Ideologia Curupira: análise do discurso integralista

Mito tupi-guarani, Curupira é um duende de pés voltados para trás (e calcanhar para diante), índio e deus protetor das f

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Portuguese Pages [200] Year 1979

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IDEOLOGIA (IJllUPIUA Mito tupi-guarani, Curupira é um duende de pés voltados para trás (e calcanhar para diante), índio e deus protetor das florestas, que vive longe das praias. Dotado de grande habilidade para se enfiar no mato e meter-se terra adentro, encavernado. Diferentemente das burguesias dos países centrais, a burguesia dependente não consegue realizar seus papéis históricos: a autodeterminação do Estado, a autonomia nacional, a “democratização” da renda, do poder, etc. O passo trôpego da burguesia brasileira é inegável: faz pou­ co tempo que ela, ajustando-se ao ritmo da divisão inter­ nacional do trabalho, voltou as costas à ideologia da “auto­ nomia nacional”, substituindo-a por justificativas tecnocráticas mais condizentes com o lema “desenvolvimento e segurança”, de que a “democracia forte” e o “milagre económico” são os exemplos mais eloquentes. Nesse con­ texto, o “nacionalismo burguês”, de que se lambuzou à vontade a utopia curupira dos anos 30, está sepultada; sem função nenhuma, ele se refugiou nas “relíquias do folclore capitalista”. Embora não em sua forma original, ela reaparece em cena ainda hoje quando, por qualquer motivo’, querem nos convencer de que, nestas brenhas, a luta de classes não viceja —vem, é trazida de fora, infiltrada.

rasiliense

Gilberto Vasconcellos

A IDEOLOGIA CURUPIRA Análise do Discurso Integralista 4

Prefácio: Florestan Femandes

O

editora brasiliense 1979

Capa: Sílvio Dworecki Revisão: Maria Thereza Pinheiro de Almeida

o

brasiliense

editora soc. an. 01042 — rua barão de itapetininga, 93 são paulo — brasil

Para Adelaide Zolachio Ledusha

Este trabalho foi apresentado como tese de doutoramento no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filo­ sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em junho de 1977. Coube a Gabriel Cohn a orien­ tação, a quem reitero minha profunda estima e admiração intelectual. AGRADECIMENTOS:

F.A.P.E.S.P. (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Davi Arrigucci Jr., Celso Favaretto, José Arthur Gianotti, Reinaldo Moraes, Wolfgang Leo Maar, Atílio Romeu da Silva, Roberto Felício de Souza Pinto Jr., G. W. G. Moraes (revisão e datilografia), Roberto Fachini, Ramiro Alcon Soliz, C.A.A.E. (Centro Acadêmico Adminis­ tração de Empresas).

Sumário

Prefácio ......................... ............................................................. Introdução .................................................................................. Capítulo 1 O primado do espírito no discurso integralista . _ Naturalização da história e etnocentrismo........ A vergonha do corpo............................................. _ Elitismo e cultura afirmativa ............................... A atitude afetada da jeunesse dorée dos anos 30: o auto-engendramento do intelecto ..................... Fontes nacionais do discurso integralista.......... A utopia narcisista................................................. Capítulo 2 A ideologia do caráter nacional na doutrina inte­ gralista .................................................................... O Brasil no esconderijo do sentimento ............... Capítulo 3 Programação literária modernista....................... -Modernismo e autoritarismo político ................. -Politização do modernismo e dependência cul­ tural .......................................................................... Irracionalismo e modernismo............................... A briga entre Curupira e Abaporu ..................... Capítulo 4 Ideologia e dependência ....................................... Ideologia e apologética ......................................... Bibliografia .................................................................................

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Sou um caboclo do Brasil e detesto a Europa que me ensinou a ler.

Plínio Salgado

O mal do Brasil é ter sido descoberto por estrangeiros. Deputado índio do Brasil, Epígrafe do Febeapá n? 3, de Stanislaw Ponte Preta.

Prefácio

Acho penosa a tarefa de escrever um prefácio para um livro como A Ideologia Curupira. Nào que a obra de Gilberto Vasconcellos exija reparos graves ou que seja destituída de valor. Ao con­ trário, produto de uma inteligência lúcida, inquieta e crítica, seria um livro fácil de elogiar. O que me põe de quarentena é o assunto. Hoje está na moda dizer-se que se deve estudar o integralismo. Não compartilho dessa opinião. Nem mesmo devemos nos preocupar com destruí-lo. Os integralistas desempenharam o papel histórico de cavalheiros de triste figura no seio do pensamento conservador e dentro da burguesia. Se merecem atenção não é tanto por eles pró­ prios, quanto pelo fato de que o pensamento conservador e a bur­ guesia dependente da periferia do mundo capitalista tenham preci­ sado deles (e de outras modalidades igualmente equívocas de defesa do status quo). O que nos coube, na “virada fascista’’ da história recente, merece mais a novela picaresca que a investigação socioló-/ gica séria. O que o Autor chama de “discurso integralista” nasceu natu­ ralmente vazio. A sua análise demonstra que esse discurso possuía consistência e especificidade: era uma variante qualitativa do pensa­ mento conservador nativo, podendo ser confrontado, nessa con­ dição, com o nosso pseudoliberalismo, com o obscurantismo tradi­ cionalista e com o reàcionarismo militante dos inveterados donos do poder. E é até interessante a maneira ou a via pela qual ele primeiro descobre e, em seguida, comprova essa especificidade, utilizando-se das correntes literárias do modernismo. Tudo isso impregna a expo­ sição de um aparente vício repetitivo. A especificidade é tão diluída e aguada que podia escapar-lhe entre os dedos... O raquítico dis-

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curso integralista expressa o alcance que ele poderia conquistar dentro do discurso conservador englobante, do qual, aqui, ele nunca passou de uma variante mais ou menos instrumental. Em termos de esclarecimento histórico, aí estâ um dos grandes méritos do livro. Trata-se do segundo, pela ordem de importância sociológica, mas vem a ser fundamental para os que se interessam pela explicação do “Brasil moderno’’. O contraponto de uma esquerda débil, pouco articulada.e esmagada, pelas condições mesmas de existência e de manifestação da classe operária, comparece nos ultras de fraca sa­ liência da direita. Uma contra-revolução permanente e na cristã do controle das “conspirações políticas’’ precisa desses ultras, porém, só pode conferir-lhes papéis de terceira grandeza. Por que o “discurso integralista’’ nasceu vazio? O livro escla­ rece bem essa questão, ainda que a apanhe mais do ângulo da cons­ ciência social do que das estruturas, dos conflitos de classe e do movimento histórico. O fascismo não tinha como encorpar-se como aconteceu na Itália ou na Alemanha, nem mesmo como alimentar aparências ideológicas do edifício do poder, como sucedeu na Es­ panha, em Portugal ou na Hungria. A reserva ditatorial de poder das classes dominantes permitia-lhes absorver o fascismo como uma necessidade psicológica e de compensação. Na verdade, o “totalita­ rismo de classe’’, como nesses três países, estava tão consolidado, que as classes dominantes podiam, dentro da “normalidade da ordem’’, mover-se aberta e livremente na imposição de seus tacões. A confluência da dominação de classe e da dominação imperialista através do aparelho de Estado conferia à praxis conservadora a possibilidade de alimentar a contra-revolução sem expor-se aos ris­ cos das grandes orgias das demonstrações ideológicas de massas e de mobilização política dos descontentes. O que ameaçava as classes possuidoras e os interesses capitalistas externos não era o socialismo — era o perigo de que o próprio capitalismo criasse fortes tendências à proletarização,1 à normalização do regime de classes e, portanto,

(1) Note-se: proletarização como processo de classificação societária (por exemplo, passagem da condição de trabalhador semilivre para a de trabalhador assa­ lariado). Nesse caso, a proletarização promove a mobilidade social vertical de indi­ víduos e grupos de indivíduos, com freqúência migrantes, que se deslocam de zonas rurais para zonas urbanas (embora a migração não precise ser uma condição neces­ sária: em São Paulo pode-se observar como indivíduos de origem escrava se classi­

ficaram como trabalhadores livres e se integraram ao regime de classes sem que ocorresse qualquer mobilidade espacial).

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a eclosão de uma revolução democrática que forçasse a burguesia a absorver a pressão de baixo para cima. Ora, conter uma débil revolução dentro da ordem é algo bem diverso do que enfrentar uma forte revolução contra a ordem. Nem o pensamento conservador nem apraxis conservadora necessitaram, por isso, do “discurso integralista” como meio de composição política, de autodefesa e de fortalecimento da contra-revolução. O que não significa que ele fosse inútil. Ele era necessário como uma polaridade extrema do pensamento e da praxis conser­ vadores. Em um plano, para fortalecer o egoísmo de classe, o eli­ tismo e o mandonismo perdidos na convergência da industrialização com o “estilo colonial’’ de compreensão das relações entre a socie­ dade civil e o Estado. Essa era uma necessidade antes psicológica e de efeito de demonstração — o controle estático da ordem — que uma necessidade política diferenciada. Em outro plano, para servir de contrapeso ao uso populista da demagogia conservadora. Os vários grupos e segmentos das classes possuidoras e dominantes se dispunham melhor a aceitar certas articulações políticas novas quando postos diante do dilema de um extremismo confortável mas oneroso. Tem-se um “flash’’ dessa realidade na facilidade com que Getúlio se descartou da aliança com os ultras. A sua função no quadro político consistia em promover um enquadramento, não uma diferenciação dos donos do poder dentro do espaço político. Os donos do poder estavam solidamente estabelecidos e podiam manejar a seu bel-prazer os “nervos’’ da sociedade e do Estado, prescindindo de uma oscilação fascista clara, marcante, irredutível. Eles não eram menos fascistas na substância do comportamento político e do uso dos aparelhos do Estado. Apenas eles prescindiam do “discurso integralista’’ para atingir tais fins. A imagem plástica do Curupira entra bem dentro desse qua­ dro histórico. Para ser funcional, o “discurso integralista’’ devia evocar potencialidades que as variantes mais discretas do pensa­ mento conservador repudiavam. A consciência burguesa sofria um deslocamento, que unia a crise do trabalho escravo à emergência do trabalho livre e à expansão da economia urbano-industrial. Para restabelecer a supremacia das forças sociais conservadoras dentro da consciência burguesa o “discurso integralista’’ era diretamente útil e necessário. Cabia-lhe desmistificar e negar reacionariamente todos os desdobramentos pelos quais as classes possuidoras e domi­ nantes pudessem ser a fonte de articulação estrutural e dinâmica da transformação capitalista com a alteração da ordem, seja abrindo-

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-se, de fato, às pressões de baixo para cima e facilitando a revolução democrática, seja inibindo ou selecionando os privilégios, provo­ cando a ampliação da sociedade civil e liberando, portanto, a revo­ lução nacional dos constrangimentos particularistas. Nesse sentido, o “discurso integralista” surgia como uma forma extremista de reacionarismo. Ele não pretendia esvaziar a consciência burguesa de um sistema ideológico ou axiológico — e é aí que o Autor apanhou bem a sua especificidade. Ele pretendia fixar a consciência burguesa numa idade ultrapassada mas, ao mesmo tempo, torná-la muito ativa. O que situa a sua função ideológica e política na tentativa inconsciente, semiconsciente e por vezes (raramente) consciente de revitalizar o totalitarismo de classe, não só realçando o caráter missionário e “salvador” das elites, mas, ainda, repondo a intocabilidade de seus papéis de liderança, de comando, de decisão, como se fossem “papéis predestinados” e sacrossantos. Purificadores da família e da Pátria, “proprietários natos” do Estado, arautos da liberdade pelo espírito... Os que pensam que é importante estudar o “discurso integra­ lista” e o integralismo por causa do presente cometem um equívoco. Não superamos essa conurbação da dominação de classe burguesa e da dominação imperialista com um reacionarismo exacerbado e, o que é mais grave, o totalitarismo de classe consolidou-se, por uma via moderna', o Estado autocrático burguês mostra muito bem os compassos dessa modernidade e suas consequências destrutivas. Contudo, o integralismo é uma página virada da história (se é que ele merece tamanha consideração). Os seus protagonistas que conti­ nuam na cena pública se ajustaram à lógica do Estado capitalista periférico. Eles não produziram uma forma mais avançada e refi­ nada de “discurso”. Eles se adaptaram a um fascismo destituído de visibilidade fascista. Os que são “renitentes”, que repetem as velhas fórmulas e sugerem, com isso, que os integralistas finalmente “che­ garam ao poder”, são figuras marginais. A oscilação partiu do centro para a periferia do mundo capitalista, embora ganhasse dentro deste maior nitidez. O capitalismo da era das multinacionais, do Estado que internacionaliza suas funções hegemónicas e do padrão de imperialismo exigido pelo confronto de vida e morte entre capitalismo e socialismo, necessita de uma forma específica de fas­ cismo. No seu discurso entram tanto o conceito de “direitos hu­ manos”, quanto a noção de “Estado de direito”. Do que se trata? Do “direito” anti-revolucionário e contra-revolucionário: o direito que a burguesia do capitalismo recente julga seu de instituir uma

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democracia forte e com ela paralisar a história da humanidade. Não há nenhuma relação entre essa situação histórica e a que deu origem às confusões do “discurso integralista”. Pode-se estudar este dis­ curso para conhecer melhor as peripécias vividas pela sociedade brasileira para consolidar o poder burguês. Todavia, por essa via não se chega nem ao regime ditatorial que enfrentamos nem aos dilemas políticos que ele coloca. Ele sequer absorveu parte do “dis­ curso integralista’’. Diante dele, este discurso é infantil. Não por seu extremismo. Mas, pela falta de maturidade, de realismo e de efi­ cácia. Em suma, por não conter a racionalidade da conexão fascista do Estado capitalista atual, que deve ser instrumento e baluarte da democracia forte. Acabando por onde deveria ter principiado: a contribuição maior deste livro não é histórica, mas teórica. História e teoria caminham entrelaçadas ao longo da análise (e, de tal modo, que às vezes pensamos em um arcabouço teórico construído, que trans­ cende aos fatos e ao nosso pequeno mundo). O que pretendo salien­ tar é o que o Autor faz com a “teoria da dependência’’ — e com o que é mais importante: com a teoria do imperialismo — para entender e desentranhar os processos culturais do “Brasil mo­ derno’’. Ele combina várias interpretações díspares e conduz a investigação do económico e do político para o cultural. A relação recíproca entre estruturas e superestruturas numa sociedade capita­ lista periférica e dependente é apanhada à luz do processo civilizatório: como a imaginação criadora (também pervertida) dos inte­ lectuais termina sendo atravessada e determinada pela dominação externa e pelos centros de irradiação da cultura localizados nas Nações capitalistas hegemónicas. Isso à revelia ou mesmo contra um estado de consciência e até de uma revolta. O essencial é que esse salto da indagação sociológica é dado sem qualquer subserviência a conhecidos maniqueísmos ou a arraigados dogmatismos simplistas. Por fim, a sociologia, como forma de autoconsciência crítica, chega à idade da razão e domina a explicação dialética dos processos cul­ turais. Alguém poderá apontar certas omissões (e também certos exageros). O decisivo não está aí. Nem a “esquerda’’ nem a “ultra-esquerda” do modernismo chegaram à negação da ordem. Como interpretar esse fato? Pouco importa. O crucial é que começamos a explorar a dialética da cultura de uma posição que retifica o economicismo de muitos historiadores e sociólogos. E, acima disso, que a problemática da teoria do imperialismo finalmente focaliza o cerne do movimento intelectual, não a sua superfície.

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Os que trabalharam antes com as relações de dependência e com os efeitos da dominação imperialista não ignoraram a dimensão cultural, partindo da sociologia ou da literatura. Nem isso seria possível. Faltava, porém, uma descida em profundidade nos dina­ mismos da consciência social e da omissão do intelectual. A análise do “discurso integralista” deu ao Autor essa oportunidade. Se ele “reifica” a teoria, aqui e ali, ou sucumbe ao entusiasmo (como sucede com suas digressões sobre Oswald de Andrade), ele também tenta integrar o corpus teórico da “sociologia da dependência’’ e a utiliza para compreender e explicar tanto a imaginação estética, quanto a criação literária. Esse é um feito que o situa na própria história do pensamento sociológico no Brasil.

São Paulo, fevereiro de 1978.

Florestan Fernandes

Introdução

A busca da especificidade do integralismo enquanto discurso fascista que se insere numa sociedade capitalista periférica, eis o alvo deste trabalho. O pano de fundo: mostrar que o contexto de dependência, no qual se moviam os camisas-verdes, acabou por afetar (independentemente de sua consciência) a apropriação dos fascismos europeus. Embora de ponta a ponta mimético, o discurso integralista ostenta um traço que o diferencia de seus congéneres europeus, e cuja razão de ser nasce da resposta equivocada (mas sociologicamente compreensível) à heteronomia de país periférico, a saber: a fantasmagoria de uma utopia autonomística em relação às nações capitalistas hegemónicas. Fantasmagoria, não só porque é irrealizável o desejo de converter o país numa região apartada do processo civilizatório ocidental, mas também porque são elididos, nessa utopia, os fundamentos concretos da dependência: relações determinadas de subordinação entre sociedades no contexto do sis­ tema capitalista global. O agente dessa utopia seria o Estado Inte­ gral; o objetivo, proteger o Brasil da luta de classes, que é vista como “intrusão” forasteira. A redefinição da dependência em 1930, a passagem da agroexportação para a fase em que o setor industrial passa a ser o pólo dinâmico da economia brasileira,1 deixou per­ plexos os camisas-verdes, num beco sem saída: como conciliar o

(1) A propósito, a industrialização na periferia ocorreu "concomitante com a internacionalização do sistema produtivo capitalista"... Essa é sua particularidade. Cardoso, F. H.. "As tradições do desenvolvimento associado", in Estudos Cebrap, n? 8. 1974. p. 50.

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nacionalismo, a denúncia, ainda que abstrata, do “imperialismo económico’’ e o arremedo às claras, mas no limite inconfesso, dos fascismos europeus? Resultaria desse quadro emaranhado de con­ tradições a resposta fantasmagórica à dependência. Isso nem sempre está claramente enunciado no discurso integralista, mas a análise que empreendi tenta fisgar sua especificidade através do não expres­ samente dito. Foi minha intenção mostrar: como o integralismo constitui mais uma amostra da ausência de autodeterminação da cultura em sociedade periférica, cuja apropriação dual2 do excedente econó­ mico afeta o relacionamento interno entre a dinâmica social e a vida ideológica, tornando-o oblíquo, ou se quiserem, menos orgânico e destituído de homologia — ao contrário do que se observa em países capitalistas com desenvolvimento autónomo. Disso resulta a impor­ tância fundamental concedida ao influxo externo, os fascismos eu­ ropeus, na configuração ideológica do discurso integralista, e ao manejo da categoria da dependência na procura de sua especifi­ cidade. A tempo: o que é específico ao integralismo, a utopia autonomística, não está completamente ausente de outros discursos brasi­ leiros (liberais ou simplesmente conservadores) dos anos 20 e 30, ou mesmo de anos mais recentes. Basta que o nacionalismo (animado pela noção abstrata de “nação’’) enquadre a heteronomia sócio-cultural, que particulariza o desenvolvimento capitalista no Brasil para, cristalina ou turvada, repontar a ideologia curupira. Fosse essa uma exceção, confinada aos anos 30, não se compreenderia o motivo de, em 1976, aparecer no texto de sociólogo arguto e conhe; cedor de nossas coisas a advertência: “A alternativa para o impe­ rialismo cultural não pode ser o provincianismo cultural tímido e estreito. O desafio não consiste em cortar as ligações culturais com o ' exterior .’’3 A ruptura imaginária dos laços de dependência expressa o estágio evolutivo do pensamento burguês na periferia, ou seja, es­ pelha a contradição de uma burguesia que, embora subordinada economicamente, começa a se apegar à ideologia do “desenvol­

(2) Fernandes, Florestan, Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Zahar,

Rio, 2?ed., 1972. (3) Fernandes, F., A sociologia numa era de revolução social, Zahar, 2? ed., 1976, p. 12.

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vimento nacional , posto que no reverso da utopia autonomística se insinua, sorrateira, a ilusão disparatada de realizar a acumulação e expansão do capital dentro da própria sociedade brasileira. Assim, a afinidade, de que se tornou comum falar, entre integralistas e isebianos cresce à vista: o projeto de um desenvolvimento “genuina­ mente nacional’ estava já contido nas delirantes aspirações nacio­ nalistas dos camisas-verdes. Não espanta que ex-integralistas como Miguel Reale e Santiago Dantas tenham sido acolhidos de boa sombra pelo ISEB, e dessa instituição tenha brotado também a idéia, defendida por Hélio Jaguaribe, da supressão do Partido Comunista em nome da segurança nacional. 4 A luz de hoje, malogrado o nacional-populismo, soa certa­ mente mais derrisório ainda o sonho curupira (bem como sua irmã gêmea, a ideologia do desenvolvimento nacional burguês, que já não cumpre qualquer função), na exata medida em que a burguesia local se internacionaliza, subordinando-se ou associando-se aos inte­ resses das corporações multinacionais. Diferentemente das burguesias dos países centrais, a bur­ guesia dependente não consegue realizar seus papéis históricos: a autodeterminação do Estado, a autonomia nacional, a “democra­ tização” da renda, do poder etc. O passo trôpego da burguesia brasileira é inegável: desprovida, como quer Florestan Femandes, de “estatura heroica” 5 em termos de atuação histórica, subordinada ao parceiro externo e, por isso mesmo, incapaz de se constituir no agente do desenvolvimento autónomo. Mas há que distinguir o processo real do processo ideológico. Com efeito, faz pouco tempo que ela, ajustando-se ao ritmo da divisão internacional do trabalho, voltou as costas à ideologia da “autonomia nacional”, substituindo-a por justificativas tecnocráticas mais condizentes com o lema “desen­ volvimento e segurança”, de que a “democracia forte” e o “milagre económico” são os exemplos mais eloquentes. Nesse contexto, o “nacionalismo burguês”, de que se lambuzou à vontade a utopia curupira dos anos 30, está sepultado, historicamente sepultado; sem função nenhuma, ele se refugiou nas “relíquias do folclore capi­

(4) O “exagerado sectarismo de cunho sociologizante” no ISEB, acrescente-se, para reforçar a referida afinidade ideológica, as suas “orientações de cunho autoritário, que conferem ao Estado e à classe dominante a direção (exclusiva) do processo de desenvolvimento”. Toledo, C. N., A ideologia do desenvolvimento: análise de uma instituição, Assis, 1973, /Tese de doutoramento/, p. 53, 240.

(5) Fernandes, F., Mudanças sociais no Brasil, Difel, 2? ed., 1974, p. 56.

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talista”.6 A ideologia curupira, no entanto, tem passos largos. Embora não em sua forma original, ela reaparece em cena ainda hoje quando, por qualquer motivo, querem nos convencer de que, nestas brenhas, a luta de classes não viceja — vem, é trazida de fora, infiltrada. Posto isso, resta dizer alguma coisa sobre o título deste tra­ balho. Mito tupi-guarani, Curupira é um duende de pés voltados para trás (e calcanhar para diante), índio e deus protetor das flo­ restas, que vive longe das praias. Dotado de grande habilidade para se enfiar no mato e meter-se terra adentro, encavernado. Em tupi, significa “o coberto de pústulas”, tendo o corpo forrado de longos pêlos. De uma feiúra incrível. Graça Aranha fala nos “errantes e tenebrosos curupiras”.7 Mas não foi, é claro, por considerações estéticas que Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo escolheram-no como emblema do verdeamarelismo. A motivação foi de ordem nacionalista: Curupira se lhes afi­ gurava, tal como o índio para o romantismo do século passado, um símbolo autóctone, que lembrava o período anterior à vinda do colonizador. “Parece muito mais um mito Tupi-Guarani que um vestígio doutro povo,” escreve Câmara Cascudo.8 A isso acrescente sua forte aderência telúrica, que, na versão verdeamarela e, mais tarde, na integralista serviria de resistência nacionalista à ingerência do eu­ ropeu, e um elemento a mais para recrusdecer a polaridade sertão/ /litoral, interior/cidade, nacionalismo/cosmopolitismo etc. Ao contrário do Carão, ave nordestina, Curupira não se des­ gruda da terra, pé no chão, fincado no meio da floresta tropical: ele é, por isso mesmo, a “alma do Brasil”, é um símbolo, diria Plínio Salgado, superior a D. Quixote.9 Um mito que caiu muito bem ao ideal xenófobo de uma cultura fechada: índio sem fendas, hirto e defensivo, invulnerável à penetração estrangeira, sisudo e compene­ trado, vacinado contra a sedução transoceânica e avesso às “ideo­ logias exóticas”. Os textos verdeamarelos dão margem a essa inter­ pretação: a “afirmação do homem de nossa terra dar-se-á, em defit

(6) (7)

Idem, ibidem, p. 54. Graça Aranha, "A Estética da Vida”, Obra completa, MEC, INL, 1969,

p. 62.

(8) Câmara Cascudo, L. da, Geografia dos mitos brasileiros, José Olympio, 1976, p. 86. (9) Salgado, P., “A Anta e o Curupira”, in Antologia do ensaio literário Paulista, de J. A. Castelo, Conselho Estadual de Cultura, 1959. p. 159.

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nitivo, quando as cidades cosmopolitas forem invadias pelo Espírito Nacional. O Curupira, símbolo desse espírito, dorme no fundo das brenhas”.10 Espie a caminhada nacionalista do Curupira — de dentro para fora, do sertão à cidade. É justamente o antídoto do caranguejismo, que marcou o início da colonização brasileira. No interior, não no litoral, habita a “brasilidade”. E essa, aos olhos integralistas, não tem nada a ver com o litoral ou as cidades que, segundo eles, estão infestadas de artificialismo cultural e intelectuais afe­ tados, europocêntricos. O mar leva à Europa; vem daí a necessidade de pôr fim à ‘‘mentalidade litorânea”, que haveria, afinal, de cur­ var-se quando o curupira botasse camisa verde e entoasse anauê. Em 1926, antecipava Plínio Salgado: “Curupira há de descer um dia do sertão, lá onde está a voz que chama, acompanhado de seus milhões de pirilampos, escoltado pelas hordas de caetetus e das capivaras, montando a anta, seu cavalo e totem da raça tupi, para a invasão das cidades e a grande revolução do pensamento nacio­ nal.”11 Dois anos mais tarde, o ataque contra a “ação destruidora dos deuses estrangeiros” se entrelaçaria abertamente com o irracionalismo, prenunciando a fascista pragmatização da política: “Anta não sistematiza: — age.”12 A ideologia curupira simplifica o fenômeno da transplantação cultural; ela vê a “desordem” do país na transferência, em si mesma, de módulos e práticas culturais da$ nações hegemónicas. O que ela não vê, nem poderia fazê-lo, é o modo pelo qual essa transfe­ rência se desenrolou, social e historicamente na periferia, e seu papel no sistema capitalista global. Erraria, no entanto, quem ima­ ginasse que a ideologia curupira, pela birra que tem contra a Eu­ ropa, se opõe à “doença do nabuquismo”; curupira, na verdade, tem os pés, não os olhos, voltados para dentro. O caráter reflexo do discurso integralista o demonstra.

(10) Idem. ibidem, p. 165; onde o autor homenageia o Caapora (em tupi, o que também está no mato, o caboclo, o roceiro). (11) Idem, ibidem, p. 166. (12) Salgado, P., “O Significado da Anta", in Primeiro Tempo Modernista, 19/7-1929, Batista, Ancona, IEB, 1972, p. 288.

Capítulo 1 O PRIMADO DO ESPÍRITO NO DISCURSO INTEGRALISTA Um dos traços nucleares do discurso integralista é a idéia de que as relações sociais são determinadas pelos fatos morais. O con­ teúdo material dos processos sociais desaparece inteiramente. Para Plínio Salgado, “é a imaginação o grande fator de dissolução das massas brasileiras”.1 Ê por esse prisma que ele pretende situar a crise da sociedade brasileira dos anos 30. A axiologia integralista também se alicerça numa base espiritualizante. Seu combate ao socialismo nunca se baseia na idéia de uma maior produtividade social do sistema capitalista ou numa consideração de ordem econó­ mica. O ‘‘regime vermelho” deve ser rejeitado sobretudo por um motivo: ele subordina o espírito à matéria. Aí reside seu pecado essencial. Até mesmo o anticapitalismo abstrato nutre-se da fobia ao materialismo; o que identifica o socialismo e o capitalismo é a con­ cepção materialista da vida.2 A fim de mostrar a autonomia do integralismo em relação aos fascismos europeus,3 os camisas-verdes apontavam a ‘‘maior dose de espiritualidade”, ou o ‘‘primado do espírito”, contido em sua doutrina. A especificidade do integralismo enquanto discurso totalitário não se localiza nesse ponto; todavia, é (1) Salgado, P., Despertemos a Nação, José Olympio, 1935, p. 101. (2) O próprio comunismo origina-se do "materialismo burguês", expressão através da qual Plínio Salgado combate, também de modo superficial, os aspectos anedóticos e secundários do sistema capitalista, cuja decadência pode ser observada pelo apego mundano do burgo ao ócio, à vida dissipada em orgias sexuais etc. Ver Madrugada do espírito, Guanumky, 1946, pp. 102, 136, 177. (3) Barroso, G., O integralismo e o mundo. Civilização Brasileira, 1937, .2? ed., p. 102.

GILBERTO VASCONCELLOS

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inegável que da matriz espiritualizante desdobram-se vários de seus traços ideológicos, a exemplo da redução da luta de classes a uma mera questão psíquica. Para Plínio Salgado, a consciência de classe do proletariado nasce do ressentimento, ou do mau exemplo ofere­ cido pelo “materialismo burguês”.4 As raízes objetivas dos anta­ gonismos entre capital e trabalho assalariado são substituídos pelos fatores de ordem moral. É a falta de cultura que leva o operário a aderir ao comunismo.5*O psicologismo integralista acaba conver­ tendo a história num jogo astuto, malabarismo de esperteza: se os operários russos fossem mais sabidos, se eles não tivessem sido ludi­ briados pelos marxistas, a revolução de 17 jamais teria se realizado. O psicologismo inscreve-se também como arma ideológica para combater o socialismo. Esse não passa de um “fenômeno puramente psicológico”, ele faz parte das “psicoses maníaco-depres­ sivas”. A profilaxia mais eficaz, no caso, seria “conquistar as almas”.7 Somente assim se conseguiria descartar do “perigo comu­ nista” e realizar a meta integralista: a “revolução interior”. Na própria semântica do termo integralismo avulta a hipóstase do espi­ ritual, pois “considera o universo, o homem, a sociedade e as nações, de um ponto de vista totalitário, isto é, somando todas suas expressões, todas as tendências, fundindo o sentido materialista do fato ao sentido anterior da idéia, subordinando ambos ao ritmo supremo espiritualista e apreendendo o fenômeno social segundo as leis de seus movimentos”.8 Na doutrina integralista como nos fas­ cismos europeus a primazia, ou a antecedência do elemento espi­ ritual, surge antes mesmo da existência objetiva das classes sociais. Agitamos valores tradicionais e espirituais que o socialismo des­ preza ou descuida , bradava o Duce.9 Em alguns momentos Plínio Salgado reconhece (tal como nos ideólogos fascistas europeus) a existência da luta de classes, mas ele a reduz a um fenômeno volitivo. Foi o individualismo orgulhoso que uniu, de um lado, os capita­ (4) Essa abordagem psicologista da luta de elaccAc mento conservador, foi explorada nnr Si™™ ’ C°mUm a0 pen direita hoje, Paz e Terra, 1967, p. 17. Beauvoir em seu O pensamento de

p.72. (5) Salgado, P„ O que o integralista deve saber_ Civilização Brasileira, 1935,

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