O liberalismo e os limites da justiça 9723111365, 9789723111361


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O liberalismo e os limites da justiça
 9723111365, 9789723111361

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STJ00108020

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INTRODUÇÃO

o liberalismo e o primado da justiça Este livro constitui um ensaio sobre o liberalismo. Aquela de que me ocupo é a versão do liberalismo dominante na filosofia política moral e jurídica dos nossos dias: aquele liberalismo no qual as noções de justiça, equidade e direitos individuais desempenham um papel nuclear e que encontra em Kant muita da sua fundamentação filosófica. Enquanto ética que afirma a prioridade do justo sobre o bom e que se define habitualmente em oposição às concepções utilitaristas, pode definir-se melhor aquele que tenho em mento como sendo um "liberalismo deontológico", um nome um tanto pretencioso para uma doutrina que nos é familiar. O "liberalismo deontológico" é, acima de tudo, uma doutrina acerca da justiça, e, em particular, acerca da primado da justiça no quadro dos ideais morais e políticos. A sua tese nuclear poderá ser apresentada da seguinte forma: sendo a sociedade composta por uma pluralidade de pessoas, cada uma com os seus objectivos, interesses e concepções do bem, estará mais bem organizada quando for governada segundo princípios que, em si mesmos, não pressupõem uma qualquer concepção do bem. Aquilo que justifica estes prinCípios de organização e de regulamentação social não é, acima de tudo, o facto de maximizarem o bem-estar social ou promoverem o bem de outro modo qualquer, mas o facto de partirem do conceito de justo, uma categoria moral a que aqui é atribuída prioridade sobre o bem e que é perspectivada como sendo independente dele. Este é o liberalismo de Kant e de muita da filosofia moral e política contemporânea, sendo este o liberalismo que me proponho desafiar. Contra a primado da justiça, argumentarei em favor dos limites da justiça e, por arrastamento, a favor dos limites do liberalismo também. Aqueles que tenho em mente não são limites práticos, mas sim conceptuais. Não me limito a

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22 defender que, independentemente da sua nobreza, a justiça, enquanto princípio, dificilmente se poderá alguma vez concretizar por inteiro na prática; aquilo que afirmo é que os limites da justiça se situam no próprio ideal do conceito. O problema que se coloca a uma sociedade inspirada na promessa liberal não reside apenas no facto de a justiça estar sempre por realizar, mas no facto de a própria visão que sustenta ser defeituosa, de as suas aspirações estarem incompletas. Porém, antes de partimos para a exploração destes limites, temos primeiro de definir com clareza em que consiste esta reivindicação do primado da justiça..

Os fundamentos do liberalismo: Kant vs. Mill Pode-se compreender o primado da justiça em dois sentidos diferentes, se bem que inter-relacionados. O primeiro é um sentido claramente moral. Afirma que a justiça é um valor primário na medida em que as suas exigências têm maior peso do que outros interesses morais e políticos, independentemente da urgência de que estes últimos se possam revestir. Nesta perspectiva, a justiça não se apresenta apenas como um valor entre outros, a ser pesado e avaliado consoante as ocasiões, mas como a mais alta de todas as virtudes sociais, que tem de ser assegurada antes de as outras poderem apresentar as suas reivindicações. Se, por acaso, a felicidade do mundo pudesse ser promovida apenas através de meios injustos, então o que deveria prevalecer seria, não a felicidade do mundo, mas a justiça. E quando a justiça se defrontasse com certos direitos individuais, nem sequer o bem-estar geral se poderia sobrepor a eles. No entanto, quando perspectivado apenas neste sentido moral, o primado da justiça dificilmente é capaz de demarcar este liberalismo das suas outras versões mais conhecidas. Muitos autores liberais sublinharam a importância da justiça e insistiram na inviolabilidade dos direitos individuais. John Stuart Mill referiu-se à justiça como sendo "a parte principal e incomparavelmente mais inviolável e mais obrigatória de toda a moral" (1863: 465), e Locke defendeu que os direitos naturais de um homem são tão fortes que nenhuma comunidade se pode sobrepor a eles (1690). Porém, nenhum destes autores foi um liberal deontológico no sentido mais profundo de que aqui nos ocupamos. A ética deontológica mais profunda não se ocupa apenas da moral, mas também dos fundamentos da moral. Não se

ocupa apenas do valor da lei moral, mas também dos meios pelos quais ela surge, daquilo que Kant apelidaria de "âmbito de determinação" (1788). Desde o ponto de vista plenamente deontológico, o primado da justiça descreve não apenas uma prioridade moral, mas também uma forma privilegiada de justificação. O justo é anterior ao bom, não apenas na medida em que as reivindicações do primeiro têm precedência sobre as do segundo, mas também na medida em que os princípios que o enformam são derivados directamente. Quer isto dizer que, ao contrário de outras injunções práticas, os princípios da justiça se justificam de um modo que não depende de uma qualquer visão específica do bem. Pelo contrário, em face do estatuto independente que apresenta, é o justo que delimita o bem e que estabelece as suas fronteiras. "Os conceitos do bem e do mal não são determinados antes da lei moral (à qual, na aparência, eles deveriam servir de fundamento), mas apenas (como também aqui acontece) segundo ela e por ela" ( Kant 1788: 65). Portanto, na perspectiva da fundamentação moral, o primado da justiça resume-se a isto: a virtude da lei moral não reside no facto de promover um objectivo ou um fim qualquer que se presume ser bom. Ela é, pelo contrário, um bem em si mesma, que precede todos os demais objectivos ou fins, sendo igualmente responsável pela sua regulamentação. Kant distingue este sentido fundacional, ou de segunda ordem, do primado da justiça em relação ao sentido moral, ou de primeira ordem, nos seguintes termos: "Por primado entre duas ou mais coisas ligadas pela razão entendo eu a prioridade de uma delas ser o primeiro princípio determinante da conexão com todas as ouúas. No sentido mais estrito, prático, primado significa a superioridade do interesse de uma enquanto o interesse das outras está subordinado a esse interesse (que não pode estar subordinado a mais nenhum outro)" (1788: 124). Este contraste poderia igualmente ser apresentado em termos de dois sentidos diferentes de deontologia. No seu sentido moral, a deontologia opõe-se ao consequencialismo, descrevendo uma ética de primeira ordem que contém certos deveres e proibições categóricos que assumem uma precedência incondicional sobre as demais preocupações morais e práticas. No seu sentido fundacional, a deontologia opõe-se à teleologia, descrevendo um tipo de justificação nos termos do qual os primeiros princípios são

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24 derivados de um modo que não pressupõe qualquer finalidade ou propósito humanos, nem são determinados por qualquer concepção do bem para o homem. Destas duas vertentes da ética deontológica, a primeira será, sem dúvida, a mais familiar. Muitos liberais, e não só os deontológicos, atribuíram um peso muito particular à justiça e aos direitos individuais. O que suscita a questão de se saber como é que estes dois aspectos da deontologia se inter-relacionam. Poderá o primeiro tipo de liberalismo defender-se sem recurso ao segundo? Mill, por exemplo, pensava que sim, e defendeu a pos- . sibilidade, e até mesmo a necessidade, de os separar. No dizer de Mill, possuir um direito é "deter algo cuja posse me deve ser assegurada pela sociedade" (1863: 459). A obrigação da sociedade é tão forte que a minha reivindicação "assume um carácter absoluto, uma infinidade aparente e uma incomensurabilidade relativamente a todas as demais considerações, de tal ordem que se constitui como aquilo que separa o sentimento de bem do sentimento de mal, tal como os sentimentos comuns de conveniente e de inconveniente" (1863: 460). Porém, ao perguntar-se por que razão a sociedade tem o dever de cumprir esta obrigação, Mill esclarece não haver qualquer outra para além" da utilidade geral" (1863: 459). A justiça emerge, então, em sentido estrito, como "a parte principal e incomparavelmente mais sacrossanta e obrigatória de toda a moral", não em função de um direito abstracto, mas tão-só na medida em que as exigências da justiça "ocupam um lugar mais elevado na escala da utilidade social, razão pela qual possuem uma obrigatoriedade superior a todas as outras" (1863: 465, 469). "É importante sublinhar que abdico de qualquer vantagem que pudesse ser retirada do meu argumento a partir da ideia de um direito abstracto, independente da sua utilidade. Em meu entender, a utilidade constitui a última instância de apelo de todas as questões éticas. Trata-se, no entanto, de uma concepção de utilidade no sentido mais lato, assente sobre os interesses permanentes do homem enquanto ser em devir" (1849: 485).

A importância primordial da justiça e dos direitos torna estes últimos "mais absolutos e mais imperativos" do que quaisquer outras reivindicações. Contudo, aquilo que faz com que sejam importantes é, em primeiro lugar, o serviço que prestam à utilidade social. É este o seu fundamento último.

"Todas as acções são realizadas com vista a um objectivo qualquer, e será natural supor que o carácter e a tonalidade das regras de acção uecorrem. por inteiro, do objectivo ao qual se subordinam" (1863: 402). Na perspectiva utilitarista, o carácter e a tonalidade dos princípios da justiça decorrem do objectivo de felicidade, tal como acontece com todos os demais princípios morais. "Perguntar pelo objectivo de uma acção é [... ] perguntar pelas razões que fazem com que as coisas sejam desejáveis", e a felicidade é desejável - na verdade, ela é "a única coisa desejável como fim" - precisamente porque "as pessoas a desejam de facto" (1863: 438). E aqui temos, com toda a clareza, os alicerces teleológicos e os pressupostos psicológicos do liberalismo de Mill. Para Kant, pelo contrário, os dois aspectos da deontologia estão estreitamente interligados. A sua ética e a sua metafísica constituem os argumentos mais poderosos contra a possibilidade de os desligar um do outro. A concepção kantiana apresenta pelos menos duas objecções em relação a uma perspectiva como a proposta por Mill (e pelos utilitaristas contemporâneos que privilegiam as regras). A primeira é a de que os alicerces do utilitarismo não são fiáveis, lembrando a segunda que, em matéria de justiça, alicerces não fiáveis podem ser coercitivos e injustos. O utilitarismo não é fiável na medida em que nenhum fundamento meramente empírico, seja ele utilitário ou outro, é capaz de assegurar o primado da justiça e a inviolabilidade dos direitos individuais. Um princípio que tenha de pressupor certos desejos e inclinações não pode deixar de se encontrar tão condicionado quanto esses mesmos desejos. No entanto, uma das características dos nossos desejos é dos meios de que dispomos para os satisfazer é o facto de variarem, quer de pessoa para pessoa, quer, na mesma pessoa, de um momento para outro. Consequentemente, todo e qualquer princípio que deles dependa terá de ser igualmente contingente. Assim, "todos os princípios [Prinzipien} práticos que pressupõem um objecto [Objekt} (matéria) da faculdade de desejar, enquanto princípio determinante da vontade, são sempre empíricos, não podendo fornecer nenhumas leis práticas" (Kant 1788: 19). Sempre que a utilidade for o fundamento determinante - até mesmo a "utilidade no sentido mais amplo" - têm, em princípio, que existir casos em que o bem-estar geral se sobrepõe à justiça, em vez de a assegurar. Com efeito, Mill concede que assim seja, mas questionaria se a justiça deve deter um tal privilégio de se impor de forma tão incondicionada. Heco-

26 nhece que a concepção utilitarista não afirma a prioridade absoluta da justiça, na medida em que podem surgir casos particulares "no quadro dos quais algum outro dever social pode assumir uma tal importância a ponto de se sobrepor a qualquer uma das máximas gerais da justiça" (1863: 469). Porém, se desta limitação decorrer a promoção da felicidade da humanidade, que melhor fundamento poderia haver para defender o primado da justiça de forma mais efectiva1? Em resposta,Kant diria que até mesmo excepções em nome da felicidade humana têm de ser rejeitadas, e que a não-afirmação, em absoluto, do primado da justiça conduz à injustiça e à opressão. Ainda que fosse partilhado universalmente, o desejo de felicidade não poderia constituir o fundamento da lei moral. As pessoas continuariam a ter concepções diferentes acerca da natureza da felicidade. Instaurar como regra geral uma destas concepções particulares significaria impor a alguns as concepções de outros. O que equivaleria a negar-lhes a liberdade de promoverem as suas concepções próprias. Conduziria à criação de uma sociedade na qual algumas pessoas se veriam coagidas a adoptar os valores de outras, em vez de uma outra na qual as necessidades de cada um se harmonizam com os objectivos de todos. "Os homens possuem pontos de vista diferentes relativamente ao objectivo empírico de felicidade, aquilo que ele é e em que consiste. Portanto, no que diz respeito à felicidade, a vontade não pode ser submetida a qualquer princípio comum, nem a qualquer lei externa harmonizável com a liberdade de cada um" (Kant 1793: 73-74). Para Kant, a prioridade do justo "deriva inteiramente do conceito de liberdade no inter-relacionamente externo mútuo de seres humanos, nada tendo a ver com o desiderato natural de todos os homens (o objectivo de alcançarem a felicidade), nem com os meios disponíveis de alcançar esta finalidade" (1793: 73). Nestes termos, o princípio da justiça exige um fundamento anterior a todas as finalidades empíricas. Nem sequer uma união fundada num objectivo comum partilhado por todos os seus membros será

1 De seguida, Mil! afirma que a justiça é simplesmente tudo aquilo que for exigido pela utilidade. Nos casos particulares em que as máximas gerais da justiça são' ultrapassadas, "dizemos habitualmente, não que a justiça se viu forçada a ceder o lugar a outro princípio moral, mas que aquilo que é justo, na generalidade, é, em função desse princípio moral, injusto nesses casos concretos. Através desta útil acomodação da linguagem, salvamos o carácter de irrevogabilidade atribuído à justiça, ao mesmo tempo que nos livramos da necessidade de defender que a injustiça pode ser louvável" (1863: 469).

27 suficiente para a alicerçar. Apenas uma união que se constitua como "um fim em si mesmo, o qual deve ser partilhado por. todos e que, por isso, se afirme como um dever absoluto e primário em todas e quaisquer relações externas entre seres humanos" será capaz de assegurar a justiça e de evitar a coerção exercida sobre alguns pela imposição sobre eles das convicções de outros. Apenas numa tal união é que ninguém me poderá "compelir a ser feliz de acordo com a sua concepção do bem-estar de outros" (1793: 73-74). Só quando eu me governar por princípios que não pressupõem quaisquer fins particulares é que eu serei livre para perseguir os meus próprios fins, desde que igual liberdade seja assegurada para todos. Na perspectiva kantiana, os dois aspectos da ética deontológica não são dissociáveis. A prioridade moral da justiça é viabilizada (e exigida) pela sua prioridade fundacional. A justiça não é apenas mais um valor entre outros, exactamente porque os seus princípios são derivados independentemente. Ao contrário do que se passa com outros princípios práticos, a lei moral não se vê implicada à partida na promoção dos vários interesses e fins contingentes, na medida em que não pressupõe uma qualquer concepção particular do bem. Uma vez que o seu fundamento é anterior a todos os fins empíricos, a justiça ergue-se numa posição privilegiada face ao bem, estabelecendo os seus limites. Porém, esta abordagem faz surgir a questão de saber qual poderá ser o fundamento da justiça. Se tem de ser anterior a todos os demais objectivos e fins, incondicionada até mesmo "pela circunstância peculiar da natureza humana" (1785: 92), onde poderemos encontrar um fundamento para ela? Perante as exigências rigorosas da ética deontológica, até parece que a lei moral não poderá ter qualquer fundamento, na medida em que qualquer requisito material prévio destruiria a sua prioridade. "Dever!", pergunta Kant no seu momento mais lírico, "Que origem é digna de ti e onde se encontra a raiz da tua nobre linhagem, que recusa orgulhosamente todo o parentesco com as inclinações?" (1788: 89). A sua resposta é que o fundamento da lei moral se encontra no sujeito, e não no objecto da razão prática, num sujeito que é capaz de possuir uma vontade autónoma. Não é um fim empírico, mas "um sujeito de fins, a saber, o próprio ser racional, que se deve elevar à condição de fundamento de todas as máximas de acção" (1785: 105). Nada, para além do "próprio sujeito de todos os fins possíveis", pode dar lugar à justiça, na medida em que apenas ele é igualmente o sujeito de uma vontade autónoma. Só então nos depara-

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28 mos com "aquilo que eleva o homem acima de si próprio enquanto parte do mundo sensível" e lhe permite participar num universo ideal, não condicionado e totalmente independente das nossas inclinações sociais e psicológio distanciamento cas. E apenas esta independência consumada nos de que necessitamos para podermos escolher livremente por nós próprios, sem sermos condicionados pelas contingências das circunstâncias. Na perspectiva deontológica, o que importa, acima de tudo, não são os fins que escolhemos, mas a nossa capacidade de os eleger. E, sendo anterior a qualquer fim particular, é no sujeito que reside esta capacidade. Ela "não é outra coisa senão a personalidade, isto é, a liberdade e a independência relativamente aos mecanismos de toda a natureza; ao mesmo tempo, porém, considerada como uma faculdade de um ser que está submetido a leis peculiares, a saber, às leis puras práticas promulgadas pela sua própria razão" (1788:89). O conceito de um sujeito que é anterior e independente dos seus atributos oferece-nos um fundamento para a lei moral que, ao contrário de fundamentações meramente empíricas, não depende da teleologia nem da psicologia, completando, assim, e com vigor, a visão deontológica. Do mesmo modo que o justo é anterior ao bom, assim também o sujeito é anterior aos seus fins. Para Kant, estas prioridades paralelas explicam lide uma só vez a causa de todos os erros dos filósofos quanto ao princípio supremo da moral. Com efeito, eles buscavam um objecto da vontade para dele fazerem a matéria e o fundamento de uma lei". Uma tal opção, porém, conduzia-os inevitavelmente a abandonarem, atolados em heteronomia, os seus primeiros princípios. Em vez disso, deveriam ter "primeiramente buscado uma lei que determinasse a priori e imediatamente a vontade e, em seguida, em conformidade com esta, o objectivo"(l788: 66). Se assim tivessem feito, teriam identificado a diferença entre um sujeito e um objecto da razão prática e, deste modo, encontrado um fundamento para a justiça independente de qualquer objecto particular. Para o argumento em favor da prioridade da justiça ter êxito, para o justo ser anterior ao bom nos interligados sentidos moral e fundacional que identificamos, torna-se necessário assegurar igualmente o sucesso de uma qualquer versão do primado do sujeito. Isto deve ficar claro. No entanto, falta ainda demonstrar se este último argumento é defensável. Como poderemos saber se existe um tal sujeito, capaz de ser identificado antes e independentemente dos objectivos que procura? Esta questão assume um inte-

resse especial quando nos lembramos que o argumento em favor da prioridade do sujeito não é um argumento empírico. Caso contrário, dificilmente seria capaz de cumprir a tarefa que lhe exige, logo à partida, uma ética deontológica.

o sujeito transcendental Kant apresenta dois argumentos em favor da sua noção de sujeito: um epistemológico, o outro prático. Ambos são formas de argumentos "transcen~entais" na medida em que se desenvolvem na procura dos pressupostos s~bJa.centes a certos aspectos aparentemente indispensáveis da nossa expenenCla. O argumento epistemológico investiga os pressupostos do autoconhecimento. Parte do princípio de que eu não sou capaz de conhecer tudo o que há para conhecer a meu respeito apenas através da observação ou da introspecção. Quando recorro à introspecção, não vejo mais do que aquilo que os sentidos me entregam. Sou capaz de me conhecer a mim mesmo apenas enquanto objecto da experiência, enquanto portador deste ou daquele desejo, desta ou daquela inclinação, objectivo, disposição, etc. Porém, este tipo de auto conhecimento não pode deixar de estar limitado, na medida em que jamais será capaz de me habilitar a ir para além do jogo das aparências no sentido de descortínar aquilo de que, justamente, são aparências. "Na medida em que um homem se conhece a si mesmo através da sensação interior [... ] não poderá afirmar que se conhece naquilo que é em si mesmo" (Kant 1785: 119). Por si só, a introspecção, ou a "sensação interior" jamais seria capaz de fornecer conhecimento do que quer que seja que se situe para além destas aparências. Qualquer reenvio de um conhecimento desta ordem dissolver-se-ia imediatamente numa nova aparência. No entanto, temos de presumir mais do que isto. "Um homem tem de assumir que, para além deste carácter de si mesmo enquanto sujeito composto de meros fenómenos, existe algo mais que os fundamenta - ou seja, o seu Ego, pois este deve constituir-se a si mesmo" (Kant 1785: 119). Este algo mais, que não somos capazes de conhecer empiricamente mas que, no entanto, temos de pressupor como condição para podermos conhecer o que quer que seja é o próprio sujeito. O sujeito é esse algo "subjacente" que antecede toda e qualquer experiência particular, que reúne as nossas diversas percepções e que as mantém unidas num consciente único. Fornece o princípio de unidade, sem o qual as percepções que temos de nós

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próprios não seriam mais do que um fluxo de representações desligadas, incoerentes e em constante mudança, as percepções de ninguém. E enquanto não conseguirmos apreender este princípio empiricamente, temos que presumir a sua validade, se quisermos que o conhecimento que temos de nós próprios faça algum sentido. "A ideia de que as representações dadas na intuição me pertencem todas é, por isso, equivalente à ideia de que eu as reúno numa auto-consciência, ou que, pelo menos, sou capaz de as reunir. E apesar de esta ideia não ser em si a consciência da síntese das representações, ela pressupõe a possibilidade dessa síntese. Por outras palavras, é só na medida em que sou capaz de apreender a multiplicidade de representações numa só consciência que eu as identifico a todas sem excepção como sendo minhas. De outro modo, deveria apresentar-me como um sujeito tão colorido e tão variado quantas as representações de que tenho consciência sobre mim mesmo" (Kant 1787: 154). A descoberta de que tenho que me conhecer a mim mesmo, quer como sujeito, quer como objecto da experiência, sugere dois modos diferentes de conceber as leis que governam as minhas acções. Esta descoberta conduz-nos do argumento epistemológico para um argumento suplementar, prático, em favor da prioridade do sujeito. Enquanto objecto da experiência, eu pertenço ao mundo sensível. Tal como os movimentos de todos os objectos, também as minhas acções são determinadas pelas leis da natureza e pelas regularidades de causa e efeito. Em contrapartida, enquanto sujeito da experiência, eu habito o mundo inteligível, ou supra-sensível, no qual sou independente das leis da natureza e me apresento como sendo capaz de ser autónomo, isto é, capaz de agir de acordo com uma lei que me dou a mim mesmo. Só a partir deste segundo ponto de vista é que eu me posso considerar livre, "uma vez que ser livre é não se encontrar sujeito às causas determinantes do mundo sensível (precisamente aquilo que a razão tem sempre que se auto-atribuir)" (Kant 1785: 120). Se eu fosse um ser completamente empírico, não seria capaz de atingir a liberdade, na medida em que cada exercício da minha vontade estaria condicionado pelo desejo de algum objecto. Todas as escolhas seriam escolhas heterónomas, governadas pela procura de algum

fi~. A minha vontade nunca poderia ser uma causa primeira, mas apenas o efeIto de uma causa anterior, instrumento de um: ou outro impulso ou de uma ou outra inclinação. Na medida em que nos consideramos livres, jamais nos poderemos pensar como sendo seres meramente empíricos. "Quando pensamos em nós próprios como seres livres, transportamo-nos para o mundo inteligível, como seus membros, e reconhecemos a autonomia da vontade" (Kant 1785: 121). E assim, a noção de um sujeito que é anterior à e~eriência e independente dela, tal como o exige a ética deontológica, surge nao ap~~as como sendo possível, mas como indispensável, um pressuposto necessano para a possibilidade de um auto conhecimento e da liberdade. Podemos agora ver com maior clareza em que consiste a reivindicação do primado da justiça avançada pela ética deontológica. Na perspectiva kantiana, a prioridade da justiça é simultaneamente moral e fundacional. O seu fundamento radica no conceito de um sujeito que é dado antes dos seus fins, considerado indispensável para o nosso conhecimento de nós próprios enquanto seres capazes de fazerem opções livres. E a sociedade encontrar -se-á melhor organizada quando for governada por princípios que não pressupõem uma concepção particular do bem, uma vez que qualquer outro ordenamento seria incapaz de respeitar as pessoas enquanto seres capazes de escolher. Em qualquer outro ordenamento, as pessoas seriam tratadas como objectos, em vez de sujeitos, como meios, em vez de fins em si mesmos. Os temas deontológicos conhecem uma expressão muito semelhante em grande parte do pensamento liberal contemporâneo. Assim, "os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes do cálculo dos interesses sociais" (Rawls 1971: 4), pelo contrário, "funcionam como trunfos nas mãos dos indivíduos" (Dworkin 1978: 136) contra as políticas que pretendam impor uma visão particular do bem sobre a sociedade, como um todo. "Uma vez que os membros de uma sociedade diferem nas suas concepções", o governo não os estará a respeitar como iguais se "preferir uma delas a expensas das outras, seja porque os governantes acreditem que essa concepção é inerentemente superior às demais, seja porque ela é partilhada pelo grupo mais numeroso ou mais poderoso" (Dworkin 1978: 127). Em comparação com o bem, os conceitos de justo e de injusto "possuem um estatuto independente e primordia:l na medida em que estabelecem a nossa posição básica enquanto entidades capazes de optarem livremente". Mais importante do que qua:lquer escolha, para o va:lor da condição de ser pessoa, "é a

32 pressuposição e o substrato do próprio conceito de escolha. E é por isso que as normas relativas ao respeito pela pessoa de modo algum podem ser comprometidas, razão pela qual estas normas são absolutas relativamente aos 29). vários fins que elegemos perseguir" (Fried 1978: Em virtude da sua independência relativamente aos pressupostos psicológicos e teleológicos habituais, est~ liberalismo, pelo menos nas suas versões contemporâneas, apresenta-se tipicamente como imune à maioria das controvérsias a que tradicionalmente as teorias políticas têm sido vulneráveis, especialmente no que respeita à natureza humana e ao significado da vida boa. É por isso que se afirma que "o liberalismo não se apoia em nenhuma teoria especial da personalidade" (Dworldn 1978: 142), que os seus pressupostos de base não envolvem "nenhuma teoria particular das motivações humanas" (Rawls 1971: 129), que "os liberais, enquanto tais, são indiferentes" aos tipos de vida que os indivíduos possam eleger (Dworldn 1978: 143), e que, para aceitar o liberalismo, ninguém "necessita de tomar posição relativamente a uma série de 'grandes questões',cujo carácter é extremamente controverso" (Ackerman 1980: 361). Porém, se para o liberalismo deontológico certas "grandes questões" da filosofia e da psicologia estão fora de discussão, isto apenas se deve ao facto de ele reenviar para outros âmbitos a controvérsia que elas suscitam. Como vimos, este liberalismo evita fazer fé numa qualquer teoria específica da pessoa, pelo menos no sentido tradicional de atribuir a todos os seres humanos uma natureza determinada, ou certos desejos e inclinações essenciais, tais como o egoísmo ou a sociabilidade, por exemplo. No entanto, e noutro sentido, este liberalismo adopta, de facto, uma certa teoria da pessoa, preocupando-se não com o objecto dos desejos humanos, mas com o sujeito desses desejos e com a maneira como este sujeito se constitui. Para que a justiça seja um valor primário, certos postulados acerca de nós próprios têm que ser verdadeiros. Temos de ser criaturas de um certo tipo, relacionadas com as circunstâncias humanas de uma certa maneira. Em particular, temos que perspectivar a nossa circunstância sempre com um certo distanciamento, como condicionada, é certo, mas com uma parte de nós a anteceder todas as condições. Só assim nos poderemos perspectivar simultaneamente como sujeitos e como objectos da experiência, como agentes e não apenas como .instrumentos dos fins que perseguimos. Neste sentido, o liberalismo deontológico pressupõe que somos capazes de - ou, melhor, que temos de - nos perspectivar como independentes. Pela minha

33 parte, defenderei que não somos capazes e que, é no carácter parcial desta auto-imagem que se poderão encontrar os limites da justiça. Neste contexto, são duas as questões que se colocam: identificar como é que estas falhas arruinam o primado da justiça e que virtude alternativa emerge quando nos deparamos com os seus limites? Eis as questões a que esta obra procura responder. A título preliminar, convém ainda considerar outros dois desafios que se poderão erguer contra a perspectiva kantiana.

A objecção sociológica

o primeiro destes desafios poderá ser apelidado de objecção sociológica, na medida em que começa por sublinhar a influência penetrante das condições sociais na formulação dos valores individuais e das fórmulas de organização política. Argumenta-se que o liberalismo está errado na medida em que a neutralidade não é possível, dado que, por mais que nos esforce-" mos, jamais seremos capazes de escapar por inteiro aos efeitos das nossas condicionantes. Todos os ordenamentos políticos encarnam, por isso, alguns valores, contexto em que as questões que emergem são as de se saber de quem são os valores que prevalecem, e quem ganha e quem perde em resultado da sua adopção. A apregoada independência do sujeito deontológico é uma ilusão liberal. Não ente~de a natureza fundamentalmente "social" do homem, nem o facto de sermos seres condicionados "do princípio até ao fim". Não há nenhum ponto de isenção, nenhum sujeito transcendental capaz de se erguer fora da sociedade ou fora da experiência. Somos em cada momento aquilo em que nos transformamos, um concatenado de desejos e de inclinações, sem que nada reste para habitar um domínio numenal. A prioridade do sujeito só pode significar a prioridade do indivíduo, influenciando assim a concepção em favor dos valores individualistas familiares à tradição liberal. A justiça parece ser primária apenas porque este individualismo dá tipicamente lugar a reivindicações que colidem umas com as outras. Os limites da justiça situar-se-ão, portanto, na possibilidade de se cultivar as virtudes subjacentes à cooperação, tais como o altruísmo e a benevolência, as quais tornam o conflito menos dramático. No entanto, estas virtudes são precisamente aquelas que têm menores probabilidades de desabrochar numa sociedade alicerçada sobre pressupostos individualistas. Em resumo, a falsa promessa do liberalismo é o ideal de uma sociedade

34 governada por princípios neutros. Afirma valores individualistas ao mesmo tempo que procura uma neutralidade que jamais poderá alcançar. Porém, em muitos aspectos, a objecção sociológica não consegue entender a força da perspectiva deontológica. Em primeiro lugar, não compreende a neutralidade que o liberalismo se propõe oferecer. A neutralidade que enforma os princípios da justiça não emerge do facto de admitir todos os valores e todos os fins possíveis, mas antes do facto de tais princípios serem derivados de um modo que não depende de quaisquer valores ou fins particulares. Com certeza que, uma vez que os princípios de justiça, assim derivados, sejam fixados, eles excluem certos fins - dificilmente poderiam regulamentar o que quer que fosse se fossem incompatíveis com nada -, mas só aqueles que são injustos, isto é, aqueles fins que são inconsistentes com princípios cuja validade não depende da validade de um qualquer modo de vida particular. A sua neutralidade descreve o seu fundamento, não o seu efeito. Porém, em muitos aspectos, até mesmo o seu efeito é menos restritivo do que aquilo que a objecção sociológica sugere. O altruísmo e a benevolência, por exemplo, são plenamente compatíveis com este liberalismo, e nada nos seus pressupostos desaconselha cultivá-los. A prioridade do sujeito não afirma que sejamos governados pelo egoísmo, mas apenas que quaisquer interesses que tenhamos têm de ser os interesses de algum sujeito. Na perspectiva da justiça, eu sou livre de procurar o meu próprio bem, ou o bem de outros, desde que não pratique a injustiça. E esta restrição não tem a ver nem com o egoísmo nem com o altruísmo, mas apenas com o interesse primordial de assegurar aos outros uma igual liberdade. As virtudes da cooperação não são, de modo algum, inconsistentes com· este liberalismo. Por fim, não se percebe bem como é que a objecção sociológica se propõe refutar a noção deontológica de independência. Se aquilo que propõe é uma objecção psicológica, então não conseguirá atingir a perspectiva deontológica, na medida em que é num registo epistemológico que ela situa o seu argumento. A independência do sujeito não acarreta que, enquanto um dado psicológico, eu possa a qualquer momento convocar o distanciamento necessário para ultrapassar os meus preconceitos, ou situar-me para além das minhas convicções. Afirma antes que os meus valores e os meus fins não definem a minha identidade, exigindo que eu me perspective como o portador de um eu distinto dos meus valores e dos meus fins, sejam eles quais forem.

35 Se, por outro lado, o pI:opósito da objecção sociológica é desafiar esta pretensão epistemológica, não se percebe com que fundamento o poderá fazer. Talvez Hume se tenha aproximado mais da proposta de um eu totalme~te, ~ondicionado de forma empírica, tal como o exige a perspectiva soclOloglca, quando descreveu o eu como consistindo em "um feixe ou colecção de percepções diferentes, as quais se sucedem, uma à outra, a uma velocidade inconcebível, encontrando-se num fluxo e num movimento permanentes" (1739: 252). Porém, e tal como Kant argumentaria mais tarde "nenhum eu fixo e duradoiro se pode apresentar num tal fluxo de aparência~ interiores". Para podermos dar sentido à continuidade do eu através do tempo, temos de presumir algum princípio de unidade que "preceda toda a experiência, e que tome a própria experiência possível" (1781: l36). Na realidade, o próprio Hume havia antecipado esta dificuldade ao admitir que, no limite, não era capaz de dar conta daqueles princípios "que reúnem as nossas percepções sucessivas num só pensamento ou numa só consciência" (1739: 636). Por mais problemático que o sujeito transcendental kantiano possa ser, a objecção sociológica não parece encontrar-se devidamente apetrechada para lhe dirigir uma crítica eficaz. A epistemologia que tem que pressupor dificilmente se afigurará como mais plausível. A deontologia com uma face·humeana O segundo desafio coloca uma dificuldade mais profunda ao sujeito kantiano. Tal como o primeiro, tem uma proveniência empirista. Porém, ao contrário do primeiro, procura proteger o liberalismo deontológico, em vez de se opor a ele. Na verdade, este segundo desafio apresenta-se como uma reformulação compreensiva da perspectiva kantiana, ao contrário de se propor reformulá-Ia. Adopta a prioridade do justo sobre o bom, e até afirma a prioridade do sujeito sobre os seus fins. Onde se distancia de Kant é na negação de que só um sujeito transcendental ou numénico, a quem falte por inteiro qualquer fundamento empírico, poderá ser um sujeito anterior e independente. Esta deontologia "revisionista" capta o espírito de muito liberalismo contemporâneo, encontrando a sua expressão mais plena no trabalho de John Rawls. "Para desenvolver uma concepção kantiana da justiça que seja viável", escreve, "a força e o conteúdo da doutrina de Kant têm de ser separadas da sua fundamentação no idealismo transcendental" e refundadas no "cânone de um empirismo razoável" (Rawls 1977: 165).

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Para Rawls, a concepção kantiana sofre de obscuridade e de um carácter arbitrário, na medida em que não se entende como é que um sujeito a quem se retirou o corpo poderia sem arbitrariedade produzir determinados princípios de justiça, ou, em qualquer caso, como é que as normas produzidas por um tal sujeito se poderiam aplicar a seres humanos concretos vivendo no mundo fenoménico. Apesar de todas as suas vantagens morais e políticas, a metafísica idealista cede demasiado ao transcendente e, ao postular um âmbito numenal, conquista para a justiça um lugar de primado, mas a preço de lhe negar a sua condição humana. Deste modo, Rawls assume como seu o projecto de preservar os ensinamentos deontológicos de Kant, substituindo as obscuridades germânicas por uma metafísica domesticada, menos vulnerável à acusação de arbitrariedade e mais de acordo com o temperamento anglo-americano. O seu propósito consiste em derivar os primeiros princípios a partir de uma situação hipotética de escolha (a "posição original"), caracterizada por condições destinadas a produzir um resultado determinável, adequado a seres humanos concretos. Aqui, não é o reino dos fins que prevalece, mas as circunstâncias ordinárias da justiça - tal como pedidas de empréstimo a Hume. Não um futuro moral que cada vez se afasta mais de nós, mas um presente firmemente ancorado na circunstâncias humanas, e que oferece a ocasião à justiça. Se o resultado for a deontologia, ao menos que se trate de uma deontologia com uma face humeana2 •

Saber se a metafísica de Kant é um "contexto" destacável, ou antes um pressuposto inelutável das aspirações morais e políticas partilhadas por Kant e por Rawls - numa palavra, saber se o liberalismo político é possível sem um e~baraço metafísico - é uma das questões centrais colocadas pela concepçao de Rawls. Neste livro defendemos que Rawls não tem sucesso nos seus propósitos, e que não é possível salvar o liberalismo deontológico das dificuldades associadas ao sujeito kantiano. Ou a deontologia com uma face hu~e~na fracassa enquanto deontologia, ou então recria na posição original o SUjeIto sem corpo que se propunha evitar. A justiça não pode ser primária no sentido deontológico, na medida em que nós não somos capazes de nos vermo~ a nós pr~prios como o tipo de seres que a ética deontológica exige ~ue se!amos - seja ela kantiana ou rawlsiana. Porém, prestar atenção a este lIberalIsmo tem mais do que um interesse meramente intelectual. A tentativa de Rawls de situar o sujeito deontológico, devidamente reconstruído, transporta-~os para além da deontologia,· em direcção a uma concepção de comumdade que fixa os limites da justiça e identifica as razões do carácter incompleto do ideal liberal.

liA teoria da justiça tenta fazer uma apresentação natural, de

natureza processual, da concepção kantiana do reino dos fins, bem como das noções de autonomia e de imperativo categórico. Deste modo, a estrutura subjacente à doutrina de Kant é libertada do contexto metafísico, de forma a poder ser vista com maior clareza e apresentada relativamente livre de objecções" [264 (213)]3. Agradeço a Mark Hulbert por me ter sugerido esta expressão. Todos os números de páginas apresentados de forma isolada referem-se a Rawls, A Theory ofJustice, Oxford, 1971. [Nota do Tradutor: A fim de facilitar a localização das citações desta obra tanto no original inglês como na tradução portuguesa publicada com o título Uma Teoria da Justiça pela Editorial Presença (lisboa, 1993), optamos, nesta tradução, pela apresentação, entre parêntesis rectos, dos números de página correspondentes a uma e a outra. Assim, sempre que a seguir a uma citação surgirem dois números entre parêntesis rectos, o primeiro corresponde ao número de página da primeira edição desta obra e o segundo, entre parêntesis curvos, ao da tradução portuguesa. No último capítulo, adoptamos o mesmo critério relativamente às citações 2

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de O Liberalismo Político de Rawls. Num caso como no outro, optamos pela tradução portuguesa de uma e de outra destas obras em todas as citações, introduzindo-lhes as correcções apropriadas.]

1 A justiça e o sujeito moral Tal como Kant, Rawls é um liberal deontológico. O seu livro adopta as principais teses da ética deontológica como reivindicação central. Que esta reivindicação tenha sido pouco discutida directamente na volumosa bibliografia crítica dedicada a Uma Teoria da Justiça, dá bem conta da solidez do lugar que essas teses ocupam nos pressupostos morais e políticos do nosso tempo. Elas não dizem respeito aos princípios da justiça, mas ao seu próprio estatuto. Trata-se da principal convicção que Rawls procura, acima de tudo, defender, sendo com a sua afirmação que o texto abre e encerra. Trata-se da reivindicação de que "a justiça é a primeira virtude das instituições sociais", a consideração mais importante para a avaliação da estrutura básica da sociedade e da direcção impressa à mudança social. "A Justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante e parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma maneira, as leis e as instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas [... ] Sendo as virtudes primeiras da actividade humana, a verdade e a justiça não podem ser objecto de qualquer compromisso" [3-4 (27-28)]. "Tentei formular uma teoria que nos permita compreender e apreciar estes sentimentos relativos ao primado da justiça. A teoria da justiça como equidade é o resultado deste esforço; ela articula estas opiniões e reforça o seu sentido geral" [586 (441)]. É esta reivindicação do primado da justiça que me proponho examinar.

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primado da justiça e a prioridade do eu

Ora, o primado da justiça constitui uma reivindicação poderosa, existindo por isso o perigo de a familiaridade com esta ideia nos fazer esquecer a sua audácia. Para compreendermos a razão pela qual esta ideia é intuitivamente apelativa, mas ao mesmo tempo profundamente intricada e problemática, poderíamos considerar reconstruí-la do seguinte modo, a fim de podermos captar simultaneamente a sua familiaridade e a sua força. A justiça não é apenas um valor importante entre outros, que deva ser ponderado e considerado conforme as exigências da ocasião, mas antes o meio através do qual todos os valores são ponderados e avaliados. Ela é, neste sentido, o "valor dos valores" " não estando, por assim dizer, sujeita ao mesmo tipo de ponderações dos outros valores, por ela regulados. A justiça é o padrão através do qual valores em conflito são reconciliados e as distintas concepções do bem são acomodadas, mesmo se nem sempre resolvidas. Como tal, ela tem de possuir uma certa .prioridade sobre esses valores e esses bens. Nenhuma concepção do bem poderá derrubar as exigências da justiça, na medida em que essas exigências são de uma ordem qualitativamente diferente: a sua validade é estabelecida de um modo diferente. A justiça permanece separada e à parte relativamente aos valores sociais, em geral, tal como um processo justo de decisão terá de manter a distância relativamente às partes que nele se apresentam. Porém, qual é o sentido exacto em que a justiça, enquanto árbitro dos valores, "tem" de ser anterior a todos eles? Um dos sentidos desta prioridade é o facto de ser um "dever" moral, tal como resulta da crítica de Rawls à ética utilitarista. Desde esta perspectiva, a prioridade da justiça é uma exigência da pluralidade essencial da espécie humana e da essencial inviolabilidade dos indivíduos que a compõem. Sacrificar a justiça em proveito do bem-estar geral é violar o inviolável, não respeitar a distinção entre as pessoas. "Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça I A expressão é de Alexander Bickel, que atribui à lei uma primazia comparável ao estatuto que aqui é consignado à justiça. "O valor irredutível, se bem que não exclusivo, é a ideia de lei. A lei é mais do que apenas outra opinião; não porque encapsule todos os valores certos [...] mas porque ela é o valor dos valores. A lei é a instituição principal através da qual uma sociedade afirma os seus valores" (1975: 5).

impede que a perda de liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas por um maior número. Assim sendo, numa sociedade justa, a igualdade de liberdades e de direitos entre os cidadãos é considerada como definitiva; os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes da negociação política ou do cálculo dos interesses sociais" [3-4 (27)]. No entanto, há ainda outro sentido em que a justiça "tem" que anteceder os valores que é chamada a avaliar - anteceder no sentido de ser determinada independentemente deles - e este tem a ver com uma característica problemática dos padrões de julgamento, em geral. Trata-se de uma exigência epistemológica, e não moral, que surge a partir do problema suscitado pela separação dos padrões de avaliação dos próprios objectos que estão a ser avaliados. Tal como Rawls insiste em afirmar, necessitamos de um "ponto de Arquimedes" a partir do qual possamos avaliar a estrutura básica da sociedade. O problema reside, então, em esclarecer onde é que se poderá encontrar um tal ponto. Duas possibilidades parecem apresentar-se, ambas igualmente insatisfatórias. Se os princípios de justiça são derivados dos valores e das concepções do bem em vigor numa sociedade, então nada nos garante que a perspectiva crítica fornecida por eles detenha uma maior validade do que aquela correspondente às concepções que deveriam ser reguladas por eles, desde logo na medida em que, enquanto produto de tais valores, a justiça se encontraria sujeita às mesmas contingências que eles. A alternativa seria um critério de aferição de algum modo exterior aos valores e interesses dominantes na sociedade. Porém, se a nossa experiência for inteiramente desqualificada, como fonte de tais princípios, a alternativa será confiar em pressupostos apriorísticos cujas credenciais se afiguram igualmente suspeitas, se bem que por razões opostas. A primeira é arbitrária, porque contigente; a segunda seria arbitrária, porque sem fundamento. Quando a justiça decorre dos valores existentes, os padrões de avaliação confundem-se com os objectos a avaliar, não havendo qualquer maneira de os distinguir uns dos outros. Quando a justiça nos é fornecida por princípios a priori, não dispomos de qualquer instrumento seguro para os sustentar. Estas são algumas das difíceis perplexidades e exigências do ponto de Arquimedes: encontrar uma perspectiva que não esteja nem comprometida

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42 pelas suas implicações com o mundo, nem dissociada dele e, por isso mesmo, desqualificada pelo seu distanciamento. "Ê necessária uma concepção que nos permita distinguir o nosso objectivo à distância" [22 (840)], mas não a uma distância muito grande; o ponto de vista desejado "não é o de um certo lugar para além do mundo, nem o ponto de vista de um ser tran.5cendente; trata-se, antes, de uma forma de pensar e de sentir que os sujeitos racionais podem adoptar no interior do mundo" [587 (441)]. Antes de considerarmos a resposta de Rawls a este desafio, valerá a pena sublinhar como o argumento que apresenta em defesa do primado da justiça está relacionado com vários argumentos paralelos dispersos por toda a sua teoria, os quais, quando perspectivados no seu conjunto, revelam uma estrutura de argumento característica da ética deontológica na sua globalidade. A noção do primado da justiça está directamente ligada à noção mais geral de prioridade do justo sobre o bom. Tal como o primado da justiça, a prioridade do justo sobre o bom surge inicialmente enquanto reivindicação moral de primeira ordem em oposição à doutrina utilitarista, mas tem vindo ultimamente a assumir também um certo estatuto meta-ético, particularmente quando Rawls apresenta um argumento mais geral em favor de teorias éticas deontológicas, em oposição a éticas teleológicas. Enquanto reivindicação moral directa, a prioridade do justo sobre o bom significa que os princípios do justo prevalecem invariavelmente sobre considerações de bem-estar ou de satisfação dos desejos, independentemente da sua intensidade, delimitando, de antemão, o conjunto dos desejos e dos valores que merecem satisfação. "Os princípios do justo, e, portanto, também os da justiça, limitam os desejos cuja satisfação pode ter valor; impõem restrições quanto ao que possam ser as concepções razoáveis do bem de cada um. [... ] Podemos expressar este facto afirmando que, na teoria da justiça como equidade, o conceito do justo é anterior ao conceito de bom. [... ] A prioridade da justiça é reconhecida, em parte, através da afirmação de que os interesses que obrigam à violação da justiça são destituídos de valor. Não possuindo qualquer mérito, as suas exigências não podem ser impostas" [31 (47)].

Contrariamente ao que se verifica no utilitarismo, a justiça como equidade afirma incondicionalmente o direito individual a igual liberdade para cada um face às preferências da maioria. "Desde logo, as convicções intensas da maioria, se forem efectivamente meras preferências sem qualquer apoio nos princípios da justiça anteriormente estabelecidos, não têm qualquer peso. A satisfação destes sentimentos não tem qualquer valor que possa ser contraposto às exigências de igual liberdade para todos. [... ] Contra estes princípios, nem a intensidade do sentimento, nem o facto de ele ser partilhado pela maioria tem qualquer relevância. Na visão contratualista, assim, os fundamentos da liberdade são completamente separados das preferências existentes" [450 (344)]. Apesar de, no início, Rawls esgrimir argumentos contra as concepções utilitaristas, no seu todo, o seu projecto é mais ambicioso, na medida em que a justiça como equidade se apresenta não só contrária ao utilitarismo, mas ainda contrária a todas as teorias teleológicas, como tais. Enquanto reivindicação meta-ética de segunda ordem, a prioridade do justo significa que, dos "dois conceitos de ética", o justo é estabelecido independentemente do bom, e não ao contrário. Esta prioridade fundacional permite que o justo permaneça aparte dos valores e das concepções prevalecentes do bem e faz com que a concepção de Rawls seja deontológica em vez de teleológica. Uma das consequências de primeira ordem da ética deontológica consiste em assegurar à igual liberdade de todos os indivíduos um alicerce mais sólido do que o que é disponibilizado pelos pressupostos teleológicos. Ê neste contexto que a importância da deontologia para as preocupações habituais do liberalismo emerge com maior clareza. Sempre que o justo for instrumental para a prossecução de um fim qualquer, considerado como sendo anterior, a negação da liberdade de alguns pode justificar-se em nome do bem superior de outros. As liberdades de uma cidadania igual ficam, então, em perigo "quando se baseiam em princípios teleológicos. Os argumentos a seu favor assentam em cálculos precários, bem como em premissas controversas e incertas" [211 (174)]. Na perspectiva deontológica, "a igualdade das liberdades tem uma base inteiramente diferente". Deixando de ser meros instrumentos para a maximização da satisfação ou para a con-

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cretização de algum objectivo superior, "estes direitos são atribuídos para preencher os princípios da cooperação que os cidadãos aceitarão quando cada um deles se representar, de forma justa, como pessoa moral" [211 (175)], como um fim em si mesmo. Porém, a incapacidade de assegurar os direitos de igual liberdade denuncia uma falha mais profunda na concepção teleológica. Na perspectiva de Rawls, a teleologia confunde-se na relação do justo com o bom na medida em que concebe de forma errada a relação do eu com os seus fins. O que conduz Rawls a afirmar uma nova prioridade deontológica. Ao contrário do que afirma a teleologia, o que é mais importante na nossa condição de pessoa, não é os fins que escolhemos, mas a nossa capacidade de os eleger. E esta capacidade está localizada num sujeito que é necessariamente anterior aos fins que adopta. "A estrutura das doutrinas teleológicas sofre de erros básicos de concepção: relacionam desde o início o justo e o bem de uma forma errada. Não devemos tentar dar forma às nossas vidas olhando primeiro para o bem definido de forma independente. O que primeiramente r~vela a nossa natureza não são os objectivos, mas antes os princípios que aceitaríamos como regendo as condições de fundo sobre as quais estes objectivos devem ser formados, bem como o modo pelo qual eles são prosseguidos. O eu é anterior aos objectivos que defende; mesmo um objectivo dominante deve ser escolhido de entre numerosas possibilidades. [... ] Logo, devemos inverter a relação entre o justo e o bem proposta pelas doutrinas teleológicas, de modo a reconhecer a prioridade do justo. A teoria moral é pois desenvolvida na direcção oposta" [itálicos nossos, 560 (422)]. A prioridade do eu sobre os seus fins significa que não sou um mero receptáculo passivo dos objectivos, atributos e fins acumulados que me foram despejados pela experiência, nem um simples produto dos caprichos das circunstâncias, mas sou sempre, irredutivelmente, um agente activo, volitivo, distinguível do meu ambiente, e capaz de escolher. Para identificar um qualquer conjunto de características como sendo os meus objectivos, ambições, desejos, etc., tenho sempre que sugerir a existência de algum sujeito, de um "eu" que se erga por detrás deles, tendo a forma deste "eu"

que ser assegurada antes de qualquer um dos fins ou dos atributos que carrego. Como Rawls escreve, "até mesmo um fim dominante tem de ser escolhido de entre numerosas possibilidades". E antes que um fim possa ser escolhido, um eu tem de estar disponível para o seleccionar. Mas, qual é exactamente o sentido em que um eu, enquanto agente capaz de escolher, tem de ser anterior aos fins que elege? Um sentido desta prioridade é o de um "dever" moral que reflecte o imperativo de respeito, acima de tudo da autonomia moral do indivíduo; um dever de considerar a pessoa humana como portadora de uma dignidade que está para além dos papéis que desempenha e dos fins que persegue. Porém, existe ainda um outro sentido no qual o eu "tem" de ser anterior aos fins que prossegue, anterior no sentido de identificável independentemente deles; e esta é uma exigência epistemológica. Neste segundo sentido,. a explicação da prioridade do eu reproduz as perplexidades queencontrámos no caso da justiça: Naquele contexto, necessitámos de um ponto de vista para podermos avaliar com independência os valores sociais prevalecentes. No caso da pessoa, necessitamos de uma noção de sujeito independente do seu querer e dos seus fins. Tal como a prioridade da justiça emergiu da necessidade de distinção entre os padrões de avaliação e a sociedade a ser avaliada, também a prioridade do eu emerge . da necessidade paralela de distinção entre o sujeito e a sua situação. Apesar de Rawls não nos oferecer esta explicação, creio que ela se encontra implícita na sua teoria, sendo uma reconstrução razoável das perplexidades que se propõe abordar. Se o eu não constituísse mais do que um concatenado de vários desejos, necessidades e fins contingentes, não existiria nenhum modo não arbitrário, seja para o eu, seja para algum observador do exterior, de identificar estes desejos, interesses e fins como sendo os desejos de um sujeito particular determinado. Em vez de serem do sujeito, eles seriam o sujeito. Mas então, o sujeito que seriam tomar-se-ia indistinguível do oceano de atribu-tos indiferenciados de uma situação desarticulada, o que equivaleria a dizer que não conseguiríamos identificar nenhum sujeito, ou, pelo menos, não seríamos capazes de reconhecer ou de distinguir um sujeito que se assemelhasse a uma pessoa humana. Qualquer teoria do eu do tipo" eu sou x, y e z", em vez de "eu tenho x, y e z", (sendo x, y e z desejos, etc.) anula a distância entre sujeito e situação necessária para qualquer concepção coerente de um sujeito humano

46 particular. Este espaço, ou medida de distanciamento, é essencial para o aspecto ineludivelmente possessivo de qualquer concepção coerente do eu. O aspecto possessivo do eu significa que nunca poderei ser inteiramente constituído pelos meus atributos, que terão de existir sempre alguns atributos que eu, em vez de ser, tenho. De outro modo, qualquer alteração da minha situação, por mais pequena que fosse, provocaria uma alteração na pessoa que eu sou. Porém, tomada literalmente, e dado que em cada momento que passa a minha situação se altera, pelo menos em algum aspecto, isto significaria que a minha identidade se reduziria à "minha" situação, sem dela se poder distinguir. Sem alguma distinção entre o sujeito e o objecto de posse, torna-se impossível distinguir entre aquilo que sou eu e aquilo que é meu, contexto em que ficaria reduzido à condição que poderíamos apelidar de sujeito radicalmente situado. Ora, um sujeito radicalmente situado não se adequa à noção de pessoa, tal como um critério de avaliação completamente enredado nos valores dominantes não se adequa à noção de justiça; o impulso para a busca da prioridade reflectido em ambos os casos na procura de um ponto de Arquimedes é resposta a ambas as dificuldades. Porém, em ambos os casos, as alternativas, bem como as possíveis localizações desse ponto de Arquimedes, encontram-se seriamente limitadas. No caso da justiça, a alternativa a uma concepção situada assemelhar-se-ia a um apelo a princípios a priori, para além da experiência. Mas isto equivaleria a afirmar com excessiva ênfase a prioridade desejada, e a arbitrariedade seria o preço a pagar pela obtenção do distanciamento exigido. No caso do sujeito emerge uma dificuldade semelhante. Um eu totalmente separado das características que lhe são dadas empiricamente não seria mais do que uma espécie de consciência abstracta (consciente de quê?), um sujeito radicalmente situado que cede o lugar a outro radicalmente desprovido de corpo. Mais uma vez, necessitamos aqui "de uma concepção que nos permita distinguir o nosso objectivo à distância", mas não a uma distância tão grande que o nosso objectivo venha a fugir de vista e a nossa visão se venha a dissolver na abstracção. Deste modo podemos verificar, pelo menos nas suas linhas gerais, como o argumento se desenvolve e se sustenta, como o primado da justiça, a rejeição da teleologia e a prioridade do eu se inter-relacionam, e como estas reivindicações apoiam a posição liberal mais usual. A conexão entre a perspectiva meta-ética e a concepção do eu pode ser vista no facto de as concep-

47 ções teleológíca e deontológica darem conta da unidade do eu de maneiras distintas. Enquanto que, de acordo com Rawls, as concepções teleológicas assumem que a unidade do eu se constrói ao longo da experiência - no caso do hedonismo, através da maximização da soma de experiências agradáveis dentro dos seus "limites psíquicos" -, a justiça como equidade inverte esta p.erspectiva e concebe a unidade do eu como sendo algo previamente estabelecido, talhado antes das escolhas que ele faz no decurso da experiência. "As partes [na posição original] consideram a personalidade moral, e não a capacidade para o prazer e para a dor, como o aspecto fundamental do eu. [... ] A ideia principal é que, dada a prioridade do justo, a escolha da nossa concepção do bem está enquadrada dentro de limites definidos. [... ] A unidade essencial do eu está já prevista pela concepção do justo" [itálicos nossos, 563 (424-5)].

Aqui, como nos casos da igualdade de liberdades e da prioridade do justo acima discutidos, os pressupostos deontológicos podem ser vistos como produzindo as conclusões liberais a que estamos familiarizados, alicerçando-as com mais solidez do que o permitido pela metafísica tradicional empiricista ou utilitarista. O tema comum partilhado por muita da doutrina liberal clássica que emerge da versão deontológica da unidade do eu é a noção do sujeito humano como um agente soberano dotado da faculdade de escolher, uma criatura cujos fins são seleccionados por ela, em vez de lhe serem dados, e que atinge os seus objectivos e os seus propósitos através de actos da sua vontade, em oposição, digamos, a actos de cognição. "Assim, um sujeito moral é alguém que possui objectivos por si escolhidos, e cuja preferência fundamental se dirige para condições que lhe permitem construir um modo de vida que expresse a sua natureza enquanto ser racional livre e igual, de forma tão plena quanto as circunstâncias o permitam" [561 (423)].

A unidade prévia do eu significa que o sujeito, independentemente dos condicionamentos que lhe possam ser impostos pelo ambiente em que está inserido, é sempre, irredutivelmente, anterior aos seus valores e aos seus fins, e nunca completamente constituído por eles. Poderão vir tempos em que os condicionantes serão enormes e as opções reduzidas; apesar disso, o agir soberano do homem, enquanto tal, permanecerá independente de

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48 qualquer condição particular de existência e antecipadamente garantido. Na concepção deontológica, jamais nos poderemos encontrar de tal modo condicionados ao ponto de o nosso eu se tomar completamente constituído pela nossa situação, os nossos fins completamente determinados de tal modo que o eu deixe de ser anterior a eles. As consequências para a política e para a justiça de uma tal perspectiva são consideráveis. Enquanto se assumir que o homem é por natureza um ser que elege os seus fins, e não, como o concebiam os antigos, um ser que descobre os seus fins, a sua preferência terá necessariamente de se situar nas condições de escolha, em vez de privilegiar, por exemplo, as condições de autoconhecimento. Poderemos apreciar toda a força do argumento a favor do primado da justiça, nas suas dimensões moral e epistemológica, à luz da discussão do eu apresentada por Rawls. Uma vez que o eu deve a sua constituição, a sua condição de antecedente, ao conceito de justo, é apenas quando agimos em função de um sentido de justiça que podemos exprimir a nossa verdadeira natureza. É por isso que o sentimento de justiça não pode ser visto apenas como um desejo, entre outros, mas tem de ser perspectivado como motivação de uma ordem qualitativamente superior; daí que a justiça não seja apenas um valor importante, entre outros, mas seja, na verdade, a primeira virtude das instituições sociais. "O desejo de expressar a nossa natureza enquanto seres livres e iguais apenas pode ser satisfeito agindo como se os princípios do justo e da justiça tivessem a primeira prioridade. [... ] É ao agir de acordo com esta prioridade que expressamos a nossa liberdade relativamente às contingências e aos acasos. Assim, para realizar a nossa natureza, não temos outra alternativa que não seja a de planear a preservação do nosso sentido da justiça e fazê-lo dominar os nossos restantes objectivos. Este sentimento não pode ser satisfeito se aceitarmos compromissos e se ponderarmos este objectivo relativamente aos restantes, como não sendo senão um de entre muitos desejos. Trata-se do desejo de, acima de tudo, nos conduzirmos de uma certa forma, constituindo um esforço que contém em si mesmo a sua própria prioridade" [574 (432)].

"O que não podemos fazer é expressar a nossa natureza seguindo um plano que veja o sentido da justiça como apenas um

desejo a ser ponderado entre outros. Este sentimento revela aquilo que o sujeito é, e o compromisso nesta matéria não permite ao eu atingir a liberdade plena, antes cedendo aos acidentes e contingências do mundo" [575 (432-433)J. A conexão entre o primado da justiça e as outras características centrais da concepção rawlsiana - a prioridade do justo, a meta-ética deontológica e a unidade prévia do eu - é reveladora da estrutura global da teoria de Rawls e indicativa de quão profunda e poderosa se destinava ser a reivindicação do primado da justiça. Ela sugere igualmente como este conjunto de proposições' caso possam ser defendidas, fornece um alicerce impressionante, simultaneamente moral e epistemológico, para as principais doutrinas liberais. Procurámos compreender estas reivindicações e clarificar as suas interconexões, perspectivando-as como respostas às perplexidades colocadas por duas reconstruções inter-relacionadas. A primeira procura um critério de avaliação que não esteja cOrriprometido com os critérios existentes, nem seja fornecido arbitrariamente. E a segunda procura fornecer uma concepção do eu que não o dê como radicalmente situado e por isso mesmo indistinguível do seu meio-ambiente, nem seja radicalmente destituído de um corpo e por isso mesmo puramente formal. Cada uma destas reconstruções coloca-nos perante um conjunto de alternativas inaceitáveis, exigindo para a sua solução uma espécie de ponto de Arquimedes capaz de se conseguir libertar do contingente sem cair na arbitrariedade. Nesta matéria, o projecto de Rawls assemelha-se muito ao de Kant. Porém, apesar das intenções quase comuns e das afinidades deontológicas que partilham, a solução proposta por Rawls afasta-se radicalmente da de Kant. A diferença que as demarca reflecte a preocupação de Rawls em estabelecer as prioridades deontológicas exigidas - incluindo a prioridade do eu - sem recorrer a um sujeito transcendental, ou de qualquer outro modo incorpóreo. Este contraste assume um interesse especial, uma vez que o idealismo de Kant - a dimensão que Rawls procura evitar acima de tudo orientou uma boa parte da filosofia eurocontinental dos séculos XIX e XX numa· direcção largamente alheia à tradição anglo-americana de pensamento moral e político, em que o trabalho de Rawls está firmemente instalado. Para Kant, a prioridade do direito, ou a supremacia da lei moral, e a unidade do eu, ou a unidade sintética da percepção, apenas se poderiam

50 estabelecer através de uma dedução transcendental e da afirmação de um domínio inteligível enquanto pressuposto necessário da nossa capacidade de sermos livres e de nos conhecermos a nós próprios. Rawls rejeita a metafísica de Kant, mas acredita ser capaz de preservar a sua força moral "dentro do âmbito de uma teoria empírica" (Rawls 1979: 18). Esta é a função da posição original.

Liberalismo sem metafísica: a posição original A posição original é a resposta de Rawls a Kant; é a sua alternativa ao caminho apresentado na Crítica da Razão Pura e a 'chave para a solução proposta por Rawls para as perplexidades que temos vindo a analisar. É a posição original que "nos permite distinguir o nosso objectivo à distância", mas não a uma distância tão grande que nos atire para o domínio do transcendental. Ela procura satisfazer estas exigências descrevendo uma situação original de equidade e classificando de justos aqueles princípios que vierem a contar com o acordo das partes, como seres racionais sujeitos às condições por ela impostas. Dois ingredientes cruciais habilitam a posição para resolver os dilemas descritos pelas reconstruções e para responder à necessidade de um ponto de Arquimedes. Cada um deles assume a forma de uma pressuposição acerca das partes da posição original. A primeira diz-nos aquilo que elas não conhecem; a segunda, aquilo que elas conhecem. Aquilo que não sabem decorre do facto de não disporem de qualquer informação que lhes permita distinguirem-se uns dos outros enquanto seres humanos particulares que são. Trata-se do pressuposto do véu de ignorância. No quadro deste pressuposto, assume-se que as partes não possuem qualquer conhecimento do lugar que ocupam na sociedade: da sua raça, do seu sexo ou da classe social em que se inserem, do seu nível de bem-estar ou da sua fortuna, da sua inteligência, da sua força física ou das suas outras qualidades ou capacidades naturais. Elas nem sequer conhecem as suas concepções do bem, os seus valores, os seus objectivos ou os seus propósitos de vida. As partes sabem que de facto possuem estas concepções e consideram que merecem ser promovidas, sejam elas quais forem, mas vêem-se forçadas a seleccionar os princípios da justiça numa situação de ignorância temporária em relação a elas. Esta restrição tem por propósito evitar que a escolha dos princípios da

51 justiça fique prejudicada por quaisquer ideias preconcebidas, ditadas pelas contingências das circunstâncias naturais e sociais, e garantir a eliminação de toda~ as considerações tidas por irrelevantes a partir de um ponto de vista moral: E o véu de ignorância que garante que os princípios da justiça serão selecclOnados em condições de igualdade e de equidade. Uma vez que as partes do contrato não se distinguem por possuítem interesses diferentes, uma consequência adicional do véu de ignorância é assegurar que o acordo inicial seja unânime. O que as partes sabem, de facto, é que, como toda a gente, valorizam certos bens sociais primários. Bens primários são "coisas que se presume que um homem racional deseje, independentemente de desejar mais o que quer que seja", e incluem coisas como direitos e liberdades, oportunidades e poderes, rendimento e riqueza. Independentemente dos valores, dos planos e dos objectivos últimos de uma pessoa, presume-se que existem certas coisas das quais se preferiria ter mais, em vez de menos, na medida em que são susceptíveis de serem úteis para a promoção de todos os seus fins, quaisquer que eles sejam. Por isso, se bem que as partes que integram a posição original ignorem quais sejam os seus fins particulares, presume-se que todas se encontrem motivadas pelo desejo de certos bens primários. O conteúdo preciso do rol de bens primários é dado por Rawls naquilo que apelida de teoria restrita do bem. Ela é restrita no sentido em que incorpora pressupostos mínimos e amplamente partilhados acerca dos tipos de coisas capazes de se provarem úteis em todas as concepções particulares do bem e, por isso, susceptíveis de serem partilhados pelas pessoas, independentemente dos seus desejos mais específicos. A teoria restrita do bem distingue-se da teoria plena pelo facto de a primeira não fornecer uma base para se poder ajuizar ou escolher entre vários bens ou fins particulares. Por isso, enquanto o véu de ignorância assegura que as partes deliberam em condições de equidade e de unanimidade, a concepção de bens primários provoca as motivações mínimas necessárias para desencadear uma situação de escolha racional, e para viabilizar uma solução precisa. Em conjunto, estes dois pressupostos asseguram que as partes actuam apenas sobre aqueles interesses que são comuns, isto é, comuns a todas as pessoas racionais, o primeiro dos quais vem a ser um interesse no estabelecimento de termos de cooperação social de tal ordem que cada pessoa desfrute da maior liberdade para realizar os seus objectivos e os seus propósitos, compatível com a garantia de igual liberdade para os outros.

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Os princípios da justiça emergem da posição original num processo que pode ser perspectivado em três estádios. Em primeiro lugar surge a teoria restrita do bem, encarnada na descrição da situação de escolha inicial. A partir da teoria restrita, são derivados os dois princípios da justiça que, por sua vez, definem o conceito de bem e fornecem uma interpretação de tais valores como o de bem da comunidade. É importante notar que, apesar de a teoria restrita do bem ser anterior à teoria do justo e aos princípios da justiça, ela não constitui uma teoria suficientemente substancial para derrubar a prioridade do justo sobre o bem responsável por conferir a esta concepção o seu carácter deontológico. A prioridade do justo da qual a teoria depende insere-se na teoria plena do bem - a teoria que tem a ver com valores e fins particulares. E a teoria plena do bem surge apenas após os princípios da justiça e à luz deles. Conforme Rawls explica, "Para afirmar [os princípios do justo] é necessário assentar numa noção do bem, já que necessitamos de formular hipóteses quanto à motivação das partes na posição original. Dado que essas hipóteses não devem sacrificar a posição prioritária do conceito de justo, a teoria do bem usada na argumentação em favor de princípios da justiça é limitada ao estritamente essencial. A esta análise do bem chamo teoria restrita: o seu objectivo é o de garantir as premissas relativas aos bens primários que são necessários para atingir os princípios da justiça. Uma vez elaborada esta teoria e analisados os bens primários, podemos utilizar os princípios da justiça para o desenvolvimento daquilo que designarei por teoria plena do bem" [396 (305-6)]. Este processo em três estádios parece satisfazer as exigências deontológicas de Rawls da seguinte forma. A prioridade do justo sobre (a teoria plena do) bem satisfaz o requisito de que o critério de avaliação seja anterior aos objectos a serem avaliados e distinto deles, não se encontrando comprometido com as necessidades e os desejos existentes na medida em que não está implicado neles. E o facto de os princípios do justo derivarem, não de nenhures, mas de uma teoria restrita do bem relacionada com os desejos humanos concretos (se bem que muito gerais) imprime-lhe um fundamento preciso e evita que sejam arbitrários e destacados do mundo. E assim, sem recurso a deduções transcendentais, torna-se possível encontrar um ponto

de Arquirnedes que nem está radicalmente situado, nem é radicalmente destituído de corpo; nem se encontra "à mercê dos desejos e dos interesses existentes", nem depende de considerações a priorí. "O ponto essencial é que, apesar das características individualistas da teoria da justiça como equidade, os dois princípios da

justiça não dependem de forma contingente dos desejos existentes ou das condições sociais presentes. Podemos, assim, estabelecer uma concepção da estrutura básica justa e um ideal da pessoa que com ela seja compatível e que possa servir como padrão para avaliar as instituições e para orientar a direcção geral da mudança social. Para encontrar um ponto de Arquimedes, não é necessário apelar para princípios apriorísticos ou perfeccionistas. Assumindo que certos desejos gerais são desejos de bens sociais primários e tomando como base os acordos que poderão ser obtidos numa situação inicial devidamente definida, podemos alcançar a necessária independência fàce às circunstâncias· existentes" [itálicos nossos, 263 (212)]. Este é, em resumo, o processo através do qual os dois princípios da justiça são derivados. Conforme Rawls sublinha, a justiça como equidade, tal como as outras perspectivas de contrato social, comporta duas partes. Aprimeira oferece uma interpretação da situação original e do problema de escolha que ali se coloca. A segunda, conforme se argumenta, envolve os dois princípios da justiça susceptíveis de serem objecto dessa escolha. "É possível aceitar a primeira parte da teoria, ou alguma das suas variantes, sem aceitar a outra, e reciprocamente". [15 (36)]. Até mesmo antes de Rawls se ter dedicado aos princípios concretos da justiça que acredita seriam seleccionados, é possível identificar dois tipos de objecções que provavelmente emergirão na passagem da primeira para a segunda metade da teoria. No quadro do primeiro conjunto de objecções poder-se-ia questionar se a posição original consegue, de facto, assegurar um distanciamento genuíno das necessidades e dos desejos existentes. Objecções deste tipo centrar-se-iam provavelmente na lista dos bens primários, ou noutro aspecto qualquer da teoria restrita do bem, defendendo que ela se encontra inquinada na medida em que apresenta uma predisposição a favor de certas concepções do bem, em detrimento de outras. Poder-se-ia também contes-

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tar a reivindicação de Rawls de que o elenco de bens primários detém de facto o mesmo, ou praticam~nte o mesmo, valor para todos os estilos de vida. E poder-se-ia questionar o carácter limitativo da teoria restrita, argumentando que ele prejudica a equidade da situação inicial na medida em que introduz pressupostos que não são partilhados universalmente, se encontra envolvido de forma excessivamente íntima com preferências contingentes, por exemplo, dos projectos de vida da burguesia liberal ocidental, e que, ao fim e ao cabo, os princípios que dela resultam são o produto dos valores dominantes. Por outro lado, no quadro de um segundo conjunto de objecções, poder-se-ia argumentar que a posição original produz um distanciamento excessivo em relação às circunstâncias humanas, que a situação inicial por ela descrita é demasiado abstracta para produzir os princípios que Rawls afirma ser capaz de produzir - esses ou quaisquer outros, aliás. Muito provavelmente, as objecções desta natureza questionariam o véu de ignorância, alegando que exclui informações moralmente relevantes, necessárias para a produção de resultados com sentido. Defenderiam que a noção de pessoa proposta pela posição original é excessivamente formal e abstracta, encontrando-se demasiado destacada da contingência para poder dar conta das suas necessárias motivações. Enquanto que o primeiro conjunto de objecções se queixa de que a teoria restrita do bem é demasiado ampla para ser justa, o segundo mantém que o véu de ignorância é excessivamente opaco para produzir uma solução precisa. Não nos dedicaremos aqui a nenhuma destas objecções. Dado que nos ocupamos do projecto deontológico na sua totalidade, o nosso interesse pela posição original é mais geral. Em palavras simples, resume-se ao seguinte: sendo a posição original a resposta de Rawls a Kant, será que se trata de uma resposta satisfatória? Será que ela é bem sucedida nas suas aspirações de reformular as reivindicações morais e políticas kantianas "no quadro de uma teoria empírica"? Poderá ela fornecer os alicerces para o liberalismo deontológico, evitando o "ambiente" metafisicamente contestável da teoria de Kant? Mais especificamente, poderá a descrição da posição original incorporar e apoiar o argumento em favor do primado da justiça no sentido forte que Rawls procura promover? Numa leitura enformada por uma interpretação francamente empirista, tal como o próprio Rawls nos convida a fazer, a posição original não consegue sustentar o argumento deontológico. Para verificarmos que assim

55 é, devemos examinar mais de perto as suas características, em parte de modo a podermos compreender o tipo de reivindicação que encarnam. Não nos preocuparemos, por isso, com a questão de saber se a teoria restrita do be~ é ~emasiado ampla ou demasiado restrita para produzir os princípios de Justiça que Rawls afirma que ela produz. Em vez disso, procuraremos identificar o que é que faz com que a teoria do bem seja restrita ou ampla, e ~e ~ue ~anei~a ~ ~ue esta concepção se adapta àquilo que faz com que a Justiça seja pnmana. Porém,. talvez seja conveniente proceder a um exame das condições que caracterizam a posição original, tal como Rawls as descreve. Para isso, temos de dirigir a nossa atenção para as circunstâncias da justiça'. As circunstâncias da justiça: objecções empiristas As circunstâncias da justiça são as condições que desencadeiam a vir-

tude da justiça. São as condições que prevalecem nas sociedades humanas e que tornam a cooperação entre os homens simultaneamente possível e necessária. A sociedade é perspectivada como sendo um empreendimento cooperativo com vista à obtenção de benefícios mútuos, o que significa que se encontra essencialmente marcada tanto pelo conflito como por uma identidade de interesses. Uma identidade de interesses, na medida em que todos têm a ganhar com a cooperação mútua; um conflito, dado que em função dos interesses e dos fins distintos que possuem, as pessoas têm perspectivas divergentes relativamente ao modo como os frutos da sua cooperação deverão ser distribuídos. São necessários princípios para especificar os dispositivos através dos quais estas perspectivas possam ser ordenadas. Proporcioná-los é o papel da justiça. Seguindo Hume, Rawls observa que estas circunstâncias são de dois tipos: objectivas e subjectivas. As circunstânci~s objectivas da justiça incluem factos como, por exemplo, a moderada escassez de recursos, enquanto que as circunstâncias subjectivas dizem respeito aos sujeitos da cooperação, muito em particular ao facto de se caracterizarem por deterem . . Nota do tradutor: Circumstances ofjustice, no original. O tradutor português da Teoria da Justlça de Tohn Rawls traduz sistematicamente circumstances ofjustice por "contexto da justiça". Pel~ nossa .parte, cremos que a expressão portuguesa "circunstâncias da justiça" exprime com maIOr fidelidade o sentido do original- daí termos optado por ela na tradução quer do texto de Sandel, quer dos textos de Rawls.

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56 interesses e fins distintos. Isto significa que cada pessoa possui o seu próprio plano de vida, ou a sua própria concepção do bem, que considera merecedora de ser promovida. Rawls sublinha este ponto, assumindo que as partes, pelo menos tal como concebidas na posição original, não se interessam umas pelas outras, preocupando-se unicamente com a promoção da sua própria concepção do bem, e, por outro lado, na promoção dos seus fins, não têm quaisquer obrigações para com os outros resultantes de laços morais anteriores. As circunstâncias da justiça são assim sumariadas: "Podemos dizer, em resumo, que as circunstâncias da justiça se verificam sempre que são formuladas exigências concorrentes que incidem sobre a divisão das vantagens sociais em condições de escassez moderada. Se estas circunstâncias não se verificarem, não haverá condições para o exercício da virtude da justiça, da mesma forma que, na ausência de ameaças à vida ou à integridade, não haverá lugar para a manifestação da coragem física" [128 (115)]. As circunstâncias da justiça são as circunstâncias que ocasionam a virtude da justiça. Na sua ausência, a virtude da justiça tornar-se-ia vã; não seria necessária, nem possível sequer. "Mas as sociedades humanas são caracterizadas pelas circunstâncias da justiça" [itálico nosso, 129-130 (116)]. Por isso é que a virtude da justiça é necessária. As condições que proporcionam a virtude da justiça são condições empíricas. Rawls é claro e explícito a este respeito: "A teoria moral deve ser livre para usar hipóteses contingentes e factos gerais da forma que lhe convier"[51 (60)]. Não pode proceder de outro modo. O essencial é que as premissas sejam "verdadeiras e suficientemente gerais" [158 (136)]. "Os princípios fundamentais da justiça dependem dos factos naturais sobre a vida dos homens em sociedade. Esta dependência é declarada explicitamente na discussão da posição original: a decisão das partes é tomada à luz de conhecimentos gerais. Além disso, os elementos da posição original pressupõem diversos factos sobre as circunstâncias da vida humana. [... ] Se estas hipóteses de partida forem verdadeiras e adequadamente genéricas, tudo estará em ordem, já que, sem estes elementos, toda a estrutura será vazia e desprovida de sentido" [159-160 (136)].

No entanto, uma compreensão empirista da posição original parece estar em profundo desacordo com as propostas deontológicas. Se a justiça, como virtude, dependesse de certas pré-condições empíricas, não é claro como é que a sua prioridade se poderia afirmar incondicionalmente. Rawls afirma que a sua versão das circunstâncias da justiça segue de perto Hume [126-8 (114-115)]. No entanto, as circunstâncias de Hume não sustentam a prioridade do justo no sentido deontológico. Afinal, elas são condições empíricas. Para estabelecer o primado da justiça no sentido categórico exigido pelo postulado de Rawls, tornar-.se-ia necessário demonstrar não só que as circunstâncias da justiça prevalecem em todas as sociedades, mas que isso acontece ao ponto de a virtude da justiça ser sempre mais completa ou mais extensivamente invocada do que qualquer outra virtude. Caso contrário, Rawls apenas teria legitimidade para concluir que a justiça é a primeira virtude de certos tipos de sociedade, nomeadamente daquelas em que a prioridade social mais urgente é constituída pela escolha entre as reivindicações alternativas de partes mutuamente desinteressadas, em conflito umas com as outras ... Com certeza que um sociólogo poderá, por exemplo, argumentar que, em face da escassez crescente de energia e de outros recursos básicos com que se deparam as sociedades industriais avançadas modernas, aliada ao colapso do consenso e à perda de propósitos comuns (respectivamente, as circunstâncias objectiva e subjectiva), as circunstâncias da justiça acabaram por prevalecer com uma intensidade tal que a justiça se transformou, para estas sociedades, na primeira virtude. Porém, se a intenção de Rawls é fazer depender o primado da justiça de generalizações como esta, necessitaria, pelo menos, de oferecer a fundamentação sociológica relevante. Não bastaria ficar-se pela afirmação de que "uma sociedade humana se caracteriza pelas circunstâncias da justiça" [itálico nosso, 129-130 (116)]. A noção de que o primado da justiça se poderia alicerçar empiricamente torna-se ainda menos plausível ao considerarmos quão improvável será a generalização social exigida por um tal argumento, pelo menos quando aplicável através de todo o espectro das instituições sociais. E enquanto conseguimos admitir sem dificuldade que certas associações de larga escala, tais como o Estado-nação moderno, são capazes de satisfazer estes requisitos em muitas instâncias, podemos conceber prontamente uma gama de associações mais íntimas ou marcadas por fortes solidariedades, nas quais os valores e os objectivos dos seus participantes coincidem muito

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58 estreitamente, fazendo com que as circunstâncias da justiça prevaleçam a um nível relativamente, baixo. Tal como o próprio Hume observa, não necessitamos de recorrer a visões utópicas ou à ficção dos poetas para podermos encontrar estas condições, uma vez que "podemos descobrir a mesma verdade através da experiência e da observação comuns" (1739: 495). "Será, talvez, difícil encontrar instâncias completas de tais afectos alargados na disposição actual do coração humano. No entanto, podemos observar que as famílias se aproximam delas. E quanto maior é a benevolência mútua entre os seus membros, mais a família se aproxima desta condição, até ao ponto em que testemunhamos o desaparecimento de todas as diferenças relativamente à propriedade que, em boa parte, é simplesmente parti1hada por todos os seus membros. A própria lei pressupõe que o cimento do amor entre marido e mulher é tão forte que derruba todas as divisões em matéria de propriedade. E na realidade ele tem com frequência esta força que lhe é atribuída" (1777: 17-18). A este propósito, enquanto que a instituição da família poderá constituir um caso extremo, podemos com facilidade identificar uma vasta gama de casos de instituições sociais intermédias, um contínuo de associações humanas, caracterizadas em graus diferentes pelas circunstâncias da justiça. Esta gama de instituições incluiria, em vários pontos ao longo do espectro, tribos, aldeias, vilas, cidades, universidades, sindicatos, movimentos de libertação nacional, formas organizadas de nacionalismo, bem como uma vasta gama de comunidades étnicas, culturais e linguísticas, todas elas com identidades comuns, definidas com maior ou menor clareza, e objectivos partilhados - precisamente os atributos cuja presença denota a ausência relativa das circunstâncias da justiça. Apesar de as circunstâncias da justiça poderem estar presentes em todos estes casos, elas provavelmente não seriaIIi predominantes - pelo menos não o seriam ao ponto de, em todas as circunstâncias, se proceder ao recurso à justiça, acima de qualquer outra virtude. Na interpretação empirista da posição original, a justiça pode ser primária apenas para aquelas sociedades caracterizadas por um nível de discórdia capaz de elevar a resolução de interesses e de objectivos díspares e em conflito à condição de consideração moral e política primordial. A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, não em absoluto, como a

verdade o é para as teorias, mas de forma condicionada, tal como a coragem física o é numa zona de guerra. Porém, esta formulação sugere ainda outro sentido em que o primado da justiça é destruído pela perspectiva empirista das circunstâncias da justiça. Refere-se à ideia de que a justiça emerge como uma virtude terapêutica cuja superioridade moral se situa na sua capacidade de reparar as condições que se tenham degradado. Porém, se a virtude da justiça se mede pelas condições moralmente diminuídas que constituem um pré-requisito para o seu surgimento, então a ausência destas condições, independentemente das características de que se possam revestir, tem necessariamente que encarnar uma virtude rival, com uma prioridade pelo menos co mensurável; aquela virtude que é desencadeada na medida em que a justiça não o é. Se a coragem física é uma virtude apenas quando nos encontramos na presença de circunstâncias nocivas, então a paz e a tranquilidade que negariam à coragem a ocasião de se manifestar têm seguramente que ser virtudes de um grau pelo menos equivalente. E o mesmo se passa com a justiça. Tal como confirma o argumento de Hume, o carácter terapêutico da justiça implica a existência de outro conjunto de valores, de ordem pelo menos comparável. "Na origem da justiça estão as convenções humanas [... ] e estas surgiram como remédio para um qualquer incómodo resultante da concorrência de certas qualidades da mente humana com a situação de objectos externos. As qualidades da mente são o egoísmo e a generosidade limitada, e a situação dos objectos externos decorre da facilidade com que se alteram, aliada à escassez com que se apresentam, quando comparados com as necessidades e os desejos dos homens. [... ] Aumente-se, a um nível suficiente, a benevolência do homem ou a generosidade da natureza e a justiça tornar-se-á inútil, e cederá o lugar a virtudes mais nobres e a bênçãos bem mais favoráveis" (1739: 494-495). Invocar as circunstâncias da justiça é admitir, pelo menos implicitamente, as circunstâncias da benevolência, da fraternidade ou dos afectos, independentemente do modo como os queiramos descrever. São estas as circunstâncias que prevalecem na medida em que as circUnstâncias da justiça não o fazem, e a virtude a que estas circunstâncias dão lugar tem de possuir um estatuto pelo menos correlativo.

60 Deste aspecto terapêutico da justiça resulta, como consequência, não podermos dizer à partida se, numa instância particular, a mais justiça se associará um progresso geral da moralidade. Isto fica a dever-se ao facto de que se pode produzir mais justiça de duas maneiras. Ela pode surgir onde dantes imperava a injustiça, mas pode emergir onde dantes não existia nem justiça, nem injustiça, mas uma medida suficiente de benevolência e de fraternidade, ao ponto de a virtude da justiça não ser chamada a intervir. Sempre que a justiça substitui a injustiça, permanecendo tudo o mais como dantes, verificar-se-á com clareza um evidente progresso moral. Por outro lado, sempre que um incremento da justiça reflectir uma transformação na qualidade das motivações das maneiras de ser anteriores, pode bem ser que se assista a uma redução do equilíbrio moral total. Quando a fraternidade se desvanece, pode bem fazer-se mais justiça, mas poderá ser necessário muito mais para restabelecer o status quo moral. Para além disso, nada garante que a justiça e as suas virtudes rivais sejam perfeitamente comensuráveis. O colapso de certos vínculos pessoais e cívicos pode bem constituir uma perda moral de tal magnitude que nem uma dose considerável de justiça a possa compensar. Será certo que uma ruptura no tecido dos entendimentos e dos compromissos implícitos de uma comunidade ficará devidamente restaurada a partir do momento em que cada um "cumpra o seu dever" daí em diante? Pensemos, por exemplo, numa situação familiar mais ou menos ideal na qual as relações que nela se desenvolvem se regem, em boa parte, pelos afectos espontâneos, verificando-se correlativamente uma menor presença das circunstâncias da justiça. Direitos individuais e processos de decisão equitativos são invocados apenas raramente, não porque a injustiça esteja a imperar, mas porque o apelo a uns e a outros é negado antecipadamente por um espírito de generosidade em que raramente me sinto inclinado a reivindicar a parte que me é devida. Tão-pouco esta generosidade implica necessariamente que é por benevolência que eu recebo uma parte igual, ou maior, àquela a que teria direito segundo princípios equitativos de justiça. Pode bem ser que receba menos. O nó da questão prende-se não com o facto de receber tanto quanto receberia por outras vias, só que de forma mais espontânea, mas tão-só com o facto de as questões relativas ao que eu recebo e ao que me é devido não serem as mais importantes no contexto global deste modo de vida.

61 Imaginemos agora que num certo dia uma família harmoniosa se vê atingida por um desentendimento. Os interesses dos seus membros começam a divergir e as circunstâncias da justiça tornam-se mais agudas. Os afectos e a espontaneidade de outros tempos dão lugar a exigências de equida de e de respeito pelos direitos. Imaginemos ainda que a generosidade anterior é substituída por um temperamento sensato de excepcional integridade e que as novas exigências morais são plenamente satisfeitas segundo as exigências da justiça, de tal modo que não se vislumbra qualquer injustiça. Pais e filhos, equilibrados pela reflexão, cumprem com o maior respeito, se bem que taciturnamente, os dois princípios da justiça e até conseguem alcançar as condições de estabilidade e de congruência, assegurando o cumprimento do bem da justiça dentro do lar. E agora, como poderemos entender esta nova situação? Estaremos preparados para dizer que a chegada da justiça, mesmo que plena, restaurou plenamente o carácter moral desta família e que a única diferença que persiste é de natureza psicológica? Ou, então, consideremos, de novo, o exemplo paralelo da coragem física. Imaginemos uma sociedade, outrora tranquila, mas pouco corajosa (não por cobardia, mas por quietude), agora violenta e incerta, na qual, porém, a virtude da coragem é exibida com vigor e até mesmo com exuberância. Será óbvio que, do ponto de vista da moral, a segunda condição desta sociedade é preferível à primeira? Seguramente, a natureza não comensurável, caso exista, poderia igualmente conduzir-nos na direcção oposta. Apesar da aspereza das circunstâncias da coragem, poderá bem acontecer que uma certa nobreza floresça neste novo modo de vida - coisa a que o espírito humano não tinha acesso no quadro de condições mais protegidas e que nem a mais abençoada paz será capaz de compensar. E se o desaparecimento da Gemeinshajtfamiliar ou comunal reflectir não o surgimento de uma condição de penúria material, mas o florescimento da diversidade, ou da emancipação dos filhos relativamente ao modo de vida mais tacanho da casa dos pais, poder-nos-íamos sentir inclinados a perspectivar o advento da justiça de modo mais favorável. O ponto principal, no entanto, permanece inalterado. Um progresso da justiça poderá não ser capaz de acarretar um progresso moral geral, pelo menos por duas razões: ou por não conseguir corresponder por inteiro a um incremento nas circunstâncias da justiça, ou por não ser capaz de compensar devidamente a perda de certas "virtudes mais nobres e certos bens mais valiosos".

62 Se um incremento da justiça não acarreta necessariamente um progresso moral incondicional, poderá igualmente demonstrar-se que, em certos casos, a justiça não é uma virtude, mas um vício. Isto mesmo se poderá constatar a partir da consideração daquilo que poderíamos apelidar de dimensão reflexiva das circunstâncias da justiçà. Esta dimensão reflexiva reporta-se ao facto de que aquilo que as partes conhecem acerca da sua condição é um ingrediente dela. Rawls reconhece esta característica quando escreve: "parto evidentemente do princípio de que os sujeitos na posição original sabem que este conjunto de condições se verifica" [128 (115)]. As circunstâncias da justiça e, mais especificamente, o aspecto subjectivo destas circunstâncias, reside, em parte, nas motivações dos participantes e no modo como as perspectivam. Se um dia as partes olharem para as suas circunstâncias de modo diferente, se chegarem a acreditar que as circunstâncias da justiça (ou da benevolência) se dão numa medida maior ou menor do que dantes, esta alteração equivaleria precisamente a uma mudança daquelas circunstâncias. Tal como Rawls assinala na sua discussão acerca do bem da justiça, agir a partir de um sentido de justiça pode ser contagioso. Reforça as suposições que pressupõem e consolidam a sua própria estabilidade, encorajando e afirmando idênticas motivações nos outros. No entanto, qual é o efeito deste "contágio" quando aplicado a uma situação na qual as circunstâncias da justiça não se verificam, ou na medida em que elas não se apresentam? Quando eu agir a partir de um sentido de justiça em circunstâncias inapropriadas, digamos que em circunstâncias onde as virtudes da benevolência e da fraternidade, e não as da justiça, seriam mais relevantes, as minhas acções não só poderão ser supérfluas como poderão contribuir para uma re-orientação dos entendimentos e das motivações dominantes, verificando-se assim de algum modo uma transformação das circunstâncias da justiça. E este poderá ser o caso até mesmo quando o "acto" que realizo por uma razão de justiça é "o mesmo acto" que realizaria se agisse de acordo com a benevolência e a fraternidade, só que num espírito diferente. Tal como na versão rawlsiana da estabilidade, o meu acto e o sentido de justiça que o informa possuem o efeito de auto cumprimento, na medida em que dão origem às condições segundo as quais teriam sido os mais apropriados. Porém, no caso do acto inapropriado de justiça, o resultado é que as circunstâncias da justiça se tornam mais urgentes, sem

63 que com isso se evoque necessariamente um incremento na incidência da justiça num mesmo grau. A exibição gratuita de coragem física durante condições de tranquilidade pode vir a perturbar a própria tranquilidade que não se soube apreciar e que, muito possivelmente, não se poderá recompor. Com a justiça passa-se qlgo semelhante. Se, a partir de um sentido deslocado de justiça, um amigo íntimo de longa data insistir repetidamente em calcular e pagar com todo o rigor a parte que lhe cabe de cada despesa comum efectuada, ou recusar aceitar qualquer favor ou hospitalidade, a não ser debaixo de enormes protestos e embaraços, eu não só me sentirei coagido a agir de forma igualmente escrupulosa, como também, a partir de algum momento, começarei a perguntar-me se não me terei enganado na minha apreciação do nosso relacionamento. Na medida em que assim acontecer, as circunstâncias da benevolência terão diminuído, e as circunstâncias da justiça crescido. Isto é assim em consequência da dimensão reflexiva, do aspecto subjectivo, das circunstâncias da justiça. Porém, como já havíamos visto, nada nos garante que o novo sentido de justiça será capaz de substituir integralmente a espontaneidade anterior, até mesmo naqueles casos dos quais não decorre qualquer' injustiça. Dado que o exercício da justiça em condições inapropriadas terá imprimido um declínio global no carácter moral da relação, a justiça, neste caso, em vez de uma virtude, terá sido um vício. Quer isto dizer que as circunstâncias da justiça não se ajustam ao primado da justiça nem aos temas deontológicos que lhe estão relacionados, e que Rawls procura defender. Em face das diferentes filiações filosóficas das duas perspectivas, não deverá ser surpresa para ninguém o surgir de inconsistências. As circunstâncias da justiça são explicitamente humeanas - "a análise que Hume faz a este respeito é especialmente clara e o sumário anterior nada de especial acrescenta à sua discussão, que é muito mais completa" [127-128 (115)]; já a concepção deontológica que enforma a teoria de Rawls encontra a sua formulação primordial em Kant, cuja epistemologia e ética se dirigiram em grande parte precisamente contra a tradição empirista e utilitarista que Hume representa. Para Kant, a noção de justo, deontologicamente fundada e que Rawls procura recapturar, deriva a sua força de uma metafísica moral que exclui exactamente o apelo a circunstâncias humanas contingentes sobre as quais se baseia o argumento de Hume sobre a virtude da justiça.

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64 Para Hume, a justiça é o produto de convenções humanas e "deriva a sua existência inteiramente da necessidade do seu uso na convivência e na condição social da humanidade". "Assim, as regras da equidade ou da justiça dependem inteiramente do estado e da condição particular em que os homens são colocados, e devem a sua origem e a sua existência àquela utilidade que decorre para o público da sua observância estrita e regular. Inverta-se, numa circunstância considerável qualquer, a condição dos homens. Produza -se extrema abundância ou extrema escassez. Implante-se no peito do homem uma moderação e um humanismo perfeitos, ou então uma perfeita rapacidade e malícia. Tornando a justiça completamente inútil, destruir-se-ia por inteiro a sua essência, e suspender-se-ia a sua obrigatoriedade para a huinanidade" (1777: 20). Para Kant, em contraste,

"Princípios empíricos são sempre inapropriados para servirem de fundamento de leis morais. A universalidade com que estas leis devem valer para todos os seres racionais, sem excepção, a necessidade prática não condicionada que assim impõem, perde-se se o seu fundamento decorrer da constituição peculiar da natureza humana ou das circunstâncias contingentes em que está colocada" (1785: 109). Se, como parece, a perspectiva humeana das circunstâncias da justiça não sustenta nem acomoda o estatuto privilegiado da justiça e do direito exigido por Rawls e derivado de Kant, então a questão que se coloca de imediato é a de saber por que razão Rawls adopta o argumento de Hume em vez de recorrer a Kant. A resposta é que, em sentido estrito, Kant não oferece nenhuma concepção das circunstâncias da justiça, pelo menos, nenhuma que situe a virtude da justiça no plano de circunstâncias características das sociedades humanas. Tão-pouco é óbvio que nos pudesse proporcionar alguma. Fazê-lo seria contradizer o ponto essencial da sua ética, nos termos da qual o homem apenas se afirma como ser moral na medida em que é capaz de se erguer acima das influências heterónomas e das determinações contingentes da sua condição natural e social, e agir de acordo com um prin-

cípio dado pela razão prática pura. Para Kant, as circunstâncias da justiça não se situam naquelas condições da sociedade humana que tornam a justiça necessária, mas antes num domínio ideal, abstraído das sociedades humanas, que possibilita a justiça e a moral em geral. Este domínio é o reino dos fins. É o domínio que se situa para além do mundo fenoménico - e que, como Kant reconhece, "é certamente apenas um ideal" -, no qual os seres humanos são admitidos não como residentes permanentes, mas mais provavelmente como visitantes fugazes. A admissão a estas circunstâncias da justiça não é uma condição prévia para a virtude moral, mas a medida do seu cumprimento, um local que os seres humanos alcançam apenas na medida em que são capazes de agir em conformidade com a lei moral dada autonomamente, isto é, na medida em que conseguem ir para além da sua situação de modo a poderem querer e agir como seres não situados, a partir de um ponto de vista universal. É por isto que o imperativo categórico apenas pode ordenar ao homem que actue como se fosse um membro legislador do reino dos fins. "Se nos situarmos para além das diferenças pessoais que individualizam os seres racionais e do conteúdo dos seus fins privados, seremos capazes de conceber como um todo todos os fins em conjugação sistemática [... ] isto é, seremos capazes de conceber o reino dos fins, possível segundo os princípios já identificados" (Kant, 1785: 100-101). "Ora, o reino dos fins tornar-se-ia efectivamente uma realidade através de máximas que o imperativo categórico prescreve como regras para todos os seres racionais, caso essas máximas fossem respeitadas universalmente. No entanto, mesmo que um ser racional seguisse escrupulosamente essas máximas, de modo algum poderia estar seguro de que, pelo facto de as acatar, todos os outroslhes seriam fiéis [... ]. Apesar disso, a regra 'age de acordo com as máximas de um membro que produz leis universais para um possível reino de fins' conserva toda a sua força, uma vez que o seu comando é categórico" (Kant, 1785: 106). Como já vimos, Rawls separa-se de Kant logo. que entram em cena domínios ideais e sujeitos transcendentais; a explicação do reino dos fins é um destes registos. Rawls não considera que esta noção constitua uma base

66 67 satisfatória para explicar a justiça humana, uma vez que parece aplicar-se a seres humanos apenas na medida em que se desprendem das circunstâncias humanas concretas, isto é, quando deixam de ser seres humanos. Uma tal nocão é no mínimo obscura, podendo vir a ser alvo da crítica dirigida contr; padrões apriorísticos de avaliação e concepções de um eu radicalmente incorpóreo. Rawls exprime estas preocupações, em particular relativamente ao problema da m;bitrariedade, sugerindo, com Sidgwick, que a doutrina de Kant -exigindo a abstracção de toda a contingência - poderá ser incapaz de distinguir a vida do santo da do vilão, na medida em que ambas tenham sido vividas de acordo com um conjunto consistente de princípios eleitos livremente e conscientemente postos em prática. A escolha do eu numénico poderá, neste sentido, ser arbitrária - e, na n:alidade, poderá ter necessariamente que o ser. "Kant não demonstrou que o agir a partir da lei moral expressa a nossa natureza por formas identificáveis e que o mesmo se não verifica se agirmos com base em princípios contrários [255, (206)]". Esta crítica reflecte a diferença mais geral entre Rawls e Kant sobre o papel do empírico e do a priori na teoria moral, em particular a perspectiva de Rawls de que "a análise dos conceitos morais e dos raciocínios apriorísticos, seja qual for o seu entendimento tradicional, constitui certamente uma base demasiado estreita" para uma teoria substantiva da justiça. A teoria moral deve ser livre para usar hipóteses contingentes e factos gerais da forma que lhe convier" [50 (60)]. Para ultrapassar estas dificuldades, preservando ao mesmo tempo a prioridade do justo, Rawls procura reformular a noção do reino dos fins de modo· que permita acomodar uma explicação empírica das circunstâncias da justiça, ao mesmo tempo que elimina as diferenças contigentes entre pessoas que de outro modo nele prevaleceriam. "A descrição da posição original interpreta o ponto de vista do eu numénico sobre o significado do ser-se um ser racional livre e igual. A nossa natureza enquanto seres desse tipo revela-se quando agimos com base nos princípios que escolheríamos quando essa mesma natureza se reflecte nas condições que determinam a escolha. Deste modo, os homens exibem a sua liberdade, a sua independência face às contingências da natureza e da sociedade, agindo pelas formas que reconhecem na posição original" [255-256 (206)].

Tal como o reino dos fins, a posição original, com o véu de ignorância, garante a "abstracção das diferenças pessoais entre seres racionais, bem como do conteúdo das suas finalidades privadas". Porém, ao contrário da versão kantiana, possui a vantagem significativa de se aplicar a seres humanos reais, sujeitos às condições ordinárias da circunstância humana. "A posição original pode assim ser vista como uma interpretação processual da concepção kantiana da autonomia e do imperativo categórico. Os princípios que regulam o reino dos fins são aqueles que seriam escolhidos naquela posição, e a descrição desta situação permite-nos explicar em que sentido a acção com base nesses princípios expressa a nossa natureza enquanto pessoas racionais, livres e iguais. Estas noções deixam de ser puramente transcendentes e destituídas de ligações explicáveis com a conduta humana, pois que a concepção processual da posição original nos permite esclarecer estes vinculas" [itálicos nossos, 256 (207)]. A posição original tem por objectivo proporcionar um meio de estabelecer princípios de justiça capaz de se situar para além de influências sociais e naturais contingentes e, por isso mesmo, moralmente irrelevantes _ a aspiração kantiana -, sem no entanto ter de recorrer a um domínio numénico ou à noção de um sujeito transcendente totalmente situado para além da experiência. A solução de Rawls consiste em restringir a descrição das partes na situação original àquelas características que são partilhadas por todos os seres humanos enquanto seres racionais, livres e iguais. Em sentido lato, estas características são as que exprimem o facto de que cada um é um ser que selecciona os seus objectivos, sejam eles quais forem, e que valoriza certos bens primários enquanto instrumentais para a respectiva concretização. Assume-se que estas características são partilhadas por todos os seres humanos enquanto tal, não sendo neste sentido contingentes. "Assim, dada a natureza humana, o facto de tais bens [primários] serem desejáveis fai parte do ser-se racional. [... ] Assim, a preferência pelos bens primários deriva das hipóteses de partida mais gerais sobre a racionalidade e as condições da vida humana. Agir com base nos princípios da justiça é agir com base

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69 em imperativos categóricos, no sentido em que nos são aplicáveis quaisquer que sejam, em particular, os nossos objectivos. Tal reflecte simplesmente o facto de que estas são contingências que não surgem como premissas para a derivação de princípios" [253 (205)].

Rawls reconhece que, apesar das suas afinidades com Kant, a posição original afasta-se da perspectiva kantiana em vários aspectos [256 (206)]. Entre eles surge seguramente a confiança que Rawls deposita em certas preferências ou certos desejos humanos generalizados para o estabelecimento dos princípios de justiça. Para Kant, basear a lei moral em preferências e desejos generalizados, independentemente do grau de difusão que possam conhecer entre os seres humanos, mais não seria do que substituir uma heteronomia alargada por outra mais restrita (1788: 25-28). Por essa via não se conseguiria escapar à contingência, no seu sentido mais exigente, aplicável à constituição da natureza humana bem como à constituição dos seres humanos particulares. Até mesmo a "teoria restrita do bem" seria forte de mais para satisfazer a concepção kantiana de autonomia. Esta contingência mais global não representa um problema para Rawls. Ele está mais interessado no desenvolvimento de uma teoria da justiça que seja imparcial entre pessoas; por isso, só necessita de excluir aquelas contingências que demarcam as pessoas umas das outras. Os atributos contigentes comuns a todos os seres humanos enquanto tais, para além de não constituírem um problema para Rawls, transformam-se em ingredientes essenciais para a sua teoria moral. "A teoria moral deve ser livre para usar hipóteses contingentes e factos gerais da forma que lhe convier". Entre estes factos gerais encontram-se os factos das circunstâncias da justiça. Apesar de a perspectiva kantiana não os adrilitir, a teoria de Rawls depende deles; estes factos garantem que os princípios da justiça produzidos pela teoria se aplicam a seres humanos no mundo real, e não a seres incorpóreos ou transcendentais situados para além do mundo. "Situadas num contexto de aplicação da justiça, [as partes] vivem num mundo em que há outros sujeitos que, da mesma forma, enfrentam as limitações resultantes da escassez moderada e da existência de exigências concorrentes. A liberdade humana deve ser regulada pelos princípios escolhidos à luz destas restri-

ções naturais. Assim, a teoria da justiça como equidade é uma teoria da justiça humana e entre as suas premissas contam-se os factos elementares relativos às pessoas e ao seu lugar na natureza" [257 (207)]. . Deste modo, toma-se perceptível a razão pela qual Rawls não pode s:mplesmente adoptar uma concepção kantiana das circunstâncias da justlça capaz de se acomodar convenientemente às demais posições kantianas que perfilha. Porque é que, em vez disso, se sente pressionado a recorrer à noção de uma posição original que inclua como parte da sua descrição uma versão empírica de circunstâncias caracteristicamente humanas. Ê esta combinação instável que dá lugar às objecções que temos vindo a apresentar. Tal como a concepção kantiana da lei moral e do reino dos fins parece negar à justiça a sua situação humana, também a perspectiva humeana da situação humana parece não ter lugar para reivindicações fortes em favor do primado da justiça. Porém, compreender como as inconsistências emergem não é dissolvê-las, mas, quando muito, confirmá-las. E assim ficamos com a sensação de que as duas aspirações da teoria rawlsiana - evitar tanto a contingência dos desejos existentes como o alegado carácter arbitrário e obscuro do transcendente - não são, ao fim e ao cabo, combináveis. E o ponto de Arquimedes vê-se aniquilado numa litania de contradições.

As circunstâncias da justiça: réplica deontológica A tudo isto Rawls poderia responder argumentando o seguinte. As incompatibilidades aparentes entre o primado da justiça e as circunstâncias da justiça decorrem de uma má interpretação da posição original e do papel que esta desempenha na concepção como um todo. As objecções são demasiado apressadas. Elas não chegam a entender que a concepção das circunstâncias da justiça é uma narrativa dentro da narrativa da posição original, a qual, convém lembrar, sempre foi hipotética. Aquelas que nela se descrevem são as condições em que ás partes na posição. original desenvolvem as suas deliberações, e não as condições reais em que vivem seres humanos normais. As objecções dependem, em larga medida, do pressuposto, erróneo, de que os factos das circunstâncias da justiça devem ser entendidos como os

70 factos da vida no mundo real fenoménico no qual se aplicariam em concreto os princípios da justiça, cuja validade dependerá, então, das mesmas considerações empíricas de que dependem todas as reivindicações factuais ordinárias. Mas a descrição das circunstâncias da justiça não pode ser perspectivada como uma generalização empírica directa que possa ser estabelecida, ou refutada, pela melhor prova fornecida pela sociologia, pela psicologia, etc. Dado que toda a narrativa das circunstâncias da justiça está situada dentro da narrativa da posição original, as condições e as motivações que descreve são atribuídas apenas àqueles que fazem parte da posição original e não necessariamente a todos os seres humanos. Uma vez instalada como premissa da posição original, a narrativa das circunstâncias da justiça deixa de funcionar como uma simples narrativa empírica cuja exactidão pode ser verificada em face das condições humanas vigentes. A sua validade depende, pelo contrário, da capacidade de a concepção que integra produzir princípios de justiça susceptíveis de captarem com sucesso as nossas convicções persistentes num equihôrio reflectido. "Parece melhor encarar estas condições apenas como enunciados razoáveis que serão avaliados definitivamente pelo conjunto da teoria à qual pertencem [... ] a justificação depende do conjunto da concepção e da forma como ela se adequa e articula com os nossos juízos ponderados obtidos em equilíbrio reflectido" [578-579 (436-437)]. Quer isto dizer que a descrição das circunstâncias da justiça não necessita de ser verdadeira num sentido literal, empírico. Admite-se à partida que a posição original é uma ficção, um expediente heurístico, desenvolvida para condicionar e dirigir numa determinada direcção o nosso raciocínio acerca da justiça. A distinção entre as cláusulas das circunstâncias da justiça e as motivações que, de facto, predominam nas sociedades humanas é, para Rawls, um tema recorrente. "Devemos ter presente que as partes na posição original são indivíduos definidos teoricamente" [147 (128)]. "A análise destas condições [isto é, das circunstâncias da justiça] não envolve qualquer teoria particular relativa à motivação humana" [130 (116)]. "A motivação dos sujeitos na posição original não pode ser confundida com a motivação das pessoas no quotidiano, quando aceitam os princípios da justiça que seriam seleccionados e possuem o correspondente sentido da justiça" [14 (128-129)]. Rawls sublinha em particular que, na posição original, os pressupostos de desinteresse mútuo e a ausência de laços morais anteriores não implicam

71 o juízo de que as pessoas sejam de facto mutuamente desinteressadas ou destituídas de laços morais. "Não necessitamos, evidentemente, de supor que as pessoas nunca fazem sacrifícios substanciais umas pelas outras, já que, movidas pelos laços da afeição e do sentimento, tal ocorre com frequência [178 (149)]. Não há portanto incoerência em admitir que, uma vez removido o véu de ignorância, as partes descobrem que possuem laços de sentimento e de afeição, que desejam promover os interesses de outros e ver que os objectivos deles se concretizam" [129 (115-116)]. Apesar de o pressuposto de desinteresse mútuo e de a presumida preferência por bens primários serem as principais premissas de motivação da posição original, isto não implica que permaneçam como motivações das pessoas na vida real, nem que continuem a aplicar-se a pessoas vivendo numa sociedade bem ordenada segundo os dois princípios da justiça. "No que diz respeito ao alcance do pressuposto de motivação, deve ter-se presente que ele só se aplica às partes na posição original, as quais devem deliberar como se preferissem mais, em vez de menos, bens primários. [... ] O pressuposto poderá, porém,

não caracterizar as motivações generalizadas das pessoas em sociedade, e em particular poderá não ser aplicável a cidadãos de uma sociedade bem ordenada (uma sociedade regulada eficazmente pelos princípios públicos adoptados na posição original)" [itálicos nossos, Rawls, 1975, 543-544]. Esta poderia ser a réplica de Rawls, e com méritos consideráveis. Renunciar à leitura claramente empirista das circunstâncias da justiça equivaleria a resgatar a pretensão do primado da justiça, pelo menos das objecções empiristas mais óbvias. Contribuiria, igualmente, para lançar alguma luz sobre expressões tão enigmáticas como "uma sociedade humana caracteriza-se pelas circunstâncias da justiça" [itálico nosso, 129-130 (116)], que, no contexto da concepção rawlsiana, parecem ~er mais do que meras gene-

72 ralizações empíricas, não chegando, porém, a ser definições estabelecidas. No entanto, a rejeição da interpretação empirista levanta uma questão ainda mais difícil. Se as premissas descritivas da posição original não estão sujeitas a testes claramente empíricos, então a que tipo de verificação estão sujeitas? Se os constrangimentos dos pressupostos motivadores não são de natureza empírica, então de que natureza são? Tudo o que fomos capazes de dizer até agora acerca dos fundamentos de uma premissa da posição original foi que a sua validade decorre da questão de saber se, ou até que nível, a concepção que integra é capaz de produzir princípios de justiça que captem, com sucesso, os nossos juízos ponderados em equilíbrio reflectido. Mas isto não nos diz o suficiente. É a existência de critérios independentes de juízo em cada extremo, mesmo que provisórios, à luz dos quais possamos introduzir os ajustamentos e as correcções apropriados, que evita que o método de equilíbrio reflectido se torne circular. No caso da justiça, isto significa que necessitamos de uma maneira qualquer, independente, mesmo que provisória, através da qual possamos julgar tanto a atracção dos princípios da justiça que uma descrição particular possa produzir como a plausibilidade e a razoabilidade dos pressupostos de motivação que os geraram. "Cada uma das conclusões deve em si mesma ser natural e plausível" [18 (38)]. Os critérios independentes, se bem que provisórios, do lado da atracção dos princípios são fornecidos pelas nossas intuições acerca do que é justo. Porém, qual é o fundamento correspondente do lado descritivo? O que procuramos é aquilo por referência ao qual se poderá avaliar da plausibilidade das premissas da posição original. Seríamos tentados a dizer, em sintonia com a vertente normativa, que os critérios de plausibilidade nos são fornecidos pelas "intuições" acerca do que é empiricamente verdadeiro. Mas, tal como vimos, a tentação empirista de pensar que as condições e as motivações concretas dos seres humanos nos fornecem padrões de plausibilidade produz consequências inaceitáveis. Podemos apresentar o nosso problema de outra maneira. Tal como a concepção de equilíbrio reflectido nos mostra com clareza, as condições da posição original não se podem encontrar tão imunes das circunstâncias humanas concretas ao ponto de sermos levados a aceitar qualquer pressuposto capaz de produzir princípios de justiça atractivos. A não ser que as premissas de tais princípios apresentem alguma semelhança com as condições de criaturas plausivelmente humanas, o sucesso do equilíbrio encontrar-se-á de algum modo debilitado. Se para justificar as nossas convicções

73 acerca da justiça nos víssemos forçados a apelar para premissas que nos surpreendessem pela sua excentricidade, pela sua extravagância ou pelo seu extremismo metafísico, sentir-nos-íamos justamente inclinados a questionar as convicções a que tais princípios se adequam. Ao fim e ao cabo, é com base num raciocínio muito próximo deste que Rawls critica Kant, argumentando que ele só foi capaz de estabelecer conclusões moralmente persuasivas a expensas de uma concepção da circunstância moral que tinha muito pouco a ver com algo que fosse plausivelmente humano. Resumindo, a validade da premissa da posição original não é fornecida empiricamente, mas através de um método de justificação conhecido pelo nome de equilíbrio reflectido. Este método envolve dois tipos diferentes de justificação que se combinam de modo a corrigirem-se e a apoiarem-se mutuamente. Um aspecto da justificação recorre às nossas -convicções ponderadas sobre a justiça; o outro apela para um padrão descrito como sendo de plausibilidade, se bem que não estritamente empírico, ainda por definir. O próprio Rawls não é muito claro quanto àquilo que considera ser este padrão descritivo. Tanto nos seus comentários gerais sobre justificação como na sua defesa de premissas específicas da posição original, a sua linguagem reflecte os seus equívocos e justifica uma análise pormenorizada: "Mas como decidir qual é a interpretação preferível [da situação inicial]? Parto do princípio de que há um consenso importante quanto ao facto de que a escolha dos princípios da justiça deve ser feita sob certas condições. Para justificar o traçado particular da situação inicial é preciso mostrar que ela incorpora estes pressupostos amplamente partilhados. A argumentação parte de premissas amplamente aceites, mas vagas, para atingir conclusões mais específicas. Cada um dos pressupostos deve em si mesmo ser natural e plausível; alguns podem até parecer inócuos ou até mesmo triviais" [itálicos nossos, 18 (38)]. Ao tentar descobrir a definição preferível desta situação, trabalhamos desde os dois pólos. Começamos por defini-la de modo a incluir condições que são geralmente partilhadas e, de preferência, pouco exigentes. Averiguamos em seguida se estas condições são suficientemente fortes para 'que delas se possa extrair um conjunto significativo de princípios. Se assim não for,

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75 tentamos outros pressupostos que sejam igualmente razoáveis" [itálicos nossos, 18 (38)].

Na sua defesa específica dos pressupostos de desinteresse mútuo, Rawls apela para critérios semelhantes. "O postulado de desinteresse recíproco na posição original visa assegurar que os princípios da justiça não estão dependentes de hipóteses muito exigentes. Recorde-se que a posição original visa incorporar condições geralmente partilhadas mas que, no entanto, são condições fracas. Uma concepção da justiça não deve pressupor, portanto, laços extensos de sentimentos naturais. Na base da teoria, tentamos introduzir o menor número possível de pressupostos" [itálicos nossos, 18 (38)]. Ao argumentar a favor do desinteresse mútuo em detrimento da benevolência enquanto premissa de motivação adequada, Rawls afirma que os pressupostos combinados do desinteresse mútuo e do véu de ignorância possuem "os méritos da simplicidade e da clareza", ao mesmo tempo que asseguram os aspectos favoráveis de motivações aparentemente mais generosas. Caso se pergunte porque não postular benevolência sob o véu de ignorância, "a resposta é que não há qualquer necessidade de uma exigência tão forte. Para além disso, uma tal solução faria fracassar o objectivo de alicerçar a teoria da justiça sobre cláusulas débeis, sendo ao mesmo tempo incongruente com as circunstâncias da justiça" [itálicos nossos, 149(. Por último, nas suas considerações finais sobre justificação, Rawls afirma o seguinte: "Observei por diversas vezes a natureza mínima das condições relativas aos princípios quando consideradas isoladamente. Por exemplo, o pressuposto da existência de uma motivação baseada na indiferença mútua não constitui uma condição exigente. Ela não só nos permite basear a teoria numa concepção da escolha racional razoavelmente precisa, mas é também pouco exigente para com as partes" [itálicos nossos, 583 (438)]. Rawls parece oferecer duas respostas básicas' à questão de saber como se pode justificar um pressuposto da posição original a partir da perspectiva

Nota do tradutor: Estes períodos não constam da tradução portuguesa considerada.

descritiva. Nenhuma delas, porém, nos leva longe. A primeira é que esse pressuposto seja amplamente aceite e comumente partilhado, e a segunda que seja uma suposição débil, em vez de forte, e, se possível, natural, razoável, inócua e até mesmo trivial. No entanto, não se percebe com clareza qual o alcance destas considerações, ou, em qualquer caso, como nos podem ajvdar a decidir se descrevemos ou não as partes como sendo mutuamente desinteressadas ou benevolentes uma para com as outras. Em primeiro lugar, não se entende que aspectos de um pressuposto de motivação devem ser comumente partilhados ou amplamente aceites, nem por que razão estas características devem ser contabilizadas a seu favor. Deveremos procurar o motivo que é mais comumente partilhado (caso em que teríamos de generalizar acerca das motivações das pessoas)? Deveremos, em alternativa, fixar a nossa atenção naquele que é considerado mais generalizadamente como sendo o motivo dominante (caso em que teríamos de generalizar acerca das generalizações que as pessoas fazem sobre os motivos dos outros)? Ou, então, atender àquele que é aceite por um número maior de pessoas como constituindo uma condição adequada relativamente aos princípios da justiça (caso em que teríamos de generalizar acerca do modo como as pessoas provavelmente interpretarão a exigência de acordo comum que nos temos vindo a esforçar por interpretar)? Porém, estas interpretações ou são empíricas, ou assentam sobre pressupostos que urge explicar, ou ambas as coisas. Em qualquer caso, a sua relevância para a validade de premissas tais como as que se prendem com o desinteresse mútuo ou a benevolência enquanto condições da posição original não é óbvia. A exigência de que o pressuposto seja débil, em vez de forte, nada nos diz acerca daquilo a que procuramos responder: débil ou forte em relação a quê? Podemos afirmar que um pressuposto é débilsob o ponto de vista conceptual, e que, portanto, será provavelmente inócuo ou trivial, não suscitando quaisquer objecções, quando a sua validade depender da validade de um número reduzido de proposições que com ele estejam relacionadas, e quando aquelas de que de facto depende são, elas mesmas, débeis e incontestadas. Nos mesmos termos, um pressuposto será forte quando, para ser verdadeiro, muitas outras coisas também terão. que ser verdadeiras, incluindo muitas que são controversas. Porém, seguramente que os pressupostos de desinteresse mútuo e de benevolência não se poderão distinguir a partir da avaliação de que um deles constitui uma hipótese mais débil ou mais forte do que o outro no sentido conceptual. Nenhum deles depende de

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76 uma premissa que seja conceptualmente mais controversa ou mais problemática do que a do outro. Se nenhum deles é conceptualmente mais exigente do que o outro, então a alternativa que nos resta parece ser recorrer às probabilidades estatísticas. Quando os economistas do Estado de Bem-Estar, por exemplo, se referem a pressupostos de motivação, apelidando-os de débeis e de fortes, o que fazem é descrever a probabilidade de essas motivações se aplicarem a parcelas alargadas da população. Muita da linguagem de Rawls parece sugerir esta utilização probabilística generalizada. A que mais se poderia referir quando afirma que, ao assumir o desinteresse mútuo entre as partes, está a assumir "menos" do que faria caso assumisse a prevalência de laços extensos de sentimentos naturais entre elas? Como pode saber que o pressuposto de desinteresse mútuo não é uma condição forte já que "exige pouco das partes"? Será que se estará assim a assumir que nos encontramos por natureza mais inclinados para o egoísmo do que para a benevolência? Talvez seja mais difícil para algumas pessoas adoptar comportamentos egoístas em vez de benevolentes. O modo como as pessoas se encontram naturalmente inclinadas a comportar-se é, então, uma questão de probabilidade estatística? E como se poderia sequer formular esta questão com precisão suficiente para se poder obter uma estimativa razoável, sem especificarmos a gama de situações em causa? Em todo o caso, se através desta distinção entre pressupostos débeis e fortes, Rawls apenas quer defender que as premissas devem ser mais realistas, em vez de menos, então, encontramo-nos, uma vez mais, perante uma leitura meramente empírica das condições da posição original, a qual já havíamos rejeitado. Apesar de a perspectiva do próprio Rawls sobre a posição original ser pouco clara, tal como o estatuto das suas premissas descritivas, é essencial ter-se uma qualquer concepção destas matérias para que a sua teoria possa fazer sentido. A menos que sejamos capazes de ultrapassar os obstáculos aparentes que se colocam a uma explicação da posição original e das suas premissas, a coerência de toda a concepção será posta em causa. Necessitamos, para isso, de dar conta exactamente do que é que está a constranger os pressupostos descritivos adequados à situação inicial, isto é, necessitamos de dar conta do que é que os está a constranger para além dos constrangimentos impostos pela vertente normativa, que consistem nas nossas convicções reflectidas acerca da justiça. De uma maneira geral, necessitamos de saber algo mais, com maior precisão, acerca do estatuto da posição original, seja

ele fenoménico ou outro. Necessitamos de saber o que é a posição original, ao fim e ao cabo. Em busca do sujeito moral Creio que estas questões podem ser respondidas, se não na linguagem explícita de Rawls, pelo menos em termos consistentes com a sua teoria como um todo. Para lhes responder e tornar o texto inteligível poderá ser necessário, por vezes, algum distanciamento do argumento rawlsiano. Encontraremos a justificação de uma tal interpretação em pistas e rastos de evidência espalhados pelo texto e, com maior relevância ainda, no facto de nos permitir fazer sentido da teoria de Rawls como um todo, e, em particular, na capacidade que evidencia para resolver certas características problemáticas que, de outro modo, não temos podido resolver. O nosso ponto de partida, porém, está solidamente ancorado no texto de Rawls, na noção de equilíbrio reflectido enquanto método de justificação que governa a sua concepção como um todo. A chave está na compreensão da posição original enquanto sustentáculo do equilíbrio reflectido, tanto quanto ele se pode alcançar. A posição original é o sustentáculo do processo de justificação, na medida em que constitui o mecanismo através do qual toda a justificação deve passar, o local de chegada de todos os argumentos e o ponto de onde todos devem partir. É por isto que uma premissa da posição original pode ser defendida, ou atacada, a partir de qualquer uma de duas direcções, seja com base na sua plausibilidade (num sentido ainda por determinar), seja com base na sua adequação às nossas convicções reflectidas sobre a justiça. "Ao tentar descobrir a definição preferível desta situação, consideramos ambas as perspectivas [... ]. Assim, umas vezes avançando e outras recuando, alterando por vezes as condições em que o contrato se realiza e, por outras, alterando as nossas posições e adequando-as aos princípios, acredito que acabaremos por obter uma definição da situação original que, simultaneamente, seja a expressão de condições razoáveis e permita a obtenção de princípios que se adequem aos nossos juízos ponderados, devidamente podados e ajustados. Designo esta situação por 'equilíbrio reflectido'" [20 (39)].

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78 A descrição da posição original é o produto de dois ingredientes básicos: por um lado, os nossos melhores juízos de "razoabilidade e de plausibilidade" (ainda por explicar) e, por o:utro, as nossas convicções reflectidas sobre a justiça. A partir das matérias-primas fornecidas pelas nossas intuições, devidamente filtradas e enformadas pela posição original, emerge um produto final. No entanto, trata-se de um produto final de dimensões duais, e é aqui que se encontra a chave da nossa concepção já que o que emerge numa extremidade como uma teoria da justiça tem necessariamente que emergir na outra como uma teoria da pessoa ou, com maior precisão, como uma teoria do sujeito moral. Olhando numa direcção, vemos através das lentes da posição original dois princípios da justiça; perscrutando na outra, vemos um reflexo de nós próprios. Se o método de equilíbrio reflectido funciona com a simetria que Rawls lhe atribui, então·a posição original tem de produzir não só uma teoria moral, mas também uma antropologia filosófica. Rawls preocupa-se primariamente, através da maior parte do seu livro, com a primeira destas vertentes. O seu objectivo é produzir uma teoria da justiça, por isso a sua atenção tem de incidir privilegiadamente sobre o argumento que parte da posição original para os princípios da justiça, procurando oferecer uma descrição da posição original capaz de antecipar de forma adequada os requisitos da justiça. Compreensivelmente, está menos preocupado em desenvolver o argumento na direcção inversa, e portanto é menos explícito sobre o que lá se poderia encontrar. Isto poderá explicar, em parte, a maior clareza que imprime ao fundamento das nossas intuições morais, relativamente à sua concepção sobre as nossas intuições "descritivas" (aquilo que as toma razoáveis ou irrazoáveis, fortes ou débeis, etc.). Se esta reconstrução estiver correcta, então o padrão independente, se bem que provisório, através do qual se pode aferir a razoabilidade dos nossos pressupostos descritivos ser-nos-á fornecido não pelas leis empíricas da psicologia ou da sociologia, mas antes pela natureza do sujeito moral tal como o conhecemos, o que equivale a dizer que nos será dado pelo conhecimento constitutivo que temos de nós próprios. Uma vez que o objectivo da concepção rawlsiana se prende com a produção de uma teoria da justiça, verifica-se uma tendência para rejeitar os pressupostos motivadores, por vezes pouco atractivos, da posição original, enquanto parte de um mecanismo meramente heurístico, sem qualquer interesse independente ou continuado, a partir do momento em que termina a produção dos princípios da justiça. Porém, caso o equilíbrio reflectido fun-

cione de facto nos dois sentidos, então, uma vez alcançado, uma explicação da circunstância humana que emerge como produto incidental de um artifído fictício será tão dispensável quanto o será uma explicação dos próprios princípios da justiça. Em face da simetria metodológica da posição original, não podemos ver num dos seus momentos a espiga que se deitará fora para se chegar ao grão do quô.l se obterá a farinha. Temos de estar preparados para viver com a visão contida na posição original, incluindo o desinteresse mútuo e tudo o mais; preparados para viver com ela no sentido de aceitarmos a descrição que nos oferece como sendo um reflexo preciso da circunstância moral humana consistente com a ideia que temos de nós próprios. "Para terminar, recordemos que a natureza hipotética da posição original convida à seguinte questão: porque é que devemos ter interesse nessa posição, seja ele moral ou outro? Recordemos a resposta: as condições incluídas na descrição dessa situação são aquelas que, de facto, aceitamos. Ou, se o não fazemos, podemos ser persuadidos a aceitá-las através de considerações filosóficas do género das que eu invoquei ocasionalmente" [itálicos nossos, 587 (441)]. As condições incorporadas na posição original desempenham na teoria da justiça de Rawls os mesmos papéis que os conceitos de razão prática pura na teoria moral de Kant. "Não são como as estacas e os contrafortes que frequentemente têm de ser colocados a amparar um edifício erguido apressadamente, mas antes membros verdadeiros que explicam a estrutura do sistema" (Kant 1788: 7). Estas considerações sugerem fortemente que a teoria da justiça de Rawls tem implícita uma concepção do sujeito moral que enforma os princípios da justiça ao mesmo tempo que é enformada pela sua imagem por intermédio da posição original. É esta concepção que me proponho iluminar e explorar. Se puder ser explicitada de alguma forma, ajudaria não só a resolver as perplexidades relativas ao estatuto da posição original, mas também a avaliar as reivindicações centrais da concepção rawlsiana como um todo. Assim, enquanto que a argumentação principal de Rawls se inclina para perspectivar a natureza do sujeito moral como um dado e demonstrar os princípios da justiça através da posição original, pela minha parte proponho-me trabalhar no sentido contrário, assumindo os princípios da justiça

80 como dados provisoriamente, e dirigindo o meu argumento de volta até ao sujeito moral. Ao fazê-lo, sinto estar a traçar os contornos de um argumento do seguinte tipo: assumindo que somos capazes da justiça e, mais precisamente, que somos seres para quem a justiça é primária, temos que ser criaturas de um certo tipo, relacionadas de uma certa forma com as circunstâncias humanas. O que se pode dizer, então, e que tenha de ser verdade, acerca de um sujeito para quem a justiça é a primeira virtude? E como é que a concepção de um tal sujeito se encontra incorporada na posição original? Ora, a descrição deste sujeito deterá um estatuto lógico distintivo. Será, nalgum sentido, necessária, não contingente e anterior a qualquer experiência particular. O "ter de ser" apresentado na formulação não é apresentado em vão. Mas não constituirá, no entanto, uma exigência analítica. Num certo sentido terá um carácter empírico, mas não "meramente" empírico. Dado o carácter reflectido de tais descrições, elas não serão meramente descritivas, sendo antes parcialmente constitutivas do tipo de seres que somos. O facto de as conhecermos é parte do que faz com que sejam verdadeiras, e faz de nós as criaturas que somos: reflexivas e que se interpretam a si mesmas. Poderemos apresentar uma descrição geral destas características constitutivas da nossa autocompreensão através de uma variedade de nomes: uma teoria da pessoa, uma concepção do eu, uma epistemologia moral, uma teoria da natureza humana, uma antropologia filosófica. Estas descrições apresentam conotações diferentes, por vezes até mesmo conflituais, associadas habitualmente às tradições filosóficas das quais derivam. Falar de natureza humana, por exemplo, equivale com frequência a sugerir uma concepção teleológica clássica, associada à noção de uma essência humana universal, invariável, tanto no tempo como no espaço. O discurso do eu, por outro lado, apresenta habitualmente uma predisposição para situar o tema num registo de noções individualistas, bem como para sugerir que a autocompreensão em causa se reduz à tomada de consciência de uma pessoa individual, como acontece numa sessão de psicoterapia, por exemplo. Estas associações colocam-nos certas dificuldades, na medida em que evitam as próprias questões a que procuramos responder, nomeadamente: Como é que o sujeito se constitui? Em que termos? Em que escala pode ser concebido adequadamente? Para evitar confusões a este respeito, devo dizer à partida que a explicação que tenho em mente constitui uma antropologia filosófica no sentido mais amplo; filosófica, na medida em que se chega a ela de forma reflectiva, em vez de por meio de generalizações empíricas, e antropológicas,

81 po~quanto se reporta à natureza do sujeito humano nas suas várias formas de Identidade possíveis.

O eu e o outro: a prioridade da pluralidade Partindo destas qualificações, e com algumas referências à nossa discussão anterior sobre o problema do eu, poderemos proceder à reconstrução do raciocínio de Rawls acerca da natureza do sujeito moral da seguinte ~or~a. Para Rawls, a primeira característica de qualquer criatura capaz da Justlça.p~ende-se com o facto de ser plural em número. A justiça não poderia ser aplicavel num universo onde existisse apenas um sujeito. Apenas poderia ter lugar numa sociedade de seres de algum modo distinguíveis uns dos outros. "Os princípios da justiça ocupam-se das reivindicações conflituais que incidem sobre os benefícios adquiridos pela cooperação social; aplicam-se às relações entre diversas pessoas ou grupos. A palavra 'contrato' sugere esta pluralidade" [16 (36)]. Para que haja justiça, tem de existir esta possibilidade de se produzirem reivindicações que colidem umas com as outras e para isso, tem de haver mais do que um requerente. Deste modo, a plurali~ ~a~~ de pess~as pode ser vista como um pressuposto necessário para a posSIbIlIdade de Justiça. Rawls insiste na pluralidade essencial do sujeito humano ao censurar o utilitarismo por estender à sociedade como um todo os princípios de escolha raci~nal específicos do homem individual. Isto é uma falácia, argumenta, na medIda em que equivale a fundir diversos sistemas de justiça num único sistema de interesses, e por isso mesmo não leva a sério a distinção entre as pessoas. No quadro do utilitarismo, "muitas pessoas são fundidas numa só" e "indivíduos separados são perspectivados como outras tantas linhas dife~ rentes". Porém, o utilitarismo erra uma vez que "não há razão para se supor que os princípios que devem regular uma associação de homens são apenas uma extensão do princípio da escolha que se aplica a um homem isolado. Pelo contrário; se partirmos da ideia de que o princípio regulador de determinado objecto depende da respectiva natureza e de que a pluralidade de sujeitos distintos, com distintos sistemas de objectivos, é uma característica essencial das sociedades humanas, não devemos esperar que os princípios da escolha social sejam utilitaristas" [itálicos nossos, 28-29 (45)]. Levar a sério "a pluralidade e o carácter distintivo dos indivíduos" significa mais do que defender a independência e a liberdade de pensamento,

82 ou do que sustentar que o bem da sociedade consiste nas vantagens de que os indivíduos usufruem, como os utilitaristas haviam feito. Fazê-lo significa compreender a pluralidade das pessoas como sendo uma característica essencial de qualquer explicação do sujeito moral, um postulado da antropologia filosófica. Neste sentido, o "utilitarismo não é individualista, pelo menos quando resultar de reflexão que siga a via mais natural", na medida em que, ao fundir todos os sistemas de interesses num só, contradiz o seu próprio postulado essencial [29 (46)]. Porém, para que os sujeitos possam ser plurais, tem de existir algo que os diferencie, alguma maneira de os distinguir uns dos outros, algum princípio de individuação. Para Rawls, as nossas características de individuação são-nos dadas empiricamente, pela concatenação distintiva de necessidades e desejos, objectivos e atributos, propósitos e fins que acabam por caracterizar os seres humanos nas suas particularidades. Cada indivíduo encontra-se localizado de uma forma única no tempo e no espaço. Nasce numa família e numa sociedade particulares. E é a contingência destas circunstâncias, em conjunto com os interesses, os valores e as aspirações por elas originados, que diferencia as pessoas, fazendo com que sejam as pessoas particulares que são. Dentro de qualquer grupo de pessoas, especialmente as de níveis semelhantes, encontraremos provavelmente certas características sobrepostas, certos interesses adoptados em comum. No entanto, e apesar até mesmo das maiores semelhanças de condições, jamais se poderá dizer que duas pessoas se encontram em situação idêntica, nem poderemos dizer que duas pessoas quaisquer tenham objectivos e interesses idênticos relativamente a tudo, pois, se os tivessem, deixaria de ser claro como as poderíamos identificar como sendo duas pessoas distinguíveis uma da outra. Deste modo, a pluralidade essencial das pessoas fica assegurada ou, talvez melhor, definida. Para Rawls, o facto da nossa pluralidade fundamental é um pressuposto necessário da nossa condição de criaturas capazes da justiça. Aquilo em que consiste de facto a individualidade de cada pessoa é, porém, uma questão empírica. A caract~rística fundamental do sujeito moral é a sua pluralidade e, dados os meios de individuação, o número da sua pluralidade corresponde ao número de seres humanos individuados empiricamente no mundo. Tudo isto equivale a dizer que, na perspectiva de Rawls acerca do sujeito moral, cada ser humano individual é um sujeito moral, e cada sujeito moral é um ser humano individual.

83 ~este ponto, poderemos razoavelmente perguntar se, na concepção rawlsIana de pessoa, a unidade, tal como a pluralidade, emergirão como características essenciais do sujeito moral, pressupostos igualmente necessários para a perspectiva do homem como criatura capaz da justiça. De facto, Rawls descreve as circunstâncias da justiça como "condições normais em . cujo quadro a cooperação entre os homens é simultaneamente possível e necessária", e a partir disto poderá pensar-se que, enquanto que a pluralidade essencial do sujeito moral toma a cooperação humana uma necessidade, alguma unidade essencial das pessoas toma a cooperação entre os homens possível. Mas isto seria desvirtuar a lógica da concepção de Rawls, e ameaçaria minar as prioridades de que depende a ética deontológica. Creio que a sua resposta seria aproximadamente a seguinte. Se por um lado é verdade que o princípio de unidade ocupa um lugar importante na justiça como equidade (veja-se em particular a explicação da ideia de união social, secção 79), por outro seria um erro atribuir-lhe uma prioridade idêntica àquela correspondente à pluralidade; a primeira não é essencial para a nossa natureza da mesma maneira que a segunda. Isto é assim na medida em que qualquer explicação da unidade da subjectividade humana tem de pressupor a sua pluralidade, de um modo que não é aplicável ao inverso. Isto poderá comprovar-se se considerarmos a noção de uma sociedade humana como um empreendimento cooperativo desenvolvido para o benefício mútuo, empreendimento esse caracterizado, como habitualmente acontece, tanto pelo conflito como pela identidade de interesses. Ora, o conflito de interesses emerge, conforme vimos, do facto de os sujeitos cooperantes terem interesses e objectivos diferentes, e este facto decorre da natureza de um ser capaz da justiça. A identidade de interesses, porém, exprime o facto de acontecer que as partes têm necessidades e interesses de tal modo similares que a cooperação entre elas se apresenta como mutuamente vantajosa. E este facto, de acontecer que as suas necessidades e interesses coincidam desta maneira, não decorre da natureza da sua subjectividade, mas apenas do feliz acidente das suas circunstâncias. O facto de serem capazes de se unir e de cooperar com vantagens mútuas pressupõe um pluralismo antecedente. Pela sua própria natureza, a cooperação é sempre entre agentes, cuja pluralidade tem portanto de anteceder a constatação da identidade de interesses que cumprem através da associação cooperativa.

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85 "A ideia essencial é que os valores sociais, o bem intrínseco das actividades comunitárias institucionais e associativas, são analisados mediante uma concepção da justiça que, nas suas bases teóricas, é individualista. Por razões de clareza, entre outras, não quero apoiar-me num conceito indefinido de comunidade, nem supor que a sociedade é um todo orgânico com uma vida própria distinta e superior à de todos os seus membros nas relações que estabelecem entre si. Assim, a concepção contratual da posição original é estabelecida em primeiro lugar. [... ] É a partir desta concepção, por mais individualista que possa parecer, que temos eventualmente de explicar o valor da comunidade". [264-265 (213)].

o facto de sermos pessoas distintas, caracterizadas por sistemas separados de fins, constitui um pressuposto necessário de um ser capaz de justiça. Em que consistem em concreto os nossos objectivos e se eles, por acaso, coincidem ou se sobrepõem aos dos outros, são já questões empíricas que não podemos determinar à partida. É neste sentido - epistemológico, em vez de psicológico - que a pluralidade de sujeitos é anterior à sua unidade. Primeiro, somos indivíduos distintos, só depois (caso as circunstâncias o permitam) estabelecemos relações e desenvolvemos dispositivos de cooperação com os outros. Aqui, o fundamental não é que as pessoas cooperem apenas por motivos egoístas, mas antes que o nosso conhecimento dos fundamentos da pluralidade nos seja dado antes da experiência, enquanto que o conhecimento que detemos dos fundamentos da unidade ou da cooperação apenas pode emergir à luz da experiência. Em qualquer caso particular, resta-nos verificar se nos deparamos, ou não, com condições que permitam a cooperação. A preeminência da pluralidade relativamente à unidade, ou a noção da individuação antecedente do sujeito, descreve os termos da relação entre o eu e o outro, que tem de se verificar para que a justiça possa ser primária. . Mas, antes da nossa reconstrução da concepção rawlsiana de pessoa poder estar concluída, temos de analisar uma questão paralela, a saber, a relação do eu com os seus objectivos.

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eu e os seus objectivos: o sujeito da posse

Na ética deontológica, "o eu é anterior aos objectivos que defende" [560 (422)]. Para Rawls, oferecer uma explicação desta prioridade coloca-lhe um desafio particular, uma vez que o seu projecto descarta a noção de um sujeito que alcança a sua preeminência pelo facto de habitar um universo transcendental ou numenal. Na perspectiva rawlsiana, qualquer explicação das noções de sujeito e de fins tem que nos dizer, não uma, mas duas coisas: como o eu se distingue dos seus fins, e como se encontra ligado a eles. Sem a primeira, ficamos com um sujeito radicalmente situado, e sem a segunda com um sujeito radicalmente destituído de um corpo. A solução de Rawls, implícita no projecto da posição original, prende-se com a concepção do eu enquanto sujeito de posse, já que no quadro da posse o eu se distancia dos seus fins, sem contudo se desligar completamente deles. Podemos localizar a noção do eu enquanto sujeito de posses no pressuposto de desinteresse mútuo. À superfície, este pressuposto assemelha-se a um pressuposto psicológico - diz-nos que as partes não se ocupam minimamente com interesses umas das outras -, mas, dado o lugar que ocupa na posição original, funciona antes como uma reivindicação epistemológica, a saber, uma reivindicação acerca das formas de auto conhecimento de que somos capazes. É por isso que Rawls consegue defender, com coerência, que o pressuposto de desinteresse mútuo constitui "a principal condição de motivação da posição original" [1891' e, no entanto, "não envolve qualquer teoria particular relativa à motivação humana" [130 (116)]. Podemos constatar como é que isto é assim. O pressuposto de desinteresse mútuo não é um pressuposto acerca daquilo que motiva as pessoas, mas um pressuposto geral acerca da natureza dos sujeitos que possuem motivações. Diz respeito à natureza do eu (isto é, ao modo como ele se constitui, como se apresenta relativamente à sua situação em geral), não à natureza dos desejos e dos objectivos do eu. Reporta-se ao sujeito dos interesses e dos fins, não ao conteúdo desses interesses e desses fins, quaisquer que possam vir a ser. Tal como Kant defende que toda a experiência tem de ser uma experiência de algum sujeito, também o pressuposto rawlsiano de desinteresse mútuo postula que todos os interesses têm de ser interesses de algum sujeito.

Nota do tradutor: Este período não consta da tradução portuguesa considerada.

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"Embora os interesses prosseguidos nesses objectivos não sejam interesses relativos ao próprio eu, são interesses de um eu que olha a sua concepção do bem como merecendo reconhecimento" [itálicos nossos, 127 (114)]. "Não formulo quaisquer restrições quanto às concepções do bem que as partes possuem, excepto na medida em que as considero como constituindo planos racionais a longo prazo. Embora estes planos determinem os objectivos e interesses de um eu, tais objectivos e interesses não se presumem ser egoístas ou voltados para o interesse próprio. O facto de tal vir a acontecer dependerá do tipo de fins que uma pessoa perseguir. Se a riqueza, a posição, a influência e as honras do prestígio social são os objectivos finais de alguém, a sua concepção do bem será certamente egoísta. Os seus interesses dominantes estarão em si próprio e não apenas como têm sempre de ser, interesses de um eu" [itálicos nossos, 129 (115)]. Encontramos a chave para a concepção rawlsiana do sujeito no pressuposto "de desinteresse mútuo, o qual nos apresenta o quadro daquilo que temos de ser para sermos sujeitos para quem a justiça é primária. Porém, tomada isoladamente, a noção do eu como sujeito de posse não completa este panorama. Tal como foi sugerido pela explicação da pluralidade, para o fazer não é um qualquer sujeito de posse que serve, antes se exige um sujeito antecipadamente dotado de individualidade, cujo eu tenha sido delimitado antes da experiência. Para constituir um eu deontológico, tenho de ser um sujeito cuja identidade é fornecida independentemente das coisas que possuo, isto é, independentemente dos meus interesses, dos meus objectivos e das relações que estabeleço com os outros. Associada à ideia de posse, esta noção de individuação completa consideravelmente a teoria rawlsiana de pessoa. Podemos apreciar plenamente as suas consequências comparando e contrastando dois aspectos da posse - duas maneiras diferentes de um interesse ser de um eu - e observando como a noção de individuação antecedente compromete o eu deontológico com uma delas. Na medida em que possuo alguma coisa, estou ao mesmo tempo relacionado com essa coisa e distanciado dela. Dizer que possuo um certo traço, desejo ou ambição equivale a dizer que estou relacionado com eles de certa

maneira - eles são meus, e não teus -, bem como a dizer que estou de algum modo distanciado deles - eles são meus, não são eu próprio. Este último ponto significa que se perder alguma das coisas que possuo, continuarei a ser o mesmo "eu" que era quando a tinha. É neste sentido, à primeira vista paradoxal, mas inevitável quando se reflecte sobre a matéria, que a noção de posse é uma noção de distanciamento. Este aspecto distanciado r é essencial para a continuidade do eu. É ele que preserva uma certa dignidade e uma certa integridade para o eu, na medida em que o resguarda de ter de se transformar perante a mais ligeira contingência. A preservação desta distância, e da integridade que implica, exige tipicamente um certo autoconhecimento. Para poder preservar a distinção entre aquilo que eu sou e aquilo que é (meramente) meu, tenho que conhecer, ou pelo menos ser capaz de identificar sempre que a ocasião o exija, algo acerca de quem sou. Foi assim que Ulisses foi capaz de sobreviver à sua viagem perigosa de regresso a casa utilizando vários disfarces; e a sua capacidade para o fazer pressupõe, desde logo, que soubesse quem era. Uma vez que o seu auto conhecimento era neste sentido, anterior à sua experiência, foi capaz de regressar a casa send~ exactamente a mesma pessoa que dela tinha partido e de ser reconhecido por Penélope, inalterado pela sua jornada, contrariamente a Agamenón, que regressou transfigurado num estrangeiro para os seus, tendo conhecido uma sorte diferente 2• Uma consequência deste aspecto dualista da posse prende-se com o facto de ela se poder enfraquecer ou diminuir de duas maneiras diferentes. Perco gradualmente posse de uma coisa não só na medida em que ela se afasta da minha pessoa, mas também na medida em que a distância que me separa dela se reduz e nos aproximamos de uma colisão. Perco a posse de um desejo ou de uma ambição na medida em que o meu empenho neles se desvanece, e à medida que em que o meu domínio sobre eles se atenua. Mas perco-a igualmente, a partir de um certo ponto, na medida em que a minha ligação a eles cresce e eles ficam gradualmente ligados a mim. Na medida em que um desejo ou uma ambição se tomam cada vez mais constitutivos da minha identidade, fundem-se cada vez mais comigo, transformando-se crescentemente em mim e cada vez menos em algo que é meu. Ora, como poderíamos dizer em certos casos, quanto menos os possuo, mais sou possuído por eles. Imaginemos que um desejo, de início apenas sentido de forma inci, Fico a dever este exemplo a Allen Grossman.

88 piente, se torna gradualmente cada vez mais central no quadro dos meus objectivos globais, até que, por fim, se transforma na consideração primordial determinante de tudo o que penso e de tudo o que faço. Na medida em que cresce de desejo para obsessão, possuo-o cada vez menos, sendo esse desejo que me possui a mim cada vez mais, até que por fim deixa de ser possível distingui -lo da minha identidade. Tomemos um exemplo de outro tipo. Na medida em que a Declaração de Independência dos Estados Unidos estiver correcta e os homens tenham recebido do Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais se encontram os direitos à vida, à liberdade e à procura da felicidade, aquilo que esta litania descreve não é aquilo que possuímos enquanto homens livres, mas aquilo que somos. Este legado, mais do que uma posse, exprime uma natureza de certo tipo. Para aquele que renunciasse à sua liberdade ou que procurasse uma existência miserável, estes legados não constituiriam uma posse, mas sim um constrangimento. Na medida em que estes direitos são verdadeiramente inalienáveis, um homem está tão autorizado a desfazer-se deles no seu caso particular, como o está a apropriar-se dos de outros. O suicídio está ao nível do assassinato, e vender-se a si mesmo como escravo é moralmente equivalente a escravizar outro. Como estas imagens sugerem, a posse está associada ao agir humano e a um sentido de autocontrolo. A partir de um e de outro destes pontos de vista, a privação de posses poderá ser entendida como um tipo de desautorização ou de perda de poder. Quando a minha posse de um objecto se desvanece, seja porque ele se escapa para além do meu alcance, seja porque se eleva e se agiganta diante de mim, assumindo proporções tais que, perante ele, eU me sinto esmagado e sem qualquer poder, diminui igualmente o meu agir relativamente a esse objecto. Cada desafio está associado a uma noção diferente de agir, implicando, por sua vez, uma explicação diferente da relação do eu com os seus fins. Podemos pensar as duas dimensões do agir como meios distintos de travar o desvio no sentido de perda de poder, e distingui-las pelo modo como funcionam no restauro de um sentido de autocomando. O primeiro tipo de perda de posse envolve o distanciamento do fim relativamente ao sujeito a quem chegou a pertencer. À medida que assim acontece, torna-se cada vez mais obscuro em que sentido este fim é meu em vez de teu, de qualquer outro ou de ninguém. O eu perde poder na medida em que se vê dissociado daqueles fins e desejos que, entrelaçados gradual-

89 mente num todo coerente, lhe fornecem uma firmeza de propósito, formam um plano de vida e, por isso, explicam a continuidade do eu com os seus fins. Na medida em que o eu é perspectivado como um dado anterior aos seus fins, com os seus limites fixados de uma vez para todo o sempre, de tal forma que se tomam impermeáveis e invulneráveis à transformação a partir da experiência, uma tal continuidade permanecerá perpétua e inerentemente problemática. A única maneira de a afirmar exige que o eu seja capaz de ir para além dele próprio, de modo a agarrar os fins que virá a possuir enquanto objectos da sua vontade, e a mantê-los, como sempre terá de fazer, como algo exterior a si própri0 3 • O segundo tipo de perda de posse acarreta uma perda de poder noutro sentido ainda. Aqui, o problema não consiste em superar a distância criada pelo distanciamento do fim relativamente ao eu, mas antes na recuperação e na preservação de um espaço que cada vez mais ameaça desmoronar-se. Empurrado pelas reivindicações e pelas pressões de vários propósitos e fins possíveis, todos eles invadindo indiscriminadamente a minha identidade, tomo-me incapaz de os distinguir e de os ordenar, incapaz de traçar os limites ou as fronteiras do meu eu, incapaz de asseverar onde termina a minha identidade e onde começa o universo dos atributos, objectivos e desejos. Perco poder no sentido em que me falta uma compreensão clara de quem sou eu em concreto. Muitas coisas são essenciais para a minha identidade. Na medida em que os fins sejam fornecidos antes do eu que constituem, os limites do sujeito permanecem abertos, a sua identidade infinitamente moldável e, em última análise, fluida. Incapaz de distinguir o que é meu daquilo que eu sou, encontro-me permanentemente em risco de me afogar num mar de circunstâncias. Poderemos compreender o agir humano como sendo a faculdade através da qual o eu realiza os seus fins. Isto confirma a relação estreita deste conceito com a noção de posse, sem iludir a questão da respectiva dimensão, nem a da prioridade relativa do eu face aos seus fins. Se sou um ser com fins, existem pelo menos duas maneiras de os "adquirir;'. Uma é por eleição, a outra, por descoberta, "encontrando-os". Podemos apelidar o primeiro destes sentidos de dimensão voluntarista do agir, e o segundo de dimensão cogJ Compare-se com Kant (1797, 62). "Por isso, a relação entre possuir algo exterior a si mesmo como sendo seu (sua propriedade) consiste de uma união puramente de jure da Vontade do sujeito com esse objecto, independentemente da sua relação com ele no espaço e no tempo e de acordo com o conceito de posse inteligível".

90 nitiva. Cada um destes modos de agir poderá ser perspectivado como reparador de um tipo distinto de perda de posse. Na medida em que o eu perde poder por se destacar dos seus fins, a perda de posse é reparada pela faculdade de agir no seu sentido voluntarista, contexto em que o eu se relaciona com os seus fins do mesmo modo que um sujeito provido de vontade se relaciona com os objectos que elege. O agir relevante envolve o exercício da vontade, uma vez que é a vontade que é capaz de transcender o espaço que separa o sujeito dos seus objectos, sem exigir que seja um espaço fechado. Na medida em que o eu perde poder por não ser possível diferenciá-lo dos seus fins, a perda de posse é reparada pela faculdade de agir no sentido cognitivo, pelo qual o eu se relaciona com os seus fins do mesmo modo que um sujeito capaz de conhecimento se relaciona com os objectos do seu entendimento. Quando os fins do eu são fornecidos antecipadamente, o agir relevante não é voluntarista, mas cognitivo, uma vez que o sujeito adquire o auto controlo não através da escolha daquilo que lhe havia sido já dado (o que não faria qualquer sentido), mas reflectindo sobre si próprio e indagando sobre a sua natureza constitutiva, discernindo as suas leis e os seus imperativos e reconhecendo como seus os propósitos com se depara. Na medida em que a faculdade da vontade procura inverter a separação do eu relativamente aos seus fins, restaurando uma certa continuidade entre eles, a reflexão apresenta-se como uma faculdade de distanciamento e desemboca numa certa separação. É bem sucedida uma vez que restaura o espaço diminuído que separa o eu dos seus fins. Através da reflexão, o eu ilumina o seu interior, fazendo-a incidir sobre ele próprio, transformando o eu no seu próprio objecto de investigação e de reflexão. Quando sou capaz de reflectir sobre as minhas obsessões, de as identificar e de fazer delas o objecto da minha reflexão, estabeleço, assim, um certo espaço entre elas e eu e, por essa via, sou capaz de diminuir o seu domínio. Elas transformam-se cada vez mais em atributos, tornando-se cada vez menos elementos constituintes da minha identidade, e assim desfazem-se, deixando de ser uma obsessão e passando a ser meros desejos. Uma vez que o sujeito é perspectivado como sendo anterior aos seus fins, o autoconhecimento, neste sentido, não é uma possibilidade, uma vez que as balizas que definiria são fornecidas à partida, de forma não reflectida, através dos princípios de individuação antecedente. Os limites do eu são fixos e dentro deles tudo é transparente. A questão moral relevante não é

91 "Quem sou eu.2" ( uma vez que a resposta a esta questão nos é fornecida

antecipadamente), mas antes "Que fins devo eu eleger?", e esta é uma questão dirigida à vontade. Para o eu cuja identidade é constituída à luz dos fins que são fornecidos antecipadamente, a faculdade de agir consiste menos em convocar a vontade do que em procurar o auto conhecimento. A questão relevante que aqui se coloca não é a de saber que fins devo eleger, uma vez que o meu problema reside precisamente no facto de a resposta a esta questão me ser dada antecipadamente, mas antes a de saber quem eu sou, como poderei distinguir o que eu sou daquilo que é meu dentro desta barafunda de fins possíveis. Neste contexto, os limites do eu não são dados fixos, mas possibilidades; os seus contornos, em vez de serem evidentes por eles próprios, encontram-se pelo menos parcialmente por enformar. Torná-los claros e definir os limites da minha identidade são uma e a mesma coisa. O autocomando que, no primeiro caso, é aferido em termos do âmbito e do alcance da minha vontade, no segundo é determinado pela profundidade e pela clareza da minha auto consciência. Podemos agora verificar como é que o aglomerado de pressupostos associado à noção voluntarista de agir e o aspecto distanciado r da posse completam a teoria da pessoa de Rawls. A noção de um sujeito de posse, individualizado antecipadamente e dado anteriormente aos seus fins, parece constituir precisamente a concepção necessária para redimir a ética deontológica, sem cair na transcendência. Deste modo, o eu torna-se distinto dos seus fins - ergue-se por detrás deles, a uma distância, com uma certa prioridade - porém, está também relacionado com eles, tal como um sujeito detentor de uma vontade e capaz de a exercer está para os objectos que elege. A noção voluntarista de agir torna-se assim um ingrediente-chave na concepção de Rawls, desempenhando um papel central na ética deontológica como um todo. "O que primariamente revela a nossa natureza não são os nossos objectivos" [560 (422)), mas antes a nossa capacidade de eleger aqueles que são mais importantes para nós, e esta capacidade encontra expressão nos princípios da Justiça. "Assim, um sujeito moral é alguém que possui objectivos por si escolhidos, e a sua preferência fundamental dirige-se para condições que lhe permitam construir m)l;l modo de vida que expresse a sua natureza enquanto ser racional livre e igual, de forma tão plena quanto as circunstâncias o permitam" [561 (423)]. Esta é, em última instância, a

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92 razão pela qual não podemos perspectivar a justiça como apenas mais um valor entre outros. "Para realizar a nossa natureza, não temos outra alternativa que não seja a de planear a preservação do nosso sentido da justiça e fazê-lo dominar os nossos restantes objectivos" [574 (432)].

o

individualismo e as exigências da comunidade

Na nossa reconstrução do sujeito deontológico encontramos por fim o padrão com o qual poderemos aferir as premissas descritivas da posição original, o contrapeso das nossas intuições morais, capaz de fornecer um teste para as duas extremidades do equilíbrio reflectido de Rawls. É esta concepção do sujeito que o pressuposto de desinteresse mútuo nos fornece, e não uma explicação particular das motivações humanas. Podemo-nos recordar de que, na concepção de Rawls, "o postulado de desinteresse mútuo na posição original visa assegurar que os princípios de justiça não estejam dependentes de hipóteses muito exigentes" [129 (116)], e a razão para se evitar hipóteses muito exigentes tem por objectivo viabilizar a derivação de princípios que não pressuponham uma qualquer concepção particular do bem. "A liberdade na adopção de uma concepção do bem é apenas limitada pelos princípios que se deduzem de uma doutrina que não impõe limites prévios a essa mesma concepção. A presunção da existência de indiferença mútua na posição original desenvolve esta ideia" [254 (205)]. Pressupostos fortes ou controversos ameaçariam impor uma concepção particular do bem, o que influenciaria assim à partida a escolha daqueles princípios. Quão débeis, ou fortes, são, então, os pressupostos que enformam a teoria rawlsiana da pessoa? ·Com que gama de valores e de fins é que são compatíveis? São suficientemente débeis e inocentes para evitar excluir à partida quaisquer concepções do bem? Já vimos que a leitura empirista da posição original produz, sobre esta matéria, um rol de objecções. As circunstâncias da justiça, e em particular o pressuposto de desinteresse mútuo, são perspectivadas como introduzindo um preconceito em favor do individualismo, ao mesmo tempo que excluem, ou de qualquer modo desvalorizam, motivos como a benevolência, o altruísmo e os sentimentos comunitários. Tal como um crítico escreveu, a posição original contém "um preconceito individualista forte, o qual é reforçado ainda mais pelos pressupostos

de. ~otivação de desinteresse mútuo e de ausência de inveja. [... ] A posição ongmal parece pressupor, não apenas uma teoria neutral do bem, mas também uma concepção liberal individualista, nos termos da qual o melhor que se pode desejar a alguém é que possa seguir o seu caminho próprio sem impedimentos, desde que não interfira com os direitos de outros" (Nagel 1973: 9-10). Porém, tal como Rawls insiste acertadamente, a sua não é a "doutrina estritamente individualista" assumida pela objecção empirista. "Uma vez que se compreenda a importância do pressuposto de desinteresse mútuo, a objecção deixa de ser pertinente" [584 (439)]. Não obstante a sua dimensão individualista, a justiça como equidade não defende a sociedade privada enquanto ideal [522 (395)], nem pressupõe motivações egocêntricas ou egoístas [129 (115-116)], nem se opõe a valores comunitaristas. "Embora na teoria da justiça como equidade as pessoas comecem por ser consideradas enquanto indivíduos [... ] isso não obsta a que se explanem os sentimentos morais de ordem superior utilizados para manter unida uma comunidade de pessoas" [192 (159)]. Rawls tem vindo a sublinhar, em particular, que o pressuposto de desinteresse mútuo não constitui um preconceito em favor da selecção de princípios favoráveis aos valores individualistas, a expensas dos comunitaristas. Aqueles que lêem na teoria um tal preconceito ignoram o estatuto especial da posição original, assumindo, erradamente, que os motivos consignados às partes se aplicani igualmente a seres humanos reais ou a pessoas numa sociedade bem organizada. Porém, não é este o caso. Os motivos atribuídos às partes na posição original não só não reflectem as motivações reais que se verificam numa sociedade, nem determinam directamente as razões que levam as pessoas a agir numa sociedade bem organizada. Dado o alcance restrito destes pressupostos, Rawls defende que "à partida, não parece existir qualquer razão para que os fins das pessoas numa sociedade bem organizada sejam predominantemente individualistas" (1975, 544). Os valores comunitaristas poderão existir, ou até mesmo florescer, numa sociedade bem governada pelos dois princípios da justiça, tal como quaisquer outros valores, aliás, que os indivíduos possam adoptar. "Não existe qualquer razão para que uma sociedade bem organizada encoraje primariamente valores individualistas, se

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94 com isto queremos dizer modos de vida que conduzam os indivíduos a seguir os seus próprios caminhos, sem qualquer preocupação pelos interesses dos outros (ainda que respeitando os seus direitos e liberdades). Normalmente, esperar-se-ia que a maioria das pessoas pertencesse a uma ou mais associações, detendo assim, neste sentido, pelo menos alguns fins colectivos. As liberdades fundamentais não têm o propósito de manter as pessoas isoladas umas das outras, ou de as persuadir a manterem as suas vidas privadas, mesmo que alguns, sem dúvida, assim o façam. Antes visam assegurar o direito de liberdade de movimentos entre as associações, bem como entre as comunidades mais pequenas" (1975: 550). Na concepção rawlsiana da pessoa, os meus fins serão benevolentes ou comunitaristas quando tomam como propósito o bem de outro, ou de um grupo de outros com quem eu me possa ter associado. E, de facto, nada na sua perspectiva exclui fins comunitaristas, neste sentido. Todos os interesses, valores e concepções do bem estão abertos ao eu rawlsiano, desde que possam ser apresentados co·mo os interesses de um sujeito individuado à partida a dado anteriormente aos seus fins, isto é, desde que descrevam os objectos que procuro, em vez do sujeito que eu sou. Só os limites do eu estão fixados à partida. Mas isto sugere um sentido mais profundo em que a concepção de Rawls é individualista. Podemos localizar este individualismo, e identificar as concepções do bem por ele excluídas, lembrando que o eu rawlsiano não é apenas um sujeito de posses, mas um sujeito que já antes havia sido individuado, permanecendo sempre a uma certa distância dos interesses que adopta. Uma consequência desta distância é colocar o eu para além do alcance da experiência, torná-lo invulnerável, fixar a sua identidade de uma vez por todas. Nenhuma obrigação me poderia prender tão profundamente ao ponto de não ser capaz de me compreender sem ela. Nenhuma transformação dos meus objectivos e planos de vida poderá ser tão perturbadora ao ponto de despedaçar os contornos da minha identidade. Nenhum projecto pode ser de tal modo essencial para mim que afastar-me dele seja equivalente a colocar em questão a pessoa que eu sou. Em face da minha independência dos valores que possuo, sou sempre capaz de me distanciar deles. A minha identidade pública enquanto pessoa moral "não está afectada pelas

alterações que, com o tempo", a minha concepção do bem possa vir a conhecer (Rawls 1980: 544-545)4. Porém, um eu assim tão completamente independente como este exclui qualquer concepção do bem (ou do mal) ligada à posse no sentido constitutivo. Exclui a possibilidade de qualquer afecto, ligação (ou obsessão) capaz de penetrar para além dos nossos valores e dos nossos sentimentos e de comprometer a nossa própria identidade. Põe de parte a possibilidade de uma vida pública na qual possam ver-se implicados, para o bem ou para o mal, quer a identidade, quer os interesses dos participantes. E descarta a possibilidade de propósitos e fins comuns poderem inspirar uma auto compreensão mais ou menos expansiva, definindo assim a comunidade num sentido constitutivo, uma comunidade que descreve o sujeito e não apenas os objectos de aspirações partilhadas. De uma maneira mais geral, a concepção de Rawls exclui a possibilidade daquilo que poderemos apelidar de formas de auto compreensão "intersubjectivas" or "intra-subjectivas", modos de conceber o sujeito que não pressupõem que os seus limites nos são dados à partida. Ao contrário da de Rawls, as concepções intersubjectivas e intra-subjectivas não assumem que falar do eu desde um ponto de vista moral seja necessária e indiscutivelmente falar de um eu antecipadamente individualizado. As concepções intersubjectivas permitem que, em certas circunstâncias morais, a descrição relevante do eu abarque mais do que um único ser humano individual, como acontece, por exemplo, quando atribuímos responsabilidades à família, à comunidade, à classe ou à nação, em vez de a um ser humano particular, ou quando reconhecemos termos obrigações para com elas. Presumivelmente, serão estas concepções que Rawls tem em mente quando rejeita, "por razões de clareza, entre outras", aquilo que apelida de "conceito indefinido de comunidade" e a noção de que "a sociedade é um todo orgânico" [264 (213)], já que elas sugerem o lado metafísico perturbador de Kant, que Rawls anseia substituir. Por outro lado, as concepções intra-subjectivas permitem, para certos propósitos, que uma descrição apropriada do sujeito moral se possa reportar a uma pluralidade de eus dentro de um mesmo ser humano individual. Assim acontece quando explicamos as nossas deliberações interiores em 4 A determinado momento, Rawls sugere que a minha identidade privada enquanto pessoa moral poderá não se encontrar igualmente imune de laços constitutivos (1980,545). Cf. p. 239.

96 termos da força que identidades ou momentos de introspecção, em competição uns com os outros, exercem sobre nós. Quando perspectivamos certos momentos de introspecção em termos de um auto conhecimento nos termos do qual se verifica um encaixe ou uma harmonia entre as nossas múltiplas características. Ou quando absolvemos alguém de responsabilidades pelas crenças heréticas que teve antes da sua conversão religiosa. No quadro das concepções intra-subj e ctivas , quando falamos de eus dentro de um eu (empírico e previamente individuado), não é apenas metaforicámente que o fazemos, mas, por vezes, com um alcance moral genuíno e prático. Ainda que Rawls não rejeite estas noções explicitamente, nega-as implicitamente ao assumir que a cada pessoa individual corresponde um sistema de desejos único, e que o utilitarismo, enquanto ética social, fracassa na medida em que aplica à sociedade os princípios de escolha adequados ao homem individual. Uma vez que assume que cada indivíduo consiste num sistema de desejos, e apenas um, o problema dos desejos compósitos não se coloca ao nível individual, e a conduta de uma pessoa para consigo mesma pode ser devidamente governada pelo princípio de prudência racional. "Age-se de forma inteiramente correcta, pelo menos quando não há terceiros afectados, quando se visa atingir o maior bem e quando se prosseguem objectivos racionais da melhor forma possível" [23 (41)]. A sociedade consiste numa pluralidade de sujeitos, exigindo~se, por isso, a justiça; mas já no quadro da moral privada, o utilitarismo parece bastar. Nainedida em que outros não estejam envolvidos, eu disponho de plena liberdade para maximizar o meu bem, sem referência ao princípio do just0 5 • Aqui, Rawls afasta-se mais uma vez de Kant, que havia sublinhado o conceito de "dever necessário para consigo mesmo"e aplicado a categoria do justo tanto à moral privada como à pública (Kant 1785: 89-90, 96-97, 101, 105). Os pressupostos da posição original erguem-se, assim, como oposição avançada a qualquer concepção do bem que exija uma auto compreensão 5 Na sua discussão da racionalidade deliberativa, Rawls queda-se no limiar do reconhecimento de uma dimensão "intra-subjectiva" e de admitir o conceito do justo como constrangimento em matéria de eleição moral: "Aquele que rejeita de modo igual as exigências do seu eu futuro e os interesses dos outros é não só irresponsável perante estes mas também relativamente à sua própria pessoa, já que não se considera a si próprio como um sujeito que permanece idêntico ao longo do tempo. Ora, visto desta forma, o princípio da responsabilidade para consigo próprio é semelhante a um princípio do justo. [... ] A pessoa, em certo momento, por assim dizer, não deve poder queixar-se das acções da pessoa num outro momento" [itálicos nossos, 423 (325)].

97 mais ou menos expansiva e, em particular, contra a possibilidade de comunidade no sentido constitutivo. Na perspectiva de Rawls, um sentido de comunidade descreve um objectivo possível de um eu individuado antecipadamente, não um ingrediente ou um elemento constituinte da sua identidade enquanto tal. Isto garante o seu estatuto subordinado. Uma vez que "a urüdade essencial do eu está já prevista pela concepção do justo" [563 (425)], a comunidade terá de encontrar a virtude que lhe é própria como um competidor, entre outros, dentro do quadro definido pela justiça, e não como uma justificação alternativa do próprio quadro em si. A questão que se coloca, então, é a de saber se os indivíduos que, por acaso, adoptem objectivos comunitaristas os podem tentar concretizar dentro de uma sociedade bem organizada, antecipadamente definida pelos princípios da justiça, e não se uma sociedade bem organizada é, ela própria, uma comunidade (no sentido constitutivo). "Existe, sem dúvida, um objectivo colectivo para uma sociedade bem organizada, enquanto um todo, o qual é sustentado pelo poder do Estado, uma sociedade justa no seio da qual uma concepção partilhada de justiça é reconhecida publicamente. Porém, dentro deste quadro podem adoptar-se objectivos comunitaristas, até mesmo muito possivelmente pela vasta maioria das pessoas" (Rawls 1975: 550). Podemos agora verificar com maior clareza a relação entre a teoria rawlsiana da pessoa e a sua reivindicação a favor do primado da justiça. Na medida em que os valores e os fins de uma pessoa são sempre atributos e nunca elementos constitutivos do seu eu, assim também um sentido de comunidade é apenas um atributo, e nunca um elemento constituinte de uma sociedade bem organizada. Tal como o eu é anterior aos objectivos que apresenta, assim também uma sociedade bem organizada, definida pela justiça, é anterior aos objectivos - comunitaristas, ou outros- que os seus membros possam professar. É este o sentido, simultaneamente moral e epistemológico, em que a justiça é a primeira virtude das instituições sociais. Tendo completado a nossa reconstrução da concepção da pessoa de Rawls, resta-nos aferi-la, bem como a ética deontológica que a sustenta. Já vimos que os pressupostos contidos na posição original são fortes e de largo alcance, em vez de débeis e inócuos, se bem que não pelas razões sugeridas pela objecção empirista. Estes pressupostos não admitem todos os fins; pelo contrário, excluem à partida qualquer: fim cuja adopção, ou prossecução, possa comprometer ou transformar a identidade do eu, rejeitando, em parti-

98 cular, a possibilidade de o bem da comunidade se poder afigurar como uma dimensão constituinte deste tipo. Por isso, ainda que não se possa afirmar que os princípios de Rawls derivam "de uma doutrina que não impõe quaisquer restrições antecipadamente" sobre as concepções do bem, ainda assim, poder-se-á argumentar que as concepções por ele excluídas são de algum modo dispensáveis, sendo possível explicar a justiça e chegar a uma concepção de sociedade bem organizada sem elas. A teoria da justiça de Rawls é precisamente uma tentativa deste tipo. Para a podermos aferir, temos de descer do universo da meta-ética deontológica para uma análise dos princípios de primeira ordem. Nos capítulos que se seguem, argumentarei no sentido de que não só a concepção da pessoa de Rawls não consegue sustentar a sua teoria da justiça, como também não é capaz de explicar, com plausibilidade, as nossas capacidades de agir e de auto-reflexão. A justiça não pode ser primária no sentido exigido pela deontologia, na medida em que não nos podemos perspectivar coerentemente a nós próprios como o tipo de seres que a deontologia ética exige que sejamos.

2

A posse, o mérito e a justiça distributiva

Depois de termos clarificado o estatuto dos pressupostos de motivação de Rawls, podemos agora colocar lado a lado a sua teoria da pessoa e a sua teoria da justiça, a fim de procurar a· conexão entre ambas. Deste modo, poderemos operar dentro do argumento que parte do equilíbrio reflectido, indagando se a teoria da pessoa expressa na posição original corresponde aos princípios da justiça que tem simultaneamente de enformar e de reflectir. Para este propósito, um princípio assume um interesse especial. Trata-se do princípio de diferença, nos termos do qual apenas são permitidas aquelas desigualdades que funcionem em benefício dos membros mais desfavorecidos da sociedade. Veremos neste capítulo que uma defesa adequada do princípio de diferença tem necessariamente que pressupor uma concepção de pessoa que não está ào alcance de pressupostos deontológicos, uma vez que não podemos simultaneamente ser sujeitos para quem a justiça é primária, e sujeitos para quem o princípio de diferença é um princípio de justiça. Um ponto central incidirá sobre o papel do mérito na justiça distributiva, bem como sobre a concepção de posse que exige. Para explorar estes temas, começaremos contrastando as perspectivas de Rawls com várias teorias distributivas alternativas, em particular com a teoria rival, se bem que em alguns aspectos espantosamente semelhante, defendida por Robert Nozick (1974).

Do pensamento libertário ao pensamento igualitário A partir de um ponto de vista político prático, as posições de Rawls e de Nozick opõem-se com clareza. Rawls, o liberal, defensor do Estado de bem-estar, e Nozick, o conservador libertário, definem entre si as alternativas

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mais claras que a agenda política norte-americana tem para oferecer, pelo menos naquilo que à justiça distributiva diz respeito. E, no entanto, a partir de um ponto de vista filosófico, têm muito em comum. Um e outro definem as suas posições em oposiçao explícita ao unluarismo, que ambos rejeitam com o fundamento de este negar a distinção entre pessoas. Alnbos em alternativa, uma ética baseada em direitos, proposta com vista a assegtlrar de forma mais completa a liberdade dos indivíduos. Apesar de a concepção de direitos de Nozick ficar a dever muito a Locke, ambos apelam para o preceito de Kant nos termos do qual cada pessoa deve ser tratada como um fim, e não apenas como meio, e procuram os princípios da justiça que correspondam a esta posição. Ambos negam que exista qualquer entidade social acima ou para além dos indivíduos que a compõem. Conforme Nozick escreve, ecoando Rawls, tanto nos princípios como na retórica, "Os constrangimentos colaterais à acção (isto é, as proibições não qualificadas) reflectem o princípio kantiano fundamental de que os indivíduos são fins e não apenas meios. [... ] Os constrangimentos colaterais exprimem a inviolabilidade de outras pessoas. Mas, por que razão não se poderão violentar os direitos das pessoas com vista a um bem social maior? Cada um de nós, individualmente, escolhe por vezes submeter-se a algum trabalho ou sacrifício com vista seja à obtenção de um benefício, seja a evitar um prejuízo ainda maior. [... ] Porém, não existe qualquer entidade social com um bem privativo que se disponha a suportar algum sacrifício para o seu próprio bem. Apenas as pessoas individuais existem, pessoas individuais diferentes, com as suas próprias vidas individuais. Utilizar uma dessas pessoas para o benefício de outras é usá-la a ela e beneficiar as outras. Nada mais. [... ] Utilizar uma pessoa deste modo não respeita o suficiente, nem leva em consideração o facto de ela ser uma pessoa separada, cuja vida é a única que tem para viver" (1974: 30-33). "Os constrangimentos morais colaterais sobre aquilo que possamos fazer, afirmo, reflectem o facto de termos existências separadas. Reflectem o facto de que a actuação sobre uns não pode ser moralmente equilibrada pela actuação sobre outros. Não há nada que supere o valor moral da vida de uni de nós ao ponto

de justificar que ela lhe possa ser retirada com vista à obtenção de um bem social global maior. Nada justifica que se sacrifique alguns de nós pelos outros" (1974: 33). Os dois filósofos sublinham aquilo que Rawls apelida de "pluralidade e singularidade das pessoas" e aquilo que Nozick apelida de "facto das nossas existências separadas". Este é o facto moral central negado pelo utilitarismo e que é afirmado por uma ética individualista, baseada nos direitos do homem. Sobre este facto moral, bem como sobre a importância dos direitos, Rawls e Nozick estão enfaticamente de acordo. Contudo, Rawls chega a uma teoria da justiça no quadro da qual se aceitam desigualdades económicas e sociais apenas na medida em que beneficiem os mais desfavorecidos, enquanto que, para Nozick, a justiça se situa unicamente nas trocas e nas transferências voluntárias, o que exclui todas e quaisquer políticas redistributivas. Como é que, então, as suas teorias da justiça acabam por divergir de forma tão vincada? Afortunadamente, o ponto em que ambos se separam pode ser localizado com alguma precisão, na medida em que Rawls, ao desenvolver o seu segundo princípio da justiça (aquele que contém o princípio de diferença), apresenta uma linha de raciocínio que parte de uma posição semelhante à de Nozick, mas termina na sua. Rawls considera três princípios possíveis segundo os quais a distribuição dos benefícios sociais e económicos pode ser regulada ou aferida: a liberdade natural (semelhante à "teoria dos direitos" de Nozick), a igualdade liberal (aparentada com uma meritocracia-padrão), e a igualdade democrática (baseada no princípio de diferença). O sistema de liberdade natural define como sendo justa qualquer distribuição que decorra de uma economia de mercado eficiente na qual prevaleça uma igualdade de oportunidades formal (isto é, jurídica), de tal ordem que os postos sociais possam ser ocupados por aqueles que possuírem os talentos relevantes para o efeito. Para Rawls, este princípio é inadequado, na medida em que a organização social que sanciona tende simplesmente a reproduzir a distribuição inicial de talentos e de recursos; aqueles que forem substancialmente mais dotados arrecadarão quinhões maiores, e aqueles que se virem com menores posses obterão resultados também menores. Onde quer que os resultados tiverem a tendência para simplesmente reproduzir a distribuição inicial, apenas poderemos apelidar uma tal circunstância de justa, caso se verifique o pressuposto adicional de a distribuição inicial de talentos ter sido, já ela, justa.

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102 Porém, este pressuposto não pode ser estabelecido como princípio, "Independentemente do período de tempo a que nos reportarmos, a distribuição inicial de talentos e capacidades é fortemente influenciada pelas contingências naturais e sociais"; como tal, não será mente arbitrária. E uma vez que nada há que recomende a justiça das dotações iniciais, implantá-las em nome da justiça equivalerá a incorporar a arbitrariedade da sorte, nada mais. "Intuitivamente, a injustiça mais evidente do sistema de liberuade natural está em que ele permite que a parte que cabe a cada um na distribuição seja influenciada por estes factores, os quais são perfeitamente arbitrários de um ponto de vista moral" [72 (76)]. O princípio de igualdade liberal procura remediar as injustiças da liberdade natural, indo para além da igualdade formal de oportunidades e corrigindo, sempre que possível, as desvantagens sociais e culturais. O objectivo é uma espécie de "meritocracia equitativa" na qual as desigualdades sociais e culturais são mitigadas por iguais oportunidades educativas, certas políticas redistributivas e outras reformas sociais. O ideal do princípio de igualdade liberal prende-se com a oferta a todos de "um mesmo ponto de partida", a fim de que aqueles com talentos e capacidades inatas semelhantes e com uma vontade também semelhante de os exercer possam, então, ter "as mesmas perspectivas de sucesso, sem olhar ao seu lugar inicial no sistema social, isto é, independentemente do rendimento auferido pela classe social em que nasceram. Em todos os sectores da sociedade deve haver aproximadamente as mesmas perspectivas de cultura e de sucesso para todos aqueles que têm motivações e capacidades semelhantes. As expectativas daqueles que têm as mesmas capacidades e aspirações não devem ser afectadas pela classe social a que pertencem" [73 (76)]. Porém, enquanto que a igualdade liberal constitui um progresso em comparação com o sistema de liberdade natural, "intuitivamente, continua a aparecer insatisfatória". Igualdade de oportunidades, mesmo que total, continua a representar um ataque demasiado débil ao carácter arbitrário da sorte. "Ainda que consiga eliminar totalmente a influência das contingências sociais, ela continua a permitir que a distribuição da riqueza e do rendimento seja determinada pela distribuição natural de capacidades e talentos. Dentro dos, limites impostos pelas instituições de enquadramento, a distribuição é decidida

pelos resultados da lotaria natural, resultado esse que é arbitrário do ponto de vista moral. Não há mais razões para admitir que a distribuição do rendimento e da riqueza dependa da distribuição de talentos e qualidades naturais do que para aceitar que ela depende do acaso histórico e social" [73-74 (77)]. A partir do momento em que nos sentimos chocados pelo facto de a repartição inicial de legados naturais determinar as nossas perspectivas de vida em geral, somos levados pela reflexão a sentir-nos tão chocados pela influência das contingências naturais como pela influência das suas congéneres sociais e culturais. "De um ponto de vista moral, umas e outras são igualmente arbitrárias" [75 (78)]. O mesmo raciocínio que nos conduz a preferir uma "meritocracia equitativa" (como no quadro da igualdade liberal) sobre uma igualdade puramente formal de oportunidades (como no paradigma de liberdade natural), conduz-nos naturalmente a procurar aquilo que Rawls apelida de concepção democrática. Torna-se, contudo, claro que a concepção democrática não constitui uma mera extensão do princípio de igualdade de oportunidades. Quanto mais não seja porque seria virtualmente impossível alargar as oportunidades de forma tão completa a ponto de erradicar até mesmo aquelas desigualdades que decorrem exclusivamente de condições sociais e culturais. Por si só, a instituição da família já torna "na prática impossível assegurar iguais possibilidades de sucesso e cultura a todos aqueles que são dotados de modo semelhante" [74 (77)]. Mas até mesmo se a educação compensatória e outras reformas pudessem suprir por completo, ou até mesmo de modo aproximado, as carências sociais e culturais, torna-se difícil, se não mesmo em geral impossível, imaginar que tipo de políticas sociais seriam necessárias para que se pudesse proceder a uma "correcção" comparável das contingências naturais do acaso. Daquilo que necessitamos, portanto, é de uma concepção que anule o efeito destas contingências, ao mesmo tempo que reconhece a sua inevitabilidade. Alguns pensadores, em particular aqueles que se apresentam hostis ao princípio de igualdade democrática, descrevem o passo lógico que se segue como constituindo um salto, do domínio da igualdade de oportunidades para o domínio da igualdade de resultados. Na sua perspectiva, qualquer teoria da justiça que rejeite uma concepção assente sobre o mérito devido ao carácter moralmente arbitrário das consequências que dela decorrem ao nível da distribuição tem necessariamente de se encontrar empenhada numa

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espécie de igualdade de nivelamento, exigindo reajustamentos constantes dos quinhões que são distribuídos, a fim de corrigir as diferenças que possam persistir no que toca a talentos e capacidades naturais (Bell 1973: 441-443). Porém, a igualdade de resultados não é, de modo democrática a um regime de meritocracia, nem é, tão-pouco, o princípio adoptado por Rawls. O princípio de diferença não é sinónimo de igualdade de resultados, nem exige o nivelamento de todas as diferenças entre as pessoas. "Daqui não decorre que se deva eliminar estas distinções [escreve Rawls]. Há outra maneira de lidar com elas" [102 (96)]. E essa maneira proposta por Rawls não aponta para a erradicação de dotes desiguais, mas para o desenvolvimento de um estratagema de distribuição de benefícios e de fardos de tal modo que os menos favorecidos possam beneficiar dos recursos dos mais afortunados. É este o estratagema que o princípio de diferença procura concretizar, definindo como justas apenas aquelas desigualdades sociais e económicas que funcionem para o benefício dos membros menos favorecidos da sociedade. Perspectivado em conjunto com o princípio de livre acesso de todos aos postos de trabalho e às posições, em condições de uma leal igualdade de oportunidades, o princípio de diferença define a concepção de igualdade democrática de Rawls. O princípio de diferença não constitui uma mera versão mais acabada do princípio de igualdade de oportunidades, já que ataca o problema da arbitrariedade de um modo fundamentalmente diferente. Em vez de transformar as condições em que exerço os meus talentos, o princípio de diferença transforma o fundamento moral com base no qual eu reivindico os benefícios que deles decorrem. Deixo de ser considerado o único proprietário dos níeus activos, ou o beneficiário privilegiado das vantagens que me trazem. "O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo no sentido de se encarar a distribuição dos talentos natur~is como um bem comum, e de partilhar os benefícios desta distribuição, qualquer que ela venha a ser" [101 (96)]. Deste modo, o princípio de diferença reconhece o carácter arbitrário da sorte quando afirma que eu não sou exactamente o proprietário, mas apenas o guardião ou o depositário, dos talentos e das capacidades que venham a residir na minha pessoa e, como tal, não possuo qualquer direito moral especial sobreos frutos do seu exercício. "Aqueles a quem a natureza favoreceu, sejam eles quem forem, podem beneficiar da sua sorte apenas em termos que

melhorem a situação dos que não tiverem sido igualmente bafejados. Os que forem favorecidos pela natureza não deverão poder retirar ganhos apenas pelo facto de terem sido mais dotados, mas unicamente para cobrir os despesas envolvidas com o treino e a educação dos demais, bem como para utilizar os seus dons de maneira a melhorar também a sorte dos menos favorecidos. Ninguém merece as suas maiores capacidades naturais, tal como não merece uma melhor posição inicial na sociedade" [10 1-2 (97)]. Ao considerar a distribuição de talentos e de atributos como um bem comum, e não como posses individuais, Rawls evita a necessidade de "nivelar" as aptidões para remediar o carácter arbitrário das contingências sociais e naturais. "Quando os homens concordam em partilhar os destinos uns dos outros", o facto de os seus destinos enquanto indivíduos poderem variar torna-se menos importante. Por isso é que, apesar de o princípio de diferença ter tendência para "corrigir o desequilíbrio das contingências em direcção à igualdade [... ] não exige que a sociedade procure nivelar as desvantagens, como se todos devessem tomar parte da mesma competição numa base equitativa" [100-101(95)]. Rawls reconhece que o princípio de diferença, e em particular a noção de aptidões entendida como "bens comuns", colide com as concepções tradicionais de mérito individual. "Existe uma inclinação natural para objectar que aqueles que estão melhor situados merecem' as vantagens que detêm, quer delas decorram benefícios para outros, ou não" [103 (97)]. A resposta de Rawls é que esta concepção de mérito individual está errada, tal como já é sugerido pelo argumento geral de arbitrariedade. "Parece-me ser um dos pontos assentes dos nossos juízos reflectidos que ninguém merece o lugar que lhe cabe na distribuição de atributos inatos, tal como ninguém merece a posição inicial que ocupa na sociedade" [104 (97)]. A reivindicação de que uma pessoa merece pelo menos aquilo que consegue obter através dos seus esforços é intuitivamente mais plausível, mas até mesmo a vontade de se esforçar com afinco pode ser determinada em larga medida por contingências sociais e naturais. "A afirmação de que um homem merece o carácter superior que lhe permitiu desenvolver os esforços necessários para cultivar as suas capacidades é igualmente problemática, na medida em que o seu carácter depende em larga medida de circunstâncias familiares e sociais favoráveis, relativamente às quais esse homem não pode pretender ter qual-

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106 quer crédito. A noção de mérito não parece poder aplicar-se a casos como este" [104 (97)]. Isto não equivale a negar qualquer papel aos direitos individuais. Certos tipos de direitos são compatíves com o de aqui necessário estabelecer uma distinção entre mérito e expectativas legítimas. Uma vez que é no interesse geral que cultivo e exerço (alguns dos) talentos e dos dons que me foram confiados, em vez de os deixar inactivos, a sociedade está habitualmente organizada de modo a fornecer-me os recursos que me permitam cultivá-los, assim como me incentiva para que os exerça. Tenho, com certeza, direito à minha parte desses benefícios sempre que me encontre habilitado para os receber nos termos especificados. Porém, aquilo que é importante sublinhar é que esse direito se dirige a honrar as expectativas legítimas criadas pelas instituições desenhadas para a materialização dos meus esforços, não correspondendo a um direito primordial ou uma reivindicação de mérito baseada nas qualidades que possuo. "É absolutamente verdade que, dado um sistema de cooperação justo, perspectivado como um quadro de regras públicas, e dadas as expectativas criadas por ele, aqueles que, com o objectivo de melhorarem a sua condição, tiverem feito aquilo que o sistema anuncia que recompensará têm direito a receber essa recompensa. É neste sentido que os mais afortunados têm direito à situação melhor em que se encontram. As exigências constituem expectativas legítimas estabelecidas pelas instituições sociais e a comunidade tem a obrigação de as satisfazer. Porém, esta concepção de mérito pressupõe a existência de um acordo de cooperação, sendo portanto irrelevante para a questão de saber se o acordo inicial se deverá forjar segundo o princípio de diferença ou nos termos de outro critério qualquer" [103-104 (97)].

Ainda que eu tenha um direito aos benefícios que correspondem às minhas expectativas, não os mereço, por duas razões. Em primeiro lugar, em face do pressuposto de activos comuns, eu na realidade não possuo os atributos que estiveram na origem desses benefícios. Ou então, se os possuo, será apenas num sentido débil e acidental, e não no sentido forte e constituinte. Neste contexto, a posse torna-se inadequada para o estabelecimento de mérito no sentido pré-institucional forte. E, em s~gundo lugar, se bem

que, no quadro das regras de cooperação, eu tenha um direito à minha justa parte, não tenho qualquer direito que sejam estas as regras em vigor para que se premeiem estes atributos, e não outras quaisquer. Por estas razões, aquele que tiver sido mais favorecido "não pode dizer que merece e, por isso, tem um direito ao quadro de cooperação no contexto do qual lhe é permitido adquirir benefícios por vias que não contribuem para o bem-estar dos outros. Uma tal reivindicação não tem qualquer fundamento" [104 (97)].

A meritocracia us. o princípio de diferença Antes de passarmos à análise da resposta que Nozick tem para dar a Rawls, e à exploração da sua defesa da liberdade natural, poderá ser útil clarificar ainda alguns aspectos do contraste entre o princípio de diferença (tal como apresentado na concepção de igualdade democrática de Rawls) e a concepção meritocrática (tal como proposta na concepção de igualdade liberal). Talvez a diferença mais notória entre ambas se situe no papel reservado ao mérito individual- central numa concepção meritocrática e ausente, ou pelo menos significativamente debilitado, na justiça como equidade)'. Numa "meritocracia equitativa", isto é, naquela em que apenas a discriminação e os preconceitos de classe não são ultrapassados, aqueles que alcançam posições mais favorecidas ganharam o seu estatuto, merecendo assim os prémios que dele decorrem. São atribuídos quinhões desiguais em reconhecimento de um desempenho superior, não apenas para a satisfação de expectativas legítimas. Tal como explica um defensor da ética da meritocracia, "Uma meritocracia integra aqueles que conquistaram a sua autoridade. [... ] No contexto em que utilizo o conceito, uma meritocracia constitui uma ênfase nos empreendimentos realizados e no estatuto conquistado pelos indivíduos é confirmados pelos seus pares. [... ] Enquanto que todos os homens têm o direito a serem respeitados, nem todos têm direito a serem elogiados.

I Não me reporto às versões de meritocracia que propõem a atribuição de quinhões a serem distribuídos, unicamente com vista à criação de incentivos e à atracção de talentos relevantes, sem qualquer referência ao mérito dos receptores.

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108 A meritocracia, no melhor significado da palavra, é composta por aqueles que merecem ser enaltecidos" (Bell1973: 453-454). Uma segunda diferença, relacionada com a distinção entre vantagens genéticas e vantagens culturais. Para Rawls, esta distinção é virtualmente irrelevante, no que diz respeito à justiça. Já para os pressupostos meritocráticos, ela é crucial. Daí o intenso debate que se desenvolve entre aqueles que se encontram comprometidos com os ideais da meritocracia relativamente ao impacto dos factores genéticos e dos factores culturais na determinação da inteligência e das perspectivas de vida das pessoas, em geral. Na medida em que se entende que a justiça dos dispositivos distributivos depende de "oportunidade equitativa" de todos concorrerem entre si por prémios (em última instância) desiguais em igualdade de circunstâncias, a distinção entre obstáculos genéticos, por um lado, e sociais e culturais, por outro, torna-se central para qualquer avaliação do esquema. Quanto mais o sucesso for identificado como decorrendo de factores hereditários, menos serão as desigualdades que as instituições sociais serão capazes (ou inculIlbidas) de corrigir, e menor será igualmente a esfera disponível para o tipo de esforço individual do que se presume depender o mérito. "Na natureza da meritocracia, tal como tem vindo a ser concebida tradicionalmente, aquilo que é nuclear para a avaliação de uma pessoa é a relação que nela se verifica entre aquilo que ela faz e a inteligência que possui, tal como aferida pelo lugar que ocupa na escala do Quociente de Inteligência. Por isso, a primeira quéstão a ser colocada é a de saber o que é que determina a inteligência. " "Tudo isto torna a questão da relação da inteligência com a herança genética muito melindrosa. A inteligência é sobretudo herdada? Poderá ser desenvolvida através da educação? Como se poderão separar as nossas capacidades e motivações inatas das competências que adquirimos através da educação ? (Bell 1973: 411) Para a justiça como equidade, o debate acerca d