Hemograma: manual de interpretação [6ª ed.] 9788582712290


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Table of contents :
Capa......Page 0
Nota......Page 2
Folha de Rosto......Page 3
Créditos......Page 4
Autores......Page 6
Prefácio......Page 7
Símbolos e abreviaturas......Page 9
Sumário......Page 13
Introdução e filosofia de trabalho......Page 18
Registro e processamento de dados......Page 26
Coleta de material......Page 28
Contadores eletrônicos......Page 31
Hemograma em contadores eletrônicos de pequeno porte......Page 32
Hemograma em contadores eletrônicos de grande porte......Page 33
Linha Beckman Coulter (Coulter® LH750)......Page 35
Linha Advia Siemens......Page 37
Linha Sysmex Roche (Sysmex XE 5000 e XN 3000)......Page 38
Sysmex Cella Vision......Page 39
Critérios para indicação de microscopia......Page 40
Técnica e cuidados para a microscopia......Page 47
Erros mais comuns......Page 51
Introdução......Page 55
Contagem de eritrócitos (E)......Page 56
Dosagem de hemoglobina (Hgb)......Page 57
Hematócrito (Hct)......Page 59
Correlação entre E, Hgb, Hct e volemia......Page 60
Volume corpuscular médio (VCM)......Page 61
Histograma e RDW......Page 64
Concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM)......Page 71
Contagem de reticulócitos......Page 75
Fração reticulocítica imatura......Page 79
Índices hematimétricos reticulocíticos......Page 80
Microscopia e conferência......Page 81
Interpretação geral e alterações eritroides......Page 82
Policromatocitose......Page 83
Macrocitose......Page 84
Microcitose e hipocromia......Page 87
Anisocitose......Page 89
Anisocromia......Page 90
Formas anormais (pecilócitos) de significação diagnóstica......Page 92
Inclusões nos eritrócitos......Page 97
Hematozoários......Page 99
Eritroblastos......Page 101
Conceito e prevalência......Page 103
Anemia mínima......Page 104
Sintomas e sinais......Page 106
Classificação pela biometria do eritrócito......Page 108
Classificação pela patogênese......Page 109
4 | Anemia pós-hemorrágica......Page 114
Introdução.......Page 118
Defeitos na membrana do eritrócito......Page 119
Esferocitose......Page 120
Eliptocitose (ou ovalocitose)......Page 122
Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN)......Page 123
Síndromes falcêmicas......Page 124
Outras hemoglobinopatias......Page 127
Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6FD)......Page 129
Deficiência de pirimidina-5-nucleotidase e saturnismo......Page 130
Outras deficiências enzimáticas......Page 131
Malária......Page 132
Bartonelose (doença de Carrion)......Page 133
Crioaglutininas......Page 134
Anemia hemolítica autoimune Coombs-positiva......Page 135
Anemia hemolítica da marcha ou corrida......Page 137
Anemias hemolíticas microangiopáticas......Page 138
Anemias por agressão oxidante......Page 139
6 | Anemias por interferência na síntese de hemoglobina......Page 141
Anemia ferropênica......Page 142
Eritrograma......Page 143
Tratamento......Page 149
Anemia das doenças crônicas (ADC)......Page 152
Citoquinas inflamatórias......Page 153
Proteínas de fase aguda......Page 154
Patogênese da ADC......Page 155
Hemograma na ADC......Page 157
Diagnóstico diferencial entre ADC e anemia ferropênica (AF)......Page 158
Talassemias......Page 160
α-Talassemia......Page 161
β-Talassemia......Page 163
Anemia sideroblástica congênita......Page 170
1) Resposta fisiológica......Page 171
2) Defeito genético......Page 172
Profilaxia/tratamento......Page 175
7 | Anemias por interferência na síntese de nucleoproteínas......Page 178
Deficiência de vitamina B12......Page 179
Hemograma na deficiência de vitamina B12......Page 182
Deficiência de ácido fólico......Page 186
8 | Anemias por falta ou defeito proliferativo do tecido hematopoético......Page 188
Anemia aplástica adquirida......Page 189
Disceratose congênita......Page 191
Aplasia eritroide pura (Eritroblastopenia pura)......Page 192
Necrose da medula óssea......Page 193
Outras causas de insuficiência da medula óssea......Page 194
Anemias diseritropoéticas congênitas......Page 195
Anemia da insuficiência renal crônica......Page 197
Hemograma na insuficiência renal......Page 198
Tratamento com rHu-Epo......Page 199
Anemia das endocrinopatias......Page 201
Anemia da desnutrição proteica e calórica......Page 202
Anemia e hemograma no alcoolismo......Page 204
Hemograma na hepatite C crônica e na cirrose......Page 205
Anemia e hemograma nas neoplasias......Page 207
Hemograma na quimioterapia antiblástica......Page 210
Hemograma no transplante de células-tronco autólogas......Page 214
Hemograma na radioterapia......Page 215
Anemia e hemograma nas doenças do trato digestivo......Page 216
Hemograma na aids......Page 218
Anemia e hemograma na gravidez......Page 221
Hiperesplenismo......Page 224
Outras causas de pseudoanemia......Page 225
12 | Poliglobulias......Page 227
Poliglobulias moderadas......Page 228
Poliglobulias acentuadas......Page 229
Poliglobulia provocada pelo uso de eritropoetina humana recombinante......Page 230
Poliglobulias notadas na infância......Page 231
Contagem de leucócitos......Page 233
Fórmula leucocitária......Page 235
Interpretação......Page 238
14 | Neutrofilia e neutropenia......Page 241
Neutrofilia......Page 243
Desvio à esquerda......Page 245
Causas de neutrofilia......Page 248
Neutropenia.......Page 249
Neutropenias “menores”......Page 250
Neutropenias genéticas......Page 251
Neutrofilia e neutropenia nas doenças infecciosas......Page 252
Abdômen agudo cirúrgico......Page 253
Pneumonias......Page 256
Toxinfecções alimentares......Page 257
Doenças próprias da infância......Page 258
Dengue......Page 259
Alterações reacionais......Page 262
Defeitos genéticos notados à microscopia......Page 266
Defeitos genéticos sem alteração morfológica......Page 268
Ativação e exagero funcional dos neutrófilos......Page 269
16 | Linfocitose e linfocitopenia......Page 270
Linfocitose......Page 271
Linfocitopenia (linfopenia)......Page 272
Linfocitoses infecciosas......Page 273
Linfocitose com linfócitos atípicos......Page 274
Linfonodites sem hemograma característico......Page 277
Plasmocitose......Page 278
Eosinofilia......Page 279
Eosinofilia nas parasitoses......Page 280
Demais causas de eosinofilia......Page 281
Eosinopenia......Page 282
Basofilia......Page 283
Monocitose......Page 284
Monocitopenia......Page 285
Tecnologia e componentes......Page 286
Contagem de plaquetas......Page 288
Outras causas de erro......Page 290
Volume Plaquetário Médio (VPM)......Page 292
Fração plaquetária imatura (IPF)......Page 293
Trombocitose......Page 294
Trombocitopenia......Page 295
Púrpura Trombocitopênica Imunológica (PTI)......Page 297
Trombocitopatias genéticas diagnosticadas pelo hemograma......Page 299
Defeitos de agregação plaquetária......Page 302
19 | Hemograma do nascimento aos 2 anos......Page 303
Eritrograma no recém-nascido......Page 304
Anemização fisiológica......Page 305
Anemia da prematuridade......Page 306
Anemia pós-hemorrágica......Page 307
Anemia hemolítica por incompatibilidade materno-fetal......Page 308
Anemias hemolíticas genéticas......Page 309
Infecções congênitas......Page 310
Leucograma no RN.......Page 311
Neoplasias da hematopoese......Page 312
Teste do pezinho......Page 313
Anemia ferropênica do lactente......Page 314
Anemia macrocítica da infância......Page 315
Anemias por defeito genético......Page 316
Leucograma até os 2 anos......Page 317
Plaquetograma até os 2 anos......Page 318
20 | Hemograma em idosos......Page 319
Anemia em idosos......Page 320
Causas de anemia......Page 323
Anemia dos idosos......Page 324
Hemograma e exames complementares......Page 325
Leucograma em idosos......Page 327
Plaquetograma em idosos......Page 328
21 | Neoplasias da hematopoese: generalidades......Page 329
Generalidades e classificação......Page 332
Hemograma nas leucemias agudas......Page 333
Tratamento e prognóstico......Page 337
Leucemia mieloide crônica BCR-ABL 1 positiva (LMC)......Page 340
Leucemia neutrofílica crônica......Page 344
Leucemias eosinofílicas......Page 345
Leucemia mastocítica......Page 346
24 | Neoplasias mieloproliferativas não leucêmicas......Page 347
Policitemia vera (PV)......Page 348
Trombocitemia essencial (TE)......Page 350
Mielofibrose primária (MFP)......Page 351
Síndromes mielodisplásicas (SMD)......Page 353
Anemia refratária......Page 355
Anemia sideroblástica......Page 357
Leucemia mielomonocítica crônica (LMMoC)......Page 358
Leucemia mieloide crônica infantil......Page 359
Leucemia linfocítica crônica (LLC)......Page 361
Hairy cell leukemia (HCL)......Page 364
Leucemia prolinfocítica T......Page 365
Síndrome de Sézary......Page 366
Linfocitose ou leucemia de linfócitos grandes e granulados (LGGs)......Page 367
Linfoma folicular......Page 368
Linfoma difuso de grandes células B......Page 369
Linfoma de Burkitt......Page 370
Linfoma (ou doença) de Hodgkin......Page 371
Linfoma linfoangioblástico de células T maduras......Page 372
Mieloma múltiplo (MM)......Page 373
Linfoma linfoplasmocítico e macroglobulinemia de Waldenström......Page 378
Doença de cadeias pesadas......Page 379
Citoquímica e imunocitoquímica......Page 380
Citometria em fluxo e imunofenotipagem......Page 382
Indicações......Page 384
Testes de agregação plaquetária......Page 385
Multiplate® analyser......Page 389
Considerações técnicas......Page 390
Indicações......Page 391
Citogenética......Page 394
Biologia molecular......Page 397
Materiais para exame por biologia molecular......Page 398
Exames de biologia molecular em doenças hematológicas não neoplásicas......Page 399
Hibridização fluorescente in situ (FISH)......Page 400
Apêndice 1 | Hemograma: valores de referência......Page 402
Apêndice 2 | Classificação de Tumores dos Tecidos Hematopoético e Linfoide (OMS, 2008)......Page 404
Apêndice 3 | Síndromes genéticas de insuficiência hematopoética com citopenias......Page 408
Conheça também......Page 414
Grupo A......Page 415
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Hemograma: manual de interpretação [6ª ed.]
 9788582712290

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AVISO Todo esforço foi feito para garantir a qualidade editorial desta obra, agora em versão digital. Destacamos, contudo, que diferenças na apresentação do conteúdo podem ocorrer em função das características técnicas específicas de cada dispositivo de leitura.

© Artmed Editora Ltda., 2015 Gerente editorial Letícia Bispo de Lima Colaboraram nesta edição: Editora Daniela de Freitas Louzada Capa Tatiana Sperhacke – TAT Studio Preparação do original Sandra da Câmara Godoy Leitura final Bruna Correia de Souza Editoração eletrônica Bookabout – Roberto Carlos Moreira Vieira Produção digital Loope | www.loope.com.br F161h Failace, Renato. Hemograma : manual de interpretação [recurso eletrônico] / Renato Failace, Flavo Fernandes. – 6. ed. – Porto Alegre : Artmed, 2015. e-PUB. ISBN 978-85-8271-229-0 1. Hemograma. 2. Hematologia. I. Fernandes, Flavo. II. Título. CDU 616.15 Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094

Reservados todos os direitos de publicação à ARTMED EDITORA LTDA., uma empresa do GRUPO A EDUCAÇÃO S.A. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 – Santana 90040-340 – Porto Alegre, RS Fone: (51) 3027-7000 – Fax: (51) 3027-7070

É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora. SÃO PAULO Av. Embaixador Macedo Soares, 10.735 – Pavilhão 5 Cond. Espace Center – Vila Anastácio 05095-035 – São Paulo, SP Fone: (11) 3665-1100 – Fax: (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 – www.grupoa.com.br

AUTORES RENATO FAILACE Especialista em Hematologia e Patologia Clínica pela Associação Médica Brasileira Professor Titular (inativo) de Hematologia da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre Professor Adjunto (inativo) de Medicina Interna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Coautor FLAVO FERNANDES Especialista em Hematologia/Hemoterapia e Patologia Clínica/Medicina Laboratorial pela Associação Médica Brasileira Diretor do Zanol Laboratório de Hematologia (Porto Alegre) Médico do Centro de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento (Porto Alegre)

PREFÁCIO Hemograma: manual de interpretação originou-se de monografia que escrevi para o concurso ao cargo de Professor Titular de Hematologia na Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, agora Universidade. A Artmed Editora publicou a 1ª edição em 1991. Ao lançar a 5ª edição em 2009, totalmente reescrita e com uma versão em espanhol pela Editora Panamericana, já tendo mais de 50 anos de atividade na clínica, no laboratório e no ensino de Hematologia, pensei estar encerrando minha carreira de autor. Ao constatar que essa edição superou o sucesso (para mim inesperado) das anteriores e tendo o apoio da Artmed, senti-me disposto a contrariar as estatísticas etárias e tentar uma 6ª edição; esta, é certo, será a última sob minha autoria. Mas como os livros médicos que tiveram algum sucesso têm o hábito de criar vida própria e, desde que persistam fiéis ao original, de sobreviver ao autor, convidei o Dr. Flavo Beno Fernandes para uma atual coautoria. Como eu, o Dr. Flavo, desde os primórdios de sua atividade profissional, dedica-se à Hematologia Clínica e Laboratorial; já me ajudou na edição anterior, ainda mais na atual. A Artmed Editora e eu esperamos que, daqui a 5 anos, lidere uma 7ª edição e mantenha meu nome apenas no título. O texto da 6ª edição não difere essencialmente do anterior, mas foi atualizado de modo pontual em todos os capítulos. Houve inclusão de novas estatísticas e de um 3º apêndice, que lista e descreve as síndromes genéticas que alteram o hemograma. Muitos resultados de hemogramas foram apresentados como parte de laudos evolutivos, agora em moda, e foi detalhada a nova tecnologia disponível, embora até hoje pouco usada, sobre reticulócitos e plaquetas. A principal modificação em relação à anterior, entretanto, foi pictórica: decorei a 6ª edição com microfotografias de leucócitos tomadas do Sysmex Cella Vision, esse maravilhoso “colírio” que permite ver lindas imagens com olhos descansados. Foram gentilmente cedidas pelo Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, pela Sysmex/Laborsys e pelo Laboratório Fleury (São Paulo). Incluí ainda ilustrações em

aquarela, fotos de glóbulos em microscopia eletrônica da autoria de Marcel Bessis, de cujas mãos recebi o livro Corpuscules (Editora Sandoz) em Paris, em 1976, e algumas microfotografias remanescentes de minha clínica no Laboratório Faillace. As fotos das versões atuais dos aparelhos e de suas técnicas e resultados foram recebidas como cortesia da Sysmex e da Abbott Diagnostics. Ao contrário do livro e do meu estilo de escrever, este prefácio é escrito em primeira pessoa. A gratidão aos colegas e amigos da lista que segue não poderia ser escrita de modo impessoal. Algumas colaborações novas ou repetidas da edição anterior, com redação ou correção de capítulos e seções, foram preciosas; meu especial agradecimento aos queridos amigos, médicos e bioquímicos, em ordem alfabética, a seguir: ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■

Breno Riegel dos Santos (colaboração em Hemograma na Aids, Capítulo 10) Giorgio Adriano Paskulin (autoria de Citogenética, Capítulo 28) Hiram de Azambuja Schuh (consultoria bibliográfica) Luiz Fernando Job Jobim (colaboração em Síndromes Genéticas, Apêndice 3) Rafael Failace (colaboração em Contadores Eletrônicos, Capítulo 1) Ricardo Pasquini (colaboração em Anemias Aplásticas, Capítulo 8) Vlademir Cantarelli (autoria de Biologia Molecular, Capítulo 28) Waldir Veiga Pereira (colaboração em Hemograma no Transplante de Células-tronco, Capítulo 10)

Agradeço igualmente às entidades sem cujo auxílio esta nova edição teria sido impossível: ■ Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, na pessoa do Diretor, bioquímico Carlos Franco Voegeli, e ao pessoal técnico da Hematologia, em especial à biomédica Gabriela Scherer Pires, por inúmeras imagens Cella Vision. ■ Laboratórios do Grupo Fleury: Laboratório Fleury (São Paulo), na pessoa da Dra. Maria Lúcia Chauffaille, e Laboratórios a+/Weinmann (Porto Alegre), nas pessoas dos Drs. Katia Fassina e Adriano Tanaguchi, por dados estatísticos e imagens. ■ Sysmex/Laborsys, na pessoa da bioquímica Estefânia Perin Fonseca. ■ Abbott Diagnostics, nas pessoas dos bioquímicos Vitor Hugo Gonçalves Lopes e Rafael Failace. E, é claro, à Artmed Editora, agora parte do Grupo A, foco de expansão cultural da qual Porto Alegre muito se orgulha, fundada pela tenacidade e visão de Henrique Kiperman e mantida com seus filhos e uma plêiade de colaboradores de alto nível, dos quais destaco minhas queridas editoras Letícia Bispo (edições anteriores) e Daniela de Freitas Louzada (edição atual). Reitero o agradecimento e o carinho àqueles a quem mais quero: Helena, minha mulher há 55 anos, e meus três filhos. Renato Failace [email protected]

SÍMBOLOS E ABREVIATURAS AA ADC AF AHAI ARC ATRA AVC AZT BRDU CBC+diff CD CDC CGH CHCM CHCM CHOP CIVD CMV CV d DBPOC DEB DHL DHRN

Anemia aplástica Anemia de(as) doença(s) crônica(s) Anemia ferropênica Anemia hemolítica autoimune Anemia relacionada ao câncer Ácido transretinoico Acidente vascular cerebral Zidovudina Bromodeoxiuridina Complete blood count + differential, hemograma completo Cluster designations, marcadores celulares identificados por anticorpos monoclonais Center of Disease Control, agência norte-americana de controle de doenças Hibridização genômica comparativa Concentração hemoglobínica corpuscular média Cellular Hemoglobin Concentration Mean, média das concentrações hemoglobínicas corpusculares (em contadores da linha Advia) Protocolo de quimioterapia (ciclofosfamida, adriamicina, vincristina [oncovin], prednisona) Coagulação intravascular disseminada Citomegalovírus Coeficiente de variação Deci = 10-1 da unidade Doença broncopulmonar obstrutiva crônica Diepoxibutano Desidrogenase láctica Doença hemolítica do recém-nascido

DP (SD: standard deviation) EBV EDTA E (RBC) Epo f FAB FDA

Desvio-padrão

LES LGG

Vírus de Epstein-Barr Ácido etilenodiaminotetracético, anticoagulante para hematologia Eritrócitos, contagem de eritrócitos Eritropoetina Fento = 10-15 da unidade Comitê Franco-Americano-Britânico Food and Drug Administration, agência norte-americana de controle de alimentos e drogas Fluorescent in situ hybridization, técnica de biologia molecular e histopatologia Fator estimulante de colônias granulocíticas Fator estimulante de colônias granulocíticas e monocíticas Glicose-6-fosfato desidrogenase hemoglobin concentration, concentração de hemoglobina em contadores Advia Hairy cell leukemia, leucemia de células cabeludas ou pilosas Hemoglobina corpuscular média Hematócrito Vírus da hepatite C hemolytic anemia, elevated liver enzymes, low platelet count, síndrome própria da gravidez Hemoglobina, dosagem de hemoglobina Vírus da imunodeficiência humana adquirida Antígenos leucocitários (de histocompatibilidade) humanos High performance liquid chromatography, técnica de separação das hemoglobinas Hemoglobinúria paroxística noturna Papilomavírus humano Vírus T-linfotrópico humano tipo 1 Síndrome com imunodeficiência, instabilidade cromossômica e anomalias faciais Imunoglobulina G humana intravenosa Interleuquina(s) Imature platelet fraction, fração plaquetária imatura Insuficiência renal crônica Fração reticulocítica imatura Leucemia aguda Light amplification by stimulated emission of radiation, fonte luminosa usada nos contadores eletrônicos Lúpus eritematoso sistêmico Linfócitos grandes e granulados

LLA LLC LMA

Leucemia linfoblástica aguda Leucemia linfocítica crônica Leucemia mieloide (mieloblástica) aguda

FISH G-CSF GM-CSF G6PD HC HCL HCM Hct HCV HELLP Hgb HIV HLA HPLC HPN HPV HTLV-1 ICF IgGIV IL IPF IRC IRF LA Laser

LMC LMMoC LPL M m MCH MCHC MCV MFP MGUS µ MM MPV n NES NK NMP NRBC p PAS PCR PDGFR PK PLT PRP PTI PTT PV RBC (E) RDW Retics RET Y rHu-Epo RN RNA RT SARS SMD SUH TAR

Leucemia mieloide (mielocítica) crônica Leucemia mielomonocítica crônica Leucemia prolinfocítica Milhão(ões) = unidade × 106 Mili = 10-3 da unidade; ou metro (unidade de comprimento) Mean corpuscular hemoglobin (HCM) Mean corpuscular hemoglobin concentration (CHCM) Mean corpuscular volume (VCM) Mielofibrose primária monoclonal gammopathy of unknown significance, gamopatia monoclonal de significação obscura Micro = 10-6 da unidade Mieloma múltiplo Mean platelet volume (VPM) Nano = 10-9 da unidade Não Especificado Separadamente (no Apêndice 2) Natural killer, linfócitos citotóxicos Neoplasia(s) mieloproliferativa(s) Nucleated red blood cells, eritroblastos Pico = 10-12 da unidade Periodic acid-Schiff, coloração citoquímica Polymerase chain reaction, reação em cadeia da polimerase Receptor do fator de crescimento derivado de plaquetas Piruvatoquinase Platelets, contagem de plaquetas Plasma rico em plaquetas Púrpura trombocitopênica imunológica Púrpura trombocitopênica trombótica Policitemia vera Red blood cells, contagem de eritrócitos Red cells dispertion width, amplitude de distribuição (volumétrica) dos eritrócitos (índice de anisocitose) Reticulócitos Volume corpuscular dos reticulócitos (em contadores da linha Sysmex) Eritropoetina recombinante humana Recém-nascido Ácido ribonucleico Radioterapia Severe acute respiratory syndrome, síndrome de insuficiência respiratória aguda Síndrome mielodisplásica Síndrome urêmico-hemolítica

TCT TdT TE TMO TNF-α TORCH TRAP VCM VPM VSG WBC #

trombocitopenia et absentii radii, síndrome genética com trombocitopenia e ausência dos rádios Transplante de células-tronco Desoxinucleotidiltransferase terminal Trombocitemia essencial Transplante de medula óssea Fator de necrose tumoral α toxoplasmose, rubéola, citomegalovirose, herpes Fosfatase ácida tartarato-resistente Volume corpuscular médio Volume plaquetário médio Velocidade de sedimentação globular White blood cells, contagem de leucócitos Número

SUMÁRIO 1 Hemograma Introdução e filosofia de trabalho Registro e processamento de dados Coleta de material Contadores eletrônicos Microscopia Critérios para indicação de microscopia Erros mais comuns 2 Eritrograma Introdução Determinações diretas e parâmetros derivados Dosagem de hemoglobina (Hgb) Concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM) Microscopia e conferência Interpretação geral e alterações eritroides Formas anormais (pecilócitos) de significação diagnóstica Inclusões nos eritrócitos Hematozoários 3 Anemia: generalidades Conceito e prevalência Anemia mínima Sintomas e sinais Classificação 4 Anemia pós-hemorrágica 5 Anemias hemolíticas

Introdução Defeitos na membrana do eritrócito Hemoglobinopatias Deficiências enzimáticas do eritrócito Anemias hemolíticas infecciosas e parasitárias Anemias hemolíticas imunológicas Anemias hemolíticas por fragmentação eritrocitária 6 Anemias por interferência na síntese de hemoglobina Anemia ferropênica Hemograma na anemia ferropênica Anemia das doenças crônicas (ADC) Talassemias Anemias por interferência no metabolismo do ferro Acúmulo de ferro no organismo 7 Anemias por interferência na síntese de nucleoproteínas Deficiência de vitamina B12 Deficiência de ácido fólico 8 Anemias por falta ou defeito proliferativo do tecido hematopoético Anemias aplásticas (AA) Aplasia eritroide pura (Eritroblastopenia pura) Necrose da medula óssea Outras causas de insuficiência da medula óssea Anemias diseritropoéticas congênitas 9 Anemias por síntese deficiente de eritropoetina Anemia da insuficiência renal crônica Anemia das endocrinopatias Anemia da desnutrição proteica e calórica 10 Anemias de patogênese múltipla ou variada Anemia e hemograma no alcoolismo Anemia e hemograma nas hepatopatias Anemia e hemograma nas neoplasias Anemia e hemograma nas doenças do trato digestivo Anemia e hemograma na aids 11 Pseudoanemias Anemia e hemograma na gravidez Pseudoanemia dos atletas Hiperesplenismo Outras causas de pseudoanemia 12 Poliglobulias

Poliglobulias moderadas Poliglobulias acentuadas Pseudopoliglobulias súbitas e transitórias Poliglobulia provocada pelo uso de eritropoetina humana recombinante Poliglobulias notadas na infância 13 Leucograma Contagem de leucócitos Fórmula leucocitária Interpretação 14 Neutrofilia e neutropenia Neutrofilia Neutropenia Neutrofilia e neutropenia nas doenças infecciosas 15 Alterações qualitativas dos neutrófilos Alterações reacionais Defeitos genéticos notados à microscopia Defeitos genéticos sem alteração morfológica Ativação e exagero funcional dos neutrófilos 16 Linfocitose e linfocitopenia Linfocitose Linfocitopenia (linfopenia) Linfocitoses infecciosas Plasmocitose 17 Alterações dos eosinófilos, basófilos e monócitos Eosinofilia Eosinopenia Basofilia Monocitose e monocitopenia 18 Plaquetograma Tecnologia e componentes Trombocitose Trombocitopenia 19 Hemograma do nascimento aos 2 anos Eritrograma no recém-nascido Leucograma no RN Plaquetograma no RN Teste do pezinho Eritrograma do lactente aos 2 anos de idade Leucograma até os 2 anos

Plaquetograma até os 2 anos 20 Hemograma em idosos Hematopoese em idosos Anemia em idosos Leucograma em idosos Plaquetograma em idosos 21 Neoplasias da hematopoese: generalidades 22 Leucemias agudas Generalidades e classificação Hemograma nas leucemias agudas Tratamento e prognóstico 23 Neoplasias mieloproliferativas leucêmicas Leucemia mieloide crônica BCR-ABL 1 positiva (LMC) Leucemia neutrofílica crônica Leucemias eosinofílicas Leucemia mastocítica 24 Neoplasias mieloproliferativas não leucêmicas Policitemia vera (PV) Trombocitemia essencial (TE) Mielofibrose primária (MFP) 25 Síndromes mielodisplásicas e neoplasias mieloproliferativas/mielodisplásicas Síndromes mielodisplásicas (SMD) Neoplasias mieloproliferativas/mielodisplásicas 26 Neoplasias linfoides de células maduras Leucemia linfocítica crônica (LLC) Demais neoplasias linfoides predominantemente leucêmicas Linfomas com frequente expressão leucêmica Expressão hematológica de alguns linfomas não leucêmicos 27 Gamopatias monoclonais Mieloma múltiplo (MM) Demais gamopatias monoclonais 28 Exames complementares ao hemograma Citoquímica e imunocitoquímica Citometria em fluxo e imunofenotipagem Testes de função plaquetária Exame da medula óssea Citogenética Biologia molecular

Apêndice 1 Hemograma: valores de referência Apêndice 2 Classificação de Tumores dos Tecidos Hematopoético e Linfoide (OMS, 2008) Apêndice 3 Síndromes genéticas de insuficiência hematopoética com citopenias Conheça também Grupo A

1 HEMOGRAMA INTRODUÇÃO E FILOSOFIA DE TRABALHO O Hemograma é a semiologia das células do sangue. A avaliação quantitativa é totalmente automatizada, feita em contadores eletrônicos. Os glóbulos são contados e medidos um a um, a hemoglobina dosada por colorimetria, tudo com inacreditável exatidão; o software, em contínua atualização, deriva de um número cada vez mais amplo de dados que, de inicialmente experimentais, rapidamente se transformam em informações de utilidade clínica. A avaliação qualitativa – identificação dos subtipos celulares e das anormalidades morfológicas relevantes, especialmente da série vermelha – ainda não chega à perfeição da tecnologia numérica. Embora o advento do Sysmex CellaVision permita identificação computadorizada da morfologia microscópica dos leucócitos por comparação com um banco de dados, o olho humano ao microscópio, que criou a Hematologia e a acompanha desde o fim do século XIX, persiste necessário. O hemograma é o exame complementar mais requerido nas consultas, fazendo parte de todas as revisões de saúde. Levantamentos feitos pelo autor em seu laboratório em 2004 evidenciaram o hemograma na lista de exames de mais de 45% dos pacientes ambulatoriais que coletaram sangue. Levantamento de 2014 no Laboratório Weinmann (Porto Alegre) mostrou-o ainda muito mais expressivo: 62,3% das requisições de exames dentre mais de 200 mil pacientes ambulatoriais continham hemograma! Essa preferência universal denota que o hemograma, além de parte integrante da triagem de saúde, é coadjuvante indispensável no diagnóstico e no controle evolutivo das doenças infecciosas,

das doenças crônicas em geral, das emergências médicas, cirúrgicas e traumatológicas, e no acompanhamento de quimioterapia e radioterapia, relacionando-se com toda a Patologia. Além disso, o Hemograma é a Hematologia. O autor, que durante mais de cinco décadas manteve consultório de Hematologia Clínica anexo a seu laboratório, sempre fez o hemograma contemporaneamente às consultas; com a tecnologia emergente na década de 1960 e, em poucos anos, transformada no milagre da tecnologia atual, obtém-se o resultado em minutos. Incontáveis vezes fez o diagnóstico pelo hemograma mesmo antes de questionar e examinar o paciente. Dispondo-se dessa facilidade, uma longa elaboração diagnóstica é abortada por um relance ao monitor do contador eletrônico, complementado ou não por uns minutos de microscopia. A história e o exame físico, direcionados pela hipótese fundamentada, tornam-se rápidos e eficientes. Outros exames, se necessários, são escolhidos dentre os exatamente apropriados ao caso e geralmente feitos com o sangue já coletado; não há perda de tempo nem despesas inúteis. O paciente passa 1 hora no consultório e, já da primeira consulta, tendo gasto apenas com exames específicos para o caso, retorna para casa com diagnóstico e tratamento. Nos casos em que o hemograma mostrar evidências de uma hemopatia séria, a coleta de medula óssea para exame também pode ser feita no ato, com imediata microscopia do material aspirado; se for evidenciada infiltração leucêmica ou linfomatosa, amostras já coletadas à aspiração são enviadas a laboratórios de imunofenotipagem e/ou citogenética; casos em que a clínica e o hemograma sugerirem ser preferida a biópsia, o material é enviado a laboratório de patologia. Se o paciente tem, confirmado por hemograma e/ou exame de medula óssea, um diagnóstico que exija tratamento por equipe multidisciplinar em hospital (p. ex., leucemia aguda), ele já sai, no ato, com pedido de internação no hospital escolhido. Se as alterações hematológicas causais da consulta se confirmarem decorrentes de doença própria de outra especialidade, o paciente recebe um laudo e é orientado a retornar ao colega que o enviou ou a procurar diretamente os especialistas apropriados. Essa prática simplista de hemograma no ato, tão gratificante e econômica, é difícil de ser igualada em outras especialidades, pois em nenhuma a “biópsia” do tecido/órgão-alvo – no caso o sangue – é tão pouco invasiva e o exame tão rápido e completo. Os contadores eletrônicos contam, medem, dosam e fornecem uma série de dados diretos e objetivos sobre as células examinadas; desses dados primários, o computador do instrumento deriva por cálculo uma nova série de valores matemáticos, estatísticos e gráficos. Os fabricantes e distribuidores das máquinas adotaram a denominação inapropriada “parâmetros” para designar cada um desses componentes, cujo conjunto é o hemograma. A designação consagrou-se pelo uso. O número de parâmetros fornecido é variável, dependendo da qualidade do equipamento. O resultado completo do hemograma, com todos os dados fornecidos para apreciação pelo técnico responsável, pode ser apreciado na tela (Fig. 1.1) ou impresso (laboratory worksheet) pela máquina (Fig. 1.2.).

FIGURA 1.1 Resultado de hemograma na tela do Cell Dyn Ruby.

FIGURA 1.2 Resultado impresso de hemograma com reticulócitos (laboratory worksheet) fornecido pelo Sysmex XE.

Quando os contadores eletrônicos duvidam das próprias cifras ou julgam insegura a identificação celular, emitem flags (avisos) pertinentes; na presença destes ou de qualquer uma dentre uma série de anormalidades previamente definidas e incluídas em um procedimento operacional padrão (POP), são indicadas revisão e microscopia complementar. A seguir, os resultados da máquina acrescidos das anotações da microscopia são interfaciados com o centro de processamento de dados do laboratório para emissão dos resultados. Salvo em instituições fechadas, com médicos iniciados na tecnologia do hemograma automatizado, os laboratórios não fornecem aos pacientes e/ou médicos requisitantes os resultados originais das máquinas. As razões são várias, por exemplo: ■ As abreviações e siglas, em inglês, os gráficos e flags – como vistos nas Figuras 1.1 e 1.2 – são ininteligíveis para os não iniciados nessa tecnologia. Mesmo o aprendizado da interpretação dos resultados de um tipo de máquina não implica em compreensão dos resultados de outras; são todas diferentes. ■ O interfaciamento entre os contadores e os computadores do laboratório, com um software apropriado, permite a transmissão automática apenas dos valores numéricos consagrados pela tradição para um layout simples de interpretar, com a terminologia vigente em português.

A transmissão dos histogramas de volume corpuscular (RBC e PLT na Fig. 1.2), embora seja possível e até fácil com os softwares atuais, não tem sido assumida pelos laboratórios brasileiros, mesmo os de grande porte e amplos recursos. As valiosas curvas são sonegadas nos resultados. A única exceção conhecida pelo autor está na Figura 1.3. A explicação usual é a de que os médicos não saberiam interpretá-los, constituindo-se, assim, em despesa inútil. 1 Com essa atitude, os laboratórios voluntariamente assumem a responsabilidade de ter de analisar de modo sistemático os histogramas alterados e fornecer a interpretação nos resultados com frases esclarecedoras (p. ex., “dupla população eritroide”, etc.). Lamentavelmente isso não é cumprido pela maioria, que, na verdade, nem ao menos tem técnicos suficientes com competência para fazê-lo. Não se dão conta de que, fornecendo os histogramas impressos nos resultados, passam a responsabilidade de interpretação para os médicos requisitantes e ficam, ao menos legal e eticamente, liberados dessa difícil tarefa.

FIGURA 1.3 Histogramas fornecidos pelo Laboratório da Universidade Paranaense (UNIPAR) nos resultados de rotina de hemograma.

O layout mais usado e recomendado pelo autor para o resultado de hemograma está na Figura 1.4, mas ainda há significativa variação interlaboratorial nos resultados, pois o hemograma depende da qualidade do equipamento, do grau de especialização do pessoal técnico, da filosofia de trabalho do laboratório e de tradições locais. Pode variar até por decisões político-econômicas, de acordo com a procedência das requisições: em uma instituição fechada (hospital), pode haver um hemograma para o corpo clínico (p. ex., apenas o laudo original da máquina eletrônica) e outro, detalhado, para pacientes e médicos de fora da instituição, com comentários, interpretação e valores de referência.

FIGURA 1.4 Layout recomendado pelo autor para resultado de hemograma. 2

Começar o hemograma pelos valores numéricos do eritrograma é uma praxe generalizada. Posicionar logo a seguir os demais dados pertinentes à série vermelha parece racional ao autor: comentários sobre o histograma eritroide e a microscopia (se pertinentes), e a contagem e os índices reticulocíticos, quando feitos. Fornecer a contagem de reticulócitos em separado, como um exame distinto do hemograma (embora seja assim no Brasil, pois só é feita por pedido específico, com outro código), distancia-a do eritrograma e, às vezes, a faz passar despercebida: melhor colocá-la dentro do hemograma. Quando o histograma de volume eritroide passar a ser fornecido nos resultados, esse seria também o local apropriado; colocá-lo no final do hemograma, como na Figura 1.3, é uma alternativa aceitável.

No leucograma, que vem a seguir, a melhor escolha para a sequência de leucócitos na fórmula é a que corresponde à ordem fornecida pelos contadores eletrônicos, idêntica nas quatro linhas de equipamento discutidas neste manual, pois isso facilita a conferência máquina ⇒ resultado e evita enganos. Curiosamente, vários respeitados laboratórios brasileiros usam uma ordem própria, diferente. A seguir, devem estar os comentários pertinentes à série branca. Imprimir os histogramas de volume e/ou scatterplots usados pelos contadores eletrônicos na identificação dos tipos leucocitários, como se vê na Figura 1.3 (à esquerda), não tem utilidade: ao contrário do histograma eritroide, não são dados a serem interpretados, são apenas ferramentas de identificação usadas pelas máquinas e diferentes em cada modelo. Encerrando vem a contagem de plaquetas, atualmente parte integrante e indissociável do hemograma. O volume plaquetário médio (VPM) e outros dados sobre plaquetas são incluídos por um número restrito de laboratórios, justificando-se nestes o termo plaquetograma para o conjunto. O histograma de volume plaquetário tem uma interpretação mais útil para o laboratorista responsável pelo resultado do que para o médico requisitante (isso é discutido no Cap. 18 [p. 310]); fornecê-lo é uma decisão em aberto. Um notável progresso recentemente introduzido na apresentação de resultados é a anexação de um retrospecto dos últimos exames feitos pelo paciente; já é adotado por muitos laboratórios. O excelente laudo evolutivo, em forma de tabela, com os seis últimos resultados de hemograma, fornecido pelos laboratórios do Grupo Fleury em Porto Alegre, Laboratório Weinmann e Laboratório a+ (ex-Faillace), será várias vezes usado neste manual. A Figura 7.1) mostra um laudo no layout original (escaneado); os demais laudos evolutivos apresentados são transcrições idênticas, mas com as fontes gráficas usadas pela Editora. Todos estão com datas fictícias para impossibilitar identificação de pacientes. O autor instituiu e passou a recomendar, ainda na década de 1970, uma prática que, na última década, tornou-se praticamente universal e regulamentar: cabe ao laboratório avisar por telefone (ou outro método imediato de comunicação) ao médico requisitante sempre que algum dado do hemograma demonstrar que o paciente está sob alto risco de consequências graves e imediatas: hemorragia por trombocitopenia severa, infecção por neutropenia extrema, quernícterus por hiperbilirrubinemia (recém-nascido), anticoagulação excessiva e outras. Cada laboratório atualmente define uma lista de “Valores Críticos” que geram gatilho para essa comunicação. Os laboratórios do Grupo Fleury, 3 em relação a dados relacionados à Hematologia, utilizam a pequena série a seguir: ■ ■ ■ ■ ■ ■

Leucócitos/µL Neutrófilos/µL Plaquetas/µL Hemoglobina (g/dL) Bilirrubina total (mg/dL) Tempo de tromboplastina parcial ativada (s)

≤ 1.000 ou ≥ 100.000 ≤ 500 ≤ 10.000 ≤ 5,0 ou ≥ 18 ≥ 18 > 180

■ Tempo de protrombina

INR ≥ 5

O autor recomenda ainda que toda suspeita de leucemia aguda (presença de blastos, com anemia e/ou trombocitopenia), em paciente sem diagnóstico anterior, seja imediatamente comunicada; considerar a comunicação como emergência se a suspeita for de leucemia promielocítica ou se houver alta contagem de blastos (ver Cap. 22). O Laboratório da Santa Casa de Porto Alegre considera valor crítico a presença de hematozoários à microscopia. No evento frequente de o médico não ser encontrado, deve-se contatar o paciente (ou responsável) e solicitar a ele que tente comunicar-se com o médico para transmitir-lhe a necessidade desse imediato contato com o laboratório; anote-se em livro de ocorrências qualquer das duas eventualidades havidas. O autor, durante suas várias décadas de atividade no laboratório, sempre que presente assumiu essa tarefa; nos raros casos considerados de emergência (supracitados) em que o médico não foi encontrado, combinou com o paciente (ou responsável) o encaminhamento a emergência de hospital capacitado a realizar atendimento de onco-hematologia. Esse recurso é inviável em laboratórios sem consultoria médica. Para se interpretar o hemograma, há necessidade do conhecimento da tecnologia empregada, dos parâmetros fornecidos, da maneira de expressar os resultados e da correlação com a Clínica e a Patologia – sobre isso versa o presente Manual. Todos os contadores atuais fazem um conjunto de determinações básicas, que inclui eritrograma completo e contagens de leucócitos e plaquetas. Os modelos de pequeno porte fazem uma fórmula leucocitária simplificada (de três tipos celulares), que deve ser completada pela microscopia. Os contadores eletrônicos de grande porte, agora de uso generalizado, fazem fórmula leucocitária completa com cinco ou seis tipos celulares e outros, apresentados como flags; usando-se esses contadores, convencionou-se restringir a microscopia a hemogramas alterados. A visão abrangente de um médico hematologista, com vida profissional dividida entre a clínica e o laboratório, adiciona um toque de especialista à numerologia de alta precisão das máquinas eletrônicas: uma sequência de hemogramas transforma-se em uma poderosa lista que suscita hipóteses clínicas e complementações diagnósticas. Médicos com essa ambivalência estão se tornando raros; a pós-graduação em Hematologia não contempla a Patologia Clínica respectiva, dedicando-se quase exclusivamente à onco-hematologia hospitalar. Nos Estados Unidos e Europa, há hemopatologistas que fazem, simultaneamente, anatomia patológica e patologia clínica do sangue e dos órgãos hematopoéticos; essa especialidade até hoje não se desenvolveu no Brasil. Só laboratórios de grande porte ou de hospitais universitários ainda mantêm a consultoria interna permanente de um médico hematologista. No laboratório, a presença desse hematologista-laboratorista em extinção gera uma filosofia de trabalho: o fornecimento sistemático de resultados elucidativos, não apenas de listas de números a interpretar. Hemogramas anormais só são fornecidos após elaborada tentativa de esclarecimento ou com sugestões de como esclarecê-los. Para tal fim, esse workaholic não se importa de ultrapassar os limites da requisição do médico e

dos horários de trabalho. Na falta de dados que permitam interpretação total, telefonemas aos médicos requisitantes, para discussão, são amplamente utilizados. Telefonemas aos pacientes, entretanto, devem ser realizados com muita parcimônia e somente se o médico não for encontrado. Por exigirem diplomacia e autoridade, na opinião do autor, somente devem ser feitos pelo próprio médico hematologista; como regra, geram gratidão e confiança, mas, caso sejam malconduzidos ou envolverem pacientes emocionalmente instáveis, podem gerar apreensão e desconfiança. A otimização dos serviços prestados nos termos dessa filosofia de trabalho não é subjetiva nem teórica; o autor a viu comprovada diariamente em bem mais de meio século de atividade profissional. As horas e os insumos gastos com exames feitos a mais, com repetições para confirmação, com telefonemas e informações, com discussões internas com o pessoal da hematologia não elevam o preço cobrado pelos exames, elevam apenas o custo. O ganho de qualidade é obtido a expensas da rentabilidade financeira. Gastar-se o mesmo em marketing ou no estabelecimento de relações participativas com médicos ou instituições talvez fosse mais lucrativo, mas, na opinião do autor, a prática não se coaduna com uma patologia clínica ética e produtiva: a rentabilidade financeira na prestação de serviços médicos não deve ser visada como um fim, mas como um efeito colateral do inevitável sucesso dessa filosofia. Do lado do médico requisitante, por sua vez, cria-se o dever da escolha consciente do(s) laboratório(s) que indicará aos pacientes. Sabendo que a referida filosofia, sustentada por uma tecnologia de ponta, é tradicional em um laboratório e que não custa mais, é racional e ético indicá-lo, preterindo outros. Afinal, é seu dever escolher o que há de melhor para os pacientes! A comunicação frequente, por telefone ou pela internet, gera um bom relacionamento recíproco, com compreensão e receptividade do médico aos resultados do laboratório. Resultados considerados pelo médico requisitante como duvidosos, improváveis ou incompatíveis com os previstos, serão reconferidos após diálogo telefônico com o patologista clínico, fora da presença do paciente. Correções deverão ser aceitas com tolerância pelos médicos requisitantes se decorrerem de má transcrição das cifras originais; em um laboratório, onde transitam milhões de dígitos por dia, inevitavelmente algum terá emissão errônea não notada. Repetições serão combinadas quando se concluir pela improbabilidade de resultados; todas as reconferências deverão ser gratuitas. Ampliações de requisições médicas, com acréscimo de exames não pedidos, mas percebidos necessários pelo patologista clínico, são éticas e recomendáveis, mas só poderão ser cobradas com aquiescência do médico requisitante e do paciente. REGISTRO E PROCESSAMENTO DE DADOS A manutenção da qualidade total nos laboratórios de patologia clínica exige permanente controle, do cuidado nos registros iniciais e na identificação das amostras até a conferência final e entrega dos resultados. O registro de ingresso dos pacientes deve incluir nome completo e data de nascimento, telefone para contato, médico requisitante (digitado pelo número do Conselho Regional de Medicina), lista dos exames pedidos,

observações ou comentários do médico (se houver) e os dados contábeis pertinentes. A identificação por código de barras é indispensável. O computador abre um registro numerado para o paciente, distribui os dados contábeis pelas contas das respectivas instituições requisitantes e mantém a lista dos demais exames pedidos acessível no sistema a todas as seções técnicas. Exames anteriores do paciente, nos últimos 3 ou 5 anos, buscados no computador pelo nome e conferindo-se a data de nascimento para evitar erros de homonímia, também devem ser mantidos acessíveis ao técnico-sênior revisor para permitirem comparações quando pertinentes. A transferência de resultados do contador eletrônico para o sistema de processamento de dados do laboratório, que emite os laudos finais, no caso de hemogramas sem flags e dentro dos limites de referência arbitrados no POP para liberação sem microscopia, deve ser feita por interfaciamento direto entre as máquinas, sem interferência humana. Com limites precisos e sensatamente definidos para hemogramas cujos resultados automatizados dispensem melhor esclarecimento, esse procedimento zera os erros humanos de transcrição e impede a manipulação perigosa dos dados por pessoal menos qualificado. No caso de hemogramas com interfaciamento direto rejeitado pela presença de flags ou por cifras fora dos limites arbitrados no POP, o autor sugere que o programa faça imprimir uma laboratory worksheet (ver Fig. 1.2) para avaliação pelo técnico-sênior responsável; uma alternativa é observá-lo diretamente na tela (ver Fig. 1.1). O técnicosênior define a necessidade de microscopia e responsabiliza-se por todas as observações e correções complementares que lhe parecerem necessárias até o fornecimento do resultado final. Alguns laboratórios preferem incluir as correções e/ou observações diretamente no resultado no sistema, outros, na cópia impressa, com digitação para o sistema do novo resultado final. Em qualquer caso, há possibilidade de erro humano. Para minimizá-lo, o autor faz algumas sugestões: ■ Quando for necessário o acréscimo de observações aos resultados, fazê-lo, sempre que possível, por meio de códigos que gerem legendas. Exemplos: código POLI faz imprimir “policromatose”, GTOX, “granulações tóxicas nos neutrófilos”, etc., com a respectiva semiquantificação em cruzes ou adjetivos, descrita adiante neste capítulo. Isso evita erros da digitação de frases longas ou palavras complexas, como anomalia de Pelger-Huët. Códigos numéricos são mais fáceis de serem usados, mas também mais fáceis de serem trocados por engano. ■ Incluir no programa do computador uma série de “limites aceitáveis” para cada parâmetro do hemograma. Números que extrapolarem esses limites arbitrados serão aceitos no resultado somente quando acompanhados de dígitos de controle preestabelecidos, anotados pelo técnico-sênior responsável. Ou seja, a introdução do dígito de controle comprova que o técnico viu a anormalidade, fez a(s) pesquisa(s) necessária(s) regida(s) pelo POP respectivo para essa anormalidade e liberou-a por julgá-la condizente com o caso; na falta do dígito, o programa rejeita o resultado. Exemplos: um VCM maior do que 110 fL exige que o técnico percorra a lâmina ao microscópio procurando outros dados esclarecedores das anemias macrocíticas (ver p. 201); feito isso, libera o resultado com um dígito de controle significando

macrocitose; um RDW acima de 16 exige que o técnico analise o histograma de volume eritroide para avaliar a população; a introdução do dígito de controle significando anisocitose libera o resultado. ■ Delimitar extremos para o possível de cada parâmetro e de suas correlações numéricas. Exemplos: o resultado absurdo causado pela presença de crioaglutininas, como o da Figura 5.4, não será aceito pelo sistema nem que o técnico deseje fornecêlo. Um Hct = 24% é incompatível com uma Hgb = 14,0 g/dL; a rejeição é automática e irreversível. Se Hct, HCM, concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM) não corresponderem às respectivas fórmulas de cálculo, incluídas no sistema, igualmente não serão aceitos ou serão automaticamente recalculados pelo sistema. ■ Digitação de resultados feita em duplicata é um método de segurança ainda usado por alguns laboratórios. É insatisfatório: erros feitos pelo técnico no boletim original serão digitados igualmente nas duas versões. Salvaguardas incluídas no sistema são sempre mais fáceis e seguras, portanto preferíveis a controles por tarefa humana. COLETA DE MATERIAL 4 A passagem do repouso noturno, na posição horizontal, à posição vertical e à deambulação diurna causa acúmulo gravitacional e transudação plasmática nos membros inferiores: há um aumento das cifras eritroides do amanhecer ao entardecer da ordem de 2 a 3%, que pode chegar a 5 a 8% em obesos e cardiopatas. O leucograma também varia: há uma elevação circadiana da manhã para a tarde na contagem de leucócitos por aumento de neutrófilos. As diferenças citadas, entretanto, não costumam ser clinicamente relevantes, de modo que a coleta de sangue para hemograma pode ser feita a qualquer hora. Evite-se apenas coletá-lo após exercício físico, pois causa considerável neutrofilia, e nas 2 horas que sucedem refeição lauta ou rica em gordura. Neutropenia em hemograma coletado de manhã cedo, em condições basais, exige confirmação com coleta no fim da manhã ou na segunda metade da tarde. Poliglobulia em hemograma coletado no fim do dia exige confirmação em coleta de manhã cedo. Para hemograma, usa-se sangue coletado de veia superficial da dobra do cotovelo, com agulha de calibre compatível com o volume a coletar. A indústria nacional anota o calibre (Ø) e o comprimento em milímetros (mm). Como há material importado, também se costuma anotá-los em unidades anglo-americanas: calibre em unidade fracionária historicamente usada na medida de fios (gauge = g) e comprimento em polegadas; há ainda, um código de cor. O autor recomenda a seguinte escolha de calibres: ■ Ø = 0,6 mm (23 g), cor azul-clara, para coletas de até 2 mL (berçário e veias afetadas por quimioterapia). Geralmente é substituída por escalpe 5 de calibre similar. Escalpes de pequeno calibre, mais delicados do que agulhas, têm sido preferidos sistematicamente para coletas de veias muito finas, principalmente em berçário. ■ Ø = 0,7 mm (22 g), cor preta, para coletas de até 5 mL (dorso da mão e pulso, pediatria). ■ Ø = 0,8 mm (21 g), cor verde, é o usual para coletas de até 20 mL. Para 20 mL completos ou pouco mais, melhor usar Ø = 0,9 mm (20 g).

A jugular externa é segura e útil para lactentes (Fig. 1.5 [a]) e pacientes com veias difíceis ou esclerosadas. Causa má impressão nos pais, circundantes e/ou no próprio paciente: o autor usou-a amplamente por ter “autoridade” para sugeri-la, mas reconhece a dificuldade de aceitação. O risco de punção arterial ou de veia profunda é dificilmente justificável para exames rotineiros de patologia clínica. Só se faz hemograma de sangue capilar em unidades de oncopediatria, com coletadores e tecnologia especializados.

FIGURA 1.5 Coleta da jugular externa em lactente (a). Pressão adequada, com o polegar, após punção venosa (b).

A dor da picada da agulha diminui com o aumento do ângulo de penetração, mas o risco de ultrapassar a veia aumenta na mesma proporção. Reação vasovagal à coleta de sangue é infrequente, mas ocorre. O coletador deve estar atento; se notar palidez ou o paciente queixar-se de tontura, deve imediatamente fazer com que se deite. A reação é fugaz e inócua; o risco é a queda. Contenção do paciente só se faz com autorização do responsável, sendo, assim, só aplicável a crianças ou pessoas mentalmente inválidas; pacientes anestesiados ou comatosos fazem exceção óbvia. Como o coletador trabalha só e tem as mãos ocupadas, cabe ao próprio paciente ou a um acompanhante comprimir o local da punção para o estancamento após a coleta. A melhor maneira é segurando o braço e pressionando o local com o polegar; nas salas de coleta do laboratório do autor havia um pôster, reproduzido na Figura 1.5 (b), mostrando a maneira correta de pressionar. Mesmo instados com insistência, geralmente não o fazem com a pressão e o tempo adequados. A consequência é um hematoma local, pois o adesivo sem firme compressão prévia por 3 a 4 minutos é ineficaz para evitá-lo. O sangue é recebido em tubos industrializados contendo 1 a 2 mg de EDTA sódico ou potássico liofilizado por mL de sangue a coletar; apesar de muito discutida, o autor considera irrelevante a escolha do cátion. O volume de sangue recomendado para o tubo deve ser respeitado; se a desproporção sangue/EDTA for muito grande, causará erro préanalítico no VCM e parâmetros derivados. Se houver preferência – não recomendada – por tubo contendo EDTA em solução, a gota deve ser insignificante para não diluir significativamente o sangue coletado (ver erros pré-analíticos). Material insuficiente exige nova coleta. Como há tubos pediátricos para hemograma, com minidose de EDTA liofilizado compatível com a coleta de 1 mL de sangue, convém tê-los à mão para uma

eventual coleta escassa. Coleta lenta e difícil, por falta de fluxo na veia puncionada, favorece a agregação plaquetária e a coagulação: nunca aceitá-la! É necessário trocar o material e puncionar outro local. A heparina não se presta como anticoagulante para leucograma e contagem de plaquetas – destrói os leucócitos e causa uma coloração de fundo violeta nas lâminas –, mas é tolerável para o eritrograma, desde que em mínima quantidade para evitar diluição. A diferença entre o hemograma do sangue de veias e de artérias periféricas é insignificante; o eritrograma pode ser feito com o sangue coletado para gasometria arterial nas seringas industrializadas próprias com heparina liofilizada. A coleta de sangue de cateteres profundos é necessária em muitos pacientes, especialmente nos que estão recebendo quimioterapia. Necessária, mas tecnicamente indesejável. É preciso aspirar inicialmente um volume significativo de sangue e desprezálo, porque estava em estase e com heparina no cateter. Com esse cuidado, o sangue obtido é satisfatório para eritrograma e leucograma; a contagem de plaquetas, entretanto, sempre será insegura pela perda inevitável no trajeto. Em pacientes internados, é recomendável que a coleta seja feita por pessoal próprio da unidade, e o material, entregue no laboratório. A coleta no recém-nascido é discutida no Capítulo 19. A coleta com seringas e agulhas descartáveis é mais fácil para o coletador e causa menos hematomas nos pacientes do que a coleta com tubos a vácuo e agulhas bipolares, mas implica maior risco de ferimento acidental com a agulha; atualmente as agulhas de boa qualidade têm um protetor plástico que, baixado ao fim da coleta, diminui esse risco. O uso de agulhas bipolares e aspiração direta nos tubos a vácuo aceleram a mistura do sangue com o anticoagulante, o que é vantajoso. O uso de luvas de borracha e a troca a cada paciente são exigências atuais, mas é certo que o prejuízo ao tato interfere no trabalho, a troca contínua irrita a pele e pode causar dermatite alérgica nos coletadores e – o principal – não os protege contra o risco de ferimento, pois não resistem à ponta da agulha. O autor considera a norma um exagero, e a troca a cada paciente é um espantoso e inútil desperdício; crê, até, que foi estabelecida por pressão da respectiva indústria. O uso de luvas é regulamentar e obrigatório para todo o pessoal que manipula materiais biológicos nas seções técnicas do laboratório. Mesmo com pessoal de coleta capacitado e experiente, a coagulação incipiente ou total de uma amostra de sangue a cada 800 a 1.000 costuma ocorrer nos laboratórios, tornando-se necessária nova coleta. A distensão 6 de lâminas com gotas de sangue nativo, da ponta da agulha, era recomendada por alguns patologistas clínicos para que as células sempre fossem vistas ao microscópio sem alterações causadas pelo anticoagulante. O risco de trocas, o atraso na sequência da coleta, o desvio da atenção dos coletadores do paciente para esse trabalho, o aumento do risco de acidentes e a lenta secagem das lâminas pela dificuldade de se usar um secador na sala de coleta fazem preferir-se, hoje, a distensão de lâminas a partir do sangue já anticoagulado. Deve ser feita, sempre que possível, antes de 4 horas da coleta, no máximo em 6; se o transporte do ponto de coleta para um laboratório central demandar maior prazo, torna-se necessário distendê-las na origem. Amostras de sangue enviadas devem ser transportadas a ≅ 5ºC e com um mínimo de agitação. Lâminas já distendidas não devem ficar no ambiente refrigerado junto com as

amostras, pois podem hemolisar pela umidade. Deve-se embrulhá-las separadamente e transportá-las, evitando exposição a temperaturas > 36ºC. O sangue transportado deve ter recepção preferencial no laboratório de destino de modo a passar imediatamente à seção técnica para processamento; esta importante recomendação não costuma ser respeitada. CONTADORES ELETRÔNICOS A contagem eletrônica começou com a patente, por Wallace Coulter, na década de 1950, de um dispositivo capaz de contar e medir os pulsos de condutividade (impedância) causados pela passagem de partículas suspensas em líquido através de um orifício pelo qual flui uma corrente elétrica. O método mostrou-se adequado à finalidade a que se propunha: contagem, ulteriormente medida, dos glóbulos sanguíneos. O contador primitivo (Fig. 1.6 [a]) tinha uma haste oca, com o interior comunicando-se com o exterior por um orifício de pequeno diâmetro, com um eletrodo metálico interno e outro externo, e uma fonte geradora de corrente contínua. Uma bomba pneumática aspirava o sangue, apropriadamente diluído em solução eletrolítica, de fora para dentro pelo estreito orifício, até um volume exato predeterminado. Ao cruzarem individualmente o orifício, os glóbulos, pela menor condutividade, desencadeavam pulsos de impedância, sentidos pelo galvanômetro do instrumento. Os pulsos eram contados, posteriormente passaram também a ser medidos, e a calculadora, levando em conta a diluição e o volume aspirado, convertia o resultado em número de glóbulos por µL de sangue, depois o volume individual das partículas e a média deste.

FIGURA 1.6 Modelo primitivo da Coulter (a) e Coulter T890 (b); ambos usados no passado no laboratório do autor.

Os instrumentos primitivos, que exigiam um diluidor manual externo para as amostras de sangue a examinar e um espectrofotômetro para a hemoglobina, evoluíram nos anos 1960 e começo dos anos 1970 para instrumentos capazes de aspirar o sangue, distribuí-lo em alíquotas apropriadamente diluídas para canais separados, um para contar e medir plaquetas e eritrócitos, outro para contar e medir leucócitos e dosar hemoglobina por espectrofotometria, após hemólise pelo líquido diluidor. Aperfeiçoados na mecânica, na eletrônica e, principalmente, no software do computador de apoio, os contadores eletrônicos por impedância, isto é, com tecnologia baseada no princípio Coulter, tornaram-se reprodutíveis e seguros, fornecendo cifras hematimétricas fidedignas. O

Coulter T890 (Fig. 1.6 [b]) foi um marco na evolução técnica – e na Hematologia –, e há modelos funcionando até hoje. Evoluiu para modelos mais compactos, ainda fabricados e utilizados, com a designação usual de contadores eletrônicos de pequeno porte. No fim dos anos 1970, a tecnologia de impedância foi acrescida de citometria em fluxo, maravilha tecnológica com inúmeras perspectivas e variantes para identificação celular, dando origem aos atuais contadores eletrônicos de grande porte. As novas máquinas são capazes de fornecer a multiplicidade de parâmetros do hemograma atual e são utilizadas na generalidade dos grandes laboratórios. A mecânica dos instrumentos, nos anos 1980, foi automatizada pela técnica de perfuração sequencial, com uma agulha aspiradora (probe), da tampa dos frascos de sangue, dispostos em raques móveis e identificados por código de barras. Essa automação elimina o risco da manipulação do sangue pelos operadores e diminui a perspectiva de troca de material por erro humano. No fim dos anos 1990, foram criados sistemas robotizados, com a anexação aos modelos top of line de algumas linhas de equipamento automático capaz de distender e corar lâminas eletivamente, sob comando de critérios incluídos no software de uma central inteligente. Essa melhoria torna o equipamento bem mais caro, mesmo deduzindo-se a economia de mão de obra; ainda está restrita a laboratórios de grande porte, mas o uso está se generalizando. A robotização acrescenta rapidez e certo aumento de segurança contra erro humano ao procedimento, mas não interfere na qualidade do produto final: o resultado do hemograma. O hemograma feito em contadores de pequeno porte será brevemente discutido a seguir, mas é o hemograma feito em contadores de grande porte que terá resultados transcritos, debatidos e interpretados neste livro. Hemograma em contadores eletrônicos de pequeno porte Vários fabricantes fornecem aparelhos de pequeno porte e de baixo custo de aquisição, manutenção e insumos, com tecnologia restrita à contagem e medida de pulsos de impedância (princípio Coulter). Fazem as contagens de eritrócitos, leucócitos e plaquetas, dosam hemoglobina e calculam os parâmetros derivados; fornecem uma fórmula leucocitária por volumetria, distinguindo três tipos celulares: pequenas (linfócitos), médias (monócitos) e grandes (granulócitos). No Brasil, ainda são usados em laboratórios com até 50 hemogramas por dia. São muito apropriados para a triagem de doadores em serviços de hemoterapia. Nos Estados Unidos e Europa, são usados em emergências de pequenos hospitais, policlínicas, ambulatórios e até em consultórios médicos. Como não performam automaticamente uma fórmula leucocitária com todos os elementos, se o laboratório tiver que fornecer um resultado completo de hemograma, precisa completá-lo com uma fórmula feita ao microscópio (fórmula visual, ou “manual”). Nesses contadores, o resultado fornecido é uno e indivisível. Pedidos parcelados de leucograma, hematócrito ou contagem de leucócitos pertencem a uma tecnologia extinta. Há uma exceção aceitável. Havendo interesse só na série vermelha – como na seleção de doadores em banco de sangue, em exames periódicos da gravidez ou de pacientes renais crônicos em diálise – e sabendo-se que o laboratório do serviço (ou contratado) trabalha

com um desses modelos de pequeno porte, isto é, sem fórmula leucocitária automatizada, justifica-se o pedido isolado de eritrograma. Nessa eventualidade, o laboratorista economiza o trabalho de distender lâmina e fazer a tediosa fórmula ao microscópio, fornecendo só o eritrograma desejado e as demais contagens, com economia de custo ou preço. Também não tem sentido o pedido isolado de contagem de plaquetas, pois a máquina não se presta a fazê-la sem as demais contagens; a contagem de plaquetas é sempre parte do conjunto. A simplicidade e o baixo preço do equipamento não desvirtuam a qualidade; os dados hematimétricos dos modelos mostrados na Figura 1.7 são confiáveis. Faz exceção a contagem de plaquetas em casos de trombocitopenia acentuada e/ou de plaquetas de dimensões fora do normal, pois falta aos instrumentos uma contagem alternativa por canal óptico.

FIGURA 1.7 Contadores de pequeno porte: Cell Dyn Emerald (a) e Sysmex XP 300 (b).

Os parâmetros fornecidos são em menor número, mas essencialmente idênticos aos das grandes máquinas. Hemograma em contadores eletrônicos de grande porte Os contadores eletrônicos de grande porte atuais, capazes de fazer todas as determinações do hemograma, são variados, de múltiplas procedências e com extensa gama tecnológica. O autor teve ampla experiência em seu laboratório com instrumentos Coulter (modelos antigos), Cell Dyn (Abbott) e Sysmex (Roche); atualmente tem acesso a instrumentos Advia (Siemens) e Sysmex no Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. São as quatro linhas de instrumentos de maior expressão internacional; as empresas fabricantes e/ou distribuidoras locais oferecem contratos de leasing e comodato, que incluem o fornecimento de insumos e assistência técnica, com pagamento

por exame, com um número mínimo preestabelecido e preços variando favoravelmente de acordo com o número mensal combinado. Segue uma lista simplificada, mas abrangente, da tecnologia dessas quatro linhas de instrumentos: 1. Medida e contagem dos pulsos de impedância, causados pelos glóbulos, ao cruzarem um orifício pelo qual flui uma corrente contínua (princípio Coulter): contagem e medida do volume de eritrócitos e plaquetas em todos os instrumentos, contagem de leucócitos na maioria deles. 2. Medida da condutividade elétrica dos glóbulos, em radiofrequência, no orifício de impedância: sensível à estrutura interna das células, usada para diferenciação dos tipos de leucócitos na fórmula das linhas Beckman Coulter e Sysmex. 3. Análise, em vários ângulos, da dispersão e difração da luz (foco luminoso de tungstênio ou laser) focalizada nos glóbulos em citometria em fluxo: identificação (em alguns, contagem) dos tipos celulares em todas as linhas de instrumentos. 4. Dispersão e absorvância da luz (laser) após reação da mieloperoxidase: identificação dos granulócitos (peroxidase +) na linha Advia. 5. Idem, após efeito lítico preferencial do solvente sobre o citoplasma dos leucócitos: identificação dos basófilos, resistentes à lise, em várias linhas de instrumentos; identificação de células imaturas (resistentes por falta de lipídeos na membrana) na linha Sysmex. 6. Idem, após coloração supravital do ácido ribonucleico (RNA): identificação dos reticulócitos na linha Beckman Coulter. 7. Dispersão de luz polarizada: identificação dos eosinófilos pelo efeito despolarizante, em várias linhas de instrumentos. 8. Avaliação da fluorescência após marcação do RNA citoplasmático com derivados da fluoresceína: identificação dos reticulócitos nas linhas Cell Dyn, Sysmex e Advia. 9. Avaliação da fluorescência do DNA nuclear após marcação com iodeto de propídio: identificação de leucócitos inviáveis (membrana permeá​vel ao marcador) e eritroblastos na linha Cell Dyn. 10. Avaliação da fluorescência em leucócitos após permeabilização da membrana por solvente e marcação com um corante fluorescente de polimetina: identificação dos leucócitos e de plaquetas reticuladas na linha Sysmex. 11. Avaliação da fluorescência após marcação das células com anticorpos monoclonais fluorescentes (imunofenotipagem limitada), feita com software especial por alguns modelos top of line: contagem de plaquetas (com anti-CD61) e de linfócitos CD3, CD4 e CD8 na linha Cell Dyn. Outras aplicações ainda em estágio experimental. 12. Espectrofotometria: é usada de modo universal para a dosagem de hemoglobina; as diversas linhas de instrumentos diferem quanto à conversão da Hgb antes da colorimetria: cianometemoglobina (Beckman Coulter), hemoglobina-laurilsulfato de sódio (Advia e Sysmex), metemoglobina-imidazol (Cell Dyn). Todos as linhas de contadores utilizam-se do princípio Coulter (item 1, anterior) como método básico das contagens; eritrócitos e plaquetas, distinguidos por limiares de volume,

geralmente compartilham um mesmo canal de impedância. Da mesma forma, o hemolisado destinado à dosagem espectrofotométrica da hemoglobina (item 12, anterior) também é usado para a contagem de leucócitos. As linhas Coulter e Sysmex usam o trajeto de impedância para a medida de condutividade dos leucócitos (item 2, anterior). Os demais princípios para identificação celular (itens 3 a 11, anterior) dependem da técnica de citometria em fluxo (flow cytometry); os glóbulos são direcionados para uma tubuladura delgada onde fluem um atrás do outro, envoltos em uma bainha de solvente e focados por técnica hidrodinâmica. Ao entrarem nos múltiplos canais do sistema, alíquotas são diluídas, e os glóbulos são suspensos em uma variedade de fluidos, com características específicas de tonicidade, de atividade como solvente, com ou sem corantes, sejam de impregnação, enzimáticos ou imunológicos, alguns fluorescentes. Finalmente passam por um ponto do trajeto (flow cell) onde são contados e submetidos aos diversos processos de identificação. Na flow cell, os glóbulos em coluna são alvejados individualmente por raios luminosos em diversos ângulos para analisar a difração da luz e por lasers para excitar fluorescência nos que tomaram os corantes marcados com fluoresceínas. Múltiplos fotodetectores recebem a luz difratada, outros identificam e medem a fluorescência em um ou vários comprimentos de onda (cores). A energia é convertida em pulsos elétricos que são digitalizados e enviados ao computador. O software recebe as informações dessas dezenas de milhares de células que passam pelo trajeto em segundos e distribui a imensa quantidade de dados em clusters de identificação predeterminados, permitindo uma avaliação qualitativa e quantitativa integral das populações em teste. O termo “fantástico” é extrapolado por essa tecnologia. Os instrumentos das quatro linhas discutidas fornecem, de modo idêntico, embora por tecnologia variada, contagens e volumetria de eritrócitos e plaquetas, contagem e fórmula diferencial de leucócitos, dosagem de hemoglobina, índices hematimétricos, histogramas do volume corpuscular (eritroide e plaquetário), scatterplots leucocitários usados para a diferenciação celular, flags e comentários codificados ou escritos sobre anormalidades. A tecnologia empregada é descrita no texto correspondente a cada linha de instrumentos, junto com inovações, características e parâmetros especiais que oferece. Para uma discussão técnica detalhada, o leitor deve consultar na internet os sites das empresas fabricantes; manuais de instrução de cada instrumento podem ser obtidos com os distribuidores locais. Linha Beckman Coulter (Coulter® LH750) O mais avançado e recente modelo (top of line) da série, o Coulter® LH750, visto na Figura 1.8 (a), pode ser fornecido anexado a equipamento capaz de distender e corar lâminas (slide maker) em obediência a critérios inseridos no banco de dados. No eritrograma, por impedância, destaca-se a alta qualidade do histograma, alongado na abcissa, baixo na ordenada e com traçado firme, porque o software edita pulsos aberrantes; além disso, anota na abcissa o valor em 50 e 100 fL. Na opinião do autor é

mais fácil de se interpretar do que os histogramas das demais linhas e, por isso, é várias vezes mostrado neste manual. O leucograma é feito com a tecnologia que a Coulter denomina “VCS”: ■ Volume (medido por impedância); ■ Condutividade (em frequência de ondas de rádio); ■ Laser Scatter. A figura plana do scatterplot do leucograma na Figura 1.8 (b) é o plano frontal de uma imagem tridimensional, um cubo, elaborada pelo computador do aparelho, com as medidas VCS distribuídas pelas três arestas que partem da origem. Os resultados obtidos para cada célula são plotados e geram conglomerados espaciais, que a máquina separa por planos móveis, vistos em frontal como linhas. Há um conglomerado de linfócitos (LY), de neutrófilos (NE), de monócitos (MO) e de eosinófilos (EO); os basófilos (BA), atrás dos linfócitos, só são vistos em outra incidência. No display do instrumento, o scatterplot é colorido com um código de cores correspondente ao número de eventos em cada ponto. São listadas as porcentagens de cada tipo celular (fórmula relativa), bem como sua conversão em números por µL (fórmula absoluta).

FIGURA 1.8 Coulter® LH750 com slide maker (a). Scatterplot de leucócitos com tecnologia VCS (b).

Há flags na série leucocitária para desvio à esquerda e granulócitos imaturos, linfócitos atípicos e blastos, e um mais amplo slide review; na plaquetária, há flags para excesso de pulsos junto aos extremos do intervalo volumétrico e presença de agregados. A máquina fornece uma interpretação de fábrica, que imprime macrocitose ou microcitose, hipo ou hipercromia, etc., de acordo com os limites de referência que atribui às cifras; identifica e aponta até população eritrocitária dimórfica (que o autor neste Manual denomina dupla população) pela análise do histograma. A contagem de de reticulócitos e os índices reticulocíticos podem ser obtidos opcionalmente em canal próprio, pela coloração com novo-azul-de-metileno. Nos últimos anos, a linha Beckman-Coulter perdeu sua posição de liderança no Brasil; o autor crê que há, ou houve, desinteresse pela ampliação ou mesmo manutenção do

mercado local. Linha Abbott (Cell Dyn Ruby e Cell Dyn Sapphire) A linha, cujos principais modelos estão na Figura 1.9, tem as seguintes características, algumas inovadoras:

FIGURA 1.9 Cell Dyn Ruby (a), Cell Dyn Sapphire (b) e slide maker SMS (c).

■ Óptica com laser de argônio, com potência capaz de excitar fluorescência nas células marcadas com iodeto de propídio para o DNA e com uma fluoresceína própria (CD4K530®) para o RNA, o que permite identificar a fração de leucócitos inviáveis, os eritroblastos, e fazer a contagem de reticulócitos. ■ Leitura simultânea de todos os dados na flow cell, com laser scatter em quatro ângulos e fluorescência. Impedância aperfeiçoada por fluxo forçado. A esferação dos eritrócitos e a leitura em múltiplos ângulos no canal de reticulócitos do modelo Sapphire permite (desde 2010) uma medida da concentração hemoglobínica dos eritrócitos e reticulócitos e o fornecimento de índices estatísticos similares aos do volume corpuscular. ■ Contagem de leucócitos reprodutível até 250.000/µL. ■ Contagem de plaquetas por dupla tecnologia, automaticamente estendida em casos com trombocitopenia; mantém satisfatória precisão entre 5.000 e 2 milhões/µL. Há, ainda, uma contagem imunofenotípica opcional no Saphire, com marcação fluorescente do CD61, considerada como método de referência para contagem de plaquetas. ■ A mesma coloração imunofluorescente permite, no modelo Sapphire, de modo opcional, a contagem de linfócitos CD3, CD4 e CD8. O modelo Ruby é o mais aceito no Brasil; o modelo Saphire, embora de grande qualidade, é pouco difundido pelo preço elevado. Linha Advia Siemens Desde os primeiros modelos nos anos 1970, essa linha de contadores eletrônicos, originalmente japonesa, utiliza duas técnicas únicas na época: ■ Coloração citoquímica de mieloperoxidase para identificação de granulócitos no leucograma; o canal de peroxidase é eficaz na diferenciação e permite o diagnóstico

imediato da deficiência genética, não rara, de mieloperoxidase. ■ A contagem e a medida de eritrócitos (após esferação isovolumétrica) e de plaquetas é feita por laser scatter em dois ângulos; o índice de refração correlaciona-se com a densidade celular e permite a determinação da concentração hemoglobínica individual dos eritrócitos. A máquina fornece rotineiramente no hemograma a média (CHCM = cell hemoglobin concentration mean) e uma curva de frequência dos valores individuais, quantificando hipocromia e hipercromia com números estatísticos, em tudo semelhante ao que é feito com o volume corpuscular. A atual Advia Siemens, cujo modelo mais recente está na Figura 1.10, foi pioneira nessa tecnologia que recebeu liberação para uso clínico pela Food and Drug Administration (FDA) em 1997. A técnica é extensiva ao canal de reticulócitos; a coloração é feita com oxazina 750. O preço e a dificuldade de manutenção da linha Advia no Brasil tornam-na atualmente menos competitiva do que a Sysmex.

FIGURA 1.10 Contador Advia Siemens 2021i acoplado a slide maker. (Cortesia do Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.)

Linha Sysmex Roche (Sysmex XE 5000 e XN 3000) A tecnologia de impedância com corrente elétrica de dupla frequência assemelha-se à da linha Coulter. O sistema é alinhado em foco hidrodinâmico, com bainha de solvente, impedindo falsos pulsos. Os leucócitos são contados no sistema de impedância e, novamente, na citometria em fluxo (Fig. 1.12 [a]). A identificação é feita por light scatter frontal (mede o tamanho) e lateral (avalia a complexidade interna, principalmente as características nucleares). A fluorescência para o conteúdo de RNA/DNA é avaliada em fotodetector lateral. O canal de reticulócitos, corados com polimetina, tem um software que permite uma avaliação do volume e conteúdo hemoglobínico deste, em contraposição ao dos eritrócitos em conjunto. Pode fornecer, também, uma contagem de plaquetas reticuladas (ver Cap. 18). O slide maker SP 1000 distende lâminas de excelente qualidade, apropriadas para o Cella Vision (Fig. 1.11 [b]).

FIGURA 1.11 Sysmex XE 5000 (a); Sysmex XN 3000: duas unidades 1000 acopladas a slide maker SP 1000 (b).

Vantagem na competição pelo quociente qualidade/preço torna a linha de contadores Sysmex a mais difundida no Brasil. MICROSCOPIA Apesar do notável progresso em simplicidade e qualidade aportado pelos contadores eletrônicos à Hematologia, a observação ao microscópio persiste insubstituível em casos particulares. Até nesta, entretanto, a mecânica, a óptica e a informática associaram-se para facilitar e qualificar a tecnologia: veja-se o Sysmex Cella Vision na Figura 1.12 (b).

FIGURA 1.12 Scatterplot de identificação dos leucócitos com código de cor (imagem didática, cortesia Sysmex) (a); Sysmex Cella Vision (b).

Sysmex Cella Vision É um sistema composto por um microscópio de alta qualidade, com movimentação mecânica, acoplado a um computador, com a finalidade de substituir a microscopia convencional na execução da fórmula leucocitária. O instrumento busca os leucócitos um a um na distensão sanguínea, digitaliza e transporta as imagens microscópicas ao sistema,

que os identifica pela comparação com um banco de dados e fornece uma fórmula leucocitária “visual automatizada”. Todos os leucócitos examinados podem ser vistos na tela pelo técnico responsável, que pode até estar numa central técnica a distância (pela internet); o técnico modifica as identificações a seu critério, com a vantagem de observar com notável amplificação e clareza as imagens na tela. A presente edição deste manual foi profusamente ilustrada com imagens do Cella Vision. 7 Uma vez revisada, a fórmula é liberada por interfaciamento direto com o sistema de processamento de dados do laboratório. A leitura do código de barras das lâminas permite ao computador do Cella Vision acesso aos resultados do contador eletrônico onde originalmente foram examinadas as amostras, de modo que o instrumento, com a contagem de leucócitos de cada caso, fornece fórmula percentual e absoluta e insere-as no resultado; se houver modificações decididas pelo técnico, estas são inseridas no sistema e o instrumento recalcula a fórmula apropriadamente. Note-se que, havendo uma fórmula feita no contador eletrônico com exame por citometria em fluxo de vários milhares de leucócitos, os números desta serão muito mais fidedignos do que os da fórmula do Cella Vision; este faz uma microscopia de luxo, mas de apenas uma centena de células – como a da microscopia convencional –, com sua enorme e indesejável variabilidade estatística. Se o contador eletrônico negar a fórmula pela presença de células não identificadas, use-se a da microscopia; se o contador fornecer uma fórmula com todos os números, mas com flags, use-se a microscopia (Cella Vision ou convencional) para a identificação celular precisa, mas prefiram-se sempre os dados numéricos da fórmula do contador eletrônico. A observação da série vermelha no Cella Vision é insatisfatória; a microscopia convencional é superior. A contagem visual de plaquetas por campo, em comparação com o número de eritrócitos automaticamente fornecido pela máquina é uma versão atualizada e muito melhorada do método de Fônio, usado no século XX antes da automação. É excelente para confirmação visual de contagens eletrônicas que suscitem dúvidas. O Cella Vision, apesar de dispendioso, tem tido progressiva aceitação e difusão no Brasil. CRITÉRIOS PARA INDICAÇÃO DE MICROSCOPIA Mesmo com a sofisticação do Cella Vision, é impossível em um laboratório grande a manutenção de um número de técnicos experientes capazes de examinar centenas ou milhares de lâminas por dia. A “microscopia universal” tornou-se inviável: em todos os laboratórios que usam contadores com fórmula leucocitária completa o exame ao microscópio só é feito em casos selecionados. Em locais onde essa política geral ainda compete com laboratórios que fazem hemograma à moda antiga, com contadores de pequeno porte e fórmula visual (manual), o autor recomenda que essa orientação seja anotada no resultado de uns e de outros, mas nenhum laboratório costuma fazê-lo. É desnecessária em hemogramas de laboratórios de instituições fechadas (como hospitais universitários), em que o corpo clínico está formalmente informado da tecnologia usada;

em algumas dessas instituições cabe ao médico requisitante solicitar exame microscópico complementar quando julgar necessário. Em muitos hospitais do exterior, os médicos recebem o resultado diretamente do contador, on-line com o sistema de informática da entidade. O requisitante sabe o que vai receber ao solicitar um hemograma. Mas, em laboratórios abertos ao público e aos médicos em geral, tem sido difícil difundir o conhecimento de que receberão um hemograma inacreditavelmente exato quanto aos números, mas limitado à visão das máquinas na identificação celular. Apesar da maravilhosa tecnologia eletrônica, as máquinas não veem tudo, e o que não veem pode ser clinicamente significativo ou, ao menos, biologicamente relevante. Não há consenso entre os laboratórios brasileiros quanto aos critérios de indicação de microscopia; todos balançam a necessidade de reduzir o número de lâminas enviadas à microscopia com as indicações vindas da experiência clínico/laboratorial dos especialistas. Todos admitem, entretanto, que hemogramas oriundos de clínica oncohematológica, de pós-transplantados ou sob quimioterapia, e de pacientes graves de UTI, devem ter indicação de microscopia ao menos no primeiro exame. E todos aceitam a presença de flags das máquinas e resultados fora de limites de referência pré-fixados como indicativos dessa necessidade; o que varia muito é a amplitude dos extremos definidos. Em 2002, a Beckman Coulter Inc. patrocinou uma reunião multinacional de 20 especialistas em hematologia laboratorial com o objetivo de sugerir diretrizes sólidas para esses critérios. Após extensa reunião, esse International Consensus Group for Hematologic Criteria for Action following Automated CBC and WBC Differential Analyses desenvolveu e sugeriu 83 regras. Para testá-las, no ano seguinte, 15 laboratórios de membros do grupo examinaram cerca de 13.300 hemogramas, consolidaram 41 dentre as regras e publicaram as conclusões em 2005; 8 foram aceitas, assumidas e recomendadas pela International Society of Laboratory Hematology (ISLH). As diretrizes aprovadas incluem critérios oriundos de delta check (comparação automática com resultados anteriores do paciente), de inegável valor, mas lamentavelmente inviável na quase totalidade dos laboratórios brasileiros. A presença de qualquer dos flags dos instrumentos foi aceita como indicação. Os extremos numéricos recomendados, localmente aplicáveis, embora o autor discorde de alguns deles, estão na Tabela 1.1. TABELA 1.1 Limites definidos pelo Grupo de Consenso Internacional para indicação de microscopia* Hemoglobina

18,5

g/dL

VCM

< 75

> 105

fL

CHCM

< 30

> 36,5

%

> 22

%

RDW Leucócitos

< 4.000

> 30.000

/µL

Neutrófilos

< 1.000

> 20.000

/µL

> 5.000 (adultos) > 7.000 (< 12 anos)

/µL

Linfócitos

Monócitos

> 1.500 (adultos) > 3.000 (< 12 anos)

/µL

Eosinófilos

> 2.000

/µL

> 500

/µl

< 100.000

> 1 milhão

/µL

< 5,0

> 12,5

fL

> 100.000

/µL

Basófilos Plaquetas VPM Reticulócitos

O autor de uma monografia das dimensões da presente é certamente tendenciado à perfeição (ou seria ao preciosismo?) e preocupa-se menos do que deveria com os problemas logísticos e financeiros de uma indicação demasiado ampla. Tenha-se essa restrição em mente ao julgar os critérios que recomenda a seguir. 1. Idade < 2 anos. Motivo: a frequência de desvio à esquerda e linfócitos atípicos, ambos de identificação insegura nas máquinas, por diarreia ou viroses, e a dificuldade de definir valores de referência nesse grupo etário. No recém-nascido, a microscopia é indispensável e universalmente indicada. 2. Na edição anterior, o autor anotou > 75 anos como indicação de lâmina e microscopia. Nesta, reconsidera: com a longevidade saudável atual, o número de hemogramas normais nessa idade justifica excluir o grupo etário da indicação geral. O grande dado perdido seria o rouleaux de componentes monoclonais; em contrapartida corretiva, o autor recomenda, no Capítulo 20 (“Hemograma em idosos”), a inclusão do proteinograma nos exames da revisão clínica anual. 3. Nos raros laboratórios de hospital ou clínica em que a informática permita delta check: fazê-lo, limitando-o a 72 horas e dispensando da microscopia os hemogramas com variação inferior a ±10% nos resultados numéricos. 4. Pedidos médicos específicos que exigem microscopia: pesquisa de linfócitos atípicos, de esferócitos, outros; ou a observação explícita cada vez mais frequente, escrita pelo médico: 9 “olhar a lâmina” ou “fazer microscopia”. 5. Pedidos de exames correlacionados com alterações do hemograma (p. ex.: monoteste, resistência globular, imunofenotipagem de linfócitos, etc.) ou resultados alterados de outros (p. ex.: VSG > 80 mm, proteinograma com hipergamaglobulinemia, vitamina B12 ou ácido fólico abaixo da referência). 6. Flags emitidos pelo aparelho: não costumam diferir muito entre os diversos contadores eletrônicos; os usuais estão listados a seguir. No leucograma: Immature granulocytes? Left shift ou Bands? Variant ou Atypical lymphocytes? Abnormal lymphocytes/blasts? No plaquetograma: Platelet clumps

No eritrograma: Fragments? Dimorphic population? RBC lyse resistance? Nucleated RBC? Geral: Turbidity/Hemoglobin interference? Review slide (em alguns contadores)

Nem todos os flags exigem microscopia. Turbidity exige só revisão da amostra para pesquisar lipemia. Havendo Dimorphic population (ou RDW elevado) a observação do histograma eritroide pode ser confirmadora e suficiente sem microscopia. O flag Left shift (ou bands) em casos sem neutrofilia mostrou-se tantas vezes falso-negativo e quase sempre positivo (verdadeiro ou falso) em casos com neutrofilia, que o autor abandonou-o como critério; em compensação baixou o limite do número de referência de neutrófilos para 8.000/µL. Contrariamente, Platelet clumps, além de microscopia para ver se há agregação, exige revisão da amostra em busca de coágulos. 7. Limites de referência dos parâmetros numéricos: variam muito entre os laboratórios brasileiros consultados. Os critérios numéricos do Grupo Internacional da Tabela 1.1, com as modificações necessárias pela impossibilidade técnica de emprego do delta check, foram submetidos a cuidadosa avaliação crítica no Laboratório de Hematologia do Hospital de Clínicas da Universidade do Paraná. 10 Apesar dos critérios terem exigido exame em 46% dos hemogramas testados, valor muito acima dos 30% recomendados pelo American College of Pathologists, houve 10,5% falso-positivos (hemogramas em que os critérios exigiram observação de lâmina, mas a microscopia foi negativa) e 15,5% falso-negativos (hemogramas sem indicação pelos critérios, mas com microscopia positiva). Como a recomendação da ISLH é de que esses valores não ultrapassem 5%, os autores do trabalho concluíram que no laboratório/hospital onde foram testados, os critérios (adaptados) não se mostraram adequados nem seguros e sugeriram a elaboração de critérios próprios elaborados por cada laboratório/instituição. O autor não concorda com vários dentre os valores preconizados pelo Grupo Internacional; os novos números propostos na Tabela 1.2 são discutidos um a um a seguir, com justificativas principalmente oriundas de correlação à clínica. TABELA 1.2 Limites sugeridos pelo autor para indicação de microscopia Hemoglobina

< 11

> 17

g/dL

VCM

< 78

> 105

fL

CHCM

< 30

> 36,5

%

> 18,0

%

RDW Neutrófilos

< 1.500

> 8.000

/µL

Linfócitos

< 1.000

> 4.500 (adultos) > 7.000 (< 7 anos)

/µL

Monócitos

> 1.500

/µL

Eosinófilos

> 2.000

/µL

>3

%

< 120.000

> 500.000 (adultos)

/µL

< 6,0

> 12,5

fL

< 10.000

> 100.000

/µL

Basófilos Plaquetas VPM Reticulócitos

Hemoglobina: aqui a grande divergência. A maioria das anemias severas (Hgb < 7,0 g/dL) tem diagnóstico óbvio pelos índices hematimétricos, e esses mesmos geram indicação de microscopia (geralmente tão positiva quanto inútil: para que microscopia numa anemia ferropênica?). Se as anemias forem originadas de hemopatias, as alterações concomitantes de leucócitos e/ou plaquetas vão gerar a indicação de microscopia. É nas anemias leves e moderadas, com índices hematimétricos e demais séries normais ou quase normais, que a microscopia é útil para pesquisar policromatocitose e caracterizá-las como hiper-regenerativas (pós-hemorrágicas?). RDW: é fundamental examinar o histograma em casos com RDW aumentado, mesmo quando o aumento for moderado. Microscopia pode ser dispensada se a interpretação for óbvia apenas pelo histograma. Indispensável será o comentário escrito sobre o achado. Leucócitos: a sugestão é retirar dos critérios a contagem global por ser redundante. Não há leucopenia significativa se não houver neutropenia, linfopenia ou ambas. O mesmo raciocínio, em sentido inverso, serve para leucocitose. Se a leucocitose for devida a blastos leucêmicos aparecerá o flag respectivo ou a máquina negará a fórmula leucocitária, indicação óbvia de microscopia. Neutrófilos: números mais restritivos são necessários; a neutropenia de viroses acompanha-se de desvio à esquerda; a presença de desvio confirma como neutrofilia casos com duvidosos 8.000-10.000 neutrófilos/µL. Linfócitos: o flag Variant (ou Atypical) lymphocytes não é confiável, nem quanto à presença nem quanto à ausência. Linfocitose em crianças de mais de 7 anos (não mais de 12 anos, como nos critérios publicados) deve ser conferida. E linfocitoses em adultos devem ser consideradas a partir de 4.500/µL. Monócitos: o número para adultos deve servir igualmente para crianças; mesmo porque há máquinas que anotam linfócitos atípicos, quando em pequeno número, como monócitos. Basófilos: como os números absolutos são muito pequenos, é mais sensato usar a porcentagem. Plaquetas e VPM: trombocitopenias leves (100.000-140.000/µL) devem ter microscopia; esta pode mostrar pequenos agregados não notados pela máquina ou macroplaquetas dispersas em população de VPM normal. O limite inferior do VPM deve ser 6,0 fL, e não 5,0 fL, porque a trombocitopenia microtrombocítica (Wiscott-Aldrich) tem VPM entre 5 e 6 fL. Trombocitoses, mesmo moderadas, no adulto, devem ter microscopia: macroplaquetas e presença de raros mielócitos são dados a favor de trombocitemia essencial. Lamentavelmente, critérios muito restritivos quanto a plaquetas aumentam significativamente a porcentagem de hemogramas que vai a reconferência. Reticulócitos: quando abaixo de 10.000/µL (reticulocitopenia invulgar), a contagem eletrônica deve ser reconferida pela coloração com novo-azul-de-metileno e microscopia.

Os dados a seguir, oriundos de visita do autor aos locais respectivos em 2009, visam ilustrar a variabilidade de opiniões e critérios internacionais. O laboratório do Hospital Saint Louis (Paris) opta por uma política simplista: os médicos recebem apenas uma transcrição interfaciada dos dados numéricos fornecidos pelas máquinas, sem qualquer participação humana, salvo no controle de qualidade; só é feita microscopia mediante solicitação escrita do médico requisitante. Por outro lado, os laboratórios do St. Mary’s Hospital (Londres) e do New YorkPresbiterian 11 (Cornell Medical Center New York) caracterizam-se por detalhar extensos procedimentos operacionais padrões para essa escolha. No St. Mary’s, o procedimento começa pelo exame do resultado na tela por técnico do laboratório (Registered Biomedical Scientist). Cabe-lhe decidir pela validade das contagens; dispõe dos resultados anteriores do paciente, se houver. Tem autoridade para aceitar ou mandar repetir as contagens da máquina, mas há critérios recomendados: alterações da CHCM, valores inesperados ou inexplicados para Hgb alta ou baixa, diminuição desta (em relação a anteriores), idem para VCM, contagens de leucócitos e plaquetas (neste caso, examina a amostra para coagulação), basofilia. O técnico, nessa etapa, tem autoridade para indicar e fazer proceder à microscopia de lâmina ou dispensála. Há, entretanto, critérios obrigatórios de microscopia: requisição do médico, dados numéricos alterados em casos novos (plaquetas < 60.000/µL, Hgb < 12,5 [ ] e < 10,5 [ ] /dL, leucócitos < 3.500/µL), índices hematimétricos improváveis, linfocitoses inexplicadas e flags. Também são examinadas lâminas em casos com anotação clínica de linfonodomegalias, suspeita de linfoma, pedidos de contagem de bastonados e préeclâmpsia. No New York Presbiterian, o procedimento-padrão inclui as ações que devem ser tomadas em relação a cada flag da extensa lista do Beckmann-Coulter e à igualmente extensa lista de achados anormais nas contagens. Exige-se microscopia em todas as anemias com micro ou macrocitose ou RDW > 20. No leucograma, leucócitos < 2.000 ou > 20.000 /µL, linfócitos > 60%, monócitos > 15%, basófilos > 5%, eosinófilos > 30%, eritroblastos > 5% e plaquetas < 20.000 /µL. O computador dos instrumentos tem capacidade para ser suprido desses critérios, mantê-los no banco de dados e informar caso a caso, com POSITIVO ou NEGATIVO, a necessidade ou não de microscopia complementar. No equipamento totalmente automatizado, as amostras POSITIVAS são direcionadas sem interferência humana ao distensor de lâminas (slide maker) acoplado. Com os critérios descritos, no laboratório do autor eram feitas e examinadas lâminas em cerca de 30 a 40% dos hemogramas dos pacientes de ambulatório. A porcentagem era alta porque, além dos critérios amplos, o laboratório atendia a clínica do autor e de vários outros hematologistas, e a serviços de Oncologia. Em laboratórios para pacientes oriundos de ambulatórios de atendimento de massa, a porcentagem a examinar com esses critérios costuma estar entre 20 e 30%. Se levar-se em conta que, na verdade, essas porcentagens são coerentes com o número de hemogramas efetivamente anormais, as medidas tomadas parecem estatisticamente corretas. O problema é que os 20% (por hipótese) anormais não são exatamente os

mesmos 20% examinados: há falso-positivos e falso-negativos em ambos os grupos! Sempre serão examinados desnecessariamente alguns normais em detrimento de alguns anormais não examinados. Na experiência do autor, após uma década (anos 1990) de uso contínuo de contadores eletrônicos de grande porte, com observação microscópica complementar feita em todos os hemogramas, as alterações da Tabela 1.3 costumam passar despercebidas pela tecnologia. TABELA 1.3 O que as máquinas não veem No eritrograma Policromatocitose Pecilocitose (de um modo geral) Pecilócitos específicos Esferócitos (a máquina sugere presença pelo aumento da CHCM) Inclusões: Jolly, pontilhado basófilo, outras Eritroblastos < 5%, salvo os modelos top of line que, inclusive, contam-nos; muitas vezes anota sem haver rouleaux No leucograma Desvio à esquerda: há flag Imm Grans/Bands em 80% dos casos com neutrofilia, mas em menos de 40% dos casos sem neutrofilia; a anomalia de Pelger-Huët nunca é notada; para desvio à esquerda a microscopia Cella Vision é notável Inclusões nos neutrófilos: granulações tóxicas, vacúolos, corpos de Döhle Plasmócitos Linfócitos atípicos: há flag Variant lymphs em 80% de casos com linfocitose, mas em menos de 30 em casos sem linfocitose; identificam-se muitos como monócitos e até blastos Linfócitos linfomatosos ou leucêmicos: só há flag Blasts ou Variant lymphs quando mais de 5-10% Linfócitos com granulação ou vacuolização anormais Hairy cells geralmente aparecem como monócitos No plaquetograma Agregação discreta; agregação acentuada sempre causa flag Plt aggregation Satelitismo plaquetário: há trombocitopenia sem flag (às vezes flag Plt aggregation)

Embora a lista de dados perdidos seja extensa, há de reconhecer-se que: 1. A maioria das alterações listadas costuma acompanhar-se de alterações numéricas (p. ex., anemia), que indicariam necessidade de microscopia complementar. 2. Algumas alterações, embora biologicamente relevantes, não têm significação clínica. A ovalocitose sem anemia e a anomalia de Pelger-Huët são estigmas curiosos, sem consequências para os portadores; mas justifica-se fazer hemograma num laboratório de alto conceito e receber um resultado sem a percepção dessas anomalias? É o que ocorre agora, com a irreversível vitória da automação sobre o artesanato. 3. O fato de fazer-se observação microscópica complementar como rotina não significa, por outro lado, que as alterações citadas serão notadas. Da Tabela 1.3, algumas são sempre notadas (ovalocitose, rouleaux), outras geralmente notadas (desvio à esquerda e Pelger, granulações tóxicas, linfócitos atípicos e plasmócitos), outras, menos vezes. Esferocitose sem anemia não costuma ser notada, mas pode ser suspeitada pela CHCM > 36%. Por outro lado, nos exemplos a seguir, os dados perdidos seriam úteis se tivessem sido notados:

1. Policromatocitose sem anemia: com hemoglobina próxima ao limite superior da normalidade é sinal de anoxemia; próxima ao limite inferior, sugere perda sanguínea recente (a microscopia mostraria policromatocitose). 2. Acantocitose e corpos de Howell-Jolly indicam hipofunção esplênica. Se forem notados em paciente esplenectomizado, o achado é irrelevante (porque já sabido); em paciente não esplenectomizado, entretanto, é altamente relevante, pois sugere asplenia, anatômica ou funcional, esta geralmente causada por doença inflamatória crônica do trato digestivo, de difícil diagnóstico. 3. Leptocitose indica doença hepatobiliar; rouleaux associa-se a eritrossedimentação elevada e atividade inflamatória. 4. A presença de eritroblastos (flag?) e de mielócitos pode ser sinal de metástases ósseas de tumor, mas é rara sem anemia ou outra alteração geradora de indicação de microscopia. 5. O desvio à esquerda, as granulações tóxicas e os corpos de Döhle são relevantes. Plasmócitos e linfócitos atípicos (com desvio à esquerda) são fundamentais para o diagnóstico de viroses. 6. É desnecessário comentar a importância do achado de células linfomatosas e leucêmicas. Não é raro vê-las em pequeno número, ainda sem linfocitose significativa nem alterações numéricas das demais séries. A lista de exemplos poderia ser infindavelmente alongada. É fácil compreender que o notável ganho geral na precisão dos números acompanhou-se de certo retrocesso na citologia de casos pontuais. Técnica e cuidados para a microscopia São distendidas lâminas para exame das amostras incluídas nos critérios discutidos. Nos laboratórios de grande porte, com centenas de hemogramas/dia, os parâmetros de referência para esse fim costumam estar incluídos no sistema: resultados que dispensam microscopia são liberados por interfaciamento com o computador central, sem interferência humana. Naqueles que não passarem no crivo, o resultado é impresso para avaliação pelo técnico-sênior ou este o confere na tela e requisita (ou não) distensão de lâminas. Havendo uma central inteligente e equipamento automatizado, as lâminas são distendidas e coradas automaticamente a mando do sistema. Laboratórios muito pequenos imprimem todos os resultados para apreciá-los e julgá-los um a um. As distensões feitas automaticamente pelo Sysmex SP 1000 slide maker, que podem ser observadas tanto ao microscópio como no Cella Vision (se houver), exigem lâminas de vidro apropriadas para esse fim; a qualidade pode ser apreciada na Figura 1.13 comparando-se com lâminas rejeitadas, feitas manualmente. As lâminas devem ser identificadas com o número do registro do paciente, escrito na extremidade fosca, a lápis ou com tinta indelével, ou com a etiqueta de identificação impressa do paciente com número e código de barra.

FIGURA 1.13 Distensões manuais de má qualidade e inapropriadas para o Cella Vision (a). Distensões automatizadas apropriadas (b). (Cortesia Sysmex®)

A coloração é feita automaticamente nos sistemas robotizados, manualmente ou em equipamento semiautomático nos sistemas convencionais. O corador Hematek® é satisfatório e amplamente usado, mas é recomendável usá-lo com os corantes próprios fornecidos pelos distribuidores. Os corantes devem fazer notar a policromatocitose (tom acinzentado nos eritrócitos respectivos) e notar a granulação violácea tênue dos neutrófilos; os eosinófilos devem ter grânulos alaranjados óbvios e os plasmócitos devem ter basofilia vista em azul intenso. A Figura 1.14 ilustra os exemplos.

FIGURA 1.14 Eritrócitos policromáticos (a); neutrófilo com granulação violácea (b); eosinófilo com grânulos alaranjados (c); plasmócito com citoplasma basófilo (d).

A procedência e a qualidade dos microscópios dependem da disponibilidade financeira do laboratório, mas o autor recomenda que todos sejam equipados com objetivas de imersão periplanáticas de 50 aumentos e oculares Wide Field de 10 aumentos. Essa combinação gera um campo microscópico notavelmente amplo e nítido. O alto preço dessas objetivas é amplamente compensado pelos resultados. Objetivas a seco não permitem igual qualidade de visão; objetivas de imersão de 100 aumentos, mesmo em microscópios de ótima qualidade, perdem em nitidez o que se ganha em ampliação, limitam a extensão do campo examinado e aumentam o tempo gasto para observar um número significativo de células. O autor utiliza-as raramente, e só para ver células especiais ou inclusões celulares. O exame microscópico exige rigorosa disciplina. Começa-se pela inspeção da série vermelha; para isso, devem ser focados campos onde os eritrócitos possam ser vistos sem

deformação. Atente-se à Figura 1.15: o campo à esquerda (a) está já na cauda da distensão, zona muito delgada; a microscopia deve ser feita no campo do meio (b), bom para exame do contorno e da área pálida central, e no da direita (c), mais espesso, dando ideia melhor dos aspectos tridimensionais. Observe-se a forma, as dimensões e a anisocitose (comparando com o VCM, o RDW e examinando o histograma), a coloração (com especial atenção para policromatocitose) e o empilhamento; deve-se julgar se os dados numéricos, que devem estar sempre disponíveis ao observador, são condizentes com o que é visto. A seguir, estima-se o número de plaquetas e compara-se com a cifra contada pelo instrumento.

FIGURA 1.15 Escolha de campos para microscopia da série vermelha: inapropriado (a); apropriados (b) e (c).

Passa-se à série branca; de início compara-se a contagem fornecida com o número de leucócitos vistos por campo. Se o equipamento não fornecer a fórmula, ou fornecer só fórmula simplificada (de três elementos), é feita a fórmula completa, identificando-se e anotando-se 100 leucócitos; o exame é prorrogado a 200 elementos se houver leucocitose, porcentagem elevada de células de baixa frequência (basófilos, plasmócitos) ou células anormais. Anotam-se os neutrófilos bastonados em separado dos segmentados; como a fórmula é visual, cabe a distinção que mostra desvio à esquerda, se houver. Deve-se atentar para atipias linfocitárias (especialmente se houver linfocitose ou neutropenia). Observa-se se a fórmula é compatível com o grupo etário do paciente e com a fórmula de três elementos fornecida pela máquina, se for o caso; note-se que a fórmula de três elementos é fidedigna na distinção de neutrófilos e linfócitos e, se for muito discordante da fórmula ao microscópio, provavelmente esta é que está mais distanciada dos valores reais. A experiência do observador não deve ser invocada para justificar um encurtamento aquém de 90 segundos do tempo de observação. Havendo fórmula automatizada completa, caso exista indicação de microsocopia, analisam-se do mesmo modo a série vermelha e as plaquetas e, se a fórmula for normal, sem flags e o scatterplot (na tela ou em laboratory worksheet) mostrar boa separação dos tipos celulares, observa-se (sem contar) ao menos 20 neutrófilos para excluir desvio à esquerda (já que a máquina distingue mal entre bastonados e segmentados). A seguir, revisa-se a morfologia dos linfócitos; se for normal, e não houver plasmócitos, mielócitos ou células mais raras, libera-se a fórmula fornecida

pela máquina para o computador do laboratório; o tempo gasto com essa microscopia sem fórmula cai a cerca de 30 segundos. As alterações notadas à microscopia das três séries devem ser transcritas nos resultados. Dentre as usuais, algumas são objeto de medida pelo próprio contador eletrônico: macro e microcitose pelo VCM, anisocitose pelo RDW, etc. Outras, como a presença de leucócitos imaturos (mielócitos, blastos) ou inconstantes (plasmócitos) transcrevem-se, incluindo-os nos 100 leucócitos da fórmula leucocitária. Há alterações, entretanto, que não se relacionam com os dados fornecidos pelas máquinas, e que são impossíveis ou inviavelmente trabalhosas de se converter em números ou porcentagens, como a policromatocitose, a frequência dos vários tipos de pecilócitos entre os milhões de eritrócitos, de linfócitos atípicos dentre os linfócitos normais – pois há formas de transição – e várias outras. E não basta anotar, de modo simplista, presença de policromatocitose: identificar um eritrócito policromático a cada 10 campos microscópicos não é o mesmo que notar 10 eritrócitos policromáticos a cada campo! Até a gravidez pode causar o primeiro achado; só uma anemia hemolítica, raramente uma pós-hemorrágica, causa o segundo. Anotação idêntica em ambos os casos é um desserviço: há que anotar a policromatocitose quantificada. A adjetivação da magnitude de uma alteração ou da frequência de um elemento anormal à microscopia é prática corrente e tradicional. Termos como os vistos a seguir são amplamente empregados. A grandeza expressa por esses adjetivos, entretanto, é subjetiva: depende dos olhos dos que veem a lâmina e da imaginação dos que leem os resultados. para grau da alteração leve nítida discreta acentuada moderada considerável

para frequência do elemento raros vários ocasionais muitos(as) alguns numerosos(a)

O problema não é só brasileiro ou da língua portuguesa. Em inglês são usados os seguintes termos: mild slight

marked marked

occasiosnal rare

many a few

Além deles, até a indesejável observação high band (ou low band) é usada pelos norte-americanos para dispensar a numeração de 100 leucócitos na fórmula visual (manual) para obtenção de um valor percentual para os neutrófilos bastonados. Publicações internacionais e uma recomendação antiga da Organização Mundial de Saúde (OMS) preconizam semiquantificação de 1+ a 4+ como critério mais reprodutível e uniforme. Os fabricantes das principais linhas de contadores eletrônicos já a adotaram nos comentários sobre os resultados, mas preferiram simplificá-la para 1+ a 3+. O autor, que prefere 1+ a 4+, recomenda o procedimento nos termos da Tabela 1.4. TABELA 1.4 Semiquantificação de 1+ a 4+

1+ = alteração notada só com especial atenção (p. ex., policromatocitose em hemograma de gestante) 2+ = alteração notada no exame de rotina, mas não chamativa (p. ex., acantócitos em esplenectomizados) 3+ = alteração óbvia, imediatamente notada (p. ex., granulações tóxicas na neutrofilia em pneumonia grave) 4+ = alteração máxima, presente em grande número de células (p. ex., policromatocitose em anemia hemolítica autoimune, eritrócitos em alvo na hemoglobinopatia C homozigótica) (Na preferência por apenas 1+ a 3+, os conceitos 1+ e 2+ acima corresponderão a 1+, e os demais serão idênticos, só que para 2+ e 3+.)

ERROS MAIS COMUNS Há erros, ditos pré-analíticos, que decorrem de imperfeição da amostra de sangue levada à máquina, não de mau processamento. São numerosos e comuns: 1. Sangue coagulado: a demora na aspiração do sangue à coleta permite ativação das plaquetas e da coagulação antes da ação do EDTA. Quando a coagulação no tubo é completa é facilmente notada pelo operador e pelo probe da máquina, que não aspira o coágulo; o sangue é desprezado e nova coleta solicitada. Quando a coagulação é parcial, há consumo progressivo das plaquetas, formação de filamentos dispersos de fibrina, às vezes pequeno coágulo junto à rolha, e pode não ser notada. Algumas vezes, a fibrina impede a aspiração ou entope a agulha aspiradora do instrumento, e o resultado é rejeitado com o flag apropriado. Outras vezes, a máquina aspira soro, com mais ou menos glóbulos, variavelmente retidos na fibrina; o resultado é totalmente errado, mas enganoso, pois mostra pancitopenia, mas a anemia tem índices eritroides coerentes. Qualquer citopenia sem causa óbvia exige cuidadosa inspeção da amostra de sangue. 2. Plasma derramado: a perda de plasma, por derramamento ao abrir-se a rolha ou por vazamento, quando os glóbulos estão sedimentados, causa um aumento harmônico das contagens e da hemoglobina que facilmente passa despercebido. O operador deve atentar para tubos sujos por fora, e o técnico-sênior deve estranhar valores hematimétricos elevados sem razões óbvias. 3. Material hemolisado in vitro: causa desproporção entre a dosagem de hemoglobina, que permanece correta, e a contagem de eritrócitos, erroneamente diminuída, com aumento impossível da concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM). Deve-se observar a cor do plasma no sangue sedimentado ou centrifugado, sempre que CHCM > 35%. Quando há hemólise significativa, os estromas interferem na contagem de plaquetas, com resultados aberrantes, geralmente com flag. O julgamento caso a caso pode permitir que resultados de amostras com apenas um traço de hemólise, com CHCM ainda nos limites do normal, sejam aceitos com leve correção para mais da contagem de eritrócitos e correção automática dos índices derivados. 4. Anticoagulante (EDTA) em excesso, geralmente por volume de sangue inferior ao apropriado ao tubo, causa desidratação dos eritrócitos, só parcialmente corrigida pelo solvente usado no contador eletrônico; há diminuição do volume corpuscular e dos parâmetros dele derivados. Quando o tubo contém EDTA em solução, o que não se recomenda, o sangue dilui-se, com baixa paralela das contagens e da hemoglobina: uma gota (≅ 50 µL) de solução de EDTA em 2 mL de sangue diminui a hemoglobina de 15 para 14,6 g/dL. O hemograma, feito do sangue coletado em tubo para testes de

coagulabilidade (nove partes para uma de solução de citrato de sódio) expressa diluição similar; se esse sangue for utilizado para hemograma (em uma emergência ou reconferência), os resultados de contagens e hemoglobina deverão ser multiplicados por 1,1. 5. Sangue velho ou malconservado: o sangue, in vitro, tem durabilidade limitada. A temperatura alta e a trepidação no transporte aceleram a deterioração: há hemólise; nos leucócitos há cariólise, cariorrexe e citólise e há agregação e lise das plaquetas. Conservado a mais de 20°C, a putrefação começa após 48 horas. Os prazos usuais de conservação adequada para contagens eletrônicas em sangue coletado em tubo estéril, mantido sem agitação, são: entre 26 e 35°C = 4 horas, entre 8 e 25°C = 12 horas, entre 1 e 7°C = 24 a 36 horas. O laboratório deve ser informado da hora de coleta e das condições de transporte de materiais recebidos. Em postos de coleta afastados, a coleta tardia (após a passagem do transporte diário) é possível: coleta-se o sangue, distendem-se duas lâminas (identificadas e guardadas em caixa fechada, à temperatura ambiente) e conserva-se o sangue em refrigerador até o transporte e o processamento na manhã seguinte. Os contadores Cell Dyn identificam no canal de fluorescência e contam os leucócitos em necrobiose, pois a permeabilidade alterada das membranas permite-lhes absorver fluoresceína, que marca os núcleos. A fração leucocitária viável (WVF) aparece no resultado como decimal da unidade; nos sangues recentemente coletados, WVF > 0,980. 6. Homogeneização incompleta do sangue ao entrar na máquina: causa aspiração com excesso espúrio de plasma ou de glóbulos. O resultado é totalmente errado, mas, como o erro é idêntico em todas as determinações do eritrograma, há compatibilidade entre as cifras e os índices hematimétricos são coerentes: o erro facilmente passa despercebido. Há necessidade de alto grau de desconfiança para estranhar eritrocitoses ou anemias sem justificativa aparente ou contagens de leucócitos incompatíveis com o aspecto à microscopia. Nos aparelhos atuais, com transporte automático das amostras e agitação incluída no sistema, o erro por falta de homogeneização geralmente decorre de excesso de sangue no tubo, faltando espaço aéreo para a agitação automática apropriada.

7. Crioaglutinação e presença de crioglobulinas: são defeitos intrínsecos do plasma do sangue em exame, mas podem ser ditos pré-analíticos, porque o fenômeno ocorre pelo resfriamento à temperatura da sala (ou do refrigerador), antes da entrada do sangue na máquina. A aglutinação dos eritrócitos faz contar doublets ou triplets como um só glóbulo, a contagem é grosseiramente falseada para menos e o VCM para mais, gerando uma CHCM impossível. Um resultado Sysmex é ilustrado na Figura 5.4 (Cap.

5); o instrumento identificou e anotou o defeito. Para corrigir o problema, geralmente basta aquecer o sangue em banho-maria a 37°C e processá-lo imediatamente. Em salas frias, pode haver necessidade de aquecer os solventes com estufas sob as mesas. Em casos extremos (crioaglutininas com título > 1.000), as contagens podem ser impossíveis. Crioglobulinas em altas concentrações, geralmente decorrentes de hepatite C ativa, podem causar gelificação do plasma e interferir na aspiração da amostra; alguns instrumentos geram flag nessa eventualidade. Podem também interferir na contagem de plaquetas, raramente na de leucócitos. Há outros defeitos intrínsecos do sangue que interferem nas cifras do hemograma, mas que são correlacionados diretamente aos elementos figurados; serão discutidos nas seções correspondentes a eritrócitos, leucócitos e plaquetas. Em todos os casos em que o problema pré-analítico gerar defeito irreversível na amostra (itens 1 a 5, anteriores), a repetição do exame repetirá o erro. Nova coleta tornase indispensável. A diplomática função de pedir o retorno do(a) paciente para esse fim é uma tarefa diária em laboratório que coleta mais de mil hemogramas por dia. Há erros analíticos, decorrentes de mau funcionamento ou manipulação inadequada dos contadores eletrônicos e de interpretação incorreta dos resultados da máquina e dos achados da microscopia. Para notá-los, persiste a necessidade do alto grau de desconfiança, dos operadores aos técnicos-seniores, até a liberação dos resultados. Mesmo porque há erros inexplicáveis: a máquina fornece uma série de hemogramas impecáveis e, no meio deles, um com a série vermelha erroneamente elevada ou leucocitopenia espúria; repete-se, e tudo está normal. Os erros analíticos serão discutidos com as determinações hematimétricas especificamente afetadas. Além desses erros podem ocorrer trocas de material, erros na identificação, na transcrição, no processamento de dados, no fornecimento verbal, telefônico ou via internet dos resultados, etc. Não há uma solução geral para esse problema; sempre deverá haver uma previsão de erros (a humanidade é falível!) e consequente tolerância das partes envolvidas quando ocorrerem. Assim, qualquer resultado que suscite dúvidas na interpretação exige reconferência e/ou repetição do(s) exame(s). O autor recomenda uma linha telefônica de ligação gratuita, impressa nos resultados, com esta frase: dúvidas na interpretação ou inconformidades, consulte-nos pelo telefone (0800...). Quando um resultado duvidoso for proveniente de um laboratório com um passado que justifique confiança, o médico requisitante deve solicitar reconferência no mesmo laboratório, após contato direto com o patologista clínico responsável, para esclarecimento do ocorrido. Os pedidos de reconferência (repetição do exame) devem ser recebidos no laboratório com o maior respeito e, naturalmente, a preço zero. 1 O presente manual dedica várias páginas ao esclarecimento e à valorização dos histogramas eritroide e plaquetário. 2 Eritrócitos, hemácias e glóbulos vermelhos são sinônimos perfeitos. É racional preferir-se eritrócitos pela derivação grega coerente com leucócitos e demais nomes de células, e pelo uso consagrado de derivados, eritrocitose, eritrocitopenia, eritropoese e outros, impossíveis de derivar de hemácias. Glóbulo vermelho é uma tradução popular de eritrócito. 3 Publicada com autorização.

4 Há um livro com recomendações da SBPC/ML: Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial. Coleta e preparo da amostra biológica. Barueri: Manole; 2014 [capturado em 23 de jan 2015]. Disponível em: www.s bpc.org.br/upload/conteudo/livro_coleta_biologica2013.pdf. 5 Neologismo quanto ao significado, ainda fora dos dicionários, que está substituindo o termo importado butterfly. 6 “Distensão” é o termo apropriado para lâminas de sangue feitas com a técnica usual; reserve-se “esfregaço” para lâminas de Bacteriologia e outras, feitas com alça de platina ou swab. 7 Cortesia Sysmex/Laborsys, Laboratório da Santa Casa de Misericórdia (Porto Alegre) e Laboratório Fleury (São Paulo). 8 Barnes PW, et al. The International Consensus Group for hematological review: suggested criteria for action following CBC and WBC differential analyses. Lab Hematol. 2005;11(2):83-90. 9 O júbilo (vaidade?) do autor ao considerar que as cinco edições prévias deste Manual possam ter estimulado esse procedimento médico não se baseia em dados estatísticos fidedignos. 10 Comar SR, et al. Are the review criteria for automated complete blood counts of the International Society for Laboratory Hematology suitable for all hematology laboratories? Rev Bras Hematol e Hemoter, 2014;36(3):219-225. 11 Com agradecimentos à Dra. Barbara Bain (St. Mary’s Hospital) e ao Dr. Richard Silver (New York Hospital).

2 ERITROGRAMA INTRODUÇÃO Eritrograma é a seção do hemograma que avalia o eritrônio, termo eufônico para designar um “órgão difuso” que engloba os 25 a 30 trilhões de eritrócitos circulantes e o tecido eritroblástico da medula óssea que lhes dá origem. Como a função do eritrônio – transporte de oxigênio pulmão ⇒ tecidos – é exercida pelo conteúdo hemoglobínico da massa eritroide, sua patologia é essencialmente quantitativa. Assim, a insuficiência funcional do eritrônio – anemia – é definida como diminuição da hemoglobina sanguínea. Essa diminuição costuma acompanhar-se, mas não necessariamente, nem de modo paralelo, de eritrocitopenia, ou seja, baixa da contagem de eritrócitos. Excepcionalmente pode haver insuficiência funcional do eritrônio sem haver baixa da hemoglobina: a intoxicação pelo monóxido de carbono torna a hemoglobina incapaz de carrear oxigênio; a transfusão após uma hemorragia repõe a hemoglobina, mas esta tem a afinidade ao oxigênio transitoriamente afetada pela falta de 2-3-difosfoglicerato no sangue estocado e, somente horas depois, corrige a hipoxemia. O termo anemia não se aplica a esses casos. A expansão da massa eritroide/hemoglobínica – alteração para mais da parte circulante do eritrônio – denomina-se poliglobulia; costuma ser decorrente de aumento da eritropoese (parte fixa do eritrônio) mediado por produção excessiva, apropriada ou inapropriada, de eritropoetina. O termo policitemia era usado como sinônimo de

poliglobulia; a tendência atual, assumida pelo autor, é utilizá-lo apenas para designar especificamente a policitemia vera, neoplasia mieloproliferativa crônica em que há proliferação autônoma do tecido eritroide. Eritrocitose refere-se a aumento da contagem de eritrócitos, nem sempre acompanhado de aumento da massa eritroide/hemoglobínica. O eritrograma, portanto, destina-se a fazer notar, quantificar e ajudar no diagnóstico causal das anemias e poliglobulias. Todas as determinações do eritrograma feitas diretamente pelo contador eletrônico e os parâmetros indiretos, derivados por cálculo ou diagramação, serão discutidos a seguir. Alterações notadas nos dados numéricos do eritrograma fornecido pelo contador eletrônico exigem microscopia complementar. DETERMINAÇÕES DIRETAS E PARÂMETROS DERIVADOS Contagem de eritrócitos (E) Feita originalmente ao microscópio, em câmara de contagem (hemocitômetro), não passava de um valor aproximado do número real; melhorou muito nos anos 1950 e 1960 com os contadores com um canal de impedância e diluição externa do sangue, mas ainda assim manteve acurácia e reprodutibilidade insatisfatórias. Pelo fato de a contagem de eritrócitos não merecer confiança, o hematócrito foi valorizado e amplamente empregado para confirmá-la e/ou substituí-la. Em parte dos anos 1970 e, definitivamente, de 1980 em diante, passou a ser feita em contadores de múltiplos canais, com acurada diluição interna do sangue e com medida volumétrica simultânea e individual dos eritrócitos contados; tornou-se exata e reprodutível, assumiu sua posição no eritrograma e tornou o hematócrito desnecessário. Em quase todas as linhas de contadores eletrônicos, a contagem é feita pelo princípio Coulter (contagem de pulsos de impedância), em canal comum à contagem de plaquetas; há modelos que também contam pelo método óptico, e alguns, apenas pelo método óptico. Com equipamento adequadamente aferido, o coeficiente de variação de uma sequência de contagens em uma mesma amostra é inferior a 1,5%. A contagem naturalmente está sujeita a todos os erros pré-analíticos descritos no Capítulo 1, mas, na experiência diária, o mais comum é a crioaglutinação, falseando-a para menos e gerando um eritrograma incoerente. Outras causas de erro incluem: 1. Leucocitose acentuada: os leucócitos são também contados no canal de impedância, como se fossem eritrócitos. A diferença usual, de milhares para milhões, causa um aumento não significativo da ordem de 0,1%. No caso de leucocitoses leucêmicas, o aumento torna-se significativo, especialmente se o paciente for anêmico. Em instrumentos com dupla contagem (impedância e óptica), a diferença é notada e o software escolhe o resultado da contagem óptica. Contagens de instrumentos mais simples devem ser corrigidas por subtração. 2. Plaquetas gigantes: podem ultrapassar o limiar volumétrico de diferenciação e serem contadas como eritrócitos. Salvo em síndromes mieloproliferativas, com grande trombocitose, o erro não é significativo.

3. Microcitose extrema: micrócitos abaixo de 35 a 40 fL e fragmentos eritrocitários podem ficar aquém do limiar e serem identificados como plaquetas. A diferença da contagem para menos pode ser significativa. Valores de referência: estão em tabelas para vários grupos etários no Apêndice 1. Os valores aceitos para adultos (média ± 2,65 DP) referem-se tanto a populações brancas como a populações negras: E ( ) = 5,3 ± 0,6 M/µL

E ( ) = 4,7 ± 0,5 M/µL 1

Populações negras têm hemoglobina e hematócrito um pouco inferiores, mas, como o volume corpuscular médio (VCM) é também 2 a 3% menor, a diferença não se expressa na contagem de eritrócitos, que é quase a mesma. Residentes em áreas muito acima do nível do mar, pelo estímulo à síntese de eritropoetina causado pela baixa tensão de oxigênio, têm elevação da ordem de 0,15 a 0,25 M/µL por km de altitude. A contagem de eritrócitos guarda certa correlação inversa com o VCM, isto é, pessoas com eritrócitos pequenos têm contagem mais alta que pessoas com eritrócitos grandes (ver VCM). A diferença entre os sexos é de causa hormonal. Os andrógenos aumentam a sensibilidade do tecido eritroblástico à eritropoetina; a castração masculina causa anemia. Os estrógenos desestimulam a eritropoese; após a menopausa, há elevação da contagem a níveis quase masculinos. Outras variações da contagem de eritrócitos são discutidas com as da hemoglobina. A contagem de eritrócitos deve ser interpretada no contexto do eritrograma completo. Nunca usá-la como parâmetro de anemia. Como pode ser visto na Figura 2.1, há anemias com eritrocitose (a) e eritrocitopenias sem anemia (b); isso pode acontecer quando houver microcitose (a) ou macrocitose (b).

FIGURA 2.1 Eritrocitose com anemia em β-talassemia minor (a). Eritrocitopenia sem anemia em policitemia em tratamento com hidroxicarbamida (b).

DOSAGEM DE HEMOGLOBINA (Hgb) A dos s hemólise provocada e conversão da Hgb em cianometemoglobina ou laurilsulfato de hemoglobina, ambas de cor estável, em um canal do contador eletrônico que

compartilha com os leucócitos. A reprodutibilidade é muito boa, com coeficiente de variação inferior a 1,5%. As causas de erro mais comuns são: 1. Lipemia: o aumento da densidade óptica do plasma altera para mais a dosagem de hemoglobina. O erro é significativo: opalescência intensa pode aumentar o resultado em mais de 1 g/dL. Essa elevação espúria aumenta a níveis improváveis a concentração hemoglobínica corpuscular média, o que faz notar o erro, confirmado pela observação do plasma do sangue sedimentado ou centrifugado. A correção pode ser feita substituindo-se o plasma opalescente por igual volume de solução isotônica e repetindo-se a dosagem. Em eritrogramas normais (exceto por essa alteração e com lipemia confirmada), justifica-se considerar desnecessário esse trabalho extra, e “corrigir-se” o resultado da Hgb, diminuindo-o até que se obtenha uma concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM) igual à dos demais hemogramas, feitos no mesmo dia e na mesma máquina. 2. Alta contagem de leucócitos: também aumenta a densidade óptica do hemolisado. Contagens >100.000/µL, principalmente quando às expensas de células mieloides, podem aumentar a Hgb em mais de 1 g/dL. Como, nesses casos, a avaliação exata da série eritroide é sempre relevante, uma correção apropriada é necessária; para isso, o laboratório deve manter uma curva de calibração para Hgb, em espectrofotômetro a 540 µm de comprimento de onda; a amostra é diluída do modo apropriado à técnica, centrifugada (os leucócitos se depositam) e a Hgb dosada no sobrenadante. Como a técnica é pouco usada, a curva deve ser checada dosando-se a hemoglobina do sangue de outros hemogramas do dia. 3. Sujeira na parede da câmara de leitura do contador: nesse caso, nota-se a Hgb aumentada nos controles do dia e uma elevação da CHCM no controle de qualidade. A limpeza com detergente, como recomendada pelos fabricantes, corrige o problema. Valores de referência: os valores para hemoglobina adotados na 5ª edição deste manual foram atualizados para a presente edição. Os valores agora preconizados baseiam-se nos databases Scripp-Kaiser (San ​Diego, 1998-2002) e US National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES III). 2 Os valores são muito próximos aos que o autor obteve em levantamentos feitos nos anos 1990 no Laboratório Faillace, Porto Alegre, mas com uma modificação estatística: foi adotada média ±1,65 DP (desvios-padrões) para a definição dos limites de referência; com esse critério ficam fora do intervalo de referência 5% da população de dados no extremo inferior (no sentido de anemia) e 5% no extremo superior (no sentido de poliglobulia). Na escolha usual de intervalo, compreendido entre média ± 2 DP, há exclusão de um total de 5% dos dados, fracionados desigualmente nos extremos. Nas curvas de frequência (de distribuição apenas aproximadamente gaussiana) da dosagem de hemoglobina em populações, tanto gerais como de referência, a cauda esquerda da curva é sempre mais prolongada do que a da direita; isto é, anemia é mais frequente do que poliglobulia. Com esse critério (média ±1,65 DP) e essa origem de dados, os valores de referência para adultos brancos entre as idades de 20 e 60 anos ( ) e 20 e 50 anos ( ) são:

Hgb ( ) = 15,3 g/dL (13,7 a 16,8 g/dL)

Hgb ( ) = 13,6 g/dL (12,2 a 15,0 g/dL)

Em amostra da população negra norte-americana, com miscigenação impossível de avaliar, os valores de referência para adultos foram: Hgb ( ) = 14,6 g/dL (12,9 a 16,3 g/dL)

Hgb ( ) = 12,9 g/dL (11,5 a 14,3 g/dL)

A diferença racial deve-se principalmente à elevada incidência de α-talassemia (em ambos os sexos) e de carência de ferro (em mulheres); com expurgo dessas causas 3 , a diferença em relação à raça branca torna-se similar em ambos os sexos e cai para cerca de 0,34 g/dL, isto é, há uma diferença racial, mas bem menos significativa. Valores de referência para idosos, incluindo uma pesquisa recente do autor, estão no Capítulo 20. Valores para diversos grupos etários estão no Apêndice 1. A dosagem de Hgb é o dado básico do eritrograma: diz-se haver anemia quando a Hgb mostrar-se abaixo dos limites de referência para o sexo e o grupo etário do(a) paciente, considerando-se a diferença racial. No caso particular de paciente de quem se dispõe de resultados de hemogramas anteriores, o autor prefere uma interpretação pontual que considera mais condizente com a clínica: considerar como anemia uma Hgb que se mostre significativamente inferior às precedentes, documentadas por resultados de hemogramas e, por hipótese, similares, mesmo que ainda esteja dentro dos limites de referência populacionais. A recíproca também costuma ser verdadeira. Hgb e E não são necessariamente paralelos: quando os eritrócitos são maiores que o normal (macrocitose), a Hgb costuma ser desproporcionalmente alta em relação à contagem; quando menores (microcitose), ocorre o inverso, como já mostrado na Figura 2.1. Hematócrito (Hct) É o volume da massa eritroide de uma amostra de sangue, expresso em porcentagem ou fração decimal do volume desta. Na época em que a contagem de eritrócitos não era fidedigna, o Hct era usado como um substituto prático e econômico; preferia-se o microhematócrito, obtido centrifugando-se o sangue a 11.000 rpm em tubos capilares e lendo-se a altura da coluna de eritrócitos em régua apropriada. Com a exatidão da contagem e da medida do volume dos eritrócitos nos contadores atuais, a centrifugação do Hct tornou-se um trabalho redundante e saiu da rotina. A alta contagiosidade dos vírus HIV (disseminado na espécie humana a partir de 1982) e HCV (identificado em 1989) causou uma “epidemia de pânico” em relação ao contato com sangue humano. Técnicas laboratoriais que exigiam manipulação de sangue foram sendo progressivamente substituídas e/ou abolidas, muitas vezes com prejuízo diagnóstico (p. ex., a pesquisa de células LE). O excelente, simples e reprodutível microhematócrito, que seria ainda hoje útil como parâmetro externo na aferição das máquinas, deixou de ser usado principalmente por esse motivo: a quebra de tubos capilares com corte nos dedos do técnico, e a possível difusão na atmosfera circundante (“aerossol de

vírus”), nos cacos de vidro e na caçapa da centrífuga, no caso (frequente) de quebra de tubos na rotação, implica risco de contágio. Os contadores eletrônicos calculam um Hct nos eritrogramas como um parâmetro derivado, integrando o volume dos eritrócitos e multiplicando-o pelo número contado (Hct = VCM × E). Fornecê-lo no resultado é uma decisão política: satisfaz os médicos (habituados a vê-lo) e os fabricantes do equipamento (um parâmetro a mais fornecido pela máquina). Esse Hct calculado é ≅ 1 ponto percentual inferior ao que se obteria por centrifugação da mesma amostra: por melhor que seja a centrifugação do sangue, sempre fica plasma retido na coluna de eritrócitos, falseando o resultado para cima. O Hct convencional sempre foi muito reprodutível, mas sistematicamente inexato. A retenção de plasma é ainda maior quando há microcitose, hemoglobinas anormais (com eritrócitos rígidos e deformados) e poliglobulia. O hematócrito fornecido pelos contadores eletrônicos é apenas um valor calculado; não tem causas de erro próprias, só as das determinações que lhe deram origem (E e VCM). O Hct correlaciona-se melhor que a contagem de eritrócitos (que têm volume médio variável) com a viscosidade sanguínea e é a cifra mais usada, por tradição, para avaliar alterações volêmicas, motivo pelo qual persiste seu uso em hemoterapia; usa-se o Hct fornecido pelo contador eletrônico. Valores de referência: o Hct equivalente às contagens de eritrócitos e dosagens de Hgb, antes citadas como referência para adultos brancos, no pressuposto de VCM normal, são: Hct ( ) = 47 ± 7%

Hct ( ) = 42 ± 6%

Em negros, os valores de referência estão diminuídos na mesma proporção da hemoglobina. Ao contrário da contagem de eritrócitos, dentro do intervalo de referência ou próximo a ele, o Hct varia de modo paralelo à Hgb; só nas anemias causadas por defeito duradouro na síntese de Hgb (hipocrômicas) esta se torna desproporcionalmente baixa em relação ao Hct. Essa correlação voltará a ser discutida adiante com a CHCM. Correlação entre E, Hgb, Hct e volemia As três cifras hematimétricas discutidas, cujos valores de referência estão repetidos na Tabela 2.1, medem a concentração e a proporção em relação ao plasma dos componentes eritroides contidos na amostra examinada; não expressam ou refletem necessariamente os números e as quantidades totais no sistema vascular do paciente de quem foi coletada. Existindo, entretanto, mecanismos homeostáticos rápidos e eficientes para a manutenção estável da volemia, costuma haver uma correlação linear entre essas cifras relativas, in vitro, e suas contrapartidas absolutas, in vivo, isto é, as cifras do eritrograma como regra representam a massa eritroide/hemoglobínica circulante. TABELA 2.1 Valores de referência* (média ± 2 DP) do eritrograma em adultos ♂



Eritrócitos

5,3 ± 0,6

4,7 ± 0,6

M/µL

Hemoglobina

15,3 ± 1,6

13,6 ± 2,4

g/dL

Hematócrito

47,0 ± 7,0

42,0 ± 6,0

%

*

Adultos brancos; hemoglobina e hematócrito ≅ 2% inferiores em negros.

Há exceções, isto é, situações em que E, Hgb e Hct, embora tecnicamente exatos, não representam com fidelidade a massa eritro/hemoglobínica circulante: ■ Quando há aumento isolado da volemia plasmática in vivo, as cifras do eritrograma diminuem paralelamente, mas essa é uma pseudoanemia (falsa anemia), pois o que há é uma hemodiluição, não uma diminuição da massa eritro/hemoglobínica. O aumento da volemia plasmática é fisiológico na gravidez e nos atletas em treinamento intensivo; ocorre, também, na retenção de líquidos por insuficiência cardíaca ou renal, na esplenomegalia volumosa e logo após infusão intravenosa excessiva de líquidos oncoticamente ativos (ver Cap. 11, p. 242). ■ Quando há diminuição isolada da volemia plasmática in vivo, ocorre o fenômeno inverso – hemoconcentração –, expressando-se no eritrograma como uma pseudopoliglobulia ou mascarando uma anemia existente. Ocorre na desidratação por qualquer causa, como uso intensivo de diuréticos, queimaduras, perdas líquidas por diarreia ou sudorese intensa, ou edema nos membros inferiores e, por motivos não esclarecidos, nos obesos estressados. ■ Quando há diminuição harmônica, ainda não compensada, da volemia total, o paciente tem falta de eritrócitos e hemoglobina, mas, como falta plasma na mesma proporção, o eritrograma persiste inalterado. Isso acontece nas primeiras horas após hemorragia (ver Cap. 4,) porque ainda não houve hemodiluição pela restauração do volume plasmático. Nas primeiras semanas de vida extrauterina dos prematuros, há uma insuficiente resposta homeostática na preservação da volemia; o eritrograma nesse grupo etário não é representativo da massa eritroide in vivo (ver Cap. 19). Em raros casos de policitemia vera, a poliglobulia pode estar mascarada por aumento simultâneo e harmônico do volume plasmático: a massa eritro/hemoglobínica circulante está aumentada (até muito aumentada), e isso não se nota no eritrograma. Volume corpuscular médio (VCM) A medida do volume médio dos eritrócitos foi ideada e difundida por Maxwell Wintrobe ao criar o hematócrito em 1934, pela divisão deste pela contagem de eritrócitos (VCM = Hct ÷ E), e permitiu-lhe mostrar, numericamente, que há mesmo anemias caracterizadas por eritrócitos maiores e menores que o normal, como a observação microscópica sugeria. Isso foi possível pelo desempenho técnico do pessoal altamente qualificado do seu laboratório, fazendo, nos casos de anemia, contagens de eritrócitos ao microscópio em quadruplicata para diminuir o erro sistemático. A generalização do cálculo do VCM e de seu uso naquela época para classificar as anemias em micro, normo e macrocíticas, entretanto, fez-se sem atentar para a total falta de reprodutibilidade e exatidão das contagens quando feitas em série, por técnicos comuns, em laboratórios comuns.

Os contadores atuais contam e medem simultaneamente os eritrócitos um a um; os volumes corpusculares individuais são integrados, gerando um VCM notavelmente reprodutível. A exatidão (correspondência com a realidade) do VCM determinado por medidas de impedância, entretanto, é discutível: ■ Como não há lei física que converta pulsos de impedância em fentolitros, a conversão é necessariamente arbitrária, e os números não seriam exatamente os mesmos se fossem escolhidos outros parâmetros de conversão; mas, como há uniformidade e os valores de referência são obtidos pelo mesmo processo, isso não prejudica a interpretação. ■ A magnitude dos pulsos causados pelos eritrócitos, ao cruzarem o orifício do transducer, depende mais da área de suas secções transversais do que do volume de cada um. A aceleração do solvente no orifício causa um alongamento dos eritrócitos no sentido do fluxo; a rapidez e o grau dessa deformação dependem da viscosidade do meio interno das células, função direta da concentração de seu principal componente, a hemoglobina. Eritrócitos hipercrômicos têm viscosidade aumentada e alongam-se menos: o volume é medido acima do real. Em eritrócitos hipocrômicos, ocorre o inverso: pela baixa viscosidade, alongam-se mais e o volume é medido abaixo do real. Essa inexatidão dos contadores de impedância interfere pouco na interpretação do VCM, já que ocorre de modo sistemático, mas desvirtua a CHCM, que será discutida adiante. Contadores eletrônicos que utilizam métodos ópticos ou que usam solventes que provocam esfericidade isovolumétrica dos eritrócitos antes da medida fornecem um VCM mais exato; a reprodutibilidade, entretanto, é similar. O diâmetro, a espessura média e o volume decorrente (VCM) dos eritrócitos (Fig. 2.2 [a]) são iguais em homens e mulheres: VCM = 88-90 ± 7 fL em adultos brancos. Na infância há ampla variação; os valores de referência estão no Apêndice 1. Estatísticas que mostram VCM 3-4 fL menores em populações negras são incorretas, feitas sem expurgar a α-talassemia e a carência de ferro, ambas de alta prevalência; uma vez corrigidas, a diferença para menos do VCM torna-se ≅ 2 fL. O VCM correlaciona-se inversamente com a contagem de eritrócitos. Pessoas com VCM mais baixo que o usual costumam ter contagens mais altas, e vice-versa, como se vê nos números da Figura 2.2 (b), tomados de exames de 500 homens normais. Essa “gangorra”, que faz o Hct e a Hgb serem aproximadamente os mesmos nos três níveis exemplificados, sugere teleologicamente ser o VCM uma característica própria de cada pessoa e a contagem de eritrócitos uma variável, regulada pela eritropoetina, para manter a hemoglobina em nível ótimo à oxigenação tecidual. A hemoglobina seria o parâmetro homeostático central.

FIGURA 2.2 VCM: dimensões do eritrócito normal (a) (Cortesia Abbott Diagnostics); correlação entre VCM e contagem de eritrócitos (b).

As causas de erro mais comuns são: 1. Crioaglutinação: a medida de doublets e triplets causa resultados absurdos. 2. Conservação do sangue in vitro: em 40 amostras de sangue conservadas a 23oC e examinadas duas vezes, com 6 horas de intervalo, no laboratório do autor, em 2002, no Cell Dyn 4000, o VCM elevou-se em todos os casos, e a média subiu de 89,4 para 90,3 fL. Em repetição do experimento no Laboratório Weinmann, em 2008, com o Sysmex XE2100, o VCM elevou-se, nas mesmas 6 horas de intervalo, em 101 de 102 amostras; a média subiu de 88,9 para 91,4 fL. Ambos os experimentos demonstram elevação do VCM com a conservação do sangue em tubo com EDTA, nas condições usuais do laboratório; os aumentos comprovados (+0,9 e +2,5 fL) não são clinicamente significativos, mas justificam pequenas variações notadas em exames subsequentes do mesmo paciente. Com dados empíricos, sem comprovação experimental, o autor crê que conservação mais longa à temperatura ambiente aumenta-o ainda mais, e que a conservação a 5°C retarda a elevação. 3. Excesso de EDTA em relação ao volume coletado: causa desidratação dos eritrócitos e baixa significativa do VCM. Os solventes usados nos contadores atuais reidratam os eritrócitos, ao menos parcialmente, diminuindo o erro na determinação. 4. Hiperosmolaridade do sangue: hipernatremia e hiponatremia, quando acentuadas, causam respectivamente macrocitose e microcitose espúrias, com variações do VCM que podem superar ±5 fL. Como a CHCM é influenciada no sentido inverso, surge uma macrocitose-hipocrômica ou uma microcitose-hipercrômica, ambas sugestivas dessa causa de erro. A hiperglicemia diabética, mesmo em situações extremas, interfere pouco no VCM. Já a hiperglicemia espúria, oriunda da coleta de sangue durante infusão intravenosa de glicose, causa uma macrocitose hipocrômica tão óbvia que a causa é imediatamente suspeitada. Quando o VCM é > 98 fL, diz-se haver macrocitose; quando < 82 fL (em adultos), microcitose. É claro que, se um paciente tiver um VCM ≅ 89 fL em hemogramas anteriores, um valor atual de 97 fL ou um de 83 fL deverão ser interpretados respectivamente como macro ou microcitose nesse caso particular. Apesar de suas limitações técnicas, o VCM renasceu com a eletrônica; microcitose e macrocitose

assumiram, agora de verdade, a posição de parâmetros mais importantes para o diagnóstico diferencial laboratorial das anemias. Para chamar a atenção do médico requisitante, que nem sempre atenta para todas as cifras do resultado, é de boa praxe fazer o computador imprimir automaticamente macrocitose ou microcitose após o valor do VCM, se estiver acima ou abaixo dos limites de referência; em Pediatria, os limites de referência mais amplos e idade-dependentes dificultam essa praxe. Os contadores da linha Advia introduziram um conceito diferente e original de macro e microcitose; será discutido, a seguir, com a amplitude de distribuição (volumétrica) dos eritrócitos (RDW). Com a medida sistemática dos eritrócitos, um a um, o VCM deixou de ser um quociente (Hct ÷ E); tornou-se a média de uma distribuição de valores que pode gerar uma curva de frequência (histograma), com seu coeficiente de variação – uma medida da dispersão – designado RDW. Histograma e RDW Esses subprodutos da medida eletrônica individual do volume dos eritrócitos entraram no eritrograma para ficar. Tornaram-se indispensáveis na avaliação da heterogeneidade volumétrica dentro das populações eritroides, com definida utilidade clínica. O computador do instrumento recebe as medidas individuais dos eritrócitos e plota-as em eixos cartesianos, com o volume em fentolitros na abscissa e a frequência respectiva na ordenada. A curva, denominada histograma (do volume eritroide), é elucidativa das características da população examinada; nos sangues normais, é aproximadamente gaussiana (normal) e de abertura estreita. O VCM é a média aritmética dos valores (que nas curvas gaussianas é igual à moda e à mediana) e pode ser obtido da curva, se desejado, baixando-se perpendicular do pico e lendo-se o valor na abscissa. Quando o histograma é assimétrico (não gaussiano), a perpendicular do pico mede a moda (volume corpuscular mais frequente na população), nesse caso, diferente da média (VCM). Quando a curva situa-se mais à esquerda ou à direita, na abscissa, denota micro ou macrocitose respectivamente, como nos casos de severa anemia ferropênica (com VCM = 47,4 fL) e de anemia perniciosa (com VCM = 122 fL), vistos na Figura 2.3 (a). Esse posicionamento de curvas representativas de populações de distribuição aproximadamente gaussiana, como as da figura, não tem particular importância na interpretação: o simples VCM é suficiente para mostrar a micro e a macrocitose. Talvez, por essa razão, várias linhas de contadores eletrônicos nem anotem os valores em fentolitros na abscissa. O autor obteve da Abbott o intervalo em fentolitros dos canais de medição do volume corpuscular e acrescentou-o na abscissa, em vermelho, nas figuras de vários histogramas da linha Cell Dyn neste livro.

FIGURA 2.3 Histogramas Cell Dyn com microcitose em anemia ferropênica e macrocitose em anemia perniciosa (a); histogramas ilustrativos com RDW normal à esquerda e RDW muito aumentado à direita (b).

Quando as curvas têm base mais ampla que a usual, como na curva à direita da Figura 2.3 (b), a abertura excessiva dos ramos exprime exagero na variação de volume dos eritrócitos em torno da média. O computador da máquina mede o coeficiente de variação (CV) da curva e fornece-o nos resultados, com a denominação de RDW (Red blood cell Distribution Width = amplitude de distribuição dos eritrócitos). Nos aparelhos mais usados, o RDW “normal” = 11,5 a 14,5. Valores mais baixos não costumam ser vistos; indicariam população eritroide mais homogênea que a usual, um excesso de normalidade. Valores mais altos indicam excessiva heterogeneidade volumétrica da população; são a expressão numérica do que os hematologistas, ao notá-la ao microscópio, chamam de anisocitose. O RDW supera amplamente o olho humano, ou seja, a anisocitose visual, ao microscópio, é subjetiva e sempre foi de duvidosa valorização; ainda mais porque é notada pela variação de diâmetro dos eritrócitos, não do volume, pois este não pode ser

avaliado em imagens bidimensionais. Agora, como RDW, a anisocitose é um parâmetro numérico objetivo, matemática e estatisticamente correto e de utilidade clínica. Uma população eritroide excessivamente heterogênea (= anisocítica), isto é, com RDW aumentado, é uma população patológica. Para chamar a atenção do médico requisitante, facilitando-lhe a interpretação, é de boa praxe fazer o computador imprimir automaticamente anisocitose após o valor do RDW se estiver aumentado. Dizer que populações normais de eritrócitos têm volume corpuscular homogêneo, isto é, um volume que varia pouco em torno da média, é uma afirmativa simplista e matematicamente criticável. Tomemos como exemplo um “eritrograma normal”, com VCM = 90 fL e RDW (CV) = 12. O desvio-padrão (DP) da curva de frequência pode ser calculado pela fórmula DP = CV × VCM ÷ 100 = 12 × 90 ÷ 100 = 10,8 fL ⇒ 2DP = 21,6 fL

Como o intervalo de referência (média ± 2 DP) inclui 95,5% da amostragem, isso significa que 95,5 dos eritrócitos estarão entre 68,4 fL (VCM – 2DP) e 111,6 fL (VCM + 2DP)

e haverá 4,5% de eritrócitos divididos entre micrócitos < 68,4 fL e macrócitos > 111,6 fL! E o olho humano ao microscópio não vê anisocitose nessa população normal, que contém micrócitos abaixo e macrócitos acima desses limites distantes, tão difíceis de admitir quanto absolutamente verdadeiros. Baseando-se em cálculos como o exemplificado, a linha Advia de contadores eletrônicos, há décadas, optou por definir microcitose e macrocitose não pela média (VCM), mas pelo aumento da porcentagem de eritrócitos fora dos extremos vistos na Figura 2.4(a). A Abbott copiou o procedimento e passou a fornecer nos resultados do modelo Sapphire os parâmetros %MIC e %MAC com os mesmos limiares arbitrados pela Advia; acrescentou, também, %HPO e %HPR para critérios similares em relação à concentração hemoglobínica, discutidos adiante (Fig. 2.4 [b]).

FIGURA 2.4 Conceito percentual de micro e macrocitose (a); resultado de eritrograma do Cell Dyn Sapphire, com % de macro e micrócitos e % de eritrócitos hipo e hipercrômicos (b).

A observação visual do histograma é enganosa na estimativa do RDW. A matemática do computador é indispensável. Vejam-se novamente os histogramas da Figura 2.3 (a); a

curva da esquerda é muito mais fechada que a da direita; no entanto, tem RDW maior (23,1 > 16,4). Para compreender essa aparente incongruência, basta lembrar que o RDW é o coeficiente de variação, dado estatístico que mede a variação, mas que não é expresso em unidades métricas (fentolitros), e sim como porcentagem da média, e a média é o VCM, extremamente baixo no eritrograma da esquerda (VCM = 47,4 fL) e muito alto no da direita (VCM = 122,0 fL). O desvio-padrão (DP), maneira alternativa de medida estatística da variação, sendo expresso na unidade dos dados (fentolitros), é muito maior na curva da direita. A preferência pelo uso do CV em vez do DP é sensata: uma mesma variação em fL em torno da média, por exemplo, ±15 fL, corresponderia a 24% de 64,7 fL e a 15% de 100,3 fL. Uma variação de ±1 cm no diâmetro de bolas de tênis (∅ ≅ 6 cm) torna-as inadequadas ao uso; a mesma variação no diâmetro de bolas de futebol (∅ ≅ 22 cm) pode nem ser notada. A linha Sysmex fornece também um “RDW SD”. A designação “SD” é imprópria, pois o dado fornecido não é o desvio-padrão (Standard Deviation) matemático/estatístico. É um assemelhado arbitrário: a abertura do histograma, medida em fentolitros, a 20% da altura do pico. O RDW é particularmente útil no diagnóstico diferencial das anemias por deficiente síntese da hemoglobina. Com falta de conteúdo, os eritrócitos tornam-se microcíticos. Quando não há reservas de ferro, a síntese de hemoglobina nos eritroblastos depende do ferro plasmático, em grande parte oriundo da variável absorção intestinal. Há momentos de suficiência fugaz, que geram eritrócitos maiores e melhor hemoglobinizados, e momentos de falta, que originam micrócitos descorados. A anisocitose é precoce: a Figura 2.5 (a) mostra o aumento do RDW correlacionado com o nível de hemoglobina em 100 eritrogramas, no Laboratório Weinmann em 2008, de pacientes femininas, de 20 a 50 anos, com falta de reservas de ferro (ferritina < 20 ng/mL). Em anemias ferropênicas mais severas, está muito aumentado, como já foi visto no eritrograma da Figura 2.3 (a). Por outro lado, na β-talassemia minor, o defeito genético da síntese da globina é igual em todos os eritrócitos, de modo que há uma população microcítica homogênea, com baixo RDW (isocítica 4 em oposição a anisocítica). Na anemia das doenças crônicas (ADC), em que pode haver microcitose, e na anemia da insuficiência renal crônica, o RDW também não costuma estar aumentado. A Figura 2.5 (b) ilustra comparação, feita no laboratório do autor, em 2002, do RDW em 32 casos de anemia ferropênica.

FIGURA 2.5 RDW (Sysmex) correlacionado com o nível de hemoglobina em 100 pacientes ferropênicas (a). RDW (Cell Dyn) em 61 casos de anemia (b).

Nas anemias sideroblásticas, em que há um defeito na síntese do heme que varia de eritrócito a eritrócito, o RDW é extremamente elevado (anisocitose extrema), e o histograma é virtualmente patognomônico (ver Fig. 2.7 [a]). O histograma de volume dos eritrócitos, além de gerar o RDW, expressou graficamente um fato já notado pelo olho humano ao microscópio. Normalmente há uma população eritroide, e o volume dos eritrócitos varia de modo simétrico em torno da média, mas há pacientes com duas populações, raramente múltiplas populações, cada uma com uma curva de frequência própria, que podem estar claramente separadas em picos no histograma, ou mescladas em um conjunto que dificulta a individualização. A Figura 2.6 mostra histogramas de um caso de anemia ferropênica: antes do tratamento (a), a curva é gaussiana na zona de microcitose; após dois meses de tratamento (b), a curva torna-se assimétrica, pela aparição da nova população, normocítica. A superposição pelo computador das duas curvas (c) mostra, com a impecável reprodutibilidade dos histogramas Coulter, a composição dupla da curva atual; a deformação do ramo esquerdo corresponde aos eritrócitos microcíticos remanescentes; do direito, aos novos, normocíticos. Como os laboratórios não costumam fornecer o histograma nos resultados, cabe ao laboratorista anotar: dupla população: normo e microcítica; é racional citar antes a população predominante (de maior pico).

FIGURA 2.6 Histogramas (Coulter) de anemia ferropênica antes (a) e após (b) tratamento; os mesmos histogramas superpostos pelo computador (c). Histogramas de anemia ferropênica em tratamento: a mesma amostra no Coulter (d) e no Cell Dyn (e).

A Figura 2.6 também mostra eritrogramas feitos no Coulter (d) e no Cell Dyn (e), de uma mesma amostra de sangue de paciente com anemia ferropênica em tratamento há 35 dias. Note-se a notável semelhança das curvas em corcovas de camelo, com separação clara entre a população microcítica remanescente e a nova, normocítica. Baixando-se perpendiculares dos picos, pode-se estimar o VCM de cada população: aproximadamente 60 fL (picos da esquerda) e 90 fL (picos da direita). Ambos os instrumentos, entretanto, fornecem um só VCM (≅ 74 fL) e um só RDW (≅ 33). Tanto um como o outro são números sem significação: média e coeficiente de variação são medidas de tendência central de uma curva gaussiana; havendo duas, medidas conjuntas carecem de representatividade e sentido. Os instrumentos, cujos computadores identificam a existência de duas populações, pois anotam dimorphic red cell population, deveriam fornecer VCM e RDW de cada uma delas em separado, não do conjunto!

O software dos modelos mais novos do Cell Dyn mantém essa monstruosidade matemática até a data desta edição, apesar do autor ter expressado pessoalmente sua inconformidade à consultoria médica da Abbott, em Santa Clara, Califórnia, há mais de dez anos. O autor desconhece o procedimento atual da Coulter a respeito. A Sysmex corrigiu, há anos, esse mesmo erro, mas de modo simplista: em casos com dupla população, havendo óbvia escavação separando os picos, não libera RDW. Como são muito raros os laboratórios no Brasil que fornecem os histogramas nos resultados, é absolutamente indispensável que todos os hemogramas com RDW aumentado tenham o histograma examinado por técnico-sênior e a interpretação anotada no resultado. Com um RDW > 18, é fundamental diferenciar entre uma população muito anisocítica, como a dos resultados de anemia sideroblástica da Figura 2.7 (a), e de duas populações distintas, como a da anemia ferropênica em tratamento na Figura 2.7 (b), e anotar a conclusão no resultado: uma população anisocítica, em (a), e dupla população, normo e microcítica, em (b). A imagem da tela do Sysmex na Figura 2.7 (c) mostra uma curiosa combinação de ampla população um pouco microcítica com população menor, um pouco macrocítica. A graduação em fL da abscissa, não fornecida pela máquina, foi acrescentada pelo autor.

FIGURA 2.7 Histogramas Coulter com RDW extremamente elevados: uma população anisocítica em (a) e dupla população em (b). Em (c), histograma da tela do Sysmex com dupla população (micro e macrocítica).

Hemoglobina corpuscular média (HCM) A quantidade média de hemoglobina por eritrócito é calculada pelo computador da máquina, dividindo-se a dosagem de hemoglobina pelo número de eritrócitos presentes em um mesmo volume de sangue, com a apropriada correção de unidades: HCM = Hgb ÷ E

Tomando-se, como exemplo, os valores médios de referência do eritrograma masculino, tem-se: HCM = 15,3 g/dL ÷ 5,3 M/µL = 28,9 pg

A HCM é uma cifra exata, pois é derivada da dosagem de hemoglobina e da contagem de eritrócitos, ambas com coeficiente de variação abaixo de 1,5%. Em ampla faixa é quase paralela ao VCM, isto é, eritrócitos grandes têm muita Hgb, eritrócitos pequenos, pouca. O software das linhas Coulter, Cell Dyn e Sysmex usa a HCM como parâmetro de definição para hipocromia (HCM < 24 pg) e hipercromia (HCM > 33 pg), o que, na opinião do autor, é um erro: hipocromia e hipercromia devem ser definidas como baixa ou aumento da concentração de Hgb nos eritrócitos, não da quantidade de Hgb, pois esta depende principalmente do volume dos eritrócitos. A linha Advia opta por uma variante, introduzindo um conceito de aumento dos extremos (ver CHCM, a seguir), similar ao que utiliza para macro e microcitose, já descrito com o RDW. CONCENTRAÇÃO HEMOGLOBÍNICA CORPUSCULAR MÉDIA (CHCM) A concentração média (massa/volume) da hemoglobina nos eritrócitos é calculada pelo quociente da média da quantidade de hemoglobina (HCM) pelo volume médio dos componentes da população (VCM): CHCM = HCM ÷ VCM Como HCM = Hgb ÷ E e VCM = Hct ÷ E ⇒ CHCM = Hgb ÷ Hct

significando que a CHCM é, igualmente, o quociente da hemoglobina da amostra dividido pelo volume eritroide da amostra (obtido pelo Hct). Se considerarmos, para exemplificar, uma amostra de 1 dL de sangue de um homem adulto, com cifras iguais aos valores médios de referência para o eritrograma, a CHCM será CHCM = Hgb 15,3 g/dL ÷ volume eritroide (Hct) 0,47 dL = 32,6 g/dL

A CHCM obtida em contadores de impedância e assim calculada é um índice hematimétrico de interpretação limitada. Ela própria causa um erro significativo em sua

determinação: quando alta, há aumento da viscosidade do meio interno dos eritrócitos, o que eleva de modo espúrio a leitura do VCM, que é seu denominador, e assim mascara a elevação; quando baixa, ocorre o contrário. O fato de biologicamente variar pouco, e ainda tendenciar sua própria determinação no sentido da normalidade, torna-a singularmente constante, entre 31 e 36 g/dL (a expressão em porcentagem é mais usada: 31 a 36%). Nos contadores Coulter, está sempre entre 32 e 34%; na linha Cell Dyn, entre 32 e 36%. Essa constância é usada no laboratório como controle das máquinas: CHCM fora da faixa usual exige confirmação das cifras que lhe deram origem (E, Hgb, VCM). As causas mais comuns de resultado espúrio são: presença de crioaglutininas, hemólise e os erros descritos na dosagem de Hgb e na determinação do VCM. O aumento real da CHCM, entre 36 e 39% (hipercromia), costuma ocorrer na esferocitose, pode ocorrer no coma hiperosmolar, por desidratação dos eritrócitos e, às vezes, em hemoglobinopatias; fora dessas eventualidades, CHCM > 37% deve ser reconferida, porque esse é o limite da saturação média dos eritrócitos fora dos exemplos acima. A medida individual da concentração hemoglobínica, feita por laser scatter nos contadores Advia e Cell Dyn, discutida adiante, mostra que há grande variação nos eritrócitos dentro das populações normais, com uma pequena porcentagem com concentrações muito elevadas, mas a média obtida dessas determinações é virtualmente idêntica à CHCM (quociente) das demais linhas de contadores. Quando há deficiência de ferro à eritropoese, com anemização progressiva, a CHCM diminui lentamente, mas de modo linear e proporcional à queda da hemoglobina (ver Fig. 6.1). Cai para aproximadamente 31 a 32% com a Hgb em 10 g/dL e só cai para menos de 30% com Hgb abaixo de 9 g/dL. A diminuição abaixo de 31%, isto é, a insaturação hemoglobínica dos eritrócitos, é o que deve ser denominado hipocromia. Só em anemias ferropênicas muito severas, com Hgb abaixo de 5 g/dL, a CHCM diminui abaixo de 25%. A essa altura da evolução da anemia ferropênica, entretanto, o VCM já estará muito diminuído, e já esteve diminuído por semanas ou meses, de modo que interpretar a anemia como microcítica é sempre mais precoce e vantajoso do que interpretá-la como hipocrômica. Noventa e cinco por cento dos hemogramas com baixa CHCM são de anemia ferropênica, mas só em 20% dos casos de anemia ferropênica a CHCM está aquém dos limites de referência. Para chamar a atenção do médico requisitante e facilitar-lhe a interpretação, o autor recomenda fazer o computador imprimir automaticamente hipocromia ou hipercromia nos resultados após o valor da CHCM, se ela estiver abaixo de 31% ou acima de 36%, respectivamente. Os contadores da linha Advia (Siemens), desde seus primeiros modelos nos anos 1980, além de fornecerem a CHCM convencional (Hgb ÷ Hct), fazem uma medida direta por laser scatter da concentração hemoglobínica dos eritrócitos, um a um, ao contá-los e medi-los, e fornecem-na sistematicamente nos resultados. O modelo Sapphire da Abbott e a linha XE da Sysmex assumiram recentemente um procedimento similar. A integração permite a determinação da média das concentrações hemoglobínicas dos eritrócitos (cellular hemoglobin concentration mean). 5 A CHCM usual é apenas um quociente (massa hemoglobínica média ÷ volume médio), mas a média das concentrações hemoglobínicas dos eritrócitos (CHCM Advia) origina-se de uma distribuição de valores,

que a máquina apresenta como uma curva de frequência (histograma) e da qual fornece um desvio-padrão (hemoglobin distribution width = HDW). Os instrumentos Advia tratam estatisticamente a concentração hemoglobínica dos eritrócitos exatamente como todas as máquinas tratam estatisticamente o volume dos eritrócitos. A concentração média a partir dos valores individuais é obviamente muito próxima à CHCM convencional. O Cell Dyn Sapphire nem a fornece por julgá-la redundante, mas oferece o histograma e a variação (HDW), esta expressa como coeficiente de variação, não como desvio-padrão. A medida individual e a variação, entretanto, mostraram inesperada heterogeneidade da concentração hemoglobínica (HC = hemoglobin concentration) na população eritroide: embora a concentração hemoglobínica média costume ser muito próxima a 32 a 33%, há, na população normal, uma porcentagem pequena mas significativa de eritrócitos com HC acima de 41% e abaixo de 28%. Essa variação foi aproveitada, da mesma forma do que foi feito em relação à variação do volume corpuscular, para definir hiper e hipocromia pelo aumento da porcentagem desses eritrócitos nos extremos da curva de frequência (Fig. 2.8).

FIGURA 2.8 Conceito percentual de hiper e hipocromia (a); histograma e scatterplot de concentração hemoglobínica no Cell Dyn Sapphire em caso com hipocromia: %HPO = 12,3 (b).

A heterogeneidade excessiva da concentração hemoglobínica de uma população eritroide (isto é, HDW aumentado) deveria designar-se anisocromia, mas o termo já era consagrado para designar a excessiva desigualdade de cor entre os eritrócitos quando vistos à microscopia de distensões coradas; nesse conceito antigo, a anisocromia não depende só de aumento da HDW, mas também da anisocitose, pois a cor é mais intensa em macrócitos mais espessos do que em micrócitos mais delgados. Ambos os conceitos têm sentido, mas o conceito de cor à microscopia é consagrado pelo uso. Populações com concentração hemoglobínica anormalmente heterogênea (HDW aumentado) são vistas nas hemoglobinopatias; nas síndromes falcêmicas, o parâmetro %HIPER identifica com fidelidade os eritrócitos irreversivelmente afoiçados, que têm

concentração hemoglobínica muito alta. O histograma da concentração hemoglobínica identifica a população normocrômica que substitui a hipocrômica no tratamento da anemia ferropênica: mostra os dois picos populacionais, normocrômico e hipocrômico, da mesma forma que o histograma do volume eritroide distingue picos populacionais normocítico e microcítico. Identifica, também, uma cauda hipercrômica na esferocitose, mesmo quando o número de esferócitos é baixo e não chega a aumentar significativamente a CHCM. Tanto o histograma de volume eritroide como o de concentração hemoglobínica do Advia são nítidos, mas carecem de dados numéricos na abscissa. Em compensação, o software da máquina emite um notável scattergram (RBC V/HC) com o volume corpuscular na ordenada e a concentração hemoglobínica na abscissa, permitindo perfeita identificação visual de ambos a um só tempo – em um só gráfico – na população eritroide; os dados de cada área são quantificados e transcritos em uma tabela numérica auxiliar (RBC Matrix), cujas colunas são somadas e expressas em porcentagem na tabela RBC. A Figura 2.9 mostra um exemplo do conjunto em um hemograma Advia; legendas e números esclarecedores foram acrescentados, em vermelho, pelo autor.

FIGURA 2.9 Histogramas e tabelas no eritrograma do Advia 120: scattergram RBC V/HC e respectiva quantificação na tabela Matrix e na tabela RBC.

Contagem de reticulócitos A eritropoese é um processo finamente regulado pela influência de interleuquinas e de fatores de crescimento, que permite às células primitivas, indiferenciadas, comprometerem-se no sentido eritroblástico e, sob influência da eritropoetina (Epo), sofrerem ao menos quatro mitoses, excluírem o núcleo e passarem ao sangue periférico como eritrócitos, destinados a uma sobrevida aproximada de 120 dias. Após a perda do núcleo, a síntese de proteínas nas organelas persiste por mais 40 horas de maturação intramedular e mais algumas já no sangue circulante; entre 20 e 30% da hemoglobina são

sintetizados nesse espaço de tempo. O RNA ribossômico, entretanto, não é mais sintetizado e sofre progressivo catabolismo nesse período e por mais um prazo similar, no sangue periférico, até o esgotamento. A desaparição catabólica do RNA corresponde cronologicamente à perda dos receptores celulares de transferrina. Esse RNA residual, com os corantes usuais, atribui aos eritrócitos recém-saídos da medula uma coloração acinzentada ou arroxeada – policromatocitose –, nem sempre fácil de ser notada ao microscópio. A coloração com azure B (também dito azure II), ou azulbrilhante-de-cresil, precipita os ribossomos com RNA em grânulos, que se encadeiam e formam um retículo de fácil observação, visto na Figura 2.10 (a). Os eritrócitos novos, assim corados, são ditos reticulócitos. Os reticulócitos mais jovens mostram à microscopia um citoplasma irregular, com ondulações, devido ao contínuo movimento interno que mantêm nessa fase. O aspecto é pictórico, principalmente à microscopia eletrônica, como se vê na Figura 2.10 (b).

FIGURA 2.10 Em (a): reticulócitos corados com novo-azul-de-metileno (Aquarela, cortesia Abbott Diagnostics); em (b): reticulócitos jovens à microscopia eletrônica 6 (M. Bessis: Corpuscules, Springer International).

O número de reticulócitos era obtido pela determinação da porcentagem destes em relação aos eritrócitos, à microscopia do sangue corado com os corantes supracitados, com cálculo de um valor absoluto (por microlitro de sangue) pela aplicação da porcentagem à contagem de eritrócitos feita simultaneamente. O método sempre foi tão requisitado quanto inexato e estatisticamente inválido. Mesmo contagens de reticulócitos feitas em condições ideais, consumindo um tempo precioso de técnico experiente, acompanhavam-se de um coeficiente de variação tão elevado a ponto de impossibilitar conclusões numéricas válidas. Essas contagens tradicionais serviam apenas para dar uma imprecisa ideia numérica a casos de reticulocitoses óbvias à simples observação qualitativa. O advento das contagens eletrônicas, inicialmente corando-se os reticulócitos por método manual e contando-os por laser scatter no contador e, atualmente, marcando o RNA com fluoresceína e contando as células fluorescentes, foi um progresso notável. Essa última tecnologia é uma inovação cara, mas que veio para ficar: os resultados são números satisfatoriamente reprodutíveis e exatos. A utilização clínica é óbvia.

O autor instituiu a contagem automatizada de reticulócitos no laboratório em 2003 e definiu valores de referência para o Cell Dyn 4000. O aparelho lê a fluorescência em aproximadamente 60 mil células, em uma alíquota retirada da suspensão destinada à contagem de eritrócitos, tratada com uma fluoresceína própria para o RNA (CD4K530®). Os pulsos são amplificados, filtrados, digitalizados e editados, para excluir interferências de plaquetas, leucócitos e eritroblastos, mas o software não elimina a interferência de hematozoários e corpos de Howell-Jolly, que, quando presentes, falseiam a contagem para mais. Acionado por um comando no teclado, o procedimento é automático e prolonga em apenas 30 segundos a sequência de operações do hemograma. A linha Cell Dyn atual mantém a mesma tecnologia. A Sysmex Roche utiliza fluorescência com polimetina, a Advia Siemens, fluorescência com oxazina 750, e a Beckman Coulter mantém a coloração com novo azul de metileno, agora automatizada. Os instrumentos fornecem a contagem de reticulócitos em porcentagem relativa aos eritrócitos e em número absoluto por µL de sangue. No laboratório do autor, foram feitas contagens em duplicata em 40 amostras de sangue conservadas a ≅ 20ºC, com intervalo de 6 horas; houve mínima diminuição da contagem em 70% das amostras e leve aumento nas restantes. A média decaiu de 69.100 para 66.600/µL. As diferenças não são relevantes, mas justificam a recomendação de fazer-se a contagem sem grande retardo em relação à coleta ou manter-se o sangue refrigerado até o processamento. Valores de referência arredondados, obtidos no laboratório do autor a partir do exame de 172 amostras de sangue de referência (101 , 71 ), que não mostraram diferença entre os sexos, foram os seguintes: Média

Limites (± 2 DP)

Reticulócitos % = 1,43 Reticulócitos /µL = 65.000

(0,5 a 2,3) (25.000 a 100.000)

Os valores de referência obtidos são muito aproximados aos da literatura, mesmo quando advindos de outras linhas de contadores eletrônicos. A contagem de reticulócitos em valor absoluto (reticulócitos/µL de sangue), é a que deve ser considerada e interpretada. Pensar em reticulócitos como porcentagem induz ao óbvio erro de interpretar como reticulocitose (= aumento do número de reticulócitos) um caso em que forem, por exemplo, 5% em uma contagem de eritrócitos de 1 milhão/µL; o número absoluto, nesse caso, será 50.000/µL, isto é, não haverá reticulocitose apesar da alta porcentagem. Por parecer razoável que o número absoluto de reticulócitos guarde relação com o número de eritrócitos, isto é, quanto mais eritrócitos a renovar, mais reticulócitos, foi feita uma comparação nos 172 casos da estatística; a contagem de eritrócitos, estratificada de 500.000 em 500.000, não mostrou correlação com as médias respectivas da contagem de reticulócitos, mas o número de casos foi pequeno para essa apreciação ter valor estatístico. A sensibilidade da contagem de reticulócitos a pequenas perdas sanguíneas foi testada duas vezes:

■ Contagens feitas no primeiro dia da menstruação e dez dias depois, em 10 voluntárias sem história de hipermenorreia, não mostraram variação significativa. A perda menstrual usual, inferior a 60 mL, é insignificante para causar regeneração. ■ Contagens feitas no ato da doação e oito dias após, em 8 doadores de sangue, mostraram elevação da contagem em 7 e pequena baixa em 1. A média elevou-se de reticulócitos = 54.538/µL para reticulócitos = 82.150/µL: aumento de 50,6%, com duas contagens acima de 100.000/µL. Conclui-se que a perda de cerca de 450 mL de sangue causa aumento significativo do número de reticulócitos, mas, dados os amplos limites de referência, a elevação só pode ser notada se o número prévio for conhecido, o que limita a utilidade do método. Por outro lado, dada a simplicidade de contar-se reticulócitos junto com o hemograma, deve-se fazê-lo sempre que houver suspeita de perda sanguínea recente, como melena não notada. O valor percentual, inapropriado para a interpretação, presta-se, entretanto, para calcular a duração do RNA evidenciado pela fluorescência; estimando-se uma sobrevida eritrocitária de 120 dias, com 1,43% (média de referência) de reticulócitos, o RNA dura 41,2 horas (= 1,73 dias), da entrada do reticulócito no sangue ao esgotamento do RNA pelo catabolismo. O dado só é válido para o contador (Cell Dyn 4000) utilizado pelo autor; em outros contadores, a sensibilidade de identificação pode ser diferente, e a duração, um pouco maior ou menor. O número absoluto de reticulócitos, isto é, de eritrócitos nessas primeiras horas de circulação, é uma medida da eritropoese. Quando há anemia ou hipoxemia, estimulando a síntese de Epo, esta acelera a proliferação e a maturação eritroblásticas e há maior liberação de reticulócitos para a periferia. A reticulocitose mede esse aumento, mas costuma fazê-lo de modo exagerado. Nessas condições de eritropoese estimulada (stress erythropoiesis), o número de horas de maturação intramedular encurta-se, os reticulócitos são liberados prematuramente, maiores e mais carregados de RNA. O catabolismo na periferia desses stress reticulocytes alonga-se proporcionalmente, isto é, o retículo notado pela máquina nos reticulócitos periféricos dura mais do que as 41,2 horas usuais, e a contagem aumenta também por esse fator, não só pelo aumento da produção. Esse desvio medula ⇒ sangue da cronologia da maturação superpõe um aumento não representativo ao aumento real da eritropoese. Uma contagem de reticulócitos = 650.000/µL, que pode ser vista em uma anemia hemolítica, não significa que a eritropoese esteja 10 vezes mais ativa que a usual (65.000 reticulócitos/µL); a medida simultânea da eritropoese pelo turnover do ferro radioativo, em trabalhos dos anos 1970, mostrou que o aumento sugerido pela contagem de reticulócitos é 1,5 a 3 vezes maior que o real. Como essa superestimação guarda certa proporção com o aumento do nível de Epo e, consequentemente, com a severidade da anemia causal, costumava-se calcular um índice reticulocítico, pretensamente capaz de transformar a porcentagem de reticulócitos, relacionando-a com o hematócrito, em coeficiente de aumento da eritropoese; o uso, agora sistemático, da contagem de reticulócitos/µL (em vez da porcentagem), a disponibilidade da dosagem de Epo – embora pouco usada – e a apreciação da fração reticulocítica imatura fizeram-no cair em desuso.

Fração reticulocítica imatura As máquinas que contam reticulócitos, além de fornecerem o número total, distinguem e contam separadamente os reticulócitos de maior fluorescência. Os contadores Cell Dyn assim consideram os reticulócitos que fluorescem acima de 30 canais do limiar de identificação; esse nível foi arbitrado na fabricação, por corresponder aos 20% do topo da leitura, em estatística feita com 100 amostras de sangues normais. Essa fração reticulocítica imatura (IRF), das iniciais Immature Reticulocyte Fraction), é fornecida com três casas decimais, tomando-se a unidade como total. Presume-se que os reticulócitos de alta fluorescência, incluídos na fração, sejam normalmente os que saíram há poucas horas da medula, por isso, ainda com alto conteúdo de RNA, e os reticulócitos oriundos de eritropoese estimulada, grandes e mais imaturos (stress reticulocytes), são vistos nas colorações de rotina do sangue como macrócitos policromáticos ou shift cells. Os valores (média ± 2 DP) arredondados, obtidos no laboratório do autor a partir das mesmas 172 amostras usadas para a referência da contagem de reticulócitos no Cell Dyn 4000, foram: IRF = 0,240 (0,140 a 0,340)

A média foi mais alta que 0,200, cifra pela qual teria sido regulada na fabricação. A máquina ou a população de referência não foram exatamente iguais. Laboratórios que pretendam fornecer a IRF nos resultados da contagem de reticulócitos não podem prescindir de uma estatística prévia, feita com a máquina a ser usada, para introduzi-la com valores de referência próprios. Outras linhas de contadores eletrônicos expressam a maturidade dos reticulócitos dividindo-os arbitrariamente em reticulócitos de baixa (LFR), média (MFR) e alta (HFR) fluorescência, com predominância (> 80%) dos de baixa fluorescência. A tendência atual, já seguida pela linha Sysmex, é de somar a porcentagem de reticulócitos arbitrados como de alta e média fluorescência e expressar a soma como fração reticulocítica imatura. Em workshop da Sociedade Internacional de Hematologia, em 1997, ficou definido que a fração reticulocítica imatura, quando interpretada junto com a contagem, é um parâmetro útil na clínica, mas que, até o momento, é impossível de padronizar pela diferença de tecnologia das máquinas. Sugeriu, também, manter a expressão em fração decimal da unidade, como foi feito pela linha Cell Dyn. Os modelos Sysmex atuais passaram a fornecer a IRF em porcentagem (/100 reticulócitos). O autor, entretanto, crê que essa maneira de expressar reticulócitos imaturos merece crítica idêntica à da expressão da fórmula leucocitária em porcentagem em vez de números absolutos. Se a contagem de reticulócitos for muito baixa, uma IRF, mesmo elevada, pode representar um número absoluto baixo de reticulócitos imaturos; indicaria alto estímulo à produção (todos saem com alta carga), mas baixo rendimento (saem poucos); o número total é baixo. Em dois casos de anemia aplástica da clínica do autor, com IRF = 0,370 e IRF 0,355 (ambas significativamente elevadas), mas com contagens de reticulócitos = 23.000 e 19.000/µL (ambas muito baixas), o número absoluto de reticulócitos imaturos = 8.510 e 6.745/µL foi baixo em ambos; a anemia era hiporregenerativa (baixo número total de reticulócitos). A fração está elevada, mas é

fração de “um todo” muito baixo. Os mesmos achados foram vistos ulteriormente pelo autor em inúmeros casos de mielopatias hiporregenerativas, inclusive em mais um caso de anemia aplástica. Incluir o número absoluto de reticulócitos imaturos no resultado seria racional. O uso de fração com três casas decimais não tem vantagem prática sobre a expressão em porcentagem, pois a reprodutibilidade do método não atinge a terceira casa. O autor sugere expressar os reticulócitos imaturos como porcentagem do número total de reticulócitos, seguida do valor absoluto, como se usa na própria contagem de reticulócitos e na fórmula leucocitária. Um exemplo desse modo alternativo de expressar reticulócitos + IRF, ilustrado com as médias de referência próprias para reticulócitos (65.000 /µL) e IRF (0,240), seria: Reticulócitos totais: 1,43% (dos eritrócitos) = 65.000 /µL Imaturos (IRF): 24% (dos reticulócitos) = 15.600 /µL

A contagem absoluta de reticulócitos mede a resposta eritropoética à Epo, por isso depende da capacidade proliferativa do tecido eritroblástico e da extensão da medula eritropoética. A IRF (em números absolutos) reflete apenas o nível de Epo – o estímulo à produção e liberação –, independentemente da resposta obtida. Reticulocitose e reticulocitopenia designam respectivamente aumento ou diminuição do número absoluto de reticulócitos em relação aos valores de referência. Não há termos similares para variações da IRF: é adjetivada como alta (ou aumentada), normal e baixa; como é expressa numericamente, a adjetivação é irrelevante. Índices hematimétricos reticulocíticos A difração de luz monocromática ao cruzar objetos sólidos esféricos depende da dimensão do trajeto e do índice refrativo do meio interno (lei física de Gustav Mie). Os instrumentos Advia, que contam e medem os eritrócitos após esferação isovolumétrica, fornecem desde os anos 1980 uma determinação simultânea da concentração hemoglobínica (pelo índice refrativo em dois ângulos) e do volume corpuscular. Recentemente, o modelo XE 5000 e a linha XN, da Sysmex, e o Cell Dyn Sapphire, da Abbott, adotaram tecnologia similar no canal de reticulócitos: esferação isovolumétrica pelo solvente e medida da difração. Com essa tecnologia, todas agora dispõem de medidas conjuntas e simultâneas: volume corpuscular, concentração hemoglobínica e fluorescência (que identifica os reticulócitos). Com o conjunto, em apenas uma passagem pela flow cell, os instrumentos são capazes de fornecer os índices hematimétricos de modo discriminativo: dos eritrócitos em geral e dos reticulócitos em particular. Para laboratórios que disponham desses instrumentos com o respectivo software, basta solicitar “Hemograma e Reticulócitos”, que os novos índices serão rotineira e gratuitamente fornecidos; a terminologia usada varia entre as linhas de instrumentos. Os reticulócitos na medula óssea e na circulação periférica, principalmente no baço, diminuem de volume (MCVr) e ainda sintetizam hemoglobina por algumas horas; como a concentração hemoglobínica corpuscular (CHCMr) depende inversamente desses dois fatores, nenhum deles individualmente pode ser corretamente interpretado. Para a

interpretação, usa-se o produto de ambos (volume × concentração): o conteúdo (médio) de hemoglobina dos reticulócitos (Reticulocyte Hemoglobin Content = CHr). Como os reticulócitos após liberação da medula têm uma sobrevida de 41,2 horas na circulação (cálculo do laboratório do autor), a CHr permite estimar, em tempo real, a oferta de ferro à eritropoese: a falta de ferro, seja por ausência de reservas ou apenas funcional (retenção nos enterócitos e no SRE), causa imediata e abrupta diminuição da CHr. A avaliação é mais segura se houver uma determinação anterior para comparação. Comparar a CHr com o conteúdo médio de hemoglobina (HCM) dos eritrócitos em geral – estes com sobrevida de ≅ 120 dias – também tem sentido. Esse novo parâmetro reticulocítico tem sido utilizado com sucesso para julgar sobre a necessidade de ferro intravenoso em pacientes renais crônicos, ou com anemia de doença crônica, ao começarem tratamento com eritropoetina recombinante humana (rHu-Epo) (ver Cap. 9). Os valores de referência extremos para o CHr (conteúdo médio de hemoglobina dos reticulócitos) sugeridos para a determinação com a tecnologia Abbott (Sapphire) são: 28,5 a 34,5 pg; o cut off para hipocromia foi arbitrado em 28 pg. Como o conteúdo hemoglobínico é medido nos reticulócitos individualmente (um a um), o valor fornecido é a média dessa série de valores. Isso possibilita a derivação estatística da variação do conteúdo hemoglobínico em torno da média (HDWr = reticulocyte Hemoglobin Distribution Width); esse parâmetro, embora rotineiramente fornecido, não parece ter utilidade. MICROSCOPIA E CONFERÊNCIA Apesar da supremacia das máquinas quanto aos dados numéricos, a microscopia persiste necessária no eritrograma. O técnico-sênior que a assume nos casos indicados pela triagem arbitrária deve ser o responsável pela emissão do resultado, cabendo-lhe julgar a coerência dos dados, acrescentar as observações morfológicas pertinentes e fazer a conferência final. Quando examinar uma amostra com contagens eletrônicas normais da série vermelha – por trabalhar com máquina sem fórmula leucocitária completa ou por tratar-se de caso em que a indicação de microscopia se fez por alterações das outras séries, procedência da amostra ou pedido médico –, basta ao técnico uma observação rápida da forma hemática, para evidenciar/excluir possíveis alterações de significação diagnóstica que não se expressem nos números, como policromatocitose, pecilocitose típica e outras. A microscopia computadorizada do Sysmex Cella Vision, embora mencione alterações de forma e diâmetro dos eritrócitos, não é eficaz para esse fim. A máquina foi desenvolvida especificamente para o leucograma, embora também seja útil para avaliação das plaquetas (método de Fônio melhorado). Se examinar uma amostra rejeitada pelo programa de interfaciamento direto por anormalidade das contagens eletrônicas da série vermelha, o técnico deverá: 1. Confirmar visualmente as alterações numéricas e julgar a compatibilidade com o que vê, com sexo, idade e procedência do(a) paciente.

2. Pesquisar cuidadosamente os dados morfológicos discutidos na seção seguinte, para esclarecer a patogênese das anormalidades. Em caso de anemia, policromatocitose é sempre o principal. Anotar os que forem pertinentes para fornecer ao requisitante um máximo de subsídios à interpretação. 3. Consultar resultados dos demais exames feitos na presente requisição e resultados anteriores do paciente, se houver, e ver a procedência. Na maioria das vezes, o caso já fica esclarecido nesta etapa (p. ex., paciente em hemodiálise, eritrogramas anteriores típicos de anemia ferropênica, etc.) e pode até mostrar ser provável que o médico requisitante já esteja a par da interpretação. Nesse caso, liberar o resultado sem maiores cuidados. 4. Se os aspectos à microscopia suscitarem dúvidas em relação aos dados numéricos, repetir as contagens após reconferir a identificação da amostra; preferir contador alternativo, se houver. Distender nova lâmina do frasco original pela hipótese de ter havido troca. 5. Em caso de anemia que persista sem esclarecimento óbvio (p. ex., sem policromatocitose, microcitose/hipocromia nem creatinina elevada, e não oriunda de serviço de quimioterapia ou outra causa), tentar esclarecê-la. Examinar o histograma, corar reticulócitos (ou contá-los na máquina, se disponível) mesmo sem requisição médica, atentar para as demais séries do hemograma (hemopatia pouco aparente?). Se surgir novo dado útil, dar um jeito de inseri-lo no resultado para que chegue ao médico requisitante; caso seja impossível, tentar comunicação pessoal. 6. Este último passo – contato telefônico com o médico requisitante – requer diplomacia e autoridade. É feito com mais facilidade quando o setor de hematologia do laboratório dispõe de um médico titular ou consultor. No caso de bioquímicos/biomédicos, talvez seja preferível promover contato apenas com médicos requisitantes muito ligados ao laboratório; quanto aos demais, melhor esperar por eventual contato no sentido oposto. Os procedimentos referidos são exaustivos e sobrecarregam o trabalho da seção de hematologia, mas devem fazer parte da rotina de todos os laboratórios de instituições, como hospitais, policlínicas, etc. Em laboratórios externos, abertos ao público em geral e de grande movimento (mais de 500 hemogramas por dia), rotinas como essa são difíceis de assumir e manter, pois são trabalhosas e caras, porque gratuitas; por outro lado, são notavelmente produtivas e, mesmo quando feitas em número limitado de casos diários, rapidamente elevam o conceito do laboratório no meio médico local. Demonstram que o laboratório adota a filosofia de trabalho preconizada pelo autor, discutida no primeiro capítulo. INTERPRETAÇÃO GERAL E ALTERAÇÕES ERITROIDES Para que o eritrograma atinja suas finalidades – fazer notar, quantificar e contribuir para o diagnóstico causal das anemias e poliglobulias –, há necessidade de observação e de interpretação corretas dos dados numéricos e gráficos fornecidos pela máquina e dos

dados morfológicos da observação microscópica complementar. A interpretação de todos será discutida a seguir. Policromatocitose 7 É o dado mais importante a pesquisar na microscopia do sangue anêmico. Presença de número chamativo de eritrócitos recém-saídos da medula, identificáveis pela cor acinzentada ou arroxeada oriunda da presença residual de RNA, denota hiper-regeneração eritroide, isto é, há ou houve hipoxemia que provocou aumento da síntese renal de eritropoetina e a medula está respondendo a seu estímulo fisiológico com aumento da eritropoese. A policromatocitose não é notada pela tecnologia eletrônica e nem sempre é de fácil observação ao microscópio: exige lâminas bem distendidas e impecável coloração. Cada nova partida de corante deve ser testada para confirmar que cora distintamente os eritrócitos policromáticos. A cauda da distensão, que não deve ser usada para avaliação da morfologia eritroide, no caso particular da policromatocitose, às vezes é mais demonstrativa. Em caso de anemia sem causa óbvia, se a policromatocitose for inaparente ou duvidosa, deve ser comprovada ou excluída pela coloração de reticulócitos (seguida de simples observação ao microscópio, não de contagem visual) ou pela contagem eletrônica, se disponível. Ou ainda por um notável método, inventado por acaso: o autor acoplou, para finalidades didáticas, uma câmara Sony a um microscópio Olympus, permitindo a observação da imagem no monitor, a projeção por data-show e a impressão, se desejada. A observação simultânea, na tela e no microscópio, fez notar imediatamente que a cor digitalizada realçava a diferença entre os eritrócitos policromáticos e os normais; um ajuste no matiz (hue), no software, aumentou a diferença, como se vê na Figura 2.11 (a). O método entrou na rotina do laboratório do autor, e as lâminas de todos os casos de anemia a esclarecer ou que deram a impressão, mesmo mínima, de policromatocitose, passaram a ser observadas no monitor. Realçada no computador, a policromatocitose tornou-se tão fácil de se observar que o método substituiu a coloração rotineira de reticulócitos, antes adotada. A nova norma fez notar fato retrospectivo deprimente: durante décadas, a policromatocitose foi mal pesquisada! Mas não poderia ter sido prospectivamente mais gratificante; centenas de casos de anemia foram esclarecidos e inúmeros casos de policromatocitose, sem anemia, mostrando perdas hemorrágicas menores ou anoxemia não suspeitada, foram evidenciados pelo método. Lamentavelmente, esse método simples e barato não teve divulgação e difusão. O autor crê ter sido o único a usá-lo.

FIGURA 2.11 Policromatocitose com acentuação do matiz (hue) em imagem digitalizada (a); reticulocitose com macrócitos policromáticos: a seta mostra deformação do histograma (b).

Havendo policromatocitose, o técnico deverá: ■ Quantificá-la de 1+ a 4+ ou adjetivá-la como recomendado no Capítulo 1. ■ Atentar para as dimensões dos eritrócitos policromáticos; quando obviamente maiores que os demais (= macrócitos policromáticos), anotá-los como tal. Macrócitos policromáticos, que são reticulócitos grandes e com alta carga de RNA, isto é, pertencentes à IRF, indicam alta atividade eritropoetínica. Quando em porcentagem elevada, podem até deformar o histograma eritroide, como se vê na Figura 2.11 (b). ■ Dispondo de contagem eletrônica de reticulócitos, recomenda-se fazê-la. Se a classe médica requisitante for instruída a ponto de compreender a utilidade do acréscimo, o custo do exame não cobrado a longo prazo será amplamente superado pela melhoria do conceito do laboratório. E os médicos que costumam usar o laboratório começarão a solicitar hemograma e reticulócitos. A policromatocitose está presente do quarto dia em diante nas regenerações póshemorrágicas, de modo constante nas anemias hemolíticas, após alguns dias do tratamento de reposição apropriada na regeneração das anemias carenciais e na regeneração da medula óssea após quimioterapia ou aplasia transitória. Quando a medula óssea está com o estroma alterado por proliferações anormais (fibrose, tumores metastáticos ou da hematopoese), pode haver policromatocitose oriunda de focos dispersos de eritropoese com liberação prematura e anárquica de reticulócitos, sem que isso represente regeneração eficaz; esses reticulócitos são quase todos da IRF, cuja alta carga de RNA torna-os facilmente visíveis como policromáticos ao microscópio. Macrocitose

Mesmo o mais experiente dos observadores só nota macrocitose ao microscópio, em uma população eritrocítica homogênea (macrocítica-isocítica), se esta tiver um VCM consideravelmente aumentado. A geometria elementar, a seguir, é uma demonstração convincente. Considere-se uma população eritrocítica normal, com diâmetro médio (∅) de 7,6 µm e espessura média (h) de 2 µm. O VCM será 3,82 (raio2) × π × 2 (h) = 90,7 fL. Considere-se que uma causa de macrocitose, dentre as citadas adiante, atue sobre essa população e aumente o diâmetro (que é o que o observador vê ao microscópio) e a espessura dos eritrócitos em 10%. A população passará a ter ∅ = 8,36 µm e h = 2,2 µm. O VCM passará a 4,182 × π × 2,2 = 120,7 fL. Ou seja, um aumento de 10% (= 0,76 µm) no diâmetro, acompanhado de idêntico aumento na espessura (como se supõe suceder), aumenta o volume em 33%! É óbvio que o olho humano ao microscópio tem dificuldade em notar que o diâmetro médio de uma população eritrocítica é 0,75 µm (= 10%) maior que o diâmetro médio das populações usuais; isto é, não vê uma macrocitose homogênea tão alta quanto VCM = 120 fL, só nota variações extremas, como os megalócitos da anemia perniciosa, que passam de 140 fL, ou nota disparidades de tamanho na população. Macrócitos, pela maior espessura, costumam aparentar hipercromia ao microscópio; têm aumento da HCM (pelo tamanho), mas não da CHCM, de modo que não há hipercromia real, apenas aumento da densidade óptica ao microscópio pela maior espessura do trajeto hemoglobinizado a ser atravessado pelo foco luminoso; evite-se denominar as anemias macrocíticas de hipercrômicas, como é erroneamente feito por quase todas as linhas de contadores eletrônicos (e por muitos livros de hematologia) que anotam flag hyperchromia quando a HCM é superior a 33 pg. Hipercrômicas são populações de eritrócitos com CHCM elevada (> 36%), como a da esferocitose. A linha Advia, com o conceito de hipercromia baseada na CHCM, é mais lógica nesse contexto. O VCM obtido pelos contadores atuais é uma medida tecnicamente confiável: quando mostrar macrocitose, esta deve ser sempre considerada e avaliada. Diante de macrocitose é indispensável, inicialmente, apreciar o histograma (no monitor ou em cópia impressa) para distinguir uma macrocitose generalizada de uma população bimodal, caso em que a macrocitose de uma delas será bem maior do que a expressa pelo VCM, como a da Figura 2.11 (b). Anotar no resultado dupla população se for o caso. Depois, percorrer a lista de causas a seguir, atentando para os dados pertinentes a cada uma: 1. Alcoolismo: a macrocitose do alcoolismo não excede 106 fL; a população é homogênea, os eritrócitos são redondos e de aspecto normal. A macrocitose alcoólica não se nota ao microscópio; é um achado da tecnologia. A etiologia só pode ser confirmada por informação, trabalho que não cabe ao laboratório. 2. Hipotireoidismo: frequentemente causa macrocitose, com VCM < 105 fL; dada a alta prevalência do hipotireoidismo, todos os pacientes com macrocitose leve devem fazer dosagem de TSH. 3. Uso de fármacos (iatrogênica): muito comum em laboratórios que atendem clínicas de hematologia/oncologia e de atendimento a pacientes com aids. AZT (zidovudina): quando era usada como droga principal no tratamento da aids, o AZT liderava a estatística de drogas causais de macrocitose; até recentemente o

tratamento causava dupla população no histograma. O coquetel atual, com menos AZT, quase não causa anemia, e o aumento do VCM decorrente é da ordem de 3 a 6 fL, só notado se comparado com o prévio ao tratamento, pois geralmente não passa de 100 fL. Anticonvulsivantes: carbamazepina, ácido valproico, fenitoína, talvez fenobarbital e primidona, causam aumento do VCM em pacientes pediátricos; a macrocitose, da ordem de VCM = 95 ± 4 fL, é relativa ao VCM infantil. Em adultos, o aumento do VCM praticamente não é notado. Antiblásticos: fludarabina, cladribina, ciclofosfamida, melfalano, clorambucil, azatioprina, todos causam macrocitose com eritrócitos redondos, VCM < 110 fL e RDW normal. A hidroxicarbamida (antes dita hidroxiureia) causa considerável macrocitose dose-dependente, com RDW aumentado e alguns macrócitos ovais; quando usada no tratamento da policitemia vera, faz reverter a microcitose comum na doença, o que é um efeito colateral benéfico, e cria-se transitoriamente um eritrograma paradoxal, com Hgb e Hct elevados, sem eritrocitose (Fig. 2.12 [b]). O metotrexato e o raltitrexato causam anemia megaloblástica pelo efeito antifólico (item 6, adiante); a citarabina causa macrocitose com alterações megaloides. Todos os protocolos de poliquimioterapia causam macrocitose que pode durar meses; no intervalo entre as séries, a macrocitose secundária aos fármacos é aumentada pela macrocitose da hiperregeneração.

FIGURA 2.12 Macrocitose: Eritrograma Cell Dyn (original) em anemia perniciosa (a); scatterplot RBC V/HC (Advia) em caso de policitemia vera tratada com hidroxicarbamida: notar o grande número de pontos acima de 120 fL (b).

4. Hepatopatias: há macrocitose com eritrócitos redondos, geralmente VCM < 112 fL, frequentemente com leptocitose e estomatocitose. A macrocitose muitas vezes é o indício que sugere o diagnóstico de hepatopatia insuspeitada. 5. Esplenectomia: o VCM dos esplenectomizados aumenta sistematicamente 4 a 8 fL, podendo ultrapassar o limite de referência; dificilmente ultrapassa 104 fL. Sempre há acantócitos e corpos de Howell-Jolly. 6. Hiper-regeneração eritroide: macrócitos policromáticos, quando em significativa porcentagem, causam macrocitose; hiper-regeneração recente pode causar histograma com curva assimétrica, como se vê na Figura 2.11 (b). 7. Anemias megaloblásticas: as anemias decorrentes da falta de vitamina B12 e/ou ácido fólico são as mais caracteristicamente macrocíticas (Fig. 2.12[a]). Os macrócitos são ovais (macro-ovalócitos), alguns enormes, com volume > 150 fL; o VCM, entretanto, é mais baixo (entre 110 e 140 fL), porque há acentuada pecilocitose, com eritrócitos pequenos e fragmentados, que diminuem a média. Histogramas e demais dados podem ser vistos no Capítulo 7. 8. Anemia aplástica: macrocitose, com VCM que não ultrapassa 110 fL, é parte (irrelevante) do quadro pancitopênico; persiste mesmo após a recuperação, se houver. É lícito supor-se que a macrocitose leve, notada às vezes anos após uma quimioterapia, deva-se a uma hipoplasia medular residual. 9. Síndromes mielodisplásicas: a anemia refratária costuma ser macrocítica; a anemia sideroblástica geralmente é normocítica, mas pode ser macrocítica. O diagnóstico diferencial com as anemias megaloblásticas, só pelo hemograma, é muito difícil (ver Cap. 25). 10. Idiopática: a medida sistemática do VCM mostrou que há pessoas com VCM mais alto que o usual (entre 98 e 104 fL), sem causa aparente e sem progresso para anemias macrocíticas; o autor acompanha dezenas de casos há anos; todos fizeram dosagem de TSH, vitamina B12 e ácido fólico e receberam tratamento de prova – sem sucesso – com ambas as vitaminas. Em alguns, geralmente idosos, resultados de hemogramas antigos mostram que o aumento atual é adquirido; só longa observação poderá excluir uma síndrome mielodisplásica de lenta instalação. 11. Na síndrome de Down, macrocitose (95 a 106 fL) é usual. 12. Artefatual: a presença de crioaglutininas causa uma macrocitose espúria. Na leucemia linfocítica crônica, quando há grande linfocitose com linfócitos no limiar dimensional dos eritrócitos, estes podem ser identificados erroneamente pelos instrumentos de impedância e causar falsa macrocitose. 13. Diversos: a anemia do mieloma múltiplo pode ser discretamente macrocítica. O VCM aumenta 3 a 4 fL na gravidez. Microcitose e hipocromia

Quando há deficiente síntese de hemoglobina, os eritrócitos diminuem de volume: o estroma elástico retrai-se por falta de conteúdo. A dificuldade de notar-se microcitose numa população eritrocítica homogênea pode ser geometricamente equacionada como foi feito para a macrocitose (ver seção anterior). Uma diminuição de apenas 10% no diâmetro (∅ 7,6 ⇒ 6,84 µm) e espessura (h 2 ⇒ 1,8 µm) dos eritrócitos de uma população com VCM = 90,7 fL baixa-o para VCM = 66,1 fL. E quem nota ao microscópio uma diminuição de 0,76 µm (10%) num diâmetro de 7,6 µm? A baixa do VCM na microcitose (como o aumento na macrocitose) é mais facilmente notada se houver uma população contrastante, como na Figura 2.13 (a), de hemograma de paciente com anemia ferropênica recentemente transfundido; note-se que, se houver uma população concomitante de VCM bem mais alto, a população microcítica terá, na verdade, um VCM próprio bem menor do que o VCM mostrado pela máquina, que é o da combinação de ambas. Mas, já antes do VCM de Wintrobe e décadas antes do VCM confiá​vel dos contadores eletrônicos atuais, os hematologistas dos primórdios do século XX já descreviam eritrócitos pequenos e descorados na mais comum das anemias – a ferropênica – e eritrócitos grandes e hipercorados na anemia perniciosa. Micrócitos são mais delgados que eritrócitos normais: a diminuição de 0,2 µm na espessura média do eritrócito da população descrita no exemplo fictício anterior faz os eritrócitos bicôncavos ficarem mais delgados e muito pobres de hemoglobina na depressão central. O exagero de translucidez central, ao contrário da diminuição de diâmetro ou de volume, é facilmente notado ao microscópio (Fig. 2.13 [b]). As anemias eram mais vistas e designadas como hipocrômicas do que como microcíticas. A hipocromia visível, como a da Figura 2.13 (b), não é apenas uma decorrência da microcitose; quando há insuficiente síntese de hemoglobina, diminui não só a quantidade total sintetizada por eritrócito, mas também a concentração máxima que atinge.

FIGURA 2.13 Dupla população microcítico/hipocrômica e normocítica pós-transfusional (a); hipocromia vista em grande aumento (b).

Diante de microcitose, o observador deverá atentar para os demais dados que possam apontar a causa mais provável, na lista a seguir. A microcitose própria da infância deve ser inicialmente considerada (ver tabela no Apêndice 1).

1. Anemia ferropênica: em seção específica, no Capítulo 6, há extensa discussão sobre a sensibilidade do VCM e dos demais índices hematimétricos à falta de ferro. O RDW está precocemente aumentado. Na anemia ferropênica severa, há pecilocitose. Não há reticulocitose, salvo após tratamento, mas geralmente são notados alguns eritrócitos policromáticos; o autor atribui essa aparente incoerência à alta carga de RNA, pois a IRF é sempre elevada nos reticulócitos microcíticos e hipocrômicos, fazendo a cor acinzentada ficar mais contrastante do que nos eritrócitos normocíticos e normocrômicos. 2. Talassemia minor: na β-talassemia minor, há desproporção entre o VCM muito baixo (entre 55 e 65 fL) e o grau de anemia (Hgb entre 10,5 e 13,5 g/dL); a contagem de eritrócitos está aumentada (eritrocitose), o RDW é baixo, e há policromatocitose óbvia. Na α-talassemia, a microcitose e a intensidade da anemia dependem do número de genes deletados. Na β-talassemia maior, a microcitose é acentuada, mas a população é entremeada por macrócitos hipocrômicos e policromáticos, pecilócitos e eritroblastos, além da população transfusional costumeira. 3. Anemia sideroblástica congênita: é muito rara. Há microcitose numa população polimorfa, com RDW extremamente elevado (ver Fig. 6.11). As anemias sideroblásticas adquiridas não são microcíticas. 4. Hemoglobinopatias: em todas pode haver leve microcitose, em parte porque são diagnosticadas na infância, mas geralmente são normocíticas; sempre há outros aspectos morfológicos sugestivos do defeito. 5. Esferocitose: é geralmente normocítica; microcitose é exceção. Como os esferócitos têm diâmetro menor que os normócitos de mesmo volume corpuscular, podem aparentar microcitose à microscopia. O RDW é normal ou pouco aumentado. 6. Ovalocitose: há microcitose em número significativo de casos, principalmente nos que têm pecilocitose acentuada. 7. Anemia das doenças crônicas: costuma ser normocítica e tornar-se microcítica se a volução for longa; o VCM não costuma estar abaixo de 75 fL, salvo se houver ferropenia associada. Na anemia da artrite reumatoide ativa, a microcitose é a regra. O RDW é baixo. 8. Síndromes mieloproliferativas: há microcitose progressiva na policitemia vera, piorada pelo tratamento com sangrias, mas melhorada pela macrocitose provocada pelo tratamento com hidroxicarbamida. Na mielofibrose avançada, pode haver microcitose, com pecilocitose e dacriocitose características. Anisocitose A variabilidade excessiva das dimensões dos eritrócitos, com presença concomitante de macrócitos e micrócitos, denomina-se anisocitose. À microscopia, o observador menciona anisocitose quando nota variação excessiva do diâmetro dos eritrócitos; a Figura 2.14 (a) mostra microfotografia de caso com anisocitose extrema. Como simples observação baseada na microscopia, anisocitose é um dado subjetivo de duvidoso valor: a heterogeneidade volumétrica é quantificada pelo RDW (coeficiente de variação do

volume corpuscular). Diante de RDW elevado (> 18), como no caso da anemia sideroblástica da Figura 2.14, cabe ao laboratorista apreciar o histograma, já que não é fornecido no resultado, e transcrever as alterações presentes; principalmente distinguir se o aumento de RDW deve-se a uma população muito anisocítica (como a da figura) ou à presença de mais de uma população. Anisocromia A variabilidade excessiva na intensidade da coloração hemoglobínica dos eritrócitos, com presença concomitante de eritrócitos de aspecto hipercrômico e hipocrômico, denominase anisocromia, em oposição à isocromia, que define populações de concentração hemoglobínica homogênea. O olho humano ao microscópio nota com facilidade a variação cromática, mas não consegue distinguir se as disparidades de coloração (Fig. 2.14 [a]), de translucidez e de opacidade devem-se a aumento do trajeto da luz pela hemoglobina do glóbulo (espessura aumentada) ou a excessiva concentração hemoglobínica no trajeto. Assim, a anisocromia ao microscópio tanto pode ser apenas uma expressão visual do RDW (disparidade de volume) como uma disparidade real da concentração hemoglobínica da população – anisocromia verdadeira –, medida tradicionalmente nos contadores eletrônicos da linha Advia, com o índice HDW, e recentemente também fornecida no canal de reticulócitos da linha Sysmex XE e no Cell Dyn Sapphire.

FIGURA 2.14 Anemia sideroblástica (caso do autor): anisocitose e anisocromia extremas com o eritrograma Cell Dyn respectivo com o histograma característico, de enorme abertura.

Quando há uma população hipocrômica dispersa em uma população normocrômica, ou vice-versa, como no decurso do tratamento de anemia ferropênica (Fig. 2.15), essa anisocromia (que quase sempre se acompanha de anisocitose) também pode ser notada ao microscópio; é a expressão visual das duas populações concomitantes, uma microcíticohipocrômica, outra normocítico-normocrômica.

FIGURA 2.15 Eritrograma (Advia) com duas populações distintas: normocítico/normocrômica e microcítico/hipocrômica.

A tecnologia ADVIA, no seu excelente histograma RBC HC, no caso de anemias ferropênicas em tratamento, consegue mostrar a separação entre as populações ao mesmo tempo quanto ao volume e quanto à hemoglobinização. A Figura 2.15 é claramente ilustrativa: o histograma RBC V/HC – volume corpuscular na ordenada, concentração hemoglobínica na abscissa – mostra dois scatterplots, aproximadamente triangulares, quase separados. O histograma RBC HC (acima, à direita) mostra distinção óbvia da concentração hemoglobínica das populações; já o histograma convencional do volume corpuscular (à direita, abaixo) não distingue as duas populações. Entre ambas, há uma quantificação em porcentagem de cada população. No resultado numérico do eritrograma (canto direito, em cima) vê-se considerável elevação do RDW, incorreta porque mede a abertura, a um só tempo, de duas populações. Como o médico requisitante só recebe os

números (na vertical, à direita), sem histogramas, deve-se transcrever no resultado: dupla população, normocítica/normocrômica e microcítica/hipocrômica. Pecilocitose

Diz respeito à presença de formas anormais dos eritrócitos; a maioria tem denominações específicas, podem ter significação diagnóstica e não há critério definindo se estas devem estar incluídas no termo genérico pecilocitose. O melhor é mencionar pela designação própria cada um dos aspectos celulares notados, quantificando de 1+ a 4+, e referir pecilocitose somente quando as formas anormais forem tão variadas a ponto de resistir a uma sistematização, como no ícone ilustrativo. A pecilocitose, assim considerada, é comum na anemia ferropênica severa e nas anemias megaloblásticas; na mielofibrose também há uma pecilocitose inclassificável, mas com predomínio de dacriócitos. O aquecimento acidental do sangue in vitro, à temperatura > 42ºC, causa uma pecilocitose artefatual extrema, semelhante à da intermação que ocorre in vivo nos grandes queimados. O acidente pode acontecer quando as lâminas são secas sob um ventilador aquecido, demasiado próximo, ou no transporte em veículos e recipientes sem refrigeração. FORMAS ANORMAIS (PECILÓCITOS) DE SIGNIFICAÇÃO DIAGNÓSTICA A exata e difícil caracterização das formas anormais tem pré-requisitos: 1. Lâminas impecavelmente distendidas e coradas (ver Fig. 1.13). Justamente quando há anemia, e a morfologia é mais necessária, o excesso de plasma dá origem a lâminas de má qualidade. Há uma rotina corretiva: centrifuga-se o sangue a 2.000 rpm x 10 min; depositam-se os glóbulos, e o plasma sobrenada. Retira-se e despreza-se parte do plasma, elevando-se o Hct para aproximadamente 45%. Ressuspende-se os glóbulos com várias inversões do tubo e distende-se nova lâmina. A qualidade melhora notavelmente. A fórmula leucocitária não pode ser feita nessa nova lâmina; leucócitos são perdidos com o plasma (Fig. 2.16). 2. Cuidado na escolha dos campos a examinar: devem ser preferidas áreas da distensão onde os eritrócitos tocam-se sem se empilhar (ver Fig. 1.15, p. 57). 3. Experiência do técnico e conhecimento da patologia eritroide: deve-se olhar em busca dos defeitos prováveis, não só notá-los por acaso.

FIGURA 2.16 Lâminas de caso de anemia ferropênica, distendidas antes (a) e depois (b) da retirada do excesso de plasma.

Segue-se uma descrição comentada e ilustrada com imagens das principais formas anormais. Normócitos (eritrócitos normais): são discos bicôncavos com as dimensões especificadas na discussão sobre VCM, na p. 70. Nas áreas da distensão próprias à microscopia, a área mais clara decorrente da menor espessura central é facilmente notada. Irregularidades mínimas do contorno mal são notadas à microscopia óptica.

Esferócitos: o termo é inapropriado, mas consagrado pelo uso. Os “esferócitos” não são esféricos, apenas têm a biconcavidade reduzida, ou mantêm pequena concavidade apenas em uma das faces. Como têm contorno circular regular e mantêm o volume, mas são mais esferoides, o diâmetro diminui. Ao microscópio, perdem a zona clara central, são mais densos, e a redução do diâmetro é notada em relação aos demais eritrócitos, de onde a denominação imprópria de microesferócitos. Originam-se de defeitos genéticos nas proteínas da membrana, que desestabilizam o citoesqueleto. Os esferócitos têm menor superfície em relação ao volume que os discócitos bicôncavos normais; o trânsito de cátions pela membrana é anormal; a elasticidade é insuficiente para a passagem pela circulação esplênica, onde ficam retidos muito tempo, perdem porções da membrana e hemolisam prematuramente. A agressão por anticorpos à membrana dos eritrócitos, como ocorre nas anemias hemolíticas imunológicas, causa uma esferocitose adquirida préhemolítica.

Eliptócitos ou ovalócitos: a distinção preconizada entre eritrócitos elípticos (relação entre o maior e o menor diâmetro > 2) e ovais (idem, < 2) é irrelevante; alguns são ovoides, com uma extremidade mais arredondada, outros têm forma de charuto. Decorrem de uma ampla variedade de defeitos genéticos que afetam as proteínas do citoesqueleto. Como os eliptócitos têm sobrevida próxima à normal, geralmente não há anemia, salvo quando há homozigose ou dupla heterozigose (herança de dois genes eliptocíticos). Pequeno número (< 10%) de eliptócitos pode ser visto nas anemias microcíticas e megaloblásticas e nas síndromes mieloproliferativas.

Estomatócitos: são eritrócitos com a membrana retraída em cúpula (forma de xícara sem asa). Distendidos na lâmina, a concavidade unilateral é vista como uma fenda. A retração pode ocorrer gerando três faces escavadas em covinhas (“knizócitos” ou dimple cells). Muitas vezes, estomatócitos são artefatos de preparação nas zonas delgadas da distensão de sangue, mas podem ser reais: há estomatócitos no sangue do recém-nascido, nas doenças hepáticas, no tratamento com asparaginase e há uma raríssima estomatocitose familiar, com anemia hemolítica congênita.

Equinócitos: a difusão de substâncias alcalinas do vidro pode provocar na superfície dos eritrócitos a formação reversível de 10 a 30 espículas regularmente distribuídas. O sangue do RN é particularmente suscetível. A conservação do sangue in vitro, mesmo nas bolsas de plástico da hemoterapia, causa o mesmo fenômeno. Equinócitos podem ser vistos in vivo: na uremia (quando se designam burr cells), no tratamento com heparina intravenosa, no hipotireoidismo (nesse caso, costumam ser ovalados) e durante algumas horas após transfusões.

Acantócitos: são eritrócitos contraídos (densos), esferoides, com espículas de dimensões e distribuição irregulares; algumas espículas têm ponta alargada (aspecto de baqueta de tambor). Trata-se de uma deformação irreversível, que ocorre in vivo. Acantócitos são constantes na hipofunção esplênica e pós-esplenectomia, acompanhados de corpos de Jolly, comuns nas hepatopatias avançadas, e predominantes na rara abetalipoproteinemia congênita (ilustração abaixo, à direita, de caso do autor). A deficiência de tocoferol nos primeiros meses de vida causa acantocitose e anemia hemolítica.

Leptócitos: são eritrócitos delgados, com excesso de membrana. São tênues e deformáveis; ondulam-se na circulação, tomando o aspecto de sino (codócitos). Ao distender-se na lâmina, coram-se mais no centro e na periferia, de onde a designação consagrada target cells (= eritrócitos em alvo). O excesso de membrana é caracterísitico da hemoglobinopatia C (ilustrações abaixo), mas também ocorre nas síndromes falcêmicas e na β-talassemia e quando há alterações da composição lipídica do plasma, cujas moléculas de colesterol e lecitina estão em contínua troca com as da membrana do eritrócito; esse último fenômeno é responsável pela leptocitose das icterícias obstrutivas e do tratamento com asparaginase. Há leptócitos na hipofunção esplênica.

Dacriócitos: são eritrócitos em forma de gota ou lágrima (tear drop cells). Deformam-se principalmente no baço por sofrerem estiramento além dos limites da elasticidade ao passarem pelas fenestrações entre cordões e sínus medulares. Crê-se que isso ocorra durante a remoção de inclusões anormais, de onde a frequência de dacriócitos nas doenças com diseritropoese. São numerosos, quase patognomônicos, na mielofibrose primária (ilustrações abaixo). São vistos em pequeno número, como parte do quadro de pecilocitose, na anemia ferropênica, megaloblástica e outras.

Drepanócitos (eritrócitos falciformes): a maioria tem forma de foicinha ou banana, alguns têm forma de barco; apresentam ao menos uma ponta afilada que os diferencia de ovalócitos. Caracterizam as síndromes falcêmicas, decorrentes da presença de Hgb S (de sickle = foicinha), variante genética que difere da Hgb A pela presença de valina em lugar de ácido glutâmico na posição 6 da cadeia β da globina; essa simples troca de um aminoácido altera a solubilidade da Hgb, que cristaliza em longos tactoides quando submetida a baixas tensões de oxigênio, ocasionando a deformação falciforme dos eritrócitos. Quando há mais de 50% de Hgb S nos eritrócitos, a cristalização ocorre com tensões de O2 possíveis in vivo; quando há menos de 50%, só há cristalização em tensões muito baixas, praticamente só obtidas in vitro. O teste de afoiçamento é feito selando-se uma gota do sangue entre lâmina e lamínula e conservando-a por 24 a 48 horas nessa câmara hermética: o consumo de O2 provoca a deformação falciforme. Quando positivo, deve ser feito exame da hemoglobina por cromatografia líquida de alta resolução ou eletroforese, para quantificar as variantes e classificar apropriadamente a síndrome falcêmica. Em casos de dupla heterozigose para hemoglobinas S e C, podem ser vistos pecilócitos SC, com deformação típica pelo aspecto falciforme acrescido da presença de cristais de Hgb C (ilustrações abaixo, à direita).

Eritrócitos fragmentados, irregularmente contraídos e mordidos: originam-se por vários mecanismos: 1. Trauma por colisão em zonas de fluxo turbulento com superfícies mal endotelizadas ou artificiais (próteses). 2. Trauma ao ultrapassar depósitos intravasculares de fibrina ou agregados plaquetários. 3. Trauma mecânico sobre os eritrócitos na circulação cutânea por choque corporal. 4. Agressão térmica nas queimaduras. 5. Agressão química pelo uso de fármacos oxidantes. O trauma e a agressão fragmentam os eritrócitos (eritrócitos fragmentados), gerando formas características, algumas com designações próprias. Se a fragmentação for significativa, o paciente apresentará sinais e sintomas de anemia hemolítica; a hemólise intravascular pode provocar hemoglobinemia livre e hemoglobinúria.

O trauma exógeno pode fissurar o eritrócito (esquizócitos), originando pedaços em triângulo, meia-lua ou esférulas; outras vezes ocasiona invaginação da membrana, depois um vacúolo, cujo rompimento deixa-o com duas projeções queratiformes simétricas, que lhe dão um aspecto de capacete (queratócitos ou helmet cells). A identificação de eritrócitos fragmentados por trauma, como supradescritos, é crucial no diagnóstico, sempre urgente, das anemias hemolíticas microangiopáticas (ver p. 152). Os fragmentos podem ocasionar uma cauda microcítica no histograma. Na agressão por fármacos oxidantes, a remoção dos corpos de Heinz deixa os eritrócitos (ilustrações à direita) mordidos e irregularmente contraídos, esferoides e densos (degmócitos ou bite cells).

Na agressão térmica, formam-se nos eritrócitos protrusões citoplasmáticas (blebs), que se desprendem e circulam por curto prazo como esférulas de tamanho variado; podem ser vistos os demais aspectos de fragmentação, pecilocitose intensa e esferócitos. A intermação do sangue in vitro causa artefatos similares. INCLUSÕES NOS ERITRÓCITOS Algumas são vistas com a coloração de rotina; outras, somente com colorações especiais. As principais são:

Corpos de Howell-Jolly: são cromossomos aberrantes, remanescentes de mitoses anômalas, vistos quando há hipofunção esplênica (ou asplenia), pela falta da função filtrante do baço. São vistos, também, em doenças com diseritropoese (anemias megaloblásticas, mielodisplasias, etc.). A referência à presença de corpos de HowellJolly, em pessoas não esplenectomizadas, é de notável importância diagnóstica, pois

sugere hipofunção esplênica com sua restrita lista de causas; na grande maioria das vezes, nota-se acantocitose simultânea.

Pontilhado basófilo: é um artefato da coloração (i. e., não existe in vivo) pela precipitação dos ribossomos quando muito ricos em RNA. A conservação do sangue em EDTA dificulta a formação; procure-se pontilhado basófilo sempre em lâminas de sangue nativo. Um pontilhado tênue, em alguns eritrócitos, pode ser notado nas grandes policromatocitoses; nesses casos, é irrelevante anotá-lo. Um pontilhado nítido é usualmente visto em número significativo dos micrócitos da β-talassemia minor, dado relevante para diferenciá-la da anemia ferropênica; um pontilhado grosseiro é característico da intoxicação pelo chumbo (saturnismo). Pontilhado basófilo tênue, mas, na maioria dos eritrócitos, é patognomônico da rara anemia hemolítica por deficiência genética de pirimidina-5-nucleotidase.

Corpos de Heinz: são corpúsculos de hemoglobina desnaturada, precipitados por corantes supravitais; verde de metila é o melhor para evidenciá-los, mas podem ser vistos, também, com azul brilhante de cresil e azure B (azure II). Há corpos de Heinz nas variantes genéticas instáveis da hemoglobina, nas crises hemolíticas em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase e na agressão aos eritrócitos por fármacos oxidantes. Os corpos de Heinz são removidos pelo baço, de modo que, nas eventualidades citadas, só são numerosos no sangue em pessoas esplenectomizadas.

Siderossomos (corpúsculos de Pappenheimer): são grânulos de ferro dispersos de modo irregular, na periferia do eritrócito, vistos nas síndromes mielodisplásicas. São pouco

visíveis na coloração pancrômica usual, mas facilmente evidenciados pela coloração de Perls (para o ferro). A coloração de Perls, que não costuma ser feita no sangue periférico, evidencia também os siderócitos, eritrócitos com 1 a 4 pequenos grânulos de ferro, geralmente centrais, normalmente presentes no sangue em pequeno número.

Anéis de Cabot: são restos do fuso mitótico, vistos raramente em casos de diseritropoese, principalmente da anemia perniciosa e das síndromes mielodisplásicas.

Cristais: na hemoglobinopatia C homozigótica não são raros cristais trapezoides densos, deformando os eritrócitos; na hemoglobinopatia SC, os eritrócitos deformam-se de modo característico (ver imagem em drepanócitos, anteriormente neste capítulo). Na raríssima protoporfiria eritropoética foram recentemente descritos eritrócitos com cristais de porfirina. HEMATOZOÁRIOS São agentes infecciosos que vivem parte do ciclo vital e/ou trafegam no sangue, seja com presença intra ou extracelular. Os hematozoários intraeritrocíticos podem ser considerados “inclusões”. As doenças infecciosas respectivas (malária, babesiose e bartonelose) caracterizam-se por hemólise severa e costumam ser diagnosticadas pelo hemograma: serão descritos com as demais anemias hemolíticas no Capítulo 5. Há hematozoários intracelulares que parasitam leucócitos (ver Cap. 15). Outros hematozoários podem ser vistos no sangue à microscopia rotineira do hemograma ou com alguma elaboração técnica. Como circulam livres no plasma (não se constituindo em inclusões infecciosas eritrocitárias), o autor optou arbitrariamente por descrevê-los e discutir as doenças respectivas neste capítulo. Doença de Lyme: descrita na região de Lyme (Connecticut, EUA, 1977), a doença é comum nos Estados Unidos, com > 33 mil casos comunicados ao Center of Diseases Control em 2011. Desde um primeiro caso em São Paulo, em 1988, avolumam-se

descrições de casos no Brasil. Carrapatos vetores transmitem a espiroqueta Borrelia burgdorferi (Willy Burgdorfer, 1981), que causa uma infecção febril, com cefaleia e fadiga. A borrelia é sensível à doxicilina e a vários quimioterápicos; casos não tratados evoluem para uma forma crônica com comprometimento articular, cardíaco e neurológico. A espiroqueta circula livre no plasma dos pacientes, mas a visibilidade à microscopia é muito difícil: cora-se mal com os corantes rotineiros. O diagnóstico é confirmado por teste Elisa ou reação em cadeia da polimerase (PCR). Doença de Chagas (Carlos Chagas, 1909): o Trypanosoma cruzi (em homenagem ao sanitarista Oswaldo Cruz) é transmitido pelo triatomídeo, vulgarmente chamado “barbeiro” ou “chupão”, sendo prevalente nas zonas rurais em todo o Brasil. Tripanossomas são protozoários com um ciclo livre durável no sangue periférico. Na fase aguda da doença, logo após o contágio, a parasitemia é significativa e os tripanossomas são facilmente vistos; passadas as primeiras semanas, torna-se invulgar notá-los em hemograma rotineiro; há que procurá-los especificamente com microscopia exaustiva. Na fase crônica, tecidual, praticamente não são vistos no sangue, embora sejam transmitidos se o sangue de pacientes for usado em hemoterapia. Surtos epidêmicos limitados e casos esporádicos têm sido descritos no Sul do Brasil por contaminação oral acidental com triatomídeos infectados; o autor, ainda auxiliar acadêmico no Instituto de Pesquisas Biológicas (Porto Alegre), testemunhou um pequeno surto em Teutônia (RS). O hemograma mostra linfocitose moderada passageira e precoce anemia de doença crônica.

Em pacientes imunossupressos, a infestação crônica reativa-se com retorno da parasitemia – nesse caso intensa –, como nas imagens ilustrativas acima, capturadas pelo Cella Vision em paciente transplantado (cortesia do Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre). Helmintíases: larvas de vários nematódeos (ancilostomídeos, estrongiloides, áscaris, outros) fazem ciclo intestino ⇒ pulmão; evidenciá-las em trânsito no sangue é praticamente impossível.

O mesmo não ocorre com microfilárias. A filariose transmitida pelos mosquitos do gênero Culex era comum em Porto Alegre até o começo dos anos 1960; como a circulação das larvas no sangue periférico é mais intensa à noite, o autor à época era destacado para pesquisá-las no sangue de pacientes convocados ao laboratório às 23 horas. Teve vários casos positivos à microscopia em pequeno aumento de gotas de sangue entre lâmina e lamínula: as microfilárias são facilmente notadas pelo movimento intenso entre conglomerados de eritrócitos. Eritroblastos Eritrócitos nucleados (NRBC) existem no sangue do recém-nascido e aparecem no decurso de hiper-regenerações eritroides extremas, acompanhando a policromatocitose/reticulocitose. Crê-se que muitos se originam de metaplasia mieloide no baço e no fígado. A anoxemia severa pode causar eritroblastemia. Quando a medula está estruturalmente alterada por fibrose, disseminação tumoral ou necrose, surgem eritroblastos no sangue, acompanhados de mielócitos e células ainda mais jovens da linhagem mieloide. O quadro denomina-se reação leucoeritroblástica. Um aspecto leucoeritroblástico similar, mas com trombocitopenia, neutropenia e neutrófilos e monócitos em apoptose, é visto em pacientes com insuficiência múltipla de órgãos, na maioria agônicos, nas últimas 1 a 2 semanas, principalmente quando em choque prolongado; a presença de eritroblastos seria uma característica mais segura de mau prognóstico do que a presença de granulócitos imaturos. As ilustrações a seguir mostram a série eritroide do proeritroblasto ao eritroblasto ortocromático (aquarelas, cortesia Abbott Diagnostics) e imagens Cella Vision de eitroblastos no sangue periférico (cortesia Sysmex).

Eritroblastos são contados como leucócitos na maioria dos contadores eletrônicos. O Cell Dyn 4000 identifica-os pelo canal de fluorescência e conta-os separadamente. Os modelos top of line da Beckman-Coulter e da Sysmex também já os identificam e deduzem da contagem de leucócitos. Outros contadores notam a presença e emitem flag NRBC (nucleated red blood cells). A presença de eritroblastos à microscopia é anotada no resultado como um valor percentual relativo a 100 leucócitos e/ou em valor absoluto, eritroblastos/µL de sangue. Ao fazer-se fórmula leucocitária ao microscópio, quando os eritroblastos ultrapassarem 5/100 leucócitos, convém descontá-los da contagem; para isso, faz-se a fórmula anotando-os em separado (sem incluí-los nos 100 leucócitos). O cálculo corretivo, a seguir, é autoelucidativo:

■ Em paciente com leucócitos = 7.200/µL, durante a observação de 100 leucócitos foram anotados 20 eritroblastos; a contagem de leucócitos corrigida será (7.200 ÷ 120) × 100 = 6.000/µL. 1 A OMS preconizou, há alguns anos, que as contagens de glóbulos fossem expressas por litro de sangue (p. ex., E = 5,3 × 1012/L). Essa decisão nada acrescentou em simplicidade ou clareza e dificultou a transcrição; não foi adotada no Brasil e está caindo em desuso internacional, paralelamente ao indesejável uso de resultados bioquímicos em milimol/L em vez de miligramas/dL. Nos hemogramas deste livro, para simplificar, M (= milhões) substitui × 106. 2 Beutler E, Waalen J. The definition of anemia: what is the lower limit of normal of the blood hemoglobin concentration? Blood. 2006;107(5):1747-1750. 3 Beutler E, West, C. Hematologic differences between African-Americans and whites: the roles of iron deficiency and α-thalassemian on hemoglobin level 5 and mean corpuscular volume. 2005;106(2):740-5. 4 Isocitose é um termo pouco usado e não é sinônimo de normocitose; esta implica VCM normal, ao passo que isocitose refere-se apenas à homogeneidade da população eritroide (RDW normal) e independe do VCM – pode também ser atributo de populações micro ou macrocíticas. 5 O uso de siglas complica-se na tradução do inglês das máquinas. Nossa CHCM (concentração hemoglobínica corpuscular média), nas máquinas, é MCHC (mean cell hemoglobin concentration), ao passo que a medida direta do Advia é designada cellular hemoglobin concentration mean = CHCM, sigla igual à nossa para a medida convencional. 6 Bessis M. Cospuscles: atlas of red blood cell Shapes. New York: Springer; 1974. 7 Sinônimos: policromasia, policromatofilia. O autor prefere policromatocitose por analogia a anisocitose e pecilocitose.

3 ANEMIA: GENERALIDADES CONCEITO E PREVALÊNCIA “Palidez e fraqueza devem-se à corrupção do sangue”. A frase de Hipócrates (≅ 400 a. C.) mostra que, além de pai, foi profeta da Medicina, pois estabeleceu a correlação causa ⇒ efeito do que hoje denominamos anemia com seus principais sintomas e sinais, antecipando-se dois milênios à descoberta dos eritrócitos (“o sangue é composto de pequenos glóbulos redondos, suspensos numa umidade cristalina”, Leeuwenhoek, ≅ 1675 d. C.). A história é rica em anacronismos: o primeiro tratamento eficaz da anemia, o elixir ferroso de Sydenham, de 1700, superado pelas pílulas de Blaud, de 1832, precedeu em 200 anos a contagem dos eritrócitos, só conseguida de modo reprodutível no século XX. Há quase meio século, a Organização Mundial de Saúde (OMS) 1 tentou defini-la em números: “considera-se haver anemia quando a dosagem de hemoglobina estiver abaixo das cifras que seguem: Crianças de 6 meses a 6 anos Crianças de 6 a 12 anos Homens adultos Mulheres adultas Gestantes

11 g/dL 12 g/dL 13 g/dL 12 g/dL 11 g/dL

O relatório, entretanto, foi elaborado sem o apoio de uma coleta de dados com números suficientes. Os valores de referência atuais para hemoglobina foram modificados, com base em tecnologia contemporânea e bancos de dados apropriados, como visto no Capítulo 2; esses números, já do século XXI, devem ser preferidos na conceituação de anemia. Como pode decorrer de múltiplas causas, a anemia é uma síndrome. Sua prevalência, liderada pela anemia ferropênica, é tão elevada que se constitui em problema mundial de saúde pública. Crê-se que 20% da população mundial não tenha reservas de ferro extrahemoglobínico no organismo, apesar da excreção fisiológica média do ferro ser insignificante: nos homens ≅ 1 mg/dia; nas mulheres (pela perda menstrual) ≅ 3 mg/dia. As razões da atual carência de ferro antecedem a história. Tanto quanto se pode presumir, o homem primitivo alimentava-se como seus assemelhados do topo da escala zoológica: frutas silvestres, ervas palatáveis, ovos e presas animais, de larvas a mamíferos de porte; o canibalismo, à época, é uma possibilidade que não pode ser excluída. Essa dieta natural aportava-lhe ferro ligado a proteínas animais e ácido ascórbico das frutas, combinação ideal à absorção duodenal do nutriente. Em épocas de escassez, o homem primitivo poderia estar desnutrido, muitas vezes faminto, mas raramente ferropênico. O sobrenome sapiens, cunhado para caracterizar o ramo de maior desenvolvimento cerebral que se diferenciou de outras raças/espécies assemelhadas e hoje habita a Terra, levou-o à invenção da agricultura. Fornecendo calorias previsíveis, a colheita fixou-o ao solo e deu origem à expansão demográfica: milhares tornaram-se milhões, hoje quase 7 bilhões. Não há proteínas animais para tantos, e, infelizmente, o trato digestivo humano não evoluiu para os novos tempos: continua absorvendo mal o ferro dos grãos, dos tubérculos e das folhas verdes. A mulher primitiva, que passava grávida ou lactando a curta vida adulta, evoluiu para a longeva mulher atual, que perde sangue (e ferro) mensalmente pela menstruação durante décadas. Dentre os habitantes do atual terceiro mundo, há aproximadamente 800 milhões – na maioria crianças – que são espoliados de ferro por verminoses. Esse novo contexto fez a anemia ferropênica tornar-se, literalmente, uma peste branca, pouco notada, pouco valorizada, mas de espantosa prevalência. E há a anemia da malária (> 300 milhões de novos casos anuais), das talassemias e hemoglobinopatias (≅ 100 milhões); e deve-se considerar que a longevidade triplicada do século XX deu origem a milhões de idosos com as doenças anemizantes e perdas sanguíneas próprias desse grupo etário crescente. Estatísticas atuais mostram que mais de 10% dos pacientes internados em hospitais gerais são anêmicos. A anemia tornou-se a síndrome crônica de maior prevalência em Medicina e, como tal, a principal razão de ser do eritrograma. ANEMIA MÍNIMA A definição de anemia da OMS, substituída pelos valores de referência atuais, estabelece parâmetros numéricos que visam uma padronização internacional do termo; é óbvio que

limites numéricos estanques não são aplicáveis à biologia em geral, muito menos à clínica em particular. É preciso considerar que a abrangência dos intervalos de referência é internacionalmente arbitrada em 95% da amostragem (média ± 2 DP); 2 no caso da hemoglobina, preferiu-se defini-los como média –1,65 DP, para englobar os 5% mais baixos (não em cada extremo) da população de referência. O autor tem a impressão empírica, pois nunca fez um levantamento estatístico válido, de que a maioria desses 5% situados no limbo da anemia, com “minianemia’, quando se trata de pacientes masculinos, brancos e sem sinais de doença, ainda assim tem hemoglobina acima de 12,0 g/dL; quando femininos, acima de 11 g/dL. Deve-se lembrar da diferença a menos em pacientes de raça negra; notar que a α-talassemia, de alta incidência, baixa a hemoglobina sem outras alterações do hemograma e que não tem sinais clínicos; é um diagnóstico de exclusão (ver Cap. 6). O autor crê que, em pacientes abaixo desses níveis de hemoglobina (12 g/dL), na grande maioria das vezes encontra-se uma causa razoável para a anemia, que assim se confirma. As minianemias dos eritrogramas da Figura 3.1, como achados insuspeitados de consulta ou revisão médica com generalista ou especialista, deveriam gerar a questão “há mesmo anemia?”, mas geralmente desencadeiam uma receita intempestiva de ferro e vitamina B12 e/ou o encaminhamento a hematologista. A pergunta é ainda mais pertinente no caso de hemograma em idosos (ver Cap. 20). A rotina a seguir, elaborada em torno dos dois casos da Figura 3.1, muitas vezes soluciona o problema na origem:

FIGURA 3.1 Eritrogramas vistos em revisão médica: homem de 56 anos (a), mulher de 23 anos (b).

1. Em ambos os casos, deve-se realizar cuidadosa história e exame para evidenciar/excluir doença crônica ou recente. Pesquisar sinais/sintomas de hipotireoidismo. Na jovem (Fig. 3.1 [b]), iniciar com questionário sobre o fluxo menstrual (ver “Anemia ferropênica”). A ambos, perguntar sobre perdas sanguíneas, sobre anemia já diagnosticada/tratada no passado, se há (houve) anorexia, emagrecimento, noctúria, etc. A resposta “sim” à pergunta “sente-se ou está doente?” favorece a inclusão de anemia no raciocínio clínico; a resposta “não” transforma o eritrograma em um achado de laboratório a esclarecer. Queixas de cansaço ou desânimo, principalmente em mulheres jovens, são tão expressivas de somatização de

problemas emocionais que se tornam difíceis de valorizar. As perguntas anteriores não fogem da rotina de um clínico experiente. 2. Revisar os demais exames trazidos ou pedidos. São indispensáveis: ferritina, TSH, creatinina e testes para doenças infecciosas e inflamatórias, se pertinentes; velocidade de sedimentação globular (VSG) é sempre útil, embora inespecífica. Em pacientes de meia-idade ou idosos, acrescentar proteinograma e dosagem de vitamina B12. Os resultados, se alterados, podem ser esclarecedores. Se forem todos normais e o paciente não se sentir “doente”, o adendo essencial, nem sempre lembrado, está descrito no próximo item. 3. Explicar ao paciente a necessidade de conhecer o passado para avaliar o presente. Fazê-lo procurar, juntar e trazer resultados de exames anteriores, mesmo que para isso deva solicitar cópias aos laboratórios onde se lembra de terem sido feitos. Não só exames recentes; também exames antigos, de anos atrás, se houver. O retrospecto dos hemogramas obtidos e trazidos frequentemente é elucidativo. O paciente (a) trouxe mais dois resultados, do ano precedente, com hemoglobinas de 12,4 e 12,9 g/dL, próximas à atual. Na paciente (b), a avaliação pôde ainda ser mais bem feita: trouxe no retorno um “laudo evolutivo” (Fig. 3.2) com seis hemogramas, de 2011 até um próximo à consulta (12/11/2013): ver a notável semelhança entre todos, apenas com a variação aleatória das cifras em torno da média e com hemoglobina sempre entre 11,1 e 11,5 g/dL. Nenhum dos dois pacientes refere ter tido doença relevante ou durável nesse período: sentem-se sadios. Os níveis de hemoglobina atuais – similares aos anteriores – devem representar “o normal” de cada um deles. Lembrar a definição de anemia preferida pelo autor: uma dosagem de hemoglobina significativamente inferior às precedentes, similares e documentadas por hemogramas trazidos. Se, ao contrário, eritrogramas anteriores mostrarem hemoglobina significativamente mais alta, com diminuição, que pode ter sido lenta ou abrupta até a atual, aprofundar a investigação em busca de uma causa; se não encontrada, manter o(a) paciente em observação com hemogramas repetidos a cada 3 a 4 meses. O mesmo programa prospectivo deve ser instituído para pacientes assintomáticos que não tenham resultados de exames anteriores. Data

12/11/2013

09/02/2013

06/11/2012

05/04/2012

03/01/2011

Eritrócitos

3,59

3,49

3,52

3,40

3,47

M/µL

Hemoglobina

11,1

11,5

11,4

11,2

11,3

g/dL

Hematócrito

34,1

33,1

34,1

33,0

33,6

%

VCM

95,0

94,8

96,9

97,1

96,8

fL

HCM

30,9

33,0

32,4

32,9

32,6

pg

CHCM

32,6

34,7

33,4

33,9

33,6

%

RDW

13,7

13,4

13,6

12,8

13,1

%

FIGURA 3.2 Laudo evolutivo (Laboratório a+) dos eritrogramas da paciente da Figura 3.1 (b).

SINTOMAS E SINAIS

Na anemia aguda causada pela perda súbita de sangue (ver Cap. 4), os sinais são apenas de hipovolemia. Na anemia crônica, em que a volemia é normal por expansão do volume plasmático, há o cortejo sintomático próprio da síndrome. Pobre em hemoglobina e em eritrócitos, o sangue anêmico mostra-se descorado, com baixa viscosidade e incapaz de carrear oxigênio com a devida eficácia. Dessas alterações e das reações compensadoras decorrem os sinais e sintomas de anemia homeostásicos. Os órgãos e tecidos com maior gradiente entre o pO2 arterial e o venoso, isto é, cujas funções consomem mais oxigênio, são os que mais sentem a anemia. É o caso, em ordem decrescente, do sistema nervoso central, do miocárdio e da musculatura esquelética; bem abaixo, as vísceras abdominais. Os rins são resistentes à anemia crônica e muito sensíveis à aguda, porque a fonte energética da função filtrante é a pressão arterial. A sintomatologia é diretamente proporcional à severidade da anemia, inversamente à eficácia dos mecanismos adaptativos e intensifica-se exponencialmente com a atividade física, que exige O2. Nas anemias leves, com Hgb > 9 g/dL, há apenas irritabilidade, cefaleia, fatigabilidade e dispneia a esforços físicos continuados; pode surgir dor anginosa se houver insuficiência coronária, antes assintomática. A palidez só é notada com especial atenção às mucosas, à parte glabra dos lábios, à palma das mãos e aos leitos ungueais. É facilmente disfarçada pela congestão tegumentar do choro, da febre e da recente exposição ao sol. Com Hgb entre 6 e 9 g/dL, a palidez é fácil de notar, há tonturas e lipotimias, sopro anorgânico; taquicardia, dispneia, palpitações e fadiga surgem aos menores esforços, como subir escadas ou acelerar o passo, e dor nos membros inferiores em caminhadas longas. Com Hgb < 6 g/dL, a sintomatologia está presente mesmo no desempenho de atividades sedentárias, e, quando < 3,5 g/dL, a insuficiência cardíaca é iminente, e toda atividade, impossível. O organismo reage à anemia por múltiplos mecanismos: 1. Redistribuição circulatória: há vasoconstrição na área esplâncnica e nos tegumentos em favor das áreas nobres, ávidas por oxigênio. 2. Aumento do débito cardíaco: há taquicardia e maior enchimento diastólico, este favorecido pela baixa da viscosidade sanguínea. A hipercinese circulatória aumenta o volume/minuto oferecido à perfusão periférica, mas sobrecarrega o miocárdio. 3. Aumento de 2-3-difosfoglicerato nos eritrócitos: causa diminuição da afinidade da Hgb ao oxigênio, favorecendo a liberação tecidual. 4. Aumento da síntese de eritropoetina (Epo): é a adaptação corretiva. A anoxemia estimula as células peritubulares renais que sintetizam Epo. O aumento de Epo no plasma já é notado 24 horas após uma anemização súbita, mas a resposta reticulocítica só é notada entre o 3º e o 4º dia; a IRF eleva-se antes. 5. Mudança de conduta: nas anemias de instalação lenta, os pacientes, sem perceberem, diminuem progressivamente a atividade física para evitar a aparição dos sintomas, e negam-nos quando questionados. Só se dão conta do próprio procedimento quando são

interrogados com um componente quantitativo – por exemplo, há semanas, ou meses atrás, quanto tempo ou que distância caminhava ou corria? Com que velocidade subia escadas? E agora? As crianças toleram muito melhor a anemia que os adultos, e os jovens, melhor que os velhos. A adaptação, com o avançar da idade, é cada vez mais difícil. História e exames físicos são necessários à elucidação da patogênese e da etiologia da anemia, mas é inegável que o hemograma é fundamental nessa tarefa. Para a obtenção de resultados concludentes, deve-se fazer o hemograma antes de qualquer intervenção terapêutica, com exceção de transfusão de emergência no caso de haver anoxia cerebral ou coronária, ou insuficiência circulatória periférica. Nas anemias agudas, restaure-se a volemia com urgência e sem cuidados especiais; nas anemias crônicas, faça-se mínima e lenta transfusão de glóbulos concentrados, com o paciente semissentado, cuidando a turgência venosa, pois o aumento súbito da volemia pode desencadear insuficiência cardíaca e edema pulmonar agudo. A administração de preparados ditos hematínicos deve ser evitada antes do esclarecimento da patogênese da anemia pelo hemograma e demais exames complementares. Uma injeção intempestiva de vitamina B12, embora cure transitoriamente a anemia perniciosa, impede seu diagnóstico conclusivo. CLASSIFICAÇÃO A maneira usual de se esclarecer a patogênese e a etiologia da anemia consiste em classificar os casos sob várias ópticas (daí a multiplicidade de classificações) e selecionar o conjunto que mais se aplique aos dados. Classificação pela biometria do eritrócito Data dos trabalhos de Maxwel Wintrobe (≅ 1935). O volume corpuscular médio (VCM), que criou na época (Hct ÷ E), era uma aproximação grosseira do valor real; agora, com a exatidão da medida eletrônica, valorizou-se a classificação. As anemias, quanto ao VCM (no adulto), podem ser: Microcíticas: VCM < 82 fL Normocíticas: VCM entre 82 e 98 fL Macrocíticas: VCM > 98 fL

De acordo com o VCM, consultam-se as listas de causas de macro e microcitose (Cap. 2), escolhendo a(s) mais condizente(s) com o caso. Nos casos pediátricos, interpreta-se de acordo com o VCM próprio para a idade. O uso generalizado do histograma do volume eritroide estimulou J. D. Bessman, em 1979, a incluir o RDW numa classificação que persiste válida. A biometria do eritrócito passa a ser definida por VCM + RDW, o que permite uma classificação em seis categorias. Na Tabela 3.1, com VCM na ordenada e RDW na abscissa, estão alocadas as principais anemias vistas na clínica; a prevalência relativa dos casos em mais de uma categoria é semiquantificada de 1+ a 3+.

TABELA 3.1 Classificação de anemia (A.), segundo o VCM e o RDW

VCM < 80 fL

RDW normal

RDW aumentado

Talassemia minor

A. ferropênica +++

A. das doenças crônicas +

Talassemia maior

VCM > 80 e < 100 fL A. da insuficiência renal

A. ferropênica recente

A. das doenças crônicas ++

Drepanocitose ++

A. do hipotireoidismo ++

A. sideroblásticas +++

Esferocitose

A. das mielodisplasias +

A. aplástica + A. por fármacos oxidativos VCM > 100 fL

A. das hepatopatias

Falta de vitamina B12

A. do hipotireoidismo ++

Falta de ácido fólico

A. por fármacos que interferem na síntese do DNA +

A. por fármacos que interferem na síntese do DNA ++

A. aplástica +++

A. sideroblásticas + A. das mielodisplasias ++ A. hemolítica autoimune Drepanocitose +

Classificação pela patogênese As anemias dizem-se hiper-regenerativas quando têm uma causa periférica e o hemograma mostra sinais de resposta eritropoética medular apropriada no sentido compensador. Dizem-se hiporregenerativas quando são decorrentes de insuficiência da proliferação eritroide ou da síntese hemoglobínica; nestas não há sinais de regeneração compensadora. A chave da distinção entre hiper e hiporregenerativas é a presença ou ausência de policromatocitose/reticulocitose. A detecção de policromatocitose exige cuidadosa observação microscópica, nem sempre feita; a policromatocitose não é notada pelas máquinas! A inexatidão da tediosa contagem de reticulócitos ao microscópio não lhe dava credibilidade para centrar o diagnóstico diferencial das anemias; a facilidade e a precisão da contagem eletrônica de reticulócitos, feita na sequência do hemograma nos contadores de grande porte, tornaram-na fundamental nessa função. Atualmente, no pressuposto de dispor-se da tecnologia, recomenda-se de modo irrestrito que, no diagnóstico diferencial de anemia, solicite-se hemograma e (com) reticulócitos. A classificação de anemia pela patogênese é apropriada a um raciocínio clínico, principalmente se forem assimilados e lembrados os mecanismos de anemização sob cada ramo da dicotomia hiper/hiporregenerativas. São hiper-regenerativas as anemias decorrentes de: ■ hemorragia recente; ■ encurtamento da sobrevida eritroide (hemólise).

A anemia pós-hemorrágica é cronologicamente limitada: a reticulocitose é máxima do sexto ao oitavo dia e vai diminuindo até a normalização das cifras. As anemias hemolíticas geralmente são crônicas: crises hemolíticas limitadas são infrequentes (salvo as da malária e da deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase). A reticulocitose das anemias hemolíticas crônicas é constante e acentuada; a medula em hiperplasia eritroide expande-se no esqueleto. Há sinais clínicos e bioquímicos de hemólise. As contagens de reticulócitos em 15 casos de anemia hemolítica (esferocitose, drepanocitose, anemia autoimune, hemoglobinúria paroxística noturna) e em quatro casos de anemia pós-hemorrágica no ápice da regeneração podem ser vistas na Figura 3.3 (a), e a IRF, elevada em todos os casos, na Figura 3.3 (b). São hiporregenerativas as anemias decorrentes de: ■ ■ ■ ■ ■ ■

insuficiente síntese de hemoglobina; síntese inapropriada de DNA; eritropoese ineficaz por neoplasia/displasia; falta de tecido eritropoético; insuficiente produção de eritropoetina; combinações dos mecanismos acima.

Cada um dos mecanismos propostos de anemia hiporregenerativa origina alterações características no hemograma, inclusive algumas patognomônicas. A síntese deficiente de hemoglobina, tanto por falta de oferta de ferro à eritropoese como por defeito genético da síntese da globina, dá origem a eritrócitos com falta de conteúdo; por isso, há microcitose. Há uma raríssima anemia microcítica por bloqueio genético na síntese do heme. A síntese inapropriada de DNA, tanto por falta de vitamina B12 ou ácido fólico como pelo uso de fármacos antiblásticos e antivirais, causa macrocitose. A proliferação ineficaz e o exagero apoptótico, na leucemia eritroide aguda e nas mielodisplasias, acompanham-se de alterações morfológicas da série eritroide do sangue (que podem incluir macrocitose) e da medula, geralmente compartilhadas por alterações nas séries granulocítica e megacariocítica. Há raríssimas anemias diseritropoéticas congênitas com anemia por eritropoese ineficaz. Neoplasias e mielodisplasias serão discutidas em capítulos próprios. A falta de tecido eritropoético costuma fazer parte dos quadros de insuficiência global da medula óssea (aplasia, infiltração tumoral, etc.), donde haver pancitopenia. Na rara aplasia eritroide pura (ou eritroblastopenia pura), a falta seletiva da série eritroide expressa-se por extrema reticulocitopenia, com as demais séries normais. A síntese deficiente de eritropoetina dá origem a uma anemia normocítica, com hemograma não esclarecedor, salvo pela falta persistente de sinais regenerativos. Há, ainda, anemias de patogênese mista ou variável passíveis de enquadramento simultâneo em mais de um desses mecanismos; é o caso da anemia da maioria das doenças crônicas, que podem ser normo ou microcíticas. E há pseudoanemias, decorrentes de variações volêmicas.

A Figura 3.3 (a) mostra a contagem de reticulócitos em 77 casos de anemias hiporregenerativas (anemia ferropênica = 32, anemia perniciosa = 10, insuficiência renal crônica = 15, β-talassemia minor = 20). Note-se que as anemias hiporregenerativas não se caracterizam propriamente por reticulocitopenia, mas por falta de reticulocitose. Na βtalassemia minor há reticulocitose, mas insuficiente para compensar o defeito genético da síntese da hemoglobina: é hiper-regenerativa quanto à proliferação eritroide e hiporregenerativa quanto à produção de hemoglobina. A aplasia eritroide pura (ou eritroblastopenia pura, Cap. 8) é a única anemia em que há reticulocitopenia extrema.

FIGURA 3.3 Contagem de reticulócitos (a) e IRF (b) em seis tipos de anemias, hiper-regenerativas e hiporregenerativas (Cell Dyn 4000).

A IRF (Fig. 3.3 [b]) está aumentada na anemia ferropênica, na β-talassemia minor e na anemia aplástica; não está aumentada na anemia da insuficiência renal e é irregular na anemia perniciosa. Os resultados confirmam que a IRF expressa o nível de eritropoetina, alto em todas, menos na insuficiência renal; na anemia perniciosa, a eritropoese megaloblástica responde tão irregularmente ao estímulo fisiológico que mesmo a IRF é impossível de ser interpretada. O hemograma detalhado e a descrição clínica sumária de cada uma das anemias, sob os títulos da classificação pela patogênese, serão discutidos nos capítulos subsequentes. 1 World Health Organization. Nutritional anaemias: report of a WHO Scientific Group. Geneva: WHO, 1968. Technical report series; 405. 2 O número estatisticamente exato é média ± 1,96 DP. O intervalo média ± 2 DP inclui 95,4% da amostragem. A escolha desse intervalo de referência (95%) correlaciona-se com o valor arbitrado para limite de significação estatística, p < 0,05, isto é, em ambos aceita-se como válida a exclusão aleatória de 1 dado em 20.

4 ANEMIA PÓS-HEMORRÁGICA Hemorragias agudas inferiores a 10% da volemia (p. ex., doações de sangue) são bem toleradas; em pessoas emocionalmente sensíveis, podem causar reação vasovagal, de rápida recuperação: palidez, bradicardia, pulso filiforme, lipotimia, náuseas, sudorese. Nas perdas entre 10 e 20% da volemia, a reação vasovagal é a regra e há hipotensão ortostática. Perdas sanguíneas agudas superiores a 20% da volemia, geralmente causadas pelas hemorragias listadas na Tabela 4.1, causam anemia aguda, com sinais de hipovolemia: palidez, extremidades frias, taquicardia, hipotensão inicialmente venosa, depois arterial e choque. Perdas rápidas acima de 30% da volemia, se não tratadas imediatamente, levam a choque difícil de se reverter e mortalidade elevada. TABELA 4.1 Hemorragias capazes de causar anemia aguda ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■

Hemorragias por trauma acidental ou ferimentos provocados (quando ocultas: ruptura de baço, fígado ou vasos calibrosos) Hemorragias trans e pós-operatórias Hemorragias no trato digestivo com hematêmese e/ou melena (geralmente úlceras ou varizes) Metrorragias (principalmente obstétricas) Hemorragias pélvicas (com ou sem metrorragia) Hemorragias retroperitoneais (comuns em hemofílicos) Hemoptises e epistaxes (raramente)

Em casos de hemorragia súbita, o eritrograma feito poucos minutos após o evento é inexpressivo. O paciente pode ainda estar perdendo sangue, volumosamente até, mas o sangue remanescente é normal. O eritrograma não reflete a hipovolemia; reflete a

desproporção plasma/glóbulos, e plasma e glóbulos estão sendo perdidos na mesma proporção. Cessando, ou mesmo prosseguindo a hemorragia, o volume plasmático vai sendo progressivamente restaurado a partir do líquido extracelular e dos líquidos recebidos por via oral ou intravenosa com o tratamento. As cifras hematimétricas (E, Hgb e Hct) baixarão paralelamente pela diluição. Em oposição à inexpressividade inicial da série vermelha, há neutrofilia quase imediata, inicialmente por circulação do pool marginal (sem desvio à esquerda), depois por liberação da reserva granulocítica medular (com desvio à esquerda). O hemograma após 4 horas da perda já mostra baixa da série eritroide e tem neutrofilia com desvio à esquerda e trombocitose reacional, que duram alguns dias. Cessando a hemorragia, com boa hidratação, a volemia restaura-se parcialmente em 24 horas e completamente em 48 horas, quando passa a ser representativo da perda havida. Um exemplo elucidativo está no caso a seguir, com laudo evolutivo dos hemogramas na Figura 4.1, o que permite fácil avaliação da magnitude da hemorragia. O hematócrito é, por tradição, a cifra usada para cálculos volêmicos. Paciente masculino de 71 kg consulta em 13/10/2013 para ver se já está recuperado de perda sanguínea havida em acidente ocorrido em 10/09/2013. Na ocasião, foi atendido em setor de emergência onde recebeu fluidos intravenosos, 3 unidades de glóbulos, e procederam a estancamento cirúrgico da hemorragia. Com o hemograma recente (03/10/2013), o laboratório forneceu laudo evolutivo (Fig. 4.1) que incluiu os hemogramas feitos no hospital durante o evento hemorrágico e um hemograma feito em check up meses antes. Os índices hematimétricos e parte dos leucogramas foram deletados. Data

03/10/2013

17/09/2013

12/09/2013

10/09/2013

13/12/2012

Eritrócitos

4,92

3,77

3,48

4,83

5,22

M/µL

Hemoglobina

14,5

10,9

10,0

14,1

15,2

g/dL

Hematócrito

43,3

32,6

30,1

41,7

45,1

%

Reticulócitos



199.810







/µL

Leucócitos

6.600

7.400

11.100

10.300

6.300

/µL

Neutrófilos

4.112

5.268

8.769

8.363

3.780

/µL

221.000

318.000

406.000

261.000

212.000

/µL

Plaquetas

FIGURA 4.1 Laudo evolutivo dos hemogramas; o de 10/09/2013 foi feito ao ingressar no setor de emergência, antes da hemoterapia, mas já com fluidos IV.

Cálculo da perda sanguínea: o Hct baixou de 45,1% (hemograma de 13/12/2012; se não houvesse hemograma prévio, o Hct seria estimado em 47%.) para 30,1% (hemograma de 12/09/2013, ≅ 48 horas após a hemorragia). Note-se a falta de representatividade do Hct na chegada ao setor de emergência (41,7% em 10/09/2013), embora já haja leve baixa pela reposição salina; e note-se a precocidade da neutrofilia por imediata circulação do pool marginal. A diminuição de 45,1% para 30,1% é de 33% (= 1,63 L). A volemia do paciente pode ser estimada em cerca de 5 L (7% de 71 kg); como recebeu glóbulos correspondentes a 1,35 L de sangue (3 × 450 mL), a hemorragia foi de quase 3 litros! Para

passar incólume por tal perda, o atendimento do paciente na emergência deve ter sido altamente eficiente, com rápida e abundante reposição de fluidos e hemoterapia. De interesse, também, é o resultado de hemograma + reticulócitos uma semana depois. A elevação das cifras hematimétrica ainda é mínima, mas os sinais de regeneração são significativos: reticulócitos = 5,3% = 199.810/µL. O leucograma normalizou-se, mas persiste leve trombocitose. O hemograma recente trazido (03/10/2013) já se mostra praticamente normal. Eritrogramas como os da Figura 4.1 são facilmente interpretados como póshemorrágicos quando sucedem hemorragia óbvia. Na falta de hemorragia aparente, quando o volume da perda ainda permite, os pacientes procuram o consultório com uma história de fraqueza recente, sede e mal-estar; podem ter tido lipotima lipotímia ou tontura ao se levantarem bruscamente. Deve-se perguntar insistentemente sobre fezes escuras e com cheiro pútrido notadas dos últimos dias até duas semanas antes; esse contexto é típico de hemorragia no trato digestivo. No caso de mulheres jovens, o eritrograma da Figura 4.1 também pode corresponder a gravidez ectópica rota, com hemorragia pélvica. Deve ser lembrada, ainda, a possibilidade de hematoma retroperitoneal por trauma recente não valorizado; esse evento é comum em hemofílicos. Todo o hemograma com anemia normocítica, sem outros sinais esclarecedores ou doença causal óbvia, deve acompanhar-se de contagem de reticulócitos em máquina eletrônica apropriada. Na falta de tecnologia, o laboratorista deve atentar para policromatocitose; na dúvida sobre esta, o autor recomenda que o laboratorista faça, por sua conta, uma coloração de reticulócitos, que é simples, rápida e barata, não para contálos (o que é tedioso e inviável), mas apenas para ver se estão obviamente aumentados; nesse caso, anote-se o estado hiper-regenerativo com a observação: reticulocitose (de 1+ a 4+). Hemorragias agudas no trato digestivo são as mais frequentemente vistas no setor de emergência de hospitais gerais como causa de anemia aguda. O autor desconhece estatísticas locais, mas há estimativa publicada nos Estados Unidos de 250 mil hospitalizações anuais por essa causa, com 7 a 10% de mortalidade. Em hospitais de pronto-socorro, a frequência é superada pelas hemorragias por trauma acidental ou provocado. Nas hemorragias volumosas na parte alta do trato digestivo (esôfago, estômago e duodeno), a hematêmese é usual, com sangue vivo ou com aspecto de borra de café, por transformação da hemoglobina pelo ácido clorídrico em cloridrato de hematina, de cor parda. A melena que a segue é facilmente notada; sangue vivo nas fezes (hematoquezia) só é visto em hemorragias altas quando mais de um litro de sangue ultrapassa o duodeno em minutos ou poucas horas. As causas comuns de hemorragia alta volumosa são úlcera péptica e varizes esofágicas. O hemograma, na emergência, é inútil para avaliação da magnitude da perda – salvo se o paciente estiver sangrando há mais de 24 horas – como visto no laudo evolutivo da Figura 4.1. Pequenas hemorragias altas costumam passar despercebidas; perdas de até 50 mL de sangue digerido, quando presentes em uma evacuação, não alteram grandemente o aspecto da massa fecal.

Hemorragias volumosas na parte distal do trato digestivo são infrequentes; apresentam-se como hematoquezia; raramente causam hipotensão severa e exigem reposição transfusional. Hemorragias menores apresentam-se como hematoquezia e/ou melena. A anemia aguda pós-hemorrágica constitui-se na mais clara indicação transfusional. Mesmo assim, a indicação depende da situação hemodinâmica do paciente ao ser atendido e já recebendo fluidos intravenosos; com tensão arterial sistólica estável e acima de 100 mmHg, em condições de locomoção sem tontura e com a hemorragia definidamente estancada, a hemoterapia geralmente pode ser evitada. Perdas hemorrágicas pequenas, mas constantes, como nas gastrites crônicas, nas doenças inflamatórias crônicas de delgado, e por hemorroidas (estas geralmente chamativas, mas insignificantes), não causam quadro de anemia aguda. Quando persistentes (sangramento crônico), esgotam as reservas de ferro e causam a anemia microcítica e hipocrômica característica.

5 ANEMIAS HEMOLÍTICAS INTRODUÇÃO Quando há diminuição da sobrevida eritroide, que normalmente é de 110 a 120 dias, dizse haver hemólise. A hemólise será compensada enquanto a hiper-regeneração medular reacional, que consegue multiplicar a eritropoese até 6 a 8 vezes, mantiver as cifras hematimétricas dentro do normal. Se a sobrevida diminuir aquém da capacidade máxima de reposição, haverá anemia hemolítica. Nas anemias hemolíticas, além dos sinais e sintomas gerais de anemia, costuma haver icterícia e esplenomegalia. A icterícia não se acompanha de colúria e acolia; deve-se a aumento da bilirrubina indireta, por exagero do catabolismo hemoglobínico, superando a capacidade hepática de conjugação. Como circula ligada à albumina, a bilirrubina não conjugada não é filtrada nos glomérulos renais; o turnover pigmentar exagerado favorece a formação de cálculos biliares. A esplenomegalia é persistente nas anemias hemolíticas crônicas e passageira quando houver apenas surtos de hemólise; pode desaparecer se a doença causar atrofia do baço. Na hemólise intravascular há hemoglobinúria. Os sinais laboratoriais de hemólise estão na Tabela 5.1. TABELA 5.1 Sinais laboratoriais de hemólise ■ ■ ■

Hemograma: anemia com sinais de hiper-regeneração (policromatocitose/reticulocitose) Hiperbilirrubinemia indireta (não conjugada), sem colúria Elevação acentuada da desidrogenase láctica

■ ■

Diminuição (até ausência) da haptoglobina Hemoglobinemia livre e hemoglobinúria (na hemólise intravascular)

Nas anemias hemolíticas congênitas, a constante hiperplasia eritroide, com expansão das áreas ósseas com medula vermelha durante a época do crescimento, causa deformidades ósseas como alongamento (em torre) do crânio, alargamento da díploe, que mostra aos raios X estrias semelhantes a cerdas de uma escova, proeminência dos malares e maxilares, ocasionando o aspecto descrito como fascies de roedor. O eritrograma nas anemias hemolíticas (Figs. 5.1 e 5.2 adiante) caracteriza-se por policromatocitose e reticulocitose com fração reticulocítica imatura (IRF) elevada. Originam-se da hiperplasia eritroide reacional da medula óssea, sempre presente e que torna inútil examiná-la. A contagem de reticulócitos e a IRF em 16 casos de anemias hemolíticas podem ser vistas na Figura 3.3. Na presença de anemia acompanhada dos sinais de hemólise da Tabela 5.1 há que se fazer o diagnóstico diferencial entre as diversas anemias hemolíticas. Cuidadosa microscopia no hemograma é essencial. Note-se a policromatocitose, pesquise-se a presença de esferócitos, drepanócitos, eritrócitos fragmentados e outros pecilócitos. Uma diminuição súbita da eritropoese em paciente com anemia hemolítica causa grave intensificação da anemia pela curta sobrevida eritroide; essas crises aplásticas costumam decorrer da aplasia eritroide fugaz que acompanha a maioria das viroses; é constante e extrema na parvovirose e significativa na dengue. O esgotamento das reservas de folatos, cujas necessidades são muito aumentadas pela eritropoese exagerada, pode levar a uma anemia megaloblástica de rápida instalação; isso ocorre em épocas de consumo excessivo de folatos, como o crescimento (entre 1 e 3 anos e na puberdade) e a gestação. Anemias hemolíticas decorrem de defeitos intrínsecos aos eritrócitos – anemias hemolíticas intracorpusculares – ou de fatores hemolíticos extrínsecos – anemias hemolíticas extracorpusculares. Excetuando-se a malária nas zonas endêmicas e a drepanocitose nas populações negras, as anemias hemolíticas, mesmo tomadas em conjunto, são relativamente raras e sempre justificam consulta com hematologista. As anemias hemolíticas intracorpusculares, quase todas genéticas, são subclassificadas pela natureza do defeito causal 2 (Tabela 5.2). TABELA 5.2 Anemias hemolíticas intracorpusculares Defeitos na membrana ■ Esferocitose ■ Ovalocitose ■ Hemoglobinúria paroxística noturna (adquirida) Hemoglobinopatias ■ Síndromes falcêmicas ■ Outras hemoglobinopatias Deficiências enzimáticas ■ Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase ■ Deficiência de piruvatoquinase ■ Deficiência de pirimidina-5-nucleotidase (rara) ■ Outras (muito raras)

DEFEITOS NA MEMBRANA DO ERITRÓCITO

A membrana, como parte superficial do citoesqueleto, confere ao eritrócito flexibilidade e resistência, que lhe permite manter a integridade em traumas circulatórios e deformar-se de modo reversível na microcirculação. É composta de lipídeos, continuamente renovados a partir do plasma, e de proteínas com múltiplas funções. Defeitos genéticos, qualitativos ou quantitativos, na síntese das principais proteínas, levam à instabilidade estrutural, à perda de vesículas lipoproteicas, à diminuição da superfície da membrana em relação ao volume do glóbulo e à deformação esferoide ou eliptoide. A Tabela 5.3 mostra os principais defeitos genéticos e suas consequências. A análise das proteínas ou dos genes, por biologia molecular, não é utilizada na clínica; o diagnóstico de esferocitose e ovalocitose costuma ser puramente hematológico. Esferocitose É um defeito poligênico das proteínas da membrana, de acordo com a Tabela 5.3. Em 75% dos casos, é autossômico dominante; recessivo em ≅ 10%; de novo nos demais. A prevalência é elevada nas populações do norte da Europa (≅ 50/100.000), menor nas populações brancas latinas (20 a 30/100.000) e ainda menor em negros e orientais. Os esferócitos têm sobrevida reduzida; são retidos e destruídos precocemente no baço. TABELA 5.3 Defeitos genéticos das proteínas da membrana que causam esferocitose e eliptocitose (ovalocitose) Proteínas alteradas

Defeitos decorrentes

Anquirina

Esferocitose dominante; ≅ 50% dos casos

β-espectrina

Esferocitose dominante (com esferoacantócitos); ≅ 30 dos casos Esferocitose recessiva, muito rara Eliptocitose; ≅ 5% dos casos

α-espectrina

Eliptocitose; ≅ 80% dos casos Esferocitose dominante e recessiva, raras

Banda-3

Esferocitose dominante; ≅ 20% dos casos (com esferócitos pinçados) Esferocitose recessiva (dupla heterozigose), rara Ovalocitose do sudeste asiático

Proteína 4.2

Esferocitose dominante e recessiva; raras, prevalentes quase só no Japão

Proteína 4.1

Eliptocitose; ≅ 15% dos casos, mais em árabes

Glicoforina C

Eliptocitose; rara

Na esferocitose, há todos os sinais clínicos e laboratoriais de hemólise, mas a severidade é variável, desde hemólise compensada, sem anemia, até anemia severa, com Hgb < 8 g/dL. O hemograma (Fig. 5.1, [a]) mostra policromatocitose/reticulocitose constante. Nos casos com anemia severa, os esferócitos predominam e são fáceis de serem notados à microscopia pela falta do centro claro, por perda da biconcavidade e pelo diâmetro menor; o VCM, entretanto, não costuma estar diminuído, sendo imprópria a denominação microesferócitos. Nos casos leves, os esferócitos são pouco numerosos, geralmente passam despercebidos na rotina do hemograma, e o diagnóstico não é feito. Para identificá-los à microscopia, há necessidade de lâminas bem distendidas e coradas, uso das objetivas de imersão recomendadas e, principalmente, conhecimento e suspeita do

defeito por parte do técnico. Devem ser procurados com atenção em todos os casos com policromatocitose/reticulocitose. Nas famílias com defeito da β-espectrina, vários esferócitos são espiculados (esferoacantócitos); no defeito da proteína banda-3, há esferócitos em forma de ampulheta, como se tivessem sido pinçados no centro.

FIGURA 5.1 Eritrograma: esferocitose em menino de 4 anos (a). Teste de resistência globular (b) em esferocitose. (Cortesia do Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre).

O teste diagnóstico para os casos duvidosos de esferocitose, a determinação da resistência globular à hipotonia osmótica, é manual, trabalhoso, poucas vezes solicitado e geralmente malfeito. Exige cuidadosa pesagem de NaCl não hidratado, que é difícil de se obter e de manter. O resultado pode ser expresso em tabela ou gráfico, correlacionando a porcentagem de hemólise a concentrações decrescentes de NaCl, de 0,9 a 0 g/dL. Exemplo de curva de resistência globular cuidadosamente feita é visto na Figura 5.1 (b). O pediatra, por sua vez, deve considerar a hipótese de esferocitose em todos os pacientes com anemia de longa data, com icterícia leve (bilirrubina indireta entre 1 e 4 mg/dL) e baço palpável. Às vezes há hemólise perinatal, com anemia e icterícia, a ser distinguida da doença hemolítica do recém-nascido; na incompatibilidade ABO, os esferócitos também são numerosos. Dada a usual herança dominante, o exame dos pais, muitas vezes, é esclarecedor. A anemia da esferocitose cura-se com a esplenectomia, embora os eritrócitos persistam esferocíticos. Sem o baço, a hemólise diminui a níveis facilmente compensados pela medula óssea. Deve ser feita entre os 5 e os 7 anos de idade. O hemograma pós-esplenectomia costuma mostrar grande número de esferoacantócitos, além dos usuais corpos de Howell-Jolly. A contagem de reticulócitos

no Cell Dyn 4000 em seis casos do autor mostrou um resultado discordante da microscopia e difícil de interpretar: média de 330.000/µL (extremos 263.000 e 574.000/ µL). À microscopia, entretanto, não havia policromatocitose nem reticulocitose em preparação corada com novo azul de metileno. Como a IRF mostrou-se curiosamente muito baixa em todos os casos (média 0,084 – extremos 0,064 e 0,113), o autor sugere uma interpretação plausível para a aparente incoerência: como os reticulócitos amadurecem no baço, na falta deste conservam um mínimo remanescente de RNA, notado pela fluorescência (na máquina), mas não suficiente para ser notado à microscopia. O aumento espúrio do número total faz cair a fração imatura a um número impossível se fosse absoluto; como os reticulócitos incluídos na IRF são os que estão mais de 30 canais acima do limiar de identificação, o número absoluto independe dessa suposta situação. Se tomarmos as médias de reticulócitos e IRF desses casos e calcularmos o número absoluto de reticulócitos imaturos, teremos: 330.000 × 0,084 = 27.720/µL, um número absoluto normal. Ao experimentar o Cell Dyn 4000, o autor encontrou 24% como valor de referência para os reticulócitos imaturos (da IRF) dentre os totais. Considerando-se o número acima como correspondente a essa porcentagem, teremos um número total de reticulócitos = 115.500/µL, um número coerente, dando verossimilhança à interpretação sugerida. A mesma interpretação é aplicável a descrições da literatura (não esclarecidas nos textos) de enormes reticulocitoses em pacientes esplenectomizados e parcialmente melhorados em casos de anemia hemolítica por deficiência de piruvatoquinase. Eliptocitose (ou ovalocitose) A designação eliptocitose está predominando na literatura sobre ovalocitose, mas a escolha é irrelevante. O defeito poligênico é sempre dominante. Como a maioria dos portadores é assintomática, a prevalência não pode ser definida com precisão; provavelmente é da ordem de 50/100.000. Como os contadores eletrônicos não notam a eliptocitose e, não havendo anemia, não se faz mais microscopia, o defeito só ocasionalmente é notado nos hemogramas de rotina. A sobrevida dos eliptócitos é próxima à normal; a hemólise é facilmente compensada. Os pacientes anêmicos são minoria; geralmente são homozigotos ou duplamente heterozigotos para genes eliptocíticos. Os defeitos da α-espectrina e da proteína 4.1 causam eliptocitose assintomática nos heterozigotos e anemia hemolítica significativa, com icterícia e esplenomegalia nos homozigotos; nos defeitos da glicoforina C, os heterozigotos têm eliptocitose assintomática, e os homozigotos, hemólise, geralmente compensada ou com mínima anemia. No recém-nascido, a eliptocitose não é notada; os eliptócitos surgem após o quarto mês. Paradoxalmente, as combinações genéticas que incluem defeitos da α-espectrina, às vezes, podem causar no recém-nascido uma severa anemia hemolítica, com presença no hemograma de extrema pecilocitose, com eliptócitos, esferócitos, eritrócitos fragmentados e numerosos macrócitos policromáticos; o quadro denomina-se piropecilocitose por assemelhar-se ao da hemólise ocasionada por queimaduras extensas ou por aquecimento acidental do sangue no laboratório. A tendência é a melhora em alguns meses, com lenta

transformação para um quadro usual de eliptocitose. Há descrição de casos com aspectos morfológicos semelhantes e anemia hemolítica duradoura, em que a piropecilocitose decorre de combinação de genes eliptocíticos com raros genes que retardam a síntese de α-espectrina; são prevalentes apenas em populações africanas. Os eritrócitos desses pacientes são particularmente frágeis ao calor, fragmentando-se in vitro a 46ºC, temperatura inferior à necessária para fragmentar eritrócitos normais; a designação piropecilocitose familiar é apropriada. Há um gene, que altera a proteína banda-3, com prevalência de 20 a 30% nos indígenas da Melanésia, ilhas do Pacífico a leste da Austrália e sul da Malásia. O defeito é chamado ovalocitose do sudeste da Ásia; os eritrócitos mostram uma combinação única de ovalocitose (são mesmo ovoides, não eliptoides) com estomatocitose. Os heterozigotos são assintomáticos; crê-se que a homozigose cause morte fetal. Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) É uma rara doença dependente de um defeito clonal adquirido das células primitivas da hematopoese. Acomete igualmente ambos os sexos, de adultos jovens a idosos, sem pico etário de incidência. Origina-se de mutação no gene responsável pela síntese das moléculas de fosfatidilinositol-glican (gene PIG-A), no braço curto do cromossomo X; há inúmeras variantes. Esse glicolipídio serve de âncora para várias proteínas da membrana do eritrócito necessárias à regulação das moléculas do complemento (CD59, CD55 e outras). Sua falta ocasiona uma suscetibilidade à lise mediada pelo complemento, principalmente em meio acidulado. A mutação pode estender-se também à granulocitopoese e à trombocitopoese, resultando em uma curiosa combinação de anemia hemolítica crônica com insuficiente regeneração, neutrocitopenia e trombocitopenia. Pacientes de anemia aplástica frequentemente têm um clone com a mutação; se houver recuperação parcial ou total da aplasia, o clone pode tornar-se significativo ou predominante e desenvolver-se HPN sintomática. A hemólise é intravascular, acentua-se nas horas de sono, e o paciente tem hemoglobinúria ao despertar; o evento é inconstante, e alguns pacientes nunca o apresentam. Na experiência do autor, mesmo os que o notaram não referem espontaneamente a passagem de urina escura, salvo quando especificamente questionados. Outra tendência que dificulta o diagnóstico dessa rara doença é a de os laboratoristas não acreditarem, ao fazer exame de urina, que a positividade do teste para hemoglobina não se acompanha de eritrócitos no sedimento; acreditam ter havido hemólise in vitro e anotam como presentes eritrócitos (hematúria) inexistentes no sedimento. A hemólise na HPN não se acompanha de uma hiper-regeneração no nível usual das demais anemias hemolíticas. Nas contagens de reticulócitos mostradas na Figura 3.3, no grupo das anemias hemolíticas, os dois casos quase idênticos, de contagem mais baixa (reticulócitos ≅ 180.000/µL), são de HPN. A filtração renal continuada de hemoglobina causa depósito de hemossiderina nas células tubulares e hemossiderinúria; pode ser notada pela coloração de Perls do sedimento. Alguns pacientes desenvolvem anemia

ferropênica, com a microcitose usual, pela perda crônica de ferro; o tratamento com ferro melhora esse componente da anemia, mas intensifica a hemólise pelo defeito basal. Além da anemia refratária, a hemólise intravascular causa definida trombofilia venosa e arterial: tromboses de veias profundas, do sistema mesentérico, esplênico e porta, jugular e cerebral, e fenômentos tromboembólicos têm alta incidência e são a principal causa de morte na doença. A comprovação do diagnóstico era feita pelo teste de Ham: pesquisa de hemólise dos eritrócitos do paciente em soro fresco (para conter complemento) compatível, acidificado com HCl. Há um teste de gel-centrifugação para HPN, simples e de média sensibilidade. O diagnóstico, com quantificação da população acometida, é atualmente feito por citometria em fluxo, 1 com anticorpos monoclonais anti-CD59 e/ou anti-CD55. Recomenda-se o uso de ambos. Uma variação do teste, hoje preferida, é a utilização de anti-CD59 marcado com fluoresceína-isotiocianato para os eritrócitos e, para os leucócitos, FLAER (fluorescent-labeled aerolysin), um fator secretado pela bactéria Aeromonas hydrophila que se liga à âncora GPI na membrana. A HPN não tem tratamento curativo, mas a evolução costuma ser lenta e relativamente benigna, com sobrevida entre 10 e 15 anos. Muitos pacientes têm necessidade de reposição transfusional periódica e, pelo risco das complicações tromboembólicas, são anticoagulados. A eficácia do tratamento com anticorpo anticomplemento C5, eculizumabe, está amplamente confirmada: 2 reduz significativamente a hemólise e a consequente necessidade transfusional e diminui a cerca de (10 vezes) um décimo a frequência de complicações tromboembólicas. É provável que aumente muito a sobrevida. HEMOGLOBINOPATIAS São defeitos genéticos em que há trocas de aminoácidos na sequência das cadeias globínicas da hemoglobina. A identificação das hemoglobinas anormais por eletroforese foi substituída pela técnica de cromatografia líquida de alta resolução (HPLC = High Performance Liquid Chromatography). Atualmente está sendo usada também a eletroforese capilar. Pela elevada prevalência e significativa morbidade de suas combinações genéticas, as síndromes falcêmicas merecem discussão detalhada. As demais hemoglobinopatias são muito mais raras no Brasil. Síndromes falcêmicas Incluem-se, sob essa denominação, as eventualidades em que há teste de afoiçamento positivo pela presença de hemoglobina S (de sickle = foicinha), pura ou associada a outras hemoglobinas anormais. A Hgb S tem prevalência entre 5 e 10% nas populações negras da África Equatorial; é comum, também, na Arábia Saudita, na Grécia e no sul da Itália e da Ásia. Crê-se que a considerável prevalência africana deva-se a séculos de seleção natural pela maior resistência dos eritrócitos com Hgb S à infecção pelo Plasmodium falciparum. A Hgb S veio para o Brasil com a escravatura; a prevalência africana original diluiu-se pela miscigenação racial; por outro lado, passou a ser

encontrada mesmo em pessoas fenotipicamente brancas. As síndromes falcêmicas mais comuns estão resumidas na Tabela 5.4. TABELA 5.4 Síndromes falcêmicas Genótipo

Hemoglobinas

Hgb (g/dL)

Traço drepanocítico

AS

Hgb A = 55-60% Hgb S = 40-45%

Normal

Drepanocitose (anemia de células falciformes)

SS

Hgb S ≅ 95% + Hgb A 2 e F

6 a 9,5

S β0 -Thal

Hgb S > 95% + Hgb A 2 e F Hgb S = 80-90% Hgb A = 5-20% + Hgb A 2 e F

6,5 a 10

Hgb S ≅ 50% Hgb C ≅ 50%

9 a 13

Síndrome

Microdrepanocitose (hemoglobinopatia S/β-talassemia)

S β+-Thal

Hemoglobinopatia SC

SC

7 a 11

Traço drepanocítico (ou falciforme): os portadores heterozigóticos de Hgb S (com Hgb A e S), embora tenham teste de afoiçamento positivo, são sadios. A Hgb S, em concentrações inferiores a 50% nos eritrócitos, não cristaliza nas tensões de oxigênio existentes in vivo, salvo em raras eventualidades de extrema anoxemia, tais como subida a grandes altitudes, falta de O2 durante anestesia, sobrevivência a afogamentos, etc. As variações osmóticas no córtex renal podem, entretanto, causar afoiçamento local. Os drepanócitos obliteram glomérulos, causando glomerulite focal e hematúria persistente, mas não progressiva; drepanócitos podem ser identificados à microscopia do sedimento urinário, como na ilustração 3 em contraste de fase, acima. Anemia ou alterações do hemograma, salvo a presença de raros drepanócitos e target cells na cauda das distensões, nunca devem ser atribuídas ao traço falciforme.

A anemia ferropênica, em crianças com traço drepanocítico, tem causado um erro embaraçante; o pediatra recebe o resultado de hemograma com anemia (ferropênica) e o teste de afoiçamento positivo (pedido por tratar-se de paciente negro) e interpreta o conjunto como drepanocitose (anemia de células falciformes), apesar da diferença óbvia entre os hemogramas das duas anemias. Essa confusão do traço heterozigótico com a doença homozigótica tem sido feita por médicos até em pacientes negros não anêmicos. Para evitá-la, o autor recomenda que o laboratório, quando tiver teste de afoiçamento positivo e hemograma simultâneo que não mostre anemia drepanocítica, anote no resultado: teste positivo (traço drepanocítico). O teste em si já mostra uma diferença: é

rapidamente positivo em todas as células no homozigoto e tardiamente positivo (> 24 horas), e só numa fração de células, no heterozigoto. O melhor é substituir definitivamente o teste de afoiçamento pela HPLC (Fig. 5.3 [a]). Note-se que valores ≤ 1% nos traçados de HPLC não são reais, mas imperfeições próprias do método cromatográfico. O teste do pezinho atualmente inclui HPLC ou eletroforese capilar de modo que hemoglobinas anormais são identificadas já no recém-nascido (ver Cap. 19). Drepanocitose (ou anemia de células falciformes): a hemoglobinopatia S homozigótica, pela dupla herança (pai e mãe heterozigóticos), é uma grave anemia hemolítica. O eritrograma está na Figura 5.2 (a). A presença de drepanócitos patognomônicos é usual, mas não é constante; costuma faltar nos pacientes em tratamento com hidroxicarbamida; nesses desenvolve-se macrocitose, e o histograma eritroide fica muito alterado, como na Figura 5.2 (b). Eritroblastemia é usual; há neutrofilia acentuada e trombocitose. A reticulocitose é inferior à esperada para a intensidade da hemólise e a gravidade da anemia; a Hgb S tem baixa afinidade ao O2, o que favorece a oxigenação periférica e não estimula a síntese apropriada de eritropoetina para o grau de anemia. Há icterícia com bilirrubina indireta entre 2 e 6 mg/dL, grande aumento da desidrogenase láctica (DHL) e baixa da haptoglobina. Há esplenomegalia nos dois primeiros anos de vida, mas progressivamente se instala atrofia do baço pela sequência de pequenos infartos; a asplenia funcional faz surgirem no hemograma corpos de Howell-Jolly, leptocitose, acantócitos, aumento do número de eritroblastos e linfocitose.

FIGURA 5.2 Hemograma típico de drepanocitose (a); histograma (Cell Dyn) em drepanocitose tratada com hidroxicarbamida (b).

Os pacientes com drepanocitose, além da anemia, têm outras complicações: crises de sequestração esplênica com agravamento da anemia (nos primeiros meses de vida), crises dolorosas por microinfartos múltiplos decorrentes do afoiçamento in vivo, suscetibilidade aumentada a infecções e considerável diminuição da sobrevida; sem acompanhamento adequado morrem na infância ou adolescência. Só há tratamento paliativo. A hidroxicarbamida (Hydrea®), aumenta a síntese de Hgb F e diminui a frequência das crises dolorosas. Em casos graves, se houver doador compatível, o transplante de células-tronco deve ser precocemente feito. Microdrepanocitose: a herança concomitante de um gene S com um gene β-talassêmico causa anemia hemolítica semelhante à drepanocitose, porém menos severa. Um gene faz sintetizar Hgb S, o outro determina déficit na síntese de Hgb A; a predominância de Hgb S causa afoiçamento in vivo, com suas consequências. Nesses pacientes não há atrofia precoce do baço; mantém-se a esplenomegalia. A microdrepanocitose é comum no Rio Grande do Sul e nas demais áreas geográficas onde coexistem populações negra e italiana. O hemograma difere do da drepanocitose por haver anemia menos intensa, microcitose e número chamativo de leptócitos (target cells). O exame da hemoglobina mostra os valores da Tabela 5.4. Se a combinação genética for S β0-Thal, haverá virtual ausência de Hgb A, só S, F e A2. Se for S β+-Thal, haverá 5 a 20% de Hgb A, e a anemia será menos severa; dada a diferença, talvez o termo microdrepanocitose deva ser evitado, designando-a hemoglobinopatia S β+-talassemia. Hemoglobinopatia SC: a troca de ácido glutâmico por lisina na posição 6 da cadeia β dá origem à Hgb C. O defeito acomete os mesmos grupos raciais que a Hgb S, mas com prevalência 10 vezes inferior. A dupla heterozigoticidade SC não chega a ser rara no Brasil. A anemia hemolítica é moderada; o hemograma mostra numerosos leptócitos, raros drepanócitos e alguns eritrócitos com uma forma peculiar, ditos pecilócitos SC, decorrentes da dupla cristalização das hemoglobinas anormais; a concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM) costuma estar diminuída (hipocromia sem microcitose). Crises dolorosas são raras; os pacientes têm suscetibilidade aumentada a fenômenos tromboembólicos. Outras hemoglobinopatias Hemoglobinopatia C: a heterozigótica (AC) é assintomática; há número apreciável de target cells no hemograma; o resultado da HPLC está na Figura 5.3 (b). A homozigótica (CC) causa hemólise moderada, que deveria ser facilmente compensada por hiperplasia eritroide; contudo há anemia, com Hgb entre 9 e 12 g/dL. Essa aparente incongruência deve-se à baixa afinidade da Hgb C pelo oxigênio, pois, mesmo com anemia, há satisfatória oxigenação tecidual, donde não haver estímulo à síntese de eritropoetina e correção da anemia. Não há crises dolorosas; há esplenomegalia. O hemograma mostra considerável leptocitose, ou seja, mais de 80% dos eritrócitos têm aspecto de target cells; a procura cuidadosa pode evidenciar a presença de cristais de Hgb C em alguns

eritrócitos. A herança da Hgb C com um gene β-talassêmico causa um quadro clínico semelhante ao da talassemia intermédia.

FIGURA 5.3 Cromatografia líquida de alta resolução (HPLC Bio-Rad Variant) em traço drepanocítico (a) e portador heterozigótico de hemoglobina C (b).

Hemoglobinopatia D: a heterozigótica (AD) é assintomática; alguns casos de DPunjab têm sido notados no Brasil pelo teste do pezinho. A homozigótica é raríssima no Brasil. O autor só viu um caso; o eritrograma mostrava anemia com curiosa combinação de hipocromia, esferocitose e policromatocitose. A eletroforese era enganadora; a Hgb D migra com a S em pH alcalino e com a Hgb A em pH ácido; a atual HPLC distingue-a com facilidade. Hemoglobinopatia E: só é prevalente na Tailândia e em Laos. A síntese de cadeias β da Hgb E é inapropriadamente lenta, como ocorre em mutações talassêmicas; a herança simultânea de um β-gene talassêmico causa quadro de talassemia maior ou intermédia. A Hgb E, em HPLC, elui com a Hgb A2.

Hemoglobinas instáveis: há dezenas de variantes genéticas das cadeias globínicas, todas muito raras, originando hemoglobinas instáveis, que desnaturam e precipitam nos eritrócitos, causando anemia hemolítica crônica ou crises hemolíticas quando há exposição a drogas oxidantes. Pesquisam-se pelo teste da desnaturação da hemoglobina pelo calor (50ºC) ou pela solução de isopropanol a 17%. A coloração apropriada mostra corpos de Heinz (ver ilustração no Cap. 2) DEFICIÊNCIAS ENZIMÁTICAS DO ERITRÓCITO Os eritrócitos obtêm a energia necessária para a manutenção do gradiente catiônico em relação ao plasma e para manter o glutatião em estado reduzido (para a defesa da hemoglobina e das enzimas contra agentes oxidantes) por meio da glicólise anaeróbica. As deficiências enzimáticas genéticas na via Embden-Meyerhoff causam esgotamento energético prematuro e hemólise; as deficiências na via hexose-fosfato, suscetibilidade a hemólise por agentes oxidantes. A carência de enzimas necessárias ao metabolismo de nucleotídios também pode causar anemia hemolítica. Deficiência de piruvatoquinase (PK) É infrequente, mas tem sido vista no Brasil, inclusive pelo autor. Há mais de 130 variantes genéticas com atividade defeituosa em lócus poligênico; por isso, os pacientes afetados costumam ser duplamente heterozigotos para o defeito, não dependendo, então, da consanguinidade dos pais, usual nas doenças recessivas raras. É uma anemia hemolítica de severidade dependente da combinação dos genes mutantes herdados, sem características clínicas e hematológicas próprias; deve-se pensar em deficiência de PK diante de qualquer caso de anemia hemolítica congênita não esferocítica. Não há tratamento curativo. A esplenectomia é indicada nos casos severos; causa melhora marginal, elevando a hemoglobina em 1 ou 2 g/dL. Após a esplenectomia, há presença no sangue de grande número de acantócitos, e a contagem eletrônica mostra absurda reticulocitose entre 30 e 40% (dado da literatura); o fenômeno parece o mesmo que o autor observou em casos esplenectomizados de esferocitose e sobre o qual emitiu hipótese esclarecedora (ver p. 126). Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6FD) O gene que codifica a sequência de aminoácidos da enzima localiza-se no cromossomo X, de modo que só há defeito clinicamente relevante nos homens (hemizigotos). As mulheres (portadoras heterozigóticas) são geralmente indenes, salvo pequena porcentagem negativamente afetada pela lyonização e as raras homozigotas, filhas de mãe portadora e pai afetado. É um lócus poligênico; há mais de 250 variantes conhecidas de G6FD, algumas instáveis, outras de atividade deficiente, acometendo em conjunto mais de 400 milhões de pessoas. Duas têm relevância clínica e alta prevalência:

Variante africana (ou A-): tem prevalência superior a 10% nos negros da África Equatorial; no Brasil, diluiu-se como a Hgb S. Crê-se que os portadores têm resistência aumentada ao Plasmodium falciparum, com aumento da prevalência por séculos de seleção natural. É rara em populações brancas. A enzima mutante tem atividade entre 5 e 15% da normal. Os portadores são assintomáticos, a menos que haja agressão aos eritrócitos por agentes oxidantes: naftalina, anilinas, antimaláricos, sulfonamidas, nitrofurantoína, ácido nalidíxico e, em doses muito elevadas (intoxicações), ácido acetilsalicílico, acetaminofeno e vitamina K sintética. Nesse caso, há crise hemolítica grave, com rápida e extrema anemização. Variante mediterrânea: muito comum no sul da Itália, na Grécia (há áreas com prevalência > 30%), no norte da África, na Ásia menor e no sul da Ásia. A deficiência é mais grave que a variante africana; a enzima mutante tem atividade praticamente zero. Há crises hemolíticas pelos mesmos agentes supracitados, mas também por substâncias oxidantes existentes na fava, alimento tradicional naquelas áreas geográficas. O favismo foi importado para o Rio Grande do Sul com a colonização italiana; o autor acompanhou várias crises hemolíticas dessa etiologia. As crises hemolíticas por deficiência de G6FD são de fácil diagnóstico: anemia súbita, grave, sem sinais de perda sanguínea, geralmente com hemoglobinúria, em paciente das etnias conhecidas, com história de ingestão ou uso do agente oxidante 24 a 48 horas antes. A icterícia surge em 24 horas. O hemograma mostra eritrócitos irregularmente contraídos e fragmentados e eritrócitos com a hemoglobina concentrada numa calota da célula e o estroma vazio no restante (hemiestromas). A reticulocitose começa entre o 3º e o 4º dia; a IRF eleva-se já no 2º dia. Durante a crise, a coloração própria mostra eritrócitos com corpos de Heinz. Há testes bioquímicos qualitativos fáceis para detectar a falta da enzima. São falsamente negativos na convalescença das crises porque os eritrócitos novos, da regeneração, são mais ricos em enzima, que decai progressivamente durante a sobrevida na circulação. Pelo mesmo motivo, nesse período, há resistência à repetição da crise no caso de nova exposição ao agente oxidante. Os recém-nascidos com deficiência de G6FD frequentemente têm icterícia neonatal. Não há sinais óbvios de hemólise, nem agente oxidante causal; a patogênese é imprecisa. Há casos descritos de anemia neonatal severa e mesmo de hidropisia fetal, decorrentes da ingestão de drogas oxidantes pela gestante. O teste do pezinho pode incluir dosagem de G6FD (ver Cap. 19). Há variantes genéticas de G6FD, muito raras, que causam anemia hemolítica congênita não esferocítica crônica. Deficiência de pirimidina-5-nucleotidase e saturnismo A deficiência genética, autossômica recessiva, é rara. No único caso visto pelo autor, havia consanguinidade nos pais. O diagnóstico é fácil; a falta da enzima causa um bloqueio no catabolismo do RNA, cujos metabólitos acumulam-se nos ribossomos e são vistos como fino pontilhado basófilo na maioria dos eritrócitos. É necessário que as

lâminas sejam feitas a partir de sangue nativo, pois a conservação do sangue in vitro, com EDTA, inibe a precipitação dos ribossomos pelo corante. A anemia hemolítica é moderada (Hgb ≅ 8-9 g/dL) e melhora marginalmente com a esplenectomia. A intoxicação pelo chumbo (saturnismo), tanto aguda como crônica, causa inibição da atividade da pirimidina-5-nucleotidase e anemia hemolítica, além do quadro de doença sistêmica. É uma anemia extracorpuscular, descrita aqui por sua similitude com a deficiência genética da enzima. O saturnismo crônico costuma ser doença profissional, acometendo operários que trabalham com baterias, tintas contendo chumbo e linotipia (no passado). A intoxicação, ocorrida há décadas, pode manifestar-se na velhice pela liberação, causada pela osteoporose, do chumbo armazenado nos ossos; nesses casos, a dosagem de chumbo no sangue pode não estar aumentada. A ingestão de tinta de parede, por crianças com pica por anemia ferropênica, é uma causa pediátrica. O saturnismo agudo, causado pela ingestão de aves de caça conservadas em vinagre, substância que dissolve os projéteis de chumbo, não era raro no Rio Grande do Sul: o autor viu vários casos, mas nenhum nos últimos 25 anos. A anemia hemolítica do saturnismo não é severa embora a intoxicação possa ser grave; tem Hgb entre 8 e 11 g/dL e reticulócitos ≅ 200.000/µL. O leucograma não é afetado; o autor acompanhou um caso com trombocitopenia irresponsiva aos corticoides. O diagnóstico é feito pelo pontilhado basófilo grosseiro visto em muitos eritrócitos, examinando-se lâminas com os cuidados mencionados. O tratamento prolongado com EDTA cálcico intravenoso elimina lentamente o excesso de chumbo. Outras deficiências enzimáticas Há outras deficiências enzimáticas genéticas no mecanismo glicolítico, todas muito raras, tendo sido descritas apenas algumas dezenas de casos de cada. Na maioria, a anemia hemolítica acompanha-se de malformações, de neuropatias com retardo mental e de miopatias. Estão listadas, em ordem alfabética, na Tabela 5.5. Dentre as anemias hemolíticas extracorpusculares, isto é, causadas por agentes hemolíticos alheios ao eritrócito (Tab. 5.6), a única de grande prevalência é a malária, estimada pela OMS em 300 milhões de casos novos por ano. Todas exigem a especial atenção diagnóstica de um hematologista. TABELA 5.5 Deficiências enzimáticas raras que causam anemia hemolítica Aldolase

Glutatião peroxidase

2-3-difosfo-gliceratomutase

Glutatião redutase

Enolase

Glutatião sintetase

Fosfo-frutoquinase

Hexoquinase

Fosfo-gliceratoquinase

Lactato desidrogenase

Glicose-fosfatoisomerase γ-glutamil-cisteína sintetase

Triose-fosfatoisomerase

TABELA 5.6 Anemias hemolíticas extracorpusculares

Infecciosas e parasitárias ■ Malária ■ Babesiose ■ Bartonelose Imunológicas ■ Por crioaglutininas ■ Anemia autoimune Coombs-positiva Por fragmentação eritrocitária ■ Fragmentação traumática ■ Síndromes microangiopáticas ■ Dependente de fármacos oxidantes

ANEMIAS HEMOLÍTICAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS Malária A malária é comum no norte do Brasil e em todas as regiões tropicais do planeta; estimase uma incidência global de > 300 milhões de casos anuais. A Figura 5.4 ilustra os ciclos intraeritrocíticos do Plasmodium falciparum (1ª sequência) e do Plasmodium vivax (2ª sequência). Esquizontes podem romper-se liberando merozoítos; a sobrevida livre destes é tão fugaz que praticamente nunca são vistos no sangue periférico, só na medula óssea.

FIGURA 5.4 Ciclos evolutivos do Plasmodium falciparum (sequência superior) e Plasmodium vivax (sequência inferior): anéis precoces e tardios (a), fase intermédia precoce e tardia (b), pressegmentados e segmentados (esquizontes) (c), macro e microgametócitos (d). (Aquarelas, cortesia Abbott Diagnosics.)

Nos residentes, ou viajantes vindos de zona endêmica, a malária deve ser a primeira suspeita a ser considerada no diagnóstico de doença febril. O paroxismo, com febre, calafrio e extrema prostração, repetido com periodicidade conforme a espécie de Plasmodium, é característico, mas inconstante. Em mais de 50% dos casos, há sinais precoces de hemólise; na infecção por P. falciparum, pode haver até hemoglobinúria. Eritrogramas repetidamente normais, sem anemização nem policromatocitose/reticulocitose, e bilirrubina indireta normal são contrários à suposição de malária como causa de febre de origem obscura. A reticulocitose na malária é inferior à das demais crises hemolíticas pela ativação imunológica e resposta anemizante às citoquinas (mecanismo de anemia de doença crônica).

A pesquisa de hematozoários deve ser feita várias vezes, porque o número no sangue varia com o estágio do ciclo: é máximo nas horas que precedem as crises; há que prevêlas pelo retrospecto. O técnico precisa ter enorme experiência e paciência para encontrálos, quando poucos; a ilustração à esquerda mostra parasitas evidenciados no Cella Vision, o que é raro. Para a descrição e a diferenciação das espécies, o leitor deve procurar um atlas de hematologia; 4 o autor tem reduzida experiência, porque não há malária no Rio Grande do Sul. A parasitemia interfere na contagem automatizada de reticulócitos do Cell Dyn 4000: o hematozoário fluoresce. A máquina pode, também, identificar os eritrócitos parasitados como eritroblastos. O leucograma geralmente mostra desvio à esquerda com neutrocitopenia ou com número normal de neutrófilos; neutrofilia é incomum. Há eosinofilia na convalescença dos casos tratados. A contagem eletrônica de eosinófilos pode ser afetada pela polarização da luz do pigmento malárico. Na infecção por P. falciparum costuma haver trombocitopenia. Babesiose As numerosas espécies de Babesia (Victor Babes, 1888), protozoários parasitas transmitidos pela picada de carrapatos, são infectantes comuns em cães e veados silvestres. O contágio humano é frequente nos Estados Unidos e na Europa. Um primeiro caso brasileiro foi diagnosticado em Pernambuco em 1983, e vários outros descritos, inclusive recentemente, na Bahia e no Pará. A babesiose é uma doença febril grave se não tratada (o agente é sensível à combinação de clindamicina e quinina). Os protozoários parasitam e destroem os eritrócitos de modo semelhante ao que ocorre na malária; inclusive o aspecto da inclusão eritrocítica pode ser confundido com formas em anel de plasmódio; às vezes a imagem configura uma forma patognomônica de cruz de malta. O autor nunca viu e desconhece caso descrito no Rio Grande do Sul. Bartonelose (doença de Carrion) A infecção pela Bartonela bacilliformis (Alberto Barton, 1909) é uma doença comum nas zonas andinas do Peru, Bolívia e Equador. Nas últimas décadas, tem se expandido para zonas de baixa altitude, inclusive fronteiriças à Amazônia brasileira. São vetores os mosquitos do gênero Lutzomyia, flebótomos, como os transmissores da leishmaniose; teme-se que, como essa, dissemine-se no Brasil. O agente invade maciçamente os eritrócitos do sangue periférico causando uma doença febril (febre de Oroya) com severa anemia hemolítica. O aspecto à microscopia do hemograma é característico; o autor não tem experiência pessoal com pacientes, mas teve oportunidade de examinar lâminas

recebidas para fins didáticos: o diagnóstico à microscopia é imediato. Nos pacientes que sobrevivem ao episódio febril, a doença passa a se manifestar como uma dermatite verrucosa crônica (verruga peruana). A bartonela é sensível a tratamentos prolongados com vários antibióticos e combinações. Bactérias do mesmo gênero Bartonella causam a doença por arranhão de gato e a febre das trincheiras. Outras infecções que podem causar anemia hemolítica As infecções por Clostridium, Streptococcus e Staphilococcus (raramente) podem acompanhar-se de anemia hemolítica. ANEMIAS HEMOLÍTICAS IMUNOLÓGICAS São causadas por anticorpos antieritrocitários. Nas anemias hemolíticas isoimunes (ou aloimunes), os anticorpos formam-se em outra pessoa e têm acesso à circulação do(a) paciente por via transplacentária ou transfusional. A anemia hemolítica da incompatibilidade materno-fetal será discutida no Capítulo 19, sobre hemograma do recém-nascido. A hemólise por incompatibilidade transfusional é dos glóbulos transfundidos, não dos glóbulos do receptor, donde não haver, propriamente, anemia hemolítica, salvo no caso incomum de infusão de grande volume de plasma incompatível. Nas anemias hemolíticas autoimunes, os anticorpos são formados no organismo do(a) paciente. Distinguem-se e são classificadas pela natureza do autoanticorpo, conforme a seguir. Crioaglutininas São anticorpos IgM, fixadores de complemento, com ótimo térmico entre 5 e 25ºC. As crioaglutininas são notadas no laboratório ao se manipular o sangue conservado à temperatura ambiente em dias frios ou em refrigerador. A aglutinação pode ser vista a olho nu ou ao microscópio: há conglomerados de eritrócitos, distintos do rouleaux (Fig. 5.5 [b]). As crioaglutininas interferem na contagem de eritrócitos e na medida do VCM, mas não na dosagem de hemoglobina, porque é feita após hemólise; o resultado gerado é incoerente, com CHCM impossível (Fig. 5.5 [a]). O autor já recebeu vários pacientes trazendo à consulta hemogramas com resultados absurdos como esse e com a observação: “resultado confirmado por repetição”. A delimitação no sistema de processamento de dados do laboratório de extremos possíveis (ou permitidos) para os parâmetros do hemograma (ver p. 31) evita que técnicos incompetentes liberem resultados inaceitáveis como esse. O aquecimento do sangue a 37ºC, com passagem imediata no contador, costuma gerar resultados corretos.

FIGURA 5.5 Resultado de hemograma de paciente com alto título de crioaglutininas. O instrumento fornece números incoerentes, mas identifica e anota o defeito (a). Microfotografia respectiva (b). (Caso do autor)

A presença de crioaglutininas deve ser anotada no resultado do hemograma, porque: 1. Embora ocorram em pessoas idosas sadias (até título 1/4), são muito mais comuns e em títulos mais altos em pessoas com doenças do colágeno, neoplasias e infecções crônicas. 2. Aparecem transitoriamente no decurso da pneumonia por Mycoplasma. Crioaglutinação em paciente jovem, com febre e tosse, deve sugerir esse diagnóstico. A dosagem de crioaglutininas, feita por titulação do soro, anotando-se a diluição máxima ainda aglutinante, mostra títulos 1/4 a 1/256. Podem surgir crioaglutininas também na mononucleose infecciosa. Em nenhuma das duas infecções a amplitude térmica das crioaglutininas é suficiente para causar hemólise significativa in vivo. 3. Há uma doença de crioaglutininas, rara, em que um título acima de 1/256 (às vezes > 1/2.000) e uma atividade até acima de 30°C provocam distúrbios da circulação periférica, com púrpura, síndrome de Raynaud e anemia hemolítica. O eritrograma, às vezes, é impossível de ser feito nos contadores eletrônicos mesmo com o sangue reaquecido; deve ser coletado e mantido a 37°C até o exame; se nem assim for possível, é preciso basear-se na dosagem da hemoglobina e no micro-hematócrito por centrifugação se for disponível. A sintomatologia aparece com a exposição ao frio e ameniza-se com o calor. Aceita-se que a doença seja decorrente de uma proliferação clonal de linfócitos B, isto é, de um linfoma indolente, sem organomegalias; a IgM é monoclonal e costuma migrar em gama. Anemia hemolítica autoimune Coombs-positiva

Autoanticorpos IgG ligam-se aos eritrócitos e causam sequestração no tecido macrofágico do baço, do fígado e da medula óssea. A autoimunidade causal pode ser iatrogênica, parte do quadro de doenças imunológicas mais amplas, como o lúpus eritematoso sistêmico (LES), a leucemia linfocítica crônica, os linfomas e a aids, mas, na maioria das vezes, é idiopática. A Figura 5.6 (a) mostra um eritrograma de anemia hemolítica autoimune (AHAI). O grande número de macrócitos policromáticos pela elevada atividade eritropoetínica aumenta o VCM. A população macrocítica, às vezes, pode ser notada no histograma (ver Fig. 2.11 [b], p. 95). A agressão imunológica causa perda de componentes da membrana e esferocitose pré-hemolítica. O aumento da bilirrubina indireta e da DHL e a baixa da haptoglobina são constantes. Em alguns pacientes com AHAI crônica de longa duração, a atividade esplênica desencadeia a formação de dacriócitos; o hemograma pode lembrar mielofibrose ou anemia perniciosa se a macrocitose for significativa.

FIGURA 5.6 Eritrograma e exames pertinentes em anemia hemolítica autoimune (a) e púrpura trombocitopênica trombótica (b).

O teste antiglobulina humana direto (TAD), mais conhecido no Brasil como teste de Coombs direto, cuja positividade mostra a presença de anticorpos ligados aos eritrócitos, é patognomônico quando positivo, o que ocorre em mais de 90% dos casos; a positividade depende da distância entre as moléculas do anticorpo na membrana, de modo que pode ser transitoriamente negativo e positivar em exames ulteriores ou vice-versa. O teste de Coombs indireto, que pesquisa anticorpos livres no plasma, é pouco sensível e não indicado, porque os anticorpos esgotam-se nos receptores dos eritrócitos. O fármaco anti-hipertensivo a-metildopa (Aldomet®), atualmente pouco usado, causa AHAI de modo previsível. Tomado por mais de três meses, em 20 a 30% dos pacientes, formam-se autoanticorpos e positiva-se o teste de Coombs. Persistindo-se o uso do

fármaco, 10% dos pacientes desenvolvem AHAI; parando-se o tratamento, há melhora lenta, com cessação da hemólise e negativação do teste de Coombs em seis meses. O tratamento com doses intravenosas elevadas de penicilinas e cefalosporinas também pode desencadear AHAI limitada. A leucemia linfocítica crônica origina-se de linfócitos B CD5+ correlacionados com a autoimunidade; a proliferação neoplásica causa positividade do teste de Coombs em cerca de 10% dos pacientes e AHAI sintomática em uma fração desses; o tratamento com fludarabina torna essa complicação mais frequente. Os linfomas B indolentes e a doença de Hodgkin também se correlacionam com a AHAI; esta pode preceder (até por 2 a 3 anos), acompanhar ou suceder a neoplasia linfoproliferativa. A AHAI pode ser uma complicação do LES; é rara nas demais colagenoses. A positividade do teste de Coombs na aids, com ou sem AHAI, notada desde o início da endemia, está se tornando mais rara apesar do aumento de sobrevida média decorrente da eficácia do tratamento antiviral. Exames de imagem pertinentes para proliferações linfoides, exames para colagenoses e aids são indispensáveis em todos os pacientes com AHAI. A despeito desse amplo espectro etiológico, a AHAI idiopática é a de maior prevalência. Não porque tenha grande incidência: não passa de 1 caso/100.000/ano, mas porque é crônica e tratável, permitindo longa sobrevida. Os mesmos pacientes retornam periodicamente à consulta, durante anos. O tratamento com corticoides causa remissões rápidas, mas as recaídas são a regra ao suspendê-lo. A esplenectomia cura alguns pacientes e melhora outros. Tratamento com azatioprina, ciclofosfamida, anticorpos monoclonais e corticoides como manutenção são necessários se a esplenectomia não for curativa. ANEMIAS HEMOLÍTICAS POR FRAGMENTAÇÃO ERITROCITÁRIA Os eritrócitos fragmentam-se quando sofrem trauma mecânico ou agressão física ou química; se a fragmentação for significativa haverá anemia hemolítica. Anemia hemolítica das próteses valvulares O trauma da colisão com próteses deslocadas, ou a passagem por pertuitos justavalvulares (leaking), causa fragmentação de eritrócitos e anemia hemolítica. O diagnóstico pelo hemograma exige cuidadosa observação ao microscópio; há entre 0,1 e 10% de formas fragmentadas (queratócitos e esquizócitos). Raramente, a fragmentação é tão intensa que a hemólise é instantânea, e os fragmentos praticamente não circulam e não são vistos; nesses casos, a hemólise intravascular causa hemoglobinúria. A história da cirurgia associada aos sinais de anemia hemolítica torna fácil o diagnóstico; não há tratamento eficaz para a hemólise, salvo reoperação. Anemia hemolítica da marcha ou corrida

O trauma aos eritrócitos na circulação plantar em marchas ou corridas de longa duração causa hemólise intravascular e hemoglobinúria. A anemia hemolítica é autolimitada. A generalização do uso de calçados para corrida com solas amortecedoras diminuiu a incidência. Tem sido descrita hemoglobinúria similar, por trauma palmar, em tocadores de bongô. Anemia hemolítica das queimaduras A exposição a altas temperaturas causa lesão irreversível dos eritrócitos. A hemólise pósqueimaduras extensas ocorre nas primeiras 48 horas; pode haver hemoglobinúria. Notamse eritrócitos com protrusões citoplasmáticas (blebs), que se desprendem e circulam como esférulas, formas fragmentadas de todos os tipos e esferócitos. A anemia hemolítica não gera uma resposta eritropoetínica apropriada devido ao estado de doença crítica do paciente; reposição transfusional é indispensável. Anemias hemolíticas microangiopáticas A púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), a síndrome urêmico-hemolítica (SUH), os raros casos de coagulação intravascular disseminada que chegam a causar fragmentação e a síndrome HELLP (descrita nas trombocitopenias da gestação, no Cap. 18) são denominadas anemias microangiopáticas, porque em todas há anemia hemolítica com fragmentação eritrocitária, trombocitopenia e algum tipo de lesão na microvasculatura. Púrpura trombocitopênica trombótica e síndrome urêmico-hemolítica: são doenças graves, potencialmente fatais. Caracterizam-se por anemia hemolítica com eritrócitos fragmentados e trombocitopenia. Na PTT, costumam acompanhar-se de distúrbios neurológicos flutuantes (> 70%) e febre (30-40%), raramente insuficiência renal. Na SUH, a insuficiência renal é constante; a febre e os sintomas neurológicos, raros. Na PTT, o processo decorre de agregação plaquetária, potencialmente reversível, na microcirculação de múltiplos órgãos, principalmente no sistema nervoso central e nos rins. Microtrombos hialinos podem ser evidenciados em pequenas artérias em biópsias da gengiva ou da medula óssea, mas não há indicação para esse método diagnóstico invasivo: os dados clínicos e o hemograma são suficientes. Os microtrombos contêm alta concentração de fator von Willebrand (vWF); no plasma, evidenciam-se multímeros exageradamente grandes do fator, em detrimento dos fragmentos de clivagem, de menor peso molecular, que predominam no plasma normal. Atribui-se o desencadear da síndrome, quando idiopática, à inativação por um autoanticorpo IgG da metaloprotease ADAMST13, responsável pela clivagem do fator vWF; há raríssimos casos de PTT recidivante por deficiência congênita de ADAMST13. A dosagem de ADAMST13, ainda emergente e sem padronização definitiva, já pode ser obtida no Brasil. 5 A baixa atividade da protease do vWF não é um fator único na patogênese da PTT; o desencadeamento depende também de condições do microambiente endotelial, sujeito à ação de citoquinas e sensível a atrito circulatório excessivo em áreas localizadas. A PTT é quatro vezes mais frequente em mulheres, predominantemente jovens. Em 10 a 20% dos casos, correlaciona-se com a gravidez; surge no primeiro semestre, enquanto a

HELLP (ver Cap. 18), síndrome semelhante, mas limitada, costuma ocorrer no terceiro trimestre. Quando a PTT surge em até seis semanas da concepção, costuma reaparecer em gestações ulteriores. Há pacientes com PTT recidivante, independente de gestação, algumas pela deficiência congênita da metaloprotease. O hemograma é típico (Fig. 5.6 [b]), com macrócitos policromáticos, reticulocitose (inferior à da AHAI), eritrócitos fragmentados e trombocitopenia. Esses achados podem faltar nas primeiras 48 horas do início dos sintomas; em casos suspeitos, o hemograma, com plaquetas e reticulócitos, deve ser repetido diariamente. A DHL é muito elevada. A PTT é uma urgência médica. Todo hemograma com anemia e trombocitopenia deve ter microscopia cuidadosa, feita por técnico experiente, que inclua a pesquisa de eritrócitos fragmentados, além dos demais achados próprios às demais hemopatias causais de citopenias. No caso de suspeita clínica pela presença de sintomas neurológicos e púrpura, mais ainda se houver febre, para alertar o laboratorista dessa necessidade, o médico deve mencionar no pedido de exame: hemograma com pesquisa de eritrócitos fragmentados. O tratamento, de início imediato, com plasmaférese intensiva, baixou a mortalidade de > 90% para < 10%. Casos esporádicos de SUH só costumam ser vistos em crianças abaixo de 2 anos de idade. A insuficiência renal predomina no quadro; é grave, mas geralmente reversível; sintomas neurológicos são fugazes ou ausentes. A doença, inclusive surgindo em pequenos surtos epidêmicos, também em crianças maiores e adultos, pode ser causada por uma toxina Shiga-like produzida pela Escherichia coli, especialmente a cepa O157:H7. O contágio faz-se por alimentos contaminados e, talvez, de paciente a paciente. A SUH surge alguns dias após a disenteria; o tratamento com antibióticos não a previne e pode ser prejudicial. O hemograma da SUH é indistinguível do da PTT, mas a trombocitopenia é menos severa. A síntese de eritropoetina persiste algumas semanas apesar da insuficiência renal, causando a combinação paradoxal de creatinina elevada com reticulocitose (anemia hiperregenerativa). Síndrome semelhante à PTT (ou a própria) tem sido descrita em pacientes com aids em estágio avançado; é, também, uma rara complicação do transplante alogênico de medula óssea. O prognóstico desses casos é sombrio. Anemias por agressão oxidante Certos fármacos oxidantes provocam desnaturação da hemoglobina mesmo em eritrócitos normais. A sulfassalazina e a dapsona provocam-na nas doses terapêuticas usuais; o piridium e o acetaminofeno, só em doses muito elevadas. Formam-se corpos de Heinz, que são rapidamente removidos pelo baço, deixando os eritrócitos irregularmente contraídos e mordidos; o aspecto é patognomônico. A hemólise causa anemia leve, só excepcionalmente com hemoglobina abaixo de 9 g/dL, mas a policromatocitose/reticulocitose costuma ser óbvia e proporcional à anemização. A bilirrubina não ultrapassa 3 mg/dL. A suspensão da droga causa rápida melhora do

quadro; a retomada do uso da droga, quando indispensável, pode ser tentada com doses menores e cuidadoso controle do hemograma. 1 Como a HPN é uma doença rara e os anticorpos monoclonais são caros, o teste era de difícil obtenção no Brasil. Com finalidade comercial, mas com resultado louvável e benéfico, a Alexion Pharmaceutical, distribuidora do eculizumabe (Soliris®), passou a fornecer o teste gratuitamente no Laboratório Complementare (Contato: 0800 889 9826). 2 Hillmen P, et al. The complement inhibitor eculizumab in paroxysmal nocturnal hemoglobinuria. N Engl J Med. 2006;355(12):1233-43. 3 Cortesia do bioquímico J.A.T. Poloni, do Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. 4 Bain BJ. Blood cells: a practical guide. 5th ed. Oxford: Wiley Blackwell; 2015. 5 É oferecida gratuitamente pelo Laboratório Complementare. (Contato: 08007779826).

6 ANEMIAS POR INTERFERÊNCIA NA SÍNTESE DE HEMOGLOBINA O descompasso entre a síntese de hemoglobina e a proliferação eritroide causa microcitose e hipocromia por falta de conteúdo hemoglobínico no estroma elástico dos eritrócitos. Pode haver insuficiência de síntese hemoglobínica pelas causas que seguem: ■ Falta de ferro no organismo, decorrente tanto de deficiência nutricional ou absortiva, como (usualmente) de perda crônica de sangue causa anemia ferropênica, sempre progressivamente microcítica e hipocrômica. O acúmulo de ferro no organismo também é deletério; será discutido em título próprio, arbitrariamente incluído no fim deste capítulo. ■ Falta de oferta de ferro à eritropoese, por retenção preferencial nas células reticulares e macrofágicas (ferropenia funcional), é parte da patogênese múltipla da anemia das doenças crônicas, inicialmente normocítica, depois microcítica. ■ Defeitos genéticos quantitativos na síntese das cadeias globínicas originam a anemia microcítica das talassemias. Defeitos qualitativos (ver Hemoglobinopatias, Capítulo 5) causam anemia hemolítica. ■ Defeitos na síntese do heme causam as anemias sideroblásticas. A rara anemia sideroblástica congênita é microcítica; é uma doença que acomete apenas o tecido eritroide. As anemias sideroblásticas adquiridas, que acometem as três séries

mieloides, geralmente são normocíticas ou algo macrocíticas; são hemopatias clonais incluídas nas síndromes mielodisplásicas, discutidas no Capítulo 25. ANEMIA FERROPÊNICA Diante de paciente com sintomatologia de anemia crônica e sem outros sinais de doença, a anemia ferropênica (AF), por sua considerável prevalência, é o primeiro diagnóstico a ser considerado. Um levantamento feito pelo National Center for Health Statistics 1 nos Estados Unidos (EUA), examinando perto de 25 mil pessoas, constatou falta de reservas de ferro em cerca de 10% das mulheres entre a adolescência e a menopausa, com AF em 2 a 5%, números que, extrapolados à população, correspondem a 7,8 e 3,3 milhões respectivamente. Em homens, a prevalência da falta de ferro é inferior a 1%, havendo elevação até 2% a partir dos 70 anos. O autor desconhece estatísticas brasileiras abrangentes. Uma lista de causas de carência de ferro, a serem questionadas e/ou pesquisadas diante de hemograma sugestivo de AF, é apresentada na Tabela 6.1. TABELA 6.1 Causas de anemia ferropênica Crianças

Prematuridade (ver Cap. 19) Iatrogênese no berçário (ver Cap. 19) Dieta láctea sem complementação apropriada (ver Cap. 19) Dieta carente por causa socioeconômica + crescimento Verminose

Adultos

Hipermenorreia Sangramento crônico no trato digestivo (ver Cap. 10) Sangramento de outras origens Gestações repetidas, sem complementação Verminose Doações de sangue Dieta vegetariana restrita (rara) Dieta carente por causa socioeconômica (rara) Defeitos de absorção – ferropenia gastropática – cirurgia gástrica

No Brasil, em crianças de áreas rurais sem saneamento e de áreas litorâneas, onde a areia úmida favorece a preservação de larvas em forma infestante por via transcutânea, verminose por Necator americanus é a causa predominante; a infestação por Ancilostoma duodenale é menos difundida. Estima-se haver atualmente no mundo 2 mais de 740 milhões de pessoas infestadas por ancilostomídeos, concentrando-se em áreas rurais pobres, tropicais e subtropicais, com cerca de 190 milhões apenas na China. Infestações por Ascaris lumbricoides e Strongyloides stercoralis também causam anemia ferropênica; infestações por Trichuris trichiura e Enterobius vermicularis não costumam causar. Em populações desassistidas, dieta carente em ferro pode causar anemia em crianças e adolescentes em épocas de máximo crescimento; é incomum no Brasil. Dificilmente é causa principal em adultos, mas pode ser causa coadjuvante, como na gravidez, quando se associa ao excesso de demanda de ferro. A anemia ferropênica em crianças abaixo de dois anos é discutida no Capítulo 19.

Em adultos, na grande maioria das vezes, a causa de AF é a perda crônica de sangue, não valorizada ou não notada: hipermenorreia e/ou perda crônica de sangue no trato digestivo. Defeitos de absorção anteriormente desacreditados como causa de falta de ferro, após constatar-se a virtual constância de AF após cirurgias bariátricas, passaram a não ser mais encarados como irrelevantes; foi até criado o termo sideropenia gastropática para a falta de absorção de ferro nas gastrites crônicas com acloridria, ligadas ou não à presença de Helicobacter pylori (ver também Cap. 7). Deve-se lembrar que a história clínica é enganadora; as mulheres não se dão conta da hipermenorreia (“minha menstruação é normal, porque sempre foi assim...”), e as pessoas dificilmente atentam para o aspecto das fezes, não notando nem melenas óbvias. E todos os pacientes (ou responsáveis, em pediatria) atribuem a anemia à má alimentação, ou não sabem por que estão anêmicos, pois se alimentam bem, e custam a crer que a anemia quase nunca é por falta de aporte alimentar, e quase sempre é por perda sanguínea crônica. A AF das mulheres com hipermenorreia é prevalente a ponto de justificar-se, em clínicas de atendimento primário a populações carentes e com difícil acesso a exames complementares, tratá-las com sulfato ferroso mesmo sem confirmar o diagnóstico com um hemograma. Como a AF é vista na clínica de todas as especialidades médicas, justifica-se ampla discussão do hemograma. HEMOGRAMA NA ANEMIA FERROPÊNICA Eritrograma A contagem de eritrócitos não é representativa da severidade da anemia; microcitose e hipocromia tornam a contagem proporcionalmente mais alta do que a dosagem de hemoglobina. O hematócrito (pela hipocromia) também é discretamente mais alto. Microcitose e hipocromia são notadas e quantificadas pelos três índices hematimétricos clássicos: volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM) e concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM). Para avaliar a sensibilidade de cada um dos índices à carência em ferro, os autores coligiram do arquivo do laboratório Weinmann, em 2008 132 resultados consecutivos de ferritina 13

87,7

29,9

34,1

12-13

87,3

29,3

33,5

11-12

83,6

27,4

32,7

10-11

78,2

25,0

32,0

9-10

74,4

22,6

30,4

Valores discordantes entre hipocromia e microcitose na AF em adultos são exceções, mas existem. Um exemplo de AF acentuadamente hipocrômica sem microcitose

significativa está na Figura 6.3 (a); a diferença com predomínio da hipocromia sobre a microcitose é mais comum que a recíproca. Já em crianças menores de 2 anos, com o VCM baixo próprio da idade, microcitoses mais acentuadas que a hipocromia são comuns, como se vê na Figura 6.3 (b). O histograma RBC V/HC da linha Advia é particularmente claro na demonstração simultânea de microcitose e hipocromia. Mais ainda na identificação precoce de hipocromia pelo dado % Hipo (aumento do contingente de eritrócitos hipocrômicos), que se eleva antes que a concentração hemoglobínica média (MCHC ou CHCM) seja afetada: notar % Hipo= 54,9 em (a) e % Micro= 46,4 em (b).

FIGURA 6.3 Eritrogramas Advia de anemia ferropênica: acentuada hipocromia sem microcitose em mulher adulta (a); acentuada microcitose sem hipocromia em lactente (b).

O mecanismo responsável pela microcitose e a hipocromia dos eritrócitos deficientes em ferro é dependente da eIF2α-quinase (HRI), regulada pela concentração de heme. Pela variabilidade diária do aporte de ferro à eritropoese, há aumento precoce do RDW, mas o aumento é lento (ver Fig. 2.5). Apesar da comprovação de que os índices hematimétricos quando ainda não há anemia, de um modo geral, carecem de sensibilidade à carência de ferro, em casos pontuais podem ser elucidativos se fizerem parte de um laudo evolutivo. Veja-se o exemplo a seguir. A Figura 6.4 mostra o laudo evolutivo de eritrogramas e ferritina de paciente ferropênica por hipermenorreia, com anemia microcítica em 04/10/2012; foi tratada com sulfato ferroso por três meses, de novembro/2012 a janeiro/2013. Houve aparente normalização das cifras em 09/01/2013, mas o RDW=15,7 sugere ainda haver população microcítica remanescente; o dado confirma-se pela elevação ulterior da Hgb a 14,2 g/dL em 13/06/2013. O controle seis meses após (19/12/2013) ilustra de modo convincente que: a) Anemia deve mesmo ser definida, como prefere o autor, pela baixa da hemoglobina em relação aos níveis anteriores; a Hgb=12,1 g/dL de 19/12/2013 não é normal para essa paciente. b) Os índices hematimétricos merecem igual raciocínio: VCM=84,5 fL e RDW=14,9 (ainda dentro dos valores de referência) são anormais nessa paciente. Os exames anteriores no laudo evolutivo comprovam-no; a essa altura já deveria estar novamente sem reservas de ferro; veja-se como a dosagem de ferritina, que não foi feita nessa data, é indispensável nos controles evolutivos. O eritrograma de 24/04/2014, época da consulta com o autor, mostra nova anemização. c) A anemia ferropênica é facilmente controlada com ferro oral apropriado, mas recidiva sistematicamente se não for removida a causa; no caso, a hipermenorreia que persistiu. Já anemias ferropênicas estabelecidas de longa data mostram eritrogramas patognomônicos, tornando desnecessárias até a dosagem de ferritina, como as da Figura 6.5. Em (a), AF que poderia representar a evolução natural do caso da paciente da Figura 6.4 se não recebesse tratamento; em (b), AF extrema em criança de oito meses com história de dieta restrita a leite bovino. Data

24/04/2014

19/12/2013

13/06/2013

09/01/2013

04/10/2012

Eritrócitos

4,11

4,40

4,75

4,69

3,91

M/µL

Hemoglobina

10,5

12,1

14,2

13,0

9,5

g/dL

Hematócrito

33,0

37,2

42,3

40,1

30,5

%

VCM

80,3

84,5

89,0

85,5

78,0

fL

HCM

25,5

27,5

29,9

27,7

24,3

pg

CHCM

31,8

32,5

33,6

32,4

31,1

%

RDW

15,4

14,7

13,1

14,9

16,3

%

60 ng/mL, geralmente por concomitância de doença crônica, recomenda-se comprovação da falta de reservas de ferro por exame da medula óssea (Fig. 6.6). O autor utiliza com sucesso, há décadas, o sacarato de hidróxido de ferro III (Noripurum®). Curiosamente, só há dois anos a Food and Drug Administration (FDA) aprovou-o nos EUA (Venofer®) para substituir o ferro-dextran, reconhecidamente tóxico, mas, até então, preferido. Recomenda-se a infusão intravenosa lenta (30 minutos) de uma ampola de 5 mL (100 mg de ferro), diluída em 100 mL de soro fisiológico, ou duas ampolas (200 mg de ferro) em 250 mL (60 minutos). Uma nova opção intravenosa para reposição de ferro lançada recentemente no Brasil (mas existente há anos na Europa e nos Estados Unidos) é o ferro carboximaltose (Ferinject®). A vantagem dessa nova molécula com ferro é a possibilidade do uso de doses maiores num curto tempo de aplicação; no Brasil é apresentada em ampolas de 500 mg. Costuma-se empregar doses de 1000 mg (duas ampolas), diluídas em 250 mL de soro fisiológico, infundidos na veia em 30 a 60 minutos. Se for necessária/recomendável uma segunda dose, fazê-la ao menos uma semana depois. Não ultrapassar a dose total de 2.000 mg. O ferro intravenoso não aproveitado imediatamente para síntese de hemoglobina armazena-se na medula como ferritina e hemossiderina. Esse ferro “artificial” toma

aspecto granular nas distensões de medula óssea, distinto do aspecto mais difuso do ferro “natural” (Fig. 6.6).

FIGURA 6.6 Ferro em aspirados da medula óssea (coloração de Perls). Ferro “fisiológico”: aspecto difuso (a); ferro oriundo de noripurum intravenoso: aspecto granular (b).

Com ferro oral a elevação da Hgb é da ordem de 1 a 2% por dia a partir do sexto dia de tratamento; com ferro intravenoso, é inicialmente mais rápida. Cabe fazer um hemograma de controle aos 60 dias, mas o tratamento oral deve ser mantido por 3 a 4 meses, no mínimo, para suprir as reservas de ferro do organismo após a normalização da hemoglobina. A emergência de uma população normocítica com o tratamento pode ser monitorada com o histograma do hemograma de controle. Dois exemplos estão na Figura 6.7. O histograma 6.7 (a) é de um eritrograma após 45 dias de tratamento; as duas populações são óbvias; a prévia, com VCM um pouco acima de 50 fL, e a emergente, com VCM bem acima de 90 fL. Esse aspecto de dupla população, com uma população normocítica emergente no meio da anterior microcítica, comprova a etiologia ferropênica da anemia, mesmo se o tratamento tiver sido insuficiente para melhorar significativamente a Hgb, por não sobrepujar as perdas sanguíneas, por hipótese continuadas. O RDW (= 36,5), por medir inapropriadamente a abertura das duas curvas ao mesmo tempo, aumenta de modo desmesurado com o tratamento; normaliza-se só mais tarde, com a desaparição da população microcítica. O histograma da Figura 6.7 (b) mostra um pico microcítico (VCM ≅ 50 fL) tão pequeno que nem foi alcançado pelo RDW, o que denota que esse eritrograma, praticamente normal para uma paciente feminina, na verdade é de um caso de AF tratado recentemente com ferro; sem observar o histograma, o diagnóstico seria impossível.

FIGURA 6.7 Histogramas (Coulter) com dupla população eritroide (anemias ferropênicas em tratamento).

Falta de resposta a tratamento com ferro oral nunca deve induzir ao inútil e mal tolerado aumento de dose, ou à passagem intempestiva ao tratamento injetável. Interpretar inicialmente como: ■ falta de adesão ao tratamento (non-compliance); confirmá-la com história cuidadosa, mas autoritária; ■ persistência de perdas hemorrágicas superiores à capacidade absortiva de ferro; pesquisá-las; ■ erro de diagnóstico (a anemia não é ferropênica); reavaliar com os exames descritos no diagnóstico diferencial com a anemia de doença crônica (adiante, neste capítulo). Cumpridas essas recomendações, a situação reavaliada confirmando falta de ferro pode ser indicativa do uso de ferro intravenoso. ANEMIA DAS DOENÇAS CRÔNICAS (ADC) É a anemia de maior prevalência, depois da ferropênica, superando-a em pacientes hospitalizados. É a anemia que emerge como efeito colateral, praticamente constante, de qualquer ativação imunológica de magnitude sistêmica – donde designar-se também anemia das doenças inflamatórias. Como não se trata de uma doença, mas de uma resposta fisiopatológica previsível e universal às citoquinas inflamatórias, o autor acha justificável criar-se a expressão síndrome geral de ADC 3 para designá-la. Uma lista abrangente de causas de ativação imunológica e consequente ADC é vista na Tabela 6.3. As doenças desencadeantes de resposta imune podem ter, elas próprias, outros mecanismos de anemia, os quais se somarão aos de ADC; em algumas doenças, os mecanismos próprios são predominantes na patogênese de anemia. É o caso das nefropatias, em que o processo local provoca ADC, mas a anemia decorre primordialmente da falta de síntese de eritropoetina inerente à insuficiência renal; das

neoplasias, em que a anemização preponderante deve-se à mielotoxicidade do tratamento e a outras complicações; das inflamações crônicas do trato digestivo, em que a anemia predominante é a ferropênica, pela perda crônica de sangue. Essas anemias secundárias – de patogênese múltipla e variável –, em que o mecanismo de ADC é apenas um dentre vários outros, serão discutidas em títulos próprios. A síndrome geral de ADC decorre da ação sistêmica das citoquinas geradas nos sítios de inflamação, necrose e regeneração teciduais. As citoquinas, além de ação ativadora ou inibidora sobre as células da imunidade, induzem ou inibem a expressão e a síntese de várias proteínas (proteínas de fase aguda), também discutidas na sequência. TABELA 6.3 Causas (em ordem alfabética) de anemia de doença crônica Colagenoses e doenças reumáticas Convalescença de trauma, inclusive cirúrgico Dano tecidual isquêmico Dermatites bolhosas Diabete (com complicações) Doenças inflamatórias do trato digestivo (ver Cap. 10) Hepatopatias (ver Cap. 10) Infecções (ver Tab. 6.4) Nefropatias (ver Cap. 9) Neoplasias (ver Cap. 10) Parasitoses teciduais Queimaduras (ver Cap. 5) Rejeição crônica após transplantes Serosites Úlceras de decúbito Vasculites

Citoquinas inflamatórias Interleuquina-1 (IL-1): é secretada por monócitos ativados e células endoteliais. Induz a proliferação de linfócitos T e a produção dos fatores estimulantes de colônias granulocíticas e granulocítico-monocíticas (G-CSF e GM-CSF, das iniciais em inglês), que, por sua vez, causam febre e os demais sintomas sistêmicos de inflamação, estimulam a mielopoese, fazem liberar a reserva granulocítica para o sangue (⇒ neutrofilia no hemograma) e ativam os neutrófilos na periferia. A IL-1 é indutora ou inibidora da síntese de várias proteínas de fase aguda, especialmente a ferritina, discutidas adiante. Interleuquina-6 (IL-6): produzida por monócitos, macrófagos, fibroblastos e células endoteliais, estimula a proliferação de linfócitos B maduros e sua evolução para plasmócitos e a proliferação de linfócitos T-citotóxicos. A IL-6 é indutora da síntese hepática de hepcidina, central na fisiopatologia da ADC. O autor profetiza que a dosagem sérica, ainda difícil e sem definição internacional de valores de referência, entrará eventualmente (ainda não está) na rotina laboratorial para diagnóstico dos estados inflamatórios e da ADC. Interleuquina-10 (IL-10): age em sentido inverso, anti-inflamató​rio, inibindo a síntese de interleuquinas, mas também estimula a ex​pressão de receptores de transferrina e a síntese

de ferritina. Interferon γ: sintetizado por linfócitos e células mieloides, estimula a atividade citotóxica dos linfócitos T, modula a síntese de imunoglobulinas e inibe a síntese de proteínas associadas à proliferação celular, principalmente mieloide. Fator de necrose tumoral α (TNF-α, do inglês): produzido por monócitos ativados. Aumenta a atividade macrofágica e, com esta, a retenção e destruição de eritrócitos senescentes (eritrocaterese) no baço, no fígado e na medula óssea. O TNF-α e os interferons interferem na proliferação e na diferenciação do tecido eritroide, tanto por inibir a produção renal de eritropoetina (Epo) como por aumentar o limiar de sensibilidade à sua ação. Proteínas de fase aguda Proteína C-reativa: é o principal e mais precoce marcador laboratorial do estado inflamatório, aumentando rapidamente a partir do início do evento desencadeante. A proteína C-reativa influencia vários estágios da inflamação, principalmente o reconhecimento de patógenos e componentes de células alteradas e a ativação do complemento, favorecendo a fagocitose. Proteína amiloide A: é constituinte importante da resposta de fase aguda, com aumento tão precoce e intenso como a proteína C-reativa; a dosagem no soro é difícil e nunca entrou na rotina laboratorial. O acúmulo tecidual em inflamações crônicas desencadeia a amiloidose. Fibrinogênio: aumenta precoce e duradouramente em estados inflamatórios; o aumento é a principal causa de aceleração da eritrossedimentação (ver Fig. 6.8). A dosagem laboratorial é fácil, mas inexata, e o resultado muito variável com a técnica escolhida. Também não é usada rotineiramente. Hepcidina: a hepcidina extrapola a condição de proteína de fase aguda. Sua posição central na regulação do trânsito transcelular e das reservas de ferro no organismo a define como o hormônio do metabolismo do ferro. Diminuição da síntese hepática de hepcidina é resposta fisiológica à insuficiência de ferro oferecido à eritropoese. Essa resposta é primária e predominante sobre o estímulo oposto, o aumento da hepcidina quando há sobrecarga de ferro; se a falta de ferro for apenas funcional, com boas reservas de ferro, como ocorre na hiperplasia eritroide continuada das anemias hemolíticas ou na eritropoese ineficaz das anemias diseritropoéticas, ainda assim diminui a síntese de hepcidina. A expressão hepática de hepcidina é intensamente estimulada pela IL-6: o aumento da hepcidina é o principal mecanismo fisiopatogênico da ADC. A dosagem sérica é difícil, a variação é pequena para avaliações clínicas pontuais, e falta uma padronização internacional definida; como a dosagem de IL-6, até esta data não entrou na rotina laboratorial.

Apoferritina: é o invólucro proteico da ferritina. A síntese aumenta marcadamente na síndrome geral de ADC por influência de IL-1, IL-6 e IL-10, mesmo em situações de carência de ferro, caso em que circula carente em conteúdo férrico. A dosagem dita da ferritina sérica na verdade é da apoferritina, o que esclarece a aparente incompatibilidade entre alta ferritina sérica e reservas de ferro baixas ou ausentes ao exame da medula óssea em pacientes com ADC. Haptoglobina: aumenta nos estados inflamatórios, mas não costuma ser dosada para demonstrá-los; usa-se como indicação indireta de hemólise, quando se mostra diminuída. Transferrina (siderofilina): é uma proteína de fase aguda de resposta negativa; diminui nos estados inflamatórios, o que contribui para a hipoferremia da ADC. A dosagem específica não é usada: deve ser dosada junto com o ferro sérico, como capacidade ferropéxica, e fornecida sua saturação percentual. Albumina: a síntese hepática e, como decorrência, a concentração sanguí​nea, diminuem significativamente (resposta negativa) em todos os estados inflamatórios de longa duração. Diminui rapidamente no kwashiorkor agudo dos estados hipermetabólicos súbitos. A dosagem química e a dosagem obtida a partir da eletroforese sérica têm uma indesejável falta de concordância; o autor prefere a eletroforética que tem, ainda, a vantagem de avaliar simultaneamente as globulinas. Patogênese da ADC É múltipla. As interleuquinas inflamatórias desenvolvem uma constelação orquestrada de respostas, culminando em acentuada baixa do ferro plasmático (no laboratório = ferro sérico), inibição da eritropoese e aumento da eritrocaterese. Falta de ferro oferecido à eritropoese: a ADC é uma síndrome hipossiderêmica apesar da presença de reservas de ferro no organismo. A ação central é o estímulo à síntese hepática de hepcidina pela IL-6. A elevação da hepcidina é crucial para o desenvolvimento e manutenção do estado de ADC: agindo localmente e à distância, como um hormônio, inibe a ação da ferroportina, proteína exportadora do ferro celular. Na parede intestinal, a inativação da ferroportina faz o ferro absorvido do duodeno ficar retido nos enterócitos como ferritina, ao invés de passar ao plasma; eventualmente, com a descamação, o ferro é perdido nas fezes. Nos macrófagos do próprio fígado, da medula óssea e do baço, a inativação da ferroportina faz o ferro ser igualmente retido, sem liberação para a transferrina plasmática. A consequência é a hipoferremia (ou hipossideremia), ainda intensificada pela diminuição da síntese hepática de transferrina (proteína de fase aguda de resposta negativa) e por grande aumento da síntese de apoferritina (proteína de fase aguda, mas de resposta positiva) nos macrófagos, favorecendo o armazenamento inacessível do ferro. Aumenta a ferritina sérica de modo desproporcional às reservas; diminuem o ferro sérico e a capacidade ferropéxica. Falta aporte de ferro à eritropoese (ferropenia funcional) sem haver carência de ferro no organismo.

No caso das doenças infecciosas, a hipoferremia parece teleologicamente sensata; a falta de disponibilidade de ferro seria útil por inibir o crescimento de microrganismos. Diminuição da síntese de eritropoetina: a IL-1 e o TNF-α inibem a síntese renal de Epo. Na ADC, para níveis similares de hemoglobina, os níveis de Epo são proporcionalmente mais baixos do que na anemia ferropênica. Há uma deficiência de Epo relativamente à intensidade da anemia. Diminuição da eritropoese: a proliferação eritroblástica é afetada por ação direta de interferon γ, TNF-α e IL-1. Tanto essas citoquinas como a própria falta de ferro disponível diminuem a responsividade à Epo, por sua vez já com produção deficiente. A ADC é sempre uma anemia hiporregenerativa, isto é, sem resposta reticulocítica apropriada. Aumento da eritrocaterese: o TNF-α estimula a atividade macrofágica; a sobrevida eritrocítica média cai a 80 a 90 dias. O ferro liberado do heme fica retido nos macrófagos e não volta à transferrina plasmática. A constelação anemizante fecha o círculo. Os mecanismos da síndrome geral de ADC atuam igualmente em situações agudas. Em respostas imunológicas de menor gravidade, a ADC só começa a ser notada se a evolução ultrapassar 3-4 semanas, dada a longa sobrevida eritrocítica. Já em situações agudas graves, como pneumonia lobar, sepse, cirurgia maior ou outro trauma severo, infarto do miocárdio e outras, pode desencadear-se uma ADC aguda; o antagonismo impróprio dos adjetivos justifica denominá-la anemia de doença crítica. A anemização súbita, da ordem de 2 a 3 g/dL de Hgb em 48 a 72 horas do início dos sintomas, possivelmente é devida à rápida destruição dos eritrócitos já próximos ao fim da sobrevida: fragilizados pelo esgotamento enzimático, são incapazes de resistir ao ambiente inflamatório no baço, fígado e medula óssea. A anemia de doença crítica evolui ulteriormente como ADC. As infecções que causam ADC, listadas em ordem alfabética na Tabela 6.4, costumam ter uma ou mais das características a seguir: 1. 2. 3. 4. 5. 6.

comprometimento sistêmico: emagrecimento, febre, suores noturnos. supuração crônica. lesões com áreas necróticas ou caseosas. disseminação granulomatosa. grande extensão ou gravidade local. doença sistêmica (p. ex., diabete) como causa adjuvante.

Nas colagenoses, a ADC é máxima na artrite reumatoide, quando a Hgb pode ser < 8 g/dL e haver baixa extrema do ferro sérico e acentuada microcitose; é comum a ADC complicar-se por carência de ferro devido à gastrite pelo tratamento com antiinflamatórios, por toxicidade farmacológica (uso de metotrexato), por hiperesplenismo (como na síndrome de Felty). No lúpus eritematoso sistêmico pode haver anemia hemolítica autoimune, além de ADC. Nas demais colagenoses e nas dermatites bolhosas, a ADC é menos intensa, podendo faltar. Em todas, costuma haver certo paralelismo entre a anemia, a atividade inflamatória e os sintomas sistêmicos.

Nas convalescenças, a ADC é proporcional à gravidade do evento causal e à duração evolutiva até a recuperação. TABELA 6.4 Infecções (em ordem alfabética) que causam ADC Abscessos

Lepra lepromatosa

Aids

Leptospirose

Bronquiectasias infectadas

Meningites

Brucelose

Micoses profundas

Doença cavitária pulmonar

Osteomielite

Empiemas

Pielonefrite crônica

Endocardites

Pneumonias

Febre tifoide

Rickettsioses

Granulomatoses

Salmoneloses (não tifoides) na infância

Infecções oportunistas em estados de imunodeficiência

Viroses em geral (na infância)

Infecções por hematozoários

Viroses graves em adultos

Hemograma na ADC A ADC não costuma ser uma anemia severa; na maioria das vezes, a ​hemoglobina mantémse entre 9 e 12 g/dL, raramente desce aquém de 8,5 g/dL. Por falta de disponibilidade de ferro à eritropoese, torna-se microcítica, mas o VCM só raramente é inferior a 70 fL; VCM muito baixo sugere concomitante falta de ferro. O RDW é normal ou pouco aumentado. A contagem de reticulócitos é normal ou baixa, isto é, não há resposta reticulocítica à anemia (anemia hiporregenerativa). Como o eritrograma é incaracterístico, a suspeita de ADC geralmente decorre da presença de sintomas e sinais da doença básica: febre, emagrecimento, dores, artrite, etc. Outras vezes, do resultado do leucograma (neutrofilia), de trombocitose reacional, ou dos demais exames de laboratório. Um deles é a velocidade de sedimentação globular (VSG); pela simplicidade e pelo baixo custo, merece ser pedida junto com o hemograma. O método de Westergren foi substituído por diversas técnicas em equipamento com leitura automatizada, feita em tempo mais curto e sem manipulação do sangue. A correlação com o método original é, no máximo, aceitável; resultados discordantes não são raros. A VSG não tem especificidade nem valor preditivo, mas costuma estar acelerada na maioria das doenças que causam ADC. Como é particular e quase sempre muito acelerada, é particularmente útil (geralmente associada à trombocitose no hemograma) para desencadear suspeita de doença inflamatória crônica do trato digestivo, tireoidite, polimialgia reumática e arterite temporal. O aumento dos fatores que aceleram a eritrossedimentação pode ser visto nos proteinogramas da Figura 6.8, feitos para fim demonstrativo no laboratório do autor; são comparadas eletroforeses dos plasmas (não dos soros) de dois pacientes: o que tem eritrossedimentação elevada mostra picos de α2, fibrinogênio (F) e aumento de γ. Os mesmos fatores causam excessivo empilhamento dos eritrócitos (rouleaux), notado à microscopia, por descarregarem a carga elétrica da superfície. Quando notada à

microscopia deve-se fazer constar a presença de rouleaux no resultado do hemograma; é um bom marcador das alterações proteicas inflamatórias da ADC. O proteinograma é indispensável para distinguir hiperglobulinemias inflamatórias (policlonais) de hiperglobulinemias monoclonais (ver Fig. 26.2).

FIGURA 6.8 Proteinogramas do plasma de pacientes com eritrossedimentação normal (a) e acelerada (b).

A dosagem de proteína C-reativa é mais sensível aos estados inflamatórios do que a VSG; aumenta em horas, e até mil vezes, ao passo que a VSG tarda dias e tem um aumento limitado. A dosagem de outras proteínas de fase aguda não faz parte da rotina laboratorial no Brasil. Diagnóstico diferencial entre ADC e anemia ferropênica (AF) Os exames complementares da lista a seguir prestam-se à confirmação diagnóstica de ADC e AF. Em casos típicos e isolados (só ADC ou só AF), a distinção é categórica. Em casos de ADC + AF, entretanto, o diagnóstico diferencial, ou a comprovação da presença simultânea de uma e outra, é sempre problemático. Várias vezes se deve recorrer ao último exame da lista (pesquisa de ferro na medula óssea), indesejável porque invasivo, mas aceito como padrão-ouro. Dosagem do ferro sérico e da capacidade ferropéxica: o ferro sérico na AF cai a níveis extremos (5 a 30 µg/dL), mas diminui também na ADC. A capacidade ferropéxica, entretanto, aumenta (até > 400 µg/dL) na AF e diminui (< 250 µg/dL) na ADC, o que faz a saturação ser muito baixa (3 a 15%) na AF e pouco diminuída (10 a 25%) na ADC. Essas dosagens devem ser feitas pela manhã, porque o ferro sérico sofre variação circadiana e

os padrões de referência são matinais; dão resultados disparatados se o paciente tiver recebido ferro oral na última semana. Dosagem da ferritina sérica: reflete as reservas de ferro. Estima-se (sem evidências categóricas) que 1 ng/mL de ferritina sérica corresponda a 8 mg de ferro nas reservas do organismo. Na AF pura, não tratada, a ferritina sérica está sempre abaixo de 20 ng/mL. Na ADC, a ferritina (na verdade, a apoferritina dosável) eleva-se muito; é uma proteína de fase aguda. Em casos de ADC, valores abaixo de 40 a 50 ng/mL devem ser interpretados como ferropenia concomitante, e valores elevados certamente não a excluem. Embora tenha sido sugerido um cut-off de exclusão de 150 ng/mL, na opinião empírica do autor não há cut-off de exclusão, pois já viu casos com ferritina sérica acima de 300 ng/mL e ausência de ferro corável (Perls) na medula óssea. Dosagem dos receptores de transferrina livres no soro/plasma (sTfR): os receptores de transferrina da membrana dos eritroblastos (na medula) captam o ferro da transferrina plasmática; seu número é proporcional às necessidades de ferro da célula. São liberados proteoliticamente dos eritroblastos e dos reticulócitos para o plasma; o aumento de sTfR reflete aumento da demanda celular por ferro, seja por hiperplasia eritroide, seja por deficiência de ferro no compartimento funcional. Não havendo reticulocitose, a dosagem é útil para diferenciar AF (resultado elevado) de ADC (resultado normal ou baixo). O método imunoturbidimétrico de dosagem é automatizado, mas é relativamente caro, carece de uma padronização internacional apropriada, e os valores de referência variam com os kits ​comerciais; a dosagem de sTfR, embora disponível, até o momento não entrou na rotina laboratorial no Brasil. Como o nível de sTfR relaciona-se com o pool funcional do ferro e a ferritina sérica com o ferro das reservas, o quociente entre os valores, usando-se de preferência o logaritmo da ​ferritina (sTfR / log F), tem sido considerado mais apropriado à distinção AF ≠ ADC do que cada uma das dosagens usadas separadamente; essa opinião, no entanto, não é unânime. Embora o cálculo seja feito automaticamente pelo software no laboratório, a matemática envolvida não é atraente para a mentalidade médica; o índice não tem tido aceitação no Brasil. Índices hematimétricos dos reticulócitos: o conteúdo hemoglobínico dos reticulócitos fornecido pelos contadores Advia, Sysmex e Cell Dyn ​Sapphire são notáveis para identificar precocemente o desenvolvimento de uma eritropoese ferropênica, isto é, com falta de ferro acessível aos eritroblastos (ferro funcional). São usados para indicar necessidade de ferro intravenoso ao começar-se tratamento com Epo, mas não são especialmente úteis para distinguir a anemia ferropênica da ADC: em ambas falta ferro no compartimento funcional. Além disso, tanto a AF como a ADC são situações crônicas, de modo que em ambas o CHr assemelha-se ao conteúdo hemoglobínico dos demais eritrócitos. Esses índices reticulocíticos serão discutidos no tratamento com eritropoetina humana, no Capítulo 9. Dosagens de IL-6 e hepcidina: a tecnologia é difícil. O método ELISA é caro e, até o momento, resiste à automação. A hepcidina tem sido mais vezes dosada na urina. O uso se restringe a centros de pesquisa, fora da rotina laboratorial. Quando, em um futuro

próximo, forem comercializados kits de dosagens de preço aceitável e padronização internacional, provavelmente serão úteis para o diagnóstico de ADC e sua diferenciação com anemia ferropênica. Um aumento de IL-6 e de hepcidina seria típico de ADC; diminuição ou virtual ausência de ambas, de anemia ferropênica. Mielograma com coloração de Perls: a pesquisa ao microscópio de depósitos de ferro em material obtido por aspiração da medula óssea – para esse fim a biópsia com trocarte não é necessária – é o padrão-ouro (Fig. 6.6). Por ser um método mais invasivo, é o último a ser indicado. Há que se reconhecer que a punção aspirativa é feita com agulha fina, preferencialmente no esterno: com mãos hábeis a anestesia local é eficaz e o trauma e o desconforto da coleta são mínimos. Na anemia ferropênica, ferro corável está ausente dos macrócitos e os sideroblastos são muito raros. Na ADC e na talassemia minor, o ferro é abundante nos macrófagos, mas os sideroblastos, ainda assim, não são numerosos. Sempre que se examina medula corada com Perls deve-se atentar para o aspecto dos sideroblastos: sideroblastos em anel caracterizam as anemias sideroblásticas – mielodisplásicas – que sempre devem ser consideradas (ver Cap. 24). Tratamento Se a anemia de doença crônica for significativa a ponto de causar sintomas relevantes, o que só é comum em idosos, o tratamento com rHu-Epo pode ser indicado; eleva a hemoglobina a níveis toleráveis e melhora a qualidade de vida. Drogas antagonistas da hepcidina poderiam ter efeito terapêutico. Uma está sendo testada: o Lexaptepid, que formaria com a hepcidina um complexo inativo in vivo. Para uma discussão sobre o hemograma no tratamento com rHu-Epo e o uso concomitante de ferro injetável, ver Capítulo 9. TALASSEMIAS O termo engloba uma série de defeitos genéticos em que há redução da síntese de uma ou mais cadeias globínicas da(s) hemoglobina(s), caracterizadas na Tabela 6.5. TABELA 6.5 Características das hemoglobinas humanas Hgb

Cadeias

Características

A

α2 β2

Principal Hgb: 95 a 98% no adulto

A2

α2 δ2

Componente menor: 1 a 3% no adulto

F (fetal)

α2 γ2

Predominante no feto; 60 a 90% no recém-nascido, < 1% após 1 ano

H

β4

Tetrâmero de β, formado quando faltam cadeias α para a síntese de Hgb A

Hgb de Bart

γ4

Tetrâmero de γ, formado quando faltam cadeias α para a síntese de Hgb F no feto; < 2% no recém-nascido normal

Nota: há hemoglobinas embrionárias (Gower e Portland) com cadeias ε e ξ, irrelevantes na vida extrauterina.

O diagnóstico é sempre importante: causam microcitose de grau variável, com ou sem anemia significativa, que deve entrar no diagnóstico diferencial com a anemia ferropênica. A síntese de cadeias α e β ocorre nos ribossomos dos eritroblastos e cessa nos reticulócitos, paralelamente ao catabolismo terminal do RNA. A síntese de cadeias α depende de dois genes (α1 e α2) localizados em cluster no cromossomo 16; as demais cadeias, de um cluster no cromossomo 11, onde há um β-gene, dois γ-genes e um δ-gene. Considerando-se os cromossomos homólogos, vê-se que a síntese de cadeias α e γ dependem de quatro genes cada, e a síntese de cadeias β e δ, de dois genes cada. As síndromes talassêmicas são classificadas segundo as cadeias globínicas acometidas, que definem, por sua vez, quais as hemoglobinas com síntese comprometida. As talassemias δ e γ puras são irrelevantes; a primeira, por comprometer uma Hgb menor; a segunda, por comprometer só a Hgb fetal. São importantes as talassemias α e β por comprometerem a Hgb A; a primeira compromete também as hemoglobinas A2 e F. Também são importantes as combinações talassêmicas: a δβ compromete as hemoglobinas A e A2, e a γδβ, as hemoglobinas A, A2 e F. α-Talassemia Origina-se de deleções totais ou parciais dos α-genes e/ou dos elementos reguladores no cluster, ou de mutações no processamento e na translação do RNA; várias dezenas já foram descritas. O espectro de mutações varia amplamente nas populações, indicando que surgiram localmente e expandiram-se por seleção natural; há evidências de que houve influência da exposição prévia ou atual à malária. Como a população brasileira formou-se a partir dos ameríndios locais e diversas ondas de colonizadores e imigrantes desde o século XVI (agora predominantes), inicialmente portugueses, depois africanos (com a escravatura), e 2 a 3 séculos após, italianos e alemães – no Sul e Sudeste –, também espanhóis, japoneses e outros, com distribuição geográfica desparelha, a população atual é multiétnica e altamente miscigenada: no Sul-Sudeste, com predomínio amplo da origem europeia sobre as demais; no resto do Brasil, com predomínio da afro-ameríndia com maior ou menor miscigenação europeia. A α-talassemia foi principalmente importada pelas populações negras da África subsaariana. Em populações negras, > 95% dos genes α-talassêmicos decorrem da deleção -α3.7. Em levantamento feito no Rio Grande do Sul 4 (192 eurodescendentes e 147 afrodescendentes), a frequência de -α3.7/αα foi de 4,5% (euro) e 21,5% (afro, incluindo 1,6% homozigotos -α3.7/-α3.7). Não foram detectados casos de outras mutações em α. Como a síntese de cadeias α depende de quatro genes, as conse​quências hematopoéticas e clínicas da α-talassemia variam de condição assintomática (deleção de um gene), passando por anemia microcítica discreta (deleção de dois genes) e por anemia microcítica e hemolítica grave (deleção de três genes), à hidropisia fetal, condição incompatível com a vida (deleção dos quatro genes).

α+-talassemia heterozigótica: a deleção restrita ao gene α1 (αα/α–) é o defeito genético pontual de maior prevalência no mundo, acometendo 20 a 30% da população negra africana, em que dá origem a 1 a 2% de homozigotos (α–/α–). A prevalência também é alta na área do Mediterrâneo, na Índia, na Indonésia e na Polinésia. A α+ talassemia heterozigótica é silente: o hemograma é virtualmente normal e o diagnóstico só pode ser feito por biologia molecular (PCR) 5 ; o defeito é notado, ou suspeitado, pelo nascimento de filho homozigótico. O levantamento de Beutler e Weiss, em afro-americanos com idade média de 50 anos (ver p. 61), entretanto, mostra que a deficiência de um gene α causa uma diminuição da hemoglobina da ordem de ≅ 0,5 g/dL em relação aos não portadores, e que o VCM é ≅ 5 fL mais baixo; ou seja, o eritrograma tem valores médios inferiores aos da população não acometida, mas ainda dentro dos limites de referência. Estatísticas brasileiras que dependam de dados raciais são difíceis pela miscigenação maciça e geograficamente heterogênea. A cromatografia líquida de alta resolução (HPLC) e/ou a eletroforese capilar do sangue de recém-nascido com α+-talassemia costumam mostrar Hgb de Bart com valor acima do usual. Uma delas é atualmente é feita no teste do pezinho; se esse dado estiver presente, deve ser anotado na ficha médica do paciente e conservado para conhecimento futuro. α+-talassemia homozigótica: a herança simultânea de dois genes de α+-talassemia, um de cada cromossomo homólogo (genótipo α–/α–), dá origem a um fenótipo com leve anemia microcítica.* A diferença a menos estimada entre os portadores e a população não acometida é de Hgb pouco mais de 1,0 g/dL e VCM ≅ 15 fL. A contagem de eritrócitos é normal ou há leve eritrocitose; não há pontilhado basófilo. A pesquisa, em lâmina corada a fresco com novo-azul-de-metileno, azul-brilhante-de-crésil ou metil-violeta, pode mostrar raríssimos eritrócitos com aspecto de bolas de golfe, pela precipitação de inclusões de Hgb H. O diagnóstico definitivo só pode ser feito por biologia molecular; o exame hematológico dos pais (α+-heterozigotos, descritos anteriormente) não é esclarecedor. Na falta de teste de biologia molecular, justifica-se aceitar o diagnóstico presuntivo de α+ talassemia homozigótica, em paciente com esse eritrograma levemente microcítico e origem racial compatível, se não houver resposta ao tratamento com ferro ou houver ferritina sérica normal ou elevada. α0-talassemia: a deleção mais ampla de um cromossomo no cluster α, comprometendo simultaneamente os genes α1 e α2 e causando o genótipo αα/– –, tem alta prevalência no sul da China e em todo o sudeste da Ásia; é muito rara nos povos africanos e rara nos mediterrâneos; consequentemente, no Brasil. O fenótipo apresenta uma anemia microcítica igual à da α+-talassemia homozigótica; o exame dos pais, entretanto, mostra o comprometimento similar de um deles ou de ambos. A herança homozigótica (– –/– –) é incompatível com a vida; sem cadeias α não se sintetiza nem a Hgb fetal; o feto vive alguns meses pela persistência das hemoglobinas embrionárias, pela presença de Hgb de Bart e traços de Hgb H, e morre no útero, ou nasce hidrópico e não sobrevive. Como, nessas mesmas populações asiáticas, o gene da α+ talassemia também é comum, os duplamente heterozigotos (α–/– –) não são muito raros: têm doença da Hgb H.

α-talassemia não delecional: decorrente de mutação no gene α2, é muito mais rara. Há uma mutante de cadeias α, Hgb Constant Spring, com alta prevalência na Tailândia. Os portadores hetero​zigóticos têm leve anemia microcítica, com pontilhado basófilo nos eritrócitos. A Hgb Constant Spring pode ser identificada pela HPLC. A homozigoticidade causa uma anemia microcítica de moderada a severa. Doença da hemoglobina H: decorre da herança simultânea de genes talassêmicos α+ e α0, ou de α0 e Hgb Constant Spring, combinações comuns no sul da Ásia e só vistas no Brasil em imigrantes dessa origem. A baixa na síntese de Hgb A é acentuada, causando anemia microcítica e hipocrômica severa. A baixa da CHCM (< 30%) deve-se em parte à hidratação excessiva dos eritrócitos por dano à membrana; a anisocitose é chamativa (RDW > 20); a pecilocitose é considerável, com dacriócitos e eritrócitos fragmentados; a coloração apropriada mostra eritrócitos em bola de golfe. Há óbvio componente hemolítico e eritropoese ineficaz. A HPLC identifica Hgb H ≅ 10%, Hgb de Bart ≅ 5%, traços de Hgb A2 e F, e Hgb A. A Tabela 6.6 resume dados hematológicos e prevalência geográfica das quatro eventualidades α-talassêmicas. Os valores médios para Hgb e VCM são os descritos na estatística citada em α+-talassemia, válidos, portanto, para afro-americanos de meiaidade. TABELA 6.6 Dados sinópticos sobre α-talassemia α+ heteroz. αα/α–

α+ homozig. α–/α–

α0 αα/– –

Hgb H α–/– –

14,8

14,3

13,6

13,6

5-10

13,1

12,6

12,0

12,0

5-10

89,5

84,5

74

74

55-74

África negra



5-35%

1-3%

raríssima



Mediterrâneo



3-10%

< 0,1-0,2%

rara

raríssima

Oriente Médio



1-20%

< 0,1-1%

rara

raríssima

Sul da Ásia



comum

rara

comum

presente

Brasil



comum

rara

raríssima



Normal αα/αα Eritrograma (valores médios) Hgb (g/dL)

VCM (fL) Prevalência

β-Talassemia Origina-se de um grupo de mais de 200 variantes do β-gene. Há defeitos, geralmente falta de expressão do gene ou deleção, cuja presença homozigótica causa falta total da síntese de cadeias β (genes β0), e defeitos que ocasionam apenas variável redução da síntese (genes β+). Os alelos responsáveis pela maioria dos casos de β-talassemia no Brasil variam regionalmente 6 de acordo com as populações imigratórias predominantes: códon

39 C > T (≅ 55%) no Sul e Sudeste (colonização italiana), IVS I 6 T > 6 (> 60%) em Pernambuco, Nordeste (colonização portuguesa e africana). Da existência de heterozigotos, duplamente heterozigotos, e homozigotos para os numerosos genes β0 e β+, e da concomitância com defeitos a e combinações, originam-se fenótipos variados de β-talassemia. Genes β-talassêmicos têm prevalência entre 5 e 20% nos povos do Mediterrâneo oriental (gregos, italianos, árabes, turcos). Na Itália, a prevalência é maior no Sul, principalmente na Sicília. Na Península Ibérica, a prevalência é baixa: em Portugal, < 0,4%; na Espanha, 1 a 2%. Nas populações negras do norte e leste da África a prevalência está entre 2 e 10%, e entre 1 e 3% no sul da Ásia; há uma prevalência muito elevada em grupos populacionais restritos da Índia e da Tailândia. Os genes são raríssimos nos povos anglo-saxões, bretões e nórdicos, e raros nos eslavos. Não há estatísticas nos aborígenes da América do Sul; nos da Austrália, são raríssimos. A prevalência no Brasil depende da composição étnica regional: no Rio Grande do Sul e em São Paulo a prevalência é alta pela colonização italiana. Na Argentina, também pela colonização italiana, é particularmente elevada na província de Buenos Aires. β-talassemia minor (traço β-talassêmico): a presença heterozigótica de um gene β0 ou β+ causa uma leve anemia, muito microcítica, amplamente compensada e praticamente assintomática. São poucos os pacientes com queixas de fatigabilidade crônica ou esporádica; em raros, há discreta esplenomegalia. Levantamentos amplos, em regiões de alta prevalência, mostram não causar morbidade significativa nem interferência na sobrevida dos portadores. O eritrograma é característico. Para a edição anterior deste manual o autor coletou 20 casos comprovados por história familiar e/ou dosagem de hemoglobina A2 e elaborou um hemograma típico de β-talassemia minor em adultos; para a presente edição obteve por cortesia do Labora​tório Weinmann uma lista de casos consideravelmente maior (104 e 220 ), mas selecionados apenas por apresentarem índice de Green & King < 64 (ver adiante); a insegurança diagnóstica fica contornada pelo grande número. O novo eritrograma típico está na Figura 6.9. A estatística atual não incluiu contagem de reticulócitos; o valor anotado na figura é o dos 20 casos da edição anterior.

FIGURA 6.9 Eritrogramas típicos de β-talassemia minor (104

e 220

).

1. Há significativa eritrocitose em ambos os sexos, apesar da anemia. 2. A anemia é moderada, compatível com vida assintomática. 3. O VCM é muito baixo, desproporcional à anemia. A HCM, da ordem de 20 fL, é a essência do defeito genético: por não sintetizarem Hgb A suficiente para preenchê-los (pela falta de cadeias β) é que os eritrócitos são microcíticos, o VCM é proporcionalmente baixo, há anemia e eritrocitose reacional à anemia. 4. A CHCM está nos limites mínimos do intervalo de referência populacional; não há hipocromia real. Os eritrócitos diminuem proporcionalmente ao conteúdo: a hipocromia vista ao microscópio decorre da maior translucidez pela pouca espessura dos micrócitos. 5. O RDW é normal, ou quase normal. Extremos: RDW = 13,5 e 15,9. 6. A contagem de reticulócitos (20 casos), sempre acima da média de referência, na maioria muito alta, mostra que a β-talassemia minor mereceria a qualificação de anemia hiper-regenerativa frustrada ou de anemia hiporregenerativa relativa. A medula responde com hiperplasia eritroide, consegue elevar a contagem de eritrócitos muito acima da usual, mas nem assim consegue atingir uma Hgb normal; como todos os eritrócitos são micrócitos contendo apenas ≅ 20 pg de hemoglobina (HCM), mesmo em número excessivo, são insuficientes. É lícito supor-se que, se não houvesse certa eritropoese ineficaz e leve diminuição da sobrevida eritroide pelo efeito deletério da precipitação do excesso de cadeias α, a eritrocitose seria ainda maior, e a anemia totalmente compensada. É a existência de anemias com eritrocitose, como essa, que exige que se defina anemia pela taxa de hemoglobina. 7. A pecilocitose depende do gene mutante: há casos sem pecilocitose e casos com pecilocitose até 3+; eliptócitos em charuto podem ser chamativos. Leptócitos são

quase constantes (são escassos na anemia ferropênica). A policromatocitose (1 a 2+) é constante. 8. O pontilhado basófilo é importante no diagnóstico diferencial: não se observa na anemia ferropênica. A conservação do sangue com EDTA inibe a precipitação dos ribossomos que é a causa do pontilhado; na suspeita, a confirmar, de β-talassemia minor, deve-se distender lâmina na hora da coleta com gota de sangue nativo da ponta da agulha. Há várias fórmulas e índices utilizados para distinguir β-talassemia minor de AF a partir dos dados numéricos do eritrograma. Um dos índices mais usados é o de Mentzer: VCM ÷ E. Na β-talassemia minor o índice costuma estar abaixo do cut-off = 13; na anemia ferropênica, acima de 13. É o índice preferido pelo autor, pois correlaciona a mais óbvia alteração característica da β-talassemia minor: a eritrocitose como resposta à microcitose. Na Figura 6.9 os índices de Mentzer são 64,0 ÷ 6,06 = 10,56 ( ) e 64 ÷ 5,48 = 11,68 ( ); é óbvio que nos pacientes masculinos o índice de Mentzer costuma ser menor (mais talassêmico) do que nos femininos, porque o VCM é o mesmo em ambos os sexos, e a contagem de eritrócitos bem mais alta no masculino. A Figura 6.10 (a) mostra o índice de Mentzer dos 20 casos de β-talassemia minor da estatística prévia do autor e de 30 casos de AF (idade > 2 anos): vê-se que todos os casos de talassemia estão abaixo do cut-off 13, mas que há cinco casos de AF também nessa faixa. A Figura 6.10 (b) mostra os mesmos 20 casos de β-talassemia minor com 70 casos de AF, correlacionados com a dosagem de hemoglobina na abscissa. Nota-se que todos os casos talassêmicos ocupam o quadrante inferior direito, limitado por índice de Mentzer < 13 e um cut-off, arbitrado pelo autor em Hgb > 9,5 g/dL por não haver β-talassemia minor não complicada com anemia mais severa. Os casos de AF ocupam os três outros quadrantes, com apenas duas exceções (casos pediátricos, com 5 e 7 anos). Incluindo-se a correlação com a Hgb e esse segundo cut-off, o índice é fidedigno para o diagnóstico diferencial em adultos; para crianças não é fidedigno, porque a microcitose e a taxa de hemoglobina mais baixas e ascendentes com a idade exigiriam um cut-off variável.

FIGURA 6.10 Índice de Mentzer em 20 casos de β-talassemia minor e 30 casos de anemia ferropênica (a) e correlacionado com a dosagem de hemoglobina nos mesmos casos de βtalassemia minor e 70 casos de anemia ferropênica (b).

Outro índice muito usado é o de Green & King = (VCM2 × RDW) ÷ (Hgb × 100), com β-talassemia minor abaixo e AF acima do cut-off = 64. Os Laboratórios a+/Weinmann (Grupo Fleury, Porto Alegre) incluem no sistema critérios analíticos que analisam todos os resultados de eritrograma e discriminam pela lógica fuzzy os prováveis β-talassêmicos. Nestes, o índice de Green & King é automaticamente calculado e inserido nos resultados. Da mesma forma que o Índice de Mentzer, é mais significativo em pacientes masculinos do que femininos, pois correlaciona inversamente o VCM (igual em ambos os sexos) com a hemoglobina (mais alta no masculino); a diferença, entretanto, é menor, porque o VCM é considerado ao quadrado. Considerando os números do hemograma talassêmico-minor da Figura 6.9, os índices de Green & King são 47,56 ( ) e 54,11 ( ). A síntese de Hgb A2 (a2 δ2) é estimulada pela deficiência de cadeias β; o aumento é mais significativo nos casos β0 (A2 = 4 a 6%, às vezes mais) do que nos β+ (A2 = 3,6 a 5%). A dosagem de Hgb A2 é importante na confirmação do diagnóstico de β-talassemia minor, embora o eritrograma costume ser característico. Em 20 a 30% dos casos há, também, aumento da Hgb F (a2 γ2) para 2 a 7%. O mais prático, atualmente, é fazer cromatografia (HPLC) ou eletroforese capilar da hemoglobina; essas técnicas atuais dosam ambas simultaneamente e revelam hemoglobinopatias coincidentes, se houver. Substituíram a dosagem de A2 em coluna e a antiga eletroforese em gel. Há β-genes talassêmicos silentes, ou quase silentes, nos heterozigotos. Nos quase silentes há mínima anemia microcítica com ou sem aumento da Hgb A2. Os casos sem aumento da A2 são indistinguíveis da a0-talassemia e da α+-talassemia homozigótica. Os casos silentes são notados apenas quando geram filhos homozigóticos ou duplamente heterozigóticos para β-genes talassêmicos; costumam apresentar talassemia intermédia. A herança concomitante de α-genes talassêmicos diminui as alterações hematológicas da βtalassemia minor; pode gerar casos silentes ou quase silentes. Só o estudo dos genes por biologia molecular permite esses diagnósticos. β-talassemia maior e intermédia: da união de dois portadores de β-genes talassêmicos, iguais ou diferentes, há 25% de chance de nascer um homozigoto ou duplamente heterozigoto. O resultado é trágico, pois o recém-nascido (RN) nasce normal (pois nele predomina a Hgb F), mas anemiza progressivamente nos primeiros meses de vida por falta de síntese de Hgb A para substituir a Hgb F; a Hgb F mantém-se um pouco elevada, mas não a ponto de uma função vicariante. A dupla herança β0 e a herança β0 β+ causam anemia extrema – β-talassemia maior – com Hgb entre 3 e 6,5 g/dL, incompatível com a sobrevida sem reposição transfusional permanente; no primeiro caso, há somente Hgb A2 e F; no segundo, há uma pequena porcentagem de Hgb A. A herança β+ β+ dá origem a uma anemia mais tolerável – β-talassemia intermédia –, com Hgb entre 6 e 9 g/dL, em que as transfusões são apenas ocasionalmente necessárias.

A anemia da talassemia maior decorre de uma combinação de eritropoese hiperativa, mas ineficaz, pois a precipitação do superávit de cadeias α nos eritroblastos causa irremediável diseritropoese e a falta de cadeias β impede a hemoglobinização, com hipocromia e hemólise periférica, pois os eritrócitos defeituosos têm sobrevida muito encurtada. O eritrograma decorrente dessa patologia eritroide múltipla é proteiforme: o histograma pode estar muito alterado (Fig. 6.11 [a]); só é constante a extrema anemia. Predominam micrócitos com VCM < 60 fL, mas há macrócitos policromáticos e descorados, pecilocitose com leptócitos, dacriócitos e formas fragmentadas, eritroblastos com sinais de diseritropoese. A necessidade transfu​sional acrescenta um componente normocítico a essa heterogênea população. Há neutrofilia e trombocitose, mas o hiperes​plenismo pode causar leucopenia e trombocitopenia ulteriores. A esplenectomia causa agravamento dos aspectos sanguíneos de diseritropoese, grande eritroblastose e leptocitose, além de suas alterações usuais.

FIGURA 6.11 Eritrogramas (Coulter) de paciente com β-talassemia maior sob tratamento transfusional (a) e de anemia sideroblástica congênita (b).

Pacientes não tratados desenvolvem fácies de roedor, enorme esplenomegalia, retardo de crescimento e retardo mental. Nas populações subdesenvolvidas, morrem na infância. Tratados com reposição transfusional apropriada, mantendo-se a Hgb elevada na época de crescimento, desenvolvem-se satisfatoriamente; deve ser feito um tratamento paralelo com agentes quelantes do ferro para diminuir a hemossiderose transfusional: desferroxiamina intravenosa (Desferal®) ou deferiprona (Ferriprox®) e desferasirox (Exjade®) orais; esse último é o mais usado atualmente no Brasil. Se houver doador compatível, o transplante de medula óssea é indicado e deve ser precoce. Nos países com legislação, mentalidade e recursos compatíveis com a cultura do terceiro milênio, na presença de gestante e parceiro com β-genes talassêmicos, é feita coleta de material fetal para diagnóstico genético por biologia molecular e a gestação é interrompida se o resultado for conclusivo para talassemia maior.

Há combinações de genes de δβ-talassemia e de Hgb E com genes βº e β+ capazes, também, de dar origem a casos de talassemia maior ou intermédia. δβ e γδβ-talassemias: há pelo menos 8 mutações que resultam na deleção ampla no cluster β, comprometendo também o δ-gene, prevalentes principalmente na Grécia, Chipre e sul da Itália, e 11 que comprometem o δ e os γ-genes, só prevalentes na Índia e na China. O eritrograma dos heterozigotos δβ é semelhante ao da β-talassemia minor, mas o VCM é um pouco mais alto, próximo aos 70 fL; não há aumento de Hgb A2 e há aumento de Hgb F (de 5 a 20%). O autor já viu casos locais em uma família de origem grega. Os homozigotos e os duplamente heterozigotos δβ e β apresentam quadro de talassemia intermédia porque têm mais Hgb F que os homozigotos de β-talassemia (com talassemia maior). O crossover desigual durante a meiose, com fusão dos genes δβ, dá origem a uma cadeia β de síntese lenta e uma hemoglobina com cromatografia e migração distinta da A, a Hgb Lepore. Tem prevalência significativa nas redondezas de Nápoles e na Macedônia; já foi descrita no Brasil. Os heterozigotos (Hgb Lepore ≅ 10%, sem aumento de Hgb A2) mostram quadro de talassemia minor; os homozigotos, de talassemia intermédia ou maior. Persistência hereditária da hemoglobina fetal: a Hgb F está presente no sangue do adulto em baixa porcentagem (< 1%) e em reduzido número de eritrócitos (< 4%), ditos células F. Discreto aumento das células F e da Hgb F é achado frequente em muitas etnias: é assintomático e irrelevante. As mutações delecionais ou não delecionais no cluster β, que incluam os δβ-genes, podem fazer com que os γ-genes do cromossomo homólogo assumam posição de alelos, o que causa aumento significativo da síntese de Hgb F (5 a 30%). Não há anemia nem nos heterozigotos nem nos homozigotos (estes com Hgb F = 100%). A persistência hereditária delecional da Hgb F é rara; é significativa apenas em populações africanas, no sul da Itália, na Índia e na Tailândia. Há casos publicados no Brasil de persistência não delecional em pacientes fenotipicamente brancos e em negros. ANEMIAS POR INTERFERÊNCIA NO METABOLISMO DO FERRO Anemia sideroblástica congênita É uma raríssima doença genética recessiva ligada ao sexo, em que mutação na enzima ácido δ-aminolevulínico-sintetase (ALAS2) causa defeito de metilação mitocondrial do ferro e insuficiente produção de heme nos eritroblastos. Há microcitose acentuada e significativa hipocromia, mas a população eritroide mostra considerável heterogeneidade; o histograma é exageradamente aberto como na Figura 6.11 (b) de caso do autor, e difere dos histogramas de anemia ferropênica e de talassemia que são os diagnósticos diferenciais a serem considerados. A confirmação diagnóstica de anemia sideroblástica faz-se pelo mielograma; a coloração de Perls, que cora o ferro em azul-da-prússia, além do acúmulo de ferro armazenado, mostra uma coroa de grânulos de ferro mitocondrial em torno do núcleo da

maioria dos eritroblastos – sideroblastos em anel. Na mãe (heterozigota), podem ser encontrados alguns sideroblastos similares. A anemia sideroblástica congênita é um defeito incurável; há melhora marginal com o uso diário de doses farmacológicas de piridoxina. Na raríssima síndrome de Pearson (ver Apêndice 3) há, igualmente vacuolização e sideroblastose em anel. Anemia ferropênica congênita refratária ao ferro É ainda mais rara que a anterior; conhecida internacionalmente como IRIDA, (Iron Refratary Iron Deficiency Anemia). Decorre de mutação no gene TMPRSS6, que codifica uma serinoprotease expressa no fígado e que interfere no nível de hepcidina. Tem todas as características da anemia ferropênica usual, mas não responde a tratamento com ferro oral e responde parcialmente a ferro intravenoso. Sideroblastoses em anel adquiridas transitórias O abuso alcoólico causa sideroblastose em anel e vacuolização de precursores mieloides passageiras. Achado idêntico foi visto algumas vezes pelo autor ao examinar medula (pedido por leucopenia no hemograma) de pacientes em tratamento com cloranfenicol, frequente no passado, na expectativa infrutífera de prever possível anemia aplástica ulterior. A isoniazida (usada no tratamento da tuberculose) causa sideroblastose sem vacuolização mieloide. Caso recente foi descrito por Wong e Haley: 7 anemia e sideroblastose em anel por tratamento prolongado com gliconato de zinco; crê-se devida à hipocupremia secundária, tendo melhorado com a descontinuação do tratamento. ACÚMULO DE FERRO NO ORGANISMO 8 Pode decorrer tanto de absorção excessiva de ferro por interferência fisiopatológica ou defeito genético na ação da hepcidina como de aporte iatrogênico de ferro medicamentoso ou transfusional. Interferência na expressão hepática da hepcidina com regulação para menos favorece a ação da ferroportina e há ampla liberação do ferro dos enterócitos e dos macrófagos para a transferrina plasmática. O evento final é um aumento do ferro plasmático e do aporte de ferro à eritropoese; ocorre nas seguintes situações: 1) Resposta fisiológica Quando as necessidades da eritropoese superam a oferta de ferro no compartimento funcional, sensores da falta de ferro fazem aumentar os receptores de transferrina nos eritroblastos e diminuir, até virtual supressão, a expressão da hepcidina no fígado. ■ A resposta é apropriada na real deficiência de ferro, com falta de reservas expressa por baixa ferritina sérica, baixa saturação da transferrina e falta de ferro corável na

medula. Se o aumento de absorção intestinal for insuficiente para contrabalançar a causa de falta de ferro, desenvolve-se anemia ferropênica. A única medida terapêutica eficaz é a administração de ferro. ■ A resposta é inapropriada quando a insuficiente oferta de ferro não se deve à carência no organismo, mas à hiperatividade eritroide continuada com insuficiência de ferro apenas no pool funcional apesar de haver reservas e suficiente ferro reciclado pelos macrófagos. É o caso das anemias hemolíticas crônicas, com hiper-regeneração extrema e permanente, e das anemias diseritropoéticas, com eritropoese ineficaz, como a talassemia e as mielodisplasias. Há absorção e liberação excessivas de ferro para a transferrina e um acúmulo lento e progressivo de ferro nas células parenquimatosas. É a hemossiderose, que se acelera de modo catastrófico no caso de haver necessidade de reposição transfusional. A ação estimulante (positiva) do excesso de ferro sobre a expressão de hepcidina é sempre fisiologicamente inferior à ação inibidora (negativa) da avidez insatisfeita da eritropoese por ferro. A produção em laboratório de agonistas da hepcidina ou de hepcidina exógena, permitindo uma interferência terapêutica no ciclo, seria notavelmente bem-vinda. 2) Defeito genético A expressão de hepcidina nas células hepáticas é regulada pelo gene HFE. Uma variante na sequência do gene, C282Y, que se crê originada em um antepassado celta há cerca de 2 mil anos, difundiu-se até a considerável prevalência de 8 a 10% em populações do norte da Europa, talvez por favorecer o armazenamento de ferro nas mulheres em idade reprodutiva em épocas de escassez histórica de ferro. Na população branca nos EUA a prevalência do gene variante é da ordem de 7%, o que resulta em 0,4% de homozigotos. A variante é rara em negros, asiáticos e ameríndios. A herança homozigótica da variante C282Y causa redução significativa na expressão da hepcidina nas células hepáticas, com consequente exagero na absorção duodenal e acúmulo de ferro no organismo: é a hemocromatose hereditária. A penetrância do gene é baixa; apenas uma fração dentre os homozigotos C282Y desenvolve hemocromatose-doença: 20 a 30% ( ) e 1 a 2% ( ). A enorme predominância no sexo masculino explica-se pela proteção trazida às mulheres por mais de 30 anos de perda mensal de ferro nas menstruações. Dentre outras variantes descritas de HFE, apenas a herança duplamente heterozigótica, C282Y/H63D, ou mais raramente a herança homozigótica da variante, H63D, também seriam capazes de causar hemocromatose. A combinação heterozigótica C282Y com uma terceira variante descrita, S65C, causa aumento da ferritina, mas dificilmente acúmulo de ferro em nível hepatotóxico. Presume-se haver outras variantes genéticas de HFE, ainda não identificadas, também causadoras de acúmulo de ferro. Apenas 70 a 80% dos pacientes com ferritina muito elevada têm pesquisa de biologia molecular positiva para as combinações genéticas das variantes discutidas acima. Há mutações muito raras, identificadas nos últimos 12 anos, de outros genes codificadores de proteínas da regulação do ferro (hemojuvelina, receptor-

2 de transferrina e ferroportina). Estão implicadas na herança de hemocromatose precoce, evidenciada na infância e juventude. Aceita-se que, em pessoa sem doença inflamatória sistêmica que a justifique, uma ferritina sérica elevada, confirmada por duas determinações com 3 a 4 semanas de intervalo, seja indicativo de acúmulo de ferro passível de causar hemocromatose presente ou futura. Esse dado, associado à prevalência considerável das variantes HFE, justifica a recomendação de incluir-se a dosagem de ferritina sérica em ao menos uma revisão médica em pacientes masculinos de ascendência europeia entre os 30 e 40 anos. A disseminação dessa providência simples e barata transformará brevemente a hemossiderose em uma doença rara. O acúmulo de ferro total no organismo – que na hemocromatose-doença, com ferritina sérica frequentemente > 2.000 ng/mL, pode ser >20 gramas – lesa as células parenquimatosas do fígado. Surgem sinais de hepatopatia: desenvolve-se fibrose com progressiva evolução para cirrose; uma vez estabelecida, o risco de carcinoma hepático é considerável. O acúmulo de ferro nos tecidos pancreático e cardíaco acompanha-se de diabete e cardiomiopatia; hipogonadismo, hipotireoidismo, impotência, artropatias e pigmentação melânica são outros sinais clássicos. O desenvolvimento de hemocromatosedoença hepática é favorecido pela concomitância de hepatite crônica, especialmente por HCV, esteatose e alcoolismo; os mesmos fatores tornam mais precoce a evolução para cirrose e carcinoma hepático. Hemograma em portadores de variantes HFE: acúmulo de ferro no organismo não causa alterações no hemograma*. Não há poliglobulia. Trabalhos na Áustria e nos EUA demonstraram hemoglobina mais alta (13,9 × 13,4 g/dL) em mulheres portadoras heterozigóticas da variante C282Y. Em levantamento feito na Austrália, a diferença não se mostrou significativa. Pequenas diferenças hemoglobínicas em estatísticas populacionais em homens são difíceis de evidenciar. O estado homozigótico para C282Y, ou duplamente heterozigótico C282Y/H63D, confere proteção à anemia ferropênica em mulheres. O ferro sérico e a saturação da transferrina (ST) são 10 a 20% mais altos em portadores de variantes do que na população com HFE usual (wild type). A Tabela 6.7 mostra resultados de exames relativos ao balanço de ferro em casos de acúmulo potencialmente danoso (⇒ hemocromatose-doença). TABELA 6.7 Dosagens séricas relativas ao balanço de ferro em hemocromatose (presente ou potencial) Ferritina

(aos 35 anos) (aos 50 anos) (aos 65 anos)

> 300 ng/mL > 500 ng/mL > 700 ng/mL

Ferro sérico

> 180 µg/mL

Capacidade ferropéxica

≅ 300 µg/mL

Saturação da transferrina (ST)

> 45%

e > 50%

Pacientes com valores nesses níveis devem fazer testes de biologia molecular para variantes dos genes HFE: são amplamente disponíveis. O critério de indicação exigido

pelos planos de saúde para fornecer cobertura financeira exige duas determinações de ST com resultado > 45%. Se homo ou duplamente heterozigóticos para C282Y ou H63D, com ferritina > 1.000 ng/mL e ST aumentada, o risco de evolução para hepatopatia/hemocromatose em pacientes abaixo de 60 anos é da ordem de 20 a 50%; esse resultado mostra sensibilidade de quase 100% e especificidade de cerca de 70%. Se a ST estiver < 40% e a ferritina sérica < 1.000 ng/mL, o risco cai a < 5%. Avaliação direta e objetiva da sobrecarga de ferro pode ser feita por biópsia hepática. Apesar de a punção ser simples e rotineiramente usada para avaliação de hepatopatias, trata-se de método invasivo e não isento de risco. Tem a vantagem de avaliar a histologia hepática, evidenciando esteatose, hepatite, fibrose e cirrose incipiente. A indicação de biópsia torna-se mais pertinente se houver elevação de enzimas e/ou sinais de imagem de hepatopatia. A avaliação do ferro 9 é feita à microscopia após coloração de Perls (azul-daPrússia): cora o ferro dos hepatócitos, das células de Kupffer e/ou dos espaços-porta. Embora com certo grau de subjetividade seja possível aplicar uma graduação histológica, dentre as várias publicadas, a preferida é a de Searle, 10 que mostra resultados consistentes quando as mesmas lâminas são distribuídas e examinadas por diversos observadores. Baseada nos achados à microscopia em diferentes aumentos, permite o estabelecimento de 4 níveis (Tab. 6.8). TABELA 6.8 Graduação histológica de depósitos de ferro hepático pela coloração de Perls Grau

Facilidade de observação e aumento requerido (ocular × objetiva)

0

Grânulos ausentes ou liminarmente discerníveis em 400×

1+

Grânulos liminarmente discerníveis em 250× Facilmente confirmados em 400×

2+

Grânulos com resolução bem definida em 100×

3+

Grânulos com resolução bem definida em 25×

4+

Massas visíveis em 10× ou a olho nu.

Graus 0 e 1+ indicariam depósitos normais; o grau 2+ sugere leve sobrecarga de ferro, especialmente se a hemossiderina estiver quase exclusivamente em hepatócitos. Graus 3+ e 4+ indicariam aumentos significativos de ferro hepático.

Já a quantificação real do ferro exige homogeneização ou digestão do material de biópsia e dosagem por cromatografia de absorção atômica ou colorimetria; não é disponível no Brasil. O Laboratório Fleury (São Paulo) envia as amostras para a Mayo Clinic, USA. Uma avaliação não invasiva aproximada da sobrecarga de ferro hepático pode ser feita por ressonância magnética (RM). 11 É também aplicável à avaliação do ferro miocárdico, tanto em casos de hemocromatose-doença como de hemossiderose transfusional. O acúmulo de ferro iônico nos tecidos provoca distorção local dos campos magnéticos e relaxamento das rotações, o que resulta no encurtamento do tempo de relaxamento longitudinal (T1), no tempo de relaxamento transversal (T2) e

particularmente no tempo de relaxamento transversal em função da falta de homogeneidade no campo magnético (T2 ). O protocolo standard de RM abdominal não se presta à avaliação do ferro: há necessidade de software especial. O método descrito por Gandon 12 é o mais usado; correlaciona-se satisfatoriamente com dados oriundos de dosagem por biópsia. O site da Universidade de Rennes fornece um protocolo de livre acesso para inserção de dados individuais e cálculo de resultados. O resultado é fornecido com o ferro hepático expresso em mmol de Fe por g de tecido hepático (na coluna da direita o autor converteu em mg Fe/g). São definidos 4 níveis: ■ Ausência de sobrecarga ■ Sobrecarga leve ■ Sobrecarga moderada ■ Sobrecarga severa

< 40 mmol/g

(< 2,24 mg/g)

40 a 100 mmol/g 100 a 200 mmol/g > 200 mmol/g

(2,24 a 5,6 mg/g) (5,6 a 11,2 mg/g) (> 11,2 mg/g)

Apesar de disponível em inúmeros serviços de radioimagem e ter cobertura financeira dos planos de saúde, a RM ainda tem sido pouco requisitada; não é mencionada nas diretrizes do Center of Diseases Control (EUA). O autor a recomenda porque um resultado mostrando sobrecarga dá credibilidade à indicação e aumenta a aderência ao desagradável tratamento com sangrias; também porque acredita que a estimativa do nível de sobrecarga correlacionado à idade seja útil para julgar a necessidade de profilaxia/tratamento. A American Association for the Study of Liver Diseases 13 publicou diretrizes para diagnóstico e tratamento de hemocromatose. O autor não concorda com a falta do parâmetro “idade do paciente” nos algoritmos e recomendações: como a hemocromatose HFE é uma doen​ça genética, que começa ao nascimento e o acúmulo de ferro progride de modo sistemático, embora lento, durante toda a vida, é óbvio que os resultados de ferritina sérica e saturação da transferrina têm que ser interpretados à luz da idade. Um paciente de 30 anos com ferritina ≥ 700 ng/mL quase certamente desenvolverá hemocromatose-doença em 10 a 20 anos; a mesma dosagem em paciente de 65 anos é inócua. A RM permite o cálculo do índice: Fe em mmol/g de tecido hepático ÷ idade em anos

Quando >1,9 (abaixo de 20 anos, >1,5) é sinal de alta probabilidade de desenvolvimento de hemocromatose (ou doença já estabelecida). Profilaxia/tratamento A tentativa de diminuir ou não deixar aumentar a sobrecarga por eliminação da dieta de alimentos considerados “ricos em ferro”, embora recomendada por alguns médicos e nutricionistas mal-informados, é totalmente inútil. É óbvio que devem ser proscritos complementos nutricionais ou medicamentos contendo ferro e/ou vitamina C. A remoção de ferro do organismo é feita com sangrias, em serviços de Hemoterapia. O sangue removido nas sessões de tratamento (se negativo para as infecções

regulamentares) em todo o mundo é rotineiramente usado para transfusão; menos no Brasil, onde é descartado (!), por inexplicável regulamento da Anvisa. Cada sangria de 450-500 mL remove cerca de 200 a 250 mg de ferro. Em homens de 25 a 40 anos, com ferritina < 500 ng/mL, e de 40 a 60 anos, com ferritina < 800 ng/mL, assintomáticos, sem sinais laboratoriais e de imagem de hepatopatia e com saturação da transferrina (ST) abaixo de 45%, a indicação será profilaxia: basta que se apresentem a um serviço de Hemoterapia (sem mencionar o excesso de ferro...) e que se mantenham como doadores de sangue, doando sistematicamente no limite cronológico legal (intervalo de 3 meses e até 4 doações por ano). Esse programa, mantido até os 67 anos (limite legal para doação) não faz baixar significativamente a ferritina, mas evita a progressão do acúmulo de ferro e tem a vantagem de permitir o emprego terapêutico do sangue removido (doado). Pacientes de 60 a 64 anos, se tiverem boas condições físicas podem adotar essa mesma profilaxia (doações de sangue), mesmo com ferritina entre 800 e 1.000 ng/m. Se for cumprida até os 67 anos regulamentares geralmente poderão ficar sem tratamento, ou com sangrias esporádicas daí em diante. Pacientes mais velhos serão julgados individualmente. Todos os pacientes com ferritina sérica mais alta do que a definida para os grupos etários anteriores, com ST > 45%, e/ou com alteração em testes hepáticos, de laboratório ou de imagem, devem ser enviados a hepatologista. Este julgará a indicação de biópsia; geralmente concorda. Se houver hepatopatia histológica, os pacientes costumam ser mantidos sob os cuidados desse especialista. Se a biópsia mostrar acúmulo de 2+, sem hepatopatia, a profilaxia supracitada costuma ser suficiente. Se 3+ ou 4+, devem iniciar e manter o tratamento com sangrias a cada uma ou duas semanas, de acordo com a tolerância e o nível de hemoglobina (manter > 12,5 g/dL) até baixar a ferritina a 50 a 100 ng/mL (recomendação das diretrizes norte-americanas). O autor sugere uma dicotomia: se houver hepatopatia à biópsia, aceitar essa recomendação; se não houver hepatopatia histológica apesar do acúmulo de ferro, tratar até ferritina < 200 ng/mL. Cuidar para que o tratamento não seja exagerado e cause depleção de ferro, o que facilmente ocorre quando a ferritina está abaixo de 100 ng/mL. Note-se que sangrias fazem baixar a apoferritina por até 3 a 4 semanas, de modo que nunca se dosa ferritina (pois na verdade o que é dosado é a apoferritina, com ou sem ferro) antes de decorrido esse prazo da última sangria. Também é recomendável confirmar o resultado com nova dosagem após mais três semanas: a dosagem de (apo)ferritina tem grande variação aleatória e fisiopatológica (aumenta na presença de inflamações e, definidamente, nas hepatopatias!). A saturação da transferrina não é adequada para controle: se estiver elevada no início do tratamento, costuma manter-se elevada até cair de modo súbito já nos limites da depleção de ferro. Pacientes do sexo feminino são muito raras. Devem-se julgar os casos individualmente, de acordo com a tolerância às sangrias (mais difícil em mulheres). Se houver alteração hepática, laboratorial ou de imagem, o tratamento é indispensável; se sangrias mostrarem-se inviáveis tratar com drogas quelantes de ferro. O tratamento com sangrias poderá ter longa duração: geralmente vários meses. Em casos de hemocromatose avançada, sempre sintomática, com ferritina > 2.000 ng/mL, podem ser necessários anos para diminuí-la a menos de 100 ng/mL. Uma vez esvaziadas

as reservas de ferro, passam a ser necessárias apenas sangrias com espaçamento de 3 a 4 meses (tornar-se doador em outro banco de sangue?) como manutenção. Drogas quelantes de ferro descritas no tratamento da talassemia maior, embora menos eficazes, são usadas em pacientes que não tolerarem sangrias ou que tenham grande dificuldade de acesso venoso. 1 Looker AC, et al. Prevalence of iron deficiency in the United States. JAMA, 1997;277(2):973-6. 2 Hotez PJ, et al. Hookworn infection. N Engl J Med 2004;351(8):799-807. 3 Em analogia à síndrome geral de adaptação, termo criado por H. Selye para a resposta fisiopatológica ao estresse. 4 Wagner SC, et al. Prevalence of common α-thalassemia determinants in South Brazil: importance for the diagnosis of microcytic anemia. Genet Mol Biol. 2010; 33(4):641-5. 5 O Laboratório Fleury (São Paulo) e suas filiais no Brasil (a+/Weinmann em Porto Alegre) oferecem testes de biologia molecular para α-talassemia; são dispendiosos. 6 Reichert VC, et al. Identification of β-talassemia mutations in South Brazilians. Ann Hematol. 2008;87(5):381-4. 7 Wong MP, Haley LP. An unusual cause of anemia... Blood. 2014;123(2):61. 8 O acúmulo de ferro no organismo não causa alterações no hemograma. O autor decidiu-se por escrever esta extensa seção porque, com a ampla difusão da dosagem, ferritina elevada tornou-se uma das causas mais comuns de consulta a hematologista. 9 Com a colaboração do Dr. Geraldo Geyer, Laboratório Geyer, Porto Alegre. 10 Searle J. et al. Iron storage disease. In: MacSween R, et al., editors. Pathology of the liver. London: Churchill Livingstone; 1994. 11 Com a colaboração do Dr. Rodrigo Dias Duarte, da Serdil Radiologia, Porto Alegre. 12 Gandon Y, et al. Hemochromatosis: diagnosis and quantification of liver iron with gradiente-echo MR imaging. Radiology 1994;193(2):533-8. 13 Bacon BR, et al. Diagnosis and management of hemachromatosis: 2011 practice guideline by the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology. 2011;54(1):328-43.

7 ANEMIAS POR INTERFERÊNCIA NA SÍNTESE DE NUCLEOPROTEÍNAS As células da hematopoese, por necessitarem de duplicação repetida da massa cromossômica pela contínua proliferação, são especialmente sensíveis a interferências na biossíntese dos ácidos nucleicos. São causas usuais de síntese inapropriada de DNA: ■ Interferência de fármacos ■ Deficiência de vitamina B12 ■ Deficiência ou interferência no metabolismo dos folatos A anemia decorrente do uso de drogas antiblásticas, que agem por comprometimento direto da síntese do DNA, é uma inevitável extensão do efeito farmacológico visado: a anemia ou a pancitopenia são efeitos colaterais previstos, discutidos na seção Anemia e hemograma nas neoplasias (Cap. 10); não são casos de anemia a esclarecer. O presente capítulo restringe-se à anemia das carências vitamínicas.

A falta de vitamina B12 e/ou de ácido fólico, ou a interferência farmacológica na função deste, causam bloqueio na síntese de timidilato e, por extensão, de DNA. As células da hematopoese respondem com crescimento e maturação assincrônicos entre núcleo e citoplasma, retardo mitótico e eventual inviabilidade celular. Proeritroblastos e eritroblastos basófilos agigantados (megaloblastos) acumulam-se, proliferam de modo anárquico e morrem na medula; a eritropoese é ineficaz. A hipercelularidade medular destoa do sangue periférico onde se instala progressivamente uma anemia macrocítica. Na granulocitopoese, predominam na medula mielócitos e metamielócitos gigantes, sem maturação apropriada, e pode haver neutropenia no sangue. A megacariocitopoese é irregularmente comprometida; a trombocitopenia não é constante e, quando presente, é tardia. Como nesse conjunto de alterações hematológicas predomina a anemia, diz-se haver anemia megaloblástica. Outros tecidos são também afetados: a vitamina B12 é indispensável ao trofismo das mucosas e à síntese de mielina nas células nervosas sensitivas. A hematopoese clonal das síndromes mielodisplásicas e da eritroleucemia mostra alterações megaloblastoides, difíceis de distinguir morfologicamente da hematopoese nas carências citadas. Dosagem das vitaminas, exames citogenéticos e de biologia molecular e, principalmente, a imediata resposta ao tratamento de reposição nas deficiências vitamínicas fazem o diagnóstico diferencial. Deficiência de vitamina B12 na infância praticamente só ocorre por raríssimos defeitos genéticos. Em adultos jovens, é muito rara; a incidência aumenta a partir da meia-idade até tornar-se significativa na velhice. A generalização da dosagem de vitamina B12 – agora componente indispensável da revisão médica de idosos – tem mostrado prevalência de 2 a 3% aos 60 anos e aumento com o avançar da idade. A anemia por falta de ácido fólico ou por interferência em seu metabolismo pode decorrer de múltiplas causas, eventualmente vistas na clínica, mas nenhuma de prevalência elevada em nosso meio. DEFICIÊNCIA DE VITAMINA B12 A vitamina B12, isolada de extratos de fígado e identificada quase simultaneamente nos laboratórios Merck (New York) e Glaxo (Londres), em 1948, como uma cianocobalamina cristalizada, desempenha funções vitais no organismo. Sua surpreendente potência limita as necessidades do organismo a 2 a 5 µg por dia. Como o organismo armazena reservas hepáticas de 3.000 a 5.000 µg e há uma recirculação êntero-hepática da vitamina, são necessários de 3 a 5 anos de absoluta carência dietária ou absortiva até o esgotamento. A vitamina B12 é abundante e difundida nos alimentos de origem animal, incluindo ovos e leite, e praticamente ausente nos alimentos vegetais, de modo que a falta de aporte alimentar só ocorre em pessoas adeptas de alimentação vegetariana restrita (veganos); não ocorre em lactovegetarianos. O autor lembra-se de ter visto só dois casos, ambos em pacientes psiquiátricos. Mesmo em agrupamentos de fanáticos adeptos do veganismo, a hipovitaminose B12 por carência alimentar é rara; mesmo porque, com a divulgação

popular da cultura médica, muitos deles estão cientes dessa necessidade vital e complementam a “dieta natural” (?) com vitamina B12 industrializada. A complexidade das interações bioquímicas necessárias à absorção da vitamina B12 no trato digestivo, listadas a seguir, ■ liberação das proteínas dos alimentos animais (= digestão; dependente da presença de ácido clorídrico) ■ ligação às haptocorrinas (proteínas de transporte presentes nas secreções salivar e gástrica) ■ digestão duodenal das haptocorrinas (secreções biliar e pancreática necessárias) e ligação ao fator intrínseco (secretado pela mucosa gástrica) ■ ligação do complexo B12 + fator intrínseco à cubulina (no íleo terminal) ■ absorção por endocitose nos enterócitos do íleo explica por que a carência de vitamina B12, na avassaladora maioria dos casos, decorre de deficiência na absorção. Nos enterócitos ileais, a vitamina B12 liga-se à transcobalamina II, passa ao sangue e é difundida como holotranscobalamina II à generalidade dos tecidos. A Tabela 7.1 apresenta uma lista abrangente de causas de deficiência de vitamina B12. TABELA 7.1 Causas de deficiência de vitamina B12 Falta de aporte alimentar Má absorção por causas gástricas: ■ Má digestão de B12 : gastrite atrófica, infecção crônica por Helicobacter pylori ■ Falta de fator intrínseco (gastrite atrófica autoimune = anemia perniciosa clássica) ■ Gastrectomia e bypass gástrico Diversos: ■ insuficiência pancreática, doença de Crohn, ressecção ileal, do cteriano intestinal e alça cega, infestação por Diphyllobothrium latum, síndrome de Imerslund-Gräsbeck, exposição ao óxido nitroso Defeitos genéticos (raríssimos): ■ de transcobalamina e de certas enzimas celulares

As causas gástricas de deficiência de vitamina B12 são as únicas comuns. O termo anemia perniciosa foi usado até recentemente para designar a anemia megaloblástica por falta de fator intrínseco, glicoproteína secretada pela mucosa fúndica, indispensável à absorção da vitamina B12; aceitava-se etiologia autoimune para a gastrite causal, apesar da inconstância da presença de anticorpos anticélulas parietais e antifator intrínseco. A falta de digestão da vitamina B12, isto é, a incapacidade gastroduodenal de dissociála das proteínas animais dos alimentos e/ou das proteínas intestinais de transporte e consequente falta de absorção mesmo havendo fator intrínseco – uma patogênese distinta da clássica – só nesses últimos anos foi bem caracterizada, com análise de ampla casuística divulgada por E. Andrès e colaboradores, 1 do Serviço de Medicina Interna da Universidade de Strasbourg. Demonstrou-se que, de uma série de 300 casos de deficiência comprovada de vitamina B12, 60% deviam-se à síndrome de má digestão, ligada à gastrite crônica, provocada ou não por Helicobacter pylori, e só 18% à gastrite atrófica

autoimune (anemia perniciosa clássica); 6% dos casos foram atribuídos a síndromes de má absorção intestinal, 2% à falta de aporte alimentar e 14% não tiveram causa esclarecida. A entrada na rotina clínica da dosagem sérica da vitamina B12 mudou os parâmetros clínicos da deficiência: ■ O estabelecimento de um intervalo de referência, com limites de confiança (95,5%) = 240 a 900 pg/mL, permitiu definir-se um cut-off seguro para a deficiência: < 200 pg/mL. ■ A grande maioria dos diagnósticos passou a ser feito a partir de resultados de dosagens rotineiras, não mais a partir da avaliação de pacientes já com anemia perniciosa clássica. ■ Há longo período de carência praticamente assintomático, mas, se especificamente pesquisados, sinais clínicos (Tab. 7.2) precedem a anemia. TABELA 7.2 Sinais e sintomas de deficiência de vitamina B12 Neurológicos ■ Precoces: parestesias, dormências simétricas nas extremidades, falta de sensibilidade à vibração de alta frequência (notada com diapasão na área tibial ou maleolar) ■ Tardios: sinais de esclerose combinada dos cordões sensitivos da medula, síndromes cerebelares, síndrome de Parkinson, convulsões Hematológicos (tardios) ■ anemia megaloblástica (⇒ palidez amarelo-limão, subicterícia) Dermatológicos ■ encanecimento precoce, vitiligo (associação) Digestivos ■ glossite (ardência com bebidas ácidas), dispepsia, anorexia Ginecológicos ■ atrofia da mucosa vaginal, infecções geniturinárias Psiquiátricos ■ Precoces: depressão, insônia, mal-estar geral ■ Tardio: demência

É possível, mas não comprovado, que a evolução da gastrite causal proceda-se em um continuum: inicialmente gastrite causada por Helicobacter pylori; a seguir, acloridria, causando falta de dissociação da B12 de suas proteínas portadoras (má digestão); finalmente, gastrite atrófica e falta de secreção de fator intrínseco, com componente autoimune em pacientes geneticamente predispostos – nesta etapa, o ambiente não é mais propício ao Helicobacter, e a pesquisa local torna-se negativa, embora persistam anticorpos séricos. Em pacientes com gastrite autoimune, há significativa correlação com vitiligo, hipotireoidismo e outras doenças autoimunes. Esse crescendo parece ter sentido ao comparar-se o nível de B12 e as manifestações hematológicas da sequência: ■ Gastrite com acloridria: B12 sérica média ≅ 150 pg/mL, anemia macrocítica incomum; pode ser causa coadjuvante de anemia ferropênica por comprometer a absorção de ferro.

■ Gastrite atrófica com falta de fator intrínseco: B12 sérica média ≅ 75 pg/mL, anemia macrocítica clássica usual. Essa recente contribuição à patogênese gástrica da carência de B12, distinguindo-se entre má digestão e falta de fator intrínseco, pouco modifica a posição do clínico em relação ao paciente, exceto pela perspectiva de que o tratamento precoce da infecção por Helicobacter faça abortar a evolução; mesmo porque a distinção entre os dois mecanismos patogênicos é elaborada e praticamente inútil, pois o tratamento é o mesmo. Mas, passado o sesquicentenário da pictórica descrição por Thomas Addison (Londres, 1855) de um paciente com anemia progressiva, mas que faleceu sem caquetizar, e do relato de 15 pacientes anêmicos (com 14 óbitos) por Anton Biermer, que criou o termo progressiver perniciöser Anämie (Zürich, 1872), cabe um comentário sobre a denominação apropriada dessa anemia carencial: O nome anemia de Addison-Biermer, ainda usado, seria justo se ■ a descrição original de Addison se fizesse acompanhar de um mínimo de dados hematológicos, já disponíveis à época; ■ os casos de Biermer fossem de falta de vitamina B12 – não eram. Treze dentre os casos eram de mulheres desnutridas, grávidas ou em pós-parto, obviamente (para o conhecimento atual) com carência de ácido fólico (= anemia macrocítica da gravidez). Anemia perniciosa é um termo consagrado, mas a anemia deixou de ser “perniciosa” desde a eficácia do tratamento com fígado oral (Minot e Murphy, 1928) e, muito mais ainda, após a descoberta da vitamina B12; e a patogênese deixou de ser unitária, passando a ser múltipla. O autor considera que a denominação apropriada é anemia megaloblástica por deficiência de vitamina B12, seguida da causa quando especificamente identificada. Hemograma na deficiência de vitamina B12 Numerosos pacientes são referidos à clínica do autor por apresentarem anemia e/ou macrocitose, poucos por baixa dosagem de vitamina B12 sérica; esse bias estatístico faz a grande maioria dos casos de deficiência de B12 recebidos apresentar-se já com alterações hematológicas. Na casuística do grupo da Universidade de Strasbourg, citada anteriormente, com pacientes recebidos em sentido inverso (baixa dosagem de B12 ⇒ avaliação hematológica), somente ≅ 50% dos pacientes tinham anemia e/ou macrocitose ao exame inicial; deve reconhecer-se que o critério adotado para anemia (Hgb < 12,5 g/dL, independentemente de sexo) merece reparos. Nos pacientes que anemizam, é certo que, não havendo falta concomitante de ferro, o aumento do VCM e a baixa da hemoglobina ocorrem simultaneamente. Como o VCM rapidamente ultrapassa 100 fL (= macrocitose), ainda com hemoglobina dentro dos limites de referência (embora diminuída em relação à dosagem “normal” do paciente), costuma dizer-se que a macrocitose precede a anemia. Mais correto seria dizer-se é notada antes

de anemia significativa. Notável exemplo de evolução de anemia perniciosa com hemogramas seriados obtidos em laudo evolutivo do laboratório se encontra na Figura 7.1. Note-se a diminuição lenta, mas progressiva da hemoglobina, de 14,7 g/dL em 2001 ao nadir de 10,8 g/dL à data da consulta em janeiro de 2014; e o aumento lento e progressivo do VCM, que, já em outubro de 2012, torna-se macrocítico (ainda com hemoglobina normal, embora mais baixa que a prévia). O quadro hematológico, a evolução típica e a dosagem de B12 permitiram fácil diagnóstico; a paciente confirmou queixas de ardência na língua com bebidas ácidas e dormências simétricas nas extremidades. Exame da medula óssea é inútil. Veja-se, a seguir, a imediata resposta hematopoética com virtual normalização da hemoglobina aos 40 dias da primeira injeção de vitamina B12. Interessante também notar a inexpressividade do leucograma e da contagem de plaquetas: os valores numéricos são só tardiamente afetados.

FIGURA 7.1 Laudo evolutivo escaneado do original (Laboratório a+) de hemogramas de paciente vista pelo autor em 21/01/2014 (data fictícia) e tratada com vitamina B12 IM (5.000 µg) após o hemograma feito no dia seguinte.

Eritrogramas com histogramas típicos de caso já muito macrocítico, mas ainda pouco anêmico, e de caso avançado com severa anemia, são vistos na Figura 7.2.

FIGURA 7.2 Eritrogramas (Coulter) de dois casos de anemia perniciosa.

A microscopia mostra que os macrócitos são ovalados (macro-ovalócitos) e que a cauda à esquerda do histograma decorre de grande número de pequenos pecilócitos e eritrócitos fragmentados, de volume ainda menor. A contagem de reticulócitos é baixa, e a IRF, aumentada (ver Figs. 3.2 e 3.3). No leucograma, neutropenia discreta é comum (neutrófilos = 1.000 a 2.000/µL); é quase constante a presença de neutrófilos hipersegmentados (≥ 6 lóbulos nucleares) e de grande talhe, ditos pleocariócitos; estes costumam preceder a anemia. Em mulheres, há excesso de drumsticks. O número de plaquetas é normal, tardiamente um pouco diminuído. No laudo evolutivo da Figura 7.1, leucograma e plaquetas ainda são normais; não há referência a neutrófilos hipersegmentados: o autor desconhece se houve microscopia de lâminas em algum dos hemogramas. O hemograma da falta de vitamina B12 é idêntico ao da carência de ácido fólico; é um hemograma de anemia megaloblástica, decorrente das alterações medulares já descritas, próprias à falta de qualquer das duas vitaminas. O diagnóstico diferencial, nesse caso, deve ser feito pela dosagem das vitaminas, pelos dados clínicos e pelos exames pertinentes às causas respectivas. Nas anemias megaloblásticas, a desidrogenase láctica está consideravelmente aumentada e há hiperbilirrubinemia indireta (até 3 mg/dL) pela hemólise intramedular. Tanto a vitamina B12 como o ácido fólico são necessários à metabolização da homocisteína; deficiências causam acentuada hiper-homocisteinemia (limite de referência: < 12 µmol/L); há normalização com o tratamento específico da(s) deficiência(s). Como níveis séricos elevados de homocisteína têm correlação estatística com estados

trombofílicos, a hiper-homocisteinemia tem sido tratada com doses farmacológicas de B12 e folato mesmo em pacientes sem deficiência das vitaminas. O resultado laboratorial do tratamento é notável: há acentuada diminuição da homocisteinemia em poucas semanas de tratamento. O resultado antitrombofílico almejado, entretanto, mostra-se desanimador: quatro trabalhos prospectivos (um internacional), todos com grande número de pacientes e longa observação, mostraram resultados absolutamente nulos quanto à prevenção dos eventos preestabelecidos como marcadores: AVC, infarto do miocárdio, recorrência de tromboembolismo venoso e morte. O tratamento da anemia megaloblástica por deficiência de vitamina B12 com cianocobalamina ou hidroxocobalamina (3 injeções intramusculares de 5.000 µg, uma a cada 5 dias) é rapidamente “curativo”. O paciente, dois ou três dias após a primeira injeção, sente-se notavelmente disposto, eufórico e com apetite; iniciando do terceiro para o quarto dias, há reticulocitose durante 1 a 2 semanas e rápida normalização do quadro sanguíneo. O tratamento de manutenção com vitamina B12 intramuscular a cada dois meses deverá ser mantido por toda a vida; o tratamento corrige a deficiência, mas não corrige a causa. Em 2 a 3 semanas o advento de população normocítica causa dupla população no histograma (Fig. 7.3).

FIGURA 7.3 Eritrogramas (Cell Dyn) de caso de anemia perniciosa antes do tratamento (a) e 17 dias após injeção de cianocobalamina (b).

Sabendo-se agora que ■ a maioria dos casos de falta de B12 decorre de falta de dissociação da vitamina das proteínas alimentares (digestão), o que não interfere na absorção da cianocobalamina pura da medicação, e que, ■ ao administrar-se B12 oral em alta dose, cerca de 1% da vitamina é absorvida na parede do trato digestivo apenas por osmose, independentemente dos processos fisiológicos digestivos e absortivos, o tratamento com cianocobalamina oral tem sido preferido por alguns médicos nos últimos anos. Está comprovada a eficácia de dose oral de 1.000 µg/dia; nessa dose, tornase 20 a 40 vezes mais caro que o tratamento por injeção. O autor é de opinião que seja feito tratamento inicial injetável, para efeito pronto e seguro, e reserve-se o tratamento oral – se desejado – para a manutenção. Alguns pacientes com falta de vitamina B12 têm deficiência concomitante de ferro, malabsorvido devido à acloridria gástrica; neles o tratamento com B12 eleva inicialmente a hemoglobina, mas esta estaciona em taxa subnormal, emergindo uma população microcítica no histograma do hemograma de controle. Adição de sulfato ferroso ou ferrocarbonila ao tratamento causa novo surto de regeneração e cura da dupla carência. Dosagens periódicas de ferritina indicarão a necessidade futura de novos tratamentos com ferro. DEFICIÊNCIA DE ÁCIDO FÓLICO Apesar da extensa lista de causas (Tab. 7.3), a deficiência de ácido fólico no Brasil só é vista em clínicas pediátrica e pré-natal de atendimento primário a populações carentes, e em alcoolistas de precárias condições socioeconômicas. Nos Estados Unidos, a deficiência foi praticamente erradicada pela adição de folatos a inúmeros alimentos industrializados; a adição também foi instituída no Brasil. TABELA 7.3 Causas de deficiência ou interferência no metabolismo dos folatos Dieta carente ■ Baixas condições socioeconômicas (geralmente associada a consumo excessivo) ■ Alcoolismo ■ Alimentação parenteral não complementada Consumo excessivo de folatos (sempre associado à dieta carente) ■ Épocas de máximo crescimento (= anemia macrocítica da infância [ver Cap. 19]) ■ Gestação e lactação (= anemia macrocítica da gravidez) ■ Eritropoese hiper-regenerativa (anemias hemolíticas crônicas) ■ Dermatites exfoliativas e psoríase Síndromes de má absorção intestinal Fármacos que inibem o ciclo metabólico do ácido fólico ■ Metotrexato e raltitrexato (efeito visado; são drogas antifólicas) ■ Pirimetamina, trimetoprima, pentamidina, triantereno (extensão indesejada do efeito) Drogas/fármacos que interferem na absorção/excreção de folatos ■ Álcool ■ Anticonvulsivantes: fenitoína, primidona, fenobarbital

A discordância entre os grupos etários, salvo nos alcoolistas idosos e nos pacientes com diarreia crônica por síndrome de má absorção intestinal, e a obviedade da maioria das causas listadas, tornam fácil o diagnóstico diferencial com a anemia perniciosa, apesar do hemograma absolutamente igual. A dosagem de ambas as vitaminas, apesar disso, é sempre recomendável. O nível sérico de ácido fólico não se correlaciona exatamente com a forma ativa intracelular; tentativa de substituir a dosagem no soro (limites de referência: 3 a 16 ng/mL) pela dosagem em concentrado de eritrócitos não teve aceitação. O autor diagnosticou e tratou vários casos de anemia macrocítica da gravidez nos anos 1950 a 1960, época em que era chamado como consultor de hematologia na Maternidade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e examinava pacientes de nível socioeconômico muito baixo. A expansão do atendimento pré-natal pelas Secretarias de Saúde deve ter reduzido consideravelmente o número atual de casos. Viu também casos na Inglaterra em 1965; eram decorrentes da preferência local por alimentos submetidos à cocção prolongada, que inativa o ácido fólico. Crê-se que deficiência de ácido fólico ao iniciar-se gestação predisponha a defeitos do tubo neural fetal; deve ser sempre receitado em clínicas de fertilidade e na primeira consulta em clínicas pré-natais. As reservas de ácido fólico do organismo não são abundantes; ficam exauridas em 60 dias do início de uma dieta carente. A deficiência é uma doença grave, com perda extrema de apetite, o que piora a dieta, emagrecimento rápido e anemização. O tratamento oral, com 5 mg diários de ácido fólico (Folin®), abre um apetite voraz no paciente e há melhora clínica e hematológica imediatas. Nunca se trata um paciente com carência presuntiva de ácido fólico sem antes dosar a vitamina B12 (ou administrá-la simultaneamente), para excluir a carência dupla, ou a alternativa; o tratamento intempestivo com ácido fólico de paciente com deficiência de vitamina B12 pode desencadear ou piorar o dano neurológico da falta desta. No caso de intoxicação por drogas antifólicas que inibem as enzimas de conversão à forma ativa, o tratamento deve ser feito com ácido folínico (Leucovorin®), oral ou injetável, 15 mg/dia. 1 Andrès E, et al. Food-cobalamin malabsortion in elderly patients: clinical manifestations and treatment. Am J Med. 2005; 118(10):1154-9

8 ANEMIAS POR FALTA OU DEFEITO PROLIFERATIVO DO TECIDO HEMATOPOÉTICO As doenças da medula óssea costumam comprometê-la como um todo, causando insuficiente produção nas três séries mieloides e consequente pancitopenia periférica. Quando há insuficiência hematopoética global decorrente de atrofia do parênquima medular com substituição por gordura, diz-se haver aplasia. O termo também se aplica à falta seletiva de uma outra série hematopoética, mantendo-se o parênquima celular com as demais séries não acometidas; essas aplasias medulares seletivas, isto é, só de uma série, são fugazes, como a agranulocitose, e/ou raras, como a eritroblastopenia pura e a trombocitopenia na síndrome trombocitopenia et absentii radii (TAR). A falta ou insuficiência proliferativa de tecido hematopoético na medula óssea pode decorrer também de proliferação neoplásica autóctone ou metastática, de granulomatose, de fibrose, de carências alimentares ou defeitos metabólicos, de necrose da medula óssea e de defeitos genéticos. A insuficiência medular por invasão ou proliferação tumoral, ou decorrente do tratamento, é discutida na seção Anemia e hemograma nas neoplasias (Cap. 10) e nos Capítulos 20 a 26, sobre neoplasias da hematopoese.

A pancitopenia sem causa óbvia é a principal indicação de exame da medula óssea (ver Cap. 28). É sempre mais prático e produtivo enviar o paciente à consulta com um hematologista que acumule funções laboratoriais do que pedir diretamente um exame de medula óssea a um laboratório; o hemograma e a indicação serão reavaliados pela óptica do especialista, que julgará sobre a utilidade dos resultados a obter e escolherá entre mielograma, biópsia ou ambas. Além disso, o material medular será examinado com conhecimento do caso clínico, permitindo encaminhamento a outros exames que forem julgados pertinentes, como imunofenotipagem, citogenética, etc. ANEMIAS APLÁSTICAS (AA) 1 As aplasias medulares são classificadas em constitucionais (genéticas) e adquiridas. Dentre as constitucionais, destacam-se a anemia de Fanconi, a mais frequente, e a disceratose congênita, que apresentam características clínicas e manejo terapêutico distintos das AAs adquiridas. Em pacientes jovens e/ou com malformações congênitas, é sempre recomendado investigar uma causa genética da aplasia. Anemia aplástica adquirida AA adquirida é uma entidade rara e heterogênea, caracterizada por pancitopenia no sangue periférico associada à medula óssea hipocelular e sem evidência de infiltração neoplásica, mieloproliferativa ou fibrose. Decorre de lesão bioquímica ou imunológica das células primitivas da hematopoese, que se tornam insuficientes para a própria replicação e para a manutenção das cifras hematimétricas periféricas; há ocupação progressiva da medula por tecido gorduroso. O início é insidioso e não há sinais clínicos senão os relacionados à pancitopenia. É uma doença rara no hemisfério ocidental, com incidência entre 0,2 e 0,6/100.000 por ano (no Brasil, 0,21). Em 60 a 70% dos casos, é idiopática e parece decorrer de mecanismos autoimunes oriundos dos linfócitos T; nos demais, correlaciona-se com o uso de fármacos, exposição a tóxicos industriais e radiação ionizante, e com viroses. O hemograma da AA (Fig. 8.1, [a]) mostra pancitopenia e reticulocitopenia com IRF alta. Nos casos com mais de dois meses de evolução, costuma haver macrocitose e uma morfologia eritrocitária monótona. O presente caso corresponde a uma AA severa, definida por neutropenia < 500/µL, trombocitopenia < 50.000/µL e reticulocitopenia. A neutropenia, quando inferior a 100/µL, é categorizada como muito severa devido ao alto risco de infecções graves e fatais. A neutropenia da AA não se acompanha de monocitose. Os linfócitos mantêm-se sem diminuição significativa.

FIGURA 8.1 Hemogramas (Cell Dyn 4000) de anemia aplástica severa (a) e de aplasia eritroide pura, secundária a linfocitose/leucemia de linfócitos T grandes e granulados (b).

O hemograma é semelhante ao da leucemia aguda aleucêmica, isto é, leucemia ainda restrita à medula e sem blastos óbvios no sangue periférico; diante de hemograma pancitopênico, como o da figura, o laboratorista deve dedicar alguns minutos à microscopia, à procura de blastos leucêmicos para o diagnóstico alternativo. É claro que o exame da medula é que fará um diagnóstico diferencial seguro; na AA, obtém-se por aspiração um material gorduroso, sem grumos celulares. A biópsia, indispensável no caso de aspirações hipocelulares, confirma a pobreza hematopoética dos espaços medulares, preenchidos por células gordurosas. Como a mortalidade inicial da AA severa é significativa e a necessidade de suporte hemoterápico é precoce, se o paciente tiver menos de 40 anos de idade e possuir doador aparentado HLA-compatível, deve ser imediatamente encaminhado a centro de transplante de medula óssea (TMO); as perspectivas de sucesso do transplante diminuem com o tempo de evolução e (principalmente) com o número de transfusões prévias. A existência de mais de 20 milhões de doadores voluntários registrados (no Brasil, 4 milhões) facilitou a seleção de um doador não aparentado ideal o que, associada à melhora progressiva no controle das complicações relacionadas ao transplante, os resultados atuais próximos aos

alcançados com transplante entre aparentados. A despeito da relativa raridade da AA, da dificuldade de acesso da população a centro especializado e da necessidade de doadores compatíveis, o Hospital de Clínicas da Universidade do Paraná (UFPR) transplantou mais de 550 pacientes de AA com resultados similares aos melhores serviços internacionais. Na falta de doador, nos casos menos graves e em pacientes acima de 50 anos, o tratamento é feito com ciclosporina A, imunoglobulina antilinfocítica ou antitimocítica e corticoides. Em pacientes tratados em centros especializados, a mortalidade é da ordem de 30 a 40% nos dois primeiros anos, com um platô de sobrevida após esse período. Nos pacientes que respondem ao tratamento, há lenta repopulação da medula e melhora progressiva das cifras periféricas. É comum a estabilização das cifras eritroides um pouco abaixo dos níveis prévios à doença e a manutenção de macrocitose discreta, mas duradoura; o leucograma normaliza-se. Persiste por muitos anos uma trombocitopenia entre 70.000 e 140.000/µL, significativa, mas clinicamente irrelevante. Não é incomum que esses pacientes desenvolvam clone HPN (hemoglobinúria paroxística noturna), que pode se ampliar e desenvolver suscetibilidade a hemólise intravascular e trombose. Anemia de Fanconi

É uma anemia aplástica constitucional, autossômica recessiva, com grande heterogeneidade genética; o defeito mais comum, em 16q24.3, compromete o gene FANCA, necessário ao sistema de reparo do DNA. Caracteriza-se por falência medular progressiva, anormalidades congênitas e grande predisposição ao desenvolvimento de mielodisplasia, leucemias e tumores sólidos de cabeça e pescoço. As manifestações hematológicas habitualmente aparecem em torno dos 8 anos de idade. As malformações congênitas são muito variadas (pigmentação café-com-leite, deformidades esqueléticas, falta de crescimento, alterações renais, etc.) e estão presentes ao nascimento. O diagnóstico é consolidado com o teste da fragilidade cromossômica observado após a exposição a agentes clastogênicos – diepoxibutano e mitomicina C –, resultando em quebras (setas verdes na ilustração) e rearranjos cromossômicos, com figuras radiais (setas vermelhas). Anormalidades citogenéticas podem ser encontradas e algumas delas têm importância prognóstica. Havendo doador compatível, o TMO é o único recurso capaz de solucionar as alterações hematológicas. Apesar de ser uma doença invulgar, estatística recente do Hospital de Clínicas da UFPR listou 274 pacientes transplantados. Disceratose congênita

Defeito genético ligado ao sexo, em Xq28, comprometendo o gene DKC1. É uma doença rara com envolvimento sistêmico, cujas manifestações clássicas são: pigmentação reticular da face, pescoço e ombros, distrofia ungueal e leucoplasia das mucosas. Há também falência progressiva da medula óssea, fibrose pulmonar, complicações hepáticas e predisposição para desenvolver mielodisplasia, leucemias e outros tumores. Os vários defeitos genéticos causais determinam encurtamento dos telômeros, comprometendo o reparo do DNA. O TMO pode recuperar a hematopoese normal (14 casos transplantados no HCUPr), porém não altera a história natural dos distúrbios hepáticos e pulmonares. Há outros defeitos genéticos raros capazes de evoluir para aplasia medular: nanismo com hipoplasia de cartilagens e pelos, síndrome de Shwachman-Diamond, síndrome de hiper IgM, disgenesia reticular, síndrome de Dubowitz, síndrome de Pearson, síndrome WT. Estão todos descritos sumariamente, em ordem alfabética, no Apêndice 3. APLASIA ERITROIDE PURA (ERITROBLASTOPENIA PURA) Na vigência da maioria das viroses, há uma hipoplasia eritroide passageira; na parvovirose (vírus HPV B19), há virtual desaparição do tecido eritroide por 1 a 2 semanas; a leve anemia decorrente só será notada se houver comparação com hemograma prévio. Se a parvovirose acometer paciente com anemia hemolítica, a parada da eritropoese associada ao encurtamento da sobrevida eritroide causará anemia mais intensa; essa crise aplástica frequentemente exige reposição transfusional. Em pacientes com aids, a má resposta imunitária prolonga o período de estado da virose e a aplasia decorrente; pode haver severa anemização, geralmente responsiva à imunoglobulina humana intravenosa. As aplasias eritroides puras duradouras são raras (Tab. 8.1); em todas, há anemia normocítica extrema, com virtual ausência de reticulócitos (< 0,1%), sem alterações nos leucócitos e plaquetas, salvo pela doença causal (Fig. 8.1 [b]). O resultado do hemograma ilustrado veio com asteriscos na contagem de reticulócitos, indicando dúvida da máquina (Cell Dyn 4000) sobre a validade de cifra tão baixa, e sem IRF. A observação ao microscópio após coloração com novo azul de metileno comprovou a virtual ausência de reticulócitos. A eritropoese na medula é representada apenas por proeritroblastos agigantados e raríssimos eritroblastos basófilos e policromatófilos; a relação leuco/eritroblástica é > 50/1. TABELA 8.1 Aplasia eritroide pura Congênita ■ Anemia de Blackfan-Diamond Adquirida ■ Idiopática (raríssima) ■ Eritroblastopenia transitória da infância ■ Associada à gravidez (raríssima) ■ Associada ao timoma ■ Associada à leucemia linfocítica crônica (rara) ■ Associada à linfocitose/leucemia de linfócitos grandes e granulados

Eritroblastopenia pura congênita (anemia de Diamond-Blackfan) Neste raro defeito genético recessivo, que na metade dos casos decorre de mutação de gene em 19q13.2, correlacionado à proteína ribossomal, o paciente nasce com cifras hematimétricas normais e anemiza a níveis extremos entre o sexto e o décimo mês. A reticulocitopenia periférica e a eritroblastopenia medulares são similares aos demais casos de aplasia eritroide pura, salvo por discreta macrocitose notada já ao fim do primeiro ano. Estrabismo e defeitos ósseos do rádio, dos dedos e das costelas são anomalias associadas. O diagnóstico imediato é importante, porque o tratamento precoce com corticoides pode melhorar a anemia; a manutenção é indispensável. Em casos refratários, havendo doador compatível, o TMO é indicado; até a presente data o HCUPr transplantou 14 pacientes. Eritroblastopenias puras adquiridas Crê-se que as eritroblastopenias puras adquiridas sejam autoimunes, por agressão aos precursores eritroides por anticorpos IgG ou linfócitos T citotóxicos. Há uma eritroblastopenia pura transitória, que ocorre entre 1 e 6 anos de idade e dura geralmente de 1 a 3 meses. É rara; o autor acompanhou dois casos com evolução espontânea para a cura. Em adultos, a mais frequente é a associada ao timoma. Costuma curar-se com a extirpação do tumor. Casos de eritroblastopenia associados à gravidez são raros; o autor acompanhou um caso complicado por hemólise severa intravascular, com rápida melhora com corticoide. A aplasia eritroide associada à leucemia linfocítica crônica (LLC) standard é muito rara. É mais frequente como complicação da linfocitose/leucemia de linfócitos grandes e granulados: o hemograma da Figura 8.1 (b) é do segundo caso visto pelo autor; os linfócitos grandes e granulados, responsáveis pela linfocitose, mostraram marcadores T citotóxicos. Os dois casos responderam favoravelmente ao tratamento com ciclofosfamida e corticoides. Há casos descritos de eritroblastopenia pura decorrente de imunização antieritropoetina em pacientes renais crônicos recebendo eritropoetina recombinante humana (rHu-Epo). Os casos restringiram-se a algumas procedências do medicamento; não têm sido descritos novos casos. NECROSE DA MEDULA ÓSSEA A morte das células da hematopoese e do estroma resulta da súbita falta de aporte sanguíneo; geralmente ocorre ao mesmo tempo em múltiplas áreas, em medulas hipercelulares. Dor óssea e febre são usuais. Se a necrose for extensa, o hemograma mostrará pancitopenia. Reação leucoeritroblástica, descrita na literatura, é incomum na experiência do autor. À aspiração da medula obtém-se um material descorado e sem grumos; à microscopia vê-se uma coloração de fundo rosa ou violeta e restos nucleares das células necróticas. A biópsia é indispensável; mostra desaparição da estrutura celular,

inclusive das células gordurosas, substituídas por um tecido necrótico rosado, pontilhado de restos nucleares, às vezes com aspecto granulado. A necrose da medula é uma complicação das seguintes eventualidades: ■ Quimioterapia de leucemias agudas. ■ Doenças mieloproliferativas: rara complicação da policitemia vera e da mielofibrose. ■ Drepanocitose: é a causa mais frequente. A necrose pode ser extensa, com muita dor óssea. ■ Metástases medulares de carcinoma. ■ Infecções graves, principalmente septicemias. As áreas necróticas podem repopular-se, restando só pequenas cicatrizes fibróticas, ou podem ser substituídas por ampla e permanente fibrose. OUTRAS CAUSAS DE INSUFICIÊNCIA DA MEDULA ÓSSEA Na desnutrição extrema, inclusive na anorexia nervosa, a medula pode sofrer transformação gelatinosa, com substituição do parênquima e das células gordurosas pela substância serosa matriz do estroma; é reversível. Na anorexia nervosa, o hemograma mostra pancitopenia apenas moderada e presença de acantócitos no eritrograma. Em casos de doenças graves rapidamente progressivas, com múltipla falência de órgãos, uma atrofia serosa similar pode ocorrer em poucos dias. Na rara síndrome hemofagocítica relacionada a viroses, há febre, linfonodomegalias, hepatoesplenomegalia e coagulopatia. A medula mostra-se hipercelular, mas insuficiente; há grande número de macrófagos em fagocitose de eritrócitos e núcleos celulares (Fig. 8.2 [a]). O hemograma é pancitopênico; reação leucoeritroblástica não é comum. Os agentes etiológicos mais implicados são o EBV, o CMV, o vírus varicela-zóster e os adenovírus. A evolução é grave, com significativa mortalidade inicial, mas a cura, em algumas semanas, é a regra; nos pacientes imunossupressos, é mais frequente e particularmente grave. Na doença de Gaucher (deficiência genética de β-glicosidase), a medula e o baço são infiltrados por macrófagos cheios de glicocerebrosídio (Fig. 8.2 [b]); na doença de Niemann-Pick (deficiência genética de esfingomielinase ácida), os macrófagos estão repletos de lipídios (Fig. 8.2 [c]). A presença dos macrófagos no sangue periférico é muito rara. Em ambas costuma haver pancitopenia, mas esta é mais dependente do hiperesplenismo do que da falta de tecido hematopoético.

FIGURA 8.2 Síndrome hemofagocítica (a), célula de Gaucher (b) e célula de Niemann-Pick (c) (microfotografias de medula óssea). 2

Na osteopetrose, a medula é comprimida, ou enclausurada, pela osteogênese excessiva; nos dois únicos casos vistos pelo autor, o hemograma mostrava reação leucoeritroblástica. O TMO é altamente eficaz; há nove casos transplantados no HCUPr. A granulomatose na medula pode causar pancitopenia. A tuberculose, no passado, era uma causa comum; às vezes, desencadeava reação leucemoide. As granulomatoses infecciosas da medula ressurgiram com a aids. A aspiração da medula é inadequada para demonstrar granulomas, mas o material presta-se à pesquisa de patógenos por reação em cadeia da polimerase (PCR). A biópsia é necessária para identificar granulomas – é amplamente indicada pelos infectologistas do setor. ANEMIAS DISERITROPOÉTICAS CONGÊNITAS Há anemias diseritropoéticas congênitas muito raras, subclassificadas em tipos I, II e III, com anemia refratária decorrente de eritropoese ineficaz e aumento da apoptose. O diagnóstico costuma ser feito pelo exame hematológico rotineiro (hemograma e mielograma) já nos primeiros meses de vida, motivo da descrição neste capítulo; o autor só viu um caso (do tipo II). Tipo I: defeito cromossômico em 15q15.2, gene CDAN1. Foi descrita em algumas famílias de beduínos, de elevada consanguinidade, no oriente médio, mas há raros casos europeus. Há moderada anemia macrocítica, com anisocitose e pecilocitose extremas e presença de anéis de Cabot; os eritroblastos mostram pontes internucleares. Às vezes acompanha-se de anomalias ósseas (acrodisostose, hipoplasia de unhas e escoliose). Há um defeito de expressão da citoquina GDF15, que causa supressão da hepcidina e precoce hemocromatose. Tipo II (HEMPAS = Hereditary Erythroblastic Multinuclearity with Positive Acidified Serum Test): defeito cromossômico em 20p11.23, gene SEC23B. É recessiva: os pacientes são homozigóticos ou duplamente heterozigóticos para genes mutantes; é a mais comum. No caso local do autor (sem follow up), os pais eram consanguíneos: havia pecilocitose e anisocitose conspícuas. A medula mostrava binuclearidade (endobiploidia) de numerosos

eritroblastos poli e ortocromáticos e endopoliploidia de raros. O teste de Ham, feito com eritrócitos compatíveis de quatro sangues, foi positivo em todos. Hemocromatose é comum na evolução a longo prazo. Tipo III: defeito em 15q21-q25, gene CDAN3. Embora seja autossômica dominante (foram descritos 31 casos em uma família sueca), é a mais rara das três. A anemia é moderada, permitindo longa sobrevida. O diagnóstico é feito ao mielograma pela presença de enormes eritroblastos multinucleados (gigantoblastos). Os pacientes parecem ter especial suscetibilidade a desenvolver gamopatias monoclonais. Há uma igualmente rara diseritropoese adquirida, a sinartese eritroblástica, em que a anemia é mediada por um anticorpo IgG anti-CD36, que interfere no contato entre os eritroblastos na medula e causa eritropoese ineficaz; costuma ser dependente de síndromes linfoproliferativas e responde ao tratamento com corticoides. 1 Com a colaboração do Prof. Ricardo Pasquini, Curitiba, PR. 2 Bessis M. Corpuscles: atlas of red blood cell shapes. New York: Springer; 1974.

9 ANEMIAS POR SÍNTESE DEFICIENTE DE ERITROPOETINA Deficiência da produção de eritropoetina (Epo) por lesão das células peritubulares é a patogênese da anemia das doenças renais. No hipotireoidismo, no hipopituitarismo, na insuficiência suprarrenal e na desnutrição proteica, há diminuição do metabolismo básico e redução do consumo tecidual de oxigênio; quando isso é notado pelas células sensoras renais, há diminuição da síntese de Epo e anemia decorrente. Na anemia das doenças crônicas (ADC), discutida nos Capítulos 6 e 10, também há uma insuficiente resposta eritropoetínica, mas esta é apenas um dos componentes de uma patogênese múltipla e variada, que inclui falta de aporte de ferro à eritropoese e é secundária à hiperatividade de citoquinas inflamatórias; nelas, a falta de Epo não é primária, isto é, não depende de falta de células produtoras ou de estímulo anóxico. Para o conjunto de anemias decorrentes de patologia não hematológica, como a ADC e as anemias discutidas neste capítulo, usa-se a designação conjunta de anemias secundárias. ANEMIA DA INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA

A insuficiência renal crônica (IRC) é causa frequente de anemia de início insidioso. Muitas vezes, a IRC é notada a partir da avaliação de anemia, pois, quando incipiente, não suscita queixas espontâneas esclarecedoras. Os pacientes não notam a poliúria e não valorizam a noctúria; há necessidade de perguntas específicas para confirmá-las. Anorexia, edema e náuseas matinais são precoces, mas não são chamativos. A anemização é constante quando a filtração glomerular diminui aquém de 20 a 25 mL/min e a creatinina eleva-se acima de 2,5-3 mg/dL, mas já pode haver discreta anemização com creatinina ainda menos elevada. É indispensável dosá-la em todos os casos de anemia crônica a esclarecer. Hemograma na insuficiência renal Na insuficiência renal aguda, a anemia surge em poucos dias e a hemoglobina costuma estacionar entre 7 e 9 g/dL. Na IRC, a anemia guarda certo paralelismo com a taxa de creatinina, mas a dispersão de valores é alta. Na nefropatia diabética, a anemia é mais precoce e severa que na IRC por outras causas; na doença policística renal, pode ser tardia. Na síndrome hemolítico-urêmica, as células peritubulares são poupadas, de modo que há certa resposta reticulocítica à hemólise apesar da insuficiência renal. O resultado do eritrograma médio de 23 pacientes masculinos com insuficiência renal crônica em hemodiálise, antes de começarem tratamento com eritropoetina recombinante humana (rHu-Epo), pode ser visto na Figura 9.1. A contagem de reticulócitos e a fração reticulocítica imatura (IRF) (feitas em apenas 13 dos pacientes) fazem parte, também, das Figuras 3.2 e 3.3.

FIGURA 9.1 Eritrograma (média e extremos) de 23 pacientes em hemodiálise, com creatinina entre 3,9 e 7,4 mg/dL, antes de começarem tratamento com eritropoetina humana.

Vê-se que a anemia é normocítica e normocrômica; o volume corpuscular médio (VCM) extremo (102 fL) é de um paciente em tratamento com azatioprina (Imuran®), que causa macrocitose. Vê-se também que o conceito de anemia hiporregenerativa deve aplicar-se a anemias em que não há reticulocitose regenerativa apropriada, não tendo que haver necessariamente reticulocitopenia, pois, mesmo na IRC, em que a falta de Epo é extrema (baixa IRF), o número absoluto médio de reticulócitos está pouco abaixo do normal. Deve-se concluir que a patogênese da anemia da insuficiência renal, além da falta

de eritropoetina, tem outros componentes. Com efeito, (1) a retenção azotada causa significativo encurtamento da sobrevida eritroide; (2) no renal crônico, há hipervolemia plasmática com hemodiluição; e (3) há pequenas, mas repetidas e não compensadas, perdas de sangue na hemodiálise e nos exames periódicos; (4) geralmente complica-se com carência de ferro. As alterações plasmáticas da IRC favorecem a formação de equinócitos; costumam ser descritos no hemograma com a designação de burr cells. Alguns eritrócitos fragmentados e acantócitos também podem ser vistos. O leucograma costuma ser inexpressivo, salvo pela presença de neutrófilos hipersegmentados de significação imprecisa. Há diminuição da contagem de plaquetas, mas raramente a níveis trombocitopênicos. A deficiência funcional das plaquetas nota-se por alongamento do tempo de sangria quando feito pelo método de Ivy, com template adequado, no PFA-100, e por suscetibilidade aumentada a equimoses cutâneas e sangramento ao trauma. O esgotamento das reservas de ferro é uma complicação frequente da hemodiálise. Estima-se que um paciente em diálise perca, por essa via e pelas flebotomias repetidas para exames de controle, mais de 100 mg de ferro por mês. Qualquer diminuição do VCM ou aumento da amplitude de distribuição (volumétrica) dos eritrócitos (RDW) deve suscitar suspeita de ferropenia secundária. Um diagnóstico seguro de falta de ferro é difícil; a anemia da IRC tem componente de ADC, além da falta de eritropoetina. Há um critério geralmente aceito: hemoglobina < 11 g/dL; fer​ritina < 100 ng/mL; ferro sérico < 40 µg/dL; saturação da transferrina < 20%. O uso permanente de ferro oral acompanha-se de intolerância, falta de adesão e piora da inapetência. Ferro injetável periódico é mais eficaz e tem sido preferido; no tratamento com eritropoetina (ver adiante, neste capítulo), é quase indispensável. O renal crônico é inapetente, nem sempre se alimenta de modo adequado e perde ácido fólico na diálise. A instalação súbita de anemia megaloblástica por esgotamento de folatos é uma complicação algumas vezes vista pelo autor. Há piora rápida da anemia com aumento do VCM; a pesquisa de neutrófilos hipersegmentados é enganosa, pois já são vistos na insuficiência renal. A dosagem de ácido fólico sérico está diminuída na maioria dos casos, mas não em todos. Justifica-se mielograma para identificar a megaloblastose, mas pode ser substituído pela observação da resposta ao tratamento, que é imediata. O uso profilático de ácido fólico (Folin®, 10 mg/semana), barato e sem efeitos colaterais, é recomendável para pacientes em diálise. Tratamento com rHu-Epo A anemia da IRC responde notavelmente à rHu-Epo (epoetina alfa). A indicação do tratamento não deve basear-se na dosagem da hemoglobina (Hgb), mas na presença de queixas decorrentes da anemia: astenia física e mental (expressa como “desânimo”), fatigabilidade, dores nos membros inferiores ao deambular, dispneia aos esforços, angina em idosos. Geralmente começam a manifestar-se com Hgb entre 10,5 e 9,0 g/dL e são praticamente constantes com Hgb < 8,5 g/dL. A rHu-Epo deve ser usada nas doses necessárias à elevação da Hgb a 11 a 11,5 g/dL. Nunca elevá-la acima de 12 g/dL:

aumenta o risco de hipertensão, de complicações cardiovasculares e pode piorar a insuficiência renal. A dose usual para manter esse nível é da ordem de 6.000 a 8.000 unidades por semana, dividida em 2 a 3 injeções subcutâneas. A darbepoetina alfa, forma hiperglicosilada de meia-vida mais longa, é igualmente eficaz e permite maior espaçamento entre as doses. Os resultados com um ativador de longa ação do receptor de eritropoetina (metoxi-polietilenoglicol epoetina beta, Mircera®) não se mostraram satisfatórios, e a droga está em desuso. O tratamento com rHu-Epo causa elevação da IRF já no 3º dia, reticulocitose a partir do 5º dia e elevação progressiva das cifras eritroides, atingindo o nível-alvo em 4 a 8 semanas. Falta de ferro imediatamente disponível ao aumento da eritropoese – ferropenia (sideropenia) funcional – inibe a resposta; isso pode ocorrer mesmo havendo reservas de ferro expressas na dosagem de ferritina. Note-se que a atividade da doença renal acrescenta à anemia da IRC um componente expressivo da patogênese da síndrome geral de ADC, a hipoferremia. Para excluir falta de oferta de ferro compatível com o novo ritmo eritropoético desencadeado pela rHuEpo, os critérios de ferropenia recém-mencionados são insuficientes; alguns serviços de nefrologia indicam sistematicamente uso concomitante de ferro intravenoso no começo do tratamento. Parâmetros hematimétricos que facilitam o diagnóstico dessa insuficiência funcional de ferro podem ser obtidos de modo imediato no canal de reticulócitos de hemogramas fornecidos pelos contadores Advia e pelos modelos top of line Sysmex e Cell Dyn. Conteúdo hemoglobínico dos reticulócitos: a determinação por laser scatter da concentração hemoglobínica individual dos eritrócitos é parte tradicional do hemograma dos contadores da linha Advia; com identificação simultânea por fluorescência no canal próprio, pode ser obtido parâmetro similar restrito aos reticulócitos. Da integração volume corpuscular × concentração hemoglobínica é obtido o conteúdo hemoglobínico celular, separadamente dos eritrócitos e dos reticulócitos. A Sysmex introduziu essa determinação na linha XE em 2003 por meio de adequação eletiva do software; embora seja feita apenas no canal de reticulócitos, os dados podem ser extrapolados para a população eritroide geral. Extensos levantamentos comparativos 1 demonstraram correlação adequada nos resultados obtidos com os da linha Advia. Em 2010, a Abbott introduziu tecnologia similar no modelo Sapphire, ficando consagrado o Conteúdo Hemoglobínico dos Reticulócitos (CHr) nessas três linhas de instrumentos como um novo parâmetro do hemograma, desde que solicitado como “hemograma e reticulócitos” a laboratórios que disponham do equipamento. Um valor baixo, isto é, a comprovação de que os reticulócitos (eritrócitos novos) estão saindo da medula com pouca Hgb, mostra-se notavelmente sensível e seguro na identificação precoce de eritropoese carente em ferro. O CHr identifica uma falta de hemoglobinização em tempo atual, em oposição à notada pela hemoglobina corpuscular média (HCM) e pela concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM), que a identificam na população de eritrócitos em circulação, formados e hemoglobinizados há semanas ou meses. Foi sugerido para a CHr um cut-off entre 27 e 29 pg. A comparação da CHr com a HCM – isto é, a Hgb dos re​ticulócitos contra a Hgb dos demais eritrócitos do

paciente – também seria passível de interpretação. Outro dado fornecido no “hemograma Advia” de rotina e, atualmente, também no Cell Dyn Sapphire é a porcentagem de eritrócitos hipocrômicos (eritrócitos com concentração hemoglobínica < 28%): aumento súbito (acima de 5%) de %Hypo também caracterizaria em algumas semanas uma eritropoese carente em ferro. Dispondo de um desses parâmetros obtidos do canal de reticulócitos, o autor (sem experiência própria) sugere que o serviço de Nefrologia, ao indicar tratamento com rHuEpo, faça determinação prévia da CHr e repita-a dia sim, dia não, do quarto dia em diante, após a primeira injeção. Diminuição súbita da CHr (com essa sequência, independentemente do cut-off) seria comprobatória da necessidade do uso concomitante de ferro intravenoso. O transplante renal melhora rapidamente a anemia; elevação da IRF, seguida de reticulocitose, são os indicadores mais precoces do sucesso do transplante. Raros pacientes desenvolvem discreta poliglobulia, geralmente transitória. ANEMIA DAS ENDOCRINOPATIAS O hipotireoidismo é mais uma causa frequente de anemia crônica que muitas vezes passa despercebida no consultório do generalista; a fácies mixedematosa só se vê em casos avançados. Deve-se atentar e perguntar por desânimo, edema periorbitário e dos membros inferiores, queda de cabelo, sensibilidade ao frio, mudança do tom de voz; pesquisar edema pré-tibial e maleolar e bradicardia; solicitar T4 e TSH não só nos casos suspeitos, mas em todo(a)s o(a)s pacientes com possível anemia de doença crônica. Uma taxa elevada de colesterol total é outro dado suspeito, principalmente em mulheres. O hemograma mostra anemia normocítica, com hemoglobina entre 9 e 12 g/dL, sem sinais de regeneração. Em significativa fração de pacientes com hipotireoidismo de longa data, por mecanismo não esclarecido, a anemia é levemente macrocítica; o VCM não costuma ultrapassar 106 fL. Também pode haver leve macrocitose sem anemia significativa: a hemoglobina diminuiu em relação a “normal do(a) paciente”, mas ainda está dentro dos limites de referência. Microcitose e hipocromia, entretanto, não excluem o diagnóstico em mulheres; o hipotireoidismo causa hipermenorreia, e é comum a anemia tornar-se ferropênica; sempre se deve dosar ferritina. A presença de alguns ovaloequinócitos à microscopia, mencionada (raramente) na literatura, confirma-se na experiência do autor, mas só se nota se especificamente procurada. Há definida correlação (coincidência de pacientes) entre hipotireoidismo (também hipertireoidismo), gastrite atrófica/anemia perniciosa e púrpura trombocitopênica autoimune crônica. A anemia do hipotireoidismo é dependente da baixa síntese de Epo pela diminuição das necessidades metabólicas de oxigênio. Responde em 2 a 3 meses ao tratamento hormonal substitutivo, mas nem sempre a Hgb retorna à cifra prévia do(a) paciente; algumas vezes estabiliza-se em 1 a 2 g/dL abaixo, no limite mínimo do intervalo de referência; até a macrocitose, às vezes, mantém-se. O hipopituitarismo e a insuficiência suprarrenal crônica, ambos raros, causam anemia similar. Na insuficiência suprarrenal, a anemia pode ser mascarada por hipovolemia

plasmática, sendo notada só com o começo do tratamento. O autor não tem experiência com essas endocrinopatias. O hipogonadismo masculino e a castração fazem a Hgb nivelar-se em 2 a 3 g/dL abaixo dos níveis normais ou prévios do paciente. O tratamento antiandrogênico do carcinoma de próstata causa efeito similar, mas a diminuição é da ordem de 1 a 3 g/dL; o autor notou leve macrocitose em alguns pacientes. ANEMIA DA DESNUTRIÇÃO PROTEICA E CALÓRICA A deficiência nutricional apresenta-se como duas síndromes extremas, kwashiorkor – deficiência proteica sem deficiência calórica – e marasmo – deficiência ao mesmo tempo proteica e calórica –, mas há toda uma gama de casos intermediários entre esses extremos. Pode ser primária, por falta de oferta alimentar, ou secundária a outras doenças. A deficiência primária representa um problema de saúde pública, principalmente em crianças, em áreas geográficas de extrema pobreza da África Subequatorial e do sul da Ásia. No sul do Brasil e em países industrializados, é vista apenas em casos pontuais; o autor viu-a em idosos desassistidos, com problemas dentários ou mentalmente inválidos. Já a desnutrição secundária é comum. Expressa como uma síndrome mais próxima ao kwashior​kor, ocorre em estados hipermetabólicos agudos, como sepse e trauma extenso; como síndrome do tipo marasmo, em pacientes crônicos, como na caquetização por tumores disseminados, insuficiência crônica respiratória ou cardíaca e longas convalescenças. Na deficiência do tipo kwashiorkor, o paciente mantém as massas musculares e as reservas de gordura, mas desenvolve edema, rápida hipoalbuminemia (< 2,8 g/dL) e anemização. A anemia é hiporregenerativa, normocítica e normocrômica. Como é impossível dissociar o quadro de desnutrição de sua causa desencadeante, é também impossível distinguir o componente de “anemia de doença crônica” da hipotética “anemia nutricional”. A existência desta é demonstrada pela melhora da anemia de crianças africanas com kwashiorkor primário apenas com alimentação proteica adequada; a hipoalbuminemia, em ratos, causa anemia normocrômica responsiva à eritropoetina; não há experiência humana similar. No marasmo, há rápido emagrecimento, com consumo das reservas de gordura e atrofia muscular. A anemização é idêntica à do kwashiorkor, igualmente impossível de dissociar de anemia secundária à causa da desnutrição. A medula óssea mostra hipocelularidade da eritropoese. A anorexia nervosa é um caso particular de desnutrição. Nesse distúrbio psiquiátrico não raro em mulheres jovens, a restrição dietária preferencial faz-se quanto a carboidratos. O emagrecimento é acentuado. Há anemia hiporregenerativa, que tardiamente faz-se acompanhar de granulocitopenia e trombocitopenia moderadas. Essa insuficiência hematopoética, com pancitopenia, explica-se por uma transformação gelatinosa da medula óssea: o parênquima é substituído pela substância serosa matriz do estroma. A hematopoese retorna rapidamente com a correção nutricional. O eritrograma mostra número chamativo de acantócitos, possivelmente decorrrentes de hipobetalipoproteinemia secundária à falta de carboidratos.

1 Brugnara C, Schilter B, Moran J. Reticulocyte hemoglobin equivalent (Ret He)and assessment of iron-deficient states. Clin. Lab. Haem. 2006;28(5):303-8.

10 ANEMIAS DE PATOGÊNESE MÚLTIPLA OU VARIADA ANEMIA E HEMOGRAMA NO ALCOOLISMO O alcoolista alimenta-se basicamente de álcool, que é uma rica fonte de calorias vazias, daí haver ingesta inadequada de nutrientes essenciais. O álcool tem um efeito tóxico sobre a hematopoese e um efeito hepatotóxico direto, causando esteatose, hepatite e cirrose. Do conjunto, origina-se a anemia do alcoolismo. Componente nutricional: a deficiência de folatos na dieta é comum no alcoolista e tornase clinicamente significativa, porque o álcool interfere negativamente na atividade metabólica do ácido fólico (efeito antifólico). A anemia tem as características megaloblásticas usuais; não se correlaciona com o dano hepático. Não ocorre em bebedores de cerveja, que é rica em folatos. A parada da ingestão de álcool e a melhora da dieta são suficientes para provocar uma reticulocitose regenerativa; 5 mg de ácido fólico por dia melhoram a anemia mesmo persistindo a ingestão alcoólica. Não há carência de ferro no alcoolista, exceto se houver perdas hemorrágicas por gastrite ou varizes esofágicas; o álcool não aumenta os depósitos de ferro no organismo, salvo nos portadores genéticos de hemocromatose. A gastrite alcoólica não causa falta de fator intrínseco; só há falta de vitamina B12 em alcoolista se houver uma gastrite causal ou síndrome de má absorção concomitantes (ver Cap. 7).

Efeito sobre a hematopoese: a ingestão sistemática de mais de 80 mL de álcool por dia costuma causar macrocitose, com volume corpuscular médio (VCM) que não ultrapassa 106 fL, lentamente reversível com a abstinência; os eritrócitos são redondos, há alguns estomatócitos, e o RDW é normal. É um interessante marcador para o alcoolismo. A ingestão diária de mais de 200 mL de álcool causa, em 1 a 2 semanas, uma vacuolização das células precursoras da hematopoese e sideroblastose com formas em anel. As alterações não são duradouras ou relevantes para a eritropoese, mas causam neutropenia, que dura alguns dias; é um dos motivos da gravidade das pneumonias em pacientes nessa situação. Há supressão transitória da trombocitopoese e encurtamento da sobrevida plaquetária, mas a trombocitopenia não é clinicamente relevante; há trombocitose na recuperação. ANEMIA E HEMOGRAMA NAS HEPATOPATIAS Nas doenças hepáticas, há anemia de doenças crônicas (ADC) com todos os componentes patogênicos usuais, mas há alterações que lhes são próprias. Leptocitose (target cells) e estomatocitose: os eritrócitos não sintetizam o colesterol e os fosfolipídios componentes da membrana; captam-nos do plasma, com o qual há contínua troca molecular. A obstrução biliar e a insuficiente esterificação do colesterol da insuficiência hepática provocam excesso de colesterol na membrana dos eritrócitos e aumento desproporcionado desta em relação ao volume; originam-se os leptócitos (eritrócitos delgados e amplos), que, ao se fixarem à lâmina de microscopia, tomam o aspecto de target cells. Outros eritrócitos deformam-se em cúpula, com concavidade unilateral: são os estomatócitos. Essas deformidades são reversíveis e, sozinhas, não causam anemia. Macrocitose: é precoce nas hepatopatias crônicas; não ocorre nas hepatites agudas. O mecanismo não está esclarecido. O VCM dificilmente ultrapassa 115 fL. Os macrócitos são redondos. Acantocitose e anemia hemolítica: surgem no quadro terminal da doença hepática, com esplenomegalia, ascite e encefalopatia. Há grande aumento de colesterol na membrana, com formação de eritrócitos irregularmente contraídos e com espículas irregulares: são os acantócitos (spur cells). Pode haver anemia hemolítica. Síndrome de Zieve: rara combinação de esteatose alcoólica com hipertrigliceridemia e anemia hemolítica; há acantocitose e policromatocitose. É passageira e parece dever-se à hipertensão porta aguda. Hemograma na hepatite C crônica e na cirrose Desde a identificação e o lançamento de testes para pesquisa (1988-1990), notou-se ser o vírus da hepatite C (HCV) o agente etiológico de uma das endemias infecciosas de maior prevalência mundial, estimada em 170 milhões de pessoas infectadas. Nos Estados

Unidos, há cerca de 2,7 milhões de portadores e mais cerca de 1,3 milhão de pessoas que sofreram a infecção, mas cuja imunidade conseguiu eliminar o vírus. A hepatite C aguda evolui para hepatite crônica em > 80% dos pacientes, e 20 a 25% destes desenvolvem cirrose após 20 anos; eventualmente carcinoma hepático. O tratamento da fase crônica com interferon e drogas antivirais, nas doses e prazos apropriados, diminui drasticamente o número de casos com essa evolução sombria. O hemograma típico de hepatite C crônica ativa (Fig. 10.1 [a]) caracteriza-se por macrocitose leve, com ou sem discreta anemia, leucopenia global a expensas de neutropenia (moderada) e linfopenia (nítida), e trombocitopenia. Na gênese da trombocitopenia, há importante componente autoimune; a contagem de plaquetas eleva-se com imunoglobulina humana intravenosa (IgGIV) e com corticoides (não indicados).

FIGURA 10.1 Hemograma de caso de hepatite C crônica (a) e de cirrose com esplenomegalia (b).

Na cirrose (Fig. 10.1 [b]), inclusive quando de distinta etiologia, há intensificação da anemia, todos os aspectos celulares de doença hepática crônica (descritos anteriormente) e acentuação pelo hiperesplenismo das mesmas citopenias. A hipergamaglobulinemia causa rouleaux, que, à microscopia, tem sutil diferença do rouleaux das doenças inflamatórias crônicas (Fig. 10.2).

FIGURA 10.2 Microfotografias de distensões sanguíneas, com rouleaux de hepatopatia (a) e de artrite reumatoide em atividade (b).

ANEMIA E HEMOGRAMA NAS NEOPLASIAS A anemia relacionada ao câncer (ARC) tem todos os componentes patogênicos da ADC, mas difere desta porque a ativação dos mecanismos inflamatórios e imunológicos pelas células tumorais não é idêntica à das doenças inflamatórias e infecciosas. O balanço das citoquinas não é o mesmo. Na ARC, predomina um efeito sinérgico da elevação simultânea de interleuquina 1(IL-1), fator de necrose tumoral α (TNF-α) e interferon-γ, junto com substâncias indutoras de anemia produzidas pelas células tumorais, causando principalmente supressão da eritropoese e exagero da apoptose eritroblástica; já na ADC, o efeito predominante é o da IL-6, estimulando a expressão hepática de hepcidina, com hipoferremia e falta de ferro funcional à eritropoese. A ARC é mais hiporregenerativa e menos “ferropênica” do que a ADC. O eritrograma mostra anemia normocítica e normocrômica sem resposta reticulocítica adequada. Ao contrário da ADC, microcitose e hipocromia dependentes do processo são tardias ou ausentes da evolução. Quando precoces, decorrem sempre de esgotamento das reservas de ferro por perda sanguínea crônica, particularmente comum em tumores do trato digestivo. Inúmeros trabalhos e metanálises correlacionam a presença de anemia com o prognóstico de tumores sólidos. Como o estímulo às citoquinas (e a anemia decorrente) depende da magnitude e/ou disseminação do tumor, é fácil aceitar que anemia ao diagnóstico implique em pior prognóstico. A anemia, em si, não é determinante, é apenas um indicador. A correlação anemia/prognóstico está definidamente comprovada em tumores de cabeça e pescoço, e carcinomas de pulmão, ovário, colo uterino, rim, próstata e bexiga. A anemia das hemopatias malignas é menos dependente dos mecanismos de ARC; decorre do comprometimento da medula óssea, com o tecido hematopoético substituído ou inibido pela proliferação tumoral; as neoplasias da hematopoese serão discutidas nos Capítulos 20 a 26.

A ADC das doenças infecciosas pode ser teleologicamente sensata, ao privar os microrganimos patógenos de O2 e ferro necessários à proliferação. Na ARC, ocorre o contrário; é prejudicial, pois a anoxia é benéfica ao crescimento de neoplasias malignas, favorece novas mutações e protege as células tumorais contra a ação terapêutica da radioterapia e da quimioterapia, que precisam de O2 para a liberação de radicais citotóxicos. Tumores hipóxicos têm evolução mais agressiva que tumores mais oxigenados. Embora a hipoxia intratumoral dependa primordialmente da anatomia neovascular do próprio tumor e a falta de O2 hemoglobínico seja um componente menor, aquela é avessa a tratamento, e esta é fácil de controlar. Hemoterapia e eritropoetina recombinante humana (rHu-Epo) são eficazes e inócuas; a ARC sempre deve ser tratada. Não há comprovação documentada que o controle da anemia melhore a sobrevida, mas melhora categoricamente as funções cardíaca e cognitiva (principalmente em idosos), diminui a necessidade de cuidados pela melhora da atividade física; em suma, melhora a qualidade de vida. Discute-se o nível ótimo de hemoglobina a ser mantido com o tratamento. Indicadores objetivos e subjetivos da qualidade de vida melhoram de modo não linear com a elevação da hemoglobina (Hgb) até 10 a 11 g/dL, mas, com Hgb = 11 a 12 g/dL, há uma melhora abrupta e significativa que varia pouco com aumento ulterior até 13 a 15 g/dL. No caso particular de radioterapia, recomenda-se Hgb ≥ 13 g/dL ( ) e ≥ 12 g/dL ( ). A ARC geralmente se complica por perda crônica de sangue (⇒ anemia ferropênica secundária), deficiências nutricionais, insuficiência renal, cirurgia e pós-operatório e, principalmente, pela mielotoxicidade do tratamento. Todas essas causas adjuvantes, ou principais, como é o caso da quimioterapia, devem ser consideradas em cada caso particular. Tumores localizados têm menor expressão no hemograma do que tumores disseminados. A invasão da medula óssea causa alterações típicas. Tumores localizados só têm expressão hematológica quando volumosos. Paralelamente aos sinais clínicos decorrentes do metabolismo da massa tumoral (emagrecimento, astenia) e dos distúrbios funcionais (compressão, obstrução, secreção endócrina inapropriada, etc.), surgem alterações no hemograma. A primeira é a ARC, com todos os seus componentes patogênicos e complicações usuais. A natureza e a localização dos tumores influenciam as manifestações hematológicas: 1. Carcinomas do trato digestivo: frequentemente causam melena e anemia ferropênica; neutrofilia é precoce e trombocitose é comum. 2. Carcinomas de pulmão: alterações do hemograma são tardias. Há raros casos, paradoxais, com considerável neutrofilia de aspecto leucemoide. 3. Carcinomas do trato genital feminino: quando causam sangramento, este leva logo ao diagnóstico e tratamento; por isso, quase não chegam a causar anemia ferropênica. Os fibromas/miomas, pelo contrário, costumam ser mantidos sob observação; a paciente persiste com metrorragias e anemiza. 4. Carcinomas de mama: só alteram o hemograma quando disseminados. 5. Carcinomas da próstata: só alteram o hemograma quando disseminados.

6. Carcinomas do trato urinário: carcinomas renais com < 1,5 cm de diâmetro só são notados por acaso, em eco ou tomografia feita por outra causa. Quando maiores, aceleram a eritrossedimentação, causam neutrofilia, trombocitose e ADC. Quando secretam eritropoetina, causam poliglobulia. Tumores da bexiga causam hematúria antes de alterarem o hemograma. 7. Carcinomas de pâncreas e vias biliares: neutrofilia e trombocitose podem preceder a icterícia. O carcinoma acinar causa eosinofilia. 8. Carcinomas de tireoide: só alteram o hemograma quando disseminados. 9. Tumores intracranianos: os sintomas neurológicos sempre precedem as alterações do hemograma. O hemangioma cerebelar pode causar poliglobulia. 10. Hepatocarcinomas: causam neutrofilia e aceleração da eritrossedimentação. Como geralmente se originam de hepatopatia prévia, o hemograma pode já estar alterado por causa desta. 11. Sarcomas ósseos, musculares e do tecido gorduroso: só alteram o hemograma quando disseminados. Tumores disseminados acompanham-se de anemia em mais de 80% dos casos. Neutrofilia e trombocitose são a regra; monocitose é frequente. Tumores disseminados na medula óssea causam dor óssea, que pode ser generalizada e intensa, ou só notada à pressão digital no esterno. Na maioria dos pacientes, o diagnóstico do tumor primitivo precede a disseminação na medula, mas o autor tem vários casos em que o exame da medula revelou metástases de tumores insuspeitados. Os mais frequentes, em adultos, são: carcinomas de mama, próstata e pulmão; mais raros, de estômago, tireoide e trato genital feminino. Na infância, neuroblastoma, rabdomiossarcoma, tumor de Ewing e meduloblastoma. A disseminação metastática na medula com hemograma normal é rara; costuma haver, no mínimo, policromatofilia (com ou sem anemia), trombocitose ou trombocitopenia, e neutrofilia. O hemograma típico, entretanto, é o de reação leucoeritroblástica (Fig. 10.3 [a]): anemia normocítica de rápida instalação, policromatocitose pela liberação errática de reticulócitos imaturos (não representativa de hiper-regeneração eficaz), eritroblastos circulantes, neutrofilia ou neutropenia (esta mais comum), presença de mielócitos e granulócitos imaturos, blastos (raros), trombocitopenia. O neuroblastoma da infância dissemina-se na medula e invade o sangue; o hemograma (Fig. 10.3, [b]) é facilmente confundido com o da leucemia linfoblástica aguda, pois as células tumorais no sangue assemelham-se a blastos leucêmicos. O diagnóstico diferencial à citologia no mielograma geralmente é fácil: as células de neuroblastoma formam rosetas características.

FIGURA 10.3 Hemograma com reação leucoeritroblástica por carcinoma disseminado na medula óssea (a) e hemograma de criança com neuroblastoma leucêmico (b).

Dor óssea e/ou hemograma leucoeritroblástico tornam imperioso o exame da medula óssea. Se houver pontos ósseos dolorosos à palpação e acessíveis à punção, deve-se coletar mielograma (aspirativo); à microscopia, procurar conglomerados de células tumorais, especialmente nas bordas das distensões. A identificação de micrometástases é fácil, mas o diagnóstico da natureza do carcinoma original pela citologia é difícil. Se não for obtido material medular (dry tap) ou a pesquisa for negativa, deve ser feita biópsia do ilíaco com exame histopatológico. Metástases medulares podem desencadear fibrose reacional, o que aumenta o número de casos de dry tap. Nunca puncionar locais previamente irradiados; era um erro comum no caso de punção esternal após tratamento de carcinomas de mama. Hemograma na quimioterapia antiblástica O efeito farmacológico visado com o uso de drogas antiblásticas é a interferência na síntese do DNA ou outro desarranjo mitótico nas células tumorais, com redução ou contenção do crescimento. Quando as células neoplásicas mostram-se sensíveis, há redução da massa tumoral, remissão ou mesmo cura no caso de tumores particularmente

responsivos. A inibição simultânea da hematopoese, como efeito colateral, é limitante inevitável da quimioterapia. Mesmo aproveitando-se diferenças de suscetibilidade às drogas entre as células tumorais e as da hematopoese e usando-se esquemas de administração adaptados à cinética de regeneração das células sanguíneas, os antiblásticos causam hipoplasia/aplasia da medula óssea e pancitopenia. A aplasia é transitória; apresenta-se precocemente​ como neutropenia, pela curta vida (horas) dos neutrófilos no sangue, enquanto a série vermelha diminui lentamente; as plaquetas, com sobrevida​ de 8 a 9 dias e relativa resistência dos megacariócitos aos antiblásticos (especialmente vincristina e ciclofosfamida), diminuem de modo variável.​ Protocolos agressivos de quimioterapia têm o cronograma estandardizado pela duração da neutropenia; nova dose é dada ao ceder a neutropenia da dose prévia. O nadir da neutropenia dista variavelmente da data da última dose, dependendo da(s) droga(s) usada(s); mas o quadro neutropênico, depois regenerativo, é similar para todas. Com a repetição das doses, piora a anemia, que é facilmente compensada com transfusão de glóbulos filtrados e não interfere na cronologia do tratamento. Dependendo da toxicidade aos megacariócitos, a trombocitopenia também pode exigir adiamento das doses subsequentes; eventualmente, manifestações hemorrágicas com contagens abaixo de 20.000/µL exigem transfusão de plaquetas. O número de drogas antiblásticas e de programas de poliquimioterapia inviabiliza uma discussão compreensiva neste manual. No texto e nas figuras subsequentes, serão apresentados, como exemplo, leucogramas de resposta ao protocolo CHOP no tratamento de linfomas. A Figura 10.4 mostra leucogramas no 13º e 22º dias após a primeira dose CHOP, no tratamento de um linfoma B difuso de grandes células, sem comprometimento da medula óssea, com hemograma normal antes do tratamento.

FIGURA 10.4 Leucogramas no 13º (a) e 22º dias (b) após CHOP.

Note-se que a neutropenia extrema é seguida por uma neutrofilia acentuada, com desvio à esquerda até mielócitos, e monocitose. Uma granulocitopoese prévia normal

responde, em três semanas, com um exagero regenerativo. Novas séries são seguidas de respostas mielopoéticas cada vez menos exuberantes; após a 3ª ou a 4ª, ainda há neutropenia no 22º dia. A baixa das plaquetas é moderada; a contagem piora a cada série, mas dificilmente cai abaixo de 50.000/µL; só há recuperação da contagem após a última série. Há lenta, mas progressiva, anemização (não mostrada nas figuras). Já uma medula óssea ainda capaz de manter satisfatória granulocitopoese, mas com infiltração difusa por linfoma B leucêmico de pequenas e grandes células clivadas (Fig. 10.5 [a]), tratado com CHOP por causa de linfonodomegalias retroperitoneais, responde de modo diferente. Há resposta significativa (Fig. 10.5 [b]), mas parcial da linfocitose linfomatosa; persistem linfócitos clivados e neutropenia extrema no 18º dia, embora já surjam mielócitos.

FIGURA 10.5 Leucogramas de linfoma centrocítico leucêmico: antes (a) e no 18º dia (b) da dose CHOP inicial.

Apesar de se tratar da primeira série de quimioterapia, mesmo no 24º dia ainda não há recuperação da contagem de neutrófilos (Fig. 10.6 [a]). Cautela e hemogramas repetidos são indispensáveis ao se fazer quimioterapia em pacientes com a medula óssea comprometida por tumor ou que tenham recebido doses anteriores de quimioterapia.

FIGURA 10.6 Leucograma no 24º dia pós-CHOP no tratamento de linfoma leucêmico (a), e leucograma 48 horas após filgrastim no tratamento de neutropenia por quimioterapia (b).

Filgrastim (Granulokine®) ou lenograstim (Granocyte®), similares do fator estimulante de colônias granulocíticas (G-CSF) fisiológico, obtidos por engenharia genética, encurtam o período de neutropenia. Nunca usá-los antes de decorridas 24 horas da última dose de quimioterapia. A aparição de neutrófilos no sangue demora de 4 a 6 dias quando usados em paciente cuja medula está em aplasia (com virtual ausência de células da granulocitopoese), e de 1 a 2 dias quando a medula já está com número significativo de promielócitos. O hemograma pós-tratamento (Fig. 10.6 [b]) é único; surgem células mieloides imaturas, até blastos, e granulócitos em número crescente; os neutrófilos mostram abundantes granulações tóxicas e numerosos corpos de Döhle; deve-se parar ou espaçar a sequência de injeções quando a contagem de neutrófilos estiver entre 8 e 10.000/µL. A movimentação de granulócitos é passageira; cessa 48 a 72 horas após a última injeção. A trombocitopenia decorrente de qualquer quimioterapia é sempre mais tardia e durável. A oprelvecina (Neumega®), similar da interleuquina 11 que estimula a trombocitopoese, causa um aumento da contagem após 3 a 7 dias da primeira dose. É indicada, além da transfusão de plaquetas, para controle de manifestações hemorrágicas que ocorram com trombocitopenia abaixo de 20.000/µL. A quimioterapia pode causar efeitos duradouros (anos) ou permanentes no hemograma: linfocitopenia, macrocitose, trombocitopenia, pancitopenia. São leves ou moderados e sem maiores consequências. Consequência trágica e tardia da quimioterapia é o desenvolvimento de leucemia mieloide aguda (LMA). Para que essa complicação aconteça, é preciso que o(a) paciente tenha sido longamente tratado(a) e viva o suficiente para apresentá-la. O risco de surgimento de LMA em pacientes tratados com quimioterapia para linfomas, carcinomas

de ovário e pulmão, tumores de células germinais e leucemia linfoblástica aguda é 20 a 50 vezes maior que na população em geral. O tratamento do mieloma múltiplo tem o mesmo risco, mas a LMA é infrequente pela baixa perspectiva de sobrevida; o oposto vale para a doença de Hodgkin, em que o risco é alto. Todas as drogas alquilantes são leucemogênicas; epipodofilotoxinas, nitrosoureia e procarbazina também são. A hidroxicarbamida (antes hidroxiureia) parece isenta desse efeito. A LMA costuma surgir 3 a 5 anos, menos vezes entre 5 e 10 anos, após a quimioterapia causal. Geralmente é precedida de manifestações mielodisplásicas; é refratária a tratamento e rapidamente fatal. Hemograma no transplante de células-tronco autólogas 1 O uso de megadoses de drogas antiblásticas, visando efeito tumoricida ou redução máxima de tumores de difícil tratamento, sempre foi limitado pela inevitável aplasia medular consequente. A comprovação de que o transplante de células-tronco (TCT) autólogas é eficaz na repopulação da medula óssea após quimioterapia mieloablativa passou a permitir e difundiu esse tipo de procedimento terapêutico radical. A Tabela 10.1 lista algumas indicações; há certa restrição ao uso em neoplasias da própria hematopoese (leucemias), nas quais transplante alogênico seria a indicação óbvia. TABELA 10.1 Indicações usuais de TCT autólogas ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■

Mieloma múltiplo Carcinomas de mama, ovário e pulmão Linfomas, principalmente o de Hodgkin Neuroblastoma Tumor de Ewing Tumor de Wilms Tumores testiculares Leucemias (incomum) Macroglobulinemia de Waldenström (incomum)

No mieloma múltiplo, o TCT autólogas, embora paliativo, tornou-se tratamento de rotina por ser bem tolerado e alongar a sobrevida. Após quimioterapia convencional que leve a uma redução máxima da carga mielomatosa, os pacientes recebem filgrastim durante 5 dias e, no auge do chamamento mieloide ao sangue, são coletadas e congeladas células-tronco periféricas. A megadose de quimioterapia, a um só tempo tu​moricida e mieloblativa, é feita com melfalano (Alkeran®) intravenoso, 100 g/m2/dia, por 2 dias (dias −3 e −2); após um dia de pausa (dia −1), as células-tronco preservadas são reinfundidas (dia zero). Outros regimes de quimioterapia ablativa são preferidos nos linfomas e demais tumores. Os autores fizeram um levantamento do hemograma de 6 casos de mieloma em pacientes tratados no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) em 2008. O número de células-tronco no material preservado e reinfundido, determinado por citometria de fluxo com marcação de CD34, foi de 3,91 milhões/kg (1 caso), 5 a 6 milhões/kg (4 casos) e 8,5 milhões/kg (1 caso). Nenhum dos pacientes recebeu filgrastim na evolução. Essa pequena casuística, usada para os dados apresentados na 5ª edição deste manual, foi

acrescida agora com números fornecidos pelo Serviço de Hematologia-Oncologia e Estatística do Hospital Universitário de Santa Maria (RS): autotransplante em 17 casos de mieloma múltiplo, 17 de linfoma de Hodgkin, 7 de outros linfomas, e mais 10 casos de tumores sólidos. Segue análise dos resultados médios dos hemogramas semanais do dia zero ao dia +21 após o TCT autólogas. Eritrograma: a hemoglobina foi mantida em nível considerado clinicamente satisfatório com o número necessário de transfusões de glóbulos concentrados e filtrados, de modo que os resultados da dosagem não se prestam a análise. Leucograma e plaquetas: a Tabela 10.2 mostra resumo dos resultados. TABELA 10.2 Leucócitos e plaquetas pós-transplante Dia pós-transplante

(zero)

7

14

21

Leucócitos/µL

1.652

280

5.215

3.510

Neutrófilos/µL

1.547

19,5

3.625

1.498

117.420

29.120

53.780

59.590

Plaquetas/µL

Linfócitos: quase todos os pacientes já chegaram ao dia zero com linfopenia < 1.000/µL, e a contagem de linfócitos baixou a menos de 200/µL já no dia +2. Houve gradativa elevação, e o número geralmente ultrapassou 1.000/µL ao fim da 3ª semana. Neutrófilos: quase todos os pacientes tinham neutrófilos acima de 1.000/µL no dia zero; neutropenia severa (< 500/µL, com vários dias de número abaixo de 100/µL) durou 11 dias em média. Nos 6 pacientes vistos no HCPA, houve correlação inversa entre a duração da neutropenia e o número de células infundidas. Monócitos: nos casos de mieloma múltiplo, a dose ablativa de melfalano reduziu o número de monócitos a < 50/µL já no dia −1. O reaparecimento de monócitos precedeu o de neutrófilos: como regra, > 200/µL já no dia +12. Vários pacientes tiveram monocitose (> 800/µL) antes do término da 3ª semana. O autor não dispõe de dados nos demais tumores. Plaquetas: nos 6 casos de que o autor teve dados disponíveis, a evolução da contagem pós-TCT foi independente do número de células-tronco da reinfusão. Quase todos os pacientes tiveram contagens < 20.000/µL, um ou mais dias, entre +6 e +11, mas a contagem elevou-se significativamente do dia +12 em diante. No dia 21, a maioria dos pacientes ainda se mantinha com trombocitopenia importante. Hemograma na radioterapia Como a quimioterapia, a radioterapia (RT) causa mielossupressão. A recuperação das áreas irradiadas da medula é inversamente proporcional à dose localmente recebida e pode ser incompleta; doses superiores a 3.000 cGy causam dano permanente, com substituição da medula local por gordura e fibrose. O hematologista deve evitar o esterno

para mielograma em pacientes que, no passado, irradiaram mama, pulmão ou mediastino. A distribuição anatômica da medula hematopoética no esqueleto, entretanto, é suficientemente ampla, de modo que a mielotoxicidade não costuma ser uma limitante à RT. A RT, principalmente sobre o abdômen, causa eosinofilia, com duração de várias semanas; contagens de eosinófilos entre 1.000 e 3.000/µL são comuns. Doses amplas sobre o tórax ou o abdômen causam trombocitopenia. Linfocitopenia proporcional à dose ocorre de modo sistemático; é duradoura (meses ou anos), podendo ser permanente. O risco de desencadeamento tardio de LMA pela quimioterapia aumenta acentuadamente se esta tiver sido acompanhada de radioterapia. ANEMIA E HEMOGRAMA NAS DOENÇAS DO TRATO DIGESTIVO A facilidade e a frequência com que o hematologista identifica causas gastroenterológicas (mas sem especificá-las!) ao ser consultado por anemia, por manejar ele próprio o hemograma e ter prática na escolha dos exames complementares apropriados, faz supor que clínicos e gastroenterologistas, diante dos mesmos casos, tenham trabalho mais difícil, pois olham-nos pela óptica inversa e não têm a mesma facilidade na interpretação dos dados hematológicos. Pelo exposto, o autor elaborou a Tabela 10.3, de fácil consulta, em que uma lista abrangente de doenças do trato digestivo é correlacionada com as respectivas alterações do hemograma, com detalhes elucidativos da patogênese. Como o número de verbetes é pequeno, foi preferida uma ordem anatômica à ordem alfabética. TABELA 10.3 Correlação entre doenças do trato digestivo (coluna da esquerda) e alterações do hemograma (coluna da direita), com a patogênese usual na coluna do meio Doenças do trato digestivo

Patogênese

Hemograma

Esôfago Membrana esofágica (S. de Plummer-Vinson)

⇐ (consequência)

Esofagite eosinófila (rara) Varizes (hipertensão porta)

A. ferropênica Eosinofilia

Sangr. agudo

A. aguda Sinais de D. hepática

Junção gastroesofágica Doença de refluxo

(inexpressivo)

Hérnia do hiato

Sangr. crônico (frequente​mente não valorizado)

A. ferropênica

S. de Mallory-Weiss (laceração)

Sangr. agudo

A. aguda

Estômago Gastropatia erosiva/hemorrágica do estresse

Sangr. agudo (raro) Sangr. crônico Sangr. agudo

Gastrite não erosiva (Helicobacter pylori infecção aguda crônica superficial

(raramente diagnosticada)

A. aguda A. ferropênica A. aguda

(inexpressivo)

crônica profunda (atrofia gástrica) profunda e disseminada

Atrofia, acloridria Idem + falta de fator intrínseco ⇒ autoimunidade

(inexpressivo) A. ferropênica Má digestão de B12 Má absorção de B12 Idem: A. perniciosa

Angiodisplasia

Sangr. crônico Sangr. agudo (raro)

A. ferropênica A. aguda

Gastrite eosinofílica

Sangr. crônico

A. Ferropênica Eosinofilia

Gastrite de Ménétrier (rara)

Hipoalbuminemia

ADC

Úlcera péptica

Sangr. agudo Sangr. crônico Perfuração

A. aguda A. ferropênica Leucograma de abdômen agudo

S. de Zollinger-Elison (rara)

(inexpressivo)

Intestino delgado D. celíaca (sensibilidade ao glúten)

Sangr. crônico Envolvimento amplo Envolvimento do íleo Hipoesplenismo (?) Estado inflamatório

A. ferropênica Má absorção de folatos Má absorção de B12 Corpos de Jolly, acantocitose, trombocitose ADC, ⇑ VSG, trombocitose ⇓ IgA

D. de Whipple (rara)

Estado inflamatório Sangr. crônico

ADC A. ferropênica Má absorção de folatos Má absorção de B12

Crescimento bacteriano, alça cega

Competição por B12

Deficiência de B12

Ressecção intestinal quando extensa se incluir íleo

Sangr. crônico

A. ferropênica Má absorção de folato Má absorção de B12

Enteropatia com perda de proteína por obstrução linfática

Hipoalbuminemia

ADC Linfocitopenia

Cólon e reto Apendicite e diverticulite D. inflamatórias crônicas

Leucograma de abdômen agudo Estado inflamatório

D. de Crohn Comprometimento de delgado Sangr. crônico Colite ulcerativa Sangr. agudo (raro) Sangr. crônico

ADC, ⇑ VSG, Trombocitose, neutrofilia (inconstante) Má absorção de folatos Má absorção de B12 A. ferropênica A. aguda A. ferropênica

Diverticulose

Sangr. agudo (raro) Sangr. crônico

A. aguda A. ferropênica

Angiodisplasia

Sangr. agudo Sangr. crônico

A. aguda A. ferropênica

S. do cólon irritável Hemorroidas

(inexpressivo) Sangr crônico

A. ferropênica (rara)

A., anemia; ADC, anemia de doença crônica; D., doença; sangr., sangramento; S., síndrome; VSG, velocidade de sedimentação globular. Todos os títulos da 3ª coluna são discutidos no texto; procurá-los no índice.

ANEMIA E HEMOGRAMA NA AIDS 2

ANEMIA E HEMOGRAMA NA AIDS 2 A infecção pelo HIV afeta a tal ponto as células sanguíneas que se justifica fazer a pesquisa de anticorpos anti-HIV sempre que um hemograma mostrar citopenias sem explicação evidente. De 10 a 30 dias após o contágio, pode haver uma doença febril mononucleosis-like – síndrome retroviral aguda – com linfócitos atípicos no sangue e cura espontânea (ver Cap. 16). Nos pacientes que não a apresentam, a evolução costuma ser mais lenta do que nos que a apresentaram. Com o contágio despercebido, o diagnóstico torna-se mais tardio, feito por acaso em exames rotineiros ou pela aparição da doença definidora de aids. A progressão após a infecção inicial é assintomática, salvo discretas linfonodomegalias generalizadas na maioria dos pacientes. Nesse período, entretanto, há intensa proliferação do vírus em células portadoras do antígeno de superfície CD4, principalmente nos linfócitos T-helper CD4+ (resumidamente, CD4), 2% dos quais estão no sangue circulante e 98% nos tecidos e órgãos linfoides. O espectro da infecção vai desde os progressores rápidos, em torno de 5%, evoluindo para necessidade de tratamento ou para doença clínica em menos de 5 anos, até outros 5% que têm evolução lenta (entre os quais os controladores de elite que não evoluem para doença por 20 anos ou mais). Os restantes 90% evoluem para doença em 7 a 11 anos após a infecção inicial. Como regra, quanto mais sintomática for a síndrome retroviral aguda, mais provável será a evolução rápida com necessidade precoce de tratamento. Hemograma na aids No hemograma, a mais constante alteração é a baixa progressiva de linfócitos CD4 por efeito citopático direto do vírus. Como são os linfócitos predominantes no sangue (50 a 60%), a diminuição causa linfocitopenia global. A identificação/contagem dos subtipos de linfócitos é feita por citometria em fluxo; o contador eletrônico para hemograma, Cell Dyn Saphire, tem um software especial que permite essa determinação. A linfocitopenia global, entretanto, é tardia, porque há certo aumento reacional de linfócitos B. Como os linfócitos CD4 têm papel central na resposta imunológica, os demais leucócitos alteram-se secundariamente. Sem CD4, os linfócitos T-supressor CD8+ (resumidamente, CD8), os linfócitos natural killer (NK) e os monócitos-macrófagos não desenvolvem respostas antivirais apropriadas. O HIV estimula os linfócitos B na formação de autoanticorpos e de anticorpos a antígenos já conhecidos; há hipergamaglobulinemia policlonal, mas a formação de anticorpos contra novos antígenos é deficiente. O número crítico de linfócitos CD4, abaixo do qual costuma instituir-se a terapia antiviral, foi recentemente ampliado para < 500/µL, devido a evidências mostrando menor evolução para aids quando o tratamento é iniciado mais precocemente. Com início precoce, isto é, a partir de nadir mais alto de linfócitos CD4, a recuperação imunológica passou a ser a regra, inclusive com retorno à relação CD4/CD8 para maior que 1. Com CD4 < 200/µL, institui-se profilaxia com cotrimoxazol de infecções oportunistas de alta incidência comprovada: pneumonia por Pneumocystis jirovecii e toxoplasmose cerebral. As séries mieloides também são comprometidas:

Anemia: está presente em 10% dos pacientes assintomáticos e em 50% dos pacientes com linfonodomegalias; é achado universal em pacientes com aids plenamente manifesta. Tem as características hematológicas usuais da ADC. São mecanismos operantes: ■ Mecanismos usuais de ADC em todos os pacientes. ■ Iatrogenia própria da zidovudina (AZT): causava anemia macrocítica quando a droga era usada em dose alta, como principal componente do tratamento. Com o coquetel atual, a iatrogênese não é mais significativa. ■ Anemia hemolítica autoimune Coombs-positiva é rara, mas sempre grave; exige um indesejável tratamento com corticoides. ■ Carência nutricional em pacientes caquéticos e/ou com diarreia crônica. ■ Infiltração da medula óssea por infecções oportunistas: micobacterioses por M. tuberculosis ou não tuberculosis-complexo Avium; citomegalovirose disseminada e micoses, particularmente histoplasmose. Intensificação da anemia acompanhada de neutropenia ou trombocitopenia exige exame da medula óssea: amostra aspirada é coletada em tubo com solução salina para cultivo de micobactérias e fungos, e cilindro obtido com agulha de biópsia é enviado a exame anatomopatológico. A presença de granulomas só é notada em corte histológico. ■ Infecção por parvovírus: a parvovirose sempre causa uma aplasia eritroide fugaz; como em pacientes com aids a infecção é persistente por deficiência da resposta imunitária, a aplasia torna-se duradoura. Há reticulocitopenia e anemia extremas; costuma responder ao tratamento com imunoglobulina humana intravenosa. É uma complicação rara. ■ Infiltração da medula por linfomas aids-correlatos. Neutropenia: é notada na evolução da aids em 50 a 70% dos casos. São mecanismos operantes: ■ ■ ■ ■ ■ ■

Inibição da mielopoese pelas drogas antivirais ou anti-infecciosas. Replicação inadequada das células mieloides infectadas pelo HIV. Viroses coexistentes. Leucoaglutininas oriundas de disfunção autoimune dos linfócitos B. Alterações das citoquinas e fatores de crescimento. Infiltração da medula por linfomas aids-correlatos.

Trombocitopenia: está presente em mais de 30% dos pacientes. Na experiência do autor, pelo viés estatístico causado pela especialidade (Hematologia), tem sido várias vezes o sinal que levou ao diagnóstico. Geralmente decorre de anticorpos antiplaquetas oriundos da imunidade alterada e/ou da presença de complexos imunes que se adsorvem às plaquetas e causam sequestração no sistema macrofágico. Inibição da megacariocitopoese pelo HIV, por outros vírus ou por drogas pode ser coadjuvante. Quando autoimune, a trombocitopenia responde aos corticoides; o indesejável tratamento é similar ao da púrpura trombocitopênica autoimune crônica usual. A esplenectomia é reservada para casos de trombocitopenia extrema não responsiva a corticoides.

Desde o início dessa tragédia médica do fim do segundo milênio, tem-se notado que os pacientes com aids são propensos, 20 a 100 vezes mais que a população em geral, ao desenvolvimento de linfomas B. Predominam os linfomas de Burkitt e Burkitt-like, os linfomas difusos de grandes células e os antes raríssimos linfomas primários do sistema nervoso central, todos de elevada malignidade. As deficiências imunológicas e da hematopoese impedem uma quimioterapia eficaz; a sobrevida mediana é de poucos meses, e a mortalidade, total. O sarcoma de Kaposi correlaciona-se com a doença avançada, mas não diretamente com alterações hematológicas. 1 Com a colaboração do Prof. Waldir Veiga Pereira, de Santa Maria, RS. 2 Com a colaboração do Dr. Breno Riegel dos Santos, Coordenador e Chefe da Unidade de Pesquisa do Serviço de Infectologia do Hospital Nossa Senhora da Conceição/GHC, Porto Alegre, RS.

11 PSEUDOANEMIAS Diz-se haver pseudoanemia quando há diminuição das cifras do eritrograma por aumento da volemia plasmática. A contagem de eritrócitos, a hemoglobina e o hematócrito baixam proporcionalmente pela hemodiluição. O eritrograma não é representativo da realidade in vivo; não há diminuição da massa eritroide circulante, só da relação glóbulos/plasma. A hemodiluição é fisiológica ao menos em duas eventualidades: na gravidez e nos atletas em treinamento intensivo. É o componente principal da anemia da esplenomegalia. Pode ocorrer na retenção de líquidos por insuficiência cardíaca ou renal, ou pelo uso intravenoso de soluções oncoticamente ativas. ANEMIA E HEMOGRAMA NA GRAVIDEZ A partir do 3º mês de gestação, há um aumento progressivo da volemia plasmática, que chega a 30 a 40% em torno do 5º mês e estaciona no 7º mês. A massa eritroide também aumenta, mas apenas 10 a 20%, daí haver diminuição das cifras hematimétricas. É a pseudoanemia da gravidez. O aumento da volemia plasmática é proporcional ao tamanho do concepto; pode chegar a 60% no caso de gravidez gemelar. Um balanço das alterações volêmicas da gravidez em mulher de 55 kg é exemplificado na Tabela 11.1. O uso do hematócrito (Hct) deve-se à tradição de mantê-lo como parâmetro para cálculos volêmicos; a aparente inexatidão aritmética deve-se à correção do Hct venoso para Hct somático,

aproximadamente 10% inferior. Note-se que a baixa da hemoglobina (Hgb) chega a ser > 2 g/dL em relação ao valor prévio à gravidez. TABELA 11.1 Volemia e eritrograma na gravidez Antes da gravidez

Aos 4-5 meses

Aos 7-8 meses

Volemia plasmática (mL)

2.600

3.150

3.750

Volemia globular (mL)

1.400

1.450

1.550

Volemia total (mL)

4.000

4.600

5.300

Hematócrito (%)

40

36

33

13,5

12,2

11,2

Hemoglobina (g/dL)

A hemodiluição da gravidez é teleologicamente sensata: o aumento da massa hemoglobínica favorece o transporte de oxigênio, cujo consumo aumenta 15% na gravidez; há mais plasma e circulação aumentada nos tegumentos e nos rins, favorecendo a perda de calor e o aumento das necessidades excretórias da gravidez. O problema do obstetra em relação ao hemograma da gestante é a distinção entre o que é hemodiluição e o que é anemia real, desencadeada pela gravidez ou preexistente. O balanço do ferro na gestação é negativo: há necessidade transitória de aproximadamente 450 mg para o aumento da massa hemoglobínica, há perda de aproximadamente 350 mg para a placenta e o feto, e pode haver perda no parto. Em compensação, há economia de 250 a 400 mg pela amenorreia da gestação e da lactação. Levando-se em conta a exiguidade das reservas de ferro nas mulheres, principalmente nas populações pobres, compreende-se que a anemia ferropênica seja uma complicação frequente da gravidez. O mais prático é complementar todas as gestações com sulfato ferroso (300 mg/dia) ou ferrocarbonila (120 mg, 3 vezes por semana) durante 3 a 4 meses. Se, apesar da complementação, houver Hgb < 10 g/dL, não se deve aumentar a dose de ferro oral, nem injetá-lo! Pesquisar outra causa de anemia, principalmente anemia de doenças crônicas (ADC), e dosar ferritina para excluir deficiência de ferro, pois a paciente pode não ter tomado o ferro receitado. Se nenhuma causa for encontrada e houver boas reservas de ferritina, aceitar que se trata de um eventual exagero da hemodiluição. Sempre considerar o nível de Hgb usual da paciente antes da gravidez. Em mulheres que normalmente têm Hgb entre 11 e 12 g/dL, durante a gravidez a Hbg pode cair fisiologicamente abaixo de 10 g/dL; é o que sempre ocorre em mulheres com talassemia minor. Em gestantes com dieta carente por condições socioeconômicas, cabe complementação com ácido fólico (5 mg, 2 a 3 vezes por semana); há drágeas com ferrocarbonila e ácido fólico associados. Ele será indispensável se houver queixa de anorexia – sintoma constante na deficiência de folato – ou se o hemograma mostrar aspectos megaloides (macrocitose, neutrófilos hipersegmentados). A carência de folatos na concepção e nas primeiras semanas de gestação causa aumento da frequência de abortamentos e de defeitos congênitos da crista neural do embrião; indicá-lo sempre em clínicas de fertilidade.

O eritrograma na gestação mostra outras alterações: aumento de 2 a 4 fL no volume corpuscular médio (VCM), presença de esferócitos (notada somente em cuidadosa observação por microscopista experiente), policromatocitose e reticulocitose leves (responsáveis pelo aumento da massa eritroide). O leucograma altera-se muito e de modo variável; há neutrofilia, de mínima a considerável, com ou sem desvio à esquerda. A neutrofilia continuada pode causar aparição de granulações tóxicas, até de corpos de Döhle, pelo encurtamento do prazo de maturação entre promielócitos e granulócitos maduros na medula, tudo isso sem significado patológico. A presença de 1 a 5% de mielócitos e/ou metamielócitos é usual e normal. Note-se que os contadores eletrônicos não notam a presença deles, quando poucos, e que alguns laboratoristas têm o hábito de não anotá-los quando vistos na fórmula ao microscópio. Não são raros casos extremos de neutrofilia com contagens de leucócitos entre 20.000 e 30.000/µL, com mais de 80% de neutrófilos, desvio à esquerda e mielocitose; podem até ser ditos leucemoides. Querer diagnosticar complicações infecciosas da gravidez pelo leucograma é, ao menos, imprudente; a interpretação só é permissível se houver diferença, súbita e significativa, com leucograma prévio recente. A Figura 11.1 mostra hemogramas de gestantes sadias. O da esquerda (a) é o hemograma “usual” entre a 25ª e a 30ª semana. O da direita (b) mostra leucocitose fora do usual (leucemoide), mas vista algumas vezes; o hemograma volta ao normal já uma semana após o parto.

FIGURA 11.1 Hemogramas de gestantes sadias: usual (a) e com leucocitose menos comum (b).

A contagem de plaquetas diminui 10 a 30% na gravidez; a diminuição é irrelevante e assintomática. Ver Capítulo 18 para discussão sobre trombocitopenia na gravidez. PSEUDOANEMIA DOS ATLETAS O treinamento atlético intensivo e continuado ocasiona um aumento do volume plasmático de até 20%; como não há aumento simultâneo da massa eritroide, a variação é notada no eritrograma. É possível que, como na gravidez, a hemodiluição seja teleologicamente sensata; a baixa da viscosidade favoreceria o transporte de oxigênio, apesar da perda por unidade de volume. Durante a atividade atlética competitiva de alto dispêndio de energia (corrida, etc.), a volemia plasmática chega a ter elevação transitória de 15%. Nos atletas profissionais em atividade, a Hgb é em torno de 1 g/dL inferior à média da população de referência estratificada. A corrida de longa distância favorece a perda de sangue no trato digestivo. Quando feita de modo repetido, pode causar anemia ferropênica. Foi descrita “anemia” na revisão médica por ocasião do retorno de astronautas. Foi atribuída à baixa do volume plasmático durante a permanência no espaço, ocasionando diminuição da produção de eritropoetina e diminuição da massa eritroide proporcional à nova situação. Na volta às condições barométricas terrestres, a reposição plasmática é mais rápida do que a eritroide, causando pseudoanemia transitória. O uso de eritropoetina recombinante humana (rHu-Epo) como doping é discutido no Capítulo 12. HIPERESPLENISMO O baço normal do adulto pesa 120 a 180 g, e 35% do peso in vivo corresponde ao sangue em trânsito; o fluxo normal faz-se da zona marginal para os seios venosos e dura 30 a 60 segundos. Quando há esplenomegalia, o aumento do fluxo faz-se pelos cordões esplênicos, cruzando as fenestrações da membrana basal do endotélio. A circulação dos eritrócitos por essa via alternativa é lenta, podendo ultrapassar 20 minutos; o acúmulo e a retenção decorrente são consideráveis. Em esplenomegalias moderadas, chega a 200 mL; em grandes esplenomegalias, pode ultrapassar metade da volemia eritroide. O plasma retorna à periferia e há aumento adicional de plasma pelo estímulo à reconstituição volêmica. O sangue dilui-se: é a pseudoanemia da esplenomegalia. Retidos duradouramente nos cordões esplênicos, junto à atividade macrofágica, os eritrócitos têm sobrevida encurtada: é o componente hemolítico do hiperesplenismo. Há igualmente retenção de leucócitos e plaquetas, com neutropenia e trombocitopenia variáveis, raramente graves a ponto de causar suscetibilidade a infecções ou manifestações hemorrágicas. No Rio Grande do Sul, a causa mais frequente de esplenomegalia é a hipertensão porta por hepatopatia crônica; seguem-na as hemopatias. A malária e a esquistossomose

costumam ser as causas dominantes nas regiões endêmicas. A pancitopenia hiperesplênica acompanha-se de medula óssea ricamente celular. A esplenectomia, quando possível ou indicada na doença causal, corrige as manifestações hematológicas do hiperesplenismo. Hipofunção esplênica e asplenia 1 A esplenectomia, a hipofunção esplênica por mecanismos fisiopatológicos (doenças inflamatórias crônicas intestinais, lúpus eritematoso sistêmico, atrofia na drepanocitose, infiltração linfoide na leucemia linfocítica crônica ou linfoma e outras) ou a asplenia congênita provocam as seguintes alterações no hemograma: ■ Trombocitose: é considerável (> 600.000/µL) nas semanas que sucedem a esplenectomia; diminui lentamente e estaciona em 50% acima do número prévio. Há trombocitose, também, na hipofunção esplênica de causas médicas. ■ Linfocitose: o aumento do número absoluto de linfócitos, acima do número prévio à esplenectomia, é constante e permanente, frequentemente ultrapassando os limites de referência; valores entre 3.000 e 6.000/µL são usuais em adultos. Linfócitos grandes e granulados (T CD8+) fazem parte da população aumentada. Se os demais sinais de hipofunção esplênica não forem notados, a linfocitose pode gerar suspeita de neoplasia linfoproliferativa.

■ No eritrograma: macrocitose (o VCM eleva-se 5 a 10 fL), acantocitose 2-3+, leptocitose (target cells) ±, corpos de Howell-Jolly 2-3+. Acantócitos, leptócitos e corpos de Howell-Jolly só são notados à microscopia por técnico competente e atento; se o técnico constatar a presença de acantócitos, cabe-lhe procurar Jolly para confirmar o hipoesplenismo. Em hemogramas liberados diretamente da máquina eletrônica, perdem-se todas essas alterações de valor diagnóstico. OUTRAS CAUSAS DE PSEUDOANEMIA A anasarca da insuficiência cardíaca congestiva acompanha-se de aumento da volemia plasmática. É comum notar-se significativa elevação das cifras do eritrograma, até da ordem de 2 g/dL de hemoglobina, 3 a 5 dias após o começo do tratamento com digitalização e diuréticos. A anemia da insuficiência renal crônica e a da drepanocitose têm um componente dilucional, daí haver em ambas uma desproporção entre a anemia (severa) e a sintomatologia (só aos esforços).

O uso intravenoso de soluções oncoticamente ativas e a infusão de plasma ou frações no tratamento de hemorragias em coagulopatias causam hemodiluição transitória. 1 N. de R.T.: Seção inserida arbitrariamente neste capítulo para ser discutida em oposição ao hiperesplenismo.

12 POLIGLOBULIAS O aumento conjunto das cifras do eritrograma (eritrócitos [E], hemoglobina [Hgb] e hematócrito [Hct]) – poliglobulia – pode decorrer tanto de aumento real da massa eritroide/hemoglobínica circulante como da diminuição da volemia plasmática. A Hgb pode não ser exatamente representativa da magnitude da poliglobulia: quando há carência de ferro e hipocromia, representa-a menos. O Hct, embora não seja determinado diretamente, mas calculado pela integração de E e volume corpuscular médio (VCM), persiste como o parâmetro mais usado para esse fim. A contagem de eritrócitos é inapropriada; quando há microcitose, o aumento da contagem – eritrocitose – pode não se acompanhar do aumento de Hgb e Hct ou até fazer parte de um quadro de anemia, como na talassemia minor. Por outro lado, embora teoricamente possível, praticamente não há aumento de Hct/Hgb sem eritrocitose; a exceção é um período transitório no tratamento da policitemia vera, em que o paciente ainda está com hemoglobina elevada e já tem macrocitose pelo uso de hidroxicarbamida (Hydrea®). O termo policitemia era usado como sinônimo de poliglobulia, mas, por participar do nome da neoplasia mieloproliferativa policitemia vera, talvez seja preferível usá-lo somente nessa designação. Quando a poliglobulia da amostra representa aumento verdadeiro da massa eritroide/hemoglobínica circulante, há poliglobulia real. Quando se deve à baixa da volemia plasmática, a poliglobulia é relativa ou pseudopoliglobulia; nesse caso, o aumento dos valores hematimétricos expressa a hemoconcentração. A diferença,

obviamente, não pode ser deduzida do eritrograma. Para o laboratorista, que só vê a amostra in vitro do sangue do paciente, não há pseudopoliglobulia nem pseudoanemia: só há poliglobulia e anemia. Na maioria das vezes, entretanto, a história e os dados clínicos apontam situações claras de perda plasmática. Algumas vezes, a distinção segura entre poliglobulia real e pseudopoliglobulia só pode ser feita pela determinação da volemia globular com Cr51; os limites de referência são 24 a 36 mL/kg de peso corporal para homens e 20 a 32 mL/kg para mulheres. A dificuldade de se oferecer um exame de medicina nuclear raramente solicitado, entretanto, diminuiu o uso da técnica, apesar de insubstituível em alguns casos, como no diagnóstico de poliglobulia inaparente. Uma poliglobulia real torna-se inaparente no eritrograma se estiver disfarçada por aumento simultâneo da volemia plasmática. O fenômeno só pode ser evidenciado pela medida radioisotópica simultânea das volemias globular e plasmática; é visto algumas vezes em pacientes com policitemia vera, nunca em poliglobulias secundárias. Poliglobulias acentuadas, com Hct > 55%, Hgb > 18,5 g/dL ( ) e Hct > 50%, Hgb > 17,0 g/dL ( ), sempre são reais, geralmente têm causa facilmente identificável ou se trata de policitemia vera. Poliglobulias menores constituem-se em difícil diagnóstico diferencial. O eritrograma fornece apenas dados relativos (relação plasma/glóbulos), o mielograma é inútil, e a clínica é fundamental. Antes de partir para a elaboração diagnóstica em torno de hemograma com poliglobulia, convém confirmar se os resultados são fidedignos e representativos. Certificar-se das boas condições de hidratação do paciente, excluir ação recente de diuréticos, repetir os exames em laboratório de confiança, atentar para o horário de coleta. Um hemograma coletado em condições basais, com o paciente ainda na horizontal após noite de sono ou imediatamente após levantar-se, comparado com o hemograma coletado no fim do dia, mostrará casos em que a hemoconcentração se deve à retenção de líquidos nos membros inferiores por horas de trabalho em pé ou sentado; essa diferença é particularmente elevada em pessoas obesas, idosas e cardíacas. Diferenças tão grandes como 6 pontos percentuais no Hct ou 2 g/dL na Hgb têm sido vistas pelo autor com esses cuidados. POLIGLOBULIAS MODERADAS Em casos com poliglobulias moderadas, com Hct < 55%, Hgb < 18,5 g/dL ( ) e Hct < 50%, Hgb < 17,0 g/dL ( ), deve-se procurar as causas que seguem: 1. Normal do paciente: na observação empírica do autor, no Rio Grande do Sul, bem como na Argentina e no Uruguai, hematócritos até 50% ( ) e 46% ( ), sem causa aparente, não são raros; é verdade que os fumantes eram muitos (e ainda são nos países vizinhos). Os mesmos valores são incomuns no norte e nordeste do Brasil. Que as altas taxas dos sulinos decorram de condições socioeconômicas e hábitos alimentares, com alta ingestão de proteínas animais, é uma hipótese atraente, mas sem qualquer confirmação.

2. Altitude: a poliglobulia fisiologicamente desencadeada pela baixa ​tensão do oxigênio da atmosfera rarefeita só é notada em residentes acima de 1.500 m de altitude. São inexistentes no Brasil, mas comuns nas populações andinas. Nos residentes em altitudes entre 2.000 e 3.200 m, a Hgb eleva-se de 1 a 2 g/dL; o efeito é benéfico. Os visitantes, nas primeiras horas ou dias, costumam ter fatigabilidade, palpitações e lipotimias, causadas pela falta de O2, e cefaleia e náuseas pelo edema cerebral; o tratamento preventivo com acetazolamida e/ou corticoides é útil. Altitudes maiores causam elevação excessiva e ineficaz das cifras hematimétricas nos residentes e visitantes durante estadias prolongadas porque a viscosidade sanguínea aumenta desproporcionalmente e supera o ganho no transporte de O2; em alguns, originam a doença de Monge, com hipoxia tecidual, baqueteamento digital, descompensação cardiorrespiratória e caquexia. 3. Fumo: a inalação da fumaça de mais de 20 cigarros por dia causa aumento do monóxido de carbono no sangue, com formação de carboxiemoglobina, inútil para o transporte de O2; há hipoxemia, aumento de produção de eritropoetina (Epo) e poliglobulia. A longo prazo, o enfisema acrescenta mais um componente causal. Os atuais aparelhos para gasometria arterial fornecem a dosagem de carboxiemoglobina no exame rotineiro. 4. Obesidade e estresse: causam pseudopoliglobulia; o mecanismo da diminuição da volemia plasmática não está esclarecido. O personagem obeso e sonolento de Charles Dickens originou a denominação de síndrome de Pickwick ao conjunto. O obeso fumante tem poliglobulia aditiva. A obesidade mórbida, principalmente em idosos, ocasiona restrição à expansão respiratória e anoxemia, com poliglobulia e policromatocitose no eritrograma. 5. Doença broncopulmonar obstrutiva crônica (DBPOC): a poliglobulia é proporcional à baixa do pO2 arterial e, até certo nível, benéfica. Quando o Hct elevase acima de 52%, a hiperviscosidade passa a ultrapassar o benefício e a poliglobulia torna-se definidamente prejudicial, com Hct > 55%; nesse caso, o paciente com DBPOC pode até beneficiar-se de sangrias terapêuticas. 6. Síndrome de apneia noturna: a anoxemia durante os ciclos de apneia estimula a produção de Epo e causa poliglobulia; o diagnóstico pode ser feito pela monitoração do sono em laboratórios especializados. 7. Tumores que secretam eritropoetina: o mais comum é o hipernefroma; tomografia computadorizada (mais segura do que ecografia) abdominal é indispensável em toda poliglobulia sem causa óbvia. Pode haver secreção inapropriada de Epo também nos seguintes tumores: hemangioma cerebelar, hepatomas, grandes miomas uterinos, cistos renais; no rim policístico há poliglobulia que, eventualmente, retarda a anemia da insuficiência renal. Pode haver poliglobulia pós-transplante renal. POLIGLOBULIAS ACENTUADAS Diante de poliglobulias acentuadas, em pacientes acima de 50 anos, o primeiro diagnóstico a considerar é o de policitemia vera, discutida no capítulo das neoplasias

mieloproliferativas (Cap. 23). Quando a poliglobulia decorrer da evolução dos casos dos itens 5 e 7 supracitados, os sinais da causa estarão evidentes: dispneia, cianose e baixo pO2 na DBPOC, tumor palpável ou caquexia no hipernefroma, etc. É claro que casos incipientes de policitemia vera podem ser notados por hemograma ocasional, ainda com poliglobulia discreta; a pesquisa de JAK2 – mutação V617F – por reação em cadeia da polimerase (PCR), já de uso corrente, é fundamental (ver Cap. 23). Esses números servem como parâmetros para raciocínio clínico, não como limites fixos. Em alguns casos, só a evolução será esclarecedora. PSEUDOPOLIGLOBULIAS SÚBITAS E TRANSITÓRIAS Além da pseudopoliglobulia das desidratações agudas de causas óbvias (diarreia continuada, sudorese intensa sem hidratação, etc.), pode haver perda súbita de plasma para o tecido extravascular por alteração da permeabilidade vascular em: Reações alérgicas sistêmicas: a perda de plasma é parte do quadro do choque anafilático; nas reações alérgicas graves, acompanha-se de urticária, edema de Quincke ou espasmo brônquico. Síndrome de choque das viroses hemorrágicas: A dengue hemorrágica pode evoluir para a síndrome de choque por súbita alteração da permeabilidade vascular. Há extravasamento de eritrócitos nos tegumentos, com petéquias disseminadas e confluentes, e extravasamento considerável de plasma, com aumento das cifras eritroides da ordem de 10 a 20% em 12 a 24 horas, com hipotensão e choque. Hemogramas seriados, com poucas horas de intervalo, são indispensáveis, mas a previsão dessa necessidade é difícil. A hidratação apropriada é eficaz para evitar o choque. Na febre hemorrágica ebola, a enorme desidratação que leva ao choque e à morte não chega a causar pseudopoliglobulia: a anemia de doença crítica é tão rápida e severa que há hipovolemia harmônica (baixa simultânea de plasma e glóbulos). POLIGLOBULIA PROVOCADA PELO USO DE ERITROPOETINA HUMANA RECOMBINANTE Relatos esporádicos, do começo dos anos 1990, referem que atletas de esportes altamente competitivos usaram autotransfusões de glóbulos para aumentar a hemoglobina, favorecer com isso o transporte de oxigênio e melhorar o desempenho. Esse modelo antiquado de doping fazia sentido; trabalhos de 1989 comprovaram que, para cada 100 g de aumento da massa hemoglobínica, há um aumento de 600 mL da capacidade de captar O2; isso significa que, para cada elevação da hemoblobina de 1 g/dL, haverá aumento de 1 a 4% do O2 oferecido aos tecidos. O conhecimento desse dado fisiológico coincidiu com a introdução da eritropoetina humana recombinante (rHu-Epo) em Medicina para o tratamento da anemia da insuficiência renal crônica; não demorou a estender-se o uso da droga para o doping farmacológico. A eficácia estimulante da poliglobulia induzida pela rHu-Epo,

obviamente contrária ao fair play e proibida por todos os Comitês Olímpicos, é fácil de compreender, quando se considera que as provas entre atletas de elite são vencidas por frações de porcentagens; quando cronométricas, às vezes, por frações de segundo. As diferenças são particularmente importantes em modalidades esportivas que dependem mais da resistência do que de uma impulsão momentânea ou de curta duração, como ciclismo, natação ou corrida de longas distâncias, e esportes de inverno; esses últimos ainda mais, porque são geralmente praticados em atmosferas rarefeitas pela altitude. O doping com rHu-Epo não é desprovido de risco – crê-se que houve ao menos dois óbitos de ciclistas no Tour de France causados por hiperviscosidade do sangue decorrente da poliglobulia complicada por desidratação. A vantagem flagrante da rHu-Epo sobre as demais drogas estimulantes proibidas decorria da dificuldade de evidenciá-la nos testes antidoping, já que é quase idêntica ao hormônio natural. A criação da WADA (World Anti-Doping Agency) no fim dos anos 1990, com um laboratório bem equipado, levou à identificação da rHu-Epo injetável, a partir de 2002, por um processo de foco isoelétrico, e posteriormente também a Mircera® (ver Cap. 9), de uso mais recente. Foi inclusive criado um Athletics Biologic Passport, que inclui dados hematimétricos dos concorrentes de olimpíadas e competições mundiais para comparações periódicas. A expiração da patente da rHu-Epo liberou a síntese de inúmeros biossimilares que, pela multitude de minivariantes moleculares, escapam à detecção; persiste o uso de doping com eitropoetina. E a criatividade dos que extrapolam do fair-play não parou aí: atletas fazem treinamento em altitudes elevadas antes de competições em baixas altitudes; e usam Hypoxy Devices (tendas ou máscaras pobres em oxigênio) para estímulo intrínseco da eritropoetina nesses períodos. Já foram criadas até drogas que modulam a expressão dos Hypoxy Inducing Genes para o mesmo fim. Como a hemoglobina cai significativamente pelo aumento do volume plasmático durante o período das competições, em que os atletas não podem ser examinados, tem havido confissões ulteriores do uso de autotransfusões nessas ocasiões. POLIGLOBULIAS NOTADAS NA INFÂNCIA Costumam decorrer de cardiopatias congênitas; raramente, de defeitos genéticos da hemoglobina ou deficiências enzimáticas. Cardiopatias congênitas: quando há passagem de sangue venoso para o lado arterial, a poliglobulia é notada já nos primeiros meses de vida; é proporcional à magnitude do shunt D ⇒ E, e o hematócrito pode ultrapassar 70%, com todos os sinais de pletora e hiperviscosidade, incluindo cianose e baqueteamento digital. Nos primeiros anos, costuma haver microcitose e hipocromia, acentuadas até, por falta de ferro para suprir a eritropoese exagerada. A cirurgia corretiva é eficaz também para a poliglobulia. Hemoglobinas de alta afinidade ao oxigênio: há variantes raras da Hgb que não liberam adequadamente o O2 aos tecidos e causam poliglobulia. Há casos de genética dominante e casos cuja Hgb variante evidencia-se à cromatografia líquida de alto desempenho (HPLC)

ou à eletroforese. Os pacientes toleram bem a poliglobulia; o autor só viu quatro casos, dois dos quais se beneficiam de sangrias periódicas. Metemoglobinemia: poliglobulia mínima, acompanhada de cianose permanente, leva a esse raro diagnóstico. O sangue arterial, coletado para a gasometria, tem uma cor achocolatada que não clareia com o arejamento, o que se nota com facilidade no laboratório. Há duas causas genéticas: – Hemoglobina M: a molécula é defeituosa e há auto-oxidação do heme. O defeito é dominante e confirma-se pela HPLC ou pela eletroforese da Hgb. É intratável, mas benigno, com mais consequências estéticas do que sintomas clínicos. – Deficiência de NADH-citocromo b5-redutase (ou metemoglobina redutase): é um defeito recessivo. O uso oral permanente de 1 a 2 g/dia de ácido ascórbico, pelo efeito redutor, diminui a metemoglobina e melhora notavelmente a cianose.

13 LEUCOGRAMA Leucograma é a seção do hemograma que inclui a contagem de leucócitos e a fórmula diferencial com quantificação e avaliação morfológica dos diversos tipos. CONTAGEM DE LEUCÓCITOS A contagem eletrônica do número global de leucócitos, mesmo em contadores de grande porte de última geração, tem um coeficiente de variação significativo: 2 a 4% para contagens acima de 2.000/µL, 3 a 6% para contagens entre 1.000 e 2.000/µL, 10 a 30% para contagens < 1.000/µL. Contadores de grande porte fornecem contagens satisfatórias mesmo em grandes leucocitoses (até 450.000/µL); contadores de pequeno porte geralmente exigem diluição extra do sangue para contagens acima de 80.000/µL. Esse erro sistemático indesejável, entretanto, só é relevante para a interpretação em casos de leucopenia extrema, em pacientes sob quimioterapia, caso em que o número absoluto de neutrófilos é crítico. Para contagens mais altas, não é clinicamente significativo. A contagem de leucócitos está sujeita aos erros pré-analíticos discutidos no Capítulo 1; além desses, há que se considerar: 1. Aglutinação de neutrófilos: é relativamente rara. Em sangue coletado em EDTA, ocorre entre 1/10.000 e 1/30.000 amostras; é ainda mais raro persistir a agregação ao coletar-se nova amostra em citrato. O fenômento é relevante: pode causar acentuada leucopenia espúria. Formam-se grandes conglomerados, facilmente identificados na

2. 3. 4.

5.

6.

7.

cauda da distensão à microscopia com pequeno aumento. Nunca aceitar leucopenias sem causas óbvias sem pesquisá-la. Aglutinação de linfócitos: é vista em alguns casos de leucemia linfocítica e linfoma leucêmico. Presença de agregados plaquetários: podem ser contados como leucócitos, mas o posicionamento no scatter plot da fórmula gera flag. Crioglobulinas, criofibrinogênio e lipídios: crioproteínas, precipitando ao resfriamento do sangue, causam elevação espúria da contagem de leucócitos. Precipitados podem ser (ou não) visíveis à microscopia. Excesso alimentar oral recente de lipídios raramente interfere tecnicamente nas contagens; já em amostras de sangue coletado após alimentação parenteral, com droplets lipídicos facilmente visíveis à microscopia, a contagem pode ser inviável; troca isovolumétrica do plasma pelo solvente do contador, após centrifugação suficiente para se depositarem os leucócitos, geralmente permite resultados fidedignos. Presença de eritroblastos: em contadores de pequeno porte e modelos antiquados de grande porte, são contados como leucócitos; nesses últimos, geralmente geram flag. Há que descontá-los contando-os à microscopia. Contadores de grande porte recentes identificam e contam eritroblastos separadamente. Eritrócitos resistentes à lise pelo solvente: eritrócitos contendo hemoglobina C, mesmo heterozigóticos, são resistentes e podem ser contados como leucócitos. A anormalidade não é notada em contadores de pequeno porte; as máquinas maiores recentes emitem flag. Algumas notam discrepância entre a contagem de núcleos nus e a contagem global de leucócitos. Contaminação in vitro da amostra: crescimento bacteriano ou fúngico no sangue conservado pode causar leucocitose espúria. É mais comum causarem falsa trombocitose pelos limiares de tamanho.

Valores de referência: estatísticas feitas no laboratório do autor nos anos 1990, com um Coulter Max’m, separadamente em três coortes sequenciais de 5 mil pacientes adultos, sem distinção de sexo ou raça (a população atendida no laboratório era predominantemente branca), depuradas arbitrariamente dos extremos, mostraram-se quase idênticas; estão (arredondadas) a seguir: Leucócitos/µL

(média) 6.300

(±2DP) 3.600-11.000

(±3 DP) 3.200-12.600

Estatísticas internacionais mostram resultados um pouco mais altos em populações brancas, mais baixos em populações negras e valores 3 a 4% mais altos em mulheres. Na estatística de Beutler e West (ver Cap. 2), a contagem média em brancos foi de 6.760/µL ( ) e 6.540/µL ( ); em afro-norte-americanos, 6.140/µL ( ) e 5.740/µL ( ). A diferença faz-se a expensas do número de neutrófilos; há uma neutropenia racial. A grande amplitude do intervalo de referência nas estatísticas populacionais não implica variabilidade da contagem nos indivíduos em particular; pelo contrário, descontando-se as eventualidades fisiológicas que a alteram de modo sistemático (p. ex.,

gestação) e avaliando-a sempre na mesma hora e nas mesmas condições, a contagem de leucócitos é notavelmente constante na sequência dos dias e anos. Cada pessoa tem seu número normal de leucócitos. Por esse motivo, sempre que se fizer um hemograma por motivo fortuito (check up, exame de ingresso, etc.), o resultado deve ser arquivado como referência para exames futuros. A coleta matinal, em jejum, condição preferida para as dosagens químicas do sangue, é a menos indicada para a contagem de leucócitos, pois é influenciada pelo número de horas de sono e pela atividade tardia da noite anterior; é ≅ 5% inferior à contagem vespertina. Refeições lautas causam diminuição da contagem, talvez pelo afluxo de leucócitos à área esplâncnica; paradoxalmente, às vezes, causam leucocitose. Devem ser sempre preferidas contagens com o sangue coletado no fim da manhã, ou entre 15 (no mínimo 2 horas após o almoço) e 18 horas, com o paciente cumprindo suas ocupações usuais (salvo exercício físico ou trabalho braçal). Leucocitose e leucocitopenia (ou leucopenia – mais usada) designam, respectivamente, as contagens acima e abaixo dos limites de referência, mas talvez seja mais pertinente usar esses termos para variações significativas da contagem usual do(a) paciente, quando conhecida, mesmo que ainda estejam dentro dos limites de referência populacionais. Fumo e obesidade causam aumento, mutuamente aditivo, de ≅ 1.000 leucócitos/µL (neutrófilos) na contagem; contagens acima de 10.000/µL são comuns. O café, em doses elevadas, causa leucocitose. A contagem não varia com o ciclo menstrual. Leucocitose e leucopenia, como números isolados, não têm interpretação. É indispensável saber a expensas de que tipo(s) celular(es) há aumento ou diminuição do número global; para isso, há necessidade da fórmula leucocitária. Nunca se solicita, se faz ou se interpreta contagem de leucócitos; sempre leucograma – na verdade, hemograma, já que as máquinas não costumam oferecer essa opção parcial. FÓRMULA LEUCOCITÁRIA A primeira observação ao microscópio de lâmina corada de sangue, identificando os tipos de leucócitos e definindo sua frequência percentual, foi feita por Paul Ehrlich em 1879, mas a prática corrente da fórmula leucocitária entrou na rotina com o livro de Victor Schilling, de 1912. O nome Hemograma de Schilling, que vigorou por décadas, caiu em desuso, mas o método persiste até hoje. Obtidos pelo exame ao microscópio de 100 leucócitos (os que estão usualmente presentes são ilustrados a seguir) e anotação do percentual de cada tipo, é óbvio que os números da fórmula leucocitária representam apenas aproximações estatísticas dos valores percentuais reais; seriam mais representativos (com menor erro sistemático) se fossem examinados 200 (ou mais) leucócitos, em vez de 100, o que é inviável na rotina, mas que deve ser feito quando houver leucocitose ou número excessivo de um tipo celular que costuma estar ausente ou aparecer em porcentagem muito baixa (p. ex., mielócitos ou metamielócitos e plasmócitos).

A Tabela 13.1 mostra a variabilidade estatística de uma fórmula leucocitária relativa, sem considerar o erro decorrente da distribuição desigual dos leucócitos na lâmina ou os erros técnicos por fadiga ou displicência do observador. Na primeira coluna estão os números, encontrados por hipótese, de cada tipo celular; na segunda, os valores extremos que poderiam ser encontrados para limites de confiança de 95%, enumerando-se 100 leucócitos; na terceira, enumerando-se 200 leucócitos. TABELA 13.1 Variabilidade estatística da fórmula leucocitária relativa convencional (feita por microscopia) Porcentagem encontrada

Extremos % (enumerando 100)

Extremos % (enumerando 200)

0

0-4

0-2

5

1-12

2-10

10

4-18

6-16

20

12-30

14-27

50

39-61

42-58

Segue-se um exemplo de interpretação da tabela: se, em uma fórmula, constar eosinófilos = 10%, isso significa que o valor percentual dos eosinófilos na lâmina examinada estará, 95% das vezes, entre 4 e 18% se o técnico observou e enumerou 100 leucócitos, e entre 6 e 16% se enumerou 200 leucócitos. A introdução recente e a atual difusão do uso do Sysmex Cella Vision (ver p. 45), substituindo a microscopia convencional por suas imagens digitalizadas de alta resolução, melhorou a identificação celular, mas não diminuiu o erro estatístico de converter-se o exame de 100 elementos em porcentagem da população; como também identifica e enumera apenas cerca de 100 leucócitos, não faz mais do que substituir o técnico. Essa intolerável inexatidão da fórmula leucocitária ao microscópio deixou de existir com o uso generalizado das fórmulas leucocitárias feitas por citometria em fluxo nos contadores eletrônicos. Há contadores pequenos que identificam os leucócitos apenas pelo volume celular medido pelo princípio Coulter, fornecendo uma fórmula leucocitária de três elementos: granulócitos, mononucleares grandes (normalmente monócitos) e linfócitos (mononucleares pequenos). O baixo preço do equipamento e a possibilidade de ser manuseado por técnico sem especialização fazem-no satisfatório para laboratórios pequenos, que completam o hemograma fazendo a fórmula ao microscópio em todos os casos. É particularmente útil no plantão laboratorial dos hospitais, com técnicos polivalentes que teriam dificuldade no manuseio das máquinas mais sofisticadas; o resultado rápido, com uma fórmula simplificada, pode ser suficiente para distinguir se

uma leucocitose é neutrófila ou linfocítica, com a interpretação decorrente, ficando a fórmula completa para o horário convencional do laboratório. Todos os laboratórios de movimento significativo utilizam contadores de grande porte, com fórmula leucocitária completa distinguindo os tipos leucocitários usuais e flagging as células não identificadas. A análise de 6.000 a 20.000 leucócitos, feita pelos métodos descritos no Capítulo 1, praticamente extingue o erro estatístico sistemático da fórmula convencional; a máquina até emite fórmula com uma casa decimal nos resultados percentuais, embora a precisão certamente não atinja esse nível. Com essa tecnologia, a microscopia é usada como complemento, só para avaliar e enumerar células não identificadas pela máquina, de acordo com os critérios descritos no Capítulo 1. O Cella Vision facilita a microscopia e a perfeita identificação celular. A fórmula leucocitária que fornece, entretanto, não deve ser usada em lugar da fórmula gerada pelo contador eletrônico; havendo ambas, a do contador é a estatisticamente válida. Com esse novo nível tecnológico, a reprodutibilidade e a exatidão dos números permitem até o uso de hemogramas seriados, com poucas horas de intervalo, para acompanhar casos de doença inflamatória aguda (p. ex., apendicite); pequenas variações, antes encobertas pela extensão do erro sistemático, agora são significativas. Atente-se para não incluir a contagem de neutrófilos bastonados nessa valorização estatística; a quantificação do desvio à esquerda continua a ser feita ao microscópio e persiste muito inexata. Seja com a inexatidão da fórmula feita ao microscópio, seja com a precisão dos números da fórmula eletrônica, a interpretação da fórmula leucocitária deve basear-se em valores absolutos, isto é, número/µL de cada tipo de leucócito, não em valores percentuais. Da fórmula relativa (percentual), conhecendo-se a contagem de leucócitos, calcula-se a fórmula absoluta por uma óbvia regra de três; o exemplo é autoelucidativo: Leucócitos = 7.000/µL (neutrófilos = 60%) Número absoluto de neutrófilos = 60 × 7.000 ÷ 100 = 4.200/µL

Os contadores eletrônicos fornecem a fórmula absoluta junto com a fórmula percentual. Ao contrário da contagem de leucócitos, que é muito variável na população, a proporção entre os tipos de leucócitos varia pouco de pessoa para pessoa. Cada pessoa tem uma contagem própria de leucócitos, mas todas têm mais ou menos a mesma fórmula leucocitária, com amplo predomínio de neutrófilos (entre metade e dois terços do total), alguns eosinófilos e monócitos, e a terça ou quarta parte restante de linfócitos. Basófilos são raros, plasmócitos e mielócitos são ocasionalmente vistos. Os limites de referência do leucograma em adultos (Tab. 13.2) devem ser encarados com tolerância no caso de fórmulas convencionais pela inexatidão estatística, mas a interpretação pode ser mais rigorosa (os números têm credibilidade) quando se tratar de uma fórmula automatizada. Se o laboratório não esclarecer qual a tecnologia empregada, deve-se atentar para a presença (na fórmula eletrônica) ou ausência (na fórmula ao microscópio) de uma casa decimal na fórmula relativa. TABELA 13.2

Leucograma: limites de referência* para adultos %

/µL



3.600-11.000

Neutrófilos **

40-70

1.500-6.800

Linfócitos

20-50

1.000-3.800

Monócitos

2-10

100-800

Eosinófilos

1-7

50-400

Basófilos

0-3

0-200

Leucócitos

*

Brancos. Em negros, o valor absoluto médio de neutrófilos é 10 a 20% mais baixo, e o de linfócitos, ≅ 8% mais alto. Neutrófilos totais. Neutrófilos bastonados = 0 a 6%.

**

INTERPRETAÇÃO A interpretação hematológica do leucograma depende de um simples raciocínio aritmético, aplicado sobre algumas premissas fisiopatológicas básicas. Leucocitose e leucopenia, reacionais ou por patologia própria da hematopoese, fazemse, como regra, a expensas de uns ou de outros tipos de leucócitos, quase nunca de todos a só um tempo. São raros os aumentos ou as diminuições globais harmônicas. Pode-se, então, inferir que uma contagem de leucócitos, dentro dos limites de referência populacionais, será a normal do(a) paciente se a fórmula relativa for normal. Reciprocamente, quando acompanhada de fórmula relativa alterada, provavelmente não será a contagem normal daquele(a) paciente. Seguem-se exemplos esclarecedores. O leucograma da Figura 13.1 (a) tem uma contagem alta, o da Figura 13.1 (b), uma contagem baixa, mas as duas dentro dos limites de referência. Em ambos, a fórmula relativa é normal. Embora tão desparelhos, os dois devem ser normais; as cifras de (a) são mais comuns em brancos, as de (b), em negros.

FIGURA 13.1 Leucogramas normais com contagens desparelhas.

Já entre os leucogramas da Figura 13.2 há uma diferença. O da esquerda (a) tem contagem e fórmula normais; deve ser o normal do paciente. O da direita (b), por outro lado, também com contagem dentro dos limites de referência, tem a fórmula relativa alterada, com alta porcentagem de eosinófilos. Atentando-se à fórmula absoluta (que é a

que deve ser interpretada), vê-se que há cerca de 3.000 eosinófilos a mais do que os 200300 usuais. Desse resultado, pode-se facilmente inferir qual seria a contagem de leucócitos normal do(a) paciente não fosse a eosinofilia: (Contagem atual) 9.000/µL – 3.000 (eosinófilos em excesso) = 6.000/µL (contagem normal do paciente)

Retirando da porcentagem os eosinófilos em excesso (baixando 35,7% para em torno de 3%) e distribuindo os 32,7% de modo harmônico entre os demais leucócitos, vê-se que o leucograma da Figura 13.2 (b) praticamente converte-se no leucograma da Figura 13.2 (a); na verdade, o leucograma (b) é o leucograma (a), alterado agora por um agente causal de eosinofilia (p. ex., verminose).

FIGURA 13.2 Leucograma normal (a) e com eosinofilia (b).

Os dois leucogramas fictícios da Figura 13.3 servem para ilustrar o erro de interpretar o leucograma pela fórmula relativa. No leucograma (a), há linfopenia relativa (7%), no leucograma (b), linfocitose relativa (70%); no entanto ambos têm o mesmo número (normal) de linfócitos (1.400/µL). Ao interpretá-los, os linfócitos nem merecem menção: há neutrofilia acentuada no da Figura 13.3 (a) e neutropenia acentuada no da Figura 13.3 (b).

FIGURA 13.3 Leucogramas (fictícios) com linfopenia relativa (a) e linfocitose relativa (b), mas contagem de linfócitos igual em ambos.

Citoses e penias relativas nada significam; a baixa e a alta porcentagem de linfócitos, nos exemplos, são as contrapartidas óbvias da neutrofilia (a) e da neutropenia (b). A única

eventualidade em que o valor percentual tem sentido interpretativo é no número de neutrófilos bastonados, discutido no capítulo seguinte, em Desvio à esquerda. Note-se, ainda, que neutrófilos e linfócitos compartilham ampla parte do intervalo de referência apesar dos neutrófilos (em adultos) geralmente predominarem; é óbvio que a “inversão” do usual (predominarem os linfócitos) – se ambos estiverem dentro dos respectivos intervalos de referência – não tem qualquer significado interpretativo; as variações numéricas de neutrófilos e linfócitos são praticamente independentes.

14 NEUTROFILIA E NEUTROPENIA A série neutrófila, de mieloblasto a neutrófilos maduros, está ilustrada nas imagens Cella Vision da Figura 14.1.

FIGURA 14.1 Série neutrófila.

Os precursores dos neutrófilos, na medula óssea (Fig. 14.2 [a]), costumam ser divididos em um pool mitótico: blastos a mielócitos pré-mitóticos; como os mielócitos são os últimos da série a sofrer mitose, dividem-se em pré e pós-mitóticos. Essa evolução dura em torno de oito dias. Segue-se o pool pós-mitótico, subdividido em maturativo (mielócitos pós-mitóticos e metamielócitos) e de reserva (neutrófilos bastonados e segmentados), com vida intramedular de 3 a 7 dias. O conjunto de neutrófilos maduros compõe a reserva granulocítica medular, que se estima ser cerca de 14 vezes o número de neutrófilos circulantes em um dado momento. Na reserva medular, predominam os neutrófilos bastonados sobre os segmentados, na proporção de 3/2, o que sugere haver uma preferência hierárquica na liberação dos segmentados para o sangue, já que dominam a fórmula leucocitária periférica, 40 a 70%, contra 0 a 6% bastonados. Neutrófilos bastonados e segmentados são células de maturação e funções idênticas; em um momento dado, há ≅ 4,5 × 1010 neutrófilos no sangue periférico, com meia-vida radioisotópica de 6 horas, correspondente a um tempo médio no sangue de 11-12 horas. Distribuem-se em dois contingentes em contínua troca: uma metade circula livremente na corrente axial dos vasos – pool circulante –, a outra adere ao endotélio da

microcirculação – pool marginante – de onde pode voltar ao fluxo ou sair dos vasos por diapedese, sem retorno, e exercer suas funções defensivas nos tecidos e cavidades naturais (Fig. 14.2 [b]). A contagem de leucócitos só enumera os neutrófilos do pool circulante; o pool marginal não é contado – a contagem real de neutrófilos no sangue periférico seria o dobro da obtida e expressa no hemograma.

FIGURA 14.2 Cinética da série neutrófila na medula (a) e no sangue periférico (b).

NEUTROFILIA

Neutrofilia (ou neutrocitose) é o aumento do número absoluto de neutrófilos no sangue, considerados os seguintes valores de referência, tomados de diversas estatísticas: em populações brancas, médias entre 3.700 e 4.100/µL, e limites (± 2 DP) de 1.500 e 7.000/µL. Em populações negras, os números são 10 a 20% inferiores; a estatística de Beutler e West (ver Cap. 2), em afro-norte-americanos, mostrou média = 3.370/µL ( ) e 3.120/µL ( ) contra cerca de 4.000/µL (em brancos de ambos os sexos). Em casos pontuais, na clínica, sempre é mais racional considerar como base de comparação o normal do(a) paciente quando conhecido por hemogramas prévios. Descargas adrenérgicas mobilizam o pool marginal, causando uma neutrofilia de distribuição. A mobilização é rápida e fugaz (minutos) após um exercício breve, como uma corrida de 100 metros, e durável (1 a 4 horas) após um exercício prolongado. Com o

descanso, há progressiva marginação dos neutrófilos e volta ao equilíbrio anterior. O pânico e o choro da criança, ao coletar sangue, as convulsões, os choques elétricos, a taquicardia paroxística podem igualmente causar essa neutrofilia fugaz. Doses farmacológicas de corticoide causam neutrofilia por esse mecanismo, mas o uso continuado faz liberar a reserva granulocítica, estimula a proliferação e torna durável a neutrofilia. Os anestésicos voláteis, por outro lado, estimulam a marginação e causam neutropenia acentuada, o que deve ser lembrado ao se interpretar hemograma coletado em transoperatório. A interleuquina 1, os fatores estimulantes de colônias granulocíticas e monocíticas, oriundos de áreas inflamadas, infectadas, traumatizadas ou necróticas, e oligopeptídios bacterianos atraem os neutrófilos circulantes: marginam e fazem diapedese local (Fig. 14.3). Os mesmos estímulos, por via hemática, agem à distância: fazem inicialmente a reserva granulocítica medular mobilizar-se para o sangue; a seguir provocam encurtamento do estágio intermitótico e maturação acelerada dos precursores. Em 3 a 4 dias, há grande aumento da reposição à reserva granulocítica, que se expande proporcionalmente ao maior consumo. A perda periférica de neutrófilos para o foco inflamatório passa a ser compensada pelo maior aporte a partir da medula; fica estabelecido um novo equilíbrio, com maior entrada e maior saída. A neutrofilia é a expressão desse aumento de trânsito medula ⇒ tecidos.

FIGURA 14.3 Cinética da neutrofilia.

A neutrofilia derivada da mobilização da reserva caracteriza-se por aumento desproporcional dos neutrófilos bastonados em relação aos segmentados, já que os bastonados predominam na medula; é o desvio à esquerda, que merece um subtítulo próprio, a seguir, com considerações sobre tecnologia e interpretação. O número de neutrófilos do sangue depende também do tempo médio de permanência dos neutrófilos na circulação. Crê-se que a neutrofilia provocada pelos corticoides decorra em parte por diminuição da diapedese, com retenção de neutrófilos no sangue,

elevando-se a meia-vida para 8 a 10 horas; em contrapartida, nas diarreias com neutrófilos fecais, há enorme desvio à esquerda, mostrando que a reserva medular está se esvaziando para o sangue, mas os neutrófilos são rapidamente perdidos para a luz intestinal, não se acumulam em trânsito e não há neutrofilia. Desvio à esquerda O aumento do número de neutrófilos bastonados no hemograma, seja percentual ou absoluto, é tradicionalmente valorizado pelos médicos, na crença de que seja um indicador sensível e específico de infecção. Essa interpretação é equivocada. A própria validade estatística do desvio à esquerda é questionável. Considere-se a série de dados a seguir: 1. A definição do que é um neutrófilo (de núcleo) bastonado em oposição a um neutrófilo (de núcleo) segmentado não é universal. Alguns consideram segmentados apenas os núcleos com lóbulos distintos, ligados por filamentos de cromatina; outros, quando o núcleo estreita-se em um ponto a um terço do diâmetro dominante. O autor opta por essa última definição. Na Figura Cella Vision 14.4 (acima), que separa quase com perfeição bastonados de segmentados, todos os neutrófilos são definidamente bastonados. Já na Figura 14.5, no hemograma do mesmo paciente, a diferenciação de alguns neutrófilos suscita dúvidas; imagine-se a dificuldade de distinção à microscopia, com pressa e nem sempre com distensões da melhor qualidade!

FIGURA 14.4 Neutrófilos bastonados na tela de hemograma no Cella Vision (cortesia do Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre).

2. Levantamentos extensos da American Society of Clinical Pathology demonstraram que o desvio à esquerda foi sempre o parâmetro menos reprodutível e comparável das cifras do hemograma. 3. Não há acordo entre os valores de referência para o número de neutrófilos bastonados, talvez devido aos itens supracitados. Para alguns, seria < 5%, para outros, < 7% (dentre 100 leucócitos); em números absolutos, até 400 ou 600/µL. É óbvio que, tratando-se de uma célula de baixa porcentagem, o valor zero por cento é frequentemente encontrado em uma fórmula com exame de 100 elementos; querer interpretar zero por cento como diminuição real do número de neutrófilos bastonados, na presença de número significativo de neutrófilos segmentado, denominá-lo desvio à direita e tentar interpretá-lo é ridículo. Nos primeiros dias de vida, os limites de referência para neutrófilos bastonados são muito mais amplos: até 10 ou 15%, ou 1.500 a 3.000/µL.

FIGURA 14.5 Neutrófilos segmentados do mesmo hemograma da figura anterior (cortesia do Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre).

4. As fórmulas leucocitárias automatizadas mostraram a infidelidade numérica das fórmulas convencionais e trouxeram reprodutibilidade e exatidão na identificação e contagem dos leucócitos. Lamentavelmente, no caso particular da distinção neutrófilos bastonados × segmentados isso não aconteceu; ambos têm as mesmas características para os sensores usados. No caso particular dos contadores Coulter e Cell Dyn, havendo neutrofilia com desvio à esquerda, o scatterplot correspondente aos neutrófilos é mais disperso; as máquinas anotam bands e acertam 60 a 80% das vezes; note-se que, como são mais comuns neutrofilias com desvio do que sem desvio, esse acerto é favorecido pela estatística. Quando há desvio sem neutrofilia, as máquinas

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raramente anotam bands e, quando o fazem, erram muitas vezes. A incompetência das máquinas, associada à concordância universal no fornecimento dos resultados eletrônicos sem microscopia complementar (salvo nos casos selecionados pelos critérios descritos nas p. 46 a 52), relegou de vez o desvio à esquerda a um plano secundário/eventual na fórmula leucocitária. A neutrofilia (> 7.000/µL), na opinião do autor, deve ser um dos critérios para indicação de microscopia complementar; nesse caso, será notado desvio à esquerda, se houver. Sem neutrofilia e/ou outra alteração indicativa de microscopia, desvios não serão notados; entretanto muitos laboratórios, inclusive sérios, anotam uma observação obviamente descabida ao fim dos leucogramas: “bastonados serão incluídos quando > 5%”; como sabem quando são? Por outro lado, os laboratórios (ainda numerosos no Brasil) cuja tecnologia simples exige fórmula ao microscópio em todos os hemogramas, continuarão notando e fornecendo desvios à esquerda mesmo sem neutrofilia. Os médicos requisitantes devem estar conscientes da diferença, nesse caso particular, a favor da tecnologia menor. Os médicos norte-americanos e europeus, no caso de doença infecciosa, pedem especificamente CBC + diff (complete blood count + differential) para indicar que querem a microscopia além do resultado eletrônico; com isso, recebem a porcentagem de bastonados ou o comentário substituto simplificado low ou high bands; a fórmula ao microscópio em doenças febris da infância e juventude também é útil por fazer notar a presença de linfócitos atípicos para os quais as máquinas também têm baixa sensibilidade. Note-se que o desvio à esquerda é a única eventualidade em que o valor percentual pode ser usado como parâmetro na interpretação. O desvio à esquerda é a quebra da hierarquia da liberação dos neutrófilos da reserva granulocítica medular para o sangue, e a hierarquia é a mesma em todos os níveis de contagem. Assim, 80% de segmentados e 4% de bastonados em 20.000 leucócitos (bastonados = 800/µL) não representa desvio à esquerda, ao passo que 65% de segmentados e 10% de bastonados em 8.000 leucócitos (bastonados = 800/µL) representa. A persistência do chamamento aos neutrófilos, pela duração longa de um foco inflamatório, ocasiona proliferação acelerada do pool mitótico, maturação mais rápida no pós-mitótico e expansão da reserva granulocítica medular. Com novas dimensões, adaptadas a maior consumo periférico, a reserva poderá manter ou aumentar a neutrofilia com paradoxal diminuição do desvio à esquerda. Com superávit populacional, há volta à hierarquia. Em grandes desvios à esquerda, além de neutrófilos bastonados, surgem metamielócitos e mielócitos na circulação. Há uma tendência à simplificação à qual o autor é favorável: distribuir os metamielócitos de modo arbitrário entre os mielócitos e bastonados e suprimir essa etapa na fórmula leucocitária.

Quanto à interpretação clínica propriamente dita, a falta de correlação do desvio à esquerda com a presença ou gravidade de infecções é constante em todos os levantamentos. Diarreias corriqueiras causam enormes desvios à esquerda; a septicemia terminal por Gram-negativos frequentemente não causa. O autor é da opinião de que um

desvio à esquerda indiscutível (neutrófilos bastonados > 10%) confirma haver neutrofilia frente a uma contagem de neutrófilos entre 6.000 e 8.000/µL; sem esse dado ela seria duvidosa ou justificaria melhor avaliação de um(a) paciente com queixas inconsistentes. O autor não aceita como dado fidedigno a comparação do número de neutrófilos bastonados em hemogramas seriados, nem valoriza porcentagens abaixo de 10% em hemograma eventual. Anotar o desvio à esquerda (sem neutrofilia) no começo de doença febril, embora correto, pouco acrescenta ao esclarecimento, pois a febre, em si, já é um comprovante similar e inespecífico de doença. Causas de neutrofilia O consumo excessivo, por causas locais ou sistêmicas, intensifica o trânsito no sangue de neutrófilos: medula ⇒ focos de atração. A neutrofilia é a expressão hematológica dessa fundamental resposta defensiva do organismo. A neutrofilia reacional acompanha, também, numerosas eventualidades médicas em que não se evidenciam focos periféricos de consumo. Há neutrofilia na maioria nas doenças infecciosas; em algumas, há neutropenia. O leucograma nas doenças infecciosas é discutido em subtítulo próprio, ainda neste capítulo. A neutrofilia é constante nas doenças inflamatórias agudas e usual nas doenças inflamatórias crônicas, nas quais costuma ser proporcional aos sinais de atividade. Na febre reumática, há neutrofilia importante (leucócitos entre 13.000 e 20.000/µL, com 70 a 85% de neutrófilos) com desvio à esquerda. Fenômenos autoimunes no lúpus eritematoso sistêmico (LES) e hiperesplenismo na artrite reumatoide podem inverter o leucograma, causando neutropenia, às vezes severa. Os eosinófilos mantêm-se presentes, em oposição à eosinopenia de muitas doenças infecciosas agudas; pode haver até eosinofilia; rouleaux, eritrossedimentação acelerada e trombocitose são a regra. No LES, pode haver trombocitopenia autoimune. Neutrofilias similares são vistas nas doenças pleurais, nas doenças inflamatórias intestinais crônicas (Crohn, colite ulcerativa), na doença de Hodgkin e nas tromboflebites extensas; salvo nessa última, a anemia de doença crônica (ADC) está sempre presente. Na tireoidite aguda (Hashimoto), a neutrofilia é modesta ou ausente; o leucograma é inexpressivo, mas uma eritrossedimentação muito acelerada é constante e durável (várias semanas). As linfonodites infecciosas localizadas (geralmente cervicais) causam neutrofilia com desvio à esquerda e eritrossedimentação também muito acelerada; são de lenta resolução. No infarto do miocárdio, a neutrofilia e o desvio à esquerda mostram-se proporcionais às manifestações clínicas do evento; a aceleração da eritrossedimentação só surge após 48 horas, o aumento da proteína C-reativa é precoce. A dor anginoide sem lesão costuma causar neutrofilia sem desvio à esquerda; eosinopenia é a regra. Nas primeiras horas, pode haver linfocitose do estresse, sempre de curta duração. Infartos viscerais têm a mesma expressão no leucograma. As intoxicações endógenas, como acidose diabética, a anoxemia prolongada e o choque causam grande e persistente neutrofilia com desvio à esquerda; quando terminais,

dão origem à reação leucemoide agônica. As intoxicações exógenas e os envenenamentos por picadas de artrópodes ou ofídios causam neutrofilia proporcional à gravidade sistêmica ou à magnitude das manifestações locais. Todos os corticoides causam neutrofilia: inicialmente pela entrada rápida dos neutrófilos marginantes que, passando a circular, quase duplicam o número contado. Depois, por liberação da reserva granulocítica medular; nessa altura há desvio à esquerda. Se a dose for elevada pode haver reação leucemoide. Uma injeção intramuscular de corticoide de lenta absorção (de uso comum para dores musculares e reumáticas) pode causar neutrofilia por até mais de 10 dias. Tratamentos com lítio e com desmopressina causam neutrofilia. A neutrofilia após trauma severo é constante. É imediata no pós-operatório; pode durar até 2 a 3 semanas. No caso particular da esplenectomia, é considerável; acompanhase sempre de elevada trombocitose inicial e significativa trombocitose duradoura. Hemorragias, inclusive por doação de sangue, transfusões em pacientes graves e infusão de crioprecipitado causam neutrofilia passageira. As neoplasias (discutidas no Cap. 10) constituem um grupo tão heterogêneo de doenças e situações clínicas que podem mostrar qualquer tipo de hemograma, de neutropênico a leucemoide. As neoplasias da hematopoese são discutidas nos Capítulos 21 a 26. O consumo continuado de neutrófilos, como ocorre em empiemas, peritonites, necroses teciduais extensas por trauma ou queimaduras, causa neutrofilia com desvio à esquerda persistente, pela incapacidade de suficiente expansão da reserva granulocítica medular, apesar da hiperplasia máxima da granulocitopoese. A exaustão da reserva é rara, mas pode ocorrer, principalmente em idosos, pois a medula hematopoética diminui com a idade; esgota-se, também, em pacientes com reserva comprometida por radioterapia ou quimioterapia recentes. Leucogramas sequenciais são necessários para documentá-la; um exemplo é apresentado na discussão de abdômen agudo cirúrgico. NEUTROPENIA Neutropenia (ou neutrocitopenia) é a diminuição do número absoluto de neutrófilos. Deve ser sempre interpretada com cautela, considerando-se a contagem global de neutrófilos (bastonados + segmentados). Valores < 1.600/µL são quase sempre anormais em pacientes brancos, mas, em negros, apenas quando < 1.200/µL representam neutropenia indiscutível. Nunca levar em consideração uma neutropenia isolada (com eritrócitos e plaquetas normais) sem antes confirmá-la em hemogramas repetidos, com tecnologia automatizada confiável, sempre coletados no fim da manhã ou no meio da tarde. Neutrófilos persistentemente abaixo de 1.000/µL, como regra, representam problema hematológico; acima de 1.000/µL, geralmente não. Ao interpretar hemogramas em quimioterapia, neutropenias com contagens de neutrófilos entre 500 e 1.000/µL são ditas moderadas; com contagens < 500/µL, severas. Neutropenia acentuada costuma ser um dos sinais mais chamativos de duas hemopatias, discutidas em Neoplasias da hematopoese (Cap. 21): a leucemia de células

cabeludas (hairy cell leukemia) e a linfocitose/leucemia de linfócitos grandes e granulados. A neutropenia é um achado frequente no lúpus eritematoso sistêmico e na artrite reumatoide com esplenomegalia (síndrome de Felty). A neutropenia é parte integrante do quadro de hiperesplenismo (Cap. 11) e é comum nas hepatopatias crônicas. As neutropenias imunológicas pediátricas são discutidas no Capítulo 19. Neutropenias “menores” Sob essa denominação, Jean Bernard 1 publicou, em 1964, sua experiência relativa a pacientes mulheres com queixas de astenia persistente, neutropenia entre 1.000 e 2.000/ µL, mas sem outras alterações hematológicas, e correlacionou-as empiricamente com trabalho e preocupações excessivas (surmenage) ou instabilidade emocional e depressão. O autor recebe inúmeras pacientes similares trazendo intermináveis séries de hemogramas e acha justificável aceitar-se neutropenia e astenia como uma síndrome clínica; certamente não representa uma doença hematológica, e o tratamento faz-se tranquilizando as pacientes e os médicos que as encaminharam, evitando que persistam na repetição neurótica de exames desnecessários. O autor recebe, igualmente, grande número de pacientes apenas porque um hemograma, feito por motivo fortuito, mostrou contagem de leucócitos inferiores a 4.000/ µL. A repetição, com hemograma coletado nos horários apropriados, costuma ser suficiente para demonstrá-la não significativa. Em outros, a revisão de hemogramas anteriores, ou uma sequência de hemogramas prospectivos, com espaçamento de 2 a 3 meses, comprova tratar-se do normal do(a) paciente. A interpretação intempestiva por pessoal pouco qualificado, mas influente, de hemogramas feitos como rotina periódica em empregados de polos petroquímicos, nos quais há produção ou uso industrial de benzeno, deu origem a uma portaria, com virtual valor de lei trabalhista, que exige o afastamento do trabalho dos que têm contagem global de leucócitos inferior a 4.000/µL, com a hipótese (nunca comprovada) de tratar-se de efeito tóxico do solvente. Não houve considerações sobre a raça dos pacientes, sobre a hora da coleta, sobre o número absoluto de neutrófilos, sobre o erro sistemático de exames feitos com tecnologia inferior por pessoal de duvidosa competência, nem mesmo sobre a dosagem do benzeno na atmosfera do ambiente de trabalho. É difícil estimar o prejuízo astronômico que essa inacreditável interferência da legislação na biologia causou à nação e à fração bem intencionada de empregados e candidatos a emprego que se veem impedidos de trabalhar. Em populações de origem africana, há uma correlação de neutropenia significativa, entre 800 e 1.200/µL, que chega a intereferir nas estatísticas de referência populacionais, com polimorfismo na quimioquina do receptor do antígeno Duffy (DARC), responsável pelo fenótipo Duffy-negativo nos eritrócitos; essa seria uma verdadeira neutropenia étnica. O genótipo também foi descrito em populações do oriente médio e japoneses. A neutropenia crônica autoimune, por ser uma doença da primeira infância, está descrita no Capítulo 19.

Agranulocitose Assim se denomina uma neutropenia aguda e severa, mas passageira, com preservação das demais séries do hemograma. A síndrome pode surgir sem causa aparente (idiopática), mas geralmente é efeito colateral idiossincrático do uso de fármacos (iatrogênica). No caso particular das drogas antiblásticas, a neutropenia é parte da pancitopenia esperada e inevitável, e não se enquadra nesta definição. A agranulocitose clássica, descrita por Schultz em 1922, era ​decorrente da destruição periférica dos neutrófilos por mecanismo imunológico desencadeado pela amidopirina, antitérmico muito usado na época. Após algumas doses da droga, ou imediatamente no caso de reexposição, anticorpos destruíam totalmente os neutrófilos circulantes e os da reserva medular; havia febre elevada, ulcerações orofaríngeas e significativa mortalidade, mesmo já na época dos antibióticos. Descrições de raros casos similares correlacionados com a dipirona não têm sido confirmadas. Os casos atuais de agranulocitose decorrem de suscetibilidade idiossincrática da síntese do DNA pelas células da hematopoese a certas drogas, ou de polimorfismo nos sistemas HLA e do fator de necrose tumoral, favorecendo ativação de citoquinas próinflamatórias que causam inibição da neutropoese. Os fármacos antitireoideos (metimazol e propiltiouracil), as fenotiazinas (clorpromazina, flufenazina) e a clozapina, com certa dose-dependência, causam uma aplasia global súbita, sempre entre 10 e 90 dias do começo do uso da droga. À parada da droga segue-se rápida recuperação da hematopoese, de modo que não chega a haver anemia, e a trombocitopenia mantém-se assintomática. A neutropenia, entretanto, é grave, com febre e infecções, geralmente orofaríngeas. Com pronto tratamento antibiótico, complementado com filgrastim, a recuperação é rápida. A relativa frequência desse efeito colateral da clozapina gerou a exigência, já extinta, de acompanhamento hematológico dos pacientes em tratamento. A carbamazepina causa em 1 a 2% de usuários uma neutropenia severa duradoura, mas reversível com a parada do uso. Há descrições raras de neutropenia súbita e severa durante o uso continuado de agentes quelantes (penicilamina e deferiprona). Mais rara é a aplasia idiossincrática seletiva da granulocitopoese por fármacos, geralmente contendo núcleo benzênico na composição, como todas as sulfonamidas; independe de dose e ocorre 2 a 3 dias após o uso do fármaco; a medula mostra riqueza eritroide e megacariocítica e virtual ausência de células da granulocitopoese. A neutropenia é extrema, mas dura poucos dias e, por isso, é relativamente benigna. Neutropenias genéticas Há neutropenias crônicas dependentes de mutações no gene da elastase neutrófila, ELANE, em 19p13.3, que causam apoptose dos neutrófilos na medula óssea. Dois tipos constituemse em doenças bem caracterizadas: Neutropenia crônica benigna: é genética, autossômica dominante (o autor já a viu em três gerações de uma família). Há casos adquiridos, em tudo semelhantes, mas idiopáticos (ou imunológicos?) e sem correlação com ELANE. Há neutropenia persistente, com neutrófilos

entre 200 e 1.000/µL. A medula óssea mostra abundância de precursores mieloides, até neutrófilos bastonados, e extrema probreza de neutrófilos segmentados; em alguns pacientes, faltam igualmente os bastonados. Apesar da pobreza da reserva, há pequeno, mas suficiente, aumento dos neutrófilos no decurso de infecções, de modo que essas não ocorrem com frequência ou gravidade excepcionais. O leucograma é mais feio que suas conse​quências clínicas. Há rápida resposta neutrófila ao filgrastim, que deve ser acrescentado aos antibióticos no tratamento de infecções maiores. Neutropenia cíclica: é igualmente uma doença autossômica dominante, decorrente de mutação no mesmo lócus, embora haja número significativo de casos adquiridos, inclusive na experiência do autor. A patogênese é a mesma: o produto alterado causa intensificação da apoptose. A contagem de neutrófilos oscila entre 100 e 1.500/µL a cada 21 ± 5 dias. No período de neutropenia severa, que dura aproximadamente 6 dias, febre e ulcerações nas mucosas são comuns; eventualmente infecções graves, inclusive sepse. O filgrastim é eficaz para prevenir e/ou encurtar os dias de neutropenia e suas consequências. Além das neutropenias discutidas anteriormente, há uma série de síndromes genéticas raras, listadas na Tabela 14.1, em que neutropenia crônica é um dado predominante e/ou relevante no conjunto de alterações. Estão descritas, em ordem alfabética, com as demais citopenias genéticas, no Apêndice 3. TABELA 14.1 Síndromes genéticas* raras em que há neutropenia isolada ou com outra(s) citopenia(s) Agamaglobulinemia de Bruton (predomina a linfopenia) Anemia de Fanconi (discutida em Anemias aplásticas, Capítulo 8) Barth Chediak-Higashi (discutida em Alterações qualitativas dos neutrófilos, Capítulo 15) Cohen Disceratose congênita (discutida em Anemias aplásticas, Capítulo 8) Disgenesia reticular Dursun GATA1, síndromes associadas a Glicogênio, doença de armazenamento subtipo 1b Griscelli Hiper IgM Kostmann (ver Neutropenia congênita severa 3) Nanismo e hipoplasia de cartilagens e pelos Neutropenias congênitas severas 1 e 3 Shimke Shwachman-Diamond WHIM (Mielocatexe) *

Para descrição de cada Síndrome ver Apêndice 3.

NEUTROFILIA E NEUTROPENIA NAS DOENÇAS INFECCIOSAS O leucograma das doenças infecciosas varia com: ■ ■ ■ ■

a localização e a extensão do processo; a magnitude das manifestações sistêmicas; o agente etiológico; o grupo etário;

■ as condições imunológicas do paciente. Há neutrofilia em pneumonias, meningites, peritonites, artrites, infec​ções bacterianas dos tegumentos, na osteomielite, na septicemia e quando há coleções purulentas teciduais, intracavitárias ou serosas. Infecções por cocos Gram-positivos causam neutrofilia com maior constância, mas processos similares por Gram-negativos também costumam fazê-lo. Neutrofilia pode faltar quando doenças infecciosas acometem recém-nascidos, lactentes desnutridos, pacientes muito idosos, debilitados ou terminais, em alcoolistas após continuada ingestão etílica, em pacientes sem reserva granulocítica por radioterapia ou quimioterapia prévias e em pacientes com imunodeficiências genéticas ou adquiridas. Nas viroses costuma haver um período inicial de neutropenia com desvio à esquerda, com neutrófilos até abaixo de 1.000/µL, que dura 2 a 5 dias; na infância ocorre quase sempre. Geralmente se acompanha de trombocitopenia, mas moderada e assintomática. O hemograma das doenças infecciosas mais comuns é discutido a seguir. Abdômen agudo cirúrgico A neutrofilia pode ser precoce a ponto de anteceder os sinais clínicos, mas não é constante. Em levantamento retrospectivo feito pelo autor no Serviço de Cirurgia do Hospital Ernesto Dornelles (Porto Alegre), foram selecionados 22 casos sequenciais de apendicectomia com diagnóstico anatomopatológico de apendicite aguda supurativa com periviscerite (Laboratório Geyer). O hemograma, feito em contadores eletrônicos de pequeno porte, com fórmula “manual”, em 18 casos mostrou leucocitose (média: 16.400/ µL), todas a expensas de neutrofilia (média 79% = 12.956/µL), em 9 casos com desvio à esquerda (> 6% bastonados); nos restantes 4 casos, o hemograma foi absolutamente normal. É possível que a neutrofilia possa ser maior ou menor, dependendo do tempo decorrido do início dos sintomas, por diferença nas facilidades de acesso ao atendimento hospitalar. Há sempre eosinopenia, próxima a zero, mas esse dado só é confiá​vel em fórmulas automatizadas. Nas fórmulas “manuais”, além da inexatidão, costuma ser obscurecida por uma curiosa tendência notada pelo autor: após um exame de distensão sanguínea com eosinófilos zero em 100 elementos, o técnico costuma procurar eosinófilos e, acabando por ​encontrar um, coloca-o na fórmula como 1%. A linfocitopenia, inicialmente apenas relativa, pela alta porcentagem de neutrófilos, torna-se real (< 1.000/µL) nas horas subsequentes; os monócitos não se alteram nas primeiras horas, mas aumentam depois. Em pacientes com sintomatologia abdominal súbita, um leucograma mostrando desvio à esquerda com neutropenia é contrário ao diagnóstico de abdômen agudo cirúrgico; geralmente é prenúncio de diarreia com leucócitos fecais. Leucograma inexpressivo em paciente feminina com sinais sugestivos de apendicite exige exame de urina para excluir infecção urinária que pode mimetizar apendicite. A eritrossedimentação acelera-se tardiamente, nunca antes de 48 horas; é inútil pedi-la na emergência do hospital para pacientes, antes sadios, com sintomatologia abdominal aguda.

Já que um hemograma normal em paciente com dor abdominal, como visto acima, não exclui abdômen agudo cirúrgico, em paciente cujas condições gerais permitam mantê-lo em observação, hemogramas seriados constituem-se em bom método para confirmação diagnóstica. Isso só é possível dispondo-se da exatidão de fórmulas eletrônicas, em que variações, mesmo pequenas, são significativas. O procedimento não é recomendável com fórmulas “manuais” e muito menos devem ser valorizadas variações no desvio à esquerda. Os leucogramas da Figura 14.6 mostram evolução incompatível com um caso de abdômen agudo cirúrgico, o que foi confirmado pela melhora espontânea da dor no dia seguinte.

FIGURA 14.6 Dor abdominal súbita: leucograma inicial (a) e 6 horas depois (b).

A evolução, a partir de leucograma ainda pouco alterado, quando se trata realmente de apendicite, é a que se vê na Figura 14.7. O paciente coletou o primeiro hemograma em casa ao começarem os sintomas (Fig. 14.7 [a]); levado ao hospital, o hemograma foi repetido (Fig. 14.7 [b]). Note-se o considerável aumento da neutrofilia e do desvio à esquerda, monocitose incipiente e baixa dos linfócitos; mantém-se virtual ausência de eosinófilos.

FIGURA 14.7 Apendicite: leucograma pouco após o começo dos sintomas (a) e 8 horas após (b).

Cabe comentário aos laboratoristas quanto à tecnologia. Os hemogramas da Figura 14.7 foram feitos em contadores com fórmulas eletrônicas completas. Como as máquinas não distinguem neutrófilos segmentados de bastonados, a porcentagem destes foi obtida por microscopia complementar (por isso a casa decimal de bastonados é zero); a porcentagem de neutrófilos segmentados foi calculada deduzindo-se a porcentagem de bastonados da porcentagem global de neutrófilos, esta fornecida pela máquina (86,1% no hemograma da esquerda e 91,7% no da direita). Esta é a maneira correta: usar a fórmula “manual” apenas para obter a porcentagem de bastonados; para as demais células, manter e fornecer os números da fórmula eletrônica. Os hemogramas são idênticos na apendicite, na diverticulite, na colecistite e na pancreatite; prestam-se ao diagnóstico sindrômico, não ao diferencial. Na cólica renal, inicialmente há neutrofilia sem desvio à esquerda; persistindo, surge desvio. Em casos de apendicite sem atendimento cirúrgico apropriado, com perfuração e evolução para peritonite generalizada, o leucograma mostra neutrofilia crescente com enorme desvio à esquerda; do segundo para o terceiro dia surgem granulações tóxicas. Persistindo o processo, pode haver esgotamento da reserva granulocítica medular, com queda súbita da neutrofilia, piora clínica, choque séptico e óbito. Os leucogramas da Figura 14.8 são ilustrativos; o (b) já tem características agônicas, como trombocitopenia e presença de eritroblastos. Ambas as fórmulas foram feitas por microscopia; o contador emitiu flags de Immature granulocytes, e a microscopia mostrou o grande desvio à esquerda e os mielócitos, inviabilizando a fórmula eletrônica. A medula óssea, se examinada, mostraria riqueza em promielócitos e mielócitos, com muitas figuras de mitose e virtual ausência de neutrófilos maduros. Casos como esse atualmente são raros em hospitais metropolitanos.

FIGURA 14.8 Leucograma de peritonite (a) e, 24 horas após, já com esgotamento da reserva granulocítica medular (b).

Pneumonias O hemograma varia com as condições prévias do paciente; as principais pneumonias são discutidas a seguir, a partir do agente etiológico. ■ Pneumococo: neutrofilia e desvio à esquerda são acentuados e precoces; leucocitose acima de 20.000/µL é comum. Ao contrário das inflamações peritoneais agudas, a eosinopenia não é constante. Há granulações tóxicas, vacúolos citoplasmáticos e corpos de Döhle nos neutrófilos; pneumococos, às vezes, são vistos em fagossomos, principalmente em pacientes sem função esplênica. A eritrossedimentação acelera-se precocemente. O pneumococo não costuma ser o agente etiológico de pneumonias em pacientes neutropênicos e com aids, mas, muitas vezes, é o agente nos alcoolistas, nos idosos e nos debilitados, nos quais pode desencadear exaustão medular fatal. ■ Pneumonias de aspiração: há neutrofilia e desvio, salvo condição prévia de neutropenia. ■ Estafilococo: há neutrofilia considerável com grande desvio à esquerda e granulações tóxicas. A contagem de leucócitos pode ultrapassar 30.000/µL. ■ Haemophilus influenzae: o tipo lobar, usual na infância, causa neutrofilia e desvio, iguais à pneumocócica. Há anemia de doença crítica (baixa súbita da hemoglobina). Em idosos e alcoolistas, o H. influenzae causa broncopneumonia; o hemograma é variável, às vezes inexpressivo, dependendo das condições do paciente. ■ Outros bacilos Gram-negativos: a pneumonia é uma complicação, muitas vezes terminal, de pacientes caquéticos, imunossupressos e neutropênicos; o hemograma depende das condições clínicas e de tratamentos subjacentes. Quando se instala em pacientes neutropênicos, a mortalidade é considerável; o prognóstico varia com o prazo de recuperação dos neutrófilos; o filgrastim é sempre indicado. ■ Legionella: a leucocitose neutrófila raramente ultrapassa 12.000/µL, mas acompanhase de considerável e desproporcinal desvio à esquerda. A eritrossedimentação é muito acelerada. ■ Mycoplasma: neutrofilia moderada, nunca tão expressiva como nas pneumonias lobares; não há linfocitose, mas podem ser vistos alguns linfócitos atípicos. A crioaglutinação é característica. ■ Pneumocystis jirovecii: a pneumonia típica dos pacientes com aids causa neutrofilia superior a 15.000 leucócitos; o coquetel terapêutico não inibe a resposta. ■ SARS (severe acute respiratory syndrome): a infecção de pacientes hospitalizados por uma cepa particular de coronavírus, com contágio dos circundantes, causou pequenos surtos epidêmicos na China e no sul da Ásia em 2002, com significativa mortalidade (≅ 10%); alguns casos ocorreram no Canadá e nos Estados Unidos, em turistas oriundos das áreas citadas. O hemograma 2 mostrou leucopenia (< 4.000 µL) na primeira semana em todos os pacientes, com neutropenia e linfopenia. Na segunda semana, manteve-se a linfopenia (com baixa proporcional de linfócitos T CD+ e CD8+), mas surgiu neutrofilia (> 7.500 µL) em dois terços dos casos. Trombocitopenia assintomática, similar à das demais viroses, foi notada em 50% dos casos. Queda na hemoglobina da ordem de 2 g/dL foi interpretada como decorrente do

tratamento com ribavirina, mas poderia ser interpretada, também, como anemia de doença crítica. Meningites O hemograma não sugere a etiologia. Meningites causadas por meningococo, pneumococo, estafilococo, estreptococo e H. influenzae têm hemogramas iguais, com grande neutrofilia, desvio à esquerda e eosinopenia. Como a pneumonia, a meningite por H. influenzae causa anemia de doença crítica, seguida de semanas de ADC. As meningites por outros bacilos Gram-negativos e por Lysteria só são comuns em recém-nascidos e imunossupressos: a neutrofilia pode faltar. As meningites virais são linfocíticas no líquido cerebrospinal; no sangue, há neutrofilia proporcional à gravidade dos sinais clínicos; nos casos de rápida evolução para a cura, o hemograma pode ser normal, o que nunca acontece nas meningites bacterianas. Endocardites O hemograma depende mais da evolução clínica do que da etiologia. Na subaguda, que se apresenta como febre de origem obscura, há neutrofilia moderada, com ou sem desvio à esquerda; a monocitose, descrita na literatura como característica, está presente só na metade dos casos, mas pode ser significativa (monócitos até > 2.000/µL). Há sempre ADC e eritrossedimentação acelerada. Na endocardite aguda, há grande neutrofilia com desvio à esquerda. Artrites Artrites sépticas sempre causam neutrofilia; artrites serosas não. Todas as artrites aceleram a eritrossedimentação e aumentam precocemente a proteína C-reativa. Infecções faríngeas e amigdalianas O hemograma é uma solicitação sempre pertinente pela possibilidade de tratar-se de mononucleose (discutida em Linfocitoses, Cap. 16). Na difteria, atualmente rara, há importante neutrofilia (> 15.000 leucócitos/µL) com desvio à esquerda. Na angina estreptocócica, a neutrofilia é menor (leucócitos 10.000 a 15.000/µL); na escarlatina (angina com rash cutâneo), há neutrofilia, eosinofilia, e podem ser notados corpos de Döhle. Toxinfecções alimentares O hemograma depende da etiologia e das características clínicas do processo: Diarreia sem leucócitos fecais: nas diarreias secundárias a enterotoxinas ou a inflamação superficial sem invasão da mucosa, como nas infecções por colienterotóxicos, rotavírus,

vírus Norwalk e algumas cepas de Yersinia, o hemograma é inexpressivo. Diarreia com leucócitos fecais, com sangue (disenteria) ou sem sangue: na colite por germes invasivos, o leucograma caracteriza-se por enorme desvio à esquerda, explicado pela considerável perda de neutrófilos, com franca liberação da reserva medular e rápido trânsito pelo sangue. Nas shigeloses há neutrofilia; nas infecções por coli-invasivos, Campilobacter, Yersinia-invasivas e Salmonella, há neutropenia ou contagem normal. Os leucogramas causam espanto pela magnitude do desvio à esquerda, mas normalizam-se rapidamente, como no exemplo da Figura 14.9. Septicemia como parte da história natural da doença: nas febres tifoide e paratifoides há sempre neutropenia com desvio à esquerda, granulações tóxicas e eosinopenia. A patogênese da neutropenia não está esclarecida; não há perda relevante nas fezes, nem depressão aparente da granulocitopoese. Costuma haver ADC; em pacientes pediátricos, especialmente abaixo de 2 anos, as infecções paratifoides causam rápida anemia de doença crítica. Um hemograma com neutrofilia exclui o diagnóstico de febre tifoide, exceto se acompanhado de sinais clínicos de perfuração intestinal. Note-se que o leucograma é parecido com o da disenteria (neutropenia e desvio), salvo pelas granulações tóxicas, mas é claro que, no contexto clínico, as doenças não podem ser confundidas. Na adenite mesentérica por Yersinia, que simula a apendicite, há neutrofilia e desvio, mas a contagem de leucócitos não ultrapassa 12.000/µL, os eosinófilos persistem presentes e o quadro cede rapidamente.

FIGURA 14.9 Leucograma no segundo dia de disenteria (a) e 48 horas após (b).

Doenças próprias da infância A rubéola e a coqueluche têm hemogramas típicos, que serão discutidos com as alterações dos linfócitos. Na parotidite (caxumba) pode haver neutrofilia, linfocitose ou hemograma normal. O sarampo começa com neutropenia que se mantém até a descamação furfurácea. Na varicela há neutropenia inicial, substituída por neutrofilia proporcional à extensão do exantema pustular. No eritema infeccioso (parvovirose) o leucograma é inexpressivo; há

uma aplasia eritroide de curta duração, com baixa de hemoglobina da ordem de 1 a 2 g/dL, que geralmente não chega a ser notada. Febres passageiras, presumivelmente virais, geralmente acompanham-se de neutropenia e desvio à esquerda, às vezes acentuadas e desproporcionais à benignidade do quadro clínico. A hepatite A é discutida nas alterações dos linfócitos (Cap. 16). Em todas as doenças virais citadas, costuma haver breve trombocitopenia, raramente abaixo de 100.000/µL, sempre assintomática. O conjunto neutropenia + trombocitopenia dos primeiros dias das viroses da infância causam preocupação nos pediatras pela perspectiva de tratar-se de início de hemopatia maligna. Se enviados a hematologista, cabe a este evitar procedimentos intempestivos: repetir o hemograma após 4 a 5 dias antes de indicar exame da medula óssea. Viroses das vias respiratórias superiores O hemograma no resfriado comum, independentemente do vírus causal, mostra apenas leve desvio à esquerda, que, atualmente, nem é notado, por falta de exame microscópico nos casos sem alterações numéricas. A gripe (influenza) causa significativa neutropenia (neutrófilos até < 1.000/µL), com desvio à esquerda, durante 4 a 6 dias; depois costuma haver neutrofilia, com contagem global de leucócitos em torno de 10.000/µL; não há granulações tóxicas. A pneumonia primária da gripe, isto é, decorrente do próprio vírus, que causou trágica mortalidade na pandemia de 1918-19 (espanhola) e mortalidade significativa na de 1957-58 (asiática), acompanha-se de neutrofilia e desvio à esquerda iguais aos das pneumonias bacterianas. Dengue A reaparição epidêmica da doença em vários estados do Brasil, felizmente desacompanhada da febre amarela urbana que tem o mesmo vetor, foi descrita, na edição anterior deste manual, como “apresentando-se só com características de infecção em pacientes sem imunidade”. Nestes, o hemograma não é diferente da maioria das viroses: neutropenia e desvio à esquerda já no segundo dia de febre, durando 4 a 6 dias. Raros plasmócitos e linfócitos atípicos são, às vezes, notados no 5º e 6º dias. O flavivírus causa significativa inibição da hematopoese, com trombocitopenia, reticulocitopenia (que não chega a causar anemia) e medula hipocelular nas três séries durante 3 a 6 dias; no 4º dia de febre, a medula pode mostrar virtual ausência de células da granulocitopoese. Os pacientes mantêm por três meses a cinco anos uma taxa significativa de anticorpos antidengue; se forem reinfectados com o mesmo subtipo do vírus não terão a doença, mas se a reinfecção for com outro subtipo, a doença poderá manifestar-se como dengue hemorrágica. Lamentavelmente é o que acontece desde 2006: a dengue tornou-se uma endemia de alta incidência em quase todo o Brasil, com significativa mortalidade. No Rio Grande do Sul quase só ocorre no noroeste, sendo raríssima em Porto Alegre, daí a reduzida experiência do autor. A gravidade da reinfecção (dengue hemorrágica) não depende de diferença na patogenicidade entre os subtipos; decorre de resposta imunológica secundária

inapropriada. Os anticorpos são insuficientes para a inativação e favorecem a entrada do vírus nos monócitos que o difundem para os tecidos linfoides (onde causam linfocitólise), para a medula óssea e para todas as áreas onde houver macrófagos fixos. Os monócitos/macrófagos, portadores do vírus, são numerosos nas papilas dérmicas em material de biópsia de áreas hemorrágicas. A síndrome hemorrágica deve-se à capilarite generalizada, com extravasamento de plasma e eritrócitos; a trombocitopenia é apenas coadjuvante, mas serve como marcador. A síndrome de choque da dengue decorre da hipovolemia plasmática; o hematócrito eleva-se, em poucas horas, até 20% (não 20 pontos percen​tuais). Um hemograma isolado, lamentavelmente, não é seguro na previsão da síndrome, sendo necessários hemogramas sequenciais; é difícil, senão impossível, selecionar os casos em que deverão ser feitos. ​Alguns sinais de alerta, entretanto, podem ser obtidos do hemograma: (1) na dengue hemorrágica, o número de neutrófilos eleva-se no 5º dia de febre, podendo haver até neutrofilia e granulações tóxicas; (2) na mesma data, a contagem de linfócitos eleva-se e surgem linfócitos atípicos, imunócitos e plasmócitos em número significativo (5 a 10%), sugerindo resposta imunológica secundária; e (3) a trombocitopenia persiste além do 5º dia. ​Nenhum dos dados mencionados será notado e/ou valorizado em exames laboratoriais de rotina; a comunicação diária da equipe de infectologia com o médico hematologista do laboratório é indispensável. Febre chikungunya: 3 esse Alphavirus foi descrito em 1956, mas surtos epidêmicos na África e sudeste da Ásia só ocorreram a partir de 2006. Foi trazido para o Caribe e América do Sul; os vetores, mosquitos do gênero Aedes, são os mesmos da dengue. Casos importados foram descritos no Brasil a partir de 2014: inicialmente no Amapá, depois em Manaus; um conglomerado de casos autóctones descritos em Feira de Santana, Bahia, chegou a ser descrito como “surto epidêmico”. Como a população brasileira não tem imunidade ao chikungunya e o Aedes é comum nas zonas tropicais, é lícito supor que o vírus veio para ficar e a tendência é a difusão, como ocorreu com a dengue. A doença caracteriza-se por febre elevada que dura cerca de cinco dias, acompanhada de dores articulares severas e generalizadas. O hemograma mostra trombocitopenia, mais severa e precoce do que a usual nas viroses febris, e linfopenia; o autor não encontrou citação de presença de linfócitos atípicos. Não há neutrofilia nem neutropenia significativas, mas há desvio à esquerda, mostrando haver liberação da reserva neutrofílica medular e consumo periférico de neutrófilos. Não há tratamento, mas a cura é a regra; artralgias duradouras têm sido descritas como sequela da doença. A imunidade é perene, pois o vírus não tem subtipos como o da dengue. Febre hemorrágica ebola: 4 nessa trágica virose, atualmente epidêmica em países da costa oeste da África entre o equador e o paralelo 10° N e o contágio se faz por contato com fluidos corporais. O vírus dissemina-se rapidamente no organismo: os monócitos e fagócitos mononucleares teciduais são precocemente contaminados e dão suporte à replicação. O comprometimento progressivo dos linfócitos T (especialmente CD8+), por provável aumento da apoptose, seria indicativo de mau prognóstico; a imunidade humoral ao vírus é lenta, mas eventualmente ocorre nos sobreviventes. O hemograma mostra neutropenia severa e progressiva, com desvio à esquerda e trombocitopenia; não há

linfocitose, mas há linfócitos atípicos, com aspecto de imunócitos (ver Linfocitose com linfócitos atípicos, Cap. 16) e plasmócitos. A mortalidade é considerável, geralmente em choque hipovolêmico 2 a 3 semanas após o início dos sintomas. 1 Eminente hematologista francês da segunda metade do século XX. 2 Wong RSM, et al. Haematological manifestations in patients with severe acute respiratory syndrome: retrospective analysis. BMJ; 2003;326(7403):1358-62. A SARS não foi descrita no Brasil. 3 Dados da literatura; o autor não tem experiência com a febre chikungunya. 4 Dados da literatura; o autor não tem experiência com a febre hemorrágica ebola.

15 ALTERAÇÕES QUALITATIVAS DOS NEUTRÓFILOS A tecnologia eletrônica é falha na demonstração de alterações citoplasmáticas e nucleares dos neutrófilos e na identificação de células imaturas da linhagem mieloide. O flag ImmGrans/bands praticamente só aparece quando as células imaturas fazem parte de quadro de leucocitose. A microscopia é indispensável para notar as alterações discutidas neste capítulo; como só é feita em casos que não passam na triagem arbitrária, muitas vezes não são notadas; é o caso usual dos mielócitos no hemograma de gestantes quando não há leucocitose. ALTERAÇÕES REACIONAIS Granulações tóxicas: quando a granulocitopoese é continuadamente exigida, pela extensão e pela duração de um foco inflamatório, há encurtamento do estágio intermitótico e diminuição dos prazos de maturação das células precursoras; os neutrófilos chegam ao sangue periférico com persistência da granulação primária, própria dos promielócitos (Fig. 15.1 [b]), que deveria ter sido substituída no processo pela granulação secundária específica (Fig. 15.1 [a]). Ao contrário dos grânulos secundários, delicados, puntiformes, de coloração lilás, os grânulos primários são grandes, ricos em enzimas e coram-se em roxo-escuro com os corantes básicos. Quando estão presentes nos neutrófilos, diz-se haver

granulações tóxicas. É claro que o termo é impróprio; originou-se de uma época em que a elas se atribuía um injustificado sinal de doença séria e mau prognóstico. É verdade que exprimem duração e magnitude de um processo inflamatório, mas exprimem igualmente o chamamento continuado à reserva granulocítica por situações inócuas, como o tratamento com corticoides, ou mesmo fisiológicas, como a gravidez. O tratamento com filgrastim ou similares causa a aparição de granulações tóxicas abundantes e grosseiras.

FIGURA 15.1 Em (a): maturação normal (em dias) = granulação secundária, tênue. Em (b): maturação acelerada (em horas) com persistência das granulações primárias (= tóxicas).

Vacuolização citoplasmática: vacúolos nos neutrófilos ocorrem pela exocitose de material fagocitado e do conteúdo de conglomerados de lisossomos. São frequentes em infecções; os neutrófilos vacuolizados podem mostrar-se degranulados. A conservação in vitro do sangue com EDTA causa vacuolização, principalmente nos monócitos, mas também nos neutrófilos, daí a imprudência de valorizá-la como sinal de infecção (Fig. 15.2).

FIGURA 15.2 Neutrófilos com vacuolização citoplasmática.

Corpos de Döhle: são áreas, na periferia dos neutrófilos, vistas como manchas lilases nas quais houve liquefação do retículo endoplásmático. São difíceis de serem notadas; são mais nítidas em lâminas de sangue sem EDTA. Corpos de Döhle são vistos nos estados inflamatórios e infecciosos, particularmente notáveis na pneumonia pneumocócica, na erisipela e após queimaduras. Às vezes, são notados na gravidez. São numerosos no tratamento com filgrastim e similares. Hipersegmentação nuclear: no sangue normal, predominam os neutrófilos com 2 a 4 lóbulos nucleares. A presença de > 5% de neutrófilos com cinco ou mais lóbulos, como os da Figura 15.3, alguns deles com aspecto botrioide (lóbulos em cachos), ditos neutrófilos hipersegmentados ou pleocariócitos, era denominada desvio à direita. Na primeira metade do século passado, foi modismo passageiro a tediosa contagem dos lóbulos para expressá-la em índices (de Arneth, de Vélez) supostamente correlacionados com a evolução de doenças infecciosas, principalmente a tuberculose. O próprio termo desvio à direita está em desuso. A presença de neutrófilos hipersegmentados é notada em:

FIGURA 15.3 Neutrófilos hipersegmentados e botrioides.

1. Defeito genético autossômico dominante, raro, sem significação patológica. 2. Insuficiência renal crônica; desconhece-se a patogênese do achado, mas é comum e sem consequências clínicas. 3. Anemia ferropênica; é um achado inconstante e não chamativo. 4. Neutrofilias de longa duração. 5. Tratamento com corticoides. 6. Hematopoese megaloblástica – os neutrófilos são de grande talhe e a segmentação tem aspecto bizarro. 7. Síndromes mielodisplásicas e mieloproliferativas. 8. Tratamento com hidroxicarbamida.

No sangue normal, podem ser vistos, raramente, neutrófilos grandes com dois conjuntos de lóbulos nucleares, facilmente identificados como tetraploides. São denominados macropolícitos. O tratamento com antiblásticos aumenta consideravelmente seu número. Neutrófilos com hipersegmentação nuclear bizarra, com aspecto de cacho de uvas, neutrófilos botrioides (lóbulos formando cachos), costumam ser notados após queimaduras extensas ou intermações graves. Excesso de drumsticks: o cromossomo X inativo das mulheres está normalmente representado em 1 a 3% dos neutrófilos como uma projeção densa de cromatina em forma de gota ou extremidade de baqueta de tambor (drumstick). Esse apêndice nuclear não é visto em sangues masculinos; é identificação segura do sexo da paciente à microscopia. Em pacientes femininas com hipersegmentação nuclear pelas causas 6 a 8 ​supracitadas, há um excesso, às vezes chamativo, de neutrófilos com ​drumstick. Presença reacional de células mieloides imaturas: afora as doenças próprias da medula óssea discutidas em capítulos próprios, células jovens como as da Figura 15.4, promielócitos (raros), mielócitos e metamielócitos, são vistas no hemograma como extensão do desvio à esquerda quando acentuado.

FIGURA 15.4 Células mieloides imaturas no sangue: promielócito, mielócitos e metamielócitos.

Nas neutrofilias da gravidez e do uso de corticoides, os mielócitos costumam estar presentes (1 a 5% na fórmula), mesmo sem haver um desvio escalonado; doses altas de corticoide (prednisona > 1,5 mg/kg) causam neutrofilia com contagens que podem ultrapassar 25.000 leucócitos/µL e constante mielocitose. 1 Em pacientes graves, com anoxemia, são comuns neutrofilias consideráveis, com mielocitose e eritroblastemia. Nos pacientes agônicos, o quadro acompanha-se de trombocitopenia e evolui nas horas finais para neutropenia, com granulações tóxicas e vacuolização citoplasmática, sugestiva de exaustão da reserva medular. Tumores disseminados na medula óssea causam hemogramas igualmente alterados, até com presença de blastos; o mesmo ocorre com o uso de filgrastim ou lenograstim (ver Figs. 10.3 [a] e 10.6 [b]). São ditas reações leucoeritroblásticas ou leucemoides por suscitarem a suspeita de leucemia mieloide, neoplasia mieloproliferativa (esse aspecto é constante na mielofibrose) ou síndrome mielodisplásica. A situação clínica e a evolução costumam ser suficientes para o diagnóstico diferencial; nos raros casos duvidosos, a

coloração da fosfatase alcalina nos neutrófilos, a citogenética e o exame da medula óssea podem ser necessários. Inclusões fagocíticas: microrganismos fagocitados às vezes são vistos no citoplasma de neutrófilos no decurso de infecções graves. Os mais comuns são: pneumococos (Fig. 15.5 [a]), outros cocos Gram-positivos, meningococos, Candida (Fig. 15.5 [b]), Ehrlichia (nas zonas endêmicas). A contaminação do sangue in vitro deve ser considerada quando são vistos microrganismos em material conservado, mesmo por poucas horas.

FIGURA 15.5 Fagocitose: Pneumococcus pneumoniae (a); Candida (b); células LE (foto de caso do autor e aquarelas) (c).

Inclusões fagocíticas raras: eritrócitos (anemias hemolíticas autoimunes, transfusões incompatíveis), plaquetas (púrpura trombocitopênica autoimune), glóbulos de crioglobulina, melanina (no melanoma disseminado), pigmento malárico. Células LE: são neutrófilos (ou monócitos) fagocitando restos nucleares de outras células (geralmente linfócitos), lisados por anticorpos antinucleares no lúpus eritematoso sistêmico (LES). É muito raro vê-las no sangue anticoagulado do hemograma: formam-se in vitro, mas no sangue coagulado e estocado por algumas horas. São pesquisadas em concentrados de leucócitos obtidos por trituração do coágulo (Fig. 15.5 [c]). Foram consideradas patognomônicas e indispensáveis ao diagnóstico do LES; como a pesquisa é artesanal, laboriosa e exige manipulação do sangue com risco de contágio de vírus, tornou-se incompatível com um mundo automatizado e foi retirada dos critérios de diagnóstico do LES e do portfólio de exames dos laboratórios. Na opinião do autor, não há teste que a substitua como confirmação diagnóstica e critério de atividade do LES. DEFEITOS GENÉTICOS NOTADOS À MICROSCOPIA

Anomalia de Pelger-Huët: é um defeito genético, autossômico dominante da segmentação dos neutrófilos, com presença apenas de bastonados e bissegmentados. Não tem significação patológica. Há enorme e constante desvio à esquerda, que é normal no caso particular do portador da anomalia. Se o laboratorista fizer uma fórmula ao microscópio (“manual”) e não notar a falta de neutrófilos com três ou mais lóbulos nucleares, não identificando a anomalia – o que é comum, pois a maioria nem sabe de sua existência –, o falso desvio à esquerda será interpretado como clinicamente significativo. A anomalia heterozigótica não é rara: um caso para 4 mil a 5 mil pessoas; nos raríssimos homozigotos, o hemograma mostra neutrófilos maduros com núcleo redondo, parecido com o do mielócito; a homozigose também não tem expressão clínica. A anomalia de Pelger-Huët, embora facilmente identificada à microscopia, não é notada pelos contadores eletrônicos Coulter, Cell Dyn e Sysmex (experiência do autor). Só aparecerá no resultado dos hemogramas se a triagem arbitrária exigir microscopia (por anemia, leucocitose, etc.) ou se houver pedido específico de pesquisa da anomalia (por parentesco com portador conhecido). O autor, apesar de ter visto centenas de casos (o primeiro, inclusive, publicado no Rio Grande do Sul em 1955, microfotografia anterior, à esquerda), não conseguiu imagens Cella Vision para ilustração. A anomalia está fadada ao esquecimento. Nas síndromes mielodisplásicas (frequentemente) e mieloproliferativas (raramente), pode haver um defeito da segmentação dos neutrófilos que lembra a anomalia genética, inclusive com formas homozigóticas; os neutrófilos acometidos são ditos “pelgeroides” (pelger-like). Ver ilustrações em síndromes mielodisplásicas, no Capítulo 25. Síndrome de Chediak-Higashi: é um grave defeito genético recessivo, incomum, mas várias vezes diagnosticado pelo autor. O gene variante está em 1q42-45 e codifica uma proteína anômala. Há neutropenia e deficiência funcional dos neutrófilos, pancitopenia progressiva, deficiência imunológica, albinismo oculocutâneo, alterações neurológicas e morte prematura. O hemograma mostra leucócitos com granulações gigantes coradas em roxo ou pardo-escuro (Fig. 15.6 [a]), decorrentes da coalescência de lisossomos.

FIGURA 15.6 Síndrome de Chediak-Higashi: (a) cortesia do Dr. Cláudio Lima Souza; (b) cortesia da Dra. Barbara Bain.

Anomalia de Alder-Reilly: pode ser um defeito recessivo raro da granulação dos neutrófilos, sem significação patológica, ou fazer parte do quadro das doenças de TaySachs, Batten-Spielmeyer-Vogt, ou das mucopolissacaridoses (síndrome de Hurler e similares). Há uma granulação roxo-escura nos neutrófilos, semelhante às granulações tóxicas, mas mais abundante e grosseira a ponto de esconder o núcleo (ilustração de caso do autor); pode estar presente, também, em eosinófilos e monócitos.

Síndrome de Brandalise: 2 neste defeito, também raríssimo, há grandes inclusões de actina músculo-específica no citoplasma dos granulócitos maduros e nos precursores. Anomalia de May-Hegglin: é um raro defeito dominante. Os neutrófilos mostram estruturas semelhantes a corpos de Döhle; há plaquetas gigantes e trombocitopenia (a ilustração é cortesia da Dra. Barbara Bain). Atualmente se sabe decorrer de mutação em MYH9 e fazer parte de um conjunto de síndromes genéticas (ver Apêndice 3). Salvo certa suscetibilidade a hemorragias, os portadores são assintomáticos. Anomalia de Jordan: é um raríssimo defeito recessivo devido à deficiência genética de carnitina. Os neutrófilos e precursores têm gotas de lipídio no citoplasma, que se dissolvem e deixam vacúolos. DEFEITOS GENÉTICOS SEM ALTERAÇÃO MORFOLÓGICA Deficiência de mieloperoxidase: é um defeito genético dominante, cuja prevalência de 1/2.000 na população foi notada com a introdução dos contadores eletrônicos Technicon (agora Advia/Siemens), que identificam os neutrófilos pela coloração da mieloperoxidase. Hemogramas feitos em outras máquinas não evidenciam o defeito. A lentidão no extermínio das bactérias pelos neutrófilos deficientes não se acompanha de suscetibilidade a infecções bacterianas. A mieloperoxidase, entretanto, é fundamental para

o extermínio de certas cepas de Candida e Aspergyllus; muitos pacientes sofrem de micose disseminada. Doença granulomatosa crônica: nesse defeito recessivo ligado ao sexo (os pacientes são hemizigotos masculinos), os neutrófilos são incapazes de exterminar germes produtores de catalase. Há infecções graves, repetidas, e alta mortalidade na infância. O hemograma não é esclarecedor; há neutrofilia reacional às infecções. O diagnóstico era feito pelo teste do nitro-blue-tetrazolium; foi substituído recentemente pela citometria em fluxo, com marcação dos neutrófilos por di-hidrorrodamina que fluoresce quando oxidada. Variantes genéticas mais benignas que a doença granulomatosa clássica foram recentemente descritas; em alguns casos, o defeito foi notado só na idade adulta. ATIVAÇÃO E EXAGERO FUNCIONAL DOS NEUTRÓFILOS A ativação dos neutrófilos por estímulos externos transforma-os em potentes defensores biológicos, capazes de quimiotaxia e fagocitose. Uma evidência laboratorial do estado de ativação poderia ter significado clínico, correlacionando-se com uma resposta inflamatória sistêmica ou com infecção bacteriana. O teste do nitro-blue-tetrazolium não se mostrou adequado para evidenciá-la e foi abandonado. A medida nos neutrófilos, por citometria em fluxo, da expressão do CD64 (receptor Fc de alta afinidade), está sendo usada para esse fim, com algum sucesso inicial. A ativação persistente, por outro lado, pode causar dano tecidual pela liberação de agentes ativos e indução de citoquinas. É possível que faça parte da patogênese das seguintes situações clínicas: dano miocárdico pós-perfusão, febre do Mediterrâneo, síndromes de Behçet e de Sweet. Anti-inflamatórios e drogas que interfiram na função dos neutrófilos (colchicina, corticoides) podem ser úteis para evitá-las ou tratá-las. 1 O termo mielocitose é um neologismo lógico criado pelo autor. 2 A ilustração é cortesia da Prof. Sílvia Brandalise, autora brasileira da descrição original.

16 LINFOCITOSE E LINFOCITOPENIA

Os linfócitos pequenos, que predominam no sangue, são células de cromatina densa que oculta os nucléolos e escasso citoplasma hialino. Os linfócitos grandes têm mais citoplasma, e o núcleo pode ter pequena chanfradura; em distensões de má qualidade podem confundir-se com monócitos à microscopia. Desconhece-se utilidade clínica na distinção entre linfócitos pequenos e grandes, e não há correlação com as características imunológicas e funcionais. A citometria em fluxo permite fácil distinção entre linfócitos T, caracterizados pela positividade para CD3 (um complexo de cinco proteínas associadas ao receptor de células T) e para CD2, fundamentais para a imunidade celular/tecidual, e linfócitos B, com positividade para

CD19 e CD20, responsáveis pela imunidade humoral (síntese de imunoglobulinas). Normalmente no sangue há 70 a 90% de linfócitos T, e 5 a 20% de linfócitos B. Dentre os linfócitos T há dois terços de CD4+, ditos auxiliares ou indutores (helper/inducer), e um terço de CD8+, ditos supressores ou citotóxicos (suppressor/cytotoxic).

Há uma coorte de linfócitos grandes (≅ 16%) cujo amplo citoplasma contém grânulos azurófilos conspícuos, mas não numerosos. São designados pela morfologia: linfócitos grandes e granulados (LGGs) Trata-se de uma população heterogênea: ≅ 80% têm função citolítica, não têm marcadores T nem B, guardam certas propriedades e funções comuns com os macrófagos, e são ditos células ou linfócitos NK (natural killer); os demais LGGs, morfologicamente iguais, são linfócitos T CD8+. Os LGGs nunca são linfócitos B. Os linfócitos vivem longamente (meses), circulam no sangue e na linfa, e localizam-se por prazo variável nos órgãos linfoides, onde podem ativar-se e proliferar em resposta a estímulos imunológicos. Linfócitos ativados têm cromatina frouxa, nucléolos perceptíveis e citoplasma amplo e basófilo; quando vistos no sangue, são ditos linfócitos atípicos ou virócitos (historicamente, células de Downey, o primeiro a descrevê-los); nos contadores eletrônicos, são designados variant lymphocytes. Linfócitos ativados muito grandes e muito basófilos, com núcleo jovem, são ditos imunócitos (historicamente, células de Turk); quando têm nucléolos chamativos, imunoblastos. Da proliferação terminal de linfócitos B originam-se os plasmócitos, células de núcleo denso e excêntrico e citoplasma muito basófilo, com um halo claro justanuclear correspondente ao centríolo, especializadas na síntese de imunoglobulinas; são vistos eventualmente no sangue normal, principalmente em crianças. Linfócitos ativados de todos os aspectos descritos e plasmócitos surgem no sangue em respostas imunológicas, principalmente a viroses. LINFOCITOSE Linfocitose é o aumento do número absoluto de linfócitos no sangue. Nos dois primeiros anos de vida, a variabilidade do número de linfócitos é tal que o arbítrio de valores de referência é impossível; contagens de linfócitos entre 10.000 e 18.000/µL são frequentemente encontradas, sem significação. Nesse grupo etário sempre são vistos alguns/vários linfócitos de aspecto mais jovem, às vezes com nucléolo aparente; a distinção de linfoblastos exige microscopia por pessoal de alta qualificação técnica. Entre 3 e 8 anos de idade, parece razoável um limite de referência superior em

torno de 8.000/µL. Dessa idade em diante os linfócitos diminuem até os 15 a 16 anos, quando se estabelecem os limites de referência próprios do adulto: 1.000 a 4.000/µL (geralmente 20 a 40% na fórmula leucocitária percentual). Há um número significativo de pessoas, principalmente mulheres jovens, que mantém por mais tempo um normal alto de linfócitos, o que faz a fórmula mostrar equivalência percentual entre linfócitos e neutrófilos. Equivalência similar é comum em pessoas negras pelo normal baixo de neutrófilos, próprio da raça. Nunca interpretar como linfocitose uma porcentagem alta de linfócitos, inclusive ultrapassando a de neutrófilos, sem atentar para o número absoluto; muitas vezes é apenas a expressão recíproca de uma neutropenia. A adrenalina causa linfocitose significativa, mas fugaz. Crê-se que a descarga adrenérgica seja responsável pela linfocitose passageira, mais tarde seguida de linfopenia, dos pacientes em emergências cardiológicas e traumáticas; também da linfocitose notada em estados convulsivos. A esplenectomia causa uma linfocitose duradoura que pode ultrapassar 8.000 linfócitos/µL, geralmente com aumento de LGGs. Pode haver linfocitose nas convalescenças. Há uma rara linfocitose B policlonal com alguns linfócitos binucleados no hemograma, mais frequente em mulheres (≅ 90%), quase todas fumantes, algumas com leve esplenomegalia e sem evolução maligna; tem sido correlacionada a +i(3q) e condensação cromossômica prematura, evidenciadas por biologia molecular. Há linfocitose reacional em numerosas infecções virais, raras bacterianas e protozoóticas, e em respostas imunológicas, todas discutidas adiante neste capítulo. E há linfocitose clonal nas neoplasias da linfopoese, discutidas nos Capítulos 21, 25 e 26. O termo síndromes linfoproliferativas era usado para designar ambas, indistintamente. Dada essa ambiguidade de sentido, recomenda-se evitá-lo ou usá-lo sempre seguido do adjetivo respectivo apropriado. LINFOCITOPENIA (LINFOPENIA) Linfocitopenia ou linfopenia é a diminuição do número de linfócitos a < 1.000/µL (em adultos), ou a diminuição significativa em relação ao número prévio, por hipótese conhecido e estável, em um(a) paciente em particular. Nunca interpretar como linfopenia a baixa percentual dos linfócitos quando há leucocitose a expensas de outro tipo celular: é uma linfopenia apenas relativa. Atentar sempre para os valores da fórmula absoluta. Linfopenia é uma resposta passageira à ativação do eixo hipófise/suprarrenal, daí a razão de ocorrer no estresse de qualquer origem, junto com eosinopenia; pode ser precedida de uma linfocitose fugaz (horas) de origem adrenérgica. Há linfopenia 3 a 4 semanas após a vacinação para a gripe (influenza). A injeção de endotoxina em voluntários comprovadamente causa linfopenia por promover apoptose de linfócitos ativados. A linfopenia é acompanhante da neutrofilia das doenças inflamatórias/infecciosas graves; nas agudas (abdômen agudo, pneumonia), nota-se após 48 horas de evolução. Linfopenia em casos de sepse parece correlacionar-se negativamente com o prognóstico.

Linfopenias duráveis, de significação clínica, são descritas nas eventualidades a seguir: 1. Após radioterapia: a linfopenia é constante e duradoura (anos), proporcional à extensão do tecido linfoide irradiado, inclusive a medula óssea. A quimioterapia causa linfopenia similar, mas há elevação progressiva dos linfócitos após seis meses a um ano do tratamento. 2. No tratamento com drogas imunossupressoras: globulina antilinfocítica, corticoides em dose alta. 3. Na doença de Hodgkin: a linfopenia caracteriza a doença avançada. É constante na histologia de depleção linfocítica. O tratamento também causa linfopenia duradoura. 4. No lúpus eritematoso sistêmico: é um achado tardio, mas importante. Quando se acompanha de neutropenia, prenuncia evolução difícil e má resposta ao tratamento. 5. Na aids: há um decréscimo progressivo dos linfócitos T CD4+ por ação citopática do HIV (Cap. 10). Há uma raríssima linfopenia T CD4+ idiopática (independente de infecção HIV), como a aids, também complicada com infecções oportunistas. Na hepatite C, linfopenia acompanha a neutropenia. 6. Em idosos: linfopenia progressiva, notada em comparação com hemogramas anteriores, prenunciaria uma perspectiva de mortalidade, em três anos, superior à prevista para grupo-controle estratificado; não haveria diferença da causa mortis entre os linfopênicos e os controles. O autor a viu algumas vezes, mas não dispõe de registros estatísticos válidos. Linfopenia não progressiva, com linfócitos entre 600 e 1.000/µL, que resiste à pesquisa de causa, não é um achado raro. 7. Há uma série de síndromes genéticas raras, listadas na Tabela 16.1, em que uma linfopenia global ou seletiva a uma das populações, com ou sem defeitos funcionais, é dado predominante e/ou relevante no conjunto de alterações. Estão listadas na Tabela 16.1 e são descritas de modo sumário, em ordem alfabética, no Apêndice 3 (“Síndromes Genéticas de Insuficiência Hematopoética com Citopenias”). TABELA 16.1 Síndromes* genéticas raras com linfocitopenia (global ou seletiva) isolada ou com outra(s) citopenia(s) Agamaglobulinemia ligada ao sexo (Bruton) Ataxia-telangiectasia Deficiência de antígenos HLA Classes I e II DiGeorge Disgênese reticular Imunodeficiência combinada severa Nanismo e hipoplasia de cartilagens e pelos Shimke *

Para descrição de cada síndrome ver Apêndice 3.

LINFOCITOSES INFECCIOSAS Linfocitoses reacionais a infecções são comuns na infância. Para diferenciá-las do normal alto de algumas crianças, há necessidade de conhecer-se o hemograma prévio ou de repetições periódicas.

Linfocitose sem atipias A mais constante linfocitose sem atipias da infância é a da coqueluche; contagens de leucócitos entre 12.000 e 25.000/µL, com mais de 85% de linfócitos, são usuais. O hemograma é útil para o diagnóstico, dada a dificuldade de confirmação bacteriológica da doença, agora mais rara com a vacinação. A proporção entre os subtipos B e T de linfócitos mantém-se; crê-se que a linfocitose deva-se à retenção de linfócitos no sangue por interferência da toxina pertússis na passagem ao sistema linfático. Há uma rara linfocitose infecciosa aguda (síndrome de Carl Smith), de etiologia viral (coxsackie B2, outros enterovírus), com evolução longa (3 a 8 semanas), mas muito benigna, às vezes assintomática, com linfócitos sem atipias e contagens tão altas como 40.000 a 80.000 linfócitos/µL. O autor viu-a várias vezes no consultório e no laboratório. Linfocitose sem atipias, em adultos, exige confirmação. Quando oriunda de tecnologia eletrônica, confira-se a identificação, passe-se novamente o sangue em máquina alternativa, se houver, e examine-se nova lâmina; quando obtida por fórmula convencional, deve ser refeita a fórmula em nova lâmina, contando-se 200 leucócitos. Em ambos os casos, preste-se especial atenção a atipias, pois podem ter passado despercebidas no primeiro exame. Confirmada a linfocitose, se < 6.000 linfócitos/µL e idade < 40 anos, na maioria das vezes, ainda assim, é uma virose; o hemograma normaliza-se em algumas semanas. Lembrar sempre a linfocitose pós-esplenectomia. Em pacientes > 40 anos, linfocitose sem atipias geralmente é leucemia linfocítica crônica (LLC); comprovar com imunofenotipagem. Após os 55 anos, praticamente sempre é LLC ou outra síndrome linfoproliferativa clonal. A sífilis pode causar linfocitose, com ou sem plasmocitose; excluí-la com os exames apropriados. Na fase aguda da doença de Chagas, há moderada linfocitose passageira. Linfocitose com linfócitos atípicos É costume incluir os linfócitos atípicos (virócitos) no número total de linfócitos no hemograma e referir a presença como uma observação final, seguida de semiquantificação em cruzes, ou adjetivação de raros a numerosos. Expressá-los em porcentagem é tão inútil quanto inviável, pois entre o linfócito atípico e o normal há toda uma gama de formas intermediárias. Caracterizam-se por citoplasma amplo, que se indenta em torno dos eritrócitos circunjacentes, e núcleo jovem (Fig. 16.1).

FIGURA 16.1 Linfócitos atípicos em casos de mononucleose infecciosa.

Os contadores eletrônicos notam os variant lymphs na maioria das vezes quando há linfocitose, mas quase nunca quando não há linfocitose. Linfócitos atípicos, em hemograma quantitativamente normal, não são mais notados, pois não se faz microscopia. O laboratório modesto, com fórmula ao microscópio por falta de tecnologia atual, pode estar certo ao notá-los, em oposição ao laboratório de alta tecnologia, que não os notou. Plasmócitos, quando notados ao fazer-se fórmula ao microscópio, devem ser incluídos na fórmula percentual; sempre ampliar a observação até 200 elementos para maior exatidão. A Tabela 16.2 resume a etiologia variada das linfocitoses com atipias, com virócitos e plasmócitos semiquantificados de 0 a 4+. TABELA 16.2 Linfocitose com virócitos (linfócitos atípicos) e plasmócitos Linfocitose

Virócitos

Plasmócitos

Mononucleose infecciosa (EBV)

++++

++++

+

Citomegalovirose

+ a ++

++ (LGG+)

+

Toxoplasmose aguda

+

+

±

Hepatite A

0

±

++

Rubéola

0

±

+++

Viroses eruptivas

0

+

+

++

±

+

+

Infecção HIV (ao contágio) Dengue hemorrágica (5º dia)

0

EBV, vírus de Epstein-Barr. LGG, linfócitos grandes e granulados.

Mononucleose infecciosa: na infecção pelo vírus de Epstein-Barr (EBV), após incubação de 20 a 40 dias, há febre, angina, linfonodomegalias e esplenomegalia. Essa sintomatologia completa é usual em crianças após os 3 ou 4 anos, adolescentes e adultos jovens; em crianças menores, pode haver só uns dias de febre e, em pacientes mais velhos, somente febre irregular por 3 a 6 semanas. O leucograma, nos quatro primeiros dias de febre (Fig. 16.2 [a]), mostra neutropenia e desvio à esquerda; os virócitos são raros, geralmente não notados. Dias depois, o leucograma torna-se característico (Fig. 16.2 [b]). O EBV prolifera nos linfócitos B, mas os virócitos são linfócitos T, ativados de modo reacional; persistem por 3 a 5 semanas. Trombocitopenia é usual nas duas primeiras semanas, mas assintomática; em crianças pequenas, e em adultos com febre prolongada, há leve anemização (anemia de doença crônica). Note-se que a fórmula do hemograma da Figura 16.2 (b) foi feita ao microscópio; a máquina misturou linfócitos com monócitos, mas anotou Variant lymphocytes. Monocitose (no caso = 1.323/µL) é comum em mononucleose. O monoteste é positivo em mais da metade dos casos quando feito várias vezes, pois a aglutinina heterófila, desencadeada como fenômeno paraimune, é fugaz. O teste para anticorpos IgM anti-EBV é positivo da 2ª à 4ª semana. O diagnóstico baseia-se mesmo na presença dos virócitos. Em casos suspeitos, convém anotar na requisição: Hemograma com pesquisa de linfócitos atípicos,

para garantir que haja exame de lâmina; o risco é sugestionar o laboratorista a ver virócitos inexistentes. Anticorpos IgG anti-HBV aparecem na 5ª semana e são perenes.

FIGURA 16.2 Leucogramas de mononucleose infecciosa: no 4º dia de febre (a) e 9 dias após (b).

Na mononucleose, há leve aumento das transaminases e hiperbilirrubinemia (5% dos casos) pela hepatite causada pelo EBV. Alguns pacientes de mononucleose mantêm sinais de doença crônica durante alguns meses: astenia, que pode ser invalidante, febrícula (rara) e anorexia. Crê-se que seja por desenvolverem imunidade insuficiente ao EBV. O hemograma nessa síndrome de astenia pós-viral não mostra linfócitos atípicos; o diagnóstico é puramente clínico. Há uma raríssima suscetibilidade genética ao EBV (síndrome de Duncan); uma vez contaminados, os pacientes não fazem resposta imunológica à infecção, sofrem inversão CD4/CD8, desenvolvem hipogamaglobulinemia e geralmente vêm a falecer da doença. Alguns pacientes que aparentam mononucleose infecciosa na verdade têm citomegalovirose aguda. Sorologia EBV-negativa e CMV-positiva confirmam o diagnóstico alternativo. Mononucleose semanas após transfusão geralmente é citomegalovirose. O hemograma mostra número menor de virócitos e costuma haver aumento de LGGs. A mononucleose por toxoplasmose aguda é infrequente. Infecção pelo HIV: após 1 a 4 semanas de incubação, causa uma doença febril, autolimitada, com linfócitos atípicos. No momento dessa mononucleose da aids, ainda não há anticorpos anti-HIV; a positividade sorológica é mais tardia, mas a viremia já é positiva. É recomendável lembrar essa etiologia alternativa e pesquisá-la em casos pertinentes. Doença de Kikuchi: é uma linfonodite histiocítica necrotizante que acomete adultos jovens. É frequente no Japão e rara no Ocidente. Não tem etiologia conhecida; crê-se ser autoimune. É benigna e não compromete o estado geral. O hemograma mostra neutropenia; não há linfocitose, mas, em 25% dos casos, há linfócitos atípicos.

Febre hemorrágica Ebola: o hemograma mostra neutropenia com desvio à esquerda e trombocitopenia; não há linfocitose, mas há linfócitos atípicos, mais com aspecto de imunócitos (ilustração) 1 do que virócitos, e há plasmócitos. A doença é melhor dis​cutida em Neutrofilia e neutropenia nas doenças infecciosas, Capítulo 14. Linfonodites sem hemograma característico Há um número elevado de linfonodites infecciosas e proliferações linfoides de etiologia imprecisa, sem linfocitose ou virócitos, e com hemograma alterado, mas não esclarecedor. Doença por arranhão de gato: é uma linfonodite granulomatosa supurativa, de lenta evolução (3 a 4 meses), mas limitada e benigna, causada por Bartonella henselae ou B. quintana. Nos poucos casos vistos pelo autor, não havia linfocitose nem linfócitos atípicos; o hemograma de todos mostrou neutrofilia e desvio à esquerda. A velocidade de sedimentação globular persiste elevada durante toda a evolução. Doença de Castleman: é uma linfonodite rara que acomete pessoas de meia-idade ou idosas. Não se conhece agente causal: crê-se decorrente de uma hipersecreção de interleucina 6 com os sinais inflamatórios decorrentes. O hemograma mostra anemia importante, com aspecto de ADC, neutropenia em 20 a 30% dos casos e trombocitopenia moderada na maioria. Há hipergamaglobulinemia policlonal. Não há linfocitose nem linfócitos atípicos. Quando multicêntrica, é uma doença grave, potencialmente fatal; há referências favoráveis ao tratamento com rituximabe. Doença de Kimura: é uma linfonodite de cabeça e pescoço, acompanhada por nódulos subcutâneos, só descrita no Oriente. Crê-se ser de origem alérgica, pois o hemograma mostra eosinofilia e há aumento de IgE. Hiperatividade de interleucina 5 faz parte da patogênese. É autolimitada, com cura espontânea. Doença de Rosai-Dorfman (histiocitose sinusal com linfonodopatias disseminadas): é uma doença presumivelmente oriunda de distúrbio na regulação imunológica. Acomete quase só pacientes de raça negra nas primeiras duas décadas de vida. Há linfonodomegalias indolores, mas volumosas, predominantemente cervicais, mas que podem ser disseminadas; compromentimento extranodal está presente em um terço dos casos. Embora costume evoluir para a cura espontânea, há significativa mortalidade nos casos disseminados. Os linfonodos envolvidos mostram dilatação sinusal com proliferação histiocítica, linfofagocitose e plasmocitose. O hemograma mostra anemia de doença crônica, que pode ser severa, e neutrofilia. Há hipergamaglobulinemia policlonal e

VSG acelerada. O tratamento imunossupressivo com corticoides, ciclofosfamida e vincristina é de resultado irregular. PLASMOCITOSE

Plasmócitos, em pequeno número, são constantemente vistos no sangue na maioria das viroses e nas reações imunológicas, inclusive vacinações. No mieloma múltiplo podem ser notados no sangue alguns plasmócitos malignos; no raro linfoma angioblástico de células T, há plasmocitose reacional. Na hepatite A, o hemograma sempre mostra plasmocitose, geralmente de 2 a 6%, eventualmente até 10%. Não há linfocitose, e linfócitos atípicos são raros. O hemograma da rubéola caracteriza-se por plasmocitose, de 3 a 30%. Há neutropenia e desvio à esquerda; a linfocitose é só relativa. Em pediatria, quadro clínico sugestivo de rubéola, com plasmocitose desse grau, torna dispensáveis os testes sorológicos. No sarampo, os plasmócitos são poucos ou ausentes; o hemograma do sarampo não é esclarecedor. 1 Sanchez A, et al. Analysis of human peripheral blood samples from fatal and nonfatal cases of Ebola (sudan) hemorrhagic fever: cellular responses, virus load, and nitric oxide levels. J. Virol. 2004;78(19):10370-7.

17 ALTERAÇÕES DOS EOSINÓFILOS, BASÓFILOS E MONÓCITOS Eosinófilos, basófilos e monócitos são células mieloides e, como os neutrófilos, derivam de células precursoras comuns. A diversidade de funções dessas células, quando maduras, expressa-se no hemograma pela diversidade das causas de aumento ou diminuição. EOSINOFILIA

Eosinofilia (eosinocitose) é o aumento do número absoluto de eosinófilos, ultrapassando o limite de referência arbitrado em 500/µL. Todas as linhas de contadores eletrônicos são

notavelmente fidedignas na identificação e contagem de eosinófilos (ver Fig. 1.2). Uma rara causa de erro é a presença de pigmento malárico fagocitado por neutrófilos; o pigmento despolariza a luz e pode identificar a célula como eosinófilo. O número de eosinófilos no organismo é estreitamente regulado. O número no sangue mantém-se baixo e a presença nos tecidos restringe-se à mucosa intestinal. Diversas doenças e eventualidades clínicas acompanham-se de acúmulo de eosinófilos no sangue e nos tecidos acometidos. A eosinofilia é muito comum; estava presente em 2 a 3% dos hemogramas feitos no laboratório do autor; deve ser ainda mais prevalente em laboratórios que atendam pessoas de menor nível socioeconômico. Pode ser danosa, pelo efeito pró-inflamatório dos eosinófilos, ou benéfica, por seu efeito antiparasítico. Eosinofilia nas parasitoses A eosinofilia faz parte da resposta imunológica às parasitoses. Os linfócitos T, estimulados pelos antígenos exógenos, secretam interleucina 5, que funciona como eosinofilopoetina. Segue-se discussão sumária das helmintíases que causam eosinofilia, desde as de alta prevalência até as possíveis de serem encontradas no Brasil. Nematódeos intestinais: a eosinofilia é constante nas infestações por Ascaris lumbricoides, Necator americanus, Ancylostoma duodenale e Strongyloides stercoralis, todos de alta prevalência no Brasil. Todos fazem ciclo pulmonar e podem causar síndrome de Loeffler – eosinofilia intensa e infiltrados pulmonares intersticiais, que evolui para a resolução em algumas semanas. Depois há eosinofilia proporcional à magnitude da infestação intestinal; grandes infestações podem provocar eosinofilias superiores a 50.000/µL. Na clínica do autor, onde é frequente a consulta por eosinofilia, a estrongiloidíase, não notada no exame parasitológico convencional de fezes (devem ser pesquisadas as larvas por técnica própria), é a causa mais comum. Infestações grandes por ancilostomídeos e S. stercoralis causam anemia ferropênica. Enterobius vermicularis e Trichuris trichiura não costumam causar eosinofilia. Nematódeos teciduais: todos causam eosinofilia, geralmente > 2.000/µL. As infestações por Trichinella spiralis e Toxocara canis/catis (larva migrans visceralis) não são raras. A triquinelose é um diagnóstico clínico, por imagem e por biópsia. A toxocaríase é um diagnóstico presuntivo (não aparece nas fezes, e a sorologia é difícil); a eosinofilia dura até um ano. A infestação pelo Angiostrongylus costaricensis (contaminação pela ingestão fortuita de moluscos em vegetais crus) e pelo Anisakis sp. (contaminação pela ingestão de peixes de água salgada crus) provavelmente existe no Brasil e deve aumentar de incidência pela popularização da comida japonesa; na infestação pelo Anisakis, o diagnóstico é feito por biópsia das lesões gástricas ou por sorologia. O Ancylostoma braziliense e o caninus, que causam larva migrans cutânea, podem fazer ciclo pulmonar, nesse caso, com eosinofilia. A Wuchereria bancrofti e as filárias africanas e asiáticas causam eosinofilia constante e são responsáveis pela eosinofilia tropical, síndrome com evolução de semanas ou meses, com tosse, infiltrados pulmonares, alta IgE e considerável eosinofilia.

Cestódeos intestinais e teciduais: Taenia saginata e Taenia solium, quando solitárias no intestino, causam eosinofilia moderada (eosinófilos < 15%) e inconstante. Na cisticercose e no cisto hidático (Echinococcus granulosus), há eosinofilia moderada em 20 a 25% dos casos. Trematódeos teciduais: a Fasciola hepatica (rara, mas várias vezes descrita no Brasil), adquirida pela ingestão de plantas aquáticas, e os trematódeos dos gêneros Clonorchis e Opistorchis, com contaminação pela ingestão de peixes de água doce e crustáceos crus (o autor desconhece diagnóstico comprovado no Brasil, mas há descrição de casos suspeitos), causam doença hepatobiliar grave, sempre com eosinofilia > 2.000/µL. É provável que o Paragonimus mexicanus, que causa doença pulmonar com grande eosinofilia, exista no Brasil. O Schistosoma mansoni, de considerável prevalência nas regiões central e nordeste do Brasil, causa eosinofilia durante a dermatite da infestação e na síndrome febril aguda; já na localização tecidual, com hiperesplenismo e pancitopenia, a eosinofilia é inconstante. O Schistosoma japonicum, visto no Brasil (inclusive pelo autor) em pacientes contaminados no estrangeiro, causa eosinofilia e hematúria. Trematódeos intestinais, prevalentes no Oriente, não foram descritos no Brasil. Entre as protozooses intestinais, somente as diarreias causadas por Dientamoeba fragilis e Isospora belli acompanham-se de eosinofilia. Artrópodes: a escabiose e a larva migrans de insetos causam leve eosinofilia. A miíase, quando única, não causa. Demais causas de eosinofilia Doenças alérgicas e da pele: na asma, são comuns eosinofilias até 1.500/µL. Nos surtos de rinite alérgica, com fluido nasal rico em eosinófilos, a eosinofilia sanguínea é moderada (< 1.000/µL) ou ausente; é moderada, também, na urticária, prurigo, eczema e ictiose. No edema de Quincke e na doença do soro pode ultrapassar 2.000/µL, mas é fugaz. Há eosinofilia no pênfigo e nas farmacodermias. Não há na psoríase; na dermatite herpetiforme é exceção. As micoses superficiais e ungueais não causam eosinofilia. Há duas doenças dermatológicas com considerável eosinofilia: a dermatite granulomatosa com eosinofilia (doença de Well) e a fascite eosinofílica (doença de Schulman). Radioterapia: causa eosinofilia constante, geralmente entre 1.000 e 2.500/µL; dura algumas semanas e não tem consequências ou implicações prognósticas. Eosinofilias “epidêmicas”: houve, no fim do século XX, dois surtos de intoxicações graves, em que eosinofilia severa e durável fez parte do quadro clínico. ■ Síndrome do óleo tóxico (Espanha, 1981-82): epidemia com mais de 20 mil casos, que se acreditou ter sido devida ao consumo de óleo de canola desnaturado com anilina. Os pacientes apresentaram eosinofilia com rash cutâneo, mialgias, cefaleia, edema e insuficiência respiratória aguda; a metade dos casos evoluiu cronicamente com neurites, escleroderma, alopecia e contraturas.

Síndrome da eosinofilia/mialgia (EUA, 1989-90): o surto com mais de 1.500 casos ■ foi associado ao uso da medicação popular, de venda livre, L-triptofano, não se sabe se devido ao ingrediente em dose alta ou a contaminante(s) na fabricação japonesa. Os pacientes apresentaram eosinofilia (> 2.000/µL, alguns até > 20.000/µL), mialgia incapacitante e fadiga durante meses. Houve óbitos por paralisia ascendente e envolvimento cardíaco. Síndrome hipereosinofílica: é uma rara síndrome caracterizada por eosinofilia considerável e persistente, com dano tecidual. Certamente correlaciona-se com alterações dos linfócitos T e secreção excessiva de interleucina 5 e outras. Em muitos casos, a citometria em fluxo mostra populações T aberrantes: CD3-/CD4+/CD8-; CD3+/CD4/CD8-; linfócitos T, sem aspecto LGG, mas CD16+, CD56+ (características de linfócitos NK). No hemograma, há eosinofilia, geralmente entre 2.000 e 20.000/µL, mas que pode exceder 60.000/µL, eosinófilos hipo e agranulados e com granulações basófilas concomitantes, anemia (com características de anemia de doença crônica), neutrófilos e plaquetas normais. Há infiltrados pulmonares, fibrose endocárdica e miocardiopatia, serosites, algumas vezes rash cutâneo. O diagnóstico diferencial com a leucemia eosinofílica é difícil; alterações citogenéticas e moleculares (ver Cap. 23) ou excesso de blastos na medula favorecem o diagnóstico desta. A evolução é crônica; o tratamento com corticoides e hidroxicarbamida é eficaz, mas paliativo. Eosinofilia em leucemias: na leucocitose da leucemia mieloide crônica, os eosinófilos estão em baixa porcentagem, mas, em número absoluto, há eosinofilia. Há casos de leucemia linfoblástica aguda com eosinofilia; essa rara combinação nota-se no hemograma inicial, desaparece com a remissão pelo tratamento e reaparece se houver recidiva. A leucemia eosinofílica é discutida nas leucemias mieloides (Cap. 23). Causas variadas: eosinofilia discreta é acompanhante infrequente de neo​plasias (carcinomas do trato digestivo e hepatobiliar, doença de Hodgkin e outras), das colagenoses, das serosites e da tuberculose. Costuma ocorrer na periarterite nodosa e é parte integrante de sua equivalente pulmonar (com asma, cardiopatia e neuropatia), a síndrome de Churg-Strauss. Eosinofilias sem causa aparente: são comuns. Um questionário cuidadoso e exames repetidos não revelam causa para muitos casos de eosinofilia crônica, às vezes com contagens elevadas. Em pacientes hígidos, e que se mantêm assim durante 3 a 4 meses de acompanhamento, a eosinofilia quase nunca se mostra, mais tarde, expressiva de doença grave. EOSINOPENIA Eosinopenia é a diminuição do número de eosinófilos do sangue. Como o limite inferior é muito baixo, o valor zero na fórmula leucocitária convencional pode ser obtido apenas por chance estatística, não representando ausência de eosinófilos; é de boa técnica prorrogar a

observação até 200 leucócitos para tornar o zero mais significativo. Nas fórmulas automatizadas, < 50 eosinófilos/µL significa eosinopenia real. Há eosinopenia em todos os casos de estímulo do eixo hipófise-suprarrenal, desde o estresse de eventos cotidianos até o começo de doenças infecciosas em geral. A precocidade da desaparição dos eosinófilos na apendicite e em demais casos de abdômen agudo é útil para o diagnóstico; só deve ser considerada válida em fórmulas automatizadas. O tratamento com doses farmacológicas de corticoides causa eosinopenia. A diminuição da contagem após injeção de ACTH era usada como teste de função suprarrenal (teste de Thorn). BASOFILIA

Os contadores eletrônicos geralmente identificam e contam basófilos pelos métodos usuais (impedância, condutividade, light scatter) após tratamento da amostra de sangue com solventes ácidos; ao contrário dos demais leucócitos, os basófilos são resistentes à lise. A contagem, entretanto, não é fidedigna em nenhuma linha de contadores eletrônicos. São confundidos com plasmócitos (Advia), com neutrófilos displásicos (Beckman-Coulter) ou simplesmente nem sempre são notados (todas as linhas). A contagem ao microscópio no decorrer da fórmula leucocitária, dado o pequeno número presente, tem inaceitável erro estatístico: para que porcentagens tão baixas como 0,2 a 2% tornem-se significativas (p < 0,05), há necessidade de estender-se a observação a cerca de 10.000 leucócitos, o que é obviamente inviável. A contagem de basófilos é um exame que, por falta de tecnologia confiável, não pode ser solicitado ao laboratório; também não teria utilidade clínica. Basofilia (ou basocitose) igual ou superior a 3% na fórmula forne​cida por contador eletrônico exige confirmação ao microscópio. Esse valor, obtido em fórmula ao microscópio, deve levar o técnico a prorrogá-la até 200 a 300 elementos, para maior significância; salvo em neoplasias mieloproliferativas (discutidas a seguir), o achado geralmente não se confirma.​ Trabalhos publicados comprobatórios da presença de basofilia em estados alérgicos (urticária crônica), embora atinjam significância estatística pela elevada casuística, são impossíveis de transposição a resultados laboratoriais individuais. Querer “contar” basófilos no sangue na expectativa de correlação com o nível de histamina não tem cabimento.

Basofilia nas síndromes mieloproliferativas: basofilia é constante na leucemia mieloide crônica, persistindo mesmo na melhora com o tratamento; pode ser o único achado anormal nesse período. Nas etapas tardias da doença, pode haver basofilia > 4.000/µL; pacientes com acentuada basofilia geralmente queixam-se de prurido. Nas demais neoplasias mieloproliferativas, uma porcentagem de 2 a 4% é comum. Na opinião do autor, na suspeita de neoplasia mieloproliferativa cabe fazer-se uma fórmula ao microscópio estendida a 500 leucócitos, porque alta porcentagem de basófilos é um dado a mais a favor do diagnóstico – difícil em casos incipientes – e justifica pedido de exames mais elaborados, como pesquisa da mutação JAK2 por biologia molecular. Basopenia é um dado impossível de se confirmar ou interpretar, pois o limite de referência inferior é zero. MONOCITOSE E MONOCITOPENIA

Os monócitos circulam brevemente no sangue e exercem suas funções nos tecidos, onde se localizam duradouramente como macrófagos fixos. No sangue normal, os contadores Beckman-Coulter e Cell Dyn identificam monócitos com maior exatidão que a linha Advia. Tem sido descrita certa discrepância entre as fórmulas ao microscópio e as eletrônicas, com maior porcentagem de monócitos nestas. Crê-se que sejam mais corretas e que a microscopia tome alguns monócitos por linfócitos; o autor crê que o limite de referência superior do número de monócitos, com fórmulas eletrônicas, deva ser elevado a 1.000/µL. Os scatterplots de populações de linfócitos atípicos, linfócitos leucêmicos e linfomatosos, blastos e hairy cells mesclam-se com o dos monócitos. As fórmulas eletrônicas, nesses casos, são inválidas; a microscopia é indispensável. Monocitose Monocitose é o aumento dos monócitos do sangue acima de 800 (ou 1.000)/µL. Monocitoses reacionais (passageiras) entre 1.000 e 2.000/µL são comuns: a monocitose acompanha a neutrofilia nos processos inflamatórios. É mais tardia e persiste na convalescença. Nas doenças infecciosas discutidas a seguir, a monocitose costuma ser citada na literatura como característica; na experiência do autor, nas duas primeiras é inconstante e de baixo valor preditivo.

■ Endocardite subaguda: só há monocitose em 30 a 40% dos casos. Predomina a neutrofilia. É verdade que, em raros casos, há monocitose > 2.000/µL, que dura semanas e pode até sugerir o diagnóstico de leucemia mielomonocítica crônica. ■ Tuberculose: há monocitose nos casos de doença cavitária pulmonar e na tuberculose ganglionar; acompanha-se de neutrofilia e eritrossedimentação elevada. Desde o advento do tratamento eficaz, o hemograma é de pouca utilidade no acompanhamento da tuberculose. ■ Brucelose: a literatura descreve um hemograma com neutrocitopenia, monocitose e ADC. O autor não tem experiência com brucelose. Crianças de até 2 anos respondem às doenças infecciosas com monocitose precoce além da neutrofilia. Há monocitose após 2 a 3 dias do infarto do miocárdio. Foi descrita monocitose correlacionada à depressão; na mononucleose infecciosa, além da linfocitose com virócitos, há monocitose. Há monocitose vicariante na neutropenia crônica benigna, na neutropenia cíclica e na agranulocitose por fármacos, mas não na agranulocitose imunológica clássica. Na regeneração pós-aplasia por quimioterapia, há considerável monocitose antes da neutrofilia. A contagem de fagócitos (= neutrófilos + monócitos) possivelmente é mais significativa que a contagem global de leucócitos ou só a de neutrófilos, como indicador da necessidade de redução ou adiamento de doses de quimioterapia. Monocitose persistente em idosos (> 1.500/µL) geralmente é leucemia mielomonocítica crônica. As monocitoses leucêmicas/mielodisplásicas serão discutidas nos Capítulos 22 e 25. Monocitopenia Contagem de monócitos abaixo de 50/µL é um achado incomum. Na fórmula convencional, deve ser confirmado prorrogando-se a observação até 200 ou 300 leucócitos, já que o limite de referência inferior é baixo. No caso de fórmula eletrônica, convém passar novamente o sangue, se possível em máquina alternativa. Na anemia aplástica, há monocitopenia junto com a neutropenia, daí a maior gravidade das infecções. Na hairy cell leukemia, há monocitopenia real e severa, disfarçada na fórmula eletrônica pelo defeito de identificação descrito no começo do capítulo; na forma variante não há monocitopenia.

18 PLAQUETOGRAMA Como os contadores eletrônicos contam e medem sistematicamente as plaquetas no conjunto do hemograma, justifica-se criar o termo plaquetograma (ou trombocitograma) em analogia a eritrograma e leucograma. TECNOLOGIA E COMPONENTES A contagem de plaquetas primitiva, feita por microscopia em hemocitômetro, está abandonada salvo em casos excepcionais. Exigia técnico de grande experiência, microscópio de excelente qualidade, de preferência com contraste de fases, e demandava um tempo de trabalho incompatível com as condições atuais. Os contadores eletrônicos atuais contam e medem simultaneamente as plaquetas, fornecendo uma contagem automatizada e o volume plaquetário médio (VPM), similares aos obtidos para a série vermelha. Todas as linhas de contadores servem-se do princípio Coulter, contando e medindo plaquetas no mesmo canal de contagem de eritrócitos; a diferenciação é feita por limiares de volume, geralmente plaquetas < 20 fL, eritrócitos > 30 fL. A presença de macroplaquetas, que, em certas trombocitopatias genéticas, podem chegar a 30 a 40 fL, às vezes exige retorno à tecnologia visual/manual primitiva. A medida do VPM tem reprodutibilidade aceitável, mas há considerável variação de resultados entre os diversos modelos de contadores; cabe a cada laboratório determinar valores de referência próprios.

O problema técnico gerado por alterações do volume plaquetário (para mais) e/ou do eritrocitário (para menos), ultrapassando num ou noutro sentido os limiares de volume arbitrados e mesclando as populações, costuma ser solucionado pelo software que as distingue por extrapolação estatística; quando a separação é insegura, a máquina gera flag. O histograma de volume plaquetário, obtido plotando-se os valores individuais do volume das plaquetas na abscissa e a frequência na ordenada, permite uma observação visual da interferência recíproca. Os histogramas (Sysmex) da Figura 18.1 são esclarecedores. Os extremos da curva devem tocar a abscissa (Fig. 18.1 [a]); há um discriminador de volume inferior (PL) e um superior (PU) e é fornecida uma medida em fentolitros da abertura da curva aos 20% do pico com a designação PDW (= platelet distribution width). A porcentagem de plaquetas de volume superior a 12 fL (macroplaquetas), designada pela sigla P-LCR (= platelet large cell ratio) e também fornecida, é mostrada na Figura 18.1 (b). Extrapolação das curvas distinguindo estatisticamente a população plaquetária de uma população eritroide muito microcítica aparece na Figura 18.1 (c). Quando há dificuldade na separação, pela presença de plaquetas gigantes, microcoágulos e microcitose, e o software não consegue separação precisa (Fig. 18.1 [d]), a contagem deve ser reconferida por método óptico ou imunológico. Em todos os casos, convém observar cuidadosamente ao microscópio uma distensão do sangue e fazer uma estimativa das plaquetas pelo tradicional método de Fônio; o Cella Vision fornece um campo amplo especialmente criado para esse fim.

FIGURA 18.1 Histogramas plaquetários das séries Sysmex XE e XN (Cortesia Sysmex/Laborsys).

Contagem de plaquetas Instrumentos top of line oferecem inovações. A linha XE e XN da Sysmex fornece, mediante comando, no canal de reticulócitos, uma contagem com identificação das plaquetas por fluorescência que é considerada mais segura em casos de trombocitopenia. Os instrumentos Cell Dyn Ruby e Sapphire fazem uma contagem em canal óptico (POC), referem discordâncias com a contagem por impedância (PIC), se houver, e escolhem uma delas. O Sapphire oferece, também eletivamente, o método de referência: contagem após marcação imunofluorescente das plaquetas com anticorpo monoclonal anti-CD61. A técnica é dispendiosa, mas, como só teria indicação em número insignificante de casos da rotina diária, o preço torna-se irrelevante. Esses métodos inovadores, entretanto, em comparações feitas em 2008 em mais de um laboratório com a tecnologia de impedância atual oferecida pelo Coulter LH750, que foi melhorada em seus detalhes técnicos, só demonstraram vantagem significativa na exatidão das contagens em casos pontuais. A marcação imunofluorescente é particularmente útil quando há restos celulares (p. ex., budding citoplasmático desprendido de células leucêmicas) que possam causar identificação errada em canais de impedância. A exatidão nos instrumentos atuais, ressalvados esses modelos top of line, ainda deixa a desejar. É satisfatória, com coeficiente de variação < 8% em contagens entre 20.000 e 500.000/µL, mas insatisfatória nas contagens mais baixas: coeficiente de variação ≅ 30% entre 10.000 e 20.000/µL e ≅ 100% quando abaixo de 10.000/µL. A variação de aparelho para aparelho é significativa em todos os níveis de contagem e considerável nos extremos. Ao pedir contagem de plaquetas, o médico deve saber que não receberá números exatos e, menos ainda, concordantes entre laboratórios diferentes; mesmo porque a contagem de plaquetas é algo flutuante, com variações > 10% na sequência dos dias. Receberá números aceitáveis para a interpretação clínica e não deverá levar em consideração pequenas variações. Essa indesejável inexatidão analítica é, ainda assim, apenas a etapa final de um problema maior: a frequência e seriedade dos erros pré-analíticos. Quando há dificuldade na coleta, com aspiração lenta do sangue, ou quando a agulha custa a adentrar a veia (e se enche de tromboplastina tecidual), as plaquetas sofrem agregação, degranulação e lise, e a contagem é falseada para menos. Demora na mistura com o ácido etilenodiaminotetracético (EDTA) do tubo por falta ou atraso na agitação apropriada causa o mesmo fenômeno e ativa a coagulação. O EDTA deteriora em tubos conservados em depósitos muito quentes ou em tubos com prazo vencido. Qualquer coágulo, por menor que seja (mesmo alguns filamentos de fibrina difíceis de serem notados), acompanha-se de considerável consumo das plaquetas. Em laboratórios cuja central técnica recebe amostras oriundas de múltiplos pontos de coleta, com inúmeros coletadores de cuja natureza humana não se pode esperar o reconhecimento espontâneo de imperfeições no próprio trabalho (que talvez passem despercebidas silenciando), é um problema insanável.

A agregação plaquetária é geralmente notada pelos contadores de grande porte, com emissão do flag Platelet Clumps, mas agregados pequenos, ainda assim suficientes para falsear a contagem, podem passar despercebidos pelas máquinas. Nenhuma contagem baixa de plaquetas deve ser validada pelo laboratório sem uma observação microscópica pertinaz em busca de agregados, a observação do histograma que pode alterar-se, e o exame da amostra, aspirando-se o sangue com uma fina pipeta de Pasteur à procura de fibrina; às vezes, há apenas um pequeno coágulo aderente à rolha. Todo o plaquetograma é inválido em qualquer desses casos: nova coleta é necessária. Além desses erros pré-analíticos, há problemas gerados pelo comportamento anômalo de alguns sangues quando conservados in vitro:

Agregação plaquetária EDTA-de​pendente: o sangue contém uma aglutinina plaquetária ativa na presença de EDTA. A aglutinação começa em poucos minutos, ao resfriar-se o sangue (é mais ativa abaixo de 25ºC), e é progressiva; no sangue coletado em citrato, melhor ainda, em citrato com piridoxal-5-fosfato, não há agregação. Ainda mais frequente é a agregação espontânea in vitro em qualquer anticoagulante: é rápida no EDTA, mas ocorre também em citrato e fluoreto. A única solução é coletar o sangue em tubo aquecido a 37ºC e, imediatamente, passá-lo no contador eletrônico. O autor sugere que, ao confirmar-se que uma baixa contagem de plaquetas deve-se à agregação, o laboratório forneça um resultado com a frase: PLAQUETAS – contagem prejudicada por agregação. Solicita-se nova coleta, com hora marcada, na matriz (ou onde for a central técnica) do laboratório. Em casos a serem esclarecidos, vistos no consultório, o autor telefona no ato a um dos laboratórios com os quais trabalha – e que têm condições de cumprir essa tarefa – e comunica que vai enviar o paciente para coleta e exame imediato; o laboratório coleta, conta plaquetas imediatamente, distende e examina lâminas e, ainda mais, repete a contagem algumas horas após para ver se há ulterior diminuição. O exame imediato costuma funcionar bem; raramente a agregação é tão rápida a ponto de impossibilitar a contagem. Resta um problema: a contagem do paciente mostra um resultado bem mais alto do que o levou o paciente à consulta, mas a microscopia mostra pequenos agregados. A nova contagem, que pode estar já dentro dos limites de referência e mostrar que não há por que preocupar-se com trombocitopenia, ainda assim, não é a contagem exata do paciente. Nesses casos, deve-se fornecer um laudo esclarecedor, explicando que a presença de agregados na lâmina examinada denota haver número normal de plaquetas e

que a contagem que não foi possível de fornecer com exatidão (é algo mais alta do que a encontrada), é desnecessária. Se, apesar da contagem em número aceitável, a microscopia mostrar grandes e numerosos agregados plaquetários, pode ser desencadeada a suspeita oposta: trombocitose. A microscopia de lâmina feita com sangue nativo (tomado da ponta da agulha na coleta) permite a um hematologista experiente excluir essa hipótese alternativa. Contagens de plaquetas, repetidamente erradas por agregação in vitro não notada, têm levado ao diagnóstico de púrpura trombocitopênica e a tratamento com corticoides; há referência a dois pacientes indevidamente esplenectomizados por esse defeito!

Satelitismo plaquetário: neste pictórico fenômeno (ilustrações Cella Vision) mediado por um fator plasmático (IgG ou IgM), as plaquetas aderem in vitro aos neutrófilos, envolvendo-os como uma coroa. É um evento relativamente raro (≅ 1/12.000) e sem significação clínica, pois não ocorre in vivo, mas se não for identificado faz aceitar-se uma trombocitopenia espúria como verdadeira, com as consequências citadas. Um diagnóstico confirmado de qualquer dessas alterações in vitro, agregação plaquetária ou satelitismo, que não se acompanham de trombocitopenia in vivo, deve ser esclarecido ao médico e ao paciente: não se trata de uma “doença”, mas de um achado laboratorial sem importância. A contagem não deve ser repetida a toda hora para ver se houve “cura” dessa doença inexistente; a repetição só causa um gasto inútil para o paciente, um trabalho extra igualmente inútil para o laboratório, e um risco da agregação não ser notada nessa repetição e ser novamente fornecido um resultado com trombocitopenia espúria. Todas as amostras de sangue com baixa contagem de plaquetas devem ter lâmina examinada ao microscópio para excluir agregação e satelitismo. Na agregação fatordependente, as plaquetas conservam os grânulos distintamente visíveis; na agregação por ativação e coagulação incipiente, estão degranuladas, de cor cinza-azulado e podem ser eventualmente vistos filamentos de fibrina. Outras causas de erro

■ Plaquetas gigantes: plaquetas entre 30 e 40 fL são identificadas corretamente só por alguns instrumentos; não são identificadas pela maioria. O problema é relevante em casos de trombocitopatias trombocitopênicas, como a síndrome de trombocitopatia de Bernard-Soulier. Contagens imunológicas são necessárias. Na falta, contagens visuais/manuais podem ser necessárias; o Cella Vision torna-as mais fáceis e próximas dos valores exatos. ■ Presença de eritrócitos fragmentados ou microcitose extrema: podem estar abaixo do limiar inferior e a máquina identificá-los como plaquetas; a trombocitose espúria decorrente pode ser significativa. As contagens com fluorescência do Sysmex e do Cell Dyn identificam as plaquetas com precisão. Os histogramas, discutidos adiante, podem ser úteis para esclarecimento. ■ Presença de fragmentos de leucócitos: sempre considerar essa possibilidade em casos de leucocitose leucêmica e tentar identificá-los à microscopia, o que é difícil. A contagem com imunofluorescência, no Cell Dyn, é inestimável nesses casos.

■ Contaminação da amostra in vitro: bactérias e fungos podem ser identificados como plaquetas em contagens por impedância. Geralmente o histograma mostra um pico anômalo entre 2 e 4 fL. ■ Crioproteínas: podem causar trombocitose espúria. O aquecimento da amostra a 37ºC costuma corrigir o problema. ■ Tempo de conservação do sangue in vitro: para avaliar o efeito sobre a contagem, o autor, em 2002, fez contagem de plaquetas (Cell Dyn 4000) em 40 amostras de sangue recém-coletado e repetiu a contagem após conservação do sangue por 6 horas a ≅ 23ºC; houve diminuição da contagem em 36 (90%). A média baixou de 254.000 para 247.000/µL (-2,8%). A experiência foi repetida no Laboratório Weinmann em 2008, utilizando-se um Sysmex XE-2100, com resultado diametralmente oposto: houve

elevação da contagem de plaquetas após 6 horas em 96 de 102 amostras examinadas. A média subiu de 240.000 para 249.000/µL (+3,75%). Uma explicação razoável, mas sem qualquer comprovação, seria de que a conservação in vitro cause certa fragmentação plaquetária e os fragmentos sejam identificados como plaquetas no Sysmex (aumentando a contagem), mas excluídos pelos limiares do Cell Dyn, diminuindo a contagem. As variações da contagem em ambos os experimentos são estatisticamente significativas, mas clinicamente irrelevantes. Valores de referência Os valores de referência para a contagem de plaquetas são similares em ambos os sexos e independentes da idade. Em 200 amostras de referência feitas no laboratório do autor (Coulter Max’m, 1999), foram: Plaquetas: média = 223.000/µL; extremos (± 2 DP) = 140.000 a 360.000/µL

Ampla revisão da literatura mostra valores de referência concordantes com os obtidos. Trombocitopenia (ou plaquetopenia) designa contagens de plaquetas abaixo dos limites de referência; trombocitose, contagens acima. A função hemostática das plaquetas mantém-se com contagens tão baixas como 70.000/µL, de modo que, até esse número, as trombocitopenias são praticamente assintomáticas. Para o médico requisitante, uma contagem baixa inesperada, isto é, sem causa óbvia e/ou sintomas e sinais de trombocitopenia (púrpura) – por exemplo, uma contagem préoperatória –, deve ser reconferida com o laboratório (ver p. 26) antes de ser aceita como válida. Volume Plaquetário Médio (VPM) Os contadores eletrônicos medem as plaquetas ao contá-las, fornecem um volume plaquetário médio (VPM) e, plotando os valores individuais em eixos cartesianos, o histograma do volume plaquetário, discutido acima. A diferença de resultados do VPM entre modelos diversos de contadores é considerável; cabe a cada laboratório determinar valores de referência próprios a seus instrumentos. Além disso, o VPM varia com a conservação do sangue. Há concordância na literatura de que, em contato com o EDTA, as plaquetas sofrem uma tumefação significativa, atingindo um platô volumétrico 2 horas depois; daí a recomendação geral de interpretar-se o VPM sempre medido passando-se o sangue no contador ao fim desse prazo a partir da coleta. Por outro lado, o VPM é fornecido de modo sistemático e universal ao fazer-se o hemograma em todas as linhas de contadores eletrônicos; cabe saber se seria justo desperdiçar todos esses resultados pela óbvia impossibilidade de cumprir na prática essa recomendação cronológica. Para confirmar a estabilidade do VPM das 2 horas da coleta em diante, 102 amostras de sangue foram passadas 1 no Sysmex 2100 nesse prazo e, novamente, 6 horas após, isto é, decorridas 8 horas da coleta. O VPM elevou-se em 101 delas; a média subiu de 10,54

fL (DP da série = 1,53 fL) para 11,05 fL (DP da nova série = 1,63 fL), um aumento de 0,51 fL = 4,6%. ​Essa elevação é estatisticamente significativa, mas clinicamente irrelevante; como é impossível exigir do laboratório um registro do tempo coleta ⇒ execução dos hemogramas e valores de referência do VPM para cada prazo, cabe ao médico aceitar limites amplos, que levem em conta e ultrapassem a influência da variação. Exemplificando, com os números expressos anteriormente, cabe usar como extremos de referência 2 DP abaixo da média menor (2 horas da coleta) e 2 DP acima da média maior (8 horas da coleta). Sob essa condição arbitrária, mas racional, os valores de referência (arredondados) para o VPM seriam: VPM: média = 10,8 fL (limites ± 2 DP = 9,0 a 12,7 fL)

A determinação sistemática do VPM permitiu notar-se que: ■ Há certa correlação inversa entre o VPM e a contagem de plaquetas; em contagens de plaquetas abaixo de 150.000/µL, o VPM é 1 a 3 fL superior ao VPM correspondente a contagens superiores a 350.000/µL. ■ Trombocitopenias causadas por destruição periférica das plaquetas costumam ter VPM mais alto que o previsto (são macrotrombocíticas), e trombocitopenias causadas por falta de produção das plaquetas, VPM mais baixo (são microtrombocíticas). ■ Nas trombocitoses reacionais (passageiras), o VPM não varia, ou diminui discretamente. ■ Há doenças genéticas raras da trombocitopoese com variações patognomônicas, para mais e para menos, do VPM. O coeficiente de variação do histograma (PDW = platelet distribution width) também é calculado e fornecido pelas máquinas. Salvo nas síndromes mieloproliferativas e displásicas, em que costuma estar aumentado e cabe notá-lo, não costuma ser considerado nem fornecido nos resultados. O software dos contadores costuma ainda incluir um último parâmetro plaquetário: o plaquetócrito. É o volume ocupado pela massa de plaquetas, tomado como porcentagem do volume respectivo do sangue. É o análogo do hematócrito da série eritroide. É calculado pelo produto Plaq × VPM. É inútil e, geralmente, deletado. Fração plaquetária imatura (IPF) Plaquetas circulantes, recém-desprendidas dos megacariócitos na medula e ainda imaturas, mantêm quantidade significativa de RNA, que pode ser evidenciada com um corante fluorescente. São ditas plaquetas reticuladas, em analogia aos reticulócitos. A contagem, feita no canal de reticulócitos, é oferecida de modo eletivo pelo Cell Dyn Sapphire e pela linha XE e XN da Sysmex com um software especial que seleciona as plaquetas que fluorescem desproporcionalmente ao tamanho. A determinação é satisfatoriamente reprodutível e exata. Há valores de referência publicados 2 (50 adultos sadios): IPF: média = 3,4%, limites = 1,1 a 6,1%

Um aumento da porcentagem de plaquetas reticuladas seria indicativo de produção aumentada de plaquetas, distinguindo trombocitopenias por destruição periférica de trombocitopenias por falta de produção. Resultados publicados* mostram valores entre 9,2 e 48,3% (média 22,3%) em casos de púrpura trombocitopênica autoimune (com plaquetas < 50.000/µL), e entre 11,2 e 30,9% (média 17,2%) em casos de púrpura trombocitopênica trombótica em atividade. Em ambos os casos, a melhora com o tratamento acompanha-se de diminuição da IPF. Em casos de trombocitopenia por quimioterapia, a IPF mantém-se baixa. Observação ao microscópio É indispensável para validar trombocitopenias e trombocitoses. No sangue anticoagulado com EDTA, as plaquetas são vistas como pequenos discos ou ovoides, de 2 a 4 µm de maior diâmetro. Uma estimativa grosseira da contagem pode ser feita, comparando-se o número de plaquetas com o número de leucócitos por campo; a comparação com o número de eritrócitos por campo (método de Fônio) também é apenas uma estimativa. A observação no Cella Vision, que oferece um campo retangular quadriculado, é vantajosa. Uma disparidade óbvia com a contagem feita pelo contador eletrônico sugere troca de material ou outro erro a ser esclarecido.

Macroplaquetas (ou plaquetas gigantes) de mais de 4 µm de diâmetro chamam a atenção mesmo quando em pequeno número que não chega a interferir no VPM: a estimativa do VPM ao microscópio não é fidedigna. São ainda mais conspícuas quando há trombocitose. Nas síndromes mieloproliferativas e displásicas, é usual a presença de macroplaquetas de morfologia anormal, plaquetas gigantes e dismórficas. Há várias síndromes genéticas caracterizadas por plaquetas de morfologia anormal, geralmente acompanhadas de trombocitopenia e/ou de defeitos funcionais (ver adiante, neste capítulo). Nos defeitos de agregação plaquetária, inclusive pelo uso de ácido acetilsalicílico, a morfologia plaquetária costuma ser normal. TROMBOCITOSE É um fenômeno reacional, como a leucocitose, e não representa, em si, uma doença hematológica. As eventualidades que se acompanham de trombocitose são listadas a

seguir: 1. Nos dois primeiros anos de vida, é uma resposta constante aos estados inflamatórios, mesmo corriqueiros. É igualmente constante na anemia ferropênica, tão comum nesse grupo etário. Contagens muito elevadas não são raras; o autor viu várias trombocitoses acima de 1 M/µL em lactentes ferropênicos. A suscetibilidade à trombocitose reacional diminui progressivamente do 3º ano em diante e se iguala à do adulto entre os 6 e os 8 anos. 2. Na anemia ferropênica do adulto é frequente, mas inconstante; a contagem dificilmente ultrapassa 500.000/µL. A carência de ferro pode causar trombocitose mesmo quando ainda não há anemia significativa. Lembrar-se de dosar ferritina em todos os casos de trombocitose sem causa óbvia. 3. Nas doenças inflamatórias crônicas, infecciosas ou reumáticas, costuma acompanhar a neutrofilia, a eritrossedimentação acelerada, o rouleaux e a elevação da proteína Creativa. Nas doenças inflamatórias intestinais crônicas, às vezes é a única alteração do hemograma. 4. No período pós-hemorrágico imediato, há uma elevação da contagem poucas horas após a perda. Dura 2 ou 3 dias e pode ser notada mesmo após uma doação de sangue. 5. No pós-operatório e após trauma relevante, é constante e imediata, durando até 2 a 3 semanas, de acordo com a magnitude do evento; é causa coadjuvante da suscetibilidade trombótica nesse período. 6. Pós-esplenectomia: quando o baço é removido de pessoas normais (p. ex., após ruptura traumática), há grande trombocitose; contagens próximas a 1 milhão/µL têm sido descritas. A trombocitose diminui lentamente, em meses, e a contagem volta ao intervalo de referência, mas em cifra ≅ 1,5× a preexistente. Quando a esplenectomia é curativa para uma anemia hemolítica (p. ex., esferocitose), ocorre o mesmo fenômeno; quando é paliativa, como na talassemia maior, a trombocitose é considerável e duradoura. 7. Nas neoplasias mieloproliferativas, principalmente na trombocitemia essencial, discutidas no Capítulo 23, a trombocitose é primária, não reacional. Em dois tipos de síndrome mielodisplásica, pode haver trombocitose, às vezes considerável: deleção isolada de 5q (abreviadamente 5q–) e anemia refratária com sideroblastos em anel associada a trombocitose. TROMBOCITOPENIA É um achado frequente e sempre relevante no hemograma. Quando não houver causa óbvia ou já conhecida e/ou manifestações hemorrágicas típicas (púrpura), deve ser confirmada com nova coleta e exame imediatamente feito, pela sempre presente possibilidade de erro técnico ou agregação in vitro. As eventualidades em que há trombocitopenia são discutidas a seguir: 1. A contagem sistemática das plaquetas no hemograma mostrou que há um número apreciável de pessoas com trombocitopenia subclínica. Em algumas, há diminuição

progressiva, comprovando-se, pela evolução, tratar-se de púrpura trombocitopênica imunológica diagnosticada ainda no período assintomático; noutras, a contagem é estável, sem explicação. Pode ser que esses últimos sejam extremos da estatística de referência; um VPM proporcionalmente alto favorece essa interpretação. Avaliação de resultados anteriores, se existentes, ou avaliação prospectiva são indispensáveis. 2. Nas grandes hemorragias tratadas com transfusões: plaquetas são perdidas e consumidas no sangramento e não há reposição, porque as plaquetas do sangue estocado não são viáveis. É passageira, logo substituída pela trombocitose póshemorrágica. 3. No período de estado da maioria das viroses febris, incluindo as doenças eruptivas da infância e a mononucleose. A viremia induz sequestração plaquetária no sistema macrofágico. É subclínica, dura 3 a 5 dias, com contagens geralmente em torno de 100.000/µL, quase nunca abaixo de 50.000/µL. Na dengue, a trombocitopenia tem números similares, mas é mais precoce pela parada transitória da hematopoese decorrente da mielotoxicidade do flavivírus; na dengue hemorrágica, a trombocitopenia, embora presente e mais severa, não é o único fator desencadeante da síndrome hemorrágica. 4. Quando há esplenomegalia, independentemente da causa, por retenção de plaquetas no baço aumentado. Normalmente ficam retidas no baço 20 a 30% das plaquetas periféricas; a porcentagem aumenta com o aumento do órgão, podendo ultrapassar 80% nas grandes esplenomegalias. Há trombocitopenia na cirrose e demais esplenomegalias por hipertensão portal, na esquistossomose, na malária crônica, no calazar, na trombose da veia esplênica, nas leucemias/linfomas do baço, nas doenças de acúmulo lipídico. Quando há simultaneamente leucopenia e/ou anemia, diz-se haver hiperesplenismo. Apesar das enormes esplenomegalias, na fase crônica da mielofibrose com metaplasia mieloide e da leucemia mielocítica crônica, costuma haver trombocitose e não trombocitopenia. 5. Na púrpura trombocitopênica trombótica (PTT) e na síndrome urêmico-hemolítica, discutidas em Anemias hemolíticas microangiopáticas (Cap. 5). 6. Nas doenças da medula óssea: trombocitopenia é parte do quadro das leucemias agudas, da anemia aplástica, das síndromes mielodisplásicas, da infiltração da medula por tumores, da necrose da medula. 7. Como consequência de quimioterapia e radioterapia antiblásticas. 8. Nas doenças infecciosas graves, principalmente nas septicemias, quando é sinal de mau prognóstico e pode ser parte de quadro de coagulação intravascular disseminada. 9. Nos pacientes terminais, como parte da reação leucoeritroblástica agônica. 10. A trombocitopenia no tratamento com heparina não fracionada decorre da formação de anticorpos contra o fator plaquetário 4, complexado com a heparina. O mecanismo íntimo da destruição plaquetária não está esclarecido. Em alguns pacientes, paradoxalmente, os complexos causam também complicações tromboembólicas. A substituição da heparina não fracionada por heparinas de baixo peso molecular não faz involuir o processo, mas as heparinas de baixo peso não o causam; se a anticoagulação for indispensável devem ser usadas drogas

antitrombínicas ou anti-fator Xa e a passagem para anticoagulantes orais, logo que possível. A gravidez, com múltiplas eventualidades causais de trombocitopenia, as púrpuras trombocitopênicas imunológicas e as trombocitopenias genéticas merecem seções especiais. Trombocitopenia na gravidez 1. Trombocitopenia fisiológica: no terceiro trimestre de gravidez normal, há uma baixa da contagem de plaquetas de ≅ 10%; deve-se, ao menos em parte, à hemodiluição. 2. Trombocitopenia gestacional: em 5% das gestações, há um exagero da trombocitopenia fisiológica, provavelmente devido à excessiva hipervolemia plasmática e a um pequeno encurtamento da sobrevida plaquetária, de patogênese obscura. A contagem mantém-se entre 70.000 e 140.000/µL, a paciente é assintomática e não costuma haver complicações hemorrágicas obstétricas. 3. Pré-eclâmpsia: acompanha-se de significativa trombocitopenia, por consumo periférico de plaquetas, em 50% dos casos. A trombocitopenia, em si, não costuma causar complicações hemorrágicas. 4. Síndrome HELLP: acrônimo para Hemolytic anemia, Elevated Liver enzymes, Low Platelet count, a síndrome é uma variante da pré-eclâmpsia, ocorrendo mais em pacientes brancas, multíparas e acima de 25 anos. A anemia é microangiopática, com fragmentação eritrocitária (uma PTT benigna e autolimitada), as transaminases excedem 70 unidades, e a contagem de plaquetas fica entre 30.000 e 100.000/µL. A síndrome costuma ter cura espontânea alguns dias após o parto. 5. Púrpuras trombocitopênicas na gravidez: a imunológica costuma piorar na gravidez; 5 a 10% dos casos de PTT são desencadeados pela gravidez. Ambas serão discutidas a seguir. Púrpura Trombocitopênica Imunológica (PTI) É uma síndrome autoimune em que a trombocitopenia deve-se à cobertura das plaquetas por anticorpos IgG, dirigidos contra glicoproteínas da membrana (GP IIb/IIIa e Ib/IX), destruição periférica e remoção pelo sistema macrofágico. A medula costuma ser rica em megacariócitos; as demais séries sanguíneas, normais. Fazem exceção alguns casos agudos, em que a atividade autoimune é tal que compromete inclusive os megacariócitos, podendo haver megacariocitopenia transitória, e a síndrome de Evans, em que há simultaneamente autoanticorpos antieritrocíticos e anemia hemolítica autoimune. PTI aguda: é comum na infância. O mecanismo autoimune costuma ser desencadeado por uma virose (viroses respiratórias altas, doenças eruptivas, mononucleose, outras), ocorrida uma ou duas semanas antes; nos raros casos em adultos, pode ser causado por uma droga (quinidina, quinina, sulfonamidas) ou não haver causa aparente. A destruição

plaquetária é súbita, de um dia para o outro, e quase total: contagens abaixo de 10.000/µL são usuais. A síndrome hemorrágica é grave, com equimoses e petéquias disseminadas, bolhas hemorrágicas na boca e sangramento das mucosas; hemorragia cerebral ocorre em 1 a 2% dos casos pediátricos e em até 5% dos casos em adultos, daí a necessidade de tratamento imediato com doses altas de imunoglobulina humana intravenosa (IgGIV) e corticoides. O tratamento é paliativo, para elevar as plaquetas durante o período de risco inicial; a cura espontânea, em algumas semanas ou poucos meses, é a regra. Em aproximadamente 5% dos casos, a trombocitopenia melhora mas persiste duradouramente, e a doença converte-se em púrpura trombocitopênica crônica; raros pacientes têm eventualmente novos surtos de púrpura aguda (púrpura aguda recidivante). PTI crônica: o mecanismo autoimune é de lenta instalação; a trombocitopenia é progressiva, mas menos intensa, geralmente entre 10.000 e 80.000/µL, e a sintomatologia hemorrágica, proporcional. Casos idiopáticos são os mais frequentes, mas um número significativo de casos decorre ou acompanha doenças autoimunes mais amplas, neoplasias linfoproliferativas e infecções. A prevalência correlaciona-se também com doenças da tireoide e com anemia perniciosa. A pesquisa laboratorial dos anticorpos antiplaquetas causadores é insegura e não é recomendada. ■ PTI idiopática crônica: é mais comum em mulheres jovens, tem início insidioso e cursa durante anos, décadas ou toda a vida, com flutuações na contagem de plaquetas; a cura espontânea é invulgar. Melhora transitoriamente com corticoides, IgGIV (usada em exacerbações, com hemorragias sérias), imunoglobulina anti-Rh intravenosa (em pacientes Rh-positivo) e, em dois terços dos casos duradouramente, com a esplenectomia. A associação de dexametasona com rituximabe causa remissões prolongadas em cerca de 50% dos casos refratários aos demais tratamentos. Na grávida, o anticorpo antiplaquetas atravessa a placenta e causa PTI neonatal, que pode ser grave, mas é autolimitada. ■ PTI secundária ao lúpus eritematoso sistêmico (LES): a tendência do LES de manifestar autoimunidade múltipla frequentemente inclui anticorpos antiplaquetas. Testes para LES são indispensáveis em todos os casos de PTI crônica. ■ PTI correlacionada à aids: há alta incidência de trombocitopenia autoimune na aids; melhora com o tratamento próprio da PTI (geralmente inaplicável) e com o tratamento antiviral. ■ PTI correlacionada à hepatite C: a prevalência é muito elevada. É também autoimune; às vezes piora pela retenção de plaquetas no baço pela hipertensão porta. A simples presença do vírus, mesmo sem hepatite ativa, pode causar trombocitopenia; há melhora com o tratamento antiviral, mas é limitante ao uso apropriado das drogas. No consultório do autor, é uma das trombocitopenias crônicas mais frequentes em pacientes de meia-idade e idosos. ■ PTI correlacionada à infecção por Helicobacter pylori: um número relevante de casos de PTI em adultos e idosos, quando H. pylori positivos, melhoram com a eliminação da bactéria com tratamento antibiótico. Recomenda-se fazer o teste em todos os casos de PTI e, se positivo, tratar.

Trombocitopatias genéticas diagnosticadas pelo hemograma Há vários defeitos qualitativos plaquetários genéticos; em alguns há defeitos morfológicos das plaquetas, notados pelo VPM ou à microscopia, com ou sem trombocitopenia. Noutros, só há trombocitopenia notada à contagem. E há defeitos de agregação plaquetária sem expressão no hemograma, só notadas nos testes de agregação (Cap. 28). Trombocitopatia de Bernard-Soulier: defeito cromossômico em 17p13.2; mutações no gene GP1B causam deficiência ou alteração da glicoproteína GPIb, composta de 4 unidades, parte do complexo receptor do fator von Willebrand, o que causa defeito de agregação com ristocetina. A imunofenotipagem de plaquetas demonstra falta de CD42b CD42a. A deficiência de expressão da unidade GP1bα, quando homozigótica ou duplamente heterozigótica com a deficiência de uma das demais unidades (genes em 22q11.21 e 3q21.3), determina a trombocitopatia trombocitopênica recessiva clássica. As plaquetas têm dimensões avantajadas (VPM > 18 fL), algumas com até 30 a 40 fL e diâmetro próximo ao de pequenos linfócitos. O diagnóstico é óbvio à observação microscópica no hemograma (Fig. 18.2). A contagem de plaquetas nos contadores eletrônicos é espúria: muitas são excluídas pelo limiar superior; o número é maior do que o contado, mas sempre há trombocitopenia real, da ordem de 30.000 a 80.000/µL. O método primitivo de Fônio pode ser necessário; o Cella Vision favorece notavelmente a exatidão. A síndrome hemorrágica é semelhante a de uma púrpura trombocitopênica crônica; evidentemente não há resposta aos corticoides. DDAVP e antifibrinolíticos são úteis em epistaxes e sangramento por extração dentária; o único tratamento realmente eficaz para hemorragias maiores é a transfusão de plaquetas; deve ser feita com extrema parcimônia para protelar imunização antiplaquetas. A herança heterozigótica do tipo clássico ou duplamente heterozigótica de variantes genéticas das demais unidades de GPIb pode causar uma macrotrombocitopenia dominante. O autor já observou várias famílias; os pacientes têm plaquetas em torno de 100.000/µL, VPM ≅ 15 fL, e síndrome hemorrágica só notada em cirurgias e traumatismos maiores; procedimentos obstétricos são bem tolerados.

FIGURA 18.2 Plaquetas gigantes em trombocitopatia de Bernard-Soulier (2 casos do autor), em pequeno e grande aumento.

Outras trombocitopenias genéticas normo e macrotrombocíticas: todos os hemogramas com trombocitopenia sem causa óbvia (paciente em quimioterapia, paciente com PTI já conhecida, etc.) devem ter o VPM observado e feita microscopia. Há uma série de trombocitopenias por defeito genético da trombocitopoese (ou da hematopoese global). Em muitas, a trombocitopenia é moderada e assintomática: um achado de laboratório. Na maioria, o VPM é anormalmente elevado (trombocitopenias macrotrombocíticas). Alguns casos são de pacientes heterozigóticos para defeitos que, quando homozigóticos, são mais amplos e/ou mais graves. Nestes pode haver dupla população plaquetária que não chega a interferir no VPM, mas que se nota ao microscópio: há um número apreciável de macroplaquetas dispersas em população normal. Lembrar-se que PTI crônica é um diagnóstico de exclusão (embora confirme-se por resposta terapêutica ao corticoide). Em todas as trombocitopenias a diagnosticar, é indispensável consultar laudo evolutivo ou resultados de exames anteriores: em pessoa sadia, ou jovem, uma contagem que em vários hemogramas varia pouco em torno de uma média de plaquetas ≅ 100.000/µL é suspeita de defeito genético; suspeita confirmada se o VPM for alto e/ou se houver achado semelhante nos pais ou irmãos, cujos hemogramas devem ser sistematicamente solicitados. Síndrome de Wiscott-Aldrich: é um defeito genético ligado ao sexo, gene WAS em Xp11.23. Os portadores masculinos têm grave insuficiência imunológica por defeito no CD43 dos linfócitos B e T, e eczema. A trombocitopenia é acentuada, e as plaquetas, contrariando a maioria das trombocitopatias genéticas, são anormalmente pequenas (trombocitopenia microtrombocítica). A observação do VPM em todos os casos de trombocitopenia (recomendada acima e geralmente negligenciada) sugere o diagnóstico: não há outro defeito genético com esse VPM. A “microcitose plaquetária” não é notada à microscopia de rotina; só se nota conhecendo o VPM e observando-se a distensão com essa finalidade; o próprio Cell Dyn estranhou o VPM (Fig. 18.3). A maioria dos casos é muito grave e deve ser tratada precocemente com transplante de células-tronco se houver doador compatível, pois a mortalidade é alta já nos primeiros anos de vida. Apesar da raridade da síndrome (o autor só viu 2 casos), o Hospital de Clínicas da Universidade do Paraná já transplantou 50 pacientes. Recentemente foram descritos casos mais benignos, inclusive com sobrevida até a idade adulta.

FIGURA 18.3 Síndrome de Wiscott-Aldrich: resultados originais dos instrumentos Coulter STKS e Cell Dyn 4000 no mesmo paciente.

Síndrome das plaquetas cinzentas: raríssimo defeito cromossômico em 3p21.31, mutação no gene NBEAL2. Há trombocitopenia moderada e o diagnóstico é feito à microscopia do hemograma: as plaquetas são desprovidas de α-grânulos, o que as torna visualmente agranuladas e de cor cinzento-pálida. A síndrome hemorrágica é moderada e melhora com a esplenectomia. Anomalias de May-Hegglin e de Chediak-Higashi: nessas síndromes, o hemograma mostra trombocitopenia cujo esclarecimento é feito pelas alterações qualitativas e morfológicas concomitantes dos leucócitos, descritas no Capítulo 15. Na Tabela 18.1, há uma lista de trombocitopenias/trombocitopatias genéticas raras, muitas delas fazendo parte de síndromes mais amplas; para detalhes de cada uma, consultar o Apêndice 3, uma lista abrangente, em ordem alfabética, com descrição dos defeitos genéticos que incluem citopenia(s). TABELA 18.1 Síndromes genéticas* raras em que há trombocitopenia isolada ou com outra(s) citopenia(s) ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■

GATA1, correlacionadas a Hermansky-Pudlak (só defeito funcional) Hiper IgM IVIC Macrotrombocitose mediterrânea MYH9, correlacionadas a Noonan Paris-Trousseau Shimke Shwachman-Diamond TAR (Trombocitopenia et absentii radii) Trombocitopenias amegacariocíticas (várias) von Gierke (só defeito funcional)

*

Para descrição de cada síndrome ver Apêndice 3.

Defeitos de agregação plaquetária Há inúmeros defeitos de agregação plaquetária sem trombocitopenia ou aspectos morfológicos anormais; não são notados no hemograma. Para o diagnóstico, exigem testes de agregação plaquetária (ver Cap. 27). O defeito mais característico e sério é a trombastenia de Glanzmann. Trombastenia de Glanzmann: é uma raríssima trombocitopatia recessiva por anormalidade das glicoproteínas IIb e IIIα (CD41 e CD61). As plaquetas, em número normal e de morfologia normal (nada se nota no hemograma), não se agregam nem diante de altas concentrações de ADP e são incapazes de causar retração do coágulo (é a única suspeita clínica que justifica pedido dessa observação para fins diagnósticos). Dois pacientes, descritos pelo autor, sofreram de severa síndrome hemorrágica, imunizaram-se antiplaquetas pelas inúmeras transfusões requeridas; um faleceu de hemorragia antes dos 30 anos. Testes de agregação de um paciente com trombastenia de Glazmann (caso do coautor) são vistos no Capítulo 28. Nas raras síndromes genéticas de Hermansky-Pudlak e von Gierke, há defeito de agregação plaquetária causal de manifestações hemorrágicas de gravidade moderada. Estão descritas no Apêndice 3. 1 Laboratórios a+/ Weinmann, Porto Alegre, RS. 2 Briggs C, et al. Assessment of an immature platelet fraction (IPF) in peripheral thrombocytopenia. Br J Haematol. 2004;126(1)93-9.

19 HEMOGRAMA DO NASCIMENTO AOS 2 ANOS O recém-nascido (RN) a termo tem uma volemia média de 83 mL/kg, e o prematuro, de 94 mL/kg, o que equivale a aproximadamente 250 mL para um RN de 3 kg e 190 mL para um prematuro de 2 kg. Como exames laboratoriais implicam na coleta de 1,5 a 3 mL de sangue, é fácil compreender que, se repetidos de modo pouco criterioso, constituem-se em significativa espoliação e causa relevante de anemia nessa população indefesa e exposta no berçário. A dificuldade da coleta de sangue venoso e o trauma decorrente devem ser igualmente considerados; quando a jugular externa é saliente, a coleta é fácil, caso contrário, difícil. Punções de vasos profundos podem causar rupturas, com consequências imprevisíveis, muitas vezes graves. A punção arterial deve ser reservada à gasometria, quando indispensável (e raramente é), e proibida para coleta rotineira de sangue para exames. Os coletadores dos laboratórios são técnicos de enfermagem ou práticos sem habilitação legal, que inexiste para essa tarefa; a responsabilidade por consequências iatrogênicas recai sobre os médicos requisitantes e sobre o responsável técnico pelo laboratório, que muitas vezes não é médico. O ideal é que, no berçário, os coletadores sejam os próprios médicos, assistentes ou residentes, ou enfermeiros do berçário, e o sangue, enviado ao

laboratório para o(s) exame(s). A coleta de cateteres, embora não traumática, é mais espoliadora, pela necessidade de desprezar-se um volume significativo de sangue para evitar diluição da amostra pelo fluido heparinizado do cateter; a reinfusão do volume aspirado implica em risco de bacteriemia. É de boa praxe, em berçário, manter-se junto ao leito uma tabela com anotação diária e totalizada do volume sanguíneo coletado para exames. As cifras hematimétricas do sangue capilar, coletado por picada de lanceta, são muito mais altas que as do sangue venoso; a remora sanguínea na microcirculação do RN causa perda de plasma e hemoconcentração local. Diferenças na hemoglobina de até 2 a 3 g/dL são usuais. Nos prematuros, na acidose, na hipotensão e na anemia, as diferenças são ainda maiores. Os erros pré-analíticos e analíticos nessas pequenas amostras têm frequência intolerável. Embora o trauma, o risco e a espoliação sejam menores, o método não é recomendável. Prefiram-se sangue venoso, pessoal especializado, agulhas e escalpes apropriados. Pelo exposto, o autor recomenda extrema parcimônia na requisição de exames em berçário; evite-se requisitar um exame cujo resultado não ocasionará mudança na conduta terapêutica e exames para confirmar dados clínicos óbvios e com tratamento e profilaxia fáceis mesmo sem o resultado (p. ex., hipoglicemia, hipocalcemia). ERITROGRAMA NO RECÉM-NASCIDO A placenta e o cordão, no RN a termo, contêm em torno de 100 mL de sangue. As artérias umbilicais sofrem contração durante o parto, mas as veias persistem patentes e o sangue flui no sentido da gravidade: 30 a 50 mL vertem para a circulação fetal em 1 minuto, se o feto estiver abaixo do nível da placenta, e 20 a 30 mL por minuto podem fluir em sentido inverso, se ele estiver acima. A diferença clampeamento precoce × clampeamento tardio faz a volemia ao nascimento variar de 70 a 90 mL/kg. Essa variação não se expressa nos valores hematimétricos do sangue do cordão; varia a volemia, mas não a relação plasma/glóbulos. Nas horas subsequentes, entretanto, a retração volêmica, por perda de plasma do compartimento vascular para o extravascular, causa elevação das cifras, geralmente da ordem de 2 g/dL de hemoglobina. Nos casos de clampeamento tardio, com transfusão placenta ⇒ feto, a elevação, medida no 3º dia, pode chegar a 4 g/dL. Valores de referência para o eritrograma do RN estão na Tabela 19.1. Neonatos pequenos para a idade gestacional, em relação a neo​natos de tamanho apropriado, têm Hgb ≅ 1,2 g/dL mais alta no 1º dia e ≅ 1 g/dL inferior no 7º dia. TABELA 19.1 Valores de referência para o eritrograma do RN (média ± 2 DP) Sangue do cordão

Sangue venoso no 3º dia

Sangue venoso no 15º dia

Eritrócitos (M/µL)

5,1 ± 1,0

5,5 ± 1,0

5,2 ± 0,8

Hemoglobina (g/dL)

16,8 ± 3,5

17,5 ± 3,5

17 ± 3,0

54 ± 10

56 ± 10

51 ± 8

Hematócrito (%)

VCM (fL)

106 ± 5

102 ± 6

98 ± 6

Reticulócitos (%)

3a7

1/3 do número total de neutrófilos), embora não comprove infecção, correlaciona-se com infecção. Para se obter um hemograma com esse dado é indispensável avisar ao laboratório da necessidade de uma fórmula visual (ao microscópio) atentamente feita por técnico qualificado. Neutrofilia sem desvio à esquerda pode ser apenas uma resposta fisiológica ao esforço, da dispneia ao choro; se o esforço for continuado, surge pequeno desvio à esquerda. Note-se que neutrofilia com desvio à esquerda também pode ser significativa de infecção. A morfologia dos linfócitos no RN é tão irregular, com células de aspecto jovem e nucléolo aparente, que a identificação de virócitos ou linfoblastos no hemograma é geralmente equivocada. Não devem ser aceitos resultados com essa identificação sem comprovação por hematologista de alta qualificação e presença de sinais/sintomas e demais alterações do hemograma compatíveis com hemopatia. Neutropenia isoimune A sensibilização materna por antígenos leucocitários fetais herdados do pai não é rara. Causa neutropenia acentuada notada já nos primeiros dias de vida. As complicações infecciosas são infrequentes; a duração do processo é limitada a 30 a 40 dias, com resolução espontânea. A neutropenia genética crônica severa (síndrome de Kostmann) pode manifestar-se no RN causando onfalite. As demais neutropenias e as deficiências imunológicas genéticas raramente se manifestam no período neonatal. São listadas adiante, neste capítulo. Neoplasias da hematopoese Leucemias congênitas são muito raras. Em neonatos com síndrome de Down (trissomia 21), entretanto, há uma curiosa e não rara leucemia aguda autolimitada, designada como síndrome mieloproliferativa ou mielopoese anormal transitória. Trata-se de uma proliferação clonal de blastos com marcadores próprios de um precursor comum de megacariócitos e eritroblastos, com mutação no gene GATA1 evidenciada por biologia molecular e com hemograma indistinguível de uma leucemia aguda usual. A evolução espontânea para a cura é a regra, mas em cerca de 20% dos casos ressurge antes dos 2 anos, como leucemia aguda, agora com a evolução maligna usual.

PLAQUETOGRAMA NO RN A contagem de plaquetas no RN é muito mais sujeita a erro técnico do que a do adulto; consomem-se quando há dificuldade na coleta do sangue, e quase sempre há. Nunca se deve aceitar como válida uma trombocitopenia inesperada, sem sinais clínicos, notada em observação única. É importante reconfirmá-la sempre, avisando ao laboratório do dado a confirmar. Os valores de referência são iguais aos do adulto. Trombocitopenia Há trombocitopenia no RN nas seguintes eventualidades: ■ Sepse: trombocitopenia é dado altamente significativo diante de suspeita clínica; a baixa da contagem correlaciona-se com o prognóstico. ■ Asfixia com coagulação intravascular disseminada (CIVD): a trombocitopenia confirma a CIVD no quadro clínico, geralmente óbvio. ■ TORCH e sífilis: discutidas com as anemias do RN. ■ Púrpura trombocitopênica imunológica (PTI) materna: os anticorpos antiplaquetas são IgG e cruzam a placenta. Causam trombocitopenia no RN. No caso de gestante com PTI, o pediatra do berçário deve estar atento para essa eventualidade; as manifestações hemorrágicas podem ser graves e devem ser imediatamente tratadas com imunoglobulina humana IV e transfusão de plaquetas (no caso de hemorragia cerebral – que é rara). Há cura espontânea pela desaparição progressiva do anticorpo (meia-vida de três semanas). ■ Púrpura trombocitopênica isoimune por incompatibilidade materno-fetal: ocorre em RN de mãe negativa para o antígeno plaquetário PlA1. É rara, mas é grave; a negatividade PlA1 existe em apenas 2% da população. Trata-se como a anterior, usando-se a mãe como doadora de plaquetas. ■ Defeitos plaquetários genéticos: não costumam ser detectados no período neonatal, exceto a síndrome TAR, notada pelo defeito anatômico. Ver Capítulo 18 e Apêndice 3. TESTE DO PEZINHO 1 O teste de triagem neonatal é um notável progresso da medicina preventiva. Está amplamente difundido no Brasil com a denominação teste do pezinho, consagrada pelo uso. O teste tem cobertura financeira estatal; no Rio Grande do Sul, inclui teste para fenilcetonúria, dosagem de TSH, 17-OH-progesterona, tripsina imunorreativa, deficiência de biotinidase e – a parte relativa à Hematologia – triagem para hemoglobinopatias. Pesquisa da deficiência de G6FD só é feita em teste mais completo, junto com vários outros exames, que não têm cobertura estatal; o preço, relativamente baixo (R$ 230, equivalente a pouco menos de US$100 em 2014), entretanto, justifica solicitá-lo sempre que possível. Recomenda-se que o sangue para o teste do pezinho seja coletado entre o terceiro e o sétimo dia pós-parto, e o material enviado imediatamente, com transporte urgente, ao

laboratório especializado. Na experiência local*, entretanto, as amostras são coletadas em média após o sétimo dia. Pelo predomínio da hemoglobina fetal (Hgb F) no recém-nascido, os resultados de eletroforese (em desuso), focalização isoelétrica e HPLC são diferentes dos de adultos; só se tornam idênticos, com a completa conversão de síntese de Hgb F para Hgb A, entre 6 meses e 1 ano de idade. A diferença acentua-se nos prematuros; nesses, a falta de Hgb A pode significar nível ainda inferior ao da detecção técnica naquela altura do desenvolvimento e não deve ser aceita como comprobatória de talassemia maior sem confirmação após prazo proporcional à prematuridade. A Tabela 19.4 lista os achados mais comuns na triagem para hemoglobinopatias no teste do pezinho. TABELA 19.4 Resultados do teste do pezinho em variantes hemoglobínicas comuns (coluna da esquerda) e talassemias (coluna da direita) Hgb*

Anormalidade

Hgb

FA ou AF

β-talassemia minor

FA

Traço drepanocítico

FAS

β+-talassemia maior

FA ***

Drepanocitose

FS**

β0 -talassemia maior

F

Traço Hgb C

FAC

Hgb S/β+-talassemia

FSA ***

Hemoglobinopatia C

FC

Hgb S/β0 -talassemia

FS

Hemoglobinopatia SC

FSC

α+-talassemia

FA Bart****

Anormalidade (normal)

*

Hgb em ordem decrescente de quantidade (p. ex., FAS = F > A > S). Excluir, por exames na evolução, a rara alternativa: Hgb S/persistência hereditária de Hgb F. *** Hgb A ao nascimento pode estar abaixo do limite de detecção e ser notada após algumas semanas, diferenciando β+ de β0.t **** A Hgb de Bart diminui rapidamente após o nascimento. Só é óbvia em testes feitos antes de uma semana; em prematuros, até mais tardiamente. **

ERITROGRAMA DO LACTENTE AOS 2 ANOS DE IDADE Após o período neonatal, a hemoglobina continua diminuindo até um nadir fisiológico de 11,3 (± 1,5) g/dL entre 4 e 6 meses. O VCM também diminui, de ≅ 106 fL ao nascimento a 82 (± 6) fL aos 3 meses, e ao nadir de 76 (± 6) fL aos 6 meses. Se houver carência de ferro, essa microcitose fisiológica acentua-se; os valores citados são de lactentes com bom suprimento de ferro. O VCM eleva-se ulteriormente na infância até atingir os 89 a 90 fL do adulto entre 10 e 14 anos. O hemograma nesse grupo etário reveste-se de singular importância por ser a época de maior incidência de anemia ferropênica e ocasião usual do diagnóstico da maioria das doenças hematológicas genéticas. Apesar de sua importância, não deve ser solicitado com liberalidade; a coleta é um trauma a ser evitado. Em casos de controle de evolução de anemia, espaçar em pelo menos dois ou três meses os hemogramas subsequentes; em pacientes com óbvia melhora clínica, espaçar ainda mais. Anemia ferropênica do lactente

A carência de ferro tem prevalência tão elevada nesse grupo etário pela desproporção entre a expansão da massa eritroide, pelo rápido crescimento, e o conteúdo e disponibilidade biológica do ferro da dieta láctea, que já foi considerada como “fisiológica”. Há uma estimativa norte-americana 2 de 9% de crianças desse grupo etário (≅ 700.000 nos Estados Unidos) com deficiência de ferro, um terço das quais (≅ 240.000) anêmicas. Os números, no Brasil, devem ser proporcionalmente muito mais altos. O lactente necessita cerca de 1 mg de ferro por dia; o leite, tanto humano como bovino, contém ≅ 0,75 mg de ferro por litro. A absorção do ferro do leite materno é alta, de 15 a 40%; do leite bovino é inferior a 10%, daí a disparidade de reservas de ferritina e da prevalência de anemia, aos 6 meses, entre lactentes amamentados ao seio e lactentes alimentados com leite bovino. Fórmulas fortificadas com ferro são eficazes; até os 6 meses, igualam-se à lactação materna; após os 6 meses, superam-na, pois o conteúdo de ferro no leito materno diminui significativamente do sétimo mês em diante. A prevalência de carência de ferro, avaliada aos 12 meses, é de 20 a 30% no caso de lactação materna e de < 5% no caso de alimentação com fórmula fortificada. Suplementação universal de ferro, 10 mg/dia dos 6 meses aos 2 anos, recomendada em inúmeras publicações de puericultura, é pertinente. A Figura 6.6 (b), mostra hemograma de bebê de 8 meses alimentado exclusivamente com leite bovino. Vê-se que a anemia ferropênica pode chegar a extremos de microcitose e hipocromia. Acompanha-se sistematicamente de trombocitose, como regra entre 500.000 e 700.000/µL, mas que pode até ultrapassar 1 milhão/µL. A resposta ao tratamento com ferro é inicialmente rápida, até hemoglobina 7 a 8 g/dL, depois torna-se lenta, demorando meses (anos?) a equipará-la aos valores de referência próprios da idade. Os mecanismos adaptativos à anemia nesse grupo etário são muito eficazes, de modo que a resposta eritropoética é inferior à usual em crianças maiores e adultos: o organismo do lactente, como um todo, sofre menos com a anemia e responde lentamente. O sistema nervoso central, entretanto, não compartilha dessa tolerância; o prejuízo ao desenvolvimento intelectivo causado pela anoxemia cerebral duradoura decorrente da anemia ferropênica tem sido amplamente confirmado. O lactente com anemia ferropênica deve ser tratado precoce e eficazmente. As drogas de escolha são sempre e apenas sulfato ferroso ou ferrocarbonila. O ferro contido em moléculas orgânicas (ferroquelato glicinato, hidróxido de ferro III polimaltosado, outros), na considerável experiência do autor, é mal absorvido no trato digestivo e de baixa eficácia terapêutica por via oral. Anemia macrocítica da infância O autor teve oportunidade de diagnosticar e tratar vários casos quando atuava como consultor hematológico de hospital pediátrico de caridade, com atendimento direcionado a populações carentes; nunca a viu no consultório. O ácido fólico é amplamente difundido no reino vegetal: deficiência na dieta só pode acontecer em crianças seriamente desnutridas e em torno de 2 anos de idade, época de demanda excessiva pelo crescimento rápido. É uma doença grave, com total perda de apetite – o que piora a dieta –, emagrecimento e severa anemização. Em populações muito carentes, a anemia por falta de

ácido fólico também tem sido vista no pico de crescimento da adolescência. O enriquecimento obrigatório com ácido fólico de farinhas vegetais e outros alimentos industriais praticamente erradicou a carência. Os aspectos hematológicos – anemia megaloblástica – e o tratamento não diferem dos descritos para adultos no Capítulo 7. Anemias por defeito genético Anemias graves, como a drepanocitose (anemia de células falciformes), sua similar anemia microdrepanocítica e a talassemia, costumam ser diagnosticadas neste grupo etário; o diagnóstico é algo retardado por causa da enorme prevalência de anemia ferropênica: até os 2 a 3 anos, anemia é ferropênica até prova em contrário, e a prova em contrário – falta de resposta ao ferro – demora a ser notada. A drepanocitose costuma ser lembrada pela prevalência racial. Às vezes, há o fenômeno inverso: um diagnóstico errôneo de drepanocitose em criança com traço drepanocítico (heterozigótica AS) e teste de afoiçamento positivo (pedido por ser negra) e anemia ferropênica. O autor curou com sulfato ferroso vários casos dessa “pseudodrepanocitose”. Atualmente tanto a drepanocitose como a talassemia maior são notadas no teste do pezinho quando esse incluir HPLC ou eletroforese microcapilar da hemoglobina. Ainda assim há um engano comum: confundir, no resultado do teste do pezinho, a presença de Hgb S de traço drepanocítico (heterozigoze) com drepanocitose (homozigoze). A esferocitose só é diagnosticada cedo quando lembrada por haver pai ou mãe acometido (herança dominante); em raros casos há anemia perinatal significativa; se os tipos sanguíneos forem condizentes, costuma ser feito o diagnóstico errôneo de doença hemolítica por incompatibilidade ABO, pois há hemólise e esferócitos. As anemias hemolíticas por deficiência enzimática são raras; o diagnóstico é difícil e sempre tardio. As anemias hemolíticas têm dados clínicos comuns: baço palpável, icterícia, anomalias esqueléticas ou viscerais associadas, história familiar (casos dominantes) ou consanguinidade dos pais (casos recessivos), falta de resposta ao tratamento com ferro. Hemograma: como a microcitose etária confunde o diagnóstico diferencial com a microcitose ferropênica, o eritrograma numérico é mais difícil de se interpretar do que no adulto. No caso das anemias hemolíticas (esferocitose e drepanocitose), policromatocitose acentuada e constante é o dado fundamental. O pediatra, sempre que tiver acesso a laboratórios que dispõem de contagem automatizada de reticulócitos, deve pedi-la sistematicamente em hemogramas pediátricos para esclarecimento de anemia; uma reticulocitose > 200.000/µL é típica de anemia hemolítica. A visualização da policromatocitose, dos esferócitos e dos drepanócitos depende da qualidade do pessoal técnico do setor de hematologia do laboratório; nunca confiar nela. A talassemia maior é difícil de diagnosticar no primeiro ano de vida apenas pelo hemograma; é caso para especialista. O pediatra deve estranhar a anemização progressiva, irresponsiva ao ferro, chegando a níveis hemoglobínicos da ordem de 3 a 6 g/dL próxima ao fim do primeiro ano. A origem mediterrânea dos pais pode estar oculta pelo desconhecimento ou pela

troca matrimonial de sobrenomes. Os hemogramas desses, entretanto, costumam ser característicos de β-talassemia minor; sempre solicitá-los. As anemias aplásticas congênitas, quando se acompanham de outras anomalias, têm diagnóstico precoce; senão, não têm. As alterações hematológicas da anemia de Fanconi só surgem após os 6 anos de idade. As mais frequentes são discutidas no Capítulo 9; as demais estão descritas sumariamente, em ordem alfabética, no Apêndice 3, com as demais síndromes genéticas que causam citopenias. LEUCOGRAMA ATÉ OS 2 ANOS A contagem de leucócitos até os 2 anos de idade tem valores de referência muito amplos (ver Apêndice 1) pela grande variação individual no número de linfócitos. Costuma aceitar-se um limite superior em torno de linfócitos = 10.000/µL, mas há número significativo de crianças sadias com contagens tão altas quanto 15.000 a 18.000/µL. Nesse grupo etário, sempre são vistos alguns linfócitos de aspecto jovem, com cromatina pouco densa e nucléolo aparente. A distinção com linfoblastos exige microscopia por pessoal de alta qualificação técnica; ainda assim é temerário aceitá-los como linfoblastos se o hemograma mostrar-se normal em todos os demais números, isto é, sem anemia, neutropenia ou trombocitopenia; tratando-se de paciente sem sinais de doença séria, melhor observá-lo e repetir o hemograma após alguns dias antes de indicar exame da medula óssea. A “linfocitose” etária fisiológica faz o número de linfócitos ser superior ao de neutrófilos; a diminuição dos linfócitos costuma ser progressiva com a idade, empatando com os neutrófilos em torno dos 8 anos. Viroses, mesmo as mais comuns e benignas, suspeitadas por poucos dias de febre com manutenção de bom estado geral, causam neutropenia que pode ser acentuada (neutrófilos < 1.000/µL) por cerca de 5 dias; trombocitopenia leve (90.000 a 140.000/µL) é acompanhante usual. Nas doenças infecciosas graves, como abdômen agudo, pneumonias e outras, a resposta leucocitária com neutrofilia e desvio à esquerda é similar à do adulto. Neutropenia crônica autoimune: é uma rara doença autoimune pediátrica. Geralmente começa entre 8 e 24 meses de idade. No hemograma há acentuada e persistente neutropenia, entre 200 e 1.000/µL; não há anemia nem trombocitopenia. A pesquisa de anticorpos antineutrofílicos (não obtida no Brasil) geralmente é positiva. A medula óssea costuma ser examinada pela perspectiva de tratar-se de leucemia aguda ainda aleucêmica e sem anemia/trombocitopenia. O aspecto é idêntico ao da neutropenia crônica benigna genética, com precursores mieloides até alguns neutrófilos bastonados e extrema pobreza de neutrófilos segmentados. A criança desenvolve-se normalmente; há infecções orofaríngeas frequentes, mas de fácil tratamento. Como na neutropenia crônica benigna genética, o leucograma é mais “feio” que suas consequências clínicas. Costuma evoluir para a cura espontânea em 1 a 3 anos. Síndromes genéticas raras com neutropenia: muitas delas são notadas/diagnosticadas neste grupo etário; outras têm manifestações e diagnóstico mais

tardio. São discutidas em conjunto no Capítulo 14, e descritas sumariamente, em ordem alfabética, no Apêndice 3. PLAQUETOGRAMA ATÉ OS 2 ANOS As trombocitoses reacionais nos dois primeiros anos de vida são muito mais intensas que as do adulto. Já as trombocitopenias são as mesmas, ressalvadas as secundárias a doenças incomuns ou inexistentes nesse grupo etário (ver Cap. 18). Exceção é a síndrome urêmico-hemolítica esporádica que tipicamente ocorre entre 6 e 30 meses de idade. Trombocitopatias genéticas: é nos dois primeiros anos que são diagnosticadas as trombocitopatias genéticas em que há trombocitopenia acentuada (pelas precoces manifestações hemorrágicas) ou que se acompanham de um conjunto sindrômico de malformações anatômicas facilmente notadas. Trombocitopatias genéticas menos severas, incluindo defeitos menores de agregação plaquetária, muitas vezes são diagnosticadas apenas na idade adulta (ou nunca). As trombocitopatias são discutidas em conjunto no Capítulo 18. Trombocitopatias que fazem parte do quadro de mielopatias genéticas mais amplas (disceratose congênita, anemia de Fanconi, outras) geralmente não têm diagnóstico precoce embora sejam diagnosticadas ainda na infância; são discutidas no Capítulo 8. Outras síndromes genéticas que causam citopenias estão sumariamente descritas, em ordem alfabética, no Apêndice 3. As trombocitopatias genéticas – salvo (é óbvio) as que se acompanham de malformações – costumam ser inicialmente confundidas com PTI. Note-se que a PTI aguda é realmente comum nesse faixa etária, mas tem um início praticamente “explosivo”, muito diferente do quadro clínico, quase assintomático, de uma trombocitopatia: é precedida de virose febril, há trombocitopenia extrema com evidentes manifestações hemorrágicas e a evolução para a cura é rápida; às vezes cura com a primeira série de IgGIV e/ou corticoide. Já a PTI crônica, mais compatível clinicamente com uma trombocitopatia genética, é incomum antes dos 2 anos completos. Essa dificuldade diagnóstica exige que toda trombocitopenia na infância tenha hemograma com microscopia examinada pessoalmente por hematologista/laboratorista experiente. O autor, em seu mais de meio século de clínica/laboratório, viu dezenas de trombocitopatias genéticas diagnosticadas como PTI, várias já tratadas com séries de corticoide; reconhece, entretanto, que a falta de resposta ao tratamento é um dos sinais que leva à suspeita de trombocitopatia e envio a hematologistas, de modo que seus dados empíricos têm um bias estatístico. 1 Com a colaboração do Dr. Eurico Camargo Neto, do Centro de Triagem Neonatal (CTN), Porto Alegre, RS. 2 Looker AC, et al. Prevalence of iron deficiency in the United States. JAMA. 1997; 277(12):973-6.

20 HEMOGRAMA EM IDOSOS A diminuição da mortalidade infantil, a difusão de hábitos de higiene, a disponibilidade de saneamento básico às populações e o advento de vacinação em massa contra um número crescente de flagelos históricos da humanidade – salvo em áreas infelizmente extensas da África e sul da Ásia – fizeram a expectativa de vida sofrer dramática elevação nos últimos 150 anos. Nos países hoje desenvolvidos, a probabilidade de atingir a idade de 60 anos era de um terço em 1830, passou a um meio em 1900 e a dois terços em 1940. Especula-se que seja de > 80% para os que nasceram nas últimas décadas do século XX. Já a expectativa máxima de vida – a idade mais elevada que o ser humano pode atingir – persiste em cerca de 120 anos; esse extremo deve ser regido por processos intrínsecos à espécie, pois se mostra singularmente estável. A medicina assistencial não progrediu em níveis populacionais de modo tão significativo como a puericultura, o saneamento e a medicina preventiva. Em 1920, pessoas de 60 anos tinham expectativa de vida de mais 16 anos (até 76); em 2001, de mais 20 anos (até 80). Aumentou fantasticamente o número de pessoas que atingem a velhice; a curva de sobrevida mediana deslocou-se para a direita, a humanidade envelheceu, mas a duração da velhice aumentou pouco. Estima-se haver hoje mais de 18 milhões de idosos (> 65 anos) no Brasil e mais de 30 milhões nos Estados Unidos (EUA). A anemia em idosos tornou-se um problema de saúde pública. O hemograma nesse grupo etário crescente merece um capítulo próprio.

HEMATOPOESE EM IDOSOS A celularidade da medula óssea diminui visivelmente com a idade: células da hematopoese preenchem 40 a 60% dos espaços na medula vermelha de jovens, 30 a 40% na meia-idade, 20 a 30% em pessoas de mais de 65 anos. A função hematopoética basal, entretanto, é preservada. Células comprometidas às linhagens mieloides persistem suficientes; no sangue periférico, não há variação proporcional à diminuição da celularidade: o envelhecimento da hematopoese nota-se pela diminuição da capacidade de reserva. Perdas hemorrágicas são mais lentamente repostas. A neutrofilia reacional à infecção é menor, algo retardada e qualitativamente inferior; há baixa da atividade antibacteriana dos neutrófilos de idosos; a diferença só é clinicamente relevante em infecções graves. É impossível precisar se essas respostas menos ativas devem-se à diminuição de precursores hematopoéticos, à diminuição ou retardo na produção de fatores de crescimento, ou a ambos os fatores. A capacidade de mobilização de célulastronco da medula de idosos pelo fator estimulante de colônias granulocíticas (G-CSF) é definidamente reduzida, o que prejudica a eficácia da coleta para fins de transplante autólogo ou alogênico. Idosos, entretanto, respondem normalmente ao G-CSF usado como terapêutica de neutropenia. ANEMIA EM IDOSOS Estima-se em 1 a 2% a incidência anual de novos casos de anemia na população em geral; na população adulta, a maioria de casos é de anemia ferropênica em mulheres de 14 a 50 anos e decorre de excesso menstrual. Em idosos (> 65 anos), mesmo cessando essa causa, conforme estatística de 1994 da Mayo Clinic, EUA, usando os critérios de anemia da Organização Mundial da Saúde (OMS), a incidência é 4 a 6 vezes maior e ascendente, chegando a 13% por ano acima dos 85 anos. Dados do Third National Health and Nutrition Examination Study (NHANES III) 1 , com os mesmos critérios, mostram uma prevalência de anemia em idosos de 11% em homens e 10,2% em mulheres. Até os 65 anos, a prevalência é mais alta em mulheres; após os 75 anos, cinco pontos percentuais mais alta em homens. Números tão consideráveis merecem comentário. A maioria das tabelas publicadas em tratados de hematologia, com distribuição etária de valores de referência, aceita uma diminuição da hemoglobina média em idosos do sexo masculino, dos 65 anos em diante, de 15,0 a 15,5 g/dL para 13,5 a 14,5 g/dL aos 75 anos; a diminuição costuma ser atribuída, embora sem comprovação documental, à queda da produção de andrógenos. Já no sexo feminino, é descrita uma elevação pós-menopáusica da hemoglobina, até níveis similares aos masculinos aos 60 a 65 anos, com progressiva diminuição posterior. Em ambos os sexos, com o avançar da idade, após os 75 anos, a hemoglobina prossegue diminuindo. Com valores de referência distintos, o conceito de anemia em idosos mereceria revisão; lamentavelmente, não há números estatisticamente válidos, pela dificuldade de se ter uma população idosa de referência, e seria indesejável nova criação arbitrária de limites. Em relação a pacientes negros, há ainda a considerar-se a hemoglobina, em média 0,5 g/dL mais baixa nos portadores de α-talassemia, de

considerável prevalência, discutida no Capítulo 6, e a pequena diferença racial, discutida no Capítulo 2. Para ter uma ideia numérica da variação do nível hemoglobínico com o avançar da idade, o autor obteve uma estatística-piloto por gentileza do Setor de Informática do Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre: resultados da dosagem de hemoglobina tomada do hemograma de 500 pacientes homens com idade entre 50 e 60 anos, sequenciais na coleta ambulatorial do setor de convênios, e de outros 500, nas mesmas condições, com idade entre 70 e 80 anos. Foi definido o intervalo de dez anos entre as duas coortes para definir claramente que a primeira é constituída de pacientes ainda de meia-idade, e a segunda, de idosos, e evitar resultados de transição. Os resultados individuais foram plotados como gráficos de barras em eixos cartesianos: hemoglobina (de 0,5 em 0,5 g/dL) na abscissa e frequência na ordenada. O pequeno número de dados (500 em cada gráfico) gerou curvas irregulares, mas que permitiram notar que a principal diferença de hemoglobina entre as faixas etárias está na cauda para a esquerda (sentido da anemia), bem mais povoada nos idosos do que nos de meia-idade. As médias foram Hgb = 13,88 g/dL (50 a 60 anos) e Hgb = 12,92 g/dL (70 a 80 anos): uma diferença para menos de ≅ 1 g/dL. Retirando-se os valores abaixo de 11,5 g/dL (definidamente casos de anemia doença), as médias passaram a Hgb = 14,49 g/dL (50 a 60 anos) e Hgb = 13,99 g/dL (70 a 80 anos): uma diferença de apenas 0,5 g/dL. Como essa estatística inicial foi feita com pequenos números (500 – 500) e as curvas determinadas pelo ápice das barras mostraram-se irregulares, foi repetida com dados idênticos, mas em maior número, gentilmente fornecidos pelo Laboratório Weinmann (Grupo Fleury, Porto Alegre): 12.725 pacientes ambulatoriais sequenciais (7.631 entre 50 e 60 anos e 5.094 entre 70 e 80 anos), que demandaram o laboratório nos primeiros meses de 2014. Os novos gráficos estão na Figura 20.1 (a) e (b). Nota-se óbvia diferença das caudas à esquerda, bem maior nos idosos; nota-se ainda que, com grandes números, os topos das barras de frequência definiram curvas regulares, harmônicas, estatisticamente impecáveis. As médias foram Hgb = 14,5 g/dL (50 a 60 anos) e Hgb = 13,7 g/dL (70 a 80 anos): diferença para menos de 0,8 g/dL. Retirando-se novamente os valores abaixo de 11,5 g/dL, as médias tornaram-se Hgb = 14,7 (50 a 60 anos) e Hgb = 14,1 (70 a 80 anos), uma diferença de 0,6 g/dL. A diferença das médias obtidas na primeira e segunda estatísticas sugere que a população de pacientes que demanda o Weinmann, com postos de coleta fora de hospital, seja distinta da população que demanda o laboratório da Santa Casa, hospital universitário; nenhuma das duas estatísticas incluiu pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).

FIGURA 20.1 Hemoglobina de 7.631 pacientes sequenciais entre 50 e 60 anos (a); hemoglobina de 5.094 pacientes sequenciais entre 70 e 80 anos (b) (estatística fornecida pelo Laboratório Weinmann, Grupo Fleury, Porto Alegre, 2014).

O autor conclui que a diferença do nível de hemoglobina descrita na literatura, entre essas faixas etárias (50 a 60 e 70 a 80 anos), distanciadas 10 anos, é da ordem de 0,6 g/dL e principalmente decorrente da crescente patologia múltipla no idoso, provavelmente

incluindo uma anemia multifatorial que lhes é própria – anemia dos idosos (discutida adiante) – e não (ou apenas parcialmente) de uma baixa fisiológica própria da velhice. A rotina preconizada sob o título “Anemia mínima” (ver Cap. 3) é ainda mais pertinente quando se trata de pacientes idosos, mas não é exatamente aplicável. Se os hemogramas prévios forem distanciados em anos, diminuições da hemoglobina devem ser correlacionadas à evolução etária com a “baixa fisiológica” (?) aceita na literatura e/ou à baixa decorrente de patologia subclínica, como crê o autor. O conceito de anemia como diminuição da hemoglobina em relação a hemogramas anteriores merece essa ressalva cronológica. Assim, a diminuição da hemoglobina deve ser valorizada apenas quando o intervalo for curto (de meses a 2-3 anos) entre os resultados disponíveis. Das dificuldades expostas, surgem algumas recomendações pertinentes: ■ Clínicos, cardiologistas e geriatras devem insistir na necessidade universal de os pacientes fazerem uma revisão médica extensa em torno dos 60 anos, que inclua, além da rotina bioquímica, hemograma com contagem de reticulócitos, dosagens de ferritina e vitamina B12. Esses três exames servirão de termo de comparação para determinações futuras. A ferritina tem uma utilidade extra: fazer notar, no ato, casos ainda assintomáticos de hemocromatose, o que é importante pela elevada prevalência dos respectivos genes variantes. ■ Devem também recomendar aos pacientes que guardem religiosamente os resultados de exames, todos (não só os últimos), dispostos em ordem cronológica, e habituem-se a levá-los sempre que forem à consulta médica. O autor reconhece que, no Brasil, isso só é possível em clínicas de atendimento à elite socioeconômica e à fração da classe média que dispõe de previdência privada ou paraestatal funcionantes. A maioria da população ainda vaga de um posto a outro da assistência médica estatal, como nômades em busca de oásis, sem acesso a atendimento diferenciado e sem um prontuário centralizado que a acompanhe. Causas de anemia A estatística do NHANES III dividiu os casos de anemia em idosos em 3 causas gerais, de prevalência aproximadamente igual, que, extrapoladas da amostragem para a população dos EUA, geraram uma estimativa de cerca de 3 milhões de idosos anêmicos: ■ Anemias carenciais (34%) – anemia ferropênica, incluindo perda crônica de sangue, anemias por deficiência de vitamina B12 e de ácido fólico ■ Anemias secundárias a doenças crônicas (32%) – insuficiência renal crônica, doenças inflamatórias/infecciosas, câncer, outras ■ Anemias não esclarecidas (34%) – (a rotina do NHANES III não permite melhor avaliação) O autor, a partir dessa e de outras fontes, elaborou a Tabela 20.1. A todos os tipos/causas de anemia listados há título correspondente neste manual.

TABELA 20.1 Causas e estimativa de prevalência de anemia em idosos Tipos (causas) de anemia Anemias carenciais ■ Anemia ferropênica ■ Perda crônica de sangue ■ Falta de absorção (acloridria, outras) ■ Nutricional ■ Falta de vitamina B12 ■ Falta de ácido fólico (em alcoolistas) ■ Deficiências (acima) mistas ■ Desnutrição calórico/proteica com perda de peso (sarcopenia) Anemias em doenças crônicas ■ Insuficiência renal crônica ■ ADC (inflamação/infecção, câncer, endocrinopatias, etc.) ■ Hemopatias malignas (LLC, mielo displasias são particularmente comuns) ■ Anemias hemolíticas (imunológicas, outras)

Prevalência 34% 20-30% Causa usual Não rara Muito rara 5-10% Rara Comum Não rara 32% 5-10% 20-30% 5-10% Raras

Anemias não esclarecidas ■ (apesar de avaliação detalhada)

15-25%

ADC, anemia de doença crônica; LLC, leucemia linfocítica crônica. (Números do NHANES III em negrito azul.)

Anemia dos idosos A alta porcentagem de casos de etiologia e patogênese resistentes à investigação detalhada sugere a existência de uma anemia dos idosos, com mecanismos próprios, provavelmente múltiplos, só encontrados nesse grupo etário. Dentre eles são postulados: Desregulação da resposta inflamatória: a resposta inflamatória em idosos muitas vezes mostra-se inapropriadamente prolongada, com manutenção de níveis elevados de interleucina 6 (IL-6) e fator de necrose tumoral (TNF-α), mesmo após a cessação das causas do estímulo inicial; o termo hipercitoquinemia tem sido usado para definir esse estado mórbido subclínico. Persistem ativos, assim, os mecanismos de anemia de doenças crônicas (ADC), isto é, a anemia se mantém. Avaliação de 60 casos de anemia idiopática em residentes de casa geriátrica 2 mostrou elevação de IL-6 em 26 (45%) e falta de resposta eritropoetínica apropriada. Essa ADC prorrogada, ou sem causa aparente, seria uma anemia com patogênese única de idosos. Sarcopenia: em idade sempre acima dos 75 aos 80 anos, geralmente próxima aos 90, é frequente a ocorrência de perda progressiva do apetite, com diminuição da ingesta calórico/proteica e consequente perda de peso, inicialmente a partir das reservas de gordura, logo após, pela atrofia das massas musculares. Essa síndrome, dita sarcopenia do idoso, às vezes acompanha-se de lenta, mas significativa, anemização. A anemia é similar à da desnutrição proteica sem privação calórica (caracterizada por hipoalbuminemia): normocítica, sem alterações esclarecedoras do hemograma, às vezes com resultados laboratoriais sugestivos de ADC. É possível que a diminuição da hemoglobina seja uma resposta fisiológica à sarcopenia, em parte por baixa da utilização de oxigênio e da produção de eritropoetina, em parte por aumento da volemia plasmática.

Na experiência do autor, quando a síndrome instala-se rapidamente e resiste a uma pesquisa etiológica (senilidade terminal?), é de prognóstico ominoso. Deficiência dos sensores responsáveis pela produção de eritropoetina: comprovase que idosos cuja hemoglobina mantém-se acima de 14 g/dL têm nível sérico de eritropoetina mais alto que pessoas mais jovens; essa pode ser uma adaptação fisiológica a uma menor responsividade do tecido eritroide. A incapacidade desse reajuste seria uma causa, ao menos coadjuvante, de anemização. Causas clínicas negligenciadas ou de difícil evidenciação: das muitas drogas comumente usadas por idosos pode decorrer significativa toxicidade à hematopoese. Nem sempre é fácil um levantamento completo; mais difícil ainda é conhecer a potencialidade mielotóxica do vasto armamentário terapêutico disponível. Doenças estabelecidas, como insuficiência renal com creatinina elevada, hipotireoidismo com TSH elevado, são de fácil diagnóstico se esses exames forem sistematicamente feitos. Por outro lado – e isso ocorre em idosos –, pode haver uma multiplicidade de entidades mórbidas subclínicas, cada uma delas individualmente indiagnosticável, mas cujo somatório é suficiente para causar anemia com ou sem características laboratoriais de anemia de doença crônica (ADC). Consequências da anemia Sinais e sintomas de anemia são sempre mais precoces, mais intensos e mais graves em idosos. E há consequências que (quase) só ocorrem nesse grupo etário: Sistema circulatório: anemia (mesmo leve) causa taquicardia, palpitações e taquipneia, e desencadeia angina em idosos com insuficiência coronária latente. O aumento a longo prazo do débito cardíaco causa hipertrofia ventricular esquerda sem aumento da massa miocárdica; posteriormente, insuficiência cardíaca. Sistema nervoso central (SNC): a sensibilidade do SNC à hipoxemia aumenta muito em idosos. A anemia causa cefaleia, diminuição da atividade cognitiva, alterações da memória e do humor, depressão. Quando severa, pode desencadear sinais passageiros ou duradouros de insuficiência circulatória cerebral. A ação sobre o SNC, combinada à fatigabilidade muscular, diminui a agilidade motora e, com a maior suscetibilidade a tonturas e vertigens, aumenta o risco de quedas e suas consequências, como fraturas de fêmur. A anemia potencializa a fragilidade 3 (frailty) do idoso e interfere grosseiramente na qualidade de vida. O tratamento, seja curativo, seja paliativo, é indispensável. Hemograma e exames complementares No caso de anemia provável ou indiscutível, avaliar no hemograma em primeiro lugar as demais séries. O raciocínio a seguir parte do pressuposto de um leucograma inexpressivo e de um número normal de plaquetas, isto é, de que não há uma hemopatia que comprometa globalmente a medula óssea, só anemia a esclarecer. Se houver outros

exames, atentar para creatinina e TSH (indispensáveis), e proteinograma (útil porque hipergamaglobulinemia pode mostrar doença hepática, atividade reumático/imunológica, pico monoclonal). Dosagens de ferritina e vitamina B12, se não houver, solicitá-las de acordo com o critério a seguir. No hemograma, observar os índices hematimétricos a seguir: se volume corpuscular médio (VCM) < 84 fL ou hemoglobina corpuscular média (HCM) < 28 pg, ou havendo diminuição de qualquer deles em relação a eritrogramas anteriores, como no laudo evolutivo da Figura 20.2, pedir ferritina, ferro sérico e capacidade ferropéxica. No caso da figura foram: ferritina = 26 ng/mL; ferro sérico = 62 µg/mL; capacidadede ferropéxica = 351 µg/mL; saturação = 19,6%; conjunto compatível com esgotamento das reservas de ferro. Nesses casos, tratar com ferro oral (ver a diferença da Hgb após dois meses) e pesquisar causas de perda crônica de sangue. 02/04/2014

13/01/2014

18/12/2013

06/08/2013

Eritrócitos

4,18

4,39

4,45

4,64

M/µL

Hemoglobina

11,3

12,4

12,8

13,3

g/dL

Hematócrito

35,0

37,9

38,4

40,9

%

VCM

83,7

86,4

86,3

88,1

fL

HCM

27,0

28,2

28,7

28,7

pg

CHCM

32,3

32,7

33,0

32,8

%

RDW

13,9

13,4

13,3

12,8

FIGURA 20.2 Laudo evolutivo (Laboratório a+) de paciente de 71 anos com discreta amenização (Hgb = 13,3 ⇒ 11,3) e tendência à microcitose (VCM = 88,1 ⇒ 83,7): provável anemia ferropênica incipiente.

Se a ferritina for > 100 ng/mL, fazer avaliação detalhada para excluir doença crônica potencialmente anemizante. Com ferritina entre 30 e 70 ng/mL, cabe uma prova terapêutica – 500 mg de sulfato ferroso ou 120 mg de ferrocarbonila por dia, durante 2 a 3 meses – seguida de novo hemograma no mesmo laboratório. Se não houver diferença significativa na hemoglobina (> 1,5 g/dL), não insistir com ferro. Se o VCM > 98 fL ou estiver elevando-se em relação a eritrogramas anteriores, pesquisar na lista de causas de macrocitose (ver Cap. 2). O laudo evolutivo de caso de anemia perniciosa da Figura 7.1, é muito esclarecedor. Sempre dosar vitamina B12 e TSH, pois hipotireoidismo é outra causa comum de macrocitose. Lembrar-se de que o alcoolismo causa macrocitose, mas que não causa anemia em pacientes bem nutridos. Mielodisplasias, que são hemopatias próprias dos idosos, devem ser consideradas: o diagnóstico é difícil, exige consulta com hematologista e exames pertinentes. No caso de macrocitose ou tendência à macrocitose, é inútil perseguir causas de perda sanguínea; não é essa a patogênese da anemia. Gastroscopia pode ser indicada para avaliar a gastrite desencadeante da falta de vitamina B12 se esta se confirmar. Apreciar o RDW: pequeno aumento (entre 14,5 e 16) é usual no início de anemia ferropênica, mas não no de anemia macrocítica. Macrocitose moderada, ou normocitose, com RDW > 18 sugere síndrome mielodisplásica incipiente.

Preferir sistematicamente laboratório que disponha de contagem automatizada de reticulócitos e solicitá-la como rotina junto com o hemograma; nunca aceitar contagem de reticulócitos feita ao microscópio (“manual”). Reticulocitose, isto é, aumento do número absoluto de reticulócitos, quando entre 120.000 e 200.000/µL sugere perda sanguínea recente. Reticulocitose > 250.000/µL costuma dever-se a anemia hemolítica; a autoimune não é rara em idosos. No laboratório do autor, sempre que a microscopia de lâmina (reticulocitose gera essa exigência) era sugestiva de anemia hemolítica autoimune (reticulocitose com macrócitos policromáticos e esferócitos) era feito teste de Coombs (antiglobulina) direto – independentemente de pedido do médico – e fornecido no resultado. Em anemias estabelecidas, o hemograma do idoso comporta-se como o dos adultos em geral. Reportar-se aos respectivos capítulos de anemia. Havendo leucograma alterado ou trombocitopenia, o paciente deve ser encaminhado à consulta com hematologista já em primeira instância. Tratamento Em anemias com diagnóstico e etiologia confirmados e com tratamento eficaz disponível (carenciais, hemolíticas, outras), o tratamento é o descrito nos capítulos respectivos. Em anemias refratárias, só passíveis de tratamento paliativo com reposição transfusional periódica ou eritropoetina, considerar a suscetibilidade dos idosos à hipoxemia e agir com certa liberalidade. A diferença de qualidade de vida do idoso, para melhor, elevando-se a hemoglobina de < 8 g/dL para > 9,5 g/dL, é universal; manter eritropoetina nos casos responsivos, hemoterapia nos irresponsivos. Já a elevação de 9,5 para 11-12 g/dL mostra-se benéfica na maioria dos ​casos, mas não em todos. Há idosos sedentários, em boas condições ​circulatórias, que toleram bem, sem queixas, uma hemoglobina entre 9 e 10 g/dL; reposição transfusional periódica – com suas consequências – para esses não é indicada. Se a anemia for do tipo que às vezes é responsivo à eritropoetina (ADC, câncer, alguns casos de mielodisplasia), há que ponderar-se o custo-benefício da indicação. Justifica-se teste terapêutico: 6 a 8 semanas de eritropoetina subcutânea (4.000 UI 3 vezes por semana em ADC e câncer, e 10.000 UI 3 vezes por semana em mielodisplasias), precedida e sucedida por hemograma para ver se houve elevação da hemoglobina; caso tenha havido elevação, o tratamento foi eficaz para o eritrograma, cabe saber se foi eficaz para o(a) paciente. É indispensável um cuidadoso questionário, sobre suas condições antes e depois, para definir o benefício clínico e a utilidade de manutenção. No caso de idosos sem lucidez para sentir a diferença, só se faz tratamento de prova se houver alterações cardiovasculares (angina, insuficiência circulatória cerebral, etc.) que justifiquem a indicação, e só a melhora objetiva dessas alterações com a elevação da hemoglobina justifica mantê-lo. LEUCOGRAMA EM IDOSOS

Deve ser interpretada como no adulto em geral, considerando-se, entretanto, que a neutrofilia, como regra, não atinge a mesma magnitude, e que neutropenia súbita (com grande desvio à esquerda) decorrente de exaustão da reserva granulocítica é muito mais comum em idosos. Linfopenia progressiva em idosos, notada em comparação com hemogramas anteriores, prenunciaria uma perspectiva de mortalidade, em três anos, superior à prevista para grupo-controle estratificado; não haveria diferença da causa mortis entre os linfopênicos e os controles. O autor a viu várias vezes, mas não dispõe de registros estatísticos válidos. Diante de linfopenia, sempre questionar sobre radioterapia e/ou quimioterapia prévias, mesmo anos antes. PLAQUETOGRAMA EM IDOSOS As causas de trombocitopenia e trombocitose são as mesmas das causas dos adultos em geral. Trombocitopenia autoimune subclínica, na opinião empírica do autor, parece particularmente comum em idosos. A púrpura trombocitopênica autoimune crônica, rara, mas grave, exige tratamento com corticoides, indesejável em idosos; o autor teve vários casos, com positividade para anticorpos anti-Helicobacter pylori, curados ou muito melhorados com o tratamento antibiótico apropriado. 1 Guralnik JM, et al. Prevalence of anemia in persons 65 years and older in the United States: evidence for a high rate of unexplained anemia. Blood. 2004;104(8):2263-8. 2 Artz AS, et al. Mechanisms of unexplained anemia in the nursing home. J Am Geriatr Soc. 2004;52(3):423-7. 3 Os idosos desenvolvem frailty, para a qual não há uma palavra apropriada em português. A palavra mais próxima, “fragilidade”, é a tradução de “fragility” do inglês (qualidade do que quebra facilmente, como cristal).

21 NEOPLASIAS DA HEMATOPOESE: GENERALIDADES Neste capítulo e nos subsequentes, discutem-se as neoplasias do tecido hematopoético mieloide e linfoide. São proliferações clonais, originadas de células que sofreram mutações na sequência de bases do DNA, rearranjos cromossômicos com expressão inadequada de oncogenes, e/ou inibição de mecanismos de controle proliferativo. Na maioria das vezes, a etiologia do evento que altera esses pontos críticos do genoma persiste desconhecida, podendo ser apenas um acidente randômico, mas, em crescente número de casos, sabe-se que decorre de predisposição genética, da interferência de retrovírus, da ação prévia de drogas antiblásticas ou de exposição à radiação ionizante. As células neoplásicas amadurecem lenta e incompletamente, mostram-se inapropriadas às funções normais e desenvolvem desvios funcionais deletérios ao microambiente, à proliferação das células normais remanescentes e à imunologia global do organismo. Muitas têm sobrevida superior à normal, outras têm vantagens proliferativas e, paradoxalmente, há as que mostram um exagero apoptótico, daí se originarem citopenias seletivas ou globais. Em conjunto, entretanto, essas proliferações culminam por desenvolver um acúmulo de células neoplásicas que, quando são próprias da medula, ou a invadem, substituem parcial ou totalmente a mielopoese normal.

A multiplicidade de classificações e nomenclaturas, que dificultou a comunicação e a comparação de dados relativos às neoplasias da hematopoese, parece ter terminado junto com o século XX. Um Comitê Diretivo de Hemopatologistas assessorado por oncohematologistas clínicos publicou, em 2001, o volume relativo a Tumores dos Tecidos Hematopoético e Linfoide, na série Classificação de Tumores da Organização Mundial de Saúde (OMS). O livro, considerado como a mais alta hierarquia no tema, já está em sua 4ª edição 1 (2008), com 7 editores, 62 membros no Comitê Diretivo e 130 colaboradores. Mais do que uma classificação, é uma listagem de descrições de entidades clínicas, definidas inicialmente pela linhagem, no caso mieloide e linfoide (inclui, também, neoplasias histiocíticas/dendríticas e mastocíticas), e seguidas por uma combinação na qual entram, com hierarquia variável, a morfologia, a imunofenotipagem, a citogenética, a genética molecular e as características clínicas. Para cada neoplasia é postulada uma célula de origem, que, na verdade, é o estágio celular visto no tumor, não necessariamente a célula que sofreu o evento oncogênico inicial. Para facilitar o acesso dos onco-hematologistas à Classificação da OMS (2008), o autor transcreveu o índice da lista, com os números de código da OMS, no Apêndice 2. Neoplasias, tanto linfoides como mieloides, quando se originam ou precocemente disseminam-se na medula óssea e, de modo sistemático ou usual, invadem o sangue periférico, são ditas leucemias. Além da origem celular, a cronologia da evolução espontânea é tradicionalmente usada para a classificação. Nas leucemias agudas, a proliferação faz-se a partir de células primitivas da mielopoese ou de precursores linfoides, que perdem a capacidade maturativa; a expansão dos clones é rápida e causa insuficiência hematopoética fatal se não for contida pelo tratamento. As leucemias agudas, independentemente da origem mieloide ou linfoide, têm um denominador comum no hemograma: citopenia das três séries mieloides e presença de blastos leucêmicos em número variável, como regra, crescente. Por esse motivo, são discutidas em conjunto neste manual. Nas leucemias crônicas, embora possam originar-se igualmente de evento oncogênico em células primitivas, a capacidade maturativa é mantida, a insuficiência hematopoética é tardia e a sobrevida medida em meses ou anos. O hemograma, tanto ao diagnóstico quanto à evolução, varia com a progênie de origem, e os aspectos costumam ser suficientes para caracterizá-la; serão discutidas em capítulos distintos neoplasias mieloides e linfoides. Como há neoplasias mieloides de lenta evolução oriundas dos tecidos eritroide e megacariocítico, para as quais seria impróprio o termo “leucemia”, foi criada uma designação genérica, mais ampla, neoplasias mieloproliferativas, que engloba o conjunto. Proliferações mieloides clonais, caracterizadas por exagero apoptótico, hematopoese ineficaz e citopenias periféricas, mas cuja história natural prevê novas mutações e súbita ou paulatina transformação leucêmica, denominam-se síndromes 2 mielodisplásicas (SMDs). Há neoplasias mielodisplásicas/mieloproliferativas por manifestarem, ao mesmo tempo, características de ambas. Algumas neoplasias de células linfoides maduras são ab initio leucêmicas, com infiltração medular e linfocitose sanguínea. Outras se desenvolvem como tumores sólidos nodais ou extranodais e só tardia ou inconstantemente invadem a medula e o sangue

(leucemizam); são denominadas linfomas. A classificação da OMS considera artificial a distinção entre a fase circulante (leucêmica) e a fase sólida (tumoral) das neoplasias linfoides, por serem etapas ou expressões da mesma doença cito e histopatológica. Olhando do enfoque do hemograma, isto é, no enfoque deste livro, entretanto, a diferença é fundamental: nas leucemias e nos linfomas leucemizados, o hemograma é a origem, muitas vezes conclusiva, do diagnóstico. Nos linfomas nodais ou extranodais não leucêmicos, o hemograma é inexpressivo ou mostra alterações inespecíficas, no máximo compatíveis com o diagnóstico. Por esse motivo, o autor discutiu as neoplasias linfoides de células maduras classificadas não pela origem B, T ou NK, mas pela hierarquia do aspecto leucêmico do hemograma: inicialmente as leucemias linfoides crônicas, a seguir os linfomas, desses particularmente os que têm história natural que inclua a perspectiva de leucemização e diagnóstico pelo hemograma. O linfoma (ou doença) de Hodgkin, nunca leucêmico, foi discutido pela importância histórica, pela prevalência e pela utilidade do hemograma no diagnóstico diferencial com os demais linfomas. O mieloma múltiplo, o linfoma linfoplasmocítico (em sua forma dita macroglobulinemia de Waldenström) e outras (raras) neoplasias linfoplasmocíticas secretoras de imunoglobulinas clonais, embora sejam neoplasias de células B maduras, costumam ser agrupadas em separado sob o título de gamopatias monoclonais. As hemopatias malignas, em conjunto, são responsáveis por mais de 5% das mortes por câncer em geral e por aproximadamente 50% dos casos de oncologia pediátrica. A incidência global é da ordem de 10 casos por 100 mil por ano; como muitas permitem longa sobrevida, e é crescente o número de casos em remissão ou curados com o tratamento, a prevalência é muito mais elevada. 1 Swedlow SH, et al., editors. World Health Organization classification of tumors of haematopoietic and lymphoid tissues. 4th ed. Lyon: IARC Press; 2008. Uma 5ª edição não foi publicada até a data de lançamento deste Manual. 2 O termo “síndrome” é obviamente inapropriado, mas é consagrado pelo uso e mantido na Classificação da OMS. O termo disorder (≅ “distúrbio”), usado em classificações anteriores, foi restrito a raras entidades.

22 LEUCEMIAS AGUDAS GENERALIDADES E CLASSIFICAÇÃO Nas leucemias agudas, a população leucêmica compõe-se de 10 a 20% de células em ciclo celular ativo, de células em repouso, mas capazes de volver ao ciclo mitótico, e de células senescentes, incapazes de ulterior divisão. Há maturação anárquica e alterações cromossômicas e moleculares. Por ocasião do diagnóstico, o organismo contém mais de 1012 células leucêmicas, geralmente designadas como “blastos”, que se acumulam compactamente na medula, nos tecidos linfoides (no caso das leucemias linfoblásticas) e que podem infiltrar-se praticamente em todos os órgãos. A leucemia aguda não tratada causa insuficiência hematopoética progressiva, rapidamente fatal se não for contida pelo tratamento com quimioterapia intensiva. Havendo doador compatível, o transplante alogênico de medula óssea é, muitas vezes, indicado e pode ser curativo. A leucemia aguda (LA) pode ter origem linfoide (LLA) ou mieloide (LMA). Na infância, predomina a LLA (85% dos casos); no adulto, a LMA (80% dos casos). Dada a variabilidade de progênies e estágios de maturação celular de onde pode originar-se o clone leucêmico, a distinção puramente morfológica FAB (comitê FrancoAmericano-Britânico), em moda no fim do século passado, é agora utilizada somente para a descrição dos blastos vistos no hemograma e no mielograma. O diagnóstico clínico final exige uma base mais ampla: a morfologia e a citoquímica (como auxílio rápido à morfologia) servem para o diagnóstico presuntivo inicial que orienta a escolha econômica

dos marcadores imunológicos da imunofenotipagem por citometria em fluxo; seguem-se exames citogenéticos e de biologia molecular. A classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), elaborada nesses termos, distingue, entre as leucemias mieloides agudas, uma variedade de entidades clínicas. Algumas se caracterizam por anormalidades citogenético/moleculares recorrentes; outras, por se acompanharem ou derivarem de quadros mielodisplásicos; um terceiro grupo, por decorrer de tratamento prévio com antiblásticos; um quarto grupo, subclassificado por aspectos citomorfológicos e imunofenotípicos (similares aos da classificação FAB), pela falta das correlações recém-citadas; em um quinto grupo, estão as proliferações mieloides relacionadas à síndrome de Down. Como a discussão e a caracterização dos subtipos ultrapassam os limites deste manual, consulte-se a classificação completa da OMS no Apêndice 2. O conjunto de exames, para enquadramento de cada caso de LMA na classificação, é trabalho para laboratórios especializados que incluam seções de patologia, citogenética e biologia molecular, laboratórios de hospitais universitários ou institucionais. Nas leucemias linfoides (ou lifoblásticas) agudas, que o texto da OMS define como expansões clonais de linfócitos B e T precursores (linfoblastos), também existem alterações citogenéticas recorrentes que caracterizam muitas das entidades clínicas, mas a imunofenotipagem mostra-se suficiente, preferencial até, para defini-las na rotina clínica. A forma leucêmica do linfoma de Burkitt (antiga LLA FAB L3), apesar da célula de origem ser um linfócito B maduro, clinicamente é uma leucemia aguda como as demais. No caso das LLAs de precursores B, o grau de diferenciação dos linfoblastos tem correlações clínicas; a subclassificação é feita por imunofenotipagem. Todas as B são TdT+, HLA-DR+, CD19+, CD22+ e CD79a+; a de precursores B mais indiferenciados (pró-B) é CD10–; a LLA de precursores intermediários é CD10+ (LLA comum, pois CD10 é o cALLA = common ALL antigen); e na pré-B os blastos são cIg+ (têm imunoglobulina citoplasmática). As células de Burkitt têm todos os marcadores B e mIg (IgM na membrana); são negativas para TdT e CD23 e BCL2. A classificação da OMS lista sete alterações citogenético/moleculares (ver Apêndice 2) como recorrentes e clinicamente relevantes na LLA de precursores B. Hiperdiploidia entre 51 e 65 cromossomos acompanha-se de prognóstico especialmente favorável; hipodiploidia, principalmente ≤ 44 cromossomos, implica prognóstico desfavorável. Na LLA de precursores T, os linfoblastos são sempre CD3+ e/ou CD7+ (quase sempre ambos). Outros marcadores T têm expressão variável. Não foram demonstradas alterações citogenéticas clinicamente relevantes. Acomete principalmente crianças acima de 6 anos e adolescentes, frequentemente há comprometimento tímico com massa mediastinal, e a evolução é mais grave, com prognóstico pior do que é usual nas LLAs de origem B. HEMOGRAMA NAS LEUCEMIAS AGUDAS Independentemente das classificações mencionadas, o diagnóstico de LA origina-se dos sinais e sintomas discutidos a seguir, todos indicativos da necessidade de um hemograma

ou de resultado inesperado de hemograma solicitado sem essa suspeita. Pensar em leucemia aguda quando forem notados: ■ Anemia de rápida instalação: não havendo perda sanguínea que a justifique e havendo sinais sistêmicos de doença, pensar em LA. ■ Púrpura recente: se equimoses, petéquias e sangramento das mucosas forem súbitos (de um dia para outro) e notados em paciente com bom estado geral, sem aspecto doentio, o diagnóstico de púpura trombocitopênica aguda é mais provável; caso contrário, com empalidecimento, anorexia, febrícula e duração de algumas semanas, pensar em LA. ■ Febre ou outros sinais de infecção com anemia e/ou púrpura recentes: é a apresentação clássica de LA; são sinais de pancitopenia (anemia, trombocitopenia e neutropenia). ■ Dor óssea (40% dos casos): pesquisá-la pela pressão digital no esterno. Não é apanágio da LA: está presente em qualquer disseminação tumoral metastática na medula. ■ Linfonodomegalias: presentes em 60% dos casos de LLA; raras na LMA. ■ Esplenomegalia: o baço é palpável em 70% dos casos de LLA e 30% de LMA. ■ Dores reumáticas em criança: são associadas a qualquer desses itens. ■ Gengivite hipertrófica: caracteriza os tipos monocíticos de LMA. No caso de suspeita clínica por qualquer dos dados acima, ou pelo conjunto deles, solicitar imediatamente hemograma. Escolher um laboratório reconhecidamente dedicado à Hematologia; LA é um diagnóstico difícil, de grande responsabilidade e relativa urgência. Não pedi-lo a laboratórios-satélite de clínicas de atendimento primário, nem fora do horário convencional de expediente. Se a suspeita ocorrer em fim de semana, encaminhar o paciente ao plantão do laboratório de um grande hospital, mas certificar-se de que o hematologista titular verá pessoalmente o exame. Dois resultados de LA incipiente estão na Figura 22.1. O hemograma da Figura 22.1 (a) mostra apenas pancitopenia; a anemia é moderada, a trombocitopenia não deve ainda estar causando manifestações hemorrágicas, a neutrocitopenia já é acentuada. Presume-se que o laboratorista não tenha notado células leucêmicas (blastos); cabe-lhe procurá-las com especial atenção em hemogramas como esse; a fórmula leucocitária do resultado foi a fornecida pelo contador eletrônico (note-se que as porcentagens vêm com decimal). É indistinguível do hemograma de anemia aplástica; a clínica favorecerá o diagnóstico de LA se houver dor óssea ou organomegalias. Já no hemograma da Figura 22.1 (b), o laboratorista identificou e anotou no resultado 7% de blastos; deve tê-los descontado da porcentagem de linfócitos e assumido o resto da fórmula feita pelo contador; é provável que a máquina tenha emitido flag de blasts ou variant lymphs, mas nessa porcentagem a sensibilidade é baixa.

FIGURA 22.1 Hemogramas de leucemia aguda aleucêmica (a) e subleucêmica (b).

A confirmar-se o diagnóstico de LA aguda pelo exame da medula óssea, indicado nos dois casos, o primeiro seria (ainda) aleucêmico (sem blastos), o segundo, subleucêmico (com blastos, mas sem leucocitose); os termos são corretos e pertinentes, mas pouco usados. É sempre mais sensato, da parte do médico que recebe um desses resultados, encaminhar o(a) paciente à consulta com hematologista do que pedir mielograma ao laboratório. Já os hemogramas da Figura 22.2 são patognomônicos de LA. Em ambos os casos, o contador eletrônico foi incapaz de fazer a fórmula leucocitária; foram feitas ao microscópio (notem-se as porcentagens com decimal zero). No hemograma da esquerda, os números dos leucócitos normais remanescentes não são fidedignos, pelo erro estatístico diante da alta contagem de blastos. LA com alta contagem de blastos exige tratamento urgente; cabe ao médico encaminhar imediatamente o(a) paciente a hospital que ofereça tratamento onco-hematológico apropriado.

FIGURA 22.2 Hemograma de leucemia linfoblástica aguda com alta contagem de blastos (a) e de leucemia promielocítica (b).

Notando blastos leucêmicos no hemograma, cabe ao laboratorista descrevê-los para sugerir a progênie mais provável; em alguns casos, a morfologia permite uma classificação acurada. Os linfoblastos (Fig. 22.3) podem apresentar-se morfologicamente como células pequenas, de núcleo denso, semelhantes a linfócitos maduros (a); células grandes, com núcleo jovem e nucléolos óbvios (b); ou como células também grandes, muito basófilas e com citoplasma vacuolizado, idênticas às células do tumor de Burkitt (c). Esses aspectos foram designados pelo Grupo FAB como LLA I, LLA II e LLA III respectivamente.

FIGURA 22.3 Linfoblastos em leucemia linfoblástica aguda.

No laboratório do autor, na presença de blastos no hemograma, era feita sistematicamente a coloração de mieloperoxidase (independentemente de pedido do médico requisitante), e o resultado, fornecido como observação (Fig. 22.2 [a]): a

positividade identifica origem mieloide dos blastos; a negatividade não a exclui. A origem mieloide (Fig. 22.4) também é identificada à morfologia pelo citoplasma amplo com tênue granulação (a) ou pela presença de bastões de Auer (b), conglomerados de grânulos citoplasmáticos.

FIGURA 22.4 Mieloblastos em leucemia mieloide aguda (a); idem, com bastões de Auer (b).

No hemograma da Figura 22.2 (b), as células leucêmicas, embora em pequeno número, puderam ser morfologicamente identificadas como promielócitos pela presença de granulação citoplasmática abundante (hipergranulares), bastões de Auer e núcleo irregular (Fig. 22.5 [a]); há uma variante hipogranular, usualmente muito leucêmica (alto número de blastos no hemograma). Esse tipo particular – leucemia promielocítica aguda – costuma acompanhar-se de coagulopatia de consumo, com grave e precoce síndrome hemorrágica; diagnosticada, justifica-se encaminhar o paciente a tratamento em regime de emergência. A origem monoblástica/monocítica da LMA pode ser suspeitada clinicamente por causar gengivite hipertrófica; a morfologia dos blastos também pode ser característica (Fig. 22.5 [b]).

FIGURA 22.5 Blastos em leucemia promielocítica aguda (a) e em leucemia monoblástica aguda (b).

Compreenda-se que os aspectos microscópicos no hemograma só às vezes permitem caracterizar a célula de origem: diagnóstico diferencial definitivo exige os exames complementares citados. As lindas imagens Cella Vision precedentes, de blastos leucêmicos de várias progênies que podem vistos no hemograma, são apenas para fins ilustrativos. Descrições citológicas detalhadas ultrapassam as pretensões deste manual; o autor sugere consulta a texto/atlas especializado. 1 TRATAMENTO E PROGNÓSTICO

A quimioterapia intensiva da LA iniciou-se nos anos 1950. O autor, começando em 1959 suas quatro décadas de atividade como onco-hematologista em Porto Alegre, com a quimioterapia da época (1965) conseguiu um primeiro caso de remissão de LA, com sobrevida livre de doença (disease free survival) de 11 anos até perda do acompanhamento. No início dos anos 1970, inscreveu 23 pacientes pediátricos de LLA no Grupo Argentino de Tratamento de Leucemia Aguda (GATLA), 2 já usando tratamento de indução, profilaxia de leucemia meníngea com quimioterapia intratecal, consolidações periódicas e tratamento de manutenção por três anos. Após 14 anos de acompanhamento, 12 pacientes mantinham-se em sobrevida livre de doença; vários deles, acompanhados até o presente, estão realmente curados. Apesar da dificuldade de manter um arquivo acurado de pacientes fora desse protocolo – foram tratados pacientes de todos os ​níveis socioeconômicos, inclusive da previdência social da época, e muitos perderam-se no follow up –, justifica-se a estimativa de ter tido, além desses 12, mais cerca de 40 casos, entre crianças e adultos com LLA ou LMA, que excederam 10 anos de sobrevida livre de doença. Houve uma recidiva de LLA aos 11 anos de evolução. Alguns pacientes vieram a falecer de doenças não relacionadas; dois de hepatite C contraí​da no tratamento. Desde esses “protossucessos”, o progresso foi considerável. Os protocolos atuais de tratamento de LLA na infância mostram resultados muito superiores. Com a quimioterapia de indução (vincristina + corticoide + daunorrubicina e/ou asparaginase e a administração simultânea de metotrexato ± citarabina/dexametasona para tratar/prevenir leucemia meníngea), obtém-se, em 4 a 6 semanas, remissão completa (erradicação dos blastos da medula e restabelecimento da hematopoese) em > 95% dos casos. O tratamento de manutenção com metotrexato e 6-mercaptopurina é semelhante ao já consagrado de longa data, mas agora é feita uma consolidação de remissão aos três meses e consolidações mais amenas trimestrais. Com esse programa, quando executado em centros de excelência, obtém-se curabilidade de cerca de 85%. Já em LLA em adultos, com programa semelhante ou com o regime CVAD (vincristina, corticoide, daunorrubicina e citarabina), obtém-se RC em 80 a 90% dos casos, mas a sobrevida livre de doença ainda é lamentavelmente baixa: cerca de 40% aos três anos e 30% aos cinco anos. Em idosos (> 60 anos), o prognóstico é ainda mais sombrio: < 15% têm longa sobrevida. O tratamento de todos os subtipos de LMA, excetuando-se a promielocítica, que tem tratamento próprio, é feito tanto em casos pediátricos como em adultos, com um programa dito 7+3 (dias): infusão contínua de citarabina durante uma semana, combinada com uma antraciclina (geralmente daunorrubicina) nos três primeiros dias. O ciclo costuma ser repetido, às vezes como 5+2. Pacientes < 60 anos recebem a seguir uma consolidação com altas doses (> 1 g/m2/dia) de citarabina durante prazo variável de acordo com os resultados (blastos na medula) e a tolerância à extrema neutropenia ocasionada. Obtém-se remissão completa em 70 a 80% de casos. Pacientes em remissão completa, especialmente jovens, se tiverem doador HLA compatível, costumam ser eligidos para transplante alogênico. Consolidações periódicas e manutenção têm duvidoso efeito no prolongamento da sobrevida livre de doença: esta é da ordem de 60 a 70% aos cinco anos (em crianças) e de 35 a 40% aos três anos em adultos. A citogenética demonstrou-se eficaz na estratificação por grupos de risco e consequente avaliação prognóstica; os

resultados do Cancer and Leukemia Group B (CALGB 8461) 3 são citados e reconhecidos em todas as publicações relacionadas: pacientes em remissão completa contínua atingem um platô de sobrevida de cerca de 30% ao chegar aos cinco anos (55% no grupo de risco favorável, 24% no intermediário, 5% no grupo de risco adverso), havendo, daí em diante, um número bem menor de recidivas (declive pequeno das curvas, Fig. 22.6). A curabilidade, embora baixa, é um fato comprovado; não houve melhora estatística significativa desde os dados aqui apresentados, publicados em 2002.

FIGURA 22.6 Sobrevida de pacientes adultos com leucemia mieloide aguda tratados com protocolo do Cancer and Leukemia Group B.*

O tratamento da leucemia promielocítica (LPM) difere das demais. Com tratamento imediato em centros de referência, o prognóstico é muito mais favorável. A translocação causal da LPM, t(15;17), com formação de um produto de fusão entre os genes PML e RARA (receptor α do ácido retinoico), codifica uma proteína que bloqueia a diferenciação mieloide em nível promielocítico; a pesquisa do defeito por citogenética e biologia molecular é necessária à confirmação diagnóstica, mas, havendo dados morfológicos (ver Fig. 22.5 [a]) e clínicos sugestivos, o tratamento deve ser iniciado imediatamente, ainda antes dos resultados. Há duas drogas altamente eficazes: ácido transretinoico (ATRA), que suscita uma imediata resposta proliferativa e maturativa, e trióxido de arsênio (ATO), que tem intensa atividade antiapoptótica. Associadas ou em sequência, com ou sem quimioterapia adjuvante com uma antraciclina, as drogas levam à remissão completa em mais de 90% dos casos. Consolidação com quimioterapia e manutenção com ATRA e/ou ATO ocasionam sobrevida livre de doença (cura?) próxima a 90% em cinco anos. 1 Bain BJ. Leukaemia diagnosis. 4th ed. Chichester: Wiley-Blackwell; 2010. Há uma tradução do autor, para a Editora Artmed, de edição anterior. 2 Com agradecimento a seu assistente/colega à época, Dr. Carlos Roberto Bailon, onco-hematologista do Hospital Ernesto Dornelles, Porto Alegre. 3 Byrd JC, et al. Pretreatment cytogenetic abnormalities are predictive of induction success, cumulative incidence of relapse, and overall survival in adult patients with de novo acute myeloid leukemia: results from cancer and Leukemia Group B (CALGB 8461). Blood. 2002;100(13):4325-36.

23 NEOPLASIAS MIELOPROLIFERATIVAS LEUCÊMICAS A denominação “doenças mieloproliferativas crônicas”, antes usada para designar essas entidades, foi trocada na Classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2008 para neoplasias mieloproliferativas, para claramente definir sua origem clonal. Neste capítulo, são discutidas as mieloproliferações leucocitárias, portanto leucemias na integral concepção do termo. LEUCEMIA MIELOIDE CRÔNICA BCR-ABL 1 POSITIVA (LMC)

A designação leucemia mieloide crônica (LMC) é consagrada pelo uso no Brasil; o texto da OMS prefere leucemia mielógena crônica, e a designação leucemia granulocítica crônica também é usada. É a neoplasia decorrente da proliferação clonal de célula hematopoética primitiva que sofreu a translocação recíproca t(9;22) (q34;q11.2), em que regiões da sequência ABL 1 do cromossomo 9 passam a formar um gene de fusão (BCR-ABL 1) com o gene BCR no cromossomo 22, denominado cromossomo Ph (Philadelphia). O produto do gene BCRABL 1 é uma tirosina quinase anormal que interfere de modo leucemogênico na proliferação celular. Em raros casos, a translocação é mais complexa, envolvendo outros genes, mas a tirosina quinase desenvolvida é similar. Dependendo do éxon envolvido (1, 1-12/13 ou 1-19), podem ser produzidas 3 proteínas de fusão de massas moleculares 190, 210 e 230 kD. Essas proteínas de fusão estão associadas com formas diferentes de leucemias: ■ P210 – encontrada em células hematopoéticas de pacientes com LMC em fase crônica e em leucemia linfoblástica aguda (LLA) e leucemia mieloblástica aguda (LMA) (embora a presença da P210 em alguns pacientes com leucemias agudas possa indicar se tratar de crise blástica de LMC). Ao se solicitar teste de biologia molecular (reação em cadeia da polimerase [PCR]) para pesquisa de BCR-ABL, especificar P210. Se o teste for negativo, mas os aspectos de LMC forem significativos, pedir P230 (abaixo). ■ P190 – comumente encontrada em LLA com cromossomo Ph+ e em alguns casos de LMA; raramente observada em LMC. ■ P230 – encontrada em pacientes com LMC (ou leucemia neutrofílica crônica) de curso mais benigno (em alguns casos com menos anemia, menos esplenomegalia, menor contagem periférica de leucócitos e menor risco de evolução para crise blástica). A progênie leucêmica conserva capacidade maturativa e tem predominância proliferativa sobre a mielopoese normal, a qual substitui progressivamente na medula, invade o sangue e expande-se ao baço e ao fígado. Embora a proliferação dominante seja do setor mieloide granulocítico, o gene de fusão é notado também nas demais séries mieloides e em algumas células linfoides e epiteliais. Com o passar de meses ou anos, surgem novas alterações cromossômicas, com subclones de malignidade progressiva, até que a medula fica tomada de uma proliferação blástica, refratária a tratamento, que leva rapidamente ao óbito por insuficiência hematopoética. A LMC é muito rara na infância; a incidência aumenta a partir da terceira década, é máxima na 5ª e 6ª e diminui nos idosos. A sobrevida mediana histórica é inferior a quatro anos. A quimioterapia com bussulfano (Myleran®) ou hidroxicarbamida (Hydrea®), que causava remissão clínica, mas prolongava a sobrevida de modo marginal, e o interferon, que causa algumas remissões citogenéticas com moderado aumento da sobrevida, foi substituída pelos inibidores seletivos da BCR-ABL tirosina quinase, mesilato de imatinibe (Glivec®), dasatinibe (Sprycel®) e cloridrato de nilotinibe (Tasigna®) (os dois últimos indicados em caso de falta de resposta ao mesilato de imatinibe). O tratamento contínuo e em dose apropriada com esses inibidores causa remissões clínicas e citogenéticas

prolongadas até em casos avançados. A duração do efeito, certamente muito longa e chegando a dezenas de anos, ainda não está definida e pode ser confundida com uma eventual “cura” em alguns casos. O transplante de medula óssea (TMO), quando há doador compatível, é cada vez menos indicado, mesmo que muitas vezes possa ser realmente curativo. O hemograma inicial (Fig. 23.1, [a]), em etapa ainda assintomática, mostra só neutrofilia com desvio à esquerda e alguns mielócitos; às vezes, basofilia. Assemelha-se ao hemograma de paciente em tratamento com corticoide ou outras leucocitoses reacionais, ou com as síndromes mieloproliferativas não leucêmicas. A coloração citoquímica da fosfatase alcalina dos neutrófilos era usada para esse fim: é caracteristicamente baixa ou ausente nos neutrófilos da LMC e exagerada nas neutrofilias reacionais; por ser trabalhosa e manual, caiu em desuso. Diante do hemograma da Figura 23.1 (a), há indicação do exame citogenético para o cromossomo Ph t(9; 22), ou testes de biologia molecular para a fusão BCR-ABL 1, como supradescritos, e com isso comprovar o diagnóstico. O material apropriado é o aspirado de medula óssea.

FIGURA 23.1 Hemogramas de LMC incipiente (a) e com um ano de evolução clínica (b).

Com a evolução, o paciente começa a apresentar sinais de doença crônica: astenia, anorexia, emagrecimento, suores noturnos; o diagnóstico é clinicamente suspeitado ao notar-se esplenomegalia. Nessa altura, o hemograma é esclarecedor (Fig. 23.1 [b]). Há

anemia, trombocitose, grande leucocitose à custa de toda a série mieloide, e basofilia, geralmente acentuada. Quando o diagnóstico é feito já nessa etapa, com o hemograma patognomônico, ainda assim se faz a comprovação citogenética e/ou molecular para justificar o tratamento com inibidores da tirosina quinase e/ou o TMO, ambos de preço considerável. O sangue periférico com alta contagem leucocitária pode ser usado para o teste de biologia molecular; para a citogenética que avalia células em mitose, a aspiração da medula persiste necessária. Mesmo com a notável eficácia da manutenção com inibidores da tirosina quinase, após alguns anos, em significativa porcentagem de pacientes, a doença torna-se refratária e evolui como era a regra antes do advento da droga. Há uma mudança no aspecto do hemograma e uma progressiva deterioração clínica. Surge anemia progressiva, trombocitose e grande basofilia; a seguir, o hemograma converte-se aos poucos em um quadro semelhante ao de leucemia aguda (Fig. 23.2 [a]): persiste a basofilia, surge anemia, trombocitopenia e um número crescente de blastos. A transformação blástica, às vezes, é súbita e avassaladora (Fig. 23.2 [b]). Na maioria dos casos, os blastos são mieloides; podem ter marcadores megacariocíticos ou eritroides. Esse estágio caracterizase por refratariedade ao tratamento e sobrevida usual de 3 a 6 meses. Há casos em que o fenótipo dos blastos, curiosamente, é linfoide; nestes pode haver breve remissão com um protocolo de tratamento para LLA. O surto blástico tem prognóstico reservado em curto prazo.

FIGURA 23.2 Hemograma de LMC em tratamento, entrando em estado refratário (a), e em surto blástico súbito (b).

LEUCEMIA NEUTROFÍLICA CRÔNICA É uma raríssima leucemia com hemograma caracterizado por leucocitose progressiva com presença escalonada da série neutrófila, com amplo predomínio de neutrófilos segmentados e bastonados; promielócitos e blastos são poucos ou ausentes; há anemia e trombocitopenia. A translocação t(9;22) (q34;q11.2) não está presente. As alterações citogenéticas mais comuns são: +8, +9, +21, del(20q), del(11q) e del(11p). A esplenomegalia costuma ser moderada, mas, em casos de longa evolução, pode ser considerável. Ocorre só em pacientes idosos. O Glivec é ineficaz; o tratamento com monoquimioterapia (hidroxicarbamida, 6-mercaptopurina, citarabina) contém a proliferação, mas pode acompanhar-se de piora da anemia e de necessidade transfusional. Faltam estatísticas quanto à sobrevida mediana. Há casos descritos com sobrevida tão breve quanto seis meses, outros (mais raros) com sobrevida longa. O autor só fez o diagnóstico em dois casos; um dos pacientes, com neutrofilia que ultrapassou 120.000/µL e grande esplenomegalia, sobreviveu por quase três anos.

LEUCEMIAS EOSINOFÍLICAS Uma vez excluídas as causas comuns (verminose, alergia, etc.), as eosinofilias persistentes acima de 1.500/µL são de difícil esclarecimento. Quando são excluídas também alterações citogenéticas e de biologia molecular indicativas de clonalidade, que as caracterizariam como neoplasias, os casos são designados como “síndromes hipereosinofílicas” (ver Cap. 17). Alguns casos em que há presença de granulócitos imaturos, inclusive blastos, no sangue periférico, e aumento de blastos na medula óssea, é lícito considerar como leucemias eosinofílicas. A classificação da OMS (ver Apêndice 2) designa-os como leucemia eosinofílica crônica sem outras especificações. A comprovação recente de que, na maioria dos casos, as eosinofilias crônicas são neoplasias originadas de anormalidades evidenciadas por biologia molecular em genes que codificam as cadeias α e β dos receptores PTK, do receptor do fator de crescimento derivado das plaquetas (PDGFR) ou do receptor 1 do fator de crescimento fibroblástico (FGFR1) deu origem a um novo subtipo de neoplasias da hematopoese. São designadas pelas alterações genéticas: PDGFRA (na banda cromossômica 4q12), PDGFRB (na banda cromossômica 5q33) e FGFR1. Essas alterações genético-moleculares não são necessariamente expressas como leucemia eosinofílica pura; às vezes expressam-se como LMA ou leucemia mielomonocítica crônica (LMMoC) com eosinofilia proeminente. Como podem, raramente, apresentar-se como leucemia/linfoma de células B ou T, a OMS preferiu agrupá-las separadamente como neoplasias mieloides e linfoides com eosinofilia (ver Apêndice 2). Do enfoque do hemograma, a separação é inútil: são leucemias eosinofílicas crônicas, daí a razão de discuti-las neste capítulo. A proliferação depende da codificação de uma tirosina quinase aberrante. O diagnóstico só pode ser feito por biologia molecular 1 porque a deleção é críptica à citogenética. A causa desencadeante é desconhecida, salvo em raros casos subsequentes a quimioterapia citotóxica. O hemograma mostra eosinofilia de 20.000 a mais de 100.000/µL; há eosinófilos parcialmente agranulados, com áreas citoplasmáticas claras e vacuolização, alguns com hipersegmentação nuclear. Há alguns mielócitos e promielócitos com granulações eosinófilas óbvias ou esboçadas. Os achados não são patognomônicos; podem estar presentes em síndromes hipereosinofílicas (sem alterações moleculares). Presume-se que a célula de origem seja uma célula-tronco pluripotente, donde a gama de linhagens que podem proliferar além do componente eosinofílico. No caso particular do gene PDGFRB, o aspecto de LMMoC com eosinofilia é o usual. A medula óssea mostra hiperplasia mieloide com óbvio predomínio de eosinófilos; aumento de blastos correlaciona-se com pior prognóstico. Há fatigabilidade, prurido, esplenomegalia e sinais e sintomas de dano tecidual pelos eosinófilos (infiltrados pulmonares, miocardite, serosites). Fibrose endomiocárdica é a mais grave das complicações. O autor viu apenas dois casos, ambos antes do advento do imatinibe; um deles, tratado com hidroxicarbamida, teve sobrevida de três anos. Todas as leucemias eosinofílicas derivadas desses defeitos genético-moleculares mostram-se sensíveis ao tratamento com inibidores da tirosina quinase (como a leucemia

mieloide crônica), mesilato de imatinibe e similares mais recentes. Como são neoplasias muito raras, não há ainda estatísticas que permitam estimar-se um prognóstico a longo prazo. O autor desconhece caso tratado com TMO. LEUCEMIA MASTOCÍTICA Mastocitose é uma proliferação neoplásica caracterizada pela presença multifocal de infiltrados ou conglomerados coesos de mastócitos clonais, que, além dos marcadores usuais, expressam CD2 ou CD2 e CD25. A mastocitose cutânea é a mais comum e indolente. Na rara mastocitose sistêmica, há pequenos conglomerados (≥ 15 mastócitos) na medula óssea ou órgãos extramedulares. A franca invasão sanguínea (leucemia mastocítica) é ainda mais rara: os mastócitos circulantes costumam ser muito atípicos e difíceis de serem identificados pela morfologia. Têm citoplasma hipogranular, núcleo monocitoide ou até um aspecto de blastos metacromáticos. Não há tratamento duradouramente eficaz; o prognóstico é reservado. 1 Os testes ainda não são de uso corrente no Brasil.

24 NEOPLASIAS MIELOPROLIFERATIVAS NÃO LEUCÊMICAS Neoplasias mieloproliferativas (NMP) são proliferações clonais, efetivas e capazes de maturação, de células primitivas da mielopoese, originando populações excessivas que se acumulam na medula hipercelular. Predomínio de proliferação eritroide causa poliglobulia (policitemia vera, PV); predomínio da megacariocitopoese causa trombocitose (trombocitemia essencial, TE) e/ou fibrose da medula óssea e mielopoese extramedular (mielofibrose primária, MFP). Hiperplasia da granulocitopoese, com leucocitose periférica, é acompanhante usual da PV e da MFP, mas incomum na TE. Não são doenças raras: o Central Cancer Registry estima a incidência nos Estados Unidos (EUA) de 2,1 casos por 100 mil, o que equivale a aproximadamente 6.300 novos casos/ano. Correlação recíproca entre as neoplasias mieloproliferativas citadas, na época ditas “síndromes mieloproliferativas”, foi sugerida por W. Dameshek, em 1951, incluindo no grupo a leucemia mieloide crônica (LMC). A evidenciação do cromossomo Ph em 1960 e da fusão BCR-ABL 1 logo após individualizou a LMC (discutida no Cap. 23) e separou-a das demais. A clonalidade das NMPs foi demonstrada em 1976. A descoberta em 2005 da mutação pontual V617F no gene Janus-quinase 2 (JAK2) forneceu uma explicação

unificadora para os aspectos comuns entre elas, sugerindo que PV, TE e MFP sejam evoluções distintas de um processo similar, daí a perspectiva de aparente transformação recíproca. Poderiam representar um espectro fenotípico do mesmo genótipo, embora a presença da mutação, quase constante na PV, seja demonstrável em apenas 50 a 60% dos casos de TE e de MFP. Tanto na PV como na TE, com o passar dos anos, pode ocorrer neoangiogênese e aumento de fibrose reticulínica na medula óssea, configurando-se uma histopatologia idêntica a da MFP de novo. O processo mielofibrótico, em qualquer dos casos, é uma reação policlonal às citoquinas produzidas pelos megacariócitos e monócitos clonais, pois os fibroblastos e as células do estroma não derivam do clone. JAK2 é a tirosina quinase correlacionada aos receptores de eritropoetina e trombopoetina e presença necessária para sua expressão na superfície celular. A substituição de valina por fenilalanina (V617F) em JAK2 causa uma “ativação constitucional” dos receptores e os aspectos hematológicos de NMP. A mutação, inicialmente heterozigótica nas células hematopoéticas acometidas, pode tornar-se progressivamente homozigótica por recombinação mitótica no cromossomo 9. O aumento de carga alélica por esse mecanismo é usual na PV e na MFP, mas não na TE; é provável que isso contribua para a diferença fenotípica. Na evolução a longo prazo das NMPs, podem emergir novos clones neoplásicos independentes de JAK2, gerando uma população mieloblástica idêntica à da leucemia aguda, agressiva e refratária a tratamento. Na história natural da doença, esse evento é incomum: < 5% dos casos em 20 anos de evolução. A frequência mais elevada dessa terminação maligna (≅ 15% em 10 a 20 anos de evolução), descrita no passado, devia-se ao efeito mutagênico dos agentes alquilantes e do 32P até recentemente usados no tratamento. POLICITEMIA VERA (PV) É uma proliferação clonal que compromete as três séries mieloides, com predomínio da eritroide, cujos precursores in vitro e in vivo multiplicam-se independentemente do estímulo da eritropoetina. A mutação JAK2 V617F está presente em > 95% dos casos; nos demais costuma haver mutações próximas, mais raras, com ação similar sobre a tirosina quinase. Acomete geralmente pessoas idosas (pico entre 60 e 65 anos), embora haja casos, inclusive do autor, diagnosticados na 4ª década da vida; a incidência é de 0,5 a 1/100.000/ano, mas a prevalência é muito maior pela longa sobrevida dos pacientes quando apropriadamente tratados. O diagnóstico é feito ao notar-se a fácies pletórica e a turgência venosa ou, muito mais vezes, por hemograma feito em revisão médica ou por causas fortuitas; devem ser excluídas todas as causas de poliglobulia secundária (ver Cap. 12). A detecção de esplenomegalia (≅ 65% dos casos), geralmente moderada, favorece o diagnóstico. O hemograma (Fig. 24.1 [a]) mostra considerável elevação da série vermelha. Com a evolução, há uma tendência à microcitose que se acentua se houver tratamento com sangrias. A eritrocitose acompanha-se de leucocitose e/ou trombocitose em dois terços dos casos. A leucocitose é neutrófila, podem ser vistos mielócitos, e aumento de basófilos

é usual. Eritroblastos são raros. A trombocitose ao diagnóstico raramente ultrapassa 600.000/µL; ao microscópio são vistas plaquetas gigantes, mas o volume plaquetário médio (VPM) não está aumentado. O exame da medula óssea não é necessário.

FIGURA 24.1 Hemograma de policitemia vera (a) e de mielofibrose primária (b).

Havendo poliglobulia acentuada em paciente de meia-idade ou idoso, com baço palpável, leucocitose e/ou trombocitose, o diagnóstico é óbvio; poliglobulias moderadas sem esses demais sinais de hemopatia exigem confirmação diagnóstica. A facilidade atual de obtenção do teste de biologia molecular para JAK2 torna-o mandatório para todos os casos. A determinação da volemia globular com 51Cr diferencia a poliglobulia real (aumento da massa eritroide circulante) da pseudopoliglobulia (diminuição da volemia plasmática); é inútil nos casos JAK2 positivos. A hiperviscosidade sanguínea (principalmente), a hipervolemia e a trombocitose causam alta incidência de complicações tromboembólicas. Um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, às vezes, é o evento que leva ao diagnóstico. São frequentes tromboses

venosas em áreas incomuns; tromboses de veias porta ou hepáticas (síndrome de BuddChiari) são tão características da PV que se constituem em indicação para a pesquisa de JAK2 mesmo em pacientes sem poliglobulia no hemograma. Se positiva, indica-se determinação da volemia globular com 51Cr. Essa rotina evidenciou um dado antes não conhecido: há casos de policitemia vera em que uma poliglobulia real é disfarçada por aumento concomitante da volemia plasmática, mantendo-se a proporção plasma/glóbulos no eritrograma (que analisa apenas uma amostra de sangue). Há hipervolemia global, às vezes considerável, com eritrograma enganador. Nesses casos, que são raros, de hipervolemia com eritrograma pseudonormal, a suscetibilidade trombótica é idêntica a dos casos com poliglobulia notada no eritrograma. Úlcera péptica hemorrágica é outra complicação comum da PV. Há casos de PV que lentamente evoluem para mielofibrose, com as implicações prognósticas respectivas (ver adiante). Na grande maioria dos casos, entretanto, o tratamento com sangrias (preferido em pacientes jovens) e/ou com hidroxicarbamida (Hydrea®), quando controlado por hematologista experiente, diminui e mantém as cifras hematimétricas em nível satisfatório, permitindo sobrevida próxima à prevista para o grupo etário. O tratamento com sangrias, além de desagradável porque as veias ficam muito maltratadas pelo grosso calibre das agulhas de coleta, complica-se com o esgotamento das reservas de ferro; superajunta-se uma “anemia ferropênica”, com microcitose e eritrocitose difíceis de balançar com a necessidade de manter as sangrias. A experiência tem demonstrado que a hidroxicarbamida, além de eficaz, é bem tolerada e não compartilha a ação oncogênica dos agentes alquilantes; a macrocitose causada pelo fármaco gera um hemograma muito alterado que deve ser interpretado nesse contexto. TROMBOCITEMIA ESSENCIAL (TE) A trombocitemia essencial tem incidência e prevalência semelhante à da PV, mas é mais frequente no sexo feminino. Predomina em idosos, embora possa acometer também pacientes até a 3ª década da vida. A proliferação clonal dominante é megacariocítica. A pesquisa de JAK2 é positiva em 50 a 60% dos casos; a carga alélica é sempre baixa (predomínio de células heterozigóticas). O hemograma inicialmente mostra apenas elevação da contagem de plaquetas, geralmente notada em exame feito por outro motivo; a contagem eleva-se lentamente no decurso de meses ou anos. Números entre 400.000 e 600.000/µL são usuais ao ser notada, mas o autor já viu casos com contagem de mais de 2 milhões/µL ao diagnóstico. As demais séries do hemograma, na maioria dos casos, são normais; em alguns, há neutrofilia, basofilia e raros mielócitos. O baço não costuma estar aumentado. Em casos diagnosticados após trombocitose comprovadamente de longa data, o exame da medula óssea não é indispensável. Se for feito, a biópsia é sempre mais esclarecedora que o mielograma. A medula é hipercelular, com óbvia riqueza em megacariócitos de alta ploidia; conglomerados de plaquetas costumam ser notados; a presença de áreas fibróticas sugere possível evolução para mielofibrose primária.

A evolução é lenta e benigna, mas, quando a contagem de plaquetas ultrapassa 1 milhão/µL, há significativo risco de complicações tromboembólicas predominantemente arteriais. Um paciente do autor teve infarto do miocárdio aos 26 anos, ocasião em que foi notada contagem de plaquetas ≅ 1,6 milhão/µL; mantinha-se bem, com hidroxicarbamida, decorridos mais de 16 anos do evento. Sinais de insuficiência circulatória periférica são comuns, principalmente acrocianose, dormência e dor nos artelhos; melhoram rapidamente com 100 mg diários de ácido acetilsalicílico. Raros pacientes com aparente trombocitemia essencial – todos JAK2 positivos – na verdade têm policitemia vera, com poliglobulia disfarçada por aumento simultâneo da volemia plasmática; às vezes, o diagnóstico é suspeitado por desenvolverem síndrome de Budd-Chiari. Em casos de trombocitemia JAK2 positivos, com hematócrito > 48% ( ) ou 44% ( ), com esplenomegalia ou com leucocitose, deve ser feita determinação da volemia globular com 51Cr. Diante de contagens de plaquetas acima de 1 M/µL, há indicação de tratamento permanente com hidroxicarbamida ou anagrelide (Agrylin®), para manter a contagem abaixo de 500 a 600.000/µL. Excluindo-se os casos que evoluem para mielofibrose e os raros casos que desenvolvem leucemia mieloide aguda (LMA), a sobrevida assemelha-se à usual para o grupo etário. MIELOFIBROSE PRIMÁRIA (MFP) Como as demais NMPs, ocorre da meia-idade em diante; embora possa derivar de casos de PV e TE, é mais rara do que qualquer delas. A proliferação clonal compromete toda a mielopoese, mas é predominante na série megacariocítica; há hematopoese ineficaz na medula óssea e citoquinas megacariocíticas e monocíticas estimulam proliferação fibroblástica e neoangiogênese. Células imaturas circulam e dão origem a metaplasia mieloide, principalmente no baço e no fígado. A pesquisa de JAK2 é positiva em 50 a 60% dos casos. Quando surge de novo, hepatoesplenomegalia e sinais de doença consumptiva levam ao pedido de hemograma e ao diagnóstico; as manifestações clínicas e laboratoriais iniciais são facilmente confundidas com as da LMC. O processo é lento, mas progressivo e irreversível; casos de longa evolução sem tratamento desenvolviam o “maior baço da patologia”. A hepatoesplenomegalia causa hiperesplenismo, pressão abdominal, hipertensão porta e ascite. A sobrevida mediana é da ordem de cinco anos. O hemograma é característico (Fig. 24.1 [b]): anemia leucoeritroblástica, inicialmente normocítica, depois algo microcítica, com policromatocitose e reticulocitose moderadas, pecilocitose acentuada com grande número de dacriócitos (eritrócitos em gota), eritroblastose, leucocitose a expensas de toda a série mieloide, trombocitose com plaquetas gigantes e bizarras. O diagnóstico diferencial com a LMC faz-se pela disparidade entre a grande esplenomegalia e a baixa leucocitose, pela presença da dacriocitose, pela positividade dos neutrófilos à coloração da fosfatase alcalina (em desuso), pela negatividade da pesquisa de cromossomo Ph (ou fusão BCR-ABL 1) e pela positividade JAK2. A medula fibrótica é firme, e à aspiração não se obtém material (dry

tap = punção branca). A biópsia mostra riqueza celular, megacariocitose, fibrose colágena e neoangiogênese. Tanto biópsia como citogenética e biologia molecular podem ser dispensadas diante de paciente muito idoso(a), com hepatoesplenomegalia e hemograma típico. Não há tratamento realmente eficaz. Já está em uso na Europa e nos EUA um inibidor de tirosinas quinases com definido efeito benéfico sobre as organomegalias, o prurido, quando presente, e o estado catabólico caquetizante: ruxolitinibe (Jakavi®). Não está ainda liberado no Brasil, mas pode ser importado, inclusive do Uruguai; é muito caro porque há necessidade de 10 a 15 mg, duas vezes ao dia, de modo continuado. Na falta, usa-se hidroxicarbamida (Hydrea®) para controlar a esplenomegalia. Quando resistente, a esplenectomia pode ser necessária. É cirurgia de alto risco: há enorme trombocitose pósoperatória com alta frequência de tromboembolismo agudo; a longo prazo, favorece aumento ulterior da hepatomegalia. A talidomida tem sido tentada para limitar a angiogêse e a evolução; a toxicidade supera o duvidoso efeito benéfico. Nos pacientes abaixo de 60 anos, se houver doador HLA compatível, o transplante de medula óssea (TMO) é indicado; um caso do autor, transplantado no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Curitiba há cerca de 20 anos, está saudável até o presente.

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SÍNDROMES MIELODISPLÁSICAS E NEOPLASIAS MIELOPROLIFERATIVAS/MIELODIS SÍNDROMES MIELODISPLÁSICAS (SMD) Constituem um grupo heterogêneo de doenças clonais das progênies mieloides caracterizadas por citopenias decorrentes de hematopoese ineficaz e exagero apoptótico. A história natural de alguns subtipos prevê uma transformação paulatina ou súbita em leucemia mieloide aguda, daí a antiga denominação síndromes pré-leucêmicas; em outros subtipos a transformação é rara ou muito tardia. A mutação neoplásica da célula mieloide primitiva geralmente resulta em alterações cromossômicas que definem a biologia da doença; nas SMDs, predominam as alterações citogenéticas não balançadas, como a trissomia 8 e as deleções parciais ou totais do cromossomo 5 (as mais frequentes) e 7, deleções 17q, 20p e perdas de X ou Y. São raríssimas nos jovens; aumentam de incidência com a idade, sendo comuns em idosos, 60% no sexo masculino. O Central Cancer Registry estima uma incidência nos

Estados Unidos de 3,3 casos/100.000/ano, o que equivale a cerca de 9.700 casos novos anuais. Embora pacientes possam consultar por sinais clínicos de anemia, por equimoses fáceis ou por infecções, a maioria está assintomática quando o diagnóstico é notado por hemograma feito em avaliação laboratorial rotineira ou por queixas próprias da velhice. As alterações mielodisplásicas mais notáveis no hemograma são descritas e ilustradas a seguir: ■ Anemia hiporregenerativa, geralmente macrocítica, com pecilocitose, população anisocítica e anisocrômica. Há raros eritroblastos; na anemia sideroblástica, costumam ser sideroblastos em anel, de modo que a coloração de Perls, se feita, poderia fazer um diagnóstico presuntivo apenas pelo sangue periférico. ■ Neutrófilos hipersegmentados, hipossegmentados com aspecto pelgeroide (inclusive homozigótica), agranulados, aneuploides (macropolícitos), com excesso de drumsticks ( ). Geralmente há neutropenia.

FIGURA 25.1 Neutrófilos displásicos: pelgeroides e agranulados.

■ Blastos no sangue; raros inicialmente, aumentando com a evolução. ■ Trombocitopenia com plaquetas gigantes e dismórficas e restos de megacariócitos.

FIGURA 25.2 Alterações displásicas: neutrófilo hipersegmentado, neutrófilo tetraploide e blasto, plaquetas gigantes e dismórficas, resto de megacariócito.

As alterações citológicas na medula óssea, que geralmente é hipercelular, mas pode ser hipocelular, são difíceis de caracterizar: ■ Aspectos megaloides. ■ Hipoplasia eritroide, com eritroblastos binucleados, pontes internucleares, mitoses anormais, cariorrexe. Na anemia sideroblástica, hiperplasia eritroide e sideroblastos em anel. ■ Aumento de promielócitos e blastos.

Megacariocitopenia com ou sem formas anormais. Megacariocitose com hipoploidia é ■ característica da síndrome del(5q), simplificadamente 5q−. Há alterações citogenéticas recorrentes. As deleções (5q) e (20q) são indicativas de melhor prognóstico. Alterações complexas (≥ 3 anormalidades) ou anormalidades do cromossomo 7 indicam mau prognóstico. As entidades que fazem parte das SMDs são discutidas a seguir. Anemia refratária A anemia refratária e sua evolução natural, anemia com excesso de blastos e em transformação leucêmica, constituem o conjunto a que melhor se aplica o conceito recém-exposto de síndrome mielodisplásica. Geralmente é um achado do hemograma (Fig. 25.3, [a]) em idoso assintomático ou com queixas de astenia nos últimos meses. A anemia é geralmente macrocítica, mas pode ser normocítica. Quando macrocítica, é difícil de distinguir da anemia megaloblástica: deve-se atentar para os macrócitos que são redondos e para a falta de anisocitose significativa; também não há a disparidade entre a macrocitose e o grau de anemia, típica da anemia perniciosa incipiente. Não há reticulocitose. Os casos em que há apenas anemia são de lenta evolução e a sobrevida é medida em anos. Na maioria deles, entretanto, a anemia acompanha-se de neutrocitopenia e/ou trombocitopenia, isto é, há bicitopenia ou pancitopenia.

FIGURA 25.3 Hemogramas de anemia refratária mielodisplásica (a) e de anemia sideroblástica (b).

Na classificação da OMS, esses casos são separados sob o título citopenia refratária com displasia de múltiplas linhagens; na opinião do autor, a separação é artificial, pois são um continuum evolutivo de uma mesma doença. Todos ou alguns sinais displásicos podem ser notados no hemograma. Neutropenia ou trombocitopenia isoladas são mais raras e difíceis de distinguir de citopenias secundárias (imunológicas, outras) não mielodisplásicas. Alterações citogenéticas, quando presentes, são fundamentais para o diagnóstico. A medula geralmente mostra hipercelularidade da granulocitopoese, com excesso de promielócitos e blastos. Há aspectos megaloides na série vermelha, mas não há a hiperplasia eritroide da anemia megaloblástica; pelo contrário, há hipoplasia com os sinais displásicos recém-descritos. Megacariocitopenia é usual. Há raros casos com medula hipocelular; se não houver alterações citogenéticas, o diagnóstico diferencial desses casos com a anemia aplástica é difícil. Não há tratamento eficaz. A lenalidomida (Revlimid®), derivado da talidomida com menor toxicidade neurológica, já liberada pela Food and Drug Administration (FDA), mas ainda indisponível no Brasil, causa melhora marginal e retarda a progressão leucêmica.

Os análogos da citosina, azacitidina (Vidaza®) e decitabina (Dacogen®), que inibem a metiltransferase do DNA e induzem diferenciação celular e apoptose, prolongam significativamente a sobrevida. O transplante de células-tronco alogênicas é difícil por tratar-se de doença de idosos; deve ser sempre indicado em paciente mais jovens com doador compatível. Com o passar dos meses, às vezes anos, o número de blastos aumenta. Quando acima de 5% no sangue, ou entre 5 e 20% na medula, diz-se haver anemia refratária com excesso de blastos; considerar essa evolução como outra doença, como é feito na classificação da OMS, parece desnecessário ao autor. Nessa etapa, a anemia é severa, e sempre há necessidade transfusional. Complicações infecciosas e hemorrágicas, pelas citopenias, são comuns. Mais algumas semanas ou meses e a medula fica tomada de proliferação blástica: é a transformação leucêmica final. A quimioterapia é de alto risco e causa apenas breve remissão. Anemia sideroblástica Também chamada anemia refratária com sideroblastos em anel, é um tipo particular de anemia mielodisplásica, mais frequente que as demais, em que a eritropoese ineficaz deve-se a um bloqueio adquirido na síntese do heme, diferente do defeito genético da anemia sideroblástica congênita. A hemoglobinização desigual dos eritrócitos gera uma população heterogênea, com anisocitose e anisocromia notáveis. O hemograma (Fig. 25.3 [b]) sugere o diagnóstico: anemia normocítica (mas pode ser um pouco macro ou microcítica) com amplitude de distribuição dos eritrócitos (RDW) extremamente elevada e histogramas praticamente patognomônicos (Fig. 25.4). Alguns pacientes mostram-se com uma anemia moderada (hemoglobina entre 8 e 10,5 g/dL), que se mantém estável durante anos.

FIGURA 25.4 Eritrogramas (Coulter) de dois casos de anemia sideroblástica com RDW muito elevado e histogramas típicos.

Há corpos de Pappenheimer nos eritrócitos, mas geralmente passam despercebidos ao observador no laboratório. O leucograma, em 60% dos casos, mostra desvio à esquerda,

sem outras alterações esclarecedoras. A contagem de plaquetas é normal. Há casos de anemia sideroblástica com trombocitose acentuada; a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Apêndice 2) considera-a como uma síndrome mieloproliferativa-mielodisplásica. O diagnóstico, sugerido no hemograma pela RDW enormemente aumentada (anisocitose) e pelo histograma de ampla abertura, confirma-se pelo mielograma com coloração de Perls. Predominam os sideroblastos em anel, idênticos aos da anemia congênita; alguns raros podem ser vistos também no sangue periférico. Não há tratamento eficaz; 20% dos pacientes melhoram marginalmente com eritropoetina recombinante humana (rHu-Epo) em doses altas (30.000 unidades por semana). É praxe de discutível eficácia, mas inócua (placebo?), indicar uma dose oral diária de 200 mg de piridoxina e 10 mg de ácido fólico para favorecer o metabolismo do heme. A evolução é lenta; a sobrevida ultrapassa uma década, o que faz a prevalência elevada de pacientes dar a impressão de uma incidência maior do que a real. Com a piora da anemia, a necessidade transfusional torna-se permanente. A leucemização é rara e tardia. Pode ocorrer hemossiderose transfusional; quelantes de ferro têm indicação. Síndrome da del(5q) No caso particular da deleção do braço longo do cromossomo 5 [5(q−)], mais frequente em mulheres, a anemia refratária tem características particulares; justifica-se considerá-la como uma entidade distinta. A granulocitopoese mantém-se estável, sem progressão leucêmica, por vários anos. A megacariocitopoese é anormal, com grande número de formas pequenas, mono e binucleadas (hipoploidia), mas eficiente para manter número normal alto de plaquetas ou franca trombocitose. A anemia, entretanto, é refratária; raramente há melhora marginal com doses altas de rHu-Epo; necessidade transfusional é a regra. A lenalidomida provoca melhora marginal mas que pode ser suficiente para diminuir ou suprimir a necessidade transfusional. A sobrevida mediana, até a tardia e inconstante transformação leucêmica ou o óbito por outras causas, como hemossiderose, é superior a cinco anos. NEOPLASIAS MIELOPROLIFERATIVAS/MIELODISPLÁSICAS A presença de sinais displásicos em doenças definidamente mieloproliferativas fez incluir-se esse título duplo na classificação da OMS. Dentre as entidades descritas, duas são bem caracterizadas: a leucemia mielomonocítica crônica (LMMoC), relativamente frequente, e sua raríssima contrapartida pediátrica, a leucemia mieloide crônica infantil. Leucemia mielomonocítica crônica (LMMoC) É uma leucemia mieloide indolente, quase sempre notada quando ainda assintomática. O dado diagnóstico é uma monocitose progressiva (Fig. 25.5 [a]), geralmente acompanhada de neutrofilia. Contagens de monócitos acima de 1.000/µL, em idosos, devem ser reconferidas; se confirmadas e persistentes, trata-se de LMMoC. A anemização é lenta,

com tendência à macrocitose; há trombocitopenia precoce, mas não acentuada. Os neutrófilos mostram sinais displásicos, geralmente hipersegmentação nuclear ou aspecto pelgeroide. A esplenomegalia é discreta. O tratamento deve ser protelado; a quimioterapia intensiva acompanha-se de indesejável mortalidade e não é curativa. A proliferação monocítica da medula é substituída progressivamente por proliferação blástica, que se expressa no sangue periférico. Há piora da anemia e da trombocitopenia. A sobrevida mediana é pouco superior a dois anos, mas há certa porcentagem de casos de evolução excepcionalmente lenta.

FIGURA 25.5 Hemogramas de leucemia mielomonocítica crônica (a) e de leucemia mieloide crônica infantil (b).

Leucemia mieloide crônica infantil É uma rara leucemia com incidência predominante entre 1 e 4 anos de idade; a tradução do inglês de juvenile para juvenil é incorreta. Caracteriza-se por monocitose, leucocitose variável, mielócitos e blastos no sangue. Há uma curiosa reversão à hematopoese fetal, com aumento da Hgb F e do antígeno i dos eritrócitos (no adulto, o antígeno i é substituído por seu alelo I). Hepatoesplenomegalia é constante; rash cutâneo, comum. A citogenética é normal em alguns casos; em outros, há trissomia 8 e em ≅ 25%, monossomia 7; esses últimos casos têm sido descritos como uma síndrome distinta. A medula mostra proliferação mieloide, com promonócitos e blastos, e com sinais displásicos. O

prognóstico é reservado; se houver doador compatível, o transplante de medula óssea (TMO) é indicado e pode ser cura​tivo. Há raríssimas descrições de cura espontânea. Um caso do autor, com 2 anos de idade em 1965 (hemograma ao diagnóstico na Fig. 25.5 [b]), após dois anos de tratamento contínuo com 6-mercaptopurina, manteve-se em remissão (cura?) até, pelo menos, a idade de 14 anos (última consulta).

26 NEOPLASIAS LINFOIDES DE CÉLULAS MADURAS A classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) divide as neoplasias linfoides em neoplasias de células B e neoplasias de células T (e NK). Subdivide cada um desses títulos em neoplasias de células precursoras (ou imaturas) e neoplasias de células maduras (ou periféricas). As neoplasias linfoides de células precursoras, tanto B como T, são leucemias linfoblásticas agudas; o autor reuniu-as às leucemias mieloides agudas, discutindo-as em conjunto como leucemias agudas (Cap. 22), por terem hemograma e quadro clínico similar. Neste capítulo, são discutidas as leucemias de células T e B maduras e, dentre os linfomas, aqueles cujo hemograma é decisivo para a suspeita diagnóstica (linfomas leucêmicos, isto é, com células linfomatosas no sangue) ou sugestivo, pela presença usual de alterações secundárias. O autor arbitrou a sequência pelo hemograma: da doença mais leucêmica para a menos leucêmica, independentemente da origem B ou T. LEUCEMIA LINFOCÍTICA CRÔNICA (LLC)

A LLC usual (standard ou clássica) é uma proliferação clonal de linfócitos B (CD19+, CD20+, CD23+), com acúmulo de linfócitos pequenos, de aspecto maduro, na medula óssea, no sangue, nos órgãos linfoides e eventualmente noutros órgãos. Os linfócitos são CD5+, marcador próprio dos linfócitos T e que, nos linfócitos B, existe apenas em um subtipo de número reduzido, oriundo do manto perifolicular, relacionado com a autoimunidade. Aceita-se que a transformação leucêmica comece por uma alteração genômica específica, a deleção de micro-RNA genes no braço longo do cromossomo 13, o que aumentaria a resistência à apoptose dos linfócitos acometidos. A citogenética também evidencia alterações cromossômicas correlacionadas ao prognóstico; as mais frequentes são vistas na Tabela 26.1. O linfoma linfocítico de células pequenas B sem infiltração da medula e sem expressão sanguínea (contrapartida tumoral sólida da LLC) é muito raro ou só aparente, pois os linfócitos tumorais maduros circulam e são difíceis de distinguir dos normais. A LLC é praticamente inexistente na infância, raríssima antes dos 30 anos, e aumenta de incidência com a idade, sendo muito comum após os 60 anos (> 35 casos/100.000); predomina no sexo masculino. É a leucemia de maior incidência nos Estados Unidos: 4,3 casos/100.000/ano, o que equivale ≅ 15.000 casos novos, com ≅ 4.500 óbitos. Nos povos europeus e americanos, corresponde a aproximadamente 25% dos casos de leucemia; é rara na Ásia, inclusive no Japão. TABELA 26.1 Correlação entre alterações cromossômicas e sobrevida na LLC Alteração cromossômica

Frequência

Sobrevida mediana

Trissomia 13q ou deleção 13q-

≅ 50%

≅ 11 anos

Trisssomia 12

≅ 20%

≅ 9 anos

Deleção 11q

≅ 20%

≅ 6,6 anos

Deleção 17p

≅ 10%

≅ 2,5 anos

Na maioria dos pacientes, o diagnóstico é feito em etapa ainda assintomática: um hemograma, indicado por motivo fortuito, mostra linfocitose, de moderada a considerável (Fig. 26.1 [a]), sem outras alterações significativas. Com esse número de linfócitos, o contador eletrônico geralmente fornece número errado de monócitos, pois o scatterplot de linfócitos invade a área destes; há necessidade de refazer a fórmula ao

microscópio, anotar a nova porcentagem de monócitos no lugar da inexata e deduzi-la da porcentagem de linfócitos. Assumir integralmente a fórmula feita ao microscópio, em lugar da eletrônica, não é de boa técnica, pois o número de neutrófilos é importante, e a contagem eletrônica é muito mais exata. Entre os linfócitos de aspecto normal, geralmente podem ser notados alguns um pouco maiores e com nucléolo óbvio (prolinfócitos) e restos nucleares de linfócitos amassados na distensão (sombras de Gumprecht – inútil mencioná-las nos resultados). A ilustração Cella Vision no início do capítulo, mostra um pequeno conglomerado de linfócitos em caso de LLC. Linfocitoses com mais de 30% de prolinfócitos, com linfócitos de núcleo clivado, ou linfócitos grandes e atípicos, são contrárias ao diagnóstico de LLC do tipo usual; sugerem variantes, linfomas leucêmicos ou linfocitoses reacionais.

FIGURA 26.1 Hemogramas de LLC (a) e hairy cell leukemia (b).

Algumas vezes, o paciente vai à consulta já por sintomas da doença: mal-estar, perda de peso, suores noturnos; há linfonodomegalias e esplenomegalia. Com o envolvimento extenso da medula óssea, surgem anemia e trombocitopenia progressivas. O número de linfócitos no sangue pode ultrapassar 500.000/µL. A grande massa tumoral, de mau prog​nóstico, acompanha-se de elevação da desidrogenase láctica (DHL) e da β2microglobulina. Complicações decorrentes de alterações do sistema imunológico são frequentes; o tratamento com fludarabina parece aumentá-la. As principais são: ■ Suscetibilidade a infecções: ao pneumococo e outros germes encapsulados, por hipogamaglobulinemia (tratamento com IgG IV pode ser necessário); ao vírus varicela-zóster, por falta de função dos linfócitos T, desencadeando herpes-zóster em qualquer de suas localizações clássicas.

■ Anemia hemolítica autoimune: em cerca de 10 dos casos de LLC positiva-se o teste de Coombs direto; alguns desses pacientes desenvolvem anemia hemolítica, com reticulocitose e a presença usual de esferócitos, geralmente responsiva ao tratamento com corticoides. ■ Trombocitopenia autoimune: deve ser diferenciada da trombocitopenia decorrente da insuficiência medular por infiltração linfoide. Também responde ao tratamento com corticoides. A LLC é incurável, mas, como muitos casos são indolentes, a sobrevida mediana é de sete anos. A citometria em fluxo pode mostrar marcadores correlacionados ao prognóstico: alta expressão (> 30%) de CD38 e positividade (> 20%) à proteína ZAP-70 associam-se a evolução mais rápida e pior prognóstico. A identificação e a avaliação de ZAP-70 ainda não estão internacionalmente padronizadas. A quimioterapia, por ser paliativa, só deve ser indicada para controlar sintomas e sinais que interfiram na qualidade de vida do paciente: sintomas de doença consuntiva, organomegalias, anemia, complicações imunológicas supracitadas, etc. Deve ser protelada ao máximo e nunca usada com a finalidade apenas de baixar a contagem de linfócitos: isso seria “tratar o hemograma”, não o paciente. São drogas eficazes: clorambucil (Leukeran®), fludarabina (Fludara®), 2-cloro-desoxiadenosina (Leustatin®), rituximabe (Mabthera®), alentuzumabe (Campath®), bendamustine (Treanda®, não comercializada no Brasil) e combinações similares às usadas para quimioterapia de linfomas. Por ser uma doença de idosos, muitos pacientes morrem de causas não relacionadas, outros de complicações infecciosas; raros, pela conversão terminal da LLC em um linfoma agressivo, de grandes células (síndrome de Richter). DEMAIS NEOPLASIAS LINFOIDES PREDOMINANTEMENTE LEUCÊMICAS Hairy cell leukemia (HCL) O nome em inglês é mundialmente utilizado, predominando sobre as traduções leucemia de células cabeludas ou pilosas e tricoleucemia. É uma doença rara. O hemograma mostra severa neutropenia e trombocitopenia moderada (Fig. 26.1 [b]); a anemia é mais tardia. As hairy cells (HCs) no sangue não costumam ser numerosas; há necessidade de procurá-las. São grandes linfócitos B, CD5-, CD23-, CD11+, CD25+ e CD103+, com vilosidades citoplasmáticas superficiais características (Fig. 26.2 [a]). Os contadores Coulter e Cell Dyn identificam-nas como monócitos. A fórmula leucocitária do hemograma da figura foi feita ao microscópio; a máquina mostrou 18% de monócitos e o flag Blasts. A microscopia mostrou apenas 1% de monócitos e 17% de HCs; a HCL é uma das raras eventualidades em que há monocitopenia, que pode ser extrema. As HCs acumulam-se na medula óssea cercadas de fibrose reticulínica, de modo que, à aspiração, geralmente se obtém escasso material hipocelular; mesmo assim, às vezes podem ser vistas as HCs diagnósticas. A biópsia é necessária à confirmação diagnóstica. As HCs acumulam-se também no baço; a esplenomegalia é precoce e pode ser enorme. Os pacientes de HCL fazem durável remissão clínica com a esplenectomia. Esta deixou de ser

indicada com o advento do quimioterápico 2-cloro-deoxiadenosina (Leustatin®), bem tolerado e de notável eficácia: causa anos de remissão clínica e hematológica. A droga costuma ser novamente eficaz uma ou até duas vezes após a recidiva, de modo que a sobrevida costuma ultrapassar uma década. Há uma hairy cell leukemia variante (Fig. 26.2 [b], caso do autor) em que as células são semelhantes mas têm um nucléolo proeminente e são numerosas no sangue (> 50.000/ µL). A resposta ao tratamento é muito inferior, e a sobrevida, bem menor.

FIGURA 26.2 Em (a): hairy cells (Cella Vision, cortesia Fleury). Em (b): hairy cell leukemia variante (caso do autor).

Leucemia prolinfocítica B (LPL) É uma leucemia rara, com predomínio de linfócitos grandes (Fig. 26.3), geralmente CD5-, com núcleo jovem e um nucléolo muito chamativo (às vezes, dois). Incide mais em mulheres idosas e caracteriza-se por uma progressão rápida, com grande esplenomegalia e má resposta à quimioterapia. A sobrevida mediana é inferior a três anos. Há casos intermediários entre LLC e LPL, e casos em que a LLC evolui para um aspecto prolinfocítico.

FIGURA 26.3 Prolinfócitos leucêmicos no Cella Vision: cortesia Sysmex (a) e Laboratório da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (b).

Leucemia prolinfocítica T Os casos diagnosticados como LLC pelo hemograma (superficialmente examinado) e que à imunofenotipagem mostram marcadores T costumam corresponder à proliferação de linfócitos em estágio intermediário entre timócitos corticais e linfócitos T maduros;

predominam linfócitos de tamanho médio com ou sem nucléolos aparentes. É uma leucemia muito rara, com má resposta à terapêutica e curta sobrevida. Leucemia de células T do adulto É uma leucemia relacionada ao vírus HTLV-1, prevalente no Japão e nas populações negras do Caribe. É rara, mas já vista no Brasil, inclusive pelo autor. O vírus, embora assemelhado ao HIV, causa uma proliferação descontrolada de linfócitos T CD4+ em vez de destruí-los. O hemograma caracteriza-se por linfocitose a expensas de linfócitos de núcleo convoluto, com aspecto de trevo ou flor (Fig. 26.4); é indispensável que sejam examinadas distensões feitas na hora da coleta do sangue, porque a conservação in vitro causa alteração artefatual semelhante nos linfócitos. Há alterações metabólicas, hipercalcemia, má resposta ao tratamento e rápida evolução fatal. Casos de LLC-T CD4+, com hemograma semelhante ao da LLC-B (standard), não relacionados ao HTLV-1, são raríssimos; na maioria, há hipergamaglobulinemia IgA, má resposta ao tratamento e progressão maligna.

FIGURA 26.4 Leucemia de células T do adulto: (a) imagens Cella Vision (cortesia Laboratório Fleury); (b) caso do autor.

Síndrome de Sézary É a leucemização da micose fungoide, linfoma cutâneo de células T maduras (periféricas). Os linfócitos no sangue podem ser pequenos e difíceis de distinguir dos normais, ou grandes e com o núcleo apresentando delicadas fissuras, semelhantes às circunvoluções cerebrais (linfócitos cerebriformes ou células de Sézary, Fig. 26.5); a identificação positiva das células de Sézary no hemograma, fácil quando numerosas, é praticamente impossível quando raras. Com tratamento dermatológico (local) ou quimioterapia sistêmica, obtêm-se melhoras transitórias; a doença arrasta-se por anos; infecção das lesões cutâneas é causa relevante de mortalidade.

FIGURA 26.5 Células de Sézary (Cella Vision: Cortesia Laboratório Fleury e Sysmex/Laborsys).

Linfocitose ou leucemia de linfócitos grandes e granulados (LGGs) Também chamada linfocitose Tγ, porque os LGGs (Fig. 26.6) desses casos têm receptores para a porção Fc da IgG, é uma rara proliferação clonal de linfócitos T-citotóxicos, CD3+, CD8+ e CD16+, que parece estar aumentando de incidência. Há linfocitose entre 4.000 e 20.000/µL; deve ser distinguida da linfocitose reacional policlonal, com LGGs morfologicamente idênticos, vista na citomegalovirose e em pessoas esplenectomizadas. O laboratorista não pode fazer essa distinção pelo hemograma; diante de uma linfocitose LGG deve apenas fazer constar, como observação, predomínio de linfócitos grandes e granulados. Deve também procurar sinais de asplenia, porque a linfocitose pósesplenectomia pode ter significativo componente de LLG. O diagnóstico diferencial é clínico, confirmado pela imunofenotipagem. Muitos pacientes têm esplenomegalia, neutrocitopenia acentuada e sinais laboratoriais e clínicos de artrite reumatoide; a síndrome de Felty é clinicamente similar, mas sem a linfocitose LGG.

FIGURA 26.6 Linfócitos grandes e granulados no Cella Vision: cortesia Sysmex (a) e Laboratório Fleury (b).

A evolução costuma ser indolente. Pode complicar-se com anemia hemolítica autoimune e aplasia eritroide pura. O autor acompanhou dois casos acompanhados de aplasia eritroide pura (ver hemograma na Fig. 8.1), que tiveram ótima e durável resposta ao tratamento com ciclofosfamida e corticoides. A infiltração medular progressiva, como uma verdadeira leucemia, é rara. Casos de leucemia LGG em que a proliferação clonal é de natural killer cells, linfócitos sem marcadores T, CD3-, CD16±, CD56+ e CD57- são raríssimos; respondem mal ao tratamento de LLC e têm prognóstico sombrio.

LINFOMAS COM FREQUENTE EXPRESSÃO LEUCÊMICA A identificação de células linfomatosas no sangue, quando não obviamente leucêmico, é difícil. Quando são em pequeno número, sem linfocitose global, geralmente passam despercebidas. Há necessidade de uma pesquisa dirigida, a ser feita por hematologista laboratorial experiente. Deve ser solicitada sempre que houver suspeita de linfoma, por adenomegalias de difícil acesso cirúrgico, esplenomegalia ou febre obscura a ser esclarecida. Linfoma folicular É um linfoma de células B centrofoliculares. Os centrócitos são pequenos e geralmente de núcleo clivado; os centroblastos, maiores e sem clivagem nuclear. É sempre leucêmico ou subleucêmico, com células linfomatosas vistas no hemograma. É um dos linfomas de maior prevalência em adultos; inexiste na infância. Linfocitose em adultos, ou as indicações supracitadas, exigem cuidadosa pesquisa de linfócitos de núcleo clivado, simplificadamente ditos linfócitos clivados (Fig. 26.7). Um hemograma típico está na Figura 26.8 (a). É um linfoma indolente, embora incurável; quimioterapia e radioterapia mínimas, só paliativas, permitem longa sobrevida quase desprovida de sintomas.

FIGURA 26.7 Células (linfócitos) clivadas de linfoma folicular no Cella Vision: cortesia Laboratório Fleury (a) e Laboratório da Santa Casa de Misericórdia (b).

FIGURA 26.8 Hemograma em linfoma folicular leucêmico (a) e hemograma e velocidade de sedimentação globular (VSG) em doença de Hodgkin, histologia esclerose nodular (b).

Linfoma de células do manto

É um linfoma de células B de tamanho médio, clivadas ou não. O núcleo é irregular, e o citoplasma pode ser amplo; nesse caso, podem ser confundidas com linfócitos atípicos de viroses. São CD5+ (como as da LLC), CD20+, geralmente CD23- e expressam ciclina D1. Como se trata de um linfoma de difícil tratamento e cura incomum, justificando transplante de células-tronco, a confirmação diagnóstica é indispensável. Praticamente todos os casos mostram translocação t(11;14)(q13,q32), mas a pesquisa por citogenética é insegura; Southern blot ou FISH (fluorescent in situ hybridation) são necessários. Linfoma difuso de grandes células B

Como o linfoma folicular, tem elevada prevalência em adultos. Podem ser nodais ou extranodais. Invadem a medula óssea de um modo tumoral (como os carcinomas), de onde passam ao sangue. As células grandes, anaplásticas ou semelhantes a imunoblastos, são fáceis de notar no sangue periférico, mas exigem identificação por imunofenotipagem. A ilustração é de caso do autor. Devem ser tratados com protocolos agressivos de quimioterapia visando a uma possível cura. Linfoma esplênico da zona marginal (de células vilosas)

É um linfoma incomum; acomete principalmente o baço e os gânglios hilares, mas também se dissemina na medula óssea. As células são vistas no sangue periférico: são de tamanho médio, geralmente mostram vilosidades polares, que as assemelha a hairy cells (a ilustração é cortesia do Laboratório Fleury); outras vezes têm aspecto plasmocitoide. Como são CD5- e CD23+, diferenciam-se das células da LLC e do linfoma do manto. Tem evolução indolente; há longa remissão clínica com a esplenectomia e boa resposta ao tratamento com rituximabe. Linfoma de Burkitt

É um linfoma muito agressivo, endêmico em populações negras da África equatorial, onde se relaciona com a infecção pelo vírus de Epstein-Barr (EBV), e esporádico na Europa e nas Américas. Tem elevada prevalência em aidéticos. A célula de origem é um linfócito B do centro germinal; embora seja uma célula madura, tem aspecto de um grande blasto

basófilo, com nucléolos evidentes e numerosos vacúolos lipídicos no citoplasma. A expansão leucêmica da neoplasia é mais comum nas Américas do que na África: clínica e laboratorialmente manifesta-se como uma leucemia aguda (LLA L3 na antiga classificação FAB), razão de ter sido discutida com as leucemias linfoblásticas neste manual. Micose fungoide É uma infiltração dérmica de células linfomatosas T maduras (periféricas), CD4+, com eritrodermia difusa e descamação e/ou placas densas e nódulos dérmicos. Tem evolução lenta, com boas respostas ao tratamento local. Pode disseminar-se de modo leucêmico sob a designação de síndrome de Sézary, já discutida neste capítulo. Linfoma de células T maduras (periféricas) não especificado Esse título inclui a maioria dos linfomas T maduros, pois a histopatologia destes em geral resiste a uma classificação reprodutível. As células podem ser médias ou grandes, predominam CD4+ sobre CD8+. É principalmente nodal, às vezes com manifestações cutâneas. Pode comprometer a medula óssea e ter expressão leucêmica. Às vezes, em casos não leucêmicos, há eosinofilia no hemograma. Predomina em adultos; o tratamento é pouco eficaz, e o prognóstico é reservado. EXPRESSÃO HEMATOLÓGICA DE ALGUNS LINFOMAS NÃO LEUCÊMICOS Linfoma (ou doença) de Hodgkin Como Thomas Hodgkin descreveu a doença que leva seu nome em 1832, décadas antes da caracterização dos (atualmente) inúmeros tipos de linfomas, estes foram inicialmente denominados non-Hodgkin’s lymphomas (linfomas não Hodgkin). A doença de Hodgkin é considerada agora como um dos linfomas, não havendo mais sentido em usá-la como contraponto a todos os demais e dispensar-se para estes o inútil qualificativo nonHodgkin’s. Pela elevada prevalência e por ter características histopatológicas peculiares, mereceu um título próprio na classificação da OMS. É um linfoma com histologia polimórfica, em que as células neoplásicas são circundadas por população variada de linfócitos, eosinófilos, neutrófilos, plasmócitos, histiócitos e fibroblastos. As células neoplásicas, todas de origem B, são variadas: células mononucleares de Hodgkin e células multinucleadas de Reed-Stenberg, na forma clássica, e linfocítico/histiocíticas, na forma nodular de predomínio linfocítico. O diagnóstico origina-se da avaliação de paciente com linfonodome​galia(s) ou suas consequências, ou com febre obscura a ser esclarecida; no segundo caso, costumam haver linfonodomegalias profundas. O hemograma nunca é patognomônico: as células neoplásicas não são vistas no sangue. Quando a doença é localizada, o hemograma é inexpressivo. Quando disseminada ou localmente extensa, assemelha-se ao das doenças inflamatórias crônicas: neutrofilia, geralmente sem desvio à esquerda, eosinófilos sempre

presentes (às vezes, eosinofilia). Linfopenia é um achado tardio; é constante na forma histopatológica de depleção linfocí​tica. A eritrossedimentação é muito acelerada, e há rouleaux. Em casos com grandes massas mediastinais e cervicais, geralmente com histologia de esclerose nodular, a neutrofilia pode ser considerável, até acima de 20.000/ µL, mas sem desvio à esquerda e com presença de eosinófilos. Anemia hemolítica autoimune e púrpura trombocitopênica são complicações imunológicas que podem preceder, acompanhar ou suceder a doença. Nos raros casos de doença disseminada na medula óssea, pode haver pancitopenia, mas não costuma haver reação leucoeritroblástica como em metástases medulares de outros tumores. Nesses casos, a biópsia da medula é o método diagnóstico; à aspiração geralmente não se obtêm células características. A biópsia da medula também é usada para estadiamento da doença. O tratamento com quimioterapia (geralmente protocolo ADVB: adriamicina, dexametasona, vincristina e bleomicina) e radioterapia é bem tolerado, com alta porcentagem de curas, mas pode ocasionar leucemia mieloide aguda secundária, rapidamente fatal, 3 a 8 anos depois. Linfoma anaplásico de células grandes T As células predominantes são grandes, com citoplasma abundante e núcleo em ferradura, dando-lhes aspecto monocitoide. São CD30+; quando acometem adultos jovens do sexo masculino, geralmente expressam uma proteína quinase característica (ALK). Constituem cerca de 10% dos linfomas da infância. Por ocasião do diagnóstico, estão praticamente sempre disseminados, inclusive na medula óssea, mas é raro identificarem-se células linfomatosas no sangue. São responsivos à quimioterapia; a sobrevida em cinco anos é da ordem de 80%. Linfoma linfoangioblástico de células T maduras É raro; acomete pessoas de meia-idade ou idosas. A histologia é complexa: linfócitos T clonais, linfócitos B e plasmócitos reacionais, eosinófilos, células dendríticas e proliferação venosa arboriforme abundante. Os pacientes apresentam sintomas e sinais de doença consumptiva crônica, linfonodo e hepatoesplenomegalia, prurido, às vezes rash cutâneo. Apesar de não ser leucêmico, alterações hematológicas são importantes para o diagnóstico: o hemograma mostra anemia hiporregenerativa ou anemia hemolítica Coombs-positiva e/ou com crioaglutininas. Há considerável neutrofilia com desvio à esquerda. Plasmocitose é um achado típico; em caso recente, visto pelo coautor (F.B.F.), os plasmócitos variaram de 4 a 16% em leucograma com neutrofilia, com 24.000 a 40.000 leucócitos/µL. Há considerável hipergamaglobulinemia policlonal, causando rouleaux e VSG muito acelerada. É irresponsivo a tratamento, e o prognóstico é reservado.

27 GAMOPATIAS MONOCLONAIS Gamopatias monoclonais são neoplasias plasmocíticas ou plasmocitoides, em que as células neoplásicas secretam imunoglobulinas monoclonais, daí a denominação consagrada. Como se originam de células da hematopoese que proliferam na medula óssea e que podem ser identificadas no sangue periférico, há sentido em considerá-las como um tipo particular de leucemia crônica. MIELOMA MÚLTIPLO (MM) É uma neoplasia plasmocítica disseminada na medula óssea. O MM é raro antes dos 40 anos, e > 70% dos pacientes têm diagnóstico após os 65 anos. Em idosos, é um tumor frequente; corresponde a ≅ 10% das neoplasias da hematopoese e é responsável por aproximadamente 1% da mortalidade por câncer em geral. A prevalência está aumentando paralelamente à longevidade populacional. Em significativa porcentagem de casos, o MM é precedido por uma expansão prémaligna clonal de plasmócitos secretores de imunoglobulina, denominada gamopatia monoclonal de significação obscura (MGUS, acrônimo universalmente usado da designação em inglês). A MGUS é observada em 1 a 2% da população aos 60 anos e aumenta muito de incidência dessa idade em diante; evolui para MM na frequência de 1 a 3% ao ano. Há, ainda, casos descritos como mieloma indolente (ou smoldering), em que há uma plasmocitose medular estável durante anos. A distinção segura, para definir

prognóstico, é difícil ou impossível, mas a citometria em fluxo, distinguindo plasmócitos normais de mielomatosos (Tab. 27.1), aporta definido auxílio. TABELA 27.1 Imunofenotipagem de plasmócitos* Plasmócitos

Normais

Mielomatosos

CD138

+++

+ ou ++

CD38

+++

+ ou ++

CD56



++

CD19

+



CD117



+

*

Em material aspirado de medula óssea.

Parece razoável considerar como MGUS os casos com proteína monoclonal < 3 g/dL (IgG) ou < 2 g/dL (IgA) e menos de 10% de plasmócitos na medula. Quanto às porcentagens de plasmócitos normais e neoplásicos à imunofenotipagem, o autor desconhece critério internacionalmente aceito. Há dados numéricos publicados 1 quanto ao valor prognóstico (risco cumulativo de evolução para MM em cinco anos) da proporção entre plasmócitos normais e neoplásicos: (1) havendo > 95% de plasmócitos neoplásicos, o risco cumulativo é de 41%, contra 6% para < 95%; (2) quando a relação plasmócitos neoplásicos/normais é > 4, o risco cumulativo é de 35%, contra 4% quando < 4. Casos assintomáticos, mas com plasmocitose medular que ultrapasse 10%, devem ser considerados como smoldering mieloma. A melhora recente da tecnologia, substituindo a eletroforese convencional por método automatizado de separação eletrocinética das proteínas em tubo capilar com tampão eletrolítico, permitiu evidenciar-se um número muito maior de barras monoclonais, antes ocultas na massa policlonal das gamaglobulinas normais. Na Figura 27.1 (a), proteinograma e imunofixação de um caso de MGUS IgG κ óbvia e, em (b), um pico mínimo de IgM κ, este só evidenciado pelo emprego da tecnologia atual.

FIGURA 27.1 Proteinograma e eletroforese com imunofixação de dois casos de gamopatia monoclonal de significação obscura (MGUS): (a) pico de IgG κ em gama e (b) pico de IgM κ notado apenas por pequena deformidade da elevação em gama. (Cortesia do Laboratório Weinmann, Porto Alegre.)

Eventos moleculares múltiplos estão envolvidos na patogênese do MM; a translocação 14q32 parece universal. A detecção por citogenética convencional é difícil; hibridização in situ por fluorescência (FISH) é a técnica apropriada. Exames de biologia molecular demonstram a presença no sangue de linfócitos B maduros, originados nos centros germinativos dos linfonodos, com os mesmos rearranjos moleculares que os plasmócitos malignos. A proliferação tumoral é dependente da produção de interleucina 6 pelas células do estroma da medula óssea, por sua vez ativadas pelos plasmócitos, e é estimulada pela neoangiogênese decorrente de superprodução de fator de crescimento do endotélio. A proliferação na medula causa osteólise, hipercalcemia e aumento de β2-microglobulina sérica. A suspeita diagnóstica origina-se de: ■ Presença de proteína monoclonal, notada no hemograma por ocasionar um rouleaux característico e aumento da velocidade de sedimentação globular (VSG). ■ Diagnóstico diferencial de anemia de início insidioso.

■ Dor óssea, geralmente lombar, levando a exames de imagem nos quais são vistas lesões osteolíticas sugestivas. ■ Avaliação de insuficiência renal. O hemograma no MM mostra leve anemia normocítica ou um pouco macrocítica, sem sinais de regeneração, leucograma normal ou com neutropenia, plaquetas normais ou leve trombocitopenia. Nota-se agregação excessiva dos eritrócitos; quando a taxa de proteína monoclonal não é muito alta, o aspecto é de empilhamento (rouleaux) exagerado, impossível de distinguir de uma hipergamaglobulinemia policlonal reacional. Quando muito elevada, formam-se conglomerados compactos em que quase não se distinguem os contornos celulares; com esse aspecto praticamente patognomônico, o autor sugere anotar no resultado: rouleaux sugestivo de disproteinemia. Constatando rouleaux desse aspecto, o laboratorista deve examinar a lâmina em busca de plasmócitos; em casos de MM a presença é frequente (Fig. 27.2), mas em porcentagem muito baixa.

FIGURA 27.2 Plasmócitos mielomatosos no sangue periférico.

Rouleaux ou VSG elevada exigem proteinograma e eletroforese com imunofixação (Fig. 27.3). No proteinograma do MM, à esquerda, nota-se pico monoclonal de base estreita e ponta fina; compare-se com a hipergamaglobulinemia policlonal inflamatória, à direita, com base ampla e topo arredondado. Na eletroforese com imunofixação, identifica-se a natureza da imunoglobulina monoclonal, que no MM pode ser IgG, IgA, raramente IgD ou IgE (na figura é IgG) e a clonalidade da cadeia leve, κ ou λ (na figura é κ).

FIGURA 27.3 Proteinogramas e eletroforese com imunofixação de dois casos de hipergamaglobulinemia. (a) Pico monoclonal de IgG κ em caso de mieloma múltiplo e (b) aumento policlonal inflamatório.

Quando os plasmócitos mielomatosos secretam apenas cadeias leves, cujo baixo peso molecular permite que filtrem nos glomérulos, estas se perdem pela urina, e o pequeno pico monoclonal remanescente no soro fica oculto no proteinograma dentro da elevação da imunoglobulina normal – não se nota. Também não há rouleaux à microscopia. Com a tecnologia atual do proteinograma, é provável que pequenos picos de cadeia leve passem a ser notados. A proteína monoclonal urinária denominava-se proteína de Bence-Jones e era pesquisada pela temperatura de precipitação e redissolução ao tratar-se a urina com ácido; o nome histórico persiste, mas atualmente pesquisa-se pela aplicação à urina dos mesmos métodos usados para o soro. Pacientes com MM secretor de cadeias leves têm precoce insuficiência renal. Cerca de 5% dos mielomas não secretam imunoglobulinas monoclonais; são ditos mielomas não secretores. A falta de proteína monoclonal retarda o diagnóstico e com isso piora o prognóstico. O diagnóstico de MM confirma-se pelo exame da medula óssea; o mielograma aspirativo costuma ser suficiente. Há acentuada plasmocitose, com presença de células binucleadas, algumas com citoplasma com áreas avermelhadas (flaming cells) pela presença da imunoglobulina. A distribuição da infiltração plasmocítica na medula óssea

não é homogênea. Às vezes, obtém-se material pobre à aspiração; nesses casos, a biópsia é indispensável. A imunofenotipagem do material aspirado mostra porcentagem muito menor de plasmócitos do que a vista à microscopia; no tratamento do material para a citometria em fluxo há significativa lise de plasmócitos. Quando a doença está muito avançada e intratável, pode haver leucemização, isto é, a presença no sangue de número crescente de células mielomatosas. Por outro lado, há casos de neoplasia plasmocítica ab initio leucêmica. As células dessa leucemia plasmocítica podem ter o aspecto usual de plasmócitos ou ser morfologicamente linfócitos, cuja natureza plasmocítica só se identifica por imunofenotipagem; pode ou não acompanhar-se de disproteinemia. Há plasmocitomas solitários, geralmente afixados a estruturas ósseas, outras vezes em mucosas, que podem se acompanhar de pequenos picos séricos de proteína monoclonal. Às vezes, curam-se com radioterapia; às vezes, há cura local, mas ulterior disseminação mielomatosa lenta na medula óssea. O tratamento do MM persiste insatisfatório. Usa-se quimioterapia com melfalano (Alkeran®) e corticoides, protocolos de poliquimioterapia com vincristina, adriamicina e dexametasona em alta dose (VAD), talidomida ou lenalidomida (Revlinid®, não comercializado no Brasil) na expectativa de diminuir a angiogênese. O inibidor de protease por bloqueio dos proteossomos 26S, bortezomibe (Velcade®), tem mostrado resultado promissor. Quando possível pelas condições gerais do paciente, faz-se quimioterapia intensiva seguida de transplante de células-tronco autólogas; é sempre indicado em pacientes com menos de 65 anos, pois causa definido aumento da sobrevida. O transplante de medula óssea (TMO) alogênico é raramente possível por tratar-se de doença de idosos. Os bisfosfonatos são úteis para controlar a osteólise. A despeito da variedade de opções de tratamento, o prognóstico persiste reservado, com sobrevida mediana de 3 a 4 anos. DEMAIS GAMOPATIAS MONOCLONAIS Linfoma linfoplasmocítico e macroglobulinemia de Waldenström É uma neoplasia de células linfoplasmocíticas secretoras de IgM. É muito mais rara que o MM, predomina no sexo masculino e, embora a idade usual de acometimento seja ainda mais avançada que a do MM, às vezes é vista até na 4ª década da vida. O diagnóstico quase sempre decorre da observação de rouleaux no hemograma com identificação da IgM monoclonal à eletroforese com imunofixação. Há infiltração linfoplasmocítica da medula, esplenomegalia, raramente adenomegalias. A anemia é mais precoce que no MM; podem surgir manifestações hemorrágicas por disfunção plaquetária decorrente da presença da macroglobulina e síndrome de hiperviscosidade se esta ultrapassar 5 g/dL; nesse caso, deve ser feito tratamento imediato com plasmaférese. O hemograma mostra os sinais de disproteinemia, anemia normocítica e trombocitopenia leves. As células linfoplasmocíticas no sangue costumam ser raras, nem são notadas, mas, raramente, são numerosas, simulando uma leucemia linfocítica crônica (LLC).

A presença de IgM monoclonal no soro não corresponde necessariamente ao diagnóstico de macroglobulinemia de Waldenström. Pequenos picos não são raros em idosos (Fig. 27.1 [b]), fazendo parte da condição gamopatia monoclonal de significação obscura (MGUS) discutida no começo deste capítulo. Também podem existir picos de IgM em casos de linfomas de pequenas células, de leucemia linfocítica crônica e de leucemia prolinfocítica. A síndrome de crioaglutininas é um caso particular de macroglobulinemia sem neoplasia aparente. Ao contrário do mieloma, as células da macroglobulinemia não têm uma identificação imunofenotípica consistente à citometria em fluxo. A quimioterapia com clorambucil e corticoide, depois com fludarabina, permite longas remissões e sobrevida mediana similar à da LLC. O rituximabe é útil nas recidivas e no tratamento de complicações autoimunes. Doença de cadeias pesadas É uma doença rara caracterizada por infiltração linfoide na parede intestinal e nos gânglios mesentéricos, com áreas de aspecto linfomatoso e áreas aparentemente inflamatórias. Há sinais de má absorção, diarreia, perda de peso e episódios febris. O proteinograma e a eletroforese com imunofixação mostram um pequeno componente monoclonal de cadeias pesadas α (parte da molécula da IgA). O hemograma não é esclarecedor; pode haver anemia megaloblástica por falta de ácido fólico. A maioria dos casos evolui de modo maligno. 1 Rummel MJ, Gregory SA. Benda mustine’s emerging role in the management of lymphoid malignancies. Semin Hematol. 2011;48 Suppl 1:524-36.

28 EXAMES COMPLEMENTARES AO HEMOGRAMA Alterações no hemograma frequentemente sugerem hipóteses diagnósticas que geram a necessidade de outros exames para confirmá-las ou excluí-las. Alguns são de bioquímica – por exemplo, dosagens de bilirrubina, haptoglobina e desidrogenase láctica na suspeita de hemólise –, outros de imunologia – como anticorpos TORCH no recém-nascido (RN) com anemia e trombocitopenia; a discussão pertinente está fora dos limites deste Manual. Há exames, entretanto, que visam a identificação mais segura de células vistas no hemograma ou a observação de alterações celulares submicroscópicas, complementando a morfologia; é o caso da citoquímica e da citometria em fluxo. A citogenética identifica alterações cromossômicas muitas vezes patognomônicas. A biologia molecular conduz o diagnóstico ao nível do DNA das células afetadas. Testes de função plaquetária complementam a contagem e a morfologia. Testes de função dos neutrófilos, que também seriam pertinentes, não estão incluídos neste Manual pelo nível de complexidade, que restringe o uso a laboratórios especializados. E há o exame da medula óssea, que, analisando os precursores das células periféricas, é a complementação lógica do hemograma. O presente capítulo discute-os brevemente, centrando-se nas indicações; para a tecnologia, consultar livro especializado. 1 CITOQUÍMICA E IMUNOCITOQUÍMICA

A citoquímica, como complementação à coloração convencional na identificação celular, teve seu apogeu, mas está em desuso, substituída pela citometria em fluxo com seus marcadores imunológicos. Algumas técnicas persistem utilizadas, principalmente pela simplicidade e rapidez; algumas permitem um diagnóstico diferencial incompleto, mas imediato, favorecendo a escolha dos exames subsequentes. Mieloperoxidase e Sudan-black B: são fáceis e rápidas de serem executadas. A positividade de qualquer delas caracteriza células primitivas como mieloides, diferenciando-as das linfoides. A negatividade não exclui essa origem: os mieloblastos primitivos (M0) são negativos, como os linfoblastos. O autor recomenda fazer uma delas (a escolha é irrelevante) como rotina, sem necessidade de pedido médico específico, sempre que um hemograma sugestivo de leucemia aguda, de paciente sem diagnóstico prévio, mostrar blastos sem granulações citoplasmáticas mieloides óbvias. Como as células mieloides, do promielócito em diante, são mieloperoxidase-positivo, a coloração também é usada para identificar a deficiência congênita da enzima. Os contadores eletrônicos da linha Advia, que usam a coloração da mieloperoxidase para identificação dos neutrófilos no leucograma, emitem resultado com neutrocitopenia espúria nos casos dessa deficiência. PAS (periodic acid-Schiff): é de fácil execução, mas os reagentes conservam-se mal e são caros. Há positividade em blocos periféricos vermelhos na maioria dos linfoblastos leucêmicos e negatividade nos mieloblastos; para esse fim, foi substituída pela imunofenotipagem. Ainda é usada em laboratórios de patologia em biópsias histológicas de medula óssea para mostrar a positividade dos eritroblastos em eritroleucemias e identificar megacariócitos e megacarioblastos, também positivos. Alfa-naftil-acetato esterase: a técnica é trabalhosa. Cora em pardo-escuro o citoplasma das células de origem monocítica, diferenciando-as dos precursores mieloides e das células leucêmicas sem essa orientação. Está em desuso. Fosfatase ácida tartarato-resistente (TRAP): a técnica é trabalhosa. A positividade TRAP é característica das células cabeludas da hairy cell leukemia (HCL). Ainda é usada em laboratórios de patologia para identificá-las na medula óssea. As células da HCL variante são negativas. Fosfatase alcalina: a técnica é trabalhosa, e os reagentes, caros. Os neutrófilos têm número variável de grânulos fosfatase alcalina-positivo no citoplasma; a positividade é muito intensa nas neutrofilias reacionais, inclusive a da gravidez. Na leucemia mieloide crônica Ph+, os neutrófilos são quase todos negativos, raros fracamente positivos: a distinção com as neutrofilias, fosfatase alcalina-positivo, das reações leucemoides e das demais síndromes mieloproliferativas é geralmente óbvia com a técnica. Um escore de positividade, preconizado na literatura para expressar o resultado, consome tempo técnico excessivo para ser usado na prática. A técnica está em desuso, substituída pela pesquisa do cromossomo Ph por citogenética ou a fusão BCR-ABL 1 por biologia molecular.

Coloração de Perls (ou do azul-da-prússia): cora o ferro, tanto armazenado nas células reticulares e macrofágicas da medula óssea, como no citoplasma dos eritroblastos e eritrócitos medulares ou periféricos. É necessária e muito utilizada nas distensões e biópsias de medula para confirmar dosagens de ferritina que pareçam discordantes dos casos clínicos; uma observação cuidadosa permite diferenciar depósitos de ferro artificial (ferroquelato injetado), que se mostra em conglomerados de grânulos, da ferritina e hemossiderina naturais, de aspecto difuso (ver Fig. 6.6, no Cap. 6). É única e indispensável na identificação dos sideroblastos em anel das anemias sideroblásticas congênitas e adquiridas. A imunocitoquímica associa a citoquímica à imunologia. Células medulares ou periféricas, em distensões ou preparados de citocentrífuga, são expostas a anticorpos monoclonais que, corados por técnicas de imunoperoxidase ou fosfatase alcalina/antifosfatase alcalina, podem ser evidenciados à microscopia. O método permite a correlação da morfologia com a imunofenotipagem, mas é trabalhoso e exige um hemopatologista experiente; foi praticamente substituída pela citometria em fluxo. CITOMETRIA EM FLUXO E IMUNOFENOTIPAGEM A citometria em fluxo é uma técnica de identificação e caracterização de células, que fluem através de uma tubulação delgada e passam, uma a uma, em frente a sensores multiparamétricos. Essa tecnologia de modo restrito faz parte dos contadores eletrônicos do hemograma, mas é especialmente desenvolvida em máquinas especializadas (flowcytometers = citômetros de fluxo), nas quais a análise inclui marcação das células com anticorpos monoclonais conjugados a agentes capazes de fluorescer em frente a um laser focado na câmara de exame (flow-cell) do trajeto. Os aparelhos permitem o exame individual de 10.000 a 30.000 células em segundos, de modo que são obtidos dados objetivos, quantitativos, estatisticamente válidos. Mais do que isso, testa cada célula examinada simultaneamente quanto a vários parâmetros; pequenas populações de células dispersas entre populações maiores podem ser evidenciadas com eficácia e sensibilidade notáveis. A imunofenotipagem atualmente é um exame de rotina na identificação de células não coesas, como são as sanguíneas, medulares e dos linfonodos, e mesmo de células coesas, mas passíveis de liberação por raspagem, como células das mucosas. Uma lista das aplicações da citometria em fluxo é vista na Tabela 28.1. Para discussão mais ampla, o leitor deve consultar textos especializados. 2 TABELA 28.1 Algumas aplicações da citometria em fluxo Exame

Método

Imunofenotipagem Anticorpos monoclonais marcados com fluorocromo

Aplicações Contagem de linfócitos CD4/CD8* Subpopulações de linfócitos em imunodeficiências congênitas Identificação da célula de origem em leucemias e linfomas Contagem de CD34 na coleta de sangue para transplante

Contagem de eritrócitos fetais na circulação materna (Hgb F) Teste para hemoglobinúria paroxística noturna Contagem imunológica de plaquetas * Análise do DNA

Fluorocromos que se ligam ao DNA

Viabilidade de leucócitos * Determinação da ploidia Avaliação da apoptose

Enzimas celulares

Substratos + fluorocromos

Função oxidativa dos neutrófilos

Hibridização in situ

Ácidos nucleicos conjugados

Detecção de DNA viral Avaliações cromossômicas

Análise do RNA

Fluorocromos que se ligam ao RNA

Contagem de reticulócitos * Contagem de plaquetas reticuladas *

* Determinações já feitas por contadores eletrônicos para hemograma.

As avaliações citológicas de maior utilização no laboratório e na clínica (contagem de reticulócitos, contagem de linfócitos CD4 e CD8) estão sendo incorporadas progressivamente nas novas gerações de contadores eletrônicos para hemograma, mas os citômetros de fluxo, por sua vez, estão recebendo aperfeiçoamentos na plataforma, adição de lasers múltiplos e melhoria do software, que, associados aos progressos na tecnologia de hibridomas, na síntese de fluorocromos e na biologia molecular, têm ampliado sistematicamente seu âmbito de utilização. A principal aplicação da citometria em fluxo é a imunofenotipagem de células sanguíneas e da medula óssea, e de células tumorais, isto é, a identificação e quantificação de antígenos celulares através de anticorpos monoclonais marcados com fluorocromo. Até o presente, mais de 200 classes de anticorpos (cluster designations = CD) foram produzidas e comercializadas, identificando antígenos da membrana, do citoplasma e até do núcleo. Os marcadores para imunofenotipagem vistos na lista da Tabela 28.2 são os utilizados rotineiramente pelo coautor (F.B.F.) no Laboratório Zanol (Porto Alegre). TABELA 28.2 Lista de marcadores para imunofenotipagem Marcador MPO

Expressão Linhagem mieloide

1a

Linfócitos T (imaturos), histiócitos e subpopulações de linfócitos B

2

Linfócitos T e células NK

3

Linfócitos T maduros e em subpopulações T imaturas

4

Linfócitos T auxiliares e monócitos (estes com menor expressão)

5

Linfócitos T e em pequenas subpopulações B

7

Linfócitos T (maduros e imaturos) e células NK

8

Linfócitos T citotóxicos e populações de células NK

10

Linfócitos pré-B precoces, linfócitos B dos centros germinativos e nos neutrófilos

11b

Linfócitos NK, neutrófilos, monócitos e macrófagos

11c

Subpopulações de linfócitos B, neutrófilos, monócitos, macrófagos, células dendríticas

13

Monócitos e linhagem granulocítica

14

Monócitos e linhagem monocítica

15

Granulócitos e monócitos (estes com menor expressão)

16

Células NK e granulócitos

18

Leucócitos (para adesão)

19

Linfócitos pré-B e B

20

Linfócitos pré-B e B

22

Linfócitos pré-B e B

23

Monócitos ativados e subpopulações de linfócitos B

25

Monócitos e linfócitos T e B ativados

33

Linhagem mielomonocítica e monócitos

34

Células-tronco e imaturas

36

Plaquetas, eritrócitos e monócitos

38

Linfócitos T imaturos e ativados, linfócitos pré-B e plasmócitos

41

Plaquetas

42

Plaquetas

45

Leucócitos

55

Eritrócitos, monócitos e granulócitos

56

Subpopulações de linfócitos T e células NK

59

Eritrócitos, monócitos e granulócitos

61

Plaquetas

64

Neutrófilos

71

Eritrócitos

79a

Linfócitos B

103

Subpopulações de linfócitos T e B

117

Células imaturas mieloides

138

Plasmócitos

235

(glicoforina A) série eritroide

FMC7 HLA-DR TdT

Linfócitos B maduros Linfócitos B, monócitos e linfócitos T ativados Linfócitos T imaturos e linfócitos pré-B

TCR alfa/beta

Subpopulação de linfócitos T

TCR gama/delta

Subpopulação de linfócitos T

TESTES DE FUNÇÃO PLAQUETÁRIA Indicações 1. Quando, em paciente com contagem (confirmada) de plaquetas > 100.000/µL, houver história (ou observação atual) de manifestações hemorrágicas sugestivas de trombocitopenia, como equimoses fáceis (= púrpura simples), sangramento de mucosas ou sangramento ​transoperatório excessivo. Servem para comprovar ou excluir o diagnóstico alternativo de defeitos plaquetários funcionais, geralmente congênitos. 2. Quando houver necessidade de cirurgia em paciente com doenças ou condições que afetem a função plaquetária: insuficiência renal crônica, disproteinemias, cirurgia com

circulação extracorpórea, outras. 3. Para excluir/confirmar efeito antiplaquetário de drogas. 4. Como parte da avaliação de pacientes com suspeita de doença de von Willebrand. 5. Para julgar se pacientes com trombocitopenia entre 50 e 100.000/µL ainda assim têm hemostasia primária capaz de suportar uma cirurgia proposta. Resultados alterados devem desencorajar a cirurgia (se não for indispensável) ou só fazê-la com cobertura hemoterápica de concentrados de plaquetas. Resultados normais, por outro lado, embora não se constituam em garantia, permitiriam indicação de cirurgias com baixa morbidade por sangramento. Tempo de sangria A cronometria do estancamento espontâneo em pequeno corte no lóbulo da orelha, proposto por Duke nos anos 1920, só tem valor histórico; seu deplorável emprego como exame da rotina pré-operatória foi banido nos anos 1950. A padronização proposta por Ivy – corte na superfície volar do antebraço, abaixo de manguito insuflado a 40 mmHg –, principalmente após o lançamento comercial de dispositivos padronizados para a incisão, 3 tornou o método confiável, mas invasivo (causa cicatriz), inviável em salas de coleta de laboratório e restrito a especialistas. Sua indicação e sua execução foram assumidas por hematologistas em consultório. O tempo de sangria sempre exige contagem prévia de plaquetas; nunca fazê-lo em paciente com contagem < 50.000/µL. O tempo de sangria é necessário na eventualidade 4 das indicações acima – diagnóstico da doença de von Willebrand – e pode ser utilizado também na indicação 5 – avaliação da hemostasia em trombocitopenias moderadas. Testes de agregação plaquetária O autor (F.B.F.) deste título utiliza no Zanol Laboratório de Hematologia (Porto Alegre) instrumentos fabricados no Brasil: Myr-4 e AgreGO (Fig. 28.1), da Qualiterm Eletrônica.

FIGURA 28.1 Agregômetros Myr-4 e AgreGO e curvas normais de agregação plaquetária. No topo de cada quadro (em azul) estão o agonista respectivo e a porcentagem máxima de agregação atingida.

O teste é feito em plasma rico em plaquetas (PRP), obtido pela centrifugação em baixa rotação de sangue citratado de coleta recente. O PRP do(s) paciente(s) e de controles é distribuído em tubos apropriados, um para cada agente agregante (agonista) escolhido, geralmente adrenalina, ácido araquidônico, ADP, colágeno e ristocetina. O instrumento

emite um feixe luminoso que atravessa as amostras, e fotossensores medem a transmitância da luz em cada amostra, que é inicialmente baixa pela presença das plaquetas dispersas em suspensão. São adicionados os agonistas (em tubos separados), e o aumento de transmitância causado pela agregação, que libera vazios ópticos na massa líquida, é lido pela máquina de modo contínuo durante 5 (a 10) minutos para cada amostra. O instrumento gera um traçado gráfico em eixos cartesianos (transmitância na ordenada, tempo na abscissa), que é expressivo da agregação a cada um dos agonistas usados. A agregação com adrenalina gera uma curva bifásica: um início precoce de agregação (ação direta do agonista) e uma segunda elevação pela liberação do conteúdo dos grânulos plaquetários. A agregação induzida por colágeno é normalmente de início tardio. A Figura 28.1 mostra curvas de agregação com PRP normal (≅ 250.000 plaquetas/µL) com os cinco agonistas usados. Para as indicações de testes de função plaquetária como parte de avaliação da hemostasia (numeradas de 1 a 4, no começo deste capítulo) é fundamental que o paciente previamente aos testes de agregação abstenha-se de toda e qualquer medicação que interfira na função plaquetária. Como há drogas, como o AAS, que acetilam a cicloxigenase das plaquetas de modo definitivo, e outras de ação antiplaquetária passageira mas de longa vida plasmática, e sabendo-se que a sobrevida plaquetária média no sangue é de 8-9 dias, recomenda-se que a abstenção seja, no mínimo, de 10 dias. As drogas interferentes são: anti-inflamatórios (AAS, diclofenaco, ibuprofeno, naproxeno, tenoxicam) e antiplaquetários (clopidogrel, ticlopidina). Na experiência do autor, são inúmeros os pacientes que não cumprem essa determinação, ou por desleixo ou por não correlacionarem o nome comercial com o nome químico da droga proibida. Os erros diagnósticos decorrentes são óbvios. Algumas outras substâncias (como vitaminas) e alguns alimentos também podem causar interferência na função plaquetária; diante disso, sugere-se especial precaução e cuidadosa anamnese ao receber-se resultado desses testes. Para a indicação 5 – controle do tratamento com antiplaquetários – a precaução é inversa: manter o tratamento regularmente ao fazer o teste. A eficácia desse método de controle pode ser vista com clareza na figura seguinte. A Figura 28.2 (a) mostra gráficos de agregação em paciente recebendo uma combinação de AAS e clopidogrel; notado o efeito insuficiente do tratamento antiplaquetário pela curva com ADP (agregação = 53%), a dose de clopidogrel foi aumentada, e eficazmente, como se vê em exame repetido dias após (Fig. 28.2 [b]).

FIGURA 28.2 Curvas de agregação plaquetária de paciente em uso de ácido acetilsalicílico e clopidogrel associados. Nota-se em (a) a persistência de agregação principalmente com ADP e, em (b), diminuição óbvia da agregação após ajuste da dose de clopidogrel.

A Tabela 28.3 resume resultados previstos dos testes de agregação em alguns defeitos plaquetários genéticos e no uso de drogas que afetam a função plaquetária. TABELA 28.3 Resultados previstos para testes de agregação plaquetária em defeitos genéticos e uso de drogas Eventualidade clínica

ADP 1ª onda

ADP 2ª onda

Trombastenia de Glanzmann

A

A

A

V

A

A

Doença de von Willebrand

N

N

N

V

N

N

Síndrome de Bernard-Soulier

N

N

V

A

N

N

Doença de pool de armazenamento/secreção

N

A

A

N

V

N

Uso de clopidogrel

V

A

V

N

V

N

Deficiência congênita da via cicloxigenase ou uso de AAS

N

N

V

N

V

A

N: normal; V: variável; A: anormal.

Adrenalina Ristocetina Colágeno

Ác. aracdônico

No diagnóstico das trombocitopatias genéticas, o teste é indispensável: várias caracterizam-se por defeitos de agregação. Havendo suspeita da rara e grave trombastenia de Glanzmann, caracterizada pela falta de agregação a todos os agonistas (Figura 28.3), convém confirmar os resultados observando a retração do coágulo, cuja ausência é típica, apesar da contagem normal de plaquetas.

FIGURA 28.3 Curvas de agregação plaquetária em caso de trombastenia de Glanzmann.

Na maioria das variantes da doença de von Willebrand, há defeito de agregação plaquetária com ristocetina. Nas trombocitoses, o teste é inútil; os resultados não se correlacionam com a trombofilia da trombocitemia essencial. PFA-100 Esse instrumento da Dade-Behringer mede globalmente a função hemostática das plaquetas. O instrumento cria um ambiente hemodinâmico in vitro e cronometra a formação do tampão hemostático. Pequeno volume de sangue citratado é aspirado por tubo capilar para um orifício em membrana coberta com agonistas plaquetários (colágeno/adrenalina e colágeno/ADP – fornecidos pelo fabricante). Considera-se normal um tempo de obliteração até 200 segundos. Poderiam ser úteis todas as eventualidades descritas em “Indicações”. Apesar de ser usado na Europa e nos Estados Unidos com alguns resultados elogiados na literatura internacional, o uso não se difundiu no Brasil. O Laboratório Fleury refere baixa procura; o autor acompanhou breve uso experimental no Laboratório da Santa Casa de Porto Alegre; os resultados não pareceram satisfatórios a ponto de justificar a aquisição do instrumento. Multiplate ® analyser Esse instrumento da Roche, recentemente comercializado no Brasil, destina-se à avaliação da função plaquetária. O fabricante alega que a adesão das plaquetas à superfície dos eletrodos, ativadas com os vários agonistas fornecidos, é sensível a defeitos plaquetários genéticos e adquiridos; seria particularmente útil para monitoração do uso de antiagregantes, como ácido acetilsalicílico (AAS), clopidogrel e outros. O autor não tem

experiência com o instrumento e, até a presente edição, desconhece laboratório brasileiro que o utilize. EXAME DA MEDULA ÓSSEA A função hematopoética da medula óssea foi descrita simultaneamente por Neumann e Bizzozero em 1868, mas o exame citológico da medula por aspiração (mielograma ou medulograma) só entrou na rotina médica com a técnica de punção, introduzida por Mickail Arinkin, de Leningrado, em 1929. O exame histopatológico da medula, por biópsia, generalizou-se com a introdução da agulha de Jamshidi, em torno de 1970. Considerações técnicas A aspiração para o mielograma costuma ser feita da espinha ilíaca posterior ou do esterno (manúbrio ou 1ª estérnebra); as apófises espinhosas também servem. Em crianças de até 18 meses prefere-se a crista tibial. A aspiração do esterno é muito mais fácil, e o material obtido costuma ser mais rico em células e mais representativo, mas a punção requer a segurança de mãos experientes e agulhas com um stop, passível de fixação em altura regulável para impedir as consequências graves da perfuração da tábua óssea posterior. A punção do ilíaco é mais profunda e origina maior número de punções brancas (drytape) e/ou inapropriadas; por outro lado, é isenta de risco maior, daí ser atualmente preferida pela maioria dos serviços de hematologia. A preferência é compreensível; essa tarefa costuma ser designada aos residentes de hematologia do 1º ano, já que têm de aprender a fazê-la. O risco sistemático da punção esternal por aprendizes é inaceitável; quando, após dezenas de punções malfeitas, aprendem a técnica e fazem distensões de boa qualidade, passam a segundanistas, e o aprendizado recomeça com a próxima turma. É fácil compreender por que as lâminas de mielograma levadas ao laboratório têm qualidade abaixo da crítica e, por isso, costumam ser mal interpretadas. Após mais de 50 anos de clínica, o autor continua puncionando seus pacientes. A sensibilidade à coleta é inerente à interpretação: somente anos de prática fazem sentir a diferença entre uma punção branca e uma aspiração ineficaz por agulha mal posicionada. O mielograma é feito com trocarte de calibre 1 a 1,5 mm; a dor restringe-se à da picada da agulha da anestesia na pele e no periósteo e à dor anginoide dos poucos segundos de aspiração; é tolerável até em crianças. Já a biópsia dói, pois o trocarte longo e calibroso deve penetrar 3 a 4 cm no ilíaco; a anestesia local é só paliativa. Nos pacientes magros, é fácil; nos obesos, difícil, às vezes impossível, porque a agulha não alcança a medula ou não há firmeza de mão suficiente para controlar a extremidade distal em posição tão profunda. Em número significativo de vezes, a punção parece ter sido perfeita, mas, ao retirar-se a agulha e reintroduzir-se o estilete interior no sentido oposto para expelir o cilindro ósseo desejado, sai só um coágulo. A punção tem que ser repetida, renovando-se o sacrifício. Pelo exposto, o autor não hesita em indicar mielograma quando lhe parece útil, mas balança o desconforto/benefício antes de indicar biópsia; mesmo porque a técnica histológica é apanágio do laboratório de patologia, não do de hematologia, e os patologistas gerais – distanciados da clínica – têm dificuldade em

interpretar a histopatologia da medula óssea; a identificação celular, em verdade, é muito mais difícil em cortes do que em distensões. Como há poucos hemopatologistas experientes no Brasil, muitos laudos são inconcludentes. O material aspirado (mielograma) presta-se a uma melhor citologia, é o que se usa para imunofenotipagem e citogenética, e permite hibridização in situ por fluorescência (FISH) na maioria das indicações; é inadequado ao diagnóstico de aplasia e fibrose (aspiração branca), não evidencia granulomas e é menos sensível (ou inadequado) para evidenciar metástases ou outras células estranhas à medula. O material aspirado do ilíaco, com agulha descartável longa, mas que quebra com certa facilidade, é de qualidade definidamente inferior ao obtido do esterno, com agulha curta; as punções falsamente brancas no ilíaco são muito mais frequentes. Por outro lado, a punção aspirativa e a biópsia do ilíaco costumam ser feitas em um mesmo ato, com uma só anestesia local. Inicialmente é feita a aspiração; a seguir, a biópsia no mesmo local, com o modelo atual de trocarte, igualmente descartável. Essa simplicidade de apenas um ato é um motivo compreensível para a atual preferência de aspiração + biópsia em todos os casos. A dor/desconforto causados ao paciente não costumam ser levados em consideração. Balançando o emprego de aspiração do esterno (por mãos experientes), seguida por biópsia em outro ato quando o material aspirado for insatisfatório, contra aspiração + biópsia do ilíaco em ato único sistemático, o autor prefere e recomenda que seja considerada na escolha a impressão diagnóstica. A lista de indicações, a seguir, inclui o procedimento preferencial. Embora a morbidade do procedimento seja muito baixa, a coleta de medula óssea para exame não é isenta de complicações locais. Em análise retrospectiva de 13.506 casos, B. Bain refere nove hemorragias significativas, cinco casos de infecção e vários casos de dor local por até duas semanas. Duas agulhas quebradas geraram a necessidade de procedimento invasivo para retirá-las. O autor, com número incontável de punções aspirativas, quase todas no esterno, não teve caso de agulha quebrada. Também não houve quebra de agulha no número restrito de biópsias feitas, mas houve formação local de hematoma, sem complicações maiores, em algumas delas. Indicações O exame da medula óssea, por aspiração ou biópsia, é geralmente indicado a partir de alterações do hemograma que exijam esclarecimento e/ou de situações clínicas que costumem acompanhar-se de comprometimento medular. Segue-se lista das principais indicações e do procedimento (aspiração e/ou biópsia) recomendado pelo autor. 1. Nas anemias isoladas (i. e., sem comprometimento das demais séries): é inútil nas anemias microcíticas, salvo para avaliar as reservas de ferro pela coloração de Perls. O mielograma é útil nas macrocíticas: mostra a megaloblastose das deficiências de vitamina B12 e ácido fólico, distinguindo-a, às vezes com dificuldade, das mielodisplasias; na suspeita destas, deve ser feita a coloração de Perls para evidenciar os sideroblastos em anel, e o material, enviado à citogenética. Nunca é

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7.

indicada nas anemias com evidente hiper-regeneração (policromatocitose, reticulocitose); a medula sempre mostrará hiperplasia eritroide. Não costuma ser elucidativa nas anemias hiporregenerativas e normocíticas; geralmente se trata de anemia de doença crônica; será útil se houver suspeita de tratar-se de anemia refratária mielodisplásica. O mielograma é indispensável e suficiente para confirmação do raro diagnóstico de aplasia eritroide pura, confirmando a reticulocitopenia periférica. Nas trombocitopenias isoladas: o mielograma pode ser indicado para evidenciar a megacariocitose das trombocitopenias por destruição plaquetária periférica. O autor considera-o desnecessário na púrpura trombocitopênica imunológica aguda (quadro óbvio) e na púrpura trombocitopênica crônica que responda aos corticoides; pode ser indicado em trombocitopenias não responsivas, que suscitem dúvidas diagnósticas quanto a um diagnóstico alternativo de mielodisplasia (enviar à citogenética), principalmente em idosos. Nas neutropenias isoladas: nos casos súbitos, há indicação de mielograma para diferenciar agranulocitose de leucemia aguda aleucêmica (ainda sem pancitopenia nem blastos na periferia). É quase sempre inútil nas neutropenias crônicas: o exame não é quantitativo e geralmente nada acrescenta aos achados periféricos. No esclarecimento de eosinofilia isolada, quase sempre é inútil. Na pancitopenia (ou baixa de duas séries): quando não houver causa conhecida (p. ex., quimioterapia) ou aspectos sugestivos de mielodisplasia ou leucemia aguda (blastos), o exame da medula é sempre indicado. Se a história/hemograma sugerirem anemia aplástica, aspirar e biopsiar: aplasia, fibrose, necrose, disseminação metastática serão apropriadamente diagnosticadas. Se a presença de blastos no hemograma sugerir mielodisplasia ou leucemia aguda, a escolha será discutida conforme os itens seguintes. No diagnóstico das leucemias agudas, a partir da pancitopenia (supracitada, item 4) e mesmo quando óbvia pelo hemograma já com blastos. O mielograma é melhor que a biópsia, pois permite exame citológico acurado e a indispensável coleta de células para imunofenotipagem, citogenética e biologia molecular. Em casos pediátricos suspeitos de leucemia aguda, fazer aspiração, nunca biópsia. Mielograma e/ou biópsia serão necessários periodicamente na evolução do tratamento. Na pesquisa específica de metástases tumorais, quando houver dor óssea ou reação leucoeritroblástica. Puncione-se ponto ósseo doloroso no esterno, se houver. A punção branca ou negativa exige biópsia, pois tumores com estrutura muito coesa não liberam células à aspiração. A biópsia do ilíaco, mesmo em casos assintomáticos, pode ser indicada para estadiamento de tumores que metastatizam com frequência na medula. Nunca puncionar área óssea previamente irradiada! No diagnóstico e estadiamento dos linfomas, inclusive de Hodgkin: na infância basta a aspiração, pois os linfomas sempre são difusos e a estrutura não é coesa. Nos linfomas do adulto, a biópsia é necessária; aproveita-se para coletar material para os exames complementares. Pode voltar a ser necessária na evolução do tratamento.

8. Na leucemia mieloide crônica, mesmo com hemograma patognomônico, faz-se aspiração para coleta de células para pesquisa do cromossomo Ph por citogenética e/ou da fusão BCR-ABL por biologia molecular; células medulares (mitóticas) são melhores que as periféricas para esse fim. 9. Na leucemia linfocítica crônica diagnosticada pela linfocitose no hemograma, a biópsia pode ser útil para avaliar o padrão de infiltração medular que se relaciona com o prognóstico e a indicação de tratamento. Quando há grande linfocitose periférica, nada acrescenta. 10. Nas disproteinemias monoclonais, o mielograma é necessário e geralmente suficiente para confirmar a natureza da proliferação causal; faz-se biópsia se for obtido material escasso ou inconclusivo. 11. Na mielofibrose com metaplasia mieloide, quando suspeitada pelas alterações do hemograma, faz-se biópsia para confirmação diagnóstica; a aspiração costuma ser branca. Em pacientes idosos, com hemograma típico e esplenomegalia, o autor costuma dispensá-la. É raramente necessária como complemento diagnóstico da policitemia vera, principalmente após o advento da pesquisa de JAK2 por biologia molecular. Na trombocitemia essencial JAK2 positiva, pode ser indicada para diferenciar de começo enganador de mielofibrose primária. 12. No diagnóstico diferencial da esplenomegalia, após exclusão das causas usuais (cirrose, parasitoses nas zonas endêmicas, etc.). Várias, dentre as causas de esplenomegalia, estão nos demais itens desta lista. Na esplenomegalia dos linfomas, a medula está muitas vezes comprometida, mas, nesses casos, costuma haver células linfomatosas no sangue. A HCL, suspeitada pelo binário neutropenia + esplenomegalia, pode não mostrar células cabeludas no sangue; o diagnóstico exige sempre biópsia da medula, pois a aspiração costuma ser branca. O diagnóstico pelo exame da medula (biópsia melhor que aspiração) das doenças genéticas metabólicas (Gaucher, Niemann-Pick, etc.) geralmente é indicado a partir da esplenomegalia. O calazar, nas zonas endêmicas, é diagnosticado pelo mielograma. 13. No diagnóstico diferencial das linfonodomegalias, só é indicado se o hemograma mostrar citopenias, presença de blastos ou células linfomatosas, ou outras dentre as indicações supracitadas. A biópsia do linfonodo é o procedimento preferencial. 14. Na febre de origem obscura em pacientes imunocompetentes, o mielograma, mesmo com exame bacteriológico do material, quase nunca é esclarecedor; faz exceção o diagnóstico da rara síndrome de hemofagocitose. A biópsia só raramente evidencia granulomas. Em pacientes com aids, por outro lado, a biópsia (não a aspiração) evidencia com frequência granulomas e agentes etiológicos; o material deve ser examinado também por biologia molecular na pesquisa de patógenos. 15. Em pacientes em rápida caquetização, a biópsia pode mostrar substituição da gordura medular por substância gelatinosa; o achado é típico da anorexia nervosa. 16. Indicações incomuns: a biópsia pode ser usada para demonstrar depósitos de substância amiloide nas paredes arteriais na amiloidose sistêmica. Na púrpura trombocitopênica trombótica, a biópsia da medula pode mostrar trombos hialinos nas arteríolas, mas, com um hemograma típico, a pesquisa é desnecessária.

Na maioria dos itens discutidos, são alterações do hemograma que sugerem a indicação do exame da medula. Muitas vezes, essas alterações só são notadas pelo hematologista clínico que, em muitas outras vezes, sente que o exame da medula nada acrescentará ao que já sabe e viu no hemograma. Por esse motivo, o autor sugere que o internista ou médico de outra especialidade, quando se deparar com caso em que lhe pareça haver indicação de exame da medula, não o solicite; sugira consulta com um hematologista, reconhecido por sua ambivalência clinicolaboratorial. Repassando-lhe a responsabilidade da indicação, inúmeros pacientes serão poupados do exame da medula, trocado por um hemograma bem feito e interpretado. A aspiração da medula óssea é usada, também, para a coleta de material para citometria em fluxo, citogenética e exame de biologia molecular, nas indicações desses exames. Quase todas estão na lista anterior, mas, além dessas, pode haver indicação em síndromes genéticas não hematológicas. Contraindicações A coleta de material medular é contraindicada na hemofilia e demais coagulopatias severas. Quando indispensável, deve ser acompanhada de cobertura com os fatores de coagulação apropriados. Trombocitopenia não é contraindicação para mielograma; o hematoma local costuma ser pequeno; a biópsia do ilíaco causa hematoma profundo, geralmente irrelevante, mas com risco de infecção; deve ser evitada se não for indispensável. Os hematologistas, por possuírem o domínio da técnica, muitas vezes recebem de colegas pedidos de coleta de biópsia da medula. O autor só assumia essa função minicirúrgica se o pedido viesse acompanhado do motivo da indicação e se concordasse com ele; geralmente fazia um hemograma prévio, inúmeras vezes suficientemente esclarecedor. O paciente deve ser informado de que a punção pode ser infrutífera (não trazer cilindro ósseo), mesmo em mais de uma tentativa. CITOGENÉTICA 4 O estudo citogenético avalia in vitro os cromossomos e a divisão celular e costuma ser realizado por laboratórios especializados. A rotina técnica inclui coloração por Banda-G ou por outras técnicas. FISH e hibridização genômica comparativa (CGH) são técnicas que aliam a avaliação cromossômica com a biologia molecular e complementam a análise citogenética em situações específicas. O cariótipo é a organização dos cromossomos em pares, após a identificação individual por suas características morfológicas: tamanho, forma e padrão de bandas na coloração. A análise citogenética na prática clínica geral e pediátrica é recomendada nas seguintes situações: criança dismórfica com ou sem retardo de desenvolvimento, retardo mental isolado, genitália ambígua, baixa estatura e/ou amenorreia, infertilidade masculina e feminina, perdas gestacionais recorrentes, análise de restos ovulares e no diagnóstico

citogenético pré-natal. Nesses casos, um resultado anormal deve sempre ser acompanhado de aconselhamento genético com médico geneticista clínico. Em Hematologia, a análise citogenética tem ampla utilização no diagnóstico de neoplasias hematológicas; também se presta ao diagnóstico de entidades caracterizadas por instabilidade cromossômica. O material para exame é coletado da medula óssea por aspiração; as primeiras gotas são usadas para a citologia (mielograma, ver título precedente), e as demais são colocadas em tubo estéril, fornecido pelo laboratório especializado, contendo meio de cultura com heparina, que prolonga a viabilidade das células durante o transporte e até o momento da análise. Alternativamente, a amostra pode ser acondicionada em seringa com soro fisiológico heparinizado; nesse caso, a remessa deve ser imediata. É imprescindível que o médico requisitante encaminhe com a amostra informações completas sobre o quadro clínico e/ou a suspeita diagnóstica, para que o laboratório de citogenética possa selecionar os tipos de cultivos celulares e procedimentos técnicos adequados ao caso específico. Isso é fundamental em leucemia linfoblástica aguda em crianças e em doenças linfoproliferativas crônicas, em que a escolha correta dos métodos e suas variações tornam mais precisa a identificação dos clones neoplásicos. A análise citogenética na avaliação inicial de hemopatia maligna permite muitas vezes: ■ ■ ■ ■

confirmar o diagnóstico, subclassificando a neoplasia até uma entidade específica; em alguns casos, sugerir o tratamento preferencial e suas perspectivas de eficácia; fornecer indicações prognósticas; distinguir recidiva da neoplasia inicial de nova neoplasia associada ao tratamento.

A Tabela 28.4 apresenta uma lista abrangente de informações que podem ser obtidas da análise citogenética na presença ou suspeita de hemopatia maligna. TABELA 28.4 Utilidade da citogenética na avaliação de neoplasia hematológica No diagnóstico Informações

Comentários e exemplos

Prova de clonagem cromossômica (evidência presumida de neoplasia)

A identificação de duas ou mais metáfases com a mesma anormalidade cromossômica estrutural ou com o mesmo cromossomo supranumerário é prova da ocorrência de um clone. O mesmo ocorre quando ao menos 3 metáfases apresentam a perda – monossomia – de um mesmo cromossomo.

Evidência de que linhagens celulares fazem parte do clone neoplásico

Na leucemia mieloide crônica, o rearranjo que produz o cromossomo Philadelphia ocorre em uma célulatronco pluripotente, de modo que células de todas as linhagens mieloides são Ph-positivo, bem como alguns precursores de linfócitos T ou B.

Confirmação de um diagnóstico

Algumas anormalidades citogenéticas são definidamente associadas a um subtipo específico de leucemia ou linfoma; quando são observadas em paciente com achados clínicos e hematológicos condizentes, a presença confirma o diagnóstico.

Confirmação de dado A identificação de translocação (15;17) é indicadora de eficácia do tratamento com derivados do ácido importante para indicar retinoico. um tratamento específico Informação relevante para o prognóstico

A hiperdiploidia – clone com mais de 50 cromossomos – em geral é indicativa de bom prognóstico em leucemia linfoblástica aguda da infância; por outro lado, a presença do cromossomo Philadelphia é sinal de

mau prognóstico. Demonstração da relação entre doenças aparentemente diferentes

A presença comum da t(15;17) demonstrou que a variante hipo ou microgranular da leucemia promielocítica e a leucemia promielocítica hipergranular usual são aspectos fenotípicos da mesma doença. Essa observação foi confirmada pela demonstração do transcrito de fusão PML/RAR-a e pela responsividade ao ácido transretinoico (ATRA) em ambas as condições.

Identificação de uma anomalia constitucional subjacente à ocorrência de neoplasia

Quebras cromossômicas próprias da anemia de Fanconi, que pode ser identificada através de estudo em cultivo celular específico com diepoxibutano, comprovam-na como fator subjacente à ocorrência de uma leucemia mieloide aguda.

Reconhecimento dos locais mais prováveis de oncogenes e de genes supressores de câncer

A identificação de anormalidades estruturais tem permitido a localização de genes envolvidos na gênese de leucemia e o estudo dos distúrbios de sua função.

Comprovação de que uma doença aparentemente adquirida tem origem intrauterina

Gêmeos monozigóticos com leucemia na primeira infância apresentam clones neoplásicos com a mesma anormalidade cromossômica. Isso seria prova de que a neoplasia teria iniciado já na vida intrauterina.

Demonstração do Há alterações cromossômicas que são típicas de leucemias secundárias à quimioterapia prévia para outra agente etiológico mais neoplasia, inclusive correlacionando-se com o tipo de antiblástico utilizado. provável em neoplasias relacionadas à terapia Confirmação da Pacientes com síndrome de Down e leucemia transitória neonatal podem mostrar no clone neoplásico natureza de mielopoese anormalidades cromossômicas adicionais à trissomia do 21. transitória anormal em síndrome de Down Identificação de uma anomalia citogenética específica que permita um monitoramento genético molecular subsequente para detecção de doença residual mínima

Há várias anormalidades já descritas que permitem esse monitoramento, tanto por reação em cadeia da polimerase (PCR) como por FISH.

Durante o seguimento Evidência de regressão Desaparecimento, após tratamento quimioterápico, de clone anormal que havia sido identificado no da doença pela diagnóstico da doença. Por exemplo, o uso de imatinibe em leucemia mieloide crônica faz desaparecer o resposta a tratamentos cromossomo Philadelphia. específicos Comprovação de recidiva ou de evolução (citogenética) da doença

Retorno do clone anormal, anteriormente identificado, ou surgimento de anormalidades cromossômicas adicionais à anomalia inicial. Em leucemia mieloide crônica, o surgimento de uma ou mais anormalidades adicionais ao cromossomo Philadelphia por t(9;22), que incluem trissomia do 8, i(17q), trissomia do 19 ou de um segundo cromossomo Philadelphia, é indicativo de agudização da doença. A citogenética deve diferenciar essa situação dos casos nos quais a formação do cromossomo Philadelphia decorra de uma translocação complexa t(9;22;v), em que “v” é um cromossomo variante. Essas translocações ocorrem em três ou mais vias, mas geram o mesmo fenótipo de casos de t(9;22) clássica.

Evidência de pega do enxerto após transplante de medula óssea ou de célulastronco do sangue periférico

Como a identificação apenas de células femininas provenientes de doadora em indivíduo receptor masculino.

Durante o seguimento Informações Distinção entre recidiva de leucemia

Comentários e exemplos Em casos de leucemia linfoblástica aguda da infância, anormalidades cariotípicas em 11q23 diferentes das inicialmente presentes, distingue recidivas da doença do desenvolvimento de leucemia mieloide aguda

prévia e nova leucemia, decorrente de ação leucemogênica do etoposídeo e drogas afins usadas na quimioterapia prévia. relacionada à terapia ou resultante de transformação neoplásica de uma célula-tronco do doador

Informações e trabalhos sobre neoplasias, correlacionando anomalias cromossômicas, sítio e funções dos genes envolvidos com o diagnóstico e o prognóstico de pacientes submetidos aos protocolos atuais de tratamento, avolumam-se na literatura médica. Essas informações são fundamentais para que ocorra uma integração entre o onco-hematologista e o citogeneticista que lhe dá apoio. Na internet, estão disponíveis acessos diretos ao Atlas of Genetics and Cytogenetics in Oncology and Haematology 5 e ao Mitelman Database of Chromosome Aberrations in Cancer, 6 que permitem obtenção rápida e atualizada dessas informações. Para a avaliação de instabilidade cromossômica, são feitos cultivos de linfócitos de amostra de sangue periférico coletado em tubo com heparina, em presença de drogas que promovam quebras cromossômicas. Como há um teste apropriado para cada entidade clínica, com adição à cultura da droga específica à indução das quebras cromossômicas, é necessário que o médico requisitante indique, na solicitação do exame, qual a suspeita clínica a se investigar. A Tabela 28.5 relaciona algumas entidades clínicas que podem ser pesquisadas e os testes com as drogas específicas a se utilizarem. Todos os testes envolvem cultivo de linfócitos estimulados por fito-hemaglutinina e devem ser comparados, para validação, com cultivos em paralelo de amostras-controle normais. TABELA 28.5 Entidades clínicas que podem ser avaliadas por testes de instabilidade cromossômica Entidade clínica

Estudo

Ataxia Cultivo basal telangiectasia

Resposta esperada Excesso de anormalidades espontâneas envolvendo os cromossomos 7 e 14

Teste em cultivo em presença da droga radiomimética bleomicina

Excesso de translocações e de anormalidades induzidas

Síndrome de Bloom

Cultivo basal

Excesso de anormalidades espontâneas

Pesquisa de trocas entre cromátides irmãs evidenciadas por cultivo em presença de bromodeoxiuridina (BRDU)

Excesso de trocas entre cromátides irmãs

Anemia de Fanconi

Cultivo basal

Excesso de quebras cromossômicas espontâneas

Pesquisa de quebras cromossômicas e ocorrência de figuras radiais em cultivo em presença de diepoxibutano (DEB)

Excesso de quebras cromossômicas e figuras radiais

Outras entidades que apresentam instabilidade cromossômica incluem as síndromes de Nijmegen, Roberts, ICF (imunodeficiência, instabilidade cromossômica e anomalias faciais), xeroderma pigmentoso, Cockayne e Rothmund-Thomson. Nesses casos, o laboratório deve ser contatado para verificação da disponibilidade do teste. BIOLOGIA MOLECULAR 7

A citogenética leva o diagnóstico ao nível cromossômico. A biologia molecular vai além: dissecando os genes, leva-o ao nível molecular. PCR (reação em cadeia da polimerase) A reação em cadeia da polimerase é a técnica mais usada e já faz parte da rotina de vários laboratórios de patologia clínica. Com a PCR consegue-se amplificar segmentos específicos dos genes de interesse e analisar posteriormente a composição dos fragmentos obtidos. Para ocorrer a amplificação, a técnica processa-se em múltiplos ciclos em diferentes temperaturas: há desnaturação do DNA que serve de molde, hibridização de iniciadores (primers ou oligonucleotídeos) que fragmentam a região de interesse e, finalmente, a extensão pela Taq polimerase, que adiciona bases utilizando a fita complementar como molde para formação de nova fita de DNA. A PCR tornou-se indispensável ao diagnóstico, à avaliação prognóstica e à pesquisa de doença residual mínima em grande parte das entidades onco-hematológicas. A técnica de polimorfismo no comprimento de fragmentos de restrição (RFLP) é também muito usada. Baseia-se na utilização de enzimas de restrição que reconhecem os sítios de clivagem no material amplificado na PCR, clivando-o em fragmentos menores e assim possibilitando identificar a presença de polimorfismos. A técnica de microarray (microarranjos de DNA) baseia-se no uso de suportes sólidos contendo centenas ou até milhares de sondas específicas para cada uma das mutações que se deseja investigar, o que torna simples a análise de genes com alto número de mutações. Permite a comparação da expressão gênica entre duas ou mais amostras simultaneamente. É uma técnica ainda cara, mas o preço vem se reduzindo significativamente nos últimos anos. Materiais para exame por biologia molecular Para exames de biologia molecular a necessidade básica é a presença de uma concentração suficiente de material genético no fluido biológico ou tecido enviado ao laboratório. Em leucemias e linfomas disseminados, o material preferencial para exames moleculares é a medula óssea: coletar 2 mL por aspiração (mielograma), verter em tubo para hemograma (rolha roxa), agitar imediatamente por inversão 6 vezes para dissolver o ácido etilenodiaminotetracético (EDTA) e evitar a coagulação (o material medular coagula em segundos), e enviar imediatamente ao laboratório; com o material mantido sob refrigeração (≅ 5°C), a entrega pode ser feita em até 24 a 48 horas. A heparina não se presta como anticoagulante para testes moleculares, por inibir a Taq polimerase. Em casos com alta contagem de blastos/células linfomatosas no sangue periférico, este pode substituir o aspirado medular. Para pesquisa de JAK2, para diagnóstico de talassemia e para genes de hemocromatose, o sangue periférico é o material de escolha.

Biologia molecular em onco-hematologia A Tabela 28.6 lista os principais testes disponíveis, com indicações e comentários, para identificação de alterações moleculares de interesse em diagnóstico e tratamento. TABELA 28.6 Alguns testes de biologia molecular em neoplasias da hematopoese Teste

Mutação/ translocação

Doenças associadas

Comentários/ Indicação

BCR-ABL

t(9;22)

Positivo em 90-95% de casos de leucemia mieloide crônica (LMC), 25% de leucemia linfoide aguda (LLA) em adultos e 5% de LLA em crianças.

Detecção da fusão do protoncogene ABL (Ableson) do crom. 9 com o gene BCR (Breakpoint Cluster Region) do crom. 22. Qualitativo: diagnóstico e avaliação de resposta. Quantitativo: monitoração do tratamento.

AML1/ETO

t(8;21)

Presente em 20-40% de casos de leucemia mieloide aguda (LMA) tipo 1.

Detecção da fusão do gene ETO do crom. 8 e do gene AML1 no crom. 21. Teste qualitativo: monitoração do tratamento e avaliação da doença residual mínima.

PML/RARa

t(15;17)

Presente na leucemia Detecção da fusão do gene PML do crom. 15 e o gene do receptor promielocítica aguda (LMA-M3). do ácido retinoico (RAR a) do crom. 17. Teste qualitativo: monitoração do tratamento e avaliação da doença residual mínima.

MLL-AF4

t(4;11)

Associado a LLA. Mutações no gene MLL (crom. 11) estão presentes na leucemia aguda (LA) bifenotípica congênita.

Teste qualitativo para prognóstico e avaliação de doença residual mínima.

bcl-1/JH

t(11;14)

Linfoma do manto e outros linfomas.

Teste qualitativo para prognóstico e avaliação de doença residual mínima.

FIP1L1PDGFR

t(4;6)

Diagnóstico da leucemia eosinofílica crônica.

Fusão do gene do receptor do fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGFR) com o gene FIP1L1 no crom. 4 – resulta em ativação constitutiva da tirosina quinase do PDGFR. Pacientes com essa translocação respondem a inibidores de tirosina quinase, como o imatinibe.

Translocação 14;18

t(14;18)

Presente em pacientes com Teste qualitativo. leucemia linfocítica crônica (LLC) e em casos de LLA de novo.

Inversão 16

Inv (16)

Em LMA.

Teste qualitativo. Associada a bom prognóstico.

JAK2

V617F

Policitemia vera (PV); trombocitemia essencial (TE) e mielofibrose primária (MFP).

Presente em ≅ 95% de pacientes com PV e > 50% com TE e MFP.

FLT3/ITD FLT3/D835

Duplicações de 3-400 bases no éxon 11 ou mutação no códon D835

FLT3/ITD em cerca de 23% de pacientes com LMA. FLT3/D835 em 8-12% de pacientes com LMA.

Teste qualitativo utilizado na avaliação do prognóstico de pacientes com LMA.

Exames de biologia molecular em doenças hematológicas não neoplásicas Há testes moleculares correlatos ao hemograma no diagnóstico pontual do defeito genético nas talassemias e na deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase, e no diagnóstico prénatal da drepanocitose. Em Hematologia, sem particular correlação com o hemograma, usam-se testes de biologia molecular na evidenciação de genes causais de hemocromatose (ver Cap. 6), de defeitos trombofílicos genéticos (fator V Leiden e protrombina), na identificação de portadoras de hemofilia e no respectivo diagnóstico pré-natal.

Talassemias: o diagnóstico das talassemias por biologia molecular é complicado pela heterogeneidade das numerosas mutações envolvidas. A detecção de todas as mutações possíveis envolveria a amplificação e sequenciamento completo do gene envolvido, tornando a análise molecular muito trabalhosa e cara. Em casos a serem esclarecidos de β-talassemia, o trabalho pode ser simplificado classificando-se a população em quatro grupos étnicos: mediterrâneos, nativos asiáticos, chineses e africanos. Para cada grupo, há apenas um pequeno grupo de mutações envolvidas que explicam > 90% dos casos. Como os portadores (heterozigotos) da grande maioria dos casos são de fácil diagnóstico hematológico (ver Cap. 6), sendo raros os portadores silentes, a biologia molecular só é usada para o diagnóstico pré-natal precoce de homozigotos e só em países em que o aborto provocado é aceito como tratamento preventivo. Já o diagnóstico das α-talassemias por testes de biologia molecular 8 tem interesse clínico; presta-se a confirmar essa etiologia em casos de minianemias microcíticas não ferropênicas (ver Cap. 6). O defeito genético mais comum é a deleção de 3,7 kb (-a3,7), encontrada em africanos, mediterrâneos e asiáticos, e a deleção de um fragmento maior (4,2 kb) encontrada em populações do sudeste asiático e pacífico. Essas deleções podem ser detectadas pela reação em cadeia da polimerase, utilizando-se primers que reconheçam as regiões adjacentes aos pontos de deleção ou por meio de outras técnicas moleculares, como o southern blot. Há ainda formas de α-talassemia devidas a mutações pontuais, cuja detecção exigiria o sequenciamento dos genes envolvidos. Hibridização fluorescente in situ (FISH) FISH é uma técnica utilizada principalmente em citogenética; combina princípios de biologia molecular e microscopia de fluorescência para detectar e localizar a presença ou ausência de sequências específicas de DNA em um cromossomo. Seu uso está indicado no diagnóstico de vários defeitos genéticos, mas é particularmente útil na identificação de alterações citogenéticas e moleculares em neoplasias hematológicas; a Tabela 28.7 enumera a maioria delas. TABELA 28.7 Algumas aplicações de FISH no diagnóstico de neoplasias hematológicas* Leucemia mieloide aguda

t(8;21)/CBFA2-ETO inv(16)/CBFB-MYH11 t(15;17)/PML-RARA

Leucemia mieloide crônica

t(9;22)/BCR-ABL1

Leucemia linfoblástica aguda-B

t(11;19)/E2A-PBX1 t(9;22)/BCR-ABL1 t(12;21)/ETV6-RUNX1 t(?;11)/MLL hiperdiploidia t(?;11)/MLL

Leucemia linfoblástica aguda-T

t(5;14)/HOX11L2– amplificação epissomal 9q34/NUP214-ABL1 del(1p)/SIL-SCL

Leucemia linfoide crônica/linfoma de células pequenas

del(13q14)/?miRNA 15-16

del(17p13)/TP53 del(11q22)/?ATM +12 Mieloma múltiplo

del(13q14) del(17p) hiperdiploidia t(4;14)/FGFR3-IGH

Leucemia eosinofílica

del(4q12)/FIP1L1-PDGFRB

Elucidação de cariótipos complexos *

M odificada de Wolf e colaboradores. 9

Sondas de DNA são desenhadas e sintetizadas para reconhecerem e hibridizarem especificamente com a(s) sequência(s) específica(s) a pesquisar. As sondas são marcadas com moléculas fluorescentes, tornando possível sua localização pelo uso de microscopia de imunofluorescência. A técnica tem a vantagem de poder ser aplicada em células em interfase (sem estar ocorrendo divisão celular; esta é necessária para a cariotipagem) e particularmente quando a anormalidade não é evidente na cariotipagem tradicional. Vários materiais e preparações celulares podem ser utilizados, como células em suspensão, células em sangue periférico, aspirados ou biópsias de medula óssea, cortes de tecidos parafinados, imprints de linfonodos e de tumores sólidos. 1 Obra recomendada: Lewis, S.; Bain B; Bates I. Hematologia prática de Dacie e Lewis. 9. ed. Porto Alegre: Artmed; 2006. Há uma edição inglesa mais recente, não traduzida. 2 Fleischer TA. Flow cytometry in hematology and oncology. Semin Hematol. 2001;38;93-194, 2001. Riley, RS. Flow cytometry and its applications in hematology and oncology. Hematol/Oncol Clin N Am. 2002;16(2). Sales MM, Vasconcelos DM, editores. Citometria de fluxo: aplicações no laboratório clínico e de pesquisa. São Paulo: Atheneu; 2013. 3 Surgicutt®. Bleeding Time Device. c2015 [capturado em 13 fev 2015]. Disponível em: http://itcmed.com. 4 Autoria do Prof. Giorgio Adriano Paskulin. GENEX – Instituto de Exames Genéticos Ltda. – www.genex.com.br (Porto Alegre). 5 Atlas of Genetics and Cytogenetics in Oncology and Haematology. Disponível em: atlasgeneticsoncology.org 6 National Cancer Institute. Cancer Genome Project. Disponível em: cgap.nci.nih.gov/Chromosomes/Mitelman 7 Autoria do Prof. Vlademir Vicente Cantarelli, PhD e Pos-Doc pela Osaka University, Japão. Laboratório Qualitá, w ww.laboratorioqualita.com.br (Novo Hamburgo, RS). 8 Podem ser obtidos no Laboratório Fleury (S. Paulo). www.fleury.com.br/Pages/default.aspx © 2015 Fleury medicina e saúde 9 Wolf DJ, et al. Guidance for fluorescence in situ hybridization testing in hematologic disorders. J Mol Diagn. 2007;9(2):134-43.

Apêndice

1

HEMOGRAMA: VALORES DE REFERÊNCIA 1 Eritrograma: valores de referência (média e intervalo de referência) (Eritrócitos: M/µL – Hemoglobina: g/dL – Hematócrito: % – VCM:* fL) Idade

Sangue do cordão

1º dia

3º dia

15 dias

Eritrócitos

5,1 ± 1,0

5,6 ± 1,0

5,5 ± 1,0

5,2 ± 0,8

Hemoglobina

16,8 ± 3,5

18,8 ± 3,5

17,5 ± 3,5

17,0 ± 3,0

Hematócrito

54 ± 10

58 ± 10

56 ± 10

52 ± 8

VCM

106 ± 5

103 ± 6

102 ± 6

98 ± 6

Idade

≅ 3 meses

≅ 6 meses

≅ 1-2 anos

≅ 5 anos

Eritrócitos

4,5 ± 0,5

4,6 ± 0,5

4,6 ± 0,5

4,6 ± 0,5

Hemoglobina

11,5 ± 1,5

11,3 ± 1,5

11,8 ± 1,2

12,3 ± 1,2

Hematócrito

37 ± 4

35 ± 4

36 ± 4

37 ± 4

VCM

82 ± 6

76 ± 6

78 ± 6

80 ± 6

Idade

≅ 10 anos

adultos **

adultos **

> 70 anos **

Eritrócitos

4,6 ± 0,5

5,3 ± 0,8

4,7 ± 0,7

4,6 ± 0,7

Hemoglobina

13,2 ± 1,5

15,3 ± 2,5

13,6 ± 2,0

13,5 ± 2,5

Hematócrito

40 ± 4

46 ± 7

42 ± 6

41 ± 6

VCM

87 ± 7

89 ± 9

89 ± 9

89 ± 9

*

VCM : entre 1 e 15 anos pode ser estimado pela fórmula 76 + (0,8 × idade). Adultos brancos; a hemoglobina, em negros, é mais baixa – 0,34 g/dL.

**

Leucograma: limites de referência (ambos os sexos) Idade

Sangue do cordão

10 dias

%

por µL

%

por µL



6.000-24.000



6.000-16.000

Neutrófilos*

40-70

4.000-14.000

20-50

2.000-6.000

Linfócitos

20-40

3.000-6.000

40-70

3.000-10.000

Monócitos

2-8

400-1.500

2-8

200-1.200

Eosinófilos

1-6

100-1.200

0-7

0-800

Basófilos

0-2

0-400

0-3

0-300

Leucócitos

≅ 2 anos

Idade

≅ 5 anos

%

por µL

%

por µL



5.000-14.000



4.000-14.000

Neutrófilos*

20-40

1.000-4.000

20-60

1.000-6.000

Linfócitos

50-80

3.000-10.000

40-70

2.000-8.000

Monócitos

2-10

100-1.000

2-10

100-1.000

Eosinófilos

0-7

0-700

0-7

0-600

Basófilos

0-3

0-300

0-3

0-300

Leucócitos

≅ 10 anos

Idade

Adultos **

%

por µL

%

por µL



4.000-12.000



3.600-11.000

Neutrófilos*

30-60

1.400-6.000

45-70

1.500-7.000

Linfócitos

30-60

1.600-6.000

20-50

1.000-4.500

Monócitos

2-10

100-1.000

2-10

100-1.000

Eosinófilos

0-7

0-500

0-7

0-500

Basófilos

0-3

0-300

0-3

0-200

Leucócitos

*

​Neutrófilos: contagem global (os de núcleo em bastão estão ente 0 e 5% na fórmula). Em brancos; 10% abaixo em negros (neutrófilos 10-20% abaixo).

**

1 Swedlow SH, et al., editors. World Health Organization Classification of tumors of haematopoietic and lymphoid tissue. 4th ed. Lyon: IARC Press; 2008.

Apêndice

2

CLASSIFICAÇÃO DE TUMORES DOS TECIDOS HEMATOPOÉTICO E LINFOIDE (OMS, 2008) 1 Neoplasias mieloproliferativas Leucemia mieloide crônica BCR-ABL 1 positiva Leucemia neutrofílica crônica Policitemia vera Mielofibrose primária Trombocitemia essencial Leucemia eosinofílica crônica (NES) Mastocitose Mastocitose cutânea Mastocitose sistêmica Leucemia mastocítica Sarcoma mastocítico Mastocitoma extracutâneo Neoplasia mieloproliferativa, inclassificável

9875/3 9963/3 9950/3 9961/3 9962/3 9964/3 9740/1 9741/3 9742/3 9740/3 9740/1 9975/3

Neoplasias mieloides e linfoides com eosinofilia e anormalidades de PDGFRA, PDGFRB ou FGFR1 Neoplasias mieloides e linfoides com rearranjo PDGFRA Neoplasias mieloides com rearranjo PDGFRB

9965/3 9966/3

Neoplasias mieloides e linfoides com anormalidades FGFR1

9967/3

Neoplasias mielodisplásicas/mieloproliferativas Leucemia mielomonocítica crônica Leucemia mieloide crônica atípica BCR-ABL 1 negativa Leucemia mielomonocítica infantil Neoplasia mielodisplásica/mieloproliferativa, inclassificável Anemia refratária com sideroblastos em anel associada com acentuada trombocitose

9945/3 9876/3 9946/3 9975/3 9982/3

Síndromes mielodisplásicas Citopenia refratária com displasia de uma linhagem Anemia refratária Neutropenia refratária Trombocitopenia refratária Anemia refratária com sideroblastos em anel Anemia refratária com displasia de múltiplas linhagens Anemia refratária com excesso de blastos Síndrome mielodisplásica associada com del(5q) isolada Síndrome mielodisplásica, inclassificável Síndrome mielodisplásica da infância Citopenia refratária da infância

9980/3 9991/3 9992/3 9982/3 9985/3 9983/3 9986/3 9989/3 9985/3

Leucemia mieloide aguda (LMA) e neoplasias de precursores relacionados LMA com anormalidades genéticas recorrentes LMA com t(8;21)(q22;q22); RUNX1-RUNX1-T1 LMA com inv(16)(p13.1q22) ou t(16;16)(p13.1q22); CBFB-MYH11 Leucemia promielocítica aguda com t(15;17)(q22;q12); PML-RARA LMA com t(9;11)(p22;q23); MLLT3-MLL LMA com t(6;9)(p23;q34); DEK-NUP214 LMA com inv(3)(q21;q26.2) ou t(3;3)(q21;q26.2); RPN1-EVI1 LMA (megacarioblástica) com t(1;22)(p13;q13); RBM15-MKL1 LMA com NPM1 mutado LMA com CEBPA mutado

9896/3 9871/3 9866/3 9897/3 9865/3 9869/3 9911/3 9861/3 9861/3

LMA com alterações relacionadas com mielodisplasia

9895/3

Neoplasias mieloides relacionadas com terapia

9920/3

Leucemias mieloides agudas, (NES)

9861/3

LMA com diferenciação mínima LMA sem maturação LMA com maturação Leucemia mielomonocítica aguda Leucemia monoblástica e monocítica aguda Leucemia eritroide aguda Leucemia megacarioblástica aguda Leucemia basofílica aguda Panmielose com mielofibrose aguda Sarcoma mieloide

9872/3 9873/3 9874/3 9867/3 9891/3 9840/3 9910/3 9870/3 9931/3 9930/3

Proliferações mieloides relacionadas à síndrome de Down Mielopoese anormal transitória Leucemia mieloide associada à síndrome de Down Neoplasias de células blásticas dendríticas plasmocitóides

9898/1 9898/3 9727/3

Leucemias agudas de linhagem ambígua Leucemia aguda indiferenciada Leucemia aguda de fenótipo misto com t(9;22)(q34;q11.2); BCR-ABL 1 Leucemia aguda de fenótipo misto com t(v;11q23); MLL rearranjado Leucemia aguda de fenótipo misto B/mieloide, NES Leucemia aguda de fenótipo misto T/mieloide, NES Leucemia/linfoma linfoblástico de células natural killer (NK)

Neoplasias de precursores linfoides Leucemia/linfoma linfoblástico B

9801/3 9806/3 9807/3 9808/3 9809/3

9811/3

Leucemia/linfoma linfoblástico B, NES Leucemia/linfoma linfoblástico B com anormalidades genéticas recorrentes Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(9;22)(q34;q11.2); BCR-ABL 1 Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(v;11q23); MLL rearranjado Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(12;21)(p13;q22); TEL-AML 1 (ETV6-RUNX1) Leucemia/linfoma linfoblástico B com hiperdiploidia Leucemia/linfoma linfoblástico B com hipodiploidia (LLA hipodiploide) Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(5;14)(q31;q32); IL3-IGH Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(1;19)(q23;p13.3);E2A-PBX1 (TCF3-PBX1)

9812/3 9813/3 9814/3 9815/3 9816/3 9817/3 9818/3

Leucemia/linfoma linfoblástico T

9837/3

Neoplasias de células B maduras Leucemia linfocítica crônica/linfoma linfocítico de células pequenas Leucemia prolinfocítica de células B Linfoma esplênico de células B da zona marginal Leucemia de células cabeludas (hairy cell leukemia) Leucemia/linfoma de células B, inclassificável Linfoma difuso de células B pequenas da polpa vermelha Leucemia-variante de células cabeludas Linfoma linfoplasmocítico Macroglobulinemia de Waldenström Doenças de cadeias pesadas Doença de cadeias pesadas alfa Doença de cadeias pesadas gama Doenças de cadeias pesadas mu Mieloma plasmocítico (mieloma múltiplo) Plasmocitoma solitário de osso Plasmocitoma extraósseo Linfoma extranodal da zona marginal de tecido linfoide associado a mucosa (MALT) Linfoma nodal da zona marginal Linfoma nodal da zonal marginal pediátrico Linfoma folicular Linfoma folicular pediátrico Linfoma centrofolicular primário cutâneo Linfoma de células do manto Linfoma difuso de células B grandes (DLBCL), NES Linfoma de células B grandes rico em células T/histiócitos DLBCL primário do SNC DLBCL primário cutâneo, tipo da perna DLBCL EBV-positivo do idoso DLBCL associado com inflamação Granulomatose linfomatoide Linfoma de células B grandes primário mediastinal (tímico) Linfoma de células B grandes intravascular Linfoma de células B grandes ALK-positivo Linfoma plasmoblástico Linfoma de células B grandes originado de doença de Castleman multicêntrica associada a HHV8 Linfoma primário de efusão Linfoma de Burkitt Linfoma de células B, inclassificável, com aspectos intermediários entre DLBCL e linfoma de Burkitt Linfoma de células B, inclassificável, com aspectos intermediários entre DLBCL e linfoma de Hodgkin clássico

9823/3 9833/3 9689/3 9940/3 9591/3 9591/3 9591/3 9671/3 9761/3 9762/3 9762/3 9762/3 9762/3 9732/3 9731/3 9734/3 9699/3 9699/3 9699/3 9690/3 9690/3 9597/3 9673/3 9680/3 9688/3 9680/3 9680/3 9680/3 9680/3 9766/3 9679/3 9712/3 9737/3 9735/3 9738/3 9678/3 9687/3 9680/3 9596/3

Neoplasias de células T e NK maduras Leucemia prolinfocítica de células T Leucemia de linfócitos T grandes e granulares Distúrbio linfoproliferativo crônico de células NK Leucemia agressiva de células NK Doença linfoproliferativa sistêmica de células T EBV-positivas da infância Linfoma cutâneo eritematovesicular vaciniforme (hidroa) Leucemia/linfoma de células T do adulto Linfoma extranodal de células NK/T, tipo nasal Linfoma de células T associado a enteropatia Linfoma de células T hepatoesplênico Linfoma de células T subcutâneo paniculitiforme Micose fungoide Síndrome de Sézary Distúrbios linfoproliferativos de células T CD30-positivas cutâneos primários Papulose linfomatoide

9832/3 9831/3 9831/3 9948/3 9724/3 9725/3 9827/3 9719/3 9717/3 9716/3 9708/3 9700/3 9701/3 9718/1

Linfoma anaplástico de células grandes primário cutâneo Linfoma de células T gama-delta primário cutâneo Linfoma de células T citotóxicas CD8-positivas epidermotrópico agressivo cutâneo primário Linfoma de células T pequenas/médias CD4-positivas cutâneo primário Linfoma de células T periféricas, NES Linfoma angioimunoblástico de células T Linfoma anaplástico de células grandes, ALK-positivo Linfoma anaplástico de células grandes, ALK-negativo

9718/3 9726/3 9709/3 9709/3 9702/3 9705/3 9714/3 9702/3

Linfoma de Hodgkin Linfoma de Hodgkin nodular com predomínio linfocítico Linfoma de Hodgkin clássico Linfoma de Hodgkin clássico com esclerose nodular Linfoma de Hodgkin clássico com riqueza infocítica Linfoma de Hodgkin clássico com celularidade mista Linfoma de Hodgkin clássico com depleção linfocítica

9659/3 9650/3 9663/3 9651/3 9652/3 9653/3

Neoplasias histiocíticas e dendríticas Sarcoma histiocítico

9755/3

Histiocitose de células de Langerhans Sarcoma de células de Langerhans Sarcoma de células dendríticas interdigitantes Sarcoma folicular de células dendríticas Tumor de células reticulares fibroblásticas Tumor de células dendríticas indeterminadas Xantogranuloma disseminado infantil

9751/3 9756/3 9757/3 9758/3 9759/3 9757/3

Distúrbios linfoproliferativos pós-transplante (PTLD) Lesões precoces Hiperplasia plasmocitica PTLD semelhante à mononucleose infecciosa PTLD polimórfica PTLD monomórfica (tipos celulares B e T/NK) 2 PTLD do tipo linfoma de Hodgkin clássico*

9971/1 9971/1 9971/3

NES, não especificado separadamente. Os números em itálico são códigos provisórios para esta 4ª edição. Enquanto não incorporados na próxima edição do Código Internacional de Doenças (CID) eles permanecem sujeitos a alterações. Os tipos histológicos em itálico são de entidades provisórias, para as quais o Grupo de Trabalho da OM S considerou ainda haver evidências insuficientes para reconhecê-las como doenças distintas. Designações ou siglas consagradas pelo uso em inglês estão mantidas ou acrescentadas na língua original em fonte azul.

1 Swedlow SH, et al., editors. World Health Organization classification of tumors of hematopoietic and lymphoid tissue. 4th ed. Lyon: IARC Press; 2008. 2 Essas lesões deverão ser classificadas de acordo com a leucemia ou linfoma a que corresponderem, e lhes seja assinalado o respectivo código CID.

Apêndice

3

SÍNDROMES GENÉTICAS DE INSUFICIÊNCIA HEMATOPOÉTICA COM CITOPENIAS Da mesma forma que o Apêndice 2, incluído já na edição anterior de “Hemograma” para facilitar aos oncohematologistas a consulta à Classificação de Neoplasias da Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo original é volumoso e difícil de se obter, o autor decidiu-se por elaborar e oferecer aos Pediatras, Clínicos e Hematologistas uma lista abrangente das síndromes causais de Citopenias por Defeito(s) Genético(s) da Hematopoese, na maioria raras. As descrições a seguir são breves e sintéticas, mas estão fundamentadas em bibliografia confiável que inclui registros internacionais 1 2 respeitados; muitas dentre elas já foram vistas e diagnosticadas na clínica do autor. Foi preferida uma apresentação alfabética. Síndromes com mais de uma denominação têm duas entradas; a descrição segue a denominação atualmente preferida. As alterações hematológicas que fazem parte de cada quadro sindrômico estão destacadas em fonte azul. Agamaglobulinemia ligada ao sexo (Bruton, 1952): defeito cromossômico em Xq22.1; afeta o gene BTK que codifica uma tirosina quinase necessária à sinalização celular. A prevalência na Europa é da ordem de 1/400.000 ( ), com raros casos em mulheres hemizigóticas; também há casos de aparente herança autossômica. Há parada de evolução dos linfócitos B na medula (precursores B estão presentes) e não se processa o rearranjo de cadeias pesadas. A linfocitopenia seletiva B e a hipogamaglobulinemia são extremas e há virtual ausência de plasmócitos. Os linfócitos T são normais, daí não haver linfocitopenia global; o diagnóstico exige imunofenotipagem. Caracteriza-se por extrema suscetibilidade a infecções bacterianas e a infecções virais intestinais. Há uma rara forma alinfocítica mortal na

infância. A reposição permanente de imunoglobulinas permite longa sobrevida. Alport, síndrome de (ver MYH9, doença relacionada a) Anemia genética ligada ao sexo (ver GATA1, síndromes hematológicas correlacionadas a) Anemias diseritropoéticas congênitas: por serem diagnosticadas pelo he​mograma/mielograma, estão descritas em ANEMIAS POR FALTA OU DEFEITO PROLIFERATIVO DO TECIDO HEMATOPOÉTICO, no Capítulo 8. Ataxia-telangiectasia: defeito cromossômico em 11q22.3. Gene mutante ATM dá origem a fosfatidilinositol-3quinase ATM, que interfere no reparo do DNA. Há ataxia cerebelar, telangiectasias disseminadas e hipoplasia do timo com liberação de células T imaturas e desenvolvimento de leucemias T e linfomas B. Barth (1893), síndrome de: defeito cromossômico em Xq28. É um defeito mitocôndrico (falta de coenzima A): causa cardiopatia dilatada por fibroelastose endocárdica, miopatia esquelética proximal, retardo do crescimento, 3metilglutacônico-acidúria e neutrocitopenia. As mulheres portadoras são sadias. Há resposta terapêutica a doses farmacológicas de ácido pantotênico. Bernard-Soulier (1948), trombocitopatia de: por ser diagnosticada pelo hemograma e está descrita em TROMBOCITOPENIA, no Capítulo 18. Bruton (ver Agamaglobulinemia ligada ao sexo) Chediak-Higashi, síndrome de: por ser diagnosticada à microscopia do leucograma e está descrita em ALTERAÇÕES QUALITATIVAS DOS NEUTRÓFILOS, no Capítulo 15. Cohen (1973), síndrome de: defeito cromossômico em 8q22.2. É raro, os pacientes são homozigotos ou duplamente heterozigotos para mutação no gene COH1; há maior incidência na Finlândia e em judeus asquenaze. Têm fácies característica, com filtrum (sulco médio do lábio superior) curto, incisivos à mostra, aspecto “alegre”, retardo psicomotor, microcefalia, laxidão articular, distrofia retinocoroidal e miopia; provavelmente é um distúrbio do tecido conetivo. Há neutrocitopenia seletiva, moderada, mas constante, responsiva a fator estimulante de colônias granulocíticas (G-CSF). Diamond-Blackfan, anemia de: é doença primordialmente hematológica; é discutida em APLASIA ERITROIDE PURA, no Capítulo 8. DiGeorge, síndrome de: origina-se de deleção hemizigótica de 22q11.2; há anomalias de desenvolvimento da 3ª e 4ª bolsas embrionárias faríngeas, com hipoplasia do timo e paratireoides, malformações cardíacas sérias e variadas (incluindo tetralogia de Fallot), dismorfismo e anomalias faciais e faríngeas características, incluindo fenda palatal, orelhas baixas e curtas, outras. O diagnóstico é feito já ao nascimento, geralmente pelas manifestações cardíacas. Há hipercalcemia, tetania e convulsões pelo hiperparatireoidismo e deficiência da imunidade celular pela linfocitopenia T, de moderada a extrema. A deleção é facilmente evidenciada por hibridização in situ por fluorescência (FISH). Em casos de insuficiência tímica e linfocitopenia T severas, pode haver proliferação oligoclonal de linfócitos T, desencadeando infiltração linfoide/histiocítica disseminada e doenças autoimunes, como púrpura trombocitopênica, artrite infantil e síndrome de Raynaud. Disceratose congênita: está descrita em ANEMIAS APLÁSTICAS, no Capítulo 8. Disgênese reticular: defeito cromossômico muito raro em 1p35.1. Consanguinidade entre casos sugere ser autossômico recessivo; os pacientes são homozigotos ou duplamente heterozigotos para mutações que alteram a adenilatoquinase-2 mitocondrial e causam apoptose precoce no tecido hematopoético. Há imunode​ficiência combinada severa com linfocitopenia B e T e neutrocitopenia extrema (“agranulocitose congênita”). É precocemente mortal, mas há caso de resposta ao transplante de medula óssea (TMO) de irmão HLA compatível. Doença de armazenamento de glicogênio (ver Glicogênio, doença de...) Dubowitz (1965), síndrome de: rara síndrome autossômica recessiva com nanismo, microcefalia e outras malformações, retardo mental, eczema e fácies característica. Correlaciona-se com o desenvolvimento de anemia aplástica. Dursun (2009), síndrome de: defeito cromossômico em 17q21.23. É rara, com casos descritos na Turquia e Oriente Médio. Mutação autossômica recessiva homozigótica em G6PC3 causa neutrocitopenia severa. Há vacuolização dos precursores mieloides na medula hipercelular; presume-se haver mielocatexe (retenção de neutrófilos na medula) e rápida apoptose periférica.

Epstein (1972), síndrome de (ver MYH9, doença relacionada a) Fanconi, anemia de: está descrita em ANEMIAS APLÁSTICAS, no Capítulo 8. Fechtner, síndrome de (ver MYH9, doença relacionada a) GATA1, síndromes hematológicas correlacionadas a: o gene GATA1 em Xp11.23 é essencial para o desenvolvimento eritroide e megacariocítico. Indis​pensável às funções dos ribossomos. Diversas mutações causam alterações hematológicas variadas: ■

Anemia macrocítica congênita ligada ao sexo, com severa diseritropoese e macrotrombocitopenia.



Macrotrombocitopenia ligada ao sexo, com plaquetas cinzas (pobres em grânulos α) e anemia semelhante à βtalassemia minor.



Trombocitopenia ligada ao sexo com neutrocitopenia e/ou anemia.



Leucemia megacarioblástica aguda ligada ou não à síndrome de Down.

Glanzmann, trombocitopatia de: está descrita em TROMBOCITOPATIAS GENÉ​TICAS diagnosticadas pelo homograma, no Capítulo 18. Glicogênio, doença de armazenamento tipo 1b: defeito cromossômico em 11q23.3 ocasiona falta de expressão de glicose-6-fosfatase, inibindo a liberação de glicose in vivo. Há déficit de crescimento, hepatoesplenomegalia já na primeira infância, hiperlipidemia e xantomatose na adolescência. Há neutrocitopenia e defeito funcional dos neutrófilos e monócitos com infecções recorrentes. A anastomose porto-cava melhora a neutropenia que também responde ao GCSF. Sequestração de ferro no baço ocasiona anemia microcítica e hipocrômica. Pode haver tendência hemorrágica por defeito funcional plaquetário. Griscelli, síndrome de: defeito cromossômico em 15q21, autossômico recessivo. No tipo 1, muito raro, há um comprometimento neurológico precoce, albinismo parcial, mas não há defeito imunológico. No tipo 2, há distribuição anormal da melanina cutânea com acúmulos nas bases capilares. Há significativa neutrocitopenia e deficiência da citotoxicidade dos linfócitos T, o que causa ativação incontrolável do sistema macrofágico e síndrome hemofagocítica fatal. Há resposta ao TMO. Hermansky-Pudlak (1959), síndrome de: defeito cromossômico em 10q24.2. Descrita em famílias suíças e em Porto Rico, em oriundos do norte da Espanha. Pacientes homozigóticos ou duplamente heterozigóticos para mutação em HPS1 têm doença recessiva de armazenamento de substância ceroide dos lisossomos, por defeito de organelas citoplasmáticas. O defeito nos melanossomos dá origem a albinismo, com células pigmentadas típicas infiltrando a medula óssea, o fígado e os linfonodos. Pode haver fibrose pulmonar precoce. As plaquetas carecem de grânulos densos (diâmetro ≅ 150 nm; não se nota à microscopia óptica); a síndrome hemorrágica é leve. Hiper-IgM, síndrome de: defeito cromossômico em Xq26.3. É um raro defeito ligado ao sexo (portadoras indenes) em que há aumento de IgM e virtual ausência de IgG, IgA e IgD. Mutação no gene TNFSF5 ocasiona deficiente expressão de CD40 nos linfócitos T ativados e falha no switching IgM ⇒ IgG/IgA. A suscetibilidade a infecções é profunda. Apesar da falta de IgG, desenvolve-se neutrocitopenia autoimune, severa como na agranulocitose, anemia hemolítica e trombocitopenia. A histopatologia dos linfonodos e amígdalas mostra estrutura desordenada, pobreza nos centros germinativos e células plasmocitoides repletas de IgM. Um alto título de iso-hemoaglutininas favorece o diagnóstico. O TMO pode ser curativo mesmo com irmã heterozigótica como doadora. Hipoplasia de cartilagens e pelos (ver Nanismo e hipoplasia...) Hipoplasia tímica congênita (ver DiGeorge, síndrome de) HLA, deficiência de classes I e II: defeito cromossômico em 6p22.1 causa defeito funcional dos linfócitos, sem linfocitopenia. As deficiências são raras e heterogêneas, notadas na tipificação HLA por citometria em fluxo. O defeito imunológico é variável, de assintomático a muito grave. Desenvolvem-se infecções bacterianas crônicas das vias respiratórias, úlceras granulomatosas de pele, vasculites. Não há suscetibilidade a viroses. O leucograma mostra resposta neutrofílica às infecções, mas ineficaz por deficiente opsonização. Imunodeficiência combinada severa (SCID): conjunto heterogêneo de defeitos genéticos que comprometem o desenvolvimento dos linfócitos T (T–), com comprometimento (B–) ou sem comprometimento (B+) de linfócitos B e (idem) de NK (NK– ou NK+); as diversas combinações e o gene comprometido são a base da classificação: Linfócitos

Cromossomo

Gene

T– B+ NK – T– B+ NK– T– B+ NK+ T– B– NK– T– B– NK+ T– B– NK+

Xq31.1 19p13.1 11q23 20q13.11 10p 11p13

IL2RG JAK3 CD3D ADA Artemis RAG 1-2

A maior prevalência (≅ 50%) é de casos decorrentes da mutação do gene IL2RG; como está em Xq31.q1, o defeito é recessivo ligado ao sexo; os demais são autossômicos. Em todos há displasia tímica, com ausência de corpúsculos de Hassall, e atrofia das zonas tímicas dos linfonodos. Há linfocitopenia T extrema, com comprometimento profundo da imunidade celular. Mesmo nos casos B+ (sem acometimento proliferativo de linfócitos B), a falta de linfócitos T causa defeito funcional dos linfócitos B com decorrente hipogamaglobulinemia; nos casos B–, as imunoglobulinas estão praticamente ausentes. Infecções oportunistas são prevalentes desde o nascimento. Em alguns casos, o enxerto espontâneo de linfócitos maternos causa doença enxerto versus hospedeiro já nas primeiras semanas de vida. Em casos T– B– NK+ (genes Artemis e RAG), a expansão oligoclonal de linfócitos T remanescentes pode fazer desenvolver-se a síndrome de Omenn, provável reação enxerto versus hospedeiro aguda autóctone: infiltração cutânea, hepática, esplênica e intestinal por linfócitos T e histiócitos, eosinofilia em alguns casos. A sobrevida é breve, salvo se houver transplante alogênico precoce, altamente eficaz. O Hospital de Clínicas da Universidade do Paraná transplantou 23 casos. IVIC, síndrome (Arias, 1980): (sigla para Instituto Venezuelano de Instituciones Científicas). Defeito cromossômico em 20q13.2 gerando anomalias genéticas múltiplas: estrabismo por defeitos da musculatura extraocular, surdez, alterações embrionárias esqueléticas e musculares do antebraço e mão. Acompanha-se de moderada trombocitopenia. Jacobsen, síndrome de (ver Paris-Trousseau, trombocitopenia tipo) Kostmann, doença de (ver Neutrocitopenia congênita severa, 3) Leucemia aguda megacarioblástica ligada a GATA1 (ver GATA1, síndromes...) Macrotrombocitopenia mediterrânea: a maioria dos casos de “macrotrombo​citopenia mediterrânea” assim denominados por terem sido descritos na maioria nessa área geográfica, são agora considerados como variante autossômica dominante da trombocitopatia de Bernard-Soulier. Na fitoesterolemia, decorrente de mutações nos genes ABCG5 ou ABCG8 em 2p21, também prevalente na área mediterrânea, há macrotrombocitopenia como parte de uma síndrome caracterizada por baixa estatura, xantomatose e estomatocitose (provavelmente secundária à hiperlipidemia); são síndromes distintas. May-Hegglin, anomalia de (ver MYH9, doença relacionada a) Mielocatexe (ver WHIM, síndrome) MYH9, doença relacionada a: mutações no gene MYH9, localizado em 22q12.3, dão origem a um continuum de síndromes autossômicas dominantes similares. São agora consideradas como aspectos de uma mesma doença. Caracterizam-se pela combinação irregular de macrotrombocitopenia com defeito de agregação plaquetária (presente em todos), inclusões nos neutrófilos que, à microscopia óptica, assemelham-se aos corpos de Döhle reacionais (distribuição irregular de miosina no citoplasma), surdez e nefrite. Na clássica anomalia de May-Hegglin, os neutrófilos mostram inclusões constituídas de clusters de ribossomos; não há surdez nem nefrite. Na síndrome de Alport, há nefrite grave e precoce; as inclusões neutrófilas têm escassos ribossomos e conglomerados de fibrilas. Nas síndromes de Epstein e de Fechtner, há surdez, nefrite e catarata precoce; na primeira não há inclusões nos neutrófilos, na segunda há inclusões orientadas ao longo de microfibrilas. Nanismo e hipoplasia de cartilagens e pelos (McKusik, 1965): defeito cromossômico autossômico recessivo em 9p13.3, mais descrito em populações amish. Mutação no gene RMRP causa baixa estatura por membros curtos, genuvaro, subdesenvolvimento de cartilagens e unhas, cabelo fino, esparso e claro. Há linfocitopenia em mais de 60% dos casos e defeito funcional dos linfócitos T, com suscetibilidade ao vírus varicela-zóster e tendência ao câncer de pele. Neutropenia em 20% dos casos; anemia hiporregenerativa na maioria, de leve a severa, com discreta macrocitose. Neutropenia congênita severa 1: defeito cromossômico em 19p13.3, autossômico recessivo. Mutação ELANE do gene da elastase neutrófila causa parada da maturação no estágio promielocítico, com neutrocitopenia < 500/µL e consequentes infecções bacterianas graves já nas primeiras semanas de vida. Há resposta neutrófila a doses

farmacológicas de G-CSF, o que sugere haver defeito nos receptores; pacientes que sobrevivem por longo tempo têm alto risco de evolução para mielodisplasia. Neutropenia congênita severa 3 (Doença de Kostmann, 1956): a primeira descrita, assemelha-se clinicamente à neutropenia 1 (acima), mas é um defeito cromossômico distinto, em 1q21.3. Há parada maturativa no estágio promielocítico/mielocítico e a medula mostra virtual ausência da reserva granulocítica madura. Na periferia há neutrocitopenia extrema (até < 200/µL) com certa monocitose vicariante. Não há anomalias associadas. A patogênese parece ser um defeito da membrana interna mitocondrial, oriunda de mutação do gene HAX1, que controlaria a apoptose e aumentaria o risco de evolução clonal para mielodisplasias e leucemia mieloide aguda (LMA). Há enorme suscetibilidade a infecções por bactérias e fungos, notada já nas primeiras semanas de vida. O tratamento permanente com G-CSF controla satisfatoriamente a neutropenia e atualmente permite longa sobrevida. Neutropenia crônica benigna “idiopática” e cíclica: outras variantes de um exagero apoptótico por ELANE em 19p13.3 causam neutrocitopenias crônicas mais benignas, geralmente de diagnóstico tardio e clinicamente desconsideradas como genéticas: neutrocitopenia crônica benigna “idiopática” e neutrocitopenia cíclica. São discutidas em NEUTROPENIA, no Capítulo 14. Noonan, síndrome de: defeito cromossômico em 12q24.13. Mutação no gene PTPN11 causa nanismo, dismorfismo facial e defeitos cardíacos variados graves. Em alguns casos, há trombocitopenia e defeito na fase de contato da coagulação (deficiência de fator XI); as manifestações hemorrágicas são leves. Omenn (1965), síndrome de (ver Imunodeficiência combinada severa...) Paris-Trousseau, trombocitopenia tipo (Favier, 1993): deleção do gene FLI1 em 11q23 causa uma raríssima trombocitopenia congênita crônica moderada, com macroplaquetas caracterizadas pela presença de α-grânulos gigantes corados em vermelho. A sobrevida plaquetária é normal: o defeito é da produção. A medula óssea mostra riqueza em micromegacariócitos apresentando os mesmos grânulos anormais. O defeito hematológico acompanha-se de anomalias faciais: hipertelorismo, orelhas em posição baixa e filtrum alongado; a maioria dos pacientes tem retardo mental. A comprovação de defeito genético similar em pacientes com a síndrome de Jacobsen (1973) faz serem consideradas variantes da mesma doença. Pearson, síndrome de (1979): doença mitocondrial muito rara (< 100 casos descritos). Há fibrose pancreática com disfunção exócrina e diabetes, retardo do desenvolvimento e morte comum na primeira infância. Há pancitopenia progressiva, com anemia macrocítica. A medula mostra vacuolização dos precursores mieloides e sideroblastos em anel. Sebastian, síndrome de (ver MYH9, doença relacionada a) Seckel (1960), síndrome de: defeito cromossômico em 3q23, mutação no gene ATR. Nesta síndrome autossômica recessiva rara com nanismo, microcefalia e fácies de ave, há risco significativo de evolução para LMA, mielodisplasia e anemia aplástica. Shimke (1974), síndrome de: defeito cromossômico em 2q35. Mutação no gene SMARCAL1 dá origem a displasia imuno-óssea, com displasia espôndilo-epifiseal, insuficiência imunológica progressiva, nefrite e hipotireoidismo (50% dos casos). Há alterações pigmentares: lentículas múltiplas, semelhantes a sardas. Linfocitopenia severa é constante (às vezes episódica); neutrocitopenia e trombocitopenia frequentes. A morte ocorre antes da puberdade se não se conseguir TMO alogênico. Shwachman-Diamond (1964), síndrome de: defeito cromossômico em 7q11.21. É autossômico recessivo: os pacientes são homozigotos ou duplamente heterozigotos para mutações do gene SBDS que causam risco de evolução para mielodisplasias e leucemia monoblástica, anomalias esqueléticas (baixa estatura e cabeça pequena) e insuficiência pancreática por infiltração gordurosa, mas com preservação das ilhotas de Langerhans; os eletrólitos no suor são normais (ao contrário da fibrose cística). Há alterações hematológicas provavelmente por defeito do receptor da concavalina A, com baixa proliferativa e exagero apoptótico: anemia em 40 a 80% dos casos, neutrocitopenia (estatísticas díspares, ≅ 50%) e trombocitopenia em um terço. Pacientes mantém bom estado nutricional e não há mortalidade precoce. TAR (trombocitopenia et absentii radii): é uma rara síndrome decorrente de mutação nula no lócus gênico RBM8A, comprometendo ao menos 10 genes, em 1q21.1. A genética precisa não está definida. Há trombocitopenia e ausência bilateral dos rádios, mas com persistência dos polegares. O hemograma mostra trombocitopenia significativa

sem alteração morfológica das plaquetas; há severa megacariocitopenia na medula óssea. A trombocitopenia melhora com a idade. Trombocitopenia amegacariocítica congênita: é uma síndrome autossômica recessiva rara diagnosticada na primeira infância, com falta megacariocítica seletiva na medula. As demais séries estão inicialmente preservadas, mas há eventual evolução para aplasia medular global ainda nos primeiros anos. Deve-se a mutações no receptor de trombopoetina, gene MPL em 1p34. Não há outros defeitos associados. Como em outros defeitos genéticos pancitopênicos, pode haver moderada macrocitose. Trombocitopenia amegacariocítica congênita ligada ao sexo com diseritropoese (ver GATA1, síndromes...) Trombocitopenia amegacariocítica congênita ligada ao sexo/β-talassemia (ver GATA1, síndromes...) Trombocitopenia amegacariocítica e sinostose radioulnar (Thompson, 2000): mutação dominante, descrita em poucas famílias, no gene HOXA11 em 7p15 causa trombocitopenia moderada associada a fusão proximal de rádio e ulna. Trombocitopenia tipo Paris-Trousseau (ver Paris-Trousseau, trombocitopenia tipo) von Gierke, síndrome de: neste tipo de doença de armazenamento de glicogênio há deficiência apenas funcional de glicose-6-fosfatase. Assemelha-se à deficiência de armazenamento tipo 1, mas não há neutrocitopenia. O único defeito hematológico é uma síndrome hemorrágica leve por defeito de função plaquetária. WHIM, síndrome (Warts, Hipogammaglobulinemia, Infections, Mielokathexis): defeito cromossômico raro em 2q22.1. Mutação em CXCR4 interfere no receptor e na internalização de quimioquinas, causa síndrome autossômica dominante com suscetibilidade ao papilomavírus, infecções respiratórias e baixa de imunoglobulinas. Há neutrocitopenia periférica por retenção medular (= mielocatexe): a medula é hipercelular, rica em neutrófilos maduros bizarros, vacuolizados e hipersegmentados, com lóbulos picnóticos ligados por longos filamentos. Wiscott-Aldrich, síndrome de: como se trata de uma trombocitopenia genética diagnosticada pelo hemograma, é discutida em Trombocitopenia, no Capítulo 18. WT, síndrome (González, 1977): (designada WT pelos sobrenomes das famílias descritas). É uma rara hipoplasia medular associada a defeitos pleiotrópicos radioulnares, herdada de modo autossômico dominante, com significativa tendência à evolução para leucemia aguda. 1 OMIM: Online Mendelian Inheritance in Man. Catálogo em contínua atualização de genes e distúrbios genéticos humanos. The Johns Hopkins University School of Medicine, Baltimore, USA. 2 Canadian Inherited Marrow Failure Registry. The Hospital for Sick Children, Toronto, Canada.

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Índice Capa Nota Folha de Rosto Créditos Autores Prefácio Símbolos e abreviaturas Sumário 1 | Hemograma Introdução e filosofia de trabalho Registro e processamento de dados Coleta de material Contadores eletrônicos Hemograma em contadores eletrônicos de pequeno porte Hemograma em contadores eletrônicos de grande porte Linha Beckman Coulter (Coulter® LH750) Linha Abbott (Cell Dyn Ruby e Cell Dyn Sapphire) Linha Advia Siemens Linha Sysmex Roche (Sysmex XE 5000 e XN 3000) Microscopia Sysmex Cella Vision Critérios para indicação de microscopia Técnica e cuidados para a microscopia Erros mais comuns

2 | Eritrograma Introdução Determinações diretas e parâmetros derivados Contagem de eritrócitos (E) Dosagem de hemoglobina (Hgb) Hematócrito (Hct) Correlação entre E, Hgb, Hct e volemia Volume corpuscular médio (VCM) Histograma e RDW Hemoglobina corpuscular média (HCM)

1 3 4 5 7 8 10 14 19 19 27 29 32 33 34 36 38 38 39 40 40 41 48 52

56 56 57 57 58 60 61 62 65 72

Concentração hemoglobínica corpuscular média (CHCM) Contagem de reticulócitos Fração reticulocítica imatura Índices hematimétricos reticulocíticos Microscopia e conferência Interpretação geral e alterações eritroides Policromatocitose Macrocitose Microcitose e hipocromia Anisocitose Anisocromia Pecilocitose Formas anormais (pecilócitos) de significação diagnóstica Inclusões nos eritrócitos Hematozoários Eritroblastos

3 | Anemia: generalidades Conceito e prevalência Anemia mínima Sintomas e sinais Classificação. Classificação pela biometria do eritrócito Classificação pela patogênese

4 | Anemia pós-hemorrágica 5 | Anemias hemolíticas Introdução. Defeitos na membrana do eritrócito Esferocitose Eliptocitose (ou ovalocitose) Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) Hemoglobinopatias Síndromes falcêmicas Outras hemoglobinopatias Deficiências enzimáticas do eritrócito Deficiência de piruvatoquinase (PK) Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6FD) Deficiência de pirimidina-5-nucleotidase e saturnismo Outras deficiências enzimáticas

72 76 80 81 82 83 84 85 88 90 91 93 93 98 100 102

104 104 105 107 109 109 110

115 119 119 120 121 123 124 125 125 128 130 130 130 131 132

Anemias hemolíticas infecciosas e parasitárias

133

Malária Babesiose Bartonelose (doença de Carrion) Outras infecções que podem causar anemia hemolítica Anemias hemolíticas imunológicas Crioaglutininas Anemia hemolítica autoimune Coombs-positiva Anemias hemolíticas por fragmentação eritrocitária Anemia hemolítica das próteses valvulares Anemia hemolítica da marcha ou corrida Anemia hemolítica das queimaduras Anemias hemolíticas microangiopáticas Anemias por agressão oxidante

133 134 134 135 135 135 136 138 138 138 139 139 140

6 | Anemias por interferência na síntese de hemoglobina Anemia ferropênica Hemograma na anemia ferropênica Eritrograma Leucograma e plaquetas Tratamento Anemia das doenças crônicas (ADC) Citoquinas inflamatórias Proteínas de fase aguda Patogênese da ADC Hemograma na ADC Diagnóstico diferencial entre ADC e anemia ferropênica (AF) Tratamento Talassemias α-Talassemia β-Talassemia Anemias por interferência no metabolismo do ferro Anemia sideroblástica congênita Anemia ferropênica congênita refratária ao ferro Sideroblastoses em anel adquiridas transitórias Acúmulo de ferro no organismo 1) Resposta fisiológica 2) Defeito genético Profilaxia/tratamento

142 143 144 144 150 150 153 154 155 156 158 159 161 161 162 164 171 171 172 172 172 172 173 176

7 | Anemias por interferência na síntese de nucleoproteínas

179

Deficiência de vitamina B12

180

Hemograma na deficiência de vitamina B12 Deficiência de ácido fólico

183 187

8 | Anemias por falta ou defeito proliferativo do tecido hematopoético 189 Anemias aplásticas (AA) Anemia aplástica adquirida Anemia de Fanconi Disceratose congênita Aplasia eritroide pura (Eritroblastopenia pura) Eritroblastopenia pura congênita (anemia de Diamond-Blackfan) Eritroblastopenias puras adquiridas Necrose da medula óssea Outras causas de insuficiência da medula óssea Anemias diseritropoéticas congênitas

9 | Anemias por síntese deficiente de eritropoetina Anemia da insuficiência renal crônica Hemograma na insuficiência renal Tratamento com rHu-Epo Anemia das endocrinopatias Anemia da desnutrição proteica e calórica

10 | Anemias de patogênese múltipla ou variada Anemia e hemograma no alcoolismo Anemia e hemograma nas hepatopatias Hemograma na hepatite C crônica e na cirrose Anemia e hemograma nas neoplasias Hemograma na quimioterapia antiblástica Hemograma no transplante de células-tronco autólogas Hemograma na radioterapia Anemia e hemograma nas doenças do trato digestivo Anemia e hemograma na aids Hemograma na aids

11 | Pseudoanemias Anemia e hemograma na gravidez Pseudoanemia dos atletas Hiperesplenismo Hipofunção esplênica e asplenia

190 190 192 192 193 194 194 194 195 196

198 198 199 200 202 203

205 205 206 206 208 211 215 216 217 219 219

222 222 225 225 226

Outras causas de pseudoanemia

12 | Poliglobulias Poliglobulias moderadas Poliglobulias acentuadas Pseudopoliglobulias súbitas e transitórias Poliglobulia provocada pelo uso de eritropoetina humana recombinante Poliglobulias notadas na infância

13 | Leucograma Contagem de leucócitos Fórmula leucocitária Interpretação

14 | Neutrofilia e neutropenia

226

228 229 230 231 231 232

234 234 236 239

242

Neutrofilia Desvio à esquerda Causas de neutrofilia Neutropenia. Neutropenias “menores” Agranulocitose Neutropenias genéticas Neutrofilia e neutropenia nas doenças infecciosas Abdômen agudo cirúrgico Pneumonias Meningites Endocardites Artrites Infecções faríngeas e amigdalianas Toxinfecções alimentares Doenças próprias da infância Viroses das vias respiratórias superiores Dengue

244 246 249 250 251 252 252 253 254 257 258 258 258 258 258 259 260 260

15 | Alterações qualitativas dos neutrófilos

263

Alterações reacionais Defeitos genéticos notados à microscopia Defeitos genéticos sem alteração morfológica Ativação e exagero funcional dos neutrófilos

263 267 269 270

16 | Linfocitose e linfocitopenia Linfocitose

271 272

Linfocitopenia (linfopenia) Linfocitoses infecciosas Linfocitose sem atipias Linfocitose com linfócitos atípicos Linfonodites sem hemograma característico Plasmocitose

17 | Alterações dos eosinófilos, basófilos e monócitos Eosinofilia Eosinofilia nas parasitoses Demais causas de eosinofilia Eosinopenia Basofilia Monocitose e monocitopenia Monocitose Monocitopenia

18 | Plaquetograma Tecnologia e componentes Contagem de plaquetas Outras causas de erro Valores de referência Volume Plaquetário Médio (VPM) Fração plaquetária imatura (IPF) Observação ao microscópio Trombocitose Trombocitopenia Trombocitopenia na gravidez Púrpura Trombocitopênica Imunológica (PTI) Trombocitopatias genéticas diagnosticadas pelo hemograma Defeitos de agregação plaquetária

19 | Hemograma do nascimento aos 2 anos Eritrograma no recém-nascido Poliglobulia Anemização fisiológica Anemia da prematuridade Anemia pós-hemorrágica Anemia hemolítica por incompatibilidade materno-fetal Anemias hemolíticas genéticas Infecções congênitas

273 274 275 275 278 279

280 280 281 282 283 284 285 285 286

287 287 289 291 293 293 294 295 295 296 298 298 300 303

304 305 306 306 307 308 309 310 311

Aplasias medulares congênitas Leucograma no RN. Neutropenia isoimune

312 312 313

Neoplasias da hematopoese Plaquetograma no RN Trombocitopenia Teste do pezinho Eritrograma do lactente aos 2 anos de idade Anemia ferropênica do lactente Anemia macrocítica da infância Anemias por defeito genético Leucograma até os 2 anos Plaquetograma até os 2 anos

313 314 314 314 315 315 316 317 318 319

20 | Hemograma em idosos Hematopoese em idosos Anemia em idosos Causas de anemia Anemia dos idosos Consequências da anemia Hemograma e exames complementares Tratamento Leucograma em idosos Plaquetograma em idosos

21 | Neoplasias da hematopoese: generalidades 22 | Leucemias agudas Generalidades e classificação Hemograma nas leucemias agudas Tratamento e prognóstico

23 | Neoplasias mieloproliferativas leucêmicas

320 321 321 324 325 326 326 328 328 329

330 333 333 334 338

341

Leucemia mieloide crônica BCR-ABL 1 positiva (LMC) Leucemia neutrofílica crônica Leucemias eosinofílicas Leucemia mastocítica

341 345 346 347

24 | Neoplasias mieloproliferativas não leucêmicas

348

Policitemia vera (PV) Trombocitemia essencial (TE) Mielofibrose primária (MFP)

349 351 352

25 | Síndromes mielodisplásicas e neoplasias mieloproliferativas/mielodisplásicas

354

Síndromes mielodisplásicas (SMD) Anemia refratária Anemia sideroblástica Síndrome da del(5q) Neoplasias mieloproliferativas/mielodisplásicas Leucemia mielomonocítica crônica (LMMoC) Leucemia mieloide crônica infantil

354 356 358 359 359 359 360

26 | Neoplasias linfoides de células maduras

362

Leucemia linfocítica crônica (LLC) Demais neoplasias linfoides predominantemente leucêmicas Hairy cell leukemia (HCL) Leucemia prolinfocítica B (LPL) Leucemia prolinfocítica T Leucemia de células T do adulto Síndrome de Sézary Linfocitose ou leucemia de linfócitos grandes e granulados (LGGs) Linfomas com frequente expressão leucêmica Linfoma folicular Linfoma de células do manto Linfoma difuso de grandes células B Linfoma esplênico da zona marginal (de células vilosas) Linfoma de Burkitt Micose fungoide Linfoma de células T maduras (periféricas) não especificado Expressão hematológica de alguns linfomas não leucêmicos Linfoma (ou doença) de Hodgkin Linfoma anaplásico de células grandes T Linfoma linfoangioblástico de células T maduras

27 | Gamopatias monoclonais Mieloma múltiplo (MM) Demais gamopatias monoclonais Linfoma linfoplasmocítico e macroglobulinemia de Waldenström Doença de cadeias pesadas

28 | Exames complementares ao hemograma Citoquímica e imunocitoquímica Citometria em fluxo e imunofenotipagem

362 365 365 366 366 367 367 368 369 369 370 370 371 371 372 372 372 372 373 373

374 374 379 379 380

381 381 383

Testes de função plaquetária Indicações Tempo de sangria Testes de agregação plaquetária PFA-100 Multiplate® analyser Exame da medula óssea Considerações técnicas Indicações Contraindicações Citogenética Biologia molecular PCR (reação em cadeia da polimerase) Materiais para exame por biologia molecular Biologia molecular em onco-hematologia Exames de biologia molecular em doenças hematológicas não neoplásicas Hibridização fluorescente in situ (FISH)

385 385 386 386 390 390 391 391 392 395 395 398 399 399 400 400 401

Apêndice 1 | Hemograma: valores de referência Apêndice 2 | Classificação de Tumores dos Tecidos Hematopoético e Linfoide (OMS, 2008) Apêndice 3 | Síndromes genéticas de insuficiência hematopoética com citopenias Conheça também Grupo A

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