzine169 Jigsaw, de Tobi Vail, Kathleen se reúne com Kathi Willcox, Vail e Billy Carren e formam uma das mais conhecidas bandas riot: Bikini Kill. Além de suas canções sobre emancipação feminina, direitos das mulheres e feminismo, a postura da banda merece ser lembrada com um exemplo. No ambiente underground, é extremamente comum que as pessoas mais próximas ao palco sejam homens, principalmente em razão da roda punk (espécie de dança a base de socos e pontapés) e do mosh (pular na plateia), atitudes que intimidam e mantem as garotas afastadas. A banda Bikini Kill subverteu
168 Informações presentes no documentário The punk singer, dirigido por Sini Anderson. 169 Conforme O’Hara (2005, p. 186-187): “Fanzine = Literalmente, significa uma “revista de fã”. Pequenas publicações, feitas de modo artesanal e criadas por fãs de alguma banda, estilo musical ou até mesmo de outras artes, como quadrinhos, cinema, etc. Do seu surgimento, nos anos 70, até os tempos atuais, desenvolveram-se a ponto de termos fanzines com a mesma qualidade editorial e gráfica de revistas encontradas em bancas de jornal.”
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essa lógica, exigindo em seus shows que as garotas viessem para a frente e os homens mantivessem-se ao fundo do palco – atitude feita também como medida protetiva, em razão das ameaças e violências sofridas pelas integrantes, por parte de um público (ainda) machista. Todavia, é importante destacar que o riot grrrl não se esgota na música. Os fanzines constituem um elemento importante dentro do movimento, especialmente em razão de seu caráter plural e circular. Como afirma a pesquisadora Michele Camargo (2010, p. 21) “elementos, como ausência de censura, baixo custo de produção e autonomia, foram cruciais para a escolha do fanzine como um dos principais meios de expressão das ideias e da música dos punks.” Os fanzines riot eram fabricados de garotas para garotas, abordando assuntos diversos e disponíveis para as jovens meninas frequentadoras da cena. Figura 01 - Volume 03 do fanzine de Tobi Vail, que chamou a atenção de Kathleen Hanna.
Fonte: . Acesso em 09 de dezembro de 2016.
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Figura 02 – Segunda edição do fanzine Bikini Kill, da banda homônima.
Fonte: . Acesso em 09 de dez. 2016.
Além dos fanzines, era comum a ocorrência de reuniões e encontros, nos quais temas como violência sexual, aborto, relações lésbicas e defesa pessoal eram abordados; estes encontros serão abordados no terceiro tópico deste artigo. Ademais, para compreender a recepção do riot no Brasil e enfim abordar a cena brasileira, precisamos ter em mente os seguintes pontos: 1) O movimento riot americano era descrente no chamado feminismo academicista, que na visão delas categorizava as mulheres em um rótulo170; 2) Não havia apenas uma vertente feminista bem delimitada neste movimento, sendo presente um 170 Para mais informações, checar: LEITE, Flávia Lucchesi de Carvalho. Riot Grrrl: capturas e metamorfoses de uma máquina de guerra. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 2015.
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feminismo polifônico. O que prevalecia era o esforço pela união das garotas. Haviam, por exemplo, grupos acusados de separatistas por prezar espaços exclusivamente femininos, e grupos que pelo contrário aceitavam os garotos interessados, desde que estes não fossem encarados como protagonistas (tivessem local de fala secundário)171. Não acreditavam em uma cena sexista reversa, mas em uma cena voltada ao protagonismo feminino; 3) As riots não viam a imprensa e a grande mídia com bons olhos, especialmente porque estes meios as construíam como loucas, rebeldes sem causa. A mídia americana, por exemplo, veiculou a falsa notícia de que Kathleen Hanna havia se tornado feminista porque o seu pai a teria violentado quando criança, como abordado do documentário The Punk Singer. Todavia, apesar dessa desconfiança para com a mídia, é a imprensa que trará os ventos do riot grrl ao cenário nacional, assunto do próximo tópico.
3. O Riot Grrrl no Brasil Conforme Leite (2015), a revista Melody Marker no ano de 1995 trará uma reportagem sobre a cena americana, o que despertará a atenção das irmãs Elisa e Isabela Gargiulo, fundadoras da banda Dominatrix em São Paulo, considerada uma das mais importantes bandas de riot nacional. A falta de espaço na cena underground tentou ser amenizada pela banda, que começou a tocar junto de outras bandas punks. Mas é preciso lembrar que o machismo não é exclusivo do mainstream: Leite (2015) afirma que as garotas sofriam com as críticas masculinas oriundas dessas cenas. Era comum reclamarem dos protestos e manifestos lidos durante os shows, pois tratava-se de um questionamento aos próprios indivíduos. Conforme Leite (2015, p. 135): as riots daqui também enfrentavam uma reação muito violenta dos machinhos da cena punk-hardcore em sua maioria [...]. Ao mesmo tempo que não encontravam respaldo na cena, apanhavam de nazistas skinheads. Por serem garotas, punks e por terem uma conduta sexual inadequada elas apanhavam em casa, na escola, no bar, na rua, na cena.
171 Para mais informações, checar: CAMARGO, Michelle. Lugares, pessoas e palavras: O estilo das minas do rock na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Campinas, Unicamp, 2010.
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Além da banda Dominatrix em São Paulo, outras bandas punks não identificadas como riots também traziam importantes questões sobre o ser mulher na cena e na sociedade, como Cosmogonia (SP), Kaos Klitoriano (Brasília – DF) e Menstruação Anárquica (SP). Um bom exemplo é a banda Bulimia, de Brasília – DF, que adquiriu notoriedade com a canção Punk rock não é só pro seu namorado: O que te impede de lutar? / O que te impede de falar? / Pare de se esconder / Você não é pior que ninguém / Punk Rock não é só pro seu namorado /Punk Rock não é só pro seu namorado / Você sempre quis tocar / Você sempre quis andar de skate / Você que sempre quis, quis, quis / Você não é um enfeite / Punk Rock não é só pro seu namorado / Punk Rock não é só pro seu namorado / Faça o que tiver vontade / Mostre o que você pensa / Tenha a sua personalidade / Não se esconda atrás de um homem / Punk Rock não é só pro seu namorado / Punk Rock não é só pro seu namorado
Assim, apesar de chegar ao Brasil e influenciar toda uma cena de garotas punks por aqui, infere-se que o riot se reconfigura e se readapta as realidades particulares de cada grupo, se transformando. Uma das grandes críticas feitas ao riot grrrl, por exemplo, é o fato de ser um movimento branco, de classe-média alta, oriundo dos EUA (por vezes, seria necessário o domínio do inglês). A pesquisa de Michele Camargo (2010, p. 70), realizada em SP, mostrou que a cena paulista era composta em sua maioria por garotas com acesso à internet, provenientes de famílias de classe média, que ocupam cargos de profissionais liberais e que são brancas - o que é visto com desconfiança pelas próprias meninas com quem conversei; ‘eu acho que a problemática do riot é que é uma coisa muito branquela’ (entrevista com Emilia, 2007).
Apesar de influenciadas pelo movimento riot grrrl, as meninas entrevistadas pela pesquisadora rejeitam este título, sendo utilizado então o termo minas do rock para identifica-las. É possível observar ainda que outros gêneros musicais passaram a dividir espaço com o punk rock dentro dos encontros riots: o rap e o hip hop cantado por mulheres vem ganhando espaço dentro da cena, como demonstra a pesquisadora Flávia Leite (20150, p. 141), que destaca a entrada do hip hop feminista nos eventos riots como resposta a braquitude da cena: 230
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O riot grrrl é um movimento feminista dentro da cena punk, mas nunca excluímos mulheres de lugar nenhum. O objetivo, no fim, é um só. É fazer com que as mulheres tenham voz no ambiente em que elas existem. O importante é a união (Entrevista com Michelle Britto, em 2015. Michelle Britto é uma das primeiras a agitar uma cena riot em Salvador e frequentadora assídua da cena da São Paulo em 2015). Tem uma semelhança, né? Você sentir o sexismo na plateia, nas bandas... elas têm essa experiência também. Eu acho que pode ter o mesmo grito, obviamente, num lugar de fala diferente (Entrevista com Elisa Gargiulo, vocalista da banda Dominatrix, em 2015). Elas notam que “o hip hop também reproduz misoginia e o discurso heterossexual” (Entrevista com Veridiana Fozatto, fundadora e ex-baixista da banda Anti-Corpos em 2015)
Independentemente da nomenclatura (especialmente porque para ser riot basta o engajamento, ou seja, não há um manual de regras), essas bandas serão responsáveis por levantar questionamentos e atingir um público jovem. Leite (2015, p. 136), por exemplo, transcreve por exemplo o depoimento de Patrícia Saltara: Eu encontrei o Riot Grrrl após assistir o primeiro show de bandas nacionais com garotas tocando, como Dog School e o Dominatrix. Antes, já ouvia bandas com garotas tocando, como Sonic Youth, L7, Babes in Toyland, Smashing Pumpkins, Hole, mas me liguei mesmo do que era Riot Grrrl depois de ver bandas daqui ao vivo. O Riot Grrrl me ensinou o que é feminismo. Eu era nova e já tinha uma postura feminista na vida, ao mesmo tempo sofria muito com o machismo e suas imposições, mas não havia pesquisado a fundo sobre o movimento e confesso que tinha até um certo preconceito com o nome, que sumiu rapidamente a partir do momento que fui me envolvendo na cena feminista punk.
E Camargo (2015, p. 69, 71) transcreve o depoimento de várias entrevistadas, que salientam a importância do riot grrrl e do punk feminista em geral: Eu acho principalmente que, quando você tem 12 anos, 13 anos, 14, sei lá, depende da cabeça de qualquer um, às vezes você tem um pouco de vergonha de comentar certas coisas, entende? Com mãe, com irmã, sei lá... e acha que através de música, entendeu, você consegue se identifi231
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car, através das letras, principalmente. Então eu acho, que essas meninas, guitarristas, essas gurias das bandas que tem uma posição ativista dentro da cena, colocam coisas nas letras que fazem com que as meninas mais novas se identifiquem. Não só as mais novas, é claro, mas eu digo como, abrir a visão, pras meninas terem uma visão melhor, entendeu? Por que quantas já sofreram agressão? E não tem vergonha? Eu tenho... por experiência própria e por outras meninas. Claro que não é só isso, entendeu? Algumas juntam na questão de conceito mesmo, que querem conhecer. Outras, por experiência própria gostam de se identificar com bandas que falam de coisas que atingem, sei lá, o seu corpo, seu coração, entendeu?” (Entrevista com Camila, 2008). Depois que conheci o rock feminino minha vida mudou. Olha que frase profunda, né, meu, é verdade. É mudou, então, né meu, depois que comecei a ouvir banda de mina minha cabeça abriu, me assumi sapatão, comecei a questionar tudo no mundo e foi incrível (Entrevista com Heloísa, 2008). Eu acho que afeta, eu poderia ser outra pessoa. Afeta, se eu vejo uma situação que eu possa interferir eu interfiro. Ou mesmo na rua se um cara fala uma merda eu respondo (Entrevista com Érica, 2008). Eu podia ser como eu era e foda-se. Desde sei lá, preconceito, um abuso tipo no metro, no ônibus, eu não tinha que ficar de cabeça baixa, porque era uma coisa possível de acontecer. Eu era muito reprimida, muito quieta, na questão de tudo assim sabe, de conversar direito, hoje eu analiso e vejo: uma coisa não comentava e acabava acontecendo sabe, então completamente, bem nesta questão de empoderar mesmo (Entrevista com Paula, 2008).
Portanto, pode-se afirmar que o riot ou o rock de mina converge e dialoga com o Direito ao conscientizar jovens garotas sobre seus direitos individuais e, ao mesmo tempo, critica, denuncia e problematiza ações da sociedade e do Estado para com as mulheres. Criado um espaço seguro de garotas para garotas, temas como violência sexual, violência moral, simbólica, psicológica, aborto, sexualidade e tanto mais considerados polêmicos para serem abordados em certos espaços, há a possibilidade de conscientização e de postura crítica. Afinal, como exigir direitos sem sequer conhecê-los? Como denunciar uma opressão, sem sequer saber que dela sou vítima? Neste sentido, passa-se a terceira parte deste trabalho, na qual é possível vislumbrar alguns dos discursos que circulam pelo movimento, especialmente relativos aos direitos das mulheres. 232
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3. Produções do Riot Grrrl Dentre os diversos materiais produzidos pelo movimento riot grrrl e mesmo pelas minas do rock no cenário nacional, podemos destacar os fanzines, encontros e eventos, e as próprias músicas.
3.1. Os Fanzines Os fanzines foram populares antes da disseminação da internet nos anos 90, mas ainda hoje é possível encontrar quem produza este tipo de material, geralmente disponibilizando também sua versão online. O acervo Arquivo riot grrrl brasil172 disponibiliza alguns zines, dentre os quais selecinou-se alguns para demonstrar como a questão do direito das mulheres é abordada neste espaço. O Zine Estridente, por exemplo, é produzido por Jéssica Valeriano, de Uberaba – MG, que desde os quatorze possui envolvimento com a cena, chegando a tocar em uma banda e posteriormente a fazer rap. Formada em sociologia e filosofia, passou a confeccionar zines artesanais em 2012. Figura 03 – Trecho do Fanzine Estridente.
Fonte: . Acesso em 09 dez. 2016. 172 Disponível em: . Acesso em 09. Dez. 2016.
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A figura 03 ilustra a questão da violência de gênero, tipificada penalmente. A autora procura esclarecer quando o assédio cometido pode ser, juridicamente, considerado estupro numa tentativa de disseminar um conhecimento tão importante e, por vezes, tão negligenciado por raízes culturais, como por exemplo, a suposta impossibilidade do marido estuprar a mulher sob o pretexto do dever conjugal. É preciso ressaltar que a autora comete um equívoco, pois no Código Penal brasileiro essa conduta está elencada no artigo 213 e não no artigo 231 o que, todavia, não diminui o intuito informativo da publicação. Outro zine selecionado é o Cinisca, editado por Laiza Ferreira e Rafaela Fontoura de Ananindeua/Belém-PA. O zine nasceu em 2011 e é feito somente por mulheres. A inspiração veio das bandas riot grrrl e da força da atleta espartana que venceu a corrida de carruagem de quatro cavalos chamada Cinisca. Na primeira edição, trazem uma reportagem sobre ações ocorridas em SP. Manifestantes colaram cartazes no Comedians, teatro de Rafinha Bastos, comediante que teria sido misógino e racista em suas performances. Figura 04 – Zine Cinisca
Fonte: . Acesso em 09 dez. 2016.
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Um zine mais antigo, denominado Um outro olhar é citado por Camargo (2010, p. 38): Somos contra qualquer tipo de repressão: a mais comum entre as mulheres é a opressão familiar, que limita de mulher aos papéis de esposa e mãe; lutamos por uma série de coisas: legalização do aborto, contracepção gratuita, igualdade entre os sexos e raças, mesmo salários para as mesmas profissões, defesa e informações das mulheres sobre seus direitos.
Vislumbra-se, novamente, o intuito de informar e de conscientizar as mulheres sobre os seus direitos e necessidades. Questões polêmicas como o aborto e opressão familiar estão listados na pauta do zine, o que permite interpretar que tais questões eram veiculadas e mesmo discutidas entre autoras e leitoras. Por fim, merece destaque o fanzine americano Free to fight. Esse fanzine, seguindo a linha do faça você mesma, é dedicado a questão da autodefesa feminina. As garotas se preparavam da melhor forma possível para lidar com a insegurança de suas vivências pois, conforme Leite (2015, p.123), “sabiam que Estado nenhum, polícia nenhuma as impediria, por exemplo, de serem espancadas pelo pai” ou namorado, ou marido, ou irmão. Leite (2015, p. 116) explica a origem do fanzine: A banda Team Dresch foi uma das pioneiras em divulgar as táticas de autodefesa. Foi o revide das garotas após uma das integrantes da banda, Judy Bleyle ter sido surrada pelo dono de um clube onde haviam tocado. Bleyle e o dono da casa discutiram porque ele havia parado sua picape em lugar que dificultava que Bleyle levasse os equipamentos usados no show para o carro da banda. Enquanto Bleyle estava de costas, voltando para o clube, foi surpreendida por um soco na lateral da cabeça. O golpe foi forte e lhe abriu supercilho, deixando-a sem reação, levando-as a buscar essas táticas que poderiam capacitá-las para o revide. A partir daí passaram a ensinar as táticas aprendidas nos intervalos de seus shows, no fanzine Free To Fight e no projeto de mesmo nome que consiste em um cd com músicas de bandas riots, áudios explicativos de defesa pessoal e um encarte com ilustrações.
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Figura 05 – Zine Free to Fight
Fonte: . Acesso em 09 dez. 2016.
Neste sentido, a preocupação em ensinar às mulheres essas táticas vincula-se diretamente a falta de confiança na proteção institucional, bem como a possibilidade de se efetivar uma defesa legítima contra possíveis agressões. Para Camargo (2010), os zines abriram um espaço de expressão para mulheres jovens num momento em que o feminismo, tanto em suas expressões mais teóricas quanto ativistas, ainda não abordava questões ligadas às mulheres jovens.
3.2. A Cena (eventos e encontros) Como mencionado, o início da cena no Brasil foi marcado por muita discriminação, o que levou as garotas a se organizarem e criarem seus próprios festivais, nos quais apenas bandas femininas poderiam se apresentar. É importante
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relembrar que a música era um dos elementos: a troca de fanzines, as conversas e alianças estabelecidas completavam a cena. Assim, existem inúmeros eventos e festivais espalhados pelo Brasil, mas um dos festivais mais importantes neste sentido é o Ladyfest. Trata-se de um festival com temáticas feministas realizado anualmente, em que há discussões, música, troca de zines, oficinas e mostra de vídeos. Conforme Leite (2015, p. 53-54): foi criado no ano de 1999 por Allison Wolfe, Corin Tucker e Sharon Cheslow com o intuito de responder ao “estado da música, todos esses festivais de música de macho que são tão corporativos e mainstream. A galera paga 50 dólares para entrar em um festival estúpido onde dizem para as garotas tirarem a camiseta”. A primeira edição aconteceu em Olympia, em agosto de 2000, e estipulou um formato para o festival: era composto por uma programação que contava com shows, oficinas, discussões, e mostra de artes visuais e filmes, organizados em mais de um dia de evento. Sem patentearem copyright, o objetivo era propiciar que outras garotas organizassem Ladyfests em suas cidades (desde então versões do Ladyfest acontecem em diferentes lugares do planeta (México, Alemanha Austrália, Suíça) e inclusive no Brasil).
No Brasil, já ocorreram oito edições deste festival: em 2004, o tema do festival foi “Conhecimento para a resistência feminista”, em 2005, com o tema “NÃO à violência contra a mulher, NÃO ao silêncio, e SIM nós somos feministas”; 2006 com a pauta “É menino ou menina? – Gênero: o machismo torturando nossa identidade”; em 2007 “Tire sua própria virgindade”, em 2008, o evento não foi realizado, voltando no ano seguinte em uma versão reduzida chamada de Mini-Ladyfest, durando apenas um dia. O tema debatido foi “Perspectivas do feminismo jovem alternativo”; em 2010, aconteceu a quinta edição do Ladyfest Brasil comemorando “10 anos de feminismo jovem radical”, com show da banda Team Dresch (a precursora a abordar a questão da autodefesa após uma integrante ser agredida em um clube, criadora do fanzine Free to Fight); em julho de 2013, aconteceu uma edição do festival com a dupla cubana de hip hop Krudas Cubensis e discotecagem da escritora Clara Averbuck. Percebe-se, assim, a inserção de outros gêneros musicais além do punk rock.
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Todos estes eventos haviam sido realizados, até então, em São Paulo. Em 2016, porém, ocorreu o primeiro Ladyfest em Fortaleza - CE, contando também com outros gêneros musicais como o reggae. O Ladyfest, dentre outros eventos do gênero, permite a criação de um senso de comunidade entre essas garotas, sendo praticado também segundo a ideologia do faça você mesmo – são eventos que não contam com patrocínio. Para as entrevistadas de Camargo (2010, p. 73-74), o Ladyfest: É a utopia máxima. Desmembrando pra coisas práticas e possíveis, assim, produzir coisas sem precisar dos outros, criar senso de comunidade, né, o Lady fest é isso né, que é o festival riot. Sozinho, sem dinheiro, sem porra nenhuma, faz o negócio acontecer pra mais de 2000 pessoas, disponibilizar coisas de graça, então, fazer isso né, a idéia é essa. A utopia mor é a destruição do patriarcado, aí no dia a dia a gente tenta ter umas doses homeopáticas disso (Entrevista com Emilia, 2008). É juntar a mulherada e fazer os eventos. Eu já fiz vários. Já fiz All Girls I e II e assim, levando as meninas pra tocar nos Sescs da vida, entendeu? Fiz todo um esquema bacana, uma divulgação bacana, equipamento bom, montei também. Montei os mangás, “Lãs senhoritas mangás”. Eu não vou lembrar de todos os festivais, “Viva la woman”... eu montei vários festivais pra exatamente, pra poder chamar a mulherada pra agitar, pra poder tocar num esquema bacana, dentro do melhor possível do local que a gente poderia fazer (Entrevista Camila, 2008).
Durante o Ladyfest, além das apresentações das bandas, há a ocorrência de oficinas onde assuntos como sexualidade, homoafetividade e violência(s) são abordados. Novamente, vislumbra-se a organização de garotas no intuito de debater, disseminar e trocar experiências sobre diversas questões relativas à mulher, especialmente no que se refere a seus direitos. Há, portanto, nesses espaços, uma tentativa dupla de conscientização e de luta for efetivação.
3.3 As músicas Em razão do vasto material de áudio lançado por bandas nacionais, foram selecionados alguns trechos das músicas vociferadas pelas garotas, no intuito de ilustrar o tipo de discurso por elas veiculados na cena.
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Em 2009, a banda Dominatrix lança a canção Filhas, mães, irmãs, cujo tema principal é a indiferença com a qual a violência contra a mulher ainda é encarada: Um de vocês vai dizer que não viu nada, não ouviu nada. / Um de vocês vai me dizer ‘vai devagar, sem acusar’. / A violência se faz, / A indiferença se faz /A intolerância se faz sem testemunha, / Dentro de casa, nas ruas do subúrbio, / Dentro de casamentos e nas delegacias. / Não faz mal pensar que não se está só. / Não faz mal pensar que não se está só.
A música narra sobre a violência vivenciada por mulheres e silenciada ou diminuída por seus espectadores. Também denuncia que a violência não está apenas nas ruas, mas nas casas, casamentos e delegacias – espaços nos quais, supostamente, não haveria violência. A banda Kaos Klitoriano possui uma música dedicada às reivindicações sobre a descriminalização do aborto, um assunto ainda encarado como tabu. A banda entoa: Seu corpo não pertence a nenhum estado / Ou Igreja e sim a você mesma / Não de ouvidos a entidades conservadoras / Que te chamam de devassa e pecadora / Ninguém a não ser você / Sabe o que é melhor para sua vida / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto! / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto! / Aborto não é crime / E sim uma necessidade / A proibição gera mais sofrimento / Ninguém vai deixar de abortar por ser proibido / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto! / Lute pelo seu direito ao aborto! / Seu direito ao aborto!
Como mencionado na introdução deste trabalho, na apresentação ao vivo desta música, a banda faz um comentário sobre a situação da proibição do aborto no Brasil, levando este tema tão polêmico a espaços de sociabilidade jovens. Outros temas referem-se a sexualização infantil e ao abuso sexual que ocorre dentro das próprias famílias. Tem-se o exemplo da banda Bulimia, com a música Orgulho do Brasil: Crianças arregaçadas dançando o tchan na TV num programa brega de um ‘dacu’ do SBT / Um velho assiste e baba atiçando sua tara, crianças estupradas desconhecendo o porquê / Nós apoiamos a prostituição infantil! / Nós somos o ‘é o Tchan’ do Brasil!
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Amanda Muniz Oliveira
E a música Lembranças Proibidas, da banda Santa Claus, na qual a personagem da música é assediada pelo seu próprio avô: Você se aproveitou de toda a minha ingenuidade e me ensinou a descobrir certas coisas / Muito antes de todas as minhas amigas, que só foram conhecê-las quando adultas / Se apoiou naquele maldito vício para fazer o que queria comigo / E me convenceu a ficar sempre calada, com suas desculpas totalmente esfarrapadas / Você não precisou usar a sua força, pois conseguiu ganhar a minha confiança / Sem ameaças você foi um grande gênio, mas nunca teve nenhum reconhecimento [...] / foi só pra sua neta querida que você deixou lembranças proibidas
A compositora da canção, de fato, sofreu essa violência quando criança e utilizou a música para expor o assunto. Conforme Leite (2015, p. 144) A canção “Lembranças proibidas” berra a violência brutal, sentida na pele pela autora, em seu pequeno corpo de criança. Foi o que a fez explodir em revolta, “o fato de eu sozinha, criança, ter falado ‘Não!’ para o meu avô, para o meu corpo, foi o maior ativismo da minha vida. Sozinha” (Idem). Por meio de suas músicas e de projetos como o Bendita Zine73, ela buscava fazer mulheres e meninas saírem do lugar de vítima, de sofrimento calado, de suspeitas de estarem pronunciando uma verdade.
Vislumbra-se a tentativa de efetivação de direitos, uma vez que as mulheres são, por meio dessas músicas, encorajadas a expor e compartilhar as violências sofridas, para que o agressor não saia impune e para que os danos sofridos por estas mulheres sejam superados. É uma questão de empoderamento. Assim, seja com os fanzines, com os eventos e encontros, ou com as músicas, o movimento riot grrrl (ou minas do rock), contribui ativamente para a conscientização das mulheres sobre os seus direitos, no intuito de buscar sua real efetivação.
Considerações Finais O Direito, por si só, é incapaz de resolver determinados conflitos – especialmente se se mantem uma incógnita a quem deveria proteger. Neste sentido, manifestações artísticas podem apresentar-se como um instrumento poderoso
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Nossa Resistência Não É o Silêncio: Música, Feminismo e Luta por Direitos a partir do Riot Grrrl
ao conscientizar determinados públicos sobre determinadas questões e, ao mesmo tempo, veicular exigências e demandas sociais. Neste sentido, o presente artigo procurou demonstrar se e como o movimento riot grrrl auxilia na promoção e efetivação dos direitos das mulheres. A partir de diversos elementos que compõe o movimento, como as músicas, os fanzines e os eventos e encontros, é possível concluir que mais do que entretenimento, o riot grrrl, também chamado de rock de mina, contribui de forma significativa ao conscientizar jovens mulheres sobre questões como aborto, violências e sexualidades. Em espaços como shows, oficinas e revistas, é criada uma espécie de segurança, na qual as mulheres sentem-se mais confortáveis para dividir experiências e buscar auxílios. Diferentemente dos espaços institucionais, há uma troca mais íntima, mais próxima, voltada a um público jovem, que muitas vezes desconhece sua própria situação de vítima – como no caso de estupros, violência psicológica e violência simbólica. Assim, pode-se afirmar que com os três ou quatro acordes do punk rock e de outros gêneros musicais, tem-se um tipo de resistência feminina que nada possui de passiva ou silenciosa.
Referências Bibliográficas CAMARGO, Michelle. Lugares, pessoas e palavras: O estilo das minas do rock na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Campinas, Unicamp, 2010. LEITE, Flávia Lucchesi de Carvalho. Riot Grrrl: capturas e metamorfoses de uma máquina de guerra. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 2015. O’HARA, Craig. A filosofia do punk: mais do que barulho. São Paulo: Radical livros, 2005.) The Punk Singer. Direção de Sini Anderson. Produção de Sini Anderson and Tamra Davis. Crowdfunded production, independent production, 2013. DVD.
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Epílogo A Primavera Feminista Nos últimos dez anos, é possível verificar a sistematização de uma nova formatação do feminismo173. Esse novo movimento consubstancia-se, especialmente, com as reivindicações das pautas das mulheres em manifestações públicas de grande repercussão (algumas com confrontos morais contundentes) e, igualmente, com as reivindicações e exposição de relações abusivas nas mídias sociais. Isso significa que as exigências sobre estabelecimento e concretizações dos direitos das mulheres espalhadas em diversos estados apresentam-se em escala mundial e, por conseguinte, apresentam a potência de fortalecer exponencialmente o movimento. 173 Esse movimento tem sido denominado pelo que seria a Quarta Onda, em referências às Ondas dos Feminismos Brancos, destacadamente os que podem ser demarcados em sequência, cronológica e espacialmente na Europa e nos Estados Unidos. Importa esclarecer que tal denominação não contempla devidamente os fluxos das atividades das mulheres do Sul, como as mulheres latino-americanas, nem as movimentações das mulheres negras. A par disso, frisa-se as mulheres negras, contudo, fazem parte de uma minoria dentro de uma minoria por enfrentarem a discriminação por vetores distintos, quais sejam o racismo e o sexismo. Assim, “a atuação desses dois vetores de discriminação tem um papel expressivo na construção da identidade desses indivíduos, fazendo com que a raça se constitua parcialmente em função das relações de opressão baseados no gênero e o gênero também seja um reflexo das relações hierárquicas decorrentes da raça dos indivíduos”. Com a identidade interseccional das mulheres negras, não se pode alcançar o tratamento igualitário e inclusivo somente com um ideal de igualdade como tratamento simétrico, visto que a sua experiência “não pode ser compreendida sem a consideração simultânea da ação desses dois vetores de discriminação” (MOREIRA, Adilson José. Direitos fundamentais como estratégias anti-hegemônicas: um estudo sobre a multidimensionalidade de opressões. Revista Quaestio Iuris, v. 09, nº 03, Rio de Janeiro, 2016). A interseccionalidade desvenda um necessário olhar político e estrutural: “a experiência da mulher negra não aparece como referência para a formulação de demandas de justiça elaboradas por líderes comunitários. A experiência delas torna-se então invisível dentro do processo político e a dificuldade de mobilização desse grupo contribui ainda mais para agravar esse problema” (Cf. MOREIRA, 2016). Por isso, urge alertar que o caráter interseccional demonstra que a mera soma de raça e gênero na análise da situação de mulheres negras representa o silencia de nuances relevantes de tal segmento social, ignorando a sua experiência de dentro de um sistema que considera a discriminação apenas como produto de uma única forma de tratamento diferenciado. E mais, esse caráter informa como certos vetores de discriminação confluem para criar uma vivência social particular. Por esse panorama teórico, verificamos que também estamos muito aquém de uma faticidade de consideração a tais experiências humanas e ao esforço por convivências anti-discriminatórias (Cf. http://emporiododireito.com.br/raca-genero-e-a-intoleraveltolerancia-das-praticas-discriminatorias-por-grazielly-alessandra-baggenstoss/).
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Embora subsista – e seja imprescindível – estruturais diferenças nas reivindicações das mulheres de diferenciados contextos em virtude de sua diversidade, salienta-se que se fortalece uma robusta conexão entre as mulheres que se denomina sororidade. A sororidade, então, prima por formas de interação entre as mulheres estabelecidas pela profunda cooperação, aceitação e respeito às diferenças e que se expurgue as crenças de concorrência e de rivalidade entre as mulheres, as quais somente servem para promover o enfraquecimento das reivindicações e a desunião. Assim, tem-se o florescer da consciência representativo de uma nova postura político-social das mulheres frente a formas de interação que caracterizem alguma forma de opressão. É o que, aqui, denomina-se primavera feminista. No Brasil, o protagonismo das mulheres e o seu florescer eclodiram em 2015. Tanto nas manifestações nas ruas, quanto nas mídias, preponderaram as discussões sobre os direitos das mulheres e as formas de opressão que os desrespeitam. A temática esteve em diversos momentos do ano; um exemplo, relacionada à violência contra as mulheres, foi o tema para a prova de redação aplicada no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM. Outro exemplo são determinados assuntos, antes desconhecidos ou pouco falados, como pornografia de vingança e cultura do estupro, foram trazidos ao debate e tornaram-se temáticas importantes nos meios social, político e jurídico. Nas redes sociais, destacaram-se as formas de interação abusivas relatadas com hashtags, v.g., #PrimeiroAssédio,e #MeuAmigoSecreto. Destacam-se, também, as movimentações nos meios acadêmicos, realizados pelas estudantes em combate às falas abusivas e opressoras de professores e colegas homens. Tal ocorreu no Curso de Graduação Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, em que as acadêmicas escreveram em cartazes as frases determinadas e espalharam pelos corredores do prédio onde funciona o curso. O movimento foi chamado de Seu Silêncio Compactua (#seusilênciocompactua). Na internet, ainda, tornaram-se mais visíveis páginas e projetos em defesa dos direitos das mulheres. Essencial mencionar, também, o combate a muitas proposições em andamento nos parlamentos brasileiros, que visam a questionar direitos fundamentais das mulheres, especialmente os condizentes aos seus direitos sexuais reprodutivos e ao direito de decisão sobre sua vida e sobre seu corpo. E aqui estamos, segunda década do século XXI. De hoje para trás, observamos os equivocados discursos morais que infringem tanto o simbólico social 244
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e político, como os discursos de autoridades estatais, como a policial e a judicial174. Todavia, observa-se o despertar sobre o erro de tais raciocínios: não se fundamente a ideologia da naturalização da submissão da mulher pautada no controle de seu corpo, na imposição de uma moral rígida e conveniente ao homem, na diferenciação biológica em comparação com este. Da mesma forma, não se sustenta a ideologia de desqualificação da mulher se ela não corresponder à representação simbólica que a educação e a religião a impõem. Sabe-se hoje, por exemplo, com mais consciência e amplificação que outrora, que a maternidade é uma opção de vida. Era, em discurso recente, uma fatalidade; atualmente, sabe-se uma escolha - o que já representa uma revolução175. A qualificação da mulher brasileira como ser humano, sujeito de direitos e deveres, é-lhe inata, como ela mesmo se percebe, como o Estado a reconhece, por meio dos direitos fundamentais esculpidos na Constituição, e como a comunidade internacional a considera, por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos e instrumentos internacionais correlatos176. No âmbito jurídico, portanto, sua qualificação como ser em si é nítida; no plano político-social, a sua legitimação não depende de ninguém: somente dela mesma, especialmente considerando o contexto atual relevado. Nesse espectro, atenta-se para a existência e a atuação das mulheres no meio jurídico. Percebe-se que, ainda, as formas de interação entre homens e mulheres, em tal âmbito, é pautada pela insistente tentativa de se manter a equivocada superioridade masculina e do androcentrismo. Veja-se: a advogada Mariana Fideles e sua sócia, a advogada Michele Franzoso, pretendiam registrar o seu escritório com o nome “Fideles & Franzoso Advogadas”; no entanto, uma resolução da OAB-SP veda a utilização do gênero feminino para se referir à profissão, o que as obrigou a registrar como “advogados”177. Sobre o atendimento à vítima, exemplifica, também, Marina Ganzarolli, da Rede Feminista de Juristas, que, “[...] quando você tem um perito médico legal que dá um laudo de lesão corporal leve para uma mulher que está com três costelas quebradas, sabemos 174 O que também realimenta a cultura do estupro, abordada por Marília Cassol Zanatta no artigo “Cultura do Estupro no Direito Penal Brasileiro”, in . 175 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013, p. 69. 176 Resguardam-se, aqui, as discussões acerca do relativismo e universalismo dos direitos humanos. 177 OLIVEIRA, Tory. Procura-se uma advogada feminista. Revista Carta Capital. ago/2016. Disponível em
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que não é assim em outros casos” e que “[...] quando vamos à delegacia denunciar um roubo, ninguém pergunta por que você estava com o carro do ano ou na rua à noite, ao contrário do que acontece em casos de violência sexual” 178. É necessário mencionar, também, que muitas decisões judiciais são produzidas a partir dos critérios morais hierarquizadores aqui relatados, como as que ainda se aceitam o denominado “estupro marital” como instituto jurídico e que culpabilizam a vítima nos casos de pornografia de vingança179. No desenvolvimento de trabalho acadêmico em prol dos direitos das mulheres180, verifica-se, pelas participantes do projeto, que as formas de interação em que predomina a desigualdade também são verificadas nas carreiras jurídicas, em que a proporção de mulheres que ascendem nas escalas profissionais é menor do que os homens, mesmo que estejam em condição de contemporaneidade e de similar qualificação profissional. Ainda, às mulheres que alcançam cargos ou funções de destaque ou de liderança, são feitos questionamentos sobre a maneira com que chegaram a tal local, que permeiam beleza, interesse afetivo-sexual de superior, menos a qualificação da profissional. Isso em reprodução ao pensamento de que a mulher, representante do belo, tem seu espaço reservado à privacidade do lar, em agrado a um homem que a legitima, e não em um espaço público, muito menos de líder. E, quando isso ocorre, é perceptível a resistência de pessoas, homens (em postura de superioridade) e mulheres (ainda em reprodução equivocada de forma de interação desigual), questionarem a autoridade da liderança mulher. Além disso, são rotineiras as inadequadas perguntas acerca de casamento e maternidade, como se tais opções fossem deveres das mulheres, nos termos já mencionados, ou da razão pela qual escolheu tal profissão, visto que a mulher poderia ser mais sucedida em carreiras que valorizem a aparência. Assim como se verificam tais interações abusivas na profissão, igualmente são perceptíveis no meio acadêmico, em que são reprisadas todas as crenças equivocadas aqui manifestadas e tantas outras, seja por homens (que tentam se apropriar de um argumento de autoridade ou da manutenção da errônea 178 OLIVEIRA, Tory. Procura-se uma advogada feminista. Revista Carta Capital. ago/2016. Disponível em 179 Cf. BAGGENSTOSS, Grazielly Alessandra. Dignidade da mulher condicionada. Disponível em . 180 Projeto de Pesquisa e Extensão Direito das Mulheres, da Universidade Federal de Santa Catarina.
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superioridade), seja por mulheres (que ainda não despertaram para a sua própria existência essencial e/ou calam-se diante das falas desiguais). É bem nesse quadro em que se brada que é tempo de resistência, de rupturas e de questionamento de crenças. A partir disso, será viável a construção de uma forma de convivência que defende a extirpação de qualquer modo de opressão e sustenta a autonomia para a realização pessoal. Tendo como ponto de partida refutar como universal e ou como neutro ponto de vista unilateral masculino, busca-se a identificação das ideologias opressoras e a conscientização sobre uma nova forma de interação pautada no respeito às diferenças. O momento é de posicionamento, em que a omissão é claramente entendida como compactuação à opressão – conforme alertaram as mulheres acadêmicas da UFSC. O momento é de despertar, mas também de resistência, em que se deve permanecer no local conquistado e não aceitar retrocessos. O momento é de pensar estrategicamente, a fim de que os atos praticados gerem, efetivamente, resultados duradouros. São nítidos os ranços dessa ideologia rudimentar de hierarquização entre homens e mulheres, questionando o motivo por qual as mulheres não se casam, qual roupa estava usando, exigindo sexo, dispensando tratamento à mulher como secundária à sua própria vida. Contudo, há tempos que as mulheres transbordam essa uma imposição de submissão e de coadjuvação. Desde sempre, houve resistência e protagonismo, determinando que o respeito é-lhes devido pela vida que palpita em seu corpo, pelo seu sangue que nutre a terra, pela sua própria existência – esteja vestida de Eva ou de Lilith181; esteja mãe casta ou mãe prostituta; esteja solteira ou casada, fiel ou impura, mãe e filha. Por mais que os impos(i)tores de uma moralidade única (mulher casta, mãe, do lar182) ainda tentem erguer suas equivocadas falas de naturalização da submissão da mulher, não há mais espaço, em qualquer meio de nossa socieda181 Na mitologia sumeriana, Lilith era a Rainha do Céu e, com a formação dos dogmas religiosos hebraicos, sua figura foi incorporada à história de Adão. Nela, Lilith foi concebida como a primeira esposa de Adão. Na história, por ter se recusado à submissão sexual (pois compreendia que deveria se relacionar de modo igualitário) e por ter abandonado Adão, teria se tornado um demônio, conforme sustenta a mitologia judaica. Cf. LARAIA, Roque de Barros. Jardim do Éden revisitado. Rev. Antropol. v. 40. n. 1. São Paulo, 1009. Disponível em . Acesso em 02 jul 2016. 182 Incansavelmente se ressalta que são dignas todas as expressões de vida de uma mulher (seja do lar, do trabalho, do bar; recatada, expansiva, introvertida, etc.), desde que seja por sua escolha, e não por imposição de outrem.
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de, para a limitação da existência de uma mulher: ela é o que quer, em lugar que quiser, da forma como pretender e por quanto tempo lhe for conveniente. É o florescimento da consciência de si, de sua força e da potencialidade do seu coletivo; é a primavera feminista brasileira. E não é de hoje que semeamos nossa resistência e nossa força183. Assim tanto o é que, embora sejam necessários muitos avanços, o Direito brasileiro, ao menos, já apresenta a ideologia da não opressão a partir da dignidade da pessoa humana, pela liberdade de a mulher não ser aquilo que não quiser ser. E, nesse compasso, pela liberdade de ser aquilo que quiser ser: ser mais de ela mesmas, por ela e para ela. Para nós e por nós.
183 Cf PERROT, Michelle. Minha história das mulheres; MORGA, Antonio (org.). História das mulheres de Santa Catarina. Florianópolis: Argos, 2001; PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997; PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.
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