Análise do discurso político: discurso comunista endereçado aos cristãos
 9788576001607

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Q u e se leia, nestas paginas, e m^smo cm

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efetivamente compreBm er o processo d« consliluiçAo 1I1 um nu jeitó falante em sujeito ideológico de seu discurso: 1» que 'lem b rar", "esquecer"' e " re p e tir" para um sujeito enuiu iirlur considerado no desenvolvimento histórico das prám .is di»i ur»lv A questão tambéiji é política, no momento em que se inwnlarrt formas de dom inação legitimadas por uma política sem memm i.i O historiador Hübl, personagem de O livro d o riso e d o csr/nn i

ANÁLISE

t 1 discurso

olítico

m en to , de Milan Kundera, lemora-nos: "Q u an do se q u e r liqu id ar o s p o v o s, c o m e ç a -s e p o r lh es tirar a m em ória.'1 Jea n -Ja c q u es Courtitu

Prefácio de MichelPêcheux +

-------------------------- —

ISSN 978-85-7600-160-7

EdUFSCar

9r788576"0016Õ7

EdUFSCar

J e a n -J a c q u es C o u r t in e R E IT O R

Targino de Araújo Filho

V IC E -R E IT O R

Pedro Manoel Galetti Junior

D IR E T O R DA E D U F S C A R

Oswaldo Mário Serra Truzzi

Prefácio de Michel Pêcheux

Ed U F SC a r - Editora da Universidade Federal de São Carlos

c o n s e l h o e d it o r ia l

José Eduardo dos Santos José Renato C o u ry Nivaldo Nale Paulo Reali Nunes Oswaldo Mário Serra Truzzi (Presidente)

s e c r e t á r ia e x e c u t iv a

Maria Cristina Priore

ANÁLISE DO DISCURSO POLÍTICO O DISCURSO COMUNISTA ENDEREÇADO AOS CRISTÃOS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO CARLOS Editora da U niversidade Federal de São C arlo s V ia W ashington Luís, km 235 13 5 6 5 -9 0 5 - São C arlos, SP, Brasil T elefax { 16 ) 3 3 5 1 - 8 1 3 7 http://ww w.editora.ufscar.br

EdUFSCar

edufscar@ ufscar.br

São Carlos, 2009

©

2009, Jean-Jacques Courtine

SUMÁRIO

Capa Cristina Akemi G. Kim inam i

Projeto gráfico

APRESENTAÇÃO

Vltor M assola Gonzales Lopes

7

Preparação e revisão de texto Priscilla Del Fiori M arcelo Dias Saes Peres

PREFÁCIO

21

Editoração eletrônica Patricia dos Santos da Silva

INTRODUÇÃO

Tradução (Bacharéis em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no âmbito do Projeto "A Tradução no Instituto de Letras: da teoria à prática”)

Pa r t e i

Cristina de Cam pos Velho Birck, D idier M artin, Maria Lúcia Meregalli, M aria Regina Borges O sório, Sandra Dias Loguércio e Vincent Leclercq

Supervisão da tradução Patrícia Chittoni Ram os Reuillard

27

CAPÍTULO I

A noção de "condição de produção do discurso"

45

CAPÍTULO II

Revisão técnica

O conceito de formação discursiva

Carlos Piovezani M aria Cristina Leandro Ferreira Vanice Sargentini

69

II CAPÍTULO III

Pa r t e

Preparação do texto Luzmara Curcino

Orientações teóricas da pesquisa

99

CAPÍTULO IV

Constituição do corpus da pesquisa

123

Ficha catalográfica elaborada pelo D ePT da Biblioteca Com unitária da U FSCar

C864a

Courtine, Jean-Jacques. Anãlise do discurso político : o discurso comunista endereçado aos cristãos / Jean-Jacques Courtine. — São Carlos : EdUFSCar, 2009. 250 p.

ISBN - 978-85-7600-160-7

Pa r t e III

CAPÍTULO V

Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 153 CAPÍTULO VI

1. Anãlise do discurso. 2. Discurso político. 3. Enunciado dividido. 4. Memória discursiva. I. Título.

Efeitos discursivos: contradição, real e saber CONCLUSÃO

235

CDD - 401.41 (20*) CDU - 801 Todos os direitos reservados. N enhum a parte desta obra pode ser reproduzida ou transm itida por qualquer form a e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou m ecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem perm issão escrita do titular do direito autoral.

BIBLIOGRAFIA

241

173

APRESENTAÇÃO

POLÍTICAS DO SENTIDO, PRÁTICAS DA EXPRESSÃO E HISTÓRIA DO CORPO. UMA APRESENTAÇÃO DA OBRA DE JEANJACQUES COURTINE AO LEITOR BRASILEIRO

Ao apresentarmos ao leitor brasileiro a obra de Jean-Jacques Courtine que ora se traduz e publica-se por aqui se nos impõe, antes de tudo, uma ressalva. N ão se trata neste caso de prefaciar o texto de Courtine e isso, ao menos, por uma razão: quando de sua aparição em 1981, na França, a publi­ cação contou com um prefácio de Michel Pêcheux, precursor da Análise do discurso francesa, interlocutor constante de Courtine e um de seus mestres. Como rezam gênero e protocolo, o prefácio de Pêcheux consiste num texto de um autor já célebre em certo domínio, nessa circunstância, na Análise do discurso e em suas adjacências, que recomenda a leitura de um colega que ali ainda não desfruta do mesmo reconhecimento. Tamanha é a impor­ tância adquirida entre nós pelo prefácio de Pêcheux, intitulado O estranho

espelho da Análise do discurso, que ele parece não raras vezes ter ganhado vida própria e autônom a ao ser referido como um dos signos, lançados pelo próprio fundador desse campo de saber, de uma das profundas inflexões pelas quais passou a Análise do discurso. Sua relativa autonomia não se dá, contudo, em detrimento do texto prefaciado, justamente porque é nele que Pêcheux reconhece o gesto de uma mudança que significa não mais, como outrora, identificar os traços homogêneos dos discursos políticos de

8

A presentação

A nálise do discurso político

9

esquerda, de modo análogo ao que era feito desde o final dos anos 1960 nos

tou e continua a freqüentar a América Latina. Desde o envolvimento com

primeiros trabalhos da AD sobre os discursos políticos, com o se cada um

estudos da Análise do discurso, campo composto por lingüística e psicaná­

deles brotasse de fonte única, límpida e exclusiva.

lise, sob a égide do materialismo histórico, passando pelo estudo das prá­

Tal com o destaca Pêcheux, Courtine faz de certos dados do discurso

ticas expressivas do rosto, até a história do corpo, seu trabalho foi sempre

comunista endereçado aos cristãos a ocasião de urdidura de conceitos,

marcado pela transdisciplinaridade, sendo constantemente fiel a determi­

desde então tornados capitais para a AD, com o os de “enunciado divi­

nados princípios e permanentemente sensível às metamorfoses de objetos

dido” e de “metpória discursiva”. Na língua e na história, desde M arx,

e objetivos. Atualmente, Courtine é Professor de Antropologia cultural da

passando por detratores da fé religiosa, até aqueles que, “com a mão es­

Université de Paris Ul/Sorbonne N ouvelle e seus últimos trabalhos consis­

tendida”, buscavam a conciliação entre o material e o m ístico, a fala cristã

tem em investigações históricas que tratam das transformações modernas e

apresentou-se, em diferentes contextos e de distintos modos, com o um

contemporâneas do corpo, do olhar e da virilidade.

outro privilegiado do discurso comunista, com o um seu objeto incontor-

Já em meados da década de 1980, o foco das pesquisas de C ourtine

nável de m em ória, sendo-lhe, portanto, constitutivo. O discurso com u­

já havia se ampliado consideravelmente e seu interesse recaía sobre as

nista não apenas se dirige aos cristãos, antes, as vozes destes últimos são

reflexões “lingüísticas” de George Orw ell, sobre as emergências e m ani­

já parte ambivalente dele próprio, com o fala e silêncio, com o memória e

festações da glossolalia, sobre a historiografia lingüística e ainda sobre as

esquecimento. M ais atenta à contradição do que à reprodução, esta últi­

metam orfoses do discurso político contem porâneo. Ante as transform a­

ma tão presente nos escritos mais conhecidos de Althusser, a tese de Cour­

ções do atual discurso político e a abordagem insatisfatória que a Análise

tine faz convergir primorosamente a teoria do discurso com postulados

do discurso lhe dispensava, Courtine declarava que “o projeto de uma

da arqueologia de Foucault e demonstra que as form ações discursivas são

análise dos discursos que atribua à discursividade sua espessura histórica

freqüentadas por seus outros, entre os quais e não de modo aleatório a

não está caduco”, acrescentando, logo em seguida, que “ele deve ser re­

memória tende a eleger um antagonista singular, cuja presença se dá sob

pensado em função dos resultados aos quais ele conduziu, das dificulda­

a forma de repetição e de reform ulação, de inscrição duradoura ou de

des que ele encontrou, dos impasses aos quais ele chegou”.1

apagamento repentino. Em tom enfático e au tocrítico, Pêcheux diz isso

Movido pela observação das mudanças do atual discurso político,

e mais nas páginas que prefaciam o texto de C ourtine; reconhece-lhe o

Courtine postula então a necessidade de alargar o enfoque da AD. A cons­

valor, sublinha-lhe o alcance e vaticina uma nova era na AD. Seu prefácio

tituição, a formulação e a circulação da discursividade política contem po­

está traduzido e reproduzido nas páginas a seguir.

rânea implicavam i) a rápida obsolescência de suas filiações históricas e o

N ão nos cabe, portanto, a redação de outro prefácio, mas somente

refluxo de princípios ideológicos; ii) sua manifestação sincrética, rápida e

uma sumária apresentação do autor e de sua obra. Do autor, daremos uma

fragmentada, na qual o verbo não poderia mais ser dissociado do corpo,

brevíssima notícia, já da obra, destacaremos a porção menos conhecida pe­

do rosto, dos gestos e das imagens; e iii) sua transmissão em novas e mais

los analistas brasileiros do discurso, que a freqüentam desde a década de

velozes mídias. O close sobre a fisionomia expressiva do político, em suas

1980. Com efeito, Jean-Jacques Courtine parece sempre ter sido afetado

intervenções televisivas, havia se tornado uma estratégia recorrente e pro­

pela diáspora, em cujo bojo residem a diversidade e a diferença: filho de alto

duzia desde então um efeito de transparência dem ocrática. Assim, a com­

funcionário do judiciário francês, Courtine nasceu na Argélia, realizou sua

preensão do discurso político passava a exigir um saber sobre o rosto: “Ao

form ação intelectual na França, no decurso da qual participou ativamente do grupo fundador da AD em torno de M ichel Pêcheux, lecionou durante quinze anos em grandes universidades da Costa Oeste dos EUA, frequen-

1

C o u r t i n e , J- J. Corps et discours. Eléments d'histoire des pratiques langagières et expressives. (T h èsc d’É ta t). N an tcrre, p. 5 8 , 1989.

10

A nálise do discurso político

A presen tação

11

observar as transformações contemporâneas de seu objeto, uma análise do

o controle de sua expressão. Depois de se referirem a esse paradoxo moder­

discurso político poderia evitar as questões em torno do rosto?”.2

no, Courtine e H aroche encetam um recenseamento comentado de obras e

Diversas facetas do discurso político de nossos tempos paulatinamen­

autores que, já tornados clássicos em ciências humanas, trataram indireta­

te impuseram a Courtine o exame das relações entre corpo e discurso nas

mente desse fenômeno. Entre os pensadores que aí figuram, representando

novas formas da fala pública. Tal apreciação, que inicialmente limitava-se

diferentes perspectivas de trabalho, encontram-se N orbert Elias, M ax We-

ao período contem porâneo e ao campo político, transform ou-se, pela pró­

ber, M ichel Foucault, entre outros.

pria historicidade dos objetos ai envolvidos, em um conjunto de pesqui­

O Processo Civilizador, de Elias, e a racionalização dos co m p orta­

sas sobre a expressão das emoções na Era M oderna, em geral, e sobre as

m entos práticos, de Weber, referem-se, cada um a seu modo, ao proces­

práticas e representações do rosto, em particular, a partir do século X V I.

so de desenvolvimento do individualismo, no interior do qual se situam o

Depois de alguns artigos que trataram preliminarmente do tem a, em 1988

controle de si, o recalcamento das pulsões e a continência dos sentimentos.

veio a lume a H istoire du visage ,J escrito a quatro mãos com Claudine Ha-

No que concerne a Foucault, Courtine e Haroche afirmam que o filósofo

roche. Em síntese, a H istória do rosto insere um princípio antropológico

francês buscou compreender o controle dos com portam entos individuais

em uma história de duração longa e média na tentativa de compreender

mediante a noção de disciplina, isto é, por meio dessa modalidade de exer­

uma ambivalência fundamental em torno da expressividade moderna: a

cício do poder cujo fim primordial consiste na vigilância e no domínio dos

injunção a expressar-se e o dever de controlar a expressão. Em diversas

corpos e de seus movimentos, gestos e atitudes.4 As disciplinas seriam a

épocas e culturas, reitera-se a ideia de que o rosto fala, de que a face é no

transposição de uma antiga forma de poder, qual seja, o “poder pastoral”,

corpo a “janela da alm a”. Em tempos e lugares distintos, porém, a fisiono­

para o espaço político, e buscariam controlar o corpo, penetrar a alma e

mia não se expressa sempre do mesmo modo, tam pouco transmite invaria­

desvelar a interioridade de cada um. Em seguida, os autores da H istória d o

velmente o mesmo conteúdo. Por volta do século X V I, o advento de novas

rosto acrescentam que Foucault, entretanto, não tratou das ambivalências

configurações na econom ia, nas artes, nas ciências e nas tecnologias, na

em torno do desenvolvimento da expressão individual.5 Tal com o ocorre

religião e na política produziu, a partir de valores burgueses, humanistas,

com os demais autores que fundamentam as considerações de Courtine e

antropocèntricos e individualistas, profundas transform ações nas manei­

Haroche sobre a expressividade moderna, Foucault é lido com m e il faut,

ras de agir e pensar dos europeus e, por extensão, instaurou novas formas

ou seja, de modo crítico e conseqüente.

de expressão para o homem ocidental moderno: o rosto é capital nas per­

N os anos que se seguiram à publicação da H istória d o rosto, Courtine

cepções de si, nas sensibilidades do outro, seja nos rituais da sociedade civil

continuou a se interessar por diferentes campos de saber e por diversos

seja nos protocolos da política.

objetos: da análise do discurso às transformações da sensibilidade face às

Houve uma série de lentas metamorfoses nos modos de observar o ros­

deformidades corporais, passando pelas glossolalias, pela cultura e pela

to, por meio de um aumento das sensibilidades individuais que tornaram

política am ericana, pela história e crítica da AD e pelas novas formas do

a expressão cada vez mais efêmera e animada. Desde a Idade M oderna, ao tornar-se indiscernível da expressão singular de seu rosto, o indivíduo é ins­ tado a expressar-se para se constituir como sujeito social. Paradoxalmente,

4

“Esses m étodos que perm item o controle m inucioso das operações do co rp o , que realizam a su jeição co n stan te de suas forças c lhes im põem uma relação de d ocilidadc-u tilidade, são o que p odem os cham ar as disciplinas. M uitos processos disciplinares existiam há m ui­

o mesmo movimento que o instiga a exprimir-se impõe, em contrapartida,

to tem po: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas tam bém . M as as disciplinas se to r n a ­ ram no d ecorrer dos séculos X V II e XVI11 fórm u las gerais de d o m in ação ”. F o u c a u l t , M . 2

Op. c it., p. 82.

3

Histoire du visage. Exprimer et taire ses ém otions (du XVIe siècle au débitt du XIX e siècle). Paris: Payot, 1988. C o u r t i n e , J .- J .; H a r o c h e , C .

[1975]. Vigiar e punir : n ascim ento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 118. 5

“N a análise desses poderes, disciplinares ou individualizantes, os parad oxos constitutivos da individualidade estão, inicialm ente, ausentes” (op. c it., p. 11).

14

A presen tação

Análise do discurso político

15

dos poderes que se exercem sobre a carne, foi o de ter

até a contemporaneidade —incide sobre a exposição dos corpos e sobre o

inscrito definitivamente o corpo no horizonte histórico

olhar que os espreita:

da longa duração.’ A história dos monstros é, por conseguinte, tanto aque­ Ao afirmar que Foucault está presente em boa parte dos trabalhos da

la dos olhares que foram lançados sobre eles: aquela

H istória d o co rp o , Courtine não deixa, porém, de acrescentar, logo em

dos dispositivos materiais que inscreviam os corpos

seguida, que essa presença pode ser “explícita ou im plícita, reivindicada ou

monstruosos em um regime particular de visibilidade,

criticad a”. De modo análogo, ao sublinhar que é a Foucault que se deve a

aquela ainda dos signos e das ficções que os represen­

inscrição do corpo na história de longa duração, não se deixa de mencio­

tam; quanto aquela das emoções sentidas em face da

nar aqueles que contestam seu modo de pensar o exercício do poder sobre

deformidade hum ana."

os corpos. Considerando esse posicionamento de C ourtine frente ao pen­ sam ento foucaultiano, percebemos que sua leitura de Foucault reconhece-

Até o final do século X IX , as deformidades humanas eram exibidas

lhe os méritos, mas também identifica pontos passíveis de critica e aspectos

publicamente, sem nem sempre despertar maiores constrangimentos ou

de fenômenos por ele tratados sobre os quais é ainda possível avançar. E

melindres em seus espectadores: crianças microcéfalas, irmãos siameses,

justamente sob essa forma que Foucault se apresenta naquela que parece

mulheres barbadas, homens elefantes eram expostos em feiras populares;

ser a principal intervenção de Courtine na H istória do corp o, o longo ca­

espécimes teratológicos, apresentados em frascos, e patologias sexuais, em

pítulo intitulado “Le corps anormal: Histoire et anthropologie culturelles

museus de cera; morfologias exóticas e rituais selvagens eram , enfim, exi­

de la difform ité”. 10

bidos em zoológicos humanos. Além disso, a mise en scène de algumas

Com vistas a escrever uma história dos consecutivos sucessos, declí­

exibições incluía truques e ilusões de óptica, com o decapitados falantes,

nios e desaparecimentos da exibição das deformidades dos corpos humanos,

homens-macaco e mulheres-aranha. Depois de apresentar esse quadro,

Courtine concentra-se no período que se estende do começo do século X IX

Courtine sublinha o fato de que há menos de um século essas práticas

até o final do século X X . Trata-se, segundo ele, de tentar apreender uma

ainda eram comuns, embora pareçam “surgir de um passado bem mais

transformação fundamental do olhar contemporâneo sobre o corpo, con­

distante, de uma idade já há muito encerrada da diversão popular, de um

siderando a extração da diferença corporal do conjunto daqueles que eram

exercício arcaico e cruel do olhar curioso. Essas sensibilidades deixaram

antes concebidos como exceções monstruosas e sua inclusão no universo dos

de ser as nossas”.12

corpos comuns. Compreender essa metamorfose do olhar é essencial para

Na década de 1880, chegou-se ao apogeu da exibição do anorm al no

aqueles que buscam conhecer as formas de constituição da individualidade

interior de um dispositivo em que a exposição dos extraordinários, dos

moderna e contemporânea pelo viés da relação entre corpo e identidade.

deform ados, dos enfermos e dos mutilados tornou-se uma prática essen­

Para tanto, a história dos “monstros” —conforme a designação da tradição

cial das primeiras form as da indústria moderna de diversão de massa. Tam anhas são a distância e a diferença entre nossa mentalidade contem ­ porânea e a dos espectadores de então que mal conseguimos im aginar o alcance dessa prática tão corriqueira na cultura visual das cidades eu-

9

Op. c it., p. 9.

10 C o u r t in r , J .- J . Le corps an orm al. H istoire et an thropologie culturelles de la d ifform ité.

ropeias e norte-am ericanas daquele período. Os “m onstros” situavam-se

In: H istoire du corps. v. III. Les m utations du regard. Le X X e siècle. Paris: Seuil, 2006. p. 2 0 1 -2 6 2 [T rad ução brasileira: O co rp o anorm al. H istó ria e an trop olog ia cultu rais da

11 Op. c it., p. 202.

deform idade. In: História do corpo. v. III. Petrópolis: Vozes, 2 008.].

12 Op. c it., p. 203.

16

Análise do discurso político

A presentação

17

no centro dessa “teatralização do anorm al”, da qual eram a origem e o

meios coercitivos para essa pedagogia de massa, ao contrário de um espaço

últim o modelo e para a qual se apresentavam com o um princípio de in­

panóptico e de vigilância do Estado”. Nesse caso, trata-se antes de “uma

teligibilidade. Aqui novamente ouvimos os ecos de Foucault: “O espaço

rede flexível e disseminada de estabelecimentos de espetáculo, privados ou

singular que a figura do monstro ocupava então entre os ‘anorm ais’ não

públicos, permanentes ou efêmeros, sedentários ou nômades, os prelúdios

escapou a M ichel Foucault”, assevera C ourtine, transcrevendo na seqüên­

e, posteriorm ente, a form ação de uma indústria de diversão de massa que

cia uma passagem de Les anormaux-, “O monstro é o modelo ampliado,

distrai e fascina”.15

a form a, desenvolvida pelos próprios jogos da natureza, de todas as pe­

Outra interpretação foucaultiana contra a qual Courtine se posiciona

quenas irregularidades possíveis. E, nesse sentido, podemos dizer que o

é aquela que concebe a monstruosidade como exceção, no final do século

m onstro é o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias”.13

X IX . Para Foucault, o monstro, fenômeno extremo e raro, viola as leis da

Eis aqui um aparente paradoxo: “O monstro é o grande modelo de

natureza e da sociedade. Ele é anôm alo e ilegal. De acordo com Foucault,

todos os pequenos desvios”, mas a exibição das mais graves deformidades

“só há monstruosidade onde a desordem da lei natural vem tocar, abalar,

subsume-se à exposição, vigilância e punição das leves diferenças ordinárias.

inquietar o direito”. Courtine salienta, entretanto, que a observação cien­

Os criminosos, os libertinos e os degenerados - enfim, os “anormais” — ao

tífica sobre os monstros e o posterior reconhecimento de seu caráter hu­

mesmo tempo derivam dos monstros e decretam seu fim. Ao perder a força

mano progressivamente suprimiram sua condição de “contra a natureza” e

de uma alteridade radical, o monstro ganha um poder de disseminação que

“fora da lei”: “Por essa razão, é difícil seguir inteiramente M ichel Foucault

alcança uma ampla gama de variadas delinquências criminais e de peque­

em sua análise do caráter de exceção irredutível do monstro hum ano”. Em

nas deturpações sexuais: “o anormal é no fundo um monstro cotidiano, um

seguida, Courtine acrescenta que

monstro banalizado”.14 Diante da interpretação foucaultiana, Courtine re­ conhece a pertinência de certos aspectos que ela apresenta, mas não sem lhe

Foucault, com justeza, observa que a questão do monstro

acrescentar uma perspectiva histórica distinta, que, de certo modo, modifica-

aparece em um domínio que ele qualifica de “jurídico-

a sem necessariamente recusá-la por inteiro: a difusão do “poder de norma­

biológico”. [...] Não poderíamos dizer, entretanto, que

lização” sobre as pequenas diferenças não significou o desaparecimento da

o desenvolvimento de uma teratologia científica tenha

exibição das grandes deformidades durante o século X IX . Ao contrário, em

vindo confirmar a parte “biológica” dessa interpretação:

face do monstro, os menores desvios frequentemente se desvaneciam; na pre­

os princípios sobre os quais ela se baseia estabelecem

sença do “monstro” obliteram-se as demais e menores diferenças.

que o monstro, longe de ser “contra a natureza”, obe­

Q uando Foucault analisa a emergência e a extensão do poder de nor­

dece completamente às leis dessa última. Sua lição é cla­

malização que recai sobre as múltiplas figuras do anormal durante o século

ra e simples: o corpo monstruoso é um corpo humano.

X IX , seu enfoque privilegia os campos científico e jurídico. Por seu turno,

[...] O estabelecimento pela ciência do caráter humano

Courtine sustenta que se a normalização está presente nesses dom ínios, o

das monstruosidades iria ter conseqüências fundamen­

estabelecimento da norma se dá principalmente por meio das diversas e

ta^ quanto à atribuição de uma personalidade jurídica

corriqueiras ocasiões de exposição popular das anormalidades corporais

aos monstros: do mesmo modo como não era “contra a

humanas. Ainda diferentemente de Foucault, Courtine postula que nesse

natureza”, o monstro não estava fadado a permanecer

dispositivo de exibição dos monstros não existe “nenhuma necessidade de

“fora da lei”. A ciência havia reinstalado o monstro em

13 F o u c a u l t , M . [1975]. Os anorm ais. São Paulo: M artin s Fontes, 2001. p. 70-71. 14 O p. c it., p. 7 1 .

15 C ou rtin e (2006, p. 207).

18

A nálise do discurso político

A presentação

19

seu devido lugar na ordem da natureza; o direito o rein­

político, sem jam ais descurar da articulação entre as duas dimensões cons­

tegra à sua ordem da lei.16

titutivas do discurso: a lingüística e a histórica. Ademais, uma sua leitura atenta proporciona necessariamente a iniciados e iniciantes das ciências

Parece-nos ingênuo e improdutivo buscar a interpretação correta nes­

humanas um maior refinamento em suas interpretações da produção dos

sas distintas reflexões ou atribuir a exclusividade da verdade a Foucault ou

sentidos na sociedade. Por outro lado, examinando-a no conjunto da obra

a Courtine. Definitivamente, não é esse nosso propósito, mesmo porque,

de Courtine, percebemos que o autor pode ser concebido ainda e sempre

nesse caso, os trabalhos de ambos não com partilham os mesmos escopo

com o um analista do discurso político, em sentido amplo e profundo: em

e objeto. A respeito dos “m onstros”, enquanto Foucault enfatiza obliqua­

que pesem as inflexões da trajetória de seu pensamento, Courtine contínua

mente uma sua propriedade — a raridade —, Courtine privilegia explici­

e incessantemente buscou compreender as relações de força e de sentido

tamente um fenômeno que o envolve, qual seja, sua exibição. Enquanto

inscritas ora no discurso político, ora nas expressões do rosto moderno,

Foucault sublinha a vontade popular de vê-los suprimidos e a piedade que

ora ainda nas deformidades do corpo e no olhar que incide sobre elas.

eles despertam, Courtine ressalta a curiosidade, a inquietação e o fascínio

Talvez ainda assim alguém pudesse objetar: a publicação de um anti­

do olhar que os procuram. Foucault investiga a emergência dos anormais

go texto francês de Análise do discurso, em tempos em que a AD brasileira

e do poder de norm alização; Courtine, a transform ação das sensibilidades

já se encontra tão forte e bem estabelecida, reproduz e reatualiza, uma vez

em face das deformidades do corpo humano. Os diálogos que Courtine

mais, o paradigma de colonização europeia do pensamento nacional. A

estabelece com o pensamento de Foucault demonstram com o ele apropria-

essa objeção prenhe de ingênua xenofobia responderíamos que nossa in-

se de modo produtivo do pensamento alheio, sendo-lhe fiel, na medida em

terlocução com Courtine nos ensinou que —diferentemente de outras prá­

que lhe critica e potencializa seu alcance.

ticas acadêmicas estrangeiras que apagam fundadores e que por aqui criam

Autor e obra aludidos, voltemo-nos a uma questão que a publicação

nichos de disseminação de sua produção pasteurizada — sua obra e suas

de Análise d o discurso p olítico poderia suscitar: por que razão traduzir e

intervenções são estímulos constantes à criatividade de nosso pensamento,

publicar este ano, no Brasil, a versão modificada de uma tese de doutorado

por meio de nossa prática imemorial de nutrirmo-nos antropofagicamente

francesa defendida em 1980 e inscrita num dos domínios da lingüística na­

de ideias, em princípio, fora de tempo e lugar. A publicação e a conseqüen­

cional? Antes de tudo, porque se trata de um clássico em Análise do discur­

te leitura de Análise d o discurso político podem, por isso, dar ensejo a um

so e de uma leitura quase obrigatória aos cientistas sociais, cujo acesso es­

antigo desiderato de nossa form ação identitária e intelectual. Vejamo-lo

tava restrito a um pequeno grupo de iniciados. O texto de Courtine apenas

em seguida, com vistas a encerrar esta apresentação.

podia ser lido por aqueles que, de posse do material de circulação bastante

A consolidação da Análise do discurso no Brasil é parte de um todo

restrita, dominam consideravelmente a língua francesa. Tratava-se, antes

que se repete há tempos e expõe novamente nosso melhor e nosso pior: de

desta edição brasileira, de obra muitíssimo conhecida, bastante citada e

um lado, a capacidade de bem adaptar, de reelaborar e de desenvolver prá­

efetivamente pouco lida.

ticas e pensamentos alheios que nos parecem nunca ter sido inteiram ente

Sua publicação justifica-se ainda pelo fato de que a obra traduzida

estranhos; de outro, a banalização de ideias e o desleixo na execução de

tem um estatuto de divisor de águas para os estudos do discurso, à medi­

procedim entos operacionais que deviam ser levados a cabo de modo per­

da que, apoiando-se na arqueologia foucaultiana, demonstra com dados,

sistente e rigoroso. Com efeito, a observação e a experiência m ostram que

teoria e método o funcionamento heterogêneo da memória no discurso

cada cultura experim enta, absorve, assimila e/ou reprocessa dos legados de outras tradições de pensamento tão-som ente aquilo que se ajusta e se

16 Op. c it., p. 2 3 0 -2 3 1 .

ajeita aos seus modos de agir e pensar. A AD nasceu com o o Brasil e talvez

20

A nálise do discurso político

também por essa razão tão bem se instalou por aqui: nasceram am bos de um processo que une o distinto e cria um uno diverso em si mesmo. Trata-

PREFÁCIO

cerne de força e de debilidade. M ovidos pelo desejo de fazer prosperar

O ESTRANHO ESPELHO DA ANÁLISE DO DISCURSO

ainda mais a prim eira, em detrimento da últim a, damos a ler ao público

Michel Pêcheux1

se de uma mistura bem e malsucedida de diferenças, dotada no mesmo

brasileiro uma pequena, mas representativa fração do conjunto da obra de Jean-Jacques Courtine. Carlos Piovezani e Vanice Sargentini

“ Estou convencido de que, se não víssemos as pessoas

São Carlos, outono de 2009

m ovimentarem os lábios, não saberíam os quem fala em uma sociedade, tam pouco saberíam os qual é o objeto real em uma perfeita sala de espelhos.” G . C . Lichtenberg

Neste espaço incerto em que a língua e a história se defrontam —e se enfrentam —mutuamente, o termo Análise do discurso conquistou progres­ sivamente reconhecimento: algumas fachadas institucionais, oferta e procu­ ra, circulação cada vez m aior... Paradoxo de um reconhecimento implanta­ do em uma área marginal: ainda uma cidade construída no campo? São alguns traços desse paradoxo que eu gostaria de definir aqui, in­ troduzindo a leitura de J.-J. Courtine. O paradoxo da Análise do discurso encontra-se (por suas vicissitudes, guinadas e derrotas) na prática indis­ sociável da reflexão crítica que ela exerce sobre si mesma sob a pressão de duas determinações maiores: de um lado, a evolução problem ática das teorias lingüísticas; e de outro, as transformações no cam po político-histórico. São, portanto, dois estados de crise que se encontram no ponto crítico da Análise do discurso. Esse encontro é comprovado pelo fato de que tal disciplina parece ter experimentado desde suas origens uma tendência irresistível, na França, a

1

C .N .R .S . Université de Paris V II.

22

Prefácio

Análise do discurso político

23

eleger com o objeto de estudo os “discursos políticos” (mais frequentemente

firmada (tendendo a tratar os nativos da política com o imbecis) que vigora

os de esquerda) para auscultar suas especificidades, alianças e demarcações.2

alternadamente. De que afinal se busca proteção nesse jogo de esoelhos em torno de

Essa inclinação irresistível, porém, tem uma história própria, visto que é afetada pela história: a análise dos discursos (políticos) surgiu na

uma falta cujas posições se refletem e se alternam infinitamente? Que falta

forma de um trabalho político e científico especializado, visando a tom ar

e preciso exorcizar por meio dessa laboriosa série de dispositivos artificiais

posição em um campo ideologicamente estruturado (demonstrando/cri­

de leitura, que vai da contagem léxico-estatística dos vocábulos à análise

ticando/justificando este ou aquele discurso, inscrito nesta ou naquela

sintática das seqüências, à desconstrução dos mecanismos enunciativos e

posição). Os deslizes e os ressurgimentos que afetam o campo político,

das “estratégias argumentativas”?

particularm ente o francês, parecem determinar uma inflexão do trabalho

Não se deveria ver em tudo isso o sintoma contraditório de uma dupla

de análise para a explicação das determinações a longo prazo e das cau-

impaciência (dupla porque tange ao campo das ciências pelo viés da Lin­

salidades de longa duração: de fato, os discursos políticos, muito além de

güística e ao da política), empenhando-se em descobrir o que se esconde

sua função de camuflagem e de autojustificação, constituem tam bém um

sem cessar no que se diz?

vestígio, uma rede de indícios para compreender concretam ente com o se

Tal impaciência não poderia deixar de encontrar no “discurso comu­

chegou até aqui e, ao mesmo tempo, para reconstruir a memória histórica

nista” seu objeto privilegiado, correndo o risco às vezes de se ver presa a ele a

a partir deles, em especial a do movimento operário.

ponto de refleti-lo e de reproduzi-lo: tratar-se-ia finalmente de uma questão

Retrospectivamente, a Análise do discurso (político) mostra-se assim

de cientistas comunistas dedicados à análise do discurso por meio do discur­

com o veiculadora de uma política (da Análise do discurso), mantendo uma

so comunista, compreendido como esse espelho histórico excepcional em

relação fundamentalmente ambígua com o que tomo a liberdade de chamar

que precisamente a “ciência” vem supostamente condensar-se na política? Simultaneamente, porém, é certo que o questionamento de tal impaciên­

aqui de im becilidade. Fazer análise do discurso não seria, de fato, pressupor uma falta (uma

cia teórica da Análise do discurso (e o reconhecimento do que fracassou em

deficiência, carência ou paralisia) que afeta a prática “natural” da leitura

suas descobertas)4 raramente acontece hoje sem uma interrogação política so­

e da escrita políticas, a qual uma p rótese teórico-técnica, mais ou menos

bre a história das práticas comunistas, tais como inscritas na discursividade. Assim, o questionam ento teórico de toda concepção homogeneizan-

sofisticada, pretenderia preencher? Conform e o lugar que a Análise do discurso atribui para si em relação

te da discursividade, classificando-a em tipologias e concebendo-a como

a essa falta, trata-se ou do fantasma da objetividade minuciosa (que con­

a identidade de um mesmo que se repete,5 seria — sobretudo quando se

siste literalm ente em se fazer de imbecil, impedindo-se de pensar no senti­ do sob a textualidade)3 ou daquele da posição partidária cientificamente

4

D e m odo an álo g o à decepção dos historiad ores diante de m ontanh as m etod ológicas que geram resultados pífios.

5

J .-J. C ou rtin e realiza, a respeito disso, uma releitura das teses de F o u cau lt, p articu larm en te sobre a n o ção de form ação discursiva, inicialm ente apresentada cm Arqueologia d o saber.

2

3

B asta percorrer, p o r exem plo, a lista dos núm eros da revista Langages dedicados à p ro­

Em relação às p osições subjacentes à A nálise autom ática do discurso em sua versão origi­

blem ática do discurso. As referências ao discurso estatal-ju ríd ico, bem com o ao discurso

nal (1969), que im plicava bru talm ente uma hom ogeneidade do corpus discursivo en quan to

pedagógico c científico, estão presentes, mas (legitim am ente) subordinadas à questão do

fundam ento do reproduzivel, tal releitura salienta o fato de que o caráte r reproduzível do

discurso político. T al dualidade (política/ciência), constitutiva da A nálise do discurso, p a­

enunciado, com as conseqüências que disso resultam q u an to ao efeito de identidade de

rece ter quase sem pre co n to rn ad o a especificidade do discurso p olítico de direita, am pla­

sentido associad o à paráfrase, não deve ocu ltar a heterogeneidade estru tural de qualquer

m ente in scrito , porem , na trad ição política francesa.

form ação discursiva. Por o u tro lado, perm anecem problem as sobre os critério s de identifi­

“A nálise do discurso? É esta disciplina que leva dez anos para estabelecer o que um leitor

c ação das form ações discursivas e dos enunciados: essa releitura m antém um a identidade

m edianam ente experiente com preende em dez m inutos?” (provocação espontânea de um

da form ação discursiva na form a de: “há uma form ação discursiva com u n ista” . Q u al é o

n ão esp ecialista, que se reconhecerá talvez nessa “co m u n icação o ra l”).

estatu to desse “h á ” ?

24

A nálise do discurso político

Prefácio

25

escolhe estudar um aspecto do discurso comunista - indissociável de um

nhas a questão da relação das direções com as massas populares enquanto

questionam ento político da homogeneidade estratégica sob a qual esse

relação com o outro.

discurso se apresenta através de seus órgãos oficiais de expressão? O dis­

J á que se trata de temas religiosos, tomo a liberdade de retomar o

curso de direção do Partido Comunista Francês (PCF), no processo de

termo Transubstanciação7 para designar este estranho processo pelo qual,

união-desunião da esquerda, constitui, desse ponto de vista, um sintoma

assim com o o pão e o vinho se transformam em corpo e em sangue de

discursivo em que se condensam as táticas de deslocam ento da questão, a

Cristo, a vontade popular se transubstancia em poder da classe burgue­

retórica da dupla linguagem e o encobrimento da contradição.

sa dominante. De uma maneira análoga (por meio das homologias entre

Se hoje é fácil considerar —ou fingir considerar —esse discurso como

o aparelho comunista e o aparelho de Estado burguês com o qual ele se

a realidade do comunismo (seja para seguir seus passos ou jogar essa rea­

contraidentifica), a vontade política daqueles que entram, saem, hesitam,

lidade nas lixeiras da história), uma aposta continua em aberto: manter a

circulam na “base” do PCF transubstancia-se em poder de uma direção

existência de um enunciado político que enfrenta a realidade atual, colo­

imutavelmente instalada em seus cálculos estratégicos.

cando ao mesmo tempo em questão a artificialidade dessa homogeneidade

Por trás de tudo isso e além das denegações: o medo frente às mas­

do “discurso com unista”. Foi esse caminho teórica e politicam ente incô­

sas, com todos os efeitos de legitim ação dos porta-vozes que resultam

modo que percorreu J.-J. Courtine.

inevitavelmente disso.

O resultado repercute, como se verá no texto de J.-J. Courtine, particu­

M edir esse medo é certam ente, do ponto de vista que nos interessa

larmente na forma da noção de enunciado dividido, caracterizando o fato

aqui, com eçar a se desprender da inclinação, ainda quase exclusiva, da

de que uma formação discursiva é constitutivamente perseguida por seu ou­

Análise do discurso pelos enunciados legitimados de porta-vozes (textos

tro: a contradição motriz não resulta do choque de “ corpora contrastados”,

impressos, declarações oficiais, etc.) e aceitar o confronto com essa “me­

cada um veiculando a homogeneidade dos antagonistas, mas desse efeito

mória sob a história”8 que percorre o arquivo não escrito dos discursos sub­

de sobredeterminação pelo qual a alteridade o afeta; foi justamente essa

terrâneos sob essas múltiplas formas orais, estudados pelo grupo Revoltes

heterogeneidade que o sujeito “repleto” do discurso comunista recalcou por

logiques ou por historiadores marxistas ingleses, como Ralph Samuel.

meio de um uso ritualizado da interrogação, em que a questão só faz sen­

Essa heterogeneidade discursiva, feita de trechos e fragmentos, inte­

tido porque a resposta já é conhecida: o idealismo ventríloquo, mestre na

ressa na medida em que nela podem ser determinadas as condições con­

arte de falar no lugar do outro, isto é, por ele, a seu favor e em seu nome.

cretas de existência das contradições pelas quais a história se produz, sob

E por esse viés que se impõe a questão teórica do “discurso de alian­

a repetição das memórias “estratégicas”. Tal determinação também impli­

ça ”, característico do discurso político proveniente da Revolução Francesa

ca a construção dos meios de análise lingüística e discursiva e supõe uma

e do qual J.-J. Courtine explorou um aspecto específico sob a forma do

reflexão sobre o que trabalha na e sob a gram ática, à margem discursiva

“discurso comunista voltado para os cristãos”. Revela-se que tal discurso

da língua. N ão se trata, portanto, de uma reinvenção do m ito antilinguís-

não constitui nem uma manobra tática, nem uma real confrontação, mas

tico da fala livre, bela selvagem que escapa às regras.

um autêntico diálogo d e surdos entre duas organizações altam ente estrutu­

Do mesmo modo, parece ser crucial afastar a ideia, tanto sedutora

radas do ponto de vista estratégico,6 por trás do qual aparece nas entreli­

quanto falsa, de que as ideologias dominadas, por não serem o simples

6

7

A estrutura estratégica desses diálogos de surdos é m arcada especialm ente por clivagens enunciativas do tipo “É X q u e ...N ã o é X q u e ... é Y ”, cu jas recorrên cias J .-J. C ou rtin e es­ tuda, no m om ento op ortu n o, num cam po discursivo da atualidade: a m em ória estratégica fu nciona por repetição.

O term o é utilizad o na m esm a perspectiva p or L. A lthusser em “C e qui ne peut plus durer dans le parti co m m u niste” (M aspéro, collection . “T h é o rie ”, 1978).

8

C on form e o recente nu 30 da revista Dialectiques> “Sous P histoire, la m ém oire” , p articu ­ larm en te a entrevista com R alph Sam uel.

26

A nálise do discurso político

reflexo inverso da ideologia dominante, constituiriam espécies de germes

INTRODUÇÃO*

independentes: elas nascem no lugar mesmo da dom inação ideológica na forma dessas múltiplas falhas e resistências, cujo estudo discursivo concre­ to supõe abranger o efeito do real histórico que, no interdiscurso, funciona com o causalidade heterogênea, e, ao mesmo tempo, o efeito do real sintá­ “ Tal contradição, longe de ser aparência ou acidente

tico, que condiciona a estrutura internamente contraditória da seqüência

do discurso, longe de ser aquilo de que é preciso li­

intradiscursiva.

berta-lo para que ele libere, enfim, sua verdade aber­

Compreendida entre o real da língua e o real da história, a Análise do

ta, constitui a própria lei de sua existência: é a partir

discurso não pode ceder nem para um, nem para o outro sem cair imedia­

dela que ele emerge, é ao mesmo tem po para traduzi-

tamente na pior das complacências narcísicas.

la e superá- la que ele se põe a falar, é p ara fugir dela

Seria estranho que os analistas do discurso fossem os últimos a saber

enquanto ela renasce sem cessar através dele, que ele

da conjunção existente entre a cegueira quanto à história e a surdez quanto

continua e recomeça indefinidamente, é por ela estar

à língua que diz respeito a seus objetos e a suas práticas.

sempre aquém dele e por ele jam ais poder contorná-la

Já era hora de com eçar a quebrar os espelhos.

inteiramente que ele muda, se m etam orfoseia, escapa de si mesmo em sua própria continuidade. A contra­ dição funciona, então, ao longo do discurso com o o principio de sua historicidade.” M . Foucauh. A A rqueologia do Saber

"A luta do homem contra o poder, é a luta da memória contra o esquecim ento.” M . Kundera. O Livro do R iso e d o E squecim ento

1. UM PROJETO PARA A ANÁLISE DO DISCURSO Na apresentação que J. Dubois dedica a um número recente da revista

Langages sobre a Análise lingüística do discurso jauresiano

(C h auveau,

1978), ele lembra alguns dados fundamentais sobre os quais se apoia a

*

Síntese da tese de d ou torad o “Alguns problem as teóricos e m etod ológicos em A nálise do discurso: o discurso com unista endereçado aos cristã o s", defendida em 1980, na Université de Paris X/N anterre. Um a versão aproxim ada deste texto foi publicada em francês no núm ero 62 da revista Langages, cm 1981.

28

Análise do discurso político

In tr o d u ç ã o

Análise do discurso, e isso por meio das diferentes variantes m etodológi­

por hipótese, definem a estrutura do discurso; e essas rc

cas que essa disciplina conheceu desde o momento em que foi inaugurada

lações são aquelas que os termos do texto (palavras, sm

na França, nos anos 1968-1970. A Análise de discurso está submetida aos

tagmas, frases) mantêm entre si” (D ubois , op. cit., p. 3).

seguintes princípios:

a) Ela deve realizar o fechamento de um espaço discursivo

O procedimento de determinação de tais relações pode variar, tomar a forma do reconhecim ento de coocorrências entre elementos do texto, ou expressá-los em termos de dependências (derivações gram aticais que

A Análise do discurso, para poder operar, supõe enunciados terminados, espaços discursivos limitados: isso significa que se lida com textos naturalmente fechados ou que, por diver­ sos artifícios, procede-se explicitamente (por amostragem) ou implicitamente (por generalização a partir de fragmen­ tos) a um fechamento do texto (D ubois, 1978, p. 3).

valem por seqüências de operações). O princípio permanece, entretanto, inalterado: caso se formule a hipótese de uma estrutura do discurso, re­ conhecível na coocorrência e na recorrência de certos elementos, e s s a e s ­ tr u tu r a d e v e s e r g r a m a t i c a l m e n t e c a r a c t e r i z a d a . O discurso, com o objeto,

conserva uma relação determinada com a língua, e a possibilidade mesmo de uma Análise do discurso estabelece-se em tal relação. Qualquer pro cedimento de Análise do discurso encontra na Lingüística seu cam po di

Essa primeira exigência apresenta à Análise do discurso a questão da c o n s t i t u i ç ã o d o c o r p u s d i s c u r s i v o : como limitar um espaço discursivo? Com o decidir sobre o fechamento de um c o r p u s discursivo, sobre o pertencimento deste ou daquele texto a um corpus? Que forma atribuir a um c o r p u s de discurso que não faça deste um simples c o r p u s de língua? Qual

a especificidade de um c o r p u s discursivo que o distingue dos conjuntos de objetos empíricos que o fonólogo ou o gram ático manipulam em sua descrição da língua? Essas interrogações requerem certamente que se superem as conside­ rações gerais dos princípios empíricos pelos quais a resposta dada apresen­ ta-se determinada: “exaustividade”, “representatividade”, “hom ogeneida­ de” do c o r p u s , adequação da forma do c o r p u s “às finalidades da pesqui­ sa”... Seria sem dúvida conveniente dar aos procedimentos de reunião e de organização dos dados empíricos em Análise do discurso um estatuto

validação... e o risco correlato de reduzir o discurso à língua. Essa questão condensa-se, em Análise do discurso, na caracterização do e n u n c i a d o . Se é verdade que, “como toda análise lingüística, a Análise de discurso fundamenta-se em um certo número de axiom as que tangem à sinonímia, à paráfrase, à relação predicativa e que possibilitam o fun cionam ento do enunciado (o u s e j a , e u q u e r o d i z e r q u e . . . ) ' ’ (D u b ois, op. cit., p. 3), com o atribuir um funcionamento a esse objeto, fora das catego rias lingüísticas (frase, proposição) nas quais, espontaneamente, se tende a representá-lo? Que propriedades atribuir ao enunciado, que representação propor dele em uma ordem do discurso que não seja a simples réplica da ordem da língua? A respeito da definição do enunciado, bem com o a respeito da deter minação de um c o r p u s discursivo, o problema está na e s p e c i f i c i d a d e d o d i s c u r s i v o em sua relação com o lingüístico.

teórico que lhes falta.

b) Ela supõe um procedimento lingüístico de determinação das relações inerentes ao texto

c) Ela produz, no discurso, uma relação do lingüístico com o exterior da língua A interpretação dos resultados obtidos pela análise ilr

“A análise de discurso implica a aplicação de um método para determinar as relações inerentes ao texto, as quais,

discurso só pode resultar de uma comparação interna entre dois ou vários enunciados e do estabelecimento de

30

In trodu ção

A nálise do discurso político

31

um a co rresp o n d ên cia co m m od elos n ão lin gü ísticos. D e

antecipar algumas características gerais do ponto de vista que desenvolve­

fa to , o d iscu rso realizado , independentem ente da variável

mos aqui:

“ lín g u a ” , im p lica três sistem as de variáveis: um considera o locutor, o o u tro, os tem as do en u n ciad o e os ú ltim os,

(1)

dade. A adoção de um ponto de vista especificam ente discursi­

enfim , as co nd içõ es de p ro d u ção do p ró p rio en u nciad o (Dubois, op. cit., p.

O discurso, com o objeto, deve ser pensado em sua especifici­

vo deve evitar, se é verdade que no discurso se estabelece uma

4 ).

determinada relação entre o lingüístico e o ideológico, reduzir Dessa forma, o discurso é pensado como uma relação, uma corres­

o discurso à análise da língua ou dissolvê-lo no trabalho his­

pondência entre língua e questões que surjam no exterior desta, no que diz

tórico sobre as ideologias; porém, deve levar em conta a mate­

respeito a todo discurso concreto: quem fala, qual o sujeito do discurso, e

rialidade discursiva como objeto próprio, isto é, produzir a seu respeito propostas teóricas.

como é possível caracterizar a emergência do sujeito nos discursos? Do que fala o discurso, como identificar dentro dele a existência de temas determi­

(2)

Essas propostas teóricas devem conduzir ao estabelecimento de

nados? Em quais condições, enfim, o discurso é produzido, mas também

procedim entos que vêm realizar sua montagem instrumental em

compreendido e interpretado? Em que medida tais condições inscrevem-se

um campo metodológico. A materialização, sob a forma de pro­

na relação do discurso com a língua? Como o exterior da língua se reflete na

cedimentos determinados, de um corpo de propostas teóricas

organização lingüística dos elementos do discurso?

que visam ao discurso como “objeto de conhecimento” expõe o discurso como objeto empírico concreto, ou “objeto real”. E a condição na qual pode ser empregada1 a expressão “o objeto da

•««

Análise do discurso” ou “o discurso como objeto”. (3)

Esse conjunto de princípios delimita o espaço das questões nas quais

A etapa a ser seguida deve, em seu conjunto, ser explícita, o que é uma condição de sua reprodutibilidade e, talvez, acima de

se inscreve nosso trabalho; tratar-se-á de análise d o discurso p o lític o , já

tudo, da possibilidade de ser criticada: desejamos que a descri­

que o corpu s da pesquisa consistirá em um conjunto de discursos do Par­

ção do quadro teórico da pesquisa e dos procedimentos que ele

tido C om unista Francês dirigido aos cristãos, de 1936 a 1976, no âm bito

organiza seja suficientemente explícita para abrir um conjunto

de sua “política da mão estendida”. Assim, esse trabalho insere-se na

de questões, expondo-se da maneira mais amplamente possível

tradição daqueles que, no cam po da Análise do discurso na França, fize­

à crítica.

ram do discurso político um objeto de estudo privilegiado da relação da língua com as ideologias.

São especialmente essas noções e procedimentos que colocam os à

N o interior dessa problemática coexistem, porém, abordagens dife­

prova neste trabalho (forma de corpus, condições de produção de uma

renciadas do conjunto das questões que o discurso político faz surgir: há

seqüência discursiva vs. condições de form ação de um processo discursivo,

algumas preocupações que compartilhamos com este ou aquele tipo de trabalho, outras que nos são estranhas. Efetuaremos, no decorrer do tra­ balho, as distinções que se impõem, situando nossa posição no interior dessa configuração de questões e de problemas. Já podemos, entretanto,

1 A distinção entre “o b jeto de conh ecim ento” (objeto teórico, ab strato, de pensam ento) e “o b je to real” (ob jeto em pírico concreto) é proveniente dos trabalhos de L. A lthusser (1968, p. 49 -6 9 ), que situa a con trad ição constitutiva de todo o b jeto científico. O o b je to cien tí­ fico im prim e, assim , a form a de uma relação contraditória entre o b je to real e o b je to de conh ecim ento; a respeito deste últim o, é conveniente acrescentar que ele é “absolutam ente distinto do o b je to real, (...) do qual procura justam ente o con h ecim en to” (op. c it., p. 46).

32

In trodu ção

Análise do discurso político

33

domínio de memória, a definição de diferentes formas de enunciado, uma

A noção de autonomia relativa da língua caracteriza a in­

concepção da relação enunciado/enunciação, etc.). Esperam os, igualmen­

dependência de um nível de funcionamento do discurso

te, sem que estejam os, entretanto, sempre certos disso, que a apresentação

em relação às formações ideológicas’ que nele se encon­

dessas noções ou procedimentos não imprima um aspecto “com pacto”

tram articuladas, nível de funcionamento relativamente

demais e conserve o traço, em suas lacunas e tam bém em suas falhas, das

autônomo a partir do qual a Lingüística formula a teoria.

questões que se apresentaram a nós. E que não se veja tam bém , nas pró­

O conceito que permite pensar esse nível de funcionamen­

ximas páginas, um sistema fechado de respostas sobre o discurso, mas um

to é o da língua. A autonomia é relativa, pois na produção

questionam ento quanto ao discurso.

e na interpretação do que se chama de “seqüências dis­ cursivas”, ou seja, dos discursos “concretos”, as fronteiras entre o que é do domínio da autonomia relativa da língua

***

e o que é do domínio da determinação desses discursos “concretos” por formações discursivas, (...) não pode ser a priori determinada.

Dessa forma, o quadro teórico que estabelecemos está inscrito em uma posição determinada na área da Análise do discurso. Além dos princípios

Em outras palavras, afirmamos que todo discurso “con­

teóricos gerais que delimitam a área e que fornecem um quadro à descri­

creto” é duplamente determinado, de um lado, por forma­

ção, esta última integra um conjunto de elementos teóricos, formulados em

ções ideológicas que remetem esse discurso a formações

Análise do discurso, em resposta a preocupações de linguistas, filósofos ou

discursivas definidas, de outro, pela autonomia relativa da

historiadores, preocupações essas que tratam , no discurso, da relação da

língua, mas afirmamos também que não é possível traçar

língua com a história.

a priori uma linha de demarcação entre o que é de domí­

Esse conjunto de trabalhos visa ao que se pode cham ar

(P ê c h e u x ,

nio de uma ou da outra dessas determinações.

1975)

de “articulação” da Lingüística e do materialismo histórico com o “ciência da história das formações sociais e de suas transform ações” e, mais par­

Essa distinção entre base lingüística, relativamente autônom a, e pro­

ticularm ente, a essa parte do materialismo histórico denominada “teoria

cessos discursivos/ideológicos que se desenvolvem sobre essa base parece-

das ideologias” na releitura do corpus marxista realizada por L. Althusser.

nos fundamental por fazer da relação do lingüístico com o ideológico a

G ostaríam os, assim, de destacar o que nos parece, no desenvolvimen­

materialidade mesma do discurso: só ela pode autorizar a relevância das

to dessa posição em Análise do discurso, constituir uma aquisição teórica

relações de contradição, antagonismo, aliança, absorção... entre form a­

im portante: trata-se do conceito de form a çã o discursiva1 e da distinção

ções discursivas que pertençam a formações ideológicas diferentes e dar

entre processos discursivos e língua: se os processos discursivos constituem

conta, assim, do fato de que, em uma determinada conjuntura da história

a fonte da produção dos efeitos de sentido no discurso, a língua, pensada

de uma form ação social, caracterizada por um determinado estado das re­

com o uma instância relativamente autônom a, é o lugar material onde se

lações sociais, “sujeitos falantes”, tomados na história, possam concordar

realizam os efeitos de sentido. O que P. Henry (1975, p. 94) formulou da

ou discordar sobre o sentido dado às palavras, falar diferentemente, falan­

seguinte maneira:

do exatamente a mesma língua.

2

3

E x p o sto e desenvolvido no C ap ítu lo II.

D efinido n o C ap ítu lo II.

34

Análise do discurso político

Por meio dessa distinção que retomamos aqui, bem com o em vários momentos de nosso trabalho,4 expressa-se a obrigação de nossa pesquisa

In trodu ção

35

qual o m arxism o viria, a título social, integrar o cortejo disciplinado das Ciências Humanas.

para com o conjunto da problemática desenvolvida por M . Pêcheux: é,

Não pensamos igualmente que essa intervenção possa se reduzir ao

incontestavelmente, na totalidade de questões que a aplicação do procedi­

projeto voluntarista de uma “teoria do discurso”. A referência a esta última

mento de análise autom ática do discurso propunha a corpora discursivos,

expressão denota, no campo da Análise do discurso, uma atitude teoricista

desde 1969, e depois, nos elementos teóricos contidos em Les Vérités de la

que consiste em substituir o trabalho necessário de uma contradição pelo

Palice, que se deve situar a origem de nosso trabalho. As páginas seguintes

enunciado de sua resolução teórica, em que o marxism o venha novamente,

representam, sob esse ponto de vista, uma tentativa de discussão, redefini­

em uma versão de “esquerda” da interdisciplinaridade, “articular-se” à Lin­

ção, reconfiguração desse conjunto de propostas teóricas e metodológicas

güística e a uma teoria freudiana ao sujeito.

- um processo de reprodução do pensamento no interior do pensamento, o

Se a Análise do discurso está ligada a objetos atravessados pela luta de

esforço —muitas vezes incerto, sempre difícil - de uma filiação que não seja

classes, se, em Análise do discurso político, todo discurso concreto remete

uma repetição pura e simples.

a uma posição determinada na luta ideológica de classes, então é bem pos­

Essa questão, a nosso ver essencial, e além das ilusões subjetivas pelas

sível que o sentido primeiro de uma intervenção do m aterialismo histórico

quais um “sujeito pensante” concebe a relação de seu pensamento com

nesse campo teórico-prático seja o de lhe devolver os princípios, esquecidos

aquele de um outro sujeito, diz respeito à referência comum, que atravessa

de maneira diferente pelo sociologismo ou pelo teoricismo, da prim azia da

um conjunto de trabalhos em Análise do discurso, ao m aterialism o histó­

contradição so bre os contrários, bem como do caráter desigual da contra­

rico e dialético. De que maneira o marxismo pode hoje, enquanto ressoa

dição-, o que L. Althusser (1975, p. 148) sublinha nestes termos:

de todos os lados o barulho de seu fim ou de sua morte, enquanto o traço dos erros e dos crimes cometidos em seu nome está inscrito na memória

Ora, se posso avançar no que sustentei nos primeiros en­

coletiva, permitir que se pense em uma relação com o real em um campo

saios, mas na mesma linha, diria que a contradição, como

científico determinado? Essa “inquietude” quanto à intervenção do mar­

a encontramos em O Capital, apresenta a particularidade

xismo no processo de produção dos conhecimentos científicos no domínio

surpreendente de ser desigual, de colocar

da Análise do discurso - com o em sua intervenção no terreno das lutas

rios que não são obtidos afetando o outro do signo oposto

à

prova contrá­

políticas e sociais —constitui, para nós, uma condição incontornável, uma

ao primeiro, porque são tomados em uma relação de desi­

questão continuamente apresentada no momento em que nada poderia ser

gualdade que reproduz continuamente suas condições de

mais regulado na religião das fórmulas.

existência em conseqüência dessa própria contradição...

N o entanto, já que a referência ao marxismo corresponde, em Análise

A classe capitalista e a operária não têm a mesma histó­

do discurso, a tentativas contraditórias, gostaríamos de m ostrar que o sen­

ria, o mesmo mundo, os mesmos meios, a mesma luta de

tido de sua intervenção nessa disciplina não se aplica, a nosso ver, a uma

classe e, entretanto, confrontam-se e é sem dúvida uma

descrição sociologista da diferenciação lingüística d os “grupos so cia is”, na

contradição, na medida em que a relação de seu confron­ to reproduz as condições de seu confronto...

4

N a retom ada, por exem plo, das n oções, determ inantes de nosso p on to de vista, de in-

E a partir desse duplo princípio que o recurso ao m arxism o deve

tradiscurso (ou fu ncionam ento de uma seqüência discursiva em relação a ela m esm a) e

ser entendido em nosso trabalho; a contradição constitui um princípio

de interdiscurso (com o exterio r específico que determ ina um a form ação discursiva). Ver C ap ítu lo (I.

teórico que intervém na representação do real histórico, mas tam bém um

36

In trodu ção

Análise do discurso político

37

ob jeto d e análise, no sentido em que é a contradição desigual entre for­

implica igualmente, de forma crucial, a redefinição das opera­

mações discursivas antagonistas que é o objeto desse estudo. O tema da

ções de constituição de um corpus em AD;

contradição atravessa dessa forma nossa pesquisa, em diferentes níveis, de

(2)

o desenvolvimento atual de uma problemática da enunciação

maneira recorrente, com insistência; desejamos que nela produza um efei­

em AD constitui a manifestação de uma posição continuísta que

to de conhecim ento que testemunhe a presença do m arxism o com o corpo

coloca o discurso na continuidade da língua, acompanha-se de

teórico real e não com o língua d e m adeira.

um restabelecim ento psicossocial da relação entre língua e his­

tória e impede de pensar a materialidade específica do discurso. ***

Trabalhar essa problemática, criticar e superar essa posição são tarefas urgentes para a AD.

G ostaríam os, porém , antes de abordar o corpo desse trabalho, de encerrar essas observações introdutórias pelo exam e de um ponto pro­ blem ático na definição da Análise do discurso (doravante: AD) com o dis­

2. A RELAÇÃO DA AD COM A LINGÜÍSTICA

ciplina: a qu estão de sua relação com a Lingüística-, a AD, de fato, cons­ tituiu-se historicam ente em uma relação privilegiada com a Lingüística.

Pode parecer uma evidência o fato de as relações entre a Lingüística

Sem detalhar essa form ação histórica,5 pode-se no entanto ressaltar

e a AD serem muito estreitas: em uma acepção “am pla” da extensão do

que essa relação de proximidade estreita teve especialmente com o efeito

domínio da Lingüística, isso pode até incluir a AD, tornando-a parte cons­

delinear uma configuração epistêmica interna do domínio da AD que to­

tituinte de um dos “ram os” especializados dessa disciplina, a sociolinguís-

mou a forma de uma coexistência entre procedimentos de análise do enun­

tica. M esm o se nos referimos a uma extensão mais “estrita” do domínio

ciado (por uma aplicação dos métodos de análise distribucional em cor-

da Lingüística, aquela que delimita seu domínio a partir do corte saussu-

pora discursivos, no quadro da “análise harrisiana am pliada”, inspirada

riano, deve-se admitir que os objetos respectivos da Lingüística e da AD (a

no trabalho de

língua e o discurso) assim como a posição respectiva dessas duas regiões de

H a r r is

(1952)) e procedimentos de análise da enunciação

(proveniente da tradição de uma “lingüística da fala”, ilustrada pelos tra­

conhecimento, no recorte universitário do saber e das disciplinas, colocam -

balhos de Benveniste, Jakobson, etc.).

nas em uma situação de delimitação recíproca, ou seja, elas constituem a

Se os procedimentos de análise de enunciados constituem um estado

fronteira uma da outra.

inaugural da AD, as análises enunciativas tiveram mais recentemente um

Por serem estreitas, essas relações não deixam de ser paradoxais,

desenvolvimento crescente. Gostaríam os de antecipar as seguintes teses,

fato que os analistas de discurso tendem a esquecer na definição que eles

que desenvolveremos ao longo de nosso trabalho:

lhes propõem.

(1)

uma teorização especificamente discursiva que tenta afastarse dos modelos lingüísticos, da relação enunciado/enunciação, surge como uma questão central para AD e com o um objetivo

2.1 As POSIÇÕES DOS e AD

ANALISTAS DE DISCURSO SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE

L in g ü íst ic a

essencial de nossa pesquisa. A transform ação dessa relação É o “corte saussuriano” que se encontra em primeiro lugar envolvi­ 5

Expusem os, em outra o casião

(C

o u r t in e ,

1980, p. 1 1-45), elem entos gerais de descrição do

ob je to , do âm b ito , do dom ínio disciplinar e da história da AD.

do: a dicotom ia língua/fala, fundadora da Lingüística, “faz obstáculo” à

38

A nálise do discurso político

In trodu ção

39

constituição de uma AD. A relação da teoria saussuriana com o objeto

gua aos de discurso. Esse continuum, que vai da língua ao discurso, encon­

lingüístico geralmente é apresentada sob a metáfora do que encerra, com ­

tra-se repetido pela metaforização da mesma noção, a qual, atuando dessa

prime ou restringe, trate-se de um “espartilho”

vez no plano epistem ológico, coloca a AD no prolongamento da Lingüís­

é preciso “fazer explodir”, de um “ferrolho”

( R o b in ,

( G u e s p in ,

1973, p. 79) que

1971, p. 11) que é

preciso “fazer saltar”, de um “edifício”, onde se respira uma “atm osfera em pobrecida”, que é preciso “demolir”

( G u e s p in ,

1971, p. 1 2 ,1 4 ), ou final­

tica por intermédio de uma Lingüística do discurso à base de enunciação. E tal posição que aparece na seguinte formulação de Robin (1973, p. 32), apesar de uma restrição da autora:

mente de um “velho modelo”, do qual é preciso submeter o “bloqueio” a uma “ação erosiva”

( G u e s p in ,

1976b, p. 47, 48).

E,

pois, sobre as ruínas do

Esta Linguistica do Discurso, que recoloca completamen­

edifício saussuriano que se erguerá a AD (1976a, p. 11).

te em questão a distinção operada por SAUSSURE entre

N otem os que o caráter restritivo da com petência chom skiana é, do

língua e fala, com a condição de que ela se liberte de um

mesmo m odo, frequentemente ressaltado. Com isso, os analistas de dis­

modelo individualista, centrado numa problemática do

curso entendem indicar a impossibilidade de uma construção da AD que

sujeito, pode (...) engrenar numa teoria das ideologias

se efetue no interior dos paradigmas saussurianos ou chom skianos, o

(grifo nosso).

que parece perfeitam ente justificado, já que essas duas teorias se con sti­ tuíram rejeitando explicitam ente tal possibilidade.6 O bservem os, porém ,

Embreagem da língua sobre o discurso, embreagem da Lingüística so­

que na prática dos analistas de discurso, procedim entos oriundos desses

bre a AD, embreagem igualmente do discurso sobre seu exterior, isto é, sobre

quadros teóricos (com o os procedimentos distribucionais, as noções de

as condições de produção, como destaca Guespin (1976b, p. 50): “ ... será

frase de base ou de transform ação) são norm alm ente utilizados na cons­

útil não esquecer a faculdade do discurso de em brear sobre suas próprias

titu ição de sistem as de representação sem que o estatuto de tal uso tenha

condições de produção” (Idem , 1976a, p. 11, grifo nosso).

sido interrogado.

A noção de embreagem se encontra, assim, retomada em diferentes

Convém notar igualmente que as referências da AD à Lingüística re­

níveis. Ao perder sua especificidade primeira, parece reencontrar aí, com o

correm, cada vez com maior frequência, às noções produzidas na proble­

o “obstáculo verbal” de Bachelard (1938), uma parte de seu sentido co­

m ática da enunciação, isto é, no exterior dos quadros teóricos estritamente

mum: encontra-se, de fato, tomada na m etáfora de um deslocam en to li­

saussurianos ou chomskianos, na tradição do que chamamos de “lingüística

near e contínuo que certamente conhece seus bloqueios, seus freios, suas

cr) £

da fala”/ t) mesmo ocorre com o uso das noções de pressuposição, dêixis, / X / índices de pessoa, performativos e embreadores. O papel dessa última no-

suspensões, mas também suas retomadas, seus recomeços. E sob essa m etá­

^

ção, oriunda de Jakobson (1963), parece-nos claramente indicativo da ma­

Lingüística e AD.

* u

neira pela qual os analistas de discurso pensam a relação da Lingüística com a AD e, mais geralmente, dos fatos de língua com os fatos de discurso. “Os embreadores {eu, aqui, agora) permitem situar essa presença do sujeito falante em seu texto”

i tD

fora que se expressa principalmente a posição continuísta da relação entre A distinção que operam os na Introdução entre base lingüística e processos discursivos não pode contentar-se com um continuum que, apagando intencionalm ente a fronteira entre Lingüística e Análise do

1971, p. 23); asseguram, por in­

discurso, pode chegar a negar a autonom ia relativa e, ao mesmo tempo,

termédio do sujeito da enunciação (do qual constituem o traço) colocado

a especificidade do ob jeto de ambas.^Não nos parece, pois, que as rela­

em uma “situação de discurso” dada, a passagem contínua dos fatos de lín-

ções entre AD e Lingüística devam ser explicadas a partir da passagem

(C o u rd esses,

gradual de uma à outra, que se confunde às vezes com a evidência da 6

Sobre isso, pode-se recorrer a Slakta (1971a, p. 86-1 0 3 ); a H aroch e, H enry & Pêcheux (1971, p. 93-1 0 1 ).

substituição de uma pela outra, mas sob a forma de uma coexistência^

40

In trodu ção

Análise do discurso político

41

contraditória que tem sua origem na configuração epistêm ica interna da

tica, efetua descrições empíricas e considera com o objeto o indivíduo lin­

Lingüística, o que foi observado por Kuentz (1977, p. 113):

güístico “con creto” e “em situação” (sendo estes últimos objetivos bem próxim os das preocupações clássicas dos procedimentos da AD).

Tudo se passa como se a posição de uma AD, além do pro­

D ito isso, restam duas questões a serem pensadas: qual posição a pro­

cedimento lingüístico, fosse, para esta disciplina, o efeito

blemática da enunciação — que situamos como uma questão do trabalho

de uma necessidade interna. Colocando a existência da

em AD —ocupa nessa contradição? Que dominância essa contradição ne­

AD como seu além sempre por vir, a Lingüística não bus­

cessariamente desigual manifesta? E uma questão relacionada que nos leva

ca afastar a suspeita de que se trata de um aquém que

de volta à AD: em que isso esclarece a configuração epistêmica do domínio

ela nunca pôde neutralizar inteiramente e que funciona

da AD em suas relações com a Lingüística?

inconscientemente como seu sempre já lá ?

•'Consideraremos a problemática da enunciação com o uma form a pri­

vilegiada de com prom isso entre as tendências logicista e sociologisd ) Ela combina, de fato, na análise do processo de enunciação no enunciado ao

2.2

" T e n d ê n c ia s "

em

L in g u I st ic a

e em

AD

mesmo tempo os aspectos formais da relação enunciado/enunciação (rela­ ções entre índices de pessoa, lugar, tempo e modalidades da enunciação) 1977) fizeram o

com os efeitos subjetivos do ato de enunciação, ancorado em uma situação

esforço de produzir uma análise da configuração epistêmica da Lingüística

de enunciação a cujos protagonistas se pode atribuir um estatuto social.

que desse conta das contradições que opõem as “tendências” as quais se

Parece, pois, ocupar no espectro das formas possíveis que conduzem do

pode identificar no centro desta última. E a partir dessa caracterização do

logicismo ao sociologism o uma posição central ou transicional que está de

Alguns trabalhos

(P ê c h e u x ,

1975;

G a det &

Pêch eu x,

domínio da Lingüística que vamos tentar delimitar a “necessidade interna”

acordo com a característica, acima ressaltada, de garantir uma passagem

à qual Kuentz se refere.

contínua entre os fatos de língua e os fatos de discurso, de um lado, e a

Dessa form a, Gadet & Pêcheux (1977) tentam descrever a história da

Lingüística e a AD, de outro.

Lingüística,7 bem como sua situação atual, a partir de um “tipo de luta

A segunda questão diz respeito à dominância que se expressa no

entre duas vias —o logicismo e o sociologism o - que form am os elementos

centro da contradição principal que separa a configuração epistêmica da

de uma contradição que assume sucessivamente múltiplas form as desde

Lingüística. Em um outro trabalho, Pêcheux (1975, p. 18) caracterizava a

a pré-história da Lingüística até seus aspectos mais m odernos, atuais e

tendência logicista como dominante; pode-se ressaltar, por outro lado, que

científicos” (op. cit., p. 11), o que teria como efeito conduzir a uma situa­

a descrição sumária da tendência sociologista que apresentamos anterior­

ção de crise/Pode-se rapidamente opor o logicismo (e sua form a correla­

mente indica que a AD constitui seu prolongamento recente. As petições

ta: o form alism o) ao sociologism o (e sua forma correlata: o historicism o),

de princípio antisaussurianas que inauguram inúmeros trabalhos em AD

indicando que o primeiro se preocupa em pesquisar universais lingüísti­

parecem-nos bem a marca do caráter dominante do logicismo no interior

cos, em fundar uma teoria gram atical e em estabelecer a autonom ia do

da Lingüística,8 pois é sobre o logicismo que o sociologismo “se apoia mais

lingüístico, enquanto o segundo destaca a variação e a mudança linguís£ 8 J.-B . M arcellesi, em recente artigo, acaba de confirm ar nestes term os: “N o congresso in ­

7

Esse trabalho foi retomado, reformulado dc modo especial em uma obra desses autores (La

tern acion al dos linguistas, em Viena, neste verão, ainda não houve lugar para a Análise

Langue introuvable. Paris: Maspero [tradução brasileira: A língua inatingível. Campinas:

do discurso p o lítico, ao m esm o tem po em que todas as outras tendências da lingüística,

Pontes, 2004]). Pode-se desejar que o uso classificatório da categoria de contradição desse trabalho tenha sido revisto.

incluindo a sem iótica literária, estavam representadas. A Análise do discurso é um a espé­ cie m ald ita” (1977a, p. 3).

42

Análise do discurso politico

fre q u e n te m e n te (p o r e m p ré stim o s , r e to rn o s , r e a p r o p r ia ç õ e s ...) p a ra d ele se s e p a r a r ” (P ê c h e u x , 1975, p. 18).

O

que responde à segunda questão e conduz à terceira: é sob a forma

de uma inversão d e dom inância que os analistas de discurso geralmente representam o processo de autonomia do domínio da AD sobre o da Lin­ güística: substituir o formal pelo empírico, o sincrônico e o estrutural pelo social e histórico, substituir Saussure por Volochinov. Sustentaremos que tal posição eqüivale, ao contrário, a encerrá-la certam ente ainda mais no centro da contradição que determina a confi­ guração epistêmica da Lingüística e que tal posição não poderia levar à autonom ia teórica do domínio da AD: foi a contradição entre logicismo e sociologism o, essa “necessidade interna” ao domínio da Lingüística, que produziu a AD com o desenvolvim ento adicion al (F o u ca u lt , 1969, p. 202) à margem desta última pela inversão dos dois termos da contradição, ou seja, por sua reprodução em espelho. Parece-nos que é somente deslocando os termos dessa contradição que a AD pode conseguir, a o preço de um descentram ento, avançar rumo a uma autonomia teórica, razão pela qual dispensamos tal projeto no âm bito des­ te trabalho. Gostaríam os simplesmente de indicar o que o torna necessário: o descentramento que acabamos de mencionar coloca à AD o problema da redefinição de suas relações com os dois termos da contradição; isto é, tratar-se-ia na verdade de responder a uma dupla questão: com o pensar as relações da AD na ordem do em pírico, desconsiderando a maneira com o o sociologismo lingüístico determina essa questão? E tam bém, com o prever as relações da AD na ordem do form al sem se deixar fechar no logicismo? Tentaremos, na primeira parte deste trabalho, que concentra elem en ­

tos críticos (Capítulos I e II), avançar uma resposta à primeira questão, interrogando os procedim entos d e coleta dos d ad os em píricos em AD, bem com o as noções que sistematizam esses procedimentos. Esforçar-nos-em os igualmente nas partes seguintes (Capítulos III e IV da segunda parte; C a­ pítulos V e VI da terceira parte), que expõem as orien tações teóricas da pesquisa e apresentam a análise d e um processo discursivo, para abordar a necessidade da representação dos o bjetos discursivos sem decalcá-los dos modelos utilizados no quadro da análise da língua.

PARTE I

CAPÍTULO I

A NOÇÃO DE "CONDIÇÃO DE PRODUÇÃO DO DISCURSO"

É pela noção de “condições de produção do discurso” que gostaría­ mos de abordar o exame das dificuldades encontradas pelas tentativas de teorização e, ao mesmo tempo, pela realização prática dos métodos no campo da AD. A noção de “condições de produção” (CP), tanto por seu lugar no sistema conceituai da AD, quanto pela heterogeneidade, muitas vezes contraditória, das definições de seu conteúdo, parece-nos, de fato, constituir o lugar e o sintoma de tais dificuldades.1

1. AS ORIGENS DA NOÇÃO Parecem ser de três ordens. A noção de CP origina-se inicialmente da análise de con teú do, da maneira como esta se encontra praticada, es­ pecialmente em psicologia social. Na tradição dos trabalhos de Berelson

1 Essa n oção, no en tan to , pou co se prestou à discussão nos trab alhos de A D onde, por ve­ zes, tem -se a im pressão de que é considerada evidente. O s problem as que ela apresenta são abordados em R obin (1973, p. 2 1 ), Pêcheux-Fuchs (1975, p. 25), M aingueneau (1976, p. 13) e M aran d in (1978, p. 149); essas diferentes análises parccem -nos, contud o, insuficientes.

46

Análise do discurso politico

A n oção de “con dição de produ ção do d iscu rso”

47

(1 9 5 2 ), a análise de conteúdo assume explicitamente com o objeto a análise

contrapartida, o termo “situação” correlacionado ao termo “discurso”

das “condições de produção dos textos” (H en ry & M oscovici, 1 9 6 8 ). Não

quando se trata de considerar somente as frases de um único discurso

nos deteremos nas críticas formuladas com frequência contra esse tipo de

contínuo, ou seja, aquelas que foram pronunciadas ou escritas umas após

abordagem, contentando-nos em destacá-las brevemente.

as outras, por uma ou várias pessoas, em uma única “situação”, ou ainda

A noção de CP é, por outro lado, atribuída aos “serviços” que a psico­

quando se trata de determinar a correlação entre as características indivi­

logia social pode prestar à AD, especialmente por Guespin (1971, p. 13) que

duais de um enunciado e “as particularidades de personalidade que pro­

acrescenta: “Com essas ofertas de serviço, estamos muito próxim os da so-

vém da experiência do indivíduo em situações interpessoais con dicion a­

ciolinguística”. Essa observação parece-nos, na realidade, designar uma se­

das socialm en te” (H a r r is , 1969, p. 10).

gunda origem da noção de CP, a sociolinguística, a respeito da qual convém

Notem os inicialmente a insuficiência da elaboração dessa noção de

acrescentar que seu papel é o de uma origem indireta. Se a sociolinguística

“situação” que, para um linguista como Harris, ocupa, ao lado das noções

se dá com o objetivo “evidenciar o caráter sistemático da co-variância das

de “particularidades de personalidade” e de “experiência do indivíduo”, o

estruturas lingüísticas e sociais e, eventualmente, estabelecer uma relação

lugar de um impensado, aquele do “extralinguístico”, especificado apenas

de causa e efeito” (B r ig h t , 1966), ela admitirá com o variáveis sociológi­

por sua exterioridade em relação ao objeto lingüístico.

cas “o estado social do emissor, o estado social do destinatário, as condi­

Observemos, em seguida, a compatibilidade das definições que ele

ções sociais da situação de comunicação (gênero de discurso), os objetivos

propõe da “situação” com aquelas que a análise de conteúdo, em psicolo­

do pesquisador (explicações históricas), etc.” (M a rcellesi, 1971a, p. 3-4).

gia social, ou a sociolinguística admitem das CP do discurso. Observemos,

Guespin (1971, p. 19) reconhece nisso “variáveis sociolinguísticas, respon­

enfim, que essas formulações (“características individuais de um enun­

sáveis pelas CP do discurso”.

ciado”, “situações interpessoais”) designam o que a Lingüística conhece

O

caráter de origem indireta que a sociolinguística tem referente à

como sujeito da enunciação e situação de enunciação.

noção de CP do discurso parece-nos comprovado pelo fato de que a tradi­

Essas três observações podem conduzir à reconsideração do caráter

ção sociolinguística am ericana, tal com o ilustrada em Bright (1966), ou em

original da sociolinguística, a respeito da qual falamos em origem indireta,

Fishman (1968), ou ainda em Pride & Holmes (1972), ignora a AD, con­

e do trabalho de Harris, a respeito do qual falamos em origem implícita.

siderando apenas, a respeito do discurso, os problemas relativos ao bilin-

Seguindo F. Gadet (1977), só poderíamos falar acerca da sociolinguística

guismo ou então à etnografia da comunicação. O fato de que parâmetros

de origem derivada ou segunda na medida em que essa autora a vê como

sociolinguísticos sejam admitidos como CP do discurso fazem parte, pois,

“uma forma refinada de psicologia social da língua”, o que coloca essa

de sua reinterpretação no quadro da “análise sociolinguística francesa do

última disciplina com o origem da sociolinguística e pode, pois, explicar a

discurso”, ao mesmo tempo que de sua analogia com as variáveis constitu­

compatibilidade a que nos referimos anteriormente. Q uanto ao trabalho

tivas do plano das CP do discurso, tal como as definem os psicossociólogos

de Harris, talvez tivesse sido melhor caracterizá-lo como origem “espontâ­

na prática da análise de conteúdo.

nea” ou “involuntária” da noção de CP, no sentido em que a representação

E no texto de Z . H arris (1952), D iscourse Analysis , que se situa a

do exterior do objeto lingüístico inscreve-se “espontaneamente” na carac­

terceira origem da noção de CP do discurso. Trata-se aqui de uma origem

terização psicossocial de uma situação de comunicação. Esse conjunto de

im plícita: o termo não figura no artigo de H arris, que teve o papel de

considerações reforça efetivamente o caráter de origem direta que atribuí­

“m atriz”2 para a AD, conform e algumas opiniões. Encontra-se nele, em

mos à psicologia social na formação da noção de CP. Isso nos permite, por um lado, precisar o modo de articulação da Lin­ güística e, por outro, de certas Ciências Humanas e Sociais na constituição

2

N o sentido de “m odelo geral” que T. S. Kuhn (1970) dá a esse term o.

48

Análise do discurso politico

do discurso como objeto de uma disciplina específica, articulação na qual

A n oção de “con dição de produ ção do d iscu rso”

49

2. AS TRANSFORMAÇÕES DA NOÇÃO

a AD frequentemente foi apresentada como constituindo o lugar. O que se enuncia como multidisciplinaridade necessária à AD e situa o discurso no

2.1

D e f in iç ã o

t e ó r ic a

v s.

d e f in iç ã o e m p ír ic a

campo de uma complementaridade (“tudo o que podem trazer outras disci­ plinas ao estudo de um fato lingüístico” [G uespin , 1 9 7 5 , p. 5 ]) com o cortejo

Os estados sucessivos da noção de CP do discurso se dividem em dois

de denegações de que essas posições se acompanham (“a AD não poderia

conjuntos: um conjunto de definições que nomeamos d e f i n i ç õ e s e m p í r i c a s ,

ser um cruzamento”..., “não se trata, pois, aqui de justaposição de discipli­

no qual as CP do discurso tendem a se confundir com a definição empírica

nas”... [id e m ]) parece-nos esconder o reconhecimento do fato de que a AD

de uma situação de enunciação —essas definições se situam na continuidade

se inaugura sob o signo da a r t i c u l a ç ã o d e d u a s f a l t a s , da qual a noção de C P

das origens da noção

constitui o mais certo sintoma: a psicologia social à qual falta a possibili­

aparece desde 1971 em AD com o termo de f o r m a ç ã o d is c u r s iv a ( H a r o ­

dade, ao caracterizar o enunciado, de se sustentar sobre a base material da

c h e , H e n ry & P ê c h e u x , 1971, p. 102), proveniente do trabalho de Foucault

língua, o que não falta à Lingüística; a Lingüística, por sua vez, para a qual

(1969). Discutiremos mais adiante no Capítulo II essas definições teóricas.

e um conjunto oposto de d e f i n i ç õ e s t e ó r i c a s , que

faz falta uma “teoria do sujeito da situação”, ou seja, das C P do discurso, invoca as disciplinas psicológicas e sociais. “O sentido de um texto, suas CP - que dependem do sujeito falante e do contexto situacional —concernem,

1 2.2

U ma

n o çã o d e c o n t eú d o h e t e r o g ê n e o e in st á v el

mais particularmente, à psicologia e à sociologia” (P ro v o st-C h a u v e a u , 1 9 7 1 , p. 8), o que pôde igualmente ser formulado assim: “o modelo de performance

a) Uma tentativa de definição empírica geral

(do qual depende o discurso)5 recorre simultaneamente: 1) ao linguista, 2) ao psicólogo, no que se refere ao sujeito, 3) ao historiador e ao sociólogo, no que

A noção de CP conhece sua primeira definição em pírica geral nos

se refere à situação” (Guespin, 1 9 7 1 , p. 9 ).4 O recurso à multidisciplinaridade

trabalhos de Pêcheux (1969, p. 16-29). Encontra-se neles definida, no

não contribui, nesse caso, senão para salientar o que ele se dedica a colmatar:

quadro do esquema transform acional da com unicação de R . Jakobson

a ausência de uma construção teórica do discurso.

(1963, p. 214), a partir de “lugares determinados na estrutura de uma

Tudo isso parece caracterizar, quanto à noção de CP do discurso, um estado de partida cujas transformações se trata, agora, de apreciar.

form ação social, lugares cujo feixe de traços objetivos a sociologia pode descrever” (p. 18). As relações entre esses lugares objetivam ente definí­ veis encontram -se representadas no discurso por uma série de “form ações im aginárias” que designam o lugar que o remetente e o destinatário atri­ buem a si e ao outro (...). A relação assim estabelecida entre lugares objetivamente definidos, em uma form ação dada, e a representação subjetiva desses lugares, em uma situação concreta de com unicação, propiciaram interpretações nas

3

N ós incluím os os parênteses.

quais o e l e m e n t o i m a g i n á r i o d o m i n a o u a p a g a a s d e t e r m i n a ç õ e s o b j e t i v a s

4

Essas pou cas observações sobre o “nascim ento in terdiscip lin ar” de A D parecem poder

q u e c a r a c t e r i z a m u m p r o c e s s o d i s c u r s i v o .s

ser aproxim ad as das observações que A lthusser (1975, p. 12) faz sobre o “ n ascim en to” da p sicanálise: “Q u and o uma jovem ciência n ascc, o círculo fam iliar já está sem pre pronto para a ad m iração , a ju b ilação e o batism o. H á m uito tem po, toda crian ça, m esm o en con ­ trad a, é reputada filha de um pai e, no caso de uma crian ça prod ígio, os pais disputariam no guichc, não fosse a m ãe, e o respeito que se deve a c i a .. . ” .

5

Isso foi o b je to de um esclarecim ento em Pêcheux & Fuchs (1975, p. 25).

50

Análise do discurso político

A n oção de “co n d ição de produ ção do d iscu rso”

51

Essas interpretações são possíveis, na verdade, por causa das am bi­

miísta ou transicional, referida anteriormente, a partir da qual as proble­

güidades da própria noção: por um lado, o recurso ao esquema da com u­

máticas da enunciação se esforçam para apresentar as relações entre língua

nicação de Jakobson permite compreender as condições (históricas) da

i discurso. Notem os igualmente que as determinações propriamente his-

produção de um discurso, como as circunstâncias da produção (no sentido

Inricas apagam-se nessa passagem: a caracterização do processo de enun-

psicolinguístico do termo) de uma mensagem por um sujeito falante; por

i lação em cada discurso não corresponde ao efeito de uma conjuntura,

outro, essas formulações não são decorrentes da distribuição das tarefas

mas às características individuais de cada locutor 6 ou ainda às relações in-

espontaneamente operada em AD, pela qual as CP recebem sua caracteri­

terindividuais que se manifestam no âmago de um grupo (o “caráter” dos

zação da psicologia ou da sociologia. Os termos de “im agem” ou de “for­

sujeitos enunciadores, a “inquietude fundamental” de Blum, a diferença

mação im aginária” poderiam perfeitamente substituir a noção de “papel”,

tle formação dos dois líderes, as relações “afetivas” e “passionais” que os

tal com o aquela utilizada nas “teorias do papel”, herdadas da sociologia

ligam ao grupo). Os planos histórico, psicossociológico e lingüístico, aos

funcionalista de T. Parsons (1961) ou ainda do interacionism o psicológico

quais as CP remetem, são justapostos sem que nenhuma hierarquia nem

de G offm an (1971), Os pares nocionais lugar/formação im aginária, ou si­

ordem de determ inação sejam explicitamente indicadas.

"

**■ **
), ocupando um lugar determ inado

sujeito da enunciação com o sujeito do saber e com os efeitos discursivos

no seio de uma FD, dos elementos do saber da FD na enunciação do in ­

específicos que estão ligados a ele.

tradiscurso de uma seqüência discursiva, isso em uma situação de enun­

b)

No que diz respeito à noção de con dições de produ ção d o discurso,

convirá propor sua redefinição dissociando-a segundo os dois níveis distin-

ciação dada. Esse nível de descrição é aquele ao qual habitualmente nos referimos

guidos anteriorm ente: ela opera, de fato, uma confusão das determinações

pelas noções de “fio do discurso”, “coerência textual”, “estratégias argu-

específicas aos dois planos de descrição. Será preciso, enfim, tirar as con­

mentativas” ..., e que suscita análises em termos de correferência, temati-

clusões dessa redefinição quanto à constituição de um corpus discursivo

zação e progressão temática, inferências pressuposicionais, conexões inter-

que materializa, sob a forma de uma montagem determinada, as exigên­

frásticas, etc. Acrescentaremos que se trata, para nós, do lugar onde se ma­

cias teóricas do conceito de FD.

nifesta o im aginário no discursivo, isto é, onde o sujeito enunciador é pro­ duzido na enunciação como interiorização da exterioridade do enunciável.

2. MEMÓRIA E DISCURSO 1 .3 D

is c u r s o , e f e it o s d is c u r s iv o s e c o n d iç õ e s d e p r o d u ç ã o d o d is c u r s o

Lyon, 10 de junho de 1976... A sala do Palácio dos esportes está lotada. O esforço de informação e de mobilização empreendido pelo Partido C o­

A distinção operada entre nível do enunciado e nível da form ulação acarreta as seguintes conseqüências:

munista Francês para a retomada da “política da mão estendida” produziu seus efeitos: são 12.000 a esperar no burburinho das interrogações —quantos cristãos nessa multidão? A sala é ocupada principalmente pelos comunistas?

a)

N o que diz respeito aos termos de discurso e de sujeito, para com e­

- a entrada de Georges Marchais. Uma longa ovação. O secretário-geral do

çar, é preciso dizer que eles denotam para nós não objetos dados a priori,

partido saúda a platéia. Os aplausos extinguem-se, tornam-se murmúrios.

mas objetos a serem construídos: somente nos autorizaremos a falar de

O acontecimento discursivo da reunião pode começar.

discurso ao término da articulação do plano do interdiscurso e daquele

“Senhoras, senhoritas, senhores, caros camaradas! N unca, sem dúvi­

do intradiscurso; toda caracterização em termos de funcion am en tos ou de

da nosso p a ís ...” “ C redo in unum d e u m ...”. Estupor na assistência. Um

efeitos discursivos envolve assim uma relação do enunciado com a form ula­

canto religioso, um “credo” se eleva do fundo da sala. A multidão hesita,

ção, da dimensão vertical e estratificada onde se elabora o saber de uma FD

alguns aplaudem, acreditando em uma manifestação de simpatia. A hesi­

com a dimensão horizontal em que os elementos desse saber se linearizam

tação é de curta duração, as aclamações transformam-se em vaias: cerca de

tornando-se objetos de enunciação.

cinqüenta cristãos fundamentalistas, comandados por um padre de batina,

O mesmo acontece ao sujeito: se não há, na perspectiva que adota­

cantam em pé. Antes de serem expulsos desdobram uma faixa, lembrando

mos, nenhum “sujeito do discurso”, se percebe, em com pensação, no inte­

a condenação pronunciada por Pio X I: O com unism o é intrinsecam ente

rior de uma FD, diferentes posições d e sujeito que constituem modalida­

perverso. A memória irrompe na atualidade do acontecimento.

des da relação do sujeito universal com o sujeito de enunciação (SU/S), do sujeito do enunciado com o sujeito da formulação. Cham ar-se-á dom ín io

da form a-su jeito o domínio de descrição da produção do sujeito com o efei­ to no discurso; isso eqüivale descrever o conjunto das diferentes posições de sujeito em uma FD como modalidades particulares da identificação do

104

O rientações teóricas da pesquisa

A nálise do discurso político

2 .1 M

105

Isso retoma algumas preocupações das pesquisas históricas contem­

e m ó r ia e t e m p o h is t ó r ic o

porâneas acerca da multiplicidade dos tempos: assim, o “acontecimento Assim, no mesmo momento em que ia ressoar novamente, da boca de G. M archais, a formulação de M aurice Thorez de maio de 1936:

discursivo” que tomamos como exemplo inscreve-se num tem po curto “pro­ porcional aos indivíduos, à vida quotidiana, às nossas ilusões, nossas bre­ ves conscientizações - o tempo por excelência do cronista, do jornalista”5

Nós te estendemos a mão, católico, operário, empregado,

( B ra u d f.l ,

1969, p. 46). Para o historiador, entretanto, tal acontecim ento

camponês, pois és nosso irmão e és com o nós oprimido

“traz testemunho às vezes sobre movimentos muito profundos (...) anexa-se

pelas mesmas preocupações.

a um tempo muito superior à sua própria duração. Extensível ao infinito, liga-se livremente ou não, a toda uma cadeia de acontecimentos, de reali­

ressurge a condenação de Pio X I, que vem opor à retomada da política da

dades subjacentes,

mão estendida a recusa desse diálogo por alguns cristãos. M ostram os no ca­

{Idem, p. 45).

e im p o s s ív e is ,

ao que parece, de separar uns dos outros”

pítulo II, em uma primeira exemplificação da noção de rede de formulações,

A introdução da noção de “memória discursiva” em AD nos parece,

a formulação de Pio X I entre aquelas em que a contradição entre dois enun­

assim, colocar em jogo a articulação dessa disciplina com as formas con ­

ciados pertencendo respectivamente às FD comunista e cristã se manifestava.

temporâneas da pesquisa histórica, que insistem no valor a ser atribuído

O

ressurgimento dessa formulação, quarenta anos mais tarde, chama

à longa duração. Apenas situaremos aqui essa problemática teórica, sem

a atenção para o fato de que toda produção discursiva que se efetua nas

pretender absolutamente esgotá-la, ainda mais na medida em que nosso

condições determinadas de uma conjuntura movimenta —faz circular —for­

próprio estudo situa-se na duração do tem po m édio de um ciclo (1936-

mulações anteriores, já enunciadas: interpretamos assim a “manifestação

1976). Entretanto, tentaremos a seguir esclarecer essa noção.

discursiva” desse grupo de fundamentalistas, vindo romper por meio da lembrança de uma fórmula o ritual que preside à enunciação de um discurso político, como um efeito de m em ória na atualidade de um acontecimento,

2 .2 A

p r o p ó s it o d a n o çã o d e

" m e m ó r ia

d is c u r s iv a "

sob a forma de um retorno da contradição nas formas do diálogo. Introduzimos assim a noção de m em ória discursiva na problemática da

Comecemos, antes de mais nada, distinguindo-a. O que entendemos

análise do discurso político. Essa noção nos parece subjacente à análise das

pelo termo “memória discursiva” é distinto de toda memorização psicológi­

FD que a A rqueologia d o saber efetua: toda formulação apresenta em seu

ca do tipo daquela cuja medida cronométrica os psicolinguistas se dedicam

“domínio associado” outras formulações que ela repete, refuta, transforma,

a produzir (assim, para utilizar um exemplo recente, o trabalho de Kintsch

d en ega...,4 isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória espe­

& Van Dijk (1975) sobre os processos cognitivos implicados na memória dos

cíficos; mas toda formulação mantém igualmente com formulações com as

textos). A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do

quais coexiste (seu “campo de concom itância”, diria Foucault) ou que lhe sucedem (seu “campo de antecipação”) relações cuja análise inscreve neces­ sariamente a questão da duração e da pluralidade dos tem pos históricos no interior dos problemas que a utilização do conceito de FD levanta.

5

As p ráticas discursivas (editorial, rep o rtag em ...) ligadas ao fu ncion am ento do aparelho de in form ação geralm ente são tom ad as na instância do aco n tecim en to do tem po curto. O

registro m etafó rico qu e elas utilizam para traduzir a “atu alid ade p olítica” c retirado

frequentem ente das figuras da mtse-en-scène (o “ teatro ”, os “ bastid ores” , os “ato res” da vida p o lític a ...) ou do afron tam en to (o “com b ate p olítico” onde “tod os os golpes são p erm itid os”, “onde se perde uma b a ta lh a ” para “se ganhar a g u e r r a . o que tính am os já percebido em certas definições de ca rá te r psicossocio lógico das C P do discurso (ver, C apítulo I). Nesses dois casos, as m etáforas se assem elham às figuras privilegiadas que

4

Ver Fou cau lt (1 9 6 9 , p. 130).

dissolvem a m em ória na atualidade.

106

O rientações teóricas da pesquisa

Análise do discurso político

enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideo­

107

3. REDEFINIÇÃO DA NOÇÃO DE CP DO DISCURSO

lógicos; ela visa o que Foucault (1971, p. 24) levanta a propósito dos textos religiosos, jurídicos, literários, científicos, “discursos que originam um certo

A hipótese geral que levantamos a seguir sobre a definição de uma for­

número de novos atos, de palavras que os retomam, os transformam ou fa­

ma de corpus não constitui de modo algum um esquema prescritivo visando

lam deles, enfim, os discursos que indefinidamente, para além de sua formu­

a regrar as operações de constituição de um corpus discursivo que poderia

lação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda a dizer”.

aplicar-se cegamente a toda AD, quaisquer que sejam a natureza de seus

O

mesmo acontece com os discursos políticos, a propósito dos quais

dados e a definição de seus objetivos. Isso significa que essa tentativa de

a existência de uma memória discursiva remete a questões familiares à prá­

definição geral das operações que presidem ao agrupamento de dados dis­

tica política, com o esta que veremos a seguir: do que nos lembramos e

cursivos e à constituição de um corpus discursivo em AD política somente

com o nos lembramos, na luta ideológica, do que convém dizer e não dizer,

tem sentido em razão do objetivo que atribuímos a nosso próprio trabalho.

a partir de uma determinada posição em uma conjuntura dada, ao escrever

Ela responde, então, a objetivos precisos:

um panfleto, uma moção, uma tomada de posição? Em outras palavras: com o o trabalho de uma memória coletiva permite; no interior de uma FD, a lem brança, a repetição, a refutação, mas também o esquecimento desses

• operacionalização em AD do conceito de FD, pensado a partir das categorias de contradição e de processo;

elementos de saber que são os enunciados? Enfim, sobre que modo m ate­

• redefinição da noção de CP do discurso;

rial existe uma memória discursiva?

• necessidade de formular uma concepção especificamente discur­

Forneceremos posteriormente6 alguns elementos de resposta a tais

siva da constituição de um corpus.

perguntas a propósito da FD comunista. Queremos destacar, para concluir esta preliminar, que a existência de uma FD como “memória discursiva” e

O bedece, por outro lado, ao seguinte princípio geral: a constituição

a caracterização “de efeitos de memória” em discursos produzidos em tal

num corpus discursivo de um campo de arquivos deverá ser realizada em

conjuntura histórica devem ser articuladas aos dois níveis de descrição de

uma forma de corpus que preveja:

uma FD que destacamos anteriormente, assim como às observações que acabam de ser feitas quanto à pluralidade dos tempos históricos: os objetos

(1)

discursiva de referência;

que chamam os “enunciados”, na formação dos quais se constitui o saber próprio a uma FD, existem no tem po longo d e uma m em ória, ao passo que

(2)

a determ inação das con dições de fo rm açã o de um processo discursivo no interior de uma FD de referência;

as “form ulações” são tomadas no tem po curto da atualidade de um a enun­

ciação. E então, exatamente, a relação entre interdiscurso e intradiscurso

a determ inação das condições de produ ção de uma seqüência

(3)

a articulação das alíneas (1) e (2) acima.

que se representa neste particular efeito discursivo, por ocasião do qual uma formulação-origem retorna na atualidade de uma “conjuntura discur­ siva”, e que designamos como efeito de memória.

3.1 A DETERMINAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DE UMA SEQÜÊNCIA DISCURSIVA DE REFERÊNCIA

Convém, para começar, determinar a escolha de uma seqüência discur­ siva como ponto de referência, a partir do qual o conjunto dos elementos 6

C ap ítu lo IV e C on clu são.

108

Análise do discurso político

do corpus receberá sua organização; nomearemos tal seqüência discursiva:

seqüência discursiva de referência (sdr).

O rientações teóricas da pesquisa

109

3.2

A DETERMINAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE FORMAÇÃO DE UM PROCESSO DISCURSIVO NO INTERIOR DE UMA FD DE REFERÊNCIA

A sdr será relacionada a um sujeito de enunciação com o a uma situa­

ção d e enunciação determináveis em relação a certo número de coordenadas

A sequencialização das formulações no intradiscurso da sdr se realiza

espaço-temporais e mais geralmente circunstanciais (tempo da enunciação,

sob a dependência do processo discursivo da FD que a domina, ou fo rm a ­

lugar da enunciação, circunstâncias da enunciação, que incluem a presença

ção discursiva de referência (FDR).

de alocutários determ inados...).7

Tentamos mostrar anteriormente que tal processo discursivo, ou pro­

Sujeito de enunciação e situação de enunciação podem ser referidos

cesso material e histórico de form ação, reprodução e transform ação dos

a um. lugar determinado, tomado em uma relação de lugares no interior

enunciados, estava submetido a condições específicas: é, com efeito, sob a

de um aparelho: isso eqüivale a atribuir ao ato de enunciação de uma sdr

dependência do interdiscurso que se constitui o saber próprio a uma FD

a regularidade de um a prática, assim como a caracterizar os rituais que a

nas redes estratifícadas de formulações, em que os enunciados se formam,

regulam.

redes que constituem precisamente o processo discursivo.

Essas relações de lugar remetem a relações de classe, isto é, a um dado

Se por interdiscurso da FD R entendemos uma articulação contraditó­

estado das contradições ideológicas de classe em uma conjuntura histórica.

ria de FD referente a formações ideológicas antagônicas, convém caracte­

Escolher uma seqüência discursiva de referência eqüivale assim a determi­

rizar as con dições interdiscursivas que dominam o processo discursivo de

nar a pertinência histórica de tal conjuntura, a situar a produção dessa

formação/reprodução/transformação dos enunciados no interior da FD R.

seqüência na circulação de formulações trazidas por sequências discursivas que se opõem, se respondem, se cita m ..., a descrever, enfim, o âm bito ins­

Doravante designaremos tais condições pelo termo simplificado de

condições de fo rm a çã o da fo rm a ção discursiva de referência (CF(FDR)).*

titucional e as circunstâncias enunciativas dessa produção. A escolha de uma seqüência discursiva como sdr deverá ser efetuada a partir dos elementos supramencionados, que designaremos doravante como

As CF do processo discursivo de uma FD R deverão necessariamente, num plano de constituição de corpus em AD política, estar ao mesmo tem­ po dissociadas das cp(sdr) e articuladas às cp(sdr).

as con d ições d e produ ção da seqüência discursiva de referência (cp(sdr))." E nessas condições que se conceberão as determinações específicas da formulação.

A dissociação do plano de caracterização das CF da FD R permiti­ rá a apreensão específica da constituição dos enunciados na estratificação vertical das redes de formulações. A articulação dos respectivos planos de determinação das C F(FD R) e das cp(sdr) autorizará apreender as relações entre interdiscurso e intradiscurso, enunciado e formulação, sujeito do sa­ ber próprio à FD R e sujeito enunciador, memória e atualidade. Essa dissociação/articulação obedece às seguintes modalidades: (1)

A dissociação do plano de determinação das CF de uma FD R realizar-se-á no fato de que a caracterização das CF faz ne­ cessariamente intervir diversas FD contraditoriam ente ligadas

7

Podem os dar um a representação dessas diferentes coordenad as no “d om ín io das lettres

bouclées ” [fonte estilizada] co m o o fazem Sim onin -G rum bach (1975) e M aran d in (1979) na seqüência de C u lioli (1973), na descrição do intrad iscu rso de um a seqü ência discursi­

8

R epresentam os em letras maiúsculas os elem entos que se reportam ao p lan o de descrição

va: seja S = su jeito da en u n ciação; 3 = tem po da en u n ciação ; £ = lugar da en u n ciação , S

do interdiscurso e em letras minúsculas os que concernem ao plano de d escrição do in tra­

it 6 = situ ação de en u n ciação ; § ’= a lo cu tá rio ...

discurso [intrad/IN TERD , [c]/[E], cp (sd r)/ C F (F D R )...j.

110

O rientações teóricas da pesquisa

Análise do discurso politico

no interior de um processo: essa operação consistirá em deli­

• domínio de memória (DM em);

m itar uma “pluralidade contraditória” de seqüências discur­

• domínio de atualidade (DAct);

sivas: entre este conjunto de seqüências discursivas, algumas

• domínio de antecipação (DAnt).9

111

serão dominadas pela FD R , ao passo que outras terão sido

(2)

produzidas em condições heterogêneas, no sentido em que

Aqui parece necessário precisar, a fim de evitar toda interpretação

serão dominadas por FD contraditoriam ente ligadas à FD R

fixista das noções de domínio de m emória, dom ínio de atualidade e do­

por relações de antagonismo, de apoio, de aliança, de reco-

mínio de antecipação, que estas noções são relativas à escolha de uma

brim ento, etc. Essa “pluralidade contraditoria” de sequencias

icquência discursiva dada com o sdr: não se trata, portanto, de “dom í­

discursivas se definirá, então, pela variação sistem ática das cp

nios de o b jeto s” cuja existência poderia ser estabelecida de uma vez por

das seqüências discursivas no plano de caracterização das CF

iodas, mas de conjuntos de objetos em píricos cuja configuração e limites

(variações de sujeito de enunciação, de situação de enuncia­

lomente encontram sua definição em relação à determ inação das cp de

ção, de relações de lugares, de con ju n tu ra... no interior da

uma sdr no interior de um corpus discursivo dado. Esses dom ínios não

FD R a o m esm o tem po que em outras FD).

i;lo dados por antecipação, mas devem ser construídos.

A articulação do plano de determinação das CF de uma FD R

Tampouco não parece inútil, para que evitemos uma interpretação

e do plano de caracterização das cp de uma sdr se realizará de

hegem ônica ou uniclassista de tais objetos, esclarecer que esses domínios

maneira que é a o redor da sdr e em relação a ela (em outras

comportam posições (ideológicas) de classe na contradição desigual nas

palavras, em relação à definição de suas cp) que essa

(|uais as cp da sdr aparecem como um elemento singular.

plura­

lidade contraditória” de seqüências discursivas receberá uma

Indiquemos, enfim, contra toda interpretação cronologista, que se os

organização na forma de corpus, à maneira de um conjunto de

objetos que compõem esses domínios podem neles figurar com o pontos

pontos sistem aticam ente dispersos ou distribuídos em torno

d.itáveis e referenciais a um sujeito enunciador, sua sucessão cronológica

de um ponto de referência.

v atravessada pela dim ensão tem poral específica a um processo cujo desrnvolvimento contraditorio não conhece sujeito, nem origem, nem fim.

A dispersão sistemática das seqüências discursivas em torno da sdr

Não se trata, pois, de ir procurar na sequencialidade de um domínio de

será comandada por formas de repartição combinando as sequencias dis­

mcmoria, de um domínio de atualidade e de um domínio de antecipação

cursivas retidas em dom ínios de o b jeto s , ou

conjuntos diferenciados de

ii scquencia “natural” do antes, do agora, e do depois, mas sim, de nele

seqüências discursivas” a partir dos quais será possível formular a hipótese

i .iracterizar as repetições, as rupturas, os limites e as transform ações de

de que a natureza contraditória do processo discursivo da FD R , assim como

um tempo processual.

o modo de determinação, poderão ser apreendidos.

■i) O domínio de memória 3 . 3 D o m ín io s

d e m e m ó r ia , d e a tu a lid a d e , d e a n tecipa çã o

E constituído por um conjunto de seqüências discursivas que préi Kistcm a sdr, no sentido em que algumas form ulações determináveis

A d ia n ta re m o s q u e as fo rm a s de r e p a r tiç ã o p e rm itin d o a tin g ir ta l o b ­

n.i scquencialização intradiscursiva que a sdr realiza (que nomearemos

je tiv o e x ig e m a o r g a n iz a ç ã o d as se q u e n c ia s d iscu rsiv as em t o r n o d a sd r em d o m ín io s d e o b je to s q u e n o m e a re m o s:

'< Kncontram os os term os de “dom ínio dc m em ó ria”, “dom ínio de atu alid ad e”, “cam p o de iintccipação ’ na Arqueologia. D em os a eles aqui um valor sensivelm ente diferente.

112

A nálise do discurso político

O rientações teóricas da pesquisa

113

“form ulações de referência”) entram com form ulações que aparecem nas

uma resultante do desenvolvimento processual dos efeitos de memória que

sequências discursivas do domínio de memória, em redes de form ulações

a irrupção do acontecim ento, no interior de uma conjuntura, reatualiza (o

a partir das quais serão analisados os efeitos que a enunciação de uma

que tentam os mostrar anteriormente).

sdr determinada produz no interior de um processo discursivo (efeitos de lem branças, de redefinição, de transform ação, mas tam bém efeitos de

c) O domínio de antecipação

esquecim ento, de ruptura, de denegação do já dito). E a partir do domínio de memória que poderemos apreender os fun­

Compreende um conjunto de sequências discursivas que sucedem à

cionam entos discursivos de encaixe do pré-construído e de articulação

sdr, no sentido em que certas formulações que esta última organiza em seu

de enunciados (no sentido dado a estes termos): isso eqüivale a dizer que

intradiscurso entretêm, em relação a formulações determinadas no domí­

o domínio de memória representa, num plano de organização de corpus

nio de antecipação, relações interpretáveis com o efeitos de antecipação.

discursivo, o interdiscurso como instância de constituição de um discurso

transverso que regula para um sujeito enunciador, produzindo uma sdr em

A constituição de um domínio de antecipação na forma de um corpus discursivo responde às seguintes preocupações:

cp determinadas, o modo de doação dos objetos de que fala o discurso, assim com o o modo de articulação desses objetos: é a partir do domínio de

(1)

acentuar o caráter necessariamente aberto da relação que uma

memória que se poderá aproximar os processos que garantem a referência

sdr produzida em cp determinadas mantém com seu exterior

dos nomes por um sujeito enunciador e autorizam, assim, a predicação e a

no seio de um processo. Se existe um sem pre-jâ do discurso,

correferencialidade.

pode-se acrescentar que se terá aí um sem pre-ainda ;

Notemos, enfim, no interior do domínio de memória, a possibilidade

(2)

não marcar assim o término pelo processo discursivo;

de delimitar um domínio das form ulações-origem . O domínio das formu-

(3)

preservar a possibilidade, deixando em branco o domínio de

lações-origem não atribui, de modo algum, um “com eço” ao processo dis­

antecipação num plano de constituição de corpus discursivo,

cursivo, mas constitui o lugar onde se pode determinar, no desenvolvimento

de fazer da construção de um corpus a finalidade de uma AD;

do processo discursivo, o surgimento de enunciados que figuram com o ele­

assim, poder-se-á tentar, a partir dos resultados obtidos no

mentos do saber próprio a uma FD.

trabalho de análise da relação de uma sdr com seu domínio de memória, visar à construção de um domínio de antecipação

b) O domínio de atualidade

(voltaremos a esse ponto no § 4.2).

E form ado por um conjunto de sequências discursivas que coexistem

As noções introduzidas anteriormente o foram de maneira puramente

com a sdr em uma conjuntura histórica determinada: as sequências discur­

definitória. O capítulo IV será consagrado à sua exemplificação, por oca­

sivas agrupadas num domínio de atualidade se inscrevem na instância do

sião da constituição do domínio de memória do corpus da pesquisa. Essas

acon tecim ento. A inscrição do acontecimento dos enunciados confere a

noções, por outro lado, não têm outro estatuto senão o em pírico: elas só

suas relações o efeito de uma lembrança ou de uma refutação imediatas de

pretendem fornecer quadro empírico que permita mostrar, num corpus dis­

formulações presentes em sequências discursivas que se respondem.

cursivo, o interdiscurso com o instância de constituição do enunciado em

O

aspecto “dialogado” da constituição num domínio de atualidade de

redes de formulações empiricamente determináveis.

sequências discursivas que se citam, se respondem ou se refutam, não deve

Restará elaborar teoricamente a articulação que todo processo dis­

deixar esquecer que a produção de efeitos de atualidade é ao mesmo tempo

cursivo entretém com uma memória, uma atualidade e uma antecipação.

114

A nálise do discurso político

O rientações teóricas da pesquisa

115

Essa elaboração nos parece uma questão im portante para a AD, tanto no

de memória, domínio de atualidade, domínio de antecipação

estudo que ela pode pretender dos processos ideológicos que o discurso

{D M em , DAct, DAnt}.

político manifesta com o naquele do processo de produção dos conheci­ mentos científicos: o que representa em uma conjuntura histórica, em que

Se marcarmos com o sinal “o ” essa operação de com posição, podere-

se encontra posta a questão que persegue a história das ciências — aquela

iims então representar um corpus discursivo (CD) sob a seguinte forma da

da caracterização de um corte ep istem ológico —é, com efeito, uma tensão

expressão geral:

determinada no seio de um processo discursivo entre memória e antecipa­ ção, irrupção da mudança com o ruptura na repetição deste. O estudo das

CD = cp(sdr) o CF(FD R) {D M em , DAct, DAnt}

formas discursivas nas quais tais transformações históricas intervém nos parece o objeto, em uma AD, da articulação da história com a lingüística.

Assim, resta-nos caracterizar mais precisamente, de uma parte, a opei ação de com posição dos dois planos de determinação; e, de outra, realizar .i especificação dessa experiência geral no campo empírico dos dados dis-

4. REDEFINIÇÃO DA NOÇÃO DE CORPUS DISCURSIVO 4.1 E x p r e s s ã o

i ursivos de nossa pesquisa.

geral

‘1.2 A c o m p o s iç ã o Partimos de uma definição do corpus discursivo com o “conjunto de

d o s d o is p la n o s : m o d a lid a d e s g e r a is d e d e f in iç ã o d e

IIM TRABALHO SOBRE CORPUS

seqüências discursivas, estruturado segundo um plano definido com refe­ rência a um certo estado das condições de produção do discurso”.

A noção de corpus discursivo que desenvolvemos anteriorm ente —sob

Introduzimos a noção de “forma de corpus ” com o princípio de es­

.i expressão geral que figura acima — é uma concepção estática-, ela se li­

truturação de um corpus discursivo; da mesma forma criticam os e depois

mita à caracterização de dois planos de determinação. Precisar o modo de

redefinimos a noção de “condições de produção do discurso”.

i omposição desses dois planos requer uma concepção dinâm ica do traba­

Se entendemos por form a de corpus o princípio geral da estrutura­

lho sobre corpus.

ção e da operacionalização de uma montagem m aterial num cam po ex­

Tal concepção não considerará um corpus discursivo como um conjun­

perimental/empírico, respondendo a objetivos definidos, e se nomeamos

to fechado de dados dependente de uma certa organização; fará, ao contrá­

corpus discursivo à realização de um tal dispositivo, será então necessário

rio, do corpus discursivo um conjunto aberto de articulações cuja constru-

conceber um corpus discursivo como “conjunto de seqüências discursivas,

t,-.io não é efetuada de uma vez por todas no início do procedimento de análi-

estruturado segundo a articulação, o cruzamento, ou a com p osição de dois

»c: conceberemos aqui um procedimento de AD como um procedimento de

planos de determ inação”:

interrogação regulado por dados discursivos, que prevê as etapas sucessivas ile um trabalho sobre corpus a o longo d o próprio procedimento. Isso impli-

• •

o plano de determinação das condições de produção de uma

i ii que a construção de um corpus discursivo só possa estar perfeitamente

seqüência discursiva de referência (cp(sdr));

.k .ibada ao final do procedimento. A adoção de tal perspectiva parece-nos

o plano de determinação das condições de form ação de um

demandar:

processo discursivo no seio de uma formação discursiva de referência (CF(FD R)), caracterizável pelas noções de domínio

116

O rientações teóricas da pesquisa

A nálise do discurso político

(1)

117

Intrad (sdr) = e1.e2.eJ.e4.eJ.e) Constituição de um corpus de formulações de referência

da noção de forma de corpus ; (2)

que uma tal previsão inclua a possibilidade, a cada etapa do procedim ento, de um retorno sobre a totalidade, ou sobre

intradiscurso da sdr tom arão lugar em uma lista indexada segundo a ordem

determinado plano do corpus-, (3)

As formulações de referência extraídas pela filtragem precedente do

que os domínios do objeto, que são os domínios de memória, atualidade e antecipação, sejam considerados como classes aber­ tas que podem, portanto, ser “enriquecidas” nesta ou naquela etapa do procedimento, em razão dos resultados já obtidos nas

'•mtagmática de sua ocorrência na sdr. Este índice das [er], ou corpus das form u lações de referência, indicará ii contexto intradiscursivo esquerdo e direito de cada uma entre elas. Seja (2):

fases precedentes, como objetivos a serem atingidos. ÍN D IC E (er) = l.e verr es

4 . 3 D e f in iç ã o

d a s eta p a s d e um t r a b a l h o s o b r e

corp u s

A definição das etapas de um trabalho sobre corpus discursivo tomará

c) Varredura dos domínios que constituem o interdiscurso da FDR

a forma da seqüência regrada das seguintes operações: Essa operação consiste em varrer o conjunto das sequências discur­

a) Determinação das formulações de referência no intradiscurso da sdr

sivas pertencente aos domínios de memória, atualidade e antecipação, a

Tal determinação exige a definição de critérios que permitam situar

tradiscursos dessas sequências discursivas, que podem entrar nas redes de

em um conjunto de pontos na superfície da sdr a presença de form u lações

formulação na qual cada uma das [er] é um elemento, isto é, constituem aí

fim de localizar o conjunto das formulações, figurando nos respectivos in-

de referência {e r}. A definição desses critérios está submetida ao conjunto

uma formulação possível. Essas formulações serão extraídas - com o traço

dos objetivos que uma pesquisa estabelece e à natureza das hipóteses que

de seus contextos intradiscursivos respectivos - das sequências discursivas

ela formula a respeito do corpus discursivo; a localização das {er} deve

reunidas no plano de caracterização do interdiscurso da FD R .

efetuar-se, além do mais, na base de critérios formais, isto é, lingüísticos, que possam permitir uma determinação unívoca e justificar a segmentação da sdr que se opera necessariamente durante essa localização. Essa primeira etapa consiste, portanto, se representamos o intradis­ curso da sdr com o seqüência de formulações concatenadas, em localizar e depois extrair de tal sdr o conjunto das [er] entre as [e]. Seja, então, a operação (1):

Isso eqüivale a dar uma representação empírica do processo discursivo inerente a uma F D R , sob a forma de um corpus de redes de form u lações. Seja (3)

118

O rientações teóricas da pesquisa

A nálise do discurso politico

IN T E R D (FDR) =

ex_,.ex,.ex+, l-ej-erj-e, V i-V S + l

Cd, = {er + e (DM em )}

sdx (DMem) sdr

119

i

s d y (D A c t)

Cd2 = {cd, + e (DAct)}

sdz (DAnt)

4 sd Notem os que essa varredura dos domínios dos objetos pode tom ar

Cd, = {cd, + cdz + e (DAnt)}

d) Constituição do enunciado [E]

a forma —isto em razão dos objetivos estabelecidos para um determinado trabalho sobre c o r p u s discursivo - de uma v a r r e d u r a e s c a l o n a d a . Isso leva­

A identificação e a extração fora dos domínios de memória, de atuali­

ria, a partir das hipóteses dirigidas à organização do plano das C F(FD R ),

dade e de antecipação de certas formulações resultam de uma com paração

à cisão do c o r p u s discursivo em s u b c o r p o r a reunindo as [er] de um lado e,

regrada entre o c o r p u s [er] e as je] inscritas nos domínios dos objetos. Essa

de outro, as [e] extraídas do domínio de atualidade, enfim, aquelas prove­

operação emprega uma concepção do enunciado no sentido que definimos

nientes do domínio de antecipação.

como forma geral governando a repetição no seio de uma R [e]. Defende­

Se designarmos por {cd,, cd2... cdn} o c o r p u s discursivo (CD) como

remos que a i n t u i ç ã o d e u m a r e p e t i b i l i d a d e que preside o reagrupamento

conjunto de s u b c o r p o r a (cd), e se cada s u b c o r p u s compreende as formula­

das [e] em R[e] (a propriedade para um R[e] de “fazer enunciado”) pode

ções de referência mais as formulações extraídas respectivamente dos do­

permitir, uma vez constituídas as R [e], aceder a esses esquemas gerais que

mínios de memória, atualidade e antecipação, seja (3 bis):

ordenam o processo discursivo, que são as [e]. Isso conduz, portanto, a induzir de R[e] a forma possível de [E],

CD = {cd,, cd2 ... cdn}

Seja (4)

E ,=

r Dmen 'v cd (i..n) = { « + e

K Dact

J*)}

v D ant J

ex,

E2 =

ex.

er,

er.

eYi

ey 2

ez,

ez.

Então o que chamamos v a r r e d u r a e s c a l o n a d a do c o r p u s poderá cons­ tituir um enriquecimento progressivo das redes de formulações a partir dos

'nl

domínios dos objetos.10 Seja (3 er):

e) Retomo ao intradiscurso da Sdr Convirá, enfim, retornar ao intradiscurso da sdr a fim de realizar a ar­

10 O tratam en to ao qual procedem os consiste na prim eira etapa de tal co n stru ção : as redes de fo rm u lação que constru ím os agrupam as [er] com as [e] extraíd as de um d om ín io de m em ória. A co n stitu içã o de um dom ínio de atualidade e de um d om ín io de an tecip ação pode, assim , ser considerada co m o finalidade do tratam ento.

ticulação dos dois planos de caracterização do discurso, operando sua com ­ posição sob a forma de um cruzamento do interdiscurso e do intradiscurso.

120

O rientações teóricas da pesquisa

A nálise do discurso político

121

A estratificação vertical das [e] determinadas no plano do interdiscurso,

Este recorte não deveria prejudicar a compreensão do trabalho. Gos-

em que se constitui o enunciado, verá estabelecida sua relação - em torno de

mríamos, entretanto, de indicar que as R[e] foram construídas sob a forma

uma {er} funcionando como ponto nodal —com a sequencialização que o

ilc classes de paráfrase discursiva, realizadas manualmente na base de prin­

intradiscurso da sdr realiza.

cípios de construção semelhantes àqueles definidos em Chauveau (1978).

Seja (5):

Intrad (sdr)

- e . ' e2 '

e3 '

er.

‘ e5

'V

e7

' e ,2

c •c 10 ... cn

IN T E R (FDR)

"e ou ainda: Intrad (sdr)

IN T E R (FDR) = eI.e1.e,.E 1.eJ.e4.e7.E2.e9.e10 ...e n Enfim, algumas indicações sobre a apresentação dessas fases diferentes. Em razão do recorte que é preciso dar aqui ao nosso trabalho, somen­ te detalharemos algumas dessas etapas; mais precisamente: • a fase (1) de localização das [er], no capítulo V; • as fases (4) de constituição do enunciado, e (5) de retorno ao intradiscurso da sdr, no capítulo VI. Desenvolvemos em outro texto (C o u r tin e , 19 8 0 ) as outras operações; sejam: • a fase (2) de segmentação contextual e de constituição de um cor­

pus das (er) (op. cit., respectivamente p. 215-220 e p. X III-X V III); • a fase (3) de constituição do corpus das R[e] (op. cit., p. 281-315).

CAPÍTULO IV

CONSTITUIÇÃO DO CORPUS DA PESQUISA

Encontrarem os aqui, na constituição do corpus da pesquisa, a especi­ ficação das hipóteses gerais sobre uma forma de corpus em AD que acabam de ser propostas. O corpus consiste em um conjunto de discursos dirigidos aos cristãos pelo Partido Comunista Francês no período de 1936 a 1976. Tratar-se-á de determinar as condições de produção, assim com o as condições de form ação de tais discursos; de formular hipóteses específicas relativas ao corpu s ; e, depois, de descrevê-lo, apresentá-lo e organizá-lo. 1 Faremos algum as observações preliminares, entretanto, a respeito de expressões com o “o discurso político ” ou ainda “o discurso com u­ nista”, que utilizam os com o se fossem evidentes. Essas observações con ­ cernem , em particular, à relação entre práticas de análise do discurso e prática política.

1 24

A nálise do discurso político

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

125

Reencontra-se a mesma argumentação em Guespin (1975, p. 7; 1976a, p. 8) e em Maingueneau (1976, p. 19), que precisa: o discurso político é o

1 . 1 A n á l ise

d o d is c u r s o

p o u fn c o

e p o l ít ic a d a

A n á l is e

do

D

is c u r s o

“discurso mais apropriado a uma leitura em termos de ideologia”. Aqui, portanto, a relação do discurso político com a instância ideoló­

Anteriorm ente havíamos salientado, no cam po da AD, a presença de

gica não é de maneira alguma afastada; não o é tampouco na definição geral

um e f e i t o m a c i ç o : a maioria dos c o r p o r a analisados desde a fundação dessa

dada por J.-B. M arcellesi (1977a, p. 1): “Definimos o discurso político como

disciplina são c o r p o r a de discurso político e, mais precisamente, c o r p o r a

discurso proferido pela hegemonia, por um intelectual coletivo”.

de discurso político que manifestam uma predileção pelos discursos pro­

Ao contrário, o que quase não aparece nesses trabalhos é a r e l a ç ã o d a s

feridos, em diferentes conjunturas da história da form ação social francesa

p r á t i c a s d e a n á l i s e d o d i s c u r s o p o l í t i c o c o m a p r á t i c a p o l í t i c a : encontra-se

(Congresso de Tours, Frente Popular, Resistência, Guerra da A rgélia...)

a expressão desse tipo de relação em Ebel-Fiala (1977), assim com o em

pelos p a r t i d o s d e e s q u e r d a , mais particularm ente enfim pela SF IO 1, que se

Pêcheux (1977, p. 2). Este último autor avança, a propósito dos procedi­

tornou depois o Partido Socialista, assim com o pelo Partido C om unista.2

mentos de AD política, a tese da determinação política dos trabalhos que

O c o r p u s de nossa pesquisa não escapa à regra do gênero: por isso,

utilizam tais procedimentos:

parece-nos melhor, mesmo que seja somente a nossos olhos, tentar explicar 0 caráter maciço desse efeito. Encontram-se, em diversos trabalhos da AD

Não se trata de intervenções meramente técnicas: uma

política, razões que são propostas nesse sentido.

certa maneira de tratar os textos está inextricavelmente

Se fizermos abstração de uma c o n c e p ç ã o in g ê n u a e negativista da ideo­

ligada a uma certa maneira de fazer política (...). Não

logia que apresenta o discurso político como uma mensagem qualquer, trans­

se pode pretender falar do discurso político sem tomar

mitindo uma informação (“Nosso objeto de estudo é o discurso político, isto

simultaneamente posição na luta de classes, pois, na rea­

é, uma seqüência ordenada de palavras e de frases que procura transmitir

lidade, essa tomada de posição determina, na verdade, a

uma (umas) informação(ões) por meio da linguagem.

maneira de conceber as formas materiais concretas sob as

L ic itr a ,

1974b, p. 151),

observamos explicações centradas sobre o caráter de “ o b j e t o c ô m o d o ” do

quais as “ideias” entram em luta na história.

discurso político. Assim, Guespin (1971, p. 22-23), salientando a modéstia dos conheci­ mentos no campo, convida os analistas a voltar-se para os textos m u it o e s p e ­

Haveria assim uma p o l í t i c a d a A n á l i s e d o d is c u r s o , ou, pelo menos, efeitos políticos identificáveis no campo da AD.

c ia is . “Textos cujas regras discursivas sejam o menos caprichosas possíveis”,

A fim de lim itar a eventualidade de tais efeitos, deve-se passar pela

acrescentando que, em relação a isso, “o enunciado político é particularmen­

conjuntura política da form ação social francesa nos últimos dez anos, pe­

te satisfatório”. A AD política apresenta uma última vantagem: “a tipologia

ríodo no qual a AD política emerge. De fato, essa conjuntura é dominada

do discurso político parece particularmente fácil” (op. cit.).3 aparelhos ideológicos que asseguram sua estabilidade. Q u an to à asserção segundo a qual 1

Seção francesa da Intern acio nal operária: Partido So cialista. (N. de T.)

seria fácil produzir sua tip ologia, parccc-nos que ela pressupõe um recobrim ento/super-

2

E especialm ente o caso dos trabalhos de J.-B . M arcellesi, L. Courdesses, G. Provost-Chau-

p osição a priori da divisão do cam po p olítico em forças políticas organizad as, que são

veau, L. G uespin. N o en tan to , observem os que determ inados trab alh os, que se servem da

os partid o s, e da divisão do cam p o do discurso p olítico em uma tipologia “de org an iza­

A D - esp ecialm ente os de J . G uilhaum ou, D. M ald id ier e R . R ob in - , escolheram outros

ções discursivas” , conform e o princípio já m encionado: “a cada um sua linguagem ” . .. ou

o b je to s históricos. 3

Seria ainda conveniente perguntar-se p or quê? Se o discurso p o lítico m anifesta tão p ou ­ cos “cap rich o s”, é pelo fa to de sua existência com o prática discursiva enquadrada por

ainda: “digas-m e o que tu dizes, que eu direi quem tu és” , segundo um a fórm u la de R . R obin (1977). E n con trarem os no trabalho de M arandin (1978) um a crítica pertin en te das tipologias elaborad as cm AD.

126

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

Análise do discurso político

127

pela aliança política estabelecida pelos partidos da União da Esquerda, que

emergência, no campo da AD, de efeitos ligados a uma transform ação des­

conduz, em 1972, a um im portante acontecim en to discursivo : a assinatura

sa conjuntura.

de um programa comum de governo.

Nesse sentido, gostaríam os de indicar que se nos afastam os aqui da

Como não perceber que, na própria conjuntura em que o Partido Socia­

perspectiva de uma separação/diferenciação das formações discursivas

lista e o Partido Comunista confundem seus discursos em uma “linguagem

para tentar entender, por meio do jogo de suas contradições, o princípio

comum”, mesmo que fosse somente durante um programa comum, apare­

de sua form ação, se enfatizamos a noção de “memória discursiva”, se as

ce justamente, no campo da AD política, um grande número de trabalhos

enunciações produzidas e as formulações trocadas nos parecerem carregar

que se propõem a efetuar a análise contrastiva do discurso comunista e do

o peso de sua história, convém também ver aí a marca dos efeitos de uma

discurso socialista, empenhando-se em localizar, em seu léxico ou nas ope­

transformação recente da conjuntura política francesa, que torna cadu-

rações lingüísticas que eles utilizam, as marcas d e sua individuação, salien­

cos, ao mesmo tempo, no fim das eleições legislativas de março de 1978, o

tando as proximidades, avaliando as diferenças, ordenando-as em tipologias

“programa com um ” e a união dos partidos de esquerda que esse programa

que opõem suas características (“discurso político polêmico/discurso políti­

firmava. Isso nos parece abrir, no campo da AD política, um conjunto de

co didático”, “discurso em ew/discurso em nós”,...)?

perguntas, entre as quais a da natureza e das form as d o discurso de aliança

O aparecimento maciço em AD política de trabalhos contrastivos, cujo objetivo é a caracterização diferencial do “discurso socialista” e do

das organizações políticas d o m ovim ento op erário ; a escolha do corpus de nossa pesquisa procede dessa questão.

“discurso com unista”, produz, portanto, na “conjuntura científica” da­ quele período, um efeito de contraponto em relação ao “acontecim ento discursivo” capital que acontece no seio da conjuntura política. Veremos

1.2 A RESPEITO

DO "D ISC U R SO COMUNISTA"

nesse efeito de contraponto o efeito diretam ente político, no cam po da AD, das contradições que caracterizavam, sob a “linguagem com um ” de um

Parece-nos igualmente que a expressão “o discurso com unista” (ou

programa, a aliança das principais forças da esquerda francesa: de fato, a

ainda “o discurso socialista”, “sindical”, “patronal” ...) envolve um cará­

natureza contraditória dessa aliança produziu, como um dos “efeitos dis­

ter problem ático se ela denotar um bloco de imobilidade, rígido com uma

cursivos” ligados a essa conjuntura, a oscilação incessante entre a referên­

axiom ática ossificada, com o no trabalho de Labbe (1977) ou, ainda, um

cia ao sentido comum das palavras e a interpretação divergente que cada

tipo de prática discursiva que não teria outra característica senão dife­

um podia fazer a seu respeito.

rencial, com o nos trabalhos de análise contrastiva. Portanto, a utilização

Todavia, não pretendemos que, na problemática da AD política, tudo

dessa expressão, ou ainda a de “FD com unista”, não se referirá aqui à

se restrinja apenas aos efeitos diretamente políticos: as preocupações de di­

existência de um “mundo discursivo” fechado, nem àquela de mundos se­

ferenciação lingüística dos grupos sociais próprias do sociologismo lingüís­

parados, mas sim à existência de “dois mundos em um só” : um trabalho a

tico, a existência de uma “tradição nacional” de reflexão marxista sobre a

partir da categoria de contradição considerará a FD comunista com o uma

língua, que se encontra, por exemplo, em P. Lafargue (isso é enfatizado por

unidade dividida; de fato, o caráter desigual de tal contradição orienta o

(1977a, p. 4 )) apresentam-se igualmente como fatores a serem

trabalho sobre os objetos que as FD são, na perspectiva de uma caracteri­

M

arcellesi

considerados.

zação das modalidades discursivas do contato entre form ações ideológicas

Também não pretendemos ter, sobre o conjunto das questões que aca­

dominantes e dominadas: o que está em jogo aqui é a relação do interior

bam de ser evocadas, “o ponto de vista de Sirius”; muito pelo contrário,

de uma FD dom inada, do saber que nela se forma, com seu exterior espe­

parece-nos im portante situar a posição de nosso trabalho em relação à

cífico, isto é, seu interdiscurso.

128

Constitu ição do co rp u s da pesquisa

Análise do discurso político

O tipo de corpus reunido é o resultado de tal orientação:

129

muito diferente (...) Sim, haverá novidade” [M. Gremetz em 1’H um anité de 25 de maio de 1976]), sua repercussão fora do Partido Comunista, a impor­

(1) (2)

(3)

(4)

Tratar-se-á, como na tradição dos trabalhos de AD política, de

tância da preparação de que foi objeto e a conjuntura particular na qual foi

um discurso de aparelho.

produzido compõem os fatores que determinaram sua escolha.

M as vai tratar-se também de discurso de aliança, isto é, de

De fato, o Apelo de Lyon acontece em um contexto político marcado

uma região do discurso de aparelho em que se encontra regu­

pela agravação da crise econôm ica, o crescimento das forças de União da

lada a relação com o outro, com o exterior, com o que não é

Esquerda, assim com o por dificuldades encontradas pela direita no poder,

ele mesmo, em vista da constituição de uma aliança ou de uma

sancionadas por nítidos recuos no decorrer das pesquisas eleitorais do ano

colaboração política.

de 1976.

Por isso, voltam o-nos para o discurso com unista dirigido aos

Assim, os com entaristas políticos notam, em março de 1976, “um pro­

cristãos. A escolha desse aspecto regional da FD com unista

fundo mal-estar social” marcado pelo agravamento do desemprego, das

provém do fato de que uma contrad ição entre form ações

desordens e dos confrontos no Sul, de grandes manifestações de estudantes

ideológicas antagonistas exibe-se aí de m aneira m anifesta,

e professores contra a reforma do segundo ciclo dos estudos universitários

no sentido de que a existência da contrad ição constitui o

em toda a França. As eleições cantonais4 dos dias 7 e 14 de m arço apresen­

o b jeto ou o próprio tema do discurso.

tam um nítido recuo dos partidos de direita, do qual a União da Esquerda

Isso não é específico do discurso dirigido aos cristãos, mas con­

e, em seu interior, o Partido Socialista são os principais beneficiários: o

cerne ao conjunto do discurso de aliança do Partido Comunis­

Partido Socialista ganha 200 novas cadeiras de conselheiros gerais, enquan­

ta. N o entanto, no caso dos discursos escolhidos, dispomos, no

to o Partido Com unista, 80. Quinze presidências de conselhos gerais pas­

período de 1936 a 1976, de um conjunto que se inscreve na tra­

sam, no dia 17 de março, da maioria situacionista para a oposição (entre as

d ição d e um diálogo organizado entre as duas FD, o que contri­

quais 10 vão para o PS). Enquanto o Presidente da República anuncia, durante um pronun­

buiu para facilitar a constituição de um domínio de memória.

ciam ento na televisão no dia 24 de março, que a situação vai opor um “projeto único” ao “programa com um” da esquerda, as contradições que

1.2.1 O Apelo de Lyon (10 de junho de 1976): determinação das condições de produção da seqüência discursiva de referência (sdr)

a dividem estão cada vez mais flagrantes e rumores de mudança na com ­ posição ministerial ou mesmo de eleições legislativas antecipadas circulam abundantemente. A degradação do clima social continuará até junho, com a “greve ge­

1.2.1.1 Descrição da conjuntura

ral das universidades”, proclamada no dia 10 de abril pelos delegados estu­ dantis dos comitês de greve, com a falência de LIP/ no dia 3 de maio, e com

A seqüência discursiva escolhida como sdr consiste no A pelo dirigido

cerca de 20 atentados na Córsega, no dia 5 de maio.

aos cristãos por Georges Marchais em Lyon, no dia 10 de junho de 1976. Nós o encontramos em Communistes et Chrétiens, Ed. Sociales, Paris, 1976. O caráter de evento nacional desse apelo, seu caráter de acontecim en­

4

E leições dos representantes dos “can ton s” , ou seja, de distritos que são subdivisões te rri­

5

Fábrica de relógios, peças de arm am ento e aparelhos de m edicina que, em pregando 1.500

toriais das regiões francesas. (N. de T.)

to histórico de retomada da política da “mão estendida” (“E preciso retor­ nar a 1936 para encontrar um precedente dessa amplitude (...) Este será

pessoas, representava a fonte principal de trabalho na cidade de Besançon . (N. de T.)

Análise do discurso político

130

Em um contexto em que se agravam as contradições econôm icas e sociais e em que a questão da tomada do poder do Estado está posta, o

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

131

iiin.i reunião política consecutiva à liberação de Leonid Pliouchtch, fato i|iir será severamente criticado pela agência TASS.

Partido Comunista empreende uma importante mudança: trata-se, primei­

Assim, a questão da tomada do poder, da união e da abertura forma os

ramente, na ocasião de seu XXII Congresso (4-8 de fevereiro), do aban­

npcctos principais da linha política do Partido Comunista, também mar-

dono da “ditadura do proletariado” e da afirmação de uma via socialista

■.ida por uma proliferação d o discurso de aliança nesse tipo de conjuntura.

especificamente francesa. Essa afirmação recebe uma confirm ação no dia

Ao mesmo tempo, a hierarquia católica fica politicam ente muda, em

25 de fevereiro, quando o X X V Congresso d o P.C.U.S. é dominado pelo

posição de espera; a não ser por duas ocasiões, o tempo de dar um golpe

debate entre comunistas do Leste e do Oeste: G. M archais não assiste a

ii.i esquerda (o episcopado italiano ameaça de sanções os católicos que se

ele. Isso ocorre imediatamente depois de um conjunto de reservas e críticas

.ipresentarem nas listas eleitorais do P.C.I.) e outro na direita (suspensão a

formuladas dentro do Partido a respeito do “socialismo soviético”. Enfim, é

ilivinis de M onsenhor Lefevre).

publicada, no final de maio, uma “declaração das liberdades”, assim como acontece uma reunião de cúpula com o Partido Comunista Italiano, que manifesta “importantes convergências” entre os dois partidos. D o ponto de vista do debate no seio da esquerda, todo o período ca­

1.2.1.2 Produção, difusão e circulação discursivas na instância do ■icontecimento

racteriza-se pelo que se pôde chamar então de dinâm ica da união. O

Congresso do Partido Socialista, reunido em D ijon nos dias 15 e 16

É nas condições descritas anteriormente que a sdr é produzida. Sua

de maio, e o Com itê Central do Partido Comunista, congregado em Paris

produção é, entretanto, indissociável da difusão e da circulação de todo

no inicio de junho, pronunciam-se ambos pela assinatura de um acordo

um conjunto de textos, de natureza e proveniência diversas, que a prece­

eleitoral, tendo em vista o período das eleições municipais de m arço de

dem e a preparam, e da qual ela constitui o ponto culm inante, que lhe su-

1977. A conclusão desse acordo acontecerá no dia 28 de junho.

tedem imediatamente e lhe respondem, formando o domínio de atualidade

Esse conjunto de elementos salienta o fato de que a conjuntura está

do acontecimento discursivo que ela representa.

posta pelo Partido Comunista Francês sob o signo da abertura-, é o sen­ tido que convém dar ao Apelo de Lyon, que constitui uma das primeiras grandes ilustrações públicas sobre um problema preciso da linha definida

Não trabalharemos neste estudo a relação da sdr com esse domínio de .itualidade (encontrar-se-ão algumas indicações sobre esse ponto em m n e,

C our-

1980, p. 144-145). N o entanto, convém salientar o que a situação do

pelo X X II Congresso: prioridade para a palavra de ordem de “União do

Apelo de Lyon enfatiza na instância do acontecimento é que a produção de

povo da França”, ênfase na questão das liberdades, definição de “um so­

uma seqüência discursiva, a partir de um lugar no seio de um aparelho, a

cialism o com as cores da França”, distanciamento em relação ao mode­

inscreve em uma rede de difusão 7 dos discursos que regula a circulação das

lo soviético. Essa italianização manifesta da linha do Partido Comunista exprimir-se-á de novo no dia 25 de junho na R .D .A ., durante a conferência

7

R ecentem ente, a n o ção de “rede de d ifusão” foi trabalhada por D ésirat & H ord é (1977)

dos PCs da Europa. N ela, será reclamado o reconhecim ento do direito a

a propósito da fo rm ação do discurso pedagógico; procurando estabelecer “as form ações

escolher diversas vias para conduzir ao socialism o, enquanto a noção de

de trocas entre discursos heterogêneos, entre discursos e práticas so ciais” , eles acabam “descrevendo redes discursivas (regime de publicações dos textos, exten são de sua difusão,

eu rocom u n ism o tenderá a ser mais amplamente com partilhada. Por fim,

condições de sua le itu r a ...), linguisticam ente n ão definidas, que fu ncion am de form a co m ­

no dia 21 de outubro, Pierre Juquin com parecerá na M utualité6 durante

petitiva em quad ros institu cion ais m antidos ab ertos, pontos de convergência e de diver­ gência de textos de origens e destinações d iv ersa s...” (op. c it., p. 4). As im plicações dessa posição em relação à definição das CP do discurso ou à con stitu ição de um corpus dis­ cursivo nos parecem b astan te próxim as de nosso pon to de vista. O trab alho de D ésirat &

6

Serviço so cial francês de saúde. (N. de T.)

H ordé co ntém , além disso, um a crítica p ertinente do procedim ento da AAD. N o en tan to,

1 32

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

Análise do discurso político

formulações no interior da FD e a troca das formulações com o exterior da

133

Uma história e uma semiologia desses “procedimentos de controle e

FD: o trabalho de uma FD como memória discursiva deverá necessariamente

iIr delimitação do discurso”

levar em conta as condições de difusão e de circulação do arquivo.

i ursivas indissociáveis da fala política ainda estão por ser feitas no que diz

(F o u ca u lt,

1971, p. 10) dessas práticas não dis-

irapeito às formações ideológicas ligadas ao movimento operário; uma hisinria e uma semiologia que analisariam a relação complexa (de rejeição, mas

1.2.1.3 Situação de enunciação, ritual e memória

i.inibém de fascínio; de reprodução invertida...) que associa o movimento nperário a práticas semelhantes que se constituíram historicamente no apa-

A sdr encontra-se enunciada a partir de um lugar determinado: o do Secretário Geral do Partido Comunista. Seus alocutários são os “cristãos”;

irlho de estado capitalista, na escola, no pretório ou no púlpito, nas figuras ilc porta-voz do patrão, do procurador ou do pregador.

pouco im porta o número efetivo de cristãos presentes entre as 12.000 pes­ soas que assistem à reunião, algo que será, no entanto, bastante debatido nas diferentes coberturas do evento pela imprensa. O essencial no que diz respeito à caracterização das circunstâncias enunciativas é notar que o por-

2. AS CONDIÇÕES DE FORMAÇÃO DO DISCURSO COMUNISTA DIRIGIDO AOS CRISTÃOS

ta-voz é o secretário geral do Partido, que se dirige a um alocu tário coletivo exterior d o Partido na forma de uma fala que é aquela do com ício político.

2 .1 A pa n h a d o

d a s t r a n s f o r m a ç õ e s d a d o u t r in a so c ia l d a

I g r e ja

Esse tipo de fala efetua-se em um conjunto de rituais determinados que fazem parte das circunstâncias enunciativas dessa produção, no sen­

Amem seus patrões, amem-se uns aos outros. Nas horas

tido de que esse conjunto produz a representação im aginária, a partir da

em que o peso de seus rudes labores for mais intenso sobre

qual se concebe a fala para os sujeitos concretos que vivem a situação.

seus braços cansados, fortifiquem sua coragem olhando em direção ao céu.

Tocam os aqui num dos aspectos da existência material de uma form a­ ção discursiva com o memória; o da conservação, da reprodução imutável

(Leão XIII, Discurso para os operários franceses, 8 de outu­

dos rituais não verbais que acompanham o discurso, do conjunto dos sig­

bro de 1898).

nos ligados aos lugares inscritos em uma FD por meio dos quais se agen­ ciam os gestos, os com portam entos, as circunstâncias, a distribuição dos

Faremos aqui um esboço geral daquilo que desenvolvemos de forma

“papéis”, que a metáfora pragmática da encenação registra: teatralidade

mais completa em outro trabalho

do com ício político ou do congresso, com seu cenário fixado e seus papéis

sentação ficará esquem ática, centrada sobre alguns temas do discurso do

convenientes," cerimonial do relatório, com tom e duração definidos, que

aparelho da Igreja. A complexidade do “discurso católico” não poderia se

abre a reunião da célula ou a da retomada das cartas, conjunto de signos

reduzir a isso.

( C o u r t in e ,

1980, p. 147-164). A apre­

de reconhecimento que cercam o porta-voz...

a) A doutrina social da Igreja depois do Concilio Vaticano 1 Uma data pode servir de chave para o período que estudamos: em m anifesta, em seu recurso à “situ ação co n cre ta ” ou ao “p rag m ático”, a m arca de uma deriva em pirista a partir do projeto arqueológico de Foucault. 8

“O s d is c u r s o s r e lig i o s o s , ju d i c i á r i o s , te r a p ê u t ic o s e t a m b é m , p o r u m a p a r t e , p o l í t i c o s , s ã o p o u c o d is s o c iá v e is d e s s a i m p l e m e n t a ç ã o d e u m r it u a l q u e d e t e r m i n a p a r a o s s u je i t o s f a l a n ­ t e s , a o m e s m o t e m p o , p r o p r ie d a d e s s in g u la r e s c p a p e is c o m b i n a d o s ” ( F o u c a u l t , 1971, p . 41).

setembro de 1965, encerra-se em Roma o concilio Vaticano II, que marca uma mutação im portante nas tomadas de posição da Igreja nos planos econôm ico, social e político; trata-se na verdade de uma atualização ou de

1 34

A nálise do discurso político

Constitu ição do co rp u s da pesquisa

135

um rem an ejam ento do conjunto das regras teológicas, políticas ou eclesiais

manterem mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas pre­

elaboradas pelo Concilio Vaticano I em 1870, que, aos poucos, haviam sido

cisam uma da outra de forma imperiosa: não pode haver

questionadas pela prática social e política.

capital sem trabalho e trabalho sem capital. O acordo

Uma centena de anos antes do Vaticano II, o Vaticano I havia, de fato,

gera a ordem e a beleza; ao contrário, de um conflito

estabelecido certo número de preceitos que fixam então as posições da

perpétuo, só pode resultar confusão e lutas selvagens

Igreja quanto às questões sociais: centralização monárquica do catolicis­

(Leão X III, op. cit.).

mo, infalibilidade de um papa que resume em si toda a tradição. O Vati­ cano I é tam bém o Concilio da condenação do Estado laico, da liberdade

Sendo assim, resta à Igreja chamar de volta, a seus deveres morais res­

de imprensa ou de consciência, assim como dos anátem as pronunciados

pectivos, patrões e empregados —de um lado, caridade, de outro, obediência

contra o socialism o e o comunismo.

-p a r a preservar a harmonia do corpo social:

Particularm ente, o comunismo, “doutrina” execrável, destrutiva até do direito natural (Pio IX , Qui pluribus, 9 de novembro de 1846), “seita

Deus quis que houvesse, na comunidade humana, com a

bárbara”, incluído nas sociedades clandestinas no Syllabus (8 de dezem­

desigualdade das classes, certa igualdade entre elas, resul­

bro de 1864), “peste mortal que, se inserindo nos membros da sociedade

tando de um acordo amigável: dessa forma, os operários

humana, não a deixa descansar e lhe prepara novas revoluções e funestas

não devem de maneira nenhuma faltar com respeito ou

catástrofes” (Leão X III, inscrutabili , 21 de abril de 1878), inscreve-se no re­

fidelidade a seus patrões, nem estes agirem sem bondade,

gistro m etafórico do contágio m ortal, dando assim o tom dos julgam entos

justiça e cuidados preventivos. Tais são os pontos prin­

que, mais tarde, serão proferidos, porém, com atenuações notáveis depois

cipais do Bem Comum, que é necessário buscar realizar

do Vaticano II.

(Leão XIII. Carta ao Msr. Gossen e aos bispos da Bélgica,

Socialismo e comunismo aparecem assim com o princípios contra a

10 de julho de 1895).

natureza: o direito à propriedade privada é de fato sancionado pelo direito natural, assim com o a hierarquização das classes sociais, submetida à auto­ ridade de um Estado governado por príncipes com direito divino.

No plano prático, enfim, a resolução da contradição capital/trabalho é pregada na doutrina social da Igreja, que se elabora especialmente depois

E no próprio princípio dessas “doutrinas funestas”, na luta de clas­

do Rerum N ovarum , por meio da criação de “associações de m assa” cató­

ses, que se situa a aberração. Em uma concepção organicista da sociedade

licas que têm por objetivo a organização da caridade (obras e d o açõ es...).

com o “corpo social” em que as classes sociais (as “ricas” e as “pobres”) participam da harm onia do todo, tal como se completam os membros do

b) Vaticano D eo "aggiomamento" da política social da Igreja

corpo humano, a luta de classes é concebida como o mal fundamental: No entanto, a doutrina proveniente do Vaticano I vai ser particular­ Pois assim como, no corpo humano, os membros, ape­

mente m altratada pela evolução das relações sociais desde 1870, que faz

sar de sua diversidade, adaptam-se maravilhosamente

surgir, no início do século X X , numerosos fatores de m udança: a extensão

um ao outro, de maneira a formar um todo exatamen­

do capitalismo de monopólio, ligado ao desenvolvimento das forças produ­

te proporcional e que poderia ser chamado simétrico,

tivas e destruição das antigas relações sociais; o desenvolvimento e a orga­

também, na sociedade, são as duas classes destinadas

nização das lutas da classe operária e a existência —desde outubro de 1917

pela natureza a se unirem de forma harmoniosa e a se

- de um campo socialista; a difusão do ateísmo, especialmente no interior

136

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

A nálise do discurso político

137

da classe operária. É então que os efeitos das lutas de classes se fazem sentir

tas que as ideologias do capitalismo liberal trazem, nos anos 60-70, aos

no próprio coração da Igreja: o conteúdo da fé tende a se transform ar para

movimentos de massas. N o entanto, isto é acompanhado, no que respeita

massas cada vez maiores de trabalhadores (por exemplo, pela revalorização

aos avanços do Concilio, pelo reconhecimento dos sindicatos e do direito

do Cristo fraternal dos pobres), polêmicas aparecem a respeito da interpre­

de greve, “meio necessário, apesar de ser o último, para defesa dos próprios

tação das Escrituras.

direitos e realização das justas aspirações dos trabalhadores”.

E nesse contexto que o Vaticano II vai figurar com o um “aggiorna-

Um fato im portante deve agora ser salientado: os textos do período

m ento” realizando um acordo entre os valores e a ordem antiga herda­

pré-conciliar e conciliar abandonam os anátemas que caracterizam o anti­

dos do precedente concilio e a pressão das exigências contem porâneas, em

go anticomunismo de cruzada. Embora o Papa lembre que “entre o comu­

textos “com dupla face”, segundo a expressão do pastor L. Vischer (apud

nismo e o cristianismo, a oposição é radical” (João X X III, M ater e M agies-

C asan o v a,

1977,

p.

15).

Todavia, a política do Vaticano II realiza certos progressos no campo

tra, 15 de maio de 1961), doravante, a porta está aberta para o diálogo entre cristãos e comunistas:

da laicidade do Estado (põe fim à desconfiança em relação à dem ocracia, reconhece o pluralism o...) e da paz (condenação das armas nucleares). No

Se, tendo em vista realizações seculares, os crentes relacio­

que diz respeito à doutrina social, os avanços são lim itados; se a proprie­

nam-se com homens cujas concepções errôneas impedem

dade privada dos meios de produção não poderia ser questionada (e isso

de crer ou de ter uma fé completa, esses contatos podem

apesar do lembrete do princípio da destinação universal dos bens) e se a

ser a oportunidade ou o estímulo para um movimento que

luta de classes sempre gangrena o corpo social, os remédios para os con­

leve esses homens à verdade (João X X III, Pacem in Terris,

flitos sociais são concebidos graças à associação d o capital ao trabalho:

11 de abril de 1963).

Nos empreendimentos econômicos, as pessoas estão as­

M esm o que o diálogo entre crentes e não crentes se torne possível, não

sociadas entre si, isto é, seres livres e autônomos criados

deverá, porém, ser conduzido cegamente: a abertura realizada pelos textos

à imagem de Deus. Assim, levando em consideração as

do período conciliar será atenuada por certo número de restrições.

funções de uns e outros, proprietários, empregadores,

E no plano teórico que situa a reticência essencial. N ão há possível

administradores, operários, e salvaguardando a neces­

conciliação doutrinai com o materialismo histórico e dialético, “erro fun­

sária unidade de direção, é preciso promover, conforme

dam ental”, “sistema de pensamento negador de Deus e perseguidor da

modalidades a serem determinadas da melhor forma

Igreja”, segundo os termos de Paulo VI. A argumentação do Papa baseia-

possível, a participação ativa de todos na gestão dos

se nas perseguições que sofreram as Igrejas nos Países do Leste, “Igrejas

empreendimentos (Constituição Conciliar “Gaudium e

do Silêncio” que apenas expressavam-se pelo sofrim ento personificado na

Spes”, 7 de dezembro de 1965).

figura do mártir: “Na realidade, nossa queixa é mais gemido de vítimas do que sentença de juizes”.

De um lado, negação da existência de relações sociais de produção, de

Por outro lado, a abertura da era do diálogo é acom panhada pela re­

outro, elaboração de uma doutrina participativa com o soluções aos con­

organização do aparelho político do Vaticano: a criação, sob a forma de se­

flitos do trabalho, a doutrina social da Igreja reajusta-se “às exigências

cretariado para os não crentes, de um setor especializado para este último

de nosso tem po”, esforçando-se para elim inar a defasagem id eológica que

perm itirá à Igreja orientar e controlar a prática de um “diálogo frutuoso”.

marca o atraso da estrutura doutrinai do Vaticano I em relação às respos­

138

A nálise do discurso político

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

139

Dessa form a, o Vaticano II marca uma mutação im portante da dou­

interior, de um “cristianismo horizontal”, muito presente na base militante

trina social da Igreja cm relação ao “ateísmo m arxista”: a concepção sa­

de certas organizações católicas implementadas no mundo do trabalho (JEC

tânica do comunismo e a política fóbica em relação à luta de classes, con­

- Juventudes Comunistas, J O C - Juventude Operária Cristã, ACO - Associa­

tem porâneas do Vaticano I, dão lugar a uma dupla resposta realista: de

ção Comunista O p erária...), que propõem uma visão comunitária e demo­

um lado, recusa do comunismo ao mesmo tempo com o sistema teórico e

crática da Igreja e provocam uma crise de obediência que acaba atingindo

com o regime político, de outro, adoção de um diálogo cauteloso e contro­

certos padres. As vezes, a autoridade hierárquica do magistério da Igreja é

lado com o forma prática de luta; a reabsorção da defasagem ideológica,

questionada: “ ... Um único rebanho, com um único pastor, mas não mais

que as posições do Vaticano I manifestavam, ordena que, doravante, a luta

considerados como ovelhas__ ” (conforme a palavra do Cardeal Heenan

ideológica engajada pela Igreja contra o “ateísmo m arxista” seja levada

apud

so b a fo rm a d e diálogo.

sam assim a Igreja, multiplicando os pontos de atrito entre as concepções de­

C asanova

et al., op. cit., p. 64). Os efeitos das lutas de classes atraves­

fendidas pela hierarquia e aquelas de um grande número de católicos: assim,

c) Evolução das posições da Igreja no período pós-conciliar

as Escrituras e os textos conciliares do Vaticano I tornam-se o ponto nodal de leituras contraditórias que refletem as posições de classe dos crentes.

Esse conjunto de novas orientações será confirm ado pelas posições

E nesse contexto de crise que o Papa, de novo, se posiciona sobre as

contidas nos textos produzidos no período pós-conciliar (Sínodo dos bis­

questões sociais na Carta apostólica de m aio de 1971. Observando a atra­

pos em Roma em 1969, 1971; Assembleia plenária do episcopado francês

ção de certos cristãos pelas “correntes socialistas e suas diversas evoluções”,

em Lourdes em 1970,1972; Carta apostólica de Paulo VI ao cardeal Rey em

o texto enfatiza o perigo que há de “entrar na prática da luta de classes e de

maio de 1971), que devem levar em conta a evolução da prática social glo­

sua interpretação m arxista, dificultando perceber o tipo de sociedade tota­

bal nos países da Europa capitalista, nos anos 1965-1975, principalmente

litária e violenta à qual esse processo conduz”. Os textos da hierarquia ca­

na França. Tendo com o pano de fundo a crise do capitalism o e as convul­

tólica produzidos nessa conjuntura tornam -se, de maneira ampla, o eco de

sões sociais, o processo de transformação das relações sociais de produ­

argumentos que insistem sobre a natureza totalitária do m arxism o erigido

ção conhece então uma aceleração notável: desaparecimento ou redução

em sistema político e, ao mesmo tempo, marcam um sensível retraim ento

de todo um conjunto de camadas sociais (artesãos, camponeses, pequenos

na prática d o diálogo:

produtores au tô n o m os...); concentração ampliada dósTfeipnopólios capi­ talistas em detrimento da pequena e média indústria; inchaço m aciço das

Sejam quais forem as intenções daqueles que a ele aderem,

cam adas intermediárias assalariadas; agravamento do desemprego; etc.

o Marxismo provoca, dentro de sua própria lógica, um

Esses fatores não deixam de ter efeitos no interior da Igreja: com bi­

coletivismo destruidor dos direitos e das liberdades indi­

nados com os progressos das ciências e das técnicas, eles contribuem, com

viduais e gerador de um totalitarismo. Os gritos de um

efeito, para fornecer uma base para uma evolução da consciência social de

Soljenitsin ou de um Sakharof testemunham isso (Carta

grandes massas de trabalhadores que tendem a se voltar para uma “visão

do episcopado francês à assembleia dos cristãos críticos.

mais racional, mais lúcida e cujo conteúdo anticapitalista vai crescendo fora

Lyon, novembro de 1973).

do próprio proletariado”

( C a sa n o v a

et al., 1972, p. 81). Isso tem por conse­

qüência um aumento do ateísmo e uma grande evasão de cristãos que, silen­

Em certa medida, esses textos constituem o reflexo de uma tendência

ciosamente, deixam a Igreja. Esta última deve enfrentar ao mesmo tempo

contraditória que se manifesta nas tomadas de posição de numerosos cris­

essas desafeições e as tensões internas ligadas ao desenvolvimento, em seu

tãos: de fato, nessa conjuntura pós-conciliar, em camadas sociais em que,

140

Análise do discurso político

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

141

além disso, se desenvolve uma inegável tomada de consciência da nocividade

cipação” ou de “nova sociedade”, e deve reconciliar, no am or evangélico,

do sistema capitalista, assiste-se ao crescimento de interrogações cada vez

os homens e as classes na perspectiva do “bem comum”:

mais imperiosas a respeito do caráter “socialista” do Socialismo existente. Em um trabalho histórico sobre a questão que nos ocupa e ao qual

Promover novos estilos democráticos, suscitar uma divisão

nos referimos anteriorm ente, Casanova, Leroy 8c M oine (1972) observam

real das responsabilidades na vida local e nacional, nos pa­

essa tendência contraditória (aspirações à mudança/reticência à colabora­

recem ser, atualmente, uma tarefa urgente. Diante do cres­

ção com os comunistas) em camadas sociais, que no entanto são vítimas

cimento das lutas de interesses e dos impasses ideológicos,

em diversos graus da política do capitalismo, e lhe atribuem certas opaci-

temos que reconciliar os homens, crentes ou não, tendo

dades específicas:

em vista seu destino comum (Le Marxisme, 1’H om m e et

la Foi chrétienne. Declaração do Conselho Permanente do Ideologicamente, esta aspiração à mudança é profunda,

Episcopado. 1m Croix, 8 de julho de 1977).

mas permanece em si mesma hesitante e contraditória. Isso ocorre por razões objetivas (por exemplo, o lugar

Para concluir essa reflexão, mais uma palavra sobre o caráter esque-

das camadas intermediárias nas relações de produção) e

m ático da exposição que antecede: a atenção que damos ao “diálogo” entre

subjetivas antigas (a herança ideológica tradicional) ou

discursos de aparelhos, com o objeto deste estudo, apresenta o risco de dar

novas (o peso, na luta de classes, das ideias reformistas,

à complexidade de uma FD a imagem de um discurso univoco, produzido

das iluminações esquerdistas e dos temas burgueses).

a partir de um sujeito que funciona com o centro ; sendo assim, é preciso

Isso mostra bem que, no estágio espontâneo, essa aspi­

lembrar que o “discurso católico” não se reduz ao discurso da hierarquia

ração à mudança é frequentemente acompanhada por

católica, mas que se trata de um discurso plural e contraditório, discurso

anticomunismo e ilusões reformistas (op. cit., p. 90).

que o magistério da Igreja domina apenas de modo parcial.

Nos nos afastaremos dos autores citados pelo fato de que, para nós, figura entre as opacidades mencionadas, como razões objetivas, a própria

natureza d o Socialism o existente. E essa concepção do-Socialismo existente

2.2 A POLÍTICA (1936-1976)

DA MÃO ESTENDIDA: O PARTIDO COMUNISTA E OS CRISTÃOS

com o p arâm etro, que não pode ser contabilizada de forma séria levando apenas em conta o peso da ideologia dominante, mas que se alimenta da

Muitas vezes, começo a comparar aos construtores de

realidade objetiva dos sistemas políticos incrim inados, constitui um dos

catedrais, animados pela fé ardente que levanta monta­

fatores essenciais de opacidade e contribui assim para facilitar a busca, nos

nhas e permite as grandes realizações, os stalchanovistas,’

textos da Igreja, de uma terceira via que opõe capitalism o tecnocrático e

os construtores da nova sociedade socialista, os heróis do

socialism o burocrático, e situa-se em algum lugar entre a “selva capitalis­

trabalho que fazem surgir sobre o solo livre da União So­

ta ” e o “gulag coletivista”.

viética as usinas gigantes, as cidades inteiras e também

Essa política de terceira via, discretamente indicada nas conclusões da

os grandiosos monumentos pelos quais se afirma hoje o

maioria dos textos recentes da hierarquia católica que concernem às ques­ tões que aqui nos ocupam, permanece, na linha do reformismo com base em “participação com unitária”, próxima dos temas capitalistas de “parti­

9

O stakhanovism o foi um m ovim ento operário socialista que nasceu na U nião Soviética, co m a iniciativa do m ineiro A lexei Stakhanov e que pregava o aum ento da produtividade op erária, com base na própria força dc vontade dos trabalhadores. (N. de T.)

142

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

A nálise do discurso político

143

elã entusiasta do comunismo (M. Thorez, Discours à la

progressos da im plantação da Juventude Operária Cristã levantam local­

Mutualité, 26/10/1937).

mente a questão de suas relações com as juventudes comunistas. A política da mão estendida inaugura-se com uma tripla característi­

a) A formação do discurso comunista dirigido aos cristãos: 1934-1937

ca: ela é unilateral e seletiva, e, ao mesmo tempo, não específica. Unilateral pelo fato de que a hostilidade da hierarquia da igreja não poderia, em um

A política da mão estendida não data do fam oso apelo pronunciado

primeiro m omento, colocar-se com o diálogo. Portanto, ela é seletiva, ela

nas ondas da Radio-Paris no dia 17 de abril de 1936. Desde junho de 1934,

“seleciona seus cristãos”, dirige-se aos trabalhadores cristãos sobrepondo-

quando H itler já está há um ano no poder, quando os riscos de guerra se

se à hierarquia católica, ao mesmo tempo em que se propõe a lutar contra

precisam e os sangrentos dias 6 e 9 de fevereiro demonstram a realidade

“o bando clerical”.11 M as ela é também não específica aos cristãos: a mão

do perigo fascista, M aurice Thorez, durante uma conferência nacional do

estendida dirige-se também aos “Cruz de Fogo, aos Voluntários nacionais,12

Partido ocorrida em Ivry, aborda o problema das relações entre comunistas

entre os quais, muitos desejam sinceramente, assim com o nós, uma França

e cristãos. No C om itê Central de outubro de 1935, a questão é de novo

forte e feliz, com governos honestos e limpos” (M. Thorez, discurso duran­

evocada e a consignação dada para “lutar contra o alto clero e desenvolver

te uma recepção da imprensa francesa e estrangeira em 6 de maio de 1936),

a política da mão estendida aos operários cristãos”. O tema é retomado

em uma ampla política de união nacional, de “união do povo da França” (a

em dezembro por meio de uma série de cartazes da juventude comunista

expressão figura especialmente em um folheto editado em julho de 1936).

dirigidos aos jovens operários. Em janeiro, em um relatório do Congres­

As grandes articulações do discurso comunista dirigido aos cristãos

so de Villeurbanne, M . Thorez cita Lênin a respeito disso: “A unidade da

formam-se nos textos desse período, e isso numa relação particular com o

classe oprimida para criar um paraíso na terra é mais im portante do que

campo das form u lações-origem que as análises de M arx, Engels ou Lênin

a unidade de opinião dos operários sobre o paraíso do céu” e acrescenta:

representam sobre a religião.

“M as nada da política de dar as costas aos operários cristãos ou aos jovens

N elas, a incom patibilidade do m aterialismo dialético e da fé cristã

operários católicos”.10 Isso levaria à declaração difundida no rádio que po­

é enfatizada e o m arxism o é situado na filiação do racionalism o carte-

pularizou a política do Partido em relação aos cristãos.

siano e dos m aterialistas franceses do século X V III. M as os “clássicos do

Essa preocupação faz parte de uma vasta política de união visando a

m arxism o” são solicitados de duas maneiras: são citados M arx , Engels,

aliar e a reunir, contra o fascismo, as forças da classe^operária e das clas­

Lênin com o apoio a uma crítica m aterialista d o anticlericalism o. A frase

ses médias assim com o as organizações políticas ou sindicais a elas liga­

de Lênin: “Proclam ar a guerra à religião, como tarefa política do Partido

das; essa política terá como resultado a constituição da Frente Popular.

Operário, é somente uma frase anarquista” aparecerá, desde então, na

M as esse apelo à “união fraternal” e à “colaboração confiante” responde

quase-totalidade das sequências discursivas pertencendo a esse aspecto re­

tam bém a uma nova situação criada pela ameaça fascista: as perseguições

gional da FD com unista. Ao contrário, certos elementos fundamentais da

sofridas pela Igreja Católica na Alemanha suscitam uma viva em oção nos

crítica m arxista da religião são atenuados ou desaparecem. Essa dissimu­

meios católicos franceses preocupados com a agitação das ligas no solo

lação diz respeito, em particular, às formulações da Introdução à crítica

nacional. Por outro lado, a crise econôm ica e social faz surgirem zonas

do direito de H egel: “A crítica da religião é a condição prelim inar de toda

de convergência entre comunistas e cristãos: às vezes, os comitês de ajuda mútua aos empregados e deserdados reúnem uns aos outros, enquanto os 11 T

h orez,

M ., Fils du peuple. Livro segundo, tom o IX . Paris: Editions Socialies, 1932. p. 181.

12 O rgan ização d os jovens das Cruzes de Fogo, outra organização francesa de ex-com b aten 10 Isto é relatado por J . Fauvet (1977, p. 164).

tes que foi fundada cm 1927 por M au ricc H an ou t e extinta em ju n h o de 1936. (N. de T.)

144

A nálise do discurso político

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

145

crítica” ... assim com o: “A religião é o ópio do povo”.1J Os textos desse

iihlc" ou ainda da “Federação M undial da Juventude D em ocrática”). O

período de form ação do discurso comunista dirigido aos cristãos insistem

IVmido esforça-se da mesma maneira para manter o contato com os m o­

sobre o respeito às liberdades religiosas, assim com o sobre a existência

vimentos católicos, em particular com os de jovens.

de aspirações comuns que unem uns aos outros: solidariedade, justiça,

Observa-se, nos discursos dirigidos aos cristãos nesse período, uma

caridade, patriotism o, devoção, espírito de sacrifício, desenvolvimento da

lliiiude estabilidade dos temas em relação às articulações que se desenha­

personalidade, esse conjunto de valores morais que fazem do com unism o

vam antes da guerra: a oposição radical no plano filosófico do m arxismo

um “verdadeiro hum anism o” (M. Thorez, 26 de outubro de 1937). Isso

. d.i fé cristã é relembrada, mas também o respeito às liberdades religio-

abre a possibilidade de uma colaboração dentro do respeito mútuo e de

*.i«i

ações comuns para a paz e a defesa contra o fascismo.

i preciso temer nem coibição, nem violência. As garantias que oferecem

os comunistas se opõem a qualquer perseguição religiosa e deles não

*,io como aquelas previstas no artigo 124 da constituição da URSS sobre a

b) A guerra e a liberação: retomada da política da mão estendida

liberdade de cu lto.14 A colaboração com os cristãos baseia-se na existência dr uma solidariedade material e de aspirações comuns:

Durante o período da guerra, enquanto outras preocupações políticas substituem o discurso sobre a mão estendida, o diálogo entre com unistas

“Portanto, comunistas e cristãos podem se unir, porque uns

e cristãos vai se realizar na prática: a experiência comum da luta contra o

e outros têm amor por seus semelhantes e aspiram a uma

invasor, a participação de cristãos em certos órgãos de resistência, com o

vida melhor para todos os homens” (Waldeck-Rochet.

a Frente N acional, dirigida pelos comunistas, e a fraternidade do sangue

Conferência pronunciada a convite da Associação dos ju­

aproximam uns dos outros e vão instalar a problemática da colaboração

ristas comunistas em 13 de dezembro de 1944).

e das ações comuns em novas condições. E tudo isso acentuado pelo fato de que o Partido partilha o poder, que ele saiu fortalecido da guerra, en­ quanto, ao contrário, a hierarquia católica comprometeu-se na sustentação

O princípio de uma escola pública em um estado laico é estabelecido, .i supressão das subvenções acordadas à escola particular é solicitada.

ativa ou na complacência em relação ao regime de Vichy, De novo, com o na conjuntura de 1935-1937, a questão da união e a da

c) Gelo e degelo: da Guerra Fria à união da esquerda

participação no poder se encontram colocadas pelo partido nesses anos 1944-1947, no entanto com diferenças notáveis. E, de novo, é produzido

Os anos que sucedem ao pós-guerra marcam um grande recuo nos

um conjunto de discursos que vem reatualizar a política da m ão estendida

contatos entre comunistas e cristãos: é um período de relativo silêncio do

aos cristãos. Nisso, as organizações de juventude e de educação popular

Partido Comunista sobre essa questão. Os discursos comunistas dirigidos

constituem uma chave im portante: elas são, para o partido, logo após a

aos cristãos são raros, de pouca extensão, esporádicos. Para o Partido, é

guerra, um lugar de encontro com os não comunistas, ocasiões de pregar

um período de dificuldade e isolamento: lembremos, de form a muito es-

a unidade (no interior da “União Patriótica das Organizações de Juven-

quemática, que é, antes de tudo, o período da Guerra Fria em que se vê o Partido defender, de maneira incondicional, o conjunto das teses políticas

13 O parágrafo do texto de M a rx do qual essa form ulação constitui a últim a frase é cita d o fre­ quentem ente, sendo om itida a últim a frase: “A aHição religiosa é, de um lado, a expressão da aflição real c , de outro, o protesto contra a aflição real. A religião é o suspiro da criatu ra

c culturais pregadas por Stalin. Seu jdanovismo científico ou artístico vai contribuir para apartá-lo de um grande número de intelectuais cristãos,

o prim ida, a alm a de um mundo sem co ração , com o é o espírito de cond ições so ciais de que o esp írito é excluído. Ela é o ópio do povo” ( M H cgel. In: M

arx,

arx,

K. Introdução à c rítica do d ireito de

K .; E n g e i .s , F. Sobre a religião. Paris: Éditions Sociales, 1972. p. 42).

14 As referências à U nião Soviética com o m odelo de dem ocracia dim inuem , p ou co a pou co, a partir dos an os 1960, para desaparecer, nos anos 1970, do discurso dirigido aos cristãos.

146

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

A nálise do discurso político

147

para os quais, no entanto, depois da liberação, a questão da adesão ou do

Nós desejamos que se desenvolva o diálogo entre comu­

companheirismo havia se tornado “um demônio fam iliar” (É. M ounier).

nistas e cristãos e, a respeito disso, é inegável que os esfor­

As revelações do “relatório atribuído ao companheiro Krouchtchev” sobre

ços despendidos por Roger Garaudy para desenvolver esse

a extensão dos crimes cometidos por Stalin, os distúrbios políticos que agi­

diálogo tiveram na França, e em outros países, uma grande

tam o campo socialista na Polônia e na Hungria, o esm agamento da revol­

repercussão e resultados positivos para colaboração entre

ta húngara pelos tanques do Exército soviético em Budapeste acentuam o

comunistas e católicos (Waldeckt-Rochet. Discurso no

isolamento do Partido Comunista e fazem recuar, de maneira considerável,

Comitê Central de Argenteuil sobre os problemas ideoló­

as possibilidades de colaboração entre comunistas e cristãos nos anos de

gicos e culturais, 11 de março de 1966).

1950: por isso, a ação do Partido no interior das organizações de massa que constituem o lugar desses encontros será paralisada. O início da Guerra da

Argenteuil constitui uma etapa im portante na definição pelo Partido

Argélia e a chegada ao poder de De Gaulle confirm arão imediatamente,

Comunista das formas e dos objetivos da política da mão estendida: pa­

depois desses anos difíceis, essa tendência ao retraimento.

radoxalmente, esse acontecimento vai ser seguido por um recuo unitário,

No início dos anos 1960, enfraquecido pelo fracasso eleitoral do

provocado pelos acontecimentos de maio de 1968 na França e pela inva­

gaullismo, o Partido Comunista manifesta a vontade de “sair do gueto”. A

são da Tchecoslováquia pelos exércitos do Pacto de Varsóvia no dia 21 de

unidade das forças de esquerda é relançada em 1962 através de contatos e

agosto de 1968. Isso terá com o resultado novas tensões entre o partido e

acordos pontuais com os socialistas, que levam a uma progressão de toda

seus aliados, assim com o dissensões no interior do próprio partido. Roger

esquerda nas eleições legislativas de 1962 e, mais ainda, nas de 1967, como

Garaudy será excluído no fim do X IX Congresso, em fevereiro de 1970, em

nas presidenciais de 1965. Os anos 1965-1967 são aqueles da construção da

razão de seu desacordo sobre a questão checa, mas acusado, além disso, de

união, marcados, no que nos concerne, por um fato importante: uma cessão

ter estabelecido com os cristãos um diálogo no limite do sincretismo:

inteira do Comitê Central é dedicada, em março de 1966, em Argenteuil, aos

problem as id eológicos e culturais (o que não havia acontecido desde 1937).

Assim, conforme nossa política de mão estendida aos

Essa reatualização da política da mão estendida, se podemos aí en­

cristãos, não pretendemos escolher no lugar dos cristãos

contrar o conjunto da temática que os discursos produzidos nas duas con­

como devem ser cristãos, não pretendemos escolher em

junturas observadas até aqui apresentavam, distingue-Se por dois fatos no­

seu lugar nem no campo ideológico nem no da liturgia.

vos: para começar, o aparecimento do termo diálogo, pela primeira vez,

Ao contrário de Roger Garaudy, não escolhemos uma

no discurso comunista dirigido aos cristãos. A presença desse termo, que

parte dos cristãos contra os outros. E ao conjunto da

o discurso comunista retoma por conta própria, realiza uma tom ada ao

grande massa dos cristãos que propomos a ação comum

p é da letra de posições expressas recentemente pelo magistério da Igreja,

(Roland Leroy. Comentário sobre a adoção da tese n“ 30

nas encíclicas Facem in Terris (11 de abril de 1963) e Ecclesiam Suam (6 de

do X IX Congresso, Nanterre, fevereiro de 1970).

agosto de 1964), no âm bito da linha “realista” promovida por Jo ã o X X III. Em segundo lugar, observa-se o desaparecimento da referência

Desta vez, o retraimento será de curta duração. Desde 1970, G. M ar­

obrigatória à União Soviética com o modelo de garantia das liberdades

chais relança a política de aliança em uma entrevista para o jornal La

religiosas. Enfim, destaca-se a homenagem insistente feita por W aldeck-

Croix, qualificada de histórica, abrindo assim a conjuntura que levará, sob

Rochet a Roger Garaudy, encarregado, no Bureau político, das relações

os auspícios do programa comum de governo assinado em 1972, ao Apelo

entre com unistas e cristãos:

de Lyon de junho de 1976.

148

C onstitu ição do co rp u s da pesquisa

Análise do discurso político

3. HIPÓTESES ESPECÍFICAS AO CORPUS REUNIDO H ipótese 1. Os enunciados que constituem o saber próprio ao aspecto

4 .2

O rg a n iz a ç ã o

149

d o d o m ín io d e m e m ó r ia

a) Forma de corpus com dominante ou dissimétrico

regional da FD comunista do “discurso dirigido aos cristãos” (“o que pode e deve ser dito a respeito disso”) formam-se na contradição com os enun­

O corpus reúne seqüências discursivas dominadas pela FD comunista,

ciados de FDs ligadas a formações ideológicas dominantes, e, especialmen­

escolhida com o FD de referência: reúne também um conjunto de seqüên­

te, com os enunciados elementos do saber da FD católica.

cias discursivas que pertencem à FD católica

( C o u r t in e ,

op. cit., p. 178);

O dom ínio de saber de uma FD dominada constitui-se em uma for­

esse conjunto de textos não desaparece do plano de constituição do cor­

ma determinada de dom inação ideológica que atribui às form ulações

pus, mas as formulações que dele serão extraídas só figurarão no corpus no

determinados tem as (“aquilo de que elas falam ”) e articu lações (“com o

momento da determinação da forma dos enunciados. Assim, o trabalho de

falam disso”).

constituição das redes de formulação somente será feito no interior da FD

H ipótese 2. O tema do “diálogo” entre comunistas e cristãos resulta da inscrição de uma tal contradição ideológica nos cam pos de saber pró­

comunista, em uma form a dissim étrica de corpus. Dessa forma, escolher uma seqüência discursiva como ponto de refe­

prios a cada uma das FD. Acrescentaremos, no que diz respeito à FD com u­

rência e reconstituir o processo discursivo inerente à FD que domina essa

nista tomada aqui com o FD de referência, que, nela, o tema do “diálogo”

seqüência eqüivale a dar uma dom inante ao corpus discursivo: nesse corpus

funciona com o uma representação imaginária na qual o caráter desigual

estão presentes as duas (ou, eventualmente, várias) FDs que formam os po-

da contradição desaparece nas formas da troca, da reversibilidade, da reci­

los de uma contradição, mas não são representadas de maneira simétrica.

procidade e da simetria entre os participantes do diálogo.

O corpus não apresenta o desenvolvimento paralelo de dois (ou vários) pro­ cessos discursivos, mas um processo discursivo determinado (de referência) nas condições de form ação, no qual uma contradição é representada.

APRESENTAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO DOMÍNIO DE MEMÓRIA

zar, na montagem de um corpus determinado, uma relação entre produ ção

4 .1

diferentes FD, que evita reabsorver a produção de formulações a partir de

4.

Assim, a adoção de uma forma dissimétrica de corpus vem m ateriali­ de formulações no interior de uma FD e circulação das formulações entre

L is t a

d a s se q ü ê n c ia s d isc u r siv a s q u e p e r t e n c e m a o d o m ín io d e

M EM ÓRIA

posições ideológicas determinadas na troca generalizada das formulações. O corpus discursivo inclui, portanto, a título de elementos variantes

O quadro das 24 seqüências discursivas que compõem a área de me­

no seu plano de constituição, posições ideológicas contraditórias.

mória da sdr é detalhado ao final da Bibliografia.

b) Invaiiantes e variações no domínio da memória Assim, a estruturação do domínio de memória faz aparecer, a par­ tir da determ inação das CPs da sdr, ao mesmo tempo, um conjunto de elementos invariantes e uma variação sistemática das CPs das seqüências discursivas selecionadas no plano das CFs do processo discursivo.

Invariantes-. discurso de aparelho/aspecto regional da FD comunista.

Análise do discurso político

Variação das CPs (sdr) no plano dos CFs (FDR) • variação d e conjunturas (1936-1937/1944-1945/1963-1967/19701976); • variação d e lugar d o sujeito enunciador (discursos de secretários gerais do Partido Comunista/folhetos de propaganda/entrevistas de secretários gerais/resolução de congresso/manual da escola do partido/artigos de jornalistas com u nistas...); • variação d o próprio sujeito enunciador (M. Thorez/WaldecktRochet/G. M arch ais...); • variação do alocu tor (discurso ao “povo de França”/a um grupo de jornalistas franceses e estrangeiros/a líderes comunistas/à base do partido/aos delegados no congresso/a juristas comunistas/a leitores de jornais católicos/a leitores de jornais co m u n istas...); • variação das circunstâncias enunciativas (discursos veiculados por emissoras de rádio/conferência de imprensa/comício político/con­ gresso do Partido/seção do Comitê Central/situação de entrevista/ situação “escolar” da leitura ou da utilização de um manual da escola do Partido/resposta de um jornal a um texto da Ig reja...).

PARTE III

CAPÍTULO V

ELEMENTOS PARA DEFINIÇÃO DA NOÇÃO DE "TEMA DE DISCURSO"

1. OS PROBLEMAS LIGADOS À DEFINIÇÃO DAS ENTRADAS DE UM TRATAMENTO DISCURSIVO Tratarem os, neste capítulo, das operações que nos permitiram locali­ zar e, em seguida, extrair da sdr um conjunto de formulações de referência. Escolhem os extrair da sdr as formulações nas quais se pode identificar a ocorrência, presente na superfície, de estruturas sintáticas determinadas que correspondem às estruturas de frase C ’E S T ...Q U (E ...Q U E ), assim como a certas formas sintáticas a elas relacionadas. Desse modo, nosso procedimento distancia-se das análises de tipo “harrissiano am pliado”, assim com o das análises do processo de enuncia­ ção em discurso: não é, com efeito, uma lista de termos-pivô, nem uma grade de “marcas enunciativas” que vai constituir a entrada do tratam ento discursivo propriamente dito, mas um conjunto de pares associando, numa formulação, uma forma sintática determinada e um conteúdo léxico-semântico dado.

154

Análise do discurso político

Elem entos para definição da n o ção de “tem a de d iscu rso”

Essa decisão levanta duas questões:

155

e afrontamento discursivo em 1776: os grandes editos de Turgot e as exor­ tações do Parlamento de Paris’), o corpus consiste numa lista de frases, com

(1) (2)

Por que escolher, com o modo de identificação das [er], a pre­

os termos-pivô liberdade, regulam ento (...) , em posição de sujeito gram ati­

sença de estruturas sintáticas determinadas?

cal. É impossível ignorar que a seleção desses termos apoia-se em um saber

Por que escolher tal estrutura sintática (e não outra) como

histórico” (op. cit., p. 10). O corpus obtido após uma norm alização das

base dessa identificação?

frases efetuada com base em equivalencias sintáticas é, assim, constituído da classe de respostas a um conjunto restrito de questões que o analista

Adiantar uma resposta à primeira questão vai nos conduzir, a seguir, a

estabelece no campo de arquivos que ele examina. Essa operação resulta

fazer o inventário de um certo número de dificuldades encontradas em AD,

em depreender o que M arandin (op. cit., p. 36) denomina tópico discursivo

quando dos procedimentos de definição das entradas de um tratamento

(ou tem a de discurso), segundo a definição de Keenan & Schieffelin (1976):

discursivo que concernem a uma relação que as análises de tipo harrissia-

“proposição ou conjunto de proposições que exprimem um interesse do lo­

no, bem com o as análises enunciativas, estabelecem entre forma sintática

cutor”, formalmente definido pela “proposição ou conjunto de proposições

do discurso e conteúdo semântico do discurso.

pressupostas por uma questão e conservadas pela resposta a essa questão”.

A resposta à segunda questão necessita do exame de certas proprie­

Ilustremos essa noção com o auxiiio do exemplo precedente:

dades das estruturas apreendidas. Essas propriedades parecem-nos efeti­ vamente — no âm bito das hipóteses gerais sobre o objeto “form ação dis­

Questão: O que é a LIBERDADE? (nos editos de Turgot ou ainda o SO CIA ­

cursiva” e das hipóteses específicas sobre o corpus da pesquisa que formu­

LISM O nos discursos de Jaurès, etc.).

lamos — apropriadas para fornecer uma base satisfatória de identificação

Tema de discurso: A LIBERDADE é alguma coisa

empírica das [er], a partir das quais as redes de form ulação e os enunciados

Corpus:

poderão ser constituídos.

A liberdade e

1.1 OS PRO BLEM AS

X ...

\ (frases de base)

)

LEVANTADOS PELA ESCOLHA DE T E R M O S-PIV Ô EM ANÁLISE

HARRISSIANA

A seleção sob a forma de um termo-pivò de um tema de discurso é, por­ tanto, de fato, uma questão que visa a identificar no discurso um elemen­

Esses problemas, levantados por Pêcheux (1969) e J.-C . Gardin (1976), foram mais recentemente acentuados por Guilhaumou &

M aldidier

(1979), na seqüência da argumentação desenvolvida por M arandin (1979); esta pode assim se resumir: a seleção de termos-pivô e a constituição de um corpus de frases de base que resulta dessa seleção são procedim en tos

m anufaturados. A seleção de termos-pivô repousa, de fato, nos a priori do analista, o que Guilhaumou & M aldidier chamam de “julgamentos de saber”: “Em

‘Polém ique idéologiqu e et affrontem ent discursif en 1776: les grands édits de Turgot et les rem ontrances du Parlement d e Paris’ (‘Polêmica ideológica

to determinado com base em um saber definido a priori. O procedimento corre o risco, assim, de encerrar-se na circularidade: “A análise responde à questão do analista, mas, apresentando essa resposta com o estrutura bási­ ca de um texto, o analista encontra-se no limite em que seu interesse e o que é o discurso se confundem ”

( M a r a n d in ,

1979, p. 37). Desse modo, o corpus

construído torna-se m od elo do discurso e o conjunto das frases de base extraídas a partir dos temas de discurso (que refletem os pressupostos das questões do analista) induz a uma configuração do conteúdo do discurso, sob a forma de uma certa organização lexical interpretada em termos de configuração ideologica: o que os procedimentos de seleção de termos-pivô

156

A nálise do discurso político

recobrem e uma interferencia não controlada entre julgamentos de saber

Elem entos para definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

157

Existe A LG U ÉM que p o d e tem er um tal avanço das liberdades.

do analista e elementos de saber próprios a uma form ação discursiva dada. Assinalaremos, por outro lado, que os procedimentos de constituição

(3) a resposta identifica um elemento determinado com o o tema

de um corpus experimental, familiares aos usuários da Análise Automática

de discurso pressuposto pela pergunta:

do Discurso, fundamentam-se num princípio semelhante: trata-se ainda aí de induzir, sob a evidência de uma pergunta ingênua, uma resposta que virá “espontaneam ente” recobrir o pressuposto da pergunta.

Este alguém p o d e tem er um tal avanço das liberdades E A ARISTOCRACIA DO DINHEIRO. tem m edo da liberdade que

Portanto, se o recurso à experimentação nada resolve e apenas contri­ bui para m ascarar essa dificuldade, ele pode ser uma solução que mereça ser considerada: tal solução, que colocam os à prova em nosso trabalho,

1 .2 A lg um as

p r e d iç õ e s in tu itiv a s a r e s p e it o d a s f o r m a s e m

" é . . . q u e"

consistiria, em primeiro lugar, em substituir a questão (1), feita pelo ana­ lista a um campo de arquivos, pela questão (2):

Esse exemplo orienta nossa intuição a proposito das formas sintaticas de tipo:

(1) O que e X ? (onde X = um lexema determinado, escolhido a

priori como termo-pivo, aparecendo com o tema de discurso

É X QUE P

no pressuposto da questão). (2)

C om o, no p róp rio discurso e p elo p ró p rio discurso, um ele­

e de estruturas que lhes são semelhantes de tipo:

m ento determinado pode ser caracterizado com o tema de discurso? (como, isto é: pela presença de quais estruturas, sob

O QUE P É X

que forma lingüística?).

X É O QUE P

Se nos detivermos, com efeito, na noção de tema de discurso, que foi

Parece-nos possível avançar que essas formas de frase, numerosas no

extraída acima, poderemos identificar, no intradiscurso de uma seqüência

intradiscurso das sequências discursivas dominadas pela FD com unista,

discursiva determinada, a presença de estruturas sintáticas cujo efeito, no

constituem uma base satisfatória para uma identificação formal dos te­

próprio discurso, é localizar um tem a de discurso e identificá-lo. É o caso, por

mas de discurso e podem assim perm itir a localização e a extração das

exemplo, de sequências pergunta/resposta, como a seguinte, extraída da sdr:

[er]. Se essa predição for correta, será, então, possível construir as redes de form ulação, constituindo o processo discursivo inerente a FD de referen­

Q uem p o d e tem er um tal avanço das liberdades? É a aristocra­

cia, a partir das [er] localizadas e extraídas; poderemos, enfim, apreender

cia d o dinheiro que tem m ed o da liberdade.

dos R[e] assim construídos os elementos de saber próprios à FD, ou enun­ ciados [E], formas gerais que governam a repetibilidade no seio das R [e].

na qual:

Definimos a noção de tem a de discurso de maneira vaga; ela será pre­ cisada mais adiante. De maneira intuitiva, essa noção designa, por ora:

(1) (2)

uma pergunta é formulada; a existencia de um tema de discurso e localizada pelo pressu­ posto da pergunta:

158

Elem entos para definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

A nálise do discurso político

• um elemento que figura no intradiscurso de uma seqüência cuja im portância é acentuada, marcada na cadeia. Um tema de dis­

1 . 3 D e f in iç ã o

159

d e c r it é r io s f o r m a is d e d et er m in a ç ã o d o s t e m a s d e

d is c u r s o

curso carrega assim uma marca de ên fase ; • um elemento (segundo a definição de K eenan & S chieffelin , op.

A descrição de algumas propriedades lingüísticas das estruturas apre­

cit.) que pode ser objeto de uma pergunta, que é localizável no pres­

endidas virá mais adiante apoiar a escolha feita. G ostaríam os, antes de

suposto da pergunta e é conservado na resposta a esta. Acrescen­

chegar a isso, de dar sentido ao nosso procedimento; este último consiste,

taremos que é possível tratar-se seja de uma pergunta efetivamente

efetivamente, em fazer intervir critérios form ais (lingüísticos) nos p rocedi­

formulada no intradiscurso, seja de uma pergunta virtual (isto é,

m entos de seleção das entradas de um tratam ento discursivo.

pressuposta pela presença de uma forma sintática de resposta no

Essa posição parece-nos ter como interesse:

intradiscurso); • e ainda um elemento que é identificado enquanto tal pelo próprio

(1)

introduzir entre o analista do discurso e seu objeto um descom­

discurso. A presença de um tema de discurso em uma seqüência

passo próprio para quebrar a circularidade que se estabelece

supõe um efeito de sentido do tipo:

“naturalm ente” entre “perguntas” do analista e “respostas” do

corpus nas operações clássicas de escolha de termos-pivô; “E disso - e não de outra coisa - que falo; é isso - e não outra

(2)

favorecer uma determinação unívoca das [er] no corpus que se baseia nas propriedades de autonomia relativa da língua;

coisa —que é o objeto de meu discurso.. . ” (3)

estabelecer a relação entre intradiscurso (como lugar de deter­ minação das [er]) e interdiscurso (como lugar de construção

mas, igualmente:

dos [E] efetuada a partir dessa determ inação); “É isso que quero dizer quando emprego esse term o; essa pala­

(4)

evitar separar m aterialidade da língua (um ou vários funcio­ namentos formais determinados) e m aterialidade d o discurso

vra de meu discurso significa is s o ...”

(um conjunto de processos identificáveis no corpus discursi­ ou seja: identificação de um elemento com o elemento do discur­

vo), ao passo que uma tal separação é amplamente difundida

so, mas igualmente identificação de um elemento do discurso

em AD, sob a forma de uma dissociação forma do discurso/

com um outro.

conteúdo do discurso; (5)

adotar, assim, a perspectiva do funcionam ento de uma estru­

Efeitos de sentido de ênfase e de identificação, inscrição em uma for­

tura de língua, em discurso, como base de definição das en­

ma dialógica: essas propriedades atribuídas à noção de tema de discurso

tradas de um tratam ento em AD. Essa perspectiva parece-nos

conduzem-nos a fazer disso uma base privilegiada da determ inação dos

preferível à posição que consiste numa determ inação estatís­

elementos de saber de uma FD.

tica com o critério de seleção dos temas de discurso. Todo le­ vantamento estatístico, por mais cuidadoso que seja, não pode evitar fazer da definição das entradas de um tratam ento uma fase de dem ografia discursiva que ignora toda consideração do funcionamento do discurso.

1 60

Elem entos para definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

A nálise do discurso político

161

P E X/X E O QUE P nas sequências discursivas dominadas pela FD de

2. O TRATAMENTO DAS FRASES EM "É...QUE" EM AD: UM EXEMPLO DA DISSOCIAÇÃO ENTRE FORMA DO DISCURSO E

referência poderá ser considerada como um argumento suplementar, não

CONTEÚDO DO DISCURSO

Dessa form a, a abundância de estruturas do tipo: É X QUE P/O QUE

com o um argumento decisivo, justificando sua escolha. Tal posição com porta, entretanto, um risco: este eqüivaleria a ceder à

2.1 Em a n á l ise

d e t ip o h arrissla n a

ilusão d e um a transparência do discurso, isto é, a considerar que os discur­ sos “falam por si próprios” e dão espontaneamente, em sua forma lingüís­

A manipulação transformacional das frases em língua natural que

tica, as chaves para sua interpretação pelo tipo de operações lingüísticas

contém um termo-pivô vai levar o analista, segundo os princípios estabele­

que empregam (em virtude de um princípio do tipo: a tal estrutura sintá­

cidos por Dubois (1969a), a suprimir as formas em E QUE.

tica, tal efeito de sentido). A AD seria, nesse caso, tomada ela própria nos

Essa operação fundamenta-se nos seguintes pressupostos:

efeitos ideológicos ligados à leitura de um texto. (1)

Convém assim lembrar, por um lado, que a existência da am bigü idade

O conteúdo léxico-semântico dos enunciados pode ser teori­

semântica ligada ao funcionamento de certas estruturas sintáticas (é o caso

camente separado de sua forma sintática. As transformações

das frases em E ...Q U E ) previne contra a ilusão de uma transparência; por

sintáticas consideradas só constituem um acréscimo facultativo

outro lado, que as hipóteses propriamente históricas, formuladas na o ca­

que não afeta fundamentalmente o significado do enunciado; (2)

sião da determ inação das condições de produção e das condições de for­

Certas formas sintáticas podem, assim, ser suprimidas num

m ação, não poderiam ser subordinadas às considerações lingüísticas que

acesso regulado ao conteúdo léxico-sem ântico dos enunciados,

presidem aqui mesmo a determinação dos temas de discurso.

no qual a AD deverá produzir uma organização (constituição de classes de equivalências distribucionais).

Ao contrário, é a hipótese segundo a qual o domínio de saber da FD comunista constitui-se sob uma forma determinada de dom inação ideo­ lógica que conduz a buscar as formas nas quais os temas desse “diálogo”

O

discurso ver-se-á, portanto, representado no modelo de um dicio­

inscrevem-se na materialidade lingüística das sequências discursivas domi­

nário, cujas entradas são constituídas de temas de discurso arbitrariam en­

nadas pela FD comunista.

te escolhidos e que funciona com base em uma sintaxe reduzida.

A ordem do discurso não subordina a ideologia à língua, nem a língua à

Outra conseqüência desse procedimento: a distribuição, no discurso,

ideologia; o discurso materializa o contato entre o ideológico e o lingüístico,

da relação entre conteúdo léxico-sem ântico e forma sintatica e aqui tratada

na medida em que ele “representa, no interior do funcionamento da língua,

implicitamente com o uma distribuição aleatória: ela tende para uma p o si­

os efeitos da luta ideológica (e em que), inversamente, manifesta a existência

ção lexicalista que implica a indiferença d o conteúdo léxico-sem ântico das

da materialidade lingüística no interior da ideologia” (P ê c h e u x , 1979, p. 4).

form u lações à form a sintática dessas m esm as form ulações.

2.2 Em a n á l ise

d o p r o c e s s o d e en un ciação

Os dois tipos de análise opõem-se, nos termos de Dubois (1969a, p. 123), como uma perspectiva estática opõe-se a uma perspectiva dinâmica. A análise enunciativa substitui a representação estática, “cartografia” do discurso, que

162

A nálise do discurso político

E lem entos para definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

163

as análises de enunciados estabelecem sob a forma de um quadro de classes

Surgem numerosas objeções a tal análise:1 a noção de transform ação

de equivalências, por uma representação dinâmica, indicando “a ordem das

sintática, principalm ente, é afetada por um conteúdo psicológico; o que se

transformações operadas numa frase tipo, estabelecidas pela operação pre­

encontra manipulado no trabalho de Courdesses não são tanto as regras de

cedente e permitindo explicar as transformações pela decisão tom ada pelo

uma gram ática quanto as operações de um sujeito. A noção de regra gra­

sujeito” (grifo nosso).

matical é tom ada aqui conforme o mal-entendido para o qual Chomsky,

A citação precedente permite precisar a relação entre análise de enun­ ciados (harrissiana) e análise da enunciação que se estabelece em AD: a

a partir de Aspects de la théorie syntaxique (1965, p. 19-20) chamava a atenção dos linguistas:

análise de enunciados é anterior à análise enunciativa; ela constitui um

m o d elo d e recon hecim ento que, a partir de um corpus e de uma lista de

Para evitar o que foi um perpétuo mal-entendido, talvez

termos-pivô, constrói, pela supressão de marcas sintáticas, um dicionário

seja útil repetir que uma gramática gerativa não é um

de equivalências semânticas entre frases tipo. Inversamente, a análise enun­

m odelo do falante ou do ouvinte. Ela tenta caracterizar,

ciativa é p osterior à primeira; ela constitui um m od elo de p rodu ção que,

da maneira mais neutra, o conhecimento da língua que

a partir de frases de base obtidas pela aplicação da análise de enunciados,

fornece sua base à atuação efetiva da linguagem pelo

explica a produção do texto pelos atos, escolhas, decisões do sujeito enun­

falante-ouvinte. Quando dizemos que uma gramática

ciador que modaliza o enunciado, principalmente pela ordem das regras

engendra uma frase provida de uma certa descrição es­

que impõe a derivação de uma frase.

trutural, compreendemos simplesmente que a gramáti­

G ostaríam os, agora, de salientar certas conseqüências ligadas à opera-

ca atribui essa descrição estrutural à frase. Quando di­

cionalização das análises do processo de enunciação em análise do discurso

zemos que uma frase tem uma certa derivação do ponto

político.

de vista de uma gramática gerativa particular, nada di­

Desse modo, a análise efetuada por Courdesses (1971): procedendo

zem os sobre a maneira como um falante ou um ouvinte

a uma decomposição comparativa das marcas do processo de enunciação nos discursos de Blum e Thorez, se ela não considerar nenhuma forma de ênfase ou de tem atização, chega, em compensação, no que concerne ao levantamento das transformações negativas, numerosas no discurso de Blum, a conclusões tão diversas quanto estas:

1 Além das ob jeções relativas à constitu ição do corpus m encionadas n o C ap ítu lo I, podería­ mos acrescentar: C om o sc justifica a cscolha dc uma form a lingüística mais do que outra nas form as levantadas (senão pela confusão entre uma interpretação psicológica do m odelo gram atical de Syntactic struetures - e principalm ente a noção de transform ação facultativa - e o p róp rio discurso)?

Em todos os casos, as transformações negativas expli­

Q ue significação conced er a um levantam ento estatístico em discurso q ue n ão tenha co m o

cam sua percepção permanente dos outros na seqüência

co n d ição prévia o estudo do fu ncion am ento discursivo das form as recenseadas?

de seu enunciado e a percepção permanente de si pró­ prio, que lhe faz questionar incessantemente seus pen­ samentos e julgamentos, numa flutuação contínua que

C om o interpretar, em term os de relação entre as form ações discursivas socialista e c o ­ m unista, as diferenças estatísticas levantadas, senão n os term os da o p o sição psicológica entre duas “p ersonalid ad es” ou pela reinscrição das medidas efetuadas nas concepções ideológicas m ais esp on tâneas do “que são os socialistas” e do “que sã o os com u n istas” ? É interessante n o tar acerca disso que a op osição discurso de Blum/discurso de T h o rez reco­

encontraremos na utilização complexa das formas ver­

bre esp ontaneam ente as categorias de

bais. Elas revelam, no plano psicológico, sua inquietude

na sociolin gu ística de Bernstein (1975), o discurso da classe média/da classe o p erária. São

fundamental (op. cit., p. 26).

código elaborado e código restrito, caracterizan d o,

as m esm as form as ideológicas (discurso valorizando o indivíduo nas cam ad as m édias e a burguesia/discurso negando o indivíduo na classe operária) que estão operand o nesses dois tipos de trabalh o s; fizem os sua crítica em ou tro lugar, conform e C o u rtin e & G ad et (1977),

Classes sociales et égalité des chances linguistiques.

1 64

A nálise do discurso político

Elem entos para definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

165

poderia proceder, de um modo prático ou eficaz, para

É a CLASSE O PERÁ RIA que garante a produ ção dos bens

construir tal derivação (grifo nosso).

materiais. E a CLASSE O PERÁ RIA que está situada no cerne d o m eca­

Além disso, a posição desenvolvida por Courdesses eqüivale, no que

nism o de exploração.

concerne ao tratam ento da relação entre forma e conteúdo do discurso em

E a CLASSE O PERÁ RIA que produz a mais-valia.

AD, a estabelecer o princípio da indiferença da form a sintática das fo rm u ­

E a CLASSE O PER Á R IA que sofre mais diretam ente a ex p lo ­

lações a o con teú d o léxico-sem ântico das form u lações: são as decisões do

ração.

sujeito enunciador - e somente elas - que virão justificar o aparecimento

G. M archais (10/06/76):

de tal forma sintática neste ou naquele lugar do texto.

E a CLASSE O PERÁ RIA que é a m ais explorada.

A análise do tipo harrissiano e a análise enunciativa revelam-se, as­ sim, com o figuras gêm eas (elas operam uma mesma dissociação form a do

• C ertos elementos de saber (por exemplo: a violência vem dos

discurso/conteúdo do discurso), ao mesmo tempo em que com plem entares

comunistas) serão combinados, em FD antagonistas, a formas

(distribuem complementarm ente os dois termos da relação assim estabe­

sintáticas semelhantes (presença de E ...Q U E ) e, ao mesmo tem ­

lecida). O discurso só pode numa tal alternativa receber, com o modelo, o

po, opostas (afirmação/negação). Podemos observar, assim, nos

dicion ário ou o sujeito.

textos da Igreja:

E dos com unistas que vem a violência.

2.3 A

NÃO INDIFERENÇA DA FORM A DO D ISCURSO AO CONTEÚDO DO D ISCURSO

E V IC E -V E R SA : ALGUNS ARGUMENTOS EM PÍRICOS

e, em contraponto, G. M archais (10/06/76):

G ostaríam os, para concluir este ponto, de trazer alguns argumentos

A violência, não é de nós que ela vem.

em píricos, extraídos do corpus, com o apoio da tese subjacente às críti­ cas que acabam de ser formuladas: a forma sintática do discurso não é

Encontraremos, na descrição das formas em E . . .QUE no discurso, fei-

indiferente aos conteúdos léxico-sem ânticos do discurso e vice-versa. Se a

i .ino

dissociação forma/conteúdo não é admissível em AD, é porque ela tende a

conteúdo de saber e determinada forma sintática de formulação.

separar con teú d o de um saber e form a sintática de uma form u lação. Dessa form a, as frases em E ...Q U E não se distribuem aleatoriam en­

Capítulo V I, numerosos exemplos de coincidência entre determinado É a p o sição de um elemento determinado no saber de uma FD (isto

r, também na contradição entre saberes opostos) que vem, conform e vere­

te nas seqüências discursivas, mas dependem de uma FD determinada (os

mos, explicar essa coincidência. £ por isso, tam bém, que podemos esperar,

exemplos seguintes são extraídos do corpus):

i om base em uma determ inação de certas formas sintáticas no intradiscur«i> de uma seqüência, caracterizar a posição no saber da FD que domina

• Existe uma classe de lexemas, como classe operária (mas também

poder, dem ocracia, liberd ad e...), que aparecem frequentemente em posição X em E X QUE P, ao passo que outros podem jamais aparecer nessa posição. Exem plo: X X I Congresso do PCF:

rssa seqüência de elementos, da qual esta ou aquela form ulação constitui uma reformulação sintaticamente marcada.

166

Elem entos p ara definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

Análise do discurso político

3. ELEMENTOS DE DESCRIÇÃO LINGÜÍSTICA DE FRASES EM "É...QUE"

3 .2

D e s c r iç ã o

167

s in t á t ic a d a a m b ig ü id a d e

a) O tratamento do efeito contrastivo Efetuamos em outro texto

( C o u r t in e ,

1980, p. 192-214) uma descrição

sintática completa das frases em É ...Q U E , ao mesmo tempo que fizemos a

Gross (1977) propõe relacionar as frases clivadas em E . . . QUE como (2)

crítica das noções (tópico/comentário, tema/rema, dado/novo...), por meio

a frases com dois membros (eventualmente ligados por mas ou e) como (2a):

das quais são geralmente tratados os efeitos de sentido relacionados. Nós nos limitaremos aqui a algumas indicações, pela lembrança de certas proprieda­

(2) E a aristocracia d o dinheiro que tem m edo da liberdade.

des dessas frases e de certas soluções avançadas em seu tratamento sintático.

(2a) E a aristocracia d o dinheiro que tem m edo da liberd ad e{e/

m as} não a classe operária (que tem m edo da liberdade). 3 .1 A lg u m a s

p r o p r ie d a d e s d a s f r a s e s e m

" é . . . qu e"

Essas propriedades são bem conhecidas (deslocamento e focaliza-

Gross vê, nas frases do tipo (2a): P, = É X QUE P {{e/m as}) P2 = NÃO É Y QUE P

ção do constituinte enquadrado por E ...Q U E ; inscrição em uma relação pergunta/resposta cuja especificidade encontra-se marcada pela corres­

a base formal geral a partir da qual a noção intuitiva de efeito contrastivo

pondência entre o pronome Q U E ... da pergunta e o elem ento-central da

pode receber uma representação. O contraste tem sua origem na conjunção

resposta em É ...Q U E , etc.). As frases em É ...Q U E são, da mesma forma,

de duas frases P ,e P2; essas duas frases apenas apresentam uma diferença:

frases am bíguas, e é sobre essa propriedade que insistiremos aqui. P, = X A Y / P 2 = X B Y

Uma frase com o (1) pode, efetivamente, receber uma interpretação

contrastiva, parafraseada em (la ), dêitica (ou designativa) em (lb ), e constativa em (lc ):2

B está, então, em contraste com A. Uma única negação é obrigatória em um ou em outro membro, quando

(1 ) E a dem ocracia qu e querem os para a França.

a negação está na origem do contraste: ela é de forma contrastiva em não,

(la) E a dem ocracia —e nada mais —que qu erem os...

como em (2b), que provém de (2a) por redução de um segundo membro de

(lb) Esta dem ocracia é a dem ocracia que querem os, é bem esta

duas frases conjuntas, seguida de uma permuta que aproxima os dois termos

a dem ocracia que querem os, eis a dem ocracia q u e...

do contraste:

(lc) H á a dem ocracia, e eventualm ente outras coisas, qu e qu e­

rem os...

(2b) É a aristocracia do dinheiro, (não) a classe operária, que

tem m edo da liberdade. D iferenças de paráfrase permitem, assim, distinguir os diversos va­ lores de E ...Q U E , mas a caracterização de interpretações diferentes com base em critérios estritamente formais é problem ática, com o veremos.

A análise de Gross fornece um critério que permite o reconhecimento em superfície da interpretação contrastiva das frases clivadas, isso no caso de frases contrastivas com dois membros. Q uanto às frases com um mem­

2

O b servam o s, tam b ém , às vezes, uma interpretação exclamativa ( B a l l y , 1951, p. 2 6 2 ), da q ual n ão tratarem o s a q u i, na m edida cm que não aparece em nosso corpus.

bro, com o (1) ou (2), Gross considera-as tipos degenerados que devem ser

168

E lem entos para definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

Análise do discurso político

interpretados a partir da forma de base geral contrastiva. E é nesse ponto

3.3

A IDENTIFICAÇÃO

NAS FRASES EM " É X QUE

p”/"0

169

QUE P É X "/ "X É O QUE P "

que surge uma dificuldade: com base em que tipo de intuição ou de saber - pois de forma alguma se trata aqui de intuição ou de saber gramaticais -

a) Frases de identificação equativas

podemos, no discurso, autorizar-nos a proceder a essa reconstrução? A propriedade de frase de identificação é a que resulta da possibili­

b) Análise de interpretações contrastiva vs. dêitica

dade para toda frase predicativa de ser transformada em frase clivada de

form a equativa. As frases equativas são frases de forma SN, E SN 2, em que A descrição anterior não permite explicar as ambigüidades levantadas.

Ê deve ser interpretado com o “deve ser identificado a ”. Distinguem-se das

Dubois &C D ubois-Charlier (1970, p. 185-186) esforçam -se, em compensa­

frases copulativas, em geral, pelo fato de sua reversibilidade (sua cópula é

ção, para tratar da distinção entre as interpretações contrastiva e dêitica.3

dita equativa).

Assim, (3) proviria de (3a) e de (3b), frases clivadas, consideradas fra­ ses transformadas que resultam do encaixe de uma frase relativizada em

Se SN , É SN , - SN 2 É SN ,, então SN, É SN2 é uma frase equativa como (4):

uma outra. (4) O program a com um é a base de nossa ação — A base de

nossa açã o é o program a com um .

(3) E o socialism o que nós p rop om os a o pais. (3a) N ós p rop om os algo a o país. (3b) Este algo é o socialism o.

Encontram os em Halliday (1967) um estudo exaustivo de frases de identificação. Ele indica nesse estudo que toda frase predicativa com o (5)

(3a) encaixando-se em (3b) por relativização. A ambigüidade resultaria do possível encaixe da relativa, seja no SN

pode transformar-se em frase de identificação equativa pela nominalização (em O QUE P) de um conjunto de seus elementos, seja (6):

contendo a proforma nominal (este algo), seja no SN contendo o socialism o. (5) Q uerem os a união dos trabalhadores.

Veremos, mais adiante, que os problemas levantados a propósito da

(6) O qu e querem os é a união dos trabalhadores.

análise de Gross permanecem igualmente aqui. Nós nos lim itarem os, no momento, a salientar que a forma atribuída à frase m attiz (3b) explica uma outra intuição relativa às frases clivadas: estas são frases de identificação (o tratam ento proposto consiste, dessa forma, em fazer provirem as frases em

A propriedade de reversibilidade das frases equativas faz que (6) possa converter-se em (7):

É ...Q U E do encaixe de uma relativa em uma frase de identificação). (7) A união dos trabalhadores é o que querem os. Essas frases, ditas pseudoclivada e pseudoclivada invertida , caracteri­ zam-se pelas propriedades seguintes: (1) 3

Em uma frase copulativa reversível de tipo SN , E SN 2 - SN 2 É

O tratam en to da interpretação constativa geralm ente é ignorado. D esse m odo, C u lioli

SN ,, elas estabelecem uma relação entre dois elementos defini­

(1974) distingue tem atizaçào forte (em É ...Q U E ) e fraca (em H Á ...Q U E ); m as não especi­

dos por sua relação de identificação:

fica que É ...Q U E em superfície pode, às vezes, ser interpretado co m o tem atizaçào fraca.

170

A nálise do discurso politico

Elem entos para definição da n oção de “tem a de d iscu rso”

Esse conjunto de observações quanto às propriedades lingüísticas das

Identificado — cópula equativa — identificante, que representaremos por: IDado G IDante

171

frases em É X QUE P/O QUE P É X/X É O QUE P4 vem especificar algumas das intuições que nos fizeram escolhê-las como base de determinação dos

(2)

Se a forma sintática dessas frases é reversível, a relação de

temas de discurso e das formulações de referência. Elas constituem exatam ente um meio privilegiado que associa focali-

identificação é orientada (no sentido: “elemento a identificar(3)

(4)

(5)

elemento identificante”).

zação e identificação de um elemento do discurso. As modalidades dessa

A orientação da relação de identificação é determinável: o

identificação variam nos diferentes funcionamentos de E ...Q U E , corres­

identificante é sempre o constituinte que corresponde ao pro­

pondendo às ambigüidades que descrevemos; por outro lado, as frases em

nome QUE da pergunta pressuposta pela frase; esse elemento

O QUE P É X/X É O QUE P produzem efeitos de sentidos específicos.

é o núcleo da frase.

Voltaremos, mais adiante, à descrição dessas frases no intradiscurso da sdr.

Em uma frase clivada de identificação equativa, o elemento O

Denominaremos, ao término desse desenvolvimento, tem a de discur­

QUE P é sempre o identificado; o identificante é reduzido a um

so todo constituinte focalizado de uma frase clivada de identificação ou de

único elemento.

uma frase em É ...Q U E (o constituinte X em: O QUE P É X/X É O QUE

As frases desse tipo especificam, como as frases predicativas,

P/É X QUE P). Cham aremos de frases introdutórias de tem as de discurso as frases

um processo e seus participantes, mas acrescentam a inform a­ ção, segundo Halliday (op. cit., p. 233), de “que um dos parti­

que respondem a essas formas sintáticas.

cipantes pode definir-se como participante do processo”. (6)

Elas podem originar efeitos contrastivos.

b) Frases com tema predicado e tema de discurso Halliday distingue, nas frases em É ...Q U E , às quais denomina frases

com tem a predicado, as frases quase-sinônimas das frases clivadas de iden­ tificação equativa. Assim, ele exprime a diferença semântica entre as duas estruturas:

Estruturalmente, a predicação condensa as funções de tema e de identificante, dando ao tema uma ênfase ex­ plícita por exclusão (“É de X e de ninguém mais que se trata”).

H á,

entretanto, uma diferença entre uma frase

com um tema predicado e uma frase de identificação, no efeito de ênfase que ela implica. Na identificação, a ênfase é cognitiva: “X —e ninguém mais —fez isto”, ao passo que

4

En con tram os n o corpus O Q U E P É X/X É O Q U E P. A presença de O p arece-n os co rres­ ponder a um reforço da identificação por um vínculo correferencial suplem entar. [N. de T.: em fran cês, C E Q U P C ’E S T X/X C ’E S T C E Q U E P apresenta o pronom e d em on stra­

na predicação, é temática: “X —e ninguém mais —é o tema

tivo n eutro (C ’ = C E ) com o sujeito aparente; quando associado ao verbo être co lo ca em

desta frase”

evidência um elem ento da frase, com o nas frases m encionadas. B e s c h e r e l l e . La gratnmai-

( H a l l id a y ,

1967,

p.

233).

re pottr tous. Paris: H atier, 1990. p. 231-232.]

CAPÍTULO VI

EFEITOS DISCURSIVOS: CONTRADIÇÃO, REAL E SABER

1. DESCRIÇÃO DAS FRASES INTRODUTÓRIAS DE TEMA DE DISCURSO NO CORPUS DAS FORMULAÇÕES DE REFERÊNCIA A descrição das frases introdutórias de tema de discurso levanta diversos problemas: nós limitar-nos-emos a considerar a questão de sua am bigüidade, assim como os efeitos discursivos que acompanham sua ocorrência no intra­ discurso da sdr. Duas perguntas são subjacentes aos problemas considerados: • Por que determinado constituinte, ao invés de outro, ocupa uma posição de “tema de discurso” nas estruturas escolhidas? • Como explicar, numa perspectiva discursiva, efeitos vinculados a essas estruturas nas interpretações contrastiva, constativa e dêitica que elas autorizam? Em um grande número de casos, é difícil, e às vezes impossível, distin­ guir entre essas interpretações. Tais dificuldades já despontavam nas análises lingüísticas dessas frases propostas por Gross, Dubois e Dubois-Charlier, ou ainda Halliday: com o, por exemplo, decidir a possibilidade de dar à frase

174

Análise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

175

(1) deste exemplo de Dubois &C Dubois-Charlier (1970) a interpretação (la)

Como esse elemento exterior determina o tipo de interpretação que essas

preferentemente à (lb)?

frases recebem, ele remete, no primeiro caso, à posição de um constituinte tomado numa form ulação determinada no interior de um domínio de saber.

(1) É a secretária que vi.

Estabelecer uma tal interpretação (“desambiguizar” a formulação)

(la) É a secretária - e não o diretor —que vi.

exige, dessa form a, que seja especificada sua posição em uma relação inter­

(lb ) Esta secretária é a secretária que vi.

discursiva ou numa intersequência dada. No caso de (lb ), a interpretação dêitica parece supor uma relação da

Vimos anteriormente a solução adotada por Dubois na descrição da ambigüidade.

formulação com o contexto intrassequência (ou situacional) como elemento exterior ao funcionamento da língua exigido para atribuição de um efeito.

Esse critério aplicado às frases do corpus parece pouco explicativo.

A análise dos efeitos de sentido torna assim necessárias, simultanea­

A proposição feita por Gross (1977) de reconstruir um segundo membro

mente, a consideração do funcionamento sintático das formas em E ...Q U E

contrastivo das frases em E X QUE P choca-se com as mesmas dificuldades:

que ocorrem nas formulações de referência e a inscrição dessas formula­

com o decidir aqui sobre a possibilidade dessa reconstituição ou ali sobre

ções em relações intra e interdiscursivas, isto é, sua determinação por FDs.

o tipo de encaixe?

Essa exigência encontra-se expressa nos trabalhos anteriores (P ê c h e u x ,

No caso de uma frase como (1), parece impossível decidir entre uma in­

1975; H en r y , 1975) que, em vista disso, utilizaram, na análise do funciona­

terpretação contrastiva ou dêitica da frase com base em critérios unicamente

mento discursivo da nominalização ou das relativas, a noção de paráfrase

formais. As paráfrases (la) e (lb) supõem, na verdade, condições de emprego

discursiva, distinta daquela de paráfrase lingüística:

diferentes de (1). (la) responderia, efetivamente, a uma pergunta como: “Quem viste?”;

Se o discurso fosse inteiramente determinado sob o

a fim de que um efeito contrastivo pudesse ser produzido na frase de identi­

ponto de vista de sua produção e de sua interpretação

ficação que responde a essa pergunta, seria necessário que o morfema QUE

pela língua, não haveria lugar para a noção de pará­

da pergunta e o constituinte enquadrado por E ...Q U E na resposta (“a secre­

frase discursiva (...). A paráfrase discursiva (é) consti­

tária”) fizessem referência a um saber no qual os objetos “secretária” e “dire­

tutiva dos efeitos de sentido. Podemos, então, explicar

to r” ocupassem uma posição em que não devem ser confundidos (um saber

que formulações diferentes quanto à sua materialidade

no qual “um gato é um gato”, “uma secretária é uma secretária”, “um diretor

possam estar vinculadas a um mesmo efeito de sentido,

é um diretor”, e em que “ter visto a secretária” não é “ter visto o diretor”...).

sem que, apesar disso, essas diferentes formulações pos­

(lb ) responderia, em compensação, a uma pergunta com o: “Quem

sam ser consideradas mantendo, umas com as outras,

é?” , o efeito dêitico resultando da correspondência entre o morfema

relações que dependeriam da autonomia relativa da lín­

Q U EM da pergunta, o constituinte enquadrado por E ...Q U E na resposta e

gua (como o que denominamos «paráfrase» no sentido

um objeto presente no con texto situacional (sob a forma de uma referência

lingüístico do termo). É preciso ser claro quanto a esse

externa a “essa secretária que vemos” ...) e/ou discursivo (sob a forma de

aspecto, a noção de paráfrase discursiva é uma noção

uma correferência a “essa secretária da qual tratam os” ...).

“contextual”, no sentido em que as paráfrases discur­

Em ambos os casos, a frase estabelece uma relação de identificação

sivas dependem das condições de produção e de inter­

cuja interpretação evoca um elem ento exterior ao funcionamento sintático

pretação, isto é, das formações discursivas diversas, às

das frases do tipo (1) definido no âmbito da autonomia relativa da língua.

176

Análise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

177

q u ais o d iscu rso p o d e ser re la c io n a d o p a ra p ro d u z ir o

[er]40 /FORAM os grandes d o m undo de outrora QUE en co ­

s en tid o (H en ry , 1975, p. 95).

m endaram castelos e catedrais, mas EO R A M os ancestrais dos operários de hoje QUE os construíram./

Descrevemos, a seguir, as diferentes realizações das frases em E X QUE P/O QUE P É X/X É O QUE P levantadas no corpus das [er]; tentamos, igual­

- frases com um membro, com uma negação constrastiva, do tipo:

mente, a análise nos itens 2 e 3 deste capítulo de alguns efeitos de sentido vinculados à sua ocorrência, no quadro teórico que acaba de ser delineado.

NÃO É X QUE P por exemplo, em:

1 .1

F r a s e s em " é

x

q u e p”

[er]|9//\ violência, NÃO E de nós QUE ela v e m ..J

a) Interpretação contrastiva Nas frases contrastivas com um membro do tipo E X QUE P, a recons­ A interpretação contrastiva de certas frases em E ...Q U E do corpus das [er] não levanta problemas. Essas frases são:

trução de um segundo membro (adotando aqui o princípio de reconheci­ mento dessas frases cm superfície definido por Gross (1977)) permite, na maioria dos casos, suprimir a ambigüidade.

- frases com dois membros, do tipo: - A presença à direita de “E ” de um modiíicador do tipo precisam ente, E X QUE P | Wí,s| NÂO E Y QUE P

som ente, unicam ente vem, em certos casos, facilitar a interpretação con­ trastiva, por exemplo, em: [er]29 w / M as E precisamente p o r isso, E precisamente porqu e

por exemplo, em:

som os m aterialistas QUE.../ [er]34 /NÃO E contra eles, mas tam bém para eles QUE lutamos. / - Nesse tipo de funcionam ento, só encontramos, em geral, um constituin­ - ou frases com dois membros, cujo contraste é marcado pela antoním ia entre duas relações predicativas ligadas por um articulador de oposição

te enquadrado por E ...Q U E ; quando ha vários deles, é uma relação de equivalência de tipo isto é que os vincula (por supressão de uma relativa explicativa), por exemplo, em:

(mas, a o contrário): É X QUE P,, mas É Y QUE P2

[er]21 /E p o r esse cam inho, p or uma luta calm a, unida, respon­

sável QUE a classe operária, nosso povo, tm porão transform a­ por exemplo, em:

ções d em ocráticas.../ - Destacam os igualmente combinações das formas: deslocam ento à es­ querda + pronom inalização e E ...Q U E , como em:

178

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

Análise do discurso político

179

[cr]^/ a violência, NÃO É de nós QUE ela vem e QUE jam ais

- Encontram os frequentemente diversos constituintes enquadrados por

virá. /

E ...Q U E apresentando-se sob a forma de uma enum eração, cujos termos podem estar ligados por e tam bém , de tipo:

Subsistem ambigüidades, entretanto, na interpretação de certas for­ mulações: nos casos litigiosos ou dificilmente solucionáveis (mesmo insolú­

| SN^ (e tam bém ) SN 2! (e tam bém ) SN ^ .-.Q U E P

veis), com base em que critérios atribuir determinado tipo de interpretação a determinada estrutura? Por exemplo, se interpretarmos, no exemplo an­ terior, [er]^ de maneira contrastiva:

como em:

E p o r esse cam inho (isto é) p o r um a luta calm a, unida, respon­

[er], !E, en tão, ao sair do trabalho, E o am on toam en to nos

sável —e por nenhuma outra via —QUE a classe o p erá ria ...

m eios de transporte, as más con dições de h ab ita ção , as m il e uma p reocu pações das fam ílias QUE vêm aum entar o cansa­

ao invés da maneira dêitica:

Este cam inho é o cam inho p elo qual a classe o p erá ria... com o explicar a intuição de leitura que fundamenta essa interpretação?

b) Interpretação constativa As frases em E X QUE P que recebem uma interpretação constativa diferenciam-se das precedentes em que: - E X QUE P pode ser parafraseado por HA X QUE P, com o em: [er]tf./ERA a assem bleia plenária d o ep isco p ad o francês QUE

ço, a irritação./ - Os elementos em posição X nas frases de interpretação constativa levan­ tados no corpus das [er] são SN (ainda que figurassem com o constituintes enquadrados no caso anterior dos SN sujeito, SN objeto, Sprep ou seus equivalentes e frequentemente nominalizações como em [er]s, dada ante­ riormente com o exemplo).

c) Interpretação dêitica As frases de interpretação dêitica caracterizam-se pelos traços seguintes: - E X QUE P pode ser parafraseado por

declarava há quatro a n o s.../

J [e

- Um modificador do tipo de tam bém pode figurar à direita de “É ”, por

EIS X QUE P st e x é o x q u e p

exemplo, em: com o em: [er]4Ç/ E também a imagem do casal (...) QUE se acha altera­

d a .../

[er]J7/É tudo isso QUE nos leva a con siderar.../ - X é um SN ou Sprep anafórico, de tipo:

180

Análise do discurso político

pronome demonstrativo

Í

Det + Nome genérico

(essas qu estões capitais, este, a isto, aquela realidade, um fa to , os elem en ­ tos d ecisiv os...), correferindo a um constituinte de S"1, a S"\ a um parágrafo

F.fcitos discursivos: co n trad ição , real e saber

181

tica desempenha o papel de elemento identificador, apresentam, no corpus das [er] as seguintes particularidades: - X é um pré-construído nominalizado por exemplo, em:

ou eventualmente a toda a parte de seqüência à esquerda de E X QUE P. [er],,/ ... O QUE é preciso h oje É uma m udança política, uma - H á, ao menos, um elemento pré-construído no campo da anáfora, por exemplo:

m udança d e sociedade. / [er],2/... O QUE caracteriza o estado de espírito de m ilhões de

[er], [... realizar a m udança necessária / E a essas qu estões ca­

pitais Q U E .../ ...] [er]H[ ... fazer avançar a dem ocracia, a liberdade /E o QUE pro­

p o m o s .../...] [er],, [... transform ação da so cied a d e.../ E a isto QUE nosso

partido se con sag ra.../...} [er]17[... linha divisória decisiva.. J E aquela realidade Q U E .../...]

trabalhadores (...) E a aspiração à justiça, à fratern id ad e.../ - Encontram os as dificuldades anteriormente mencionadas para atribuir uma interpretação a essas formas. A presença de negação contrastiva no contexto, de um conector de tipo mas ou ao con trário , pode, entretanto, no caso de [er]^, por exemplo, fundar uma interpretação contrastiva; a presença de uma enumeração de constituintes em posição X perm ite, em compensação, marcar a ligação entre essa forma e a frase em É X QUE P de interpretação constativa.

- Essas frases podem ser ligadas a seu contexto de esquerda por um articulador de tipo e.

b) XÉ O QUE P Por exemplo:

1 .2

F ra ses

em

"o

q u e p é x "/" x é o q u e p "

a) O QUE PÉ X Por exemplo: [er],,,/ Ao contrário, O QUE p ro p o m os a o s franceses E uni-

rem -se.../ Essas frases de identificação reversíveis, nas quais a nominalização em O Q UE P ocupa a posição de tema de frase e a de “elemento a identificar” na estrutura de identificação, e onde o tema de discurso X em posição remá-

[er]26/ 0 povo (...) SÃO aqueles e aquelas QUE fizeram de nosso

país o que ele é . . J Reagrupamos sob essa forma dois tipos de realizações: - frases nas quais X É O QUE P se realiza em SN, É SN 2 QUE P em que SN, é um pré-construído e em que

Í

Pronome demonstrativo Determinante + Nome genérico J

182

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

A nálise do discurso político

183

a classe m edia, a m aior parte de nosso povo QUE os m alefícios

com o em:

da política atual atingem duramente. / [er]K/íi origem dos males (...) É este sistem a QUE vê o grande

capital exercer sua dom in ação, sua hegem onia (...)/

o conjunto dos SN 2 constituiria uma lista especificando SN j (a união do

povo da França) que funciona então como um lexema vazio catafórico. Nos dois tipos de realizações levantadas sob a forma de X É O QUE P,

ou ainda

o elemento em posição X deve ser identificado (ou especificado) na rela­ [er],( la linha divisória decisiva É A QUE (...) se situa entre, de

ção de identificação, o que distingue essas frases do caso geral considerado

um lad o pequena casta que dom ina a econ om ia e o Estado e,

mais anteriormente por Halliday, para o qual o elemento X em X É O QUE

d e outro, a im ensa m assa dos que traba lh am .../

P exercia função de identificador. As frases de tipo X E O QUE P invertem, portanto, a ordem dos cons­

O contexto de formulação permite caracterizar essas duas realizações

tituintes das frases de tipo O QUE P F X , mas conservam a orientação da relação de identificação.

com o contrastivas. - frases nas quais X E O QUE P se realiza em SN, E SN '2, SN2, SN\ ... QUE P em que SN, é um pré-construído, no qual { S N '2,S N 2, S N ',} ... é uma enumeração

2. PARÁFRASE DISCURSIVA, ENUNCIADO, REFERÊNCIA E REFORMULAÇÃO NO FUNCIONAMENTO CONTRASTIVO 2.1

P a rá fra se

d is c u r s iv a e e f e it o s c o n t r a st iv o s

a) Análise do efeito de sentido contrastivo

e nas quais a relativa QUE P, tendendo a um funcionam ento apositivo,

Seja, na [er]|9, a frase/a violência, não ê de nós que ela v em .../. Essa

pode ser suprim ida em certos casos. Esse tipo de realização aproxim a-

frase em N Ã O E X QUE P é, nos termos de Gross (op. cit.), “uma frase con­

se, por essas características, das frases em E X Q UE P de interp retação

trastiva com um membro” cuja parte suprimida é fácil reconstruir. Encon­

constativa ou descritiva. Correspondem , por outro lado, às frases copu-

traremos, de fato, nas sequências discursivas dominadas pela FD comunista:

lativas esp ecificacion ais, descritas por M arandin (1978, p. 60) em seu trabalho de descrição do D iscours français sur la C hine. A interpretação

N Ã O E dos com unistas (tam pouco dos trabalhadores, p role­

especificacional de uma frase está vinculada à existência de relações es­

tários, d o p o v o ...) QUE vem a violência, E d o capital (mas

pecificas entre os sintagm as que form am os term os da relação especifica­

tam bém da grande burguesia, dos m on opólios, da aristocracia

cional: no caso de uma form ulação com o [er]2:

d o d in h eiro...) QUE ela vem.

/ . . . a união d o povo da França, SÃO os em pregados, os ca m p o­ neses, os engenheiros e os técnicos, os professores e os artistas.

Essa form ulação tem as seguintes características:

184

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

Análise do discurso político

• antagonismo de dois termos (e de seus respectivos substitutos si-

[e],= Í P x l

nonímicos) no saber da FD comunista (com unistas, trabalhadores,

[e]2 = | P Y j

185

proletários vs. Capital, burguesia, aristocracia d o din heiro...); em que

• uso contrastivo da cópula de identificação (é/não é);

• possível supressão de um dos dois membros da frase contrastiva; • aplicação de uma transformação de deslocam ento + possível

• [e],e [e]2representam duas formulações pertencentes a FD anta­ gônicas;

pronom inalização do membro restante.

• P representa um contexto de formulação comum; Se “varrermos” o interdiscurso da FD com unista, no qual fizemos fi­ gurar um certo número de sequências discursivas dominadas pela FD cató ­ lica, poderemos aí encontrar sem esforço um conjunto de form ulações1 em rede, com as quais a formulação de referência mantém uma relação inter­

discursiva. Condensando seu princípio: A violência vem dos com unistas. D eterm inam os, assim, no interdiscurso, uma oposição entre dois ele­ mentos: A violência vem d os com unistas vs. A violência vem d o grande

capital, manifestando a contradição entre dois domínios de saber de FD antagônicas. Encontram o-nos aqui, na verdade, diante de uma configura­ ção particular de paráfrase discursiva, na qual duas formulações, de forma sintática determinada (N, V de N,) atribuem valores semelhantes (a vio­

lência, vir de) a certos lugares dessa estrutura e dois valores antagônicos a p elo m enos um lugar (aqui: N „ que toma dois valores antagônicos j ocorrência

f

Com unistas

1

,

na

^

[ G rande capital \ É a presença, no interdiscurso, de uma configuração d e paráfrase dis­

cursiva de tipo:

• I ? I representam dois valores antagônicos atribuídos a um lugar m determinado do esquema sintático dessas formulações, que pode desencadear, no intradiscurso das sequências discursivas dom i­ nadas por essas FD, uma m odalidade contrastiva de identificação realizada sintaticamente por uma frase em É X QUE P de inter­ pretação contrastiva. Isso eqüivale a transform ar cada uma das duas form ulações em frase de identificação equitativa, na qual: • os constituintes com valor antagônico virão colocar-se em posição de identificador e receberão assim a interpretação tema de discurso ; • a cópula de identificação equitativa se desdobrará em op erador

de identificação contrastiva , representado J — le • os constituintes com um valor constante figurarão na nominalização em O QUE P, ocupando a posição de elemento a identifi­ car, na frase de identificação; • a correspondência entre valores opostos do operador de identifi­ cação e do constituinte identificante será invertida em cada uma

1

N ão co nstituím os essas redes para caracterizar o p rocesso discursivo inerente à F D cató lica

das formulações, seja:X

em razâo do prin cípio de co nstitu ição de unia form a de corpus d o m in ante ou d issim étrica; essas redes seriam , so b este aspecto, facilm ente constituiveis; algum as form u laçõ es para ju lgá-las: . ..N ada existe que o comunism o não ouse, nada que ele respeite: ali on de tomou

o poder, mostra-se selvagem e inumano (Q uadragésim o Anno). A luta d e classesy com seus ódios e suas destruições (...) deve aniquilar com o inimigos do gênero hum ano todas as forças que se opõem às suas violências sistemáticas (Divini R ed em ptoris). Eis porque os defensores dessa doutrina, ali onde se tornam os donos d o poder, atacam a religião com violência (V atican II).

( l) O Q U E p j? J

«

oquep

I;} $

186

A nálise do discurso politico

Efeitos discursivos: co n trad içao , real e saber

187

seja, no interior de cada um dos processos discursivos tom ados como

de interpretação contrastiva. M ais adiante, faremos distinções entre essas

exemplo:

três form as, a propósito das variações que podem introduzir na produção ou na interpretação de um efeito de sentido determinado (Consideramos,

e

■ J\é m (1) D o qu e (de quem ) vem a violência

nãoé

|de nós.\ \dos comunistas\ d o grande capital.

no momento, o caso de É X QUE P/NÃO E X QUE P.). Esse tipo de análise, que recorre ao interdiscurso com o elemento exte­ rior ao funcionam ento da língua, parece-nos responder, numa perspectiva discursiva, às perguntas que levantamos anteriormente quanto à escolha



(2) D o qu e (de quem ) vem a violência ,< |ni

|do grande capital.\ |dos comunistas.\

de nós.

Desenvolvendo (2) de maneira simplificada

de um constituinte determinado como tema de discurso e à atribuição de uma interpretação contrastiva a esse tipo de frases. E efetivamente possível, de ora em diante, avançar que: (1)

Poderemos caracterizar a ocorrência, em uma form ulação que surge no intradiscurso de uma seqüência discursiva dominada por uma FD determinada, de uma forma de frase E X QUE P

por deslocamento de na contradição que liga os processos discursivos inerentes a duas FD

N ão é p o r tática, nem na con fu são id eo lóg ica, qu e bu sca­

antagônicas, com o a comunista e a cristã. A partir de duas B[e] induzidas

m os ap a ix o n a d a m en te... (unir com unistas e cristãos), mas

da rede de formulações dada como exemplo anteriormente (no Capítulo II),

p orqu e (...)

poderiamos, igualmente, destacar uma forma geral de repetibilidade de tipo de P i — l, seja o enunciado: 1Yj

produz um efeito de referência, no sentido em que sua forma sintática tem por efeito a identificação contrastiva de substitutos sinonímicos pertencentes

A política dos com unistas í uma constante, um procedim ento de princípio \ em relação aos cristãos ê \uma artim anha, uma tática, uma arm adilha... J 4

Essas classes foram constituídas a partir das form ulações do d om ín io de m em ória inscri­ tas na zona de repetibilidade governada pelo enunciado dividido to m ad o co m o exem plo.

200

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

A nálise do discurso político

a duas classes referenciais antônimas. O funcionamento metadiscursivo desse tipo de forma encontra-se aqui confirmado.

201

governa, deve ser considerada uma possível reformulação desse enunciado. JX l Podemos, assim, percorrer R[e] a partir de [E] — P j^ T j com o um trajeto

Essa observação é generalizável sobre a totalidade do processo dis­ cursivo: os elementos colocados em posições referencialmente contraditó­

das reformulações possíveis de [E], Até aqui só levamos em conta o plano da formulação, isto é, o do

rias no enunciado ligado à [er]|9 (em que X = [grande capital, burguesia,

aristocracia d o d in h eiro ...], e Y = [com unistas, trabalhadores, p roletá­ rio s...]) entram em outros tipos de regularidade recorrentes no processo discursivo. Assim, por exemplo, as formulações em que aparecem verbos da classe V* = [oprimir, chocar, explorar, espoliar, p ô r em perigo, dom inar,

a b a te r ...] são todas construídas segundo a estrutura NXj V N Y2. Podemos, com base nesse exemplo, tornar mais precisa a noção de

intradiscurso da sdr no corpus constituído como “ponto de apoio” de um acesso ao interdiscurso: suas [er] foram empiricamente segmentadas e ex­ traídas; isso levou a determinar a forma de certos enunciados; uma forma de coexistência foi estabelecida para o processo discursivo entre enunciados divididos e formulações que manifestam a presença de formas sintáticas È X QUE P/O QUE P É X/X É O QUE P de interpretação contrastiva. Trata-se, agora, de refletir sobre o intradiscurso da sdr, a fim de nele

enunciado como “forma indefinidamente repetível” ou com o “forma geral que governa a repetibilidade no seio de uma rede de form ulação”: se um determinado enunciado regula exatamente a existência de uma zona de re­ petibilidade a partir da qual uma rede de formulações poderá ser construí­

observar a maneira como os elementos do saber de uma FD que são os enun­ ciados tornam-se objetos de enunciação : se o intradiscurso de uma seqüência discursiva constituir exatamente o lugar de uma apropriação por um sujeito enunciador dos elementos do saber de uma FD, convirá determinar as dife­

da, o esquema geral P j — J cruza 0 conjunto do processo discursivo, isto é,

rentes modalidades dessa apropriação; a sequencialização dos elementos do

nesse caso, o conjunto dos R [e], cuja repetibilidade encontra-se governada

saber produz aí, de fato, diferentes efeitos discursivos resultantes desse ou

por enunciados divididos, constitui uma con d ição geral de repetibilidade

daquele modo de linearização dos enunciados no intradiscurso. N o que concerne à zona de funcionamento discursivo pela qual nos

no interior do processo da FD considerada.

interessamos aqui, os efeitos que determinamos entram no registro do fun­

b) A reformulação

cionam ento p o lêm ico do discurso político, que foi abundantemente descri­ to em AD ; ele aí constitui uma base de construção de tipologias discursivas

Teremos encontrado, nos desenvolvimentos precedentes, um certo nú­

(discurso polêm ico, discurso didático). Todas as análises do funcionam en­

mero de elementos em apoio à primeira parte da tese enunciada anterior­

to polêmico do discurso político insistem na presença desse tipo de dis­

mente: os enunciados obtidos a partir das [er])9J9 revelam-se exatam ente

curso de “marcas de rejeição” (G ardin & M

com o objetos que a existência de uma contradição específica entre duas

e principalmente de transformações negativas (geralmente apresentadas

FD antagônicas “faz existir” enquanto tais; tentamos m ostrá-lo na própria

com o negação/rejeição pelo sujeito enunciador de uma form ulação ante­

forma do enunciado, no fato de que regula a constituição, no domínio de

rior do discurso do “outro”), isto é, de formas lingüísticas da refutação.

1 9 7 4 , entre outros)

Descrevemos, a seguir, diferentes efeitos discursivos ligados à refor­

saber, da referência das expressões que aí se inscrevem em posição [X , Y]: essa contradição é anterior à existência desses objetos.

arcf. llesi ,

mulação de enunciados divididos no intradiscurso da sdr.' N o âm bito de

G ostaríam os, a seguir, de precisar as modalidades de presença dis­ cursiva de uma contradição ideológica no plano da form u lação. De fato, em conformidade com o que havíamos indicado anteriorm ente, cada for­ m ulação que entra num R[e], cuja repetibilidade um enunciado dividido

5

Lim itar-nos-em os à observação das form ulações cujas form as sintáticas são aparentadas a E X Q U E P, ainda que h aja outras form as sintáticas de contraste (conexões interfrásticas em

mas, presença de orações concessivas, diferentes tipos de negação contrastiv a...) nas zonas de repetibilidade cm que se vc a ocorrência dc form as E X Q U E P dc interpretação contrastiva.

202

Análise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

interpretação delineado pela segunda parte da tese afirmada anterior­

203

(2) As formas da refutação

mente, o dominio de saber de uma FD dominada constitui-se numa for­ Os tipos de reformulação da [El = P j^ -J que podemos encontrar no

ma determinada de dominação ideológica, que faz dessa FD uma unidade dividida, em cujo interior podemos determinar os efeitos da dom inação ideológica.

intradiscurso da sdr foram levantados anteriormente e uma análise sucinta de seu funcionam ento foi proposta. Essas reformulações resultam de dife­ rentes modos de linearização do enunciado dividido no intradiscurso da

(1) Sujeito universal e posição de sujeito

sdr; realizam-se em diversas formas de refutação âs quais o funcionamento polêmico do discurso está ligado; determinamos as seguintes formas de

D o conjunto do desenvolvimento precedente, podemos extrair, quan­

refutação no corpus das [er]:

to à questão do sujeito, as seguintes conseqüências: P j — J representa aqui exatam ente, enquanto elemento do saber, uma expressão remetendo ao su-

{*) Formas completas (ou explícitas) de refutação. Essas reformulações cons­

jeito universal da FD ; o enunciado vem dar uma forma determinada ao que

tituem formas completas (ou explícitas) de refutação, no sentido em que o

designamos como a exterioridade do enunciável.

conjunto dos elementos presentes no enunciado encontra-se linearizado no

Essa forma tem a particularidade, no caso de P i 2^.1, de mariifestar a lYj

intradiscurso. Correspondem às “frases com dois membros” estudadas por Gross (op. cit.) e são de forma:

relação entre dois sujeitos de saber antagônicos, que poderíamos represen-

í SUi l

tar, por analogia com a forma do enunciado: i -------} no sentido em que PX

É X QUE P P, j 6

is u j

1 É Y QUE P2, como em:

l mas |

é uma expressão remetendo a SU t e PY uma expressão remetendo a SU2. Se uma p o siçã o d e sujeito se define como uma relação de identificação

[er]J4 N ão é contra eles (os trabalhadores) m as p o r eles tam ­

do sujeito enunciador com o sujeito universal de uma FD, a especificidade

bém que lutamos'.6

da posição de sujeito no funcionamento polêmico de discurso deve-se ao fato de que essa identificação, pela qual um sujeito falante é interpelado/ constituido em sujeito ideológico, efetua-se em um lugár dividido por uma

ou então de forma:

contradição. j,

E X QUE P Á

E se o domínio da forma-sujeito constitui exatam ente o domínio da

1 ,

i E Y QUE P2, como em:

[m as)

descrição do sujeito com o efeito no discurso, através das diferentes posi­ ções de sujeito determináveis numa FD, poderemos representar

[er]17É a aristocracia d o dinheiro que tem m edo da liberdade.

Os trabalhadores, ao contrário, precisam de liberd ad e...

SU.

1 l y S

suJ

a posição de sujeito “polêm ico” como elemento de descrição da form a su­ jeito na FD de referência.

6

Vem os bem nesse exem plo com o vários efeitos de sentido podem sob recarreg ar um a de­ term inad a form u lação: a copresença de um efeito contrastivo ( não é...m as), de um efeito constativo sobre o segundo m em bro da frase ( tam bém ) e de um efeito exclam ativo, m ar­ cado pela p on tu ação (c a única m arca exclam ativa que figura em um a [er] do corpus).

204

Análise do discurso politico

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

N o caso de [er]34, poderíamos reconstruir no intradiscurso um enunÍX l ciado de forma P < >

205

interdiscurso enquanto pré-construído (linearização dos dois membros da identificação contrastiva, articulação dos dois membros linearizados por

1Y j

mas ou a o contrário). Vemos bem, nesse exemplo, como os funcionamentos discursivos

Os com unistas lutam -j

1 os trabalhadores. [a favorj

de pré-construído e de articulação descritos por Pêcheux (1975) e Henry (1975) são efeitos determinados materialmente pela própria estrutura do interdiscurso. Em qual sentido, igualmente, podemos dizer que o interdis­

que vem marcar, nesse exemplo, a exterioridade do enunciável sob a forma de uma expressão que manifesta a contradição entre dois saberes antagônicos. A enunciação por um S de uma formulação com o a [er]34efetua-se por

curso, com o “coerência textual” ou “fio do discurso” do sujeito, é estri­ tamente um efeito do interdiscurso sobre si próprio, “uma inferioridade inteiramente determinada com o tal do exterior”

uma passagem à asserção, na qual:

(P ê c h e u x ,

op. cit., p. 152).

As formas completas de refutação parecem, assim, manifestações quase-explícitas da existência de uma contradição ideológica no intradis­

• ocorre uma determinação do sujeito do enunciado em relação ao sujeito da enunciação (S = §>, ou seja, nós); e

Entretanto, isso ocorre quando formas com dois membros contêm

• produz-se, ao término da análise proposta anteriormente, uma sefv l quencialização do conjunto dos elementos contidos em P i ' l, em que um elemento X

m

é

curso de uma sequencia discursiva.

identificado como elemento do saber da FD

no contexto P, ao passo que um elemento Y é o objeto de uma refu­

uma negação contrastiva, com o em [er]M,ou uma relação antoním ica entre os predicados de dois m em bros (ter m edo da liberdade!precisar da liber­

dade) com o [er]1?. Se essas formulações funcionam bem “na contradição”, [er]1(|,de forma E X QUE P^m as É Y QUE P2:

tação (isto é, de uma identificação negativa) no que denominamos

Foram os grandes do m undo de outrora que encom endaram

“modalidade de identiticação contrastiva”.

castelos e catedrais, mas foram os ancestrais dos operários de h oje que os construíram

As formas completas (ou explícitas) de refutação são aquelas nas quais a estrutura do interdiscurso aparece mais claramente: “os elementos do intradiscurso que constituem, no discurso do sujeito, o que o determ i­ na, são reinscritos no discurso do próprio sujeito” O

(P ê c h e u x ,

1975, p. 148).

interdiscurso aparece aqui, efetivamente, enquanto pré-construído,

manifesta uma relação de complementaridade entre as relações predicativas dos dois membros da frase (encom en dar castelos e catedrais!construí-

los) que produz um efeito diferente, dc simples contraste.7

sob a forma de evidências nas quais, em cada uma das duas FD antagônicas, encontra-se representada “a luta dos comunistas”.

Os comunistas lutam pelos trabalhadores, pelo povo, pela liber­ dade vs. Os comunistas querem a divisão do povo, levam a classe operária, os trabalhadores, à miséria, são contra a liberd ad e...

7

O s term os “fu ncion am ento contrastivo” c “efeitos contrastivos”, com base nos quais des­ crevem os as reform ulações de [E] = P 1— 1. foram -nos sugeridos pela análise de G ross (op. Iy J c it.). São , certam ente, m uito gerais para poderem aplicar-se ao m esm o tem po a um efeito discursivo co m o o presente em [er] 17> em que a m odalidade contrastiva de identificação colo ca bem os term os aristocracia do dinheiro/trabalhadores numa relação con trad itó ria, e o resultante de [er]^,, cu jo s term os que entram , entretanto, nas classes de su b stitu ição sin on ím icas de aristocracia d o dinheiro/trabalhadores, no caso: grandes d o mundo de outrora!

Porém o interdiscurso figura, igualmente, na form ulação enquanto

discurso transverso : cruza e conecta entre si os elementos constituídos pelo

ancestrais dos operários de hoje são sim plesm ente colocad os num a relação que é, ao m es­ m o tem p o, contrastiva e com plem entar, tudo isso numa p olítica que destaca no prim eiro caso o afron tam en to dc classes e, n o segundo, o com prom isso h istórico.

206

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

A nálise do discurso político

207

(*■*) R efutação por dencgação, refutação por inversão. A inscrição do in­

[er])sO coletivism o que desejaria nivelar as consciências, o re­

terdiscurso só se efetua, entretanto, cm regra geral, de maneira também

gim e no qual um pequeno número pensa p o r todos, é b o je que

manifesta no caso dessas formas completas de refutação. O que caracteri­

existe em nosso país.

za efetivamente a forma sujeito, enquanto visa ao mecanismo pelo qual o sujeito enunciador identifica-se ao sujeito do saber da FD que o assujeita

isto e:

(isto é, a descrição de uma posição de sujeito), é que ela tende a m ascarar a determ inação do intradiscurso pelo interdiscurso, e até a inverter essa de­

O coletivism o (...) é h oje que existe em nosso país, n ão am a­

term inação: os elementos pré-construidos do interdiscurso são incorpora­

nhã (...)

dos ou absorvidos pelo intradiscurso; mas essa incorporação é, ao mesmo tempo, o objeto de uma dissim ulação (ver

Pêch eu x,

Se tivéssemos de propor um enunciado dividido que desse conta da

1975, p. 152). E ncon­

tram os, nas formas de refutação por denegação e por inversão, a ilustração

interpretação contrastiva de [er]^ , esse poderia ter a forma:

desse mecanismo. A forma de refutação p o r denegação pode ser obtida pela supressão de

O coletivism o j

existe

[j

h oje

1 I nos países socialistas.

{não existe J l amanhã) {

um membro de uma forma completa de refutação; c conservado o membro

em nosso país.

que com porta a negação contrastiva, no qual o pré-construído elemento de saber de uma FD antagônica é marcado por uma identificação negativa. Tivem os, em [er]19 ,9 , exemplos desse funcionamento. As refutações por

O pré-construído (nominalizável), elemento de saber de uma FD antagônica:

denegação obedecem , assim, à forma: . . . I h o je \ J nos países socialistas [ , . . . A existencia \ >\------ ------------------------ > d o co letiv ism o 8 {am a n n a } | em n osso pais J

\ É X QUE P). ( mas i

NÃO É Y QUE P (] "

poderia ser refutado pelas denegações seguintes: O elemento exterior ao saber da FD (elemento do discurso do “outro”) , J h oie } I nos países socialistas i , . . N ao e ------ =— ^ 7 f i ------------------------;------ f que o coletivism o existe. I a m a n h ai ( em nosso pais |

acha-se incorporado no processo discursivo inerente a essa FD com a con­ dição de aí ser marcado negativamente. A fronteira entre dois domínios de saber é bem determinada nas formas da identificação negativa. As formas de refutação p o r inversão são fundadas num outro modo de absorção do interdiscurso pelo intradiscurso. São form ulações de tipo:

que viriam marcar a fronteira entre formulável e não formulável no interior do processo discursivo. C onstatam os, em vez disso, que onde a refutação por denegação pro­

\e 1 , E X QUE ?(•; > NAO E Y QUE P), com o em: 1mas j

cede à incorporação de um elemento “estranho” e antagônico do saber da FD no processo discursivo inerente a essa FD, designando-o (pelo N Ã O E . ..

8

Ver an teriorm en te a c ita ç ã o extraíd a de um a carta do episcopad o fran cês de novem bro de 1973.

208

Análise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

QUE) com o elemento de saber antagônico, a refutação por inversão opera, ao contrário, um trabalho no interior d o processo discursivo antagônico.

209

A descrição precedente mostra, efetivamente, que a refutação por dene­ gação m arca, na reformulação, a fronteira entre dois processos discursivos

Esse trabalho acaba, no caso tratado, por trazer de volta o sentido

antagônicos, ao passo que a refutação por inversão atua sobre essa fronteira.

do elemento pré-construído, invertendo a correspondência entre os comu-

E encontram os, assim, imbricados na existência histórica dos proces­

táveis no interior das classes de paráfrase discursiva próprias ao processo

sos discursivos com o objeto de uma AD, o lingüístico e o ideológico: esses

discursivo antagônico;

dois modos de reformulação do enunciado dividido, linguisticamente descritíveis, vêm m aterializar em discurso as formas nas quais a luta ideológi­

hoje

-5— —— ► nos países socialistas

sc>a l|am anha /

♦ em nosso pais

ca se manifesta na luta política: como guerra ideológica de p osição, onde a refutação faz-se “por denegação” (imitar as palavras do outro, opor suas palavras às do outro, lutar palavra por palavra, como se avança passo a

o que pode, em seguida, ser o objeto de uma identificação contrastiva: E

passo numa guerra de trincheiras); ou como guerra ideológica de m ovi­

h o je qu e o coletivism o existe em nosso país (...)> onde é suprimido o mem­

m ento, na qual os efeitos polêmicos se produzem “ao inverso” (apoderar-se

bro no qual a negação contrastiva incide.

de palavras do adversário, delas fazer suas próprias palavras e devolvê-las

Na inversão, a subversão do funcionamento de um processo discursivo

contra ele, lutar tomando o outro ao pé da letra ...).

de uma FD dominante no próprio interior desse processo discursivo consti­

A descrição do funcionamento da refutação na reformulação no inte­

tui a condição na qual um elemento do saber pré-construído dessa FD pode

rior da FD comunista mostra, por outro lado, que não temos, a partir de

ser absorvido pelo processo discursivo de uma FD dominada, e isso como

uma posição dominada em uma contradição desigual, a escolha das armas

se fosse um elemento de saber próprio a esta última: é a razão pela qual o

ou, mais exatam ente, a escolha das palavras: quer se trate de refutação por

elemento sobre o qual a inversão foi efetuada se acha enquadrado por E ...

denegação ou inversão, os elementos a refutar impõem-se à refutação devi­

QUE na formulação e recebe, assim, a interpretação “tema de discurso”. O

do às posições ideológicas hegemônicas a partir das quais são produzidos.

efeito de referência próprio ao funcionamento metadiscursivo de E X QUE

Por esse motivo, a caracterização em termos de “marcas de rejeição”

P coloca-o, dessa forma, em posição referencial X no saber da FD em que o

das formas lingüísticas que estudamos só se mantém numa óptica diferen­

pré-construído se acha incorporado.

cial e fundamentalmente não dialética; ao contrário, o que o estudo do

Poderíamos, assim, ter igualmente

funcionamento das formas de refutação numa FD indica é que estas são igualmente o traço material da presença do outro, do exterior ao interior de

E em nosso país (não nos países socialistas) qu e o coletivism o

si e que marca com uma rejeição ou uma recusa do outro (na constituição

existe hoje.

de sua “individuação”); as FD que são os objetos não têm outra existência senão a de uma unidade dividida; e se devemos atribuir-lhes uma fronteira,

c) Dominação ideológica, existência de uma FD e fronteira entre FD

convém logo precisar que essa fronteira passa no interior delas próprias. O conjunto das descrições anteriores vem, assim, justificar a segunda

As formas materiais de existência dos efeitos polêmicos no discurso

parte da tese lembrada anteriormente; o domínio de saber de uma FD do­

que são a denegação ou a inversão levantam, cada uma à sua maneira, a

minada constitui-se em uma forma determinada de dom inação ideológica

questão da existência de uma FD no seio de uma contradição ideológica

que atribui temas às formulações (a existência d o coletivism o, a política

determinada, isto é, a questão da atribuição de uma fronteira entre esses

dos com unistas co m o artim anha, violência, a m udança co m o perigo, o

objetos que são as FD.

210

Análise do discurso político

m aterialism o co m o d iv isão...) t a ç ã o c o m o r e fo r m u la ç õ e s

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

e a r tic u la ç õ e s (as fo r m a s d ife re n te s d e re fu ­

de u m d a d o e n u n c ia d o P 1 — 1).

1YJ

211

A ordem de sintagm atização dos elementos no intradiscurso de uma seqüência discursiva aparece, portanto, de novo, nos exemplos acima, como regulada pela própria estrutura do interdiscurso: o fato para este ou

Podemos, aliás, destacar, na estrutura sintática das formulações que

aquele elemento aparecer em primeiro lugar (como “tema de frase” nos

vêm reformular um enunciado dividido no intradiscurso de uma seqüência

exemplos que acabam de ser dados) não depende, de forma alguma, dos

discursiva, outros traços, no interior de uma FD dom inada, do caráter de­

atos, escolhas ou decisões de um sujeito enunciador, mas exatam ente de

sigual da contradição ideológica na qual se situa. Por exemplo:

uma configuração determinada de saber no interdiscurso, na instância do que denominamos “a exterioridade do enunciável”.

(1)

nas formas completas de refutação, a anterioridade do mem­

Essa é a razão pela qual a adoção de uma perspectiva estritamente in­

bro no qual figura a negação contrastiva sobre o membro sem

tradiscursiva tal como a que certas análises de discurso, as gramáticas de

negação, produzindo o efeito de uma réplica im ediata em um

textos, certas pesquisas pragmáticas e sobre a argumentação privilegiam,

diálogo simulado:’

parece-nos inadmissível no âmbito de uma análise de discurso que seguisse os caminhos teóricos que esboçamos. Ela só viria, efetivamente, registrar o

Você diz que lutam os contra os trabalhadores? Claro qu e não!

que designamos com o o plano em que se desenrola o imaginário no discurso,

N ão é contra eles, m as p or eles tam bém que lu tam os...

isto é, onde a forma-sujeito realiza a incorporação/dissimulação de elemen­ tos pré-construídos a partir de uma estrutura de enunciado determinada no

(2)

a recorrência nas formulações de interpretação contrastiva de

interdiscurso: todo um conjunto de noções geralmente utilizadas em análise

estruturas sintáticas de tipo deslocamento + pronom inaliza-

do discurso ou em lingüística na descrição do “fio do discurso”, e que são

ção, cujo constituinte extracolocado provém de um elemento

todas fundamentadas na ordem de aparecimento e de sucessão dos elemen­

pré-construído de saber antagônico que se impõe à form ula­

tos na cadeia, seja no interior da frase (como as noções de “tema de frase”,

ção pelo efeito da dominação ideológica, em uma espécie de

ou de “tópico” em algumas de suas acepções), seja no enunciado contínuo

tom ada pela palavra obrigatória, em eco:

(como a oposição “dado/novo” introduzida por Halliday, ou, ainda, o fun­ cionamento da correferência nas relações interfrases) devem, assim, ser con­

A violência (já que é preciso falar d ela, já q u e você aca b a de

sideradas como os traços lingüísticos da produção do sujeito com o efeito na

falar n ela...), não é de nós que ela vem (...)

formulação, e não como elementos primeiros a partir dos quais um sujeito enunciador viria compor sua palavra.

ou ainda:

Um outro exemplo disso

é

dado pela utilização, em certos casos,10 da

noção de pressuposição na descrição lingüística ou, ainda, em tentativas

O coletivism o (já que você fala nele, já que a qu estão não p od e

recentes que visam a dar à análise do discurso uma base pragm ática; por

ser evitada), é h o je que ele existe em n osso país.

exemplo, na análise que Kiefer (1974) faz disso, uma frase em E ...Q U E de interpretação contrastiva como (1) só seria descritível a partir do conjunto de suas pressuposições (la )-(lc ) comportando uma “pergunta” (lb ) e uma “resposta negativa” (lc):

9

R eexam in arem o s, na conclusão, a questão do diálogo com o form a im aginária da co n ­ tra d içã o entre duas FD. Na zona de funcionam ento discursivo que estudam os aqui, não podem os d eixar de co n sta ta r que o “d iálogo” funciona co m o “d iálogo de surdos” .

10 A qui, fazem os alusão à pressuposição ligada ao fu ncionam ento sin tá tico da frase, e n ão à p ressuposição lexical.

212

Análise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

(1) É o socialism o que querem os para a França. (la) Q uerem os algo para a França.

213

\ líHilTOS DE REAL E DE SABER NAS IORMULAÇÕES DE INITÍRPRETAÇÃO CONSTATIVA E DÊITICA

(lb ) O qu e qu erem os para a França? (lc) N ão é a barbárie que qu erem os para a França.

11.1 O FUNCIONAMENTO

CONSTA1TVO: EFEITO DE REAL E APELO A UM SA BER

O ra, revela-se, ao fim das análises realizadas quanto às reformulações

Considerando apenas por ora as formulações em E X QUE P, atri­

possíveis de [E] = P |— 1 no intradiscurso de uma seqüência discursiva

buímos uma interpretação constativa a certas [er] a partir dos critérios

^^ ^



fX 1

»cnuintes:

dominada por uma FD em que [E] — P j — | é um elemento de saber, que o conjunto de reformulações (l)-(lc ) vem manifestar diversos modos de

• p a rá fr a s e p o ssív el de É X QUE P p o r HA X QUE P;

incorporação/dissimulação de elementos pré-construídos no intradiscurso.

• p re se n ç a ou in s e r ç ã o p o ssív el de

Assim, (la) e (lb ) realizam, sob as modalidades da asserção e da interroga­

• presença eventual (ou inserção possível) de uma seqüência de

ção, a supressão da antonímia {so cia lism o /b a rb á rie} , isto é, o esvaziam en­

tam bém à d ire ita de E;

constituintes em posição X .

to do lugar ocupado pelos elementos referencialmente contraditórios no ou nos domínios de saber em questão." (1) e (lc) constituem dois modos

A fo rm u la ç ã o

de dissimulação, a partir da forma de refutação completa (ld ): [er]1t Era a assem bleia plenária d o ep iscop ad o que declarava (ld) E o socialism o, não a barbárie, que querem os para a França.

há quatro anos: (inserção de discurso citado)

do interdiscurso no intradiscurso, por supressão sintática de um ou de outro

atend e a o s d o is p rim e iro s c rité r io s p ro p o s to s. A v arre d u ra d o in te rd is c u r­

membro da forma completa. O que Kiefer caracterizava com o pressuposi­

so, c o n s titu íd o em d o m ín io de m e m ó ria , leva à c o n s tr u ç ã o a p a r tir d e [e r]36

ção (enquanto condição de possibilidade semântica de uma frase com o (1))

da rede de fo rm u la ç õ e s R [ c j : c u ja d e s c riç ã o d e ta lh a d a fa z e m o s em o u tr o

aparece, assim, em nossa perspectiva como um efeito vinculado á supressão

te x to (C o u r tin e , 1980, p. 300-306).

sintática d e elem entos pré-construídos na linearização de um enunciado. Fazer de (lc) uma pressuposição de (1) eqüivale, assim, a colocar um

As configurações de paráfrase discursiva que se podem destacar a par­ tir de tais tipos de R [e] diferem da forma P j — ! observada no caso do fun-

1Y J

efeito im aginário em posição de causa real, isto é, a produzir a teoria im a­ ginária de um efeito subjetivo, repetindo o imaginário no imaginário.

cionamento contrastivo, uma vez que: • as fo r m u la ç õ e s q u e n elas fig u ram n ã o têm fo r m u la ç ã o a n ta g o ­ n is ta d ir e ta m e n te c o rre sp o n d e n te em um p ro c e ss o d iscu rsiv o c o n tr a d itó r io : e la s m a n ife sta m o

acréscim o d o s e le m e n to s de um

s a b e r e n ã o a c o n tr a d iç ã o e n tre e le m e n to s de s a b e r;

• correlativamente, os elementos que nelas se inscrevem em posi­ ção X não são de forma alguma antônimos mas, ao contrário, 11 R eexam in am o s mais adiante, a prop ósito das form as em O Q U E P É X , as n oções de

anulação ou de esvaziamento de elem entos de um saber.

compatíveis, adicionais, cumuláveis e sobretudo enum eráveis.

214

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

Análise do discurso político

a) Forma do enunciado e posição de sujeito

2 15

é uma condição de ocorrência e de interpretação das formulações de forma:

Afirmaremos que se pode caracterizar uma forma em E X QUE P

i F

com o constativa no intradiscurso de uma seqüência discursiva dominada

l X QUE P



pela FD de referência, se for possível localizar e reconstruir, no interdiscur­ so dessa FD, um enunciado de forma

de tal modo que se pode destacar a regularidade generalizável dentro do processo discursivo:

X,

i

X,

X2

>1 ■ « M

X ! (e tam bém X 2) QUE P

[h a J

X2 O enunciado apresenta as características seguintes:

(D { X , , X 2} nele figuram com o posições referenciais, na base de formulação P, ocupadas dentro de um processo discursivo dado por um conjunto X de elementos compatíveis e enumeráveis. Seja X = {a ,b ,c ,d ,e ,f,...} de tal modo que {a —> b} {b —» c . .. }

X, (2) P

(4) Essa regra opera, na zona de repetibilidade que ela rege no seio do proces­ so discursivo, a lembrança e o acúmulo dos elem entos do saber próprio da FD. (5) A especificidade da posição do sujeito que está ligada a esse tipo de funcionamento do enunciado é devida ao fato de que o sujeito do saber próprio de uma FD se relaciona ao sujeito enunciador da form ulação pela enumeração dos elementos pré-construídos específicos ao saber dessa FD ; com efeito, P X , e P X 2 constituem de fato duas expressões remetendo a SU, de tal modo que se poderia anotar tal posição do sujeito da seguinte forma:

i

SU

X,

i SU

recebe assim a interpretação: “Os elementos (morfemas, sintagmas, for­ mulações) em posição referencial {X ,, X 2} na base de form ulação P são

Ela se caracteriza pelo fato de que a interpelação do sujeito enunciador pelo sujeito do saber que produz a lembrança e a enumeração dos elemen­

enumeráveis” .

tos do saber está oculta, no intradiscurso, por um efeito de descrição ou

X, (3) P

constatação do real pelo sujeito enunciador:

i X2

(Eu con stato que) j é

\^a,e tam bém b que fazem A, e tam bém c,

\bá) d, que fazem B ...

216

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

Análise do discurso político

Chamaremos de p osição constativa d e sujeito o que acaba de ser des­ crito. A posição constativa de sujeito figura, ao lado da posição polêmica de

217

ciai (eventualmente sublinhado por precisamente, som ente, unicam ente...) que se liga ao elemento aparecendo em posição enquadrada por E ... QUE.

sujeito, com o elemento de descrição da forma sujeito na FD de referência. - Em uma form ulação como:

b) A constituição da referência no funcionamento constativo: coleção e enumeração dos elementos de um saber

[er], E depois, ao sair do trabalho, é o am on toam en to nos

m eios de transporte, são as más condições de m oradia, as mil (1) M odo antoním ico vs. m etoním ico de constituição da referência

e um a preocu pações das fam ílias que vêm aum entar o cansa­ ço, o nervosism o.

O funcionamento constativo das formas em E X QUE P opõe-se assim ao funcionam ento contrastivo descrito anteriormente.

os constituintes enquadrados por E . . . QUE na formulação figuram em po­ sição referencial no enunciado, na medida em que pertencem a uma classe

- Em uma form ulação como:

referencial X cujas propriedades observamos ao indicar que os elementos que a compõem, sem ser equivalentes, são “compatíveis” e “enumeráveis”.

[er]]í( A violência, não é de nós que ela vem.

Em oposição ao caso precedente, poder-se-ia caracterizar o funciona­ mento de uma form ulação de tipo [er], com o funcionam ento intensional :

os constituintes que aparecem em posição de tema de discurso estão em

na perspectiva de Quine (op. cit.), a interpretação intensional de um enun­

posição referencial no enunciado, no sentido em que constituem os ele­

ciado implica que a com utação dos nomes em uma posição determinada

mentos de uma classe referencial X que coexiste no processo discursivo de

de argumento (neste caso: o am on toam en to nos m eios de transporte...)

referência com uma classe referencial Y cujos elementos são antagonistas

não leva a uma distribuição diferente dos “valores de verdade”, mas à

aos elementos de X .

produção de um enunciado diferente e, não por isso, contraditório com o

Poder-se-ia falar assim, nos termos de Quine (1960), de um funciona­ mento extensional de uma formulação como [er]

sabe-se que, de maneira

geral, a extensionalidade define-se por meio do critério de-substitutibilidade. Um enunciado declarativo simples é extensional na medida em que ele é sus­

enunciado de partida (referência oblíqua nos termos de Frege). Poder-se-ia dizer que o predicado em P está distribuído nos valores de X (é “verdadei­ ro” para X , mas tam bém para X 2, X v .. X J . A forma

cetível de receber um “valor de verdade” e que, quando se troca o argumento, essa substituição implica, conforme os nomes pertencerem ou não à mesma

X,

classe, uma não modificação ou, ao contrário, uma modificação do valor de

1

verdade. Poder-se-ia dizer ainda, na terminologia de Frege, que eles referem de maneira direta.

X2

Isso remete, portanto, ao que caracterizamos como um modo antoní­

m ico de constituição da referência no processo discursivo. Essa particulari­ dade, ligada à forma do enunciado, vem explicar a presença da modalidade contrastiva de identificação na formulação (que já apresentamos sob a forma do operador 1 — >mencionado anteriormente) e o efeito de unicidade referen­

registra assim um outro modo de constituição da referência das expressões no processo discursivo inerente à FD: designaremos esse tipo de construção com o modo m etoním ico de constituição da referência das expressões.

218

Análise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

É o fato de uma expressão determinada (morfema, sintagm a, form u­ lação) pertencer a uma classe referencial de tipo X que determina a pos­

219

i) x ,y , Z ...} ii) X ,Y ,Z ...}

sibilidade de tal expressão aparecer em posição de tema de discurso, em uma form ulação apresentando uma modalidade descritiva (ou constativa)

“Há x que fazem X . Fazem Y. Há y que fazem X . . . ” (op. cit., p. 61-62).

de identificação. O operador de identificação (E) toma então um valor di­

H á, entre essa perspectiva e a nossa, numerosos pontos de convergên­

ferente, que anotarem os por e e l , interpretável da seguinte forma:

cia: um conjunto de elementos criticos no que diz respeito a certas noções ou certos procedimentos em AD, uma referência comum à A rqueologia do

é

tam bém •x •

X e el P = •



saber e ao trabalho de M . Pêcheux, uma isomorfia dos níveis de descrição ■que faz P

entre outros

observados; um acordo sobre os objetivos dc uma análise do discurso... Quanto a certas noções utilizadas, as duas problemáticas fornecem certa­ mente variantes (aceitabilidade discursiva aqui mesmo/noção de co-pos-

Isso mostra o efeito de não um ctdade referencial (que pode ser subli­ nhado pela presença de tam bém ) carregado pelo elemento enquadrado por É ... QUE nas formulações de interpretação constativa, e justifica o caráter m etommico (X está ligado a, contíguo a outros elementos) atribuído à re­ ferência desse tipo de expressão.

sibilidade em {Z, £ ’}...)• O que as distingue parece ser uma inversão de

dom inância na perspectiva: nossa pesquisa é de dom inante interdiscursiva, centrada nas condições de form ação dos elementos do saber de uma FD, dando a primazia às contradições ideológicas constitutivas do interdiscur­ so em que os enunciados se formam, enquanto tais preocupações são teori­ camente possíveis, mas praticamente ausentes do quadro de descrição ado­

(2) Classes referenciais com o coleções e enunciado no trabalho de J.-M. Marandin

tado por M arandin. Daí uma insuficiência da caracterização do enunciado. Ao invés, todo o interesse de sua tentativa aparece na descrição do sistema das O F (operações de form ulação), concebido como um sistema de

Notem os enfim que se encontra no trabalho de J.-M . M arandin (1978) uma concepção do enunciado que se deve aproxim ar do caso que acaba­ mos de observar. Ele concebe, com efeito, sua noção de “maneira de falar” sob a forma de tres sistemas de conexões de frases, cujo primeiro consiste em um conjunto {Z, £ ’} d e enunciados co-posstveis, não equivalentes e interconectados, que definem o saber próprio de uma FD. O autor precisa da seguinte forma: “o conjunto de enunciados copossíveis define-se através de um duplo conjunto de ‘ocorrentes’ e de ‘exis­ tentes ( .. .) ’ , isto é, duas coleções de termos que não constituem um para­ digma, mas uma lista (um vocabulario) na qual são construídas seqüências discursivas. O que caracteriza esses elementos é o fato de que a relação pertinente que os une define-se pelo fato de pertencer a essa coleção, sem que esse pertencer faça apelo a sua definição lexical ou a modifique. Esquematicamente:

conexões S , , S 2, S , , S4 organizando um conjunto de enunciados co-possíveis em um efeito-subjetividade e determinando assim um quadro global de interpretação entre frases: o trabalho dc M arandin manifesta uma d o ­

minante intradiscursiva; essa dimensão é teoricamente presente, mas de fato secundária em nossa própria pesquisa. O que reduz o plano do intra­ discurso a consistir apenas na ocorrência pontual de um enunciado sob a forma de uma reformulação que, muitas vezes, limita-se a uma frase: essa

insuficiência de definição da noção de form u lação não nos parece consti­ tuir um defeito a ser reparado em nosso procedimento e será o objeto de desenvolvimentos ulteriores. A forma geral (há x que fazem X . .. J que M arandin da ao enunciado está próxim a das glosas que nós mesmos temos proposto, na forma

220

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

Análise do discurso político

221

X,

Essa omissão do enunciado dividido é correlativa do esquecimento das

i

contradições constitutivas do interdiscurso formando o elemento externo específico do “discurso francês sobre a C hina”: o discurso pró-chinês for­

X,

mou-se em op o siçã o ao discurso pró-soviético.

A definição que ele dá a partir da existência de uma dupla lista de

— A noção de “coleção de ocorrentes e de existentes” abrange, por outro

ocorrentes e existentes como coleções d e term os, caracterizados pelo fato

lado, na zona estudada de funcionamento discursivo (em que aparecem

de que a relação que os une está definida como pertencer a essa coleção,

r,

\

uma classe referencial a partir da qual nos aproximam os da questão da

formulações em < y > X QUE P), dois tipos distintos de classes referen|HAJ ciais, que se podem diferenciar a partir da propriedade de enum erabilidade

constituição da referência no caso das formulações constativas.

dos elementos dessas classes, que acoplamos com a de compatibilidade.

vem ao encontro da propriedade de com p atibilidade dos elementos em

Essa caracterização da forma geral de um enunciado nos parece, con­ tudo, insuficiente; com efeito

Isso pode ser apreciado a partir das características das enumerações

íÉ

- Ela faz da definição em termos de coleção de ocorrentes e existentes a propriedade da forma geral de tod o enunciado; omite assim a possibilidade

de constituintes em posição X nas reformulações em •!

]

VX QUE P.

I HÁ J

Em [er]33, por exemplo:

de outras formas de enunciado, com o P j ^ ! caracterizada mais anterior-

1YJ mente, que, porém, parece estar de acordo com a repetibilidade dentro do processo discursivo inerente à(s) FD(s) que dominam a “maneira de falar

Pois são hom ens e mulheres, trabalhadores, pessoas sim ples que sentem esse desespero e essa aspiração.

M accioch i”:12 os constituintes enquadrados por E ...Q U E são enumerados na form ula­ A revolução cultural é uma estratégia do desenvolvimento na área econômica, ainda não é o desenvolvimento (...) Os chineses vêem na tecnologia não o fascinante “fruto proibido”, mas uma nova barbárie (...) E isso, o desafio chinês. Não é a agressão ou a guerra (...) A ditadura do proletariado não é um período idílico. Referimo-nos em Lênin: “A ditadura do proletariado é a guerra mais heróica (...)” E de acordo com esse ensinamento que os chineses colo­ cam a batalha ideológica em primeiro plano (...)

ção em uma ordem indeterminada, que pode ser mudada. Os constituintes enumerados podem ser conectados por e tam bém . Em contrapartida, em [er],:

E depois, ao sair do trabalho, é o am on toam en to nos m eios de transporte, são as más condições de m oradia, as m il e uma p reocu p ações das fam ílias que vêm aum entar o can saço, o n ervosism o. os constituintes em posição de tema de discurso são enumerados em uma ordem determ inada, a do desenvolvimento temporal de um processo, que não pode ser mudada sem que se perca o “sentido” da enumeração. Os constituintes enumerados podem, nesse caso, ser conectados por e depois

12 Ver M a ran d in (1978, p. 57-73).

ou por e em seguida.

222

A nálise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

Podemos afirmar que tais diferenças na reformulação, diferenças que são generalizáveis no conjunto do corpus discursivo, implicam necessariamente,

223

em que { X j, X 2} são ocupados por elementos pertencendo à classe referen­ cial X , de tal modo que X = a,

b,

c, d ... e que se possa ter:

no nível do enunciado, a existência de classes referenciais distintas e de rela­ {aíbeced,..}

ções distintas entre as posições referenciais { X p X } , o que tem abrangido até então a forma geral mas também

X, {b e c e a e d ...}

i

{b e a e d ...}

X,

{d e c} {b}

que aplicamos ao enunciado no funcionamento constativo. Chamaremos de enum erações-coleções as classes referenciais de que são extraídos os elementos enumerados em [er]„ e de enum erações ordenadas as

—Propriedades das reformulações das enumerações-coleções:

classes referenciais das quais são extraídos os elementos enumerados em [er]r. Isso nos leva a cindir em duas formas de enunciado próxim as uma da

As reformulações em

outra, mas operando a distinção que acaba de ser feita, a forma única até então proposta.13

X, E

X,

X QUE P de [El = P

[ há

i X,

e X,

apresentam enumerações de constituintes em posição X que têm as pro­ priedades seguintes:

c) Enumerações-coleções e enumerações ordenadas 1) (1) Enum erações-coleções

a presença dos elementos na enumeração é determinada ape­ nas a partir da propriedade: “compatibilidade do elem ento na co leção ”;

— Forma do enunciado:

2)

a enumeração é não limitada;

3)

podem-se acrescentar ou tirar elementos; pode-se igualmente

X, [Ê] - P

e

inverter a ordem de aparição dos elementos na enumeração; 4)

de enumerações ordenadas (no sentido definido a seguir);

X2 5) 13 As ca ra cterística s gerais da form a do enunciado no fu ncion am ento constativo se m antêm , tod avia, nessas duas form as.

elas podem comportar, a título de elementos de coleção, partes a coordenação entre os elementos da coleção é um acréscimo simples de tipo e tam bém .

224

A nálise do discurso político

- Exem plo de enumeração-coleção:

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

2 25

clica; a recente encíclica; o papa Jo ã o XX1I1; J o ã o X X Ill; os bispos; a Federação Protestante da França; um núm ero cres­

Encontrar-se-á no R [e]3# ( C o u r t i n e , op. cit., p. 300-306) um exemplo de tal enum eração-coleção. Os elementos que entram nela estão em posi­

cente de cristãos; a Igreja da França; o docu m en to assinado p o r D om H elder C âm ara; a declaração final d o en co n tro...}

ção de SN sujeito em uma base de formulação: Tal classe, constituída a partir de formulações extraídas do conjun­

SN , + V delocutivo +

citação

to das seqüências discursivas do domínio de m emória, não é uma clas­

seqüência em discurso indireto

se am orfa. O que cham am os de compatibilidade entre os elementos da

nominalização

classe consiste aqui para cada um deles em entrar na coleção dos nomes

para + V inf

que, no discurso de aliança do Partido Com unista, remetem ao conjun­ to dos indivíduos, porta-voz, escritos de fonte e natureza diversas através

que introduz nas seqüências discursivas dominadas pela FD comunista, sob forma de citações, sequencias em discurso indireto, nom inalizações de form u laçõ es..., as palavras relatadas do alocutário não comunista ao qual o discurso de aliança é dirigido. Seja, portanto, a enumeração-coleção das SN ,, extraída de R [e]w:

dos quais volta ao sujeito enunciador, com o em um espelho, o eco de sua

própria fala: todo o conjunto das declarações relatadas introduzidas no intradiscurso das seqüências discursivas por esse tipo de form ulação é de declarações favoráveis, como testemunho da repercussão da

política da

mão estendida” para quem essa política se dirige. E em primeiro lugar para os cristãos. Não vamos fazer nestas paginas a

X = {o vigário de lvry; o jorn al “O sservatore R o m a n o ”; m ui­

tos católicos; centenas de hom ens e de m ulheres católicos; qu ase tod os os catolicos; alguns de nossos correspondentes, tal co m o esse p ai de fam ília de Lille; num erosos padres; o esm oler d e um a escola livre de N ice; o sen hor padre de lvry; centenas d e católicos, entre os quais num erosos padres; uns, outros; um pai d e fam ília, católico praticante; um jovem p a ­ dre; um velho vigário de província; tod os ou qu ase tod os os diários ou sem anais; num erosas revistas; L éon Blum; o cid a­ d ã o Henri Guernut, radical so cia lista ...; “l ’Ère n ou velle”, jo r ­ nal dirigido p o r radicais; a enciclica “Rerum N ovaru m ”..., a ultim a encíclica; o R. P. D ucatillon; um padre católico; um católico, M arc Scherer; a m aioria dos católicos qu e encontra­ m os; M . P. C haillet, diretor de “T ém oignage ch rétien ”; o papa Pio X/, o escritor catolico J. .VIaritain; o R. P. P.hilippe, m em ­ bro da A ssem bleia consultativa; o jorn al católico d a região d o L o t “La vie quercyn oise” do -2 de dezem bro de 1944; a voz autorizada d o p ap a; a encíclica; o docu m en to; o p a p a ; a encí-

análise detalhada, por meio das redes de formulações representando o pro­ cesso, das condições históricas de formulação e transform ação dos elemen­ tos que compõem esse processo: as redes que temos constituído servirão de base a desenvolvimentos ulteriores de nosso trabalho nessa perspectiva. Queremos, entretanto, sublinhar a estabilidade, por meio do conjun­ to do processo discursivo, da representação dos católicos inscrita no do­ mínio de memória da FD comunista. Uma leitura rápida, no seio da classe acim a, do conjunto dos determinantes que acompanham os N [+ catolico], vem precisar a estruturação da coleção X . Os cristãos aos quais se faz referência são numerosos (m uitos catoli­

cos, centenas de hom ens e de mulheres catolicos, quase tod os os catolicos, num erosos p a d res...) e diversos: são determinados por um conjunto de ca­ racterizações opostas que atestam sua diversidade; são membros da classe eclesiástica (o vigário de lvry, num erosos padres, os bispos, o p a p a ...) mas também cristãos laicos (m uitos católicos); são homens, mas tam bem mu­ lheres (centenas de hom ens e de mulheres católicos); diversidade de sexos, e também diversidade de idades {um jovem padre/um velho vigário de p ro­

víncia); vêm de todos os cantos da França, tanto da cidade com o do campo,

226

A nálise do discurso político

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

tanto dos subúrbios operários como da França rural (o vigário de Ivry/um

(2)

227

Enum erações ordenadas

velho vigário d e província), e até das duas extremidades do pais (um pai de fam ília d e Lille/o esm oler de uma escola livre de Nice)-, atendem enfim a um nom e, signo irredutível de diversidade (o R.P. D ucatillon; um católico,

X, Forma do enunciado: E = P

M arc Scherer; M. P. C haillet; o escritor ]. M aritain. . .). A estrutura de uma classe referencial desse tipo mostra a produção

ÍÉ 1

dos efeitos de real na formulação: uma reformulação em •: > X QUE lh á J P consiste assim na extração de um elemento determinado da classe dos

i x,



cm que { X j, X 2} são ocupados por elementos pertencendo à classe referen­ cial X de tal modo que X = {a, b, c, d }, mas também:

X e em sua identificação enquanto elemento pertencendo à coleção, entre {oa

os demais objetos da coleção (que podem eventualmente ser enumerados).

{«a

Esse efeito de real é contemporâneo de um modo de interpelação do

de testemunha-, o mundo, na pluralidade e diversidade de seus objetos, efeito com o coleção de expressões entrando no enunciado, apaga-se dian­ te da “realidade” com o coleção de objetos, que se exibe por si mesma. E se encontra assim, na análise de processos ideológicos determinados,

>c -> uc }

(oa - » {a}

sujeito enunciador pelo sujeito do saber da FD que o coloca em p osição oferece-se à vista “dos que têm olhos para ver”. O saber, presente nesse

.b

- Propriedades das reformulações das enumerações ordenadas: As reformulações em

a vocação de um saber a abranger a diversidade do real, particularizar a percepção deste, fornecer a lista deste como se se tratasse de um catálogo

ÍÉ i

X Q U E P d e E = P LHAJ

de objetos calculáveis e enumeráveis, e ao mesmo tempo a dissipar-se atrás “do que cada um pode ver”: os efeitos ideológicos observáveis no tipo de

i X2

funcionam ento discursivo que acaba de ser descrito inscrevem no discurso comunista as figuras conjugadas do em p in sm o e do nóm inalism o. Ao mesmo tempo, talvez, que a própria estrutura desse saber como

apresentam enumerações de constituintes em posição X que têm as pro­ priedades seguintes:

coleção, na estruturação particular da classe referencial X dos N [+ cató ­ lico], vem marcar um modo de contato mais discreto entre FD dominante

(1)

e FD dominadas: afinal, as características desses católicos que atendem à chamada dos comunistas não correspondem, traço por traço, à definição

elas são tais que se pode sempre determinar uma posição para um elemento da enumeração;

(2)

jurídica d o indivíduo nas categorias do estado civil (ter um nome, um sexo,

elas são limitadas, isto é, compreendidas entre um elemento de origem (de posição: 0) e um elemento limite (de posição: UJ).

uma idade, um d om icílio...) do direito burguês?

Os limites podem ser linguisticamente marcados; (3)

podem-se apagar e acrescentar elementos na enumeração, à condição de que ocupem sua posição;

(4)

a inversão dos elementos, a princípio, é impossível;

228

Efeitos discursivos: co n trad ição , real e saber

Análise do discurso politico

(5)

229

tais enumerações têm um sentido, uma direção: efetuam um

...{^ eco n ô m ic o]

percurso por elementos ocupando posições determinadas. A

{ . . . 0[classe operária]

interpretação da conexão entre os elementos depende do sen­

nheiros e técnicos] 4[docentes e artistas] w[classe m édia]} (in­

tido do percurso efetuado.

terpretação: hierarquização das instâncias de uma tópica).

— Exemplos de enumerações ordenadas:

(2)

[social] 2[p olítico] 3[id eológ ico] u[m oral ] }; [em pregados] J cam pon eses ] 3[enge­

M arcação do elem ento-origem e do elem ento-lim ite

A presença de enumerações ordenadas de um certo tipo no intradis­

Os elementos de posição 0 e de posição U), que abrem e fecham a estru­

curso das sequências discursivas dominadas pela FD comunista nos parece

tura de ordem que constitui a enumeração ordenada, podem ser marcados:

uma característica im portante do “discurso com unista”. Tais enumerações funcionam , com efeito, como signo de reconhecim ento maior desse tipo de

- por extraposição

discurso. Podem-se encontrar enumerações ordenadas de SN, SV e Sprep e equivalentes no intradiscurso da sdr.

Com a classe operária, a União do Povo da França são os em ­

Elas têm as características seguintes:

pregados, os cam poneses (...)

(1) Percurso determinado por uma ordem e interpretação da enum eração

—ou por uma forma sintática de contraste

Por exemplo, percurso sobre a ordem das etapas do desenvolvimento

Esta crise não é som ente econôm ica, é tam bém social, p o lí­

de um processo:

tica (...)

. . . { 0[as am eaças ] J a violação dos direitos sindicais) ,[a re­

para o elemento-origem. Q uanto ao elementq-limite, trata-se muitas vezes

pressão] T[as sanções]}

de um elemento recapitulativo, abrangendo a enumeração (o conjunto dos

J o s problem as] J a s dificulda­

des] u[o so frim en to ]}... (interpretação: sucessão temporal e S

agravamento); ... {0[o protesto]

greve] u)[