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Portuguese Pages [595] Year 2011
IVO DA SILVA JúNIOR (Ot'g.)
Filosofia e Cultura Festschrift para Scarlett Marton
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BARCAROLLA
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qualquer tentativa de exclusão ou repulsa. "Todo o "aconteceu", ensinou Zaratustra aos discípulos, é um fragmento, um enigma, um acaso atroz - até que a vontade criadora diga a esse respeito "Mas foi assim que eu quis!". Até que a vontade criadora diga a esse respeito "Mas foi assim que eu quero! E assim quererei!" (Assim fa/a,.10 Zaratustra, 11 164). Já se viu como Zaratustra se diferencia de Dioniso pelo fato deste se libertar da temporalidade fenomênico-apolínea, mediante a queda no pathos e na inação, enquanto Zaratustra se libertava pela consciencialização da sua natureza criadora, perfeitamente ativa. No entanto, não devemos esconder dificuldades nesta solução de Nietzsche. Pois não será ainda o pensamento do eterno retorno uma submissão d:1 vontade a uma temporalidade vivida como destino? O que aconteceu deverá reaparecer redimido? E quando se expóme um "sim" ao passado, não é verdade que todo o ser humano (assim como os próprios povos) realizou coisas que não deve deseja r e que, pelo contrário, deverá mesmo exorcizar? Que sentido pode ter redimir o que aconteceu se este inclui, como sabemos, todo o tipo de sofrimento, ignomínia e crueldades, reconhecendo aliás N ietzsche que o homem é o animal mais cruel à face da terra? Que sentido tem pois exprimir um sim ao "aconteceu"? Uma resposta será crucial para a comprcensiio do pensamento de Nietzsche no seu todo, já que efetivamente não parece que se possa aproveitar esta ou :iquela pane de uma obra e pôr de lado outras partes, nomeadamente a questão da relação entre eterno retorno e vontade de poder. Acabaria propondo alguns temas, cujo aprofundamento é importante para esclarecer as questões anteriores. 1.O pensamento do eterno retorno impõe uma des-hierar• quização das 3 dimensões do tempo. 2. Isso mesmo implica uma va lorização do acontecido, no mesmo plano do presente e do futuro. 132
3. Essa valorização apenas pode ser feita do ponto de vista da vontade de poder, a qual se vê a si própria como vontade ,,ão ressentida. Se fosse ressentida excluiria o acontecido para desejar apenas o futuro, ou então, como no caso do niilista negaria o passado, sen1 qualquer afirmação alternativa, quer' em relação ao presente, quer em relação ao futuro. As duas figuras mais importantes da vontade ressentida na sua relação com a temporalidade são a platônica (teleológica, idealização de um outro mundo) e a niilista. 4. Deste modo, quando Nietzsche fala de uma vontade libertadora do acontecido, tal significa que o sujeito, enquanto vontade de poder, identifica quer uma temporalidade platônica, quer uma temporalidade niilista: qualquer delas só concebe o "aconteceu" como erro, ilusão ou fragmento sem um sentido próprio. 5. Apesar da proximidade já mencionada, Zaratustra não é Dioniso porque este corta com uma temporalidade apolínea, socrática de causa e efeito, para se absorver no todo uniforme, sem verdadeiro tempo. A temporalidade dionisíaca é, podemos dizê-lo, niilista no sentido em que retorna a um páthos depois de rejeitar a ilusão fenomênica. Mas Zaratustra ensina que não só tudo é retorno, como o indivíduo deve querer ainda que o círculo permaneça no seu movin1ento eterno. Por isso não há aí qualquer noção de uma perda da individualidade, de um reencontro com um todo original e primitivo, como acontecia com uma representação dionisíaca da·temporalidade. 6. É importante notar, para compreender melhor esta temporalidade na perspectiva da vontade de poder não ressentida, que a vontade de poder é mais e qualirntivamente,superior à n1era vontade de viver. Por isso o ciclo ou retorno do vivido não é experimentado como o animal vive o ciclo da natureza. 133
O eterno retorno não é uma representação naturalista do ser. O homem não ressentido, a vontade não ressentida deseja reviver aquilo que no passado é suposto contribuir para a sua saúde, vigor, domínio (cf. Obras Escolhidas, VI, p. 89) 7. Assim o pensamento do eterno retorno é interpretação e não mera observação de um retorno do acontecido. 8. Ponto relevante será a questão de saber se esta temporalidade da vontade de poder possui dimensão ou significado éticos. Na nossa opinião, ela tem de fato consequências éticas, se entendermos o ético como o conceito da vida, tal como ela deve ser vivida. Note-se que o que Nietzsche procurou através de Zarat11stra foi uma temporalidade não ressentida, sendo que para ele o ressentimento se constitui numa certa relação com o tempo. 9. Será que o homem que ultrapassou, venceu o ressentimento e vive na nova temporalidade pode ser vil, traidor, desonesto, corrupto, etc., ou será que esse homem que Zaratustra ensina é uma reunião das virtudes tradicionais da vida ética? Pessoalmente achamos este um ponto altamente difícil e controverso em Nietzsche. É um fato que ele defende que o homem vil, fraco e opressor, com todos os defeitos que já conhecemos, retornará se1npre, conjuntamente com o que é nobre e justo, etc. Por isso a perspectiva do eterno retorno da vontade de poder não ressentida, no caso de possuir um significado ético, não é aquele que corresponde a um catálogo de virtudes definidas a priori. Mas acabaria com a com a seguinte interrogação cuja resposta revela algo do que possa ser uma opção ética nietzschiana: o que é libertar verdadeiramente alguém da miséria, da opressão, do jugo? Uma resposta possível será que cada um deve aniquilar todo o acontecido e procurar a vida feliz apenas no que irá acontecer, outra resposta alternativa será que 134
cada um deve querer o presente e o futuro e assumir o passado ao que tem de vil e no que tem de nobre. A segunda resposta é nietzschiana e apenas nessa perspectiva é possível um efetivo conceito de liberdade.
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Germán Meléndez
Primeiros sobrevoos pela escola da suspeita: uma leitura ociosa de Humano, demasiado humano I, Prefácio, §1 1
Introdução Nietzsche foi um autor particularmente preocupado com o fato de que seus escritos não fossem suficientemente lidos e adequadamente comprendidos2 • A fim de evitar as mais deli1 Tradução de Luís Rubira. Nora do autor. A obra de Nietzsche é citada a panir do original alemão, conforme as duas impressões existentes da edição Colli-Monrinari: Kritische Gesa111ta11sgabe Werke ou Kritische St11die11a11sgabe (ver bibliografia). As referências à primeira dessas duas edições se faz com a abreviatura KGW, seguida do número da divisão (Abteil1111g) em romanos e do número do volume (Battd) em árabicos (por exemplo, KGW IV.2). As referências à segunda destas duas edições é feira com a abreviatu ra KSA, seguida do número do volume em algarismos arábicos e do número da(s) página(s). Em caso de cirar-se os fragmentos póstumos, inclue-se o número assinalado aos mesmos na edição Colli-Montinari (por exemplo, KSA 12, 312-3, 7 (54}). As referências à H11111ano, demasiado l,111110110 recorrem à abreviatura HH, e aquelas ao primeiro volume desta obra (em sua segunda edição) recorrem à abreviatura HH I. A abreviatura HH 1, Pr.~ 1 remete ao primeiro parágrafo do preíádu do primdru volume de
H1m1a110,
demasiado J,umtmn .
2 Veja-se, por exemplo, o seguinte começo de uma versão anterior do prefácio da segunda edição de HH 1: "0 que importa revelar é que este livro é difícilmenre compreensível, que incita ao equívoco e, em uma palavra, extravia, que requer prefácio e tábua de advertência?" (KGW, IV.4, 162). Sobre a mencionada preocupação de Nieruche, na época de redação dos prefácios de 1886, ver Brusotti (1992) e, mais recentemente, Burnert (2008) 19ss.
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do Cogito necessariamente pressupunha uma confiança absoluta na razão. Em sua capacidade de intuir e inferir com absoluta segurança. A instauração cartesiana do Cogito era bem outra coisa que não o mero reconhecimento "empírico" de um eu pensante, que mesmo um cético jamais pensou em questionar. Por outro lacllo, eu dei-me conta de que a admissão da possibilidade de minha loucura parecia ter um efeito ainda mais devastador. Ela não afetava apenas o meu filosofar, ela pareceu-me atingir também toda a minha postura de senso comum diante da vida cotidiana: que confiança poderiam doravante merecer as minhas crenças mais banais, as minhas certezas práticas de todo momento, os pensamentos por certo inocentes que minha mente continuadamente produzia, como era o caso com qualquer outro ser humano? Como crer em minhas faculdades ditas "cognitivas", como aceitar o pretenso testemunho mesmo de meus sentidos? Eu estava ali sentado diante de minha escrivaninha, "tendo este papel entre as mãos" 6, meu querido cachorro Zeca7 estava a meus pés, como sempre. Como saber porém, como estar realmente seguro de que isso estava de fato ocorrendo? Loucos têm freqüência extravagantes e insensatas fantasias, mas em suas alucinações muitas vezes imaginam também situações em tudo semelhanum 1exto por ele e por Fernanda Marinho, intitulado "Le Dieu Trompeur - Notes on "Priva1e knowledge". ln: Descartes, Wit1gens1ein and Borges" (cf. MARINHO, N.; MARINHO, F., 2002). Ney Maripho proporcionou-me o acesso ao 1ext~, no qual os autores rematizam a desconsideração, por parte de D~s,c~rtes, da ques1ao_do "engano na vigília, que atribui aos loucos". (d; p.25) e o pnv,_legio por ele con~~ndo ao campo das idéias ou representações, pr1V1!eg10 esse _que,_ d1ze',!1 os autores, abre caminho para borrar a distinção entre o racional e o 1rrac1onal (p.361: E também · - d as •·d•· d 1· te•" por Karl Jaspers relembram a çarac1en:zaçao I c,as e iran • . . •. parucularmente , • a "extraordinária convicção que equivale a uma ce.'!ez~ sub1enva, mcomparavel ~ a "impossibilidade de sua modificação pela expenenc1a ou argument_os cerrados (ibidem). Assim embora niío se demorem sobre esta que.s1ão, fica •~phcito no iexio ' ºd · fundada da questao da loucura por d · d q ue para os aurores, uma cons, eraçao mais a pro ' · • b ' lo, pata a oumna o og110• s1 parte de Descartes ter.ia representado um seno o ~cu . . 6 Seguindo, 3 meu modo, um percurso de estilo carte~•a_no,_permno-me copiar pa1avras 1 do próprio Descartes, cf. DESCATES, R. 1953,. ~~d• :;n~~;ct·a;t!~eira. 7 Zeca era O apelido, seu nome completo era Jose tear o 399
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tes às da vida comum, entretanto irreais. E se aquela situação
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que eu estava então experienciando fosse uma delas? E se de fato não existissem aquela escrivaninha, aquele papel, aquele cachorro? E se as coisas não fossem como me parecia que eram? Percepção, memória, entendimento, minhas faculdades todas pareciam-me estar sob irremovível suspeita. Natural foi, portanto, que eu me sentisse corn9 se sentiu Hume, ao experienciar a extraordinária crise e desespero intelectual que descreve com cores fortíssimai; quase ao fim do livro I do Tratado (cf. Hume, 1992, p.267-9). Uma análise implacável do funcionamento de seu entendimento tendo-lhe indicado que, agindo sozinho, este "se subverte inteir~mente a si próprio e não deixa o menor grau de evidência em qualquer proposição, seja na filosofia, ou na vida comum", incapaz de decidir entre a subversão inteira do entendimento humano e os manifestos absurdos•que decorreriam da rejeição de todo raciocínio mais refinado e elaborado, Hume se deu çonta de não ser-lhe "nenhuma escolha deixada, a não ser entre uma falsa razão e absolutamente nenhuma". Donde sua confusão e desespero. Fiz minhas as suas palavras: "Estou confuso com todas essas questões e começo a figurar-me na mais deplorável condição imaginável, cercado pela mais profunda escuridão e totalmente privado do uso de todo membro e faculdade". III. Tentando objetar contra o argumento Aconteceu, porém, que me veio um dia à mente objeção que, de início, me pareceu séria e digna de toda consideração, talvez capaz de desarmar meu argumento da loucura. Eu admitira, porque se me afigurou como impossível não admitir, a possibilidade de estar louco. E daí inferira a impossibilidade de confiar plenamente em qualquer inferência ou evidência, 400
portanto em qualquer argumentação, o que me levara à crise intelectual que descrevi. A conclusão fundamental do argumento poderia formular-se da seguinte maneira: "nenhuma proposição, nenhum argumento são confiáveis de modo absoluto". Ora, essa proposição necessariamente implicava, dizia a objeção, que ela própria não era confiável de modo absoluto e, assim, ela se autodemolia. Se não posso ter. absolutamente provada a conclusão de qualquer argumento, não posso ter absoluta1nente provado tudo quanto conclui meu argumento da loucura. Se nenhuma argumentação é digna de fé, não o é também esse mesmo argumento. Nele não poderia, então, depositar nenhuma confiança absoluta. Tal a conseqüência, aparentemente inexorável, que dele mesmo decorria. Parecia, assim, que o argumento a si mesmo irremediavelmente se invalidava, no ato mesmo de sua contemplação. Se ele minava minha confiança absoluta em qualquer procedimento argumentativo, se ele me descobria que eu não tinha como saber de modo absoluto que quanto me aparecia evidente ou lógica e corretamente inferido assim era objetivamente, essa falta de legitimidade garantida necessariamente afetava o discurso mesmo que o articulava. O argumento da loucura ipso facto estaria então, tainbém ele, condenado. E foi, assim, que meu argumento da loucura pareceu voltar-se um dia contra si próprio. Ao formulá-lo, meu discurso parecia ter enveredado por um processo dialético de autodestruição. Propus-me, pois a descobrir algum erro na objeção. Antes, porém, que o fizesse, uma segunda objeção me oc:orreu, que me pareceu ainda mais contundente que a primeira. Ao desenvolver o argumento da loucura, partindo da admissão inicial da possibilidade de estar louco, eu me pusera a raciocinar e argumentar; a discutir e examinar conseqüências que pareciam decorrer da admissão dessa possibilidade, a analisar di401
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