Dialética do Conhecimento - Preliminares Pré-Históricas da Dialética [Tomo I, 2º ed.]


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Portuguese Pages 294 [290] Year 1955

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TOMO I
PRELIMINARES
1. Problema atual do Conhecimento 09
2. O ciclo do Conhecimento (I) 59
3. O ciclo do Conhecimento (II) 83
4. As formas do Pensamento: Linguagem e Lógica formal 131
PRÉ-HISTÓRIA DA DIALÉTICA
5. Origens da Metafísica 151
6. Brecha na Metafísica. Elaboração da Matemática 194
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Dialética do Conhecimento - Preliminares Pré-Históricas da Dialética [Tomo I, 2º ed.]

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DIALÉTICA DO CONHECIMENTO

DO AUTOR: EVOLUÇÃO POL1TICA DO BRASIL 2. ª edição - 1947 - esgotado. U. R. S. S., UM NOVO MUNDO 2. ª edição - 1935 - esgotado. FORMAÇÃO DO BRASIL 4. ª edição - 1953.

CONTEMPORÂNEO

HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL 3. ª edição - 1953. EVOLUÇÃO POL1TICA DO BRASIL E OUTROS ESTUDOS - 1953.

CAIO PRADO JUNIOR

,

DIALETICA DO CONHECIMENTO TOMO I PRELIMINARES PRÉ-HISTÚRIA DA DIALÉTICA

2.a EDIÇÃO

EDITORA BRASILIENSE S Ã O P AU L O 1 O6 6

A memória de meu Pai

A Nena, minha companheira

PRELIMINARES

1 PROBLEMA ATUAL DO CONHECIMENTO que apresentam a análise e exposição da A Dialéticadificuldade materialista está em que tal análise e exposição GRANDE

giram aparentemente, à luz da Lógica formal clássica (que constitui a nossa maneira ordinária, tenhamos disso consciência ou não, de pensar e raciocinar, maneira essa consolidada por séculos do tradição ideológica, e por isso tão solidamente implantada no u11pírito ou inteligência da generalidade dos homens e da sua Cultura) giram em círculo vicioso: para compreender a Dialética é preciso pensar dialeticamente, isto é, conhecer a Dialética para conhecê-la; e isso porque se na análise dela recorremos a nossos processos habituais de pensamento e raciocínio, que são os da Lógica metafísica, o que teremos será uma visão ou interpretação metafísica da Dialética, e não a Dialética - deformação aliás que ocorre freqüentemente e que encontramos estampada em. todos os tratados e obras clássicas e correntes de crítica e história da FiloNofia. Expliquemo-nos melhor. A Dialética é essencialmente um método de pensamento e conhecimento, tanto quanto a Metafísica; constitui uma maneira de considerar os assuntos que são objeto tio pensamento e do conhecimento, tanto quanto a Metafísica constitui uma outra maneira de fazê-lo. Em suma, qualquer assunto pode ser considerado metafisicamente ou dialeticamente (1). St, considerarmos por exemplo o Universo em geral de um ponto clu vista metafísico, como ocorre generalizadamente entre filósofos du tradição clássica, bem como no comum dos homens de nossa época, êle (o Universo) se apresentará como um aglomerado de (1) 1: por Isso que a História ão Partido Comunista (bolchevique), edição nfloll\l do Partido. Moscou, 1938, a fonte sem dúvida mais atual e autorizada na 1n11térla, ao expor os prlnclplos da Dialética, a opõe expressamente à Metafisica, 11111110 um modo ou método diferente e próprio de encarar a Natureza e o Universo 11111 Kl!ral e suas feições. Veja-se a tradução francesa da História, edição de 1946, &1A••· 125 e seguintes.

Dificuldade da análise e exposição da Dialética

Método dialético e metafísico de pensamento

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Objeto do conhecimento metafísico: individualidades

Objeto do conhecimento dialético: relações

CAIO

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JUNIOR

"coisas" ou "entidades" distintas, embora ligadas e relacionadas entre si, detentoras cada qual de um individualidade própria e exclusiva que independe das demais "coisas" ou "entidades". É de tal concepção que deriva a noção de "sêres" componentes do Universo, e a da classificação dêsses "sêres" por suas características específicas: "sêres" físicos (como uma pedra, uma caneta, ou uma árvore) e morais (como a -justiça, a bondade ou a maldade); "sêres" naturais (isto é, sensíveis) ou sobrenaturais (isto é, além dos nossos sentidos); minerais, plantas, animais, homens; etc. Classificações essas e outras mais que variam ao sabor dos diferentes sistemas metafísicos. É daquela concepção ainda que decorre a idéia de que para "conhecer'' um objeto qualquer, "coisa", "entidade" ou "ser", é preciso antes "defini-lo", isto é, caracterizá-lo,. revelar sua "identidade", "essência", qualidades ou atributos próprios e específicos de sua individualidade; numa palavra, determinar sua qüididade, como diziam os Escolásticos e ainda dizem os filósofos de tradição clássica, seja qual fôr o seu matiz. Em suma, o que interessa fundamentalmente à Metafísica na· consideração geral do Universo, e o que constitui seu ponto de partida em qualquer indagação, são sempre os indivíduos que compõem aquêle Universo e a individualidde dêles. A Dialética, pelo contrário, não vê o Universo sob êsse prisma - ou antes, pelo "método" ou "maneira de ver" da Dialética, não é assim que se oferece o Universo à nossa observação e consideração -. Ela (a Dialética) não considera primeiramente os "indivíduos" ("sêres", "coisas", "entidades") para depois disso considerar suas relações recíprocas, fazendo essas relações derivar da individualidade ou essência daqueles indivíduos, como pratica a Metafísica; isto é, para exemplificarmos, a Dialética não considera primeiro o "ser humano", para depois considerar, e como derivadas dêsse indivíduo humano, suas relações sociais ou outras; não considera, no domínio da Física, primeiro os elementos constituintes da matéria (moléculas, átomos, partículas subatômicas), para somente depois considerar seu comportamento e relações recíprocas que se supõem derivados da natureza ou qualidades daqueles elementos. A Dialética, em oposição a êsse método metafísico de abordar e analisar os objetos do pensamento e do conhecimento, considera antes as relações, o "conjunto" e a "unidade" universal donde decorrem tais relações; e é nessas relações, sejam no espaço, sejam no tempo (quando mais propriamente elas se denominam "processos"), é nelas que a Dialética vai procurar e determinar os "indivíduos" e sua "individualidade" própria: o homem será caracterizado, "individualizado", em função das suas relações biológicas, sociais, etc.; tanto quanto os elementos constituintes da matéria

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serão caracterizados e individualizados em função do "conjunto" (a matéria, no caso, ou antes os fatos físicos) a que pertencem e fora do qual não têm "realidade", não têm sentido. Ora, do mesmo modo que podemos considerar metafisicamente ou dialeticamente o Universo em geral e qualquer uma de suas feições em particular - como vimos na exemplificação - podemos também considerar metafvsicamente ou dialeticamente esta sua feição específica que são o pensamento e conhecimento humanos. E está claro - ou pelo menos isso pode ser verificado concretamnte, como teremos ocasião de ver - que se considerarmos aquela feição do Universo que é o "pensamento e conhecimento", metafísica ou dialeticamente, chegaremos num e noutro caso a conclusões e interpretações diferentes. Mas a nossa maneira "normal", digamos assim, ou· corrente de considerar os assuntos que nos ocupam é a metafísica; e sendo assim, só nos poderemos livrar dela e modificar tão radicalmente nossos pontos de vista, conhecendo a Dialética, cujo objetivo consiste precisamente em tal modificação. Está aí o nosso círculo vicioso. Como sair dêle? A saída é a Dialética e só pode ser ela, porque mesmo aquêle círculo vicioso não passa de uma posição lógico-metafísica que dentro da Metafísica não se pode desfazer. E voltamos assim a nosso ponto de partida: estávamos querendo saber o que é a Dialética, e verificamos que para isso é necessário conhecer a Dialética; queremos em seguida sair dêsse círculo vicioso, e observamos que para isso precisamos de Dialética. Para clarearmos o assunto, vamos ilustrá-lo com uma situação análoga e que faz parte de nossa experiência ordinária. Considere-se uma criança que começa a falar; não nos encontramos aí diante de um círculo vicioso semelhante ao da análise e exposição da Dialética? É com a linguagem, evidentemente, que se pode transmitir à criança o conhecimento da linguagem. No entretanto, apesar dêsse círculo vicioso lógico-formal, as crianças aprendem a falar. E como aprendem? Qualquer psicólogo-pedagogo, qualquer mãe sabem muito bem que a criança aprende a falar, "vivendo", por assim dizer, a linguagem; acompanhando seus gestos, movimentos e atos de um balbuciar no qual procura reproduzir, e aos poucos o consegue com crescente sucesso, os mesmos sons ouvidos de seus educadores por ocasião da prática de tais gestos, movimentos e atos. Os estudantes de línguas estrangeiras pelo método Berlitz procedem semelhantemente: "vivem" as palavras que ouvem ou pronunciam, observando e repetindo os gestos de seus professôres. Em essência, o que está na base de tais métodos de aprendizagem de línguas? Na repetição ou reprodução, de maneira condensada, sistematizada e orientada, do processo genético da linguagem tal

Pensamento e conhecimento como feições do Universo

Método dialético necessário para conhecer a Dialética

Aprendizagem da linguagem

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Aprendizagem du Dialética

Gênese hist6rica da Dialética

A análise da Hist6ria tem de ser dialética

Circularidade do pensamento dialético

CAIO

PRADO

JUNIOR

como se pode supor tenha ocorrido na formação e evolução da espécie humana quando ela foi gradualmente inventando um sistema de sons destinados a, realizarem a comunicação oral entre os indivíduos. Apliquemos o mesmo, mutatis mutandis, à aprendizagem da Dialética. Esta, tanto como a linguagem, não surgiu ex-abrupto de um dom divino - como julgavam, com relação à linguagem, os povos primitivos - nem constituiu a iluminação súbita do espírito humano através dêste ou daquele indivíduo genialmente inspirado. A Dialética foi aprendida pela humanidade, e veio fazendo caminho na sua cultura, através da própria experiência do Homem e progresso gradual de seu pensamento e conhecimento. A Dialética tem uma g~nese hist6rica; e é essa gênese ~ue poderemos acompanhar, como será feito neste livro, a fim de 'apreendermola" pelo mesmo processo, ou processo equivalente, com que ela se elaborou no curso da história cultural da humanidade. Não podemos todavia acompanhar passo a passo, está visto, uma tal evolução genética, mesmo porque ela se fêz de fato através e pelo estímulo de uma experiência realmente vivida e atividade concreta da espécie humana, que não nos é possível reconstituir e muito menos trazer para as páginas de um livro. Mas o que é possível é observar aquela história, orientando nossa observação a fim de destacarmos aquelas experiências e aquêles fatos mais salientes e importantes da evolução da cultura humana, que balizaram através dos séculos a gênese da Dialética desde sua pré-história no seio da Metafísica de onde brotou. Gontudo, ao fazermos uma tal observação "seletiva", isto é, escolhendo fatos, épocas, momentos ... e circunstâncias históricas mais importantes para nossa análise, e aplicando a êles nossa observação, estaremos mais uma vez incorrendo num círculo vicioso daqueles que a Lógica clássica anatematiza com tanto rigor; porque uma tal análise e observação têm de ser de um certo ponto de vista, que é precisamente o da própria Dialética, porque, do contrário, não tiraríamos da nossa análise, com tôda certeza - hajam vista as historiografias correntes da Filosofia - mais que a Metafísica a que nos procuramos opor. Pretendendo chegar a Hegel dialético e ao materialismo-dialético, chegaríamos possivelmente a Hegel do "sistema filosófico hegeliano", tão distinto da dialética hegeliana; e à reação metafísico-idealista dos Bergsons, Machs e Sartres que representam respectivamente, podemos dizer, as três posições mais caracterizadas do antimaterialismo-dialético de nossos dias. Essa circularidade do pensamento dialético é inevitável, porque resulta da própria natureza do assunto. Como ao contrário da Metafísica, a Dialética considera "processos", isto é, o dinamismo

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dos fatos históricos que observa, e não eventuais e sempre arbitrários cortes nêles praticados que dão apenas a posição e o "estado" dêles num certo e determinado instante, e que por isso não oferecem senão uma visão parcial e deformada da Realidade, ela (a Dialética) se faz necessàriamente circular ou antes aquilo que o estaticismo da Metafísica reputa "circular", porque todo processo se caracteriza analiticamente por uma tal circularidade. Considere-se, para ilustrar o assunto, um processo elementar e muito simples porque é direta e imediatamente acessível, na sua totalidade e conjunto, à nossa experiência vulgar, e que é o deslocamento de um corpo, isto é, o movimento mecânico. O movimento mecânico ou local, como logo se vê, é um fato que existe a todo instante no curso de seu desenvolvimento, mas só se caracteriza em cada instante sucessivo; noutras palavras, em qualquer instante do curso de um movimento local podemos dizer ciue há movimento, que o corpo em questão "está em movimento' (isto é, nunca está parado em nenhum instante); mas o movimento efetivamente somente se dá ou caracteriza, e pois só existe, na sucessão de dois instantes em que respectivamnte o corpo ocupa duas posições consecutivas. O movimento local portanto, em cada instante, existe antes de existir; e está aí um caso bem flagrante ele circularidade analítica de todo processo. Caso aliás, como se Hnhe, fartamente explorado pelo cepticismo e a sofística desde a mais alta antiguidade da Filosofia. A análise da gênese histórica da Dialética sofrerá portanto dessa contingência, o que se revelará correntemente, no curso da exposição que faremos, por um anacronismo reincidente que não poderá deixar de trazer certa confusão no assunto: seremos obrigados a nos exprimir dialeticamente, isto é, insinuar interpretações de natureza dialética em fases ou momentos da gênese e evoluçi'io do pensamento e conhecimento humanos que precedem fl Dialética e em que esta não se poderia ainda propor. Ficaremos por isso freqüentemente, embora involuntàriamente, na posição cló.ssica da Metafísica, isto é, na de "julgadores" e "críticos exteriores" de um processo - no caso, o do desenvolvimento histórico do pensamento e conhecimento humanos que não precisa nem comporta normas ou regras ditadas de fora -. Para obviar a essa dificuldade, na medida do possível, seremos obrigados a lançar mlio de um ziguezaguear permanente através do tempo e das suot,ssivas fases históricas, com avanços súbitos e desmesurados, e rtitornos ao ponto de partida, o que pode trazer e trará certanente alguma complicação na exposição do assunto, e mesmo fntroduzirá eventualmente algumas deformações dêle. Ocorrerão 1tlp;umas aparentes incongruências, porque para não sermos sistt1màticamente anacrônicos (o que acabaria por nos jogar defi-

Circularidade analítica dos processos

Processo do deslocamento de um corpo: movimento mecânico

Análise da gênese histórica ela Dialética: dificuldades

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Método próprio de exposição da Dialética

Dialética do Conhecimento

Plano dêste livro

Problema contemporâneo do Conhecúnento

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JUNIOR

nitivamente para a pos1çao 16gico-metafísica de quem regula a história inspirado não se sabe por que Razão extra-hist6rica e transcendente aos fatos), seremos levados a usar muitas vêzes de uma linguagem 16gico-metafísica que é a linguagem da pré-dialética que a humanidade usou e ainda usa na maior parte dos casos; e isso dará lugar, possivelmente, a alguns mal-entendidos que somente se poderão desfazer no desenvolvimento do texto. Tudo isso é inevitável, ou pelo menos não fui capaz de evitá-lo embora bem advertido a respeito da dificuldade. A Dialética, que constitui um método de pensamento e conhecimento distinto do da L6gica metafísica, e oposto a êle, exige também um método de exposição ou estilo diferente e pr6prio. Mas por enquanto os nossos padrões estilísticos, ou pelo menos a .maior parte dêles e os usuais, são os da Metafísica; e são êsses que o leitor médio conhece e a que está habituado. Não é possível por isso contrariá-los ainda de frente, inteiramente e serrt concessões, sob pena de nos tornarmos dificilmente compreensíveis - isso mesmo, na hipótese de encontrarmos tal método de exposição "puramente" dialético, com que, devemos confessá-lo, não atinamos ainda nem sabemos se vamos atinar. A exposição da Dialética, como filosofia e método 16gico, isto é, como aplicação à análise do pr6prio pensamento, e não como aplicação a outros assuntos (a Economia, a Historiografia corrente, a Política, etc.), uma tal exposição da Dialética, que é a DIALÉTICA DO CONHECIMENTO, ainda tem poucos modelos, e somos obrigados por isso e n~ maior parte dos casos, por enquanto, a marchar às apalpadelas, produzinpo antes ensaios e aproximações experimentais que formulações mais ou menos definitivas. J;; pesando tôdas essas circunstâncias, e na falta de uma solução mais feliz, que entendemos conveniente abordar, antes do tema principal dêste trabalho - e portanto já dando a Dialética, pelo menos em seus traços gerais, como conhecida - abordar certas noções elementares de Psicologia que se encontram excessivamente deformadas no tratamento usual da matéria, tal como se encontra nas obras e trabalhos correntes e clássicos, e portanto lógico-metafísicos daquela ciência. J;; uma introdução necessária que facilitará a compreensão daquele tema principal, embora, a rigor, dêle dependa. Mas antes, e no presente capítulo, começaremos por situar o problema do conhecimento tal como se apresenta contemporâneamente e no nível atual da evolução cultural da humanidade. Matéria essa que a rigor deveria vir em derradeiro lugar, pois repres~nta o último momento daquela evolução; e que, por isso, não é de fácil exposição como ponto de partida,

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e não será tratado senão muito sumàriamente e para o fim exclusivo de chamar desde logo a atenção do leitor para a razão de ser de todo o resto dêste livro, e que vem a ser não somente a crise epistemológica em que se debate atualmente a elaboração da Ciência em geral, e que lhe está comprometendo seriamente o progresso; mas ainda a exploração ideológica dessa crise pelas fôrças mais reacionárias do mundo atual para o fim de deter ou embaraçar o desenvolvimento da consciência dos homens, ou da grande maioria dêles, acêrca de seu eventual destino que contraria frontalmente os interêsses materiais daquelas fôrças. Reconheçamos inicialmente um ponto em que tal exploração lavra mais acesa, e onde o idealismo, bandeira ideológica principal da reação, julga encontrar, em falsa ilusão alimentada por certos preconceitos descabidos de um materialismo imaturo e de forte traços metafísicos, armas para enfrentar seus adversários. O conhecimento não se satisfaz e não progride com a simples constatação imediata do real, isto é, dos fatos objetivos e concretos diretamente percebidos pelos nossos sentidos, e o estabelecimento das chamadas "leis empíricas", simples expressão de sucessões e concomitâncias. :Esse foi mais ou menos o ponto de vista dos materialistas do séc. XVIII, dos empiristas, dos - "legalistas" e do positivismo em geral, no correr do século passado. Trata-se de uma solução atraente e muito simples, para - não dizer simplista, elo problema epistemológico, e que dá conta efetivamente de certos estágios ou níveis elementares do conhecimento. Mas doutro lado, contraria frontalmente o que podemos observar com relação ao progresso do conhecimento em geral. A evolução do pensamento científico, e em particular o da Física moderna - que não pode ler considerada como um domínio à parte do conhecimfnto e de natureza especial e excepcional - mostra claramente ·que o problema é muito mais complexo. Contribuiu decisivamente para A derrocada do empirismo e legalismo, a penetrante crítica epistomológica levada a efeito por uma sucessão de cientistas, desde Poincaré, e até mesmo antes dêle, até os físicos mais recentes. Critfca tanto mais autorizada que ela não se inspira geralmente em preocupações de ordem especulativa apenas, mas na imperiosa_ necessidade prática de conduzir de maneira adequada, e com rigor e segurança, a pesquisa científica. As reservas que se é obrigado a fazer a êsses cientistas não se referem tanto ao trabalho oritfco que realizaram, e que em boa parte é de inestimável valor ipll1tcmológico, mas às conclusões filosóficas que muitos dêles, e Pi>f ncnré em particular, entenderam acrescentar àquela crítica Nll)Otfndo a conhecida história de Apeles e o sapateiro -. Tais

Crise epistemológica da Ciênda contemporAnea

Idealismo contra materialismo

Conhecimento e leis empíricas

Crítica epistemológica pelos cientistas

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PRADO

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Conclusões conclusões, em geral de caráter idealista e por isso largamente idealistas da exploradas pelos filósofos antimaterialistas, não somente são falsas, crítica epistemas levam os próprios cientistas que as apresentam a contradições mológica

Horizontes abertos pela crítica epistemológica

Marcha da elaboração científica

Matemática Lógica

e

flagrantes com sua obra no campo da ciência. No caso de Poincaré por exemplo, as explicações e concessões a que foi obrigado depois de seus primeiros trabalhos de crítica epistemológica, põem à mostra as incoerências em que se viu inadvertidamente envolcido, e de que nunca se livrou completamente. É de lembrar também a energia com que outros cientistas - como por exemplo, o maior dêles na atualidade que é Einstein - repeliram as conclusões idealistas que s,e pretendeu tirar de suas considerações epistemológicas. Seja como fôr - teremos ocasiao de ver êsse assunto mais atentamente em outra parte dêste livro - o fato é que a crítica epistemológica, conduzida por assim dizer . no próprio corpo da ciência e em função direta de sua elaboração, abriu novos e largos horizontes para a teoria do conhecimento, pois permitiu que se desvendasse o processo do conhecimento naqueles setores precisamente em que ela mais se aprofunda na Realidade objetiva, e vai mais longe na explicação do Universo. Referimo-nos à Física. E podemos dizer que a marcha daquele processo se encontra hoje perfeitamente caracterizada por aquêles mesmos que se têm incumbido de promovê-la diretamente e a estimular: os homens da ci~ncia. Faltando apenas uma interpretação adequada dos fatos assim revelados, o que aquêles homens .de ciência não souberam ainda levar a cabo. Resumamos as suas observações que coincidem aliás com o que se pode depreender da história geral da ciência. Da constatação dos fatos procura o pensamento científico passar para uma "teoria explicativa", da qual, por um processo de inferência, se possa dar conta do comportamento dos fatos. observados. Essa. inferência se faz, sobretudo, no domínio da Física, por 'via da Matemática. Sem levantarmos por enquanto o problema tão complexo da natureza da Matemática, que será amplamente discutido mais adiante, podemos no entanto adiantar desde logo que naquilo que ela tem de formal, a Matemática se confunde com a Lógica, ou pelo menos compõe-se de procedimentos muito semelhantes, se não idênticos aos da Lógica. Não da Lógica no sentido restrito da silogística aristotélica, pois as operações da Matemática se distinguem bastante do silogismo, mas "Lógica" num sentido mais amplo de processo geral e formal de inferência. Neste último sentido, •o silogismo e a operação matemática. se equivalem; e não faltou mesmo quem tenha procurado reduzir

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um a outro (2). Mas não é êsse o ponto que por ora nos interessa, e sim o fato de que o conhecimento científico, a Ciência, se constitui de teorias que "dão conta" dos fatos concretos considerados, no sentido de os "explicarem" e fazerem possível a sua previsão; isto é, sejam tais (as teorias) que o pensamento, por via âe raciocínios que chamamos de "inferência", matemática ou outra, e que partindo da teoria em questão, alcancem os fatos que ela explica. Sem entrar ainda na natureza da "teoria explicativa", ·porque isso constitui precisamente a parte principal do programa âa teoria do conhecimento que só adiante estaremos em condições de caracterizar, figuremos alguns exemplos destinados a tornarem claro o nosso pensamento e ilustrarem a marcha do Conhecimento. Tomemos a teoria da gravitação universal de Newton, fundamento de tôda a Mecânica moderna até época muito próxima de nós. Em que consiste essa teoria? Na explicação de um grande número de fatos que observamos a todo momento e que representam grande papel em nossa vida corrente, desde o movimento dos Corpos Celestes até a queda de qualquer objeto. A teoria da gravitação universal estabelece, na base da observação dos fatos, que os corpos, quaisquer que êles sejam, exercem entre si uma certa atração à distância, atração essa que .se faz com uma intensidade ou fôrça diretamente proporcional à massa dos corpos considerados, e inversamente proporcional ao quadrado da distância em que êles se encontram um do outro. A teoria da gravitação dá assim conta do comportamento de corpos à distância, um relativamente a outro, e permite descrever os fatos ocorrentes e que .dfzem respeito àquele comportamento. ~sse exemplo de uma teoria explicativa nos leva imediatanente a outra, que é a teoria geral da Mecânica em que a da gravitação pode ser considerada um simples caso especial, Para liso, é suficiente equipararmos a referida "atração" a outros fatos 1emelhantes, ou de efeitos semelhantes, como por exemplo o 1,fdrço muscular. Essa equiparação é legítima, sob certo aspecto, porque ambos os fatos (a atração e o esfdrço muscular) produlom movimento; e assim, como produtores de movimento, êles são a mesma coisa. Portanto em vez de falarmos em atração, esfôrço muscular e outros fatos da mesma natureza, isto é, produtores de movimento, falaremos genericamente em "fôrça", e definiremos

---(1)

Aaalm Poincaré reduz a chamada "recorrência."", que êle considera. a

e,traolo matemática por excelência, a.o silogismo (La

Science et l'Hypothêse, ,-,1,, 11132, pg. 20); enquanto a Loglstlca, que já conquistou foros definitivos no -.i1n10 da ciência, procura reduzir todo racloclnlo a operações de natureza

MAl•tm\tloa, ou pelo menos formalmente Idênticas a ela.

Natureza das teorias cientf• ficas ·

Teoria da Gra• vitaçio Univer•

sal

Fôrça e Movimento

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Estado de movimento

Movimento massa

e

Movimento potencial

A teoria científica é "explicativa" dos fa. tos

Maréha da elaboração cientifica

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essa fôrça em função do movimento que provoca ou que é suscetível de provocar. Uma série de observações, realizadas pela primeira vez por Galileu, leva à conclusão de que há dois tipos fundamentais de movimento a que se podem reduzir todos os demais: movimento uniforme e retilíneo e movimento variável. O primeiro é, por assim dizer, o "estado normal" dos corpos, e equivale ao repouso. O segundo é o estado dos corpos quando sôbre êles atuam "fôrças". O que caracteriza uma "fôrça" é portanto a propriedade de modificar o estado de movimento de um corpo, isto é, pô-lo em movimento se está em repouso, ou modificar êsse movimento, acelerando-o, retardando-o ou fazendo-o mudai de direção. É preciso considerar também a massa dos corpos, que quanto maior ou menor, sofrerá respectivamente menos ou mais a ação de uma mesma fôrça. Em suma, pela observação dos fatos, a Ciência forma uma série de noções: fôrça, massa, velocidade, etc. que definidas umas em função das outras .e relacionadas entre si, constituem um sistema ou teoria, que é a Mecânica, e de que se podem inferir todos os fatos que se exprimem pelo "movimento": a tra:p.slação dos corpos celestes, a queda dos corpos, a trajetória de um projétil, etc. Podem-se mesmo inferir outros fatos que embora não se exprimam por movimentos efetivos, representam movimentos potenciais, como por exemplo a ação de um esteio que suporta uma parede que ameaça ruir, ou a da água represada num açude. Quando o nosso raciocínio vai da teoria mecânica aos fatos, isto é, quando procura prever o que se passará em dadas circunstâncias, estaremos inferindo propriamente; quando nosso pensamento vai em sentido contrário, dos fatos à teoria, estaremos dando o que se chama "explicação" dêsses fatos. E por isso a teori~ é "explicativa." Isso esclarece o que entendemos por "teoria explicativa", e podemos agora reatar o fio da descrição que vínhamos .fazendo do processo do conhecimento, isto é, das operações do pensamento na elaboração da ciência. O nosso objetivo imediato, no momento, é unicamente considerar os fatos do conhecimento e da elaboração científica tal como êles efetivamente se apresentam, limitando-nos a retraçar a sua sucessão e "história" real, sem pretender ainda apresentar nenhuma explicação dêles - se é que depois de tal descrição ainda haverá algo a explicar -. E naquela ordem de idéias vimos que essa marcha da elaboração científica vai dos fatos para o estabelecimento de uma teoria explicativa. Como se faz isso? Os empiristas, geralmente considerados o extremo oposto

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dos idealistas (3), entendem que as teorias científicas destinadas a dar conta dos fatos observados resultam direta e imediatamente de tal observação; que se acham · como que contidos nos fatos; e procuram por isso interpretar os procedimentos empregados pela ciência, a experimentação em particular, como processos lógicos que se destinam a desvendar as teorias que já se encontram, tais quais, implícitas nos fatos. Criou-se para isso, paralelamente à Lógica clássica, isto é, à silogística ou dedução aristotélica, uma Lógica indutiva cujo precursor é como se sabe o inglês Francis Bacon. Mas nunca foi possível harmonizar essas duas lógicas, que se conservaram uma com relação à outra herméticas e estanques. Situação inadmissível e aliás nunca admitida, embora nunca explicada, porque implica um dualismo irredutível das operações mentais, dualismo que não se justifica. De fato, por que resultaria o conhecimento, em certos casos, da dedução,. em outros, da indução? E qual o critério da escolha de uma ou de outra dessas operações do pensamento em cada caso específico? :e conhecida a solução que Stuart Mill deu ao problema, que sem maior reflexão é em geral admitida, explícita ou implicitamente, nos tratados e manuais correntes e clássicos de Lógica: a dedução viria depois da indução, e operaria com os resultados obtidos naquela. Mas a não ser que se retome à indução aristotélica que não passa, na expressão justa de Goblot de uma "totalização do saber adquirido" (4), e muito diferente portanto do que é geralmente entendido hoje em dia por "indução" - a solução ao ingênuo e otimista filósofo inglês nada explica, e não concorda aliás com os fatos concretos da elaboração do conhecimento. O problema se complica sobremaneira quando se toma .também em consideração a Matemática, que constitui sem dúvida alguma uma operação de inferência, e precisamente ªSluela que apresenta re~ultados mais satisfatórios que são os da F1sica; e que, no eJ,ltanto, não se confunde com a dedução silogística, e muito menos com a indução. Ficamos assim com ·três lógicas distintas, o que está em contradição flagrante com a unidade fundamental do pensamento humano. Basta considerarmos os esforços desesperados, mns invariàvelmente fadados ao fracasso, que têm sido feitos para harmonizar a situação e livrá-la das incoerências em que hoje se debatem todos aquêles que se ocupam com o assunto nos moldes olAsslcos, para nos certificar que êle está mal colocado, e que U pistas exploradas estão sendo erradamente escolhidas . . (3) Para êstes últimos, o problema naturalmente não se propõe, porque ttl\lldora.m o conhecimento como já pré-formado no seu entendimento, tratando-se 111tn111 do descobri-lo ai. (4) Tratté, ãe Logtque, 5éme. édition, Paris, 1929, pg. 287.

Posição epistemológica dos empiristas

Lógica induti-

va

Matemática é um sistema lógico

Harmonização das três lógicas

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Mas além disso, existe contra a Lógica indutiva um argumento Incerteza do decisivo. É que apesar de seu já longo passado, não se conseguiu objeto da Ló- ainda, até hoje, explicar satisfatoriamente em que ela consiste. gica indutiva

Teoria científica e os fatos

Elaboração das teorias científicas

Hipótese científica

Para comprová-lo, basta percorrer os tratados tão numerosos que se ocupam com a matéria: somente existe relativo acôrdo num único ponto, a saber, na descrição dos métodos experimentais empregados pela ciência. Uma descrição puramente pragmática e longe de exaustiva, que não passa de um guia, quando muito, de 9.]guns procedimentos a serem empregados na experimentação e que esclarecem no máximo algumas maneiras de abordar os fatos, observá-los·, discriminá-los e os classificar convenientemente; e nada diz sôbre o essencial da questão, aquilo que precisamente deveria constituir a matéria específica da Lógica indutiva, a saber, como se efetua a passagem de tais fatos observados para a teoria que dá conta dêles e os explica. E é isso que interessa. Mas por que se mostra a Lógica indutiva impotente em face de seu problema essencial e fundamental? É que mais ou menos explicitamente, ela postula uma circunstância que não é verdadeira, a saber, que as teorias científicas se encontram de antemão e previamente a quaisquer operações de elaboração mental, implícitas nos fatos e nêles configuradas, bastando-nos interrogá-los convenientemente para que revelem o seu segrêdo, e que vem a ser a teoria que os explica. Daí o programa da Lógica indutiva, concretizada nos métodos que apresenta, de descobrir procedimentos de natureza formal e que aplicados aos fatos observados desvendem o conhecimento teórico que nêles se oculta. Não há portanto, pata ela, que preocupar-se com a questão da marcha do pensamento (ao elaborar os conhecimentos) da constatação e observação dos fatos para a sua teoria, uma vez que essa teoria deriva imediata e diretamente daquela consideração. Não é isso todavia que se observa na história da Ciência e nos fatos concretos da elaboração do conhecimento. As teorias não saem diretamente dos fatos, não derivam desde logo da consideração dêles. Tanto que aparecem antes como hipóteses a serem verificadas, isto é, confrontadas com os fatos a serem explicados. E mesmo raramente, se não nunca, a primeira hipótese sugerida satisfaz; ocorrendo até freqüentemente o caso de hipóteses concorrentes, cada qual com seus prós e contras. O que evidentemente não poderia suceder, se os fatos e as teorias que dão conta dêles se sobrepusessem assim mecânicamente como postula a Lógica indutiva, e a consideração adequada dos fatos fornecesse por si s6 a teoria . procurada. Na realidade, o pensamento científico, depois de considerar devidamente os fatos, configura

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com0 que fora dêles, uma possível explicação que depois, só depois, vai verificar. Há como que um salto, um hiato naquele pensamento ao passar da consideração direta dos fatos para a teoria com que se pretende explicá-los. Essa teoria, inicialmente simples hipótese a ser verificada, é buscada no arsenal ideológico preexistente em que se procuram enquadrar os novos fatos considerados, modificando e reajustando as teorias admitidas. Em suma, o que a generalidade do processo de elaboração científica evidencia é que as hipóteses que vão sendo sugeridas como "projetos" de teoria, não estão logicamente contidas na simples consideração dos fatos observados; e não se pode portanto chegar a uma tal teoria por nenhuma operação lógico-formal do tipo pretendido pela indução bacônica. Não seria aliás de esperar, depois de tanto tempo, três séculos e meio, de intensa elaboração científica posterior à concepção de Bacon, e se tal operação f ôsse possível, que já se tivesse pelo menos encontrado a pista que conduz para ela? E nada o indica, nem próxima, nem remotamente. Vejamos o assunto com o exemplo concreto de uma teoria que não só teve um grande papel no desenvolvimento da Física, mas ainda sofreu uma evolução acidentada e cheia de vicissitudes. Referimo-nos à teoria do éter, esta substância subtil com que a Física preenche - ou pelo menos preenchia - o Universo, fazendo-a penetrar-lhe tôdas as partes e recantos. A mais antiga concepção do éter, no terreno propriamente da ciência, parece ser devida a Descartes, que tendo feito da extensão a propriedade essencial da matéria - propriedade essa a que se reduziriam tôdas as demais - e fazendo inversamente da matéria a condição necessária da extensão, de tal modo que extensão e matéria constituíssem a mesma coisa ou o mesmo fato, teve de admitir a existência de uma substância que fizesse as vêzes da matéria nos espaços vazios, isto é, onde não houvesse matéria propriamente, no vácuo. Essa substância seria o éter. Por aí já se vê que o éter, desde seu nascedouro, não passou de uma pura "invenção", não verificada diretamente nos fatos, mas ideada unicamente para satisfazer necessidades teóricas da concepção cartesiana; concepção que por seu turno também não derivou jmediatamente de nenhuma consideração direta dos fatos, mas foi proposta por Descartes unicamente para justificar a posteriori a aplicação da Análise matemática à teorização dos fatos físicos. A teoria do éter seria depois aproveitada para dar conta de um grande número de fenômenos, e o próprio Newton tentou utilir.á-1.a para completar seu sistema da gravitação universal, expli0nndo-a por diferenças de pressão do éter. . Mas de tôdas essas

Passagem da consideração dos fatos para a teoria

Teoria éter

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Teoria do éter e fatos luminosos

Fatos electromagnéticos

Propriedades do éter

Papel do éter na explicação dos fatos físicos

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teorias, que jazem hoje no mais completo esquecimento e são conhecidas apenas por uns poucos especialistas de história da Física, a única que teve maior sucesso e se perpetuou foi a de Huygens, que aproveitou o éter para com êle explicar a propagação da luz, que seria, como se sabe, efeito de "ondas" do éter. E depois que Young e Fresnel conseguiram dar conta, com essas ondas de éter, e com um máximo de rigor matemático, da maior parte dos fatos luminosos - e em particular os de interferência, inexplicáveis pela teoria corpuscular, devida a Newton e que fôra geralmente aceita até princípios do séc. XIX - a concepção do éter passou para o domínio das teorias físicas mais solidamente estabelecidas. Solidez que se reforçará ainda quando Maxwell e a generalidade de seus continuadores adotam o mesmo éter e suas ondas para com êle darem conta dos fenômenos electromagnéticos. Mas apesar da segurança e rigor com que a teoria do éter dava conta, até há alguns decênios atrás, da generalidade dos fatos luminosos e electromagnéticos, não pode haver dúvidas de que só e exclusivamente a consideração direta dêsses fatos, sem intervenção de considerações estranhas a êles, nunca poderia ter sido formulada. A história da teoria, acima esboçada:, mostra que ela precedeu a consideração e mesmo o conhecimento dos fatos que ela pretende explicar, como se dá com os fenômenos electromagnéticos, mal suspeitados ainda num _momento em que o éter já estava tão firmemente estabelecido que até já se tratava de calcular-lhe a densidade e caracterizar outras de suas propriedades. E tudo isso é tanto mais exato que os mesmos fatos cuja consideração há meio século atrás levava os físicos à teoria do éter, já hoje os fazem . pensar de outra forma. O éter, embora ainda apareça nalgum ínanual anacrônico de Física, desapareceu completamente das cogitações mais sérias do assunto, sem esperança alguma de retômo. Estamos contudo aqui ocupando-nos com uma teoria · que embora considerada rigorosamente científica durante quase um século, evidencia infiltrações de indisfarçável n·atureza extracientífica. Sempre houve físicos que apesar da autoridade da ciência oficial manifestaram a respeito as mais sérias dúvidas. Não discutiremos aqui êsse assunto porque seria sobrecarregar inutilmente a nossa matéria. Para o que nos interessa, bastará considerar que não era a substância "éter" propriamente que interessava à teoria em questão, mas unicamente as propriedades ondulatórias da luz, ou antes, certas analogias entre os fatos luminosos e as ondas de qualquer natureza: de líquidos ou de gases como o ar. A introdução na teoria de uma substância misteriosa

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como o "éter" era perfeitamente dispensável, e poder-se-ia ter ficado únicamente na consideração daquela analogia de comportamento dos fatos luminosos e das ondas, o que seria suficiente para o tratamento matemático de tais fatos, que é o que realmente interessava do ponto de vista científico. Mesmo nesse caso, contudo, a teoria matemática da luz, como aliás qualquer outra teoria matemática, não constituiria, como evidentemente não constitui nunca, uma concepção derivada direta e unicamente da consideração dos fatos luminosos, que podem ser virados e revirados à vontade, submetidos a não importa que operações indutivas, sem nunca revelarem a função matemática com que são teoricamente e,q,ressos. A teoria matemática da luz não derivou diretamente da consideração dos fatos luminosos, mas foi estruturada à parte dêles, e somente depois nêles verificada. O intencionalismo do fim visado com a teoria, já de antemão objetivando dar conta dos fatos a que se aplicaria, é aí evidente. De certo modo, a teoria veio antes, os fatos depois. Isso aliás é geral em tôda elaboração da Física, e dispensamo-nos de citar mais exemplos porque a análise dos procedimentos da Matemática, que não precisamos desenvolver aqui - e que abordaremos em outra parte dêste livro - comprovam o fato ex-abundantia. As teorias físicas em geral não emanam ou derivam da consideração imediata dos fatos de que pretendem dar conta; mas se formam e arquitetam à margem dêles, freqüentemente até antes de serem conhecidos, e com o fim expresso e prefixado de explicá-los. E isso que é perfeitamente claro no caso das teorias matemáticas - o que já compreende a maior e mais substancial parte da ciência moderna - ocorre também com relação a outras teorias não-matemáticas. Para comprová-lo, basta constatar que a generalidade das ciências modernas, mesmo aquelas em que o emprêgo da Matem~tica é pràticamente nulo, procedem por vias que uma análise •atenta nos mostra serem idênticas às da ·Física em que a Matemática predomina. Em tôdas elas, o conhecimento marcha através de hipóteses que são propostas e depois submetidas à prova por processos que não se distinguem essencialmente daqueles . que encontramos na Física ou em outros setores onde se emprega o tratamento matemático. Existe portanto um problema que os empiristas, incapazes de lhe dar solução, procuram a todo custo escamotear: êsse problema é o da passagem da consideração dos fatos concretos da Healidade objetiva, ponto de partida de todo conhecimento, para n teoria que dá conta dêles e que constitui a substância da Ciên0111; que a distingue do conhecimento meramente empírico. Conhecimento empírico êsse que não passa de uma primeira etapa

Teoria mate• mática e fatos concretos

Teoria físicas e os fatos

As hipóteses na elaboração do conhecimento em geral

Ciência e conhecimento

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Passagem da consideração dos fatos para a teoria

Finalidade da teoria científica

Verificação da teoria científica

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rudimentar da elaboração científica. É porque subestimam essa distinção, encerrando-se num plano inferior e elementar do processo pensante, que os empiristas são incapazes de penetrar êsse processo a fundo. Mas sem entrarmos, por enquanto, na análise e interpretação daquela "passagem", dos fatos para a teoria, o que representa o ponto por assim dizer nevrálgico da teoria do conhecimento, podemos desde logo analisar mais detidamente o caráter próprio de uma teoria científica, isto é, caracterizar as condições a que deve corresponder para ser tida como tal. Notemos mais uma vez que nos limitaremos aqui, como até agora, a ·acompanhar os fatos da elaboração científica tal como se apresentam e como são interpretados pelos próprios responsáveis por aquela elaboração: os homens de ciência. É uma tal observação que fornecerá base concreta e os primeiros dados que nos permitirão abordar o nosso assunto da maneira mais objetiva possível, dispensando assim indagações preliminares relativas a pontos que só podem encontrar resposta na própria teoria do conhecimento que pretendemos aqui examinar, e não na sua introdução. Já foi observado que a finalidade essencial das teorias científicas consiste em dar conta dos fatos considerados, isto é, estabelecer um sistema de idéias (como a gravitação universal e a teoria mecânica no domínio dos fatos físicos, a origem comum das espécies e a hereditariedade no dos fatos biológicos) um sistema de idéias tal que por via de inferência o pensamento pos~a, a partir dêle, chegar aos fatos objeto da teoria em questão. É isso suficiente? Não. Uma teoria científica,· a par de explicativa dos fatos diretamente considerados, precisa ainda verificar-se em outros fatos além daqueles. Isto é, é preciso que entre suas conseqüências necessárias ocorra alguma ainda não observada. Um exemplo recente esclarecerá êsse ponto: é o da Teoria da Relatividade de Einstein. Decorre dessa teoria que os raios de- luz sofrem uma deflexão, insignificante embora, na proximidade de uma massa; em outras palavras, a luz sofre os efeitos da gravitação tal como um corpo material qualquer. Trata-se de um fato que, na ocasião em que Einstein formulou sua teoria, era inteiramente insuspeitado, e que contraria mesmo os princípios fundamentais da Mecânica clássica e tôdas as concepções soberanas naquela época. Submetido à prova numa observação que constituiu uma das maiores sensações no domínio da ciência, a previsão· da Relatividade foi plenamente confirmada. Fato aliás a que esta teoria deveu em grande parte sua consagração, e que constituiu o primeiro passo para uma das concepções fundamentais da Física contemporânea: a identificação da massa e da energia.

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A aplicabilidade de uma teoria a fatos desconhecidos ou ainda não observados, permitindo assim a sua descoberta, ou então a fatos ainda não explicados ou explicados de maneira menos satisfatória, tem-se mostrado um característico geral de tôdas as teorias científicas que tiveram significação no desenvolvimento da ciência. Forçoso nos é concluir que representa uma condição inerente ao próprio conhecimento. Uma teoria que desse conta, mesmo que fôsse aparentemente satisfatória, de um certo número de fatos, mas que se limitasse a isso, não abrindo perspectivas novas, não teria maior significação. E não faltaram teorias dessa natureza no curso da evolução do conhecimento humano: o túmulo em que as sepultou a história representa seu julgamento. Tais "teorias" podem servir como satisfação ilusória de um espírito pouco exigente e sem compreensão do sentido profundo da ciência; mas não seriam certamente "ciência." Isso porque a ciência não se destina a ser um registro passivo do Universo, um espelho em que êste se viesse refletir, e sim um instrumento de progresso com que o ser pensante que é o homem, penetra a Realidade objetiva a fim de nela e sôbre ela agir. Não se trata portanto para a ciência de simplesmente "retratar" o Universo, mas sim de armar o pensamento dos homens e abrir novas perspectivas para a ação dêles. Encontramos a expressão dêsse dinamismo da ciência na maior parte dos verdadeiros cientistas contemporàneos; e em particular no maior dentre êles que é indubitàvelmente Einstein. É dêle a seguinte passagem que entre outras reflete bem o espírito geral de sua obra e a posição verdadeira da Ciência: "Formular um problema é freqüentemente mais essencial que lhe dar solução, que pode ser questão de habilidade matemática ou experimental. Provocar o aparecimento de novas questões e possibilidades, considerar velhos problemas de um ángulo novo, isso exige uma imaginação criadora e marca um real progresso na ciência." (5) Embora Einstein, como a generalidade dos físicos burgueses (que apesar de sua objetividade quando falam como cientistas, descambam sempre, ao saírem de seu terreno próprio para o idealismo), embora Einstein tenha a tendência, neste ·caso, como em outros semelhantes, de explicar aquêle dinamismo da ciência por fatôres de ordem subjetiva, é interessante lembrar suas observações que, naquilo que têm de concreto e representativo de sua experiência de cientista, oferecem uma perspectiva prefácio de sua Introdução à lógica, clt.: "Este livro, à parte duas curtas passagens, não traz nenhuma Informação acêrca da tradicional lógica aristotélica. e não contém matérl3 alguma dela extraída.. Mas eu acredito que o espaço aqui dedicado à lógica tradicional corresponde bastante bem ao pequeno papel a que .essa lógica si:, viu reduzida na ciência moderna; e também acredito que esta opinião será partilhada pela maior parte dos lógicos contemporâneos."

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seus antecessores que prepararam o terreno para sua obra, e de seus sucessores que a aperfeiçoaram e completaram) foi sem dúvida considerável. Valor pragmáEncontramos aqui o sentido e valor pragmático da Lógica for'." tico da Lógica mal, isto é, da sistematização conceptual e de sua formalização: formal a categorização e formalização do raciocínio. Exprimindo a estrutura da conceituação e sua seriação no curso das atividades mentais, em fórmulas verbais precisas e rigorosas, á Lógica formal concede ao pensamento e seu funcionamento um plano, uma ordem pré-determinada que permite ao indivíduo pensante regularizar, com um máximo de precisão e um mínimo de esfôrço, as suas operações mentais. As representações conceptuais se sucederão e engrenarão umas·. nas outras de maneira sistemática e metódica, podendo-se prefixar de antemão e com rigor, o objetivo que se procura atingir com o pensamento; e conseguindo~se chegar com segurança e sem dispersão de esforços a êsse · objetivo. D.á-se com a Lógica, sob .certo aspecto, o mesmo que ocorre ,com a linguagem relativamente à representação e expressão conceptual: a conceituação, ao formalizar-se em linguagem, ganha em fixidez e precisão; deixa de sofrer as flutuações características e da natureza dinâmica e fluida da conceituação, para. circunscrever o pensamento ·e a atenção a uma área ou momento determinado de seu movimento. Também a Lógica formal, traçando as vias mais convenientes pelas quais deve marchar o pensamento, canaliza-o nas direções adequadas, e o mantém seguro no seu desenvolvimento. Podemos .prosseguir nesse paralelo, que é perfeitamente legítimo. Da mesma maneira que exprimindo-se exteriormnte_ em linguagem os conceitos se tornam suscetíveis de comunicação entre . os indivíduos, realizando-se assim a "socialização" do pensamento e . do conhecimento, e o progresso dêles, impossível e mesmo inconcebível enquanto encerrados na esfera subjetiva dos indivíduos, assim também a sistemática conceptual, formalizando-se e tradu-• zindo-se conseqüentemente em linguagem, passa a operar coletivamente, isto é, permite sua comunicação, o que não scm~ente _condiciona seu aperfeiçoamento e desenvolvimento, mas ainda faz .possível formar e educar o pensamento alheio, dispensando a reprodução em cada indivíduo, no curso de seu desenvolvimento (o que aliás seria impossível), a milenária aprendizagem mental da humanidade. Limites e asMas êsse valor pragmático da Lógica formal, que constitui aliás pecto negativo seu estímulo e fator de progresso, tem seus limites, e converte-se do formalismo além dêles em fator negativo. Pela sua própria natureza, significa lógico a regularização do pensamento por formas determinadas e ·fixas, que tendem a se tornar imutáveis e invariáveis. Alcançado um

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extremo, o pensamento se ossifica nessas formas que se fazem moldes e fórmulas rígidas. Foi o que se deu, alguns séculos depois de Aristóteles, com a sua Lógica e o seu silogismo. A tal ponto que a forma do pensamento acabou sobrelevando inteiramente seu conteúdo, exaurindo-se a atividade mental de gerações e gerações de pensadors na construção daquelas "máquinas de guerra dos silogismos da Escolástica" a que se refere Descartes. (93). Ocorre aqui igualmente com a Lógica formal fato semelhante ao da linguagem, que também tende a encerrar o pensamento dentro da camisa-de-fôrça de suas formas. Do mesmo modo que da degenerescência formalística da linguagem resulta . o "verbalismo", da da Lógica provém o '1ogicismo", de que temos êsses dois exemplos máximos que são a Escolástica medieval e o caminho por onde se engajou boa parte da Logísitica contemporânea. Tal degenerescência deriva do fato de que tanto a verbalização da conceituação como a formalização lógica da sistemática conceptual, tanto a Linguagem como a Lógica formal, produtos históricos máximos do psiquismo humano, tendem sempre, pelo impulso adquirido e possivelmente pelo efeito de uma lei de menor esfôrço, a reagirem depois de formadqs sôbre o próprio pensamento que os engendrou, provocando nêle a deformação máxima e mais grave que consiste em privá-lo da mobilidade que constitui a fonte de sua capacidade geradora. do conhecimento; ou pelo menos em opor obstáculo a essa mobilidade. Donde a estagnação do pensamento e do conhecimento precisamente em épocas como a da Idade-Média acima citada, em que a Lógica formal teve tão grande florescimento (94).

(93)

Regles pour la ãirection ãe Z'esprit,

s.

(94) Com relação à llnguagem e sua degenerescência verbalfstica, lembremos a pobreza de todo classiclsmo depois que Ultrapassa seu momento cUlminante; classicismo que no conhecimento prôprlamente, tanto como na arte, se caracteriza sobretudo pelo predomínio da forma sôbre o fundo.

O formalismo leva à predominância da

forma sabre o conteúdo do pensamento

PRÉ-HISTÚRIA DA DIALÉTICA

5 ORIGENS

DA METAFÍSICA

elementar do conhecimento é aquêle que objeOtiva o mais reconhecimento e identificação das feições do Universo.

Reconhecimento e identificação: primeiro Representa o ponto de partida e base sôbre que opera tôda ati- plano do conhevidade mental, que antes de mais, começa por reconhecer e iden- cimento NÍVEL

tificar o objeto de que se vai ocupar, seja êle uma feição percebida da Natureza, seja uma representação mental que se toma objeto de consideração e apreciação. O reconhecimento e a identificação são como a abordagem, e digamos assim, a entrada em matéria do pensamento. Mas está claro que para efetuar êsse reconhecimento e essa identificação preliminares, o pensamento tem de se inspirar no conhecimento preexistente. Quando lançamos um olhar pela janela e observamos uma árvore, isto é, reco-. nhecemo-la e a identificamos coma árvore, essa constatação preliminar, ponto de partida de nossas considerações e pensamento acêrca do assunto, é naturalmente condicionado pelo nosso conhecimento anterior que nos faz saber que aquilo que observamos é uma "árvore." O conhecimento de que nos vamos ocupar agora é êsse que faz possível tal identificação. O processo mental do reconhecimento e da identificação :pode Origem . genéser geneticamente retraçado, na escala biológica, ao tropismo da tica da identimatéria orgânica, porque êste implica a propriedade de certos ficação organismos de reagirem sob a ação de um estímulo específico. Há pois como que um. reconhecimento e identificação (ou algo de semelhante a isso) por parte do organismo em questão e relativamente àquele estímulo específico. De fato, se tais organismos são atraídos ou repelidos (tropismo positivo e negativo respectivamente) pela presença de certos fenômenos (luz, gravidade ... ) oq substâncias, é que têm a propriedade de distinguirem tais fenômenos e. substâncias de outros que não exercem sôbre êles ação alguma. Essa generalização do fato do reconhecimento e identificação tem muito interêsse porque nos mostra o papel que representa na vida orgânica: êle se liga diretamente à ação

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e atividades biológicas, e tem aí uma função primordial. Tocamos aqui se não na tese, pelo menos nos métodos da Psicologia behaviaurista, cujo êrro consiste precisamente em ter dado a seus métodos de pesquisa, perfeitamente legítimos e fecundos, foros de tese filosófica. Depois de conhecida a sucessão ou arco estímulo-ação (e aí o behaviorismo pára) nada impede, e pelo contrário tudo aconselha que se procure explicar e interpretar tal sucessão; porque de outro modo se confunde, e sem nenhuma Ato reflexo e razão para isso, o simples reflexo e o tropismo com o fato evipensamento dentemente mais complexo do pensamento, mesmo do pensamento simplesmente identificador que é seu plano mais elementar. A maneira pela qual a planta ressente a presença do sol e se desenvolve em sua direção, não é evidentemente a mesma que a do homem que percebendo aquela presença, se abriga contra ela ou a procura conforme os propósitos que o animam, e com um grande conhecimento de causa. Essa maneira de "ressentir" (reconhecer e identificar) a presença de certas feições da Natureza e de agir em conseqüência, é assim muito variada conforme o nível considerado da escala biológica: desde o tropismo e o simples ato reflexo, até o pensamento humano que se desenvolve na base de conhecimentos adquiridos através da experiência passada de tôda a espécie a que o homem pertence, e experiência filtrada e convenientemente elaborada, estende-se uma longa escala que participando embora do mesmo fato geral do reconhecimento e identificação, diverge no entretanto profundamente no que diz respeito à maneira pela qual se fazem êsse reconhecimento e essa identificação. Interessa-nos unicamente aqui o degrau mais elevado daquela escala: o do pensamento hl,1mano. De que maneira o homem reconhece e identifica as feições do Universo a fim de se conduzir em conseqüência? É êsse o nosso Natureza da o- problema, que nos leva a examinar a natureza e estrutura do peração de re- conhecimento que serve de base para tal reconhecimento e idenconhecimento e tificação. identificação As teorias clássicas do conhecimento abordam geralmente _êsse assunto de um ponto de vista inteiramente falso, que é o das feições em si, isto é, consideradas individual e isoladamente, quando na verdade o reconhecimento e a identificação implicam uma comparação e confrontação prévias de feições distintas; e mesmo, em rigor, de tôdas as feições anteriormente percebidas, representadas eventualmente e consideradas. Uma árvore, por exemplo, é reconhecida e identificada porque é diferente de tudo que não seja árvore: pessoas, animais, ervas, arbustos, etc. É verdade que sua individualidade de "árvore" resulta de certas características próprias, mas essas características se destacam e

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são notadas e consideradas precisamente porque não se encontram em outras feições. De outro modo, aliás, não seriam "características." A própria individualidade da "árvore" é assim relativa, pois implica outras individualidades; e é somente em função· destas últimas, bem como do conjunto de tôdas individualidades, que se propõe como objeto do pensamento. Note-se antes de mais nada que tôdas essas considerações que acabamos de fazer se referem unicamente ao nosso pensamento, conhecimento e conceituação de árvores, porque as árvores, como feições da Natureza exteriores ao pensamento, nada têm a ver naturalmente com aquelas confrontações, comparações e designações que fazemos a seu respeito, a não ser pelo fato de serem objeto delas. Essa observação, aparentemente inócua e que se assemelha a um truísmo (e o é de fato) é no entretanto importante, porque em virtu~e da confusão introduzida no assunto pelas especulações do idealismo, e que pesam sôbre os espíritos desprevenidos muito mais do que à primeira vista parece, somos muitas vêzes inadvertidamente levados a confundir as duas esferas suh;etiva e obietiva, projetando aquelas operações do pensamento (comparação, confrontação, designação) na Realidade exterior, como se fôssem as feições da Natureza que as realizassem, ou que elas lhes fôssem inerentes, quando evidentemente somos nós e nosso pensamento que as efetuamos inteiramente à revelia delas e para fins especificamente nossos de as representar mentalmente em nosso conhecimento. Examinem-se tais operações, e veja-se em que consistem: no relacionamento das feições da Natureza (confronto, comparação) segundo certos critérios que são dados pela experiência e inspirados nos propósitos que animam os homens no curso de tais experiências; e que se destinam a "organizar" e "sistematizar". essa experiência em sua conceituação de tal maneira que seja possível evocá-la a qualquer momento e utilizá-la convenientemente. Assim por exemplo para distinguir (reconhecer e identificar) certas substâncias que a experiência provou alimentícias, em oposição a outras que não o são, o indivíduo pensante tratará de "organizar" seu conhecimento e conceituação de modo a reconhecer e identificar aquelas substâncias sempre que estiver com fome; isto é, elaborará um sistema conceptual tal que qualquer substância, referida a êle, poderá ser imediatamente reconhecida e identificada como sendo ou não alimentícia. Num nível já elevado dessa elaboração, terá por exemplo dividido tôdas as feições da Natureza em orgânicas (que proporcionam, em parte, substâncias alimentícias) e inorgânicas, que não são alimentícias. Está claro que paralela e concorrentemente procederá a opera-

Distinção das esferas subjetiva e objetiva

Papel das operações do pensamento

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ções mentais semelhantes relativamente a outras necessidades e atividades, tendendo assim sua conceituação para um sistema único, ou pelo menos alguns grandes sistemas aos quais possam ser referidas tôdas as feições do Universo dadas pela experiência; e referidas em função das diferentes necessidades e atividaNatureza lógica des. Tais sistemas são organizados na base de qualidades; e é das qualidades . pelas suas qualidades que as feições do Universo são reconhecidas e identificadas. Isso é evidente, e poderíamos tê-lo dito de início, dispensando as longas e fastidiosas considerações feitas acima. Mas chegamos propositalmente por essa via indireta e complicada até a noção de qualidade, porque quisemos desde logo deixar bem claro, de um lado, que essa noção não é nenhum dado ou· categoria a prwri do entendimento (como pretende mais ou menos expressamente tôda a Lógica clássica, mesmo quando manejada por· quem se julga materialista), mas um tipo de conceituação construído por operações. do pensamento que ocorrem no curso das atividades e da .experiência do indivíduo pensante, para o fim específico de dar conta do reconhecimento e da identificação das feições da Natureza com que o homem lida e é obrigado a lidar. Em segundo lugar, quisemos As qualidades acentuar que as qualidades, tal como as conceituamos, não consexprimem um tituem nenhuma propriedade ou atributo inerente a tais feições, relacionamento mas exprimem o relacionamento do conjunto das feições experimentadas e de suas características, em função das necessidades e atividades humanas. Assim a qualidade de orgânico não é uma propriedade intrínseca e própria de certas feições da Natureza (os organismos vivos), mas exprime a maneira pela qual conhecemos e conceituamos tais feições e suas características, em confronto com outras, as inorgânicas; e em função de inúmeras necessidades e atividades humanas: alimentação, abrigo (vestuário e habitação), procedimentos de que se lançam mão a fim de Correspondên- adquirir os "objetos" necessários (caça, pesca, colheita, cultura; cia entre as ou então extração, mineração ... ) etc. Está claro que as quali~ qualidades e as dades correspondem sempre a certas feições da Natureza e suas feições da Napropriedades; mas essa correspondência não é direta, estabeletureza cendo-se como que univocamente e imediatamente entre feições e propriedades de um lado, isto é, na esfera objetiva; e qualidades de outro, na esfera subjetiva; pois a qualidade só se carac~ teriza em função de um sistema conceptual; e quando invocamos uma qualidade (consideramos o conceito dessa qualidade) temos sempre presente, embora sem percebê-lo desde logo (porque o formalismo da linguagem o dispensa) todo o sistema a que ela pertence, em função da qual existe, e de cujo conjunto é uma das resultant~s. Em suma, a qualificação . das feições da

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N aturnza que realizamos pelo pensamento não se reporta a essas feições tomadas individual e separadamente (como se fôsse uma Qualidade não designação própria), nem depende delas unicamente (como se a é essência qualidade exprimisse uma essência própria da feição qualificada); mas envolve sempre a consideração do conjunto das feições e uma discriminação e confronto entre tôdas que se faz em função das atividades e propósitos que animam o indivíduo ao considerá-las (95). Sumariando o exposto, temos que o primeiro e mais elementar plano do conhecimento consiste no reconhecimento e identificação; e que tal conhecimento se realiza pela qualificação, um tipo particular de conceituação que consiste em relacionar as feições da Natureza para o fim de discriminá-las e as caracterizar e distinguir cada qual com respeito às outras e no conjunto a que todas pertencem. As qualidades e o processo de qualificação correspondente podem referir-se mais diretamente à experiência sensível - como se dá por exemplo, em particular, no caso das côres -; ou podem afastar-se mais daquela experiência, como ocorre no caso do exemplo acima citado da qualidade de orgânico, que implica e pressupõe um complexo e imenso trabalho de elaboração conceptual antes de se constituir como "qualidade." Mas essa distinção não tem aqui maior importância: para o que nos interessa em seguida, pode a qualificação repousar mais ou menos direta e imediatamente na representação sensível, que isso não influirá em nossas conclusões. O que unicamente importa, e insistimos nesse ponto que é da máxima significação, é que estamos nos restringindo à consideração e análise de um único tipo de conhecimento: o do _reconhecimento e identificação~ conhecimento êsse que embora da máxima importância e significação - porque é na base dêle que opera o pensamento e se desenvolve todo o conhecimento não deixa por isso de constituir apenas um aspecto parcial e particularista do conhecimento em geral. E é tanto mais importante notá-lo com a maior atenção, que as dificuldades essenciais da teoria do conhecimento e da Filosofia em geral derivam da indevida generalização, a todo conhecimento, dos caracteres e da natureza específica daquela sua instância particular e preliminar. (95) Essa exposição sumária e preliminar de um assunto complexo e de difícil expressão verbal com o vocabulário e sintaxe metafísicos de que dispomos, será por enquanto, ao que pensamos, suficiente, porque se esclarecerá melhor mais adiante.

A identificação se faz pela qualificação

Identificação· e conhecimento

156 A interpretação qualificativo - identificadora constitui apenas um certo plano do conhecimento

Estabilidade e permanência das feições do Universo, ... e instabilidade e fluxo

A questão inicial da Filosofia

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Essa confusão ocorreu desde os primórdios da Filosofia; e ocorre ainda porque historicamente é a interpretação qualificativo-identificadora que inaugurou a evolução e presidiu ao desenvolvimento, até época recente, do pensamento filosófico; pensamento êsse que brota precisamente da contradição que em frente dos fatos do Universo resulta da posição em que aquela maneira de os interpretar coloca o pensamento humano e propõe os problemas do conhecimento. Efetivamente, de um lado, a possibilidade da identificação, e o próprio sentido e razão de ser dela, são condicionados pela admissão da estabilidade e regularidade (uniformidade e repetição) dos fatos universais. Assim por exemplo a côr e a forma de um fruto somente têm interêsse e sentido, do ponto de vista da identificação e das atividades humanas que nela se inspiram e apoiam, na medida em que tal côr e forma são gerais a todos os frutos do mesmo sabor e propriedades nutritivas. Se côr e forma fôssem iguais em frutos comestíveis e não comestíveis, que interêsse teriam elas como qualidades identificadoras para o indivíduo que procura alimentos? O conhecimento qualificativo-identificador postula assim (porque doutro modo seria inútil e nem seria considerado) a estabilidade e permanência das feições do Universo; o que dentro de certos limites, pelo menos, efetivamente ocorre. Mas doutro lado, a par de tal estabilidade e regularidade que fazem possível e útil a identificação, ocorre também a instabilidade e irregularidade dos fatos do Universo: um fruto hoje comestível, deixará de sê-lo amanhã quando estará podre; duas nascentes cuja água parece idêntica podem ser uma potável e outra não; e a potável numa ocasião, será possivelmente não potável em outra. É essa contradição, originada na própria natureza da constituição universal, que o homem enfrenta e de que sofre as conseqüências em suas atividades; atividades essas que fundadas na uniformidade e estabilidade, se desorientam na irregularidade, mutabilidade e transformação das feições do Universo. E é daí que brotam os primeiros problemas do conhecimento, que projetados na sua generalidade, dão origem à questão fundamental e inicial da Filosofia, e geradora de tôdas as demais: a da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo. Podemos ilustrá-lo com a Filosofia grega, matriz do pensamento filosófico, e cujos problemas, debates e soluções propostas somente se compreendem quando considerados à luz daquele fato. Coube ao gênio grego compreender em primeiro lugar a natureza profunda do problema do conhecimento qualificativo-identificador, ponto de partida de todo Conhecimento, e propô-lo em tôda sua generalidade. E daí nasceu a Filosofia.. Acampa-

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nhemo-la na sua eclosão e primeiro desenvolvimento, e abordaremos assim a história do Conhecimento, as suas vicissitudes iniciais, e os rumos que por fôrça delas irá tomar. A questão da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo propõe-se já claramente nas indagações em tôrno do uma suposta substância universal que daria origem a tôdas as coisas e que as constitui; e que, como se sabe, representa o problema central de que se ocupam os chamados físicos de Mileto (Tales, Anaxímenes e Anaximandro), os precursores da Filosofia grega. Tal substância representaria a uniformidade e a permanência do postulado qualificativo-identificador. Em rigor, contudo, ela não resolvia o problema, pois fôsse qual fôsse, a água de Tales, o ar de Anaxímenes ou esta substância indefinida que é o &1mpov de Anaximandro, o próprio fato de sua transformação e transmutação importava em multiplicidade e fluxo, que era o que precisamente se tratava de reduzir à uniformidade e à permanência. Uma nova geração mais madura de filósofos da segunda metade do séc. VI, perceberá a incoerência, e abandona a conceção de uma substância sensível matriz e componente de tôdas as coisas, para procurar a unidade do Universo em princípios além e acima dos sentidos. Para essa grande modificação do curso do pensamento grego contribuíram certamente concev,ções de ordem extracientífica e mística cuja origem nos é difícil precisar; mas que, inteiramente ausentes nos físicos de Mileto, marcam profundamente tôdas as correntes filosóficas da segunda metade do séc. VI em diante. Tanto os pitagóricos, como Heráclito e os eleatas, que representam os grandes vultos dessa época, intermeiam seu pensamento com especulações acêrca do sobrenatural; e o "princípio" com que cada qual procura unificar o Universo participa sempre, em maior ou menor proporção, de fôrças extra e supernaturais. Mas ~e êsse fator místico-religioso, que segundo Zeller é de origem estrangeira e provém de influências orientais, contribuiu para dar um caráter específico e original ao pensamento grego, e acentuar sua nova direção, resulta no entretanto da observação dos fatos, e em particular de sua seqüência posterior, que outra circunstância constituiu disso o fator fundamental e decisivo. A transição das concepções dos físicos de Mileto para as dos filósofos da segunda metade do séc. VI representa em última instância a ascensão do pensamento grego do nível do empirismo rudimentar e grosseiro, para o do racionalismo, que faz então sua entrada na história da cultura humana. Do conhecimento limitado à simples constatação empírica dos fatos, e de sua representação imaginativa segundo modelos sensíveis de fácil e imediata identificação (como os aros de uma roda com que Anaximandro explicava os fogos celestes, ou

A questão da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo

Origem do racionalismo

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a própria "substância" modelada tal como os materiais comuns), Sistematização passam os pensadores gregos a um plano mais abstrato, e vão racional do co- ocupar-se diretamente com o próprio Pensamento em si e com a nhecimento

Explicação da unidade e permanência por um princípio racional -.

sistematização racional do conhecimento, procurando realizar no conjunto dêle o que a Lógica denominaria mais tarde de "coerência", isto é, o entrosamento harmônico da conceituação; a estruturação conceptual em oposição ao simples registro empírico de representações sensíveis que caracterizara a fase anterior. O próprio argumento que a nova filosofia emprega contra a substância dos milésios, e que reproduzimos acima, argumento de natureza puramente conceptual em que se contrastam conceitos, pondo em relêvo sua contradição, já mostra uma feição nova do pensamento e a preocupação de enquadrar a conceituação empregada num sistema de conjunto em que as diferentes partes se ajustassem harmônicamente umas nas outras, e em que houvesse sempre entre elas uma correspondência e concordância perfeitas. Ora essa preocupação que chamaríamos hoje de "lógica", não constitui senão expressão dos primeiros passos do processo de logificação que assinalamos anteriormente. É: o que veremos na análise a que vamos proceder desta brilhante fase da Filosofia grega que se estende da segunda metade do séc. VI até a segunda metade do IV. Estimulada e condicionada pelo ponto inicial de partida que vimos acima, a evolução do pensamento e do conhecimento gregos se engajava por novos rumos. Em Pitágoras já encontramos um primeiro passo decisivo no sentido de deslocar a indagação e explicação relativas à unidade e permanência do Universo, das substâncias sensíveis para a esfera do pensamento. Como se sabe, Pitágoras pôs em lugar da "substância" dos milésios os números, ou antes, as proporções constantes, expressas numericamente, com que se manifestavam os fatos físicos. Essa concepção original, que teve provàvelmente como ponto de partida a surpreendente descoberta da relação entre o comprimento das cordas musicais e a altura do tom que emitem suas vibrações, importava em última instância em transferir para o Pensamento ou a Razão, elaborador dos conceitos matemáticos, o papel que dantes cabia a elementos sensíveis que eram as substâncias milésias: era o Pensamento que realizava a unidade, a permanência e a ordem nesse caos aparente que é o Universo; ou antes, era nêle, ou melhor num pensamento despersonalizado que é a Razão, que o conhecimento encontraria tal ordem; e é lá que deveria procurá-la, sendo a Matemática o instrumento para isso, ou pelo menos o principal. A matéria, ou aquilo que chamaríam~s de "maté;,~ª" e que, Pi~~goras chama o "ilimitado" - qualquer coisa como o mcognosc1vel de Kant - passa no seu sistema a um

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plano completamente desprezado, concentrando-se o conhecimento, segundo êle, no "limite", isto é, nas formas em que o Universo se presume dever-se dispor e que são dadas pelos números e suas relações. É êsse o ponto de partida do pitagoricismo, que procura então descobrir nos números e suas propriedades a configuração universal. Deriva daí a grande contribuição de Pitágoras e seus sucessores para a elaboração da Matemática, sendo êles sem dúvida os principais precursores da disciplina que propriamente denominaríamos assim, em contraste com as contribuições anteriores dos egípcios, babilônios e mesmo dos físicos de Mileto (em particular Tales a que se devem mesmo alguns tímidos passos no sentido da racionalização matemática) que não tinham passado em geral daquele conjunto desconexo e dispersivo de fórmulas práticas empl.ricamente descobertas a que nos referimos anteriormente. Mas apesar de encontrarmos em Pitágoras os primeiros traços marcantes do racionalismo grego, e mesmo os germes do dualismo da forma e da matéria que teria tamanho papel na filosofia de Platão e Aristóteles, as suas concepções, pela sua singularidade, ainda não se situam, no seu tempo, na linha mestra do desenvolvimento da Filosofia grega. Isso caberia a outro princípio unificador do Universo, o Logos, impossível de caracterizar e precisar fora do momento histórico e das circunstâncias ideológicas em que surge, e que terá mesmo interpretações variadas segundo os filósofos da época. O que não há dúvida contudo, é que o Logos revela claramente suas raízes e seu conteúdo conceptualista. Apesar do esfôrço de Heráclito (criador ou pelo menos representante conhecido mais antigo dessa concepção) de tomar o Logos imanente no Universo e confundido com suas feições sensíveis - uma espécie de alma do Universo que se parece muito com a sub~tância de Spinosa - o Logos não exprime realmente senão o ordenamento que a Razão humana introduz no caos aparente e fluxo permanente de tôdas as coisas em que Heráclito tanto insiste. E Parmênides de Eléia, o adversário de Heráclito, não fará senão afirmar isso mesmo, embora envolvendo suas opiniões numa linguagem poética e figurativa, quando opõe à enganadora ilusão dos sentidos, que apresentam um Universo instável e em permantente transformação que gera a falsa Opinião, opõe a Verdade que consiste no Ser imutável e eterno. Pois o que é êsse "Ser" de Parmênides .se não a transposição, para a Realidade objetiva, do Pensan:ento. humano através de que se faz a identificação das feições ~n.1ver:a1s? e ~e lhes concede ,com isso a estabilidade que a identif1caçao 1mphc1: ~ que, se es,ta pr~cis~mente procurando explicar? O Ser de Parmemdes e a copula ser , pela qual se exprime ver-

Pitágoras e Matemática

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Logos: princípio unificador do Universo

O SER de Parmênides

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Método de Parmênides

Contraste entre o método de Parmênides e o dos físicos de Mileto

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balmente e formalmente a identificação, e que o filósofo transpõe para a Realidade; ou antes que opõe àquilo que entendemos por Realidade, que seria o Universo exterior, e que Pannênides reputa enganadora ilusão dos sentidos que nos fornece unicamente a Opinião, em contraste com a Verdade que é no próprio pensamento que se há de buscar. Tanto assim que o caminho da Verdade procurada por Pannênides não está nos dados da experiência, na observação dos fatos, segundo os procedimentos usuais da ciência e que eram os dos físicos de Mileto; mas sim na especulação pura, que Parmênides aplica rigorosamente na primeira parte do seu poema filosófico onde se ocupa com a Verdade e inaugura um método racionalístico que caracterizará daí por diante tôdas as correntes de pensamento que vão dar nesses · maiores expoentes da Filosofia grega que são Sócrates,. Platão e Aristóteles. É através de uma série de raciocínios puramente especulativos - isto é, livres de quaisquer considerações de ordem experimental, e construídos em ·bases exclusivamente conceptuais e lógicas, que Pannênides chega à caracterização do Ser (96). O traço essencial da filosofia dos eleatas e seu grande legado ao pensamento grego, consistirá precisamente naquele novo processo ou método do conhecimento que antepõe à realidade dos fatos, a coerência interna do pensamento; isto é, em que o essencial não são os fatos objetivos tal como experimentalmente os percebemos e, apreendemos, mas a descoberta da maneira lógica de os dispor no pensamento e na conceituação. Os fatos serão aquilo e se comportarão daquele modo que corresponde mais coerentemente a exigências racionais e lógicas. Zeno, discípulo de Pannênides e seu continuador·· imediato, provando especulativamente a . inexistência do movimento, sobrepunha evidentemente as exigências da Razão e coerência do pensamento, aos dados objetivos dos sentidos e da experiência. Isso corresponde, em última instância, em modificar a posição anterior do problema filosófico, que já não se refere mais, com os eleatas - como se referia antes dêles, desde os precursores de Mileto - à simples interpretação dos fatos, e propondo-se em continuação à pesquisa ·científica, como complemento e generalização (96) Para dar uma idéia do método de Parmênldes, transcrevemos a seguir um espécime de suas considerações. Partindo da noção de Ser, que êle está procurando caracterizar,· Parmênldes assim argumenta: "O que é, não se pode ter tornado o que é, e não pode tão-pouco deixar de ser ou tornar-se outra coisa; pois se o ser começou a existir, ele saiu ou do ser, ou do não-ser; ora no primeiro caso êle saiu de si próprio, êle se engendrou a si próprio, o que significa que êle não se tornou, e é portanto sempre, é eterno; . o segundo caso supõe que algo possa nascer .de nada, o que é absurdo." e assim segue a argumentação de Parmênldes para provar que o Ser é eterno, único,· imutável, etc.

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do conhecimento adquirido naquela pesquisa; . mas dirá respeito diretamente ao pensamento, ou antes, à conceituação preexistentetal como se apresentava ao pensador e em função da qual se operaria sua especulação. f: com conceitos preexistentes e adquiridos naturalmente no curso de sua formação e educação, que Parmênides raciocina para caracterizar o Ser, e que Zeno prova a inexistência do movimento. E é em face de tal conceituação, tomando-a sempre no sentido exato em que a receberam e como a apreenderam, e para o fim de lhe conservarem aquêle sentido e lhe assegurarem a harmonia e coerência internas com que se deveria apresentai, que os eleatas constroem especulativamente a sua Verdade. f: a conceituação portanto, e não os fatos reais, que constitui o objeto essencial da especulação eleata. E tanto é exato que essa especulação dava .à Filosofia um novo sentido ·diferente do anterior .e paralelo a êle, que o próprio Parmênides o distingue expressamente em seu poema filosófico, reservando-lhe â primeira parte dêle, sem por isso desprezar completamente o objetivo tradicional da Filosofia que vinha . desde os precursores de Mileto, objetivo a que dedica a: segunda parte de sua obra. A Filosofia - que ainda não tinha aliás êsse nome que somente aparecerá com Sócrates - deslocava assim o centro de suas atenções para o Pensamento e seu conteúdo: a conceituação; e fazia-se com isso, es$encialmente, o conhecimento do conhecimento. Não se rompia inteiramente com isso, contudo, a ponte que ligava as duas esferas em que depois dos eleatas se subdividira ·o conhecimento. Nem isso era possível, e a separação rígida em que aquelas esferas aparecem em Parmênides não podia ser mantida porque ambas se penetram mutuamente, e não são na verdade senão dois aspectos do mesmo assunto. Tanto mais •que na raiz das duas se propunha ainda o problema fundamental que estimulara tôda especulação filosófica e lhe dera razão de ser: a uniformidade nà multiplicidade e a permanência no fluxo. Lembremos que outro não fôra em última instância o objetivo dos eleatas, que depois da ambígua e obscura solução dada por Heráclito, tinham deslocado francamente a resposta para o terreno conceptual. É: no Ser, que na verdade não passa de uma projeção da conceituação na existência concreta e exterior, que encontraram, .como vimos, aquela uniformidade, unidade e permanência. Mas essa solução ainda era incompleta, pois separara-se com ela a esfera conceptual da da Realidad~ dos fatos; tratava-se agora de restabelecer a unidade do conhecimento rearticulando e reentrosando aquelas esferas. Tôda a Filosofia seguinte se esforçará nesse sentido; mas ela evoluirá para o mesmo fim marchando por vias opostas: de um lado, da conceituação para a Realidade; e de outro, inversamente, da Rea-

Natureza da especulação eleata

A Filosofia como conhecimento do co• nhecimento

Separação das esferas subjetiva e objetiva

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R~izes e ~atu- lidade para a conceituação.

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A primeira direção será a do idealismo; a outra, do materialismo. mo e materia~ Essas duas direções, ho entanto, não se afirmam· e distinguem lismo gregos nitidamente desde 1ogo, e encontramo-las a princípio ainda con~ fundidas, embora já em vias bem marcadas de se diferenciarem; É o que se. observa particularmente nos sistemas mistos, que· hoje diríamos "ecléticos", de Empédocles e Anaxágoras; e é somente no atomismo de Leucipo, de um lado, e no florescimento idealista dé que resultarão o platonismo o grande sistema de Aristóteles; de outro, que materialismo e idealismo respectivamente marcam, nítida e distintamente, suas posições específicas. Não insistiremos no materialismo, que pelos motivos que logo veremos, terá em confronto coin seú concorrente idealista um papel secundário no desenvolvimento da Filosofia grega; · bem como, . mais tarde, no da cultura do Oéidente em geral; e somente recuperará seus foros com o desa.brochar da ciência moderna. Note-se todavia que embora tão divergente do idealismo no que diz respeito à concepção geral do Universo e mesmo à natureza .do conhecimento e da sua .elaboração, ·o materialismo terá as Racionalismo do · materialis- mesmas .raízes racionalistas do seu adversário. É na sua maior mo parte em bases puramente racionalistas que êle se estrutura e apoia suas concepções, a saber, em dados e conclusões da Razão, obtidos especulativamente e por simples operações lógicas, como diríamos hoje, .do pensamento. .É certo. que os materialistas procuram refe~ rir tais conclusões especulativas à experiência ·sensível, e fazem mesmo disso · um princípio essencial de seu método de conhecimento. Mas essa posição é muito mais teórica que efetiva, e constitui antes uma simples homenagem que prestam à su~ concepção materialista fundamental, a saber, que todo conhecunento provém dos sentidos. Isso porque ·de um lado não somente os recursos experimentais da época eram naturalmente muito limitados, quase inexistentes pràticamente, mas sobretudo. porque a própria maneira com que se propunha a maior parte de suas conjecturas especulativas, e particularmente as fundamentais e de grande generalidade como a concepção atômica e a dos "simulacros" desprendidos dos objetos e que afetando os sentidos provocavam as sensações, aquela maneira tornava desde logo impossível a verificação experimental de tais conjecturas. O que aliás não tinha para os materialistas maior importância, pois êles se contentavam geralmente com a "plausibilidade" de suas teorias e com o fato de elas serem racionalmente ou logicamente possíveis, isto é, · compatíveis com seu modo habitual de pensar. Doutro lado, e ainda mais concludente no caso, o que os materialistas gregos consideram a verificação experimenta~, é algo de muito diferente do que hoje enten-

rezã d:o •· idealis-

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deríamos por tal, e. não passa na realidade de um simples e. grosseiro confronto, realizado pela imaginação, entre conjecturas racionais e hipotéticos modelos sensíveis mais ou menos aproximados. Aliás tôdas . suas explicações não· passam de tais reproduções aproximadas e julgadas plausíveis, de fatos sensíveis corriqueiros e banais, e, por isso, fàcilmente acessíveis à imaginação (97). Nesse sentido, os n:iaterialistas são os continuadores dos físicos . de Mileto, e Aristóteles tem inteira razão quando a êles fi)ia Demócrito, o grande materialista de seu tempo (98). Há contudo nêles algo de novo: o seu racionalismo, que contrasta vivamente com a inge-; nuidade e o realismo empírico dos precursores da Filosofia grega, e que os aproxima, sob êsse aspecto; dos idealistas. Assim o .materialismo, em contraste com o idealismo, ·se carac teriza sobr(:)tudo pela sua intransigente posição de princípio, mas de princípio unicamente, em favor dos sentidos como origem uni versai e única do conhecimento, em oposição a tudo quanto constituísse contribuição de um pensamento puro onde precisamente os. idealistas situavam a fonte legítima de tôdà. verdadeira ciência (99). E se de um lado aquela posição do materialismo assegurou uma base concreta à elaboração do· conhecimento e freou a especulação filosófica, impondo justos limites ao racionalismo e impedindo sua degenerescência que tantas vêzes ocorreu, para estéreis divagações em circuito fechado (100), doutro lado impedfü0o de abordar corretamente os problemas próprios do pensamento e de suas operações. O materialismo conservou-se por isso à margem da questão fundamental que se propunha naquela fase do desenvolvimento da cultura grega que s€lria o· ponto de partida da cultura universal: a estruturação ·adequada dos processos do pensamento para o fim da sistematização progressiva e met.odicamente realizada, do conhecimento adquirido, como base necéssária para a aquisição de conhecimentos novos; numa palavra, a meto-

Primitivo e novo materialis-



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{97) Assim por exemplo afora os fundamentos teóricos . e racionais da concepção atômica (e que é Iia verdade tudo que realmente importa aos materialistas gregos) a meihor compróvação sensivel que dão daquela concepção é o fato banal de grãos de poeira suspeilSos no ar que se podem observar numa réstia de luz .. (98) Demócrito, como se sabe, faleceu na .juventude de Aristóteles. (99) Em ·última instância e fundamentalmente, a divergência entre materialismo e Idealismo, tanto na aurora do pensamento filosófico, como ainda hoje, situa-se no ,terreno religioso e fldelsta. Mas não é êsse aspecto da questão que nos Interessa aqui diretamente, e nos referiremos a êle unicamente nos momentos em que a questão religiosa vem à tona e interfere direta e decisivamente na evolução dos fatos históricos do conhecimento. (100) Sem o contrapêso do materialismo, o Idealista Aristóteles não teria realizado sua grande obra.

Limitações do materialismo grego

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Os problemas dização dó racionalismo, o que não· é senão o processo de logificapendentes da ção. Essa tarefa caberá sobretudo, podemos dizer exclusivamente, Filosofia e o ao idealismo, cuja posição fundamental, voltada para o Pensamento, idealismo

Fatôres imediatos. da logificação na Grécia doVelVséculos

Caráter da sofística grega

vai ao encontro dos problemas suscitados por aquêle processo de que veremos agora a fase final neste primeiro ciclo do desenvolvimento da cultura humana que compreende o Mundo Antigo. Além dos fatôres de ordem geral, concorrem na fase que vamos considerar (V e IV. séc. A. C.) .circunstâncias especiais que representam o estímulo direto e · imediato ao desenvolvimento do processo de logificação do conhecimento e pensamento gregos. Tais circunstâncias se prendem às condições sociais e políticas da Grécia, e em particular de Atenas - onde precisamente se situará o centro do movimento filosófico da época -. O mundo helênico atravessa então um período de grandes agitações derivadas de acesa e intensa luta de classes, e que por efeito das instituições políticas vigentes, refletiam-se sobretudo nos debates públicos da Agora e dos tribunais onde o povo reunido deliberava sôbre todos os negócios da cidade e de seus habitantes. É assim em grande parte em tômo daqueles debates e dos votos decisivos com que se encerravam, que giravam a vida das cidades gregas e os interêsses políticos e mesmo privados dos cidadãos. Daí a importância da retórica e do discurso com que se convencia, com que se formava opinião e se arrebatavam decisões. É. com o manejo adequado da palavra que se conquistavam votos por ocasião das grandes deliberações que ·decidiam da sorte de facções e partidos; e é com êle que perante os tribunais populares se salvavam réus e acusados, e se eliminavam adversários perigosos. O prestígio que a retórica e a dialética (discussão) adquirem no conselho dos gregos toma-se assim imenso. Prestígio tão grande que a dialética, de simples debate, é elevada por Sócrates à categoria de principal método de conhecimento; e será referida por Platão como a "cumieira" do Saber. Platão aliás empregará a expressão "dialética" por Ciência ou Filosofia. Essa evolução do sentido da palavra já é sintomática; É nesse ambiente saturado pelos graves e profundos . problemas humanos, políticos e sociais em jôgo, e em tais circunstâncias em que a segurança na condução do pensamento e a clareza de sua expressão pela palavra têm tamanha importância, é nessas condições que surge a sofística, a fonte principal da Filosofia da época. A sofística, que para ser julgada corretamente precisa ser antes liberta do sentido pejorativo que a linguagem vulgar lhe atribuirá, é muito menos uma filosofia propriamente - pois •nela se congregam as mais variadas opiniões e diferentes pontos de vista - que um método. Método no duplo sentido de processo pedagógico desti-

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nado a preparar as novas gerações de cidadãos gregos para a vida em geral, e a vida pública em particular; e de disciplina mental. Não há que Hudir-se com a argumentação aparentemente especiosa e a semblante chicanice dos sofistas; bem como com o tom em geral negativista e céptico de suas considerações - ·que aliás em grande parte exprime o clima ideológico de uma época de transformações rápidas e profundas, e de desprestígio crescente de antigos valores morais, em favor dos quais o reacionário Platão sairá em defesa com tanta energia e tanta agressividade contra os sofistas que bem· melhor que êle, sob êsse aspecto, representavam sua época -; o que está atrás daquele aparente jôgo de palavras é a preocupação de precisar têrmos, buscar expressões seguras, delimitar conceitos, entrosá-los convenientemente entre si; metodizar e ordenar, em suma, o pensamento, com o objetivo de tomá-lo nítido, rigoroso, livre de confusões, e adequado ao assunto em debate e considerado. Se é indubitável que os sofistas trouxeram também para suàs dissertações um conteúdo apreciável de conhecimentos que através dêles se difundiram pelas novas gerações helênicas de que foram os grandes mestres - e nisso a História já lhes fêz .há muito justiça - é sobretudo a . "forma" do pensamento que os preocupa, a expressão verbal dêle; não por simples esteticismo abstrato (de que nunca se cogita em épocas culturalmente fecundas), mas com o objetivo concreto e prático de tomá-lo claro. Não é por acaso que se deve a um sofista, Protágoras, a primeira gramática; e a êles também a análise e crítica, de um ponto de vista que chamaríamos hoje "lógico", da poesia clássica. · A sofística se reduz assim, em última instância, e no essencial de sua contribuição filosófica, a um processo ou método de ordenamento do pensamento; ou pelo menos, constitui o terreno principal em que êsse ordenamento se realizou, ou começou a se realizar. E isso já representa um passo decisivo da logificação, cujo alvorecer encontramos. naqueles precursores anteriormente referidos do racionalismo grego que primeiro começaram a se preocupar com a· sistemática .do pensamento julgando descobrir nela o princípio ordenador e unificador do Universo - o que pôsto em outros têrmos e referido ao Conhecimento como função das atividades e necessidades do indivíduo pensante, não deixa de ser exato. Aquêle caráter da sofística se acentua nltidamente nas suas expressões ou resultantes mais elevadas. É o que vamos encontrar na obra de Sócrates. Sócrates não se inclui ordinàriamente entre os sofistas; e há razões ponderáveis para isso, apesar dos inúmeros traços que apresenta em comum com êles. Mas aquilo que o distingue dêles consiste sobretudo e precisamente - pelo

Caráter da so~ fística grega

Ordenamento do pensamento e logificação

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Especificidade menos o que nos interessa aqui diretamente - em que na filosofia do Pensamento de Sócrates é claramente destacada a especificidade do Pensamenna fiiosofia de to como função elaboradora do conhecimento; o que ainda se disSócrates

farça atrás da dialética dos sofistas, onde o conhecimento em si ainda sobreleva o Pensamento. Em Sócrates não: é o Pensamento como pensamento, a Razão e seu papel que centralmente o interessam. É sintomático o fato de Sócrates, tendo-se inicialmente dedicado às ciências, delas se afastou insatisfeito por não encontrar aí o que procurava. De fato, não é o conhecimento que o interessa propriamente, mas sim a maneira de conhecer. Sócrates não somente não apresenta sistema algum de conhecimento, nem mesmo relativamente ao Bem que tanto o preocupa; e não procura dar resposta a nenhum dos problemas pendentes que tanto absorviam as atenções de seus contemporâneos e encontravam nos sofistas pesquisadores incansáveis; mas ainda pretende que nada sabe, e nada é capaz de saber e ensinar. Recorde-se a passagem famosa do Teaetetus de Platão em que Sócrates se compara a uma parteira: "Minha arte é muito semelhante à das parteiras, mas distingue-se em que atendo homens e não mulheres, e zelo pelas suas almas quando em trabalho de parto, e não pelos seus corpos: e o triunfo de minha arte consiste em examinar rigorosamente se o pensamento a que dá luz a mente de um jovem é falso ídolo ou um nobre e verdadeiro parto. E como as parteiras, sou estéril, e a crítica que freqüentemente me fazem· que proponho aos outros perguntas que não tenho inteligência para responder, é muito justa - sendo a razão disso que o deus me compele ser uma parteira e não permite a mim próprio dar a luz. E portanto não sou nada sábio, e nada tenho para mostrar que seja invenção ou parto de minha própria alma, mas aquêles que comigo mantêm relações, aproveitam." (101.) É certo que Sócrates visa fins éticos e o conhecimento do Bem. Mas êsse conhecimento segundo êle, não se apreende senão por si próprio e pelo uso adequado da Razão. Acaba confundindo-se assim com o pensar correto e acertado. E assim a tarefa que Sócrates se impõe é ensinar ou antes ajudar os outros a usarem devidamente o seu pensamento e atingirem com isso o conhecimento do Bem, o que é o mesmo que agir bem, pois que quem conhece o Bem, age bem. Sócrates não deixou, como se sabe, obra escrita, e a melhor fonte de informações que possuímos a seu respeito são os Diálogos de Platão, o que toma muitas vêzes difícil distinguir o que per(101) The Dialogues of Plato translated into english by B. Jowett, M. A. Edição Randon House. New York. II, 151. As citações seguintes de Platão são tôdas tiradas dessa tradução.

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tence ao mestre e o que constitui contribuição original do discípulo. É provável que Sócrates tenha trazido para a Lógica platônica algumas de suas idéias mais gerais; mas é de Piatão, com certeza, o "sistema" propriamente do pensamento e do conhecimento que se encontra descrito nos Diálogos e que constituirá a base sôbre que Aristóteles erguerá sua Lógica formal. Mas êsse problema de marcar a linha divisória entre os dois grandes filósofos não nos interessa aqui, e é aliás de importância secundária, bastando-se notar na sucessão de Sócrates para Platão, o desenvolvimento do processo de logificação do conhecimento que estamos acompanhando, e que no segundo já encontramos plenamente maduro. Platão vai seguir um caminho metódico de análise da estrutura do pensamento ·e do conhecimento, isto é, da maneira ou sistema com que êste último se dispõe na conceituação e é revelado pelo primeiro no curso de suas operações. Os sofistas, e sobretudo Sócrates, tinham observado essas operações através de sua larga experiência dialética; e estimulados e informados ainda mais pelo espetáculo imenso da dialética e retórica que se desenrolava no cenário social e político das cidades gregas de seu tempo, tinham procurado discipliná-las; o que em Sócrates atinge um alto nível. Platão, vindo em seguida, terá à sua disposição aquela imensa experiência, e encontrará madura a disciplina que dela fôra resultando. O seu gênio lhe permitirá então penetrar no âmago dêsse ativo processo de ordenamento conceptual que o precedera e que ainda podia testemunhar, e desvendar-lhe a sistemática geral. E nisso consistirá sua obra e sua grande contribuição para a Filosofia e o progresso do pensamento e do conhecimento humanos (102). (102) A Lógica platônica, como se sabe, não vem dldàticamente exposta pelo seu autor, ou pelo menos segundo os padrões didáticos a que estamos habituados; mas dispersa-se por seus Diálogos que tratam dos mals variados assuntos, e que nunca se ocupam especificamente de questões lógicas. Isso se dá ou porque Platão pretendesse ·assim reproduzir a maneira efetiva pela qual suas formulações lógicas foram brotando do próprio processo dialético; ou porque, o que é mais provável, seu pensamento fôsse aos poucos, êle próprio, ordenando e sistematizando para dar afinal no sistema geral da sua lógica, ou antes de sua contribuição para aquilo que mais tarde, nas mãos de Aristóteles, constituiria propriamente a Lóglca. Mas seja como fôr, não nos é possível, devido sobretudo à forma de exposição adotada por Platão, analisar com pormenores as suas concepções, que não são dadas no seu estado ,final e acabado que nos interessa aqul, mas somente aos poucos, dispersivamente, e mesmo através de hesitações, dubiedades e não raro incongruências. Limitar-nos-emos por isso às suas linhas mais gerais e fundamentais, cujo desenvolvimento se encontrará melhor que em qualquer análise, nos próprios Diálogos, e particularmente nos da última fase do filósofo (Parmênides, Teaetetus, Sofista, Estadisia e Filebo.)

Origem histórica da Lógica platônica

Platão e a sistemática da conceituação

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Para bem situarmos a Lógica platônica, relembremos sumàriaRaízes da L6gica platônica mente os pontos centrais em tôrno de que se dispõe e se desenvolve o pensamento filosófico anterior. De um lado, é o problema da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo que condiciona (como vimos, e daí sua origem) a natureza do pensamento e conhecimento qualificativo-identificador; isto é, que se encontra na base da operação de reconhecimento e identificação, ponto de partida de todo conhecimento. De outro, é o plano conceptual para que se transferira tal solução na filosofia pós-milésia. Parmênides já pressentira essa solução com sua concepção do Ser, que não é afinal senão expressão geral e formal da qualificaçãa: o "Ser" é a cópula (verbo) com que formalmente se exprime a qualificação e se designa a identificação (a árvore é um vegetal ... o homem é racional ... etc.) O pressentimento de Parmênides que ficara nisso, degenerando em sua esdrúxula imagem de uma "esfera imóvel, sem princípio e sem fim" (103) - encontrará seu intérprete, um século depois, em Platão, que traduzirá nos seus devidos têrmos a confusa e imatura concepção que o Eleata não pudera por aquilo mesmo exprimir senão em têrmos formais e representar num grosseiro modêlo sensível. Platão, portador da larga experiência herdada de seus antecessores, e recebida sobretudo através de seu grande mestre que foi Sócrates, saberá desde logo para onde dirigir suas indagações a fim de descobrir o verdadeiro conteúdo do princípio racional unificador do Universo, ou antes, do Conhecimento dêsse Universo e sua identificação que Parmênides simbolizara no seu Ser; a saber, a operação do pensamento que consiste na qualificação - que não é senão o processo de identificação projetado para fora do pensamento. Na análise daquela operação encontrará o fio condutor que o leva à sistematização dela e da conceituação que lhe diz resptito; e daí extrairá sua Lógica, que será então a organização e sistematização do conhecimento identificador. Numa palavra, a logificação dêsse conhecimento. Gênese da LóAcompanhemos êsses passos do grande filósofo. Encontramogica platônica -lo no Sofista abordando expressamente a operação de qualificação; e indagando como ela se faz, explica-o com um exemplo - particularidade a ser notada, porque mostra que é para uma operação concreta de qualificação que dirige suas atenções e sua observação: "Referimo-nos ao homem, por exemplo, com diferentes no(103) Observemos incidentemente que essa representação figurativa de Parmênides constitui evidentemente um res!duo do tipo de pensamento predominante entre os f!sicos de Mileto. 1!:sse prolongamento se perpetuará - porque representa um modo rudimentar de pensamento natural a todos Indivíduos pensan~es - e encontramo-lo em todos os momentos da evolução cultural da humanidade, até nossos dias, como Já foi observado no cap. 1.

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mes e atribuimos-lhe côres e formas e dimensões e virtudes e vícios, e em tôdas essas instâncias como em dez mil outras referimo-nos a êle não somente como homem mas também como bom, e com outros atributos, e do mesmo modo em qualquer coisa que originàriamente supomos ser uma é descrita por nós como muitas, e com muitos nomes." (104). De modo que tudo é ao mesmo tempo um e muitos, isto é, igual e diferente. São outros têrmos para exprimir o problema fundamental do conhecimento identificador e de tôda a Filosofia pré-platônica, que embora sem o perceber muito claramente, gira em tôrno dêle. Mas Platão alcançara a fonte originária donde êle brota: a operação do pensamento que consiste em qualificar, e com isso identificar as feições do Universo. É: aí que se situa o ponto nevrálgico do assunto, pois nêle se encontra a resposta imediata à questão de como o indivíduo pensante, que é o Homem, reconhece e identifica feições neste Universo variegado e instável que lhe é dado e onde precisa reconhecer e identificar para se manter em vida e exercer suas atividades. Platão tem portanto onde buscar, sem mais rodeios, a solução do problema fundamental do conhecimento que atormentava várias gerações de pensadores, e que se acha na análise daquela operação mental qualitativo-identificadora e na estrutura da conceituação que lhe serve de ponto de apoio (105). O problema do "um e muitos" é abordado por Platão em diferentes instâncias e sob vários aspectos, e a solução que lhe dá é alcançada por aproximações sucessivas (segundo o método habitual do filósofo, e que exprime a marcha efetiva e real de todo conhecimento avançando passo a passo através de repetidos ensaios e erros até dar na solução acertada que a experiência e verificação prática comprovam), apresentando-se sob forma bem .clara num texto conciso e particularmente explícito, que é o seguinte: "Não deveríamos dizer que a divisão segundo classes que não torna o mesmo, outro; nem o outro, mesmo, é o objeto da ciência dialética?". (106.) De fato, "aquêle que sabe dividir corretamente, prossegue Platão, é capaz de ver claramente uma forma permeando uma multidão dispersa, e muitas diferentes formas contidas numa (104) (105)

Sofista, II, 259.

Conceituação essa, note-se bem desde já, que não constitui um dado

a priori êomo Platão julgara, e outros filósofos julgaram antes dêle: mas que é

elaborado i~stintivamente, digamos assim, pelo Indivíduo pensante para o fim precisamente de reconhecer e Identificar as feições do Universo, fim de que emb.ora êle não seja perfeitamente consciente, se Insinua através da experiência provàvelmente milenária da espécie humana destacando-se da animalidade. (106)

Sofista, II, 262,

Note-se que "ciência dialética" é para Platão a Filosofia.

O problema do um e muitos

Solução do problema do um e muitos

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f: assim pela classificação que se resolve a questão proposta; a saber, pela distribuição das qualidades por uma hierarquia de classes, formando como que uma "rêde" (a imagem é do próprio Platão que a empreza no Sofista) em que tôdas as feições ao Universo sejam apanhadas (qualificadas convenientemente e portanto identificadas); e assim não apenas "compreendidas", dirá Platão, "mas conhecidas em si", a saber, definidas (107). A classificação platônica não é diferente daquela que vulgarmente conhecemos e empregamos correntemente, seja no terreno propriamente científico, ·para classificar animais, plantas, minerais, etc., seja, no comum, para abranger por exemp1o o conjunto de uma organização e hierarquia administrativas. J;: aliás a Platão que devemos êsse procedimento tão simples e útil; ou antes, a sua sistematização e metodização. Mas para nos situarmos bem dentro de sua filosofia, consideremos uma classificação apresentada pelo próprio filósofo no Diálogo do Sofista (II, 223. Pôsto em esquema por nós.)

A classificação forma mais elevada."

com arrasto do pei-

xe de baixo

Golpe com ponta Pesca por

golpe

Pássaros

Caça de

Realizada pela fôrça

~ {Aquisitiva

{

cr~ta e d1ssimulada (caça)

Caça de prisa inanimada

·

para cima (anzol) com emrêgo de

captura

Prêsa terrestre

Fôrça declarada (luta)

_base sôbre que se constituiu a Dinâmicà :moderna. :Esse confronto entre as concepções respectivas de Aristóteles e Galileu esclarece mais um aspecto que distingue e separa o pensamento metafísico do pensamento científico moderno. Em última instância, trata-se de uma diferença de processos mentais, de orientação e método de pensamento: de um lado, a rigidez e fixação do pensamento metafísico de que brotam "entidades" ou "coisas" estanques e individualizadas de que se tratará, e somente se poderá tratar, de perscrutar a individualidade e natureza interior. Doutro lado, o pensamento moderno dos Galileus e seus contemporâneos, que se move através dos dados da observação, relacionando-os e os ligando e fundindo assim em sistemas conceptuais de relações. :Esse último tipo de pensamento encontrará sua primeira expressão formal sistemática e flexível na Algebra, que através de uma série de matemáticos que vai dos árabes (traço de união entre a tradição grega e o mundo ocidental moderno) até o inventor da notação algébrica moderna, François Viete (1540-1603), proporcionará os quadros formais com que se operaria o relacionamento conceptual, permitindo com isso aos homens de ciência-· _do séc. XVI exprimir formalmente aquêle seu pensamento e iniciarem -a elaboração da conceituação daquilo que constituiria a Física. ~ graças sobretudo à Matemática liberta de suas origens na Aritmética e Geometria, e transformada em processo de· relacionamento, ou antes de expressão ·do relacionamento, que os Gr6cios, Stevinus, Galiletis, Keplers e ta11tos outros de menor envergadura, poderão abordar os fatos mecânicos e os fenômenos astronômicos, e expri:. mi-los nas relações cuja estrutura formal a Algebra fornecia. ~ procurando matematizar êsses fatos, isto é, conceituá-los matemà.,. ticamente, que darão nessas relações que os exprimirão conceptualmente. Mas a natureza profunda de seus processos mentais, assim disfarçados atrás do formalismo matemático, anda lhes escapa; e caberá a Descartes lançar sôbre ela uma primeira e forte luz.

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Nas suas Regras para a direção do espírito (154), Descartes assinala expressamente e propõe-se examinar e desenvolver uma matemática universal (nome que declara preferir à designação "estrangeira" . de Álgebra; estrangeira porque árabe, como se sabe) que se aplicasse a todos os objetos que se incluem nas matemáticas propriamente, e ainda a muitos outros (155). Assim o que Descartes pretende apresentar é uma disciplina que sirva de "regra para a condução do espírito" na elaboração do conhecimento. Em suma, um método geral de conhecimento; de fato uma· Lógica, designação que Descartes não ousaria utilizar porque estava monopolizada pela Lógica formal de Aristóteles e da Escolástica, que êle aliás despreza e pretende substituir; e nos limites de sua. reverência e respeito exterior aos valores oficiais e consagrados (no que Descartes é mestre consumado), êle ridiculariza. Em que consiste êsse método? No essencial, "em perc cuja~ distinção rigorosa e absoluta dos cardinais é uma das noções fundamentais e essenciais de tôda a teoria dos números e da sua generalização para a infinidade (os números transfinitas de, Cantor.) Ora os números cardinais não são menos que os ordinais elementos dêste todo ou conjunto que é a sua série. Fora dessa série, não se concebem; e tanto a série implica os números cardinais, como êsses números, e cada um dêles em particular, implicam a série. A deformação conceptual produzida pela Metafísica impediu se visse isso que somente se compreende quando se vai às origens operatórias e raízes relacionais da numeração, e por conseguinte (184) A intuição dos números e da numeração se constitui na criança, ou nela se precisa, como é sabido, entre os 4 e 5 anos de idade. ('i85) Development of Mathemattcs, cit., 274.

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também dos têrmos dêsse relacionamento, os números, que a constituem. A teoria dos números arquitetada. por Frege. e seus sucessores e continuadores não representa senão a maneira que descobriram para enquadrar aquela natureza relacional dos números, e· dar aparentemente com isso, e num primeiro momento, conta dêles, dentro de suas concepções metafísicas; e conservar-lhes a categoria de ''entidades" (destruída no plano da intuição), ou lhes dar como suporte a nova "entidade" classe (186), disfarçando assim a sua relatividade. As conseqüências dessa deformação metafísica não se farão logo sentir; isto é, enquanto o tratamento do assunto se conserva no plano. da identificação que é aquêle, como já vimos, em que a classificação, . gerando •. as .classes, objetiva discriminar, qualificar e identificar. Essa a· razão por que a noção de classe, apesar de suas latentes implicações metafisicas, pôde ser tão fecunda ao aplicar-se à discriminação e qualificação das diferentes categorias de números, permitindo a conceituação rigorosa dos números reais em têrmos dos integrais e fracio.nários (Dedekind, 1888); bem como do infinito· reduzido aos números transfinitos que se definem pelo mesmo processo que os números integrais (Cantor, 1895-97). f: fácil observar-se que no caso não se trata senão de exprimir um relacionamento por discriminação dos números, ou. em palavTas usuais da Matemática,. definir os nú.meros em têrmos uns dos outros, que foi o que Dedekind e Cantor fizeram com .relação aos irracionais e transfinitos (187). Mas a deformação metafísica se fará plenamente sentir quando se sai da simples discriminação e qualificação, e se passa das classes discriminadas para sua reintegração no conjunto a. que pertencem. Aí a discriminação metafisicamente concebida se revela no fato que não se tendo tomado . em cónside~ ração que a discriminação se realizou em função de um todo originário, se torna impossível reconstituir êsse todo. Em outras palavras, uma vez desprezado e não levado em consideração o relacionamento que presidiu à. operação .. de• discriminação e classificação,. as classes discriminadas se isolam de tal forma que se (186)

Note-se que na concepção de Frege, o número é um quallflcatlvo dá Allás Russell, o mais famoso dos continuadores de Frege, e o vulto de maior projeção nesse setor da Matemática que estamos analisando, define o número como "propriedade de class.e" (Principies of Mathematics, clt., 113.) classe, a "etiqueta" de que fala Bell na passagem acima referida.

(187) Jl: de observar ainda que a fecundidade da Algebra de classes se expllca semelhantemente. Isso se verifica particularmente hem nas suas principais apllcações, como na teoria das probabilidades, onde em essência o problema consiste sempre em dlscrlmlnar. e qualificar "tipos" de ocorrências; como por exemplo quando as probabllldades de certa. ocorrência são conhecidas, e se trata de calcular as probabllldades de outras ocorrências.

A noção de classe e a discriminação das categorias de números

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fazem. em seguida inarticulá:veis •entre si; ·é a· reconstituição do tado ou conjunto ·se ·fará· de m:a.neira inteiramente artificial e pelo "ajuntamento" ou "agregação" simplesmente exterior das classes. Paradoxos ma- · Essa .é a . explicação .• profunda .dos paradoxos a. que .levarà a temáticos manipulação da noção de classe, isto é, o ·seu emprêgo na. concei" tuação matemática.. füses paradoxos já eram aliás conhecidos, pois aparecem também, como é natural, . na conceituação vulgar,· onde a classificação tem um papel muito maior que na Matemática. Os gregos, como se sabe, os manejavam desde Zeno de Eléia, e êles · faziam as delícias .· dos auditórios de Filosofia. · Pelas mesmas razões por que os paradoxos infestam a conceituação vulgar, e que são a.s acima expostas, êles infestarão também a Matemática logo que a Metafísica das classes, ou antes as classes metafisicmente conc~bidas, são. para ela. transportadas. Antes ~esmo que Frege publicasse o segundo volume de sua o~ra capital (Grundgesetze der Arithmetik), e em tempo de incluir nêle o seu lamento (188), começam a chover sôbre êle os paradoxos ·que.deixarão .traços profundos na história presente da Matemática, e· ainda representam questão aberta e largamente debatida (189). O que se justifica, (188) O segundo volume dos Princtpios de Frege,. apa~ecldo em 1903, terml11a com a seguinte observação: ":E: dlflcll dar-se com um cientista algo de mais ln-. desejável que .assistir ao colapso dos fúndamentos de sua obra apenas esta se completa. Uma carta de Bertrand Russell colocou-me nessa posição quando ·a obre, estava para sair do prelo." (189) Não podemos aqui discutir o assunto com pormenores. Até hoje, os paradoxos não foram .ainda conv.enlentemente: . esclarecidos. Desde logo, percebeu-se. que a sua origem estava. nà noçã,o de todo (Veja-se Bell, Development ':'f Mathematics, 279.80) ; mas o verdadeiro vfolo · dessa noção, . tal.• co~o é geralmente concebida (O todo conslderàdo como agloriÍerado. de partes autônomàs) não foi apontado: a barreira metafisica impediu os matemá:tlcos de. compreendê-lo. Uma copiosa literatura se erigi,p sôbre essa . noção, .e para evitar-lhe os maleficlos . no curso do raclocinlo, os logistlcos arquitetaram as mais compllcadas teorias, que aliás não passam de técnicas artlflclosas e tão complexas que pràticamente são inutlllzáveis; sem contar que não ôferecem segw,ança completa alguma. :E: assim a famosa teoria dos ttpos de Bertrand Russell, várias vêzes por êle mesmo retocada,. e remodelada por outros, e sempre de maneira completamente distinta, Tôdas as soluções apresentadas têm por fim llmitar formalmente a apllcabllldade d.e uma afirmação, em outras palavras mais· precisas e na terminologia consagrada, "restringir o campo de variação de uma variável aos llmltes permlssivels pela sua natureza." Ora a natureza de uma variável ou afirmação é dada não pela forma, como pensam os lóglco-metaflslcos, mas pelo sistema conceptual preexistente dentro do qual ela é proposta; sistema êsse que é precisamente o todó, o relacionamento prellmlnar que não foi tomado em consideração. Consideremos o paradoxo mais simples e dos mais veneráveis porque vem dos gregos: a afirmação "eu sou menti• roso"; se estou afirmando a verdade, estou mentindo; se estou mentindo, estou afirmando a verdade. Onde está o vicio profundo· dêste raclocinlo? Na Interpretação errada da forma da proposição "eu sou mentiroso", ·que não pode ser conslderll.da em si, e que não é senão expressão de um relacionamento (sistema con•

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porque os paradoxos suscitavam uma questão muito séria para a Matemática. t que êles não somente punham em xeque a segurança de todo edifício da Matemática - o que em rigor, e praticamente, poderia ainda ser considerado uma questão secundária, porque o emprêgo da Matemática já dera durante séculos suficientes provas de sua segurança - mas sobretudo porque era a própria elaboração e sistematização matemáticás que se achavam comprometidas. Precisamos considerar êsse assunto com alguma atenção porque êle tem importância fundamental. para a compreensão dos rumos que tomaria a Matemática mais recente; bem como porque esclarece o papel da Metafísica nas dificuldades e problemas cada vez mais. complicados,· confusos e de árdua solução que vêm embaraçando• o· desenvolvimento normal .da · Matemática. Isso nos permitirá ve~ claramente 9-ue a. Matemática. já a_tin~iu um níve! _de desenvolvunento que nao comporta ·mais . o . mvolucro metáfis1co que 'Sob diferentes formas lhe tem sido aplicado através dos tempos; e que a condição de seu progresso é hoje livrar-se definitivamente dêsse invólucro. Em que consiste precisamente a grave questão suscitada pelos paradoxos? :E que quando êles se propõem - e o fato de sua proposição deriva em última instância disso que vamos ver . - a Matemática recomeçava ser considerada sob o· aspecto em que vira.· Descartes, e que por circunstâncias históricas que assinalamos passara durante longo tempo para um segundo plano; a saber, como método ou procêssó de pensamento. Veremos a:diante·como e porque isso ocorreu, e consideremos .antes a relação que tem com a questão que ·analisamos. Como método ou processo de pensamento, a Matemática tinha, aparentemente - a natureza e razão dessa "aparência" logo se verão. - tinha que encontrar sua justificação e consistência no interior das próprias operações do pensamento de que se constituía. . De fato o critério de sua segurança nãó podia ser procurado no seu exterior, porque isso iria dar num círculo vicioso: um processo de pensamento ou raciocínio não se poderia fundamentar no próprio . processo ou raciocínio que. êle engentlra

a

a

ceptual) anterior que precisa ser levado em conta para se compreender o sentido e alcance da afirmação, o que a Lógica metafisica não faz. De fato. o que significa a afirmação "eu sou mentiroso"?: é que minhas afirmações não são ou antes não costumam ser verdadeiras; "eu sou mentiroso" exprime um relacionamento (uma confrontação e conjugação num conjunto) de tôdas minhas afirmações, e êsse relacionamento exprime-se formalmente pela proposição "eu sou mentiroso." Portanto quando faço essa afirmação exprimo um relacionamento de minhas afirmações anteriores que não envolve a afirmação atual "eu sou mentiroso." Essa é uma nova afirmação que introduzirá ou não uma modificação no relacionamento anterior; mas modificação essa posterior e não anterior a êle.

Paradoxos matemáticos (cont.)

A elaboração da Matemática e o papel perturbador da Metafísica

A Matemáticit como processe> de pensamento

Condíção necessária da Matemática como de processo pensamento

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Caráter

geral

da elaboração matemática recente

Axiomatização da Matemática

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e regula. Situação diferente de outras ciências, da Física, por exemplo, onde qualquer conclusão pode ser experimentalmente verificada, comprovando-se então ou não. Nos áureos tempos das ilusões intuitivas, isso ocorria também na Matemática: assim por exemplo, para se conhecer o comportamento de uma função, bastava traçar ou figurar na imaginação a curva correspondente, tirando daí as conclusões necessárias. Mas já vimos que essa Matemática intuitiva e experimental tivera de ser abandonada, servindo apenas como processo prático e expedito para prever certas conseqüências que precisam no entanto ser comprovadas depois por outros processos puramente matemáticos e racionais. São êsses últimos processos que constituem a verdadeira Matemática, que vai buscar portanto dentro de si mesma a própria justificação e segurança. Para se avaliar bem o sentido e a natureza dêsse fato e a razão dessa posição aparentemente paradoxal da Matemática, tal como se apresentará cada vez mais nitidamente àqueles que dela se ocupavam, é preciso recordar as circunstâncias que a originam e que é o caráter geral da elaboração matemática a partir de meados do século passado. Sem entrar em pormenores, somente cabíveis numa história da Matemática, consideremos apenas a direção geral que assume o tratamento matemático e que Bell assim resume: "Primeiro a descoberta de fenômenos isolados, depois o reconhecimento de certas feições comuns a todos; em seguida a pesquisa de outros casos e seu pormenorizado cálculo e classificação; depois a emergência de princípios gerais que tomam cálculos posteriores supérfluos, a não ser para alguma aplicação determinada; e finalmente, a formulação de postulados que cristalizam em forma abstrata a estrutura do sistema investigado." (190). Consideraremos depois aquilo a que realmente corresponde em profundidade e no co!_ljunto do desenvolvimento da elaboração matemática, essa direção e caráter que ela toma. O que no momento deve reter a nossa atenção é a tendência que apresentam, e que efetivamente se irá realizando em sucessivos setores, de reduzir a Matemática a uma coleção de postulados de que derivaria então todo conhecimento dela por um processo de simples inferência, isto é, puras operações lógico-formais. Trata-se em suma, do axiamatismo, que consiste precisamente em estruturar um ramo qualquer considerado da Matemática na base de um certo número de axiomas relativos aos objetos dêsse ramo considerado (como os números integrais na Aritmética, linha,s e pontos na Geometria, etc.) fazendo derivar dêle todos os teoremas que em conjunto constituirão aquêle ramo do conhecimento matemático. (190)

Development of Mathematics, clt., 246,

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Não discutiremos por enquanto o axiamatismo sob o aspecto que lhe seria posteriormente outorgado e que daria nas conclusões filosóficas que adiante consideraremos; mas tomando-o exclusivamente como uma técnica destinada a estruturar e apresentar num conjunto sistematizado as diferentes disciplinas matemáticas (e é com êsse caráter e objetivo que êle faz sua entrada na história da Matemática), notaremos em primeiro lugar que o axiomatismo não constitui uma invenção providencial e surgida ex-abrupto de uma concepção filosófica, mas resulta do natural desenvolvimento da elaboração matemática e das necessidades de sistematização e ordenamento de seus diferentes setores. Em segundo lugar, que seu desenvolvimento e progressiva infiltração em todos os ramos da Matemática (a começar pela Algebra, e logo depois na Geometria) explica a origem histórica daquela paradoxal noção apresentada acima de uma ciência ou conhecimento que tem aparentemente seu comêço e seu fim dentro de si próprio, que se encerra em circuito fechado no seu próprio interior. Antes que alguém se preocupasse em fundamentar filosófica- Novo caráter mente o axiomatismo e em transmutá-lo numa concepção filosófica da Matemática que teria repercussões em tôda teoria do conhecimento - o que somente ocorrerá propriamente no século atual -, antes mesmo que êle se fizesse uma técnica sistematizada e bem configurada o que só se realizará pelos fins do século passado -, e quando não passava ainda de um procedimento quase pragmático, de objetivos imediatos e limitados em cada ocorrência ao terreno específico eventualmente considerado pelos diferentes especialistas de cada ramo em particular· da Matemática, uma circunstância do axiomatismo já chamara a atenção dos matemáticos de visão mais ampla: é que naquela esfera de pura abstração em que o axiomatismo encerrava a Matemática, a única "substância" presente er~m as operações mentais através de que se gerava e desenvolvia a con- · ceituação matemática. Foi o matemático norte-americano B. Peirce que primeiro, ao que parece, se apercebeu claramente do fato; e na introdução de sua Algebra linear associativa publicada em 1870 (referimos o assunto de seu livro para destacar bem que não se tratava de nenhuma obra filosófica, e que a conclusão do autor tinha uma base estritamente matemática), Pefrce define a Matemática "ciência que extrai conclusões necessárias." O leitor compreenderá agora e justificará essa aparente digresão em que nos empenhamos, pois ela objetiva armar-nos contra certas concepções filosóficas das mais amplas conseqüências e que surgirão em seguida à época que estamos analisando. As observações e considerações que vimos fazendo, nos permitirão verificar que tais concepções nada têm a ver com uma pseudo-essência

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A Matemática como processo de pensamento

Desenvolvimento do simbolismo matemático

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ou "natureza" metafísica da Matemática, mas representam apenas uma interpretação, em têrmos metafísicos, de uma fase histórica da elaboração matemática. A Matemática de 1870 e em continuação, consistia em sua maior e mesmo principal parte, num processo de pensamento, porque isso derivava da tarefa imediata que tinha diante de si, e que consistia em ordenar e sistematizar o corpo da Matemática. Aqui a Metafísica, mais uma vez, confundirá um momento histórico com o que julgará ser algo de absoluto e eterno, expressão da "essência" própria da Matemática. Nada mais inexato. Conforme vimos, o axiomatismo (que contribuirá em grande parte para tal confusão, e que melhor se diria "método axiomático", que é o que realmente representa) não constitui senão uma forma peculiar a um momento da elaboração matemática (191) e que nada tem a ver com pseudo-essências e naturezas que ninguém é capaz de dizer ao certo o que significam. ~ em boa parte porque se deixaram confundir por essas preocupações metafísicas, que muitos matemáticos se desorientaram, e perdendo de vista a gênese histórica de seus procedimentos, começaram antes a se preocupar com as Verdades absolutas que lhes competia desvendar; o que representou para êles não somente uma perda inútil de tempo, mas sobretudo os confundiu a respeito do objetivo real para que tendiam seus esforços de matemáticos, levando-os. muitas vêzes por falsas e estéreis pistas. Continuemos pois por êste caminho que vimo~ seguindo da gênese histórica da Matemática moderna e de suas formas e métodos de elaboração, caminho êsse que embora não nos leve à essência metafísica da Matemática, explica os rumos que aquela elaboração vai tomando e abre com isso perspectivas para a crítica dêles e os reajustamentos que se tornem necessáriqs. Assinalemos desde logo o grande desenvolvimento e mesmo novo caráter que assume o simbolismo matemático na última parte do século passado. ~tl:sse progresso corresponde às novas necessidades da Matemática, pois se ela se tomara, na expressiva observação de Peirce acima citada, em ciência que extrai conclusões necessárias, era preciso assegurar na condução das operações mentais de inferência um máximo de rigor e segurança; o que somente se poderia obter por uma formalização precisa que tirasse aquelas operações do estado informe e confuso em que se apresentam no pensamento espontâneo e indisciplinado. Seria somente por uma tal formali(191) Momento aliás verificado em outras épocas semelhantes, embora de maneira rudimentar e com características próprias e especificas da Matemática daquelas épocas, como na Matemática grega que em seu conjunto se pode considerar,, como o processo de ordenamento e sistematização das empíricas, dispersas e desconexas noções aritméticas e geométricas herdadas da Matemática egípcia e babilônica.

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zação que se poderia acompanhar nos seus pormenores os processos do pensamento e evitar assim a intrusão nêles de elementos insuspeitados. Como é sabido, cabe a G. Boole (1815-1864), cuja obra se situa precisamente no momento em que a Matemática assumia o caráter que estamos considerando - e para o que aliás aquela obra deu uma grande contribuição-, cabe a Boole o pressentimento das novas exigências da elaboração matemática e a iniciativa, nos tempos modernos, da formalização rigorosa e expressão simbólica, condição daquele rigor, •das operações do pensamento (192). Pouco depois da obra pioneira de Boole (publicada entre 1847 e 1854), êsse assunto se configura como disciplina própria e autônoma: a Lógica matemática. Mas para o que nos interessa, e para retornarmos afinal ao nosso tema central que era, como o leitor estará recordado, a teoria dos números, referiremos apenas as primeiras aplicações sistemáticas da Lógica matemática realizadas precisamente por Frege no tratamento daquela teoria e pelo italiano G. Peano (1895) na sua tentativa de exibir a Aritmética sob a forma de um sistema axiomático em que tôdas as proposições relativas aos números integrais fôssem dedutíveis de um grupo de cinco axiomas. Vemos assim convergir, nos últimos anos do século passado, as três correntes fundamentais da elaboração matemática moderna que esquematizamos acima: a teoria dos números, o axiomatismo e finalmente a Lógica matemática. f: tomando em consideração aquelas circunstâncias históricas que examinamos e em que tais correntes se formam, desenvolvem e afinal confluem, que podemos compreender a profundidade do problema proposto pelos paradoxos acima referidos e que tanto abalaram o edifício matemático; bem como compreender também a resultante geral de tôda essa complexa evolução histórica da elaboração matemática, que será a Logística. l>elo exposto, vê-se logo que os paradoxos, embora velhos de milênios, repunham agora em pleno foco a questão do pensamento formal e da sua segurança. Ela se tomaria decisiva, porque iria depender da solução que lhe fôsse dada, a própria exis(192) O precursor imediato de Boole não foi nada menos que Leibniz, de quem se aparta por um longo hiato de quase dois séculos, pois não se podem tomar em consideração os abortados ensaios de J. H. Lambert (1765) e de G. F. Castlllon (1803) que não passaram de fatos Isolados e sem repercussão alguma, sendo relembrados às vêzes apenas por luxo de erudição histórica. J!: interessante notar aquêle fato, pois as obras respectivas de Leibniz e Boole se situam em dois momentos de elaboração da Matemâtica em que o aspecto dela como método se destaca e mais se caracteriza; em oposição à longa fase intermedlâria em que a Matemâtica, como vimos, se apresenta sob aspecto diferente. J!: curioso verificar que a secular estagnação da Lógica matemática (pois é disso que se trata) não tenha despertado a atenção dos historiadores da Matemâtlca e não os tenha levado a procurar as razões de um fato aparentemente tão estranho.

Expressão simbólica das operações do pensamento

Lógica mática

mate-

lnter~sse dos paradoxos matemáticos

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tência da Matemática sob a forma com que se apresentava. Compreende-se que reduzida como fôra - pelo ,menos naquilo que dizia respeito aos problemas atuais e ·momentâneamente mais importantes de sua elaboração ~ a um método que tinha de encontrar no seu próprio interior os elementos de sua estruturação; e considerando-se que êsses elementos repousavam diretamente sôbre a · forma das operações e processos de pensamento, tomava-se essencial e fundamental que essa forma não somente se pudesse exibir completamente (será o problema específco . dá Logística, sucessora ou continuadora da Lógica matemática), Irias ainda sé exibir num sistema de conjunto perfeitamente entrosado e sem hiatos (193). Seria isso possível? É o que os. paradoxos punham em questão e que a Logística tratará de escliuecer. Natureza e jusVerifica-se assim que a Logística e as questões que traz no tificação da Lo- seu bojo desde o nascedouro não constituem• um bizantinismo de gística matemáticos sem assunto, preocupados em · serem originais, como afirmam alguns de seus críticos e detratores, a começar, já na aurora da Logística, por Poincaré; nem tão-pouco, como parecem crer muitos daqueles que se ocupam .com o assunto, um progresso ocasional da Lógica surgido ex abrupto do· súbito reconhecimento contemplativo das falhas e insuficiências da L~gica clássica. Na realidade, como parece ter ficado acima bem claro, a Logística é resultante de um longo e complexo processo surgido e desenvolvido no seio da elaboração matemática; é essa mesma elaboração tomando um rumo antes insuspeitado, mas nem por isso menos legítimo e produto de um desdobramento natural e necessário . da própria Mateinática (194); e se se projetou muito além das frontei(193) Formalmente êsse entrosamento perfeito se exprime pela n4o•contradtção. · Não esqueçi\mos todavia, como se faz geralmente, que a não-contradtç4o e seu contrário, que é a contradtç4o, são apenas expressão formal de um fato que ós logísticos não procuram analisar, considerando aquela sua expressão formal como fato último e irredutível. Essa é uma visão superficial e deformada da. situação que deriva. da. posição em que a Lógica. metafisica (tanto a. clássica como a Logística. moderna) colocam o problema., isto é, no terreno pura.mente formal em que de fato a contradição e a não-contradtç4o se exprimem por definições formais, que são , os principios lógicos. (194) Essas circunstâncias em que nasceu a Logistlca - semelhantes aliás às de qualquer outro ramo do conheclm"'nto na sua gênese - vão dar origem a. tôda. sorte de mal-entendidos e um dêstes estéreis debates sôbre as distinções entre a Lógica e a Matemática: se esta é um ramo daquela, ou vice-versa, a Lógica da Matemática; se ambas se. confundem ou tem cada qual seu terreno próprio e exclusivo; e assim por diante. Todos êsses pontos de vista podem ser verdadeiros confo~e o ângulo ou momento em que nos colocamos; mas por isso mesmo são inexatos no plano conjunto que deve reunir e articular tôdas aquulas verdades parciais: o da História na sua unidade fundamental.

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ras específicas e ortodoxas da Matemática, isso é porque o alto desenvolvimento atingido pela conceituação e conhecimento matemáticos acabou propondo, como não podia deixar de ser, considerada· A Matemática a unidade ·fundamental de todo processo do Conhecimento, os pro- e os problemas blemas gerais dêsse Conhecimento. Do mesmo modo que a dialé- germ:~ do Cotica e a retórica dos sofistas gregos deram na Gramática, e através nhecunento da Lógica desembocaram na Fifosófia, a conceituação matemática também· deu nesta última. Era contudo de se ·esperar que a· Matemática, constituída· precisamente à margem da conceituação. vulgar e para contornar a Metafísca que se apoderara daquela conceituação e de sua logificação (que fôra aliás produto dessa Iogificação) era de esperar que a Matemática evoluísse para uma nova Lógica Matemática e liberta da Metafísica. No entretanto isso se deu muito limitada e Metafísica parcialmente porque aquêles a ·quem coube levar adiante aquêle processo de Iogificação da Matemática eram metafísicos, e o mundo em que viviam continuava atrelado à sua imemorial tradição metafísica. A Matemática, ao fazer-se Lógica, encontrou assim pela frente o obstáculo da Metafísica; e séria cómô um belo e moderno automóvel procurando vencer uma vereda acidentada, íngreme e pedregosa. Por ela se engajarão os ·lógico-matemáticos, procurando forçar o caminho. Tarefa irrealizável, porque a ·Maternáticanão se prestará à deformação que lhe quererão impor, e que já não c_onsiste mais apenas, como no passado, em revesti-la exteriormente ·de ·alguns . disfarces metafísicos, ·e sim de implantai essa Metafísica em seu próprio princípio vital: as operações · mentais que a ela presidem. A Logística progredirá na medida e somente na medida em que se desfaz por manobras isoladas e ocasionais do lastro metafísico que sôbre ela pesa desde seu nascedouro. Vimos como a Metafísica se insinua no interior da Matemática, por ocasião dos primeiros passos decisivos e já tão bem caracterizados de sua logificação, com a introdução da noção de classe. No histórico dessa noção reflete-se o embaraço que ocasionará o seu conteúdo metafísico. Os paradoxos são a primeira ilustração espetacular disso. As classes serão depois submetidas a tôda sorte de manipulações destinadas a ajustá-las aos fatos .concretos e reais do pensamento. Revive-se ai a Escolástica, que enfrentara com os universais problema no fundo idêntico; e a noção será mesmo abandonada mais ou menos completamente por muitos. Mas o mal não estava nas classes, e sim na concepção em que se apoiava; e essa concepção, inspirada na Metafísica, continuará viciando os eventuais e aliás apenas aparentes subsistutos das classes. Nada portanto essencialmente se modifica.

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É contudo de um ponto de vista geral que devemos considerar A Logística e aqui a Logística (9-ue na altura em que nos encontramos já se seus fundamen- apartou da Matematica propriamente), bem como do dos fundatos mentos metafísicos em que se tem procurado assentá-la e que são

os únicos e verdadeiros responsáveis dessa situação caótica em que o assunto se encontra e que tanto contribui para o seu injustificado descrédito. Para fazermos isso, nada melhor que a análise da obra daquele que não somente se colocou imediatamente na confluência das três grandes correntes da elaboração matemática acima referidas, e se fêz assim o mais legítimo continuador da logificação da Matemática, mas ainda foi e continua sendo quem coloca o conjunto da matéria em seus têrmos mais gerais e profundos, abrindo por isso largas perspectivas para as verdadeiras concepções que inspiram todo desenvolvimento da Logística desde seus primeiros Referimo-nos a Bertrand Russell. Mas Russell e a Lo- passos até nossos dias. gística além de seu incontestável e incontestado título de criador da Logística, Russell ainda oferece para o fim que temos aqui em vista uma grande vantagem sôbre o conjunto dos demais logísticos: é a clareza de seu pensamento e o rigor com que procura sempre levá-lo às últimas conseqüências, sem disfarçar o que poderia parecer mais chocante em suas idéias e sem dissolvê-lo num dêstes dilúvios de palavras que caracterizam a generalidade da literatura metafísica mais recente. Russell não contorna e escamoteia as questões e dificuldades que vai encontrando pelo caminho; aborda-as de frente, e é com a maior naturalidade que se engaja pelos tenebrosos labirintos e becos sem saída da Metafísica. Isso é difícil, porque requer coragem em quem se atreve a ressuscitar, em pleno séc. XX e na sua mais crua forma, as controvérsias que faziam as delícias da Escola e que pareciam para sempre enterradas. Russell nos virá provar, além de qualquer dúvida, que elas ainda estão bem vivas no fundo do pensamento de tôda a Filosofia burguesa; e que se não aparecem sempre claramente nos filósofos seus colegas, é porque êles o escondem ou ignoram. Russell pelo contrário, nem o ignora nem o esconde; e essa é talvez a sua maior contribuição para o progresso do Conhecmento: ter contribuído para trazer à tona, para a varredura final, tôda a escória metafísca que de maneira tão grave tem embaraçado aquêle progresso. A sua filosofia, ou antes, o desenvolvimento de sua filosofia através dos mais complicados vaivéns interrompidos a todo instante por perguntas sem resposta e sem perspectiva alguma de resposta, exibe claramente para quem esteja disposto e quiser vê-lo, as bases metafísicas em que se procura assentar a Logística; e com isso, as relações entre um tal ponto de partida dos modernos lógicos e os insolúveis quebra-ca·beças que vão encontrando pelo caminho. Ilustra assim muito

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bem nosso propósito, que é precisamente mostrar as implicações metafíscas da Logística em sua forma predominante atual, e a impossibilidade dela se constituir convenientemente em virtude ou pelo vício daquelas implicações. A profissão de fé metafísica de Russell encontra-se nitidamente feita por êle no Prefácio da primeira edição de seus Princípios de Matemática: "Aceito o pluralismo do mundo ... como composto de um número infinito de entidades independentes entre si." (195.) Russell acrescenta que somente essa concepção lhe permitiu enquadrar uma flosofia da Aritmética, e que com ela resolveu um grande número das dificuldades que de outro modo seriam insuperáveis. Isso nos mostra como a Metafísica de Russell é solidária com sua concepção da Matemática. Naturalmente êle se ilude a si próprio: não é a Matemática que está considerando, e considerará no curso de sua obra, e sim a concepção que tem dela. Concepção essa que não se origina para êle, de fato, na Matemática, mas nas suas profundas e insuspeitadas concepções filosóficas que êle procura intro duzir na Matemática. Russell julga que está tentando fundamentar filosoficamente a Matemática: na realidade está adatando a Matemática á sua Metafísica; e será sôbre essa base, isto é, de uma Matemática metafisicamente interpretada, que construirá a sua Logística. Essa tinha por isso que desembocar nas tremendas dificuldades e problemas que se avolumarão cada vez mais, e que os continuadores e sucessores de Russell tentarão em vão resolver modificando profundamente e às vêzes radicalmente o sistema logístico russelliano: o mal não está nesse sistema e suas particularidades, mas nas bases metafísicas em que assenta; e essas não serão abandonadas, e nem sequer suspeitadas pela generalidade dos modernos lógicos. Vejamos contudo como Russell procede àquele enquadramento metafísico da Matemática. O desenvolvmento moderno da Matemática já tinha claramente demonstrado que ela não se ocupa com "coisas", e sim com relações: é considerando direta e expressamente relações, e desprezando as supostas "coisas" que dantes se supunha as sustentavam, que se constituíra todo o edifício da Matemática que Russell e os homens do seu tempo podiam observar. As "entidades" que desde os gregos até o século XIX tinham constituído o aparente objeto da Matemática - figuras geométricas, grandezas Iísicas, e afinal, até os números que com Poincaré davam seu último suspiro - se tinham evaporado completamente; e em seu lugar não sobravam senão relações. Galois, em 1831, já tivera o pressentimento genial dêsse desenlace quando afirmava: "A Mate(195)

Principies of Mathematics, clt., XVIII.

A Metafísica de Russell

Bases metafísicas da Logística

Relações: objeto da Matemática

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mática se ocupa somente com a enumeração e comparação de relações." (196.) É aliás graças a êsse pressentimento que Galois em vez de se ocupar, como outros matemáticos do seu tempo, com "entidades", se preocupou unicamente com "relações", e abriu com isso para a Matemática as largas perspectivas que exploradas por seus sucessores deram na Matemática de nossos dias. Russell, como bom metafísico - e notamos mais uma vez que Russell aqui representa a generalidade dos matemáticos de seu tempo - considerará aquelas relações que já não podiam mais ser esquecidas, em si, isto é, como dados ou elementos individualizados e cuja individualidade não depende senão delas próprias (197). "Entificação" E como isso a "relação" se faz mais uma vez em "entidade" no das relações sentido que temos dado a essa expressão e que é o da Metafísica. Isso traz contudo alguns problemas que Russell terá de resolver. Considerando o relacionamento matemático (lembremos que é sempre a Matemática que sobretudo inspira todo êsse processo de conhecimento que estamos analisando) é fácil observar que os têrmos de cada relação constituem êles próprios outras tantas relações. É assim aliás que no curso da elaboração matemática do século passado as "entidades" se foram dissolvendo: os têrmos (coisas ou objetos) de uma relação se faziam num plano subseqüente relações entre novos objetos; e êsses pm: seu turno, num passo seguinte, se tomavam em novas relações. E assim sucessiva e indefinidamente, porque não se vislumbrava o têrmo dessa sucessão (a não ser nas "intuições" de Poincaré e dos intuicionistas que se tinham mostrado inaceitáveis e que se tratava, em particular para Russell, de eliminar.) Essa situação é para a Metafísica intolerável: uma "entidade" é uma "entidade", que se define ou exprime por si própria, e não depende de mais nada senão de si mesma. Não é portanto metafisicamente concebível um Universo que se dissolve ad-infinitum em relações. É preciso um fim para essa dissolução; e êsse fim será então - porque não pode ser outro - o "infinito número de Natureza das entidades independentes entre si" a que se refere o texto acima "entidades" citado de Russell. Que são essas "entidades" últimas? Russell não componentes do investiga muito a questão; nem pode fazê-lo, porque se fôr explicar Universo (196) (1897) dere-se a tude pode

Citado por Bell. Development of Mathematics, 211. O leitor compreenderá melhor êsse ponto com um exemplo: Consirelação similitude. Segundo a interpretação lógico-metafísica, a stmtliser considerada em si e Independentemente de seus têrmos que são as coisas semelhantes, que também independem entre si. A outra maneira de considerar a relação similitude é ter sempre presente o conjunto dos têrmos e da sua Ugact,i,o numa unidade fundamental. Russell verá as relações segundo aquêle primeiro aspecto que é o lógico-metafísico.

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tais "entidades" terá de fazê-lo através de um novo relacionamento, o que as faria evaporar em relações repondo tôda a questão no estado anterior. Ele se limita por isso a afirmar sua existência paralelamente às relações que constituiriam uma segunda categoria de "entidades" inteiramente independentes das primeiras e irredutíveis a elas (198). Como se vê, as "entidades últimas" de Russell não passam de simples suportes para as relações, e se assemelham muito com as coisas-em-si de Kant. E mesmo como suportes o seu papel é inteiramente dispensável porque Russell as separa radicalmente das relações que subsistem à parte delas e independentemente - é o que êle afirma quando diz que "as relações são últimas e irredutíveis a adjetivos de seus têrmos", isto é, a adjetivos das "entidades" que relacionam. Então por que conservá-las? Responde a Metafísica que do subconsciente de Russell lhe guia os passos: porque não ná relações sem "entidades" ou "coisas" relacionadas. Vê-se aí claramente como o infinito número de entidades de Russell não tem outro objetivo que justificar e fundamentar uma tese metafísica. Russell está sendo vítima inconsciente do processo de inversão metafísica que descrevemos anteriormente; isto é, projeta na Realidade exterior (que êle chama o mundo) os produtos do pensamento. Realizada a inversão e assim satisfeitos seus prejuízos metafísicos com a existência de suas "infinitas entidades", Russell vai ocupar-se agora com essas novas "entidades" home made, isto é, que êle engendrou: as relações. E indaga em primero lugar: onde se localizam? Começa contestando Kant que, afirma Russell, considera as relações como "obra do espírito" (199); o que não é admissível, como se vê (é sempre Russell que fala) no seguinte exemplo: suponhamos por exemplo que estou em minha casa; eu existe, e minha casa existe. Mas a relação entre eu e minha casa, a minha estada na casa, existe também, é um fato real, e não simples "obra do espírito." A relação tem portanto uma realidade, tanto quanto os têrmos a que se aplica. Essa argumentação de Russell, que aliás é muito antiga, tem para nós grande interêsse, porque lança muita luz sôbre o tipo do pensamento metafísico e a maneira seccionada em que considera os fatos e a conceituação. O fato "eu estou em casa" divide-se para Russell em três partes distintas: eu, (198) O texto completo e literal da profissão de fé metafisica de Russell é o seguinte: "I have accepted... the plurallsm whlch regards the world... as composed of an lnflnlte number of mutually lndependant entltles, wlth relatlons whlch are ultlmate, and not reduclble to adjectlves of thelr terms or of the world whlch these compose." (199) Problems o/ Philosophy, tradução espanhola de Joaquim Xlrau: Los Problemas de la Filosofia. Editorial Labor. Segunda ed!c!ón, pg. 106.

"Entidades" necessárias para explicar as relações

Desmembramento conceptual dos fatos e inversão metafísica

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casa, em, cada qual com sua individualidade e existência ou subsistência própria. Vemos aí, mais uma vez, a inversão metafísica em plena ação. Os conceitos distintos de eu, casa e em (que aliás são assim "distintos" e independentes um do outro só para a Lógica metafísica) são projetados na Realidade exterior ao pensamento como entidades próprias existentes como tal independentemente do pensamento. Aliás Kant, que também é metafísico, faz a mesma coisa, só que desmembra o fato da minha estada em casa em duas "entidades" apenas: eu e casa; e para reagrupá-lo, em vez de recorrer ao grude russelliano de uma terceira entidade que é a relação "em", lança mão da síntese a priori que é a tal "obra do espírito" que Russell critica porque leva a um tipo de idealismo que êle rejeita. Russell se considera um "realista" no sentido moderno da palavra, e percebe muito bem que a concepção kantiana, levada às últimas conseqüências, elimina completamente o mundo objetivo (200). A "eliminação" russelliana é de outra natureza e Localização das menos escandalosa, como veremos. É: preciso portanto localizar as relações-entida- relações nalguma esfera extramental. Será a Realidade concreta? des Seria um pouco forte. Russell que vê sempre o Unverso através de suas "entidades" e de seus representantes que são os conceitos (representantes que são aliás as próprias "entidades", embora Russell não perceba isso), Russell logo vê que não é. possível equipãrar o eu e a casa de seu exemplo à preposição em. O eu e a casa são tangíveis (pelo menos Russell que confunde os seus conceitos de eu e casa com as feições concretas da Realidade objetiva que tais conceitos rerresentam, assim pensa), enquanto a preposição em só é tangíve sob sua forma escrita ou falada, o que não é naturalmente a mesma coisa. É: preciso pois inventar uma esfera especial para as relações que não seja "nem mental nem física." Nessa altura Russell descobre Platão, cuja "teoria das idéias é uma tentativa para' resolver aquêle grande problema, escreve Russell, e a meu juízo uma das melhores soluções conseguidas até hoje." (201) Eis a Matemática do séc. XX desembocando, por obra de Russell, no século V antes de nossa era: vinte cinco séculos de volta para trás nos ponteiros da história! Obra de Russell somente? Está claro que não: Russell apenas afirma em alto e bom-som o que os seus colegas não ousam ou não sabem afirmar. Mas por que acha Russell que a "teoria das idéias" de Platão resolve o problema da localização das relações? Porque êle observou, e observou As relações e muito bem, que afinal de contas as relações matemáticas não se os universais distinguem substancialmente nem das relações expressas formalmen(200) Foi o que aconteceu com Fichte e o idealismo alemão que seguiu Kant. Veremos Ysso em outra oportunidade. (201) Los problemas de la Filosofia, 108.

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te pelas preposições (como a preposição em do exemplo acima) nem dos universais de Platão (202). Essa observação de Russell consttui sem dúvda seu grande achado, e não fôsse o metafísico que é, teria dado na pista segura que o levaria à solução correta de todos os intrincados problemas encontrados pela Metafísica, porque êles se teriam simplesmente evaporado; como se evaporam, sem mais, os fantasmas para um indivíduo que propõe o problema dêles em têrmos científicos. E Russell estaria em condições de lançar sua Logística ,não sôbre as precárias bases da Metafísica, mas sôbre as da Dialética. Para isso, ter-lhe-ia sido suficiente equiparar os universais às relações matemáticas, e não inversamente, como fêz, as relações aos universais; concluir que universais eram relações, e não as relações, universais. Diferença aparentemente subtil, mas que faz tôda a enorme diferença entre o que teria sido a Logística construída sôbre relações (relações legítimas, bem entendido, e não entidades metafísicas fantasiadas de relações, como são as que se admitem no fôro augusto da Logística atual), e o declive escorregadio e pedregoso em que Russell e os modernos logísticos inadvertidamente se despenharam com suas relações transmutadas em universais. Equiparadas aos universais, as relações irão fazer-lhes companhia no mundo da forma e da essência de Platão, e que não é nem o mundo do pensamento nem o físico, mas uma esfera indefinida e indefinível expressamente constituída para abrigar os universais (Platão) e as relações (Russell.) A inversão metafísica realizava-se no séc. XX com a mesma eficiência que dois mil e quinhentos anos antes. Mas fazendo-se em universais, as relações, inclusive naturalmente as matemáticas propramente, vão sofrer tôdas as contingências dos universais que enchem a Filosofia de v!nte cinco séculos, e em particular os pergaminhos da Escolástica. Um sintoma característico disso é o estilo que as obras de Logística e mesmo às vêzes de Lógica matemátca (que é a Logística aplicada em particular à Matemátca), inclusive e já desde os primeiros trabalhos de Russell, o estilo que elas vêm assumindo; estilo êsse que se assemelha como duas gôtas d'água, aos mais legítimos partos da Escola. Não podemos evidentemente acompanhar tão espinhoso assunto; e assinalemos apenas a maneira como Russell explica, (202) Universais, sabe o leitor, são na Lógica metafisica aquelas entidades ou palavras (no plano metafisico palavras e entidades extrallnguagem estão sempre confundidas por efeito da inversão metafisica, e por Isso quando nos referimos a umas, falamos também das outras) entidades ou palavras que reunem ou agrupam várias coisas concretas. Assim cavalo, é o universal que agrupa todos os lndlvlduos-cavalos; filósofo, o universal de que participam Russell e seus colegas.

Equiparação das relações aos universais

Conseqüências da equiparação

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Os universais considerados na linguagem

Destino das re• lações transmutadas em uni• versais

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interpreta e aprofunda a .sua descoberta a respeito da identidade das relações e dos universais. É mais um modêlo, dessa vez de aplicação prática para o fim de constituir uma ciência, da inversão metafísica. Onde e como vai Russell considerar seus universais assim enriquecidos com as relações matemáticas? Na linguagem. É na análise de palavras e do seu agrupamento em linguagem falada ou escrita que Russell descobre o terreno apropriado para suas pesquisas. Nisso êle se mostra mais uma vez Bel discípulo da Escola, que também fizera de formas verbais a matéria-prima do conhecimento. Talvez a princípio Russell julgasse que estava apenas usando formas verbais como processo ou método de investigação, pois a certa altura ainda afirma que o ~ue "deseja obter é uma classificação de idéias, não de palavras.' (203.) Os escolásticos também tinham tido essa ilusão, o que não os impediu de manipular palavras durante séculos sob o pretexto de fazer ciência. Russell fará mais, pois quando verifica que seus universais-entidades se evaporam uns atrás dos outros logo que se lhes toca o dedo, toma a resolução final, embora ainda com hesitações que outros não terão, de sacrificar todos êles, ficando então confessadamente só com as palavras. A inversão metafísica assim se completa: primeiro Russell projetara na Realidade exterior ao pensamento as "entidades" que as palavras representam; estas últvnas, pelo menos, ainda são respeitadas e consideradas o que são efetivamente: produtos do pensamento. Mais tarde contudo, até as palavras deixarão de o ser, e se fazem também Realidades exteriores que existem independentemente do pensamento humano. :E:sse desenlace, todavia, virá a seu tempo. Vejamos antes o que vai acontecer com as relações transmutadas em universais e partilhando da escolástica existência dêstes últimos. (Russell não diz "existência", mas "subsistência": na esfera da essência nada "existe", mas "subsiste"; a existência é do mundo físico. São dessa ordem as subtilezas verbais que o neo-escolasticismo contrabandeia para a ciência moderna, pretendendo com elas resolver-lhe os problemas.) Os universais da Lógica metafísica, por natureza, se dispõem como se sabe em "entidades" encaixadas umas nas outras e formando hierarquias de classe. As "relações" sofrerão, como era de esperar, a mesma sorte, e se enquadrarão rigidamente no esquema platônico. Para isso Russell não teria mais que generalizar e adatar convenientemente o que a L6gica matemática sua antecessora já lhe fornecera: o mundo russelliano da· essência será um mundo povoado de classes; "rígido, inalterável, exato, delicioso para o matemático, o lógico, o cons(203)

Principies

o/ Mathematics, 42.

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trutor de sistemas metafísicos, e todos que amam a perfeição mais que a vida." (Russell) (204). Talvez Russell julgasse o seu mundo tão "rígido, inalterável e exato" no comêço de sua carreira de filósofo e em 1912 quando escreveu as linhas acima, porque êle mesmo se incumbiria de verificar mais tarde que aquela exatidão não era tão exata, quando as confusões de sua filosofia se fazem tais que o obrigam a torcer e retorcer mil vêzes a "rígida" armação daquele "mundo". Mas por que é obrigado a isso? Por uma série de razões que como a série de números parecem engendrar-se uns aos outros até a infinidade. Destaquemos algumas entre as principais. Uma vez armado o seu mundo das essências e povoado de "entidades" estanques e autônomas segundo o modêlo metafisico, Russell verificará que de nada adiantara essa complicada estrutura que se destinava em última instância, como estará lembrado o leitor, a explicar as relações. Isso porque transformadas em "entidades" e isoladas entre si, repunha-se o problema de explicar como essas entidades-relações ou universais se relacionam entre si. Assim por exemplo na expressão aritmética 7 +5=12, sete, mais, cinco, igual, doze, são todos "universais": de que modo êles se juntam na expressão 7 +5=12? Se fôsse perfeitamente coerente, Russell criaria, ao lado dos dois mundos da existência e essência, mais um terceiro, o da super-essência, digamos, que seria a mansão das "relações-entidades" destinadas a grudar as "entidades da essência", do mesmo modo 9ue as "relações-entidades" da essência serviam de grude para ·as entidades" da existência. Mas desta vez Russell não cai na armadilha que êle mesmo preparara, porque percebe que se criasse um mundo da super-essência, atrás dêle viria, e pelas mesmas razões, outro da super-super-essência, e assim até o infinito, o que evidentemente seria demais, mesmo para a Metafísica; e com a presteza e decisão de Alexandre Magno cortando o nó górdio, Russell também corta a ameaçadora série infinita de mundos que já se preparava para entrar em cena. E zás, exibe a solução que descobre: "as relações entre universais são fruto do conhecimento a priori." É de pasmar! Então Russell constrói ou copia de Platão sua almanjarra de existências, essências, universais, classes, etc. etc. para depois introduzir precisamente aquela concepção que pretendeu substituir com tão complicada traquitana? Pois não viu êle que o relacionamento de universais que êle propõe não é nada menos que a síntese a priori de Kant? Mas seja como fôr, não é essa incoerência de Russell que importa mais, pois sabemos muito (204)

Los Problemas de la Filosofia, 118.

Fracasso da explicação russelliana das relações

Russell reintroduz a síntese a priori

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Problema concreto da Logística

Insuficiência do

a priori

Multiplicação dos cálculos da Lógística

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bem que nesse plano especulativo nada teriá sido mais fácil que consertá-la e dar conta aparente do relacionamento dos universais com um diluviozinho qualquer de palavras tão do gôsto da Metafísica e escolhidas no Vocabulário de Lalande, por exemplo. Mas isso não resolveria o problema prático em jôgo, e que consistia em caracterizar e precisar rigorosamente a natureza daquelas relações entre universais a fim de poder formalizá-las. Era nisso que precisamente consistia o objeto da Logística, e para alcançá-lo fazia-s~ mister algo mais que um simples jôgo de palavras. Dar uma explicação qualquer aparentemente justificável daquelas relações era uma coisa; exprimi-las formalmente, outra muito diversa. E é êsse o problema que Russell terá de enfrentar: formalizar operações do pensamento que não sabia ao certo em que consistiam, e que dadas suas premissas metafísicas, não podia saber (205). Russell perceberá isso logo, e quando se vê na contingência de traduzir em formas verbais e simbólicas as ligações entre os universais que apartara de maneira tão radical e estanque em suas premissas metafísicas, verificará pràticamente que seu oportunista a priori introduzido à última hora e como remendo, era imprestável; e na falta de outro princípio geral unificador mais fecundo, terá de ir às apalpadelas. Guiando-se pela tr~dição clássica da Lógica matemá,tica, começa lançando mão da noção de classe e da de inclusão que lhe corresponde. Mas as classes, nos têrmos metafísicos em que as colocara a Lógica matemática, segundo vimos, serviam apenas para discriminar, e não para reunir: ao lado do cálculo de classes aparecerá logo por isso um primeiro remendo: o cálculo de proposições e a noção de implicação com que se pretende completar a inclusão. Mas Russell não consegue definir a implicação (que no fundo não é senão outro nome para inclusão), e acaba declarando-a indefinível (206) e limitando-se a caracterizá-la com alguns exemplos. Toma-se assim impossível marcar as fronteiras entre o cálculo de proposições e o de classes, e Russell resolve a dificuldade afirmando que embora o estudo de proposições genuínas é na sua opinião mais fundamental que o de classes, "o estudo das funções proposicionais se emparelha estritamente (205) As operações do pensamento nem entram em linha de conta no sistema de Russell, e são por êle expressamente postas de lado. "ll: claro, escreve êle, que quando Inferimos vàlldamente uma proposição de outra, fazemo-lo em virtude de uma relação existente entre essas proposições, percebamo-lo ou não: o pensamento (mind) é de fato tão puramente receptivo na Inferência como o senso comum supõe que o seja na percepção de objetos sensíveis." Principies of Mathem11tics, 33.

(206)

Principies of Mathematics, 14.

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com o de classes, e de fato mal se distingue dêste último." (207.) Retoma-se assim ao ponto de partida. Mas não cessam aí as dificuldades, porque há operações do pensamento de que as classes, com sua noção de inclusão, mesmo quando retorcidas para abrangerem a implicação, não dão conta. Russell é assim obrigado a introduzir o cálcula das relações paralelamente ao de classes (sem contar naturalmente o de proposições, forçado para dentro do de classe), ficando assim os dois cálculos pendurados um ao lado do outro sem que se saiba muito bem porque isso é assim e o que justifica a distinção; a não ser o fato empírico de certos fatos lógicos não se enquadrarem nas classes. Assim mesmo, isso já constituiria um progresso se Russell tivesse procurado aprofundar a natureza daquela distinção. No entretanto não o faz, e pelo contrário, levado por seu incoercível instinto metafísico, vai proceder a um sistemático desmembramento das relações que não se prestavam tão fàcilmente como as demais a um aparente e superficial enquadramento no esquemático cálculo de classes. E no final de contas, acaba fazendo de suas relações (aquelas que reconhece expressamente como tal) um novo tipo de classes metafísicas; isso embora tivesse criticado a posição de seus antecessores que, segundo afirma, tinham procurado tratar "relações como classes." (208.) Russell fará exatamente a mesma coisa, embora veladamente; e dessa sua manipulação sairão umas classes estranhas que não se parecem muito, talvez, com as classes do primeiro grupo, mas sofrem dos mesmos vícios metafísicos. E assim o cálculo de relações, se resolve oportunisticamente algumas dificuldades imediatas, não serve no conjunto senão para complicar e confundir o assunto. A noção de classe, viga mestra da Logística russelliana, sucumbirá quando se trata de precisar as relações entre elas e os objetos (subclasses ou outras "entidades") que contêm. Aí llussell verificará pràticamente quanto lhe fazia falta uma compreensão geral do assunto e a insuficiência do seu a priori copiado sem querer de Kant: não somente as classes se mostrarão decididamente mais que um simples ajuntamento de "entidades" autônomas independentes entre si, mas ainda se evidenciará que essas "entidades" participam misteriosamente (para a Metafísica) da natu(207) Principies of Mathematics, 13. - Essa diflcUldade, bem como outras que veremos adiante, já tinham sido consideradas pelos lógico-matemáticos que precederam RUBBell. Lembramos novamente que falando embora individualmente em Russell, referimo-nos na realidade ao conjunto da elaboração logistica em seus primeiros passos, de que Russell representa a principal figura e é o primeiro coordenador geral do assunto. (208)

Principies of Mathemattcs, 24.

Desmembramento das relações para se enquadrarem nas classes

Natureza das classes em desacôrdo com a Metafísica

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Despovoamento do "mundo da essência" de Russell

"Entüicação" das expressões verbais

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reza do con;unto ou todo de que fazem parte. Como isso? Por quê? Russell se debate furiosamente, xinga a filosofia hegeliana "que se alimenta de contradições" (209); mas afinal nada explica ou esclarece; e para resolver as dificuldades práticas que resultam daquela situação, não encontra nada melhor que uns remendos com que vai momentâneamente tapando alguns buracos do casco de sua Logística que faz água por tôda parte. Será êsse, entre outros, o caso de sua famosa teoria dos tipos que assinalamos acima. Essas dificuldades e outras da mesma natureza farão Russell perder cada vez mais a confiança em suas "entidades"; e as vai por isso pondo de lado. O despovoamento do mundo da essência se fará ràpidamente - de relações, bem entendido, e não dos universais clássicos, de que Russell não mais se ocupa, porque agora só trata de Lógica matemática, e seu velho sonho de uma Lógica geral de que as disciplinas matemáticas seriam apenas ramos, isso se esvai com o correr do tempo, e não passará mais de simples afirmação solene de princípio que Russell proclama novamente, mas só proclama, na Introdução à edição de 1937 de seus Princípios. Mas o processo de eliminação de "entidades" não é em Russell conseqüência de um princípio de ordem geral, de uma concepção de conjunto que atinja as raízes da questão: aqui também não passa de expediente oportunista e de última hora, destinado a resolver casuisticamente alguma dificuldade emergente. A eliminação das "entidades" russellianas se fará por isso em sucessão e à medida que elas próprias se desfazem logo que seu criador lhes aprofunda a análise (210). Mas nem mesmo essa mortandade no mundo das essências anima Russell a procurar-lhe a causa profunda. Limita-se a constatá-la em cada caso, e procede tranqüilamente ao repovoamento de seus domínios platônicos, dessa vez com ~quilo que constituía os representantes das ex-entidades: as expressões verbais com que se traduz a conceituação na linguagem empregada pelos homens e por êle Russell naturalmente também: em vez de um mundo de essências, teremos um mundo (209) Principies o/ Mathematics, 105. O hegelianismo teve, como se sabe, certa difusão na Inglaterra (F. H. Bradley, J. M. E. McTaggart, W. Wallace, e sobretudo Bernard Bosanquet.) Os hegelianos inglêses (contra quem Russell visivelmente se dirige), apesar de seu idealismo e de sua profunda impregnação metafisica (o hegelianismo tende sempre, de retôrno, à Metafisica; haja vista o próprio Hegel) conservam alguma vitalidade na critica às posições mais caracterizadas da Metafísica. (210) • Russell descreve resumidamente êsse processo de eliminação na Introdução à edição de 1937 de seus Princípios.

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de proposições "independentes de qualquer inteligência conhecedora." (211.) Essa concepção da independência das proposições já está implícita em todo sistema russelliano, como aflás se verifica pelo fato de Russell apresentá-la no prefácio de seu primeiro trabalho sôbre o assunto. Mas ficará num segundo plano, porque as proposições, embora independentes do pensamento (segundo Russell), têm ainda, nesta primeira fase da Logística, com que se encarnar e que são os universais. f: nessas "entidades" que a Logística se apoia, e as "proposições" são apenas um eventual substituto ou representante delas que serve para os fins pragmáticos da elaboração daquela disciplina. O logístico lidará com proposições, mas tem a segurança de pisar num terreno mais concreto que são as "entidades" do mundo das essências cuja realidade pode ser contestada, é certo, mas em rigor, para um metafísico, pode sempre ser admitida tanto quanto se admite a realidade de Deus, dos anjos, do diabo e de tantos outros sêres da mesma natureza. E isso já é um confôrto. Mas a coisa muda de figura, mesmo para êsses logísticos, quando em conseqüência da evaporação dos universais, restam apenas, como apoio para a Logística e sua Metafísica, as proposições, isto é, "palavras" e "símbolos" verbais e escritos. Como conceber pa1avras e símbolos vogando por aí afora, independentes do espaço e do tempo, existentes já antes do aparecimento do homem sôbre a terra, e perpetuando-se mesmo na hipótese do desaparecimento e extinção da espécie humana? Um universal dotado de tais atributos ainda se compreende, mas uma palavra, que sempre os nossos lógicos consideraram e não podem deixar de considerar, em sã consciência, como um produto da cultura humana? O osso é duro de roer. Mas não é êste o lugar próprio para discutir as conseqüências de ordem geral e as aberrações sem conta a que leva a filosofia implícita em todo tratamento da Logística moderna. Interessa-nos apenas o que resultou, para a elaboração dessa disciplina, do rumo metafísico que lhe foi dado. Já assinalamos algumas dificuldades fundamentais encontradas pela (211)

"1 have accepted their [propositions] independance of any knowing Principies, Preface, XVIII. As "proposições" a que se refere Russell são o que a Logistlca entende por forma das proposições ordinárias. Forma da promind."

posição é a estrutura lógico-gramatical dela, independente do conteúdo. Em vez de "proposição", dir-se-á mais corretamente função proposicional, que é a designação consagrada e que Russell define: "f(x) é uma proposição funcional quando, para todo valor (sentido) de x, f(x) é uma proposição (na acepção vulgar) determinada quando x é dado" (Principies, 19). Assim x é um homem é uma proposição funcional porque substituindo-se x por qualquer têrmo, teremos uma proposição verdadeira ou falsa.

As proposições como representantes de entidades

As proposições como existentes por si

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elaboração logística desde seus primeiros passos, e que longe de tenderam para uma solução, se têm agravado constantemente e levaram a Logística para o estado caótico em que hoje se encontra, quando não liá mais acôrdo nenhum e cada logístico tem a sua fórmula particular e predileta para contornar casuisticamente as Consagração do questões propostas (212). Mas é com a consagração do verbalisverbalismo mo, isto é, com o reconhecimento expresso e de princípio que a Logístca e a Lógica em geral não têm outro objeto, e não podem ir além da consideração da linguagem e formas verbais - e é essa a conclusão forçada, segundo vimos, a que chegaram Russell e tôda Logística - a elaboração lógica alcança o extremo de sua prematura degenerescência. Aquela consagração expressa e erigida em norma fundamental de pesquisa é particularmente acentuada pelo grupo de lógicos hoje na vanguarda de tôda Logística: o chamado Círculo de Viena, que inspirando-se em L. Wittgenstein, um legítimo rebento da tradição metafísica russelliana, tem hoje como representante máximo Rudolf Carnap. ~ste último, sem a menor hesitação, e reconhecendo aliás um fato verdadeiro relativamente ao caráter assumido pela elaboração lógica mais recente - embora interpretando-o a seu modo, isto é, favoràvelmente Lógica e lin- escreve: "O desenvolvimento da lógica durante os últimos dez guagem anos [escrito em 1934] mostrou claramente que ela somente pode ser estudada com algum grau de precisão quando é baseada não em julgamentos (pensamentos ou conteúdo de pensamentos) e sim nas expressões lingüísticas, de que as frases (sentences) são as mais importantes, porque é somente com relação a elas que é possível estabelecer regras nitidamente (sharply) definidas." (213.) A que corresponde isso? A nada menos que reduzir a Lógica à consideração e estudo da forma e estrutura da linguagem. Isso limita os horizontes da Lógica aos de uma Gramática extremamente acanhada que se recusasse sistemàticamente e por princípio considerar qualquer assunto que fôsse além da simples e pura expressão formal e verbal (214). Carnap e seu Círculo não vêem (212) Assim os paradoxos que referimos anteriormente e que se propuseram na aurora da Logística, ainda continuam matéria tão controvertida como nos seus primeiros tempos, e pràticamente não se foi ainda além de sua discussão casuística. (213) Rudolf Carnap, The Logical Syntax of Language. Tradução inglêsa de Amethe Smeaton. London (1937). - O titulo dessa obra fundamental da mo• derna Logística é aliás sintomático dos rumos que o assunto tomou. (2'14) Em rigor, uma tal disciplina é inconcebível, a não ser que seu objeto fôsse ap•enas ocupar-se com o gráfico das expressões verbais (Caligrafia) ou com· o simples som das palavras, menos ainda que a Fonética. E talvez nem mesmo

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nisso inconveniente, mas pelo contrário uma grande vantagem, porque admitem que existe uma forma absoluta do conhecimen- Forma e conto que independe completamente de seu conteúdo e que se po- teúdo do code exprimir à parte dêle. O objeto da chamada Sintaxe Lógica nhecimento visaria essa expressão; e o conhecimento nela traduzido e de acôrdo com as suas normas não apresentaria mais dúvida alguma de natureza epistemológica ou filosófica. Aliás para Camap e seus colegas, a Filosofia não tem na realidade outro assunto que "a lógica da ci~ncia . . . que consiste em nada mais que a sintaxe lógica da linguagem da ci~ncia." (215.) isso. É apenas para argumentar que estamos dando de barato que os homens do Circulo de Viena são coerentes com sua tese, e que dela não fujam a todo instante, como fazem, por tangentes mais ou menos disfarçadas. (:!:15) Logical Sintax of Language, Foreworà, xm. Fundamentalmente e em essência, o que se encontra na base dessa concepção e vai servir de norma prática para a elaboração da Logistica transmutada em Sintaxe Lógica, é que a forma. e o conteúào do conhecimento, por natureza distintos, se encontram confundidos na llnguagem corrente. Tratar-se-ia de separá-los, obtendo com isso uma expressão pura da forma em que o conhecimento "empirico" se poderia traduzir com tõda segurança. Ora aquela confusão deriva, segundo Carnap, do fato de se encontrarem na linguagem corrente, em pé de igualdade, expressões verbais cujo assunto ou referência são os objetos próprios do conhecimento (animais, plantas etc., nas ciências naturais, movimento dos corpos, na Fisica, e assim por diante), e outras que se referem só aparentemente a tais objetos, mas na realidade tratam somente de outras expressões verbais relativas aos objetos. Essa última categoria de expressões verbais seria como de segunda mão: não trataria de objetos concretos do conhecimento, e não se referiria a- êles; e sim às expressões que têm essa referência. Assim, num exemplo muito simples, quando afirmamos que "Paris tem cinco letras", não· nos estamos referindo ao objeto ciàaàe-àe-Pa.rís mas s1m à expressão verbal (palavra) Pa.ris, que é a expressão verbal daquele objeto ciàaàe-àe•Pa.ris. Num caso muito simples como êsse, a confusão não é evidentemente possivel; mas em outros ela ocorre, e entende Carnap que tôdas as questões_ epistemológicas e filosóficas não têm outra origem. O mais importante terr-eno em que tais confusões se verificam é o das palavras ou têrmos universais, cujo emprêgo se faz habitualmente como se êles se referissem a objetos do conhecimento, quando na verdade os universo.is não são o objeto próprio do conhecimento, mas expressões verbais que designam tal objeto. Assim quando falamos de "cavalo" não estamos tratando dos objetos próprios do conhecimento que são os cavalos-individuas (o Bucéfalo de Alexandre, o Man-of-War que venceu o Derby de 19 ... , o cavalo que Napoleão montou na batalha de ... , o cavalo do verdureiro, etc.) e sim referindo a expressão verbal que designa o conjunto dêsses indivíduos-cavalos. - A gôta de verdade que se encontra nessa concepção do Circulo de Viena perde-se num oceano de ilusões e falsas apreciações acêrca da natureza da confusão assinalada. Para Carnap e seus amigos, todo mal reside em defeitos de expressão verbal, em vícios de forma, que na linguagem corrente não é pura forma, mas mescla de forma e conteúdo; o que se resolve, segundo êles, com sua lingua.gem sintática. em que a distinção é rigorosamente efetuada. Mas na realidade, a confusão assinalada pelo Circulo de Viena não é senão resultado de uma confusão muito mais profunda (a inversão iàea.lista a que nos referimos) cujas raizes são de natureza

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Forma absoluSem entrarmos em considerações de ordem filosófica a prota do Conheci- pósito dessa concepção de uma forma absoluta do conhecimento mento (que não é senão outra maneira de apresentar a tese clássica e

essencial da Metafísica relativa à existência ou "subsistência" de uma esfera de essências independente da Realidade objetiva e empírica, inclusive do Pensamento humano) observaremos apenas que Carnap e seu Círculo, pretendendo ater-se rigorosa e exclusivamente à consideração da linguagem, e não dispondo por isso de outro material disponível para suas pesquisas senão a própria linguagem corrente que êles entendem traduzir numa linguagem isenta de vícios e que seja expressão da pura forma absoluta, êles de fato carreiam inconscientemente para sua linguagem sintática ideal tôdas as concepções filosóficas que estão implícitas na linguagem corrente tanto no seu conteúdo como na sua forma, e de que êles somente se poderiam livrar saindo fora dela, a saber, para o pensamento e o conhecimento que a linguagem tem por ol:ijeto traduzir (216). :E: de fato o que ocorre com os logicalistas; e é psicológica e sóclo-politica; e ela afeta tanto o conteúdo como a estrutura da linguagem corrente; aspectos êsses aliás inseparáveis pela maneira absoluta com que pretende fazê-lo o Circulo de Viena e que é bem a marca de suas concepções metafisicas. Consideremos, para e'!Cempllflcar, a expressão QEUS. Essa expressão · corresponde a uma noção ou conceito que sintetiza uma certa Interpretação do Universo, e tem raízes psicológicas, sociais e politlcas que se conhecem. E não é nada mais que Isso. Sendo assim, as questões relativas a. Deus (expressão de uma interpretação filosófica) constituiriam na terminologia de Carnap, questões lógicas. Será que Carnap aceitaria êsse ponto de vista? No caso afirmativo, seria multo Interessante verificar de que modo traduziria a.s frases relativas a Deus em sua linguagem sintática; a afirmação por exemplo que Deus criou o mundo. E mesmo que o fizesse, não estaria êle implicando no ato de fazê~lo uma concepção filosófica em desacôrdo radical com as concepções de tôdas as religiões? Não estaria portanto incluindo no seu tratamento logfstlco ou loglcallsta (como êle prefere) um elemento positivamente extra.formal? Ma.s Camap alegará posslve!• mente que tudo isso não tem nada a ver com a ciência, mas é assunto de rellgi!.o, Sua posição não será mais de um materialista, mas de um agnóstico: do ponto de vista que nos Interessa aqUI, nada estará modificado, porque o agnosticismo também é uma posição em frente ao problema do conhecimento. Além disso, o ca.so Deus é apenas um exemplo, que preferimos porque é de fácil compreensão e não envolve as subtilezas técnicas do logicalismo com que não queremos hlstórla.s porque todos sabemos o que são essas controvérsias escolásticas. (216) l!l naturalmente pressentindo isso que Camap não toma por objeto para sua construção sintática as linguas comuns, e sim a linguagem da Matemática devidamente simbolizada (que aliás êle divide arbitràrlamente em duas partes, unicamente para satisfazer a necessidade técnica de obter sua Sintaxe pela consideração da correspondência biunívoca dessa.s linguagens assim crlada.s; procedimento êsse que precisaria ser justificado mais que o faz Carnap, que se limita no assunto a algumas linha.s de explicação.) Mas êle não se livra tão fàcllmente da dificuldade, porque restará provar (o que não é feito, nem se pode fazer) que

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iludindo-se a si próprios que julgam estar desembaraçando da linguagem corrente apenas uma forma ideal. A própria metodologia do Círculo de Viena está densamente carregada de concepções metafísicas que passam despercebidas porque não há referência expressa a elas. Mas a escamoteação não é por isso menos perceptível para quem quiser ver. De fato, Carnap e seu Círculo não estão realizando nada do que pensam realizar, isto é, desembaraçando da linguagem corrente uma sua pseudoforma ideal e absoluta nela entranhada e que cumpriria livrar a fün de vazar nela todo conhecimento humano de todos os tempos futuros. Seu papel, como de tôda a Logística moderna de que o logicalismo é apenas uma forma de vanguarda, é muito mais modesto, e consiste unicamente - saibam-no seus autores, ou sejam apenas semiconsciente dêsse fato na logificação do conhecimento moderno, do da Física matemática em particular; no mesmo sentido em que os filósofos clássicos da Grécia, e sobretudo Platão e Aristóteles, procederam à logificação do conhecimento de seu tempo e que se fêz o conhecimnto vulgar subseqüente. tsse é o sentido e o aspecto positivo de sua obra; e as contribuições efetivas que eventualmente trouxeram para a evolução do Conhecimento, prendem-se a tal aspecto. Mas também e· tanto quanto a Filosofia clássica, e a dupla Platão-Aristóteles em particular, os logísticos estão-se deixando levar pelos mesmos prejuízos que nestes últimos deram na Metafísica, e nos lógicos modernos está dando numa tentativa malograda de adaptação da Metafísica clássica ao conhecimento moderno, conservando dela todavia as concepções fundamentais e mais deformadoras. E isso ocorre porque a Logística atual se apoia na mesma ilusão da Lógica clássica, a saber, considera a conceituação existente e •predominante numa fase histórica (a atual, no seu caso, a do ·séc. V antes de nossa era no da Lógica clássica) como a conceituação definitiva e absoluta dentro da qual se há de vazar, por todos os tempos afora, o progresso futuro do Conhecimento. A Lógica platônico-aristotélica, dando a forma da conceituação que no seu tempo continha o conhecimento existente - ou a maior e mais importante parte dêle - julgou que estava descoo formalismo matemático independe completamente do seu conteúdo; isto é, das operações mentais, e mesmo concepções, inclusive filosóficas, na base de que êsse formalismo foi elaborado, e que mesmo quando abandonadas em seguida, conti• nuam a impregná-lo. A numeração, por exemplo, por mais que se faça e que se formalize, guardará sempre traços de sua gênese operacional na contagem para que foi origine.riamente concebida.

Forma ideal da linguagem

Papel da Logística

Forma da conceituação

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Sucesso da L6gica clássica e fracasso da Logística

Logüicação do Conhecimento moderno

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brindo a forma absoluta e ideal do Conhecimento, e fornecendo-lhe com isso quadros conceptuais definitivos. A história desmentiu cabalmente essa ilusão. Os próprios lógicos modernos reconheceram isso; mas incidindo no mesmo êrro de Aristóteles, proferiram seu julgamento acêrca da Lógica dêste último colocando-se também fora da história: "Está errada, vamos substituí-la por uma Lógica certa." E foram pelo mesmo caminho que o Estagirita. Se o mundo estacionasse durante séculos, como ocorreu antes do surto da Ciência moderna, a Sintaxe L6gica de Carnap ou outro sistema qualquer semelhante permaneceria como um "absoluto" semelhante à Lógica aristotélica do qual se diria, como Kant disse a respeito desta última, que era a LóGICA definitiva e pedeita. Mas isso não acontecerá pela segunda vez porque o mundo marcha hoje velozmente, como tudo indica; e a própria Logística já é retardatária: antes mesmo de surgir, as normas que deveriam nortear a elaboração de uma nova Lógica, mas que por contingências político-sociais os logísticos desprezarão, essas normas já estavam prontas, e são bem diferentes das adotadas por êles, que não fizeram mais que enterrar-se cada vez mais na Metafísica. Não acontecerá também por outro motivo: é que o empreendimento platônico-aristotélico foi possível e obteve sucesso porque no nível em que se encontrava o Conhecimento,. e no qual êste continuaria mais ou menos estagnado durante séculos, o seu conteúdo principal e quase exclusivo não ia além de um primeiro momento de discriminação e caracterização preliminar das feições mais salientes do Universo. A Lógica clássica, constituída essencialmente para aquêle nível e dando conta suficiente dêle, satisfez por isso as necessidades. essenciais da época em que surgiu e da fase que a segue. O seu enrijecimento dentro da Metafísica foi por isso menos notado e apresentou menos inconvenientes. A Logística, pelo contrário, pretende ser e efetivamente deveria constituir a expressão lógico-formal da Ciência moderna e do alto nível com ela atingido pelo Conhecimento. O seu enquadramento metafísico é por isso tarefa irrealizável, e a própria Ciência se incumbe de ir arrebentando tais quadros um atrás do outro e à medida que se tenta colocá-los. O aspecto geral que apresenta a elaboração logística nos mostra isso claramente. Que significação tem tudo isso? :E:ste que a logificação do Conhecimento moderno, na mão daqueles que por circunstâncias eventuais se incumbiram dela em primeiro lugar, está abortando precisamente em sua última fase. Graças à feição particular que assumiu a conceituação físico-matemática, o conhecimento que êle traduz• conservou-se no essencial ao abrigo da ação deformadora da Metafísica atrás de um simbolismo que substituindo a língua-

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gem vulgar, obviou às armadilhas desta última. :1!:sse foi. o fator imediato essencial que tomou possível o largo desenvolvimento das Ciências físicas num ambiente saturado de Metafísica (217). Desenvolvimento êsse que levaria ao processo de sua logificação. A sistematização e ordenamento da conceituação matemática no curso do século passado constituiu o grande passo decisivo daquele processo, e dêle resultou a Matemática pura que é a Lógica das ciências físicas, bem como daquelas que llies foram assimiladas do ponto de vista metodológico - como a Estatística, a Biometria, etc. A Matemática pura, em sua expressão mais alta, se exibirá sob a forma axiomática, que representa o têrmo final para que tende a sua sistematização conceptual. Os diferentes setores da Matemática se vão progressiva e sucessivamente axiomatizando, e êsse processo encontra sua teorização geral no formalismo de Hilbert que despido de suas projeções e interpretações filosóficas, não é senão uma sistemática da conceituação matemática; e é nesse terreno, e somente nêle, que tem sido fecundo. Mas já nesse momento, a logificação matemática transborda para o plano mais amplo que é o da logificação do conhecimento em geral; e a logificação matemática se mostra função •apenas da logificação geral. Nessa altura insere-se a Logística, que partindo da logificação físico-matemática vai realizar ou pretende realizar a logificação geral. Mas já então as bases filosóficas precárias em que se apoia e o rígido enquadramento metafísico do pensamento daqueles que se incumbiriam de elaborar a nova Lógica, se farão sentir com tôda agudeza, pois faltará ao processo de elaboração matemática o resguardo contra a deformação metafísica que antes a protegia, uma vez que são seus próprios fundamentos que estão em jôgo. E por isso o esfôrço dos novos lógicos, colocado embora na tradição e nos métodos formais da Matemática, tão sucedidos no passado, fracassará. Os Russells, Wittgensteins & Cia. serão apenas novos escolásticos que procuram enquadrar o pensamento e conhecimento vivos do nosso tempo nas formas rígidas e mortas da Metafísica. Por isso tanto quanto seus antecessores, perderse-ão cada vez mais nos labirintos, nas subtilezas e controvérsias (217) Não compreendendo a natureza profunda dêsse fato, os lógicos modernos atribuiram o desenvolvimento do conhecimento flsico-matemático a não se sabe que virtude imanente do simbolismo, e limitaram-se por isso, na generalidade dos casos, a uma transposição mecânica da linguagem vulgar em símbolos. Não fizeram mais com isso que elaborar um simbolismo com a mesma impregnaçlio metafísica da linguagem vulgar. Cabe-lhes por isso perfeitamente a critica de Poincaré, quando escreve que "é difícil admitir que a palavra si adquire, quando se escrevei, uma virtude que não tinha quando era escrita si." Science et Méthode, 167.

Tênno final da sistematização da Matemática

Logificação matemática e do Conhecimento em geral

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sem fim que na maior parte não ·passam de jôgo de palavras. E embora pfantando aqui e acolá alguma semente fecunda - tanto quanto os escolásticos, que também deixaram algumas das sementes da Ciência moderna - acabarão sepultados como êles no seu abundante verbalismo para o qual não faltarão nem ·mesmo os pomposos títulos latin~ que adornavam os calhamaços da Escola: Principia Mathematica, · Tractatus Logico-Philosophicus, Fundamenta Mathematica e outros naturalmente em preparo ... (218). E sôbre essa venerável sepultura não faltará por certo o epitáfio de um novo Descartes ... A logificação do Conhecimento moderno viria por outras vias e tomaria caráter bem diferente. J;; o que procuraremos descrever na pr6xima parte dêste livro.

FIM DO TOMO I

(218"J Obras fundamentais respectivamente de Russell (1922) e St. Lesnlewski (1929).

(1912), Wlttgensteln

Este livro foi composto e impresso na GRÁFICA URUPÊS LTDA.

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