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Portuguese Pages 127 [64] Year 2023
ENSAIOS DA FUNDAÇÃO
Direitos Humanos Francisco Bethencourt
FUNDAÇÃO FRANCISCO MANUEL DOS SANTOS
Direitos Humanos Francisco Bethencourt
FUNDAÇÃO
Introdução
13
Debate
21
Cidadania e direitos civis
33
Colonização
4i
Escravidão
49
Barbárie
55
Racialização
63
Género
71
Descolonização
87
Migrações internacionais
97
Direitos económicos e sociais
107
Direitos ambientais
H3
Conclusão
Design e paginação: Guidesign
117
Posfácio
Impressão e acabamento: Guide — Artes Gráficas, Lda.
121
Bibliografia
FUNDAÇÃO FRANCISCO MANUEL dos SANTOS
Largo Monterroio Mascarenhas, n.° 1, 7.° piso 1099-081 Lisboa Telf: 21 001 58 03 [email protected] Diretor de publicações: António Araújo Título: Direitos Humanos
Autor: Francisco Bethencourt
Revisão de texto: CoodSpelI
© Fundação Francisco Manuel dos Santos, Francisco Bethencourt Maio de 2023 Depósito Legal n.° 513573/23
As opiniões expressas nesta edição são da exclusiva responsabilidade
do autor e não vinculam a Fundação Francisco Manuel dos Santos. A autorização para reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra deve ser solicitada ao autor e ao editor.
Introdução A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em
1948 pelas Nações Unidas, transformou-se na pedra angular
do novo edifício normativo internacional criado no seguimento da Segunda Guerra Mundial. A Declaração define-se como um padrão comum de realização para todos os povos e nações.
Os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos; este é o conteúdo do primeiro artigo, que reproduz a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 1789, por sua vez tributária de uma primeira formulação de Jean-Jacques Rousseau no preâmbulo de O Contrato Social (1762), que denun
ciava a opressão geral na sociedade de privilégios.
Outros artigos da Declaração Universal consagram o direito à vida, à liberdade e à segurança; o direito ao reconhe
cimento individual perante a lei; o direito à proteção igual contra qualquer discriminação; o direito à reparação pela violação dos direitos ali consagrados; o direito à liberdade de movimentos
dentro de cada Estado, bem como de saída e entrada; o direito
de asilo noutros países contra a perseguição; o direito à nacio
nalidade. As garantias de proteção do indivíduo perante o Estado estão na base destes artigos, que rejeitam políticas dos
séculos xix e xx de exclusão de minorias com base em projetos
nacionalistas (o lado sombrio da democracia, como bem definiu
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Michael Mann). Está subjacente a estes direitos a repulsa pela
retirada dos direitos de nacionalidade a minorias, que ocorreu
dar de religião; o direito à liberdade de opinião, de expresH111 H associação; o direito a um acesso igual a serviços públi-
na Alemanha nazi e noutros Estados europeus. O direito de
a escolher representantes e a fazer parte do governo do
asilo, ainda hoje alvo de um vivo debate, está aqui consagrado,
— todos estes direitos refletem a rejeição do genocíseu pal5 d o contra judeus perpetrados pela Alemanha nazi, bem como
bem como a livre circulação de indivíduos (a saída e a entrada nos respetivos países).
rejeição de discriminação baseada em preconceitos de raça
A proibição da escravatura e da servidão; a rejeição da
ou religião. A liberdade de mudar de religião justificou a abs
tortura, do tratamento desumano ou degradante, da prisão
tenção da Arábia Saudita no âmbito da votação da Declaração.
arbitrária ou do exílio; o direito à presunção de inocência até a
O direito à propriedade remete para a Declaração francesa de
condenação pública por um tribunal independente e imparcial;
1789, embora neste caso responda a expropriações realizadas
a proteção contra ataques arbitrários à privacidade, à honra,
pelos Estados totalitários. O consentimento dos futuros côn
à reputação, à família e à correspondência — estes são outros
juges coloca no centro da família a liberdade de escolha indi
artigos fundamentais da Declaração. Encontramos aqui uma
vidual, embora ainda predominem casamentos arranjados em
profundidade de sedimentos históricos: em primeiro lugar, a luta
pela abolição da escravatura, iniciada no século xvn, concre
certas regiões do mundo. Inscreveram-se nesta Declaração os direitos sociais e eco
tizada em boa parte durante o século xix, que não estava con
nómicos, como o direito à segurança social; 0 acesso aos direitos
cluída em 1948 e ainda existe; em segundo lugar, a luta por um
económicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade e ao
Estado de direito baseado na rejeição da tortura como método
desenvolvimento da pessoa; o direito ao trabalho, à livre escolha
de inquérito judiciário, problema particularmente sensível em
de emprego e a um salário igual para trabalho igual; o direito de
países onde funcionaram tribunais da Inquisição, mas cuja utili
formar e participar em sindicatos para a proteção de interesses
zação em países totalitários do século xx assumira outra escala.
comuns; o direito ao descanso e ao lazer, incluindo férias pagas;
A presunção de inocência e a proteção da privacidade e do bom
o direito a padrões de vida mínimos respeitantes a alimentação,
nome estão na mesma linha de recusa de arbitrariedade.
residência, vestuário e cuidados médicos, incluindo a segurança
O direito a casar e a fundar uma família sem limitações
em caso de desemprego, doença, incapacidade, viuvez ou idade
de raça, nacionalidade ou religião; o respeito pela livre von
avançada; a proteção e a assistência na maternidade e na vida
tade e pelo consentimento dos futuros cônjuges; o direito à
infantil. São aqui consagradas as férias pagas, uma inovação
propriedade própria ou em associação; o direito à liberdade de
do governo da Frente Popular em França em 1936, bem como
pensamento, de consciência e de religião, bem como o direito
a liberdade sindical e o princípio de salário igual para trabalho
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igual, que ainda hoje não se pratica em muitos países, nomea
racial. Os países comunistas contribuíram para a introdu
damente no que diz respeito ao trabalho feminino.
ção dos direitos económicos e sociais, mas a base liberal da
A Declaração consagra igualmente o direito à educação
Declaração era vista como uma limitação às suas conceções
para todos, gratuita pelo menos nas etapas elementares, bem
políticas. Em todo o caso, o facto de não ter havido votos con
como o direito a participar na vida cultural da comunidade, com
tra mostra um extraordinário consenso face ao traumatismo
respeito pelos direitos de autor de qualquer produção científica,
da Segunda Guerra Mundial.
literária ou artística. É interessante observar como os direitos
A Declaração das Nações Unidas estabeleceu uma viragem
educativos, culturais e de autor estão integrados nos últimos
no sistema normativo internacional, face ao nacionalismo dis
artigos. A referência final reafirma a lógica geral da Declaração:
criminatório da segunda metade do século xix e a violação de
o exercício destes direitos e destas liberdades só está limitado
princípios básicos de respeito pela nacionalidade, propriedade
pelo respeito e pelas liberdades dos outros, pela ordem pública e
e integridade pessoal de minorias durante as décadas de 1930 e
pelo bem-estar de uma sociedade democrática. Trata-se do prin
1940. Ao genocídio dos judeus temos de acrescentar o massacre
cípio estabelecido na Declaração francesa de 1789, segundo o
dos roma e dos sinti, bem como o extenso cativeiro e o trabalho
qual a liberdade individual deve respeitar a liberdade dos outros.
forçado de eslavos, enquanto na Ásia se verificou o impacto da
Esta breve apresentação da Declaração Universal dos
ocupação japonesa da Coreia, da Manchúria, de parte da China
Direitos Humanos não aborda os conflitos internos da comis
e do Sudeste Asiático em sucessivas vagas de 1905 a 1945, tudo
são que a preparou, nomeadamente sobre o papel das mulheres
isto acompanhado de enormes deslocações forçadas de popu
ou sobre os direitos económicos e sociais. O que parece hoje
lações que afetaram milhões de pessoas. A rejeição da violência
evidente não o era em 1948. Veremos os desenvolvimentos pos
colonial está implícita em diversos artigos, num momento em
teriores. Decidi começar pela Declaração para lembrar os prin
que se iniciara a descolonização, visível na presença de novos
cípios básicos do direito internacional e dos direitos civis que
países independentes como a índia e o Paquistão.
todos os membros das Nações Unidas aceitaram, embora com
A Declaração Universal dos Direitos Humanos funciona
oito abstenções no início, da África do Sul, da Arábia Saudita e
como o eixo da face de Janus que norteia este ensaio, atento aos
de países de regime comunista como a União Soviética. Só em
antecedentes históricos e aos desenvolvimentos dos últimos
1960 a Arábia Saudita aboliu a escravatura, enquanto conside
50 anos. Falaremos do debate atual em torno dos direitos huma
rava a liberdade de mudar de religião uma apostasia. A África
nos para passarmos a uma revisão histórica das noções e das
do Sul tinha lançado nesse mesmo ano de 1948 os fundamen
práticas respeitantes à dignidade do ser humano, à cidadania
tos da formalização institucional do apartheid, ou segregação
e à soberania, confrontadas pela persistência de escravatura,
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de exclusão de minorias e de atitudes dualistas face à migração internacional. Incluiremos os direitos económicos e sociais e os
direitos ambientais, que conheceram uma nova dimensão nas
últimas décadas. Refletiremos sobre a extensão dos direitos humanos no sistema normativo internacional, violado mui
Debate
tas vezes pelas práticas das nações, que ainda hoje recorrem à guerra para projetos de expansão ou recolonização. A posição
O debate sobre os direitos humanos e a sua história pode ser
de Portugal neste vasto contexto internacional será brevemente
abordado em torno de quatro perguntas: existia uma base ante
referida em diversos pontos.
rior universal de respeito pelos direitos humanos? Que con texto histórico permitiu a emergência do conceito de direitos
humanos? Como têm sido estes direitos contestados ou utiliza dos pelos diversos poderes mundiais? Como têm sido os direitos
humanos apropriados, defendidos e alargados? Paul Gordon Lauren põe a tónica no sentido universal de
dignidade da vida humana, de dever de assistência e de compor tamento responsável para com seres humanos, partilhado por todas as religiões universais (hinduísmo, judaísmo, budismo, cristianismo e islão), incluindo sistemas morais e normativos
como o confucionismo. Estas religiões e estes sistemas normati vos — definidores das civilizações axiais, criadas entre 600 a.C.
e 700 d.C. em diferentes partes do mundo — foram valorizados nos debates sobre o racismo (responsável pelo extermínio de
milhões de seres humanos durante a Segunda Guerra Mundial)
lançados pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO). A abordagem de Gordon Lauren baseia-se na análise de uma série de lutas sociais por direitos, nomeadamente a abo
lição do tráfico de escravos e da escravatura, a proteção de
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prisioneiros de guerra ou o movimento das sufragistas pelo
reSidentes nos seus próprios territórios. Será legítimo fechar
direito de voto. Embora Lauren reconheça a tensão entre prin
os olhos a essa violação ou existe um dever internacional de
cípios e realidades, definida pela opressão e pela ausência de
solidariedade que se sobrepõe ao dever de respeito pela sobera
direitos, a visão evolucionista implícita não identifica suficien
nia do Estado? Já em 1851 Giuseppe Mazzini considerava que a
temente regressões e percursos alternativos. A retórica huma
distância da violação não absolve os Estados indiferentes. Este
nitária que escondia projetos colonialistas, como foi a proteção
debate ocorreu desde o início do século xix com as guerras de
do bem-estar dos indígenas alegada pela Conferência de Berlim
libertação nacional nos Balcãs, assumindo uma nova intensi
em 1884-1885, usada para a partilha de África entre os poderes
dade com o genocídio dos tutsis por hutus no Ruanda em 1994
europeus, devia ser mais bem criticada. Gordon Lauren postula
e o massacre de muçulmanos bósnios por sérvios em Srebrenica
uma relação implícita entre visão humanitária e direitos huma
em 1995- O declínio do intervencionismo humanitário ocorreu
nos que é discutível mas útil como matéria de reflexão.
como resposta às invasões do Afeganistão e do Iraque, segui
Na minha perspetiva, o humanitarismo, materializado na
das da intervenção na Líbia liderada pelos Estados Unidos, que
criação da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho na década
deixaram numerosos mortos e sequelas de guerras civis. Muitos
de 1860, não pode ser confundido com a definição de direitos,
autores apontam o abuso político da retórica humanitária em
mas está ligado à Convenção de Genebra contra os crimes de
muitas intervenções, citando a partilha europeia de África em
guerra de 1864, revista e alargada em 1907,1929 e 1949, que
1884-1885 ou a invasão da Checoslováquia pela Alemanha nazi
estipula regras para o tratamento de prisioneiros e, finalmente,
em 1939, sob pretexto de proteção da minoria alemã. Fabian
estabelece normas de tratamento da população civil em tempo
Klose argumenta que a consideração humanitária é um motivo
de guerra. Existe uma relação entre humanitarismo e direitos
entre outros: económicos, geoestratégicos ou de segurança.
humanos, contribuindo o primeiro para a criação de um con
Lynn Hunt envereda por um percurso distinto, concen-
texto favorável à emergência do segundo, embora deva reco
trando-se no século xvm europeu como um ponto de viragem no
nhecer-se a especificidade do caráter normativo dos direitos.
processo de invenção dos direitos humanos. A novidade reside
Contudo, o humanitarismo vai para além deste quadro dos direi
na análise da literatura do período, que transformou criadas,
tos de civis e militares em situação de guerra, pois levanta o
mulheres, marinheiros ou empregados, ou seja, tipos sociais
problema do dever de solidariedade internacional.
tradicionalmente considerados inferiores, em personagens de
O respeito pela soberania dos Estados, que está consagrado
romance, com os seus sentimentos e direitos. A descrição emo
na Carta das Nações Unidas, pode suscitar dúvidas quando
cional de abuso sexual e de sofrimento imposto a dependentes
um governo viola sistematicamente os direitos humanos dos
estimulou a empatia dos leitores, abrindo caminho para uma
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nova visão dos direitos dos humilhados e oprimidos, incluindo
por Rousseau, para quem a propriedade privada resultara de
mulheres. Richardson e Rousseau, entre outros autores, trans
espoliação e apropriação da propriedade comunitária. Lynn
puseram os valores cristãos sobre a dignidade humana para um
Hunt toca neste debate, mas é preciso ir mais longe. Proudhon
contexto secularizado, onde prevalece a consciência do trata
(1809-1865) declara que a propriedade é o roubo e propõe o
mento injusto.
uso coletivo dos bens de produção, opondo-se à coletivização da
A autonomia do indivíduo faz parte da atmosfera do Ilumi-
propriedade advogada por Marx (1818-1883), pois conteria as
nismo, o que desencadeia a evolução dos direitos, de Rousseau
sementes da opressão pelo Estado. Em todo o caso, o problema
à Revolução Americana e desta à Revolução Francesa, com as
do direito de propriedade inscrito nas primeiras declarações de
primeiras declarações de direitos do Homem (usando o mas
direitos, tanto a americana como a francesa, que visava evitar a
culino universal que prevalece até ao final do século xx) que
expropriação monárquica de opositores, suscita uma polémica
influenciaram a primeira revolução bem-sucedida de escravos e
que chega aos dias de hoje.
libertos no Haiti. A discussão contemporânea acerca da tortura
Samuel Moyn critica Lynn Hunt por supor uma rela
e da pena de morte, práticas condenadas por diversos autores
ção direta entre a emergência da noção de direitos durante
como Pietro Verri (1728-1797) e Cesare Beccaria (1738-1794),
o Iluminismo europeu e a Declaração Universal das Nações
reforça os direitos dos indivíduos face ao Estado, enquanto o
Unidas. Embora Lynn Hunt aceite o fracasso inicial da difusão
movimento abolicionista se concentra na dignidade humana
dos direitos humanos, postula que estes acabam por triunfar.
dos escravos e o debate em torno dos direitos cívicos dos judeus
Mas o seu raciocínio é dedutivo: não discute suficientemente
levanta o problema do respeito pelas minorias. Deve ser inte
os diversos momentos históricos do final do século xvm a mea
grada neste processo a luta anterior dos cristãos novos portu
dos do século xx. Moyn considera, pelo contrário, que a noção
gueses de origem judaica contra a discriminação jurídica a que
de direitos humanos não tem um valor universal anterior à
estavam sujeitos, luta que teve impacto em Roma.
Declaração de 1948; mais, esses valores não teriam sido real
O fundo individualista da noção de direitos é temperado
mente difundidos antes da década de 1970. Moyn relaciona
pelos direitos coletivos dos escravos e das minorias. A liberta
essa difusão com a crise do Estado-nação, o colapso do mar
ção da sociedade de privilégios, baseada nos valores de sangue e
xismo e a queda do imperialismo formal. A desagregação da
de estatuto, transmitidos de geração em geração, estimulara os
União Soviética e do Pacto de Varsóvia viria somar-se a esta
grandes movimentos políticos do século xvm, mas os socialistas
viragem, com o fracasso das ideologias baseadas nas utopias
do final do século xvm e do século seguinte desenvolvem uma
socialistas e com os direitos humanos a emergir como a última
visão coletiva de superação das desigualdades sociais, inspirada
utopia possível.
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Os últimos dez anos encarregaram-se de questionar esta
A tentativa de renovação do marxismo como resposta à
visão. Embora Moyn tenha razão no problema das continui
crise da década de 1970 passou pela crítica dos direitos humanos
dades assumidas e não demonstradas, na datação retrospe
como retórica do imperialismo. Immanuel Wallerstein destacou-
tiva dos direitos humanos e na necessidade de analisar melhor
_se nessa abordagem, baseada na rejeição, por parte de Marx,
a interseção entre anticolonialismo e direitos humanos (não
dos direitos humanos, que classificava como uma ideologia bur
concordo com a rejeição de Moyn), a ideia de uma nova utopia
guesa, pois não questionariam os fundamentos económicos da
dos direitos humanos como ideologia alternativa no âmbito
sociedade de classes e erigiriam a propriedade privada como
da sociedade global tem pouco fundamento. Aliás, no seu livro
base de qualquer sistema. Os direitos humanos como padrão de
mais recente, Samuel Moyn aborda a desigualdade social e reco
avaliação dos países em desenvolvimento é a principal crítica de
nhece que a arquitetura dos direitos humanos não responde a
Wallerstein, que destaca os dois pesos e as duas medidas neste
esse problema. A meu ver, será necessário escapar à armadilha
tipo de projeção dos valores do Ocidente, destinados a absor
de considerar os direitos humanos como uma ideologia utópica
ver as periferias na lógica de expansão do sistema capitalista,
universal para desenvolver o potencial desses mesmos direitos
enquanto as democracias ocidentais estão longe de correspon
na procura de uma sociedade mais justa.
der a esses mesmos valores.
A minha crítica vai mais longe: a narrativa de Moyn con
Este tipo de críticas tem fundamento, sobretudo no que
centra-se no período de 1940 a 1970, enquanto o período ante
diz respeito aos dois pesos e às duas medidas, embora a exten
rior é baseado em bibliografia secundária; na sua narrativa,
são dos direitos humanos tenha sido feita em grande medida
cosmopolitismo e universalismo são intercambiáveis, quando
contra os Estados Unidos. Aliás, os sucessivos golpes ditatoriais
têm conteúdos diferentes (relativos e horizontais no primeiro
patrocinados pelos Estados Unidos na Ásia, na América Latina
caso, absolutos e verticais no segundo); as contribuições da
e em África invalidam este tipo de argumento. A esquerda radi
esquerda para os direitos humanos são rejeitadas por Moyn,
cal mantém a crítica aos direitos humanos, mas quando está
quando a meu ver não se pode subestimar o papel dos movi
a ser perseguida sob ditaduras, em qualquer parte do mundo,
mentos sociais na inscrição dos direitos económicos e sociais;
usa-os de forma sistemática para denunciar os horrores a que
a crise do Estado-nação foi claramente sobrestimada por Moyn,
os diferentes regimes submetem as populações. Também aqui
como os desenvolvimentos recentes do nacionalismo bem o
há dois pesos e duas medidas.
demonstram; finalmente, a sua visão inicial estava concentrada
A minha crítica principal é que os direitos humanos não
nos direitos do indivíduo perante o Estado, certamente funda
podem ser vistos de uma forma estática ou essencializada, pois
mentais, mas que devem ser relacionados com os outros direitos.
têm sido apropriados, moldados e alargados por pressão dos
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movimentos sociais em diversas partes do mundo. O processo
de descolonização, como veremos, colocou os direitos huma nos no centro da luta de emancipação, enquanto os direitos ambientais, que incluem os direitos das comunidades indígenas,
tão importantes, por exemplo, na América Latina, passaram a
Cidadania e direitos civis
assumir um papel de relevo. O retorno da guerra e dos horrores da desumanização trouxe os direitos humanos de novo para o
A noção de cidadania está geralmente ligada ao reconheci-
primeiro plano. Por último, impõe-se descolonizar a visão de
mento de pertença a uma comunidade urbana. Esta noção foi
túnel centrada nos Estados Unidos. E verdade que a experiência
desenvolvida na Europa pré-moderna, onde as comunidades
ocidental desempenhou um papel importante tanto na violação
urbanas tinham a sua própria estrutura política, reconhecida
como na afirmação dos direitos humanos, mas interessa mobi
pelas monarquias (ou repúblicas) em que se inseriam. Contudo,
lizar experiências históricas de outros continentes e estudar os
o direito de intervenção nas políticas locais era controlado por
processos de negociação do mundo pós-colonial atual.
oligarquias, enquanto o processo de construção do Estado nos séculos xvi a xvm criou formas hierárquicas de poder, cujo ritmo de centralização se intensificou nos séculos xix e xx.
Estrangeiro era aquele que chegava de fora, mesmo que fosse do mesmo país. Em várias cidades, as corporações de arte
sãos, como em Londres, ou as associações de mercadores, como em Sevilha, funcionavam como veículos de naturalização de estrangeiros após um período de residência, de trabalho e, fre
quentemente, de casamento local. Governantes e autoridades
locais intervinham nos processos de naturalização para atrair
estrangeiros com capacidade financeira ou competência técnica, como aconteceu com os judeus de origem ibérica no Império Otomano, em certas cidades de Itália e do Norte da Europa ao
longo dos séculos xvi e xvii, ou com os huguenotes (protestan
tes expulsos de França por Luís XIV em 1685) em Inglaterra, nos Países Baixos e na Prússia.
A noção de cidadão era assim predominantemente local,
tendo o seu estatuto sido alargado aos habitantes, masculinos
de direitos civis da população de origem africana nos estados do Sul que só foi levantada na década de 1960.
e livres, de um país, com as revoluções Americana, Francesa e
Entretanto, o sistema político europeu do século xix funcio
Haitiana, seguidas pelas Revoluções Liberais do século xix. Este
nava com um critério censitário, que definia um nível mínimo de
alargamento acompanhou a transição da noção de vassalo e súb
rendimento como marca de independência que permitia votar
dito, ou seja, dependente do rei, para a noção de cidadão livre e
e> num nível de rendimentos mais elevado, ser eleito. Criados e
independente. Podemos contrastar a noção de sujeição ou subor
assalariados com rendimentos baixos eram considerados depen
dinação com a noção de cidadania, que pressupõe a autonomia
dentes. As mulheres estavam excluídas das eleições políticas e,
do indivíduo. O que está em jogo aqui são conceitos diferentes
em geral, das universidades, eram dependentes dos maridos ou
de soberania; no primeiro caso, focalizada no rei ou no gover
dos pais e votadas a um estatuto de menoridade. A integração das
nante, que se assume como vértice do domínio sobre territórios
mulheres no sistema de voto só ocorreu a partir das primeiras
e populações; no segundo, focalizada na soberania do povo que
décadas do século xx; o voto universal nalguns países europeus
elege os seus representantes. Este segundo conceito pressupõe
só foi implementado nas décadas de 1960 e 1970. A diminuição
uma translação da perceção de poder da majestade monopoli
da idade de voto tem vindo a ser decidida nas últimas décadas.
zadora para o conjunto da sociedade anteriormente despojada.
Este resumo esquemático sugere uma progressão que não
Os escravos estavam excluídos da noção de cidadania,
é linear: os direitos de cidadania foram violados diversas vezes,
embora a sua presença na Europa Ocidental tenha declinado ao
verificando-se retrocessos. No século xix, na Europa Central e
longo do século xvm com o alargamento do direito de solo livre.
Oriental, o desenvolvimento de nacionalidades trouxe consigo
Na Europa Oriental, pelo contrário, a servidão do campesinato
a exclusão de minorias. A partir da década de 1890, no Império
manteve-se e foi alargada no século xvii com a refeudalização de
Otomano, a minoria arménia foi visada por um processo de
algumas regiões. O processo de abolição da servidão foi longo e
exclusão com sucessivos massacres que levaram ao genocídio
complicado, dados os interesses instalados: na Rússia só ocorreu
de 1915-1916. Na década de 1930 e durante a Segunda Guerra
em 1861. Na América Latina, agregada ao mundo ocidental pela
Mundial, a minoria judaica foi despojada da nacionalidade alemã
colonização ibérica, pelo declínio demográfico da população
pelo regime nazi, com perda de empregos e propriedades, tendo
indígena e pelo processo de independência dirigido pelas elites
sido finalmente detida e enviada para o extermínio nos cam
de origem europeia, a abolição da escravatura só foi concluída
pos de concentração. O genocídio dos judeus foi alargado à
no final da década de 1880, enquanto o período de reconstrução
maior parte da Europa pelos nazis: seis milhões de assassinados.
pós-guerra civil nos Estados Unidos levou a uma nova exclusão
Nesse período e no pós-guerra na Europa Central e Oriental,
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desencadeado por africanos livres e escravi
sucederam-se detenções de milhões de pessoas sujeitas ao tra-
q abolicionismo,
balho forçado, deportações de minorias étnicas e massacres
zados em Angola e no Brasil no século xvn, foi desenvolvido
maciços de populações a coberto da guerra. A guerra civil na
em Inglaterra devido ao debate interno protestante, à perda
Jugoslávia na década de 1990 levou a práticas de limpeza étnica.
de boa parte dos territórios norte-americanos e às sucessivas
A recente invasão russa da Ucrânia alveja bairros residenciais,
revoltas de escravos nas colónias, mas a concentração de escra
hospitais, teatros e escolas, enquanto o recrutamento compul
vos emancipados na metrópole fruto do direito de solo livre
sivo de jovens nos territórios controlados reproduz a prática dos
desempenhou um papel significativo. A implementação do abo
exércitos coloniais; a destruição sistemática de infra-estrutu-
licionismo no mundo colonial levou o seu tempo pelas razões
ras visa inviabilizar o país e obliterar uma nação; a violação de
óbvias de divisão internacional do trabalho e investimento.
mulheres, o assassinato seletivo de homens adultos, a deporta
A fraqueza e a quase total ausência de movimentos abolicio
ção de crianças e a pilhagem de propriedade não deixaram de
nistas em Portugal, em Espanha e nos Países Baixos mostram
ser prática corrente na guerra do século xxi.
bem os interesses instalados, sendo o caso francês misto, com
A história da colonização europeia levanta problemas cru
a resistência dos interesses ligados ao mundo colonial a par de
ciais de direitos humanos, dada a escala de uma expansão que pas
para 80 °/o em 1930, com o correspondente aumento da popula
certo movimento abolicionista. A revolução do Haiti mostra bem como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (como foi então designada),
ção subjugada (ver Eterna e Belich). Os processos de conquista
produzida no âmbito da Revolução Francesa e dirigida aos
são sempre violentos, mas a sua perpetuação envolve o governo
homens brancos, foi imediatamente apropriada e utilizada por
direto ou indireto controlado por estrangeiros, a expropriação,
escravos para a sua emancipação. Este processo de apropriação
o acesso privilegiado a mercados, processos de cooptação ou
define a geometria variável dos direitos humanos, concebidos
exclusão de elites locais, a segregação de minorias, as migrações
no contexto da luta contra os direitos feudais, os privilégios de
forçadas. As populações indígenas ficam sempre numa situação
sangue e a sujeição ao rei, em favor da dignidade do cidadão,
subordinada, recorrendo necessariamente a protestos.
consagrada como o princípio político de uma sociedade eman
sou do controlo de 5 % da superfície terrestre do planeta em 1400
As autobiografias de escravos emancipados, como Olaudah
cipada. A Declaração francesa ignorava os escravos e a existên
Equiano, na segunda metade do século xvm, convergiram
cia de colónias baseadas no trabalho escravo. Não é por acaso
com a novela sentimental analisada por Lynn Hunt. A nova
que, no mesmo período, temos em França Olympe de Gouges a
sensibilidade à opressão de empregados subordinados e de
promover os direitos da mulher e a pagar com a vida por pro
mulheres dependentes alargou-se ao sofrimento dos escravos.
testar contra a tirania dos jacobinos, enquanto em Inglaterra
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Mary Wollstonecraft desenvolvia a crítica à subordinação das
mercadores no fundo da hierarquia social de prestígio, promo
mulheres, contribuindo para a fundação do movimento femi
via um forte poder negociai dos produtores. Mas há diferenças
nista. São dois momentos capitais de apropriação e desenvol
a salientar. Enquanto na China as exações fiscais podiam atingir
vimento dos direitos humanos.
limites intoleráveis, no Japão essas exações eram mais limitadas
A Europa tem sido vista como o continente onde se afirma
e a distância de rendimento face às elites, menos aguda. Existiam
ram os direitos humanos, dada a tradição enraizada do direito
direitos informais das comunidades, motivando protestos e revol
romano e a prática de formalização jurídica de normatividades
tas quando eram infringidos. O uso privado da terra era reconhe
emergentes. Contudo, tem-se questionado esta visão. A compara
cido e protegido, embora a hierarquia de direitos feudais, cruzada
ção com a China é enriquecedora. Roy Bin Wong considera que a
com a centralização política do xogum, pudesse alterar a compo
cidadania, baseada em direitos e no pensamento jurídico contra
sição das diferentes estruturas envolvidas em caso de conflito.
tual, não existia na China pré-moderna. A população seria defi
No Império Otomano, a propriedade da terra pertencia
nida como o conjunto dos súbditos do imperador, sem liberdade
teoricamente ao sultão, que reconhecia o direito de uso dos
ou autonomia. Hilde de Werdt contradiz tal visão. Considera
agricultores individuais e das comunidades rurais envolvidas.
que o processo de privatização da terra e de centralização do
O caso do Império Mogol era semelhante, embora com uma
poder na Idade Média implicou a criação de elites locais que
maior complexidade de formas de propriedade. O impacto do
funcionaram como mediadores das decisões políticas. O modelo
colonialismo britânico no Sul da Ásia favoreceu a transição para
de governo hierárquico previa o recurso contra os abusos dos
regimes de propriedade privada. No caso otomano, a atribuição
governantes regionais e locais, enquanto a legislação procurava
de terras de forma temporária a governadores amovíveis em
proteger os menores, as mulheres, os servos, os pobres e os via
caso de conflito impedia a acumulação de riqueza e a transmis
jantes. A eclosão regular de protestos, muitos deles violentos,
são por herança de geração em geração. A criação de fundações
funcionava como um regulador social, em paralelo com petições
com intuitos caritativos era uma maneira de contornar estas
e ações em tribunal. O exercício do poder como permanente
limitações, pois os descendentes podiam ser indicados como
negociação, baseada em direitos informais, permite argumen
gestores do património investido. A transição para o período
tar em favor da existência de cidadania na prática quotidiana.
moderno contribuiu para a implantação do modelo de proprie
O caso japonês é igualmente interessante devido à enraizada
dade privada e de integração na economia de mercado.
ética de respeito pelas comunidades rurais como fonte primor
Em África, a propriedade da terra era predominantemente
dial de abastecimento da sociedade. Este respeito pelo mundo
comunitária, embora existissem formas de exploração privada
rural, de certa forma partilhado com a China, que colocava os
de minérios e da produção de arroz, óleo de palma ou nozes de
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cola. As potências coloniais criaram em diversas áreas do conti
etn geração,com uma larga percentagem de excluídos, os dalit,
nente regimes de plantação de café, de chá e de cacau, enquanto
representando mais de 15 % da população, foi repudiada pela
as populações indígenas eram deslocadas dos seus habitats tra
constituição aprovada em 1949, embora continue a existir discri
dicionais. A forma máxima de violência foi atingida na Namíbia
minação informal. O direito a casar e a fundar uma família sem
com o genocídio dos herero e dos nama em 1904-1908 para
limitações de etnia, de nacionalidade ou de religião não está sufi
impor o acesso dos colonos alemães às terras férteis, enquanto
cientemente enraizado, tal como noutros países da Ásia. O mesmo
a deslocação forçada de indígenas atingiu dimensões maciças
se pode dizér do respeito pela livre vontade e pelo consentimento
na África do Sul, com a criação de bantustões (ou reservas para
dos futuros cônjuges; o casamento arranjado pelas famílias é
as populações indígenas), cujas consequências se fazem sentir
uma prática corrente. Contudo, o sistema de voto universal está
até aos dias de hoje.
implementado na índia e envolve todas as castas.
O triunfo da propriedade privada a longo prazo significa a
Problemas semelhantes, ainda que a uma escala diferente
integração no sistema capitalista global. Do ponto de vista indi
e envolvendo percentagens mais reduzidas da população, ocor
vidual, há sempre vencedores e vencidos nestes processos, com
rem na Coreia ou no Japão com os burakumin, descendentes de
a afirmação do direito de acesso por uma minoria, enquanto os
excluídos por lidarem com lixo, animais e produção de couro
direitos das populações que previamente viviam em estrutu
— discriminação repudiada desde o século xix, mas ainda pre
ras comunitárias não foram acautelados, tendo migrado para
sente de maneira informal. O quadro legal, em todos estes casos,
outras zonas, sobretudo para as cidades. O que está consagrado na
tende a reconhecer os direitos civis de todos os cidadãos, embora
Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas é o direito
a prática quotidiana varie. Mais complicada é a aplicação do
à propriedade própria ou em associação, que deveria proteger as
direito de mudar de religião, que é ainda considerado um aná
formas cooperativas ou comunitárias de propriedade. A fraqueza
tema nalguns países de religião muçulmana.
dos sistemas jurídicos em diversos países com práticas abusivas
As minorias continuam expostas a situações de discrimi
de poder (o que ocorre em todos os continentes) acaba por cons
nação e abuso em diversos países. Lembro a expropriação dos
tituir um peso na atividade económica. A existência de Estados
palestinianos ausentes, por via da guerra civil, pelo Estado de
que privilegiam a segurança (externa e interna) implica a rea-
Israel em 1950, seguida da política de colonatos até aos nossos
locação de recursos e impede a estabilização de um quadro nor
dias; a conflitualidade interétnica na Nigéria, que conduziu à
mativo contrário à corrupção e aos interesses da elite no poder.
Guerra do Biafra no final da década de 1960; a campanha de
A existência de um sistema de castas na índia baseado nas
longa duração contra os uigures, de origem turca, na região
noções de pureza e impureza ancestral, transmitidas de geração
de Xinjiang, China. No Iraque, o Estado Islâmico escravizou e
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vendeu no mercado pessoas da etnia iazidi, enquanto outras
q problema hoje em dia é mais de criação e manutenção de
minorias não árabes e não sunitas foram igualmente persegui.,
erviços públicos, sobretudo de proximidade desses serviços ao
das. Tratou-se do caso recente mais extraordinário de desu-
jdadão, quando os serviços médicos tendem a ser concentrados
manização e perseguição de minorias étnicas e religiosas.
naS grandes cidades, deixando os habitantes das periferias com
Infelizmente, estas práticas ainda persistem ou estão a amea
custos acrescidos pelas deslocações regulares. A distorção social
çar outros países, onde as minorias são suspeitas de falta de
da medicina de mercado, baseada nos seguros, é evidente nos
lealdade para com os respetivos regimes ditatoriais.
Estados Unidos, com as populações mais desfavorecidas, sobre
O direito à liberdade de opinião, de expressão e de associa
tudo os afro-americanos, com um acesso limitado a serviços
ção está longe de ser implementado em muitos países. Verifica-se
uiédicos até à década de 2010. Os serviços públicos dependem
uma regressão generalizada nos últimos 20 anos. Emergiram
do nível de impostos em cada país; em vários casos estamos a
novas ditaduras, enquanto as democracias ditas iliberais perpe
falar de menos de 10 % da população que paga impostos, o que
tuam elites políticas e económicas; cedo ou tarde, essas demo
naturalmente limita a criação de infraestruturas.
cracias transformam-se em ditaduras. A qualidade de vida sob
Os direitos dos indivíduos face ao Estado manifestam-
ditadura é sempre inferior, pois predomina a segurança interna,
_se concretamente na área da justiça. O processo penal ainda
baseada na lealdade face ao regime, o que reduz radicalmente
hoje é um fator de contenção. A rejeição da tortura, trata
a capacidade de iniciativa a todos os níveis. O investimento
mento desumano ou degradante, da prisão arbitrária ou do
em atividades económicas não atinge o potencial oferecido
exílio por motivos políticos não é respeitada em muitos países.
por democracias com um quadro legal sólido que proteja os
Ditaduras formais ou informais recusam quaisquer garantias
diversos tipos de propriedade de particulares, cooperativas
aos cidadãos neste domínio. O enraizamento de sistemas jurí
e associações, bem como uma competição transparente nos
dicos desempenha um papel decisivo, como se viu na América
mercados. A capacidade de desenvolver uma atitude crítica é
Latina, onde a especificidade do Brasil limitou, apesar de tudo,
fundamental não só em política, para que a sociedade civil se
o impacto da ditadura, ao contrário do que aconteceu no Chile
sinta representada, mas também na atividade económica e no
e na Argentina (ver Anthony Pereira). A pena de morte, cuja
desenvolvimento tecnológico, onde a inovação depende de novas
lógica foi fortemente criticada nos séculos xvm e xix, tem sido
formas de pensar e questionar modelos recebidos.
abolida de maneira formal e na prática pela vasta maioria dos
A aplicação do direito à igualdade de acesso a serviços
países, embora uma minoria mantenha o princípio. A pena de
públicos, a escolher representantes e a fazer parte do governo
morte ainda hoje é praticada nos Estados Unidos em processos
do seu país reflete a maior ou menor integração de minorias.
civis; a China regista anualmente mais execuções do que todos
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os outros países do mundo; o Irão e a Arábia Saudita registam
igualmente um número elevado de execuções. Portugal aboliu a pena de morte em 1867, no mesmo ano da publicação do Código Civil; a prática tinha sido abandonada em 1846, com sucessivas
Colonização
comutações de sentenças pelos monarcas.
Neste domínio da proteção do indivíduo face ao Estado, estão em causa o direito à presunção de inocência até à condena
0 problema da colonização relaciona-se com os direitos huma
ção pública por um tribunal independente e imparcial, bem como
nos em três dimensões: política, económica e social. A expan
a proteção contra ataques arbitrários à privacidade, à honra, à
são territorial é geralmente feita à custa da subjugação ou da
reputação, à família e à correspondência. A verdade é que se
exclusão de povos que viviam nas áreas atingidas. Esses povos
tem agravado a intrusão dos meios de comunicação e de pessoas
perdem o direito tradicional de autogoverno. Os que sobrevi
movidas por inimizade; o problema em muitos países é a capaci
vem ao processo de conquista passam a ocupar uma posição
dade do Estado de proteger os direitos dos cidadãos face a uma
subordinada, devendo negociar a sua presença política e social
crescente conflitualidade. O direito à privacidade e à imagem
em função do modo de governo praticado pelos conquista
de cada indivíduo é uma das questões mais importantes numa
dores, direto ou indireto. Os vencidos perdem total ou par
sociedade exposta às redes sociais, onde a linguagem do ódio se
cialmente o tradicional direito de propriedade, individual ou
difúnde. Voltaremos a este problema, que motiva um dos maiores
coletivo, embora existam formas de compromisso mediante
esforços de legislação e de implementação das últimas décadas
0 pagamento de um tributo ou a transferência de contribui
relativamente aos direitos humanos.
ções preexistentes. Em geral, os vencedores apropriam-se das melhores terras e/ou impõem novas condições laborais e fis
cais. Do ponto de vista social, uma conquista pode conduzir à escravização da população indígena, parcial ou total. Existem
paralelos entre pilhagem de conquista e pilhagem de guerra, com a redução dos vencidos à servidão. A definição de novas
hierarquias sociais resulta de um processo complexo, no qual
os direitos dos vencidos são, na melhor das hipóteses, precá
rios, embora haja a possibilidade de cooptação pelas novas elites em certos casos.
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Há diversas formas de colonização, com a criação de comu
divergentes. A expansão chinesa processou-se ao longo de mais de
nidades autónomas face à cidade original, como no caso grego,
mil anos até ser estabilizada pela dinastia Han (206 a.C.-22o d.C.),
ou a inclusão de novos territórios no império, como nos casos do
embora as dinastias seguintes tenham registado constantes perdas
Império Persa Aqueménida ou do Império Romano. Este caso tal
e ganhos de territórios em resultado de guerras com os poderes
vez seja o mais inclusivo, pois o estatuto de cidadão romano foi
circundantes, sobretudo os mongóis, mas também com os poderes
estendido a todas as pessoas livres do império, exceto escravos
da Ásia Central, como os dzungar. O pico da expansão territorial
libertos e povos subjugados por guerra, em 212 d.C. Como veremos,
ocorreu com a dinastia Qing, de origem manchu (1644-1911),
a centralidade dos grandes impérios da Antiguidade, com proble
mas são justamente as conquistas do final do século xvn e do
mas próprios de controlo de extensos territórios, foi confrontada
século xvm na Ásia Central que ainda hoje suscitam problemas
mais tarde pelos impérios marítimos de origem europeia, que
de integração e reivindicação de autodeterminação. A conti
resultaram em formas de colonização híbridas face aos modelos
nuidade territorial e a precoce centralização política chinesa
atrás expostos. As condições locais foram determinantes, pois
deram origem a uma cultura de integração de origem han, que
a complexidade das sociedades asiáticas conduziu, no caso por
absorveu os conquistadores, como a dinastia Yuan (mongol,
tuguês e holandês, a formas de governo direto em portos usados
1271-1368) ou a já referida dinastia Qing. A vasta maioria da
para o comércio internacional, embora se verificassem formas
população define-se como han, ainda que se reconheçam ofi
de governo indireto, delegado em elites locais subordinadas, nas
cialmente 55 minorias étnicas.
regiões circundantes. No período contemporâneo, o governo indi reto foi desenvolvido pelo Império Britânico na Ásia e em África.
zação grega resultou da transferência de população, com a cria
As condições do Novo Mundo favoreceram o governo direto por
ção de comunidades envolvidas no comércio marítimo e com o
parte de castelhanos e portugueses nas áreas colonizadas, se bem
controlo de portos em boa parte do Mediterrâneo oriental e do
que o governo indígena local, no México, fosse reconhecido no qua
mar Negro, embora a expansão de Alexandre (336-323 a.C.),
dro da «república de índios». Em África, os portugueses estabe
com a conquista dos Balcãs, do Império Aqueménida e para
leceram enclaves na costa com prolongamento para certas zonas
além deste, até ao Indo, com a absorção do Médio Oriente e
do interior em Angola e em Moçambique, mas só a modernização
com a ocupação do Egito, tenha surgido como um contraponto
do armamento e a difusão do quinino no final do século xix per
temporário. A integração de costumes locais esteve na origem
mitiram a expansão europeia no continente.
de dissensões entre os conquistadores, tendo o império sofrido
No período da Antiguidade Clássica na Europa, a coloni
Interessa agora abordar diferentes processos concretos
uma fragmentação imediata com a morte de Alexandre. O caso
de colonização com resultados simultaneamente paralelos e
da dinastia ptolemaica no Egito (305 a.C.-3o d.C.) é interessante
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pela dualidade de línguas, costumes e normatividades gregas e
Neste processo é importante considerar a criação do
egípcias adotadas. A expansão romana caracterizou-se por um
Império Russo a partir do século xvi, que se desenvolveu com
extenso domínio territorial que envolveu a Europa Ocidental,
a dependência da Ucrânia na segunda metade de Seiscentos,
a região do Mediterrâneo e parte do Médio Oriente, com uma
as sucessivas partições da Polónia (com a Prússia e o Império
atribuição seletiva de cidadania a populações dominadas e uma
Austro-Húngaro) e a conquista do Canato tártaro e dos domí
expansão do direito romano como quadro normativo de domínio.
nios do Império Otomano do noroeste ao leste do mar Negro ao
A fragmentação medieval fez a Europa virar-se para dentro, com
longo do século xvm. A expansão para a Sibéria ocorreu desde
formas de colonização interna, nomeadamente na Escandinávia,
o final do século xvi, tendo atingido o oceano Pacífico ainda em
na Irlanda e no Leste, enquanto formas de servidão com liga
meados do século xvn. A escassa população local neste vasto
ção à terra sucederam à escravatura como propriedade pessoal.
território favoreceu a emigração russa e o estabelecimento do
As cruzadas definiram um primeiro momento falhado de expan
controlo político. A expansão do Império Russo colidiu com a
são europeia, reativada com a expansão marítima de Portugal e
expansão do Império Chinês durante a dinastia Qing, que con
de Castela nos séculos xv e xvi, seguida pela expansão de França,
quistou Taiwan, dominou a Mongólia e transformou o Tibete
de Inglaterra e dos Países Baixos. A colonização interna euro
num protetorado em 1720, antes da conquista de Xinjiang na
peia prolongou-se até aos nossos dias: a Irlanda só se tornou
década de 1750, com o extenso massacre dos dzungar, que con
independente em 1922, enquanto a independência da Ucrânia,
trolavam a região. A expansão japonesa é mais tardia, tendo
declarada em 1991 no quadro da desagregação da União Soviética,
ocorrido entre 1905 e 1945 com a ocupação da Coreia, de parte
é confrontada pelo projeto russo de recolonização com a ocupa
da China e do Sudeste Asiático.
ção da Crimeia em 2014 e a tentativa de invasão geral de 2022.
A diferença entre impérios territoriais contínuos e des
O Novo Mundo acabou por ser inteiramente coloni
contínuos ou distantes do centro, como era o caso das potên
zado pelos europeus, num processo longo que se estendeu do
cias marítimas europeias, com domínios no Novo Mundo, na
século xv a Oitocentos, enquanto o controlo de boa parte da Ásia
Ásia e na África, significou diferentes possibilidades de migra
só ocorreu a partir da segunda metade do século xvm e o con
ções forçadas de populações locais substituídas por populações
trolo de África só se tornou efetivo a partir de final do século xix.
transferidas dos centros colonizadores. A exceção ocorreu com
Este processo de globalização foi reforçado pelo imperialismo
a América, onde a população local perdeu cerca de 90 % dos
financeiro das décadas de 1870 a 1930, período durante o qual
seus efetivos com a guerra de ocupação e, sobretudo, a ausência
a hegemonia da Europa no mundo se afirmou com o controlo
de imunidade às doenças europeias, sendo em parte substituída
da maior parte da superfície terrestre.
pela migração europeia e pelo tráfico de africanos escravizados.
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A viagem para a Ásia implicava tempos prolongados e unia
internacional mas que eram compreendidos e praticados. A vio
mortalidade significativa, enquanto a colonização extensiva
lência da conquista ou da subordinação prolongou-se no tempo
de África era impossibilitada, até ao final do século xix, pela
corn a imposição de novas hierarquias. Exacerbaram-se divisões
falta de imunidade europeia às doenças locais, como a malária.
sociais preexistentes, particularmente entre escravos e livres,
O domínio europeu assumiu diversas formas e afirmou o seu
ou entre bárbaros e civilizados, enquanto os preconceitos étni
controlo de territórios de forma extensiva ao longo da primeira
cos e a discriminação racial foram alargados à escala do globo,
metade do século xx.
afetando a posição de mulheres e de minorias. A crescente mer-
Estes diferentes processos de colonização trouxeram con
cantilização do ser humano, enquanto objeto do sistema de
sigo enormes transferências de população, o desaparecimento de
plantação criado no Atlântico, é um dos resultados da coloni
inúmeras etnias, a morte de milhões de pessoas como resultado
zação. As consequências da expansão europeia são visíveis nas
direto e indireto, a transformação de configurações políticas,
teorias das raças e na divisão internacional do trabalho, que
económicas e sociais locais. As consequências dos processos de
deixaram traços até aos dias de hoje, com um enorme impacto
colonização situam-se de forma mais imediata no direito à vida,
nos direitos civis. São essas divisões sociais que devemos abor
no direito à propriedade e no direito ao autogoverno. Contudo,
dar em seguida.
é necessário esclarecer que prevaleceu a pluralidade de siste mas normativos, tendo o direito de origem europeia assumido um papel importante apenas nos séculos xix e xx. Os direitos locais, reproduzidos de forma oral ou escrita, mantiveram a sua
função normativa, inscrevendo-se na pluralidade de normatividades que caracteriza a fase colonial, como tem defendido
Thomas Duve. Os traços do direito europeu estão visíveis nas
constituições de numerosos países, enquanto o direito civil de origem inglesa, francesa ou alemã estrutura parte dos sistemas de justiça em África e na Ásia. No caso dos antigos territórios coloniais portugueses, a região de Goa, por exemplo, ainda tem
como referência o Código Civil português de 1867. Em resumo, o colonialismo teve um enorme impacto
em direitos básicos que não estavam formalizados ao nível
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Escravidão A separação entre pessoas escravas e pessoas livres talvez seja uma das divisões sociais mais antigas da humanidade. A sepa
ração não dizia respeito apenas aos «outros»; poderia acontecer no seio da mesma comunidade em diversas partes do mundo. O poema épico Mahabharata, transmitido oralmente ao longo
de séculos e fixado por volta do século iv a.C. no Sul da Ásia,
tem o seu momento decisivo num jogo de dados, no qual o rei Yudhistira perde o seu reino, as suas propriedades, a sua liber
dade, a liberdade dos irmãos e a da mulher que partilhavam, Draupadi, para os primos Kaurava. O jogo é uma ofensa con tra o Dharma (ou conjunto de deveres morais e religiosos).
A escravização de toda a família Pandava representa a queda mais profunda, a perda de todo o poder, de toda a riqueza e
independência. E o persistente comportamento traiçoeiro e
ganancioso dos Kaurava que acaba por reverter a situação: ten tam imediatamente expor a nudez da rainha Draupadi, que protesta contra a tentativa de violação e obtém a libertação dos
Pandava, obrigados a passar 13 anos nas margens da sociedade, sem que ninguém os reconheça. A sequência desta extraordinária história não nos interessa
aqui. Apenas o horror pela possível destituição social dos mais poderosos, que reflete a permanente instabilidade das condições
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de vida, a ameaça de cair no abismo de servir, receber ordens
sistema: «Os poderosos estão cheios de ganância; aqueles que
esperar, obedecer, viver em função dos caprichos do senhor.
nã0 têm protetores são desprezados. Posses trazem preocu
A dependência é assimilada à ausência de vida própria, exposta
pações; da pobreza nasce tristeza. Aquele que pede a ajuda de
a todo o tipo de abusos. O desespero da rainha Draupadi não
Outro acaba sendo seu escravo; aquele que alimenta os outros
dizia respeito apenas a ela e aos seus maridos: a escravidão seria
fica rodeado de afeição.» Três séculos mais tarde, o chinês Wang
transmitida aos filhos, que passariam de membros da família
Chiu-ssu conclui com um lamento a balada da venda de uma
real a servos, condição transmitida de geração em geração.
criança por uma aldeã para pagar impostos e dívidas acumula
Curiosamente, foi uma mulher a encontrar uma forma de sal
das: «Os ricos tornam-se cada vez mais cruéis enquanto os seus
var a situação, enquanto os homens se encontravam paralisados
campos aumentam, / e compram servos e escravos com a sua
pela falta que tinha sido cometida.
fortuna. / Um dia maldizem-nos com raiva, / chicoteando-os
Existiram diversas causas de escravidão no mundo até ao
insensivelmente até que o sangue corra! / Não sabem que toda
século xx, a começar pela servidão temporária por dívidas, que
a carne e todos os ossos vêm do mesmo útero, / que o filho de
muitas vezes resultava em servidão permanente, passando pela
outro e o meu próprio filho são de uma mesma forma?»
escravidão por jogo, como no caso apontado, ou pela escravidão
A humildade entre os poderosos, o respeito pelos fracos e
como resultado de guerra, com o cativeiro das tropas vencidas e,
humildes, o socorro à pobreza, a distribuição da terra e a con
por vezes, das populações dos territórios conquistados. A estas
três causas principais de escravidão devemos juntar o nascimento
tenção nos impostos foram valores predicados entre os sécu los v e ui a.C. por Kong Qiu (Confúcio) e Meng Ke (Mêncio),
em cativeiro. Havia igualmente diversas formas de dependência,
que procuravam evitar conflito social e desigualdade extrema.
da servidão ligada à terra, como no caso europeu depois da implo-
Estes preceitos podem ser igualmente encontrados nas Leis de
são do Império Romano, que se prolongou no Leste até ao século
Manu e no Arthashastra, códigos da tradição hindu escritos nos
xix (a servidão só foi abolida na Rússia em 1861), à escravatura
séculos iv-iii a.C. Contudo, a condição de servidão não é posta
de trabalho intensivo em engenhos de açúcar no Brasil e nas
em causa, apenas a sua gestão regulada, sendo a emancipação
Caraíbas, com o mais elevado índice de mortalidade. O regime de
permitida no caso de a escrava dar à luz um filho do senhor,
trabalho escravo variava profundamente entre o serviço domés
enquanto as famílias arianas tinham condições mais fáceis de
tico, predominantemente feminino no mundo islâmico, e o
resgatar a liberdade. O problema da servidão arrastou-se até às
regime de trabalho masculino em plantações do mundo atlântico.
primeiras décadas do século xx em partes da Ásia.
O texto «Um relato da minha cabana», escrito pelo japonês
Em África, a escravização resultava das mesmas causas,
Kamo no Chõmei em 1212, permite-nos vislumbrar a lógica do
às quais se pode somar o rapto para venda, dada a estrutura
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enraizada do tráfico, primeiro para o Mediterrâneo e o Médio
inças, mas, na vasta maioria das populações nómadas e seminó-
Oriente, depois para o Novo Mundo. Só o tráfico para a América,
madas, não existia o estatuto de dependência regulado por lei
no qual os portugueses estiveram fortemente envolvidos, impli
que caracterizava boa parte das relações de servidão nos outros
cou mais de 12,5 milhões de pessoas; a estimativa global de extra
continentes. A introdução da escravatura como propriedade
ção entre os séculos iv e xix, com todos os destinos incluídos,
pessoal resultou da expansão europeia, tendo acompanhado o
atinge os 20 milhões. O tráfico de escravos implicou a estagnação
estabelecimento do sistema de plantações. Em meados do século
da população em África entre os séculos xvi e xix. Resultaram
xvi verificou-se um debate entre Juan Ginés de Sepúlveda e
deste processo uma pobreza persistente e sistemas informais
gartolomé de las Casas: o primeiro defendia que os índios eram
de linhagens dependentes, enquanto as áreas do litoral afetadas
escravos naturais, sem capacidade de autogoverno, enquanto
pelo tráfico transatlântico se viram sujeitas à instabilidade polí
0 segundo denunciava as atrocidades da expansão castelhana
tica. Joseph Inikori indicou a ausência de Estados fortes como
e defendia a liberdade intrínseca, a dignidade e a capacidade
um dos factores de vulnerabilidade das populações afetadas.
humana dos índios, posição partilhada por Francisco de Vitória
Na Europa, a filosofia grega refletiu sobre a condição do
e pela Escola de Salamanca.
escravo, equiparada a uma propriedade animada, mas com
O declínio demográfico radical dos indígenas americanos
uma capacidade de raciocínio e afeição, bem como sobre a sua
devido à guerra e à difusão de doenças europeias para as quais
exclusão da cidadania, da tomada de decisões e do uso de voz
não tinham imunidade foi em parte compensado pela intro
na comunidade. No século vi, essa reflexão foi integrada pelo
dução maciça de escravos de origem africana. O resultado foi
Corpus Iuris Civilis de Justiniano, que definiu o quadro jurídico
a criação de sociedades baseadas na escravatura, cujas conse
das condições de escravatura, colocada no âmbito da lei das
quências sociais, políticas e culturais se podem observar até à
nações, e não do direito natural, já que a posse de outra pessoa
atualidade. Não houve uma diferença fundamental de trata
era considerada contranatura. Também aqui surgem restri
mento de escravos nas sociedades coloniais inglesa ou holan
ções ao mau tratamento dos escravos, enquanto os escravos
desa e nas sociedades coloniais ibéricas, embora nestas últimas
emancipados não chegam a ter o mesmo estatuto dos homens
a política de emancipação fosse mais aberta, sobretudo no caso
livres. A servidão da gleba substituiu a escravatura no período
do Brasil, onde os escravos constituíam a maioria da população
medieval, tendo-se perpetuado no Leste, enquanto no Ocidente
nos séculos xvn e xviii. Foi justamente nas colónias portuguesas
se afirmou o princípio do solo livre ao longo do século xviii.
do Atlântico Sul, no século xvii, que surgiu o primeiro movi
Na América verificava-se o trabalho coletivo forçado e o
mento abolicionista, liderado por Lourenço da Silva Mendonça,
tributo imposto a populações conquistadas pelos nahua e pelos
membro da família real do Ndongo, Angola, o qual suscitou um
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profundo debate jurídico em Roma estudado por José Lingna
década do século xix, mas a abolição da escravatura pelas potên
Nafafé. Na segunda metade de Setecentos, o debate entre confis
cias coloniais europeias e pelos novos países independentes da
sões protestantes, particularmente os Quakers, sobre a rejeição
América foi muito mais lenta por causa dos interesses envol
da escravatura como prática contrária aos princípios religio
vidos, decorrendo da década de 1820 à de 1870, enquanto no
sos, a perda da maior parte das colónias norte-americanas por
Brasil e em Cuba se prolongou até ao final da década de 1880.
parte dos britânicos, a reflexão económica sobre as vantagens
A extensão da abolição ao resto do mundo foi consagrada pela
do trabalho livre e a resistência crescente dos escravos, expressa
Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas
por numerosas fugas e revoltas, provocaram o nascimento do
em 1948, citada no início deste ensaio, mas ainda existem for
movimento abolicionista em Inglaterra. A ideia de capital moral
mas de escravatura e de dependência em diversos continentes,
face à perda colonial foi sublinhada por Christopher Leslie
nomeadamente ligadas ao tráfico ilegal em redes de prostituição
Brown, bem como o propósito de impor a abolição da escrava
e de exploração de menores.
tura como forma de obter um campo nivelado de exploração
O abolicionismo colocou a noção de dignidade humana no
colonial. Contudo, não podemos ignorar os princípios religiosos
centro do debate político. É verdade que a supremacia branca
que guiaram o abolicionismo britânico desde a primeira hora.
não foi questionada no Ocidente até à Segunda Guerra Mundial,
A importante participação ativa de escravos emancipados deve
enquanto o trabalho forçado ou dependente substituiu em parte
ser igualmente equacionada. Por fim, a Revolução Haitiana, que
a escravatura nos impérios coloniais. Na Europa, o regime nazi
se apropriou do princípio de igualdade previamente reclamado
estabeleceu um regime de trabalho forçado em larga escala,
pelas revoluções Americana e Francesa para os homens brancos
envolvendo 12 milhões de pessoas detidas durante o período
e o alargou aos escravos, deu um enorme impulso ao movimento.
da Segunda Guerra Mundial, regime equivalente aos campos de
A abolição da escravatura pode ser considerada o primeiro
concentração soviéticos destinados à suposta oposição interna.
grande desafio de construção de direitos humanos ao nível do
Entretanto, a noção de dignidade humana permitiu dar voz
globo. O movimento nasceu no quadro atlântico, devido, por
ao descontentamento de camadas sociais oprimidas em todo
um lado, à natureza extrema das condições de trabalho escravo
o mundo, tendo alimentado poderosas revoltas na China e no
sob o regime das plantações no Novo Mundo e, por outro, às
Sudeste Asiático, bem como os movimentos anticoloniais que
condições políticas particulares das potências colonias euro
se sucederam na Ásia e em África ao longo dos séculos xix e xx.
peias, sobretudo a britânica. O movimento levou dezenas de
anos até obter a abolição do tráfico de escravos na Dinamarca, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América na primeira
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Barbárie A palavra «bárbaro» teve a sua origem no grego barbaros (que
designava os povos não helénicos), tomado do sânscrito barbara (usado no plural e referente a povos estrangeiros). Trata-se de uma palavra onomatopaica, que imita os sons balbuciados por
alguém incapaz de falar a língua de referência. O seu significado cultural era claro: designava o estrangeiro rude, sem maneiras,
estranho à sociedade urbana. Os gregos usavam a palavra para
denegrir as sociedades com as quais estavam em conflito, sobre tudo o Primeiro Império Persa (c. 550-330 a.C.). O despotismo político, a submissão dos povos, a ausência de participação polí
tica ou de noção de cidadania, a aceitação da tirania, considerada
como um comportamento de escravo eram atributos dos persas, segundo a visão veiculada pelos gregos. Seguia-se a acusação de violência, crueldade, luxo, sensualidade, ociosidade e cobardia. Estes tópicos encontraram uma enorme ressonância histó
rica entre os povos da Europa, tendo os romanos usado alguns
destes atributos contra os gregos, enquanto a noção de despo tismo oriental fez o seu caminho no pensamento ocidental até aos nossos dias. Aristóteles justificou a conquista predatória
pela suposta ausência de cidadania entre os bárbaros, consi derados escravos naturais. Esta ideia, como vimos, teve resso
nância em Juan Ginés de Sepúlveda, implicando uma escala de
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superioridade e inferioridade que tem sido usada historicamente
para justificar a ocupação e a submissão.
btidos em determinadas conjunturas históricas, sendo ainda
objeto de movimentos sociais para os garantir e alargar.
A persistência do tópico do despotismo oriental encon
A palavra «bárbaro» foi usada pelos gregos não só contra
tra-se em numerosos tratados políticos e relatos de viagem,
os persas mas também contra os citas, os egípcios e os fenícios,
embora por vezes se tenha a sensação de que o autor estava a
para refletir sobre a própria identidade. A divisão entre gregos
fazer uma crítica velada a regimes políticos na Europa, parti
e bárbaros significava a asserção de formas próprias de regime
cularmente ao regime de Luís XIV, como é o caso provável de
político, enquanto as noções de cidadania e democracia se refe
François Bernier na sua descrição do Império Mogol. Nas artes
riam a membros adultos, masculinos e livres da própria comu
visuais, o tema do despotismo oriental encontra uma enorme
nidade, excluindo-se estrangeiros e escravos. Esta divisão era
representação, sobretudo na pintura. Em meados do século
visível nos tratados políticos e filosóficos, nos poemas, nas cróni
xvm, Giambattista Tiepolo representa um escravo a colocar
cas e peças de teatro, embora diversos autores, como Heródoto,
algemas nos seus próprios pulsos, na secção da Ásia do seu
Esquilo, Tucídides e Eurípides, tenham dissolvido estereótipos
enorme fresco dos quatro continentes, no teto da escadaria
pelo uso da ironia, apagando diferenças entre personagens gre
da entrada da Residenz de Wiirzburg.
gas e bárbaras. É esta capacidade de autoironia e de autocrítica
A ideia de autoescravidão foi utilizada de forma inteli
que acaba por definir uma das características fundamentais da
gente por Etienne de la Boétie no século xvi para denunciar a
cultura ocidental, mesmo que os resultados do ponto de vista
sujeição a tiranos como servidão voluntária, uma ideia desen
prático, da alteração de comportamentos, sejam limitados.
volvida na época contemporânea por Tolstói, Gandhi e Martin
Os preconceitos em relação a supostos bárbaros manti
Luther King nas suas campanhas de desobediência civil contra
veram-se ao longo do tempo, projetados contra estrangeiros
a opressão, respetivamente, do campesinato russo, dos povos colonizados no Sul da Ásia e dos afro-americanos nos Estados
na oekumene romana, dirigidos contra gentios e pagãos pelo
Unidos. A ideia de base é que a tirania é sustentada por um
conhecimento era considerada uma manifestação de inferio
consentimento indevido. A desobediência civil não violenta,
ridade ou de ignorância. Nesta tradição, atestada e discutida
no contexto da índia e dos Estados Unidos, teve um enorme
criticamente por Montaigne a propósito do caso extremo do
impacto, expondo os duplos critérios da sociedade dominante e
canibalismo, que ele observou na Europa durante as guerras
tornando inviável a perpetuação da exclusão de populações dos
de religião, o bárbaro não tinha apenas defeitos: podia ser um
direitos de cidadania. Estas campanhas são excelentes exem
guerreiro corajoso, qualidade supostamente em risco pelo refi
plos da maneira como os direitos humanos foram reclamados e
namento da Europa. Contudo, apesar destes matizes, «bárbaro»
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mundo cristão. A falta de partilha da mesma religião e do mesmo
é uma palavra claramente relacionada com o etnocentrismo,
janeiro). Deixou uma extraordinária relação dos costumes dos
pois pressupõe a superioridade da própria cultura, um senti
indígenas, marcada por empatia pelas relações humanas obser
mento partilhado pela civilização chinesa.
vadas e pela perceção do significado ritual do canibalismo. Léry
A noção de selvagem é um caso extremo na hierarquia dos
levou ainda mais longe a sua reflexão antropológica ao estabe
seres humanos e resulta dos preconceitos de populações seden
lecer a equivalência entre práticas europeias e não europeias,
tárias contra os nómadas, considerados alheios à civilização
estabelecendo a ligação (provocatória) entre comunhão católica
por não possuírem escrita, formas regulares de agricultura ou
e canibalismo. Montaigne, como já sugerimos, seguiu a mesma
experiência de construção urbana, sendo equiparados a bestas
linha de raciocínio ao ridicularizar a noção de selvagem apli
e canibais. A palavra já existia, mas recebeu um conteúdo alar
cada a não europeus, quando o século xvi tinha sido marcado
gado na hierarquia de seres humanos estabelecida pelo missio
por guerras de religião atrozes que tinham incluído conhecidos
nário jesuíta José de Acosta no final da década de 1580 como
casos de canibalismo. Expôs o duplo critério dos europeus e per
resultado da sua experiência no Peru e no México. Tornou-se um
guntou quem eram, ao fim e ao cabo, os selvagens ou canibais.
estereótipo usado pelos europeus nas suas viagens de explora
Nos Analetos atribuídos a Confúcio está registada uma
ção para definir povos tribais que viviam na natureza, ou seja,
conversa segundo a qual o mestre pretendia habitar entre as
que não se distinguiam da natureza, um tópico característico
nove tribos selvagens do Leste. Alguém perguntou: «Eles não
da maneira de pensar ocidental definida pela separação entre
são civilizados, como vai resolver esse problema?» E o mestre
cultura e natureza desde o século xvii.
respondeu: «Se um cavalheiro habitar entre eles, que falta de
O termo «selvagem» surge diversas vezes na relação da via
civilização podem eles mostrar?» A possibilidade de melhoria
gem do Beagle publicada por Charles Darwin em 1839.0 cientista
partilhada por todos os seres humanos estava no centro deste
ficou horrorizado com a partilha comunitária de todos os bens
raciocínio. Exatamente o oposto do horror da cafrealização
que observou na Terra do Fogo, o que, na sua opinião, conduzia
partilhado pela civilização árabe e pela civilização ocidental na
à destruição de todos os haveres. A ausência de propriedade
expansão pelo continente africano. A assimilação de populações
privada, na sua perspetiva, era um obstáculo ao progresso, defi
exteriores, incluindo os invasores mongóis e manchus, define
nido pela acumulação de riqueza, na esteira de Thomas Malthus.
a civilização chinesa, embora o caso da Ásia Central, particu
Contudo, a noção de selvagem já tinha sido questionada
larmente a província de Xinjiang, conquistada no século xviii,
em meados do século xvi por Jean de Léry, futuro pastor pro
esteja longe da integração, dada a resistência cultural da popu
testante que participou na fundação da efémera colónia fran
lação local e a campanha violenta de assimilação e de alteração
cesa na baía de Guanabara (local onde se desenvolveu o Rio de
da composição étnica.
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No Japão, um território bastante menos extenso, a vasta
maioria da população reclama a descendência Yamato, embora exista uma divisão tradicional respeitante à população Ainu, nativa da ilha de Hokkaido, no norte, e das ilhas Curilas.
A visão de populações tribais como «primitivas» ainda exis
Racialização
tia no século xx em diversos continentes: nos Estados Unidos,
os nativos americanos foram considerados nações estrangei
A transformação do etnocentrismo em racismo constitui um dos
ras até 1871, quando foram definidos como nações domésticas
maiores flagelos da humanidade. Enquanto o etnocentrismo vê
dependentes sob custódia do governo, tendo apenas recebido
os «outros» com medo ou desprezo mas integra indivíduos exte
cidadania em 1924; na América do Sul, a pressão sobre popu
riores à comunidade, o racismo combina preconceitos relativos
lações nativas não foi resolvida, notando-se um conflito cres
à descendência étnica com uma ação discriminatória sistemá
cente contra as reservas de índios definidas ao longo do século
tica. A Península Ibérica fornece um exemplo histórico impor
xx devido à exploração da Amazónia.
tante de discriminação contra judeus e muçulmanos forçados
A classificação de bárbaro e selvagem, muitas vezes sobre
à conversão por meios violentos nos séculos xiv e xv, violando
posta, foi utilizada historicamente para definir hierarquias e
a tradição universalista da Igreja cristã. Estas minorias herda
justificar a exclusão de estrangeiros e tribos de direitos, muitas
ram os preconceitos contra os antepassados, sendo designados
vezes de acesso ou utilização das próprias terras, objeto de expro
como conversos, cristãos novos e mouriscos. Os chamados cris
priação contra direitos anteriormente reconhecidos, como nos
tãos velhos publicaram estatutos de limpeza de sangue contra
casos de reservas de índios. Hoje, como no século xvi, as palavras
estas minorias, que se viram excluídas da administração régia,
«bárbaro» ou «selvagem» são devolvidas contra as elites que vio
dos concelhos municipais, dos colégios, das ordens religiosas
lam os tratados que assinaram e o reconhecimento de territórios
e militares, das confrarias e corporações.
com direitos indígenas. A gentileza dos povos da floresta, por
A noção de sangue e genealogia, que definira o nasci
exemplo, é contraposta à rudeza dos garimpeiros e exploradores
mento privilegiado na Idade Média europeia, foi racializada
que usurpam os seus territórios e destroem o meio ambiente de
entre os séculos xiv e xvi com a noção de sangue manchado,
forma, essa sim, selvagem. As maiores devastações dos séculos
atribuída a cristãos novos e mouriscos, em seguida a escravos
xix e xx foram perpetradas na Europa e no Extremo Oriente,
africanos, finalmente a habitantes de outros continentes orga
enquanto as guerras do século xxi continuam a violar a carta das
nizados numa hierarquia de raças. Os preconceitos contra afri
Nações Unidas que proíbe a invasão de países independentes.
canos foram projetados em povos do Novo Mundo e da Ásia,
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designados como «pretos da terra». Tratava-se de os inferiorizar
Camper deixou um legado nefasto: a tentativa de medir a
e justificar a expansão europeia. A variedade de seres humanos
diferença das raças humanas através da avaliação (incorreta)
passou a ser racionalizada, na perspetiva europeia, de acordo
do crânio conduziu a desastrosas aproximações dos africanos
com uma hierarquia de raças.
aos macacos, tendo sido utilizada nos Estados Unidos para
A página de título do atlas de Abraham Ortelius, publicado
justificar a perpetuação da escravatura. A transferência do
em 1570, usa figuras alegóricas femininas para personificar os
método de mensuração do crânio para os testes de inteligência
quatro continentes, que tipificavam diferentes raças. A Europa
como forma de avaliar a diferença de raças foi ensaiada igual
era representada como poder regulado, trabalho, justiça e artes
mente nos Estados Unidos por Herrnstein e Murray em 1994,
liberais; a suposta sensualidade e ligeireza da Ásia era visuali
tendo Stephen Jay Gould exposto a falta de critério científico
zada através de roupas transparentes; a rudeza da África era
nos métodos utilizados.
veiculada pelo sol e pela roupa diminuta; a selvajaria do Novo
Entretanto, a rigidez da noção de raças humanas imu
Mundo era sublinhada por uma figura nua com um cacete e uma
táveis desde a Criação tinha feito o seu caminho na Europa
cabeça decepada, prova de canibalismo. A difusão desta matriz
com Cuvier, apesar do desafio da noção de adaptação ao meio
de classificação das raças humanas foi garantida por mais de
ambiente e de transformação veiculada por Lamarck. James
500 imagens (pintura, escultura, gravura) até ao século xix.
Prichard e Alexander von Humboldt rejeitaram a ideia de raças
Nos séculos xvn e xvm a divisão de raças por continentes foi
imutáveis e consideraram impossível definir fronteiras entre
matizada, enquanto os supostos atributos culturais das raças foram
raças. Mais radical foi Charles Darwin, que promoveu a ideia
desenvolvidos por Cari Linnaeus em 1735, com os estereótipos do
de seleção natural, rompendo com a ideia de Criação única e
africano despreocupado e brincalhão, regulado pelo capricho; o
imutável das raças. Chamou a atenção para os milhões de anos
asiático ganancioso e autoritário, regulado pela opinião; o índio
necessários à adaptação, à sobrevivência e ao extermínio maciço
americano regulado pelo costume; o europeu inventivo e perspi
de espécies. Finalmente, transferiu os resultados da sua pesquisa
caz, regulado pela lei. Linnaeus acrescentou nesta classificação o
científica para os seres humanos, considerados em permanente
tipo imaginário medieval de homem selvagem, entre o homem e o
evolução, tal como outras espécies, em função da adaptação
macaco. Buffon, Kant, Camper e Blumenbach complicaram esta
ao meio ambiente. Contudo, a ideia de sobrevivência dos mais
visão simplista, acrescentando variedades de seres humanos no
aptos, ou mais adaptáveis, teve um enorme impacto nas ciências
Sudeste Asiático e na Oceânia. Todos eles apoiaram o movimento
sociais emergentes, e foi interpretada por Benjamin Kidd, num
abolicionista, Blumenbach valorizou a inteligência dos africa
livro sobre evolução social publicado em 1894, como o declínio
nos, mas nenhum duvidou da superioridade do homem branco.
inevitável das raças menos competitivas.
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Neste contexto, é surpreendente como as ideias de Cuvier moldaram o racialismo científico de meados do século xix
de exclusão de minorias, assumindo uma superioridade simbó lica que facilita a sua mobilização.
contra a corrente darwinista. E um caso exemplar da forma
A importância do fenómeno da racialização como instru
como a ciência se divide e responde de forma divergente a
mento de exclusão de minorias competitivas tem evidentes
problemas políticos e sociais. Samuel Morton, Robert Knox,
equivalências históricas: da perseguição de cristãos novos e
Arthur Gobineau, Josiah Nott e Louis Agassiz promoveram
mouriscos na Península Ibérica ao genocídio de arménios pelo
uma visão imutável das raças, oposta aos benefícios da mis
regime otomano durante a Primeira Guerra Mundial, da exclu
tura e melhoria de todos os seres humanos. Foi esta corrente
são dos afro-americanos dos direitos civis nos Estados Unidos ao
que influenciou Houston Chamberlain e, mais tarde, Hitler.
apartheid na África da Sul, do genocídio dos herero e dos nama
A noção de declínio das supostas raças superiores com uma
na Namíbia no princípio do século xx ao genocídio de judeus
origem ariana imaginada, resultante de miscigenação com as
pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um
supostas raças inferiores, conduziu a uma amálgama explosiva
processo radical de negação de direitos a minorias (ou mesmo
entre racismo e nacionalismo.
maiorias, como aconteceu na África do Sul).
A racialização de minorias foi sempre utilizada com fina
O extermínio de seis milhões de judeus pelos nazis provocou
lidades políticas de justificação de hierarquias sociais, de mar-
um enorme movimento de repulsa humanitária que convergiu
ginalização de grupos competitivos e de monopolização de
com a recusa da mobilização nacionalista para invadir outros
recursos económicos, mas no caso da Alemanha nazi este pro
países e da consequente anulação dos respetivos direitos de auto
cesso foi levado a extremos, com a extirpação da cidadania,
governo e de propriedade. O direito à integridade de países reco
do emprego e da propriedade da minoria judaica, cujo extermí
nhecidos pelo direito internacional passou a fazer parte da Carta
nio (ou genocídio) foi implementado durante a Segunda Guerra
das Nações Unidas, correspondendo ao direito à integridade das
Mundial. A lógica do conflito de raças foi então contraposta à
pessoas. Reconheceu-se que qualquer guerra conduz a numero
lógica da luta de classes, suprimida e absorvida pela primeira.
sas mortes civis, definindo-se qualquer invasão como ilegítima e
Em várias partes do mundo esta lógica do conflito de raças,
criminosa. Estes princípios estão hoje de novo em causa.
com os seus efeitos devastadores, está de regresso. Trata-se de
Se o problema da fusão entre racismo e nacionalismo
agregar uma suposta unidade social dominante de cariz étnico
deixou um rasto de devastação de enormes proporções,
à custa da marginalização, da perseguição e, em certas circuns
o problema do racismo interno em diversas sociedades está
tâncias, do extermínio de minorias racializadas. Os pobres da
longe de resolvido, infringindo diariamente direitos civis. E
etnia ou da nação dominante sentem-se promovidos nesta luta
sabido que os afro-americanos continuam a encher as prisões
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norte-americanas de forma desproporcionada, a obter níveis
No Japão existe igualmente uma casta de impuros,
de educação inferiores à média e a ter o pior acesso ao sistema
os burakumin, designados como cidadãos de comunidades espe
de saúde. As oportunidades de vida são claramente desfavo
ciais, herdeiros dos eta, aqueles que matavam animais, curtiam
ráveis e o acesso aos direitos civis, como resultado da campa
peles, removiam corpos e lidavam com o lixo, e dos hinin, ou seja,
nha cívica da década de 1960, tem tido uma tradução lenta na
pedintes, prostitutas, artistas ambulantes, fugitivos da justiça.
qualidade de vida. Estes indicadores têm o seu paralelo noutras
Embora as designações de eta e hinin tenham sido abolidas em
sociedades marcadas por um passado de escravatura, nomea
1870, com o reconhecimento destes grupos como Yamato, e os
damente o Brasil, onde existe uma retórica de miscigenação,
burakumin se tenham tornado elegíveis para o parlamento,
modelada por Gilberto Freyre, mas na prática a pele mais
ainda existe discriminação contra este grupo, identificado, em
escura está relacionada com a pobreza e com um difícil acesso
parte, por código postal. Ao contrário da índia, não se trata de
a oportunidades sociais. O lançamento de ações afirmativas,
uma sociedade de castas, ainda que existam informalmente
sobretudo no acesso à universidade, na esteira de experiências
estes excluídos, cuja expressão demográfica é bastante limitada.
norte-americanas, está já a dar alguns resultados, mas ainda é
No Tibete e na Coreia há igualmente grupos de excluídos com
cedo para avaliar o impacto na saída da espiral de pobreza por
características semelhantes.
parte dos grupos mais desfavorecidos. O racismo interno na índia, definido pela sociedade de castas com o eixo puro/impuro a reger uma hierarquia com
plexa, tornou-se mais rígido com a codificação colonial inglesa. Os investigadores indianos assinalam a mobilidade ascendente
e descendente das castas, a diversidade regional e as formas de escapar aos estatutos sociais atribuídos. A segregação dos considerados intocáveis, designados como dalit, foi tornada ile
gal com a constituição de 1949, mas a discriminação informal
persiste. Babasaheb Ambedkar, um dos arquitetos da consti tuição, ele próprio dalit, acabou por se converter ao budismo
para escapar à lógica de um sistema que, na sua opinião, deveria
ser abolido. As oportunidades económicas e sociais continuam
a ser, em boa medida, filtradas pelo sistema.
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Género Há outras divisões sociais de longa duração com incidência no acesso a direitos formais e informais. A exclusão de menores é
uma dessas divisões, embora a definição da idade de passagem ao estatuto de adulto, no caso europeu, tenha descido dos tradi
cionais 25 anos para os 18 e mesmo para os 16 em certos casos. O estatuto jurídico de menores é tutelado em diversas partes do mundo. A população mais idosa gozava de um enorme respeito
e precedência na Ásia Oriental, enquanto no mundo europeu 0 ideal de eterna juventude tem tido um impacto no escrutínio
de formas de demência que podem levar à exclusão do con trolo da propriedade e da decisão sobre o destino da herança.
Igualmente estrutural é a divisão entre homens e mulheres no
acesso a certos direitos, enquanto a sexualidade alternativa
pode ainda hoje levar à exclusão dos direitos sociais em diver sas sociedades. Integraremos os desenvolvimentos recentes dos
direitos LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros, Queer e mais), que reclamam igualdade de estatuto jurídico
e acesso aos mesmos direitos, nomeadamente de casamento e
de adoção. Vamos concentrar-nos na divisão homem/mulher, pois a subordinação da mulher foi imposta na vasta maioria das culturas, assim como a normalização do comportamento sexual binário.
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Na China, os cinco preceitos de Confúcio dedicados às
Havia preceitos semelhantes nas codificações hindus.
mulheres traduzem-se nas cinco virtudes de amor filial, lealdade,
As Leis de Manu estipulavam que uma mulher nunca devia ser
fidelidade marital, obediência e sinceridade. Era defendida uma
independente. Na infância, a criança devia estar sujeita ao pai,
hierarquia supostamente natural de submissão das crianças
enquanto jovem ao marido, enquanto viúva aos filhos. O aban
aos pais, das mulheres aos maridos, das viúvas aos seus filhos,
dono do pai, do marido ou dos filhos pela mulher tornaria a famí
dos jovens aos irmãos mais velhos. No seio da família, a relação
lia desprezível. O infanticídio feminino tradicional, sobretudo no
mais importante era entre pai e filho; as mulheres contavam
Norte da índia, tem paralelo na China, dado o peso do dote pago
para a reprodução e a aliança matrimonial. Estes preceitos éti
pelos pais da noiva, situação aliviada no período contemporâneo.
cos procuravam regular o domínio masculino, sendo elogiado
A política do filho único na China veio renovar o desequilíbrio
o governo moderado e benevolente da casa, em contraste com
demográfico, com um excesso de homens. A tradição de castas
casos de abuso público e doméstico.
na índia modelou uma sociedade com menos mobilidade social
A manutenção de mulheres solteiras era garantida por uma
do que na China. A constituição indiana introduziu os direitos
participação limitada na herança, enquanto a regra da sucessão
das mulheres consagrados por outras constituições, rejeitou as
patrilinear foi reforçada no início da dinastia Ming. A viúva casta
castas e condenou o casamento mediado pela família, mas este
teve então o seu estatuto reconhecido, particularmente no que diz
persiste, bem como os preconceitos de castas.
respeito à gestão da herança em caso de ausência de filhos, mas
Apesar destes constrangimentos, discute-se hoje o papel
deveria escolher o sobrinho mais próximo como herdeiro. O pro
das deusas no panteão hindu para aliviar a pressão sobre as
blema do acesso da mulher à propriedade era complicado pelo
mulheres, enquanto se verifica uma tradição de rutura com
vasto número de concubinas e dependentes, embora estas esti
as normas, como foi o célebre caso da poetisa e compositora
vessem formalmente excluídas da herança. A prática da deforma
Mirabai (1498-1557), que se recusou a fazer sati (morrer
ção dos pés, que dificultava o ato de andar, é agora interpretada (cf. Dorothy Ko) como reveladora do estatuto frágil das mulhe
queimada na fogueira com o marido falecido) e optou por uma vida na estrada, misturando-se com o povo e tornando-se uma
social. A contestação destas tradições favoráveis aos homens no
heroína da tradição igualitária bakhti. A tradição de mulheres rainhas e governantes é igualmente importante no Sul da Ásia,
período contemporâneo foi facilitada pela revolução republi
de Ahilyabai Holkar (1725-1795) a Indira Gandhi (1917-1984).
cana de 1911 e em seguida pela revolução comunista concluída
O trabalho na agricultura, na construção e na indústria têxtil era
em 1949. Contudo, é ainda limitada a presença das mulheres na
importante, mas hoje verifica-se um acesso diversificado ao mer
esfera pública e em lugares de direção de empresas privadas.
cado laborai. Finalmente, a tradição patriarcal era partilhada
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res numa sociedade volátil com um elevado grau de mobilidade
por minorias religiosas alheias à tradição de castas, como os
chefias femininas na costa ocidental de África, de Casamansa à
muçulmanos, os quais garantiam por lei o acesso da mulher
Serra Leoa, mas também nos Camarões. As mulheres produziam
a um terço da herança, se bem que se verificassem diferenças
para o mercado, particularmente cestos, cerâmica, roupas de
regionais na idade para o casamento e na taxa de fertilidade.
algodão, óleo de palma e nozes de cola, o que equivalia a um certo
O Sudeste Asiático era uma das regiões do mundo mais
grau de autonomia. A rainha Njinga (1583-1663), no Ndongo e
favoráveis às mulheres no período pré-moderno, embora a ser
Matamba, atual Angola, estudada por Linda Heywood, foi um
vidão fosse difusa. A riqueza era definida por controlo do traba
caso extremo de resistência e inversão de papéis masculinos e
lho, não tanto pela posse da terra. As mulheres tradicionalmente
femininos. A relativa autonomia das mulheres da África Ocidental
plantavam e colhiam arroz, cultivavam vegetais, dedicavam-se
facilitou a sua posição como mediadoras e parceiras de homens
à tecelagem e produziam cerâmica. O casamento não implicava
europeus. A elevada mortalidade dos europeus na região refor
a submissão ao marido, a herança era bilateral e as mulheres
çou a posição feminina como gestoras de ativos importantes de
podiam iniciar um divórcio tão frequentemente como os homens.
famílias mistas, situação estudada por Philip Havik e Mariana
A ausência de primogenitura era responsável pela reduzida acu
P. Cândido. O declínio desta elite foi acelerado pelo colonia
mulação de capital. As mulheres controlavam o dinheiro da casa
lismo tardio e pela transição pós-colonial, embora as mulheres,
e tinham uma boa reputação no comércio, enquanto os homens
em geral, tenham beneficiado de um maior acesso a profissões.
desenvolviam relações de poder e estatuto. As mulheres funcio
O impacto do cristianismo na Europa foi provavelmente
navam como mediadoras de comunidades estrangeiras e prati
mais importante do que o impacto do budismo na Ásia do Leste e
cavam casamentos temporários com divórcio fácil. Há também
do Sudeste, dada a exclusão do concubinato, a difusão da mono
casos de mulheres guerreiras e rainhas influentes. Também aqui
gamia e a promoção do celibato dos padres. O modelo patriarcal
as transformações contemporâneas foram significativas.
afirmou-se neste contexto mais estrito com o controlo do espaço
A multiplicidade de sistemas de linhagem e de família em
público, das corporações e das associações de mercadores por
África impede uma visão de conjunto. Na África Ocidental, pre
homens, assim como com a regra da primogenitura masculina no
dominavam os sistemas familiares matrilíneos, mas isso não
seio da aristocracia e das elites urbanas. Existia, contudo, algum
significava poder feminino. Entre os yoruba, as rainhas mães e
espaço para a participação de viúvas, enquanto as mulheres em
as idosas eram responsáveis pela transmissão de textos histó
geral tinham uma presença no mercado como vendedeiras, na
ricos e literários, enquanto no Daomé as mulheres mantinham
atividade agrícola e na indústria têxtil. A partilha da herança
a memória coletiva, tradição partilhada pelas mulheres erudi
por mulheres existia no Sul da Europa e em França em diver
tas ndenye na região da atual Costa do Marfim. Verificavam-se
sas modalidades. Portugal conheceu desde a Idade Média um
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acesso equitativo à herança, com compensação para mulheres ou
A grande transformação contemporânea resulta do novo
homens que decidissem entrar na vida eclesiástica ou monacal.
estatuto da mulher em diversas partes do mundo, ainda em
Como em todos os outros casos, a diferença de estatuto social
busca da realização do princípio «salário igual para trabalho
assumia um papel crucial na condição feminina. Na Rússia,
igual», consagrado pela Declaração Universal dos Direitos
as mulheres aristocratas viram a sua condição favorecida no
Humanos de 1948, mas com acesso a praticamente todos os
século xvm com o acesso à propriedade e à herança como forma
setores das atividades económicas. O acesso das mulheres às
de proteger os ativos patrimoniais das famílias ricas. Se existe
universidades é outro dos grandes fatores de transformação.
algum comportamento distintivo na Europa face às mulhe
Contudo, verificam-se extraordinárias regressões, como no caso
res, ele tem a ver com a tradição, do final da Idade Média à
do Afeganistão. No Irão, o movimento das mulheres contra a
Revolução Francesa, de um debate em torno das qualidades das
opressão quotidiana focalizou a resistência contra a ditadura,
mulheres, designado em França como «Querelle des Femmes».
tendo sido assassinadas mulheres por não seguirem as nor
De Christine de Pizan a Olympe de Gouges, numerosos autores
mas vestimentárias ou condenadas a prisão por dançarem em
e autoras defenderam a igual capacidade intelectual da mulher
público. As minorias étnicas e as camadas sociais mais baixas
e, em muitos aspetos, a sua superioridade sobre o homem.
têm ainda um peso enorme entre os excluídos do desenvolvi
O direito de voto feminino resultou de um processo tar
mento económico. A função da escola de promover a ascensão
dio, equivalente ao bloqueio de todos os homens considerados
social ficou relativamente estagnada nos últimos 30 anos. O pro
dependentes, sem meios financeiros próprios, que definiu o sis
blema do mérito está enleado nos processos de reprodução social
tema político censitário europeu do século xix. O movimento
das elites. O direito à educação, um dos grandes princípios dos
das sufragistas adquiriu uma nova dinâmica na passagem do
direitos humanos, está ainda por realizar plenamente, enquanto
século xx, tendo a Primeira Guerra Mundial desempenhado um
a ação afirmativa em favor das minorias demora o seu tempo a
papel importante no acesso das mulheres ao voto em diversos
dar frutos. O direito ao controlo sobre o próprio corpo tem sido
países europeus, embora caiba ao grão-ducado da Finlândia a
afirmado, mas encontra-se agora ameaçado nos Estados Unidos.
primazia, em 1907. Foi notado o trabalho feminino de assistên
As minorias de comportamento sexual alternativo, desig
cia aos militares em combate e na retaguarda em substituição
nadas como LGBT, que sempre existiram no passado sob cons
dos recrutas. A luta pelo direito de voto feminino no Brasil já
tante perseguição, conseguiram nos últimos 40 anos afirmar os
tinha sido lançada na década de 1880 e acabou por ser obtido
seus direitos e romper com o estigma a que estavam em geral
em 1931. Em Portugal a espera foi ainda maior: esse direito só
reduzidas. A dignidade humana foi alargada à escolha de género
se concretizou em 1968.
e ao direito de assumir formas não convencionais e não binárias
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de comportamento sexual. O casamento homossexual foi aceite
em diversos países e o acesso à adoção de crianças começa a expandir-se. Ainda há um longo caminho a percorrer na maior parte do mundo, mas a situação é francamente mais aberta,
embora com fortes ameaças de retrocesso.
Descolonização O processo de descolonização, entendido aqui como a aquisi ção de independência política pelas colónias, foi um processo
violento, tal como tinha sido o processo de colonização e de manutenção das colónias por períodos longos pelas entida
des imperiais. Esse processo decorreu em diversas etapas: a) o ciclo de independências do Novo Mundo, da Revolução Americana (1775-1783) às guerras de independência na América espanhola nas décadas de 1810 e 1820, fenómeno
prolongado nos Balcãs pelo declínio do Império Otomano;
b) o ciclo de independências na Europa durante e a seguir à Primeira Guerra Mundial; c) o colapso dos impérios europeus e japonês na sequência da Segunda Guerra Mundial, que se
prolongou da década de 1940 à de 1970; d) a desagregação do
Império Soviético, que ainda tem sequelas. Este processo é aqui considerado à luz dos direitos humanos, já que o direito
à autodeterminação dos povos foi inscrito na carta funda dora das Nações Unidas em 1945. Devemos dar crédito a Paul Gordon Lauren por ter chamado a atenção para a importância
dos direitos humanos no processo de independência das coló
nias. Fabian Klose aprofundou esta dimensão quando estudou
as guerras de independência no Quénia e na Argélia, expondo as atrocidades cometidas pelos poderes coloniais e o discurso
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internacional sobre os direitos humanos que sustentou as lutas
nacionalidade. Esta constituição, assim como a americana, ser
de libertação.
viram de guia para as futuras constituições da Península Ibérica
As independências do Novo Mundo definiram-se pelo pro-
e dos Estados independentes da América Latina, embora com a
tagonismo das elites de origem europeia, que não queriam con
introdução de adaptações e restrições. O protesto de populações
tinuar a ser subjugadas por pactos coloniais que favoreciam as
indígenas, que se sentiram arredadas do processo de indepen
metrópoles, nomeadamente através de impostos e do monopó
dência, fez-se sentir desde o início, sobretudo com a revolução
lio de comércio. Na Declaração da Independência dos Estados
de Hidalgo é Morelos no México na década de 1810. Os direitos
Unidos, aprovada pelo Congresso em 1776, lemos no primeiro
dessas populações levaram tempo a ser reconhecidos e prote
parágrafo que todos os homens são criados iguais, com um
gidos, e são ainda hoje objeto de conflito.
direito inalienável à vida, à liberdade e à procura da felicidade.
O único caso de revolução levada a cabo por escravos e
A influência de Rousseau é manifesta. Contudo, esta declaração
emancipados contra o controlo da elite branca foi a de Saint-
dirigia-se aos homens brancos. A população de escravos conhe
Domingue, ou Haiti, entre 1791-1804. Obtiveram a indepen
ceu uma emancipação limitada nos estados do Norte, tendo
dência, mas com enormes custos económicos e sociais, não só
sido o seu estatuto mantido nos estados do Sul; a emancipação
pela devastação provocada pela revolta e pela guerra contra o
proclamada no final da Guerra Civil (1861-1865) deu lugar a
poder colonial francês, mas também pela indemnização esma
uma reconstrução falhada e à segregação dos afro-americanos
gadora imposta pelo governo francês em 1825, que só terminou
até ao movimento cívico da década de 1960. Os índios, entre
de ser paga em 1947. A indemnização tinha como contrapartida
tanto, eram considerados estrangeiros, sem acesso a direitos
o reconhecimento da independência e o fim do isolamento do
civis, situação só superada de forma parcial em 1924 com o
Haiti, mas teve um enorme impacto na capacidade económica
reconhecimento da cidadania.
e financeira do país, que continua a conhecer instabilidade
A Constituição de Cádis de 1812 foi redigida por liberais
política e uma fraca institucionalização.
protegidos pela armada britânica numa Espanha ocupada pelas
As independências no Novo Mundo, embora dirigidas em
tropas napoleónicas. A constituinte congregava representantes
quase todos os casos pelas elites brancas, registaram um enorme
das colónias. O texto daí resultante foi o mais inclusivo da época:
número de mortos dada a reação dos poderes coloniais, que
a nacionalidade foi reconhecida a todos os espanhóis e indíge
enviaram tropas e procuraram recuperar o domínio político.
nas do Império Espanhol; a população escrava ficou excluída da
Participaram escravos nos dois lados da guerra, procurando
nacionalidade, enquanto a população livre de origem africana
afirmar os seus direitos e obter a emancipação, o que ocorreu em
tinha de postular processos individuais de reconhecimento da
diversas ocasiões. Na América Latina, a abolição da escravatura
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foi alcançada durante as guerras de independência em diversos
nações subjugadas. Resultou deste processo de sucessiva des-
países, mas em Cuba e no Brasil a abolição da escravatura só
colonização a concentração das atenções políticas nos territó
ocorreu no final da década de 1880.
rios da Anatólia e da Trácia por parte dos nacionalistas turcos.
O declínio do Império Otomano ao longo dos séculos xvm
A Primeira Guerra Mundial completou a desagregação do
e xix decorreu não só da expansão russa, mas também dos pro
Império Otomano e precipitou a implosão do Império Austro-
cessos de emancipação dos sérvios, dos gregos, dos búlgaros e
Húngaro. A derrota da Alemanha conduziu à partilha das suas
dos albaneses, que implicaram sucessivas revoltas anuladas
colónias em África e na Ásia por Inglaterra (ou pelos países da
por uma repressão sangrenta. A independência grega foi reco
Commonwealth, como a Austrália e a África do Sul) e por França,
nhecida em 1830, após dez anos de uma guerra que acabou por
não tendo havido uma alteração significativa do estatuto desses
envolver os poderes europeus; os sérvios, que tinham criado uma
territórios. A derrota do Império Austro-Húngaro foi decisiva
situação de independência de facto em 1803-1813, precisaram
para o nascimento de novos países, cujas nacionalidades recla
de sucessivas revoltas e de períodos de autonomia até obterem
mavam a autonomização política há muito tempo: a Hungria,
a independência em 1878. Os búlgaros obtiveram a institucio
a Roménia, a Checoslováquia e a Jugoslávia, união dos eslavos do
nalização da autonomia em 1878, até declararem a independên
Sul, criada em 1918 e recriada em 1946 com a Sérvia, a Croácia,
cia formal em 1908, aproveitando um momento de fraqueza do
a Eslovénia, a Bósnia, a Macedónia e Montenegro. Os territórios
Império Otomano. A independência da Albânia foi declarada
do Tirol do Sul, de Trieste e da ístria foram igualmente perdi
em 1912, no âmbito das Guerras dos Balcãs, mas boa parte do
dos, e a Áustria ficou reduzida às dimensões atuais. A Europa
território reclamado não foi aceite pelas potências europeias;
Ocidental foi igualmente tocada pelo processo de descoloniza-
por pressão da Rússia, o Kosovo foi entregue à Sérvia.
ção, com a independência da Irlanda em 1922, após séculos de
Importa salientar que esta guerra permanente, resultante
luta pela libertação. Os seis condados do Norte, então dominados
da expansão russa e da libertação nacional nos Balcãs, implicou
pelos descendentes dos colonos protestantes, ainda permanecem
vastos movimentos de população: o Império Otomano foi redu
no Reino Unido, mas conheceram um período de guerra civil; 0
zido de três milhões de quilómetros quadrados em 1800 para
estatuto político da região ainda não está resolvido.
1,3 milhões em 1913, tendo recebido entre seis e sete milhões de
O Império Otomano, que já fora reduzido ao longo do
refugiados muçulmanos durante esse período, oriundos sobre
século xix, perdeu todos os territórios a sul e a leste da Anatólia
tudo do mar Negro e do Cáucaso. Entretanto, a repressão oto
durante e após a Primeira Guerra Mundial, e correu o risco de
mana produziu dezenas de milhares de mortos e centenas de
ver a própria Anatólia dividida, não fosse a reação nacionalista
milhares de refugiados nos territórios reclamados pelas diversas
dirigida por Kemal Ataturk em 1919-1922. A dinastia AI Saud,
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que iniciara um processo de conquista e agregação de territórios
a Ásia Central. A política anterior de relativa autonomia para
na Península Arábica nas primeiras décadas do século xx, rom
as repúblicas federadas foi retomada por Krutchov, mas as ten
peu a relação de dependência com o Império Otomano em 1918.
sões políticas não deixaram de se fazer sentir.
A Liga das Nações legitimou o mandato de França no Líbano e
Nesta conjuntura, embora a violência da descolonização
na Síria (desenhados nesse período), que só se tornaram inde
se tenha imposto por via da resistência das potências coloniais,
pendentes depois da Segunda Guerra Mundial, enquanto o Reino
verificou-se uma interessante alternativa. A estratégia de deso
Unido ficou com mandato sobre o Iraque, que se tornou inde
bediência civil não violenta, concretizada pelo não-pagamento
pendente em 1932.
de impostos, pelo incumprimento da lei e pela recusa de qual
O final da Segunda Guerra Mundial, que envolveu tropas
quer serviço ao governo, fora promovida pelo anarquista cristão
recrutadas nas colónias europeias, descontentes com a sua con
Tolstói (1828-1910). A base do raciocínio encontra-se no ensaio
dição subordinada, criou finalmente um ambiente conducente
de Étienne de la Boétie (1530-1563) sobre a servidão voluntá
ao princípio da autodeterminação dos povos. Este princípio
ria, onde o autor considera que todos os regimes despóticos
fora formalmente apoiado por Woodrow Wilson em 1917, mas
necessitam da colaboração das populações dominadas. Se essas
o presidente americano não considerava que os africanos, por
populações recusassem qualquer forma de serviço ou de cumpri
exemplo, estivessem em condições de o exercer. A adoção do
mento da lei, o despotismo acabaria por cair. A aplicação desta
mesmo princípio por Lenine levou a diferentes consequências
estratégia no caso da Rússia revelou-se inadequada, mas a sua
na União Soviética, pois adaptava-se bem à rejeição do pas
transmissão a Gandhi, que se correspondeu com Tolstói, acabou
sado imperial czarista baseado na russificação. A estratégia
por se revelar frutífera. A prática da desobediência não violenta
de reconstituição do império no quadro soviético passou pela
no Sul da Ásia não trouxe resultados imediatos, mas a partici
valorização e pelo apoio das nacionalidades na década de 1920
pação de tropas coloniais na Segunda Guerra Mundial e a onda
e em parte da década seguinte, em troca de lealdade para com
de emancipação dos povos coloniais que se seguiu tornaram a
o centro político. A partir de 1936 a política das nacionalidades
posição britânica insustentável. A utilização da mesma estra
de Estaline tornou-se mais rígida, agravada pelo Pacto Molotov-
tégia da desobediência civil não violenta advogada por Martin
Ribbentrop de 1939, que justificou a invasão russa das repúblicas
Luther King nos Estados Unidos na luta pelos direitos civis da
bálticas, de parte da Polónia e das regiões ocidentais da Ucrânia
população afro-americana acabou igualmente por dar os seus
pertencentes à Polónia e à Roménia em 1939-1940. Durante a
frutos na década de 1960, face ao agravamento da Guerra Fria
guerra, certas etnias passaram a estar sob suspeita; em 1944,
e ao incontornável argumento de os líderes do chamado mundo
os tártaros da Crimeia foram objeto de emigração forçada para
livre oprimirem a sua própria população.
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Esta estratégia tinha dois pressupostos: a firmeza da ação
Mundial. Seria só na década de 1950, particularmente com a
coletiva de desobediência e a sensibilidade de parte da maio
conferência de Bandung, que o Movimento dos Não Alinhados,
ria opressora ou do poder colonial. Tratava-se de envergonhar
dirigido pela índia, pela Indonésia e pela Jugoslávia, se desen
a parte dominante com um comportamento que não podia ser
volveu como terceira via face aos dois blocos (comunista e capi
acusado de violento e que expunha as contradições do sistema
talista) da Guerra Fria. Esse movimento reforçou o direito de
de valores dos próprios opressores. Nos dois casos aqui men
autodeterminação dos povos e criou condições para o seu apoio
cionados, tanto a população norte-americana como o poder
político e financeiro.
britânico tinham saído de uma guerra contra o imperialismo
nazifascista, virando-se em seguida contra a emergência de
A resistência do poder colonial britânico, que aceitara a derrota na Ásia do Sul mas tentara manter posições em África,
regimes comunistas. Os valores de democracia e tolerância da
conduziu a conflitos armados, sobretudo no caso do Quénia,
suposta sociedade livre eram incompatíveis com a perpetuação
onde a chamada Revolta dos Mau-Mau (1952-1956) suscitou
de racismo e colonialismo, ou seja, com a opressão e a gestão
uma feroz repressão. A situação na Indonésia foi igualmente
de sociedades contra a vontade indígena. O próprio conceito
grave do ponto de vista humanitário. À declaração de indepen
de sociedade colonial governada por colonizadores alheios às
dência, em 1945, seguiu-se a guerra de recuperação dos holan
populações locais tornara-se obsoleto.
deses, em 1946-1949, apoiada pelos britânicos. O número de
O direito dos povos à autodeterminação e à emancipação
mortos aumentou exponencialmente, mas a determinação dos
fora imposto pela Revolução Haitiana e difundido em diversos
indonésios acabou por se impor. A posição de França foi igual
contextos da luta dos afro-americanos. Os congressos pan-afri-
mente violenta na resistência ao processo de independência do
canos organizados desde o final do século xix, onde William Du
Vietname. A derrota final dos franceses em 1954 em Dien Bien
Bois e outros ativistas afro-americanos participaram com os
Phu selou a retirada francesa do Vietname, embora tivessem
seus colegas africanos, reiteraram o mesmo princípio, no que
deixado um Estado suportado pelo Ocidente no Sul.
foram acompanhados pelos congressos pan-asiáticos e pan-
A história colonial de França conheceu outro desastre ime
-árabes. Estes congressos criaram um quadro de discussão e de
diatamente a seguir com a Guerra da Argélia, em 1954-1962.
difusão de ideias que favoreceram a criação de partidos antico-
Ali viviam cerca de 1,5 milhões de europeus. A recusa de nego
lonialistas, embora o caso da Ásia fosse mais complexo, dada a
ciação conduziu a uma escalada do conflito contra o movi
desconfiança face ao Japão, cujos projetos imperiais próprios
mento de libertação argelino que assumiu proporções de uma
começaram a projetar-se na Coreia e em seguida na China, para
guerra não declarada com a população civil. Foi nesse conflito
se alargarem ao Sudeste Asiático durante a Segunda Guerra
que os direitos humanos assumiram uma feição decisiva, pois
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os nacionalistas denunciaram todos os atentados franceses
vietnamita. A opinião pública americana rejeitou a Guerra do
contra a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal
Vietname, contribuindo para acabar com o conflito em 1973.
dos Direitos Humanos. As execuções de presos, a detenção de
Dois anos mais tarde, o país seria unificado.
cidadãos sem culpa formada, a tortura infligida aos detidos e
A primeira e última potência colonial europeia, Portugal,
o assassínio arbitrário de homens e mulheres passaram a fazer
vivia sob ditadura, o que tornava inviável o conflito entre valores
parte das denúncias contra as práticas das autoridades coloniais.
democráticos na metrópole e práticas violentas nas colónias que
Não podia deixar de se fazer o paralelo com as práticas
atormentava a opinião pública em Inglaterra, em França, nos
nazis na Segunda Guerra Mundial, ampliado pelos escritos sobre
Países Baixos ou na Bélgica. A censura estava instalada e a crí
a psicopatologia colonial de Frantz Fanon, um psiquiatra origi
tica da política colonial não tinha condições para se manifestar
nário da Martinica que viveu na Argélia como médico e apoiou
em público. O primeiro aviso veio da União Indiana, que deci
a Revolução Argelina. Neste conflito de valores, os ideais huma
diu ocupar as colónias portuguesas de Goa, Damão e Diu, face
nitários e de defesa de direitos foram usados de forma extensiva
à recusa de negociação do regime de Salazar. A ação dos movi
pelos argelinos. Foi o general De Gaule quem pôs um ponto final
mentos de libertação em Angola, na Guiné e em Moçambique
nas atrocidades coloniais, dada a impossibilidade de sustentar
teve como resposta uma guerra colonial prolongada, de 1961 a
um conflito destituído de uma base de valores e com uma lógica
1974, que se saldou em dez mil militares portugueses mortos,
política contrária aos ideais democráticos da república.
em nove mil desertores, em 45 mil guerrilheiros e indígenas
Entretanto, no Vietname, a república democrática criada
mortos, e em mais de meio milhão de refugiados. A guerra con
no Norte procurava a unificação do país, tendo a guerrilha Viet
duziu à Revolução do 25 de Abril de 1974 em Portugal e à inde
Minh estendido a sua ação para o Sul, o que motivou a inter
pendência das colónias.
venção dos Estados Unidos em 1965. Tratou-se do maior con
Estes processos de descolonização permitiram a criação
fronto entre os dois blocos (comunista e capitalista) a seguir à
de mais de cem novos países, que passaram a fazer parte das
Guerra da Coreia. A cobertura jornalística do conflito acabou
Nações Unidas, respondendo ao princípio de autodeterminação
por expor a prática de crimes de guerra por parte dos america
dos povos. Os custos foram pesados, com o sacrifício de muitas
nos, com a utilização de napalm e desfolhantes para arrasar a
vidas indígenas, a migração de populações, a perda de vidas
floresta e prevenir a guerrilha, além das detenções e execuções
das tropas coloniais e o regresso da esmagadora maioria das
arbitrárias. O bombardeamento regular das cidades do Norte
populações colonizadoras às metrópoles. Nalguns casos essas
pelos navios de guerra americanos completava o quadro neo
populações não tinham já qualquer relação familiar no país
colonial de intervenção que não conseguiu subjugar a vontade
de origem, como os europeus de terceira geração na Argélia,
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enquanto noutros, como no caso português, tratava-se em boa
enorme diversidade de populações locais integradas pela cen-
parte da primeira geração, encorajada pelo regime salazarista a
tralidade de Moscovo e o controlo indireto dos países da Europa
emigrar para as colónias quando o processo de descolonização
Oriental que tinham sido ocupados pelas tropas russas no final da
de outros poderes europeus estava na fase final.
Segunda Guerra Mundial. Esse controlo indireto esteve patente
A aceitação da independência das colónias não foi linear.
na repressão das revoltas populares na República Democrática
O imperialismo económico que sucedeu ao imperialismo polí
da Alemanha em 1953, na Hungria em 1956 e na Checoslováquia
tico motivou uma série de intervenções nos novos países inde
em 1968. A tentativa de alargamento do Império Soviético nas
pendentes, como foi o caso do golpe militar no Irão em 1953,
décadas de 1970 e 1980, que levou à intervenção militar no
inspirado pelos serviços secretos norte-americanos e ingleses,
Afeganistão em 1979-1989, provou ser fatal. Os recursos do
destinado a reverter a nacionalização da indústria do petróleo.
regime revelaram-se diminutos para o esforço financeiro e
A mesma lógica ocorreu em 1956 com a ocupação do Canal de
humano imposto. O regime comunista colapsou, o que condu
Suez por ingleses, franceses e israelitas, que procuravam rever
ziu à desintegração do império.
ter a nacionalização da companhia exploradora do canal e afas
Foi fulminante a recuperação da independência dos países
tar o presidente egípcio Nasser. A pressão internacional levou
da Europa de Leste após a Queda do Muro de Berlim em 1989,
desta vez a uma retirada humilhante. A invasão do Afeganistão
começando com as repúblicas bálticas da Lituânia, da Letónia
pelos Estados Unidos em 2001 teve o propósito de afastar do
e da Estónia. Os restantes países libertaram-se rapidamente da
poder os Talibãs, acusados de envolvimento nos ataques a Nova
dependência da União Soviética, registando-se a unificação da
Iorque e Washington. A retirada em 2021 expôs a inutilidade
Alemanha com o desaparecimento da República Democrática
do projeto, com enormes perdas humanas e meios financeiros.
Alemã, enquanto a Polónia, a Checoslováquia, a Hungria,
Em 2003, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, de novo
a Roménia, a Bulgária e a Jugoslávia romperam com o regime
em coligação, sob pretexto da ameaça de armas de destruição
comunista e encetaram a transformação institucional por via
maciça (nunca encontradas) resultou no descrédito de inter
representativa. A Albânia, que passara a ser dependente da
venções humanitárias, ensaiadas anteriormente no Kosovo em
China, aproveitou a situação internacional favorável para rom
1999 e na Líbia em 2011.
per igualmente com o regime comunista. A Jugoslávia (ou a con
A implosão da União Soviética trouxe consigo uma nova
federação dos eslavos do Sul) acabou por implodir, com uma
vaga de descolonização. Neste caso tratava-se de um vasto
pesada guerra civil, marcada por sucessivos massacres de popu
império territorial contínuo, envolvendo a Europa Oriental e
lações que levaram à discutível intervenção militar da NATO.
o Norte da Ásia até ao Pacífico, com o controlo direto de uma
Os países emergentes, a Eslovénia, a Croácia, a Bósnia, a Sérvia,
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Montenegro e Macedónia do Norte, encetaram alterações ins-
A Ucrânia escapou progressivamente ao controlo da
titucionais profundas. Todos estes países aderiram à NATO,
Rússia, dada a proximidade da Europa Ocidental e à prática
com a exceção da Sérvia, tendo obtido igualmente a integração
de eleições num quadro institucional relativamente repre
na União Europeia ou encontrando-se em processo de adesão.
sentativo. A crescente perceção da Rússia como um país hos
A desintegração da União Soviética em 1991 revelou-se
til levou a uma campanha interna favorável à adesão à União
complicada. A Bielorrússia, a Ucrânia, a Geórgia, a Arménia,
Europeia e à NATO. A rejeição de um tratado negociado com a
o Azerbaijão, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão,
União Europeia em 2013 por pressão da Rússia levou à Revolta
o Turquemenistão e o Uzbequistão declararam independên
de Maidan, que provocou novas eleições. A invasão da Crimeia
cia, que foi reconhecida pela Rússia por tratados. Contudo,
pela Rússia em 2014 foi seguida pelo separatismo no Donbass.
a transformação institucional não foi imediata na maioria des
A invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, em vio
tes países. Emergiram conflitos internos, assim como guerras
lação de todos os tratados internacionais assinados pela própria
por territórios em disputa, como aconteceu entre a Arménia e
Rússia, é a última sequela de um processo de descolonização
o Azerbaijão. Ambos os países recorreram à Rússia para dirimir
que não foi aceite pelo atual regime russo. De novo encontra
o conflito, criando uma nova relação de dependência. Noutros
mos o ciclo de guerra imposta a populações civis, com enormes
casos, conflitos internos provocados por revoltas favoráveis
perdas de vidas humanas, crimes de guerra (cidades arrasadas,
à democratização levaram ao apelo para a intervenção direta
assassínio de civis, violação de mulheres, corredores humani
militar russa, como aconteceu na Bielorrússia e no Cazaquistão.
tários atacados, rapto e deportação de dezenas de milhares de
A tentativa russa de criar uma união económica com estes paí
pessoas, torturadas e detidas em campos de concentração) e a
ses não foi completamente bem-sucedida, dada a emergência de
destruição sistemática das infraestruturas do país. As conse
uma opinião pública maioritariamente favorável a uma aproxi
quências climáticas da guerra fazem parte de um longo processo
mação à União Europeia na Bielorrússia e na Ucrânia. A tenta
de contaminação do meio ambiente desde os tempos soviéti
tiva de independência da Chechénia sofreu uma repressão brutal
cos, agora agravado pela ameaça de recurso ao arsenal nuclear.
em 1994-1996 e novamente em 1999-2009, com o assassinato
Completamos esta secção com uma referência à China, um
de sucessivos presidentes eleitos. A situação na Geórgia não
vasto território cujas populações foram integradas ao longo de
chegou ao mesmo ponto de invasão total e prolongada, mas as
milénios, embora um terço do atual território tenha resultado
regiões separatistas da Abecásia e da Ossétia do Sul, apoiadas
da expansão no século xviii. O caso da província de Xinjiang,
pela intervenção militar russa em 2008, expulsaram centenas
conquistada nesse período, ainda está longe de ser resolvido,
de milhares de georgianos num processo de limpeza étnica.
com a colocação de parte da população uigure em campos de
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trabalho e a migração de chineses de outras regiões para alterar
a sua composição étnica. A Mongólia reclamou a independên
cia em 1911, no período da revolta republicana na China, tendo
reafirmado essa independência em 1924, sob proteção da União Soviética, estatuto que mantém até agora. Sorte diferente teve
Migrações internacionais
o Tibete, que igualmente proclamou a independência em 1911
mas acabou por ser anexado em 1950, no seguimento da con
Portugal é um país com uma emigração estrutural desde o
solidação do poder pelo regime comunista na China.
século xvi, estimando-se 1,6 milhões de emigrantes de 1415 a
1822 (data da independência do Brasil), número notável por a população total ter variado de um a três milhões de pessoas, a maior emigração em termos absolutos e relativos do continente
europeu nesse período. A emigração continuou para o Brasil, registando um pico no período de 1880 a 1910, tendo surgido no século xix uma emigração significativa para os Estados Unidos, originária das ilhas atlânticas. A emigração para a Europa, sobre
tudo França e Alemanha, ocorreu na década de 1960 e envolveu mais de um milhão de pessoas. A emigração para as colónias
de África, diminuta ao longo do século xix, só teve significado a partir da década de 1950 e, sobretudo, de 1960, justamente
durante a Guerra Colonial. A emigração não deixou de existir
nos últimos 50 anos, embora o caudal tenha diminuído. Neste
mesmo período verificou-se pela primeira vez o fenómeno da imigração, primeiro dos novos países independentes de África, em seguida do Brasil e de países da Europa de Leste, e mais recentemente do Reino Unido. Com a exceção dos anos de 2011 a 2016, os saldos migratórios são, de forma significativa, a favor da imigração. Registam-se agora mais de 700 mil residentes estran
geiros numa população de 10,3 milhões. O caráter inclusivo
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da legislação é discutido, pois ainda há pessoas de ascendên
1961. Os desequilíbrios económicos herdados do período colonial
cia africana nascidas em Portugal sem acesso à nacionalidade.
foram, nalguns casos, agravados pela apropriação de recursos
Os números globais da Organização Internacional das
por grupos de poder, enquanto ruturas políticas e económicas,
Migrações das Nações Unidas mostram a dimensão do fenó
expressas por guerras civis, levaram a um fluxo de migração
meno: em 2020 verificavam-se 281 milhões de migrantes inter
para as antigas metrópoles. O período pós-colonial é marcado
nacionais (excluindo as migrações internas de cada país), que
pela memória de um passado visto com lentes distintas pelos
representavam 3,6 % da população mundial. A diferença face a
antigos colonizadores e pelos colonizados, pela interiorização
1990 era significativa, pois havia então 153 milhões de migrantes,
da dominação ocidental, que marca a distância social entre eli
que representavam 2,8 % da população mundial, enquanto em
tes políticas e populações locais, e pelos obstáculos à inserção
1970 se registavam 84 milhões de migrantes, 2,3 % da popula
de minorias nas antigas metrópoles, minorias essas resultantes
ção total. As remessas dos emigrantes multiplicaram-se neste
de emigração fomentada por problemas políticos, económicos
período, atingindo agora 702 mil milhões de dólares, sendo
e ambientais nos novos países independentes.
os dois maiores destinatários a índia e a China. A índia foi o
As políticas de imigração dos países recetores não podem
maior país emissor de emigrantes, seguida do México, da Rússia,
deixar de ser relacionadas com o passado colonial e com as
da Síria e da China. Os maiores destinos migratórios foram os
sequelas do período pós-colonial em que vivemos. Tanto o
Estados Unidos, a Alemanha, a Rússia, a Arábia Saudita e o
direito de asilo como a livre circulação de pessoas (limitada à
Reino Unido. A Europa concentrava 87 milhões de migrantes
entrada e à saída dos respetivos países) estão consagrados na
internacionais, a par da Ásia, com 86 milhões.
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O prin
A divisão internacional do trabalho definida no período
cípio de asilo é replicado nas declarações de direitos produzi
colonial tardio — com a produção de matérias-primas concen
das em diversas regiões do mundo, nomeadamente na Carta
trada nas zonas periféricas do sistema capitalista, para onde
dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), que
foi transferida grande parte da produção industrial dos países
remete para a Convenção de Genebra de 28 de julho de 1951
desenvolvidos, dada a mão de obra barata — continua a pesar nas
e o Protocolo de 31 de Janeiro de 1967 da Comissão Europeia.
relações económicas internacionais. A independência das coló
A livre circulação de pessoas, mesmo sob a forma limitada de
nias foi afetada pela batalha política de perpetuação dos inte
1948 (então dirigida à prática de controlo de movimentos em
resses económicos das empresas ocidentais, que fomentaram
regimes ditatoriais), desaparece.
golpes de Estado e o assassinato de dirigentes, como foi o caso
A abertura europeia à imigração, em bom rigor do Sul para
de Patrice Lumumba na República Democrática do Congo em
o Norte do continente, existiu no pós-guerra como consequência
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89
do desenvolvimento económico e da necessidade de mão de obra,
A nova ameaça do nacional-imperialismo russo tem contribuído
tendo surgido a inflexão com a Crise do Petróleo de 1973-1975.
para colocar a extrema-direita numa posição defensiva, dados
O alargamento da União Europeia nas décadas seguintes pri
os laços de solidariedade nacionalista recentemente criados.
vilegiou a livre circulação de pessoas entre os países-mem
As políticas de inserção dos imigrantes têm sido objeto de
bros. Se existe alguma racionalidade nesta escolha, é evidente
debate entre sociólogos, antropólogos, demógrafos e cientistas
a herança de preconceitos na restrição ao fluxo de imigrantes
políticos. As barreiras estabelecidas à entrada continuam a ser
de áreas não cristãs, sobretudo do Norte de África e da Ásia
discutidas, mas dá-se um maior relevo às políticas de integra
Ocidental. Como é normal em fluxos de migração, os obstáculos
ção. A palavra integração, privilegiada nas últimas décadas
são pouco eficazes e há sempre forma de os superar; a população
em vez das antigas noções de assimilação (ou redução a igual,
imigrante em França é, em grande parte, argelina. Na Alemanha,
no que diz respeito a crenças e valores) e de multiculturalismo
a grande crise surgiu com a aceitação de um milhão de refu
(de aceitação de diferentes credos e culturas), usadas na década
giados sírios em 2015, uma atitude corajosa do governo de
de 1980, suscita de imediato alguma rejeição, pela sua conota
Angela Merkel que lhe valeu pesadas críticas e a subida eleito
ção com o passado colonial.
ral do partido de extrema-direita Alternative fiir Deutchsland.
A própria definição de imigração levanta problemas de polí
A manipulação do sentimento xenófobo, supostamente
tica demográfica, pois daí decorre um potencial percurso de
mais virulento contra culturas não cristãs, pelos movimen
naturalização e cidadania, ou seja, de integração plena do ponto
tos de extrema-direita na Europa teve um impacto inegável.
de vista jurídico. O caso britânico, estudado por Adrian Favell,
O regresso da ameaça de regimes fascizantes levou a uma maior
é fascinante. O que lá se define como imigrante corresponde a
retórica dos partidos liberais contra a imigração «desregulada»,
uma pequena fração do enorme contínuo do movimento de pes
embora a capacidade efetiva de a conter seja diminuta, como
soas. Existem 66 milhões de residentes, dos quais 6,2 milhões não
atestam os números de imigrantes nos países mais desenvol
britânicos (dados de 2020), enquanto a população irregular, não
vidos. A ideia de um patamar aceitável de 5 % da população
documentada, é estimada entre 150 mil e um milhão de pessoas.
imigrante acima do qual a xenofobia se faria sentir não tem
Os que pretendem asilo não passam de 35 mil por ano. Apenas
fundamento, variando de país para país. A política de memó
10 °/o da população não é britânica, dos quais mais de metade são
ria do passado nazi na Alemanha tem dado os seus frutos na
europeus. Contudo, verifica-se uma população flutuante muito
contenção da extrema-direita. O problema está na ausência
maior, classificada como visitante — turistas, negociantes, estu
ou na fraqueza de políticas de memória noutros países, como
dantes, trabalhadores especializados com vistos de longa dura
é o caso de Portugal face ao passado ditatorial e colonialista.
ção. Esta população varia entre 35 e 40 milhões, ou seja, mais
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de metade da população nacional. Mas é invisível na política de imigração. Na verdade, a população definida como irregular corresponde a uma percentagem diminuta, mas é sobre ela que recai
toda a polémica. Trata-se de uma operação de classificação qUe torna a migração internacional visível e gerível, pois os números de entradas são sempre substancialmente superiores às metas
definidas pelo governo, que desistiu de as produzir.
Dada a corrente onda nacionalista, ocorre em diversos países a retração dessas políticas, chamemos-lhes de inserção.
O Brexit no Reino Unido foi dirigido contra os europeus, um caso típico de exclusão de imigrantes demasiado competitivos
a vários níveis, dos canalizadores aos diretores executivos de grandes empresas. Um dos traços explorados pelos apoiantes do Brexit foi o difuso receio de competição por benefícios sociais
entre as camadas inglesas mais desfavorecidas. A divisão face à
União Europeia percorreu todas as classes sociais, mas a explo ração da recusa de imigrantes por uma parte da população, especialmente fora dos grandes centros urbanos, não deixa de ter consequências devido ao envelhecimento em curso. A forma
como imigrantes das antigas colónias das Caraíbas foram dis
criminados no Reino Unido continua a ser debatida nos dias de
hoje, pois muitos não acederam à naturalização e à cidadania. A recusa de imigrantes oriundos de África e da Ásia confronta
um dos eixos das políticas de integração, a reunião de famílias,
enquanto a atribuição de vistos para trabalhadores especializa dos vem complexificar essa política. A política anti-humanista de transferência dos imigrantes considerados irregulares para o Ruanda resulta de escolhas políticas da direita nacionalista.
A forma de lidar com as minorias faz sempre parte de qual quer dinâmica política de construção do Estado. Já vimos como
essa construção foi feita, em grande medida, contra as minorias, excluindo-as ou subordinando-as. A crise do Estado-nação face ao processo de globalização, que se acelerou nas últimas déca
das, talvez tenha sido anunciada cedo demais. Em situações de precariedade, como se tem vivido nos últimos anos, o Estadoprovidência regressa como a única forma de subsidiar empre
sas e desemprego. A crise económica de 2008-2014 criou, com efeito, muito desemprego e provocou a diminuição do nível de vida de boa parte da população mundial. A recuperação dos anos seguintes esbarrou com a crise provocada pela pandemia de COVID-19, da qual ainda não estamos completamente livres,
agravada pela crise energética resultante da guerra na Ucrânia.
O problema é que, desde a década de 1980, se verifica uma dimi nuição do crescimento económico médio, discutindo-se o pro
vável planalto de alguma estagnação a que chegou o sistema capitalista, não obstante o crescimento da China e da índia.
As crises recentes, sobretudo o bloqueio do movimento
de pessoas e bens criado pela pandemia em 2020, redundam
num aumento do nível de pobreza em todo 0 mundo, no cresci mento da desigualdade (com 1 %> dos mais ricos a apropriar-se
de boa parte do rendimento disponível) e na deterioração das condições de vida da classe média. A precariedade de emprego
agora abrange praticamente todas as classes sociais, embora
as classes média e alta estejam mais preparadas para lhe fazer frente, dada a acumulação de ativos. E verdade que as décadas anteriores tinham visto uma redução significativa da pobreza
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e um aumento geral da riqueza, ainda que sem a correspon
novos países independentes para as antigas metrópoles há tam
dente distribuição. A desigualdade social no mundo diminui,
bém o fator da língua e do conhecimento cultural. A inserção na
mas aumenta dentro de cada país.
estratificação social dos países de destino relaciona-se com a
Nesta equação não tem sido contemplado o aumento expo
capacidade de negociação face a preconceitos locais, com o acesso
nencial das aspirações da população do mundo. O confronto
à educação e com a promoção efetiva das gerações seguintes.
entre aspirações e realidades convida populações insatisfeitas a
Em resumo, a livre circulação de pessoas no mundo é um
partirem, pois não encontram forma de melhorar a sua situação.
ideal que está longe de ser partilhado por um grande número
As populações que partem são aquelas que têm, apesar de tudo,
de pessoas dos países desenvolvidos e conhece restrições legais
alguns meios para enfrentar viagens, extorsões de redes ilegais
em todas as nações. Contudo, o bloqueio à imigração conhece
de migração e dificuldades no país de acolhimento. Não são os
limites, pois, se existe necessidade económica, o movimento
mais pobres. E são geralmente jovens. A má imagem que os imi
de pessoas não tende a diminuir. O respeito pelos direitos
grantes têm na imprensa não contempla o seu impacto positivo
humanos é confrontado pelo tráfico de migrantes, pelas máfias
em qualquer economia, como comprovam inúmeros estudos,
locais de exploração de trabalho clandestino e pelas políticas
enquanto o envelhecimento de populações na Europa põe em
de Estado que se tornam cada vez mais perversas, nomeada
risco o pagamento de reformas em sistemas de segurança social
mente com a deportação de imigrantes para o Ruanda por
sobrecarregados no futuro. A imprensa ignora igualmente o
parte do Reino Unido.
papel das redes ilegais e das máfias locais na exploração do
trabalho imigrante. A difamação dos imigrantes facilita a reti rada de direitos, nomeadamente o acesso à saúde, à habitação, à educação, à naturalização e à cidadania.
Em todos os processos de migração existe o estímulo de saída e a atração de entrada. Os fatores que levam as pessoas a
abandonar o seu país de origem têm a ver com más condições
de trabalho, o reduzido acesso ao mercado fundiário, situações
de guerra, conflitos étnicos ou sociais que põem em risco a sua
segurança, e as alterações climáticas (este é um dos fatores em crescimento). Os fatores de atração consistem em melhores
oportunidades de trabalho e promoção social. Na migração dos
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95
Direitos económicos e sociais A inserção destes direitos na Declaração Universal de 1948
pressupôs a assunção de responsabilidades do Estado numa área extremamente ampla de intervenção económica que não era óbvia para todos. E verdade que a Crise de 1929 tinha acelerado a intervenção do Estado de forma radical nos Estados Unidos com o New Deal, que reformou o sistema financeiro, garantiu o mínimo de segurança social, incentivou a sindicalização dos
trabalhadores, apoiou os desempregados, os trabalhadores imi
grantes e os agricultores, lançou programas de obras públicas,
e aumentou os impostos dos ricos e das grandes empresas. Não se tratou de um programa socialista, longe disso, mas contribuiu
para limitar o desequilíbrio entre capital e trabalho na partilha
do rendimento nacional, criando condições para o relançamento económico. Na Escandinávia, a experiência social-democrata
estava em pleno na década de 1930, tendo recebido uma con siderável atenção no pós-guerra, dado o maior equilíbrio entre
capital e trabalho, os dispositivos fiscais destinados à redistribuição de riqueza, as fortes associações sindicais, a economia mista de mercado e a mobilidade social estimulada por um sis
tema de educação eficaz, tudo isto regulado por um Estado social
interveniente. Nos anos 30, em França, a Frente Popular tinha
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criado as férias pagas perante os grandes protestos patronais,
O que é interessante na Declaração de 1948 é justamente a
sendo este princípio integrado na Declaração Universal de 1948.
inscrição do direito ao trabalho, à livre escolha de emprego e ao
Entretanto, estava em marcha a criação de democra
salário igual para trabalho igual. Estes direitos eram alargados
cias populares nos territórios ocupados pela União Soviética.
aos padrões mínimos de condições de vida, especificando-se o
A recusa da economia de mercado e a opção por uma eco
direito à alimentação, à habitação, ao vestuário e aos cuidados
nomia planificada pelo Estado faziam parte do programa.
médicos. Consagrou-se igualmente o direito à segurança social,
Rejeitava-se a ideia de alguma medida de autorregulação do
ao descanso, ao lazer com férias pagas e à proteção em casos de
mercado, enquanto o modelo de intervenção social-demo
doença ou desemprego, de viuvez, de incapacidade ou de idade
crata, que teria tanto sucesso na Escandinávia, era rejeitado
avançada. O direito à sindicalização — que produzira enormes
como uma variante do capitalismo. O modelo soviético impli
batalhas políticas e confrontos com a polícia, mobilizada pelo
cava a assunção de todo o poder por partidos comunistas que,
patronato em diversos países — estava consignado. Finalmente,
na maior parte dos casos, tinham pouca expressão social.
o direito à educação para todos, gratuita nas etapas elementares,
Tratou-se de construir regimes comunistas com uma fraca
bem como o direito à participação na vida cultural da comuni
base social de apoio, processo garantido pela presença mili
dade e o respeito pelos direitos de autor, completam este vasto
tar soviética. O caso da Jugoslávia, com um passado recente
conjunto de direitos económicos e sociais. A propriedade inte
de guerrilha antinazi, veio a revelar-se particular, com o país
lectual, que envolve o reconhecimento das patentes industriais,
a integrar o Movimento dos Não Alinhados. Em contraste, na
transformou-se no pilar das relações comerciais internacionais.
zona de influência ocidental, verificou-se um forte movimento
A Declaração Universal representou um ganho extraordi
comunista na Grécia, também com um passado de resistência
nário para os trabalhadores no que diz respeito ao quadro legal
antinazi, que levou à guerra civil de 1944-1949, e que acabou
em que se movem. A maior parte destes direitos, 20 anos antes,
subjugado com intervenção da NATO. Nos países do Leste
não estavam reconhecidos, muito menos implementados, na
europeu, o Estado passou a regular toda a economia e a ativi
maioria dos países. A lição da crise económica de 1929 parece
dade social, com base na garantia de trabalho para todos, na
ter sido assimilada, mas não há dúvida que a ameaça comunista
reduzida iniciativa privada e no baixo regime de produtivi
desempenhou um importante papel no reconhecimento de boa
dade. O sistema passou a ser conhecido por uma frase irónica:
parte dos direitos. A Declaração foi cuidadosamente formu
«O trabalhador finge que trabalha e o Estado finge que paga.»
lada para acentuar a livre escolha de emprego, a livre atividade
Em todo o caso, a garantia de emprego teve impacto, dadas
cultural e o respeito pelos direitos de autor, elementos decisi
as circunstâncias de desemprego geradas pela Crise de 1929.
vos de uma economia de mercado e de uma democracia liberal
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baseada na iniciativa privada. Contudo, a contrapartida de todos
minoria da população sem acesso ao seguro privado, situação
estes direitos é o aumento exponencial do dever do Estado de
apenas minorada com o Obamacare, quase 70 anos depois da
velar pela sua implementação. A Declaração de 1948 das Nações
Declaração Universal.
Unidas afirmava-se, em grande medida, como um projeto ou
O crescimento da precariedade do emprego e a con
um guia de realização social que previa uma maior intervenção
sequente crise do Estado-providência nos últimos 40 anos
do Estado na regulação do mercado e da atividade empresarial.
geraram novos conflitos sociais, enquanto o declínio da sindi-
Essa intervenção, no quadro de uma economia de mercado,
calização tem vindo a erodir as bases do sistema, que depen
implicava a recolha de impostos que pudesse abranger a maioria
dia da capacidade de negociação do trabalho face ao capital.
da população — coisa que ainda hoje está por implementar em
Verificaram-se, contudo, alguns desenvolvimentos, sobretudo
grande parte dos países —, de modo a obter uma base financeira
do princípio de salário igual para trabalho igual. A presença
para a segurança social e a redistribuição de rendimento com
crescente das mulheres no mercado de trabalho formal (pois
benefícios sociais para os mais desfavorecidos. O debate em
o trabalho doméstico tradicional não deixa de ser trabalho e
torno do tipo de impostos, únicos ou proporcionais à riqueza,
deveria ser remunerado) tem vindo a impor o reajustamento
ainda hoje está em cima da mesa, com opiniões favoráveis ou
dos salários. Têm vindo a ser lançadas em diversos países ini
contrárias aos interesses dos segmentos mais ricos da popula
ciativas de reavaliação da estrutura salarial, a fim de corrigir
ção. A reação ideológica patronal baseia-se na ideia segundo a
os preconceitos subjacentes que favorecem os trabalhadores
qual o excesso de impostos sobre o rendimento do capital redu
masculinos. A percentagem de mulheres entre os gestores de
ziria a possibilidade de investimento. Os estudos das últimas
empresas e entre a classe política tem sido igualmente escruti
décadas desmentem esse pressuposto, pois na maior parte dos
nada, surgindo iniciativas de imposição de quotas para corrigir
casos a redução dos impostos dos ricos não resulta em investi
desequilíbrios profundos e persistentes.
mento produtivo (cf. os economistas Anthony Atkinson, Joseph
Não são só as mulheres as sacrificadas por um sistema
Stiglitz, Paul Krugman ou Thomas Piketty). O declínio radical
controlado por homens. Em países com uma forte presença
dos níveis máximos de impostos, que nos Estados Unidos atin
de minorias, está em causa o acesso dessas minorias à educa
giram os 80 °/o dos rendimentos dos indivíduos mais ricos, mos
ção para se libertarem da espiral de pobreza, como sucede nos
tram como a luta ideológica foi ganha por grupos de interesse
Estados Unidos com a minoria afro-americana que sucedeu à
naquele país. São visíveis as consequências na deterioração de
escravatura e à emancipação falhada a seguir à Guerra Civil de
infraestruturas de transporte e de educação. Mais grave tem
1861-1865. Embora a situação tenha conhecido avanços desde 0
sido a ausência de proteção em caso de doença para uma franca
reconhecimento dos direitos civis desta minoria na década de
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101
1960, ainda hoje os afro-americanos representam a vasta maioria
2010, por exemplo, enquanto a Ucrânia tinha mais de 20 asso
da população prisional, apresentando os indicadores mais baixos
ciações LGBTQI+, a Rússia não tinha nenhuma. O debate em
de esperança média de vida e de acesso a tratamento médico.
torno do regime de maternidade e do direito dos homossexuais
O lançamento de iniciativas de discriminação positiva, isto é,
à adoção, por exemplo, tem sido uma das últimas batalhas do
de criação de quotas de acesso privilegiado ao ensino superior,
movimento.
visa atenuar a desigualdade herdada; este programa tem sido
A criação de uma sociedade digital, em que os dados indivi
implementado com bons resultados noutros países, particular
duais conhecem uma enorme expansão com o registo de todo o
mente no Brasil. As minorias de imigração recente padecem de
tipo de atividades — educativas, fiscais, profissionais, de saúde,
problemas semelhantes no acesso à educação e ao emprego. Em
de consumo ou de laços sociais —, levanta novos problemas de
França, por exemplo, a minoria de origem argelina tem melho
proteção da integridade de cada indivíduo. O desenvolvimento
res resultados no sistema educativo do que outras minorias de
das redes sociais agrava este problema, dada a exposição das pes
imigrantes, embora com um pior acesso ao emprego, do que
soas que os frequentam a insultos e a ofensas diários. A questão
resulta uma tensão social permanente.
da integridade pessoal coloca-se agora com uma enorme acui
A emancipação da comunidade homossexual quanto ao
dade e dá origem a um novo tipo de processo judicial. O Estado
preconceito e a afirmação não binária de género passa por um
encontra-se novamente em causa, como detentor da vasta maio
processo longo que não estava contemplado na Declaração de
ria dos dados pessoais, mas as escolas, as empresas e os hospitais
1948. Trata-se de um acesso a direitos que tem resultado de for
privados, enormes recetores de dados, precisam de estabelecer
tes movimentos sociais, sobretudo nos países ocidentais, mas
parâmetros de controlo do acesso. Portugal teve já vários casos
que se espalha a países de África e da Ásia. A difusão do vírus
de transferência ilegal de dados: na Câmara Municipal de Lisboa,
VIH na década de 1980, inicialmente atribuído à comunidade
a identidade dos organizadores de manifestações contra regimes
gay, expôs os preconceitos então predominantes, tendo resul
e ações de vários países era transmitida às embaixadas desses
tado num momento de viragem. A rejeição da exclusão social
mesmos países; o Instituto Nacional de Estatística contratou
por comportamentos sexuais alternativos está hoje em dia ins
uma empresa norte-americana para o censo de 2021 que tem sido
crita nas normas internacionais, nomeadamente na Carta dos
acusada noutros países de fazer transferências maciças de dados
Direitos da União Europeia, embora o caminho de afirmação
pessoais. Estes casos foram penalizados pela Comissão Nacional
dos direitos, nomeadamente ao nível do acesso à educação e ao
de Proteção de Dados. O problema fundamental diz respeito
emprego, ainda esteja por garantir formal e informalmente em
ao conhecimento da lei e à implementação de parâmetros de
muitos países, incluindo no continente europeu. Na década de
confidencialidade no registo e na proteção dos dados pessoais.
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103
Este problema de conhecimento da norma é igualmente
exposição, que envolve competitividade a vários níveis, resul
importante para prevenir os comportamentos e as atitudes
tam ou agravam-se psicopatologias. O respeito pelo direito de
racistas, condenados por lei. Portugal é um dos países europeus
decisão individual e de controlo do próprio corpo está em causa
com pior desempenho nas sondagens de opinião que se orga
nestes e noutros casos. O alargamento da integridade individual
nizam neste domínio. Trata-se de uma falha grave do sistema
e a discussão das formas de a proteger vão continuar a estar na
de educação, que não divulga suficientemente a norma inscrita
ordem do dia, dada a complexidade crescente da sociedade.
na Carta Europeia dos Direitos Humanos, norma, aliás, aco lhida há mais de 40 anos pela legislação portuguesa. Os precon ceitos raciais produzem discriminação no acesso à educação,
ao emprego e à habitação, sendo inaceitáveis em quaisquer
circunstâncias. Criam divisões no seio da sociedade, geram um permanente mal-estar, têm incidência na estigmatização de indivíduos e bairros inteiros, bloqueiam a desejada mobili dade social e contribuem para a reprodução de desigualdades. Pior, o ódio racista mata, como já aconteceu diversas vezes em
Portugal, para não falar dos casos históricos extremos do geno
cídio judaico perpetrado pelos nazis na Segunda Guerra Mundial
ou do linchamento de milhares de negros nos Estados Unidos
até meados do século xx. A integridade pessoal está também em causa no assédio
sexual, que perturba o desenvolvimento de jovens, intimida mulheres e envenena o ambiente de trabalho. A violência domés
tica é outra dimensão que tem vindo a ser cada vez mais denun
ciada, com um aumento dos casos de morte. A timidez judiciária na resolução dos numerosos casos denunciados, mas com pou
quíssimos punidos, revela uma cultura de proteção da violência que não pode ter lugar na sociedade do século xxi. Vários estudos
mostram o poder das redes sociais entre os mais novos. Dessa
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Direitos ambientais A passagem ao Antropoceno em meados do século xx — ou
seja, a uma fase geológica definida pela intervenção humana,
que deixa marcas irremediáveis na natureza e a transforma de forma decisiva — trouxe o meio ambiente para a primeira linha dos direitos humanos. Os estudos sobre o impacto ambiental da atividade humana têm vindo a crescer exponencialmente
no último meio século, mostrando a poluição do ar, das águas,
do solo e do subsolo; a contaminação da comida a todos os níveis, com a transformação química da produção animal, que inclui
o uso de arsénico, metionina e antibióticos; a utilização siste
mática de combustíveis fósseis altamente poluentes, que trans formam o regime sociometabólico; a produção de fertilizantes com gás natural; a utilização maciça de pesticidas, inseticidas,
rodenticidas e herbicidas; a difusão dos plásticos desagregados
em microplásticos, que contaminam os oceanos e as espécies
marinhas; o uso de chumbo na caça e na pesca; a chuva ácida como resultado da poluição. Numa palavra, as alterações cli
máticas e a contaminação da natureza põem em causa a sobre vivência da espécie humana.
A perceção de uma natureza em alto risco, com danos já irreparáveis, é agora aceite pela maior parte da população depois de uma guerra ideológica suscitada pelos interesses
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económicos estabelecidos, baseados num modelo de desen
como a poluição pelos plásticos (cuja proibição como embalagem
volvimento de exaustão e contaminação dos recursos. A sepa
seria fácil de implementar em muitos casos) que envolve todo o
ração entre cultura e natureza, promovida na Europa desde o
planeta. O problema é transformar um modelo de crescimento
século xvii, é agora posta em causa. Noutras culturas ancestrais
extrativista, baseado na produção agrícola e pecuária barata,
de diversos continentes, a natureza é vista como algo que não
com uma elevada manipulação química voltada para o consumo
se distingue dos seres humanos, da qual se depende de forma
de massas, num modelo de desenvolvimento sustentável.
quotidiana e que precisa de ser utilizada com todo o cuidado a
Nestes direitos do ambiente estão inseridos os direitos de
fim de se evitar danos e garantir a renovação. A relação com os
comunidades que sempre viveram em harmonia com a natureza.
animais e com as plantas não é vista na perspetiva de extração e
Os direitos das comunidades indígenas da América Latina, por
produção, mas na de proteção e regeneração. A realidade hoje é
exemplo, têm vindo a ser reconhecidos e legislados, embora a
de destruição de numerosos ecossistemas; de desaparecimento
proteção desses direitos esteja ainda por ser implementada em
de numerosas espécies animais e vegetais; de redução radical das
muitos casos. A eclosão de movimentos sociais indígenas em
grandes florestas (como a Amazónia), que garantiam a captação
diversos países desta região teve um impacto político inegável,
do dióxido de carbono, a libertação do oxigénio, a estabilização
contribuindo para uma redefinição das dinâmicas de poder.
dos solos e a proteção da vida selvagem.
O movimento indígena veio reequilibrar essas dinâmicas, até
O direito do ambiente foi desenvolvido e estudado desde a
recentemente localizadas nas cidades, como se pode ver na
década de 1970, embora tenha conhecido um enorme impulso
Bolívia. Contudo, as conquistas obtidas estão ameaçadas e veri-
nos últimos decénios. A relação entre a sociedade e os ecossis
ficam-se numerosos casos de retrocesso. A exploração ilegal da
temas está finalmente na ordem do dia, enquanto a redução dos
Amazónia, por exemplo, que se faz contra as reservas de índios
combustíveis fósseis está consagrada por legislação internacio
e contra a legislação dos parques naturais, encontrou apoio
nal. A regulamentação das substâncias usadas na alimentação
político por parte das autoridades, sobretudo durante a presi
dos animais desenvolve-se todos os dias, se bem que os atrasos
dência de Bolsonaro. Trata-se de uma verdadeira calamidade
acumulados sejam espantosos. Apenas um exemplo: a utilização
ecológica, que se processa impunemente com o assassinato de
de arsénico na comida da comida, ou seja, na alimentação dos
dirigentes indígenas, jornalistas e ativistas.
animais, só foi proibida nos Estados Unidos em 2015. A dissemi
A criminologia verde (ver Michael J. Lynch) é uma área
nação de cereais transgénicos está sob escrutínio, enquanto se
distinta dos direitos da natureza, que estuda os atentados eco
procura obter o controlo de pesticidas e fertilizantes. Igualmente
lógicos, nomeadamente de poluição, a extração desordenada,
grave é a contaminação pelo chumbo e por nanometais, bem
a contaminação da água, as cidades tóxicas e o tráfico da vida
108
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selvagem. É verdade que o processo de desflorestação começou
para quem denunciar a guerra como uma atrocidade. Os terri
há séculos com a exploração da madeira, a criação de plantações
tórios ocupados estão em processo de russificação, com depor
de cana-de-açúcar ou de tabaco, em seguida com a produção
tações, nomeadamente de crianças, a separação de famílias e
da borracha e finalmente com a produção de soja. A mineração
a transformação da educação com manuais vindos da Rússia.
de prata utilizava o mercúrio, outro poluente. A contaminação
A Convenção de Genebra relativa à proteção de militares e civis
das águas tem igualmente uma longa história, nomeadamente
não é minimamente respeitada, e os corredores humanitários
com o tratamento dos couros. A caça para a obtenção de peles
são alvejados pelas tropas russas. Como se vê neste exemplo
de animais eliminou espécies e reduziu a vida selvagem. A pesca
concreto, há uma série de direitos que estão a ser sistematica
extensiva começou a ter impacto no declínio das espécies mari
mente violados.
nhas antes do século xx. O extrativismo dos impérios europeus,
que transcenderam fronteiras e criaram espaços interconectados, reduzindo a natureza a recursos para serem produzidos
e consumidos no mercado, foi estudado por Richard Grove. A recente invasão da Ucrânia pela Rússia criou novos
desafios ao direito do ambiente. A guerra dissemina metais e micrometais, aumentando de forma exponencial a poluição e a contaminação dos solos e das águas. A poluição gerada pela
indústria militar nunca foi quantificada pelas diversas agên
cias, em parte devido à oposição dos Estados Unidos. É altura de atacar este problema, dado o impacto imediato da guerra.
A ausência de sensibilidade à poluição nuclear é outro dos escân dalos desta guerra; Chernobil foi ocupada temporariamente
por tropas russas que foram expostas à poluição envolvente e
ameaçaram criar um novo acidente nuclear pelo seu compor tamento descontrolado. A Carta das Nações Unidas, que proíbe a invasão de países, foi violada. O direito à vida é espezinhado
todos os dias. A Rússia proíbe no seu próprio país a classificação da invasão como tal e prevê a pena de prisão para quem o fizer e
110
m
Conclusão Os direitos humanos resultaram de movimentos sociais contra
práticas de privilégio, a exploração dos trabalhadores, expro
priações arbitrárias, a crueldade de guerra, o colonialismo e o imperialismo, a opressão de minorias, massacres e migrações
forçadas. O repúdio pelo genocídio de seis milhões de judeus pela Alemanha nazi exprimiu os sentimentos humanitários da
larga maioria das populações do mundo. O reconhecimento da integridade de todos os cidadãos, incluindo as minorias,
desenvolveu-se em paralelo com o reconhecimento da invio labilidade dos Estados, inscrita na Carta da Nações Unidas.
O princípio da autodeterminação dos povos afirmou-se como a
grande alavanca da segunda metade do século xx para a redução da desigualdade política internacional. A justiça social, visada pelos direitos económicos e sociais, é outro grande princípio
que resulta do sistema normativo internacional promovido
pelas Nações Unidas. Estes princípios acolhidos pelos direitos humanos estão
longe de ser implementados e respeitados. A proteção do cida dão face ao Estado, que suscitou os primeiros enunciados dos
direitos humanos, está ainda hoje sob ataque em Estados opres sivos e terroristas, que não respeitam os direitos dos seus pró
prios cidadãos, submetidos à censura, à detenção arbitrária e ao
113
I
assassinato político, excluídos de eleições livres, desempregados
mais retrógrados e opressivos favorecidos pela extrema-direita
por motivos políticos, privados de iniciativa, sem meios para
em todo o mundo. O efeito desta negação é o aumento da vul
realizar o seu próprio desenvolvimento. As minorias vítimas
nerabilidade dos mais fracos face à prepotência e ao terror
de espirais de pobreza em diversos países, resultantes de pro
praticado pelos mais fortes.
cessos históricos de tráfico de escravos, escravatura e trabalho
O desenvolvimento dos direitos ambientais nas últimas
forçado, de colonialismo e pós-colonialismo, ainda hoje aspiram
décadas resulta de uma nova sensibilidade face à destruição da
à justiça social. A tranquilidade de vida e de trabalho é violenta
natureza que coloca em risco a espécie humana. O modelo de
mente destruída com invasões brutais e práticas de guerra que
desenvolvimento extrativista — que transforma a natureza num
ignoram todas as convenções internacionais de respeito pela
mero recurso para a produção e o consumo maciço, com uma
população civil e de tratamento digno dos militares envolvidos.
manipulação química que altera o metabolismo dos animais —
Neste quadro, considerar os direitos humanos como uma
reduz de forma radical a diversidade biológica, destrói os ecos-
retórica do imperialismo ocidental para obter um domínio inter
sistemas e torna o planeta inabitável. Estes direitos visam criar
nacional ignora a luta de libertação das colónias, a denúncia das
um novo modelo de desenvolvimento sustentado, que recuse a
atrocidades cometidas pelos poderes coloniais, os direitos eco
energia dos combustíveis fósseis, bem como a contaminação dos
nómicos e sociais obtidos por milhares de lutas de trabalhado
mares e das águas, do solo e do subsolo, ou seja, de toda a cadeia
res em todo o mundo, a tentativa de garantir o futuro de novos
alimentar. As comunidades indígenas que sempre souberam
Estados contra as ambições territoriais de Estados imperiais ou
respeitar a natureza e proteger os ecossistemas estão justa
imperialistas. Estes direitos foram, em grande medida, impos
mente incluídas nestes direitos ambientais, que procuram evi
tos contra os Estados Unidos e contra os poderes coloniais.
tar que as suas escassas conquistas sejam violadas pela intrusão
Existem certamente contradições entre ideais e realidades,
de garimpeiros, madeireiros ou agricultores nas suas reservas.
conflitos de interesses e interpretações divergentes dos direi
A proteção dos dados pessoais é o último domínio de
tos humanos. Sempre existiram e existirão abusos políticos de
expansão dos direitos humanos face ao aumento exponencial
direitos humanos pelos poderes constituídos, que os invocam
das bases de dados de instituições públicas e empresas privadas,
de forma maliciosa e manipulativa. Mas esses direitos têm sido
nomeadamente as redes sociais, com informações detalhadas
apropriados, moldados e desenvolvidos pelos explorados e opri
sobre as opções de vida, as preferências políticas, o historial
midos. A negação desta realidade histórica tem como objetivo
médico, a trajetória educativa, o perfil profissional, as informa
nivelar os diferentes regimes políticos e as diferentes formas
ções bancárias e a identidade pessoal de praticamente todos os
de relações internacionais, produzindo a lavagem dos regimes
cidadãos. Estes dados podem ser utilizados fraudulentamente,
114
115
como instrumento de chantagem ou como forma de exclusão
no acesso à educação, ao emprego ou à promoção profissional.
Na sociedade de hoje, é crucial a criação de mecanismos segu ros e confidenciais de gestão destas bases de dados.
Posfácio
Norbert Elias sugeriu muito cedo, na década de 1980, a importância dos direitos humanos num mundo globalizado
como fator de proteção do indivíduo, das minorias, das comu
Este livro resulta de um processo de aquisição de conhecimentos
nidades em permanente movimento, das aspirações do grande
que começou com a pesquisa histórica sobre o racismo. Nessa
número. Na luta pela redução da desigualdade, os direitos huma
altura optei por uma abordagem de longa duração, das cruzadas
nos desempenham um papel importante e com consequências
ao século xx, que me permitiu observar as diversas conjuntu
económicas, como temos vindo a sublinhar. A migração inter
ras de interseção entre preconceitos relativos a descendência
nacional, na interseção da intervenção do Estado e dos meca
étnica e ação discriminatória.
nismos de exclusão locais e regionais, revela os problemas de
O contexto histórico da Península Ibérica revelou a con
desenvolvimento. As diversas formas de lidar com este assunto
versão forçada das minorias judaica e muçulmana, que foram
sensível poderão fornecer indicações sobre a maior ou menor extensão de direitos. É o caráter interligado e aberto dos dife
em seguida discriminadas através da publicação de estatutos
rentes direitos que vai certamente prevalecer no futuro, como
cos e religiosos para estas novas minorias negava a integração
suporte das mudanças necessárias para a redução das desigual
pelo batismo, sendo-lhes vedado o acesso a cargos munici
dades e a afirmação da justiça social no seio de cada sociedade
pais, ordens religiosas e militares, universidades, confrarias
e entre sociedades.
e corporações.
de limpeza de sangue. A transferência de preconceitos étni
O acesso à propriedade, à educação, a estruturas de tra
balho e de representação constituíram critérios de aferição da
integração ou exclusão de minorias nos diversos continentes. Foi na parte sobre sociedades coloniais, capítulo sobre discri
minação e segregação, que eu incluí uma secção sobre direi
tos civis. Nessas páginas refleti sobre as formas complexas de inclusão e exclusão de maiorias colonizadas e transformadas em minorias no que dizia respeito a direitos. Tomei consciência de
116
117
que o acesso (ou não) a direitos formais ou informais estava na
foi justamente o protesto judiciário em Roma contra o proce
base da minha pesquisa.
dimento das Inquisições ibéricas (sobretudo da portuguesa).
Em 2015, Fabian Klose convidou-me a fazer a keynote
Tornou-se evidente que os cristãos novos tinham desempenhado
lecture de um colóquio que ele organizou no Leibniz Institut
um papel importante na denúncia de formas de discriminação
fiir Europãische Geschichte, em Mainz, sobre «Humanity —
racial como base do procedimento penal inquisitorial.
a History of European Concepts in Practice from the ióth to
Entretanto, o fio de pesquisa sobre a produção da desi
the 2oth Century». Aceitei, pois isso permitia-me desenvolver
gualdade foi reativado por Cátia Antunes, que me convidou a
aspetos não diretamente relacionados com o racismo que na
escrever um texto sobre o império português para o ejournal of
altura me interessavam, particularmente os fundamentos da
Portuguese History. Desenvolvi esse texto para uma comunica
desigualdade social, que motivavam o meu projeto de pesquisa
ção no seminário do Max Planck Institut fur Rechtsgeschichte
de longa duração.
und Rechtstheorie, convidado por Thomas Duve e Luisa Stela
Aproveitei boa parte dessa pesquisa para elaborar um texto sobre as divisões da humanidade baseadas no preconceito de
Coutinho. Cruzei-me ali de novo com a cultura jurídica que
tanto me tem ajudado na minha pesquisa.
raça, na oposição entre escravo e livre, bárbaro e civilizado,
Passei o ano de 2021-2022 no Wissenschaftskolleg zu
e na construção de género. Esse texto, com autorização da edi
Berlin, onde troquei ideias com outros juristas e com o sociólogo
tora original, inspirou três capítulos deste livro sobre direitos humanos.
Adrian Favell, especialista das migrações. As nossas conversas
Alarguei a minha investigação ao período contemporâneo
pesquisa sobre a história da desigualdade social no mundo,
quando Teresa Pizarro Beleza me convidou a apresentar uma
tendo escrito um texto inédito sobre a construção de género
comunicação ao colóquio que organizou sobre migrações; outros
que me ajudou a preparar o capítulo que escrevi para este livro.
compromissos impediram-me de publicar o texto no excelente volume que dali saiu.
Quando António Araújo me desafiou a publicar um livro na coleção «Ensaios» da Fundação Francisco Manuel dos Santos,
Entretanto, desenvolvi um projeto de investigação sobre os
com a qual já tinha colaborado na série de entrevistas sobre o
cristãos novos de origem judaica, pois obtive financiamento da
tema da liberdade, propus os direitos humanos, o que foi bem
Leverhulme para o período de 2017—2019, felizmente antes
recebido. A presente conjuntura internacional de violação sis
da epidemia. Pude trabalhar em numerosos arquivos e reconsti
temática de direitos e de acordos humanitários em situações de
tuir a resistência dos descendentes de convertidos à discrimina-
guerra justifica a escolha. Revisitei e reelaborei textos anterior-
ção diária a que estavam sujeitos. Um dos ângulos de abordagem
mente publicados, escrevi textos de raiz para a grande maioria
118
estimularam numerosas leituras nessa área. Desenvolvi a minha
119
dos capítulos. Espero beneficiar das reações a este livro para desenvolver os conhecimentos adquiridos na interseção da his
tória, do direito, da ciência politica e da sociologia. Uma pala
vra final de agradecimento pelo apoio entusiástico do diretor
editorial, pelo trabalho de revisão do texto e pelo suporte admi
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