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o s . ulo XXI, o pensamento, confrontado com desconcertantes e inauditos cenários, vê-se instigado a estabelecer conexões capazes de produzir um novo solo para a reflexão filosófica e a criar redes conceituais suficientemente potentes para acolher a complexidade específica à situação atual. Conectando diversos tempos, atravessando diferentes campos do pensamento, configurando novos objetos de investigação, procurando, enfim, ultrapassar os limites do até então pensável, os textos publicados nesta coleção contrapõem à velocidade contemporânea e a seus previsíveis efeitos de desmobilização da reflexão crítica, o ritmo paradoxalmente denso e leve de um pensamento que, afeito à criação, identifica fal sos problemas, questões mal colocadas, e aposta na perda de parâmetros como um verdadeiro convite à alegria de sua própria reinvenção.
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ÜS ABISMOS DA SUSPEITA Nietzsche e o perspectivismo
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cone)(ões CoNEXôE.5 é uma coleção dirigida por Maria Cristina Franco Ferraz e apresenta as seguintes publicações:
A DÚVIDA ■ Vilém Flusser ANTONIN ARTAUD- O artesão do corpo sem órgãos ■ Daniel Uns PLATÃO - As artimanhas do fingimento ■ Maria Cristina Franco Ferraz
N05.50 SÉCULO XXI - Notas sobre arte, técnica e poderes ■ /anice Caia/a DIFERENÇA E NEGAÇÃO NA POE.51A DE FERNANDO PESSOA ■ José Gil PARA UMA POÚTICA DA AMIZADE-Arendt, Derrida, Foucault ■ Frandsco Ortega ENTRE CUIDADO ESABER DE SI - Sobre Foucault e a psicanálise ■ Joel Birman ALEGRIA: A FORÇA MAIOR ■ Clément Rosset CREPÚSCULO DOS IDOLOS - Ou como filosofar com o martelo ■ Friedrich
Nietzsche VERTIGENS PÓS-MODERNAS - Configurações institucionais contemporâneas ■ Luís Carlos Fridman NIETZSCHE - Metafísica e niilismo ■ Martin Heidegger ■
Jacques Derrida Tm TEMPOS SOBRE AHISTÓRIA DA LOUCURA ■ Jacques Derrida e Michel Foucault MAL DE ARQUIVO - Urna impressão freudiana
No CIRCULO clNICO - Ou por que negar a psicanálise aos canalhas ■
Ricardo David Goldenberg FILOSOFIA DA CAIXA PRETA - Ensaios para urna futura filosofia da fotografia ■ Vilém Flusser NovE VARIAÇÕES SOBRE TEMAS NIETZSCHIANOS ■ Maria Cristina Franco Fe"az Ü HOMEM PÓS-ORGÂNICO - Corpo, subjetividade e tecnologias digitais ■
Paula Sibilia ÜS ABISMOS DA SUSPEITA - Nietzsche e o pcrspectivismo ■ Sifoia Pimenta
Velloso Rocha A EXPERIÊNCIA DO FORA - Blanchot, Foucault e Delcuzc ■ Tatiana Safem
Levy SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPE.5TIVA - Da utilidade e dcs\lantagrm da história para a vida ■ Friedric/1 Nietzsche
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Sílvia Pimenta Velloso Rocha
ÜS ABISMOS DA SUSPEITA Nietzsche e o perspectivismo
SBD-FFLCH-USP
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RELUME
~
DUMARÁ
Rio de Janeiro 2003
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© Copyright 2003, Silvia Pimenta Velloso Rocha Direitos cedidos para esta edição à DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LIDA .
Travessa Juraci, 37 - Penha Circular 21020-220 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2564 6869 - Fax: (21) 2590 0135 E-mail: [email protected]
Revisão Antônio Custódio Editoração Dilmo Milheiros
Capa Simone Villas-Boas
A publicação deste livro foi possível graças áo apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ.
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. R576a
Rocha, Silvia Pimenta Velloso Os abismos da suspeita : Nietzsche e o perspectivismo / Silvia Pimenta Velloso Rocha. - Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2003 - (Conexões; 18) ISBN 85-73161 332-1 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Teoria do conhecimento. 3. Perspectivismo. I. Título. II. Série.
03-1669
coo 193 CDU 1(43)
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n" 5.988.
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Para Sofia
DEDALUS - Acervo - FFLCH
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Este livro é resultado de uma pesquisa realizada no programa de Doutorado em Filosofia da PUC-RJ. Gostaria de agradecer à minha orientadora, Professora Katia Muricy por seu apoio em todas as etapas deste percurso, e ao Professor Clément Rosset - que orientou parte da pesquisa realizada na Universidade de Nice, pela generosidade de seus conselhos e pela gentileza de seu incentivo. Agradeço ainda ao CNPq por ter me concedido a bolsa de estudos que possibilitou a realização desta pesquisa, e ao Centro Universitário da Cidade (UniverÇidade) que, uma vez encerrada minha bolsa de estudos, concedeu-me apoio financeiro decisivo para a conclusão deste trabalho. Finalmente, agradeço à FAPERJ o auxílio financeiro necessário para a publicação.
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--------conexões- - - - - - - SUMÁRIO
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 CAPÍTULO 1 -
Perspectivismo e ontologia .............. 29
O perspectivismo como doutrina da imanência .... Uma ontologia negativa ........................ A metafísica trágica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A crítica à metafísica: A negação do "mundo verdadeiro" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O mundo como caos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O mundo como puro devir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O mundo como pura aparência .................. A vontade de potência ou o mundo "visto de dentro'' . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A ausência de finalidade, eternamente retornando .. Ainda uma ontologia negativa .................. CAPÍTULO
29 43 45 47 51 56 58 60 68 76
2 - Perspectivismo e verdade . . . . . . . . . . . . . . . 83
O perspectivismo do conhecimento . . . . . . . . . . . . . . 83 O conhecimento como erro - as interpretações tradicionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 O conhecimento como falsificação do devir . . . . . . . . 97
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10
O prrsprctivismo do sujeito .. . ......... .......... 107 A rrr rrscnlílç,10 impossível .................... J 15 O rerspectivismo como negação da verdade . . .... 117 O conhecimento como criação .................. 125 CAPITULO
3 - Perspectivismo e ceticismo ............. 133
Quem é ·o interlocutor cético de Nietzsche ........ 135 Caracterização do ceticismo fenomenista ......... 136 As críticas de Nietzsche ao ceticismo ............. 141 Sobre a dúvida e a suspeita ................ ..... 145 CAPtruto 4 - Perspectivismo e filosofia crítica ......... 153 Afinidades entre o perspectivismo e a filosofia crítica ....................................... 153 Nietzsche contra Kant ......................... 155 A revolução da revolução copernicana ........... 158 O erro fundamental ........................... 162 Conclusão ...................................... 169 Lista de abreviatura dos livros de Nietzsche ...... . .. 175 Bibliografia ................................. .. .. 177
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O filósofo tem hoje o dever da desconfiança,
do olhar oblíquo e malicioso a partir de todos os abismos da suspeita. Além do Bem e do Mal
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--------cone)(ões-------IN1RODUÇÃO
Todo intérprete de Nietzsche se depara, mais cedo ou mais · tarde, com o problema de conciliar a dimensão crítica desta filosofia com sua dimensão positiva. Esta questão pode ser formulada de um modo mais preciso: como conciliar o perspectivismo de Nietzsche com sua concepção do mundo? Com efeito, ao afirmar o caráter relativo, interpretativo e antropomórfico de todo conhecimento, o perspectivismo implica necessariamente o abandono de toda hipótese de um conhecimento efetivo - ou seja, extra-perspectivo - do mundo. Como afirma um aforismo de Gaia Ciência, "só podemos ver com nossos olhos": é inútil pretender saber o que há para além .das perspectivas porque esta investigação, por sua vez, teria lugar no interior de uma perspectiva.1 Ao longo de sua obra, entretanto, Nietzsche parece incessantemente transgredir esse princípio de agnosticismo na medida em que se pronuncia sobre a "essência" do mundo e formula o que poderíamos denominar, ainda.que provisoriamente, uma ontologia 2• Essa dimensão ontológica terá sua expressão mais acabada no conceito de vontade de potência, mas mesmo se este conceito é relativamente tardio e se ele é desenyolvido sobretudo nos escritos pós-
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t umos, ,1 qucstJo se coloca porn a totalidade de Hua obr, 1 tl'm,1tiz,1dn a partir de noções como mundo, vida e naturl'Z,1.
A solução trndicionnlmcntc adotada pelos comentadorl's consiste cm privilegiar um dos pólos cm detrimento do outro, dividindo-se as interpretações entre aquelas que defendem que a filosofia de Nietzsche é uma ontologia e aquelas que lhe recusam esse estatuto. No primeiro caso, situase por exemplo a interpretação de Eugen Fink, que atribui à ontologia nietzschiana uma origem intuitiva. Segundo o autor, n crítica de Nietzsche se restringe ao conhecimento conceituai; a intuição, na medida em que dispensa a mediação falsificadora das categorias, permitiria um acesso direto ao mundo e a descoberta da vontade de potência como sua "verdadeira essência": Freqüentemente censura-se a Nietzsche por mover-se em um círculo vicioso, uma vez que por um lado ele funda o conhecimento sobre o instinto de falsificação e que, por outro, ele próprio apresenta uma nova filosofia, logo um novo conhecimento (... ) Essa objeção não procede, pois o conhecimento do devir que conduz à recusa crítica de todo conhecimento por categorias, que falsifica o devir, não deriva absolutamente das categorias que são criticadas. 3
Essa interpretação, entretanto, tem dois inconvenientes: o primeiro é que a hipótese de um conhecimento intuitivo do mundo se limita às obras de juventude, tendo sido posteriormente abandonada por Nietzsche - como veremos adiante. Em segundo lugar, uma tal interpretação implica em última instância a refutação do próprio perspectivismo, pois pretender alcançar a "verdade" do mundo, ainda que por meios não conceituais, significa a admitir a existência de uma perspectiva absoluta e incondicionada para a qual esta verdade seriíl dada.
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ÜS ,\ IIL IC IJA SUSl'lllT A
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No outro pólo se encontram as interpretações que privilegiam a dimensão perspectivista da filosofia nictzschiana, negando-lhe toda pretensão ontológica. É o caso da análise de Sarah Kofman, segundo a qual a vontade de potência é um princípio de interpretação cujo valor é estritamente opc· ratório: [A vontade de potência] não é uma verdade ontológica apreendida por intuição, nem mesmo o resultado de uma dedução ou de uma indução. Ela é uma hipótese a-hipotética postulada em nome da exigência da economia do método, princípio aceito pela tradição filosófica que, reavaliado genealogicamente, significa que é preciso levar uma perspectiva às suas últimas conseqüências para ver até o~de ela pode conduzir.4
Este segundo tipo de interpretação, embora mais condizente com o espírito essencialmente anti-dogmático da filosofia de Nietzsche, parece por sua vez conduzir a um relativismo, pois se esta não é n~da além de urna perspectiva dentre outras, revela-se impotente para reivindicar sua legitimidade, e com mais razão ainda, incapaz de pretender uma refutação das demais. Além disso, tal interpretação só é possível ao preço de ignorar a dimensão trágica dessa filosofia, que reside precisamente em sua concepção da existência: esvaziado desta concepção, o pensamento nietzschiano seria válido unicamente corno urna estratégia de crítica da metafísica. Para tornar as coisas ainda mais complexas, é preciso observar que ambos os aspectos são não apenas excludentes como encontram-se em uma relação de circularidade, pois .se é verdade que a ontologia nietzschiana só existe como uma perspectiva, o perspectivismo por sua vez pressupõe uma ontologia. Esta circularidade foi assim formulada por George Stack:
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S1LVIA P1McmA
Vcu.oso R
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Em última inst,,ncia, a tcori,, pcrspcctivlstn do conhecimento de Nietzsche depende de sua ndmissJo hipotética da natureza plurillist,1 da "realidade", e sua conccpç.,o da re;llidade fundamental é uma tentativa frustrndn de transcender o ponto de vista rdativistn de suil teoria da interpretação perspectivista. Ele recai, finalmente, cm uma clrcularidilde: o princípio hipotético e metafísico dn vontildc de potênciil é ele mesmo umil interpretilçào pcrspectivista da "realidade", e serve como fundilmcnto pilra il teoria perspectivista do conhecimento. 5 A filosofia nietzshiana parece assim oscilar entre o
dogmatismo e a contradição: ou bem Nietzsche "sabe" a priori o que é o mundo - o que lhe permitiria deduzir o caráter perspectivista do conhecimento mas levanta o problema do estatuto aparentemente dogmático de um tal saber - ou bem ele começa por afirmar o perspectivismo do conhecimento, o que o impediria precisamente de reclamar um tal saber sobre o mundo. Parece portanto impossível conciliar a ontologia de Nietzsche com seu perspectivismo: ou bem se coloca a "ontologia" de Nietzsche à margem do perspectivismo, assegurando assim a dimensão positiva de sua filosofia, ou bem se recusa a esta filosofia toda pretensão ontológica a fim de colocá-la como uma perspectiva. No primeiro caso, o esforço de encontrar um fundamento conduz inevitavelmente o perspectivismo à sua auto-refutação. No segundo, o pensamento nietzschiano par~ce condenado a ser nada mais do que uma crítica, privada de toda positividade. A questão, no entanto, está mal formulada, e resulta de uma falsa premissa que caracteriza a quase totalidade das interpretações: a de tomar o perspcctivismo como um fenomenismo ou uma teoria do conhecimento, que supõe de um lado a ordem das construções perspectivas, e de outro, uma instância extra-perspectivista que seria objeto de nossas in-
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terpretações - caso em que seria preciso manter uma psição agnó~tica e suspender o juízo sobre aquilo que há "para além" de nossas perspectivas. Ora, como veremos, o perspectivismo é uma doutrina da imanência que recusa explicitamente a possibilidade de se distinguir estas duas instâncias e de conceber um tal "para além". De fato, embora a tradição dos comentadores tenha consagrado o termo perspectivismo para designar a "teoria" nietzschiana do conhecimento, isso constitui uma contradição em termos, uma vez que Nietzsche destitui o conhecimento de todo valor de verdade e recusa à razão até mesmo a capacidade de fazer sua própria crítica. A interpretação que iremos apresentar aqui é a de que o perspectivismo constitui uma doutrina da imanência, que recusa a hipótese de toda instância transcendente ou subjacente ao mundo. Ele não consiste na doutrina epistemológica segundo a qual o conhecimento varia de acordo com o ponto de vista, mas na doutrina ontológica de que não há um ponto de vista exterior ao mundo - ou seja, um mundo do Ser, de substâncias e essências, de identidade e permanência. Uma tal concepção não acarreta apenas a impossibilidade de conhecermos a verdade, mas a inexistência da verdade no sentido .ontológico do termo, ou seja, de uma constituição inerente ao mundo da qual o conhecimento seria a representação mais ou menos exata. Como sabemos desde os escolásticos, essa verdade ontológica é a condição de toda verdade gno. siológica, pois para que o conhecimento seja possível é preciso que o Ser seja inteligível. É precisamente uma tal condição que se encontra aqui recusada: o mundo, segundo Nietzsche, é uma diversidade caótica em constante fluxo, um processo destituído de finalidade, uma multiplicidade de forças sem qualquer unidade, um puro devir que jamais atingirá um estado de ser. Essa concepção retoma uma tradição tanto heracliteana quanto pirrônica 6, que ded.uz a
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im1 :"ibililfo il' do conhl'Ciml'nto n.'\o do limite da razJo hum.,n.,, mas d., natureza ml' ma do que existe: o mundo njo conhl'C'~ nl'nhuma medida suscetível de ser aprccndifo I ,10 int~ll~to humano, nenhuma estabilidade capaz de ~ · nstituir em objeto para a razão. Desse ponto de vista, a impo~,ibilidade de conhecer não resulta dos limites da raj , mas da natureza mesma do que existe: não existe nada qu~ poss.., ser conhecido. Por outro lado, ao negar a existência de um ponto de \'ista exterior ao mundo, o perspectivismo nega simultaneamente a existência de uma instância metafísica - tal como a r.12Zlo, o sujeito ou a consciência - que poderia transcender o numdo e tomá-lo como objeto. Assim, falta ao conhecimento tanto aquilo que poderia ser seu objeto quanto aquele que poderia ser seu sujeito. Considerar o perspectivismo como uma doutrina da imanência levanta um problema que procuraremos analisar: o do estatuto paradoxal de uma tal doutrina, pois o discurso que nega a existência da verdade deve por sua vez renunciar a toda pretensão de verdade. Em compensação, essa interpretação nos possibilita esclarecer alguns aspectos da filosofia nietzschiana que de outro modo permanecem obscuros: em primeiro lugar, ela nos permite resolver a aparente contradição entre o aspecto crítico de sua filosofia e seu aspecto positivo, como veremos no Capítulo 1. Com efeito, se o perspectivismo fosse uma doutrina sobre o conhecimento, o agnosticismo seria a única atitude possível e toda a filosofia nietzschiana seria uma contínua transgressão à sua própria doutrina. Mas Nietzsche não começa por estabelecer a natureza perspectivista do conhecimento para em seguida formular uma "ontologia", mas ao contrário: é precisamente seu saber sobre o mundo que lhe permite estabelecer o caráter perspectiva do conhecimento. É porque não há um mundo do Ser que
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todo conhecimento se re~ela condicionado, relativo e antropomórfico. Em segundo lugar, como veremos ao longo do Capítulo 2, ela esclarece como Nietzsche pode sustentar a concepção do conhecimento como erro. Com efeito, esta concepção jamais poderia ser deduzida no âmbito de uma crítica da razão, pois isto exigiria atribuir-lhe a legitimidade mesma que se pretende contestar. Mas se o conhecimento é falsificação é porque instaura a ilusão de identidade e permanência em um mundo que só conhece a mudança e o devir. Uma tal interpretação nos permite ainda compreender de que modo a concepção do caráter antropomórfico do conhecimento convive com a recusa de todo antropocentrismo: pois se todo conhecimento consiste em uma atribuição de sentido, todo sentido é uma falsificação do mundo porque o mundo é "em si" desprovido de sentido. Em terceiro lugar, ela nos permite compreender por que motivo, embora denunciando o caráter ilusório do conheci-. mento, o perspectivismo não é um ceticismo. Como veremos no Capítulo 3, ele nos conduz não à conclusão de que não podemos conhecer a verdade, mas à conclusão, muito mais radical, de que não há verdade. No primeiro caso, a hipótese de um mundo verdadeiro é inverificável, mas não fica afastada; no segundo, ela é efetivamente recusada. Finalmente, esta interpretação nos permite traçar a singularidade da posição de Nietzsche com relação à filosofia kantiana, como procuraremos demonstrar no Capítulo 4. Com efeito, como apontam inúmeros comentadores, ao afirmar que o conhecimento constitui um mundo que diz respeito ao homem, o perspectivismo de Nietzsche parece apenas rebatizar os conceitos de fenômeno e coisa em si.7 Mas dizer que o mundo é destituído de Ser significa justamente dizer que ele não constitui um "em si", isto é, que ele não pode funcionar como fundamento para as perspectivas. Em
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outras palavras, a filosofin de Nietzsche afirma não apenas que n~o se pode conhecer o mundo, mas que o mundo é nlguma coisa q11t' 11ão St' podt• co11lteca. Estas afirmações aparentemente semelhantes divergem entretanto em um ponto fundnmental: n primeira, característica da filosofia crítica, se restringe n npontar os limites do conhecimento, mas silencia sobre a "essência" do mundo; a segunda enuncia sobre ela alguma coisa: seu caráter caótico, isto é, desprovido de forma, sentido e ordenação. Deste ponto de vista, o caráter impt'11sávl'I está inscrito no próprio mundo, e ni\o nos limites da razão humana.
. Antes de iniciarmos nossa análise é preciso fazer algumas observações de c.iráter metodológico. Muito já se escreveu sobre o estilo fragmentnrio da escritura nietzschiana: que ele exprime por si só J natureza anti-racionalista de sua filosofia, que é decorrência de uma doença de olhos que o impedia de trabalhar por muito tempo seguido, que ele não é tão fragmentário quanto parece à primeira vista e até mesmo que constitui um "sistema em aforismos". Aliás, como bem observou um comentador, tornou-se um lugar comum iniciar um livro sobre Nietzsche com considerações sobre seu estilo. 8 Se este livro não constitui uma exceção i\ regra, é porque a forma pela qual se compreende a questão do estilo em um pensamento como o de Nietzsche tem importantes implicações metodológicas, determinnndo critérios de análise e incidindo sobre o conteúdo da interpretação. Em primeiro lugar, é importante considerarmos em que medida o caráter assistemático da obra de Nietzsche é uma decorrência necessária de sua filosofia - e mais especificamente, de seu perspectivismo, articulando-se com sua críti-
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e., d., verd.,dl', do sujeito e d,, r,,z,\o. Em seguida, ~ preciso considl'r.u se porvt.'ntur,l cst,, mesma natureza implica um l'l ntt'ii io fr,1gment,\rio, ou srja, a ausência de unidade, rigor e roer~ncia, o qul' conduziria em tíltima instância à imposjbililfade de est,1bele(er um,1 interpretação sistemática. Fin,1lmente, é preciso consider,u em que medida esse estilo se reflete no , oc,1bul,\rio e na terminologia nietzschianas, criando exigências próprias de interpretação. A escrita fragmentária se articula em primeiro lugar com a crítica nietzschiana da verdade. A "vontade de sistema" é indissociá, el da vontade de uma verdade que se deixasse apreender em um sistema. Quem supõe o sistema como a forma por excelência do pensamento filosófico, supõe necessariamente uma realidade ordenada e constituída segundo as normas da lógica e da racionalidade humana. Este estilo articula-se em seguida à crítica do sujeito. A unidade do eu é a ficção de um ser imune ao ~ovimento do devir, a ilusão de uma substância que permanece inalterada por trás da flutuação dos afetos e da variação de perspectivas. Uma vez que um mesmo sujeito é atravessado por diferentes perspectivas, aquele que pretende constituir um sistema precisa rejeitar tudo aquilo que, num dado momento, contradiz esta unidade ilusória: Há uma comédia dos sistemáticos: por querer preencher seu sistema e englobar o horizonte que o envolve, eles tentam de todo modo apresentar seus pontos fracos no mesmo estilo que seus pontos fortes - eles querem se mostrar como naturezas acabadas, de uma força monolítica.9
Do mesmo modo que cada perspectiva proporciona uma diferente apreensão do mundo, cada estilo se revela mais adequado para expressar uma determinada idéia. A variedade de estilos corresponde assim a uma variedade de perspectivas:
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Comunicar por meio de signos um estado de espírito, uma tensão interna de sentimentos - eis o que é o estilo. A multiplicidade de estados interiores sendo em mim extraordinária, disponho de um grande número de estilos possíveis e possuo a arte do estilo mais variada do que jamais possuiu outro homem.10
A escrita fragmentária reflete ainda o caráter autônomo ou instintivo do pensamento. O pensamento não vem quando eu quero, mas quando ele quer, 11 e por isso exige uma redação capaz de captá-lo em sua aparição efêmera. É o que ilustra, por exemplo, esta passagem de Gaia Ciência: Os livros e sua redação diferem conforme o pensadores: um reuniu imediatamente na sua obra toda a claridade que soube furtar ao fulgor de um conhecimento repentino; o outro dá apenas as sombras (... ) do que foi edificado, de véspera, na sua alma. 12
Finalmente, a opção estilística de Nietzsche reflete sua concepção ontológica de um mundo destituído de fundamento. Se o que existe é dotado das características do Ser - isto é, unidade, identidade, permanência - a escrita sistemática é efetivamente a forma mais adequada para expressar a realidade. Se ao contrário o que existe é da ordem de um puro devir, uma multiplicidade caótica em constante mutação, a escrita fragmentária, por seu caráter descontínuo e aberto a múltiplas interpretações, será a mais coerente. É o que ilustra exemplarmente o seguinte fragmento póstumo: Existem cabeças sistemáticas que consideram tanto mais verdadeiro um complexo de idéias quanto mais ele se deixa inscrever em esquemas e tábuas de categorias previamente traçados. (... ) O preconceito fundamental é, porém,
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o de que a ordem, a clareza, o caráter sistemático são necessariamente inerentes ao verdadeiro ser das coisas, e, inversamente, a desordem, o caótico, o imponderável só se manifestam em um mundo falso ou imperfeitamente conhecido( ... ) Mas é totalmente impossível demonstrar que o "em si" das coisas se comporte em harmonia com esta receita de um burocrata modelo. 13
Paralelamente às dificuldades que resultam do caráter assistemático de sua obra, um dos problemas formais que se colocam para o leitor de Nietzsche diz respeito às imprecisões e flutuações de seu vocabulário, o que significa que um mesmo termo pode apresentar uma pluralidade de sentidos distintos e mesmo contraditórios. Tais "contradições" não refletem uma transformação conceituai e nem sempre podem ser interpretadas como refletindo diferentes momentos da trajetória nietzschiana, pois encontram-se freqüentemente justapostas em um mesmo livro ou até em uma mesma frase. Elas se devem a um recurso estilístico abundantemente utilizado por Nietzsche, que joga deliberadamente com a ambigüidade da linguagem, utilizando uma mesma palavra ora em uma acepção crítica, ora com um sentido positivo. Como veremos, tal recurso é um procedimento retórico para levar o discurso metafísico à sua derrisão, refletindo assim o caráter inteiramente imanente _de sua própria filosofia. O termo verdade é, talvez mais do que qualquer outro, marcado por esta polissemia. Não poderíamos nem mesmo empreender uma "filologia das aspas",14 pois tampouco sob este aspecto o procedimento de Nietzsche é sistemático: a utilização das aspas sugere apenas um distanciamento com relação à tradição, mas não determina de que tipo de distância se trata: às vezes, indica uma recusa de seu sentido metafísico - caso em que o termo ganha um valor negativo
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S1LVIA P1Mt NTA
Vou.a,o RoctlA
- mns, outras vczrs, indica umn apropriação singular do termo, que ndquirc nssim um valor positivo. Esta pluralidade de sentidos é nindn favorecida pela eventual identificaçjo entre os termos r t•rdadt• e co11/1t•cimento, que a rigor não se recobrem. Esta questão será ~nnlisada em maior detalhe no Capílulo 2, mas é preciso desde já apontar uma ambigüidade fundamental que a_trnvessa o termo: trata-se da distinção jamais explicitada por Nietzsche e que parece ter sido desconsiderada por seus intérpretes - entre o conceito de verdade tomado em uma acepção ontológica e o mesmo conceito tomado em uma acepção epistemológica ou gnosiológica. Embora o primeiro seja condição necessária do segundo, eles não se identificam nem se recobrem: uma coisa é dizer que não podemos conhecer a verdade - formulação estritamente epistemológica que se inscreve no contexto de uma crítica do conhecimento. Outra coisa é dizer que não há verdade, significando que o mundo não apresenta a inteligibilidade necessária para tornar-se objeto do conhecimento humano. É neste segundo sentido que procuraremos inscrever a crítica nietzschiana da verdade. A indistinção entre as esferas ontológica e epistemológica gera uma ambig~iidade que se reflete em outros conceitos. Assim, o termo aparência aplica-se tanto à esfera do conhecimento (na medida em que as perspectivas são meras ficções, destituídas de toda objetividade) quanto à esfera da existência, em que apresenta ainda dois sentidos diferentes e rigorosamente opostos: designando ora o mundo real (aparente porque desprovido de essência), ora o mundo ideal (aparente porque inexistente). O mesmo ocorre com o adjetivo falso, que designa ora o mundo do Ser (falso porque inexistente), ora o mundo do devir ("falso" porque destituído de Ser). Uma análise desse tipo poderia ser feita com relação a
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inúmeros termos utilizados por Nietzsche, tais como os de necessidade, acaso, sentido e valor. Evidentemente, não se trata aqui de fazer um levantamento exaustivo de tais acepções. Em virtude do recurso tipicamente nietzschiano de jogar com as múltiplas significações de uma mesma palavra, um "vocabulário" ou Lexikon nietzschiano, a exemplo do que se faz habitualmente com os grandes pensadores, seria um empreendimento praticamente impossível. Trata-se simplesmente de reconhecer que uma oposição terminológica não implica uma oposição conceituai. Se levarmos em conta esta pluralidade de sentidos, grande ·parte das "afirmações contraditórias" presentes na obra de Nietzs. che se dissolve.
Portanto, o caráter assistemático dessa reflexão não impede que ela apresente uma rigorosa coerência e mesmo uma surpreendente constância. Como observa Karl Lõwith, "quem tiver aprendido a ler Nietzsche de modo sistemático já não se ~urpreenderá com a infinita riqueza de suas mudanças de perspectiva, mas antes com a constância, e mesmo a monotonia de seu problema filosófico" .15 Segundo a avaliação do próprio Nietzsche, sua obra não constitui "uma centena de paradoxos heterodoxos lançados de qualquer maneira", mas reflete "a longa lógica de uma sensibilidade filosófica particular" .16 É nesse sentido que devemos entender a advertência que Nietzsche lança contra os míopes, que serve de título a um aforismo de Humano, Demasiado Humano: "Vocês imaginam lidar com uma obra fragmentária porque ela.lhes é apresentada (e só pode ser apresentada) em fragmentos?" 17 Nesse sentido, discordo de uma interpretação bastante difundida que vê na filosofia de Nietzsche uma espécie de
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reflexão caleidoscópic,1, que apresenta imagens diferentes e contraditórias sem no entanto jamais fixar alguma. Este ponto de vista pode ser ilustrado pela posiçfio de Jacques Derrida, segundo a qual é impossível estabelecer uma interpretação unívoca e portanto "verdadeirn" da filosofin de Nietzsche, cujo sentido deve permanecer indecidívcl. 18 Nessa hipótese, o pensamento nietzschiano seria eficaz como um instrumento de crítica à metafísica e ao rncionalismo, mas seria ele mesmo destituído de qualquer positividade. Esta visão costuma acompanhar uma interpretação igualmente ingênua do perspectivismo, que seria uma espécie de relativismo segundo o qual ''a verdade varia de acordo com o ponto de vista". Sem dúvida, o caráter aberto da escrita nietzschiana permite uma multiplicidade de interpretações, mas isto não significa que ela se preste a qualquer interpretação ou que se deva renunciar à possibilidade de uma dada interpretação reivindicar sua legitimidade sobre as demais. Esta constância se reflete entre outras coisas pela insistência com que a questão do conhecimento é tematizada, e pela coerência com que é abordada. Embora a formulação do perspectivismo seja relativamente tardia - o termo aparece pela primeira vez em Gaia Ciência - a concepção da impossibilidade do conhecimento está presente desde as primeiras obras. Desde O Nascimento da Tragédia até os últimos fragmentos póstumos, a concepção nietzschiana do conhecimento permanece em suas linhas gerais inalterada e poderia ser assim sintetizada: a razão humana é incapaz de conhecer o mundo porque não dispõe de tim ponto de vista transcendente realizar essa observação. O fato de que "o mundo" seja concebido como essência dionisíaca nas obras de juventude e que posteriormente seja concebido como pura aparência não altera esta concepção básica. Assim, lemos em A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos -
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27 um texto de primeira juventude: "É absolutamente impossível ao sujeito pretender ver ou conhecer algo para além de si mesmo, tão impossível que o conhecimento e o ser são as duas esferas que mais se opõem" .19 Um fragmento póstumo de 1887 - penúltimo ano de sua produção filosófica retoma rigorosamente a mesma idéia, apenas substituindo o termo ser pelo termo devir: "O conhecimento e o devir excluem-se mutuamente".2º A despeito da distância cronológica e da aparente oposição terminológica que separa as duas afirmações, não se pode deixar de reconhecer aí duas formulações de uma mesma idéia. Nesse sentido, a divisão da obra de Nietzsche em três "fases", tal como proposta por Eugen Fink e que se tornou de certo modo canônica, não me pareceu suficientemente relevante ou significativa para justificar uma análise cronológica, motivo pelo qual optei por uma abordagem temática. Pelo mesmo motivo, permiti-me freqüentemente recorrer a citações de diferentes períodos para ilustrar uma questão ou fundamentar um mesmo ponto de vista - tomando o cuidado no entanto de, sempre que necessário, situar o contexto no qual se situa a passagem em questão para esclarecer o sentido e o valor de um dado termo. Quanto à questão da legitimidade relativa aos escritos póstumos, optei por utilizá-los na medida em que retomam ou explicitam concepções que também estejam presentes na obra publicada. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. GC, § 374 2. A natureza muito particular dessa ontologia e a acepção bastante específica que atribuímos a esse termo serão precisadas no Capítulo 1. 3. FINK, Eugen. La Phi/osophie de Nietzsche. pp 210-211. 4. KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la Métapl1ore, pp 135-136 5. ST ACK, George. p. 240
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6. Pirrônica e não cética, pois como mostrou Marcel Conche, é precisamente ao deduzir a impossibilidade de conhecer da inexistência de um objeto a co_nhecer que o pirronismo se distingue do "fenomenismo" que caracteriza a maior parte das correntes céticas. CONCHE, 1994. 7. MARÇ)UES, pp. 49-50 8. NEHAMAS, p. 15 9. A,§ 318 10. "Por que escrevo livros tão bons", § 4. Nesse sentido, como aponta Arthur Danto, a pluralidade de estilos já é em si mesma uma expressão do perspectivismo. DANTO, Nietzsche as Philosopher. 11. Cf. BM, § 17 12. GC, § 90. Cf. também GC, § 298: "Apanhei essa idéia no ar, e com receio que me fuja, fixei-a com as primeiras palavras que me ocorreram." 13. VP I, I, § 166 (1885-1886) 14. A expressão é de MÜLLER-LAUTER, em A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. 15. LÔWITH, Karl - p. 32 16. Correspondance, III, p. 281. Citado_por Karl LÔWITH, p. 27 17. HDH, vol. II§ 128 18. DERRIDA, Jacques. 1978 19. FIT, p. 71 20. VP, I, I, § 138
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Capítulo 1 PERSPECTIVISMO E ONTOLOGIA
Ü PERSPECTIVISMO COMO DOUTRINA DA IMANtNÇIA
O termo perspectiva, oriundo do vocabulário da arquitetura e das artes plásticas, tem uma inequívoca conotação espacial e visual, como evidenciam as diversas passagens em que Nietzsche estabelece uma analogia entre o conhecimento e a visão. Esta analogia tem antecedentes tão célebres quanto a alegoria da caverna de Platão e a abertur~ da Metafisica de Aristóteles; mas lá onde a tradição sublinha o caráter intelectual da visão, Nietzsche privilegia ao contrário seu caráter espacial e determinado. De fato, tanto uma quanto o outro supõem um ponto de vista, criam um campo de visão que exclui o próprio ponto que o torna possí, vel, exigem um órgão ou instrumento responsável por esta atividade e têm lugar no tempo e no espaço. Em outras palavras, tanto um quanto o outro ocultam na mesma medida em que revelam, ou antes só revelam porque alguma coisa permanece oculta: precisamente, aquilo que os torna possíveis. A noção de perspectiva sugere inicialmente a idéia de relação, ou mais precisamente, de relatividade: um campo de visão só aparece como tal relativamente a um sujeito ou, se quisermos abstrair as implicações metafísicas do ter-
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mo, a algo ou alguém que olha. Conhecer é "por-se em relação a alguma coisa" 1, e um conhecimento absoluto é não somente um ideal inatingível na prática como uma contradição em termos. A noção de perspectiva sugere ainda um recorte ou uma delimitação no campo do saber, em oposição a um conhecimento global ou ilimitado, pois ao ocupar uma determinada posição, o observador está por definição excluído das demais. Sem dúvida, um mesmo observador pode ocupar sucessivamente diferentes posições e ter diversas apreensões do mesmo objeto, mas esta operação tem lugar no tempo, o que por si só exclui toda pretensão de síntese e totalização. Além disso, por mais abrangente que uma perspectiva possa ser, há pelo menos um ponto que por definição dela está excluído: o próprio ponto de vista que a torna possível, o lugar do sujeito - aquele para quem, precisamente, o que se dá se dá em perspectiva. A situação do homem com relação ao mundo é assim análoga à do olho com relação ao campo de visão: para que se possa ver, é preciso que algo permaneça fora do campo de visão. Como dirá Wittgenstein, em um contexto não muito diferente da problemática nietzschiana, vemos por intermédio do olho, mas o olho é aquilo que não vemos. 2 Em seguida, a noção de perspectiva sugere uma transformação ou deformação do objeto em função da posição do sujeito. No vocabulário das artes visuais, a noção envolve a idéia de falsificação: para restituir a imagem do objeto levando em conta o ponto de vista daquele que o observa, a perspectiva introduz modificações que visam a neutralizar as eventuais distorções provocadas pela posição do sujeito (é por isso aliás que, no Sofista, Platão condena a utilização desse recurso na escultura). Na apropriação nietzschiana do termo, trata-se antes de uma conformação do objeto ao ponto de vista do homem, em função das características de
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seu aparelho cognitivo. Embora ocorra a Nietzsche referirse a uma "ilusão perspectivista", o que está em jogo aqui é menos a idéia de erro do que a idéia de mediação: tudo o que se oferece à consciência humana passa necessariamente pelas formas desta consciência, que não podemos transcender. A consciência age assim como uma lente que se interpõe entre o olhar e o mundo - como indica aliás a etimologia do termo "perspectiva", que designa entre outras coisas, ver através. Finalmente, a noção de um conhecimento perspectivo acarreta ainda a idéia de pluralidade ou de multiplicidade de pontos de·vista. O perspectivismo é aquilo "em virtude de que todo centro de força - e não apenas o homem - constrói todo o resto do mundo de seu próprio ponto de vista."3 Este conjunto não pode constituir uma unidade porque envolve perspectivas contraditórias, cuja soma é incongruente. Dito de outra forma, se o caráter determinado de toda perspectiva exclui a possibilidade de um conhecimento ilimitado, sua multiplicidade exclui toda hipótese de síntese. Mas esta metáfora visual pode nos induzir a um equívoco, fazendo-nos ver no perspectivismo uma espécie de relativismo epistemológico segundo o qual o conhecimento varia de acordo com o ponto de vista - concepção presente no ceticismo antigo e que remonta ao pensamento sofístico. Este é ilustrado de modo exemplar pelo episódio narrado por Protágoras sobre a morte de Epitímio, atingido por um dardo no transcurso dos Jogos. Segundo Protágoras, três responsáveis podem ser invocados para explicar essa morte: para o médico, a causa da morte é o dardo; para o juiz, é aquele que o lançou; para a autoridade política, é o organizador dos jogos. Cada uma das causas é inteiramente. legítima dentro de seu respectivo ponto de vista, e como não há um critério capaz de hieraquizá-las, a conseqüência é a renúncia a uma verdade objetiva.
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Por m,,is qul' ·stt, doutrin._1 lcnht1 pontos de contato com o pt•ns,rnwnto nietzschiM,o, dei, diverge cm um aspecto fund,,ml'nl,11: pois a n1dic:J.lidade do perspectivismo não rl'sidc l'l1l ,,firmar qu · o conhecimenlo varia segundo o ponto dl' vist:,, mas cm negar tl existência de um ponto de vista lr,msrendcnl • que podcrit1 reunir os demais em uma sínteSl' ou tot,,lizaçílo, e que seria a única condição pela qual podl'rfomos conceber uma ''coisa em si'' para além das perspl'cl ivas. Assim, o conhecimento é relativo não apenas porqul' coexiste com outras íormas (ao menos possíveis) de apreensão do mundo, mas porque, na ausência de um ponto dr visti.1 absoluto, toda apreensão do mundo resulta de uma relação estabelecida por aquele que conhece. Suprimir ~, relnç5o é suprimir ao mesmo tempo a ordenação do mundo que esta relação institui: "Como se restasse um mundo, uma vez suprimido o perspectivismo! Teríamos suprimído ao mesmo lempo a relatividade!" 4 Ao sublinhar o caráter relativo das categorias, Nietzsche quer significar que estas não são válidas para outras espécies, mas que tampouco são válidas para o mundo. As propriedades "das coisas", somos nós que lhes atribuímos, e elas refletem apenas a nossa medida: A partir doo horizontes em que nossos sentidos encerram rndíl um de nós como os muros de uma prisão, nós medimos o mundo, denominamos isto próximo e aquilo longínquo, isto grande e aquilo pequeno, isto duro e aquilo mole: a eotas medidas, chamamos sensações - e tudo isso, absolutamente ludo, não paHsa de erro em si! (... ) Se tivéssemos olhos cem vezci; mais sensíveis a curta distância, o homem noi; pareceriíl monolruosamente grande; podemos mesmo imílginílr órgãos pílra os quais ele pareceria desmesurado".s
Ass~m,, a _analogia com a visão é capciosa e não pode ser levadt1 as ultimas conseqüências sem nos induzir a um equí-
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voco: pois no caso da visão, um sujeito e um objeto preexistem à relação que os une e subsistem fora dela. É precisamente esta exterioridade que a razão humana não pode reivindicar: pois o olho é exterior ao objeto, mas o homem não é exterior ao mundo. Além disso, no caso da visão, o sujeito pode percorrer os diversos ângulos e reunir as diferentes imagens do objeto para representá-lo em sua totalidade. Para que houvesse operação semelhante no caso do conhecimento, teria que haver um ponto de vista que não estivesse submetido às condições do tempo e do espaço: algo como uma razão incondicionada, um eu metafísico ou um olhar divino. Na ausência de um tal ponto de vista, é a própria existência que se revela perspectivista. É o que podemos depreender da análise de um aforismo de Gaia Ciência denominado "Nosso novo infinito", que apresenta uma das formulações centrais do perspectivismo: Até onde vai o caráter perspectivo da existência? Possui ela de fato outro caráter? Uma existência sem explicação, sem "razão", não se torna precisamente uma "irrisão"? E por outro la.do, não é qualquer existência essencialmente "a interpretar"? É isso que não podem decidir, como seria necessário, as análises mais zelosas do intelecto, as mais pacientes e minuciosas introspecções: porque o espírito do homem, no decurso dessas análises, não pode deixar de se ver conforme a sua própria perspectiva e só de acordo com ela. Só podemos ver com nossos olhos.6
É preciso aqui ir além do aparente agnosticismo que in-
terdita o acesso a uma instância exterior às perspectivas e da advertência fenomenista de que "só podemos ver com nossos olhos": a questão que este aforismo coloca não é a de saber o que há para além das perspectivas, mas a de decidir até onde se estende o perspectivismo da existência. Esta noção de uma existência perspectivista será retomada
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m unl fragmento póstumo: "Não existe nenhuma coi a cm si, nenhum onhecimento absoluto. O caráter perspcctivista, 7 ilusório, falsificador é intrínseco à existência". O que significa atribuir um caráter perspcctivista à existência, e não somente ao conhecimento? Significa que a própria existência é desprovida de toda forma e medida, de todo sentido, valor e finalidade a não ser os que lhe são atribuídos pelas diferentes perspectivas. Se todo conhecimento é perspectivo é porque o próprio mundo o é. Se as perspectivas não encontram jamais um fundo que as suporte, é porque o próprio mundo é destituído de fundamento. *
formulação que mais se aproxima de urna "definição" do perspectivismo é o seguinte fragmento póstumo: "Tanto quanto a palavra conhecimento tem um sentido, o mundo é cognoscível; mas ele é interpretável de diferentes maneiras, não tem sentido por trás dele, mas incontáveis sentidos - perspectivismo". 8 Em uma leitura apressada, o início dessa passagem pode parecer contraditório com a afirmação - incessantemente reiterada nos escritos póstumos, mas igualmente presente na obra publicada, como veremos - de que o mundo é incognoscível. Mas é fundamental observarmos a restrição que ela enuncia: tanto quanto a palavra conhecimento tem um sentido significa que, se não existe um conhecimento absoluto e incondicionado, só podemos denominar "conhecimento" à atividade humana de ordenar o ~~ndo à ~ossa medida, à potência humana de engen~rar ficçoes - e e somente nesta medida que o mundo é efet1vamente "cognosc1ve , 1". Mas o mais importante é a segunda p~rte_ da passagem: ela afirma não apenas que o mundo admite incontáveis sentidos, mas que ele não tem sentido por trás dele. Ou antes·• e, apenas porque ele nao _ tem qualA
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3 quer sentido por tr.í que ele admite incontjvci sent ido . Longe de constituir um agnosticismo que intcrdil.1 todo conhecimento do mundo, esta formulaçJo enuncia alguma .coisa sobre o mundo: seu caráter desprovido de sentido e fundamento. Se compreendermos o perspectivismo como uma doutrina da imanência, podemos esclarecer um de seus aspectos mais problemáticos, que é a negação da coisa cm si. De fato, tomada no contexto de uma teoria do conhecimento, a noção de perspectiva - do mesmo modo que as noções de interpretação e de avaliação, que lhe são afins - parece implicar necessariamente um substrato ontológico, algo como uma coisa em si ou um "texto" que seria objeto das construções perspectivas. Este postulado é aceito como evidente e inquestionável pela maior parte dos intérpretes, que divergem apenas sobre o estatuto supostamente metafísico de uma tal instância. Assim, um comentador afirma: ·"Parecerá absurdo ligar o perspectivismo à tese da existência de uma coisa em si e, no entanto, se pensarmos na exclusão dessa entidade (... ) verifica-se que o perspectivismo como tal deixa de ter sentido." 9 Mas uma tal exclus~o só parece destituída de sentido se tomarmos a noção de perspectiva como sinônimo de representação. De fato, se este fosse o caso, a recusa da coisa em si conduziria a um solipsismo ou idealismo cético que negaria a realidade exterior às representações. Ora, nada mais distante da filosofia de Nietzsche, que nega a possibilidade de se distinguir sujeito e objeto, e com isso a própria possibilidade de representação. De certa forma, poderíamos dizer que esta filosofia é um rt'a1ismo ontológico, na medida em que a existência não depende do ato de conhecer ou da ocorrência de representações. Por outro lado, poderíamos dizer que ela é um idealismo epistemológico, uma vez que nada existe para o homem que não seja dado à sua consciência. Mas a rigor, ne-
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nhum dos tl'rmos St' i1plicíl ílO per pcctivismo, poi a di tin Jo l'ntr, r('i1lismo e ide;:ilismo 6 foz sentido no quadro de uma teoria do conhecimento que supõe já a di tância entre conhecimento e mundo, entre sujeito e objeto. É por isso que Nietzsche pode se contrapor simultaneamente a ambas as posições. 10 O que significa dizer que não existe coisa em si? Significa primeiramente que não há uma substância que permaneça inalterada por trás dos sucessivos acidentes e que seja suporte de diferentes atributos. O conceito de coisa em si supõe que as coisas tenham uma constituição objetiva, independentemente da organização que lhes impomos - mesmo que uma tal constituição permaneça, como para Kant, impossível de ser conhecida. Assim, dizer que não há coisa em si equivale a dizer que, uma vez retiradas as perspectivas, nada resta de permanente que possa ainda ser denominado "coisa". Se o mundo não dispõe de uma essência e nada tem para suportá-lo, uma coisa será apenas a soma de seus atributos e a sucessão de seus diferentes "acidentes". Ela é já o produto de uma construção ou interpretação perspectiva. "As propriedades de uma coisa são os seus efeitos sobre outras 'coisas'; se removemos as outras 'coisas', uma coisa não tem propriedades, isto é, não há coisa sem outras coisas, isto é, não há 'coisa em si'" .11 O homem é uma "coisa" sobre a qual as demais produzem seus efeitos. Abstrair destes efeitos é retirar ao mesmo tempo as propriedades da "coisa", é privá-la de suas determinações. Supor de um lado a ordem das "coisas" e de outro a ordem das construções perspectivas é duplicar o mundo das aparências com um mundo de essências e reintroduzir um mundo do ser por trás do devir. Em segundo lugar, significa que não existe um ponto de vista absoluto e incondicionado a partir do qual o que existe possa ser determinado como um objeto. Afirmar -
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7 como faz Kant - a existência de um mundo que não seja dado à nossa intuição, que é sensível, implica conceber uma intuição não sensível para a qual ele seria dado; imaginar um outro mundo por detrás ou para além deste só é possível se nos colocarmos, por um exercício de abstração, em um ponto de vista absoluto e incondicionado. Ora, o próprio fato de nos colocarmos em um tal ponto de vista o torna por isso mesmo subjetivo e retira o seu caráter incondicionado. Um tal exercício consiste na ficção inatingível de "um ver subsistente em si próprio e sem órgão visual" .12 Mas a questão de saber o que há para além das interpretações não apenas não pode ser respondida como, a rigor, não pode sequer ser colocada. Ela é falaciosa, na medida em que supõe já a existência deste além: "Se perguntarmos o que podem ser as coisas 'em si', abstraídas da receptividade de nossos sentidos e da atividade de nosso entendimento, é preciso responder por esta questão: como poderíamos saber que existem coisas?" 13 Isso significa que a coisa em si nem é uma coisa nem tampouco em si, visto que supõe a existência de um ponto de vista absoluto para o qual seria dada. É precisamente a existência deste ponto de vista supra-sensível, fora do tempo e do espaço, que é recusada pela filosofia de Nietzsche. Longe de colocar a questão de saber a quê as perspectivas se referem, o perspectivismo recusa precisamente o pressuposto metafísico de um mundo constituído sobre o qual as perspectivas se aplicariam. O que ele exclui é precisamente a legitimidade desta questão, e mesmo sua possibilidade. Poderíamos supor que, sendo cada perspectiva necessariamente fragmentada e parcial, a "coisa em si" seria dada pela sua soma ou totalidade. Esta é a posição adotada por diversos intérpretes, baseados talvez em passagens como o seguinte fragmento póstumo: "Uma coisa estaria definida uma vez que todos os seres tivessem perguntado 'o que é
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isto?' e respondido a esta questão. Supondo que faltasse um único ser, com suas próprias relações e perspectivas sobre todas as coisas, a coisa ainda não estaria" definida". 14 Ocorre que esta soma deve ser entendida como uma adição meramente empírica e contingente - e como tal, necessariamente provisória: pois os "setes" que mantêm tais perspectivas estão em devir, e suas perspectivas continuamente se modificando. Se não há coisa em si é porque falta precisamente o ponto de vista a partir do qual a soma das perspectivas apareceria como uma totalidade, condição necessária para determinar a "natureza" do objeto e constituir sua "essência": A questão 'o que é isto?' é um modo de impor um sentido a partir de um ponto de vista. A 'essência', o 'ser' é uma realidade perspectivista e supõe uma pluralidade. No fundo, trata-se sempre da questão: "o que é isto para mim?" (para nós, para tudo o que vive, etc.) 15
Alguns autores argumentam que, sem a hipótese de uma instância extra-perspectivista, uma perspectiva sequer apareceria como tal e a doutrina não poderia ser formulada. Corno assinala Heidegger, uma perspectiva é também um horizonte - isto é, seguindo a etimologia do termo, aquilo 16 que lirnita. Mas o que uma perspectiva encontra como seu horizonte e que constitui o seu limite não é uma coisa em si ou uma "realidade" incondicionada, mas outras perspectivas com suas próprias determinações. É com relação a saber que determinações seriam estas que se deve suspender o juízo, como esclarece a seqüência do texto de Gaia Ciência que analisamos acima:
É uma curiosidade vã procurar saber que outras espécies de intelectos e de perspectivas poderiam ainda existir: se,
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por e emplo, alguns seres ão capazc d •ntir o t mp retroativamente, ou ora progressivamente, ora retroativamente (o que daria lugar a uma outra direção da vida e a uma outra concepção de causa e efeito). Mas creio que estamos hoje longe da ridícula pretensão de decretar, a partir de nosso ângulo, que apenas serinm válidns as perspectivas a partir desse ângulo. 17
Não há aqui nenhuma alusão ao que seria o tempo "em si" ou a causalidade "em si", mas apenas a especulação do que seriam o tempo e a causalidade para uma outra perspectiva que não a humana. É verdade que a interpretação fenomenista é de certa forma favorecida pelo próprio Nietzsche, que eventualmente se refere ao "em si", ao "real" ou às "próprias coisas". Mas isto ocorre na maior parte das vezes nos textos de juventude, marcados pela influência de Kant e Schopenhauer. Nas obras de maturidade, estas expressões vêm invariavelmente grifadas, indicando uma problematização ou um distanciamento crítico. Além disso, se algumas passagens dão efetivamente margem a esta leitura fenomenista, outras se encarregam de desqualificá-la da maneira mais clara e inequívoca possível. Dentre estas, destaca-se um fragmento de 1886 que, embora um tanto longo, merece ser integralmente transcrito: Pouco me importa que atualmente alguém diga, com a modéstia do ceticismo filosófico ou com uma religiosa resignação: "a essência das coisas me é desconhecida", ou um outro, mais ousado, que ainda não aprendeu suficientemente a crítica e a desconfiança: "a essência das coisas me é em grande parte desconhecida". Eu objeto a ambos que, seja como for, eles ainda pretendem - ou imaginam saber demasiado, como se a distinção entre "a essência das coisas" e o mundo fenomênico, que eles pressupõem, fosse
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Piir,1 pPckr f,1 zrr unrn tnl distinção, seria preciso rrprl'~l'nliir O nosso intelecto como nfet~do por uma natureZil contr,iditória: por um l,1do, orgaruzado segundo uma visJo pr rspectivislil (como é necessário para que seres de nossn espécie possnm se conservar); por outro lado, dotactr, lfr um,1 f,1culdade de conceber estn visão perspectívista como perspectivistn, o fenômeno como fenômeno; em outras píll,wr.is, ncreditnndo na "realidade" como se ela fosse ímicíl, e ,10 mesmo tempo, capaz de julgar esta crença como uma limitaç,10 perspectivista com relação a uma realidade verdadeira. (... ) Suprimnmos a coisa em si e com ela um dos conceitos mais obscuros que existem, o de "fenômeno". Esta antinomiél, élssim como élquelél entre "méltéría " e "espírito", relevou-se inteirnmente inutilizável. 18 rL'lll.
O que Nietzsche recusa aqui é a hipótese de uma exterioridade com relação ao perspectivismo, a suposição de um ponto de vista imune às vicissitudes que caracterizam uma perspectiva enquanto tal. Não se trata portanto de recusa r a coisa em si e guardar o fenômeno - caracterizando uma espécie de "fenomenismo integral", como sugerem certos intérpretes 19 - mas de descartar a coisa em si e o fenômeno, e, com ambos, a suposição de um ponto de vista que nos permitiria fazer esta distinção. Para não ficarmos restritos a um fragmento póstumo, cujo estatuto poderia ser considerado problemático, podemos evocar um aforismo de Gaia Ci811cia que apresenta a mesma recusa: "Não é, como se adivinha, a distinção entre sujeito e objeto que me preocupa aqui: deixo esta distinção aos teóricos do conhecimento ~u_e permanecen; presos nas teias da gramática (esta metafisica do povo). E ainda menos a oposição entre a 'coisa em si' e O 'fenômeno': estamos longe de conhecer o suficiente para sequer fa zer esta distinção. 20 11
Esta re~usa de uma realidade constituída sobre a qual as perspectivas se aplica riam aparece também em uma cé-
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que o próprio mundo é perspectivista não signific,, .,prn,,s dizer que ele admite uma pluralidade de interpr ,t,1ções - o qur reduziria a filosofia de Nietzsche a um re\,1ti\'ismo ~nódino - mas que toda e qualquer interpretaç,10 tem ori lpm no próprio mundo, sendo assim incapaz de tr,1ns cndê-lo e determinar a sua "verdade". Ao contrário d que propõe GrJnier, portanto, não se trata aqui de um "plurt1lismo ontológico", mas antes de um niilismo ontolóic . Uma vez que se retirou o fundamento metafísico do mundo, retirou-se ao mesmo tempo a distância que poderia separar sujeito e objeto, a transcendência que é condição do conh cimento e o solo que poderia fundar esta operaçJo. Se, como Zaratustra ensina, o próprio ver é ver abismos, é porque também o mundo repousa sobre o abismo e não pode constituir uma base capaz de fundar este ato. É nesse sentido aliás que podemos compreender esta enigmática passagem de Além do Bem e do Mal: "Se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha dentro de você".24 Conceber o mundo como perspectivista significa que ele não tem fundamento, e não pode funcionar como suporte para estas interpretações. Se o mundo volto"u a se tornar infinito - como afirma ainda o aforismo de Gaia Ciência que analisamos acima -- não é apenas porque admite uma infinidade de interpretações, mas porque nenhuma destas interpretações pode reclamar seu fundamento. Vemos assim que o problema de conciliar a ontologia de Nietzsche com seu perspectivismo é uma falsa questão porque em última análise, o que o perspectivismo recusa é precisamente a possibilidade de isolar uma questão epistemológica de uma reflexão sobre o mundo. Se não pode haver uma teoria do conhecimento é porque não dispomos de um ponto de vista exterior à razão para empreender esta investigação; mas por outro lado tampouco pode haver uma ontologia, porque não existe um ponto de vista exterior ao 1i
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ÜS ABISMOO DA SUSPDIT A
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mundo a partir do qual se possa dizer - ou mesmo perguntar - o que é o mundo. Ao negar a existência de um mundo do Ser, é a própria distinção entre ontologia e teoria do conhecimento que é problematizada: "Se tentarmos contemplar o espelho em si, não descobriremos nada além das coisas que aí se refletem. Se quisermos apreender as coisas, não atingimos nada além do que o espelho. Esta é a história universal do conhecimento". 25 Sem dúvida, Nietzsche não se furtou a col