Notas de Aula Gravitação

4 partes das Notas de Aula do Professor João Zanetic 1ª parte Índice Introdução geral .................................

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Portuguese Pages [237] Year 2017

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Table of contents :
1ª parte

Índice
Introdução geral ..................................................................................1
Capítulo 1. Da roda aos céus...............................................................5
Capítulo 2. Os sistemas de mundo dos Gregos..................................14
Capítulo 3. O tamanho do mundo grego............................................31
Capítulo 4. Algumas ideias sobre a mecânica na Idade Média ..........39
Capítulo 5. A revolução copernicana.................................................49

2ª parte

Índice
Capítulo 6 – Gravitação e literatura.........................................................71
6.1. A física e a literatura: breve introdução.......................................71
6.2. "Os Lusíadas" e o sistema aristotélico-ptolomaico ......................78
6.3. "O Paraíso Perdido" e os sistemas celestes..................................82
Capítulo 7 - Do círculo perfeito à elipse..................................................88
7.1. Introdução...................................................................................88
7.2. Rompendo com as esferas de cristal............................................89
7.3. A geometrização exagerada de Kepler ........................................90
7.4. Kepler e a gravidade....................................................................95
7.5. Rompendo com a hegemonia do círculo......................................98
7.6. Uma homenagem de Einstein a Kepler........................................99
7.7. As leis de Kepler em detalhe .....................................................101
7.8. Um parêntesis: momento de uma força e momento angular ......106

3ª parte
Índice
Capítulo 8 – Algumas contribuições de Galileu Galilei.........................111
8.1. Introdução.................................................................................111
8.2. Galileu: um inovador de muitas faces........................................111
8.3. Galileu, Kepler e o telescópio ...................................................115
8.4. O princípio da inércia de Galileu, segundo Koyré .....................120
8.5. A solução da queda dos corpos por Galileu, segundo Koyré .....126
8.6. Galileu e o “argumento da torre”...............................................138
Capítulo 9 – Galileu e Kepler: aspectos pedagógicos e literários...........143
9.1. Alguns aspectos histórico/pedagógicos .....................................143
9.2. Homenagem de um poeta e professor português a Galileu ........146
9.3. Kepler e a ficção científica ........................................................149
9.4. Uma avaliação da obra de Galileu, por Italo Calvino.................152

4ª parte

Índice
Capítulo 10 - Os "Principia" de Isaac Newton.......................................163
10.1.Introdução.................................................................................163
10.2.Os vórtices e o mecanicismo de Descartes ................................164
10.3.O princípio dos "Principia" .......................................................169
10.4.Uma breve descrição do conteúdo dos "Principia" ....................173
10.5.Força central e a segunda lei de Kepler .....................................180
10.6.O caminho para chegar ao princípio da gravitação universal. ....183
10.7.Articulação da hipótese gravitacional de Newton ......................187
10.8.À guisa de conclusão sobre os "Principia".................................199
Capítulo 11 - Triunfos da mecânica newtoniana depois de Newton. .....200
11.1.Determinação de G....................................................................200
11.2.Determinação dg massa da Terra...............................................202
11.3.Determinação da massa do Sol..................................................203
11.4.Descoberta de novos planetas....................................................204
11.5.Uma viagem para além do sistema solar....................................207
Capítulo 12. Mais alguns tópicos gravitacionais....................................210
12.1.Campo gravitacional. ................................................................210
12.2.A velocidade de escape da Terra ...............................................211
12.3.Dois modos diferentes de medir massa? ....................................217
12.4.Newton e as duas massas ..........................................................218
12.5.Einstein e as duas massas..........................................................221
12.6.Alguns comentários finais (?)....................................................225
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INSTITUTO DE FÍSICA/USP

4300156 — GRAVITAÇÃO Notas de Aula 1ª parte João Zanetic

2° semestre/2019

GRAVITAÇÃO/Notas de Aula (Versão parcialmente revista em julho de 2017)

1ª parte

João Zanetic/IFUSP

Índice Introdução geral .................................................................................. 1 Capítulo 1. Da roda aos céus ............................................................... 5 Capítulo 2. Os sistemas de mundo dos Gregos .................................. 14 Capítulo 3. O tamanho do mundo grego ............................................ 31 Capítulo 4. Algumas ideias sobre a mecânica na Idade Média .......... 39 Capítulo 5. A revolução copernicana ................................................. 49

1

4300156 GRAVITAÇÃO/ Notas de aula (1ª edição de 1995, revista em julho de 2017) João Zanetic/IFUSP "Só se pode entender a essência das coisas quando se conhecem sua origem e seu desenvolvimento." Heráclito1

Introdução geral Nesta disciplina apresento uma introdução elementar a um importante tema da física, a gravitação. Nela pretendo trabalhar com os conceitos básicos, leis, princípios, evidências empíricas, descobertas, intuições, enfim, a variada gama de elementos que compuseram os diversos modelos teóricos que já foram desenvolvidos na tentativa de explicar o que se entende por gravitação e os diferentes alcances de suas aplicações. Esta apresentação seguirá uma abordagem que, ao mesmo tempo, trabalhe com o algoritmo necessário para a solução de problemas clássicos associados a esse tema e sirva de exemplo de um modo de aplicação da História e da Filosofia da Ciência no ensino de Física, principalmente tendo em mente que isto será oferecido a alunos de Licenciatura, futuros professores de física do Ensino Médio. Ilustrarei também o relacionamento de várias das visões de mundo, associadas aos conceitos físicos que surgiram em determinados momentos da história, à literatura como exemplo de uma interação entre duas áreas do conhecimento consideradas muitas vezes quase antagônicas. Na busca das raízes do que se entende por atração gravitacional, procuro apresentar um breve histórico do desenvolvimento de algumas ideias relacionadas com o surgimento da mecânica, ramo da Física que foi fundamental para o desenvolvimento de toda a estrutura da Física teórica durante os séculos XVIII e XIX, como bem ilustram estas palavras de Albert Einstein, quando destaca o papel de Newton na consolidação da mecânica: "A importância dos trabalhos de Newton consiste principalmente na criação e na organização de uma base utilizável, lógica e satisfatória para a 1

Heráclito (cerca de 540-470 AC), filósofo grego nascido em Éfeso, cidade da Jônia, colônia grega da Ásia Menor, foi um eminente pensador pré-socrático que nos legou inúmeras frases isoladas que os historiadores apresentam como sequencias de aforismos. Uma de suas frases mais conhecida é a seguinte: “Não cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele”.

2 mecânica propriamente dita. Mas estes trabalhos permanecem até o fim do século XIX o programa fundamental de cada pesquisador, no domínio da física teórica. Todo acontecimento físico deve ser traduzido em termos de massa, e estes termos são redutíveis às leis do movimento de Newton. A lei da força é a exceção. Em seguida era preciso alargar e adaptar este conceito ao gênero de fatos utilizados pela experiência. O próprio Newton tentou aplicar seu programa à ótica, imaginando a luz composta de corpúsculos inertes. A ótica da teoria ondulatória também empregará a lei do movimento de Newton, após ter sido aplicada a massas distribuídas de maneira contínua. A teoria cinética do calor também baseia-se exclusivamente sobre as equações do movimento de Newton. Ora, esta teoria não apenas forma os espíritos para o conhecimento da lei da conservação da energia, mas também serve de base para uma teoria dos gases, confirmada em todos os pontos, bem como uma concepção muito elaborada da natureza conforme o segundo princípio da termodinâmica. A teoria da eletricidade e do eletromagnetismo desenvolveu-se de igual maneira até nossos dias, inteiramente sob a influência diretriz das ideias fundamentais de Newton (substância elétrica e magnética, forças agindo a distância). Até mesmo a revolução operada por Faraday e Maxwell na eletrodinâmica e na ótica, revolução que constitui o primeiro grande progresso fundamental das bases da física teórica depois de Newton, mesmo esta revolução se realiza integralmente dentro do esquema das ideias newtonianas."2 Dada essa ampla generalidade de aplicação, a história da evolução das ideias da mecânica, da qual o estudo da gravitação ocupa uma posição de destaque, acaba se confundindo com a história do nascimento da própria física clássica, assim denominada após o advento e vitória do paradigma3 newtoniano no século XVIII. 2

Albert Einstein. Como vejo o mundo. Editora Nova Fronteira, 7ª edição, Rio de Janeiro, 1981, pág.186. Este é um livro de leitura fácil, agradável e instrutiva. Nele Einstein abordava temas culturais, políticos, judaicos e também alguns estudos científicos com comentários sobre alguns físicos e a física. 3 O termo paradigma é aqui utilizado no sentido que lhe dá Thomas S. Kuhn no seu livro A Estrutura das revoluções científicas (Ed. Perspectiva, São Paulo), que foi utilizado como referencial epistemológico destas Notas de aula. Pode se entender por paradigma uma determinada teoria científica, por exemplo, a mecânica de Newton, quando aceita de forma unânime por uma comunidade científica em determinado período histórico. Pode se englobar no termo paradigma, também, determinados conceitos isolados como, por exemplo, o conceito de força ou o de elétron. Os cientistas que fazem pesquisa, baseados nos paradigmas de sua ciência, estarão praticando, segundo Kuhn, a ciência normal, em oposição à revolução científica, episódio em que, para resolver determinado problema que não encontra solução adequada segundo os paradigmas vigentes, parte da comunidade científica acaba apelando para uma nova teoria antagônica às até então vigentes.

3 Este estudo tem como ponto de partida alguns antecedentes pré-históricos relevantes ao assim chamado pensamento científico presente na antiga civilização grega. Este procedimento oferece um pano de fundo contra o qual abordaremos alguns temas da ciência grega que levaram ao estabelecimento do paradigma aristotélico-ptolomaico, assim denominado em função das preciosas contribuições dos filósofos gregos Aristóteles (384-322 AC) e Cláudio Ptolomeu (século II DC). A razão deste itinerário prendese ao fato de que a mecânica, nascida no século XVII, é o ponto culminante de uma revolução científica que teve seu início exatamente na tentativa de superação da visão de mundo aristotélico-ptolomaica. Um dos pontos culminantes dessa revolução foi o livro De revolutionibus orbium coelestium, de Nicolau Copérnico, publicado em 1543, que pode ser considerado como legítimo herdeiro da pré-mecânica dos antigos gregos. Uma pergunta poderia surgir aqui: se Aristóteles viveu no século IV AC e Ptolomeu no século II de nossa era, o que aconteceu com o desenvolvimento da ciência grega do movimento e da astronomia nos mais de mil anos que separam Copérnico da época da consolidação do paradigma aristotélico-ptolomaico? A resposta a essa questão também será abordada brevemente neste texto. Aqui surgirão alguns personagens normalmente ausentes nas disciplinas de mecânica, tais como Filopono, Buridan, Oresme, entre outros. Veremos como os conceitos e ideias da mecânica, desenvolvidos por esses pensadores, influenciaram os físicos do século XVII, particularmente a Galileu Galilei e René Descartes, também ilustres ausentes da abordagem tradicional da mecânica nos nossos cursos, inclusive os universitários. Em seguida dedicaremos algum espaço para a apresentação do candidato a paradigma copernicano, a resistência dos oposicionistas aristotélicos e a solução apresentada por Copérnico para alguns dos problemas que não eram bem explicados pelo geocentrismo. Ao contrário do que se afirma normalmente, o sistema heliocêntrico de Copérnico, apesar de resolver problemas não solúveis anteriormente, não é imediatamente muito melhor que o sistema geocêntrico dominante nesse período. Desta forma, o candidato a paradigma copernicano teve que passar por um processo de articulação4 para poder se confrontar com as severas críticas dos opositores. Nesse trabalho de articulação se destacaram as figuras de Giordano Bruno, Galileu Galilei, Johannes Kepler e Isaac Newton, para nomear apenas os mais importantes. 4

O termo articulação também vem do acima citado livro de T.S. Kuhn. Ele se refere ao fato de que, para ser bem sucedido, um novo paradigma deve sofrer adaptações e mudanças que o habilitem a resolver novas situações que o confrontem ou superar críticas que lhe sejam feitas. Por exemplo, o uso do telescópio por Galileu e a consequente descoberta dos satélites de Júpiter vão significar um forte suporte empírico para o candidato a paradigma copernicano.

4 Assim, os séculos XVI e XVII registraram o nascimento da mecânica que se constituiu no mais poderoso sistema de mundo até os princípios deste século. Os séculos XVIII e XIX testemunharam um acabamento mais refinado do edifício da mecânica, como veremos na parte final.

5

Capítulo 1. Da roda aos céus 1.1.

A revolução agrícola

A caminhada humana rumo ao conhecimento da natureza, isto é, ao diálogo inteligente com o mundo, certamente teve início de um modo que hoje podemos tão somente conjeturar. Dos nossos mais primitivos ancestrais, os hominídeos que distam mais de dois milhões de anos de nossa época, aos primeiros homo sapiens, temos apenas vestígios de como viviam. Dos mais recentes, que viveram há alguns milhares de anos, temos evidências que permitem esboçar um quadro do seu modo de vida. As mais variadas motivações e necessidades levaram esses antigos ancestrais a utilizar uma característica não presente nos outros animais: a associação do pensamento com a ação, a elaboração abstrata e o fazer com as mãos. A necessidade de se alimentar, proteger-se das mudanças climáticas e de animais hostis, o nascimento dos filhos e seu crescimento, e outras motivações bem concretas, ao lado de razões mais sutis como o deslumbramento com a própria natureza, o firmamento celeste, a morte, a busca de comunicação com os outros, foram aos poucos sofisticando a espécie humana. Muitos dos elementos que hoje são utilizados pela física fazem parte da história das habilidades primárias humanas, predecessoras da técnica, e são muito anteriores a qualquer tentativa sistemática de explicação. Como afirma J. D. Bernal "As habilidades humanas surgiram antes do conhecimento humano. Por exemplo, o arremesso de objetos é uma habilidade que deve ter surgido naturalmente, mas os homens devem ter logo notado que a capacidade de arremessar dependia do comprimento do braço, assim a primeira ideia pode ter sido a de "aumentar" o braço pela utilização de uma vara propulsora. (...) esta seria o primeiro estágio para um tipo mecânico de propulsão e o primeiro instrumento de propulsão mecânico conhecido teria sido o arco de flecha."5 É muito difícil imaginar como se processou a evolução das habilidades de construção de utensílios domésticos e de caça, o uso e domínio do fogo, da alavanca, de arremessar, soprar, utilizar velas em embarcações, o uso de roupas, etc. Há certamente centenas de milhares de anos que o cérebro humano tem uma estrutura semelhante ao atual. Isto significa que a capacidade de pensar, resolver problemas, apelar para o imaginário, há muito são características presentes na espécie humana. 5

J. D. Bernal. The extension of man. Paladin, London, 1972, págs. 40/41. Trata-se de um livro em que o físico e historiador da ciência Bernal abordava a física até o final do século XIX segundo a concepção de que ela simplesmente era uma extensão dos sentidos humanos.

6 Era só uma questão de acoplar o pensar ao agir, frente a desafios concretos ou imaginários. Portanto, a necessidade de se proteger de animais hostis, de lidar com as variações climáticas, de se adequar a vida ao aumento populacional, provocaram o avanço na produção de utensílios e implementos cada vez mais sofisticados, que se constituíram na base material de uma comunidade. Assim, o ser humano foi construindo uma cultura associada à sua capacidade de aprender e, portanto, de transformar. Essa cultura incipiente aos poucos foi se tornando mais dinâmica com o surgimento da linguagem, que se constituiu num dos primeiros elementos de uma base social. Além das questões mais próximas ao cotidiano, parece claro que os animais e plantas despertaram um vivo interesse de nossos ancestrais pré-históricos. John D. Bernal destaca que são testemunhas disso as pinturas primitivas encontradas em cavernas espalhadas em diferentes partes do planeta, como as de Lascaux, na França, e as de Altamira, na Espanha. Essas imagens sugerem as mais variadas interpretações: ligação mística particular com os animais, oferendas para dar boa sorte na caça ou um ato inteligente de produzir algo - uma obra de arte? - por simples prazer. Bernal chega a afirmar que a arte primitiva desempenhou um importante papel em direção à sofisticação do pensamento humano, pois: "(...) todo esse conjunto de técnicas de representação pictórica são as fontes das artes visuais, como também, do simbolismo gráfico, da matemática, da escrita, que tornaram possível a ciência racional."6 E assim caminha a humanidade. No período neolítico situado aproximadamente entre 8000 e 3000 AC, ocorreram mudanças fundamentais que marcaram definitivamente a entrada do homem numa forma de organização social e de relação com a natureza extremamente complexa. "O passo revolucionário e decisivo consistia em que o homem, em essência, em vez de alimentar-se de forma parasitária dos dons da natureza, em vez de coletar ou capturar seu alimento, passava a produzi-lo. Com a domesticação de animais e o cultivo de plantas, com a criação de animais e a agricultura, o homem começava sua marcha triunfal sobre a natureza e se tornava um pouco mais independente da veleidade do destino, da sorte e do acaso. Iniciava-se, assim, a era da previsão organizada da vida; o 6

J. D. Bernal. Science in history. Penguin, London, 1969, vol.1, pág. 72. Há tradução desta obra para o português, editada em Portugal pela Editorial Presença. A biblioteca do IFUSP dispõe também de uma versão espanhola com o título Historia social de la ciencia. Neste livro, Bernal apresentava a ciência dentro da história, envolvendo todas as áreas do conhecimento desde a pré-história.

7 homem começava a trabalhar e a economizar. (...) Com estes rudimentos - posse da terra, de animais domesticados, de ferramentas e provisão de alimentos - tinha início também a diferenciação da sociedade em extratos e classes.” 7 Esse acontecimento descrito por Hauser é conhecido como revolução agrícola. Ele provocou o surgimento das primeiras cidades e de uma complexa infraestrutura: construção de casas, tecelagem, cerâmica, troca de produtos, propriedade privada, etc. 1.2.

Conhecimento: diálogo com o mundo

A relação homem-natureza tornou-se intensamente dinâmica. Bernal sugere que, por essa época, o conceito de causa e efeito deve ter desempenhado uma função básica para a compreensão das necessárias observações humanas, principalmente no que se referia às plantas e aos animais. Ele adianta também que, provavelmente, a fabricação de cestos, a tecelagem e a divisão das terras, entre outros, devem ter levado ao nascimento da geometria (forma, número). O mesmo é compartilhado por Bento de Jesus Caraça quando relaciona a divisão de terras no antigo Egito com as primeiras unidades de medida de comprimento e às figuras geométricas. 8 A concentração de grupos humanos em cidades provocou um aumento da densidade populacional. A necessidade de mais alimentos forçou esses grupos humanos a procurarem terras mais férteis, que foram encontradas às margens dos grandes rios. Essa mudança aos poucos produziu novos impactos tecnológicos gerados pela necessidade da construção de diques e canais, que podem ser comprovados por vestígios deixados nas ruínas dessas antigas cidades. Surgiram, desse modo, as antigas civilizações da Mesopotâmia, do Egito, da Suméria, etc. A partir de 3000 AC, com o início da chamada idade dos metais, mudanças profundas ocorreram nessas antigas civilizações. Os metais, inicialmente utilizados apenas como ornamentos, passaram logo a alterar a produção de implementos agrícolas, ferramentas e armas. Isso provocou impactos na carpintaria, alvenaria, transportes, construção de barcos e no surgimento da roda. O transporte marítimo, além de ter provocado a construção de melhores embarcações, levou à necessidade de precisar sua localização na água quando a terra não era 7

Arnold Hauser. Historia social de la literatura y del arte. Ed. Guadarrama, Espanha, 1976, pág. 23. 8 Bento de Jesus Caraça. Conceitos fundamentais da matemática. Lisboa, 1975. Livro escrito em 1941 por esse professor de matemática português que, em muitos aspectos, foi precursor da utilização da história da ciência no ensino.

8 mais visível. Inicialmente os povos navegantes utilizaram um método bastante original: pássaros famintos a bordo! Mais tarde, começaram a olhar para os céus para determinar seu caminho pelos mares e rios. Essa necessidade, como também a curiosidade e o encantamento despertado pelos céus, levou Platão, filósofo grego que será comentado mais adiante, a escrever o seguinte: "Se nunca tivéssemos visto as estrelas, o Sol e o céu, nenhuma das palavras que pronunciamos sobre o universo teria sido dita. Mas a visão do dia e da noite, e dos meses, e as revoluções dos anos, criaram um número e nos deram uma concepção do tempo, e o poder de indagar sobre a natureza do universo. A partir daí deduzimos a filosofia (...)"9 Por essa época as diversas civilizações começaram a utilizar elementos e técnicas mais apuradas: balança de braços, plano inclinado, alavanca, tração animal, entre outros. Teve início também o uso de escalas, por exemplo, desenhos de construção com escala bem definida foram utilizados na Mesopotâmia por volta de 2400 AC. No Egito, por volta de 1500 AC, era utilizada a unidade de comprimento cúbito (comprimento médio do antebraço). Mais uma novidade com inúmeras implicações: nas cidades antigas havia lugares de destaque que consistiam nos templos habitados por algum deus. Os sacerdotes, intermediários entre os deuses e os homens, além das questões relacionadas ao espírito, aos poucos começaram a incorporar características e funções de uma primeira classe administrativa. Isso porque os templos passaram a ser também, devido a suas grandes proporções, o lugar de armazenamento de mercadorias. Bernal sugere que quando os sacerdotes tornaram-se responsáveis pelo armazenamento de mercadorias não podiam mais confiar apenas na memória. Foram obrigados a registrar o tipo e a quantidade de mercadorias depositadas no templo. Além dos números, devem ter utilizado também a balança na quantificação de mercadorias. Daí deve ter-se originado também o primeiro sistema de contagem. O registro inicial pode ter sido a figura do próprio produto seguida de traços designando a contagem. Esses símbolos figurativos, além dos desenhos em cavernas já mencionados, deram origem à lenta construção da escrita e dos números. A aritmética provavelmente surgiu antes da escrita. No antigo Egito existiam sistemas numéricos que não só envolviam contagens como também frações e suas respectivas notações hieroglíficas. Carl B. Boyer, faz os seguintes comentários sobre a matemática dos antigos egípcios e babilônios:

9

Citado por Timothy Ferris. O despertar da via Láctea. Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1990, pág. 3.

9 "Pode ser verdade que a geometria ainda não se havia cristalizado a partir de uma matriz tosca de experiência espacial que incluía toda espécie de coisas que podiam ser medidas; mas é difícil não perceber na preocupação babilônia e egípcia com os números e suas aplicações algo muito próximo do que usualmente, em épocas posteriores, chamou-se álgebra. (...) havia no Egito e na Babilônia problemas que têm as características de matemática de recreação. Se um problema pede a soma de gatos e medidas de trigo, ou de um comprimento e uma área, não se pode negar a quem o perpetrou ou um certo humor ou uma procura de abstração."10

1.3.

Medida do tempo e calendário

Paralelamente a essa evolução das habilidades de contar, de resolver problemas algébricos e de trabalhar com figuras geométricas, seja na solução de problemas práticos seja por puro lazer ou satisfação intelectual, que trazia consigo uma capacidade de abstração cada vez maior, havia outros elementos presentes nessas antigas civilizações e que também devem ter contribuído para a elaboração de um pensamento abstrato cada vez mais sofisticado. Citam-se como exemplos: os rituais relacionados com a morte, evidenciados pelas urnas mortuárias sempre encontradas nessas antigas civilizações; os temores do desconhecido; a misteriosa relação com os corpos celestes. Um pouco disso tudo aparecia nos desenhos, nas construções e nos vestígios de escrita. Essa trajetória de evolução do pensamento deve ter dado origem ao misticismo, à religião, ao pensamento abstrato/filosófico, ao imaginário livre, etc. Por outro lado, essa capacidade múltipla associada aos problemas gerados pelo desenvolvimento de comunidades mais populosas, levou à criação de um modo de produção que exigia a solução de problemas cada vez mais complexos. Um deles, vinculado ao controle da fertilidade da terra, levou à necessidade de se estabelecer medidas do tempo que permitissem prever as épocas da semeadura e da colheita, nomes das primeiras estações do ano definidas por esses povos antigos. A solução do problema de medir a duração do tempo aos poucos foi levando o homem antigo a associar o fluir do tempo com o movimento dos corpos celestes que, certamente, tanto os maravilhava. Assim, a repetição do dia e da noite, as fases da Lua, o movimento do Sol, das estrelas e das estrelas errantes ou planetas forneceram para diferentes civilizações diversos modos de realizar essa medida do passar do tempo. 10

Carl B. Boyer. História da matemática. Ed. E. Blucher e Ed. da USP, São Paulo, 1974, pág. 31. Ótimo livro para quem deseja se aprofundar na história da matemática. Escrito numa linguagem simples porém sem perder sua boa erudição e precisão conceitual.

10 Tudo estava pronto para o surgimento de um elemento importantíssimo para o posterior nascimento da ciência: o calendário. Os primeiros calendários foram baseados no movimento regular da Lua. Os sumérios, por volta de 2500 AC, desenvolveram o calendário lunar que foi utilizado por seus sucessores na Mesopotâmia. As civilizações agrícolas, como a egípcia, fizeram uso do calendário solar, por conta de serem povos agrícolas e, portanto, os eventos anuais eram muito mais vitais para eles que os mensais. Portanto, fenômenos naturais periódicos, como as cheias dos rios e o ciclo de fertilidade do solo, foram associados ao movimento periódico do Sol, levando à criação do calendário solar. Os egípcios, por exemplo, utilizavam um calendário solar de doze meses de trinta dias. Mais tarde acrescentaram mais cinco dias nesse calendário. Isso ocorreu pela observação cuidadosa de Sirius: os astrônomos egípcios notaram que as cheias do rio Nilo ocorriam mais ou menos coincidentemente com a época em que Sirius nascia ao fim do crepúsculo. O intervalo de tempo entre duas repetições sucessivas do fenômeno durava 365 dias. Eles dividiram o período de um ano em três estações: enchente, semeadura e colheita.11 Temos assim uma razão socioeconômica para a origem do calendário. Porém, motivações místicas ou mágicas também influenciaram na construção de calendários e a correspondente observação sistemática dos corpos celestes. As fases da Lua não estariam de algum modo relacionadas com as fases da vida humana? Os corpos celestes não determinariam características dos seres humanos e dos acontecimentos? É com base nesse tipo de questões que nasceu a astrologia. Portanto, a astronomia nasceu da combinação de interesses socioeconômicos e místico-mágicos. A construção de calendários e o desenvolvimento da astrologia produzem a astronomia. 1.4.

O movimento dos corpos celestes

As diferentes religiões que se desenvolveram nesses povos também influenciaram no estudo dos corpos celestes. O Sol, a Lua e os planetas foram transformados em deuses por babilônios, egípcios, gregos, etc. Esse duplo interesse com relação à observação dos corpos celestes atingiu inclusive civilizações pouco conhecidas. Um exemplo dessa fusão é o conjunto de grandes pedras Stonehenge, pesando dezenas de toneladas, localizadas a cerca de cem quilômetros de Londres, na Inglaterra, dispostas segundo certa regularidade. Essas pedras 11

Muitos outros povos também criaram seus calendários e sua forma de representação, como os calendários criados pelos Maias que habitavam o México ainda antes da invasão européia da América. Nestas Notas de aula não me preocupei em procurar detalhes dessas civilizações por conta da preocupação em narrar a pré-história do geocentrismo construído pelos antigos gregos.

11 poderiam constituir, ao mesmo tempo, um ponto de encontro, um templo e um observatório astronômico das comunidades que habitavam aquela região. Ao lado da curiosidade inata ao homem, do desejo de alimentar seu imaginário e da necessidade de resolver problemas práticos, esses povos começaram também a conjeturar sobre possíveis explicações a respeito da forma do mundo físico visível, da regularidade do movimento dos corpos celestes e de outros fenômenos intrigantes. Arthur Koestler esboçava o seguinte quadro: "O mundo dos babilônios, egípcios e hebreus era uma ostra, com água por baixo e por cima, suportada pelo firmamento sólido. (...) A ostra dos babilônios era redonda, a terra não passava de uma montanha oca posta no centro, flutuando nas águas do fundo; em cima havia uma cúpula sólida coberta pelas águas superiores. As águas superiores filtravam-se através da cúpula em forma de chuva, e as águas inferiores erguiam-se em fontes e nascentes. (...) O universo dos egípcios era uma ostra mais retangular (...) o Sol e a Lua conduziam os seus barcos entrando e desaparecendo através de várias portas. As estrelas fixas eram lâmpadas suspensas nas abóbadas (...)"12 Nessas civilizações pré-helênicas foi inventado um instrumento rudimentar para ajudar nas observações e na divisão do dia em intervalos mais curtos. Os babilônios e os egípcios utilizavam uma espécie de relógio de Sol, o gnômon, que nada mais era que uma pequena haste fincada no chão e que projetava uma sombra passível de ser medida ao longo do decorrer do dia. Heródoto menciona em suas Historias, escritas cerca de 450 AC, que os gregos teria aprendido o uso do gnômon com os babilônios 13. Como a posição aparente do Sol, a ponta da haste e a ponta da sombra estão sobre uma mesma linha reta, as medidas do comprimento e da direção da sombra determinavam a posição do Sol. O conjunto desse tipo de observações permitiu um conhecimento mais preciso e sistemático da variação da posição do Sol ao longo do dia e ao longo do ano. Assim, os antigos habitantes da Terra, séculos antes da era cristã, já tinham uma boa descrição do movimento aparente dos corpos celestes. Mas, apesar da grande 12

KOESTLER, Arthur. Os sonâmbulos. Ibrasa, 1961, págs. 4 e 5. Existe uma edição mais recente desse livro, de 1991, inexplicavelmente com um novo título em português: O homem e o universo. Trata-se de um livro muito interessante que aborda a aventura da construção do conhecimento tendo como tema central os trabalhos e a vida de Kepler. É muito rico em citações dos clássicos não encontrados muitas vezes em português. 13 EVANS, James. The history & practice of ancient astronomy. Oxford University Press. 1998, p.27.

12 precisão das suas informações, muitos historiadores relutam em afirmar que hajam constituído uma ciência. Desenvolveram, por certo, uma incrível capacidade de contar, de calcular, uma aritmética muito sofisticada e uma astronomia aritmética, mas ainda não possuíam uma ciência, com o sentido que entendemos hoje. Isto é, não conseguiam criar modelos que lhes permitissem fazer previsões ou reproduzir os fenômenos que observavam. O historiador da ciência Derek de Solla Price fazia a seguinte comparação entre babilônios e gregos, que estudaremos brevemente a seguir: "É inevitável que nos vejamos levados a comparar a refinada ciência babilônia com a dos gregos. Em um e outro caso percebemos como que uma tradição razoavelmente contínua que se transmite até os últimos séculos anteriores a Cristo, quando ambas, a ciência grega e a babilônia, se enfrentam com o problema do movimento - enlouquecedoramente quase regular - dos planetas (...) Apesar de toda a maestria dos babilônios no que se refere a cálculos, não se encontra, na Babilônia, elemento algum daquele método de argumentação lógica próprio do grego Euclides."14 O processo de evolução do conhecimento parece sofrer uma aceleração quando nos aproximamos do século VI AC. Nesse século ocorreram grandes movimentos intelectuais em diferentes partes da Terra. Era o século de Buda, Confúcio, Lao-Tsé, Tales, Zaratustra, Pitágoras, entre outros. A este respeito, Arthur Koestler afirmava o seguinte: "O sexto século antes de Cristo constituiu o ponto crítico da espécie humana. (...) Era o início da grande aventura: a indagação prometiana das explicações naturais e causas racionais, que, nos dois mil anos seguintes, transformaria a espécie mais radicalmente do que havia feito os duzentos mil anos anteriores."15 É claro que o que acabou de ser dito não pode ser tomado literalmente. A aventura da espécie humana muito deve a inumeráveis homens e mulheres que viveram nos séculos anteriores ao acima mencionado. Permanecerão para sempre anônimos os descobridores e inventores fantásticos que nos deram os primeiros sons significativos, os primeiros desenhos, a primeira roda, o domínio do fogo, o gnômon, o relógio de água, a

14

DE SOLLA PRICE, Derek. A ciência desde a Babilônia. Ed. Itatiaia e Ed. da USP, 1976, pág. 26. Neste livro, Solla Price tratava de uma série de temas pertinentes à discussão das características de uma civilização científica. Para tanto aborda temas sobre o mecanicismo e as relações entre ciência e tecnologia. O último capítulo trata com bom humor das "enfermidades da ciência". 15 KOESTLER, Arthur, op.cit., nota 12, pág. 5.

13 alavanca, a balança, a escrita cuneiforme, os canais de irrigação, os deuses, as pirâmides, as pedras misteriosas, o círculo e o triângulo, a busca do desconhecido. Porém, os gregos, particularmente nos trezentos anos em torno do século III AC, deixaram uma marca tão profunda na civilização ocidental que não podemos deixar de concordar com o filósofo Bertrand Russell quando afirma: "Em toda a história não há nada tão surpreendente nem tão difícil de explicar como o repentino aparecimento da civilização na Grécia. Muito do que constitui uma civilização já havia existido, milhares de anos antes, no Egito e na Mesopotâmia, estendendo-se aos países vizinhos. Mas faltavam certos elementos que foram fornecidos pelos gregos. O que estes realizaram na arte e na literatura é conhecido de toda a gente, mas o que realizaram no campo puramente intelectual é ainda mais excepcional. Inventaram as matemáticas (a aritmética e algo de geometria já existiam entre os egípcios e babilônios, mas principalmente em formas rudimentares. O raciocínio dedutivo, partindo de premissas gerais, foi uma inovação grega.), a ciência e a filosofia; foram os primeiros a escrever histórias, em lugar de meros anais; especulavam livremente sobre a natureza do mundo e as finalidades da vida, sem que se achassem acorrentados a qualquer ortodoxia herdada. Foi tão espantoso o que ocorreu que, até recentemente, os homens se contentavam em ficar boquiabertos e a falar misticamente do gênio grego. É possível, porém, compreender o desenvolvimento da Grécia em termos científicos, e vale bem a pena fazê-lo."16

16

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Cia. Ed. Nacional, 1967, livro I, pág. 5.

14

Capítulo 2. Os sistemas de mundo dos Gregos 2.1.

Algumas características gerais da cultura grega

É necessário esclarecer que o breve contato que agora iniciaremos com o conhecimento dos antigos gregos, objetivando captar um panorama da sua física/astronomia, vai fornecer apenas uma pálida e incompleta visão de um conhecimento que começou a se estruturar por volta do século VI AC e se completou ao redor do século II de nossa era.

Figura 1. Exemplos de figuras obtidas pela utilização do gnômon e que deram subsídios para os modelos geocêntricos dos gregos. A figura mostra a sombra do gnômon ao nascer do sol, nas elevações do meio dia e na sua variação sazonal. Como os antigos gregos viviam no hemisfério norte, a figura representa as construções que eles conheciam (Figura extraída do livro de T.S. Kuhn 17).

A civilização grega foi desenvolvida por gregos descendentes de povos nômades que, durante suas inúmeras viagens, assimilaram o conhecimento desenvolvido pelas civilizações egípcia, babilônia e, provavelmente, hindu. Foi uma assimilação dinâmica que transformou o conhecimento acumulado em material mais simples, mais abstrato e mais racional. Aliás, foi através dos gregos que

17

KUHN, Thomas S. The Copernican revolution. Harvard University Press, USA, 6ª impressão, 1974, pág. 10.

15 herdamos a cultura de povos mais antigos, cujos vestígios quase desapareceram totalmente. J. D. Bernal comenta que "O real conhecimento das civilizações mais antigas afetou o nosso conhecimento apenas através dos gregos. O que sabemos sobre as realizações intelectuais dos egípcios e babilônios, através de suas próprias escritas, chegou até nós muito tarde para afetar diretamente a nossa civilização."18 No seu diálogo com a natureza, os gregos introduziram duas características de pensamento e ação bastante originais: a racionalidade, explicitada através da utilização de argumentos interpretativos, e o realismo, que se traduz pelo uso de experiências comuns. Essas duas características tiveram maior ou menor importância no desenvolvimento do conhecimento grego dependendo da particular organização social reinante. Houve uma influência inusitada no desenvolvimento do conhecimento: a política, ou seja, a discussão e execução da administração das polis, ou cidades, gregas. A intensa atividade política que marcou a vida grega, nos seus diferentes estágios, desempenhou um papel fundamental na utilização da argumentação sistemática que levou a um grande domínio do discurso. Isso provocou um grande impulso na literatura e na oratória. Bernal salientava vantagens e desvantagens deste tipo de desenvolvimento: se de um lado ele propiciou o aparecimento de um discurso científico competente, de outro separou o estudo formal do manuseio direto com os objetos e fenômenos do cotidiano, seria a separação entre ciência e técnica. Alguns historiadores destacam uma razão mais social para esta separação: no início da civilização grega encontrávamos o artesão e o intelectual numa mesma pessoa, havendo, portanto, uma integração una entre o trabalho manual e o intelectual. Porém, a forma dominante de organização social, que incluía a presença de um grande contingente de escravos, propiciou a separação entre os que trabalhavam e produziam e os que tinham o privilégio de ficar meditando, observando, calculando, criando conhecimento abstrato, forçando assim uma dissociação entre o pensar e o fazer. "À medida que o escravagismo foi se impondo como modo de produção dominante, a ciência foi paulatinamente se desligando dos trabalhos manuais, tornando-se cada vez mais abstrata e contemplativa. Embora o filósofo retirasse as suas ideias básicas sobre o funcionamento da natureza,

18

J. D. Bernal. Op. cit., nota 6, pág. 161.

16 observando o trabalho dos artífices, pouco conhecia de primeira mão sobre estas atividades"19

2.2.

Os períodos da civilização grega

Existem várias formas de divisão dos períodos da civilização grega. Uma delas, adotada por Benjamin Farrington20, e que toma por motivo temático o desenvolvimento da ciência grega, apresenta a seguinte divisão de períodos: 1. Jônico (c. 600/480 AC): correspondente à época do nascimento da ciência grega. Alguns personagens importantes: Tales, Anaximandro, Pitágoras e Heráclito. 2. Ateniense (c. 480/330 AC): ápice da cultura grega. Destacam-se, entre outros, os filósofos: Sócrates (469/399 AC), Demócrito, Platão e Aristóteles. 3. Helênico (c. 330/60 AC): corresponde à fase mais importante para a história da ciência grega. Personagens centrais: Euclides (c. 300 AC), Arquimedes, Epicuro, Aristarco de Samos e Hiparco (190/120 AC). 4. Romano (até c. século II DC): é o período da decadência. Destaque para Ptolomeu (c. 120 DC). 2.3.

Os primeiros filósofos/cientistas gregos

No século VI AC, numa região denominada Jônia, nas costas do mar Egeu, à época da versão definitiva da Odisseia e da Ilíada de Homero, a cosmologia passou por um momento inédito: a busca de explicações naturais e causas racionais. Era o início de uma grande caminhada que, nos vinte séculos seguintes, transformaria o homem e seu mundo de forma definitiva. A ciência grega começava a nascer. Tales de Mileto (624-546 AC), muitas vezes citado como o primeiro cientista, acreditava que a Terra era um disco circular que flutuava sobre a água. Ele foi o introdutor da geometria abstrata na Grécia. Fazia predições muito precisas de eclipses baseado em tabelas astronômicas elaboradas pelos babilônios. Tales formulou uma pergunta revolucionária que influiu no pensamento grego: de que matéria prima fundamental era constituído o universo? Tales considerava a água o elemento básico do universo e responsável por tudo que nele existe. A água serviria também para dividir o universo, separando a terra e o ar. O filósofo Bertrand Russell fez o seguinte comentário sobre esse filósofo grego: 19

Alexandre J. G. Medeiros. Condicionantes históricos e sociais no surgimento da física. Dissertação de mestrado, IFUSP/FEUSP, 1984, pág.40. 20 Benjamin Farrington. A ciência grega. Ibrasa, São Paulo, 1961.

17 "Foi um dos Sete Sábios da Grécia, cada um dos quais se tornou famoso por haver proferido um dito sábio; o seu foi, como erroneamente se supõe, "a água é melhor". Segundo Aristóteles, Tales achava que a água é a substância original da qual são formadas todas as outras; e afirmava que a Terra descansa sobre a água. Aristóteles também diz que Tales acreditava que o ímã tinha alma, porque fazia mover o ferro; e, ainda, que todas as coisas estavam cheias de deuses... A afirmação de que tudo é feito de água deve ser encarada como uma hipótese científica e, de modo algum, como uma tolice. Há anos, a ideia geralmente aceita era a de que tudo era feito de hidrogênio, que é dois terços de água."21 Anaximandro (610-547 AC) foi outro importante filósofo da cidade de Mileto e que apresentava um pensamento bem mais complexo que o acima esboçado. Na sua visão o universo não se limitava a uma superfície fechada, tipo caixa, ostra ou esfera, mas possuía extensão e duração infinitas. Entendia que esse universo não constituía apenas um único mundo, era uma combinação de um grande número de mundos. Anaximandro considerava que a matéria prima fundamental que constituía todas as coisas desse universo, animadas e inanimadas, não era nem a água nem outra qualquer substância conhecida. O elemento fundamental seria uma substância (infinita, indestrutível, eterna e sem propriedades definidas) que, por transformação contínua, daria origem a todas as substâncias conhecidas. Anaximandro interpretava os quatro elementos conhecidos (terra, água, ar e fogo), como diferentes formas daquela substância primária indeterminada, envolvidos numa luta contínua e eterna. A citação seguinte representa um breve exemplo significativo da complexa descrição do universo de Anaximandro: "(...) em certa época, os quatro elementos que formam o mundo foram dispostos um sobre o outro: a terra, que é a mais pesada, no centro; a água, cobrindo-a; a névoa, sobre a água, e, o fogo, envolvendo tudo. O fogo, ao aquecer a água, fez com que ela se evaporasse, determinando o aparecimento da terra enxuta. Aumentou o volume da névoa, a pressão atingiu o limite máximo. As camadas do universo arderam em torvelinhos de fogo e, rodeadas de tubos de névoa, envolveram a terra e o mar. Assim se fez o universo. Os corpos celestes que vemos são orifícios feitos nos tubos,

21

Bertrand Russell, nota 15, pág. 30.

18 através dos quais brilha o fogo, e os eclipses são obturações parciais ou totais desses orifícios."22 Que imaginação fantástica! Anaximandro descreve, para olhos e mentes contemporâneos, um estranho universo. Arthur Koestler dizia que essa descrição assemelha-se muito mais a um quadro pintado por Picasso que a um universo imaginado por alguém como o físico Isaac Newton. Certamente seria também extremamente estranha para Anaximandro a descrição do universo feita pela ciência contemporânea. Várias outras interpretações da natureza surgiram nesse período, associadas ao trabalho intelectual de diferentes filósofos. Heráclito, por exemplo, autor da epígrafe deste capítulo, conhecido como o filósofo da mudança, acreditava no contínuo fluir das coisas por um processo de tensão de forças opostas em constante busca de equilíbrio. Para ele o motor desta contínua transformação, ou o elemento básico do universo, seria o fogo. Alguns autores vêm em suas ideias relativas à interação e transformação dos opostos o nascimento do pensamento dialético. Como já foi alertado inicialmente, não se pretende aqui explorar as várias escolas de pensamento gregas, mas tão somente destacar parte daquelas que influenciaram a ocorrência da revolução científica dos séculos XVI e XVII. Assim, não se pode deixar de mencionar os trabalhos do pitagórico Aristarco de Samos (320-250 AC) que propunha uma concepção de universo diferente da defendida por Platão e Aristóteles. Aristarco imaginou o Sol situado no centro do universo e os demais corpos celestes, inclusive a Terra, em movimento orbital ao seu redor. Poucos de seus escritos chegaram até nossa época, mas os testemunhos de Arquimedes (280212 AC) e Plutarco registram sua concepção heliocêntrica. Plutarco escrevia que: "Aristarco de Samos supunha que o céu permanecia imóvel e que a terra se movia num círculo oblíquo, girando ao mesmo tempo sobre o seu eixo."23 Essa concepção foi derrotada pela visão geocêntrica dominante e a astronomia de Aristarco foi repelida e esquecida por quase dois mil anos. Deve-se frisar que certamente um dos motivos da rejeição se baseia em algo bem calcado no realismo, pois, contrariando tudo aquilo que era indicado pelos sentidos na experiência cotidiana, Aristarco afirmava que a Terra estava em movimento. Mas tudo indicava que ela estava parada! Deve-se também a Aristarco um elegante método para calcular distâncias astronômicas como, por exemplo, a distância entre o Sol e a Terra. No próximo capítulo

22 23

Citado por Benjamin Farrington. Op. cit., nota 19, pág. 29. Plutarco. Citado por Tymothy Ferris, op. cit., nota 9, pág. 15.

19 serão apresentados alguns dos cálculos efetuados por Aristarco e outros astrônomos gregos, procurando enfatizar o incrível alcance dessa astronomia construída dois mil anos antes do advento do telescópio. Arquimedes foi outro filósofo grego que deu contribuição significativa à física e à geometria. Ele procurou a solução matemática de alguns problemas mecânicos, particularmente aqueles relacionados com o equilíbrio dos corpos, equilíbrio dos fluidos, de onde nasceu o princípio de Arquimedes, e a determinação do centro de gravidade. Arquimedes observou que o peso de um corpo diminui quando este é mergulhado na água. Seu tratado sobre o Equilíbrio dos planos teve forte influência no desenvolvimento da mecânica do século XVII, como veremos mais adiante. 2.4.

Os pitagóricos e a Terra em movimento

Uma mudança qualitativa importante na cultura grega ocorreu a partir dos trabalhos desenvolvidos por Pitágoras (580-500 AC) e seus seguidores que, em oposição ao naturalismo jônico, introduziram uma linha de pensamento mais mística e abstrata. Para eles a chave do enigma do universo estava na matemática e na geometria: o universo seria um modelo de números e formas geométricas associadas aos fenômenos. A harmonia geométrica deveria prevalecer e comandar os fenômenos terrestres e celestes. Algumas das importantes contribuições dos pitagóricos ao desenvolvimento do conhecimento científico podem ser assim sumarizadas: 1. Foram os primeiros a considerar esférica a forma da Terra, iniciando o predomínio dos círculos e esferas na descrição dos corpos celestes e seus movimentos; 2. Foram os primeiros a imaginar a Terra em movimento; 3. Introduziram a medida como modo importante de entender a natureza; por exemplo, estudando a harmonia musical teriam descoberto a relação entre o som e o comprimento da corda de um instrumento musical; associaram, deste modo, números à escala musical; 4. Intuíram uma importância cósmica na utilização dos poliedros regulares por eles conhecidos: cubo, tetraedro e dodecaedro. Portanto, os pitagóricos, pela primeira vez na história, ligaram a matemática à física, dando margem ao que Bernal lhes atribuísse à criação da física-matemática. Conta-se entre os seus feitos a imposição do número dez na descrição dos corpos celestes então conhecidos. O filósofo Filolau, que viveu em meados do século V AC, teria imaginado que a Terra estaria girando em torno de um fogo central, responsável pelo calor que a aquece. Nessa época eram conhecidos os seguintes elementos celestes: Terra, Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno e a esfera das estrelas fixas.

20 Assim, seriam nove esses elementos conhecidos. Para completar a década, ele imaginou a existência de uma contra-Terra que se movimentaria juntamente com o nosso planeta e que, a fim de impedir que este fosse torrado, estaria posicionada entre ele e o fogo central. Por isso esse fogo central não seria visível da Terra. Aristóteles, muitos anos mais tarde, chegou a utilizar essa invenção de Filolau para ridicularizar os pitagóricos pelos quais não nutria nenhuma simpatia. Filolau teria afirmado que: "Todas as coisas que podem ser conhecidas têm número; pois não é possível que sem número qualquer coisa possa ser concebida ou conhecida."24 Dessa escola pitagórica originaram-se várias linhas de pensamento. Duas são relevantes para o que aqui estamos estudando. Uma, defendida por Parmênides (cerca de 530-460 AC), enfatizava aspectos abstratos, lógicos e místicos na descrição dos fenômenos da natureza; deu origem ao idealismo de Platão. Outra, que contava com a argumentação de Leucipo (~500 - ? AC), Demócrito (c.460-370 AC) e Epicuro (342-271 AC), dava importância a um conteúdo materialista representado pela hipótese da existência de átomos. Parmênides tinha uma visão conservadora e estática, muitas vezes sintetizada numa frase como esta: o que é, é; o que não é, não é. Ele se opunha à ideia de transformação contínua de Heráclito. Demócrito, por outro lado, foi responsável pela introdução de dois elementos revolucionários no pensamento grego: a ideia de átomo e a existência do vácuo. Os átomos estariam em movimento no vácuo originando as mudanças visíveis. Teriam diferentes formas que se combinariam para constituir as diferentes substâncias conhecidas. Embora os pitagóricos imaginassem a Terra em movimento, por exemplo, por meio da hipótese de Filolau, essa não era uma visão dominante naquela época. Ou, como diria Thomas Kuhn, a Terra em movimento não era um paradigma daquele período. Ao contrário, o paradigma dominante era o que imaginava a Terra imóvel no centro do Universo tendo os demais corpos celestes conhecidos girando ao seu redor. Era o famoso paradigma geocentrista, como teremos oportunidade de analisar a seguir. 2.5.

A forma e o movimento dos corpos celestes: Platão

Uma pergunta dominava o pensamento dos gregos geocentristas interessados no movimento dos demais corpos celestes: que tipo de movimento eles descrevem?

24

Carl B. Boyer, Op.cit., nota 10, pág.40.

21 No século IV AC , Platão (427-347 AC) lançou a concepção de um mundo esférico em que os movimentos dos corpos celestes deviam ser realizados em círculos perfeitos e com velocidade uniforme. Essas concepções se deram em razão da visão de mundo idealista, das formas geométricas e dos movimentos perfeitos e uniformes. Ao descrever a construção desse mundo, na parte dos seus Diálogos conhecida por Timeu, Platão refere-se, deste modo, ao criador e criatura: "Quanto ao céu inteiro, ou mundo, ou se houver qualquer outro nome mais apropriado, temos de começar por formular a questão inicial em todas as coisas. Existiu sempre, sem ter nenhum começo de geração, ou nasceu e teve um começo? Nasceu porque é visível, tangível e corpóreo, e todas as coisas deste gênero são sensíveis, e as coisas sensíveis, apreensíveis para a opinião acompanhada pela sensação, estão sujeitas ao devir e ao nascer, como vimos. Por outro lado, dizemos que aquilo que nasceu deve necessariamente o seu nascimento a alguma coisa. Quanto ao autor e pai deste universo, é difícil encontrá-lo e, depois de tê-lo encontrado, dá-lo a conhecer a toda a gente."25 Platão descrevia também como o arquiteto utilizou inteiramente os quatro elementos, terra, água, ar e fogo, na composição do mundo, sem deixar nenhuma porção deles fora e sem utilidade. Platão tratava também da forma e do movimento que esse mundo deveria possuir. Na citação seguinte ele introduzia a concepção de mundo esférico e de movimento circular: "Para a forma deu-lhe a que lhe convinha e que tinha afinidades com ele. Ora, a forma que convinha ao animal que devia conter todos os animais é a que encerra todas as outras formas. Por isso o deus deu ao mundo a forma esférica, cujas extremidades estão todas a igual distância do centro, sendo esta forma circular a mais perfeita de todas e a mais semelhante a si mesma, pois ele pensava que o semelhante é infinitamente mais belo que o dessemelhante. Além disso, arredondou e poliu toda a sua superfície externa por várias razões. (...) Atribui-lhe um movimento ao seu corpo, o dos sete movimentos26, que melhor se ajusta à inteligência e ao pensamento. Consequentemente, fê-lo girar uniformemente sobre si mesmo no mesmo 25

Platão. Diálogos IV, Timeu. Publicações Europa-América, Portugal, págs. 260/261. Esses sete movimentos seriam os seguintes: o movimento circular e os movimentos da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, da frente para trás e de trás para frente, de cima para baixo e de baixo para cima. 26

22 lugar e impôs-lhe o movimento circular; quanto aos outros seis movimentos proibiu-os e impediu-o de errar como eles. Como não eram precisos pés para esta rotação, criou-o sem pernas e sem pés."27 É interessante também citar um breve trecho da obra de Platão em que ele descreve como teria sido introduzido o conceito de tempo acoplado à construção do mundo pelo grande arquiteto: "Então ele lembrou-se de fazer uma imagem móvel da eternidade e, ao mesmo tempo em que organizava o céu, fez da eternidade que resta na unidade esta imagem eterna que progride segundo o número, e a que nós chamamos o tempo. Com efeito, as noites, os meses, os anos não existiam antes do nascimento do céu, e foi construindo o céu que ele se lembrou de criá-los (...)"28 Essa descrição elaborada por Platão inseria-se na sua concepção idealista de conceber a realidade do mundo. Coube a Aristóteles (384-322 AC), inicialmente um discípulo de Platão, encaixar essas ideias platônicas num sistema mais completo, coerente e com base empírica, que se firmou como o grande paradigma da ciência grega. 2.6.

A esfericidade da Terra: Aristóteles

Aristóteles introduziu uma concepção de esfericidade da Terra muito mais sofisticada que aquela apresentada por Platão. Na citação seguinte tomamos conhecimento da gênese da esfericidade terrestre e da origem da ideia de lugar natural presente na descrição do movimento natural de queda dos graves: “(...) este mundo é único, solitário e completo. É claro que não há nada, nem lugar, nem vácuo, além dos céus. (...) O movimento natural da Terra como um todo, como de todas as suas partes, está dirigido para o centro do universo; esta é a razão de porque ela está no centro (...) assim, a Terra e o Universo têm o mesmo centro, (...) os corpos pesados movem-se para o centro da Terra apenas porque seu centro está no centro do Universo. (...) Por isso, a Terra não se move (...) e o motivo dessa imobilidade é claro.(...) É natural que o elemento terra mova-se para o centro, como as observações mostram, assim como é natural que o elemento fogo mova-se para fora do centro (...) É impossível que uma porção de Terra se mova 27 28

Platão. Op. cit., nota 25, págs.263/264. Platão. Op. cit., nota 25, pág. 266.

23 para fora do centro sem a ação de um agente externo (...) Como porções iguais de terra provém de todos os lados, as extremidades ficam à mesma distância do centro, por isso a forma da Terra só pode ser esférica (...)29 Com base nesta citação poderíamos atribuir a Aristóteles a inauguração da utilização da concepção de simetria esférica na descrição dos fenômenos físicos. Nessa citação também aparece explicitada uma primeira "ideia gravitacional", ou seja, a concepção de que o centro da Terra, que se confunde com o centro do Universo, seria o lugar natural dos graves. Thomas Kuhn afirma que foi dessa forma dada sustentação a um universo de duas esferas: "Para a maioria dos astrônomos e filósofos gregos, a partir do século IV AC, a Terra era uma pequena esfera suspensa estacionária no centro geométrico de uma esfera girante muito maior que transportava as estrelas. O sol se moveria no vasto espaço entre a Terra e a esfera das estrelas. Fora da esfera externa não havia nada - nem espaço, nem matéria, nada. (...) Este é o universo de duas esferas: uma esfera interior para o homem e uma esfera exterior para as estrelas. Sua origem é obscura, mas seu poder de persuasão não é.” 30 No que diz respeito ao pensamento científico grego, Aristóteles foi o filósofo que deixou marcas mais profundas. Uma das razões talvez seja o fato de que a maior parte dos seus escritos chegou quase inteiramente até nós. Além do mais, ele escreveu sistematicamente sobre lógica, filosofia, teologia, física, astronomia, biologia, psicologia, política e literatura. Como vários outros filósofos, esteve sempre próximo ao poder, sendo preceptor de Alexandre Magno e tutor de seus filhos. Aristóteles teve o privilégio de conviver com Platão, seu mestre, que, à época do seu nascimento, estava trabalhando na sua obra República. Quando Aristóteles ingressou na Academia como estudante, Platão trabalhava no Timeu, parte fundamental de seus Diálogos, e que exerceu forte influência nos trabalhos científicos de Aristóteles.

29 30

Aristóteles. De caelo. Edição de 1922 KUHN, Thomas S. op. cit., nota 17, pág. 27.

24

Figura 2. Algumas funções astronômicas do universo de duas esferas. O círculo externo é uma seção da esfera das estrelas. O observador em O pode ver todas as porções desta esfera que jazem no plano do horizonte sombreado SWNE. Os círculos horizontais são os caminhos traçados por pontos selecionados da esfera no seu movimento de rotação diário. (Figura e texto adaptados do livro de T. S. Kuhn, op. cit., nota 16, pág. 31)

Com Aristóteles consagrava-se a hegemonia das esferas e dos círculos, na descrição e explicação do movimento e forma dos corpos celestes, que permaneceria dominante até o século XVII com o advento dos trabalhos de Kepler. 2.7.

A física aristotélica

Entre as ideias sobre o movimento, desenvolvidas por Aristóteles, destaco as seguintes: 1. O movimento de queda dos corpos pesados, ou graves, é natural e dirigido para o centro do universo que coincide com o centro da Terra. 2. A taxa de queda de um corpo depende de dois fatores: seu peso e resistência do meio em que ele se desloca. Sobre este ponto, é útil e educativo destacar algumas afirmações de Aristóteles que ilustram talvez algumas das primeiras argumentações a respeito da relação entre distância percorrida por um corpo e o intervalo de tempo decorrido: "Um dado corpo move-se numa dada distância num dado tempo; um corpo mais pesado move-se na mesma distância em menos tempo, sendo este tempo inversamente proporcional aos pesos. Por exemplo, se um corpo

25 tem um peso que é o dobro de outro ele tomará a metade do tempo que este gasta para percorrer a mesma distância." (tradução livre)31 3. Os corpos celestes são dotados de movimento natural descrevendo uma trajetória circular perfeita. 4. Todos os corpos pertencentes a Terra, quando em movimento não dirigido para o centro do universo, seu lugar natural, são dotados de movimento violento provocado por algum agente externo a eles. A velocidade dos corpos aumenta com o aumento da intensidade do agente; quando o agente é removido ou cessa de atuar, o movimento para. 5. O ar deslocado por um corpo em movimento também é um agente secundário de movimento, por exemplo, no movimento de projéteis o ar deslocado tenderia a ocupar o vazio deixado pelo corpo transformando-se num motor de segunda ordem. 6. Não pode existir movimento não natural infinito; em consequência não pode existir o vácuo. A este respeito Luis Pinguel li Rosa faz a seguinte observação: "Aristóteles argumenta que não há necessidade de haver o vazio para haver movimento pela razão de que o lugar cheio pode sofrer mudança qualitativa. Logo, o vazio não é uma condição para a locomoção. Outra razão que ele levanta contra a existência do vazio é que, sendo infinito, nele não haveria em cima nem em baixo nem meio, pois não há diferença no que é nada e não há nada no vazio, pois o vazio seria a não existência e a privação de ser. O movimento natural se dá diferenciando em cima de em baixo. Como então poderia haver movimento natural através do vazio?" 32 Aristóteles considerava que os corpos celestes eram constituídos por um elemento diferente dos quatro elementos fundamentais. Ele imaginava que os corpos celestes eram feitos de uma matéria eterna e não sujeita a mudanças denominadas éter, que em grego significa eterno. Os aristotélicos consideravam ainda que os corpos celestes, além da Terra, estavam associados a esferas concêntricas e transparentes, as esferas de cristal, centradas na Terra.

31 32

Aristóteles. Op. cit. , nota 27. Luis Pinguelli Rosa. Notas de aula. Mimeografado.

26 2.8.

O Sistema de mundo aristotélico-ptolomaico

A partir dessa concepção de universo, em que os corpos celestes giravam em torno de uma Terra imóvel, foram construídos modelos matemáticos que buscavam garantir a aparência do que era observado. Eudoxo, que também viveu no século IV AC, foi o introdutor de um complexo sistema de esferas homocêntricas que permitiam reproduzir o movimento celeste. Aristóteles chegou a construir um sistema com cinquenta e cinco esferas. A versão mais moderna que conhecemos do modelo geocêntrico foi proposta por Claudio Ptolomeu de Alexandria, que viveu no século II D.C.. Tycho Brahe (1546 – 1601) também propôs posteriormente a Ptolomeu, no século XVI, um modelo geocêntrico em sua concepção, com o Sol orbitando a Terra e os demais planetas orbitando o nosso astro rei. Cláudio Ptolomeu, que viveu no século II DC, realizou a grande síntese da astronomia grega que foi coletada no seu livro Almagesto, nome atribuído pelos árabes, que se transformou numa verdadeira bíblia da astronomia até o começo do século XVII. Ptolomeu desenvolveu o sistema de epiciclos iniciado por Hiparco. Ele dedicou-se à tarefa de resumir e articular o paradigma geocêntrico construindo figuras geométricas que reproduziam o movimento de todos os corpos celestes conhecidos à sua época. Para tanto ele utilizou outros artifícios geométricos como os excêntricos e equantes. Ptolomeu utiliza no Almagesto alguns princípios físicos de Aristóteles para embasar sua ideia de modelo de Sistema Solar, que tem a Terra no centro dos movimentos de todos os planetas, do Sol e das estrelas fixas. Ele tratou de elaborar um modelo que desse conta de explicar os fenômenos cotidianos e os movimentos dos planetas conhecidos. Além da observação direta, as ideias aristotélicas de movimento natural inerente à natureza e corpo do objeto, sendo ele circular para os corpos supralunares e retilíneo para os objetos terrestres, o que também incluía o Sol, davam mais força e embasamento para o modelo Ptolomaico. A Terra no centro do Universo e o Sol fazendo um movimento circular significava corroborar também com o paradigma aristotélico. Ptolomeu assume que o céu é uma esfera, girando ao redor de um eixo fixo, o que pode ser provado pelo movimento circular das estrelas polares, que já era conhecido; a Terra é uma esfera situada no centro dos céus, pois se isso não fosse verdade, um lado do céu apareceria mais próximo para nós aqui na Terra, do que o outro lado. A Terra não poderia estar em movimento porque deve haver algum ponto fixo para o qual os movimentos dos outros devem ser referenciados 33. Com estas concepções, Ptolomeu não se diferenciava de alguns predecessores. 33

DREYER, J. L. E. A history of astronomy from Thales to Kepler, Dover, 2a. ed. 1953, p.192

27 Para preservar o modelo em que todos os corpos realizam movimento ao redor da Terra, Ptolomeu utilizou alguns artifícios geométricos, como os epiciclos, equantes e deferentes e a teoria dos movimentos aparentes do Sol e da Lua elaborada por Hipparchus. Ptolomeu chegou a aprimorar a teoria de Hipparcus para o movimento aparente da Lua, mostrando que ela se movimentava não somente em um deferente ou epiciclo (como Hipparcus explicara), mas sim que o centro do epiciclo se move também em um excêntrico, para assegurar que a velocidade angular da Lua seja uniforme, não para o centro do círculo, mas para a Terra 34. Embora Ptolomeu não tenha feito grandes contribuições originais, foi o responsável pela grande síntese da astronomia geocêntrica ou geostática, como denominada por Roberto Martins que faz a seguinte avaliação da obra de Ptolomeu: "Quem nunca sequer folheou o Almagesto de Ptolomeu dificilmente poderá imaginar o esforço titânico que encerra. Enorme número de dados cuidadosamente selecionados; um rigoroso tratamento matemático (com o uso de trigonometria esférica); uma genial intuição para vislumbrar arranjos geométricos simples capazes de descrever os fenômenos; o uso desses arranjos para fazer previsões astronômicas. (...) A proposta de Ptolomeu é ciência, do mais alto nível. Os astrônomos que o seguiram não eram também idiotas dobrados sob o jugo da autoridade e do passado. Eram pessoas que adotavam a proposta geocêntrica de Ptolomeu por perceberem seu enorme valor e por não conhecerem uma alternativa que estivesse a seus pés."35 Na época de Ptolomeu, havia questões observacionais que até então não tinham solução, como o movimento retrógrado de Marte e a variação do brilho de Marte e Vênus. Estas questões não foram completamente resolvidas pelo modelo heliocêntrico proposto por Nicolau Copérnico (1473-1543). Para concluir esta breve apresentação da ciência grega é preciso deixar claro que o paradigma aristotélico-ptolomaico resolvia uma série de problemas básicos.

34

DREYER, Op.cit. nota 33, p.193 – 194. Roberto de Andrade Martins na sua rica introdução ao COPÉRNICO, Nicolau. Commentariolus. Nova Stella Editorial, São Paulo, 1990, págs. 58/59. 35

28

Figura 5. A explicação antiga (e moderna) das fases da lua. O diagrama mostra que apenas metade da esfera lunar é iluminada pelos raios do distante sol. A posição 1 corresponde à lua nova; 2 é a meia lua crescente; 3 é a lua cheia; e 4, a meia lua decrescente. (Extraída de parte de uma figura do livro de T. S. Kuhn, op. cit., nota 16, pág. 272)

Eram explicadas as fases da Lua, como pode ser observado na figura 5. O sistema permitia a previsão de eclipses do Sol e da Lua, como também era muito utilizado na localização de navios em alto mar através da posição das estrelas. As estações do ano encontravam também uma explicação simples no sistema ptolomaico. A solução dada foi a de considerar o plano da órbita do Sol inclinado de um ângulo de cerca de 23º com relação ao equador celeste. 2.9.

Salvando as aparências

O termo “Saving the phenomena” (Salvando os fenômenos, ou Salvando as aparências) foi introduzido pelo físico e filósofo da ciência francês Pierre Duhem (1861 – 1916) em seu livro To save the phenomena: an essay on the idea of physical theory from Plato to Galileo, publicado em 1908 na sua primeira versão em francês36. Neste livro, Duhem faz um resgate histórico das contribuições dos medievais que contribuíram para a construção da mecânica e faz uma defesa da interpretação instrumentalista dos modelos antigos para salvar as aparências. No contexto do conhecimento astronômico e dos sistemas de mundo elaborados pelos gregos, Salvar as Aparências se refere aos modelos que procuravam descrever fielmente os fenômenos e movimentos do cosmos de acordo com aquilo que é observado. Esta expressão foi enunciada e esclarecida posteriormente em alguns livros de 36

DUHEM, Pierre. To save the phenomena: an essay on the idea of physical theory from Plato to Galileo. Trans. By Edmund Doland and Chaninah Maschler. Chicago: University of Chicago Press. 1969.

29 escritores e historiadores da astronomia antiga, como J.L.E. Dreyer (1953), S. Sambursky (1962) e A. Koestler (1961). Provavelmente a ideia da possibilidade de movimento da Terra para “salvar as aparências” dos fenômenos observados já estava presente na época de Alexandre o Grande, com a tentativa de resolver os problemas das anomalias dos movimentos planetários37. Algo que perturbou os astrônomos gregos geocentristas era o que acontecia com os planetas que, ao contrário da expectativa de movimento circular e uniforme ao redor da Terra, apresentavam um movimento irregular em determinadas partes de sua órbita, como ilustra a figura 3. Essa estranha dança dos planetas foi denominada de movimento retrógrado.

Figura 3. O movimento de retrogressão do planeta Marte em uma seção do céu38.

37 38

DREYER, Op.cit. nota 33. Figura extraída de Thomas S. Kuhn, Op. cit., nota 17, pág. 48.

30 Assim, no século II AC, com o intuito salvar as aparências do movimento desses planetas, Hiparco introduziu um artifício geométrico que considerava um círculo centrado na Terra, o deferente, sobre o qual estava centrado um outro círculo em movimento, o epiciclo, no qual estava localizado o planeta também em movimento. Arranjos desse tipo, ou envolvendo um número maior de epiciclos, com velocidades de movimentos determinadas por ensaio e erro, permitiam reproduzir o movimento dos planetas vistos da Terra. A figura 4 ilustra esse artifício.

Figura 4. (a) O sistema básico deferente-epiciclo. (b) O movimento aparente por ele gerado no plano da eclíptica. (c) Uma porção (1 - 2 - 3 - 4) do movimento como visto por um observador situado na terra central39.

39

(Figura extraída do livro de T. S. Kuhn, op. cit., nota 16, pág. 61.

31

Capítulo 3. O tamanho do mundo grego A forma da Terra passou por diferentes concepções ao longo da história das civilizações antigas. Ora era uma montanha oca localizada no centro de um universo em forma de ostra, ora era um disco flutuando sobre a água. Finalmente, através dos gregos pitagóricos no século VI AC, adquiriu a forma esférica. Platão e Aristóteles muito contribuíram para que a hegemonia da esfera dominasse o cenário astronômico por muitos séculos. Mas, e quanto ao tamanho da esfera terrestre? E quanto à distância entre os diversos corpos celestes? Teriam os gregos medido o tamanho do mundo? É disso que trataremos nesta seção.40 Os babilônios e egípcios possuíam uma representação para os números e unidades de medida. Assim, tinham condições de realizar medidas diretas de objetos, edifícios e terrenos. Porém, não se aventuraram a realizar medidas indiretas como as que são necessárias para se determinar as distâncias entre os corpos celestes e a Terra, por exemplo. Mais uma vez essa tarefa coube aos gregos. A astronomia grega mostrou-se apropriada para a determinação de distâncias astronômicas. Vamos exemplificar algumas delas. 3.1.

Determinação da circunferência da Terra

Embora a forma da Terra não influísse na descrição do movimento aparente dos corpos celestes, a ideia de se medir a circunferência da Terra só cabia se esta fosse considerada esférica. Aristóteles mencionou a primeira referência de uma medida da circunferência da Terra. Esta teria sido realizada em meados do século IV AC. Não há registro do método que teria sido utilizado. O primeiro registro mais ou menos completo da medida da circunferência da Terra, descrito por Cleômedes no livro Do movimento circular dos corpos celestes, data de cerca de 50 AC.41

40

A maior parte dos exemplos de medidas astronômicas aqui apresentados foram extraídos do Apêndice 4 do livro de Thomas S. Kuhn, op. cit., nota 17, págs. 273/278. 41 Romildo P. Faria (org.). Fundamentos de Astronomia. Papirus, Campinas, 1982, pág. 29.

32

Figura 6. Ilustração do procedimento de Eratóstenes para medir a circunferência da Terra.

Essa medida é uma referência ao trabalho de Eratóstenes que viveu no século III AC. Nessa época observou-se que nos dias correspondentes à metade do verão, no seu solstício, portanto, exatamente ao meio dia, o Sol estava no zênite 42, isto é, não havia sombra ao pé do gnômon. Isso provocava um fenômeno que causava admiração nos moradores de Siene, no Egito, onde ocorria: nesses dias, o Sol podia ser visto totalmente refletido na superfície da água de poços profundos. Em outras palavras, o Sol fazia um ângulo de 0º com a vertical. Eratóstenes observou que nessa mesma hora, em Alexandria, cidade que se encontrava no mesmo meridiano43 e a uma distância de 5000 estádios ao norte de Siene, o Sol fazia um ângulo equivalente a 1/50 do círculo ou, em termos modernos, cerca de 7º. A figura 6 ilustra a situação aqui descrita. Observando-se a figura 7 pode-se notar que da igualdade dos ângulos S'OZ e S''AZ, conclui-se que a distância AS, isto é, a distância entre as cidades de Alexandria e Siene, é 1/50 da circunferência da Terra. Assim, a circunferência da Terra deve valer 50 vezes 5000 estádios, ou seja, 250000 estádios.

42

Zênite é o ponto da esfera celeste cortado pela vertical do lugar. Meridianos são círculos máximos, que dividem a Terra em hemisférios, perpendiculares ao Equador terrestre. 43

33

Figura 7. Os ângulos.

Não se sabe ao certo o valor da unidade estádio. Algumas estimativas sugerem que a medida de Eratóstenes estaria entre 37000 e 45000 quilômetros, bem próxima do valor de 40000 quilômetros aceito atualmente. Desta forma, os gregos conseguiam ter uma boa estimativa do tamanho da Terra. 3.2.

Distâncias relativas do Sol e da Lua à Terra

Outro pensador grego de muita importância no que diz respeito a determinações de distâncias astronômicas foi Aristarco de Samos que, como já foi mencionado anteriormente, ficou mais conhecido como um precursor das ideias heliocêntricas. Ele também viveu no século III AC, sendo cerca de 30 anos mais velho que Eratóstenes. Seus escritos, onde ele apresentava a hipótese do sistema heliocêntrico, não chegaram até nós, porém seu tratado sobre os tamanhos e distâncias do Sol e da Lua, provavelmente escrito por volta de 260 AC, onde ele apresentava suas medidas astronômicas, sobreviveu.

34

Figura 8: Inicialmente Aristarco determinou uma estimativa relativa das distâncias do Sol e da Lua e de seus tamanhos. Ele conseguiu isso medindo o ângulo LTS, subtendido pelos centros do Sol e da Lua, vistos da Terra, quando a Lua está exatamente meio-cheia. Nessa situação, Aristarco observou que o ângulo TLS é um ângulo reto, e que o ângulo LTS difere de aproximadamente 1/30 de um quadrante.44

Em termos de graus isso significava um ângulo de 87º. Assim, na figura 8, no triângulo indicado teríamos a seguinte razão: 𝑇𝐿 𝑇𝑆

1

= 19 .45

Aristarco concluiu que a distância da Terra ao Sol era 19 vezes a distância da Terra à Lua. 3.3.

Tamanhos relativos do Sol e da Lua

No tratado de Aristarco, acima mencionado, eram apresentados também os tamanhos relativos do Sol e da Lua baseados no fato de ambos aparentarem o mesmo tamanho quando vistos da Terra, conforme está indicado na figura 9. Há controversas entre os historiadores e divulgadores da ciência sobre qual teria sido o ângulo determinado por Aristarco. Nessa obra, Aristarco considerava o ângulo subtendido como sendo de 2º; Carl Boyer afirma que Arquimedes atribui a Aristarco a medida de 1/2º, muito mais próxima ao valor atualmente aceito. 46

44

Esta forma de medida é um indicativo de que o círculo de 360º ainda não era utilizado nessa época. (Cf., Carl Boyer, op. cit., nota 10, pág. 116). 45 É preciso notar que 𝑠𝑒𝑛 3° = 1⁄19. 46 Carl Boyer. Op. cit., nota 10, pág. 117.

35

Figura 9. Tamanhos aparentes do Sol e da Lua, em uma situação de um eclipse solar total47

Com uma argumentação ainda mais engenhosa, Aristarco conseguiu determinar essas medidas em estádios. De qualquer forma, usando a percepção de que o Sol e a Lua tem o mesmo diâmetro angular, claramente observado num eclipse lunar total, Aristarco concluiu que o diâmetro do Sol seria entre 18 e 19 vezes o diâmetro da Lua. 3.4.

Tamanhos absolutos do Sol e da Lua

Assim, Aristarco teve que analisar uma configuração específica de um eclipse lunar total, como indicada na figura 10. Nessa figura, assumimos os valores 19d (19 vezes o diâmetro da Lua) para o tamanho relativo do Sol, e 19R (19 vezes a distância entre a Terra e a Lua), para a distância relativa entre o Sol e a Terra, determinadas por Aristarco e brevemente exposta nas sessões anteriores. De forma bastante simplificada, e levando em consideração as medidas acima descritas, eis alguns passos de seu raciocínio: 1. Aristarco observou e mediu um eclipse lunar de máxima duração, isto é, um eclipse no qual a Lua está situada no plano da eclíptica, passando pelo centro da sombra da Terra. Nessa situação a Lua, a Terra e o Sol estão perfeitamente alinhados. 2. Ele mediu o intervalo de tempo t que começa no instante em que a Lua começa a desaparecer e termina no instante em que a Lua desaparece integralmente na sombra. 3. Mediu também o intervalo de tempo durante o qual a Lua permaneceu totalmente obscurecida. Aristarco encontrou aproximadamente o mesmo valor t anterior. 4. Daí concluiu que a largura da sombra, na posição ocupada pela Lua, deveria ser de aproximadamente duas vezes o diâmetro da própria Lua.

47

Figura extraída de Evans, James, Op. cit., nota 13, pág. 69.

36

Figura 10. Um eclipse lunar de máxima duração onde d = diâmetro da Lua; D = diâmetro da Terra; R = distância da Terra à Lua; x = distância da Lua ao extremo da sombra

6. A figura 10 torna clara a presença de três triângulos cujas bases medem 2d, D e 19d e cujas alturas são, respectivamente, 𝑥, 𝑥 + 𝑅 e 𝑥 + 20𝑅. É claro que esses valores são apenas aproximados, como fica evidente a partir das considerações anteriores. 7. Comparando o triângulo menor com o maior, obtém-se a seguinte razão entre suas alturas:

𝑥 𝑥 + 20𝑅 = 2𝑑 19𝑑 40𝑅 Resolvendo, obtém-se: 𝑥 = . 17 8. Comparando os triângulos menor e médio, obtém-se:

𝑥 𝑥+𝑅 = 2𝑑 𝐷 Substituindo-se aqui o valor de x e resolvendo para d, obtém-se: 20

𝑑 = 57 𝐷 ou 𝑑 ≅ 0,35𝐷 . Assumindo que o diâmetro do Sol é 19 vezes o diâmetro da Lua, obtém-se: 𝑑𝑆 ≅ 6,6𝐷 . Desta forma, conhecendo-se o diâmetro da Terra, por exemplo, o valor calculado por Eratóstenes, era possível calcular os tamanhos do Sol e da Lua.

37 3.5.

Distâncias do Sol e da Lua a Terra

As distâncias do Sol e da Lua à Terra podem ser obtidas da seguinte maneira: como ambos subtendem um mesmo ângulo de cerca de 1/2º e como a circunferência toda tem 360º, considerando-se que suas órbitas sejam circulares são necessários 720 de seus diâmetros para cobrir inteiramente suas respectivas circunferências, isto é: 2𝜋𝑑 𝑇𝐿 = 720𝑑. Como 𝑑 ≅ 0,35𝐷., obtém-se: 𝑑 𝑇𝐿 ≅ 40𝐷. Analogamente, 2𝜋𝑑 𝑇𝑆 = 720𝑑𝑆 . Como 𝑑𝑆 ≅ 6,6𝐷., obtém-se: 𝑑 𝑇𝑆 ≅ 764𝐷. A tabela abaixo permite que comparemos os valores obtidos por Aristarco com os valores atualmente conhecidos: Tabela 1: Valores das distancias relatados por Aristarco comparados aos valores atuais 48

Valores de Aristarco 𝑑 ≅ 0,35𝐷 𝑑 𝑇𝐿 ≅ 40𝐷 𝑑𝑆 ≅ 6,6𝐷 𝑑 𝑇𝑆 ≅ 764𝐷 𝑑 𝑇𝑆 ≅ 19𝑑 𝑇𝐿

Valores Atuais 𝑑 ≅ 0,27𝐷 𝑑 𝑇𝐿 ≅ 30𝐷 𝑑𝑆 ≅ 109𝐷 𝑑 𝑇𝑆 ≅ 11728𝐷 𝑑 𝑇𝑆 ≅ 389𝑑 𝑇𝐿

Aristarco nessas determinações cometeu uma série de erros de medida por limitações técnicas. É preciso não esquecer que suas observações eram realizadas sem o auxílio do telescópio. Assim, na determinação do ângulo correspondente à posição da Lua meio-cheia, um erro de 1/2 grau, extremamente pequeno para observações a olho nu, acarretaria um erro muito grande na determinação das distâncias relativas entre o Sol e a Lua. Além do mais, é muito difícil precisar exatamente quando a Lua está meiocheia, como também é difícil determinar com exatidão os centros do Sol e da Lua. Thomas Kuhn faz as seguintes observações: "Os métodos empregados nestes cálculos são brilhantes, tipificam os melhores esforços dos cientistas gregos, mas os resultados numéricos, particularmente aqueles relativos ao Sol, são uniformemente pouco precisos 48

Disponível em: http://astro.if.ufrgs.br/ssolar.htm. Acessado em 20 de julho de 2017.

38 por causa do erro inicial na determinação da separação angular do Sol e da meia Lua. (...) A possibilidade de fazer medidas astronômicas ilustraram a grande utilidade do universo Aristotélico-Ptolomaico. (...) Finalmente, e mais importante, a medida da distância da Lua forneceu uma régua astronômica que, durante a Idade Média, foi utilizada para dar uma medida indireta do tamanho de todo o universo."49

49

Thomas Kuhn. Op. cit., nota 17, págs. 277/278.

39

Capítulo 4. Algumas ideias sobre a mecânica na Idade Média 4.1.

O "esquecimento" do conhecimento grego

Vimos até aqui o estabelecimento de uma visão do mundo físico que considerava a Terra esférica e imóvel num centro ao redor do qual circulavam todos os demais corpos celestes. O sistema aristotélico-ptolomaico, paradigma dessa visão de mundo, conseguia salvar as aparências dos fenômenos observados, isto é, reproduzia com construções geométricas sofisticadas o que era possível observar desde a terra imóvel. Estudamos também brevemente a concepção de movimento local, desenvolvida por Aristóteles, subdividido nas categorias natural e violento. Foi também exemplificada a possibilidade que a ciência grega oferecia de efetuar medidas astronômicas. Nas seções seguintes vamos abordar o que ocorreu com o conhecimento científico dos gregos no período que vai das últimas contribuições dos filósofos gregos, no início da era cristã, até o nascimento da mecânica, nos séculos XVI e XVII. De novo é necessário frisar que será uma abordagem limitada a alguns eventos que darão apenas uma pálida ideia deste período. Não estaremos também, certamente, fazendo justiça às diferentes interpretações relativas a este período da história da ciência. De qualquer forma, creio que será suficiente para contrastar com a revolução científica iniciada por Nicolau Copérnico no século XVI. O conhecimento grego havia se espalhado por todo o mundo ocidental de então, toda a Europa, parte da Ásia e parte da África. Com o declínio do império romano, já nos primeiros séculos da era cristã, a influência da cultura grega começou a diminuir rapidamente, principalmente devido ao fato de que os cristãos condenavam o conhecimento que teria sido produzido por um povo pagão. Embora a ideia, presente em muitas interpretações históricas, de que o mundo ocidental teria entrado num período histórico que ficou conhecido como Idade das Trevas, esteja hoje sendo abandonada devido a um melhor conhecimento produzido pela moderna história medieval, não se pode deixar de reconhecer que houve uma espécie de declínio do conhecimento no ocidente. Podemos reconhecer que esses séculos que antecederam o Renascimento, as grandes navegações, as mudanças sociais que se desenharam na Europa a partir do século XIV, foram responsáveis pela gestação de todas essas mudanças. Porém, aquela explosão cultural grega realmente ficou um tanto quanto congelada nesse período. Não só as populações, as construções das cidades, as técnicas em geral, sentiram essa decadência, mas também os trabalhos dos grandes filósofos gregos foram alvo de perseguição, destruição e mutilação, principalmente por parte dos cristãos. Por exemplo, em 389, a grande e importante biblioteca de Alexandria foi incendiada perdendo a maior

40 parte do seu acervo que era constituído, principalmente, por originais dos trabalhos dos filósofos gregos.50 Apenas para situar esse período com alguma data significativa para a história da ciência, basta mencionar o ano de 415 que marca o assassinato, por uma turba cristã, da última grande matemática grega, Hipatia. Nessa época, era comum acontecerem lutas entre os pagãos gregos e os cristãos. A morte dessa matemática serve como exemplo desses acontecimentos. "(...) Hipatia, uma jovem culta que escreveu comentários sobre Diofante, Ptolomeu e Apolônio. Devota ardente da cultura pagã, Hipatia atraiu a inimizade de uma fanática multidão cristã em cujas mãos sofreu uma morte cruel em 415. O impacto dramático de sua morte em Alexandria fez com que esse ano fosse tomado por alguns como marco do fim da matemática antiga, mas um fecho mais adequado se acha um século depois."51 Nessa época, portanto, envolvendo todos os povos europeus, houve um choque entre a concepção de mundo dos gregos e aquela baseada na interpretação da Bíblia. Duas cosmologias que não tinham, nesse momento, um denominador comum que seria descoberto bem mais tarde. Assim, a descrição do mundo produzida pelos gregos não combinava com a descrição das águas supracelestiais mencionadas no Gênesis. Esta se aproximava mais das cosmologias babilônicas e egípcias. Nessa disputa, os cristãos levaram a melhor... O conhecimento grego passou por um momento de censura. A Europa, a partir do século IV, perdeu sua herança cultural mais importante. A astronomia grega foi particularmente visada nesse processo. Para impor sua fé os cristãos combateram o paganismo e seu conhecimento nas artes e nas ciências. Como o conhecimento do idioma grego foi desaparecendo, e como a Igreja não estimulava nem apoiava a tradução para o latim das obras dos filósofos gregos, seu conhecimento foi realmente banido da Europa. Mas, mesmo assim, grande parte desse conhecimento foi preservada, principalmente devido ao cuidadoso tratamento dado pelos povos árabes que não só traduziram inúmeras obras dos filósofos gregos como acrescentaram algumas importantes contribuições. Veremos algo sobre esse papel dos árabes na seção 4.2. Apenas algumas das obras menos polêmicas e mais adaptáveis às concepções bíblicas ganharam traduções latinas. Isso ocorreu, por exemplo, com algumas partes da 50

Creio que o livro O nome da Rosa, de Umberto Eco, que narra uma aventura medieval envolvendo os livros de Aristóteles, tenha sido inspirado nesse tipo de acontecimento. 51 Carl B. Boyer. Op. cit., nota 10, pág. 139.

41 obra de Platão que, como vimos, apresentava estrutura e conteúdo de fundo idealista mais propício para uma reinterpretação religiosa. A obra de Platão influenciou, entre outros, a Santo Agostinho que foi, provavelmente, o mais influente pensador do período inicial do domínio cristão. Thomas Kuhn defende a ideia de que Santo Agostinho, apesar de ter sido um importante filósofo, colaborou para o esquecimento e desprezo do conhecimento grego. Kuhn cita, como exemplo, o seguinte trecho de um trabalho de Agostinho, o Enchiridion ou manual para os cristãos: "Quando, então, pergunta-se no que devemos acreditar com relação à religião, respondo que não é necessário investigar a natureza das coisas, como faziam aqueles a quem os gregos chamavam de 'físicos'. Nem devemos ficar alarmados e amedrontados de que os cristãos ficariam ignorantes da força e número dos elementos, o movimento, ordem e eclipses dos corpos celestes; a forma dos céus; as espécies e a natureza dos animais, plantas, pedras, fontes, rios, montanhas; sobre cronologia e distâncias; os sinais que antecedem as tempestades; e um milhar de outras coisas que aqueles filósofos descobriram ou pensavam haver descoberto (...). Para o cristão é suficiente acreditar que a única causa de todas as coisas criadas, sejam celestes ou terrestres, sejam visíveis ou invisíveis, é a bondade do criador, o único Deus; e que nada existe, exceto Ele próprio, que não deva sua existência a Ele."52 Tal declaração de fé não impediu Santo Agostinho de estudar os trabalhos de alguns filósofos gregos, entre eles, Platão. Mas sua atitude era, como afirma Kuhn, no geral, anticientífica.53 Com bases semelhantes às de Santo Agostinho, porém não tão bem elaboradas, outros pensadores cristãos depreciavam e ridicularizavam o valor espiritual da ciência grega. Eles rejeitavam também seu conteúdo, suas propostas teóricas e sua visão de mundo. A astronomia, que continuava a ser desenvolvida, foi combatida principalmente devido a suas ligações com a astrologia. O conteúdo determinista da astrologia era considerado incompatível com o ensinamento bíblico. Ainda no século IV, São Lactâncio, que tinha certa influência por que era tutor dos filhos do imperador Constantino, havia se mostrado muito menos iluminado que Santo Agostinho. Ele combatia o conceito de Terra esférica pois isso implicava algumas consequências desagradáveis ou impossíveis, tais como a crença na existência de 52 53

Thomas S. Kuhn. Op. cit., nota 17, pág. 106. Idem.

42 lugares onde as pessoas teriam seus pés acima de suas cabeças ou onde a chuva e a neve cairiam para cima! No século VI, o monge Cosmas se perguntava como seria possível para a Terra flutuante emergir das águas no terceiro dia da criação ou, ainda, como a Terra poderia ter sofrido a inundação total à época de Noé. Ao invés da Terra esférica ele a concebia na forma de um tabernáculo. Arthur Koestler cita, como significativo, o seguinte trecho de sua obra Topographica Christiana: "O Santo Tabernáculo, descrito no Êxodo, era retangular e duas vezes mais longo que largo; logo, a Terra possui a mesma forma, e está situada no sentido do comprimento de leste a oeste, no fundo do universo. Ela é circundada pelo oceano, como a mesa do pão, no ritual judaico, está rodeada pela franja ondulada; e o oceano está rodeado por outra terra, o lugar do Paraíso, e habitação do homem até o dia em que Noé atravessou o oceano, estando agora desabitada. Das extremidades dessa terra exterior e deserta erguem-se quatro planos verticais, que são as paredes do universo. O teto é um semicilindro repousando sobre as paredes do norte e do sul, o que dá ao universo o aspecto de barraca ou de baú de viagem com tampa curva. ” Contudo, o piso, isto é, a terra, não é chato; pelo contrário, inclina-se de noroeste a sudeste, pois está escrito no Eclesiastes i.5, que 'o sol desce e volta ao lugar onde nasceu'. Consequentemente, os rios, como o Eufrates e o Tigre, que correm para o sul, possuem corrente mais rápida que o Nilo que corre 'para cima'; e os barcos navegam mais depressa para o sul e leste do que os barcos que devem 'subir' para o norte e o oeste, sendo estes últimos chamados 'indolentes'. As estrelas são levadas por anjos pelo espaço abaixo do teto do universo, e ficam ocultas quando passam atrás da parte norte da terra, encimada por gigantesca montanha cônica, a qual oculta o sol da noite, sendo o sol muito menor que a Terra."54 Embora hipóteses cosmológicas como essa nunca tenham sido elevadas à categoria de doutrinas da Igreja, constituíam candidatas a paradigma, substituindo o paradigma geocêntrico de terra esférica e imóvel dos gregos. Essas cosmologias ilustram a decadência da aprendizagem secular que caracterizou esse período da história.

54

Arthur Koestler, op. cit., nota 12, pág. 57.

43 4.2.

Alguns físicos medievais

Mas, apesar de todas as dificuldades que deviam encontrar para poder desempenhar bem seu intento, existiram intelectuais que trabalhavam com as ideias gregas. Esse foi o caso, por exemplo, de João Filopono, um destacado crítico medieval que nasceu por volta de 475 e morreu em 565. Filopono, criticando o que afirmava Aristóteles, acreditava que a velocidade de um móvel não seria proporcional à razão entre força e resistência, mas sim à diferença entre elas. Desta forma ele rejeitava a impossibilidade de movimento no vazio. Ele criticava também a antiperístase utilizada por Aristóteles na tentativa de explicar o movimento dos projéteis. Filopono procurava explicar o movimento dos projéteis utilizando a ideia de força impressa ou impetus não permanente, isto é, que se esvai com o tempo, já idealizada por Hiparco no século II AC. Ele afirmava que: "É necessário assumir que alguma força motora incorpórea é fornecida ao projétil pelo movente, e o ar colocado em movimento contribuirá muito pouco ou realmente nada para o movimento do projétil."55 A partir dos séculos VIII e IX, quando o conhecimento pagão grego não se constituía mais numa ameaça à hegemonia intelectual da Igreja, os clérigos começaram a ter permissão para devotar parte de seu tempo de lazer na aquisição do conhecimento grego. Assim, ao longo dos séculos seguintes uma série de pensadores ocidentais entrou em contato com o conhecimento dos gregos bem como dos eventuais comentadores medievais, principalmente os árabes. A natureza das coisas, incluindo os céus e a terra, novamente tornava-se objeto de estudo intensivo por parte dos intelectuais europeus, quase todos partem integrantes de diferentes irmandades da Igreja. Nesse processo, muitas das ideias de Platão, Aristóteles, Ptolomeu e de outros filósofos gregos foram redescobertas e, às vezes, aceitas, confrontando-se com as ideias então dominantes. Koestler apresenta esse renascimento da cultura grega com estas palavras: “A partir do século XII, os trabalhos, os fragmentos de trabalhos de Arquimedes e Heron de Alexandria, de Euclides, Aristóteles e Ptolomeu, começaram a flutuar na cristandade como destroços fosforescentes de naufrágio. Será fácil imaginar quão tortuoso foi o processo pelo qual a Europa recuperou a sua herança do passado, se refletirmos que alguns dos tratados científicos de Aristóteles, inclusive a Física, haviam sido 55

Citado por Allan Franklin. The principle of inertia in the middle ages. Colorado Ass. Univ. Press, 1976, pág. 6.

44 traduzidos do original grego para o sírio, do sírio para o árabe, do árabe para o hebraico e, finalmente, do hebraico para o latim medieval. O Almagesto de Ptolomeu era conhecido em várias traduções árabes através do império de Harum-al-Rachid, desde o Indo até o Ebro, antes que Gerardo de Cremona, em 1175, o retraduzisse do árabe para o latim. Os Elementos de Euclides foram redescobertos para a Europa por um monge inglês, Adelardo de Bath, o qual, por volta de 1120, achou uma tradução árabe em Córdoba. Recuperados Euclides, Aristóteles, Arquimedes, Ptolomeu e Galeno, a ciência podia recomeçar onde fora interrompida um milênio antes. ” 56 Vale a pena apresentar brevemente algo da presença árabe na Idade Média. Os historiadores destacam o século VII como a entrada árabe na História da Ciência. A grande divulgação realizada pelos árabes a partir desse período estendeu a ciência grega muito além do que conseguira Alexandre Magno. Os árabes tinham uma ciência organizada por meio de suas universidades e escolas. No século VIII, logo após sua fundação em 762, Bagdá tornou-se um centro literário e científico e, no califado de Al-Mansur, seu fundador, criou-se a Escola de Bagdá, com destaque para a Medicina e a Astronomia. Por razões astrológicas e astronômicas a Astronomia tornou-se a ciência favorita dos árabes dos séculos VII e VIII. É desta época a primeira tradução do Almagesto de Ptolomeu, que teria sido realizada por iniciativa do califa Harun al Rasid (765-809).57 Os árabes, como outros povos medievais, aceitaram a visão de mundo geocêntrica resumida no livro Almagesto. Utilizaram os epiciclos e os excêntricos e aprimoraram a forma e o conteúdo das observações celestes. Para tanto construíram muitos observatórios de grande porte e com maior precisão. Podemos destacar alguns astrônomos árabes que deram contribuições vitais para a eclosão da Revolução Científica no século XVII. Al Farghani (c. 850) fez ótimas medidas astronômicas, apresentadas no seu Compêndio de Astronomia, que ainda foi utilizado como manual na Europa do século XVII. Suas estimativas para as distâncias celestes, principalmente as relacionadas com a Lua e as estrelas fixas, deram força para o universo das duas esferas de Aristóteles. Outro astrônomo árabe importante foi Al Battani (c. 858-929), da Escola de Bagdá, que também escreveu um tratado de astronomia, obteve valores mais precisos da obliquidade da eclíptica, da precessão dos equinócios e de posições do Sol e da Lua. Seus dados foram valorizados por vários estudiosos, com destaque para Copérnico. Al 56 57

Arthur Koestler. Op. cit., nota 12, pág. 67. Arthur Berry. A short history of astronomy. New York, Dover Paperbound, 1961, págs. 77/78.

45 Battani foi também responsável pela difusão do uso da trigonometria do seno, de influência hindu. Abu’l Wafa (940-998), também um grande matemático, tratou a trigonometria como assunto independente além do seu uso sistemático na astronomia. 58 Vários outros astrônomos árabes poderiam ser mencionados, como Al Khowarismi (c. X-850) [autor da famosa Álgebra] e seus tratados sobre o astrolábio (que era utilizado para marcar o tempo preciso do dia e da noite pela observação da altura do Sol ou de uma estrela) e o relógio de Sol; Al Sufi (903-986) e seu Livro das estrelas fixas; Al Hazen (965-c. 1040) e seu estudo sobre os planetas. Os árabes mantiveram sem interrupção as observações astronômicas da antiguidade. Muito ainda poderíamos acrescentar sobre o desenvolvimento astronômico e físico produzido pelos árabes. Creio que as seguintes palavras de Thomas Kuhn sirvam para estabelecermos uma ponte de volta à Europa, comentando a recuperação da herança grega: “Durante os séculos em que o ensino na Europa estava em plena decadência, ocorreu o grande renascimento da ciência no mundo muçulmano. [...] Os filósofos muçulmanos inicialmente reconstituíram a ciência antiga [...] E depois acrescentaram suas contribuições. Eles produziram avanços originais fundamentais em matemática, química e óptica [...]. [A Europa] cristã recuperou o ensino antigo a partir dos árabes e usualmente em traduções árabes. ” 59 Não podemos deixar de considerar que essa redescoberta do conhecimento grego, na Europa do século XII, é restrita a uma pequena parcela de intelectuais. A grande maioria das pessoas desse período da Idade Média, e dos três séculos seguintes, ainda vivia sob a crença dominante iniciada nos primeiros séculos da era cristã. Uma visão dominada pelos ensinamentos religiosos, bíblicos, em que a terra tinha a forma de um tabernáculo, era plana e ficava, talvez, flutuando sobre águas profundas ou era sustentada por alguma artimanha mágica, cercada de monstros por todos os lados. Até o século XIV eram construídos mapas representando a Terra de forma retangular. Os anjos tinham também uma função específica: empurrar os corpos celestes nas suas órbitas! Portanto, a volta da cultura grega não aconteceu da noite para o dia. Ao contrário, foi uma longa caminhada que envolveu aceitação e censura, obstinação e ousadia. 58

John North. The Fontana History of Astronomy and Cosmology. London, Fontana Press, 1994, pág. 188. 59 Thomas S. Kuhn, op. cit., nota 17, págs. 100/101.

46 Mesmo no interior da própria Igreja havia posições antagônicas. Se de um lado havia aqueles que aceitavam parte das ideias gregas, de outro lado havia as proibições institucionais localizadas. Por exemplo, em 1210, um conselho provincial de Paris proibia o ensino da física e da metafísica aristotélicas. No século XIII os religiosos pertencentes à ordem dos Dominicanos defendiam o sistema de Aristóteles. Entre esses dominicanos destacava-se a figura daquele que foi considerado o maior teólogo desse período, São Tomás de Aquino (1225-1274). Ele procurou acomodar a física aristotélica com os ensinamentos contidos no gênese cristão. Por outro lado, os Franciscanos não aceitavam a obra aristotélica. A disputa entre essas duas ordens religiosas refletia as diferentes formas de conceber o mundo, decorrentes dos papéis sociais desempenhados por cada uma delas. Daí originaram-se também duas concepções distintas de interpretação dos fenômenos físicos: uma totalmente apoiada em Aristóteles e no Almagesto de Ptolomeu e outra com críticas mais ou menos severas a essa concepção. Assim, por intermédio de São Tomás de Aquino a hegemonia do círculo retomou sua trajetória europeia interrompida por volta do século IV ganhando, além do status pré-paradigmático de caráter científico, a força de um dogma da Igreja. Pois, como dizia São Tomás de Aquino: "O material dos corpos celestes é, por sua natureza intrínseca, não susceptível à geração e corrupção (...) A única espécie de mudança que os corpos celestes experimentam é o movimento (...) Além do mais, entre os tipos de movimentos que podem experimentar, o deles é circular." 60 Desta forma, o século XIII testemunhou o ressurgimento do paradigma aristotélico-ptolomaico agregado aos comentários dos físicos medievais, os árabes aí incluídos. A Europa redescobriu sua herança intelectual. A Igreja, que dez séculos antes combatia a propagação pela Europa das ideias aristotélicas, agora não só as defendia como as elevava à categoria de doutrina. A imobilidade da Terra passava a ser santificada pela Igreja! Porém, como já foi afirmado antes, além da física aristotélica ressurgiu também aquilo que alguns historiadores chamaram de notas de rodapé críticas a essa física. A física aristotélica era essencialmente não inercial, isto é, só poderia haver movimento na presença de um movente. O historiador da física Allan Franklin afirma o seguinte:

60

Citado por Thomas Kuhn. Op. cit., nota 17, pág. 109.

47 "(...) embora as ideias de Avempace, Filopono, e seus seguidores não são inerciais, desde que ainda é necessária uma força para ter movimento, elas constituem um importante primeiro passo. Elas removem a necessidade do meio e sua resistência para o movimento e consideram a possibilidade do movimento no vazio, sem resistência."61 Assim, a teoria da força imprimida, ou impetus, era incompatível com uma física inercial, isto é, não cabia nela um princípio da inércia. No século XIV, João Buridan (1300-1358) adotou uma versão modificada da física do impetus. Para ele o impetus não era algo que se esvaía, que durava apenas um certo tempo, como imaginava Filopono. Ele considerou um impetus permanente, isto é, que agiria até o instante em que surgisse resistência ou forças que se lhe opusessem. Outra diferença: para Buridan o impetus era proporcional à quantidade de matéria, o que atualmente nós denominaríamos de massa do corpo, e à sua velocidade e seria aplicado indistintamente a movimentos lineares e circulares. Assim, o conceito de impetus de Buridan incorporava, de certa forma, os conceitos que após Newton seriam conhecidos por momento linear e momento angular. Como curiosidade, e exemplo de argumentação de Buridan, eis como ele aplicava seu conceito de impetus para explicar a queda acelerada de um corpo: "Destas razões segue que deve-se imaginar que um corpo pesado adquire movimento não apenas devido ao seu principal movente, a gravidade, mas que ele também adquire para si próprio um certo impetus com aquele movimento. Este impetus tem o poder de mover o corpo pesado em conjunção com a gravidade natural permanente. E porque esse impetus é adquirido em comum com o movimento, quanto mais rápido for o movimento, maior e mais forte será o impetus. Assim, no início o corpo pesado é movido apenas por sua gravidade natural; portanto, é movido vagarosamente. A seguir é movido pela mesma gravidade e pelo impetus adquirido ao mesmo tempo; consequentemente, move-se mais rapidamente. E como o movimento se torna mais rápido, o impetus se torna maior e mais forte, e, portanto, o corpo pesado move-se sob a ação de sua gravidade natural e desse impetus maior, simultaneamente, e assim de novo se moverá mais rapidamente; e assim, ele será sempre e continuamente acelerado até o fim." 62

61 62

Allan Franklin. Op. Cit., nota 46, pág. 35. Allan Franklin. Op. cit., nota 46, págs. 35.

48 Como era comum nesse período, e isso também teria ocorrido com Leonardo da Vinci, entre outros, Buridan não deixou claro se considerava a velocidade de queda dependente do tempo decorrido ou da distância percorrida. Aliás, essa dúvida persistiu atingindo até René Descartes e Galileu Galilei que tiveram muita dificuldade em lidar com ela. Ainda no mesmo século XIV, Nicolau Oresme (1325-1382) acreditava que a velocidade de um corpo em queda era proporcional ao tempo, porém era partidário do impetus que se esvai e que seria função tanto da velocidade quanto da aceleração. Da mesma forma que alguns de seus precursores, Oresme imaginava como seria o movimento de um objeto deixado cair num túnel diametral passando pelo centro da Terra. Chegou à conclusão que o movimento seria oscilatório à semelhança do que ocorre com o movimento de um pêndulo. É importante ressaltar uma característica marcante da definição de impetus que estava presente em todos esses pensadores medievais: havia uma confusão entre causa e efeito do movimento por parte do impetus, isto é, às vezes o impetus era entendido como força que provocava o movimento - causa do movimento - e às vezes era entendido como qualidade do movimento - efeito do movimento. É por isso que não se podia falar na existência de um princípio de inércia em Buridan e seus contemporâneos. No século XV encontramos Nicolau de Cusa (1401-1464) atribuindo o movimento das esferas celestes à ação do impetus. Cusa, seguidor de Buridan, que já havia escrito sobre o impetus circular, discutia a possibilidade do movimento perpétuo sobre uma terra perfeitamente lisa, ideia que foi posteriormente utilizada por Galileu. A mecânica terrestre começava a se encontrar com a mecânica celeste, algo proibido pela separação imposta pela visão de mundo aristotélica. A herança grega chegava no momento certo, no lugar correto e nas mãos que haveriam de provocar uma verdadeira revolução, a revolução copernicana.

49

Capítulo 5. A revolução copernicana Cristóvão Colombo (~1451-1506) descobriu – ou invadiu? - a América em 1492, ano em que Nicolau Copérnico, jovem estudante, tinha dezoito anos. Copérnico, nascido na Polônia em 1473, viveu num período de profundas mudanças na Europa. Era o Renascimento. Ocorriam transformações nas artes, nas maneiras de vida, na economia, no Estado e nas técnicas. Era o período de um forte incremento no comércio entre cidades próximas e distantes, o que provocaria o ciclo das grandes navegações. Com Colombo, que alguns historiadores chegaram a atribuir conhecimentos de física, abriu-se de vez o véu que cobria a esfericidade da Terra, que havia sido considerada plana durante a Idade Média, para a maioria das pessoas desse período. Com Colombo a esfericidade teórica da Terra ganhou notoriedade prática. Os temores provocados nos navegadores devido aos abismos nos extremos da Terra plana estavam com seus dias contados. O século XV estava terminando e com ele os tempos medievais. 5.1.

A proposta de Nicolau Copérnico

À época de Copérnico o sistema aristotélico-ptolomaico, apesar de aceito e imposto pela grande maioria dos estudiosos de astronomia, enfrentava uma série de dificuldades. Alguns problemas não podiam ser resolvidos dentro das condições dadas pelo paradigma dominante. Eis alguns deles: 1. Oferecer uma explicação convincente sobre o movimento retrógrado dos planetas; 2. Explicar porque Vênus e Mercúrio sempre são vistos nas proximidades do Sol; 3. Explicar porque Marte, Júpiter e Saturno podiam ser vistos em oposição ao Sol; 4. Explicar a ordem de afastamento dos planetas com relação ao Sol. A técnica de salvar as aparências dos fenômenos, mesmo com essas dificuldades, continuava a sobreviver devido à solução de problemas práticos, como a localização no mar pela posição das estrelas e ao fato de assentar-se sobre a imobilidade da Terra, confirmada pelos sentidos. Este último fato era particularmente importante pois os únicos candidatos presentes na civilização grega para substituir o paradigma geocêntrico estavam baseados no movimento da Terra. No começo do século XVI, Copérnico estudava em detalhe a astronomia geocêntrica pois trabalhava na elaboração de mapas celestes para localização no mar. Ele também escrevia trabalhos sobre a arte da navegação. Era como se estivesse se preparando para o grande trabalho que provocaria um acontecimento que levaria seu nome, a

50 revolução copernicana, que transcendeu de muito sua importância astronômica, como sugere Thomas Kuhn ao afirmar que "A reforma astronômica não é, contudo, o único sentido da Revolução. Outras alterações radicais sobre o conhecimento da natureza seguiram-se à publicação do De revolutionibus de Copérnico, em 1543. Muitas dessas inovações, que culminaram, um século e meio depois, na concepção newtoniana de universo, foram subprodutos inesperados da teoria astronômica de Copérnico."63 A astronomia voltava a desempenhar um papel importante na vida das pessoas, não só por causa da sua relevância para as grandes navegações, mas também, devido ao desenvolvimento da astrologia. Copérnico, figura polêmica e contraditória, descrita de diversas maneiras por diferentes historiadores da ciência, foi um legítimo pensador revolucionário da Renascença. Foi educado na leitura dos grandes filósofos gregos. Cedo chegou à conclusão de que o universo descrito por Ptolomeu era insatisfatório e confuso. Por volta de 1510, quando tinha trinta e sete anos, Copérnico redigiu sua primeira apresentação pública, mas pouco divulgada de seu sistema heliocêntrico. Trata-se da obra Nicolai Copernic de hypothesibus mottuum caelestium a se constitutis commentariolus64, onde se encontra um breve sumário de suas hipóteses sobre o movimento dos corpos celestes. Nesse manuscrito Copérnico apresentava suas sete exigências ou axiomas revolucionários: "1. Não existe um centro único de todos os orbes celestes ou esferas. 2. O centro da Terra não é o centro do mundo, mas apenas o da gravidade e do orbe lunar. 3. Todos os orbes giram em torno do Sol, como se ele estivesse no meio de todos; portanto, o centro do mundo está perto do Sol. 4. A razão entre a distância do Sol à Terra e à altura do firmamento é menor do que a razão entre o raio da Terra e a sua distância ao Sol; e com muito mais razão esta é insensível confrontada com a altura do firmamento. 63

Thomas S. Kuhn. Op. cit., nota 17, pág. 1. Em português tem o título Pequeno comentário sobre as hipóteses formuladas por Nicolau Copérnico acerca dos movimentos celestes, segundo tradução da obra realizada por Roberto de Andrade Martins. Commentariolus. Op. cit., nota 31. Roberto Martins apresenta uma introdução muito interessante que situa bem as ideias de Copérnico no contexto de sua época e compara as técnicas de Copérnico com as de Ptolomeu. 64

51 5. Qualquer movimento aparente no firmamento, não pertence a ele, mas à Terra. Assim a Terra, com os elementos adjacentes, gira em torno dos seus polos invariáveis em um movimento diário, ficando permanentemente imóveis o firmamento e o último céu. 6. Qualquer movimento aparente do Sol não é causado por ele, mas pela Terra e pelo nosso orbe, com o qual giramos em torno do Sol como qualquer outro planeta. Assim, a Terra é transportada por vários movimentos. 7. Os movimentos aparentes de retrogressão e progressão dos errantes não pertencem a eles, mas a Terra. Apenas o movimento desta é suficiente para explicar muitas irregularidades aparentes no céu."65 Todas essas exigências, ou axiomas como são designados por Arthur Koestler66, foram desenvolvidas constituindo o tratado De revolutionibus orbium caelestium. Nele Copérnico imaginava poder construir um sistema que recuperasse a concepção de harmonia geométrica presente nos ideais dos antigos pitagóricos, isto é, poder construir as órbitas dos corpos celestes segundo movimentos circulares perfeitos. No entanto, Copérnico teve que fazer uso dos deferentes, epiciclos e excêntricos utilizados por Ptolomeu no seu Almagesto. O que o diferenciou e valorizou face à obra do grego foi a consideração do movimento da Terra e a posição central atribuída ao Sol no comando do movimento dos demais corpos celestes.

5.2.

Problemas resolvidos pelo heliocentrismo de Copérnico

Com o heliocentrismo foram resolvidos vários problemas que levaram o geocentrismo à crise. A seguir trato de alguns deles. 1. Com a Terra girando em torno de seu eixo, o movimento diário de rotação dos corpos celestes torna-se apenas um movimento aparente. 2. Como Mercúrio e Vênus estão sempre próximos ao Sol, confirma-se que estão entre a Terra e o Sol. 3. Marte, Júpiter e Saturno estão às vezes em oposição ao Sol, pois suas órbitas em torno do Sol têm raios maiores que os da órbita da Terra. 4. As distâncias de Mercúrio e Vênus ao Sol são facilmente obtidas.

65 66

Nicolau Copérnico. Op. cit., nota 32, págs. 103/105. Arthur Koestler. Op. cit. , nota 12, pág. 97.

52

Figura 11. Posições de Mercúrio, Vênus e Terra.

Figura 12. Distância de Mercúrio ao Sol.

5. É possível explicar os movimentos retrógrados dos planetas.

Figura 13. Explicação dos movimentos retrógrados 67

6. O mundo de Copérnico. 67

Thomas S. Kuhn. Op. cit., nota 17, pág. 166.

53

Figura 14. O sistema copernicano

Podemos observar na Figura 14 que, embora o sistema copernicano seja semelhante ao ptolomaico, com a diferença de neste ser a Terra e não o Sol o centro do universo, notamos a presença de dois centros: o Sol e a Terra. Notamos também que Copérnico mantém a esfera das estrelas fixas presente no antigo sistema. A grande inovação do sistema de Copérnico é dupla: colocar o Sol no centro do universo e considerar a Terra um planeta como os demais e, portanto, em movimento. A proposta de Aristarco de Samos, quase vinte séculos depois, retorna e agora com uma melhor articulação. 7. O sistema copernicano permite o cálculo dos períodos dos planetas pela observação dos tempos decorridos entre dois máximos consecutivos dos movimentos retrógrados. Por exemplo, para o planeta Marte esse tempo é de 780 dias. Pela explicação do movimento retrógrado apresentada acima sabemos que durante esse intervalo de tempo a Terra deu exatamente uma volta a mais que Marte em torno do Sol. A ilustração da figura 15 deve ajudar a compreender esse fato.

Figura 15. Terra e Marte

54 Os pontos T1 e M1 correspondem às posições respectivas da Terra e de Marte no momento de um máximo do movimento retrógrado de Marte. Após um ano terrestre, 365 dias, os planetas estarão nas posições T2 e M2. Após um ano marciano TM, a ser determinado, os planetas estarão nas posições T3 e M3. As posições T4 e M4 correspondem a um intervalo de tempo de dois anos terrestres após o máximo de movimento retrógrado acima mencionado. Finalmente, T5 e M5 correspondem à posição de máximo do movimento retrógrado imediatamente consecutivo ao anterior, T1,M1. Representemos por T2R o intervalo de tempo entre esses dois máximos, que sabemos ser de 780 dias. Representemos por TT e TM os períodos de translação da Terra e de Marte, respectivamente, em torno do Sol. A razão T2R/TT dá o número de voltas (inteiro mais fração) da Terra em torno do Sol no tempo T2R. A razão T2R/TM dá o número de voltas de Marte no mesmo intervalo de tempo T2R. Assim, podemos escrever a seguinte relação:

𝑇2𝑅 𝑇2𝑅 − =1 𝑇𝑇 𝑇𝑀 Sabendo que 𝑇2𝑅 = 780 𝑑𝑖𝑎𝑠; 𝑇𝑇 = 365 𝑑𝑖𝑎𝑠; 𝑇𝑀 =? 𝑑𝑖𝑎𝑠. Substituindo os valores conhecidos na relação acima, obtemos o período de Marte:

𝑇𝑀 ≅ 686 𝑑𝑖𝑎𝑠, 8. O sistema copernicano permite determinar as distâncias dos planetas externos à órbita da Terra ao Sol, em função da distância da Terra ao Sol.

Figura 16. Distância dos planetas externos ao Sol

55 Em termos modernos eis o procedimento: consideremos o ângulo entre 𝑅𝑃 e 𝑅𝑇 , que são, respectivamente, as distâncias do planeta e da Terra ao Sol. Num determinado dia em que a Terra e o planeta estão alinhados, começamos a contar o tempo, t = 0, que corresponde a 𝛼 = 0°. Para 𝑡 = 𝑇2𝑅 teremos 𝛼 = 360°. Considerando constantes as velocidades orbitais da Terra e do planeta podemos escrever a seguinte relação:

𝛼 = 𝑘𝑡

(1)

A constante 𝑘 pode ser obtida de:

360° = 𝑘𝑇2𝑅 de onde

𝑘=

360° 𝑇2𝑅

(2)

Substituindo (2) em (1), obtemos:

𝛼=

360° 𝑇2𝑅

𝑡

(3)

Prosseguindo na contagem do tempo decorrido desde 𝑡 = 0, acima definido, esperamos chegar o dia em que o ângulo 𝑆𝑇2 𝑃2 é reto; isto ocorre num certo 𝑡 = 𝑡0. Substituindo este valor de t na expressão (3) obtemos o valor de 𝑎0 . Na situação acima descrita temos a seguinte relação:

𝑅𝑇 cos 𝑎0 = 𝑅𝑃 Assim, obtemos o valor da distância do planeta ao Sol:

𝑅𝑇 𝑅𝑃 = cos 𝑎0

56

Na carta-prefácio ao De revolutionibus, Copérnico escreveu o seguinte: "Portanto, assumindo os movimentos que atribuo à Terra neste trabalho, descobri após estudo longo e intensivo que, se os movimentos das estrelas errantes são referidos ao movimento circular da Terra e calculados de acordo com a revolução de cada estrela, então, não apenas os fenômenos concordam com os resultados, mas também tornam-se ligados entre si a ordem e a magnitude de todas as estrelas e esferas, e o próprio céu, de tal forma que nada pode ser movido em nenhuma parte sem colocar em risco outras partes e o universo como um todo."68 Notamos, assim, que Copérnico acreditava ter construído um sistema perfeitamente coerente, envolvendo todos os corpos celestes, coerência que ele não encontrava no sistema ptolomaico. Eis mais um trecho do De revolutionibus onde, segundo Arthur Koestler, Copérnico apresentava a "gênese do seu sistema": "Afigurou-se-me, pois, um erro ignorar certos fatos bem conhecidos de Marciano Capella, que escreveu uma enciclopédia, e de outros latinos. Acreditava ele que Vênus e Mercúrio não giram em torno da Terra como outros planetas, mas em torno do Sol, e não podem, consequentemente, afastar-se do Sol mais do que permite o tamanho da órbita. Que significa isso, senão que o Sol é o centro das órbitas deles e que eles giram em torno do Sol? Assim a esfera de Mercúrio seria envolvida pela de Vênus, duas vezes maior, e encontraria espaço suficiente no interior dela. Se nos valermos da oportunidade para dar a Saturno, Júpiter e Marte o mesmo centro, isto é, o Sol (...) cairão os seus movimentos numa ordem regular e explicável (...) E visto que agora todos estão dispostos em torno do mesmo centro, mister se faz ser preenchido pela Terra, e pela Lua que a acompanha, e por toda a matéria encontrável na esfera sublunar, o espaço deixado entre a superfície convexa da esfera de Vênus e a esfera côncava de Marte. (...) Logo, não hesitamos em afirmar que a Lua e a Terra descrevem anualmente uma órbita circular colocada entre os planetas interiores e os

68

Nicolau Copérnico. De revolutionibus orbium celestium. A. M. Duncan (tradutor do latim para o inglês). David & Charles, London, 1976, pág. 26. Existe uma edição em português, editada em Portugal.

57 exteriores em volta do Sol que permanece imóvel no centro do mundo, e que tudo que parece movimento do Sol é, na realidade, movimento da Terra."69

5.3.

Desafios ao sistema copernicano

Como todo e qualquer paradigma que se preze também o copernicano teve que enfrentar problemas e críticas. O desenvolvimento do sistema heliocêntrico se inicia exatamente na busca de solução para esses problemas e na superação dessas críticas. O paradigma copernicano começou a ser construído e difundido através da bem-sucedida articulação executada por seus "seguidores". Vamos tratar disso na sequência. Um dos problemas sérios é o da explicação das estações do ano. No sistema ptolomaico a solução era considerar o plano da órbita do Sol inclinado de um ângulo de 23,5º com relação ao equador celeste, como ilustra a figura 17.

Figura 17: Observador no meio do hemisfério norte (esquerda) e Observador no polo norte (direita)70

Como bom seguidor de muitos dos argumentos aristotélicos, Copérnico imaginava que a Terra estava presa a uma esfera que girava em torno do Sol. O movimento anual da Terra teria a aparência mostrada na figura 18 e o eixo da Terra apontaria para 69 70

Arthur Koestler.Op. cit., nota 12, págs. 138/139. Figura extraída e adaptada de Thomas S. Kuhn, Op. cit., nota 17, pág. 36.

58 diferentes direções ao longo do ano. Como isso não resolve o problema das estações do ano, Copérnico imaginou um terceiro movimento para a Terra segundo o qual seu eixo descreveria uma superfície cônica. Os desenhos da figura 18 ilustram melhor a situação descrita por Copérnico.

Figura 18. "Segundo e terceiro movimentos de Copérnico. O segundo movimento, aquele de um planeta fixo numa esfera girante centrada no Sol, é mostrado em (a). Este movimento não mantém o eixo da Terra paralelo a si próprio, de tal forma que o terceiro movimento cônico mostrado em (b) é necessário a fim de manter o eixo sempre apontando para uma mesma direção." 71

Essa combinação desses dois movimentos oferece a configuração necessária para explicar as estações do ano, como é ilustrado na figura 19.

Figura 19: O movimento anual da Terra ao redor de sua órbita copernicana. Em todo tempo, o eixo da Terra permanece paralelo entre ele mesmo ou para a linha estacionaria desenha pelo o Sol.

71

Figura e texto extraídos de Thomas S. Kuhn, op. cit., nota 17, pág. 165.

59 Como um resultado um observador O ao meio dia em latitudes no meio do hemisfério norte encontrara o Sol muito mais próximo do zênite no verão do que no Solstício de inverno 72

Se atribuir um único movimento para a Terra já era considerado um absurdo nessa época, imaginem como foi recebido pelos pensadores contemporâneos de Copérnico seu sistema que atribui três movimentos ao nosso planeta! Outro problema confrontado pelo sistema copernicano dizia respeito às fases de Vênus. A proposta de Copérnico implicava que Vênus deveria mostrar uma grande variação em tamanho e em brilho, o que não era observado, e não é até hoje a olho nu. Isto devido às hipóteses feitas pelo próprio Copérnico como podemos observar pela seguinte passagem do seu De revolutionibus: "De acordo com Platão e seus seguidores os planetas são corpos negros que refletem a luz do Sol, assim, se estiverem abaixo do Sol, devido à sua curta distância ao mesmo, eles serão vistos pela metade ou como discos parciais. (...) isso é semelhante ao que vemos na Lua nova ou nos quartos crescente ou decrescente da Lua."73 A figura 20 ilustra a descrição apresentada acima.

72 73

Figura e texto extraídos de Thomas S. Kuhn, op. cit. nota 17, pág. 162. Nicolau Copérnico.Op. cit., nota 61, pág. 47.

60

Figura 20: As fases de Vênus em (a) O sistema Ptolomaico; (b) O sistema Copernicano e c) como observado com um telescópio de baixa potência. Em (a) um observador na Terra deveria num poder ver mais que um fino crescente de luz na face de Vênus. Em (b) ele deveria ver quase toda a face de Vênus iluminada logo antes ou depois Vênus atravessaria o Sol. Esta quase circular silhueta de Vênus quando ele primeiro torna-se visível como um estrela noturna é desenhada por observações com um telescópio de baixa potência à esquerda no diagrama (c). As sucessivas observações desenhadas a direita mostram como Vênus diminui e simultaneamente cresce em tamanho quando o movimento orbital o aproxima da Terra74.

O desafio aqui apresentado à proposta de copernicano reside no fato de que as variações de brilho e tamanho só seriam distintamente percebidas com o auxílio do telescópio, ainda não existente à época de Copérnico. Caberá a Galileu, como veremos mais adiante, confirmar a validade da tese copernicana. Ainda um outro problema que apresentou dificuldades para Copérnico era a ausência de paralaxe, isto é, a mudança aparente na separação entre dois objetos quando observados de diferentes posições. Desta forma, se a Terra é considerada orbitar anualmente em torno do Sol, observações realizadas em diferentes épocas do ano deveriam mostrar um certo deslocamento na determinação da posição de estrelas.

74

Figura e texto extraídos de Thomas S. Kuhn, op. cit., nota 17, pág. 223.

61

Figura 21. "Paralaxe anual de uma estrela. Porque a linha entre um observador terrestre e uma estrela fixa não permanece paralela a si própria quando a Terra se move em sua órbita, a posição aparente da estrela sobre a esfera das estrelas fixas deveria sofrer um deslocamento p num intervalo de seis meses."75

Para tentar contornar este problema, Copérnico sugeriu que o raio do universo deveria ser muito maior do que pensavam os antigos gregos. Desta forma as estrelas, e sua correspondente esfera, estariam numa distância muito grande da Terra o que impossibilitaria a observação da paralaxe. Enquanto perdurou o impasse da não observação da paralaxe os geocentristas tinham mais um bom argumento contra Copérnico. A ausência de paralaxe reforçava o paradigma que considerava a Terra imóvel. Apenas em 1838, com telescópios mais potentes do que os utilizados por Galileu, o fenômeno da paralaxe foi finalmente observado. Felizmente havia outras razões para a articulação bem-sucedida do heliocentrismo. Para finalizar, entre os problemas que desafiaram o novo sistema podemos acrescentar um que normalmente é apresentado de forma errônea nos textos elementares. A saber, afirmam que o heliocentrismo é melhor no ajuste com as observações e na possibilidade de previsões. Esse não é o caso da proposta copernicana. Ao contrário, o sistema ptolomaico, que havia passado por séculos de aprimoramento, tinha desenvolvido um potencial para descrever as aparências celestes que o tornaria um inimigo competente difícil de ser derrotado nesse aspecto, pelo menos logo após a publicação do De revolutionibus, em 1543. É claro que havia oposições mais profundas e associadas com a descrição e sensação da realidade observável. Duas dessas objeções, as mais importantes, estão acopladas: a objeção contra o movimento da Terra, de um lado, e de outro, caso está se

75

Figura e texto extraídos de Thomas S. Kuhn, op. cit., nota 17, pág. 163.

62 movesse, a objeção contra a não mobilidade do ar produzindo um forte vento permanente para leste. O próprio Copérnico ofereceu duas possibilidades de explicação no que diz respeito à não mobilidade do ar contíguo à Terra. A primeira utilizava a concepção grega dos quatro elementos fundamentais. Copérnico argumentava que o ar próximo à superfície da Terra seria constituído por uma mistura do elemento terra com o elemento ar, o que tornava essa parte da atmosfera suscetível a movimentos análogos aos da Terra. A segunda explicação de Copérnico era bem mais sofisticada e, ao mesmo tempo, mais próxima do pensamento físico que estava por nascer. Ele argumentava que o ar giraria junto com a Terra, a acompanharia no seu movimento, sem oferecer resistência pois o mesmo se encontra em movimento constante de rotação. Os aristotélicos utilizavam ainda outra "prova" da imobilidade da Terra: uma pedra lançada verticalmente para cima deveria cair muito longe do ponto de lançamento caso fosse verdade que a Terra era também um planeta errante. Para contestar essa "experiência" crucial contra seu sistema, Copérnico fazia uso de uma argumentação de mesma qualidade que a primeira esboçada acima quanto ao movimento do ar. Ele afirmava que, sendo a pedra um grave, isto é, elemento mais pesado que o ar ou elemento terra, uma vez atirada para cima deveria acompanhar também a rotação da Terra. Um pequeno trecho extraído do De revolutionibus é significativo a este respeito: "Nós temos que admitir que o movimento de queda e de subida de corpos é um movimento dual em comparação com o universo, e é não menos que uma composição de movimento retilíneo com movimento circular. Pois as partes que caem devido ao seu próprio peso, desde que são principalmente terrosos, indubitavelmente mantém a mesma natureza com o todo. O mesmo se aplica para as coisas que são atiradas para cima devido a forças associadas à sua própria natureza. Pois o fogo aqui da Terra é alimentado principalmente por material terroso (...)"76 É interessante notar nessa argumentação de Copérnico como, apesar de ainda preso a muitas categorias aristotélicas, ele rompeu com a concepção de Aristóteles de que um objeto não poderia estar sujeito, ao mesmo tempo, a dois movimentos diferentes. Copérnico estava distante, no tempo e conceitualmente, da física de Kepler e Galileu, principalmente, neste caso, do último, que foi responsável pela ideia de que a trajetória de um corpo pode ser representada pela resultante de vários movimentos simultâneos. Parece claro que Copérnico, nessa discussão, estava fortemente influenciado pela análise que fazia do movimento aparente dos planetas errantes que, como vimos, é 76

Nicolau Copérnico, op. cit., nota 61, pág. 41

63 composto de dois movimentos: do planeta em torno do Sol e da Terra, local de observação, também em torno do Sol. Assim, transferindo a qualidade dessa explicação ao movimento de corpos na proximidade da superfície da Terra, Copérnico deve ter pensado na composição de movimentos. Os aristotélicos também objetavam o movimento de rotação da Terra. Diziam que a Terra seria destruída, se romperia em pedaços, antecipando o efeito do que seriam as forças centrífugas à época de Newton. Copérnico contra argumentava afirmando que isso não sucederia, pois, esse movimento de rotação da Terra, assim como os outros dois, são movimentos naturais não tendo, portanto, poder de destruição. Copérnico utilizava mais uma categoria do pensamento aristotélico. Eis algumas palavras de Copérnico sobre esse tema: "Não há razão alguma para Ptolomeu temer que a Terra se desintegre e que sejam espalhados os objetos terrestres devido à rotação produzida pelas forças da natureza, que são distintas de artifícios, ou do que pode ser conseguido por habilidades humanas. Além do mais, por que essa mesma questão não é levantada ainda mais fortemente com relação ao movimento do universo como um todo, já que ele deve ser muito mais rápido na proporção em que o firmamento é maior que a Terra?"77 Copérnico dava início, ou melhor dizendo, fazendo justiça aos vários intelectuais medievais, continuava a derrubada de um velho sistema e apresentava uma visão de mundo radicalmente diferente em muitos aspectos e, ao mesmo tempo, com muitos pontos de contato com o sistema que procurava substituir. Uma revolução intelectual estava ocorrendo. Arthur Koestler tece a seguinte comparação entre os dois sistemas: "O universo aristotélico era centralizado. Tinha um centro de gravidade, um núcleo sólido, ao qual se referiam todos os movimentos. Tudo quanto fosse pesado caía para o centro, tudo quanto fosse fluido como o fogo e o ar, tentava afastar-se dele; os astros, nem pesados, nem fluidos, e de natureza inteiramente diversa, moviam-se em círculos, em torno dele. Os pormenores do esquema podiam ser corretos ou errados, mas o esquema era simples, plausível e tranquilizadoramente ordenado. O universo copernicano não somente se expande para o infinito, como também, ao mesmo tempo, é descentralizado, desconcertante, anárquico. Não possui centro natural de orientação a que se possa referir tudo. As direções para cima e para baixo não são mais absolutas, nem tampouco o 77

Nicolau Copérnico, op. cit., nota 61, pág. 43.

64 são o peso e a fluidez. O peso de uma pedra significava antes, a sua tendência a cair para o centro da Terra: era o significado de gravidade. Agora o Sol e a Terra tornam-se centros de gravidade por conta própria. Já não há mais qualquer direção absoluta no espaço. O universo perdeu o núcleo, não tem um coração, tem milhares."78

5.4.

Início da articulação do paradigma copernicano

Como deixamos claro anteriormente o sistema copernicano precisava ser articulado para que saísse vitorioso no confronto com os aristotélicos. Como já observamos o paradigma aristotélico-ptolomaico constituía-se não apenas num dogma científico, era também um dogma da Igreja, e esta tinha, nessa época, muito mais poder e influência do que tem hoje. Assim, pelos mais diversos motivos, científicos, religiosos, estéticos, ideológicos, etc., os seguidores de Copérnico tiveram que lutar muito, criar ainda mais, para levar a carruagem para seu destino. Destino, aliás, que preocupara sobremaneira o próprio Copérnico que deve ter sofrido com as tentativas de seus adversários que "estavam por cima” de ridicularizá-lo. Não pode ser encarado como mera coincidência o fato de que seu tratado De revolutionibus tenha sido publicado no ano de sua morte! Embora o raio do universo copernicano tenha aumentado muito, quando comparado às dimensões até então dominantes, o mundo de Copérnico ainda era finito, cercado de esferas, estava sob a hegemonia do círculo, entre outras categorias aristotélicas que ainda sobreviviam. Mas que o De revolutionibus provocou os corações e as mentes dos seus contemporâneos e dos que viveriam nas décadas seguintes, não há nenhuma dúvida, como demonstram a quantidade e a qualidade dos articuladores do novo sistema heliocêntrico que surgiriam ainda no final do século XVI e durante o século XVII. No entanto, nos cinquenta anos que se seguiram à sua morte a influência de Copérnico foi muito pequena. Nesse período ele era mais lembrado devido às suas compilações de tabelas astronômicas do que devido ao seu sistema de mundo. Portanto, até quase o final do século XVI Copérnico foi lembrado por seu Calculatio Copernicano, como eram então conhecidas as suas tabelas. Porém, alguns pensadores importantes também deram sustentação às ideias de Copérnico. Por exemplo, em 1576, o astrônomo inglês Thomas Digges publicou o texto Descrição perfeita dos orbes celestes segundo a antiquíssima doutrina dos pitagóricos, recentemente ressuscitada por Copérnico e reforçada por demonstrações 78

Arthur Koestler, op. cit., nota 12, pág. 146.

65 geométricas. Segundo Alexandre Koyré a importância de Thomas Digges prende-se ao fato de que ele: "(...) foi o primeiro copernicano a substituir a concepção de seu mestre, a de um mundo fechado, pela de um mundo aberto, e que em sua Descrição, onde ele oferece uma tradução bastante boa, ainda que um tanto livre, do De revolutionibus orbium celestium, ele faz alguns acréscimos bastante interessantes. Em primeiro lugar, ao descrever o orbe de Saturno ele insere a informação de que esse orbe é "de todos os outros o mais próximo desse orbe infinito inamovível, ornado de luzeiros inumeráveis"." 79

79

Alexandre Koyré. Do mundo fechado ao universo infinito. Ed. Forense e EDUSP, São Paulo, 1979, pág. 43.

66 Figura 22. Reprodução do universo copernicano infinito de Thomas Digges. 80

Outros personagens que podem ser lembrados na defesa do sistema copernicano, pertencentes ao século XVI, são Giordano Bruno e, ironicamente, Tycho Brahe. O mais famoso astrônomo do século XVI, Tycho Brahe, responsável pelas melhores observações astronômicas efetuadas sem o auxílio do telescópio, é um exemplo de um cientista importante que não aceitava de modo algum o novo candidato a paradigma e, ao contrário disso, tentou corrigir o paradigma dominante, isto é, tentou uma nova articulação do paradigma ptolomaico, ou, como diz Thomas Kuhn, procurou acomodar as observações com a teoria dominante. Tycho Brahe, que nasceu em 1546 e faleceu em 1601, fundou e dirigiu uma das primeiras instituições científicas modernas, o Observatório de Uranienburgo, na Dinamarca, onde trabalhou de 1576 a 1597. A figura 23 mostra seu sistema de mundo ladeado por uma frase de sua autoria.

Figura 23: O sistema Tychoniano. A Terra está novamente no centro da esfera celeste rodando, e a Lua e o Sol movem nas suas antigas orbitas ptolomaicas. Os demais planetas são, entretanto, fixos em epiciclos com o centro comum no Sol81.

80 81

Figura extraída de Thomas S. Kuhn, op. cit., nota 17, pág. 234. Figura extraída de Thomas S. Kuhn, op. cit., nota 17, figura 37, pág. 202.

67 "Não estarão sendo confundidos os objetos celestes com os terrestres? (..) Não estará sendo colocada de cabeça para baixo toda a ordem da natureza?"82 Assim, na sua modificação do sistema ptolomaico, Tycho conservou a Terra no centro do universo finito em torno do qual orbitaria o Sol com os planetas girando em torno de si. É uma estranha ironia da história o fato de que um excelente astrônomo, o melhor até o advento do telescópio, possuidor dos mais precisos dados sobre a posição dos corpos celestes conhecidos, com uma precisão de cerca de 0,1º, ou seis minutos de arco, não conseguia enxergar a revolução que estava ocorrendo bem debaixo de seu nariz! Tycho faleceu sem fazer a mínima concessão ao sistema de Copérnico. O filósofo/escritor Paul Chatel, num romance sobre a vida de Tycho Brahe, destaca a profissão de fé geocêntrica do grande astrônomo num suposto diálogo entre ele e Kepler: "- Duvidei durante muito tempo - respondeu Kepler -, mas esta dificuldade em descrever o movimento aparente dos planetas faz-me crer que Copérnico talvez estivesse certo... - ... Faz-me crer! - interrompeu-o Tycho, irritado. - Eu, eu vos digo que vós vos deixais conduzir ao léu da corrente. Estas suposições não se sustentam, meu caro Kepler! Elas não resistem nem à reflexão nem à experiência! A Terra não é um pião. Se fosse assim, o mar, os oceanos e o ar se movimentariam incessantemente. Só haveria tempestades, furacões, maremotos causados pela rotação da Terra. Ora, eu que vivi durante muitos anos numa ilha, posso vos assegurar que não reparei que seja assim. Kepler quis interromper Tycho, que continuou. - Existe outro argumento. Trata-se da ausência de paralaxe anual das estrelas fixas, enquanto que, de acordo com vossa opinião e a de vossos amigos, supõe-se que a Terra segue sua grande trajetória ao redor do Sol. - Compreendo muito bem vossos argumentos - respondeu Kepler -, mas eles não provam que a Terra seja fixa. Ora, outras suposições nos levam a pensar que nossa Terra se move mesmo. - Não me ocupo de suposições - retrucou Tycho. - Meu sistema é o resultado de longos anos de observações e representa um meio termo razoável 82

Citado por Brian Easlea. Liberation and the aims of science. Sussex Univ. Press, 1973, pág. 44. O capítulo 2 desse livro foi básico para a construção desta parte do curso e do texto. É um livro ao qual devo boa parte do meu interesse pela história da ciência.

68 e lógico entre Copérnico e Ptolomeu. A Terra tychoniana é imóvel no centro de um universo que se move. A seu redor, gravitam a Lua e, um pouco mais longe, o Sol. Os cinco planetas giram em torno do Sol de maneira que os raios de Marte, de Júpiter e de Saturno são sempre maiores do que aqueles da trajetória do Sol. Assim, estes planetas nunca se encontram entre o Sol e a Terra. Admito que a descrição dos movimentos dos planetas constitui um problema que falta esclarecer e no qual devemos trabalhar! Mas afirmo que o Sol gira ao redor da Terra e não o contrário. Eu vos poupei do relatório sobre as experiências realizadas em Uranienburgo: a dos tijolos que caem sempre no mesmo lugar e a do canhão apontado para o norte, para o sul, para leste ou para oeste, cuja bala cai sempre a uma distância igual. A Terra não gira, Kepler!"83 Porém, continuando a ironia da história, foram exatamente os dados de observação de Tycho Brahe que iriam permitir a Johannes Kepler, 1571/1630, uma das melhores articulações do paradigma que Tycho atacava. Kepler se beneficiou de seus resultados, deixados para ele como uma espécie de herança intelectual, na formulação de suas três famosas leis planetárias, que constituiriam a base de uma nova ciência, a astronomia física, básica para o nascimento da mecânica. Outro famoso opositor do sistema copernicano foi Francis Bacon, 1561/1626, lorde chanceler da Inglaterra no reinado de Jaime I, um dos primeiros estudiosos a reconhecer a importância da ciência como um fenômeno histórico e social. Contra o heliocentrismo de Copérnico escreveu várias páginas, eis um pequeno trecho de uma delas: "No sistema de Copérnico encontramos grandes inconvenientes: a imposição à Terra de três movimentos simultâneos, a separação do Sol da companhia dos planetas com os quais ele tinha tantas paixões em comum, (...) a introdução de tanta imobilidade na natureza representando como imóveis o Sol e as estrelas (...) Isso tudo são especulações de alguém que não se importa com as ficções que introduz na natureza, desde que seus cálculos deem certo (...)"84 Muitos outros pensadores tiveram posicionamentos semelhantes aos de Tycho e Bacon. Dentro das Igrejas, a católica e a protestante, também encontramos forte oposição às ideias copernicanas. A revolução científica que abalava os conhecimentos consagrados sobre o celeste, provocava tumultos temidos pelos que dominavam os reinos

83 84

Paul Chatel. O castelo das estrelas. Nova Stella Editorial e EDUSP, São Paulo, 1990, págs. 300/301. Citado por Brian Easlea, op. cit., nota 70, pág. 44.

69 do terrestre. Mesmo ao longo de todo o século XVII encontramos fortes opositores às teses copernicanas. Mas, apesar disso e, principalmente, apesar de os sentidos indicarem que os que acreditavam na imobilidade da Terra certamente estavam ao lado da verdade, o candidato a paradigma, - o sistema copernicano -, ganhou importantes articuladores que levariam adiante a simplicidade do sistema copernicano. Simplicidade que deve ser entendida com o sentido a ela atribuído por Hugh Lacey: "Para Copérnico, a vantagem de sua teoria residia numa espécie de simplicidade, numa espécie de harmonia e racionalidade que ela discernia no universo. A simplicidade que atraiu Copérnico tem sido frequentemente mal compreendida. Alguns disseram que se tratava de uma simplicidade quantitativa, e que a teoria de Copérnico precisava usar menos excêntricos e epiciclos. O que é totalmente falso - um mito que já durou demais. A chave para o tipo de simplicidade a que nos referimos é a passagem citada anteriormente, na qual o sistema ptolomaico é comparado a um monstro, com partes que crescem independentemente umas das outras, desprovido de uma unidade central. De fato, não existe algo como o "sistema ptolomaico". Na teoria ptolomaica cada planeta é considerado isoladamente, e é traçado um conjunto de círculos para "explicar totalmente os seus fenômenos"(...) A simples hipótese do simples movimento da Terra, rotação diária e revolução anual, é suficiente para eliminar estes aspectos inexplicados, e mesmo para explicar porque são necessários nas construções ptolomaicas. A mesma hipótese também serviu para explicar os movimentos de oriente para ocidente dos planetas, e o fato de Mercúrio e Vênus nunca aparecerem para além de um certo deslocamento angular do Sol. Uma hipótese única traz unidade aos fenômenos, e cria um sistema."85 Muito mais haveria a dizer sobre este fantástico episódio da história da física. Porém, uma das lições que devemos reter do que foi acima apresentado é que a construção do conhecimento não percorre trajetórias suaves, lineares e sem choques e contradições. Copérnico e seus adeptos tiveram que ir contra um sistema que parecia reconstruir adequadamente as aparências dos fenômenos e, mais importante ainda, contra o que seus sentidos indicavam, seu senso comum, para afirmar uma descrição do mundo físico que se baseava essencialmente na harmonia geométrica universal.

85

Hugh M. Lacey. Lições de Copérnico. Rev. Manuscrito, págs. 118/119.

70 É a hegemonia da aparência mediatizada pelo discurso racional, um movimento pendular entre a ordem e a desordem na descrição dos fenômenos físicos ou humanos. Como diz o escritor italiano Ítalo Calvino: "...O gosto da composição geometrizante, de que podemos traçar uma história na literatura mundial a partir de Mallarmé, tem como fundo a oposição ordem-desordem, fundamental na ciência contemporânea."86

5.5.

Procurando concluir uma história que mal começou

Podemos situar o acender do rastilho da revolução copernicana entre os anos 1510 e 1514, época da publicação do Commentariolus. Porém, quando realmente ocorreu a vitória da revolução copernicana? Na resposta a esta questão vamos encontrar as mais variadas afirmativas. Alguns situam a sua vitória após o advento integral do paradigma newtoniano, o que ocorreu entre o final do século XVII e início do século XVIII. Outros situam-na com os trabalhos de Johannes Kepler resumidos nas suas três leis do movimento planetário. Outros ainda apontam os trabalhos de Galileu Galilei como o divisor de águas entre o mundo aristotélico e o mundo da ciência moderna. Alguns autores são mais precisos nessa determinação do corte entre os dois mundos conceituais e epistemológicos, situando-o em 1610, ano das famosas descobertas telescópicas de Galileu. Esta é a posição do historiador/filósofo da ciência brasileiro, Hilton Japiassu, ao afirmar que "Galileu é o autor da chamada revolução copernicana. Pelo menos, é seu herói e mártir. É ele quem destrói definitivamente a imagem mítica do Cosmos para substituí-la pelo esquema de um Universo físico unitário, doravante submetido à disciplina rigorosa da física matemática." 87 A vitória da revolução copernicana, de qualquer forma, só ocorreu após a articulação do candidato a paradigma de Copérnico realizado por figuras do porte de Giordano Bruno, Galileu, Kepler, Isaac Newton e muitos outros que, dos mais diferentes modos deram consistência a ideias e conceitos ainda frágeis, forjaram uma nova metodologia, resolveram problemas velhos e novos, enfim, começaram a construir um mundo novo.

86

Italo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, São Paulo, 1990, págs. 83/84. 87 H. Japiassu. A revolução científica moderna. Imago Ed., Rio de Janeiro, 1985, pág. 43.

INSTITUTO DE FÍSICA/USP

4300156 — GRAVITAÇÃO Notas de Aula 2ª parte João Zanetic

2° semestre/2019

GRAVITAÇÃO/Notas de Aula (Versão parcialmente revista em agosto de 2017)

2ª parte

João Zanetic/IFUSP

Índice Capítulo 6 – Gravitação e literatura ......................................................... 71 6.1. A física e a literatura: breve introdução ....................................... 71 6.2. "Os Lusíadas" e o sistema aristotélico-ptolomaico ...................... 78 6.3. "O Paraíso Perdido" e os sistemas celestes .................................. 82 Capítulo 7 - Do círculo perfeito à elipse .................................................. 88 7.1. Introdução ................................................................................... 88 7.2. Rompendo com as esferas de cristal ............................................ 89 7.3. A geometrização exagerada de Kepler ........................................ 90 7.4. Kepler e a gravidade.................................................................... 95 7.5. Rompendo com a hegemonia do círculo ...................................... 98 7.6. Uma homenagem de Einstein a Kepler ........................................ 99 7.7. As leis de Kepler em detalhe ..................................................... 101 7.8. Um parêntesis: momento de uma força e momento angular ...... 106

71

Capítulo 6 – Gravitação e literatura 6.1.

A física e a literatura: breve introdução

Este capítulo é uma espécie de parêntesis dentro do conteúdo que vínhamos lendo/estudando até aqui. Vou procurar estabelecer algum tipo de integração entre o universo histórico e conceitual abordado e sua presença em algumas obras literárias. Acredito que esse tipo de abordagem não pode estar ausente da formação do professor de física que, devido ao seu papel na educação básica, acaba sendo um dos responsáveis pela aproximação entre a "cultura científica" e a cultura prevalente na maioria da população. O educador francês Georges Snyders88, tratando dessa temática, chama a primeira de "cultura elaborada" e a segunda de "cultura primeira". Acredito, ainda, que essa abordagem vale também para a formação do pesquisador em física, na sua formação mais ampla. Acredito que a física enquanto cultura não pode prescindir de vários aspectos "externalistas" como, por exemplo, a influência socioeconômica, abordagens ideológicas, as 'definições' de métodos científicos e a história da dinâmica da física, que compõem um mosaico que fornece a substância necessária para dar sustentação estrutural ao algoritmo, à experimentação, às teorias científicas e suas aplicações. É a Física compondo um elemento cultural necessário para a formação de qualquer cidadão contemporâneo. Ainda hoje parece muito estranha, para muita gente, essa aproximação entre ciência e arte. Há cerca de trinta anos esse estranhamento era muito maior mas, "com o passar do tempo percebemos que outros saberes precisavam entrar em nossos estudos para dar suas contribuições. Sendo assim, vários caminhos alternativos foram sendo trilhados e, hoje, nossos trabalhos incluem tópicos/abordagens que anteriormente faziam parte quase exclusiva de outras áreas de pesquisa. Um dos exemplos mais recentes são os estudos sobre a linguagem em suas variadas formas de apresentação. Vemos estas iniciativas como grandes desafios, pois “associar ciência e imaginação, trabalho científico e trabalho literário, ciência e arte, enfim, parece ainda muito estranho, mesmo quando aderimos ao paradigma da interdisciplinariedade (…) E mesmo assim, não estamos sendo propriamente originais, na medida em que “como entendia o filósofo/educador Jean-Jacques Rousseau [171288

SNYDERS, Georges. A alegria na escola. Editora Manole, São Paulo, 1988.

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1778], muito antes da geometria da razão a humanidade tinha o imaginário da poesia” (Zanetic, 1998, p.1).89” Podemos explorar a relação entre a literatura e a física nas salas de aula do Ensino Médio. Já que muitas vezes nos debates educacionais se fala em interdisciplinaridade, ensino integrado de ciências, e outros termos semelhantes, por que não pensar na integração com outros ramos do conhecimento, com outras formas de falar do mundo e com o mundo? Normalmente se trabalha com os aspectos experimentais e matemáticos, que constituem componentes fundamentais do conhecimento em física. Agora, se quisermos que a física faça parte do cotidiano cultural dos indivíduos contemporâneos, não podemos deixar de relacioná-la com demais elementos integradores como, por exemplo, as obras literárias aqui mencionadas. A primeira vez que pensei na relação entre física e literatura data da época, década de 1970, em que li alguns trechos de um dos livros de Galileu Galilei. Os diálogos entre seus personagens Salviatti, Sagredo e Simplício, pelos quais Galileu tinha a intenção de desmontar a argumentação aristotélica e a defesa do universo copernicano e da metodologia aristotélica-ptomaica, são verdadeira obra literária. Determinadas partes de seu livro podem ser lidas como textos literário-filosóficos. Muito mais tarde vim a descobrir que um dos mestres inspiradores de Galileu, o filósofo grego Platão, já mencionado anteriormente, também utilizava a estrutura de diálogos entre diferentes personagens para apresentar sua visão de mundo. E mesmo nas partes de sua obra em que há apenas um monólogo ou o domínio quase exclusivo de um personagem, como acontece no Timeu, básico para o entendimento da visão platônica da estrutura do mundo, é uma obra literária que temos nas mãos. Eis um breve exemplo literário de um texto de Platão: "Seja como for, o tempo nasce como o céu, a fim de que, nascidos juntos, sejam também dissolvidos juntos, se jamais houverem de ser dissolvidos; e foi feito a partir do modelo da natureza eterna, a fim de se assemelhar a este modelo na medida do possível. Porque o modelo é existente durante toda a eternidade, enquanto o céu foi, é e será continuamente durante toda a duração do tempo. Foi em virtude deste raciocínio e para dar existência

89

ZANETIC, J. Ensino de física através de sua história e filosofia para quem gosta de literatura. In: VI Encontro De Pesquisadores em Ensino De Física, 6, 1998, Florianópolis. Anais... Florianópolis: Sociedade Brasileira de Física, 1998

73

ao tempo que Deus fez nascer o sol e a lua e outros cinco astros chamados planetas, para distinguir e conservar os números do tempo".90 A eventual utilização dessas leituras tem, pelo menos, uma dupla finalidade quando pensamos na formação de professores de física para o ensino médio ou na de seus estudantes: i. deve fornecer aquela base mínima que favoreça a leitura desse tipo de literatura ao longo da vida do estudante, isto é, seria um dos modos de fazer o conhecimento adquirido em física continuar presente alimentando o pensamento científico desse indivíduo; favorecendo e estimulando seu imaginário, no sentido mais amplo do termo, no sentido expresso, por exemplo, pelo filósofo Gaston Bachelard 91 que sempre tinha em mente tanto o pensador diurno, mais racionalista, como o pensador noturno, mais propenso ao devaneio, ao pensamento poético; ii. deve favorecer também a aprendizagem dos aspectos conceituais presentes nas teorias físicas apresentadas na parte mais formal do conteúdo de física abordado na escola. Com esses dois objetivos guiando esta atividade temos alguns parâmetros para a escolha de textos a serem recomendados dados para leitura e discussão. Dessa forma, a escolha de textos não se restringirá àqueles chamados clássicos da ciência como, por exemplo, os já mencionados de Galileu e Platão. Estes teriam muito mais a finalidade exposta no segundo item, podendo às vezes atender o primeiro também, como acontece com partes do texto Timeu, de Platão, do De revolutionibus, de Copérnico, dos Diálogos e dos Discursos, de Galileu, da Astronomia Nova e da Harmonia do Mundo, de Kepler, e mesmo dos Principia de Newton. Assim, além dessa literatura mais especificamente científica, entendo que a literatura que, de maneira direta ou indireta, tenha a física como parte integrante, também 90

PLATÃO. Diálogos IV. Publicações Europa-América, Lisboa, s/data, págs. 266/267. Tradução de versão francesa de 1969. 91

Gaston Bachelard escreveu vários livros sobre cada um desses pensadores. Indico um de cada vertente: A formação do espírito científico. Ed. Contraponto, Rio de Janeiro, 1996; A poética do espaço. Ed. Martins Fontes, 2000. Ele foi um filósofo da ciência francês que viveu de 1884 a 1962. Entre suas contribuições à epistemologia da ciência encontramos a ideia de que a passagem para uma teoria acabada e autoconsistente ocorre por meio de um processo de ruptura, ou revolução científica na denominação de Kuhn, isto é, de construção de um saber que acaba negando o saber anterior. O conceito obstáculo epistemológico diz respeito à dificuldade de ocorrência da ruptura por conta de que a teoria predominante resiste e impede um novo olhar para um velho fenômeno ou o desvelar de um novo fenômeno. Para Bachelard, tanto o chamado senso comum como a própria ciência em determinadas circunstâncias, podem funcionar como obstáculos à evolução do conhecimento.

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tem seu papel neste tipo de atividade. A seguir, como introdução a esta temática, vou mencionar alguns exemplos de minha preferência. Edgar Allan Poe (1809-1849), famoso contista e poeta norte-americano, também abordava diretamente conceitos de física. É o que acontece, por exemplo, no seu conto O mistério de Marie Roget. Nesse conto, Poe coloca seu personagem, o detetive Augusto Dupin, na tentativa de elucidar um bárbaro crime. Dupin utiliza uma metodologia sofisticada, auxiliado por conceitos científicos, entre os quais os de gravidade específica e empuxo. Eis um pequeno trecho desse conto: “ O primeiro objetivo do autor é mostrar-nos, pela brevidade do intervalo entre o desaparecimento de Maria e o encontro do cadáver a flutuar, que tal cadáver não pode ser o de Maria. (...) a gravidade específica do corpo humano, em sua condição natural, é quase igual à massa de água doce que ele desloca. (...) É evidente, contudo, que as gravidades do corpo e da massa de água deslocada são muito delicadamente equilibradas, e que uma ninharia pode fazer com que uma delas predomine. Um braço, por exemplo, erguido fora d`água e assim privado de seu equivalente é um peso adicional suficiente para imergir toda a cabeça, ao passo que a ajuda casual do menor pedaço de madeira habilitar-nos-á a elevar a cabeça, para olhar em derredor.”92 Poe é também o autor de um estimulante ensaio - Eureka - em que abordava questões metodológicas, centradas em torno da indução, dedução e intuição, mescladas com uma intrigante concepção de ciência. Outro grande escritor, que também realizou incursões filosóficas que tinham implicações científicas, foi Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Embora não fosse um cientista, nem mesmo um filósofo preocupado explicitamente com o conhecimento científico, o escritor russo expressava, na sua obra mais conhecida, Os irmãos Karamazov, uma ideia científica original que já estava no ar, portanto, um quarto de século antes de sua formulação bem sucedida por Einstein, a saber, a de que o espaço absoluto tri-dimensional não servia mais ao propósito de explicação do mundo físico. Provavelmente ele aprendera esse conhecimento de física em seu curso de engenharia militar. A "linha de mundo" einsteiniana já habitava o rico espaço-tempo de Dostoiévski: "É preciso notar, no entanto, que, se Deus existe, se criou verdadeiramente a terra, fê-la, como se sabe, segundo a geometria de Euclides, e não deu 92

POE, Edgar Allan. Poesia e prosa - obras escolhidas. Edições de Ouro, 1966, págs. 37 e 379. Esse conto aparece em muitas outras edições mais recentres dos contos de Poe.

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ao espírito humano senão a noção das três dimensões do espaço. Entretanto, encontraram-se, encontram-se ainda geômetras e filósofos, mesmo eminentes, para duvidar de que todo o universo e até mesmo todos os mundos tenham sido criados somente de acordo com os princípios de Euclides. Ousam mesmo supor que duas paralelas que, de acordo com as leis de Euclides, jamais se poderão encontrar na Terra, possam encontrarse, em alguma parte no infinito. Decidi, sendo incapaz de compreender mesmo isto, não procurar compreender Deus. Confesso humildemente minha incapacidade em resolver tais questões; tenho essencialmente o espírito de Euclides: terrestre. De que serve querer resolver o que não é deste mundo? (...) Essas questões estão fora do alcance dum espírito que só tem a noção das três dimensões."93 Por essa e outras considerações de ordem filosófica, estética, ética e científica, o historiador da ciência Boris Kuznetsov traça um paralelo entre a obra literário-filosófica de Dostoiévski e a obra científico-filosófica de Einstein Os pensadores diurno e noturno se encontram no amanhecer de uma nova visão de mundo que busca a união da harmonia cósmica com a harmonia moral. Segundo Kuznetsov, Einstein teria afirmado seu débito intelectual para com Dostoiévski com as seguintes palavras: "Dostoiévski oferece-me mais que qualquer outro pensador, mais que Gauss."94 Kuznetsov argumenta que Dostoiévski teria formulado, no século XIX, várias questões filosóficas dirigidas ao século XX e que teriam sido respondidas por Einstein. Além da questão mais óbvia relacionada com a ruptura com a geometria euclidiana, Kuznetsov encontra um paralelo mais sutil entre os dois pensadores: "A noção de que a existência sem harmonia é uma ilusão ou que a harmonia é apenas conseguida menosprezando destinos individuais, constitui a ligação entre os problemas éticos dos livros de Dostoiévski e as conclusões físicas implícitas nas teorias de Einstein." 95

93

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamazovi. Abril Cultural, São Paulo, 1971, pág. 177. Original russo de 1879/80. 94 KUZNETSOV, Boris. Einstein and Dostoiévski. Hutchinson Educational, London, 1972, pág. 59. Original russo de 1972. 95 KUZNETSOV, B. Op. cit.. nota 94, pág. 72.

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De um lado estão as inquietações racionalistas e religiosas de Ivan e Aliósha, do outro a busca da harmonia cósmica de Einstein que, embora baseada no coletivo das partículas, não pode ignorar o "destino" de uma única partícula individual. Afinal, "Deus não joga com dados", afirmava Einstein. Kuznetsov conclui seu livro com uma síntese do seu paralelo entre o romancista e o físico: "Nos efeitos científicos e sociais do avanço e aplicação da física moderna, encontramos novamente o problema da harmonia macroscópica e destinos individuais. A ciência promete ao homem uma tremenda expansão dos recursos energéticos, com a aplicação de novas formas de energia. Esta expansão, acoplada com a automação cibernética, capacitará os homens a se concentrarem na solução de problemas mais gerais e fundamentais. Isto exige uma consciência viva, um sentido da responsabilidade pelo destino de cada ser humano individual. Este sentimento, tão intenso em Einstein, provém em parte da galeria de personagens sofredoras que Dostoiévski introduziu na cultura mundial."96 Esse paralelo entre a obra literária de Dostoiévski e os conceitos científicos foi alvo de um "exercício teatral" encenado em março de 1988, em São Paulo, no Teatro Mars. Esse exercício tinha roteiro e direção de Bia Lessa que, inclusive, escreveu um breve texto sobre o tema, no qual afirma que nas suas oficinas teatrais eram levantados e discutidos. "... os pontos de contato que intuíamos existir entre a forma como Dostoiévski construía suas imagens literárias e as imagens que nos eram sugeridas pelo estudo da física moderna. (...) Podemos também surpreender o autor apresentando uma trama na qual o destino das personagens está sujeito às ingerências do acaso." Mais adiante, Bia Lessa sugere um exercício teatral que remete diretamente para a sugestão de um exercício pedagógico: "... pensar a cena através de uma perspectiva pela qual a trama criada pelas relações humanas estivesse relacionada ao contexto maior dos fenômenos cósmicos e universais. Através desse raciocínio proporíamos a discussão teatral das possíveis relações entre o homem e o universo que o cerca." 97. 96 97

KUZNETSOV, B. Op. cit.. nota 94, pág. 108. LESSA, Bia et all.. Dostoiévski e a física. Folha de São Paulo, 13/03/1988, pág. F1.

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Encontramos laços fortes entre literatura e física em muitas peças de teatro: em A vida de Galileu, de Bertolt Brecht (1898-1956), onde ele constrói um contundente retrato de Galileu Galilei; no debate ético entre Os físicos, de F. Dürrenmatt; ou ainda na discussão política do Caso Oppenheimer, de H. Kipphardt, que coloca seu personagem-físico nuclear falando algo que nos dias atuais – vide a polêmica criada em torno da possibilidade do Irã vir a construir sua bomba atômica ou as experiências bombásticas da Coréia do Norte - ainda é muito significativo: "Refletindo sobre mim mesmo, um cientista, um físico em nosso tempo, comecei a me perguntar se não ocorreu realmente, qualquer coisa como uma traição mental. (...) Quando penso que, para nós, se tornou fato corriqueiro que também as pesquisas fundamentais da física nuclear fiquem cercadas de um sigilo do mais alto grau, que os nossos laboratórios sejam pagos pelas administrações militares e vigiados, como objetos bélicos, quando penso no que se teriam transformado, num caso análogo, as idéias de Copérnico ou as descobertas de Newton, aí eu pergunto a mim mesmo se nós não praticamos, efetivamente, uma traição ao espírito da ciência, ao cedermos aos militares o nosso trabalho de pesquisa sem pensarmos nas consequências..."98 Exemplos importantes entre ciência e literatura no teatro são as peças Einstein, Copenhagen, Perdida ... uma comédia quântica, Quebrando códigos, After Darwin, A dança do universo, A culpa é da ciência, entre outras, do grupo paulistano “Arte e Ciência no Palco”. Fica assim estabelecida a necessidade de complementar a visão internalista, essencialmente epistemológica, oferecida pelos historiadores da ciência, com a visão externalista, que pode ser encontrada nas mais variadas fontes que exploram os condicionantes sociais, econômicos, religiosos e culturais que marcam o espaço e o tempo da ciência. Outro escritor que deixou inúmeras pontes entre a ciência e a literatura foi o italiano Ítalo Calvino (1923-1985), principalmente nos seus últimos escritos inacabados, Seis propostas para o próximo milênio, onde abordou os temas: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Dessa sua obra extraio o seguinte trecho representativo de seu pensamento:

98

HEIMAR, Kipphardt. O caso Oppenheimer. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1966, pág. 154.

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"Será lícito extrapolar do discurso científico uma imagem do mundo que corresponda aos meus desejos? Se a operação que estou tentando me atrai, é porque sinto que ela poderia reatar-se a um fio muito antigo na história da poesia. De rerum natura, de Lucrécio, é a primeira grande obra poética em que o conhecimento do mundo se transforma em dissolução da compacidade do mundo, na percepção do que é infinitamente minúsculo, móvel e leve. Lucrécio quer escrever o poema da matéria, mas nos adverte desde logo, que a verdadeira realidade dessa matéria se compõe de corpúsculos invisíveis. É o poeta da concreção física, entendida em sua substância permanente e imutável, mas a primeira coisa que nos diz é que o vácuo é tão concreto quanto os corpos sólidos. (...) A poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nascem de um poeta que não nutre qualquer dúvida quanto ao caráter físico do mundo. "99 Muitos outros exemplos extraídos da literatura universal poderiam ser aqui mencionados como, por exemplo, dois autores geniais do período renascentista mais diretamente vinculados aos temas que vínhamos tratando nos cinco capítulos precedentes, particularmente com relação às concepções geocentrista e heliocentrista de universo: o português Luís de Camões, essencialmente geocentrista, e o inglês John Milton (16081674). São eles os personagens das duas próximas seções deste capítulo. 6.2.

"Os Lusíadas" e o sistema aristotélico-ptolomaico

Foi dito anteriormente que o sistema aristotélico-prolomaico dominou o cenário da astronomia até pelo menos o século XVII. Esse domínio não se restringiu às áreas do conhecimento que lidam mais diretamente com os fenômenos naturais. Vamos encontrar influências explícitas do pensamento aristotélico em campos que aparentemente nada teriam a ver com a ciência, em particular nos textos literários do período histórico dominado por esse paradigma, ou seja, dos séculos IV AC até o século XVI em que viveu Copérnico. Por exemplo, nos séculos XIII e XIV, viveu o poeta Dante Alighieri (1265-1321), que escreveu seu poema A divina comédia, fortemente influenciado pelo geocentrismo, como podemos notar nesse brevíssimo trecho: “As partes deste céu são tão uniformes, que eu não posso dizer qual Beatriz 99

CALVINO, Ítalo, op. cit., nota 86, págs. 20/21.

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escolheu para meu lugar. Mas ela, que via o meu desejo de saber, começou, sorrindo tão alegre, que no seu rosto parecia regozijar-se o próprio Deus: deste céu começa a natureza do mundo como do seu princípio, fazendo que a Terra seja firme no centro do universo e as outras partes em torno se movam.”100 Vocês podem perceber também a presença religiosa (a menção a Deus), que já aparecera no trecho do texto de Platão reproduzido no início deste capítulo. Essa visão de mundo religiosa também estará presente Camões e Milton. Esse foi o caso do poema épico Os Lusíadas, que foi escrito pelo grande poeta português Luís de Camões, que viveu entre 1524 e 1580, portanto dentro do período histórico do Renascimento. Como tivemos oportunidade de estudar nos capítulos anteriores, o século XVI, no qual viveu o poeta Camões, foi de particular importância para a história da física e da astronomia, pois nele teve início o desmonte teórico, pouco “popular”, do paradigma aristotélico-ptolomaico com os trabalhos de muitos estudiosos, como Copérnico, Foi também o século das grandes navegações, atividade em que os portugueses dessa época se notabilizaram. Camões procurou, entre outros assuntos, registrar e imortalizar os "feitos lusitanos" que estabeleceram uma ponte entre o Ocidente e o Oriente, "por mares nunca de antes navegados". Camões não se restringiu, nessa sua obra maior, em narrar apenas os acontecimentos históricos, ao contrário, utilizou largamente de seus vastos conhecimentos em história universal, geografia, astronomia, mitologia clássica, entre outros campos do saber em que mostrava profunda familiaridade. Do sistema aristotélico-ptolomaico encontramos inúmeras menções ao longo dos dez cantos em que se dividem Os Lusíadas. Quem não conhece a escrita de Camões o primeiro contato é surpreendente. Para exemplificar, reproduzo a seguir algumas oitavas pertencentes ao último canto do poema, onde o poeta descreve a visão do Cosmos segundo o sistema aristotélico-ptolomaico: "Despois que a corporal necessidade Se satisfez do mantimento nobre, E na harmonia e doce suavidade 100

75

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Volume III (O paraíso). Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1958, pág 287.

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Viram os altos feitos que descobre, Tethys, de graça ornada e gravidade, Pera que com mais alta glória dobre As festas deste alegre e claro dia, Pera o felice Gama assi dizia: 'Faz-te mercê, barão, a Sapiência Suprema de, cos olhos corporais, Veres o que não pode a vã ciência Dos errados e míseros mortais. Sigue-me firme e forte, com prudência, Por este monte espesso, tu cos mais.' Assi lhe diz, e o guia por um mato Árduo, difícil, duro a humano trato.

Não andam muito, que no erguido cume Se acharam, onde um campo se esmaltava De esmeraldas, rubis, tais que presume A vista, que divino chão pisava. Aqui um globo vem no ar, que o lume Claríssimo por ele penetrava, De modo que o seu centro está evidente Como a sua superfície, claramente. Qual a matéria seja não se enxerga, Mas enxerga-se bem que está composto De vários orbes, que a Divina verga Compôs, e um centro a todos só tem posto. Volvendo, ora se abaxe, agora se erga Nunca se ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto Por toda a parte tem; e em toda a parte Começa e acaba, enfim, por divina arte, Uniforme, perfeito, em si sustido, Qual, enfim, o Arquetipo que o criou Vendo o Gama este globo, comovido De espanto e de desejo ali ficou. Diz-lhe a Deusa: ‘O transunto, reduzido Em pequeno volume, aqui te dou

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Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas Por onde vas e irás e o que desejas.

‘Vês aqui a grande máquina do Mundo Etérea e elemental, que fabricada Assi foi do Saber, alto e profundo, Que é sem princípio e meta limitada. Quem cerca em derredor este rotundo Globo e sua superfície tão limada, É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende, Que a tanto o engenho humano não se entende.

80

‘Este orbe que, primeiro, vai cercando Os outros mais pequenos que em si tem, Que está com luz tão clara radiando, Que a vista cega e a mente vil também, Empíreo se nomeia, onde logrando Puras almas estão daquele Bem Tamanho, que Ele só se entende e alcança, De quem não há no mundo semelhança.

81

‘Aqui, só verdadeiros, gloriosos Divos estão, porque eu, Saturno e Jano, Júpiter, Juno, fomos fabulosos, Fingidos de mortal e cego engano. Só pera fazer versos deleitosos Servimos; e, se mais o trato humano Nos pode dar, é só que o nome nosso Nestas estrelas pôs o engenho vosso."101

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Notamos nas oitavas 75 e 76 que Thetys, a deusa do mar e esposa do Oceano, na mitologia grega, dirige-se a Vasco da Gama, o descobridor do caminho para as Índias. Na oitava 77 Camões começa a apresentar o Cosmos geocentrista grego. Na oitava 78 ele menciona os orbes que se encontravam depois das esferas do ar e do fogo, centradas na Terra imóvel, como pode ser visto na máquina do mundo do poema, a seguir reproduzida.

101

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto Editora Ltda., Porto, s/ data, págs. 317/319.

82

Figura 24102

Na oitava 79 é dito que a Deusa fornece para Vasco da Gama um "trasunto", ou seja, uma miniatura do universo ptolomaico. Na oitava 80 é mencionada a utilização dos quatro elementos na composição do universo. Nas oitavas 81 e 82, Camões começa a descrever o conteúdo e posição dos diversos orbes. 6.3.

"O Paraíso Perdido" e os sistemas celestes

Vou agora mencionar outro grande épico da literatura universal, o poema O paraíso perdido, de John Milton, publicado em 1667. John Milton, nascido em Londres em 1608, foi um dos mais importantes poetas ingleses de todos os tempos. Desempenhou também as funções de professor primário quando teve oportunidade de ensinar o sistema ptolomaico. Possuidor de vasta cultura dedicou-se aos mais variados gêneros literários, como a poesia e o teatro, além de escrever ensaios sobre gramática e lógica. Foi fortemente influenciado pela cultura italiana do renascimento tendo, numa de suas viagens à Itália, travado contato com Galileu Galilei quando este estava preso a mando da Inquisição. Ficou, nesse contato, conhecedor 102

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto Editora Ltda., Porto, s/ data, págs.504.

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das descobertas astronômicas de Galileu. Nas suas obras, entre as quais se destaca O paraíso perdido, encontram-se frequentes menções ao conhecimento científico dominante em sua época. John Milton faleceu em 1674. Essa obra, como seu título dá claramente a entender, dedica-se a explorar como tema central, inspirado em passagens bíblicas, a perda do paraíso pelo primeiro casal humano provocada pela desobediência a uma ordem divina. Com essa motivação, John Milton, nesse seu poema, nos apresenta sua visão religiosa, política, social e científica do mundo. O poema está dividido em 12 livros. No livro VII, encontramos um longo diálogo entre o anjo Rafael e Adão a respeito da criação do mundo realizada, segundo os ensinamentos bíblicos e, poeticamente descrita por Milton, em sete dias. Reproduzo a seguir parte desse diálogo: "(...) Adão prossegue, interrogando o seu hóspede celeste: 'Grandes coisas, repletas de maravilhas bem diferentes das deste mundo, revelaste aos nossos ouvidos, intérprete divino! (...) digna-te, agora, a descer mais baixo e revelar-nos o que, talvez não seja menos útil, nos fazeres saber: como começou este céu que contemplamos tão distante e tão alto, adornado de inumeráveis fogos movediços; (...)' Assim suplicou Adão (...) e assim o anjo (...) lhe respondeu (...): 'Esse seu pedido, feito com prudência, será satisfeito, se bem que, para contar as obras do Todo-Poderoso, que palavras ou que línguas de serafins serão suficientes, ou qual coração humano será capaz de compreendê-las? (...) Ele [o Verbo Todo-Poderoso] pára, então, as rodas ardentes e toma nas suas mãos o compasso de ouro, preparado na eterna provisão de Deus, para traçar a circunferência deste universo e de todas as coisas criadas. Uma perna desse compasso, Ele a apóia no centro; percorre com a outra a vasta e obscura profundidade e diz: - Estende-te até lá; até lá vão os seus limites; que isso seja a tua exata circunferência, ó mundo! Assim criou Deus o céu, assim criou Ele a Terra, matéria informe e vazia: profunda escuridão cobriu o abismo; (...) E disse Deus: - Faça-se a luz! De repente a luz etérea, a primeira das coisas, pura quintessência, brotou do abismo e, saindo do seu oriente natal, começou a sua jornada através

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da obscuridade aérea, dentro da radiante nuvem esférica, pois o sol ainda não existia; nesse tabernáculo nublado, ela permaneceu por algum tempo. Viu Deus que a luz era boa, e separou a luz das trevas por hemisférios: chamou à luz "Dia", e às trevas "Noite", e da tarde e da manhã, se fez o primeiro dia. (...) De novo falou o Todo-Poderoso: - Façam-se luzeiros na alta amplidão do céu, que dividam o dia da noite, e que sirvam de sinais para as estações, para os dias e para o curso dos anos (...) Deus criou dois grandes luzeiros (grandes para a utilidade do homem); o maior para presidir o dia, o menor para presidir a noite. Criou as estrelas e colocou-as no firmamento, para iluminarem a terra e regularem o dia e a noite, nas suas alternativas, e limitarem a luz das trevas. Observando sua grande obra, viu Deus que isso estava bem. Dos corpos celestes, o primeiro que ele criou, foi o sol, esfera poderosa, a princípio não luminosa, ainda que de substância etérea. Depois fez a lua esférica e as estrelas de todas as grandezas, e semeou o céu de astros como um campo. Tomou a maior parte da luz em seu tabernáculo de nuvens, transplantou-a e colocou-a na órbita do sol (...) Primeiro, no seu oriente foi vista a gloriosa lâmpada, regente do dia, e todo o horizonte foi invadido pelos raios brilhantes, alegre de correr para o ocidente pelo grande caminho do céu; a pálida aurora e as plêiades dançavam diante dele, espalhando doce influência. Menos brilhante, a lua estava suspensa do lado oposto, no mesmo nível, a oeste; espelho do sol, ela extraía dele a luz em cheio sobre o seu rosto; com esse aspecto não precisava de outra luz e assim guardou essa distância até a noite; (...).'103 O anjo Rafael concluiu sua explanação, acreditando ter satisfeito a curiosidade de Adão quanto à criação do mundo que vai até o momento da criação do próprio homem, no sexto dia, com as seguintes palavras: "Penso agora, Adão, que o teu pedido foi plenamente satisfeito: sabes como este mundo e a face das coisas começaram, e o que foi feito antes da tua memória, desde o começo, para que a posteridade, instruída por ti,

103

MILTON, John. O paraíso perdido. Ediouro, Rio de Janeiro, págs. 148/154.

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possa sabê-lo também; se procuras alguma coisa mais, não ultrapassando os limites da inteligência humana, fala."104 No livro VIII de seu poema, Milton realmente faz Adão falar e, mais uma vez, este expõe suas dúvidas ao anjo Rafael. Após agradecer a cuidadosa explicação sobre a criação do mundo, questiona o anjo a respeito do movimento dos corpos celestes. Diz ele: “ 'Quando contemplo esta excelente estrutura, este mundo composto do céu e da terra e quando calculo as suas grandezas, esta terra é uma mancha, um grão, um átomo, comparada ao firmamento e a todas as estrelas enumeradas, que parecem rolar em espaços incompreensíveis (pois a sua distância e a sua rápida volta diurna o provam), somente para ministrarem luz, no espaço de um dia e uma noite, em volta desta terra opaca, desta mancha, minúscula, elas, em toda a sua vasta inspeção, inúteis noutra parte! Raciocinando, admiro-me, muitas vezes, como a natureza sóbria e sábia pôde cometer tais desproporções, e, com mão pródiga, criar os corpos mais imponentes, multiplicar os maiores, para esta única utilidade (segundo parece) e impor aos seus orbes incessantes revoluções, repetidas dia por dia; enquanto a terra sedentária (que podia mover-se melhor num círculo bem menor), servida por mais nobre do que ela, atinge o seu fim sem o menor movimento e recebe, como tributo duma jornada incalculável, o calor e a luz trazidos com incorpórea velocidade, velocidade tal, que os números falham para descrevê-la.' (...) Rafael, benevolente e fácil, responde agora à dúvida, que Adão lhe expusera: 'Perguntar ou inquirir, não te censuro, pois o céu é como o livro de Deus aberto diante de ti, no qual podes ler as suas maravilhosas obras, e aprender as suas estações, suas horas, seus dias, seus meses ou seus anos; para atingir a isso, não importa que o céu e a terra se movam, se considerares isso bem. Seu grande arquiteto sabiamente ocultou o resto ao homem e ao anjo, para não divulgarem os seus segredos e para esses não serem escrutados por quem devia antes admirá-los, ou, se quiserem, 104

MILTON, John, op. cit., nota 103, pág. 161.

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experimentar algumas opiniões. Ele deixou o edifício dos céus às suas disputas, talvez para excitar o seu riso, por suas opiniões vãs e sutis, quando, no futuro, vierem copiar o céu e calcular as suas estrelas. Como manejarão eles a poderosa estrutura! Como construirão, demolirão, diligenciarão para salvar as aparências! Como cingirão a esfera com círculos concêntricos e excêntricos, ciclos e epiciclos, orbes nos orbes, mal descritos sobre ela. Já adivinho isso pelo teu raciocínio; tu, que deves conduzir a tua descendência, supuseste que os corpos luminosos maiores não deviam servir aos menores privados de luz, nem o céu percorrer tais jornadas, enquanto a terra sentada, tranquila, recebe sozinha o benefício. Considera primeiro que a grandeza e o esplendor não significam excelência: a terra, ainda que, em comparação ao céu, tão pequena, sem luz, pode conter qualidades sólidas em maior abundância que o sol, que brilha estéril, e cuja virtude não opera efeitos sobre si próprio, mas sobre a terra fecunda; aí os seus raios recebidos (inativos em outra parte) encontram o seu vigor. Entretanto essas brilhantes luminárias não são serviçais à terra, mas a ti, habitante da terra. Quanto ao amplo circuito do céu, que diga a alta magnificência do Criador, que construiu de maneira tão vasta, e estendeu as suas linhas tão longe, para que o homem saiba que não habita na sua própria casa; edifício grande demais para que ele o encha, alojado, como está, numa pequena parte: o resto foi formado para as utilidades mais conhecidas do seu Senhor. Atribui a velocidade desses círculos, apesar de inumeráveis, à onipotência de Deus, que podia acrescentar, às substâncias materiais rapidez quase espiritual; não me julgues lento, a mim, que, desde a hora matinal, parto do céu, onde Deus reside, e antes do meio-dia, cheguei ao Éden, distância inexprimível por números, que tenham nome. Mas, adianto-me, admitido o movimento dos céus, para mostrar como é nulo o que te induz a duvidar, não que eu afirme esse movimento, ainda que tal te pareça, a ti que tens a tua morada aqui, na terra. Deus, para afastar os seus desígnios dos sentidos humanos, colocou o céu tão longe da terra, para que a vista terrena, se se aventurar, possa vaguear em coisas elevadas demais, sem obter a menor vantagem. Que seria, se o sol, sendo o centro do mundo e se as outras estrelas (pela virtude dele, atraídas, e pelas suas próprias, incitadas), dançassem em volta dele em várias rotações? Tu vês, em seis planetas, o seu curso

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errante, ora alto, ora baixo, oculto, progressivo, retrógrado, ou estacionário; o que seria, se o sétimo planeta, a terra (apesar de tão imóvel como parece), se movesse insensivelmente por três diferentes movimentos? Sem isso, deves atribuir esses movimentos a diversas esferas movidas em sentido contrário, cruzando as suas obliquidades, ou deves poupar ao sol o seu trabalho e a esse rápido losango suposto noturno e diurno, invisível noutra parte acima de todas as estrelas, roda do dia e da noite. Não necessitarias acreditar mais que a terra, industriosa por si mesma, procurasse o dia na sua viagem para o oriente, e que do seu hemisfério, oposto aos raios do sol, encontrasse a noite, estando o outro hemisfério ainda iluminado pelos raios do sol. (...) Mas que essas coisas sejam ou não assim; que o sol, dominando o céu, se erga sobre a terra, ou que a terra se erga sobre o sol; que o sol comece no oriente o seu curso ardente, ou que a terra avance do ocidente a sua carreira silenciosa, com passos inofensivos, e durma no seu eixo suave enquanto caminha num passo igual a ti transporta delicadamente, com a atmosfera tranquila (...)' "105 Percebemos nos parágrafos finais dessa citação como John Milton, provavelmente influenciado pó Galileu, apresenta tanto concepções geocentristas quanto heliocêntricas, que estavam em debate no período em que ele viveu. No Capítulo 9 apresentaremos outros escritores que contemplarão a física que se desenvolveu desde o século XVI até o século XX.

105

MILTON, John, op. cit., nota 103, págs. 165/167.

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Capítulo 7 - Do círculo perfeito à elipse 7.1.

Introdução

Estudamos nos capítulos anteriores uma espécie de pré-história da física clássica que teve início com as contribuições dos filósofos gregos que, ao construírem seu diálogo com a natureza, introduziram novos elementos conceituais que foram agregados à síntese do conhecimento acumulado pelas diferentes civilizações que os precederam ou que deles foram contemporâneas. Ressalvadas todas as diferenças metodológicas, conceituais, observacionais e também tendo o cuidado de não confundir iniciadores de um diálogo mais sofisticado com a natureza com precursores da ciência que prosperaria cerca de vinte séculos mais tarde, creio que encontramos no desenvolvimento do conhecimento produzido pelos gregos muitos dos elementos constitutivos da física que nasceria durante e após a revolução copernicana. Junto com os elementos e a gênese do mundo, a articulação dos fenômenos com a geometria, o estudo do movimento, os modelos geométricos, o "salvar as aparências" e a medida das distâncias astronômicas, encontramos as células que ou gerariam a física astronômica e a mecânica ou estimulariam o aparecimento de outras células geradoras de conhecimento. Muitos desses elementos constitutivos foram posteriormente alvos da contribuição dos físicos medievais na sua tentativa de refutar ou melhorar a física aristotélica, principalmente pela introdução do conceito de impetus e seus vários significados. Após um breve voo sobre esses temas, estudamos a revolução copernicana que resolveu vários problemas não solúveis pelo paradigma geocêntrico e que marcou uma ruptura conceitual, um corte epistemológico, com a visão de mundo assentada sobre as concepções aristotélicas. A revolução copernicana abriu as portas para a construção de modelos universais, a aplicação do paradigma da harmonia cósmica, a relatividade do movimento, o imaginário que acabaria rompendo com o cosmos fechado e único e, finalmente, o convite a sofisticadas personagens que, ao mesmo tempo em que iam minando as últimas resistências dos aristotélicos, articulavam uma visão de mundo mais abrangente, instigante e bela. Alguns desses personagens ofereceram uma contribuição que pode ser situada muito mais no campo da filosofia que da física propriamente dita. Esse foi o caso de Giordano Bruno.

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7.2.

Rompendo com as esferas de cristal

Giordano Bruno, nascido em 1548, tornou-se dominicano em 1566 e, dez anos depois, devido às suas opiniões sobre os dogmas da imaculada conceição e da transubstanciação, foi obrigado a abandonar a ordem religiosa e deixar a Itália. Retornou em 1592 mas, denunciado, foi preso pela Inquisição. Levado a Roma, permaneceu encarcerado por sete anos, ao final dos quais foi excomungado e queimado vivo no Jardim das Flores, no dia 17 de fevereiro de 1600. É certo que, apesar de julgado por crimes de caráter religioso, o fato de ter sido copernicano e articulador desse paradigma facilitou a sua condenação pelo tribunal da Inquisição que, anos mais tarde, condenaria Galileu Galilei por acusações semelhantes. Embora Bruno não tenha dado contribuições significativas para a articulação do candidato a paradigma copernicano, ele foi um excelente propagandista das novas idéias, na Itália e na França. Em particular, ele defendia a tese de que o universo era infinitamente povoado de estrelas, retomando as concepções de Thomas Digges que, como afirma Alexandre Koyré, “(...) foi o primeiro Copernicano a substituir a concepção de seu mestre, a de um mundo fechado, pela de um mundo aberto (...)” 106 Mesmo sabendo que a visão de mundo apresentada por Bruno era caracterizada por uma mescla do sistema copernicano com ideias místicas, Koyré acreditava que "(...) foi Bruno quem pela primeira vez nos apresentou o delineamento, ou o esboço, da cosmologia que se tornou dominante nos últimos dois séculos (...)”107, pois foi ele o introdutor da doutrina do universo descentralizado, infinito e infinitamente povoado e seu primeiro propagador. E Bruno fazia a defesa de seu universo infinito baseado no fato de que Deus não poderia agir de outra forma senão criando um mundo infinitamente rico e infinitamente extenso. Eis algumas citações de Bruno que dão uma ideia da sua forma de pensar o universo: "(...) Assim, pois, a Terra não está no centro do Universo; ela só é central em relação ao espaço que nos circunda.(...) "É assim que a excelência de Deus se exalta e que a grandeza de seu reino se manifesta; Ele é glorificado não em um único mas em incontáveis sóis;

106 107

KOYRÉ, Alexandre, op. cit., nota 79, pág. 43. KOYRÉ, Alexandre, op. cit., nota 79, pág. 45.

90

não em uma única Terra, mas em mil, que digo? numa infinidade de mundos. De sorte que não é vã essa pujança de intelecto que, sempre, quer e logra a adição de espaço a espaço, massa a massa, unidade a unidade, número a número, não é vã a ciência que nos liberta dos grilhões de um reino estreitíssimo e nos promove à liberdade de um império verdadeiramente augusto (...) Não há fins, termos, limites ou muralhas que nos possam usurpar a multidão de coisas ou privar-nos dela. Por isso a Terra e o oceano são fecundos; por isso o clarão do Sol é eterno; por isso há eternamente provimento de combustível para as fogueiras vorazes e a umidade restaura os mares exauridos. Porque do infinito é engendrada uma abundância sempre renovada de matéria. Assim, Demócrito e Epicuro, que sustentavam que tudo através do infinito sofria renovação e restauração, compreendiam essas questões melhor que aqueles que a todo custo mantém a crença na imutabilidade do Universo, alegando um número constante e invariável de partículas de material idêntico que perpetuamente sofrem transformações, umas em outras."108 Notamos nesse texto a presença de dois pensadores gregos que foram utilizados na argumentação contra a imutabilidade do universo, isto é, contra a visão de mundo oferecida pelo sistema aristotélico, ainda dominante nessa época. Outros filósofos gregos foram os inspiradores de outros articuladores do paradigma copernicano. Os pitagóricos foram invocados por Kepler, enquanto Galileu contava com a metodologia de Arquimedes para desenvolver seus principais trabalhos. 7.3.

A geometrização exagerada de Kepler

A utilização da geometria e da matemática enquanto linguagens preferenciais para dialogar com a natureza, para representar aspectos dessa natureza, superando, assim, a hegemonia da experiência espontânea, foi responsável pela substituição de uma física contemplativa e qualitativa por uma matematização da física. Kepler e, principalmente, Galileu foram os mais importantes pesquisadores, dessa época, que utilizaram essa forma de pensar e trabalhar a natureza, foram os precursores de uma nova epistemologia.

108

BRUNO, Giordano, De l'infinito universo e mondi, escrito em 1584. Citado por Alexandre Koyré, op. cit., nota 79, págs. 49/51.

91

Vamos abordar inicialmente a figura de Kepler e suas contribuições para a astronomia física. “Johannes Kepler, Keppler, Khepler, Kheppler ou Keplerus, à moda latina, foi concebido em 16 de maio de 1571 depois de Cristo, às 4 horas e trinta e sete minutos da manhã, e nasceu em 27 de dezembro, às 2 horas e trinta minutos da tarde, após uma gravidez que durou 224 dias, 9 horas e 53 minutos. As cinco diversas grafias do nome são todas dele, como são também os números que dizem respeito à concepção, gravidez e nascimento, registrados num horóscopo feito para si próprio. O contraste entre o descuido acerca do nome e a extrema precisão acerca das datas reflete, desde o início, um espírito para quem a realidade essencial, a essência da religião, da verdade e da beleza, se continha na linguagem dos números.”109 Notamos aí claramente a influência dos pitagóricos, a dança dos números devia estar ligada à dança dos planetas que, por sua vez, devia definir o ritmo da vida humana, dos seus sonhos como também da sua vida concreta. Essa inspiração, meio mística meio ciência moderna, refletia a forma de pensar dos que viveram à época da transição, da revolução do pensamento, naquele período em que Koestler situa o divisor de águas entre aquele Cosmos fixo e imutável e um Universo em contínua transformação, entre o misticismo puro e o empirismo mediatizado pela razão matemática e geométrica, entre o sonho e o racional. É o misticismo pitagórico redivivo. Esse procedimento está de acordo com aquele período de crise ou de início de articulação paradigmática como afirma Kuhn. Nesse ritmo, Kepler, como fica transparente com o cuidado com as datas precisamente determinadas, preocupado com as suas atividades que levaram-no à preparação de um calendário anual de previsões astrológicas, voltava-se para os céus com olhos muito diferentes dos seus companheiros astrólogos contemporâneos. E tinha o modelo de Copérnico como guia espiritual e conceitual. Várias razões deviam tê-lo guiado a aceitar o universo copernicano, de que havia ouvido falar quando ainda era estudante através do seu mestre de astronomia. Concordara imediatamente com um modelo que situava o Sol no centro do Universo por razões inicialmente místicas. O Sol deveria ser privilegiado pois era o "(...) símbolo do Deus pai, fonte de luz e calor, gerador da força que move os planetas nas órbitas, e por ser o universo heliocêntrico geometricamente mais simples e satisfatório. Parecem quatro razões 109

KOESTLER, Arthur, op. cit., nota 12, pág. 153.

92

diferentes, mas formam um conjunto único, indivisível no espírito de Kepler, uma nova síntese pitagórica de misticismo e ciência." 110 Nessa época, 1593, Kepler fora nomeado professor de astronomia e Mathematicus da província da cidade de Gratz. Numa de suas aulas de geometria, segundo ele próprio registrou, ocorrida no dia 9 de julho de 1595, desenhou uma figura parecida com a que está reproduzida abaixo.

Figura 25: A figura mostra um triângulo com um circulo inscrito e outro circunscrito; noutras palavras, o círculo exterior envolvia o triângulo, enquanto o círculo interior era envolvido pelo triângulo111.

"Olhando para os dois círculos, Kepler, repentinamente, percebeu que as suas razões eram as mesmas que as das órbitas de Saturno e Júpiter. O resto da inspiração foi um relâmpago. Saturno e Júpiter são os "primeiros" (isto é, os dois planetas mais externos), e "o triângulo é a primeira figura da geometria. Tentei imediatamente inscrever no intervalo seguinte, entre Júpiter e Marte, um quadrado, entre Marte e a Terra, um pentágono, entre a Terra e Vênus, um hexágono (...)".Não deu certo(...) "É preciso procurar formas tridimensionais (...)"112 Já por essa época uma questão fundamental inquietava o jovem Kepler: por que há exatamente seis planetas e não outro número qualquer? Os seis planetas então conhecidos eram a Terra, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. Assim, Kepler procurava associar figuras geométricas planas a um sistema planetário. Essa foi a linha de investigação, em termos contemporâneos, o programa de pesquisa, que guiou os passos seguintes de Kepler. Nesse ponto de seu trabalho, quando as tentativas de utilizar polígonos regulares não estavam dando certo, Kepler chegou a uma feliz coincidência: sua atenção foi despertada para os sólidos regulares perfeitos, os chamados sólidos pitagóricos ou platônicos que eram em número de cinco, mesmo número que os intervalos entre as órbitas dos 110

KOESTLER, Arthur, op. cit., nota 12, pág. 178. KOESTLER, Arthur, op. cit., nota 12, pág. 169. 112 KOESTLER, Arthur, op. cit., nota 12, pág. 169. 111

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seis planetas. Aí está o insight kepleriano. Havia apenas seis planetas porque só existiam cinco sólidos regulares perfeitos que permitiam circunscrever ou inscrever as seis esferas correspondentes a cada um dos seis planetas. Só podia ser dessa forma, imaginou Kepler. A figura 26 apresenta uma reprodução dessa construção fantástica obtida por Kepler. Na esfera mais externa, correspondente à órbita de Saturno, Kepler inscreveu um cubo; neste, uma esfera da órbita de Júpiter na qual, por sua vez, inscreveu um tetraedro; no tetraedro ele inseriu a esfera de Marte; entre as esferas de Marte e da Terra localizou o dodecaedro; entre as da Terra e Vênus, Kepler colocou o icosaedro; finalmente, entre as de Vênus e Mercúrio, o octaedro. Eis um comentário significativo de Kepler: "É assombroso! Embora eu não tivesse ainda uma idéia clara da ordem em que deviam ser dispostos os sólidos perfeitos, logrei êxito (...) em dispôlos tão felizmente que, mais tarde, ao verificar tudo, nada tive que alterar. Não lamentei mais o tempo perdido; não me senti mais cansado; não fugi a nenhum cálculo, por mais difícil que fosse. Dia e noite passei-os em cálculos para verificar se a minha afirmação se condizia com as órbitas copernicanas, ou se o meu júbilo seria levado pelos ventos (...) Ao cabo de alguns dias tudo caiu no devido lugar. Vi um sólido simétrico depois do outro adaptar-se tão precisamente entre as órbitas adequadas, que se um camponês te perguntar a que espécie de gancho estão presos os céus, para não caírem, ser-te-á fácil responder-lhe, a Deus!"113

113

KOESTLER, Arthur, op. cit., nota 12, pág. 171.

94

Figura 26. Modelo do universo: a esfera mais externa é a de Saturno. Ilustração do Mysterium Cosmographicum de Kepler.

A forma de proceder de Kepler exemplifica a influência fantástica que determinada visão de mundo exerce sobre a tentativa de explicar determinadas situações observacionais. Realmente não se olha de modo neutro para a natureza. O olhar carregado de teoria tanto pode levar-nos à construção de propostas que, mais tarde, vão se mostrar descabidas como a outras propostas que vão sobreviver e alimentar novos imaginários. Por outro lado, como sugeria Bachelard, o olhar carregado de teoria pode impedir-nos de captar os tênues sinais significantes que a natureza nos emite, ou seja, a teoria pode funcionar como um obstáculo epistemológico.

95

Como estabelecer um razoável equilíbrio entre essas duas condições? Feyerabend propõe a proliferação de teorias e o princípio do tudo vale, Popper 115 estabelece a racionalidade crítica do princípio de refutabilidade, Kuhn fala da funcionalidade da ciência normal guiada por paradigmas e Bachelard discursa sobre a construção do conhecimento envolvendo continuidades e rupturas. 114

7.4.

Kepler e a gravidade

Uma outra inquietação fundamental estava presente no primeiro livro de astronomia de Kepler, o seu Mysterium cosmographicum: a procura de uma relação matemática entre a distância de um planeta ao Sol e a duração de seu período. Observou que os períodos aumentavam com a distância dos planetas ao Sol. Quanto mais distantes do Sol mais lentos eram os planetas, observara Kepler. Com esse tipo de observação chegou à concepção de uma alma que emanava do Sol e que conduzia, empurrava, os planetas nas suas órbitas. Era uma espécie de energia radiante que forçava os planetas no seu movimento ininterrupto. Kepler não se contentava com a mera descrição dos movimentos dos corpos celestes em termos geométricos, o salvar as aparências dos gregos, ele buscava uma causa física para esse movimento. Era o nascimento hesitante e ousado dos conceitos modernos de força, energia radiante, e causa – e – efeito. Kepler estava empenhado em estabelecer uma unidade entre a geometria e as observações, em busca de alguma espécie de harmonia cósmica mais sofisticada que aquela buscada e construída por Copérnico. Com esse empenho, Kepler pode ser considerado, como destacou J. D. Bernal, um dos pioneiros da física teórica e experimental pois, embora pudesse ter liberdade total para produzir teorias, estas precisavam concordar com as observações.116

114

Paul Feyerabend (1924-1994) foi um filósofo austríaco que baseava seus argumentos epistemológicos no anarquismo metodológico, dedicando-se ao que ele denominava de resgate do humanismo na ciência. Ele argumentava que a ciência utilizava diferentes métodos e que nenhum deles tinha validade em todas as tarefas que se propunha resolver. Seu livro mais conhecido: Contra o método, Ed. da Unesp, 2004. 115

Karl Popper (1902-1995) foi também um filósofo austríaco que criticava fortemente o método científico baseado na indução e que dizia que era impossível estabelecer a validação de uma teoria científica pelo critério da verificação, substituindo-o pela racionalidade crítica baseada na refutação. Sua obra mais conhecida: A lógica da pesquisa científica, Ed. Cultrix/Edusp, 1975. 116

BERNAL, J. D., op. cit., nota 6, pág. 166.

96

Em função do seu livro Mysterium Cosmographicum, a fama de Kepler chegou até Tycho Brahe que o convidou a trabalhar com ele em Uraniemburgo. Kepler para lá se dirigiu em 1600. Trabalharam juntos por apenas um ano pois, em 1601, Tycho faleceu. Kepler recebeu de herança, como já havia mencionado, os dados e tabelas compiladas em décadas de trabalho por esse exímio e obsessivo astrônomo. Kepler passou, então, a estudar, nos anos seguintes, as órbitas dos planetas, dando mais atenção à órbita de Marte para a qual dispunha de muito mais informação. Procurou encontrar possíveis órbitas circulares que combinassem com os dados de que dispunha. A hegemonia do círculo e da esfera persistia. Nessa ocasião essa hegemonia, ou paradigma, constituía-se num verdadeiro obstáculo epistemológico. Embora preso a essa restrição, que o levava a procurar acomodar seus dados e os de Tycho Brahe a órbitas circulares e a utilizar excêntricos e equantes, como fizera Copérnico, Kepler não lançava mão do artifício representado pelo epiciclo. Por que tal implicância? Para responder de forma mais adequada a esta questão, devemos fazer um breve intervalo nesta nossa abordagem sobre Kepler e comentar brevemente alguns resultados obtidos por William Gilbert, 1540-1603, no seu estudo sobre os ímãs e suas propriedades. Em 1600, Gilbert publicou seu principal trabalho sobre o magnetismo, De magnete, que teve forte influência sobre vários físicos desse período, particularmente atingindo a figura de Kepler. Por analogia com experimentos que realizou com ímãs esféricos, Gilbert imaginou que o motor básico que comandava o sistema solar era de origem magnética. Chegou a pensar a própria Terra constituindo um gigantesco ímã que atrairia todos os corpos à sua volta. Essa gravidade magnética se propagaria pelo espaço afora, atuando sobre todo o sistema solar. Gilbert não era copernicano. Ele aceitava a visão de Tycho segundo a qual todos os planetas girariam ao redor do Sol e este orbitaria em torno de nosso planeta, acrescentando uma razão física, a atração magnética, que era responsável pela manutenção de todo o sistema interligado. Influenciado por esse modo de raciocinar, Kepler recusou-se a utilizar epiciclos nas suas construções geométricas das órbitas dos planetas. Isto porque não podia conceber um planeta girando em torno de um ponto geométrico vazio, que não podia responder pela causa física do movimento do planeta.

97

Para poder se avaliar mais apropriadamente o novo raciocínio que estava adentrando o reino da ciência, eis um breve trecho do livro Astronomia Nova117, publicado por Kepler em 1609: "Logo, é claro que a doutrina tradicional acerca da gravidade está errada (...) A gravidade é a tendência corpórea mútua entre corpos cognatos (isto é, materiais) para a unidade ou contacto de cuja espécie é também a força magnética, de modo que a Terra atrai uma pedra muito mais do que uma pedra atrai a Terra (...) Supondo que a Terra estivesse no centro do mundo, os corpos pesados seriam atraídos, não por estar ela no centro, mas por ser um corpo cognato (material). Segue-se que, independentemente de onde colocarmos a Terra (...) os corpos pesados hão de procurá-la sempre (...) Se duas pedras fossem colocadas em qualquer lugar do espaço, uma perto da outra, e fora do alcance da força de um terceiro corpo cognato, unirse-iam, à maneira dos corpos magnéticos, num ponto intermediário, aproximando-se cada uma da outra em proporção à massa da outra. Se a Terra e a Lua não estivessem mantidas nas respectivas órbitas por uma força espiritual ou qualquer outra força equivalente, a Terra subiria em direção à Lua um cinquenta e quatro avos da distância, cabendo à Lua descer as restantes cinquenta e três partes do intervalo, e assim se uniriam. Mas o cálculo pressupõe terem os dois corpos a mesma densidade. Se a Terra cessasse de atrair as águas do mar, os mares se ergueriam e iriam ter à Lua (...) Se a força de atração da Lua chega à Terra, segue-se que a força de atração da Terra, com maior razão, vai até à Lua e ainda mais longe (...) Nada do que é feito de substância terrestre é inteiramente leve; mas a matéria menos densa, quer por natureza quer pelo calor, é relativamente mais leve (...)"118

117

ASTRONOMIA NOVA AITIOLOGETOS, sev PHYSICA COELESTIS, tradita commentariis DE MOTIBUS STELLAE MARTIS, Ex observationibus, G. V. TYCHONIS BRAHE. Tradução: NOVA ASTRONOMIA baseada nas causas ou FÍSICA DO CÉU derivada das investigações dos MOVIMENTOS DO ASTRO MARTE fundamentada nas Observações DO NOBRE TYCHO BRAHE. Essa foi a principal obra de Kepler. Segundo Koestler, ele trabalhou nela de 1600 a 1606. Ela contém as duas primeiras leis planetárias de Kepler. 118 KEPLER, J. Astronomia Nova. Citação extraída de KOESTLER, Arthur, op. cit., nota 12, págs. 231/232.

98

7.5.

Rompendo com a hegemonia do círculo

Voltemos à órbita de Marte. Kepler afirmara que: "Marte sozinho possibilita-nos penetrar os segredos da astronomia." Kepler permaneceu durante vários anos tentando ajustar os dados de Tycho a órbitas circulares. Após toda uma série de tentativas, parecia-lhe que havia conseguido um ajuste quase perfeito com uma diferença máxima de menos de 8 minutos de arco. Kepler ficou exultante. Durou pouco sua alegria. Como os dados de Tycho tinham uma precisão melhor do que o desvio de 8 minutos - os dados de Tycho possuíam um desvio da ordem de um décimo de grau - Kepler concluiu que a órbita de Marte não poderia ser circular. Eis seu desabafo: "Mas quanto a nós, que, pela bondade divina, pudemos dispor de um observador exato como Tycho Brahe, quanto a nós convém reconheçamos essa dádiva divina e a usemos (...) Logo, irei para o alvo segundo as minhas próprias ideias, porque se tivesse acreditado podermos ignorar os oito minutos, teria remendado, de acordo, a minha hipótese. Visto, porém, não ser possível ignorá-los, esses oito minutos apontam o caminho para uma completa reforma da astronomia; tornaram-se o material de construção de grande parte desta obra (...)"119 Nesse meio tempo, Kepler ficou manipulando todos os dados que tinha à sua disposição. Chegara à conclusão, por exemplo, que a Terra não se movia uniformemente ao longo de sua órbita, mas que sua velocidade dependia da distância ao Sol, reforçando sua concepção de que o movimento dos planetas era comandado pelo grande astro. Imaginara que o tempo necessário para percorrer um pequeno trecho da órbita também deveria ser proporcional àquela distância. Assim, dividiu toda a área da órbita em 360 partes e calculou as respectivas distâncias ao Sol. Imaginou que a soma das distâncias num determinado trecho da órbita daria o tempo necessário para percorrê-lo. Daí acabou chegando à sua famosa lei das áreas, hoje conhecida como segunda lei de Kepler, que podia ser assim enunciada: a linha que une o planeta ao Sol varrerá áreas iguais em tempos iguais. Dessa forma, Kepler estava esboçando uma lei de conservação. Essa lei permitia determinar a variação da velocidade do planeta em diferentes pontos da órbita, mas não dizia nada a respeito do formato que a órbita deveria ter. 119

KEPLER, J. Astronomia Nova. Citação extraída de KOESTLER, Arthur, op. cit., nota 12, pág. 221.

99

Tendo já abandonado a ideia da órbita circular, Kepler começou a trabalhar com uma forma bastante inusitada para quem era movido pela busca da harmonia matemática: a oval. Após muitas tentativas de ensaio e erro, Kepler finalmente abandonou a oval e passou a trabalhar com elipses tendo o Sol localizado num dos focos. Foi assim que ele chegou à sua outra lei, hoje denominada primeira lei de Kepler: as órbitas dos planetas são elípticas. Essas duas leis de Kepler foram publicadas na sua já mencionada obra Astronomia Nova, de 1609. A terceira lei de Kepler, ou lei dos períodos, foi apresentada no livro Harmonia dos Mundos, publicada em 1618. Após a publicação de suas duas leis, Kepler buscava relacionar, numa única expressão matemática, dados dos diferentes planetas, porque que estava convencido, desde sempre, que deveria haver alguma regularidade ou ordem especial que ligaria o movimento dos diferentes componentes do sistema solar. Ele nunca deixara de ser um pitagórico convicto. A terceira lei de Kepler também foi fruto de cálculos pacientes e obstinados. Em linguagem moderna essa lei diz o seguinte: os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer estão entre si como os cubos de suas distâncias médias ao Sol. Essa terceira lei mostrou-se básica, algumas décadas mais tarde, para Newton na formulação do princípio universal da gravitação. Estudamos até aqui alguns dos trabalhos de Kepler: suas primeiras tentativas em associar figuras geométricas planas, os polígonos, ou tridimensionais, os poliedros regulares, aos corpos celestes conhecidos, até a enunciação das hoje conhecidas três leis de Kepler, publicadas entre 1609 a 1618. Vimos também como encontramos em Kepler algo do que seria o prenúncio da concepção de atração gravitacional, exemplificado pelas citações do seu livro Astronomia Nova, influenciado pelo livro De magnete de William Gilbert. Tudo isso fazia parte do caldo de cultura do qual se serviu Newton ao elaborar o seu princípio de atração gravitacional. Uma questão que Kepler considerava enigmática estava relacionada com a inexplicada preferência que a natureza tinha pela elipse. Essa questão só teria uma resposta adequada após os trabalhos gravitacionais de Newton. 7.6.

Uma homenagem de Einstein a Kepler

Kepler, com seu trabalho, rompeu amarras que nem Copérnico havia ousado tocar. Ele procurou explicar o movimento dos corpos celestes, não se contentando em

100

salvar as aparências. Buscou equações matemáticas que representassem seus achados. Ele procurou causas físicas, causas dinâmicas para o movimento dos planetas. Era o início da articulação da mecânica que estava começando a se tornar realidade. Einstein se incluía entre os muitos admiradores do introdutor das cônicas na física como pode ser evidenciado pelo belo depoimento que fez sobre o gênio de Kepler num texto, por diversos motivos, extremamente atual: "Em nosso tempo, justamente nos momentos de grandes preocupações e de grandes tumultos, os homens e suas políticas não nos fazem muito felizes. Por isso estamos particularmente comovidos e confortados ao refletirmos sobre um homem tão notável e tão impávido quanto Kepler. No seu tempo a existência de leis gerais para os fenômenos da natureza não gozava de nenhuma certeza (...) ele descobre que é preciso tentar determinar o movimento da própria Terra (...) Kepler encontra um processo admirável para resolver o dilema (...) (...) Imaginemos uma lanterna M, colocada em algum lugar no plano da órbita, e que lança viva luz e conserva uma posição fixa, conforme já o verificamos. Ela constituirá então, para a determinação da órbita terrestre, uma espécie de ponto fixo de triangulação ao qual os habitantes da Terra poderiam se referir em qualquer época do ano. Precisemos ainda que esta lanterna estaria mais afastada do Sol do que da Terra. Graças a ela pode-se avaliar a órbita terrestre. Ora, cada ano, existe um momento em que a Terra T se situa exatamente sobre a linha que liga o Sol S à lanterna M. Se, neste momento, se observar da Terra T a lanterna M, esta direção será também a direção SM (Sol - lanterna). Imaginemos esta última direção traçada no céu. Imaginemos agora uma outra posição da Terra, em outro momento. Já que, da Terra, se pode ver tão bem o Sol S quanto a lanterna M, o ângulo em T do triângulo STM se torna conhecido. Mas conhece-se também pela observação direta do Sol a direção ST em relação às estrelas fixas, ao passo que anteriormente a direção da linha SM em relação às estrelas fixas fora determinada de uma vez por todas. Conhece-se igualmente no triângulo STM o ângulo em S. Portanto, escolhendo-se à vontade uma base SM, pode-se traçar no papel, graças ao conhecimento dos dois ângulos em T e em S, o triângulo STM. Será então possível operar assim várias vezes durante o ano e, de cada vez, se desenha no papel uma localização para a Terra T, com a data correspondente e sua posição em relação à base SM, fixa de uma vez por todas. Kepler determina assim, empiricamente, a órbita terrestre. Simplesmente ignora sua dimensão absoluta, mas é tudo! Porém, objetarão, onde é que Kepler encontrou a lanterna M? Seu gênio, sustentado pela inesgotável e benéfica natureza, o ajudou a encontrar.

101

Podia, por exemplo, utilizar o planeta Marte. Sua revolução anual, quer dizer, o tempo que Marte leva para realizar uma volta ao redor do Sol, era conhecida. Pode acontecer o caso em que o Sol, Terra, Marte se encontram exatamente na mesma linha. Ora, esta posição de Marte se repete a cada vez depois de um, dois, etc. anos marcianos, porque Marte realiza uma trajetória fechada. Nestes momentos conhecidos, SM apresenta sempre a mesma base, ao passo que a Terra se situa sempre em um ponto diferente de sua órbita. Portanto, nestes momentos, as observações sobre o Sol e Marte oferecem um meio para se conhecer a verdadeira órbita da Terra, pois o planeta Marte reproduz nesta situação a função da lanterna imaginada e descrita acima (...) A razão humana, eu o creio muito profundamente, parece obrigada a elaborar antes e espontaneamente formas cuja existência na natureza se aplicará a demonstrar em seguida. A obra genial de Kepler prova esta intuição de maneira particularmente convincente. Kepler dá testemunho de que o conhecimento não se inspira unicamente na simples experiência, mas fundamentalmente na analogia entre a concepção do homem e a observação que faz."120

7.7.

As leis de Kepler em detalhe

Até aqui tratamos dos trabalhos de Kepler do ponto de vista essencialmente histórico, desde as primeiras tentativas em que ele procurava associar figuras geométricas planas, os polígonos, ou tridimensionais, os poliedros regulares, aos corpos celestes conhecidos, até a enunciação das hoje conhecidas três leis de Kepler, publicadas entre 1609 a 1618. Nestas breves notas de aula vamos explorar com mais detalhes como se dá a passagem das três leis de Kepler para essa elaboração mais completa realizada por Newton. Para tanto vamos utilizar um formalismo que surgiu muito tempo depois da enunciação por Kepler de suas três leis do movimento dos planetas.

1. Sobre a primeira lei de Kepler. O enunciado da primeira lei de Kepler pode ser assim formulado:

120

EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Ed. Nova Fronteira, São Paulo, 7ª edição, 1981, págs. 176/180.

102

Figura 27. 1ª lei: as órbitas dos planetas são elípticas com o Sol localizado num dos seus focos.

Assim, na figura acima, o Sol coincidiria com o foco F1. Nessa figura ainda encontramos outros elementos característicos da elipse: a = semi-eixo maior b = semi-eixo-menor c = distância focal Q1 = periélio, ponto da elipse mais próximo do Sol Q2 = afélio, ponto da elipse mais distante do Sol. Qualquer ponto da elipse, como o P indicado na figura, apresenta a seguinte propriedade:

̅̅̅̅̅ 𝑃𝐹1 + ̅̅̅̅̅ 𝑃𝐹2 = 2𝑎 A medida da excentricidade da elipse, isto é, do seu “afastamento” da forma circular, é dada por 𝒆 = 𝒄⁄𝒂. Se a história das contribuições de Kepler para o nascimento da física moderna é repleta de incidentes e fatos memoráveis como, por exemplo, sua obsessão por associar figuras geométricas ao número e dimensões das órbitas dos planetas, a felicidade de ter tomado conhecimento dos dados de Tycho Brahe e sua meticulosidade em estabelecer a unidade entre a geometria e os dados de observação, não menos notável é a coincidência dele poder dispor de dados sobre um planeta que se mostrou mais apropriado para o tipo de empreitada a que ele se propusera. Para perceber isso basta analisar a comparação entre os valores de excentricidade dos planetas: Tabela 2: As excentridades das órbitas planetárias121 121

Esta tabela foi extraída do Harvard Project Physics, Texto 2, Motion in the Heavens, 1968, pág. 57.

103

Planeta Mercúrio Vênus Terra

Excentricidade 0,206 0,07 0.017

Marte

0,093

Júpiter Saturno Urano Netuno Plutão

0,048 0,056 0,047 0,009 0,249

Notas Poucas observações para Kepler estudar Órbita particularmente circular Pequena excentricidade Máxima excentricidade entre os planetas que Kepler poderia estudar Movimento muito vagaroso no céu Movimento muito vagaroso no céu Não descoberto até 1781 Não descoberto até 1846 Não descoberto até 1930

Não é por outro motivo que Kepler escreveu que: “Marte sozinho possibilita-nos penetrar os segredos da astronomia.”122 Veremos mais adiante que a questão enigmática, para Kepler, do porque da preferência da natureza pela elipse só terá resposta adequada após os trabalhos de Newton. 2. Sobre a segunda lei de Kepler. 2 ª lei: a linha reta que liga o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais.

Figura 28

Vamos procurar uma expressão matemática para a lei das áreas que relacione explicitamente a velocidade do planeta com sua respectiva distância ao Sol. 122

Idem nota 121.

104

Hipótese simplificadora: vamos supor que os trechos de órbitas, acima indica̅̅̅̅ e 𝐶𝐷 ̅̅̅̅ são tão pequenos que podemos considerá-los delimitando dois setores de dos, 𝐴𝐵 círculos, de tal forma que:

̅̅̅̅ 𝑆𝐴 = ̅̅̅̅ 𝑆𝐵 = 𝑅1 ̅̅̅̅ 𝑆𝐶 = ̅̅̅̅ 𝑆𝐷 = 𝑅2 Como setores de círculos, as áreas dos mesmos são dadas por:

1 ( ) Á𝑟𝑒𝑎 𝑆𝐴𝐵 = ̅̅̅̅ 𝐴𝐵 𝑅1 2 e

Á𝑟𝑒𝑎 (𝑆𝐶𝐷 ) =

1 ̅̅̅̅ 𝐶𝐷 𝑅2 2

Vamos considerar as distâncias ̅̅̅̅ 𝐴𝐵 e ̅̅̅̅ 𝐶𝐷 percorridas num mesmo intervalo de tempo ∆𝑡. Assim, pela segunda lei de Kepler:

Á𝑟𝑒𝑎 (𝑆𝐴𝐵) = Á𝑟𝑒𝑎 (𝑆𝐶𝐷 ) Portanto,

̅̅̅̅ 𝐴𝐵 𝑅1 = ̅̅̅̅ 𝐶𝐷 𝑅2 Se dividirmos ambos os membros da igualdade acima por t, no limite de t ̅̅̅̅ ̅̅̅̅ tendendo a zero, as razões 𝐴𝐵⁄∆𝑡 e 𝐶𝐷⁄∆𝑡 serão, respectivamente, as velocidades instantâneas 𝑣1 e 𝑣2 . Dessa forma, finalmente chegamos à expressão:

𝑣1 𝑅1 = 𝑣2 𝑅2 = 𝑐𝑜𝑛𝑠𝑡𝑎𝑛𝑡𝑒 Generalizando esse resultado seríamos tentados a escrever a expressão para qualquer ponto da órbita:

𝑣𝑅 = 𝑐𝑜𝑛𝑠𝑡𝑎𝑛𝑡𝑒

(4) Se multiplicarmos ambos os lados dessa expressão pela massa do planeta, m, obteríamos o módulo do momento angular, também conhecido por momento orbital ou

105

momento da quantidade de movimento:𝐿 = 𝑚𝑣𝑅. Trataremos logo mais abaixo deste assunto. Porém, aqui, é necessário prestar atenção na hipótese simplificadora acima utilizada. Ao considerar pequenos setores de círculos estávamos considerando as velocidades tangenciais a esses setores de círculo, portanto, ortogonais aos raios orbitais. Embora para a maioria dos planetas, dadas as suas excentricidades, a aproximação é boa, faremos a seguinte correção por rigor conceitual e devido ao resultado singular que essa correção implica no caso do momento angular, como veremos mais adiante. Assim, apenas as componentes perpendiculares aos raios orbitais devem ser consideradas. Ou seja, a expressão (4) só é perfeitamente correta para o caso de órbitas circulares. Para órbitas elípticas tal resultado só tem validade nos pontos extremos do periélio e do afélio. Nos demais pontos da órbita elíptica a velocidade é tangencial à elipse podendo, assim, ser desdobrada em duas componentes, uma perpendicular e a outra paralela ao raio orbital, como ilustra a figura abaixo.

Figura 29

Desta forma, a expressão (4), bem como a expressão para o momento angular deveriam ser assim escritas:

𝑣𝑅 = 𝑐𝑜𝑛𝑠𝑡𝑎𝑛𝑡𝑒 Voltaremos a este assunto mais adiante. 3. Sobre a terceira lei de Kepler.

𝐿 = 𝑚𝑣1 𝑅

(5)

106

3ª lei: os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer estão entre si como os cubos de suas distâncias médias ao Sol. Após a publicação de suas duas leis, Kepler busca relacionar, numa única expressão matemática, dados dos diferentes planetas porque estava convencido, desde sempre, que deveria haver alguma regularidade ou ordem especial que ligaria o movimento dos diferentes componentes do sistema solar. Nunca deixa de ser um pitagórico convicto. A terceira lei de Kepler pode também ser assim expressa:

𝑇 2 = 𝑘𝑅3

(6)

A constante 𝑘 tem o mesmo valor para todos os planetas do sistema solar. Se considerarmos o raio orbital médio da Terra, cerca de 15 × 107 quilômetros, como a unidade astronômica (𝑈𝐴) e tomarmos o período orbital terrestre de 1 ano, a constante 𝑘 pode ser calculada:

𝑘=1

𝑎𝑛𝑜2 𝑈𝐴3

Questão: Qual seria o valor da constante 𝑘 para o sistema Terra-Lua? 7.8.

Um parêntesis: momento de uma força e momento angular

Antes de passarmos a tratar das contribuições de Galileu à articulação do paradigma copernicano, e também antes de apresentarmos a forma como Isaac Newton utilizou os resultados sintetizados nas três leis de Kepler, vou introduzir alguns conceitos que foram criados muito depois do trabalho desses vários personagens, mas que se mostrarão muito importantes na articulação plena do nascimento da mecânica e, particularmente do princípio da atração gravitacional de Newton. 1. Momento de uma força com relação a um ponto O.

107

Na figura ao lado, 𝐹⃗ é uma força capaz de fazer girar um corpo em torno de um ponto O. Temos isso no cotidiano: por exemplo, o ato de abrir uma porta. Sabemos, a partir da prática, que a efetividade dessa ação depende da magnitude e orientação da força 𝐹⃗ e da posição de seu ponto de aplicação (a maçaneta). Figura 30

Assim, é útil introduzir um conceito que depende de 𝐹⃗ e da distância ao ponto de aplicação, ou seja:

𝜏 = 𝑏𝐹

(7)

𝑏

Como 𝑠𝑒𝑛 𝜃 = 𝑟 , portanto, temos o seguinte:

𝑏 = 𝑠𝑒𝑛 𝜃 𝑟

(8)

Substituindo a expressão (8) em (7), obtemos:

𝜏 = 𝑟 𝐹 𝑠𝑒𝑛 𝜃

(9)

⃗⃗ Produto vetorial. Sabemos que se 𝐴⃗ e 𝐵 são dois vetores como indicados na figura ao lado, temos o seguinte resultado vetorial

⃗⃗ = |𝐴⃗||𝐵 ⃗⃗|𝑠𝑒𝑛 𝜃 𝐴⃗ ⋀ 𝐵 (10)

Figura 31

Daí, por comparação entre as expressões (9) e (10), obtemos:

|𝜏⃗| = |𝑟⃗||𝐹⃗ |𝑠𝑒𝑛 𝜃

𝜏⃗ = 𝑟⃗ ⋀ 𝐹⃗

(11)

108

Deve-se frisar que o momento da força 𝐹⃗ , ou torque da força 𝐹⃗ , foi definido com relação a um ponto referencial O. Se alterarmos o ponto de referência para O' o torque poderá mudar de valor. 2. Momento angular ou momento orbital Vamos agora considerar o movimento de uma partícula de massa m segundo uma trajetória curva qualquer contida num plano. Em qualquer posição 𝒓, referenciada a um ponto O no plano, a partícula terá uma velocidade 𝒗 que pode variar tanto em módulo, seu valor numérico, quanto em direção. Como a partícula descreve uma trajetória curva ela está sujeita a uma aceleração 𝒂 que é responsável pela variação do módulo e da direção de sua velocidade. A segunda lei de Newton nos diz que haverá uma força na direção da aceleração e proporcional a ela. A constante de proporcionalidade é a massa m da partícula. Assim, temos: 𝐹⃗ = 𝑚𝑎⃗ 𝑑𝑣⃗⃗ Ou, 𝐹⃗ = 𝑚 𝑑𝑡

Ou, ainda: 𝐹⃗ =

𝑑 (𝑚𝑣⃗⃗) 𝑑𝑡

Figura 32

Onde o produto 𝑚𝑣⃗, presente no estudo da física desde os trabalhos de Buridan, é o momento linear ou quantidade de movimento, representado por ⃗𝒑⃗. Assim, a 2ª lei de Newton pode ser escrita como: 𝑑𝑝⃗ 𝐹⃗ = 𝑑𝑡

(12)

Com relação ao movimento dessa partícula é útil definir uma nova grandeza que meça a quantidade de movimento de rotação da partícula com relação ao ponto O. É fácil perceber que essa grandeza dependerá da massa m da partícula, de sua velocidade ⃗⃗ e de sua posição 𝒓. Essa grandeza é denominada momento angular ou momento 𝒗 orbital da partícula com relação a O e convencionalmente representada por ⃗𝑳⃗. Aqui também é necessário fazer uma observação análoga à que fizemos no caso do torque de uma força: caso mudemos o ponto de referência para O' o momento angular do mesmo movimento com relação a este novo referencial poderá mudar de valor.

109

Por analogia ao que fizemos quando introduzimos o torque, esse momento angular será dado por:

𝐿⃗⃗ = 𝑟⃗ ⋀ 𝑝⃗

Figura 33

𝐿⃗⃗ = 𝑚 𝑟⃗ ⋀ 𝑣⃗

(13)

⃗⃗ pode ser decomposta em duas componentes: uma Como já vimos, a velocidade 𝒗 ⃗⃗// , e outra perpendicular ao mesmo, 𝒗 ⃗⃗┴ . paralela ao vetor posição, 𝒗 Como ⃗𝒗⃗ = ⃗𝒗⃗// + ⃗𝒗⃗┴ , a expressão (13) pode ser assim escrita: ⃗𝑳⃗ = 𝒎 ⃗𝑳⃗ ⋀(𝒗 ⃗⃗// + 𝒗 ⃗⃗┴ ) ⃗⃗// e 𝒗 ⃗⃗ é nulo, 𝒓 ⃗⃗ ⋀ 𝒗 ⃗⃗// = 0. Assim, Porém, como o ângulo entre 𝒗 ⃗𝑳⃗ = 𝒎 ⃗𝑳⃗ ⋀ 𝒗 ⃗⃗┴ ⃗⃗ e 𝒗 ⃗⃗┴ formam um ângulo reto, o módulo do momento angular Finalmente, como 𝒓 da partícula com relação ao ponto O será dado por:

⃗𝑳⃗ = 𝒎 |𝑳 ⃗⃗||𝒗 ⃗⃗┴ | Esse resultado confirma o obtido na seção 7.7 e sintetizado na expressão (4). 3. Variação do momento angular Como o momento angular, dependendo da particular trajetória descrita pela partícula, pode variar em cada instante, vamos estudar sua variação em função do tempo. Para tanto derivamos a expressão (13) com relação ao tempo 𝑡, ou seja: ⃗⃗ 𝒅𝑳 𝒅𝒕

Agora, como

⃗⃗ 𝒅𝒓 𝒅𝒕

=

⃗⃗ 𝒅𝒓

⃗⃗ 𝑑𝒑

⋀ ⃗𝒑⃗ + ⃗𝒓⃗ ⋀ 𝒅𝒕 𝑑𝑡

⃗⃗ e utilizando a relação (12), a derivada do momento angular =𝒗

com relação ao tempo, fica: ⃗⃗ 𝒅𝑳 𝒅𝒕

⃗⃗ ⋀ ⃗𝒑⃗ + 𝒓 ⃗⃗ ⋀ ⃗𝑭⃗ =𝒗

⃗⃗ ⋀ ⃗𝒑⃗ = 𝒗 ⃗⃗ ⋀ 𝒗 ⃗⃗ = 0, chegamos a Como 𝒗

110

⃗⃗ 𝑑𝐿 𝑑𝑡

Ou,

= 𝑟⃗ ⋀ 𝐹⃗

⃗⃗ 𝑑𝐿 𝑑𝑡

= 𝜏⃗

(14)

(15)

Expressando tal resultado em palavras podemos escrever o seguinte: “quando referenciados a um mesmo ponto O, a taxa de variação no tempo do momento angular de uma partícula é igual ao torque que atua sobre a mesma”. Compare as expressões (12) e (15). Podemos concluir dessa comparação que o torque está para a força assim como o momento angular está para o momento linear. A expressão (15) é também conhecida como a segunda lei de Newton para as rotações. Todos estes conceitos e resultados discutidos neste parêntesis serão utilizados mais adiante quando tratarmos da articulação realizada por Newton dos resultados obtidos por Kepler. Por tudo isso que foi dito a respeito das contribuições de Kepler para a construção da chamada teoria gravitacional newtoniana é que devemos ser mais cuidadosos ao apresentar a construção dessa teoria. Kepler deve aparecer com destaque nessa construção.

INSTITUTO DE FÍSICA/USP

4300156 — GRAVITAÇÃO Notas de Aula 3ª parte João Zanetic

2° semestre/2019

GRAVITAÇÃO/Notas de Aula (Versão parcialmente revista em setembro de 2017)

3ª parte João Zanetic/IFUSP

Índice Capítulo 8 – Algumas contribuições de Galileu Galilei ......................... 111 8.1. Introdução ................................................................................. 111 8.2. Galileu: um inovador de muitas faces........................................ 111 8.3. Galileu, Kepler e o telescópio ................................................... 115 8.4. O princípio da inércia de Galileu, segundo Koyré ..................... 120 8.5. A solução da queda dos corpos por Galileu, segundo Koyré ..... 126 8.6. Galileu e o “argumento da torre” ............................................... 138 Capítulo 9 – Galileu e Kepler: aspectos pedagógicos e literários........... 143 9.1. Alguns aspectos histórico/pedagógicos ..................................... 143 9.2. Homenagem de um poeta e professor português a Galileu ........ 146 9.3. Kepler e a ficção científica ........................................................ 149 9.4. Uma avaliação da obra de Galileu, por Italo Calvino................. 152

111

Capítulo 8 – Algumas contribuições de Galileu Galilei 8.1.

Introdução

Galileu Galilei, nasceu na cidade de Pisa, na Itália, no dia 15 de fevereiro de 1564, dia da morte de Michelangelo e cerca de vinte anos após a publicação do De revolutionibus. Galileu morreu, com setenta e oito anos, na cidade de Arcetri, no dia 8 de janeiro de 1642, ano do nascimento de Isaac Newton. Galileu, para satisfazer os desejos de seus pais, iniciou sua vida acadêmica estudando medicina. Galileu não permaneceu muito tempo dedicado a esses estudos, passando logo a demonstrar interesse pelo estudo da geometria e na construção de máquinas simples, aparentemente sob a influência da leitura dos trabalhos de Arquimedes. Quando tinha 25 anos, tornou-se professor de matemática da Universidade de Pisa, onde permaneceu por alguns anos. Em seguida ganhou uma cátedra na Universidade de Pádua, em Veneza123. A partir de então dedicou-se aos estudos que deixariam marca indelével na história da mecânica e da física.

8.2.

Galileu: um inovador de muitas faces

A figura científica de Galileu é de suma importância histórica pois, ao longo de sua longa vida produtiva ele passou por diferentes concepções de mundo: foi aristotélico quando muito jovem, depois passou a trabalhar com os conceitos da física parisiense, a física do impetus, e, finalmente, criou sua própria concepção de mundo e de investigação científica, aliando a observação e a experimentação com a matematização da física.

123

KOYRÉ, Alexandre, op. cit., nota 79, pág. 43.

112

Figura 34. Capa da primeira edição dos Discursos. Alexandre Koyré apresenta o seguinte resumo da física presente na juventude galileana: "A história do pensamento científico (físico) da Idade Média e da Renascença - que começamos a conhecer melhor graças sobretudo aos trabalhos admiráveis de Duhem124 - pode ser dividida em três períodos. Ou,

124

Alexandre Koyré refere-se aqui ao físico e historiador da Física, Pierre Duhem que elaborou uma série de importantes trabalhos históricos sobre a mecânica e suas origens.

113

mais exatamente, visto que a ordem cronológica corresponde muito mal a esta divisão, a história do pensamento científico apresenta-nos grosso modo três etapas, correspondendo, por sua vez, a três tipos de pensamento. Física aristotélica, inicialmente; física do impetus, inaugurada, como todas as coisas, pelos gregos, mas elaborada sobretudo no decurso do século XIV pela escola parisiense de Buridan e de Nicolau Oresme, em seguida; física matemática, experimental, arquimediana ou galilaica, por fim. Ora, são justamente esta três etapas que nós reencontramos nas obras de juventude de Galileu, que, assim, não se limitam a dar-nos algumas informações sobre a história - ou a pré-história - do seu pensamento, sobre os motivos e os móbiles que o dominaram e impeliram, mas apresentam-nos ainda, num resumo surpreendente, condensada e de alguma maneira clarificada pelo admirável espírito do seus autor, a evolução completa da física pré-galilaica."125 Galileu iniciou, em muitos aspectos, uma outra etapa importante e complementar àquela iniciada por Kepler. Foi responsável pela introdução de inovações na investigação da natureza física que modificaram completamente as características desta área do conhecimento. Tais inovações complementaram a modificação do que viria a ser a mecânica, já insinuada com os trabalhos de Buridan e Oresme, por exemplo. Como destacava Alexandre Koyré, geometrizou o estudo do movimento; elaborou sofisticadas experiências de laboratório, que levaram muitos a considerá-lo o inventor da física experimental; introduziu de modo muito eficiente o artifício das experiências de pensamento, que podem ser "realizadas" com uma abstração idealizada do real; introduziu as superfícies lisas sem atrito, corpos perfeitamente elásticos e o movimento de corpos no vácuo; polemizou de forma dramática, quase teatral, com os aristotélicos nas suas últimas obras; tentou a fusão da física celeste com a física terrestre; foi um dos pioneiros no 125

KOYRÉ, Alexandre. Estudos galilaicos. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986, págs. 19/20.

114

estudo dos céus com o telescópio, tendo realizado incríveis observações; enfim, foi um dos mais completos articuladores do paradigma copernicano. Estudaremos apenas algumas das suas contribuições, entre elas a sua contribuição para o estabelecimento do princípio da inércia e sua explicação do movimento de queda dos corpos que permite relacioná-lo também com a história da gravitação. Galileu foi também um dos primeiros a utilizar uma língua leiga, o italiano, para escrever e publicar seus principais trabalhos: Discursos e demonstrações sobre duas novas ciências e Diálogos sobre os dois sistemas de mundo. Seguindo o exemplo de Giordano Bruno, ou talvez de Platão, Galileu escreveu essas duas obras utilizando-se da estrutura de diálogos entre alguns personagens, parecendo às vezes mais uma peça de teatro do que um livro de investigação científica. Um dos personagens, Salviati, representaria o pensamento do próprio Galileu enquanto outro desempenharia o papel de um pensador aristotélico, ganhando para isso um nome bastante sugestivo, Simplício. Havia ainda um terceiro personagem, Sagredo, que seria um intelectual pretensamente neutro e imparcial. Logo nas primeiras frases dos Discursos, Galileu apresentava o plano dessa obra e parte de suas intenções: "Vamos expor uma nova ciência a respeito de um tema muito antigo. Não existe na natureza nada anterior ao movimento e, com referência a ele, não poucos e pequenos volumes foram escritos pelos filósofos; apesar disso muitas propriedades dignas de serem conhecidas não foram até o momento nem observadas, nem demonstradas. Observaram-se algumas mais simples, como, por exemplo, que o movimento natural dos graves em queda livre se acelera continuamente; porém, não foi demonstrado até o momento a proporção segundo a qual se produz sua aceleração. Também não foi demonstrado, que eu saiba, que um móvel, que cai a partir do repouso, percorre em tempos iguais espaços que mantém entre si a mesma

115

proporção que têm os números ímpares sucessivos a partir da unidade. Foi observado que os corpos arremessados, a saber, os projéteis, descrevem uma linha curva de certo tipo; também é verdade que ninguém evidenciou que tal curva é uma parábola. Que assim é, será demonstrado conjuntamente com não poucas coisas dignas de serem conhecidas e, o que reputo muito mais importante, abrir-se-á assim o acesso a uma ciência muito mais vasta e importantíssima, da qual minha investigação estabelece os fundamentos e na qual outros espíritos mais perspicazes que o meu penetrarão em seus lugares mais recônditos."126 Galileu, assim como antes dele, Copérnico, teve contato não apenas com a ciência desenvolvida pelos gregos, como também com aquela que surgiu no decorrer da idade média. Durante esse período, embora aparentemente os trabalhos em física não fossem tão marcantes quanto os desenvolvidos pelos gregos, ou tão fundamentais quanto os que surgiram com Copérnico e os articuladores de sua proposta, os chamados comentadores, de Aristóteles principalmente, foram lançadas bases importantes sobre as quais os físicos dos séculos XVI e XVII construíram os seus sistemas. Galileu não foge desta regra.

8.3.

Galileu, Kepler e o telescópio

Em 4 de agosto de 1597, Galileu escreveu sua primeira carta a Kepler. Eis um trecho dessa carta: "Não recebi há alguns dias, mas apenas há algumas horas, meu culto doutor, o livro que me enviastes por intermédio de Paulus Amberger, visto que o mesmo Paulus me informou de seu regresso iminente à Alemanha.

126

GALILEI, Galileu. Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências. Tradução e notas de Letizio Mariconda e Pablo R. Mariconda. Introdução de Pablo R. Mariconda. Ed. Nova Stella, São Paulo, 1985, pág. 121. A tradução foi muito bem produzida e a introdução e as notas são muito esclarecedoras.

116

Seria um ingrato realmente se vos não agradecesse imediatamente. Aceito o vosso livro com tanto mais gratidão pois o tenho por prova de ter sido considerado digno de vossa amizade. Até agora só corri os olhos pelo prefácio, mas adquiri com isso uma idéia do intento, e me congratulo por ter, no estudo da Verdade, um associado que é amigo da Verdade. É uma pena existirem tão poucos que persigam a Verdade e não pervertam a razão filosófica. Contudo, não cabe aqui deplorar as misérias deste nosso século e sim congratular-vos pelos brilhantes argumentos que apresentais em favor da Verdade. Só acrescentarei que prometo ler a obra tranqüilamente, certo de nela descobrir as coisas mais admiráveis, e fá-loei alegremente, uma vez que adotei os ensinamentos de Copérnico há muitos anos, e o seu ponto de vista me permite explicar inúmeros fenômenos da natureza que, indubitavelmente, ficam inexplicáveis segundo as hipóteses mais correntes. Escrevi inúmeros argumentos em apoio a ele e em refutação ao parecer oposto, mas até agora não ousei publicá-los, atemorizado pelo destino do próprio Copérnico, nosso Mestre, que, embora adquirisse fama imortal com alguns, constitui ainda, para uma infinita multidão de outros, (que tal é o número de tolos) objeto de ridículo e zombaria. Certamente ousaria publicar as minhas reflexões imediatamente se existisse mais gente como vós; como não existe, saberei conter-me."127 Kepler respondeu quase imediatamente a essa carta nos seguintes termos: "Gratz, 13 de outubro de 1597. A vossa carta, meu excelentíssimo humanista, que me escrevestes em 4 de agosto, recebi-a em 1º de setembro, e me deu motivos para um duplo júbilo: primeiro, por significar o começo

127

Citado por Arthur Koestler, op. cit., nota 12, págs. 246/247.

117

de uma amizade com um italiano; segundo, porque estamos de acordo quanto à cosmografia Copernicana (...) Suponho que, se tivestes tempo, já travastes melhor conhecimento com o meu livrinho, e desejo ardentemente saber a vossa opinião crítica, pois é do meu feitio instar com todos aqueles a quem escrevo que me dêem uma opinião franca, e, crede-me, prefiro a crítica mais acerba de um só homem iluminado ao aplauso insensato da multidão. Gostaria, entretanto que, possuidor de tão excelente inteligência, assumísseis uma posição diversa. Com os vossos hábeis modos sigilosos sublinhais, com o exemplo, a advertência de que deveríamos recuar perante a ignorância do mundo, e não deveríamos levianamente provocar a fúria dos professores ignorantes; a esse respeito seguis Platão e Pitágoras, os nossos verdadeiros mestres. Mas considerando que na nossa época, primeiro Copérnico, em pessoa, e depois dele uma multidão de cultos matemáticos assentaram esse imenso empreendimento, de modo que o movimento da Terra já não constitui nenhuma novidade, preferível seria que ajudássemos, com os nossos esforços, a empurrar para casa essa carruagem que já se movimenta (...) Não são apenas os italianos que se recusam a acreditar que se movem por nada sentirem; na Alemanha também não nos tornamos populares sustentando essas opiniões. Mas há argumentos que nos protegem em face de tais dificuldades (...) Comunicaime, pelo menos em particular, se não desejais fazê-lo em público, o que descobristes em apoio a Copérnico (...)"128 Essa troca de correspondência entre Kepler e Galileu leva-nos a conjecturar as razões da demora de Galileu em se pronunciar publicamente defensor das concepções copernicanas uma vez que, desde jovem, como ele próprio afirmava, era partidário do 128

Citado por Arthur Koestler, op. cit., nota 12, págs. 247/248.

118

sistema heliocêntrico. Alguns historiadores mencionam o temor da Inquisição, outros o medo do ridículo e outros ainda que Galileu esperava encontrar evidências mais poderosas em favor do sistema copernicano. Há ainda outros que apontam seu temor de perder os postos que desfrutava. É verdade que Galileu tinha um bom relacionamento com os poderosos da época, tanto no interior da Igreja como entre os governantes. Diga-se de passagem que, aparentemente, Galileu realmente fez uso de seu telescópio, recentemente inventado, para conseguir aumentar seus salários vendendo-o para a armada de Veneza. Que Galileu temia ser ridicularizado fica evidenciado em determinado trecho da carta a Kepler quando diz temer um destino semelhante ao de Copérnico que teria sido alvo de zombarias. É verdade também que Galileu apenas se manifestou publicamente defensor das idéias de Copérnico através de seu livro Siderius Nuntius129, publicado em 1610, quando Galileu tinha 46 anos. Nesse livro, Galileu relata suas revolucionárias descobertas realizadas com o auxílio de uma luneta. Cabem aqui algumas palavras sobre esse inovador instrumento muitas vezes chamado com exagero de telescópio e cuja invenção é erradamente atribuída a Galileu. I. Bernard Cohen informa que, num livro publicado em 1571, Thomas Digges descrevia um instrumento semelhante ao telescópio e que um outro de 1590 teria sido feito na Itália. Cohen diz também que em 1608 esse instrumento teria sido reinventado na Holanda e provavelmente à venda na Itália à época em que Galileu construiu aquele com o qual fez suas observações em 1610130. Eis um trecho do Sidereus Nuncius:

129 130

Mensageiro das estrelas.

COHEN, I. Bernard. Ther birth of a new physics. Penguin Books, London, updated edition, 1992, págs. 56 e 185/186. Embora eu tenha utilizado essa edição inglesa, existe uma edição em português: O nascimento de uma nova física, Edart, São Paulo.

119

"(...) no dia sete de janeiro do presente ano de 1610, à primeira hora da madrugada, enquanto contemplava com o telescópio os astros celestes, apareceu Júpiter (...) percebi (...) que o acompanhavam três pequenas estrelas, pequenas sim, mas em verdade claríssimas; (...) Sua disposição mútua com relação a Júpiter era:

Oriente

Ocidente

(...) tendo voltado a contemplá-las no dia oito, não sei porque razão, observei uma disposição diferente (...) Oriente

Ocidente

(...) no décimo dia de janeiro as estrelas apareceram nesta disposição com relação a Júpiter: Oriente

Ocidente"131

Galileu prosseguiu nessas observações telescópicas até a noite de 2 de março de 1610. Ainda nesse mesmo mês de março preparou para publicação o livro em que relata essas e outras observações. Entre suas conclusões encontramos a seguinte: "Temos aqui um argumento notável e ótimo para eliminar os escrúpulos de quem, aceitando com equanimidade a rotação dos planetas em torno ao Sol segundo o sistema Copernicano, sentem-se contudo perturbados pelo movimento da solitária Lua em torno da Terra, ao tempo que ambas descrevem uma órbita anual em torno ao Sol, até o ponto de considerar que se deve rechaçar por impossível esta ordenação do Universo."132

131

GALILEI, G.; KEPLER, J. El mensaje y el mensajero sideral. Alianza Editorial, Madrid, 1984, págs. 67/69. 132

Galileu Galilei, op. cit., nota 126, págs. 88/89.

120

8.4.

O princípio da inércia de Galileu, segundo Koyré

Vamos estudar brevemente a origem do princípio da inércia, geralmente atribuída a Galileu, seguindo o estudo histórico clássico Estudo Galilaicos, de Alexandre Koyré (1892-1964), publicado em 1939. Como em outros estudos históricos, a história da ciência também é passível de diferentes interpretações. Assim, enquanto Koyré destacava a importância dos modelos matemáticos desenvolvidos por Galileu e dava pouca importância aos experimentos que foram por ele realizados, Stillman Drake (1910-1993) ressaltava a experimentação, como podemos perceber por esta citação: “Outra abordagem à ciência de Galileu foi iniciada em 1939 por Alexandre Koyré que a via como reação platonista ao aristotelismo tradicional das universidades. A ênfase que Galileu deu à física matemática tinha raízes, para Koyré, na doutrina de Platão, de que o único mundo digno de estudo de um filósofo era inacessível aos sentidos e só podia ser compreendido através da matemática. As investigações matemáticas medievais do movimento em abstrato, embora feitas pelos aristotélicos, tinham preparado o caminho, mas o platonismo de Galileu constituía uma verdadeira revolução na ciência, segundo Koyré. Na sua opinião, as experiências declaradas de Galileu eram puramente imaginárias e todos os seus estudos sobre o movimento podiam ser justificados pelo raciocínio matemática, no estilo de Arquimedes. (...) Notas de Galileu, não publicadas, revelaram recentemente também registros de medidas experimentais, invalidando a conclusão de Koyré”133

133

DRAKE, Stillman. Galileu. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1981, págs. 38/39.

121

Estudamos brevemente algo sobre a mecânica na idade média, quando apresentamos algumas ideias de Filopono, Buridan, Oresme e Nicolau de Cusa.134 Suas concepções certamente tiveram influência sobre o pensamento de Galileu.

Ale-

xandre Koyré destaca a influência do conceito de impetus ou força motriz imprimida desses precursores sobre o trabalho do jovem Galileu: "Mas não implica a noção de força motriz imprimida ao móvel a continuação indefinida do movimento? Noutros termos: não permite ela formular o princípio da inércia? Sabe-se que esta foi a opinião de muito historiador célebre. Não é, em todo o caso, a de Galileu (jovem). Contra alguns dos seus primogênitos (Cardano, Piccolomini, Scaliger) que afirmam que em certas condições, a saber, quando o movimento se faz sobre uma superfície horizontal, o impetus permanece imortal, Galileu afirma resolutamente o seu caráter perecível. O movimento eterno é impossível e absurdo, precisamente porque ele é o produto da força motriz que se esgota ao produzi-lo."135 Deve-se notar que quando Galileu nos seus escritos, mesmo nos últimos, mencionava plano horizontal ou superfície horizontal lisa ele estava se referindo a uma superfície paralela à superfície da Terra, isto é, um pedaço de uma superfície esférica. Isso pode ser observado, por exemplo, no seguinte longo texto extraído dos Diálogos, segundo citação de Alexandre Koyré: "Salviati: Então dizei-me: se tivésseis uma superfície plana, polida como um espelho e de uma matéria dura como a ágata, e que não fosse paralela ao horizonte, mas um pouco inclinada, e que sobre essa superfície pusésseis uma bola perfeitamente esférica e de uma matéria grave e

134 135

Nestas Notas de aula, págs. 42/47. Alexandre Koyré, op. cit.,nota 125, págs. 79/80.

122

extremamente dura como, por exemplo, bronze, e que ela fosse deixada em liberdade, o que creis que ela fará? Não credes (como eu faço) que ela ficará imóvel? Simplício: Se essa superfície fosse inclinada? Salviati: Sim, pois é assim que se supõe que ela seja. Simplício: Eu não creio que ela pare de maneira alguma, mas estou certo de que se há-de mover espontaneamente na direção da inclinação. Salviati: E quanto durará o movimento dessa bola, e com que velocidade? Reparai bem que eu disse uma bola perfeitamente redonda e um plano perfeitamente liso a fim de afastar todos os impedimentos externos e acidentais; e quero também que ponhais de parte a resistência do ar, e todos os outros obstáculos acidentais, se outros pudesse haver. Simplício: Compreendi-o muito bem; e à vossa pergunta respondo que essa bola continuará a mover-se in infinito desde que o plano assim se estenda; terá um movimento continuamente acelerado; pois tal é a natureza dos móveis graves que vires acquirit eundo; e a velocidade será tanto maior quanto maior for a declividade. Salviati: Mas se se quisesse que a dita bola se movesse para cima sobre aquela mesma superfície, credes que ela o faria? Simplício: Espontaneamente, não; mas sim, se for empurrada ou atirada com violência. Salviati: E se tivesse sido impelida por esse impetus nela violentamente imprimido, qual seria o seu movimento e quanto duraria este? Simplício: O movimento ir-se-ia retardando e afrouxando, porque seria contra a natureza, e seria mais longo ou mais breve consoante a impulsão fosse mais ou menos forte e consoante a declividade fosse maior ou menor. Salviati: Assim explicastes os acidentes de um móvel sobre dois planos diferentes; e dizeis que sobre um plano inclinado o móvel grave desce

123

espontaneamente e vai acelerando constantemente, e que para o reter em repouso há que usar a força; mas que sobre o plano ascendente é preciso força para o lançar e até para o reter e que o movimento nele imprimido vai enfraquecendo constantemente e finalmente se anula. Dizeis ainda que num e noutro caso nascem diferenças da maior ou menor inclinação ou elevação do plano; e que da inclinação maior resulta uma velocidade maior e, pelo contrário, no plano que se eleva, o mesmo móvel, lançado pela mesma força, se move a uma distância tanto maior quanto menor for a elevação. Ora, dizei-me o que acontecerá ao mesmo móvel numa superfície que não seja inclinada nem elevada. Simplício: Aqui é preciso que eu pense um pouco na resposta. Não tendo aqui a superfície declividade, não pode haver inclinação natural para o movimento, e, não tendo subida, não pode haver resistência natural a ser movido. E assim a bola deverá permanecer indiferente entre a propulsão e a resistência ao movimento; parece-me, portanto, que ela deverá ficar naturalmente parada (em repouso). Salviati: Também o creio, quando a supomos imóvel; mas, se lhe fosse dado um impetus para algum lado, o que é que daí se seguiria? Simplício: Seguir-se-ia que ela se moveria para esse lado. Salviati: Mas qual será esse movimento? Continuamente acelerado, como no plano inclinado, ou sucessivamente retardado, como no ascendente? Simplício: Não vejo nenhuma causa de aceleração nem de afrouxamento, por não haver declive nem aclive. Salviati: Sem dúvida; mas se não há causa de afrouxamento, muito menos ainda deve haver causa de imobilidade; por quanto tempo então estimais que o móvel continuará a mover-se? Simplício: Tanto tempo quanto dure o comprimento dessa superfície que não baixa nem se eleva.

124

Salviati: Por conseguinte, se esse espaço fosse sem termo, o movimento seria de igual modo sem fim, isto é, eterno? Simplício: Parece-me, com a condição de o móvel ser de uma matéria que possa durar."136 Deste diálogo, e de outros análogos, como bem salienta Koyré, a maioria dos historiadores da ciência conclui que Galileu estaria anunciando o seu princípio da inércia. Neste ponto Koyré anuncia aí um erro dos historiadores pois, embora Galileu tenha se aproximado bastante do enunciado do princípio da inércia, devido a sua incapacidade de se libertar da gravidade não consegue chegar a ele. 137 A argumentação de Koyré se baseia no fato de que a superfície horizontal de Galileu, como já foi destacado acima, é, na verdade, uma superfície esférica. A continuação do diálogo entre os dois personagens de Galileu ilustra esse fato: "Salviati: Assim, pois, para que uma superfície não fosse nem inclinada nem elevada, seria preciso que em todas as suas partes ela estivesse igualmente afastada do centro. Mas encontra-se no mundo uma tal superfície? Simplício: Não falta. Assim, a do nosso globo terrestre, desde que seja bem polida e não tal como ela é, rugosa e coberta de montanhas; mas sim tal como uma água tranquila e plácida. Salviati: Ora, não é o mar uma tal superfície? Por conseguinte, um navio que se mova sobre esta superfície, com uma impulsão uma vez conferida, mover-se-á uniforme e eternamente."138 Assim, Galileu, segundo a análise de Koyré, chega ao princípio da inércia circular, e não à chamada primeira lei de Newton ou princípio da inércia.

136

GALILEI, Galileu. Diálogo. Citado por Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, págs. 283/285. Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 286. 138 Galileu Galilei. Diálogo. Citado por Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 286. 137

125

Não vamos continuar a abordar a história do princípio da inércia mas quero apenas adiantar nesta parte que, para muitos historiadores, entre os quais se inclui Koyré, o verdadeiro autor do princípio da inércia foi Descartes. O historiador da ciência Allan Franklin escreveu: "A visão inercial moderna foi estabelecida explicitamente por René Descartes (1595-1650). Descartes discutiu essas ideias no seu trabalho incompleto Le monde que foi iniciado em 1630 e interrompido em 1633 após a condenação de Galileu (...) Descartes estabelece claramente que movimento e repouso são estados equivalentes (...)"139 Allan Franklin cita um pequeno trecho do Le monde de Descartes onde ele introduz pela primeira vez o princípio da inércia e o conceito de quantidade de movimento: "(...) Nós entendemos também que é uma medida da perfeição de Deus que não somente Ele é imutável em Si próprio, mas também que ele age de uma maneira a mais constante e imutável (...) Ele mantém na matéria a mesma quantidade de movimento presente nela quando Ele a criou (...) Assim, podemos concluir que uma coisa que se move, mover-se-á para sempre tanto quanto possa e não tenderá ao repouso porque o repouso é contrário ao movimento, e nada por sua própria natureza, pode tender em direção ao seu contrário, isto é, em direção à sua destruição; assim, chegamos à primeira lei da natureza que diz que tudo persevera sempre no mesmo estado; portanto, tudo que começou a se mover continuará a se mover para sempre."140

139 140

Allan Franklin, op. cit., nota 55, pág. 90. DESCARTES, René. Le monde, citado por Allan Franklin, op. cit., nota 55, págs. 92/93.

126

8.5.

A solução da queda dos corpos por Galileu, segundo Koyré

Na "terceira jornada" de seu último trabalho, Discursos e demonstrações sobre duas novas ciências141, já citado acima, Galileu trata dos movimentos "uniforme", "local" e "naturalmente acelerado". Logo após a apresentação de seis teoremas referentes ao movimento uniforme, Galileu inicia a discussão do movimento naturalmente acelerado que tem início com uma observação de Salviati fazendo a ponte entre as discussões sobre os dois movimentos: "Salviati: O que acabamos de ver é tudo o que nosso autor escreveu a respeito do movimento uniforme. Passemos agora a fazer algumas considerações mais originais e sutis a respeito do movimento naturalmente acelerado, que é o que geralmente acontece com os móveis graves descendentes. Eis aqui o título e a introdução. DO MOVIMENTO NATURALMENTE ACELERADO Tendo tratado, no livro anterior, das propriedades do movimento uniforme, examinemos minuciosamente o movimento acelerado. Antes de tudo, convém investigar e explicar a definição que corresponde convenientemente a esse movimento, tal como a natureza o utiliza. Sem dúvida, ainda que seja lícito imaginar arbitrariamente alguma forma de movimento e investigar a seguir as propriedades que dela derivam, (de fato, é assim que alguns, imaginando hélices ou concóides originadas por determinados movimentos de que a natureza não faz uso, têm conseguido demonstrar admiravelmente suas propriedades com argumentos ex suppositione), todavia, posto que a natureza se serve de uma forma determinada de aceleração na queda dos graves, não é inconveniente

141

GALILEI, Galileu. Discorsi i Demonstrazioni Matematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla Mecanica ed ai Movimenti Locali.

127

estudar suas propriedades, fazendo com que nossa definição do movimento acelerado corresponda à essência do movimento naturalmente acelerado. O que acreditamos ter finalmente descoberto depois de longas reflexões; principalmente se levamos em conta que as propriedades por nós demonstradas parecem corresponder e coincidir com os resultados da experiência. Finalmente, no estudo do movimento naturalmente acelerado, fomos, por assim dizer, conduzidos pela mão através da observação das regras observadas habitualmente pela própria natureza em todas suas outras manifestações nas quais ela faz uso de meios mais imediatos, mais simples e mais fáceis. Pois penso que na verdade nenhuma pessoa acredite poder nadar e voar com maior simplicidade e maior facilidade que os peixes ou as aves, que se servem do instinto natural."142 Interrompo o texto de Galileu para tecer alguns comentários. Galileu procurava uma definição do movimento acelerado "tal como a natureza o utiliza". Será o Galileu realista que falava aqui? Galileu ainda estava à procura da essência do movimento. Voltemos ao seu texto: "Quando, portanto, observo uma pedra que cai de uma certa altura a partir do repouso e que adquire pouco a pouco novos acréscimos de velocidade, por que não posso acreditar que tais acréscimos de velocidade não ocorrem segundo a proporção mais simples e mais óbvia? Se considerarmos atentamente o problema, não encontraremos nenhum acréscimo mais simples que aquele que sempre se repete da mesma maneira. O que entenderemos facilmente, se considerarmos a estrita afinidade existente entre o tempo e o movimento: do mesmo modo, com efeito, que a uniformidade do movimento se define e se concebe com base

142

Galileu Galilei, op. cit., nota 126, págs. 126/127.

128

na igualdade dos tempos e dos espaços (com efeito, chamamos movimento uniforme ao movimento que em tempos iguais percorre espaços iguais), assim também, mediante uma divisão do tempo em partes iguais, podemos perceber que os aumentos de velocidade acontecem com simplicidade; concebemos no espírito que um movimento é uniforme e, do mesmo modo, continuamente acelerado, quando, em tempos iguais quaisquer, adquire aumentos iguais de velocidade. Assim, qualquer que seja o número de partes iguais de tempo que tenha decorrido do instante em que o móvel abandona o repouso e começa a descer, o grau de velocidade adquirido na primeira e segunda parte de tempo será o dobro do grau de velocidade adquirido pelo móvel na primeira parte; assim também, o grau que se obtém em três partes de tempo será o triplo e, na quarta parte, será o quádruplo do grau obtido na primeira parte; de modo que (para maior clareza) se o móvel continuar seu movimento com o grau ou momento de velocidade (momentum velocitatis) adquirido na primeira parte de tempo e conservar uniformemente essa velocidade, seu movimento será duas vezes mais lento que o obtido com o grau de velocidade adquirido em duas partes de tempo. Por este motivo acreditamos que não nos afastamos absolutamente da justa razão, se admitimos que a intensificação da velocidade (intentionem velocitatis) é proporcional à extensão do tempo; pelo que podemos definir o movimento, do qual devemos tratar, da seguinte maneira: chamo movimento igualmente, ou o que é o mesmo, uniformemente acelerado, àquele que, partindo do repouso, adquire em tempos iguais, momentos (momenta) iguais de velocidade."143

143

Galileu Galilei, op. cit., nota 126, pág. 127.

129

Galileu expressava nessa citação um crescimento contínuo da velocidade do movimento uniformemente acelerado, particularmente seu crescimento contínuo a partir do repouso. Eis o comentário de Alexandre Koyré: "Esta concepção que Galileu admitira desde Pisa, parecia, com inteira justiça, estranha e inverossímil aos melhores espíritos desse tempo. Como admitir, com efeito, um movimento dando-se com uma lentidão infinita? Como conceber uma passagem contínua do repouso ao movimento, isto é, do nada a qualquer coisa? Não há, antes, que admitir, na realidade física, um mínimo de movimento, correlativo de um mínimo de ação?"144 O próprio Alexandre Koyré, em nota de rodapé à citação acima, afirma que a concepção contida na última frase é partilhada, entre outros, por Beeckman, o histórico interlocutor de Descartes, quando este estudava exatamente a queda dos corpos. E, Koyré completa: "Esta concepção não é de modo nenhum absurda: é a da teoria dos quanta."145 Galileu, que já havia sido questionado sobre este aspecto do movimento, coloca uma objeção à sua argumentação por intermédio de seu personagem Sagredo, como podemos perceber na continuidade de seu texto. Vamos a ele: "Sagredo: Eu, racionalmente falando, objetarei a esta ou outra definição que por qualquer outro autor fosse dada, posto que são todas arbitrárias, e assim também posso, sem ofensa, duvidar que tal definição, concebida e admitida em abstrato, se adapte, e convenha e se verifique naquela espécie de movimento acelerado que se dá nos graves que caem naturalmente. E como parece que o autor nos promete qure o movimento assim definido é 144 145

Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, págs. 172/173. Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 173.

130

o movimento natural dos graves, de boa vontade desejaria remover certas dificuldades que me perturbam a mente, para que depois com maior atenção pudesse concentrar-me nas proposições e demonstrações correspondentes."146 Sobre essa mesma objeção de Sagredo, Koyré afirma que o que "está em jogo é o direito do matematismo em física". Eis seu raciocínio: "Sagredo sabe bem que em geometria pura, ou em cinemática pura, se tem o direito de falar de uma série infinita de grandezas - de frações intercaladas entre zero e alguma coisa; e mesmo que não se tem o direito de fazer de outro modo. Mas com que direito se transportam essas considerações abstratas do domínio matemático para o real."147 Em continuação, Salviati, outro personagem de Galileu, argumentava que também tinha tido dúvidas a esse respeito e, na sequência, Sagredo continuava com sua objeção: "Salviati: Parece-me oportuno que V.Sa. e o Sr. Simplício coloquem as dificuldades, que imagino serem as mesmas que tive quando vi pela primeira vez este tratado, e que me foram resolvidas ou através de discussões com o próprio autor, ou por mim mesmo, através da reflexão. Sagredo: Quando imagino um corpo grave que cai a partir do repouso, ou seja, da privação de toda velocidade, entrar em movimento, e no mesmo aumentar sua velocidade proporcionalmente ao tempo desde o primeiro instante do movimento e ter, por exemplo, em oito batidas de puldo adquirido outo graus de velocidade, da qual tinha adquirido quatro graus na quarta pulsação, dois na segunda e um na primeira, e considerando o

146 147

Galileu Galilei, op. cit., nota 126, págs. 127/128. Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 175.

131

tempo divisível ao infinito, segue-se que, diminuindo-se sempre a velocidade antecedente na mesma proporção, não existirá grau de velocidade tão pequeno, ou ainda de lentidão tão grande, pelo qual não tenha passado o mesmo móvel depois de ter saído da infinita lentidão, ou seja, do repouso. Deste modo, se aquele grau de velocidade que adquiria na quarta pulsação de tempo era tal que, permanecendo uniforme, tivesse percorrido duas milhas numa hora, enquanto que com o grau de velocidade adquirido na segunda pulsação tivesse percorrido uma milha por hora, deve-se convir que nos instantes de tempo cada vez mais próximos de seu ponto de partida se moveria tão lentamente que não teria percorrido (caso continuasse seu movimento com essa lentidão) uma milha nem numa hora, nem num dia, nem num ano, nem em mil anos, nem teria percorrido um só palmo num tempo ainda maior; consequência à qual parece que a imaginação dificilmente se acomoda, enquanto que os sentidos nos mostram que um grave em queda cai imediatamente com grande velocidade."148 Na frase acima sublinhada, Koyré faz notar que realmente: "(...) a imaginação recusa-se a aceitar o raciocínio matemático. Trata-se também, justamente de substituir a primeira pelo segundo." 149 Sagredo, como se percebe do texto acima, apela para os sentidos, apela para a experiência. É o debate entre a matematização, razão, os sentidos, bastante comum à cultura científica da época.

148 149

Galileu Galilei, op. cit., nota 126, pág. 128. Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 176.

132

Na sequência do texto dos Discursos, Salviati que, como sabemos, representa o pensamento do próprio Galileu, buscando auxílio numa experiência, procura responder a Sagredo do seguinte modo: "Salviati: Esta é uma das dificuldades que desde o início me fizeram pensar muito; mas pouco depois consegui removê-la graças à mesma experiência que, no momento, a suscita. Afirmais que a experiência parece mostrar que tão logo um grave sai do estado de repouso, alcança uma velocidade bastante considerável; de minha parte, afirmo que esta mesma experiência nos esclarece que os primeiros ímpetos do corpo que cai, por mais pesado que seja, são muito lentos e demorados. Colocai um grave sobre uma matéria que cede, deixando-o exercer aí apenas a pressão de sua simples gravidade. É evidente que, se o elevarmos uma ou duas braças, deixando-o a seguir cair sobre aquela matéria, exercerá com o choque uma nova pressão, maior que aquela produzida apenas pelo seu peso; e o efeito será causado tanto pelo móvel em queda como pela velocidade adquirida na queda, efeito esse que será tanto maior quanto maior for a altura que precede o choque, ou seja, quanto maior for a velocidade do percurso. Deste modo, podemos conjecturar sem erro qual é a velocidade de um corpo que cai, a partir da qualidade e quantidade do choque. Mas dizei-me: um maço que se deixa cair de uma altura de quatro braças sobre uma estaca enterrando-a, por exemplo, quatro dedos, se caísse de uma altura de duas braças, enterrá-la-ia muito menos, e menos, se caísse de uma braça e menos ainda de uma altura de um palmo; finalmente, se o elevássemos apenas um dedo, o que faria a mais do que se tivesse sido deixado sobre ela sem qualquer percussão? Sem dúvida alguma muito pouco; e o efeito seria totalmente imperceptível, se fosse elevado a uma altura equivalente à espessura de uma folha. Contudo, posto que o efeito

133

da percussão depende da velocidade do próprio percussor, quem duvidará que o movimento será lentíssimo e quase mínima a velocidade, onde o efeito de percussão é imperceptível? Podem agora ver a força da verdade, pois a mesma experiência, que num primeiro momento parecia mostrar uma coisa, melhor considerada assegura-nos do contrário. Todavia, sem ater-nos a esta experiência (que, sem dúvida alguma, é totalmente concludente), parece-me que não é difícil penetrar com um simples raciocínio nesta verdade. Tomemos uma pedra pesada, que está em repouso no ar; liberada do suporte e deixada em liberdade, por ser mais pesada que o ar, ela começa a descer, não com movimento uniforme, mas lentamente no início e depois acelerando-se continuamente. Dado que a velocidade pode aumentar e diminuir ao infinito, que razão me persuadirá de que este móvel, que parte de uma lentidão infinita (como é o repouso), alcance imediatamente dez graus de velocidade ao invés de quatro, e quatro ao invés de dois, de um, de meio, de um centésimo de grau? E, numa palavra, de todos os graus de velocidade menores no infinito? Escutai, por favor. Não acredito que recusais conceder-me que a aquisição dos graus de velocidade pela pedra que cai a partir do estado de repouso possa efetuar-se com a mesma ordem que a diminuição ou perda dos mesmos graus, se a pedra impelida por alguma força motriz fosse reconduzida à mesma altura; mas, sendo isso possível, não vejo como se possa colocar em dúvida que, ao diminuir a velocidade da pedra ascendente até extinguila totalmente, ela possa chegar ao estado de repouso antes de passar por todos os graus de lentidão. Simplício: Mas se os graus de lentidão cada vez maior são infinitos, nunca poderão extinguir-se totalmente; razão pela qual um grave ascendente nunca chegará ao repouso, mas se moverá infinitamente, cada vez mais devagar, coisa que não vemos acontecer.

134

Salviati: É isso o que aconteceria, Sr. Simplício, se o móvel se detivesse durante algum tempo em cada grau de velocidade; acontece, porém, que ele simplesmente passa sem demorar mais que um instante. E, posto que em todo intervalo 150 de tempo, por menor que seja, existem infinitos instantes, estes são suficientes para corresponder aos infinitos graus de velocidade que diminui. Que esse grave ascendente não permaneça durante algum intervalo de tempo num mesmo grau de velocidade, fica evidente do seguinte modo: se, fixado um intervalo de tempo determinado, no primeiro instante desse tempo e também no último, se encontrasse que o móvel tem um grau de velocidade, poderia, a partir deste segundo grau de velocidade, ser igualmente elevado por um espaço semelhante, da mesma maneira que do primeiro foi levado ao segundo e, pela mesma razão, passaria do segundo ao terceiro, para continuar finalmente seu movimento uniforme ao infinito."151 Para se ter uma ideia da dificuldade de compreender a nova concepção de física que estava nascendo com trabalhos análogos a este de Galileu é interessante citar um breve comentário de Koyré sobre o tal contínuo de velocidade e de tempo imaginados por Galileu; para compreender a posição de Galileu: "(...) é preciso formar a noção de uma infinidade de graus de velocidade percorrida num tempo finito, e, para o fazer, é preciso formar a noção inimaginável - de velocidade no instante, isto é, a noção de um movimento, por assim dizer, imóvel, de um movimento que parece renegar de certa maneira a sua afinidade com o tempo. Noutros termos, a noção de uma diferencial do movimento."152

150

Qauntum, segundo Alexandre Koyré. Galileu Galilei, op. cit., nota 126, págs. 128/130. 152 Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, págs. 178/179. 151

135

E Koyré prossegue afirmando que estando afastada a objeção infinitesimal, Galileu pode anunciar finalmente a sua definição de movimento uniformemente acelerado: "Chamo movimento uniformemente, ou igualmente, acelerado ao movimento cujos momentos, ou graus de velocidade, aumentam, a partir do repouso, com o próprio crescimento do tempo a partir do primeiro instante do movimento." Será que depois disso tudo Galileu se acalmou? Isto é, a aceitação dessa definição de movimento acelerado passou a ser a última palavra sobre o assunto? Só para dar um exemplo de oposição às idéias de Galileu sobre o movimento uniformemente acelerado basta a seguinte opinião de René Descartes: "O que diz Galileu, que os corpos que descem passam por todos os graus de velocidade, não creio que aconteça assim ordinariamente, mas sim que não é impossível que aconteça algumas vezes (...)"153 Ou ainda este outro argumento cartesiano: "E quando se bate numa bola com uma maça, não creio que penseis que esta bola, no começo de se mover, vá menos depressa que a maça (...)"154 Tanto Galileu, alguns anos antes, quanto Descartes até o final de sua vida, trabalhavam com uma concepção de movimento que não utilizava a variação temporal do movimento. Tanto um quanto outro cometiam o mesmo erro, apontado por Koyré nesse seu estudo. Isto é, Galileu e Descartes imaginavam que a velocidade de queda do grave era proporcional à distância percorrida pelo grave e não ao tempo gasto em percorrê-la. Descartes não conseguiu nesta etapa, a mesma em que Galileu temporaliza a sua cinemática e a sua dinâmica, trabalhar com a física abstrata do movimento. Galileu, ao

153 154

Citado por Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 180. Citado por Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 181.

136

contrário, trabalhava com esta parte ao confronto com o real. É a física arquimediana tomando a dianteira na parada. Ou a física inspirada nos físicos medievais, como Buridan e Oresme, como indicariam os estudos de Pierre Duhem. Essa forma nova de pensar, no entanto, surge com força nos Discursos. Eis um exemplo do raciocínio galilaico, no seguinte teorema: "Se um móvel, partindo do repouso, cai com um movimento

uniformemente

acelerado,

os

espaços por ele percorridos em qualquer tempo estão entre si na razão dupla dos tempos, a saber, como os quadrados desses mesmos tempos. Representemos o tempo que tem início no instante A por meio da linha reta AB, na qual Figura 35

tomamos dois intervalos quaisquer de tempo AD e AE. Seja HI a linha segundo a qual o

móvel, partindo do repouso em H, cairá com um movimento uniformemente acelerado; seja HL o espaço percorrido durante o primeiro intervalo de tempo AD e HM o espaço percorrido durante o intervalo de tempo AE. Afirmo que o espaço MH está para o espaço HL numa proporção dupla daquela que o tempo EA tem para o tempo AD; e podemos também afirmar que os espaços HM e HL têm a mesma proporção que os quadrados de EA e de AD. Tracemos a linha AC que forma um ângulo qualquer com a linha AB; e a partir dos pontos D e E tracemos as linhas paralelas DO e EP: se DO representa o grau máximo de velocidade adquirido no instante D do intervalo de tempo AD, PE representará, por definição, a velocidade máxima obtida no instante E do intervalo de tempo AE. Mas, conforme foi

137

demonstrado acima a propósito dos espaços percorridos, esses espaços são os mesmos, se um móvel, partindo do repouso, se move com um movimento uniformemente acelerado e se, durante um intervalo de tempo igual, ele se move com um movimento uniforme, cuja velocidade é a metade da velocidade máxima adquirida durante o movimento acelerado. Seguese que as distâncias MH e LH são idênticas às que seriam percorridas nos intervalos de tempos AE e DA por movimentos uniformes, cujas velocidades seriam iguais à metade daquelas representadas por DO e EP. Se tiver, portanto, sido provado que as distâncias MH e LH estão na dupla proporção dos tempos EA e DA, a proposição terá sido provada. Na quarta proposição do livro primeiro foi demonstrado que os espaços percorridos por dois corpos com movimento uniforme estão entre si numa proporção que é igual ao produto da proporção das velocidades com a proporção dos tempos. Neste caso, porém, a proporção das velocidades é a mesma que a proporção dos tempos (uma vez que a proporção entre AE e AD é a mesma que a proporção entre a metade de EP e a metade de DO, ou entre PE e OD). Consequentemente, a proporção entre os espaços percorridos é a mesma que o quadrado da proporção entre os tempos; o que queríamos demonstrar." Esta é finalmente a lei da queda dos corpos que permite a Galileu chegar ao seguinte corolário que, segundo Koyré, representa a "sua maior vitória intelectual, porque submete o movimento, e portanto o tempo, à lei do número inteiro." Eis o corolário: "Daí, segue-se claramente que, se a partir do primeiro instante do movimento fossem tomados sucessivamente intervalos de tempos iguais, como, por exemplo, AD, DE, EF, FG nos quais se percorrem os espaços HL, LM, MN, NI, estes espaços estariam entre si assim como os números ímpares a partir da unidade, a saber, 1, 3, 5, 7: esta é, com efeito, a

138

proporção entre os excessos dos quadrados das linhas que se excedem igualmente, diferença essa que é igual à menor delas, ou seja, à proporção entre os quadrados dos números inteiros que se seguem à unidade. Quando, portanto, os graus de velocidade aumentam em tempos iguais, de acordo com a simples série dos números, os espaços percorridos em tempos iguais adquirem incrementos segundo a série dos números ímpares ab unitate."155 Para finalizar esta resumida apresentação da construção da lei da queda dos graves por Galileu, segundo o historiador da ciência Alexandre Koyré que, é apenas uma das possíveis interpretações deste importante episódio da história da mecânica, mais uma breve citação do próprio Koyré: "É nessa intuição, na atenção constante e mantida ao caráter real do fenômeno que reside a razão que permite a Galileu evitar o erro de Descartes; e o seu próprio erro. O movimento é, antes de tudo mais, um fenômeno temporal. Passa-se no tempo. É, pois, em função do tempo que Galileu procurará definir a essência do movimento acelerado, e já não em função do espaço percorrido: o espaço é apenas uma resultante, um acidente, um sintoma de uma realidade essencialmente temporal."156

8.6.

Galileu e o “argumento da torre”

Para os aristotélicos, o fato de os graves caírem segundo uma linha vertical, perpendicular à superfície da Terra como já tivemos a oportunidade de discutir inúmeras vezes, era a comprovação empírica de que a Terra não se move.

155 156

Galileu Galilei, op. cit., nota 126, pág. 138. Alexandre Koyré, op. cit., nota 125, pág. 195.

139

Galileu, ao trabalhar com esse problema admitia como óbvio o conteúdo visível da observação da queda vertical dos corpos. Mas, ele afirmava que os sentidos, por si sós, podiam nos enganar. Vamos acompanhar uma fala de Sagredo, criticando o filósofo aristotélico Scipione Chiaramonti (l565-1652): “Sagredo - Se eu pudesse encontrar-me alguma vez com esse filósofo, que me parece estar bem acima de muitos outros seguidores das mesmas doutrinas, em sinal de estima gostaria de lembrar lhe um fenômeno que certamente ele já viu mil vezes, com o qual, em conformidade com isto que estamos tratando, pode-se compreender como outros podem facilmente enganqr-se com a simples aparência, ou queremos dizer, representação dos sentidos. E o fenômeno é o de dar a impressão àqueles que de noite caminham por uma estrada de estarem sendo seguidos pela Lua com idêntico passo, enquanto a vêem rasar as ponteiras dos telhados sobre os quais ela lhes aparece, exatamente daquela maneira que faria uma gata que, realmente caminhando sobre as telhas, se mantivesse atrás deles; aparência de que, quando não interviesse o raciocínio, muito manifestamente enganar-se-ia a visão”157 Portanto, Galileu sabia que a impressão dos sentidos, mediada pela razão, poderia levar a diferentes enunciados. O epistemólogo Paul Feyerabend, no qual me baseei para escrever este texto complementar afirmava que um fenômeno fornecido pelos sentidos é: aparência mais enunciado. E o enunciado é carregado de teoria não é neutro. Há, desse modo, uma forte unidade entre o enunciado e o fenômeno. É parte de um aprendizado que se inicia na infância e que comanda um processo de operações mentais. Os processos de ensino/aprendizagem delineiam e condicionam a aparência ou fenômeno estabelecendo forte conexão entre eles e as palavras que utilizamos. Daí acaba soando

157

Galileu Galilei. Diálogo, op. cit, nota 141, págs. 338/339.

140

quase natural a descrição que fazemos dos mesmos. Como diz Feyerabend, "os fenômenos parecem falar por si mesmos". “A linguagem que falam está, naturalmente, influenciada pelas crenças de gerações anteriores, mantidas há tanto tempo que não mais parecem princípios separados, apresentando-se nos termos do discurso cotidiano e parecendo, após o treinamento natural exigido, brotar das próprias coisas.”158 Feyerabend denomina de interpretações naturais a origem e o efeito dessas operações mentais. Operações mentais que se mostram quase indissociáveis dos fatos, fenômenos ou aparências. Ele afirma que tais interpretações naturais ora são vistas como pressupostos a priori, como ocorria na filosofia de Kant, ora como preconceitos, lembrando o que propunha Bacon, que precisam ser evitados. É claro que essas interpretações naturais não são as únicas nem tampouco definitivas. Elas também passam por um desenvolvimento histórico. Discutir o significado de uma aparência revelando sua falácia ou confirmando sua verdade, nada mais é que discutir a validade das interpretações naturais. Feyerabend sugere que Galileu propôs uma discussão crítica promotora de novas interpretações naturais. A forma como Galileu teria construído seus diálogos, Presentes nas suas últimas obras, levaram-no exatamente à elaboração dessas novas interpretações naturais que dão a impressão de sempre terem existido, como se fossem reminiscências. “(...) a atitude de Galileu é relativamente fácil de caracterizar: as interpretações naturais são necessárias. Os sentidos puros, desajudados da razão, não nos proporcionam verdadeira compreensão da natureza. Necessários para chegarmos a essa compreensão verdadeira são os “sentidos, acompanhados pela razão” (Galileu no Diálogo)”159 158 159

FEYERABEND, Paul. Contra o método, Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977, p. 107. Paul Feyerabend, op.cit, nota 158, pág. 108.

141

Para os aristotélicos o movimento de queda de um grave é “retilíneo e vertical”. Para Copérnico e seus seguidores esse mesmo movimento é “a um tempo, retilíneo e circular”. Ambas as afirmações são baseadas em argumentos nascidos da observação, isto é, tanto os aristotélicos quanto os copernicanos falam a linguagem do movimento real. Ao se aceitar a concepção de movimento real dos aristotélicos, o pensamento de Copérnico é refutado. É dessa forma que se colocava o problema para Galileu: o pensamento comum, ou dominante no século XVII, apontava para o caráter operativo de todo movimento. Ou seja, todo movimento era considerado, por esse pensamento dominante como absoluto. Obviamente há situações em que o movimento ilusório é patente, como é o caso do exemplo do movimento da Lua, anteriormente mencionado. Porém, há situações que já se configuram como casos paradigmáticos em que “é psicologicamente muito difícil ou mesmo impossível admitir engano”. É esse tipo de situação que aprendemos desde a infância. O movimento da pedra, utilizado no argumento da torre, é um dos exemplos típicos: “Como poderíamos deixar de perceber o rápido movimento da grande porção de matéria que se supõe a Terra seja? Como poderia escapar-nos o fato de que a pedra, caindo, percorre ampla trajetória no espaço? Do ponto de vista do pensamento e da linguagem do século XVII, o argumento é, portanto, impecável e conveniente.”160 Para sair desse enredo, que coloca obstáculos para uma nova teoria, é necessário apelar para alguma espécie de “medida externa de comparação” que inclui novos modos de relacionar conceitos e dados de percepção. Galileu teria introduzido, segundo Feyerabend, uma nova forma de relacionar teoria e fatos observados.

160

Paul Feyerabend op. cit, nota 158, pág. 110.

142

Galileu introduziu uma nova interpretação natural, a de que o movimento compartilhado não seria perceptível, isto é, não conseguiríamos perceber o movimento da Terra assim como não percebemos o movimento circular de uma pedra caindo, pois compartilhamos do mesmo movimento. Assim, Galileu dava realidade apenas ao movimento relativo. Desta forma Galileu introduzia uma “nova linguagem de observação” e a sua concepção de relatividade. Um diálogo ente os personagens de Galileu, onde é explicitada uma situação envolvendo o conceito não-operativo de movimento serve de exemplo: "Salviati: Imaginai agora estar num navio e ter fixado o olho na ponta do mastro: acreditais que,

porque

o

navio se movesse

também

velocissimamente, ser-vos-ia necessário mover o olho, para manter a vista sempre no ponta do mastro e seguir o seu movimento? Simplício: Tenho certeza de que não seria preciso fazer nenhuma mudança, e que não somente a vista, mas, quando eu tivesse ajustado a mira de um arcabuz, qualquer que fosse o movimento do navio, jamais seria preciso movê-lo um só fio de cabelo para mantê-la ajustada. Salviati: E isso acontece porque o movimento que o navio confere ao mastro confere-o também a vós e a vosso olho, de modo que não vos convém movê-lo para olhar a ponta do mastro; e, consequentemente, ela aparece-vos imóvel”.161

161

Galileu Galilei. Diálogo, op. cit. nota 141, págs. 331/312.

143

Capítulo 9 – Galileu e Kepler: aspectos pedagógicos e literários 9.1.

Alguns aspectos histórico/pedagógicos

Em geral os livros didáticos não apresentam um quadro histórico que permita conhecer os principais antecedentes que levaram à formulação de determinadas teorias científicas, tanto do ponto de vista conceitual quanto do ponto de vista metodológico. Quando os livros didáticos se aventuram a oferecer uma apresentação histórica, via de regra esta é distorcida, isto é, apresenta-se uma reconstrução histórica que propicia a apresentação de um desenvolvimento linear e cumulativo da construção do conhecimento científico, como muito apropriadamente ressaltou Thomas Kuhn. Para ilustrar essa prática dos livros didáticos, vou tomar duas breves citações de um livro largamente utilizado no ensino básico universitário de física. Trata-se do livro Física, de dois autores norte-americanos, Halliday e Resnick. Sobre o sistema heliocêntrico é dito que: "(...) No século XVI Copérnico sugeriu que uma descrição mais simples dos movimentos celestes poderia ser dada assumindo que o Sol estava em repouso no centro do universo. Na teoria Copernicana ou heliocêntrica, a Terra era um planeta girando em torno de seu eixo e orbitando em torno do Sol, e os outros planetas possuíam movimentos similares. A crescente controvérsia sobre as duas teorias (geocêntrica e heliocêntrica) estimulou os astrônomos a obter dados observacionais mais acurados. Tais dados foram compilados por Tycho Brahe (1546-1601), que foi o último grande astrônomo a fazer observações sem o uso do telescópio. Seus dados sobre os movimentos planetários foram analisados e interpretados durante cerca de vinte anos por Johannes Kepler (1571-1630), que foi assistente de Brahe (...)"162

162

HALLIDAY, D.;e RESNICK, R. Physics. J. Willey, 1963, págs. 319/320.

144

A inexistência desse trecho 'histórico" nesse livro didático seria mais valiosa pois, além de não fornecer elementos que permitam uma avaliação do processo de criação envolvido, distorce alguns fatos significativos: não menciona o heliocentrismo grego, afirma que o sistema de Copérnico é mais simples, deixa a impressão de que Tycho era Copernicano. Esse mesmo texto, numa nota de rodapé, chega a afirmar que Galileu inventou o telescópio... Quanto à questão da simplicidade do sistema copernicano já tratei desse tema quando citei um interessante comentário do filósofo Hugh Lacey163. No mesmo livro encontramos o seguinte comentário a respeito de Galileu: "(...) Aristóteles afirmava que "o movimento de queda (...) de qualquer corpo provido de peso é mais rápido em proporção ao seu tamanho". A autoridade de Aristóteles foi seriamente ameaçada apenas muitos séculos depois, quando Galileu Galilei (1564-1642), um cientista italiano da Renascença, apelou para a experiência para descobrir a verdade, e então publicamente proclamou-a (...)"164 E mais adiante, ao enunciar a primeira lei de Newton, é feita uma apresentação como se Galileu tivesse se baseado apenas em experiências, com o plano inclinado e superfícies horizontais cada vez mais lisas, para formular o princípio da inércia. Este princípio, aprende-se nessa obra, representa uma generalização da experiência. Veremos mais adiante que essa história é bem mais complexa e interessante que isso. Não quero iniciar aqui uma polêmica sobre o papel da experimentação na construção do conhecimento em física. Que a física seja um empreendimento teórico e experimental não há dúvida alguma. Agora, que as teorias sejam construídas tão somente a partir de experimentações não é algo que possa ser aceito sem discussão. Embora a 163 164

Nestas Notas de aula, pág. 67. D. Halliday e R. Resnick, op. cit., nota 162, pág. 40.

145

visão positivista tenha perdido espaço na discussão filosófica sobre o desenvolvimento do conhecimento científico, ela é ainda bastante dominante na forma como a física é apresentada nos livros didáticos. Embora a posição do historiador da ciência francês Alexandre Koyré seja contestada por outros historiadores, entre eles Stillman Drake, é interessante conhecer sua opinião a respeito de experiência e experimentação. Dizia ele: "Falou-se também frequentemente do papel da experiência, do nascimento de um "sentido experimental". E, sem dúvida, o caráter experimental da ciência clássica forma um dos seus traços mais característicos. Mas, de fato, trata-se de um equívoco: a experiência, no sentido de experiência bruta, de observação do senso comum, não desempenhou qualquer papel, a não ser o de obstáculo, no nascimento da ciência clássica; e a física dos nominalistas parisienses - e mesmo a de Aristóteles - estava frequentemente, bem mais próxima dela do que a de Galileu. Quanto à experimentação - interrogação metódica da natureza - ela pressupõe quer a linguagem na qual faz as suas perguntas, quer um vocabulário que permita interpretar as respostas."165 O historiador da física Stillman Drake discorda dessa interpretação radicalmente idealista de Koyré. Ele estudou manuscritos não publicados de Galileu onde este descrevia medidas efetuadas sobre a queda dos corpos, por exemplo, fundamentais para elaborar suas conclusões sobre o movimento e suas leis. O estranho em tudo isso é que Galileu tenha omitido essas medidas quando da publicação de suas últimas duas grandes obras já citadas. De qualquer forma fica claro que Drake tem boas razões para argumentar e defender a base experimental dos trabalhos de Galileu.166

165

Alexandre Koyré. op. cit., nota 125, pág. 16. DRAKE, Stillman. Galileo at Work: His Scientific Biography. The University of Chicago Press, Chicago and London, 1978. 166

146

9.2.

Homenagem de um poeta e professor português a Galileu

Mais um breve parêntesis: como vínhamos tratando das contribuições de Galileu Galilei para o estudo do movimento, lembrei-me de um poema escrito por um professor de física/poeta português, Antonio Gedeão. Aí vai a poesia que, creio eu, pode ser utilizada para alimentar uma boa discussão em torno da figura de Galileu, sua relação com o conhecimento tradicional de sua época e de suas contribuições ao conhecimento científico: "Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano, aquele teu retrato que toda gente conhece, em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce sobre um modesto cabeção de pano. Aquele retrato da Galeria do Ofícios da tua velha Florença. (Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício. Disse Galeria dos Ofícios). Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença. Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria ... Eu sei... Eu sei... As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia. Ai que saudades, Galileu Galilei! Olha. Sabes? Lá na Florença está guardado um dedo da tua mão direita num relicário. Palavra de honra que está! As voltas que o mundo dá! Se calhar até há gente que pensa que entraste no Calendário.

147

Eu queria agradecer-te, Galileu, A inteligência das coisas que me deste. Eu, e quantos milhões de homens como eu a quem tu esclareceste, ia jurar - que disparate, Galileu! - e jurava a pés juntos e apostava a cabeça sem a menor hesitação que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são. Pois não é evidente, Galileu? Quem acredita que um penedo caia com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia? Esta era a inteligência que Deus nos deu. Estava agora a lembrar-me, Galileu, daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinha à tua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente. Estavam todos a ralhar contigo, que parecia impossível que um homem da tua idade e da tua condição, se estivesse tornando um perigo para a Humanidade e para a Civilização.

148

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios, e percorrias, cheio de piedade, os rostos impenetráveis daquela fila de sábios. Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas, desceram lá das suas alturas e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -, nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas. E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal. E juraste que nunca mais repetirias nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma, aquelas abomináveis heresias que ensinavas e escrevias para eterna perdição da tua alma. Ai, Galileu! Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo, que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços, andavam a correr e a rolar pelos espaços à razão de trinta quilômetros por segundo. Tu é que sabias, Galileu Galilei. Por isso eram teus olhos misericordiosos, por isso era teu coração cheio de piedade,

149

piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos a quem Deus dispensou de buscar a verdade. Por isso, estoicamente, mansamente, resististe a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas, foram caindo, caindo, caindo, caindo, caindo sempre, e sempre, ininterruptamente, na razão direta dos quadrados dos tempos."167

9.3.

Kepler e a ficção científica

Encontramos, num ramo literário até há muito pouco tempo considerado um ramo menor da literatura, a ficção científica, muitos exemplos de textos que podem também ser utilizados na ponte entre a física e a literatura, a exemplo do que estudamos brevemente no capítulo 6. Alguns historiadores destacam o papel de Johannes Kepler também neste campo, situando sua obra Somnium seu Astronomia Lunari (Sonho ou Astronomia da Lua) como um dos primeiros trabalhos de ficção científica. O Sonho foi publicado, ainda como um fragmento, em 1634.

167

GEDEÃO, Antonio. Poema a Galileu. Revista de Ensino de Física, vol.1, nº 1, jan/79, págs. 61/63.

150

No começo do século XVII, nos intervalos do seu trabalho sobre o movimento dos planetas, Kepler iniciara a escrita desse seu sonho, sonho de uma viagem à Lua, com a descrição do movimento dos corpos celestes a partir da visão de um suposto habitante da Lua. Aparentemente, ele teria se inspirado num trabalho de Plutarco, A face da Lua, que Kepler anexa ao seu Sonho, quando de sua publicação. Por cerca de duas décadas, de tempos em tempos, ele voltava a escrever algo mais nesse seu manuscrito. Como destaca um dos mais importantes biógrafos de Kepler, Max Caspar, é difícil separar o que seria seu pensamento poético de suas convicções científicas a respeito do nosso satélite natural. Além de descrever a astronomia da Lua, ele apresenta a geografia da Lua, uma descrição de suas cidades, a natureza de seus habitantes com seus hábitos e moradias, seus mares e pântanos, seu mundo animal e vegetal, entre outros. 168 Na parte mais próxima da ficção científica moderna, Kepler afirma que a viagem à Lua deveria ser empreendida durante um eclipse do satélite e que sua duração seria de cerca de quatro horas. Essa viagem só seria possível graças à mãe de um menino de catorze anos, que tem poderes para dialogar com os demônios - provavelmente uma referência à sua própria mãe-, que consegue convencer os espíritos a levar alguns mortais à Lua. Arthur Koestler, no seu livro Os sonâmbulos, outro exemplo digno de relação entre a Física e a literatura, reproduz o seguinte trecho da chegada à Lua: "O choque inicial [de aceleração] é o pior, pois o viajante é atirado para cima como numa explosão de pólvora (...) Deve, portanto, ser entorpecido por narcóticos, tendo os membros cuidadosamente protegidos para não serem arrancados e para que o recuo se distribua por todas as partes do corpo. Encontrará, então, novas dificuldades, um frio imenso e uma respiração inibida (...) Quando a primeira parte da viagem estiver terminada, será mais fácil, porque em jornada tão longa o corpo escapa

168

CASPAR, Max. Kepler. Dover Publications, New York, 1993, págs. 351/353. (Original alemão de 1948.)

151

indubitavelmente à força magnética da terra e penetra na da Lua, de modo que esta vence. A essa altura, deixamos os viajentes livres e entregues aos seus próprios expedientes; como aranhas, esticar-se-ão e contrair-se-ão, e avançarão com as próprias forças, porque, visto que tanto a força magnética da terra como a da Lua atraem o corpo e o mantêm suspenso, o efeito é como se nenhuma delas o atraísse. No fim, a sua massa, por si própria, se voltará para a Lua."169 Notamos nesse trecho do Sonho que, coerente com o que já anunciara em 1609 na sua Astronomia Nova, Kepler não só menciona a ideia próxima do conceito de gravitação universal, como chega a imaginar a existência de regiões de gravidade zero. Koestler indica que, logo após a chegada dos viajantes à Lua, são apresentadas descrições de pormenores lunares, como já fora indicado por Max Caspar. Por exemplo, é dito que o dia lunar, do nascer ao por do Sol, dura cerca de quinze dias, o mesmo ocorrendo com a noite, isto é, a Lua demoraria cerca de trinta dias para completar uma volta em torno do seu eixo, o mesmo que gasta para uma revolução completa em torno da Terra. Como consequência, "mostra sempre a mesma face à Terra". 170 Eis mais alguns trechos do Sonho, citados por Arthur Koestler: "O crescimento é rápido; tudo vive pouco porque tudo se desenvolve em tão enorme massa corpórea (...) O crescimento e a decadência se fazem num único dia. (...) Os prevolvanos [habitantes da face oculta da Lua com relação à Terra] não possuem habitações fixas nem seguras; num só dia atravessam em hordas todo o seu mundo, seguindo as águas vazantes em pernas mais longas que as dos nossos camelos, ou em asas, ou em navios. (...) Os que ficam na superfície fervem com o Sol do meio dia e servem de alimento às hordas nômades que se aproximam (...) Outros, não podendo 169 170

KEPLER, Johannes. Sonho. Citado por Arthur Koestler,op. cit. nota 12, pág. 289. Idem, pág. 290.

152

viver sem respirar, retiram-se para cavernas servidas de água por estreitos canais, de modo que a água pode gradativamente esfriar-se no longo percurso, e eles a bebem; mas quando chega a noite, saem para caçar."171 E Koestler, como numa avaliação dessa obra, mescla de ciência com ficção científica, afirma o seguinte: "Toda a obra de Kepler, e todos os seus descobrimentos, foram atos de catarse; nada mais justo que o derradeiro terminasse com um floreio fantástico."172 Certamente o Sonho, de Kepler, deve ter inspirado muitas obras de ficção científica, especialmente aquelas dedicadas a viagens à Lua como, entre outras, as de Júlio Verne e H. G. Wells.

9.4.

Uma avaliação da obra de Galileu, por Italo Calvino

Dada a relevância da análise literário/filosófica efetuada, reproduzo a seguir um capítulo do livro Por que ler os clássicos, do escritor italiano, várias vezes já mencionado neste texto, Italo Calvino "O livro da natureza em Galileu A metáfora mais famosa da obra de Galileu - e que encerra em si o nó da nova filosofia - é o livro da natureza escrito em linguagem matemática. "A filosofia está escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante de nossos olhos (falo do universo), mas não se pode entender se antes não se aprende a compreender a língua, e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele vem escrito em linguagem matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras 171 172

J. Kepler. Sonho. Citado por A. Koestler, op. cit., nota 12, pág. 290. A. Koestler, op. cit., nota 12, pág. 291.

153

geométricas, sem as quais é impossível para os homens entender suas palavras;

sem

eles

é

rodar

em

vão

por

um

labirinto

escuro."(Saggiatore173, 6) A imagem do livro do mundo já possuía uma longa história antes de Galileu, dos filósofos da Idade Média a Nicolas de Cues, a Montaigne, e era usada por contemporâneos de Galileu como Francis Bacon e Tommaso Campanella. Nas poesias de Campanella, publicadas um ano antes do Saggiatore, existe um soneto que começa com estas palavras: "O mundo é o livro em que a inteligência eterna escreve os próprios conceitos". Já na Istoria e dimostrazioni intorno alle macchie solari (1613), ou seja, dez anos antes do Saggiatore, Galileu opunha a leitura direta (livro do mundo) à indireta (livros de Aristóteles). Essa passagem é muito interessante, pois Galileu aí descreve a pintura de Arcimboldo, com juízos críticos que valem para a pintura em geral (e testemunham suas ligações com artistas florentinos como Ludovico Cigoli), e sobretudo com reflexões sobre a análise combinatória que podem ser aproximadas daquelas que serão lidas mais adiante. "Restam somente em contradição alguns severos defensores de cada minúcia peripatética, os quais, daquilo que posso compreender, educados e nutridos desde a primeira infância de seus estudos nesta opinião que o filosofar não seja, nem possa ser outra coisa senão fazer grande práticas sobre os textos de Aristóteles, e assim prontamente e em grande número possam acorrer de diferentes lugares e juntar-se para examinar algum problema proposto, não querem mais saber de levantar os olhos daqueles papéis como se esse

173

Livro Publicado em 1623.

154

grande livro do mundo não fosse escrito pela natureza para ser lido por outros, a não ser por Aristóteles, e que seus olhos tivessem que ver por toda a posteridade. Esses, que se sujeitam a leis tão estritas, me fazem lembrar certas obrigações, às quais às vezes de brincadeira se restringem os caprichosos pintores, em querer representar um rosto humano ou outras figuras com a junção ora de instrumentos agrícolas ora somente de frutas ou de flores desta ou daquela estação, cujas bizarrices, embora propostas como divertimento, são belas e agradáveis, e mostram maior perspicácia nesse artífice do que naquele, conforme ele tenha sabido mais adequadamente escolher e aplicar isto ou aquilo à parte imitada; mas, se alguém, talvez por ter consumido todos os seus estudos em semelhante maneira de pintar, quisesse depois universalmente cdoncluir que qualquer outro modo de pintar seria imperfeito e criticável, certamente Cigoli e outros pintores ilustres ririam dele." A contribuição mais nova de Galileu à metáfora livro-mundo é a atenção ao seu alfabeto especial, aos "caracteres nos quais está escrito". Pode-se então precisar que a verdadeira relação metafórica se estabelece, mais do que entre mundo e livro, entre mundo e alfabeto. Conforme esta passagem do Diálogo sopra i due massimi sistemi del mondo (segunda jornada), o alfabeto é que é o mundo: "Tenho um pequeno livro que é menor que o de Aristóteles e de Ovídio, no qual estão contidas todas as ciências, e com pouquíssimos outros estudos se pode formar uma idéia bem perfeita: e isso é o alfabeto; e não há dúvida de que aquele que souber combinar e ordenar bem esta e aquela vogal com essas e aquelas outras consoantes obterá respostas muito verdadeiras para todas as dúvidas e daí extrairá os ensinamentos de todas as ciências e de todas as artes,

155

justamente daquela maneira que o pintor partindo de simples cores diferentes, separadamente colocadas sobre a tela, vai, com a mistura de um pouco desta com um pouco daquela e de outra mais, figurando homens, plantas, fábricas, pássaros, peixes e, em suma, imitando todos os objetos visíveis, sem que na tela apareçam nem olhos nem penas nem escamas nem folhas nem seixos: antes é necessário que nenhuma das coisas a serem imitadas ou certas partes delas estejam atualmente entre as cores, querendo que com elas possam ser representadas todas as coisas, e que, se aí estivessem, por exemplo, penas, estas só serviriam para pintar pássaros ou penachos." Quando fala do alfabeto, Galileu pretende, portanto, um sistema combinatório em condições de dar conta de toda a multiplicidade do universo. Também aqui vemos Galileu introduzir a comparação com a pintura:

a combinação das letras do alfabeto é o

equivalente da

combinação das cores na tela. Notar-se-á que se trata de uma combinação num nível diferente daquela da pintura de Arcimboldo na citação precedente: uma combinação de objetos já dotados de significados (quadro de Arcimboldo, collage ou assemblage de penas, centenas de citações aristotélicas) não pode representar a totalidade do real; para chegar até aí é preciso recorrer a uma combinação de elementos mínimos,como as cores simples ou as letras do alfabeto. Numa outra passagem do Diálogo (no final da primeira jornada) que faz o elogia das grandes invenções do espírito humano, o lugar mais elevado toca ao alfabeto. Aqui de novo se fala de combinação e também de rapidez de comunicação: outro tema, o da rapidez, importantíssimo em Galileu: "Mas sobre todas invenções estupendas, que eminência de mente foi aquela de quem imaginou encontrar modo de comunicar seus próprios pensamentos mais recônditos a qualquer outra pessoa,

156

mesmo que distante por enorme intervalo de lugar e de tempo? falar com aqueles que estão na Índia, falar com aqueles que ainda não nasceram e só nascerão dentro de mil ou 10 mil anos? e com que facilidade? Com as várias junções de vinte pequenos caracteres num pedaço de papel. Seja este o segredo de todas as admiráveis invenções humanas." Se relermos a passagem do Saggiatore que citei no início à luz do que acaba de ser transcrito, entenderemos melhor como para Galileu a matemática e sobretudo a geometria têm uma função de alfabeto. Este ponto é explicitado numa carta de janeiro de 1641 (um ano antes de sua morte) a Fortunio Liceti. "Mas eu considero de fato que o livro da filosofia é aquele que está perpetuamente aberto diante de nossos olhos; mas, porque se encontra escrito com caracteres diferentes daqueles do nosso alfabeto, não pode ser lido por todos: e são os caracteres de tal livro triângulos, quadrados, círculos, esferas, cones, pirâmides e outras figuras matemáticas, perfeitamente adequadas para tal leitura." Pode-se observar que, em sua enumeração das figuras, Galileu, mesmo tendo lido Kepler, não fala de elipses. Porque em sua análise combinatória deve partir das formas mais simples? Ou porque sua batalha contra o modelo ptolomaico ainda se joga no interior de uma idéia clássica de proporção e perfeição da qual o círculo e a esfera permanecem como as imagens soberanas? O problema do alfabeto do livro da natureza está ligado ao da "nobreza" das formas, como se vê nesta passagem da dedicatória do Diálogo sopra i due massimi istemi ao grão-duque da Toscana:

157

."Quem olha mais alto, se diferencia mais altamente; e voltar-se para o grande livro da natureza, que é o próprio objeto da filosofia, é o modo para erguer os olhos: livro no qual, embora tudo aquilo que se lê, como obra do Artífice onipotente, seja por isso extremamente proporcionado, aquele mesmo assim é mais expedito e mais digno, onde maior, em nossa opinião, parece a obra e o artifício. A constituição do universo, dentre os naturais apreensíveis, no meu entender, pode ser colocada em primeiro lugar: pois se aquela, como contentora universal, em grandeza supera tudo o mais, como regra e manutenção de tudo deve também ser superior em nobreza. Porém, se a ninguém jamais tocou em excesso diferenciar-se pelo intelecto dos outros homens, Ptolomeu e Copérnico foram aqueles que tão elevadamente leram, se fixaram e filosofaram sobre a constituição do mundo." Um quesito que Galileu se coloca várias vezes para ironizar o velho modo de pensamento é o seguinte: as formas geométricas regulares devem ser consideradas mais nobres, mais perfeitas que as formas naturais empíricas, acidentadas, etc. É sobretudo a propósito das irregularidades da Lua que a questão é discutida: existe uma carta de Galileu para Gallanzone Gallanzoni inteiramente dedicada ao tema; mas bastará citar a passagem do Saggiatore 38: "E eu, quanto a mim, não tendo nunca lido as crônicas e as nobrezas particulares das figuras, não sei quais delas são mais ou menos nobres., mais ou menos perfeitas; mas creio que todas sejam antigas e nobres de algum modo ou, melhor dizendo, que quanto a elas próprias não são nem nobres nem perfeitas, nem ignóbeis e imperfeitas, senão enquanto para erguer paredes creio que as quadradas sejam mais perfeitas que as esféricas, mas para fazer rolar

158

ou conduzir carroças sejam mais indicadas as redondas que as triangulares. Mas, voltando a Sarsi, ele diz que eu lhe ofereço inúmeros argumentos para provar a aspereza da superfície côncava do céu, porque eu próprio quero que a Lua e os outros planetas (corpos também eles ainda celestes e bastante mais que o próprio céu nobres e perfeitos) sejam de superfície montanhosa, áspera e irregular; e, se isso é, por que não se deve dizer que tal desigualdade se encontra ainda na figura celeste? Aqui pode o próprio Sarsi dar como resposta aquilo que ele responderia a alguém que lhe quisesse provar que o mar deveria estar cheio de espinhas e de escamas, pois assim são as baleias, os atuns e os outros peixes que o habitam." Enquanto partidário da geometria, Galileu deveria apoiar a causa da superioridade das formas geométricas, mas enquanto observador da natureza ele recusa a idéia de uma perfeição abstrata e opõe a imagem da Lua "montanhosa, áspera e desigual" à pureza dos céus da cosmologia aristotélico-ptolomaica. Por que uma esfera (ou uma pirâmide) deveria ser mais perfeita que uma forma natural, por exemplo, a de um cavalo ou de um gafanhoto? A questão é recorrente em todo o Dialogo sopra i due massimi sistemi. Nesta passagem da segunda jornada voltamos a encontrar a comparação com o trabalho do artista, aqui o escultor: "Contudo, gostaria de saber se a mesma dificuldade se encontra ao representar um sólido de qualquer outra figura, isto é, para explicar melhor, se maior dificuldade se encontra em querer reduzir um pedaço de mármore à figura de uma esfera perfeita do que a uma perfeita pirâmide ou a um perfeito cavalo ou então a um perfeito gafanhoto". Uma das páginas mais belas e importantes do Diálogo (primeira jornada) é o elogio da Terra como objeto de alterações, mutações, gerações.

159

Galileu evoca com espanto a imagem de uma Terra de jaspe, de uma Terra de cristal, de uma Terra incorruptível, como petrificada pela Medusa. "Não posso sem grande admiração, e direi grande repugnância para meu intelecto, ouvir atribuições de grande nobreza e perfeição aos corpos celestes e integrantes do universo por serem impassíveis, imutáveis, inalteráveis, etc., e ao contrário considerar grande imperfeição ser alterável, capaz de gerar, mutável, etc.: julgo a Terra nobilíssima e admirável pelas tantas e tão diversas alterações, mutações, gerações, etc. que nela incessantemente ocorrem; e quando, sem estar sujeita a nenhuma mutação, ela fosse toda uma vasta solidão de areia ou massa de jaspe ou que, no tempo do dilúvio, congelando-se as águas que a cobriam se transformasse num globo de cristal, onde não nascesse nem se alterasse ou mudasse coisa nenhuma, eu a consideraria um corpanzil inútil no mundo, cheio de ócio e, para usar poucas palavras, supérfluo e como se não estivesse na natureza e não faria diferença entre estar viva ou morta; e o mesmo digo sobre a Lua, Júpiter e todos os outros globos do mundo. [...] Esses que tanto exaltam a incorruptibilidade, a inalterabilidade, etc. creio que se reduzem a dizer tais coisas pelo grande desejo de viver muito e pelo terror que têm da morte; e não consideram que, quando os homens fossem imortais não lhes tocaria vir ao mundo. Estes mereceriam encontrar-se numa cabeça de Medusa, que os transformasse em estátua de jaspe ou de diamante, para tornar-se mais perfeitos do que são." Se associarmos o discurso sobre o alfabeto do livro da natureza a este elogio das pequenas alterações, mutações, etc. vemos que a verdadeira oposição se situa entre imobilidade e mobilidade, e é contra uma imagem de inalterabilidade da natureza que Galileu toma partido, evocando a

160

carranca de Medusa. (A mesma imagem e argumento já se achavam presentes no primeiro livro astronômico de Galileu, Istoria e dimostrazioni intorno alle macchie solari.) O alfabeto geométrico ou matemático da natureza será aquele que, baseando-se em sua capacidade de ser decomposto em elementos mínimos e de representar todas as formas do movimento e da mudança, cancela a oposição entre céus imutáveis e elementos terrestres. A dimensão filosófica desta operação está bem ilustrada por esta fala do Diálogo entre o ptolomaico Simplício e Salviati, porta-voz do autor, em que retorna o tema da "nobreza": "SIMP.: Este modo de filosofar tende à subversão de toda a filosofia natural e a desordenar e arruinar o céu, a Terra e todo o Universo. Mas acredito que os fundamentos dos peripatéticos sejam tais que não há perigo de que com a ruína eles possam construir novas ciências. SALV.: Não se preocupe com o céu nem com a Terra, nem tema sua subversão, como tampouco da filosofia; porque, quanto ao céu, é vão que temam aquilo que vocês mesmos consideram inalterável e impassível; quanto à Terra, tratamos de nobilitá-la e aperfeiçoá-la, enquanto procuramos fazê-la semelhante aos corpos celestes e de certo modo colocá-la quase no céu, de onde os seus filósofos a expulsaram." (1985)174 Temos, nesse breve texto de Italo Calvino, uma avaliação da harmonia geométrica presente nos trabalhos de Galileu. Não deixa de ser uma análise que posiciona o físico italiano no campo filosófico ocupado pelos filósofos pitagóricos. Essa questão da mate-

174

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Companhia das Letras, São Paulo, 1994, págs. 89/95. (Original italiano de 1991).

161

matização da física, e principalmente de sua geometrização, ganha, assim, uma dimensão que extravasa os limites da Física, aproximando-a do uso da geometria e da análise combinatória em atividades plásticas, como a pintura e a escultura, escolhidos como comparação por Calvino. É uma análise que não se limita ao nascimento da física clássica, estando presente também na avaliação da ciência contemporânea.

INSTITUTO DE FÍSICA/USP

4300156 — GRAVITAÇÃO Notas de Aula 4ª parte João Zanetic

2° semestre/2019

GRAVITAÇÃO/Notas de Aula (Versão parcialmente revista em outubro de 2017) 4ª parte João Zanetic/IFUSP

Índice Capítulo 10 - Os "Principia" de Isaac Newton ....................................... 163 10.1.Introdução ................................................................................. 163 10.2.Os vórtices e o mecanicismo de Descartes ................................ 164 10.3.O princípio dos "Principia" ....................................................... 169 10.4.Uma breve descrição do conteúdo dos "Principia" .................... 173 10.5.Força central e a segunda lei de Kepler ..................................... 180 10.6.O caminho para chegar ao princípio da gravitação universal. .... 183 10.7.Articulação da hipótese gravitacional de Newton ...................... 187 10.8.À guisa de conclusão sobre os "Principia". ................................ 199 Capítulo 11 - Triunfos da mecânica newtoniana depois de Newton. ..... 200 11.1.Determinação de G. ................................................................... 200 11.2.Determinação dg massa da Terra. .............................................. 202 11.3.Determinação da massa do Sol. ................................................. 203 11.4.Descoberta de novos planetas. ................................................... 204 11.5.Uma viagem para além do sistema solar. ................................... 207 Capítulo 12. Mais alguns tópicos gravitacionais.................................... 210 12.1.Campo gravitacional. ................................................................ 210 12.2.A velocidade de escape da Terra ............................................... 211 12.3.Dois modos diferentes de medir massa? .................................... 217 12.4.Newton e as duas massas .......................................................... 218 12.5.Einstein e as duas massas .......................................................... 221 12.6.Alguns comentários finais (?) .................................................... 225

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Capítulo 10 - Os "Principia" de Isaac Newton 10.1. Introdução Kepler e Galileu sintetizaram com seu trabalho um novo tipo de pensamento que estava nascendo no século XVII. Era uma continuidade do tipo de pesquisa científica iniciada por Copérnico algumas décadas antes deles. Kepler aliava, de forma extremamente criativa e produtiva, o pensamento mágico/astrológico e alquímico com uma perspectiva geométrica que visava articular o pensamento copernicano. Galileu, por seu turno, representava a ascensão do pensamento racional, filosófico e experimental. Como diria Koyré, ele buscava também a matematização da física: redução do real ao puramente geométrico. Se Copérnico buscava uma harmonia geométrica na sua reconstrução da proposta heliocêntrica de Aristarco, podemos dizer que tanto Kepler quanto Galileu deram continuidade à tradição pitagórica da ligação da matemática com a física. Como vimos, rompia-se o círculo da visão de mundo aristotélica que pode ser duplamente simbolizada pela utilização das seções cônicas no lugar do círculo: a elipse de Kepler para as órbitas planetárias e a parábola de Galileu para o movimento dos projéteis. Kepler e Galileu, duas figuras tão diferentes, estabeleceram as bases de uma nova ciência. Enquanto Galileu usava sua imaginação de forma comedida e solidamente baseada em suas análises matemáticas e de observação, inclusive através do telescópio, Kepler lançava mão do livre pensar ancorado também na matematização do real. "Enquanto Galileu se limita a interpretar com a ajuda de esquemas geométricos precisos as manchas lunares como indicadores do relevo, Kepler salta imediatamente mais adiante a imaginar selenitas, a conjeturar qual seria a constituição corporal e inclusive a explicar-nos seus planos urbanísticos (...) Inclusive vaticina viagens espaciais, e em seu

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postumamente publicado, Sonho, oferece-nos uma verdadeira obra de ficção científica."175 Quando, anos mais tarde, Newton, ao homenagear seus predecessores, afirmou que tinha conseguido realizar sua grande obra pois estava sustentado por ombros de gigantes, certamente os de Kepler e Galileu aí deveriam estar incluídos.

10.2. Os vórtices e o mecanicismo de Descartes Uma outra figura que não pode ser ignorada na construção da ciência moderna é René Descartes, como já ficou claro quando o mencionamos ao tratarmos do princípio da inércia, na secção 8.4. Ele é muito mais importante como filósofo do que como cientista, sendo o autor do célebre Discurso do Método176 que, além de apresentar as suas regras do pensamento racional, era uma espécie de autobiografia intelectual do próprio Descartes. À época de sua publicação o Discurso foi recebido como um prefácio de três tratados científicos: a Dióptrica, que era um tratado sobre a óptica, onde aparecia pela primeira vez a lei do seno da refração; os Meteoros, que tratava de fenômenos atmosféricos; e a Geometria, onde ele apresentava uma teoria geral das equações. 177 Numa retrospectiva histórica da construção das ideias gravitacionais, não podemos deixar de mencionar algo do pensamento científico de Descartes, principalmente por conta dos comentários que o jovem Newton produziu, como veremos mais adiante. Descartes foi influenciado, entre outros, por Francis Bacon, mas

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SANTOS, Carlos S. na Introdução à op. cit., nota 115, pág. 23.

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O Discurso foi publicado em 1637 com o título Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences, que pode ser traduzido como “Discurso do método para bem conduzir a razão e buscar a verdade nas ciências”. Uma boa tradução em português que também apresenta uma instrutiva apresentação histórica de Denis Huisman, especialista em Descartes, foi publicada pela Editora Universidade de Brasília, em 1985. 177

KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Editorial Presença, Lisboa, 1980, págs. 11/13.

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afastou-se da postura empirista do filósofo inglês, optando por uma metodologia dedutiva em que a matemática desempenhava um papel central. Como afirma Koyré, Descartes também pode ser inserido no quadro dos que batalharam pela matematização da física, o que pode ser exemplificado nas suas tentativas de resolver tanto o problema da inércia quanto o da queda dos graves. Na maior parte de suas investigações sobre os fenômenos físicos, Descartes dava pouca importância à experimentação, enfatizando o modo de investigação que partia dos primeiros princípios e deduções correspondentes. Ele desenvolveu uma concepção mecânica do universo e utilizava a matemática como um instrumento metodológico para trabalhar suas intuições e deduções. Descartes identificava a matéria com a extensão, ou seja, ele negava a possibilidade de existência do vácuo e afirmava que em todo o universo existe matéria. Além da extensão, o movimento era a outra grandeza fundamental que constituía seu mundo físico. "A matéria impregnava todo o espaço e, portanto, em princípio a matéria primordial somente podia sofrer um movimento de rotação. Deste modo se estabeleceu um vórtice gigante no qual os tijolos primários de matéria eram arrastados girando, gastando-se gradualmente pelo atrito. Independentemente de sua forma original, os blocos primários de matéria se desgastavam para formar um pó, a matéria primeira, e pequenas esferas, a matéria segunda. O pó cósmico ou matéria primeira constituía o elemento fogo que formava o Sol e as estrelas fixas. A matéria segunda era o ar ou elemento etéreo que compunha o material do espaço interestelar. Havia também uma matéria terceira, a saber, os blocos originais de matéria que não se haviam decomposto em pó mas que apenas haviam-se arredondado. Estes grandes blocos esféricos de matéria

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constituíam o elemento terra que formava a Terra, os planetas e os cometas." 178 Os vórtices, compostos por uma infinidade de partículas dessa matéria tênue, sutil e invisível que estavam permanentemente em rotação, que constituíam redemoinhos em torno dos planetas e do Sol, seriam os responsáveis pela queda dos graves e pela ascensão dos corpos leves. Eis aqui mais uma espécie de um modelo gravitacional. A figura 36 ilustra esse modelo cartesiano de vórtices.

Figura 36. O sistema solar no modelo cartesiano de vórtices 179 178

MASON, Stephen F. Historia de las ciencias. 2: La revolucion cientifica de los siglos VI y VII. Vol. 2, Alianza Editorial, Madrid,1985, pág. 62. 179

Figura extraída de Stephen F. Mason, op. cit., nota 178, pág. 64.

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O historiador da ciência brasileiro Roberto de Andrade Martins sintetiza bem esse modelo gravitacional de Descartes, como podemos verificar na citação seguinte: “Segundo Descartes, seria o próprio turbilhão [vórtice] da Terra que produziria a gravidade. O argumento é aproximadamente o seguinte: se um líquido se move em círculos, todas as suas partículas tendem a se afastar do centro e mover-se em linha reta (por aquilo que chamamos de inércia). Quanto mais rápido o movimento circular, maior essa tendência a se afastar do centro. Se houver um líquido em rotação muito rápida, e dentro dele partículas com rotação mais lenta, essas partículas terão menor tendência a se afastar do centro, e serão empurradas pelo líquido em direção ao centro. Seria exatamente isso que ocorreria nas proximidades da Terra: segundo Descartes, os corpos terrestres giram lentamente em torno do eixo da Terra, enquanto o segundo elemento do vórtice terrestre gira muito rapidamente; por isso, os corpos terrestres são empurrados, pelo material do vórtice, em direção à Terra.”180 Nesse sistema de Descartes, a Terra poderia ser considerada imóvel no centro de seu próprio vórtice que arrastava a Lua em sua órbita ao redor da Terra. Da mesma forma, poderia ser explicado o fato de que todos os planetas se achavam presos ao Sol num vórtice muito mais amplo girando em torno do mesmo. À época em que Descartes escrevia seu Tratado do Mundo, por volta de 1632/33, que incluía essa concepção dos vórtices, Galileu era condenado pelo Tribunal da Inquisição. Devido a isso esse Tratado só foi publicado após a morte de Descartes. Assim, ele sucumbe a essa realidade o que acarretaria uma dubiedade em sua visão de mundo. Como em seu sistema todos os movimentos eram considerados relativos, ele

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MARTINS, Roberto de Andrade. Descartes e a impossibilidade de ações à distância. In: Saul Fuks (org.). Descartes: um legado científico e filosófico. Ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1997, págs. 89/90.

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imaginava a Terra imóvel no centro de seu vórtice, satisfazendo desse modo a concepção dominante de que a Terra estaria em repouso no centro do mundo. Mesmo com essa concessão teórica de movimento relativo, a obra cartesiana foi incluída no Index da Inquisição, em Roma e em Paris, em 1663. Em 1740, seus trabalhos foram retirados do Index de livros proibidos para servir de alternativa ao sistema Newtoniano que estava cada vez mais ganhando certa popularidade na França.181 Um dos seguidores da teoria cartesiana dos vórtices foi Christian Huygens (16291695), que teria utilizado redemoinhos provocados em recipientes com água a fim de "confirmar" a teoria cartesiana da queda dos corpos. O termo mecanicismo ganhou força com o desenvolvimento dos trabalhos de Descartes que considerava todos os sistemas materiais como máquinas guiadas por leis da natureza, leis mecânicas. Inclusive o corpo humano era assim considerado por Descartes, assim como as plantas, os animais e os demais corpos inorgânicos. Essa forma mecânica de explicar o comportamento dos corpos materiais opunha-se à estrutura hierárquica presente na concepção aristotélica. "As leis da natureza são as leis da mecânica", escrevia Descartes. Essa ideia cartesiana incluía a concepção de Deus como o grande legislador. É interessante, a este respeito, acompanhar o que diz o historiador da ciência Stephen Mason: "Descartes supunha que Deus governava o universo plenamente mediante "leis da natureza" que haviam sido decididas desde o começo. Uma vez criado o Universo, a divindade não havia interferido com a máquina que havia feito. A quantidade de matéria e a quantidade de movimento do mundo eram constantes e eternas, como também "as leis que Deus colocou na natureza". Durante a Idade Média havia-se chegado a pensar que Deus participava dia a dia no funcionamento do universo, delegando seu poder às hierarquias dos seres angelicais que impulsionavam os corpos celestes 181

MASON, Stephen F. Op. cit., nota 178, pág. 63.

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nas suas órbitas, observando e regendo os acontecimentos terrestres. (...) As pessoas do século dezessete, por outra parte, estavam interessadas no curso ordinário dos acontecimentos, buscando seu modo "legal" de operação. (...) (...) J. Calvino elaborava no terreno teológico a concepção de Deus como reitor absoluto do universo, governando mediante leis promulgadas desde o início. (...) A filosofia cartesiana desfrutou do favor dos calvinistas interessados na ciência. Durante o século dezessete, as teorias de Descartes eram ensinadas nas universidades da calvinista Holanda, assim como em Cambridge, a mais puritana das universidades inglesas (...)."182

10.3. O princípio dos "Principia" O último trecho da citação acima nos remete a Cambridge e, portanto, a Isaac Newton que, no período mencionado, estudava e pesquisava naquela universidade inglesa. Newton nasceu no dia 25 de dezembro de 1642, mesmo ano da morte de Galileu, em Lincolnshire, e morreu em Kensington, Londres, em 20 de março de 1727. Em 1665 graduou-se como bacharel em artes no Trinity College da Universidade de Cambridge. Parte desse ano e do ano seguinte Newton retornou ao campo, à cidade onde nasceu, devido a uma terrível peste que atacou Londres, matando um grande número de pessoas. Nesses dois anos, Newton aprofundou seus estudos em vários campos aos quais dedicaria parte ponderável dos vinte e poucos anos que se seguiram até a publicação, em 1686/7, de sua obra mais conhecida, os Philosophiae Naturalis Principia Mathematica.

182

MASON, Stephen F. Op. cit., nota 178, págs. 66 e 68.

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Assim é que, afirmam vários historiadores, já em 1666, com a idade de 24 anos, Newton havia produzido conhecimento novo e extraordinário sobre os seguintes assuntos: 1. tinha uma formulação provisória de sua teoria da gravitação, pelo menos como uma hipótese de trabalho razoável; 2. redigiu um esboço medianamente completo do cálculo de fluxões, que viria a ser o cálculo infinitesimal; 3. formulou o seu teorema do binômio; 4. escreveu e pesquisou a natureza da luz. Parte significativa do pensamento do jovem Newton é encontrada nas anotações que ele havia começado a fazer quando tinha dezoito anos, em 1661, constituindo o que veio a ser conhecido como seu caderno de apontamentos de Trinity, sendo a parte mais importante aquela que compreende o período de 1664 a 1665, que Newton intitulou Questiones quædam Philosophicæ, que pode ser traduzida como “Certas questões filosóficas” 183 .

Eis o que dizem J. E. McGuire e Martin Tamny, que teceram

interessantes comentários para a tradução inglesa desse caderno de apontamentos, a respeito da influência cartesiana sobre Newton: “É inegável que as idéias de Descartes são especialmente importantes para Newton, porque elas negam o que ele afirma. Como vimos, Newton advoga o princípio epicuriano de átomos e vazio, um compromisso que tornou a posição de Descartes a principal adversária de Newton, algo que atraiu muito sua atenção. Não se pode concluir disso que Newton rejeitava totalmente as idéias de Descartes, embora ele questionasse a concepção dos vórtices fluidos. Reconhece-se que as componentes dos vórtices desempenharam um papel nos argumentos astronômicos de Newton na

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MCGUIRE, J. E.; TAMNY, M. Certain philosophical questions: Newton’s Trinity notebook. Cambridge University Press, 1985.

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década de 1680. (...) No entanto, não se pode negar que a base conceitual da matéria de Descartes dos céus fluidos – sua identificação com a extensão – foi imediatamente rejeitada por Newton: ela se opunha à existência do vazio e da estrutura atômica da matéria.” 184 Nos anos seguintes, Newton dedicou-se ao aprofundamento de seu conhecimento em cada uma dessas áreas. É preciso frisar que Newton conhecia os trabalhos de seus precursores, particularmente os trabalhos de Kepler, Galileu e Descartes, além de Copérnico, é claro. Outro contemporâneo que acabou influenciando os trabalhos de Newton foi Robert Hooke (1635-1703) que, por sua vez foi influenciado, no que respeita à gravitação, por William Gilbert. Este, como já vimos, por analogia com seus estudos sobre os ímãs, imaginava que a própria Terra se comportaria como um grande ímã para os corpos situados nas proximidades de sua superfície. Gilbert havia, inclusive, conseguido demonstrar experimentalmente que a "força" magnética entre os corpos variava com a distância que os separava. Assim, Hooke procurou também medir a variação da "força" gravitacional da Terra sobre corpos próximos à sua superfície. Hooke procurou medir a gravidade (peso) de corpos tanto junto à superfície quanto em poços profundos de minas e nos altos dos morros. Ele próprio afirmara não ter conseguido nenhuma informação segura a respeito da variação da gravidade. Dessa forma, Newton, nesses mesmos anos de 1665 e 1666, dedicava-se à investigação de temas semelhantes aos investigados por Hooke. Aparentemente, Newton também foi influenciado pelo trabalho que Galileu realizou com pêndulos; ou, como afirma Bernal: "O estudo do pêndulo simples levou ao estudo do pêndulo circular; o estudo do pêndulo circular levou à ideia de força centrífuga e esta, por seu

184

MCGUIRE, J. E.; TAMNY, M. Op. cit., nota 183, pág. 147.

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turno, levou à ideia de uma gravidade que mantinha os planetas em suas órbitas, ao mesmo tempo que eles oscilavam circularmente de modo perfeitamente livre. A gravidade, no caso do pêndulo, é simplesmente a componente do peso do corpo suspenso na direção do centro. Uma vez que Newton entendeu isto, ele podia prosseguir até o fim." 185 "Prosseguir até o fim" poderia significar, por exemplo, procurar a solução de uma questão particularmente difícil para a época. Por volta de agosto de 1684, Edmund Halley

(1656-1742),

outro

contemporâneo

com

forte

influência

sobre

o

desenvolvimento dos Principia, em uma entrevista que manteve com Newton, teria formulado a seguinte pergunta: qual seria a curva que deveria ser descrita pelos planetas, supondo que a força de atração em direção ao Sol, uma das suposições que vários físicos faziam àquela época, fosse inversamente proporcional ao quadrado da distância deles ao Sol? Newton teria respondido, imediatamente, que deveria ser uma elipse. Halley teria ficado alegre e surpreso com a resposta. A seguir ele solicitou os cálculos de Newton que, procurou entre seus papéis, mas, não os tendo encontrado, prometeu a Halley que iria refazê-los e os enviaria a ele. Em novembro do mesmo ano, Halley recebeu um pequeno ensaio em que se encontrava a demonstração completa da questão formulada. Nota-se por essas datas como Newton, apesar de ter iniciado a pensar sobre esses temas vinte anos antes da formulação da questão por Halley, tinha ainda problemas importantes em aberto. Ë possível que isso tenha provocado o atraso da publicação dos Principia, que foram finalmente preparados para publicação em 1686, como podemos verificar na reprodução da capa da primeira edição dos Principia reproduzida na figura 38. Outro problema que talvez também tenha sido responsável pelo atraso da publicação dos Principia, refere-se à questão da força gravitacional de uma esfera homogênea que seria igual à provocada por uma massa, equivalente à da esfera, 185

BERNAL, John D. Op. cit., nota 5, pág. 209.

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localizada no centro de massa. O cálculo necessário para resolver esse problema também não era trivial. Veremos algumas dessas etapas nas seções seguintes. Finalmente, em julho de 1686, Newton finaliza seu livro e, em 1687, a primeira edição dos Principia começou a ser distribuída. Essa obra marcou profundamente toda a física que foi construída nos dois séculos seguintes à sua publicação, como atestam as afirmações de Einstein apresentadas nestas Notas de Aula.

10.4. Uma breve descrição do conteúdo dos "Principia" Os Principia constam de três livros que passo a descrever sucintamente a seguir.

Figura 37. Capa da primeira edição dos Principia de Newton

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Livro 1 Assunto central: leis gerais do movimento dos corpos sujeitos à ação de forças centrais; na primeira metade aborda o movimento de um ou dois corpos no vazio; na segunda metade aborda o problema de três corpos. Aliás este último problema foi mal resolvido por Newton; Euler chegou a uma solução melhor, cerca de cinquenta anos mais tarde.

Livro 2 Assunto central: estudo do movimento nos meios resistivos; dependência da resistência com a velocidade; fundamentos da hidrostática e corpos flutuantes; movimento do pêndulo; movimento de líquidos em tubos e movimento de projéteis. Eis o que escreveu o historiador da ciência Clifford Truesdell sobre esse livro dos Principia: "Apesar dessa sucessão anárquica de demonstrações matemáticas, hipóteses brilhantes, intuições, blefes e erros crassos, o livro 2 tem sido considerado, com justiça, como a manifestação mais grandiosa do gênio de Newton. O livro 2 foi propriamente um desafio lançado aos geômetras da época. Viram diante de si a necessidade de corrigir os erros, substituir as intuições mediante hipóteses claras, ordenar essas hipóteses dentro de um esquema da mecânica racional, trocar os blefes por demonstrações matemáticas e criar novos conceitos para alcançar o que Newton não havia conseguido. Não é exagero afirmar que a mecânica racional, e portanto, a física matemática, junto com a visão da natureza a que esta

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deu lugar, nasceu deste desafio, aceitos como foram pela escola matemática da Basiléia."186 Da escola matemática mencionada por Truesdell na citação acima, destacaram-se os matemáticos e físicos Euler e os Bernoulli. Livro 3 Assunto central: o sistema de mundo, ou seja, o movimento dos planetas, o movimento da Lua e suas anomalias, a aceleração da força gravitacional, o problema das marés, etc. O quadro da figura 38 exibe, numa reprodução adaptada de uma página dos Principia, uma típica demonstração de um teorema, ou proposição, encontrada ao longo da maior parte do conteúdo dessa obra de Newton. A utilização elegante e precisa da geometria é uma constante nas páginas dos Principia. Esse procedimento newtoniano é muito parecido com a forma de apresentação do livro sobre a geometria do geômetra grego Euclides. É a matematização da física iniciada por Galileu, Kepler e Descartes atingindo seu pleno desenvolvimento, marcando para sempre a vitória do paradigma que tinha no De revolutionibus, de Copérnico, uma síntese de partida. Porém, mesmo após a publicação dos Principia, houve forte oposição à nova ciência. Por exemplo, Huygens e Leibniz, não aceitavam a proposição gravitacional de Newton. Huygens afirmava que Newton estaria voltando a utilizar as qualidades ocultas e as forças espirituais que tinham sido banidas pela nascente ciência natural.

186

Citado por CUNHA, Elio B. M. Uma nova história da mecânica. Rev. de Ensino de Física, vol. 6, nº 1, abril/1984, pág. 48

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Figura 38. Esse quadro consta do artigo “Philosophie Naturalis Principia Mathematica”, de Roberto Thut Medeiros, publicado na Revista de Ensino de Física, vol. 9, nº 1, out/1987, págs. 45/54. O Problema VI encontra-se explicado detalhadamente nesse artigo.

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Eis uma citação significativa de Huygens contra as ideias de Newton: "Eu estou impressionado que Newton tenha tido o trabalho de construir, sobre hipótese tão improvável e audaciosa, tantos teoremas e uma completa teoria das ações dos corpos celestes. Eu estou me referindo à sua hipótese de que todas as pequenas partículas de diversos corpos se atraem mutuamente na razão do inverso do quadrado das distâncias."187 O livro de Newton, apesar de sua enorme importância para o desenvolvimento da física, é pouco conhecido, pouco lido mesmo entre o público universitário. Aliás, infelizmente, isso é verdade com relação a todos os clássicos da física. É o resultado de um ensino dominado por manuais que apenas apresentam, quase sem exceções, o "formulismo" da física. Vamos reproduzir um trecho interessante dos Principia, parte do terceiro livro, que se intitula Do sistema do mundo: “Corpos lançados em nosso ar não sofrem nenhuma resistência além do ar. Retire-se o ar, como é feito no vácuo do Sr. Boyle, e a resistência cessa; pois nesse vazio uma pena e um pedaço de ouro sólido descem com velocidade igual. E o mesmo argumento deve-se aplicar aos espaços celestiais acima da atmosfera da Terra; nesses espaços, onde não existe ar para resistir a seus movimentos, todos os corpos se moverão com o máximo de liberdade; e os planetas e cometas prosseguirão constantemente suas revoluções em órbitas dadas em espécie e posição, de acordo com as leis acima explicadas; mas, apesar de tais corpos poderem, com efeito, continuar em suas órbitas pela simples lei da gravidade, todavia eles não podem de modo algum ter, em princípio, derivado dessa lei a posição regular das próprias órbitas (...)

187

Citado por Brian Easlea. Op. cit., nota 82, pág. 44.

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Esse magnífico sistema do Sol, planetas e cometas poderia somente proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso. (...) e para que os sistemas das estrelas fixas não caiam, devido a sua gravidade, uns sobre os outros, Ele colocou esses sistemas a imensas distâncias entre si (...) Esse Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo, mas como Senhor de tudo; (...) Ele dura para sempre, e está presente em todos os lugares; e, por existir sempre e em todos os lugares, ele constitui a duração e o espaço. (...) Assim como um homem cego não tem idéia das cores, nós também não temos idéia da maneira pela qual o todo sábio Deus percebe e entende todas as coisas. Ele é completamente destituído de todo corpo e figura corporal, e não pode portanto nem ser visto, nem ouvido, nem tocado; nem deve ser ele adorado sob a representação de qualquer coisa corporal (...) Nós o conhecemos somente pelas suas invenções mais sábias e excelentes das coisas e das causas finais. (...) Até aqui explicamos os fenômenos dos céus e do nosso mar pelo poder da gravidade, mas ainda não designamos a causa desse poder. É certo que ele deve provir de uma causa que penetra nos centros exatos do Sol e planetas, sem sofrer a menor diminuição de sua força; que opera não de acordo com a quantidade das superfícies das partículas sobre as quais ela age (como as causas mecânicas costumam fazer), mas de acordo com a quantidade da matéria sólida que elas contêm, e propaga sua virtude em todos os lados a imensas distâncias, decrescendo sempre no quadro inverso das distâncias. A gravitação com relação ao Sol é composta a partir das gravitações com relação às várias partículas das quais o corpo do Sol é composto; e ao afastar-se do Sol diminui com exatidão na proporção do quadrado inverso das distâncias até a órbita de Saturno, como evidentemente aparece do repouso do apogeu dos planetas; mais

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ainda, e mesmo para os mais remotos apogeus dos cometas, se estes apogeus estão também em repouso. Mas até aqui não fui capaz de descobrir a causa dessas propriedades da gravidade a partir dos fenômenos, e não construo nenhuma hipótese; pois tudo que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e as hipóteses, quer metafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia as proposições particulares são inferidas dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução. Assim foi que a impenetrabilidade, a mobilidade e a força impulsiva dos corpos, e as leis dos movimentos e da gravitação foram descobertas. E para nós é suficiente que a gravidade realmente exista, aja de acordo com as leis que explicamos e que sirva abundantemente para considerar todos os movimentos dos corpos celestiais e do nosso mar. (...)"188 Nós apenas podemos estabelecer algumas conjecturas sobre o que se passava na mente de Newton quando escrevia essas frases. Seu teísmo, sua "aparente" convicção experimental, sua "fé" na gravitação universal e sua... magia. John Mainard Keynes (1883-1946), o famoso economista inglês que arrebatou, em 1942, num leilão, os escritos de Newton elaborados em Cambridge, escreveu o seguinte num artigo sobre a figura de Newton: "Newton não foi o pioneiro da idade da razão. Ele foi o último dos mágicos, o último dos babilônios e sumérios (...) foi a última criança prodígio a quem a Magia poderia prestar uma homenagem apropriada e sincera."189

188

NEWTON, Isaac. Principia. Coleção "Os pensadores", Abril Cultural, São Paulo, 1979, págs. 19/22. 189

KEYNES, John Mainard. Newton. Rev. de Ensino de Física, vol. 5, nº 2, dez/1983.

180

Por outro lado, numa análise que buscava as raízes econômicas e sociais dos Principia, o físico soviético Boris Hessen, afirmava o seguinte, em 1932: "(...) o fenômeno de Newton é visto como devido a uma espécie de bondade da divina providência, e o poderoso impulso que seu trabalho deu ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia é considerado como o resultado de seu gênio pessoal. (...) Esse breve perfil dos Principia mostra a completa coincidência entre as temáticas físicas da época, que emergiam de exigências econômicas e técnicas (...) E uma vez que todos esses problemas eram problemas de mecânica, fica claro porque a principal obra de Newton foi uma investigação geral sobre a mecânica celeste e terrestre."190 Tivemos assim uma breve história da construção da principal obra de Newton e sua inserção cultural. Nas próximas seções vamos apresentar alguns detalhes da construção de seu princípio da gravitação universal.

10.5. Força central e a segunda lei de Kepler Fruto de sua análise dos resultados de Kepler, principalmente suas duas primeiras leis, Newton intuiu que o Sol deveria ser responsável por algum tipo de ação mais direta sobre os planetas. Assim, pela primeira lei de Kepler, os planetas moviam-se em órbitas curvas, elípticas. Isso significava, utilizando a primeira lei de Newton, que alguma força era aplicada sobre o planeta para forçá-lo a desviar-se da reta. Portanto, os planetas estavam sendo continuamente acelerados. Pela segunda lei de Newton, deveria haver uma força na direção da aceleração. Mas, qual seria esta força? 190

HESSEN, Boris. As raízes sociais e econômicas dos Principia de Newton. Rev. de Ensino de Física, vol. 6, nº 1, abril/1984, págs. 38 e 55.

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Como as duas primeiras leis de Kepler situam o Sol como ponto preferencial da órbita elíptica, nada impedia Newton de considerá-lo como o centro de ação dessa força. Em particular, Newton poderia perguntar-se, essa força não poderia eventualmente ser uma força do tipo central, isto é, uma força dirigida para um ponto central e talvez com magnitude dependente da distância a esse centro? É claro que essa hipótese de Newton tinha que ser coerente com os resultados encontrados por Kepler. Para procurar entender como Newton trabalhou com essa sua hipótese, vamos inicialmente estudar o movimento de um corpo que se desloca com velocidade constante, visto por um observador situado num ponto O fora de sua trajetória. Se marcarmos numa reta pontos que delimitam distâncias percorridas em intervalos de tempos iguais, como mostra a figura 39 (a), percebemos que as áreas descritas, isto é, áreas dos triângulos OPQ, OQR, e assim por diante, são iguais. Verifique o que foi aqui afirmado analisando a figura com cuidado.

Figura 39. Newton e a segunda lei de Kepler191 Assim, a segunda lei de Kepler é aplicável mesmo para o caso de um corpo que se movimenta uniformemente numa linha reta na ausência de qualquer força. Não é um resultado surpreendente? 191

Figura extraída do Projeto Harvard.

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Vamos agora procurar generalizar tal resultado. Imaginemos a situação em que o corpo sofre a ação de uma força de curta duração em Q, na direção de O, como é mostrado na figura 39 (b) acima. Desta forma, no intervalo de tempo seguinte, igual ao gasto para ir com movimento uniforme de P para Q, o corpo estará sujeito a uma composição de movimentos: um que o levaria em linha reta até R e outro que o levaria em direção a O até Q'. A composição destes dois movimentos leva o corpo até o ponto R'. A partir de análise cuidadosa da figura determine as áreas dos triângulos OQR e OQR'. Como a base desses dois triângulos é a mesma - OQ - e como suas alturas são iguais - as perpendiculares a partir dos vértices R e R' até QQ', as áreas desses dois triângulos são iguais. Se, de novo, uma força de curta duração for aplicada em R', na direção de O, outra vez teríamos uma composição de movimentos que produziria a situação mostrada na figura (c) acima. Novamente a área do novo triângulo é igual à do anterior. Verifique esta afirmação. Portanto, imaginando intervalos de tempo tão pequenos que tendem a zero, teremos uma força que age continuamente sempre dirigida para o ponto O. Newton demonstrou que o raciocínio empregado para os triângulos acima continuaria válido. Desta forma concluímos que se um corpo está sujeito continuamente a uma força dirigida para o centro O ele se moverá de acordo com a segunda lei de Kepler. Em outras palavras: Um corpo sujeito a uma força central obedece à segunda lei de Kepler. Vamos procurar entender o significado físico desse resultado obtido por Newton, utilizando os conceitos de momento de uma força e momento angular, introduzidos na seção 7.8.

183

Se a força F aplicada à partícula for central, isto é, sempre dirigida para o centro O, ela será sempre paralela a r e, portanto, sempre 𝑟⃗ ⋀ 𝐹⃗ = 0. Portanto da expressão 14, teremos que

⃗⃗ 𝑑𝐿 𝑑𝑡

= 0, ou seja 𝐿 = 𝑐𝑜𝑛𝑠𝑡𝑎𝑛𝑡𝑒. Assim:

Para uma partícula sujeita a uma força central, o momento angular relativo ao centro de força é uma constante do movimento 𝑳 = 𝒎𝒓𝒗┴ Esse resultado é coerente com a argumentação utilizada para chegar na expressão 4 da página 106. Finalmente, podemos dizer que: Em todo movimento sujeito a uma força central, o raio vetor da partícula descreve áreas iguais em tempos iguais. Kepler havia descoberto que a órbita de um planeta está contida num plano que contém o Sol, a expressão𝐿⃗⃗ = 𝑟⃗ ⋀ 𝑝⃗ = 𝑐𝑜𝑛𝑠𝑡𝑎𝑛𝑡𝑒, confirma esse resultado por ele obtido. Podemos interpretar modernamente a segunda lei de Kepler como significando a lei da conservação do momento angular. Foi dado, com essa interpretação da segunda lei de Kepler, um importante passo na direção de compreender a dinâmica do movimento dos corpos celestes em torno do Sol. A força que mantém os planetas em órbita é uma força central dirigida para o Sol. Faltava ainda encontrar a expressão para essa força.

10.6. O caminho para chegar ao princípio da gravitação universal. No seu livro Philosophiae naturalis principia methematica, Newton apresentou o desenvolvimento de sua proposta para a gravitação. Em tal empreitada ele teria sido ajudado, como mencionei anteriormente, por duas figuras fundamentais: Robert Hooke e Edmund Halley. Na seção 10.3, relatei um pouco dessa "ajuda". Newton reconheceu que Hooke teve uma enorme influência sobre seu pensamento no que respeitava a aceitação do conceito de força centrípeta. No entanto, Hooke e Newton

184

tiveram vários atritos a respeito da primazia da descoberta da lei do inverso do quadrado da distância. I.B. Cohen afirma que essa lei pode ser obtida, por exemplo, a partir da expressão da aceleração centrípeta que Newton afirmava conhecer desde meados da década de 1660. No entanto o privilégio da publicação da expressão da aceleração centrípeta é de Christiaan Huygens que, em 1673, no seu Horologium oscillatorium, apresentou uma demonstração de que para um movimento circular uniforme a aceleração centrípeta teria a seguinte expressão matemática

192

: 𝑎𝑐

=

𝑣2 𝑟

.

Com essa expressão, utilizando as duas primeiras leis de Newton e a terceira lei de Kepler, aplicada ao movimento de um planeta em torno do Sol, chega-se por meio de simples álgebra à expressão do princípio da gravitação de Newton 193 . Faça esse exercício. Vale a pena mencionar também que, segundo demonstram algumas cartas trocadas por Newton, Halley e Hooke, poucos anos antes de publicação dos Principia, Newton não havia ainda chegado à sua lei da gravitação. Numa carta a Newton, datada de 6 de janeiro de 1680, Hooke afirmava que "(...) eu suponho que a atração é sempre proporcional ao inverso do quadrado da distância ao centro (...)"194 Numa carta de Newton a Halley, datada de maio-junho de 1686, um ano antes da publicação de seu livro, Newton apresentava uma resenha de sua correspondência com

192

COHEN, I.B. Op. cit., nota 130. págs. 227/228. Cohen apresenta um breve histórico envolvendo as figuras de Hooke, Huygens e Newton a respeito da aceleração centrípeta e da lei do inverso do quadrado da distância. 193 194

COHEN, I.B. Op. cit., nota 130. págs. 165/167.

Citada na Introdução de Eloy Rada à última edição espanhola dos Principia. NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos de la filosofia natural, volume I. Alianza Universidad, Madrid, 1987, pág. 31.

185

Hooke e reconhecia que a proposta de Hooke o levou ao descobrimento do teorema da elipse.195 Na página 179, na já mencionada figura 38, reproduzi um exemplo de cálculo efetuado por Newton nos Principia, onde ele demonstrava que a força centrípeta atuante num corpo que percorre uma órbita elíptica é inversamente proporcional ao quadrado da distância do corpo ao foco da elipse. Esse resultado pode ser escrito como 1

𝐹 ∝ 𝑅2

(16)

Uma expressão matemática dessa qualidade já estava "no ar" nesse período, não só por causa das intuições ou hipóteses formuladas por pesquisadores como Robert Hooke, bastando mencionar que Kepler propusera uma espécie de lei da diminuição da intensidade luminosa exatamente seguindo a proporcionalidade do inverso do quadrado da distância desde o foco de luz. 196 Newton estava disposto, pouco antes de preparar os Principia para a impressão, a considerar que essa força também responderia pela força central decorrente da sua análise das leis de Kepler. Ele assim postulou que "Se a matéria dos globos que gravitam entre si é homogênea em todos os lugares que equidistam dos centros por todos os lados, o peso de cada um deles com relação ao outro variará inversamente como o quadrado da distância entre os centros." 197 Em outras palavras, Newton postulou que a força entre quaisquer duas massas m1 e m2 ou mP, massa de um planeta, mS, massa do Sol, é proporcional ao inverso do quadrado da distância entre eles:

195

RADA, Eloy. Op. cit., nota 194, pág. 36.

196

COHEN, I.B. Op. cit., nota 130. pág. 144.

197

NEWTON, Isaac. Op. cit., nota 194, Livro III. Proposição VIII. Teorema VIII.

186

1

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 ∝ 𝑅2

(17)

William Gilbert havia sugerido, quase um século antes desses trabalhos de Newton, que o efeito de um imã é proporcional à massa do imã. Influenciado talvez por esse tipo de sugestão ou outra qualquer semelhante, Newton postulou que "A gravidade ocorre em todos os corpos e é proporcional à quantidade de matéria existente em cada um." 198 Isso significa que qualquer corpo próximo à superfície da Terra está sujeito a uma força gravitacional que é proporcional à massa da Terra, 𝑚 𝑇 , e também à massa do próprio corpo,𝑚𝑐 . Essas duas proporcionalidades, juntas, produzem a seguinte relação:

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 ∝ 𝑚𝑇 𝑚𝑐

(18)

Newton generalizou esta relação para quaisquer dois corpos, por exemplo, a interação entre a Terra e a Lua seria governada por tal expressão, assim como a força gravitacional entre qualquer planeta e o Sol.

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 ∝ 𝑚1 𝑚2

(19)

Considerando o efeito conjunto das duas expressões, (17) e (19), obtemos:

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 ∝

𝑚1 𝑚2 𝑅2

(20)

A fim de converter a proporcionalidade numa equação, introduzimos uma constante de proporcionalidade 𝐺.

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = G

198

𝑚1 𝑚2 𝑅2

NEWTON, Isaac. Op. cit., nota 194, Proposição VII. Teorema VII.

(21)

187

Esta é a lei de Newton da gravitação, também conhecida como princípio da gravitação universal. Na sequência analisaremos a articulação desta teoria gravitacional realizada pelo próprio Newton e apresentada no seu livro Principia. Não percam!

10.7. Articulação da hipótese gravitacional de Newton "A natureza e as leis da natureza jazem escondidas na noite; Deus disse: "Faça-se Newton" e tudo foi luz." A. Pope199 Havia que articular a teoria da gravitação de Newton. Afinal, ela também contava com críticos do porte de Huygens que, como vimos, entre outros argumentos, afirmava que a atração à distância proposta por Newton recolocava em cena categorias do pensamento mágico. Newton postulava que para um planeta de massa 𝑚𝑝 e à distância 𝑅𝑝𝑠 do Sol de massa 𝑚𝑠 , a força gravitacional é dada por:

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = G

𝑚𝑠 𝑚𝑝 2 𝑅𝑝𝑠

(22)

Nessa expressão, Newton não conhecia os valores de 𝐺, 𝑚𝑝 e 𝑚𝑠 . O que fazer? 1. Que valor de R utilizar? Mais uma dificuldade bastante séria restava para Newton enfrentar: que valor de R poderia ser utilizado na sua expressão (21) uma vez que, por exemplo, no caso da atração gravitacional entre a Terra e um corpo próximo à sua superfície, parte da Terra

199

Versos (panegírico) do poeta inglês Alexander Pope (1688-1744) que está gravado na lápide do túmulo de Isaac Newton, na Abadia de Westminster , em Londres, Inglaterra.

188

está bem próxima ao corpo enquanto que outras partes estão a grandes distâncias do mesmo? Newton resolveu esse e outros problemas, como podemos observar seguindo a leitura de algumas de suas proposições e teoremas contidos no livro I do Principia. Vamos a eles.

Proposição LXX. Teorema XXX: "Se em direção a cada ponto de uma superfície esférica se dirigissem forças centrípetas iguais e decrescentes na razão do quadrado da distância desde tais pontos, digo que um corpúsculo situado no interior de tal superfície não é atraído para nenhum lado por tais forças." Newton afirmava aí que a força gravitacional no interior de uma superfície esférica é nula.

Proposição LXXI. Teorema XXXI: "Com os mesmos pressupostos, digo que um corpúsculo situado fora de uma superfície esférica é atraído na direção do centro da esfera com uma força inversamente proporcional ao quadrado de sua distância ao centro da esfera." Aqui Newton afirmava que para efeito do cálculo da força gravitacional num ponto exterior a uma superfície esférica tudo se passava como se considerássemos toda a massa dessa superfície concentrada no centro da mesma. Proposição LXXIII. Teorema XXXIII: "Se em direção a cada ponto de uma esfera dada tendem forças centrípetas iguais e decrescentes segundo o quadrado da distância a ditos pontos, digo

189

que um corpúsculo situado dentro da esfera é atraído com uma força proporcional a sua distância ao centro."

Proposição LXXIV. Teorema XXXIV: "Com os mesmos pressupostos, digo que um corpúsculo situado fora de uma esfera é atraído com uma força inversamente proporcional ao quadrado de sua distância ao centro da mesma."

Proposição LXXV. Teorema XXXV: "Se em direção a cada ponto de uma esfera dada tendem forças centrípetas iguais e decrescentes segundo o quadrado das distâncias a cada ponto; digo que outra esfera qualquer semelhante será atraída por ela com uma força inversamente proporcional ao quadrado das distâncias entre os centros." Quando não há quebra da homogeneidade de densidades nos corpos envolvidos na atração gravitacional mútua considera-se sempre a distância R como sendo a distância entre seus centros. Newton resolveu mais um problema. A seguir vamos analisar alguns problemas resolvidos por Newton na articulação de seu paradigma.

2. O problema da Lua. Um dos testes de aplicabilidade do princípio da gravitacional universal foi a tentativa de aplicá-lo para explicar o movimento da Lua em órbita em torno da Terra.

Proposição III. Teorema III. (livro III):

190

"A força com a qual a Lua é retida em sua órbita se dirige em direção à Terra e é inversamente como o quadrado da distância dos lugares ao centro da Terra."

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = G

𝑚𝐿 𝑚𝑇 2 𝑅𝑇𝐿

(23)

onde: 𝑚𝐿 é a massa da Lua, 𝑚 𝑇 é a massa da Terra e 𝑅𝑇𝐿 é a distância da Lua à Terra. Vamos procurar testar a validade da expressão (23), procurando calcular com o uso da mesma alguma grandeza conhecida relacionada com o movimento da Lua em torno da Terra. Muito antes de Newton formular sua teoria da gravitação conhecia-se o período do movimento da Lua em torno da Terra: 𝑇𝐿 = 27,3 𝑑𝑖𝑎𝑠. Assim, para verificar a expressão basta calcular esse período com o auxílio da mesma. Vamos ver como podemos fazer isso. Embora as quantidades e grandezas 𝐺, 𝑚𝐿 e 𝑚 𝑇 não fossem conhecidas à época de Newton, podemos utilizar alguns artifícios para eliminá-las ou substituí-las por quantidades conhecidas. Devido a um resultado descoberto por Galileu de que todos os corpos próximos à superfície da Terra, em queda livre, possuem uma mesma aceleração g, aplicando a 2ª lei de Newton podemos afirmar que um tal corpo de massa 𝑚 estará submetido a uma força gravitacional dada por

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = 𝑚𝑔

(24)

A expressão da força gravitacional também poderá ser expressa pelo princípio da gravitação universal:

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = 𝐺

𝑚𝑚𝑇 2 𝑅𝑇

onde: 𝑚 𝑇 é a massa da Terra e 𝑅𝑇 é o raio da Terra. As expressões (24) e (25) podem ser igualadas

(25)

191

𝑚𝑔 = 𝐺 Portanto,

𝑚𝑚𝑇 2 𝑅𝑇

𝐺𝑚𝑇 = 𝑔𝑅𝑇2

(26)

(27)

Substituindo a expressão (27) na (23), obtemos:

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 =

2 𝑚𝐿 𝑔𝑅𝑇 2 𝑅𝑇𝐿

(28)

Sabemos que a órbita da Lua em torno da Terra é praticamente circular. Portanto, podemos estudá-la também como um movimento circular uniforme. Assim, em cada ponto de sua órbita a direção de sua velocidade será diferente, mas seu módulo será sempre o mesmo. A Figura 40 apresenta duas particulares posições da Lua e suas respectivas velocidades vetoriais.

Figura 40 A aceleração média da Lua pode ser calculada pela diferença vetorial entre essas duas velocidades dividida pelo respectivo intervalo de tempo:

192

𝑎𝑐 =

𝑣2 −𝑣1 𝑡2 −𝑡1

=

∆𝑣𝐿 ∆𝑡

.

Essa diferença vetorial entre as velocidades, ∆𝑣𝐿 , está representada na Figura 40. Como se nota, ela está dirigida para o centro da Terra. Chamando de ∆𝑥 a corda compreendida entre os dois pontos da órbita considerados e por semelhança dos dois triângulos desenhados na figura acima, podemos escrever a seguinte igualdade, considerando apenas os módulos: ∆𝑣𝐿 ∆𝑡

∆𝑥

=𝑅

𝑣

∆𝑣𝐿 = 𝑅 𝐿 ∆𝑥

ou

𝑇𝐿

𝑇𝐿

O módulo da aceleração centrípeta média poderá ser calculado por

𝑎𝑐 =

∆𝑣𝐿 ∆𝑡

𝑣

= 𝑅𝐿

𝑇𝐿

∆𝑥 ∆𝑡

.

Calculando o limite da expressão acima para ∆𝑡 tendendo a zero, obtemos a aceleração centrípeta que age em cada ponto da órbita da Lua em torno da Terra: 𝑣𝐿2

𝑎𝑐 = 𝑅

𝑇𝐿

Aplicando a segunda lei de Newton, obtemos a força centrípeta que age sobre a Lua em seu movimento ao redor da Terra:

𝐹𝐶 =

𝑚𝑣𝐿2

(29)

𝑅𝑇𝐿

Num movimento circular uniforme a velocidade pode ser calculada pela razão entre o perímetro da circunferência e o respectivo período do movimento. Assim, para o caso da Lua em torno da Terra a velocidade 𝑣𝐿 será determinada por:

𝑣𝐿 =

2𝜋𝑅𝑇𝐿

(30)

𝑇𝐿

Substituindo (30) em (29), obtemos:

𝐹𝐶 =

2 4𝜋2 𝑚𝐿 𝑅𝑇𝐿

𝑇𝐿2 𝑅𝑇𝐿

ou

𝐹𝐶 =

4𝜋2 𝑚𝐿 𝑅𝑇𝐿 𝑇𝐿2

(31)

193

A força centrípeta é provocada pela força de atração gravitacional entre a Terra e a Lua, o que significa que as expressões (28) e (31) podem ser igualadas: 2 𝑚𝐿 𝑔𝑅𝑇 2 𝑅𝑇𝐿

=

4𝜋2 𝑚𝐿 𝑅𝑇𝐿 𝑇𝐿2

.

Simplificando, obtemos:

𝑇𝐿2

=

3 4𝜋2 𝑅𝑇𝐿 2 𝑔𝑅𝑇

(32)

Assim, obtemos a expressão do período do movimento orbital da Lua: 2𝜋

𝑇𝐿 = 𝑅 √

3 𝑅𝑇𝐿

𝑇

𝑔

(33)

Nessa expressão todas as grandezas eram conhecidas à época de Newton: 𝑔 ≅ 9,8 𝑚/𝑠 𝑅𝑇 ≅ 6.400 𝑥 103 𝑚 𝑅𝑇𝐿 ≅ 60 𝑥 6.400 𝑥 103 𝑚 Substituindo esses valores na expressão do período, obtemos 𝑇𝐿 = 27,3 𝑑𝑖𝑎𝑠, reproduzindo o valor anteriormente conhecido. Este resultado foi um dos primeiros a referendar a validade do princípio da atração gravitacional de Newton. 3. Outro problema da Lua: sua queda em direção à Terra. Proposição IV. Teorema IV. (livro III): "A Lua gravita em direção à Terra e é continuamente desviada do movimento retilíneo e retida em sua órbita pela força da gravidade." Podemos calcular a aceleração da Lua em direção à Terra por dois modos diferentes. O modo dinâmico que nos fornece a aceleração centrípeta e o modo gravitacional que nos oferece a aceleração da gravidade da Lua com relação à Terra. A igualdade de resultados obtidos por esses dois modos indicará que a Lua está caindo continuamente em direção à Terra. Da expressão (30), podemos calcular a aceleração centrípeta:

194

𝑎𝐶 =

4𝜋2 𝑅𝑇𝐿 𝑇𝐿2

.

Introduzindo nessa expressão os valores já conhecidos à época de Newton, podemos determinar o valor numérico da aceleração centrípeta calculada, note-se bem, pelo método dinâmico aplicado ao movimento circular uniforme que se supõe a Lua estar executando em torno da Terra: −3 2,710 𝑚⁄ . 𝑎𝐶 ≅ 𝑠2

Figura 39200 Pelo modo gravitacional, podemos imaginar que a Lua esteja caindo em direção à Terra. Como a expressão para a força gravitacional de Newton afirma que esta é proporcional ao inverso do quadrado da distância entre os corpos em consideração, é lícito afirmar que a aceleração gravitacional também respeita essa proporcionalidade.

200

COHEN, I.B. Op. cit., nota 130. págs. 168.

195

Isso significa que a aceleração galileana experimentada por todos os corpos próximos à superfície da Terra, isto é, localizados aproximadamente à distância 𝑅𝑇 do centro da Terra, quando em queda livre, pode ser utilizada para calcular a aceleração gravitacional da "queda" da Lua. Exemplificando o que foi dito acima: a aceleração gravitacional de um corpo em queda à altura 𝑅𝑇 acima da superfície terrestre terá o valor de 𝑔/4. Verifique esse resultado. Como a Lua está situada a uma distância aproximada de 60 𝑅𝑇 do centro da Terra, sua aceleração gravitacional terrestre será calculada por 𝑔

𝑎𝑔𝑟𝑎𝑣𝐿 = 602 ≅ 2,7 × 10−3 𝑚⁄𝑠 2. A igualdade entre as duas acelerações determinadas pelos dois métodos acima indicados permite concluir que realmente podemos afirmar que a Lua está "caindo" em direção ao centro da Terra, como afirmava Newton. Esse resultado acrescenta mais um ponto favorável à hipótese newtoniana.

4. O problema dos planetas. A resolução do movimento planetário foi outro grande triunfo conseguido por Newton.

Fenômeno IV (Livro III) "Supostas em repouso as estrelas fixas, os tempos periódicos dos cinco planetas primários e o do Sol em torno à Terra ou da Terra em torno ao Sol estão na razão da potência 3/2 das distâncias médias ao Sol." Com esse enunciado Newton incorporou a terceira lei de Kepler à sua teoria gravitacional.

196

Por analogia à expressão (32), podemos escrever a seguinte expressão para o caso do movimento de um planeta em órbita em torno do Sol:

𝑇𝑝2

4𝜋2

3 = 𝑔𝑅2 𝑅𝑃𝑆

(34)

𝑆

Mas, com 𝑔𝑅𝑆2 = 𝐺𝑚𝑆 . podemos reescrever a expressão acima:

𝑇𝑝2

4𝜋2

3 = 𝐺𝑚 𝑅𝑃𝑆

ou

𝑆

3 𝑇𝑝2 = 𝑘𝑅𝑃𝑆

(35)

4𝜋2

onde 𝑘 = 𝐺𝑚 é constante para todos os planetas em órbita em torno ao Sol. 𝑠

A expressão (35) confirma que podemos deduzir a terceira lei de Kepler a partir da teoria gravitacional de Newton, mostrando mais uma vez a compatibilidade da teoria de Newton com as leis empíricas obtidas por Kepler.

5. Como fica 𝒈 constante na teoria gravitacional de Newton? Sabemos que com a explicação do movimento dos projéteis desenvolvida por Galileu, foi atribuída uma aceleração constante 𝑔 de queda dos corpos. Ao mesmo tempo, a teoria gravitacional de Newton estabelece que a aceleração gravitacional de Newton varia com o inverso do quadrado da distância. Não deixa de haver aqui uma certa incompatibilidade entre as duas explicações. Porém, podemos verificar numericamente que os resultados concordam entre si.

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = Portanto, 𝑔 =

𝑚𝑇 𝑚𝐶 2 𝑅𝑇𝐶

= 𝑚𝐶 𝑔.

𝐺𝑚 𝑇 ⁄𝑅 2 , onde 𝑅𝑇𝐶 = 6.400 𝑘𝑚 + ℎ, e ℎ é a altura do corpo 𝑇𝐶

com relação à superfície terrestre. Como ℎ é muito menor que 6400 𝑘𝑚, podemos dizer que g é praticamente constante, concordando com o resultado de Galileu. Testemunhamos com esse tipo de procedimento o nascimento da mecânica.

197

6. Newton procura explicar o fenômeno das marés. Já comentamos, através de uma citação, que Kepler supunha que a Lua exercia alguma ação sobre as águas dos oceanos, embora não possuísse uma concepção gravitacional. Galileu procurou explicar o fenômeno das marés. Ele imaginava que uma possível combinação dos dois movimentos terrestres, ou seja, o movimento orbital da Terra em torno ao Sol e sua rotação diária em torno de seu próprio eixo, poderiam provocar sacudidas na Terra de tal forma que as águas do mar ora se ergueriam ora baixariam. Ele não aceitava hipóteses, como a de Kepler, que atribuíam ao Sol ou à Lua esse fenômeno. Stephen Mason, comentando esta posição, diz que Galileu: "Rechaçou a ideia de que o Sol e a Lua provocavam as marés, pois isso implicava que os corpos celestes eram superiores à Terra e influíam sobre os acontecimentos terrestres, doutrina à qual ele era muito contrário. Contudo, sua teoria exigia a existência de uma maré diária e não duas, como se observa. Além do mais, contradizia o princípio de inércia segundo o qual os corpos da Terra deveriam compartilhar seus movimentos." 201 Coube a Newton formular uma primeira explicação científica convincente do fenômeno das marés, atribuindo seu efeito principalmente à atração gravitacional da Lua sobre os mares. Newton também atribuiu ao Sol tal papel se bem que de magnitude bem menor que aquele desempenhado pela Lua.

201

MASON, Stephen F. op. cit., nota 178, pág 52.

198

Figura 42 Como podemos perceber pela Figura 42, o modelo de Newton para as marés era bastante simples. No lado da Terra voltado para a Lua a força gravitacional desta sobre as águas do mar é aproximadamente inversamente proporcional ao quadrado de 59𝑅𝑇 , maior que a força exercida sobre a parte sólida da Terra que poderia ser considerada proporcional ao inverso do quadrado de 60𝑅𝑇 . É como se as águas do mar fossem puxadas para fora da Terra. Do lado contrário da Terra com relação à Lua, a força gravitacional desta sobre as águas do mar é aproximadamente inversamente proporcional ao quadrado de 61𝑅𝑇 , menor do que a força gravitacional da parte sólida da Terra. O efeito aproximado é o da Terra "afastar-se" das águas e estas ficam mais elevadas nessa parte da superfície terrestre. A explicação contida no modelo de Newton previa assim duas marés simultâneas nos lados opostos da Terra, o que se verifica na realidade. Além do mais, devido à rotação da Terra em torno de seu eixo tais fenômenos voltam a se repetir 12 horas depois. É preciso observar também que, devido à rotação da Terra e a efeitos do atrito viscoso da água com a superfície da Terra e com ela própria, os máximos das marés

199

nunca ocorrem exatamente sobre a reta que une os centros da Terra e da Lua, isto é, ocorrem algumas horas após a passagem da Lua através do meridiano local. Newton também concluía com seu modelo que as maiores marés ocorriam durante a Lua cheia e a Lua nova. Procure explicar este fenômeno.

10.8. À guisa de conclusão sobre os "Principia". Vimos nesta breve análise da construção do princípio da gravitação universal que Newton realizou uma síntese múltipla da física de sua época. Em primeiro lugar, Newton utilizou suas leis do movimento acopladas às duas primeiras leis de Kepler para dar significado físico à força de atração central, generalizando a aplicabilidade da segunda lei de Kepler, incluindo até o movimento retilíneo uniforme. Em segundo lugar, Newton conseguiu deduzir a terceira lei de Kepler de sua hipótese gravitacional. Em terceiro lugar, oferece uma explicação física para a constância da aceleração gravitacional nas proximidades da superfície da Terra, como prevista pelos trabalhos de Galileu. Em quarto lugar, Newton sintetiza num mesmo princípio universal fenômenos terrestres (a queda de corpos) e fenômenos celestes (a "queda" da Lua). Analisamos também como o próprio Newton conseguiu ser bem sucedido na aplicação de sua teoria gravitacional para resolver uma série de problemas que perturbavam os físicos contemporâneos.

200

Capítulo 11 - Triunfos da mecânica newtoniana depois de Newton. Certamente a construção do princípio da gravitação universal e sua articulação efetuada pelo próprio Newton, por meio da solução dada ao movimento da Lua em torno da terra, da interpretação da "queda" da Lua em direção à Terra, da obtenção das leis de Kepler e da explicação das marés, por exemplo, já seriam suficientes para constatar a importância do empreendimento newtoniano e a genialidade de seu autor. Essa constatação será evidenciada se acrescentarmos a análise de alguns eventos que ampliam ainda mais o alcance do princípio de gravitação estabelecido por Newton. Tais sucessos atravessaram os três séculos que se sucederam à publicação dos Principia.

11.1. Determinação de G. Todos os exemplos de aplicação do princípio da gravitação universal de Newton, acima apresentados, não necessitavam do conhecimento numérico da constante gravitacional G202. Newton tinha plena consciência da quase impossibilidade de determinar o valor numérico preciso dessa constante dada a enorme dificuldade em medir forças gravitacionais diretamente, a não ser no caso de interação de corpos próximos à superfície da Terra quando a força gravitacional se confunde com o próprio peso. Mesmo assim, neste caso de interação com a Terra, a massa desta não é conhecida 203.

202

Deve-se notar que as constantes universais desempenham um papel fundamental na construção do conhecimento em Física. A constante gravitacional de Newton 𝐺 coloca-se ao lado de outras constantes universais, tais como a velocidade da luz 𝑐, fortemente vinculada à teoria da relatividade de Einstein, e a constante de ação de Planck ℎ, básica para compreensão da mecânica quântica. 203

OREAR, J, no seu livro didático Fundamentos da Física (Livros Técnicos Científicos Ed., Rio de Janeiro, 1981, pág.58), afirma que Newton teria calculado aproximadamente um valor numérico para G, supondo a densidade média da Terra 𝜌 = 5 × 103 𝑘𝑔⁄𝑚3 . Este número diferiria em cerca de 10% do valor real da densidade. Daí, Newton teria calculado a massa da Terra por meio do produto dessa 4 densidade pelo volume da Terra, ou seja, 𝑀𝑇 = 𝜌 (3 𝜋𝑅𝑇3 ) . Substituindo o valor encontrado na expressão 𝐺 =

𝑔𝑇𝑇2 𝑀𝑇

, Newton teria obtido o seguinte valor para a constante universal da gravitação: 𝐺 =

201

Para obter o valor de G seria necessário conhecer a intensidade da força gravitacional entre dois corpos quaisquer manipuláveis, e aí surgia outro problema: as forças de interação gravitacional são extremamente fracas. Assim, a determinação do valor de G dependia do conhecimento dos valores de: i.

força gravitacional entre os corpos

ii.

massas dos corpos

iii.

distância entre os dois corpos.

O problema se concentrava, portanto, na determinação da força gravitacional. Uma possibilidade geria utilizar um dispositivo como o reproduzido na Figura 43.

Figura 43. Um possível esquema para medir forças gravitacionais Apenas no final do século XVIII, entre os anos 1797 e 1798, portanto mais de um século depois da publicação dos Principia, o exímio físico inglês Henry Cavendish (1731-1810), que realizou também importantes experimentos em eletricidade. Ele conseguiu medir a constante gravitacional G, com grande precisão. Porém, como ele conseguiu medir a força gravitacional? Cavendish utilizou um aparato experimental muito sensível, que consistia basicamente de uma balança de torção construída com um fio de fibra de quartzo do

7,35 × 10−11 𝑁 ∙ 𝑚2 ⁄𝑘𝑔2 , que seria 10% maior que o valor atual dessa constante. No entanto, Orear não indica a fonte desse cálculo de Newton.

202

qual é suspensa uma barra contendo duas esferas de massa conhecida m, como mostra a Figura 44.

Figura 42. Esquema do aparato experimental de Cavendish Aproximando à mesma distância de cada das esferas de massa m, outras duas esferas de massa conhecida M, as forças gravitacionais entre as mesmas provocam um torque que torce o fio de um certo ângulo. Para facilitar a medida desse ângulo, adaptase um pequeno espelho ao pêndulo sobre o qual se faz incidir um feixe luminoso que é projetado sobre um anteparo provido de uma escala. Como o pêndulo havia sido calibrado previamente, a medida precisa desse desvio angular permite a determinação torque e, consequentemente, da força gravitacional. Cavendish obteve com esse procedimento o valor da constante gravitacional 𝑮 = 𝟔, 𝟕 × 𝟏𝟎−𝟏𝟏 𝑵 ∙ 𝒎𝟐 ⁄𝒌𝒈𝟐 As determinações contemporâneas dessa constante aproximam-se bastante desse valor. Conhecendo-se o valor da constante gravitacional ampliou-se o espectro de aplicação do princípio universal da gravitação de Newton, como veremos a seguir.

11.2. Determinação dg massa da Terra. Um valor aproximado da massa da Terra foi determinado pela primeira vez, em 1774, pelo astrônomo inglês Nevil Maskelyne (1732-1811). Ele mediu o desvio de um

203

fio de prumo, com relação à vertical, dos dois lados de uma montanha de granito bastante íngreme. Depois determinou a massa da montanha a partir de uma estimação de seu volume e da densidade do granito. Finalmente, determinou a massa da Terra comparando a atração terrestre sobre os fios de prumo com a da montanha204. Em 1798, de posse do valor da constante gravitacional 𝐺 , obtido com o procedimento descrito na seção anterior, Henry Cavendish pode finalmente determinar um valor mais preciso para a massa da Terra. Sendo a força gravitacional entre a Terra e um corpo de massa m próximo à sua superfície, como estudamos anteriormente, dada por 𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = 𝐺

𝑚𝑚𝑇 𝑅𝑇2

, podemos obter a massa da Terra:

𝑚𝑇 =

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 𝑅𝑇2 𝐺𝑚

(36)

A força gravitacional, nas proximidades da superfície da Terra, também pode ser determinada por:

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = 𝑚𝑔

(37)

Substituindo (37) em (36), obtém a expressão para a massa da Terra:

𝑚𝑇 =

2 𝑔𝑅𝑇 𝐺

(38)

Utilizando os valores 𝑔 = 9,8 𝑚⁄𝑠 2 e 𝑅𝑇 = 6,4 × 106 𝑚, obtemos a massa da Terra, 𝑚 𝑇 = 6 × 1024 𝑘𝑔. 11.3. Determinação da massa do Sol. Podemos também calcular a massa do Sol utilizando a terceira lei de Kepler que, no caso de um planeta em órbita em torno do Sol, pode ser expressa por:

204

MASON, Stephen F. Historia de las ciencias. Vol. 3, Alianza Editorial, Madrid, 1985, págs. 45/46.

204

3 𝑇𝑝2 = 𝑘𝑅𝑃𝑆 ,

Portanto, 𝑚𝑠

=

onde

4𝜋2

𝑘 = 𝐺𝑚 . 𝑠

4𝜋2 𝐺𝑘

A constante 𝑘 pode ser determinada a partir do movimento orbital da Terra em torno do Sol, onde: 𝑇𝑇 = 1 𝑎𝑛𝑜 = 3,16 × 107 𝑠𝑒𝑔 e 𝑅𝑃𝑆 = 1,49 × 1011 𝑚 . Daí, substituindo o valor de 𝑘 na expressão acima, obtemos para a massa do Sol o valor:

𝑚𝑠 ≅ 2 × 1030 𝑘𝑔.

11.4. Descoberta de novos planetas. Os mesmos seis planetas conhecidos desde a mais longínqua antiguidade, inclusive pelos filósofos gregos, e que inspiraram os sonhos pitagóricos de Kepler, continuavam a ser os únicos conhecidos à época de Newton e durante o século seguinte à publicação dos Principia. Não era, e não é, difícil detectar planetas que não são visíveis a olho nu. Por isso, apenas em 1781, o planeta Urano foi descoberto, pelo astrônomo amador alemão, William Hersche, que viveu entre 1738 e 1822. Thomas Kuhn afirma que cerca de duas dezenas de observações desse planeta, registradas entre 1690 e 1781, foram inicialmente consideradas como devidas a uma estrela. A sua aparente imobilidade em observações efetuadas em noites sucessivas levava a essa identificação. Nesse ano de 1781 e nos anos seguintes, observações realizadas com telescópios de reflexão gigantes permitiram a Herschel anunciar a descoberta de um novo cometa! Meses depois, dado o insucesso de ajustar as observações à órbita de um cometa, Herschel chegou à conclusão de que um étimo planeta fora descoberto. Assim, até os corpos celestes estudados há muito tempo começavam a ser vistos de forma diferente no final do século XVIII. Thomas Kuhn analisa esse tipo de acontecimento com estas palavras:

205

"A própria facilidade e rapidez com que os astrônomos viam novas coisas ao olhar para objetos antigos com velhos instrumentos pode fazer com que nos sintamos tentados a afirmar que, após Copérnico, os astrônomos passaram a viver num mundo diferente” 205 Podemos nos perguntar por que demorou tanto tempo para que fossem descobertos novos planetas. Um dos motivos foi aquele destacado por Thomas Kuhn. Apenas com a mudança da visão de mundo, provocada pela revolução científica que se iniciara Copérnico mas que tem na síntese newtoniana o seu grande triunfo, é que astrônomos começaram a procurar mudanças no novo céu, começaram a busca de novos planetas e asteroides. Porém, havia também outros motivos. Durante muito tempo, todos os cálculos realizados envolviam diversas aproximações, procedimento típico de qualquer área da física clássica e contemporânea. Por exemplo, consideravam-se muitas vezes as órbitas planetárias como se fossem circulares quando rigorosamente não eram, distribuição homogênea de matéria ou densidade constante, etc. Uma outra aproximação comum, nos cálculos que eram efetuados, era a não consideração de interação entre de dois corpos. Isto é, não se consideravam as forças gravitacionais devidas às interações com outros planetas do sistema solar quanto era estudada e interação da terra com o Sol, por exemplo. Aos poucos, durante o século XVIII e XIX, foram sendo desenvolvidos artifícios matemáticos que permitiam resolver problemas de interação entre diversos corpos. Esses artifícios receberam o nome de cálculo de perturbações. Foi exatamente pelo conhecimento de perturbações na órbita de determinados planetas que outros foram descobertos.

205

KUHN, T. S., op. Cit., nota 3, pág. 192.

206

Essa foi uma das razões da demora em se descobrir os novos planetas do sistema solar. A outra estava relacionada com a necessidade de melhores equipamentos de observação. Tema, aliás, muito presente na contemporaneidade da astrofísica. Apresento, como exemplo de utilização desse método, a descoberta do planeta Netuno. Uma série de irregularidades observadas na órbita de Urano, quando comparadas com as previsões teóricas baseadas na teoria gravitacional de Newton, não explicadas pelas interações com os demais planetas conhecidos, levaram os matemáticos e astrônomos a procurar "responsabilizar" eventual candidato a planeta localizado atém da órbita de Urano. Havia também alguns físicos que duvidavam quanto à possibilidade de aplicação da lei de Newton para distâncias tão afastadas do Sol. Em 1845, o astrônomo e matemático inglês John Adams (1819-1892) e, em 1846, o matemático e astrônomo francês J, J, Leverrier (1811-1877), comparando a órbita do planeta Urano com resultados teóricos baseados em seus cálculos, previram a existência de um novo planeta, indicando a posição desse novo corpo celeste. Em 23 de setembro desse mesmo ano, o astrônomo alemão J. G. Galle (1812-1910), do Observatório de Berlin, apontando seu telescópio para a direção que havia sido sugerida por Leverrie, descobriu o novo planeta a cerca de 1º da posição predita. Nascia assim o planeta Netuno. Foi mais um grande triunfo da lei da gravitação universal de Newton. No começo do século XX, os astrônomos norte-americanos William Henry Pickering (1858-1938) e Percival Lowell (1855-1916) realizaram observações mais refinadas, e novas perturbações foram detectadas nas órbitas dos planetas recém descobertos o que os levou à hipótese da existência de mais um planeta. Assim, em 1930, o planeta Plutão foi descoberto pelo astrônomo norte-americano Clyde Tombaugh (1906-1997). Moysés Nussenzweig faz o seguinte comentário sobre a descoberta dos planetas: "Os raios das órbitas dos planetas, que Kepler também havia querido deduzir, dependem das condições de sua formação, e talvez estejam

207

ligados ao problema matemática extremamente difícil e ainda não resolvido da estabilidade do Sistema Solar.”206

11.5. Uma viagem para além do sistema solar. As observações cada vez mais cuidadosas do espaço sideral não pararam mais. Por exemplo, descobriram-se estrelas duplas, par de estreias que giram uma em relação à outra: como o par Sirius e Sirius B, descoberto em 1862. Para esses pares de estrelas também é aplicável o princípio da gravitação universal. Lembrando que Sirius está a uma distância aproximada de 8,7 anos luz da Terra. ampliou-se enormemente o alcance de aplicação da teoria newtoniana. Se Aristóteles estivesse vivo teria oportunidade de verificar quão diferente da sua é a descrição do universo após o advento da física newtoniana. Nem as estrelas fixas são fixas! Descobriu-se que as estrelas também estão em movimento, em particular o nosso sistema solar, O Sol tem uma velocidade orbital de aproximadamente 230 km/seg. Até a segunda década do XX, os astrônomos acreditavam que a Via Láctea fosse um sistema relativamente pequeno, situando-se o Sol próximo de seu centro. O astrônomo norte-americano Harlow Shapley (1885-1972), em 1917, estabeleceu as primeiras medidas razoavelmente seguras do tamanho da Via Láctea. Ele determinou que o Sol devia situar-se a cerca de trinta mil anos-luz do centro da Via Láctea. Estabeleceu também uma estimativa de cem mil anos-luz para o diâmetro da galáxia. Suas observações levaram-no à conclusão de que havia outros corpos que pareciam estar em órbita junto com a Via Láctea. Em 1924, o astrônomo norte-americano Edwin

206

NUSSENZWEIG, H. Moysés. Curso de Física Básica. 1 - Mecânica. Ed. Edgar Blücher, São Paulo, 1988. pág. 335. Esse volume da coleção de livros de Física básica de Moysés Nussenzweig é uma raridade entre manuais universitários: ele apresenta várias passagens da construção do conhecimento em física baseado em argumentos históricos. Recomento fortemente a leitura do capítulo 10 desse livro, particularmente as seções 10.6, 10,7 e 10,8, págs. 312 a 338.

208

Hubble (1889-1953) provou que esses corpos eram outras galáxias que se afastavam rapidamente de nosso sistema solar. A Figura 45 apresenta um esboço da forma da nossa galáxia, com suas dimensões aproximadas e a localização do Sol, de acordo com aquilo que havia sido determinado por Shapley.

Figura 45 Esboço das dimensões da Via Láctea Com essas dimensões e conhecendo a velocidade do Sol em torno do eixo galáctico, foi possível estimar a massa de nossa galáxia, levando-se em consideração toda a massa que está localizada a distâncias menores que a distância do a esse eixo. Lembramos que, aplicando um dos teoremas de Newton, podemos desprezar o efeito gravitacional do restante da massa da galáxia situada além do Sol. Pela equação (31), página 195, podemos calcular a força centrípeta que atua sobre o Sol devido a essa massa galáctica:

𝐹𝑐 = 𝑚𝑠

4𝜋2 𝑅 𝑇2

.

onde R=30.000 anos-luz e 𝑇 = 2 × 108 anos (ou seja, 200 milhões de anos!). A força gravitacional é expressa da seguinte forma:

𝐹𝑔𝑟𝑎𝑣 = 𝐺

𝑚𝑠 𝑚 𝐺 𝑅2

.

209

Da igualdade entre essas duas expressões, obtemos a expressão da massa da galáxia:

𝑚𝐺 =

4𝜋2 𝑅 3 𝐺𝑇 2

.

com a qual calculamos o valor numérico da massa da Via Láctea: 𝑚𝐺 ≅ 1043 𝑘𝑔. Como outras medidas levavam a uma avaliação da massa da galáxia de cerca da metade desse valor, pensou-se que a determinação através da expressão gravitacional estivesse equivocada. Porém, pelo que tudo indicava seta não era a realidade, pois aparentemente ela estaria medindo algo mais do que a matéria visível. Dessa forma, foi se formando a hipótese, cada vez mais forte, da existência da matéria escura, que seria uma massa não observável do universo, imaginada inicialmente talvez composta de poeira interestelar, buracos negros e outras massas não identificadas. Como vemos a massa dá muito pano para manga, como podemos perceber da seguinte citação. "Só 5% da massa do universo é composta pelo tipo de material de que os seres humanos são formados – matéria bariônica (moléculas, átomos, prótons, elétrons e assim por diante), Cerca de 35% têm a forma ainda desconhecida de matéria escura fria, que (assim como a matéria bariônica) pode ser atraída pela gravidade e formar halos em volta das galáxias, assim como poderia também formar "galáxias", "estrelas" e "planetas" de matéria escura, que não emitem luz. Os restantes 60% da massa do universo têm a forma também desconhecida de energia escura (segundo a denominação dada pelos cosmólogos), que está presente em todo o universo e possui enorme tensão”. 207

207

THORNE, Kip S. As dobras do espaço-tempo e o mundo quântico. In: HAWKING, Stephen W. at all. O futuro do espaço-tempo. Companhia das São Paulo, 2005, pág. 156.

210

Capítulo 12. Mais alguns tópicos gravitacionais. Teríamos muito mais a estudar sobre o tema da gravitação. Muito mais aplicações poderiam ser aqui introduzidas. Porém, dado o objetivo desta introdução ao tema da Gravitação, que é o de apresentar a evolução do tema relacionado com o estudo dos graves e dos corpos celestes desde as primeiras incursões, dos antigos gregos, que levaram ao estudo de porque os corpos caem acelerados e sobre o enigmático movimento constante dos corpos celestes, até o advento do princípio da gravitação universal de Newton, creio que estamos chegando ao final provisório deste gravitar histórico/cultural em torno da gravitação. Mas antes do fecho há ainda algumas coisas a acrescentar. Assim, vamos analisar algumas outras questões relacionadas com a teoria da gravitação.

12.1. Campo gravitacional. Até aqui nós tratamos a interação gravitacional entre dois corpos quaisquer como uma ação à distância de um corpo sobre o outro. Esse foi o procedimento adotado por Newton e que foi criticado, entre outros motivos, pelo fato de que tal ação pressupunha a existência de um meio que possibilitasse tal interação. Aliás, no seu livro Óptica, Newton, nas questões que estão no apêndice desse livro, lança a hipótese da existência de uma espécie de matéria etérea que poderia desempenhar o papel de meio para propagação da gravidade, da luz, do calor, etc. É o precursor do éter luminífero de Maxwell. Para contornar esse problema podemos utilizar uma outra conceituação útil para estudar a interação gravitacional. É o conceito de campo. Podemos considerar que a presença de qualquer massa numa determinada região do espaço modifica-o pela presença de um campo gravitacional. Praticamente evidencia-se a presença do campo gravitacional pela medida da sua ação sobre qualquer outro corpo nele situado.

211

Por exemplo, diz-se que a Terra provoca um campo gravitacional no espaço ao seu redor pois qualquer corpo situado nas suas proximidades sofre a ação de uma aceleração 𝑔. A grandeza g recebe o nome de intensidade do campo gravitacional. A intensidade do campo gravitacional é dada pela razão entre a força gravitacional local e a massa do corpo. Como a intensidade do campo gravitacional terrestre não varia com o tempo dizse que o campo gravitacional constitui um campo estacionário. Na física trabalhamos com outros tipos de campos: campo elétrico e campo magnético, por exemplo. Albert Einstein (1879-1955) sonhava com uma teoria que unificasse as várias espécies de campo conhecidas. Morreu sem ver realizado tal sonho que ainda parece muito distante de ser concretizado, embora ainda continue uma preocupação de muitos físicos contemporâneos.

12.2. A velocidade de escape da Terra Vamos definir algumas grandezas físicas úteis para efetuar alguns cálculos gravitacionais. Trabalho: se uma partícula é deslocada de uma distância x sob a ação de uma força constante F que atua na direção do movimento dizemos que a força F exerce um trabalho que é calculado pelo produto da força 𝐹⃗ pelo deslocamento x. Isto é:

𝑊 = 𝐹𝑥

(39)

Se a força 𝐹⃗ faz um ângulo 𝜃 com a direção do movimento, apenas a componente da força nessa direção realiza trabalho. Essa componente é calculada pela expressão 𝐹𝑐𝑜𝑠𝜃.

212

Figura 46 O trabalho de uma força é igual ao produto da componente da força na direção do deslocamento pela distância percorrida. O trabalho da força F será determinado por

𝑊 = 𝐹𝑥 cos 𝜃

(40)

Se considerarmos a força e o deslocamento como grandezas vetoriais é fácil perceber que o trabalho da força F pode ser representado pelo produto escalar entre 𝐹⃗ e 𝑥⃗, ou seja

𝑊 = 𝐹⃗ ∙ 𝑥⃗

(41)

Se a força 𝐹⃗ for variável podemos calcular o trabalho por ela realizado num elemento infinitesimal dx por

𝑑𝑊 = 𝐹⃗ ∙ 𝑑𝑥⃗

213

e o trabalho ao longo de uma dada trajetória será dado por:

𝑊 = ∫𝐶 𝐹⃗ ∙ 𝑑𝑥⃗

(42)

No caso do campo gravitacional o trabalho para elevar corpo da superfície da terra até uma altura h pode ser expresso por

𝑊 = 𝑚𝑔ℎ considerando 𝑔 constante. Se na expressão (41) utilizarmos a segunda lei de Newton expressa por

𝐹=

𝑑𝑝 𝑑𝑡

𝑑𝑣

= 𝑚 𝑑𝑡 .

o trabalho da força F será dado por 𝑑𝑥

𝐹𝑑𝑥 = 𝑚𝑑𝑣 𝑑𝑡 = 𝑚𝑣𝑑𝑣. e finalmente

𝑊=

2 ∫1 𝐹𝑑𝑥

=

1

2 ∫1 𝑚𝑣𝑑𝑣 1

=

𝑊 = 2 𝑚𝑣22 − 2 𝑚𝑣12

2 2| 𝑚𝑣 . 2 1 1

(43)

214

Ou seja: o trabalho realizado sobre urna partícula por uma determinada força, ou resultante de forças, é igual à variação de sua energia cinética. A conclusão acima é aplicada no caso de forças conservativas, ou seja, aquelas em que o trabalho realizado independe do particular caminho seguido pelo corpo para ir de um ponto a outro de sua trajetória. Por exemplo, podemos verificar que para elevar um corpo de uma certa altura h, o trabalho 𝑚𝑔ℎ realizado pela força gravitacional não depende do caminho utilizado para chegar até essa altura. Isso é ilustrado de modo simplificado na Figura 47.

Figura 47 O trabalho necessário para ir até a altura ℎ indo pelo caminho vertical representado pelo segmento ̅̅̅̅ 𝑃𝑄 é igual ao trabalho realizado através do caminho de ̅̅̅̅ , 𝐶𝐷 ̅̅̅̅ , …, 𝐺𝑄 ̅̅̅̅ , etc. Isso é assim porque, peia aplicação da definição, "degraus" 𝐴𝐵 representada pela expressão (41), o trabalho é nulo nos trechos horizontais ̅̅̅̅ 𝐵𝐶 , ̅̅̅̅ 𝐷𝐸 , etc, pois a força gravitacional nos mesmos é ortogonal ao caminho percorrido.

215

Assim, como ̅̅̅̅ 𝑃𝑄 = ̅̅̅̅ 𝐴𝐵 + ̅̅̅̅ 𝐶𝐷 + ̅̅̅̅ 𝐸𝐹 + ̅̅̅̅ 𝐺𝑄 = ℎ , chegamos o resultado que queríamos. Desta forma, a força gravitacional realiza um trabalho que independe do caminho e só depende dos pontos inicial e final considerados. Por outro lado, a força gravitacional em qualquer como de massa 𝑚𝑐 em função da distância 𝑥 ao centro da Terra é expressa por:

𝐹=𝐺

𝑚𝑇 𝑚𝐶

(44)

𝑥2

Utilizando novamente a expressão (42), podemos calcular o trabalho necessário para levar um corpo de massa 𝑚𝑐 desde a superfície da Terra, 𝑅𝑇 , uma distância qualquer, 𝑅:

𝑊=

𝑅 𝑚 𝑚 ∫𝑅 𝐺 𝑥𝑇2 𝑐 𝑑𝑥 𝑇

=

𝑅 𝑑𝑥 𝐺𝑚 𝑇 𝑚𝑐 ∫𝑅 𝑥2 𝑇 1

1

1 𝑅

= 𝐺𝑚𝑇 𝑚𝑐 [− 𝑥| .

𝑊 = 𝐺𝑚𝑇 𝑚𝑐 (𝑅 − 𝑅)

𝑅𝑇

(45)

𝑇

Agora se quisermos que o corpo de massa 𝑚𝐶 se afaste da Terra sem ais retornar, devemos calcular o trabalho necessário para levá-lo até o infinito, isto é, devemos substituir 𝑅 por ∞ . Assim o trabalho necessário para fazer um corpo escapar da gravidade terrestre será dado por 𝑒𝑠𝑐 𝑊𝑔𝑟𝑎𝑣 =𝐺

𝑚𝑇 𝑚𝐶 𝑅𝑇

(46)

Então, como a força gravitacional é conservativa o trabalho realizado por essa força também é numericamente igual à variação da energia cinética. Neste caso, imaginando que o corpo parta com uma velocidade inicial 𝑣𝑒 da superfície da Terra e que tenda para um ponto no infinito aproximando-se com velocidade zero, a variação de sua energia cinética será dada por: 1

𝐸𝐶 = 2 𝑚𝑣𝑒2

(47)

216

Igualando as duas expressões (46) e (47), podemos obter o valor mínimo da velocidade que deve ser fornecida a um corpo na superfície da Terra a fim de que se liberte da gravidade terrestre: 1

2 𝑚𝑣 =𝐺 𝑒 2

𝑚𝑇 𝑚 𝐶 𝑅𝑇

.

Daí, obtemos a velocidade 𝑣𝑒 :

𝑣𝑒 = √

2𝐺𝑚𝑇 𝑅𝑇

(48)

Essa velocidade é convencionalmente denominada velocidade de escape. Substituindo os valores conhecidos das grandezas que aparecem na expressão (48), obtemos o valor numérico da velocidade de escape

𝑣𝑒 ≅ 11,2 𝑘𝑚⁄𝑠. George Gamow (1904-1968), importante físico do século XX e autor de inúmeros trabalhos de divulgação científica, escreveu um interessante comentário a respeito da velocidade de escape e da atmosfera, que não foi levada em consideração nos cálculos apresentados acima: "Assim, para comunicarmos a esse objeto um total de energia suficiente para que ele ultrapasse o limite das forças gravitacionais terrestres, devemos satisfazer a seguinte condição: [𝑣𝑒 ≥ √2𝐺𝑇 𝑚 𝑇 ⁄𝑅𝑇 ] (…) A situação complica-se, é lógico, por causa da presença da atmosfera terrestre. Se alguém disparasse um projétil de artilharia com a necessária velocidade de escape a partir da superfície terrestre, como foi descrito em A viagem ao redor da Lua, uma fantasia do famoso escritor Julio Verne, a cápsula jamais teria chegado ao seu destino. Ao contrário da descrição feita por Julio Verne, tal projétil ter-se-ia fundido logo de saída com o calor desenvolvido pelo atrito com o ar, e os detritos teriam caído, pois teriam perdido toda energia. É aqui que aparecem as vantagens de um

217

foguete sobre um projétil de artilharia. Um foguete parte da plataforma de lançamento vagarosamente e vai ganhando velocidade gradativamente enquanto vai subindo. Desse modo, ele atravessa as camadas mais densas da atmosfera terrestre com velocidades para as quais o calor gerado por atrito ainda hão tem grande importância, e somente atinge sua velocidade máxima numa altitude em que o ar é suficientemente rarefeito para não causar nenhuma resistência significativa ao vôo.”208

12.3. Dois modos diferentes de medir massa? Estudamos nos capítulos anteriores que há dois modos distintos de calcular a aceleração de qualquer corpo em queda livre ou a aceleração responsável pela manutenção de um corpo em órbita em torno de outro: o modo dinâmico e o modo gravitacional. O modo dinâmico permite que calculemos a aceleração que é responsável por alterar a inércia, ou movimento uniforme, que um determinado corpo teria na ausência de força a ele aplicada. Assim, pela 2ª lei de Newton teríamos uma força atuando na direção da aceleração e a razão entre a força aplicada e a decorrente aceleração seria a massa do corpo, que vamos representar, neste modo, por 𝑚𝑖 . Assim, 𝐹

𝑚𝑖 = 𝑎

(49)

O modo gravitacional permite que se calcule a aceleração gravitacional, ou melhor, a intensidade do campo gravitacional, que provoca um semelhante ao acima descrito. Assim, novamente peia 2a lei de Newton, teríamos uma força gravitacional atuando na direção dessa aceleração e a nova razão entre a força gravitacional e o seu

208

GAMOW, George. Gravidade. Editora Universidade de Brasília, 1965, págs. 83/84. Original inglês de 1961).

218

decorrente efeito de aceleração nos daria uma outra massa do corpo, que vamos representar por 𝑚𝑔 . Assim:

𝑚𝑔 =

𝐹𝑔

(50)

𝑔

É claro que no caso, por exemplo, de um corpo em queda livre teremos 𝑎 = 𝑔. Portanto, chegamos à definição de duas massas: a massa inercial, 𝑚𝑖 , e a massa gravitacional, 𝑚𝑔 . Embora Newton já houvesse mostrado preocupação com essa possível diferenciação entre as massas, essas denominações só surgiram com os trabalhos de Einstein, publicados após 1914. Veremos um pouco mais adiante algumas das contribuições de Albert Einstein para o estabelecimento de mais um gravitacional baseado nessa diferenciação. Como será que elas se relacionam? Quem percebeu isso pela primeira vez? Qual a utilidade física de tal diferenciação? Vamos procurar respondo a essas questões na sequência.

12.4. Newton e as duas massas Sabemos que o período de um pêndulo simples de comprimento 𝑙 pode ser calculado através da expressão 𝑙

𝑇 = 2𝜋√𝑔. Vamos recalcular esse mesmo período levando em consideração a diferenciação entre as duas massas, como descritas no item anterior. Consideremos

pêndulo simples

como

esquematizado na

Figura

48.

Consideremos um sistema de eixos ortogonais com o 𝑒𝑖𝑥𝑜 𝑦 na direção do fio e o 𝑒𝑖𝑥𝑜 𝑥 ortogonal coincidindo com a direção da aceleração tangencial do pêndulo. O vetor 𝑚𝑔 representa a força gravitacional (peso) expressa com a massa gravitacional.

219

Figura 48 ⃗⃗ representa a tensão no fio que sustenta a massa do pêndulo. Esta sofre O vetor 𝑇 uma aceleração que, com a 2ª lei de Newton nos permite escrever a força 𝑚𝑖 𝑎. Assim podemos escrever a seguinte igualdade: 𝑚𝑖 𝑎 = 𝑚𝑔 𝑔 𝑠𝑒𝑛 𝜃

. Como

𝑥

𝑠𝑒𝑛 𝜃 = 𝑙 , essa equação pode ser assim escrita: 𝑑2 𝑥

𝑥

𝑚𝑖 𝑑𝑡 2 = 𝑚𝑔 𝑔 𝑙 . Representando

𝑚𝑔 𝑔 𝑙

= 𝑘 , essa equação é da forma 𝑚𝑎 = 𝑘𝑥 que apresenta a 𝑚

solução geral para o período 𝑇 = 2𝜋√ 𝑘𝑖 . No nosso caso esse 𝑚 é a massa inercial. Assim, a solução do período do pêndulo é a seguinte:

220

𝑚𝑙

𝑇 = 2𝜋√𝑚 𝑖𝑔. 𝑔

Desta forma, de posse dessa expressão para o pêndulo simples, podemos estudar a relação entre as massas inercial e gravitacional. Por exemplo, diferentes substâncias de mesma massa gravitacionais poderiam ser colocadas num recipiente de mesma forma na extremidade do fio 𝑙 constituindo o pêndulo simples. Qualquer variação no período do pêndulo seria devida à diferença entre as massas inerciais. Como o período apresenta sempre o mesmo valor concluímos que a razão entre as massas é constante ou que 𝑚𝑔 = 𝑚𝑖 . Newton descreve as substâncias que ele teria submetido a um teste semelhante ao do pêndulo acima descrito. Eis um pequeno trecho da Preposição VI, Teorema VI, do livro terceiro do Principia. "Há muito tempo que outros têm observado que a queda de todos os graves em direção à Terra ocorre em tempos iguais; e pode-se registrar essa igualdade dos tempos de maneira mais exata mediante os pêndulos. Tratei de examinar isso com ouro, prata, chumbo, vidro, areia, sal comum, água, madeira e trigo.”209 Ou seja, Newton mostra que corpos de diferentes substâncias sofrem a mesma ação gravitacional, isto é, os pesos são simplesmente proporcionais a quantidade de matéria. Ou seja, podemos dizer que para Newton as duas massas são totalmente equivalentes ou idênticas. Não desempenhariam nenhum papel mais sofisticado na sua elaboração da teoria gravitacional.

209

NEWTON, Isaac, op. cit., nota 194, pág. 631.

221

12.5. Einstein e as duas massas Quando estudava o princípio de relatividade de Galileu, isto é, aquele que afirma que todos os fenômenos naturais são regidos pelas mesmas leis gerais quando relacionadas a dois sistemas de referência 𝐾 e 𝐾´, onde 𝐾 é um sistema inercial e 𝐾′ desloca-se com movimento uniforme de translação com relação a 𝐾 , Einstein se defrontou com algo que para ele pareceu paradoxal: o que aconteceria se o sistema 𝐾′ fosse um sistema dotado de aceleração constante com relação a 𝐾? Para introduzir-nos nesse novo universo einsteiniano, nada melhor que seguir o pensamento do próprio Einstein através de um breve texto publicado em 1916, logo após ter ele formulado sua teoria geral da relatividade. Vamos a esse texto: “XX A igualdade da massa inercial e da massa gravitacional como um argumento para o postulado geral da relatividade Nós imaginamos uma grande porção do espaço vazio, bem distante de estrelas e das outras massas apreciáveis, de tal forma que temos diante de nós aproximadamente as condições requeridas pela lei fundamental de Galileu. É então possível escolher um corpo-de-referência Galileano para esta parte do espaço (mundo) relativo qual pontos em repouso permanecem

em

repouso

e

pontos

em

movimento

continuam

permanentemente em movimento retilíneo e uniforme. Como vamos imaginar uma caixa semelhante a uma sala com um observador dentro que está equipado com aparelhos. Gravitação naturalmente não existe para esse observador. Ele deve prender-se com cordas no piso, caso contrário o mais leve impacta contra o piso lhe causará uma elevação em direção ao teto da sala. No meio da tampa dessa caixa está fixado externamente um gancho com uma corda amarrada, e agora um “ser" (que tipo de ser não nos interessa) começa ã puxar essa corda com uma força constante. À caixa juntamente

222

com o observador começa se mover "para cima" com um movimento uniformemente acelerado. No curso do tempo suo velocidade alcançará enormes valores desde que nós estejamos vendo tudo isto de outro corpode-referência que não está sendo puxado com uma corda, Como será o homem caixa vê todo esse processo? À aceleração da caixa será transmitida para ele pela tenção do piso da caixa. Ele deve. portanto, perceber essa pressão por meio de suas pernas se ele não quiser permanecer estirado no chão da caixa. Ele está. então, de pé na caixa exatamente como qualquer um numa sala de uma casa na nossa Terra. Se ele soltar um corpo que ele tinha previamente em suas mãos, a aceleração da caixa não mais será transmitido para este corpo, e por essa razão D corpo se aproximará do piso da caixa com um movimento relativo acelerado. O observador depois se convencerá que a aceleração do corpo em direção ao piso da caixa é sempre de mesma magnitude, qualquer que seja o corpo que ele esteja usando nessa experiência. Confiando no seu conhecimento do campo gravitacional, o homem da caixa portanto chegará à conclusão de que ele e a caixa estão num campo gravitacional que é constante com relação ao tempo. Naturalmente ele ficará intrigado por um momento de parque a caixa não cai neste campo gravitacional. Justamente então, contudo, ele descobre o gancho no meio do tem da caixa e a corda que está amarrada nele, ele consequentemente chega à conclusão que a caixa está suspensa em repouso no campo gravitacional, Devemos rir do homem e dizer que ele está equivocado em sua conclusão? Não creio que devamos se quisermos nos manter consistentes; ao contrário, devemos admitir que seu modo de compreender a situação não viola nem a razão nem leis da mecânica. Mesmo que esteja sendo acelerado com relação ao "espaço Galileano" inicialmente escolhido,

223

podemos encarar a caixa como estando em repouso. Nós temos portanto boas razões para estender o princípio de relatividade para incluir corpos de referência que estão acelerados uns em relação aos outros, e como resultado nós ganhamos um argumento poderoso para o postulado generalizado da relatividade. Devemos notar cuidadosamente que a possibilidade deste modo de interpretação repousa sobre a propriedade fundamental do campo gravitacional de imprimir a todos os corpos a mesma aceleração, ou, o que dá no mesmo, na lei de igualdade das massas inercial e gravitacional. Se esta lei natural não existisse, o homem na caixa acelerada não poderia ter interpretado o comportamento dos corpos ao seu redor sobre a hipótese de um campo gravitacional, e ele não estaria justificado com base nas experiências em supor seu corpo-de-referência "em repouso ". Suponha que o homem no caixa fixe tuna corda na parte interna do teto, e que ele prenda um corpo na extremidade livre da corda. Como resultado disso, a corda ficará esticada de tal forma que o corpo permanecerá suspenso “verticalmente” para baixo. Se perguntarmos por uma opinião sobre a causa da tensão na corda. o homem na caixa dirá: “O corpo suspenso experimenta uma força para baixo no campo gravitacional, e esta é neutralizada pela tensão na curda, o que determina a magnitude da tensão na corda é a massa gravitacional do corpo suspenso”. Por outro lado, um observador que está situado livremente no espaço interpretará a condição da seguinte maneira: “A corda participa forçadamente do movimento acelerado da caixa, e ela transmite esse movimento para o corpo nela preso. A tensão na corda é justamente suficiente para efetuar a aceleração do corpo. O que determina a magnitude da tensão da corda é a massa inercial do corpo”. Guiado por esse exemplo, vemos que nossa extensão do princípio de relatividade implica na necessidade da lei da

224

igualdade das massas inercial e gravitacional. Portanto, nós obtivemos uma interpretação física dessa lei. A partir de nossas considerações da caixa acelerada notamos que uma teoria geral da relatividade deve produzir importantes resultados sobre as leis da gravitação. Na verdade, a busca sistemática da ideia de relatividade nos forneceu as leis satisfeitas pelo campo gravitacional. Antes de seguir adiante, contudo, devo alertar o leitor contra uma conceituação sugerida por estas considerações. Um campo gravitacional existe para o homem na caixa, a despeito do fato de que não havia tal campo para o sistema coordenado inicialmente escolhido. Agora podemos facilmente supor que a existência de campo gravitacional é sempre aparente. Poderíamos também pensar que, independentemente da espécie de campo gravitacional que pode estar presente, poderíamos sempre escolher outro corpo-de-referência tal que nenhum campo gravitacional exista relativo a ele. Isto é de maneira nenhuma verdade para todos os campos gravitacionais, mas apenas para aqueles que de formas bem especiais. É, por exemplo, impossível escolher um campo de referência tal que, como julgado a partir dele, o campo gravitacional da Terra (na sua totalidade) desapareça. Podemos agora apreciar porque o argumento que utilizamos, no final da seção XVIII, contra o princípio geral da relatividade, não é convincente210. É certamente verdade que o observador no trem experimenta um solavanco para frente como resultado da aplicação dos freios, e que ele reconhece nisto o não-uniformidade do movimento (retardamento) do

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Einstein refere-se aqui a um observador situado um trem que se desloca uniformemente e que, de repente, sofria uma desaceleração brusca devido à aplicação dos freios. Tudo indica que no referencial do trem acelerado essa condição de aceleração tinha toda a característica de um absoluto, violando assim qualquer ideia de uma generalização do princípio de relatividade.

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trem. Mas ele não é forçado por ninguém a referir esse solavanco a uma aceleração "real' (retardamento) do trem. Ele poderia também interpretar essa experiência como: "Meu corpo de referência (o trem) fica permanentemente em repouso. Com referência a ele, contudo, existe (durante o período de aplicação dos freios) um campo gravitacional que é dirigido para a frente e é variável com relação ao tempo. Sob a influência deste campo, a base da ferrovia junto com a terra move-se nãouniformemente num tal modo que sua velocidade original na direção retrógrada é continuamente reduzida.”211

12.6. Alguns comentários finais (?) Vimos na seção anterior como Einstein transforma uma aparente dádiva da natureza - a igualdade entre as massas inercial e gravitacional - num princípio físico da nova física. Isto principalmente porque Einstein generalizou tai princípio de equivalência para outras áreas da Física como, por exemplo, os fenômenos eletromagnéticos, particularmente a propagação da luz. Numa experiência imaginária com um foguete que se deslocava com movimento uniformemente acelerado num espaço livre de massas gravitacionais, Einstein imaginou um raio de luz atravessando transversalmente tal foguete passando através de placas detetoras de luz. As marcas nesses detetores mostrariam ponto de uma parábola, à semelhança do que ocorre com o movimento de um projétil num campo gravitacional. Com base nessa “experiência”, Einstein previu a inclinação de raios luminosos que passem muito próximos de fortes 211

EINSTEIN, Albert. Relativity – the special and the general theory. Methuen & Co., London, 12ª edição, págs. 66 a 70. (Original alemão de dezembro de 1916). Observação de novembro de 2006: quando estive revendo estas Notas de Aula, pretendia melhorar essa seção referente a uma breve introdução à relatividade geral de Einstein, inclusive traduzindo essa minha tradução desse capítulo do livro de Einstein. Não deu tempo. Mas aproveito a oportunidade para recomendar fortemente a leitura desse livro todo, especialmente para alunos que estão no início do seu curso de graduação. Ele está numa ótima tradução em português. EINSTEIN, Albert. A teoria da Relatividade Especial e Geral. Contraponto, Rio de Janeiro, 1999.

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campos gravitacionais. Essa previsão foi testada pela primeira vez pelo físico inglês Eddington, durante o eclipse de 1919. Nessa ocasião a expedição astronômica inglesa verificou desvios de estrelas que se posicionavam aparentemente tangenciando a coroa solar do sol eclipsado. Tais resultados concordaram com as previsões baseadas na teoria da relatividade geral de Einstein, ou seja, a teoria da relatividade que inclui a gravitação. Como resultado da inclinação de raios de luz concluímos que a luz que se propaga num meio onde exista um campo gravitacional não se propaga em linha rela. Portanto, a menor distância entre dois pontos deixa de ser representada por uma linha reta euclideana. Einstein, em função desse resultado, preferiu concluir que, ao invés de dizer que ao passar próximo de fortes campos gravitacionais a luz se curva, é o próprio espaço que é curvo devido à presença de massas gravitacionais! A menor distância entre dois pontos no espaço provido de campo gravitacional continua sendo determinada pelo caminho seguido peia luz. Esse caminho é denominado pelos matemáticos de linha geodésica Como sumariza Gamow: o ponto de vista newtoniano nos diz que os planetas movem-se em trajetórias curvas devido à ação da massa gravitacional do Sol que produz um campo de forças que atuam sobre eles. O ponto de vista einsteiniana nos diz que os planetas movem-se através de suas “retas” geodésicas no espaço curvo (linhas geodésicas no espaço-tempo contínuo quadri-dimensional). Como tudo o que foi resumidamente dito acima deixa muitas dúvidas, vamos procurar esclarecer um pouco mais seguindo o pensamento de Gamow a este respeito. Assim, reproduzo mais um longo trecho extraído da parte final do seu texto acima citado: “Estas considerações levam-nos à conclusão de que a luz propagando-se dentro de um campo gravitacional não o faz segundo uma linha reta, mas sofre uma curvatura no sentido do campo, e que, devido à contração das

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réguas212, a menor distância entre dois pontos não é uma linha reta, mas sim uma curva voltada também na direção do Campo gravitacional. Mas de que outra maneira poderíamos definir "linha rela" a não ser como o caminho que a luz percorre no vácuo, ou como o caminho mais curto entre pontos? A ideia de Einstein é que devemos manter a antiga definição de "linha reta" no caso do campo gravitacional, mas, em vez de dizer que os raios luminosos e que as menores distâncias se encurvam, é só dizer que o próprio espaço é que é curvo. É difícil formar uma ideia clara de um espaço tridimensional curvo, e mais difícil ainda imaginar um espaço quadridimensional encurvado, no a quarta dimensão é representada pelo tempo. O melhor é fazer analogia com bi-dimensionais, fáceis de visualizar. Todos nós estamos familiarizados com a Geometria plana de Euclides, que trata das figuras que podem ser desenhadas em uma superfície chata, ou plana. Mas se, em vez disso desenharmos figuras geométricas em uma superfície encurvada, como a superfície de uma esfera, já não valem os teoremas de Euclides. Vê-se isso claramente na figura abaixo que representa triângulos desenhados sobre uma superfície que (por motivos óbvios) é chamada superfície de sela (c). Para um triângulo plano, a soma dos ângulos internos é sempre igual a 180º. Para um triangulo desenhado sobre a superfície de uma esfera, os três ângulos somados sempre dão mais do que 180º e o excesso depende da relação entre o tamanho do triangulo e o tamanho da esfera. Para triângulos desenhados em superfície em forma de sela, a soma desses ângulos é sempre menor do que 180º. É bem verdade que as linhas que

212

Aqui Gamow está falando sobre uma das conclusões da Teoria da Relatividade Restrita de Einstein que afirma que qualquer objeto passando por nós com uma velocidade v parecerá contraído na direção 𝑣2

de seu movimento por um fator dado por √1 − 𝑐 2 onde c é a velocidade da luz.

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formam os triângulos nas superfícies esféricas e nas superfícies em forma de sela não são linhas retas do ponto de vista tridimensional, mas elas são as “mais retas”, isto é, as distâncias mais curtas entre dois pontos, desde que estejamos confinados à superfície em questão. Para evitar confusões, os matemáticos chamam essas linhas de “linhas geodésicas” ou simplesmente “geodésicas”.

Figura 49: (a) Triângulo em uma superfície plana; (b) sobre uma esfera; (c) sobre uma superfície na forma de sela.

Analogamente, podemos falar de linhas geodésicas ou de distâncias mais curtas entre dois pontos num espaço a três dimensões: seriam as tinhas ao longo das quais luz propagaria. Medindo ângulos internos de um triângulo no espaço, diremos que o espaço é: "plano" se a soma dos ângulos for igual a 180º, "esférico" ou "de curvatura positiva" se a soma dos ângulos for maior do que 1800 e Mem forma de sela" ou "de curvatura negativa" se a soma dos ângulos for menor do que 180º. Imaginemos três astrônomos, um na Terra, outro em Vênus, outro em Marte, medindo os ângulos do triângulo formado pelos raios luminosos que se propagam entre esses planetas. Como vimos, os raios de luz que se propagam no campo gravitacional do

Sol, encurvam-se no sentido da força

gravitacional; teremos, então, a situação indicada na Figura 50; a soma dos ângulos internos do triangulo será maior do que 180º.

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Figura 50

Seria razoável dizer, nesse caso, que a luz se propaga seguindo o caminho mais curto, ou seguindo zuna linha geodésica, e que o espaço ao redor do Sol encontra-se encurvado no sentido positivo (...) O que acabamos de expor constitui a base da teoria geométrica da gravidade de Einstein. Essa teoria suplantou antigo ponto de vista Newtoniano, de acordo com o qual, massas de grande porte como a do Sol, produziriam no espaço ao seu redor campos de forças que fariam com que planetas se movessem segundo órbitas circulares ao invés de linhas retas. Na representação Einsteiniana, o próprio espaço torna-se curvo e os planeias movem-se segundo "as linhas mais curtas", isto é, segundo geodésicas nesse espaço curvo. Para evitar mal entendidos, deve-se acrescentar que nos referimos aqui às geodésicas do continuum espaçotempo quadridimensional, e seria errado dizer que as próprias órbitas são geodésicas no espaço a três dimensões. (...) A interpretação einsteiniana da gravidade como sendo a curvatura do continuum espaço-tempo leva a resultados ligeiramente diferentes dos previstos pela teoria clássica de Newton, permitindo assim verificações pela observação. Por exemplo, ela

230

explicou a precessão do eixo maior da órbita de Mercúrio (precessão de 43 segundos angulares por século) e assim resolveu um problema que há muito vinha desafiando a mecânica celeste clássica. 213 Essas últimas palavras de G. Gamow confirmam a tese de T. S. Kuhn de que toda teoria cientifica acaba se defrontando com sua crise, isto é, com problemas que não consegue resolver, como é o caso da precessão da órbita de Mercúrio, que eventualmente provoca o surgimento de uma nova teoria revolucionária. Assim começamos com o “lugar natural” aristotélico, passamos pelos "vórtices" cartesianos, chegamos à "gravitação universal” de Newton e terminamos no "espaço curvo" de Einstein.

213

GAMOW, G. Op. cit., nota 208, págs. 103/107.