305 33 39MB
Portuguese Pages [262]
KARL MANNHEIM
SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO I Volume
há rés
(Edição portuguesa em 2 volumes)
Título Original
ESSAYS ON THE SOCIOLOGY OF KNOWLEDGE Tradução
Maria da Graça Barbedo
ORoutledge & Kegan Paul Ltd Direitos reservados para língua portuguesa
RÉS-Editora, Lda.
Pr. Marquês de Pombal, 78
4000 PORTO PORTUGAL
NOTA EDITORIAL
Quando Karl Mannheim morreu, em 1947, com 53 anos de idade, deixou por publicar vários manuscritos em diferentes graus
de desenvolvimento. A convite da Dra. Julia Mannheim, mulher do
autor e sua colaboradora durante toda a vida, ajudei a constituir uma equipa editorial escolhida entre os amigos e antigos alunos de Mannheim, com o objectivo de publicar, pelo menos parte do material. Além disso, sentíamos que os escritos de Mannheim em
alemão conservavam o seu significado total e deveriam ser traduzi-
dos de uma forma acessível ao público de língua inglesa. Orientamo-nos em todas aquelas decisões pela convicção de que as ideias aqui presentes formam não só uma chave essencial para a compreensão total do trabalho de Mannheim, mas são também uma con'tribuição muito importante para a teoria social e igualmente um incentivo para a acção social. O presente volume é uma sequência de Freedom, Power and Democracy Planning, que foi publicado em 1950. Contém seis ensaios
que
Mannheim
especialidade entre nante,
a Sociologia
escreveu
1923 do
e publicou
em
revistas alemãs
da
e 1929: reflexões sobre um tema domi-
conhecimento,
que representa, ao mesmo
tempo, uma das principais contribuições de Mannheim para a teoria sociológica. Durante os primeiros quinze anos que se segui-
5
ram país, entre dem
à publicação da /deology and Utopia de Mannheim no seu a sociologia do conhecimento tornou-se o centro da discussão sociólogos e filósofos. As ideias contidas neste volume pocontribuir grandemente para a clarificação destas questões im-
portantes.
A tarefa de traduzir e editar o texto alemão foi realizada pelo Dr. Paul Kecskemeti, associado na investigação no Rand Corporation, Santa Monica, Califórnia. É também sua uma introdução à história do problema e ao tratamento que recebeu nas fases sucessivas do trabalho de Mannheim. Na tarefa de tradução foi assistido sobretudo por Mrs. Jean Floud, da London School of Economics. A Fundação Rockefeller atribuiu uma bolsa ao Institute of World Affairs of the New School for Social Research para cobrir o custo da preparação deste manuscrito para publicação. ADOLPHE LOWE
Institute of World Affairs
New School for Social Research New York, 1951
Capítulo |
INTRODUÇÃO
1. OBSERVAÇÕES PRÉVIAS
O presente volume contém seis ensaios escritos por Karl Mannheim durante a primeira parte da sua carreira académica na Alemanha. Estes artigos até agora não disponíveis em inglês, foram recolhidos de várias publicações alemãs. A sua publicação nesta co-
lecção dos escritos de Mannheim destina-se a iluminar a génese e a
formação de uma das suas mais importantes contribuições para a sociologia, a «Sociologia do conhecimento». Por imperativos de espaço, dois ensaios do mesmo período que tratam
do mesmo
assunto, serão incluídos num segundo volu-
me de ensaios, aliás dedicado a escritos publicados depois da emi-
gração de Mannheim da Alemanha em 1933.
Vou tentar analisar brevemente a origem intelectual e política destes artigos e as várias fases das ideias de Mannheim relativas à sociologia do conhecimento. A sociologia do conhecimento de Mannheim foi muitas vezes mal interpretada como uma variante de cepticismo e ilusão. Tentarei mostrar que o seu objectivo não foi o de demonstrar a inevitabilidade do relativismo e cepticismo, mas antes a tese de que ape-
7
Sociologia do Conhecimento
sar da
um
inevitabilidade de certas conclusões
conhecimento
genuíno dos fenómenos
relativistas, é possível
históricos e sociais.
Para Mannheim, a participação no processo social, ao mesmo tempo que torna a perspectiva individual parcial e tendenciosa, permite igualmente descobrir a verdade do significado profundo do homem. Na doutrina de Mannheim, as potencialidade da participação social como fonte do conhecimento desempenham um papel mais importante do que as limitações que aquela coloca ao conhecimento. O leitor aperceber-se-á logo que a intenção do autor se torna clara, da importância universal e vital do assunto tratado e da doutrina do autor. If. INFLUÊNCIAS
Nascido em Budapeste, uma cidade da europa central em que as influências culturais alemãs eram predominantes, Mannheim viveu a sua juventude na Hungria e na Alemanha durante um período de extraordinária agitação social e intelectual. Estava-se no período da 1º Grande Guerra e do tempo caótico da revolução e da contra-revolução que imediatamente se lhe seguiu. É algo difícil para a geração
presente, acostumada
a viver no tumulto e no meio
de explosões constantes de violência, ter a percepção do cataclismo e do colapso total que se queimavam na Alemanha da «geração da linha da frente» da 1º Grande Guerra. O que quero significar com isto não é tanto a dimensão da catástrofe, a extensão das carências e também
das perdas humanas
e económicas, mas antes o facto de
esta violência e destruição se terem antecipado completamente. Era a realidade em si mesma, a verdadeira essência do homem e da sociedade que subitamente se revelavam
de um
modo
comple-
tamente novo e a uma luz terrível. O que ninguém tinha pensado possível, aconteceu de repente; o que era considerado como realidade surge agora como uma ilusão. Sentiu-se que era necessária
8
Sociologia do Conhecimento
Ocidente,
alimentadas
como
estavam
por esperanças
revolucioná-
rias, pelo sentimento triunfante de que através da revolução, a vitória poderia ser conseguida da derrota. Na Alemanha, claro, a revolução foi levada a cabo por pessoas menos decididas nas esfefas sociais. Mas havia clima de revolução razoável que deu aos jovens a impressão de uma completa re-orientação intelectual, espiritual e moral. Ao regressar da guerra, a «geração da linha da frente» tinha de reduzir as suas pretensões materiais; mas as suas pretensões intelectuais, sociais e morais assumiram dimensões gigantescas. Era para usar uma das expressões favoritas de Mannheim um
clima de «utopia»; e muitas teorias e correntes novas alimenta-
ram a consciência utópica da geração da linha da frente, o seu sentimento de terem atravessado um labirinto de enganos e ilusões antigas e de terem encontrado finalmente a chave para aprofundar o conhecimento e melhorar a acção. É importante notar, a este propósito, que este sentimento utópico se manifestou em muitos campos e de muitas formas, de um modo quase caótico e dispar. Não podemos falar de um só sistema de pensamento ou programa de acção como expressão única de perspectiva utópica da geração jovem. Muitas correntes contraditórias e heterógeneas existiram lado a lado, diferindo em quase todos os aspectos excepto num: todas defendiam personificar, de um certo modo, a verdade absoluta, a verdade muito mais viva, muito mais substancial, muito
mais integral do que as «verdades»
mortas da anterior
tradição dominante oficial e académica. Vou mencionar algumas destas correntes, as que exerceram uma influência significativa sobre o pensamento de Mannheim durante o seu período de formação e que contribuiram para o desenvolvimento da sua «sociologia do conhecimento». HI Uma
destas
correntes
foi, como
não
podia
deixar
de ser, o
marxismo, que representava ar fresco para a «geração da linha da frente» da 1º Grande Guerra. A profecia principal de Marx, o 10
Introdução
uma reorientação completa: um re-exame de todas as ideias tradicionais acerca da realidade, de todos os valores, de todos os princípios. Não havia, no seu todo, um murmúrio de desespero em tudo isto. Muito se poderia ter perdido; muitas provações e atribulações se sofreram, Mas, pelo menos, também se esclareceram muitas ilusões; nunca mais se viveria na situação vergonhosa de tomar o irreal por real, de confiar em autoridades e valores ilusórios. Aquela geração da 1º Grande Guerra conseguiu reter alguma satisfação por ter «descoberto» a geração dos seus pais, as suas simulações, as suas insatisfações, as suas profundas decepção e insinceridade. Era
a geração
jovem
que
se considerava
adulta
enquanto
que os
mais velhos eram considerados crianças iludidas e moldadas. Muito se pode ter perdido, mas a verdade estava finalmente a nascer. H
Tal era o clima psicológico do durante e após a 1º Grande Guerra, pelo menos na região de que falamos: a Alemanha e a área da Europa central sob a influência da cultura germânica. Estava marcada pela desilusão atordoadora e também pelo entusiasmo do contacto recentemente conquistado com a verdadeira realidade de um novo poder intelectual e moral. No ocidente, a reacção da «geração da linha da frente» à guerra era semelhante, em muitos aspectos, mas menos radical no seu todo. As «gerações da linha da
frente»
das democracias ocidentais estavam também
desiludidas
em virtude da experiência da guerra; mas a sua desilusão era menos traumática e não necessitava de ser sobre-compensada com uma nova fé positiva, Na Alemanha (e também na Rússia) o estímulo da guerra e da derrota conduziram à revolução, i. e., à transição de um desencantamento traumático para uma esperança extravagante. O Ocidente não sofreu nenhuma revolução depois da guerra. Para compreendermos as correntes intelectuais prevalecentes na Alemanha e na Europa central depois da 1º Grande Guerra, é preciso compreender, em primeiro lugar, que elas compreendiam muita
coisa que era radicalmente diferente do clima intelectual do
9
Introdução
advento da idade do proletariado depois do colapso final do capitalismo, parecia estar a realizar-se não só na Rússia mas também na Europa central. Mannheim não era um marxista integral; como veremos, combinou elementos marxistas com muitos outros heterogéneos; mas também para Mannheim o declínio da burguesia e a ascensão do proletariado era o traço essencial da fase contemporánea
da
história
e
algumas
teses
marxistas,
como
a da
natureza
«ideológica» do pensamento social, representaram para ele exemplos primários de uma nova perspectiva essencial que se tornou possível através de uma participação activa no processo histórico. Por outro lado, ultrapassou ortodoxia marxista segundo a qual o pensamento da consciência de classe do proletariado só por si representava a realidade tal como ela era, «adequadamente», de tal forma que quem não partilhasse desta perspectiva de classe estaria necessariamente enganado. (Esta tese foi proposta, por exemplo,
por Georg Lukács). Mas
o marxismo
não
era a única
escola
que
naquela
altura
pretendia ter alcançado novas visões de natureza substancial. Alguns movimentos puramente teóricos que não exerceram influência apreciável para lá do mundo académico tinham também uma
coloração
utópica
pelo
facto
de
mudarem
radicalmente
a
perspectiva tradicional e de proporem a substituição da rotina intelectual sem sentido por uma compreensão directa da realidade viva.
IV Um destes movimentos era o que se dirigia a uma «síntese» nas ciências culturais, especialmente na história das ideias, da arte e da literatura. O seu espírito era o da revolta contra os métodos de investigação histórica antigos, mortos, desinteressantes. O trabalho anterior à guerra nestes campos parecia ter-se dedicado sobretudo a pormenores sem importância, não atendendo à estrutura e ao significado do todo. Na história da literatura, por exemplo, a «velha escola» traçou os motivos individuais que se manifesta-
“
Sociologia do Conhecimento
vam nos trabalhos literários; tentava também descortinar as «influências» literárias ou biográficas que moldavam o trabalho dos autores. Tudo isto parecia totalmente irrelevante para os simpatizantes da nova corrente da «Geistesgeschichte». Para eles, um «motivo» sem o seu sentido, sem o seu significado vivo num contexto, não seria nada; e parecia sacrilégio ignorar a essência criativa do artista ao atender exclusivamente a meros impulsos, estímulos
e «influências» causais do exterior. A verdadeira tarefa consistia
em
reconstruir
o espírito
das épocas
anteriores
e dos artistas de
um modo simpático, evocativo. Esta opinião foi fortemente defendida por Friedrich Gundolf no seu Goethe (1916). Alois Riegl e Max Dvorák introduziram esta corrente integrativa e interpretativa na história da arte. Esta nova tendência caracterizava-se por uma rejeição completa do «positivismo», isto é, da tentativa de analisar o fenómeno humano, cultural e intelectual em termos de mecanismos causais também operativos numa natureza inanimada. O que é tão estereotipado, tão auto-repetido como uma lei física não pode, sentia-se, fazer justiça à singularidade do génio e do acto
humano na história. Mas isto não quer dizer que estas coisas estão fora do alcance da «ciência». Pelo contrário, no que diz respeito ao fenómeno cultural e humano, só uma doutrina sólida, «sintética», anti-positiva é verdadeiramente «científica». Wilhelm Dilthey foi um dos primeiros representantes deste ponto de vista. Dificilmente se pode exagerar o poder sugestivo que estas ideias exercem sobre o pensamento académico dessa altura. Na filosofia, por exemplo, um ramo da tradição neo-Kantiana — ele mesmo tão parte do velho mundo que foi afastado pelo pulsar do
novo espírito — dirigiu-se à elaboração da diferença entre a ciência natural generalizadora e a história concreta, individualizadora (Windelband, Rickert). Max Weber, fortemente influenciado pela doutrina
gia
filosófica de Rickert, desenvolveu um sistema de sociolo-
interpretativa.
Na
psicologia
introduziram-se
novos
métodos
qualitativos a substituir a doutrina positivista de Wundt. A escola da Gestalt começa o seu ataque ao associacionismo «atomista». Na
biologia, Driesch e outros propuseram orientações vitalistas e orga12
Introdução
nicistas. Mannheim reagiu fortemente à nova tendência «sintética»; um abismo radical entre os conceitos «estáticos» das ciências naturais e das matemáticas, por um lado, e os conceitos dinâmicos da história e das ciências sociais, por outro lado, tornou-se um dos principais traços do seu pensamento.
v
O novo método «sintético» de estudo ou antes de recriação
da história tem algumas implicações filosóficas importantes. O método baseava-se na ideia de que o historiador é capaz de comungar genuinamente com o verdadeiro significado dos trabalhos e acções que estuda. Para a conseguir, tem contudo, de separar-se dos conceitos, padrões de valores e categorias característicos da sua idade e de aprender a substituí-los pelos conceitos, padrões de valores e categorias do período que se considera. Todo este procedimento pressupõe, se analisado de um ponto de vista filosófico, que nenhuns padrões e conceitos têm validade indefinida. Cada
época tem o seu sistema de valores próprio cada uma
só faz compreender a sua essência mais profunda aos que dela se aproximam afastando os seus padrões contemporâneos. Assim, o
estudioso
da
arte
só pode
compreender
a essência
dos trabalhos
anteriores se os analisar na estrutura de um «estilo» histórico que ele (no caso de ser um artista) não pode nem quer seguir por vontade
própria, mas que pode transitoriamente
tomar como
seu en-
quanto analisa e «recria» os trabalhos históricos. Esta multiplicidade de padrões é, por seu turno, um fenómeno perfeitamente simples na arte reprodutiva; podemos pensar a este propósito nos executantes musicais que são também compositores. Ao reproduzirem os trabalhos de mestres anteriores, estes executantes «assumem»
este ou aquele estilo anterior à vontade; mas nas suas com-
posições pessoais, falam num
idioma moderno.
Esta multiplicida-
de de padrões, este sentido de uma variedade de formas ligada ao tempo em que se incarnam os valores estéticos, foi generalizada, durante o período de que falo, numa teoria filosófica chamada
13
Sociologia do Conhecimento
«historicismo».
nhum endido
A
tese
central
do
historicismo
era
a de
que
ne-
produto da cultura humana poderia ser analisado e comprede um
modo
isolado do tempo; a interpretação deveria co-
meçar pela conexão de cada produto com um índice temporal, pela sua relacionação com um «estilo» ligado a um determinado período. Isto aplica-se não só a trabalhos de arte, mas a todo o produto da mente humana e a toda a acção humana. O historicismo implicava assim, um relativismo completo no que respeita aos valores; proibia a aplicação directa de quaisquer padrões de valores que consideramos válidos para nós mesmos enquanto pessoas individuais, quando falamos de épocas passadas. Defendeu-se que tal aplicação directa era como o pecado capital que desqualificava uma pessoa como intérprete fiel e historiador científico. Mas não se sentiu que este relativismo conduziria à destruição pura e simples dos valores assim relativizados. Logo que o historiador se colocava na disposição antiquada em que olhava para os produtos culturais, não com os seus olhos mas com os olhos dos habitantes de culturas anteriores era perfeitamente capaz de sentir grandeza, o significado humano, que penetra
todo o processo histórico através das suas mudanças e manifesta-
ções mortais.
Este sentido de grandeza, de glória, só podia ser alcançado pela análise das coisas numa perspectiva histórica: não havia outro modo de fugir a um sentimento de futilidade relacionado com tudo o que é humano. O movimento histórico pode explicar-se como uma manifestação da consciência religiosa protestante que precisava de ter qualquer coisa a que se agarrar, alguma experiência do Absoluto, depois de científica todos os possíveis contidos de uma fé directa, ingénua. A história, o cemitério dos valores, de alguma maneira lhes assegurava uma imortalidade etérea, depois de a sua realidade corporal ter desaparecido. Os historicistas sentiram, é claro, que a sua desapreciação da perspectiva «directa», inquebrável do crente ingénuo, não é uma atitude correcta para um esp
criativo: para criar, temos de ser capazes de afirmar alguma coisa incondicionalmente. Mas eles acreditavam quea história conseguiria
14
Introdução
ainda novas criações de jectos de valor face aos pel de conhecedores. O criar; mas defendeu que
valores por um processo inconsciente, obquais eles desempenhariam de novo o pahistoricismo reconheceu que não poderia só ele era capaz de fazer justiça ao espíri-
to criador. Esta era a sua «utopia».
Mannheim
identificou-se fortemente com o historicismo —
que se tornou um dos ingredientes essenciais da sociologia do conhecimento. Mas nas suas mãos, o historicismo foi subtilmente transformado; porque, como havemos de ver, cada vez mais Mannheim
acentuou
o elemento
de compromisso, de acção, como
a verdadeira substância do processo histórico. Para ele, o impulso básico do historicismo não era a necessidade de salvar qualquer possibilidade de comunhão com o Absoluto, o sol poente de uma tradição religiosa defunta — embora tal desejo tivesse sido apresentado — mas antes a necessidade de dotar um credo político progressivo de profundidade, de o salvar da superficialidade dogmática. vI
Temos de mencionar mais uma escola académica da filosofia
alemã em que o espírito «utópico» da época encontrou expressão: a escola fenomenológica. Edmund Husserl, que iniciou o movimento, desafiou a orientação predominantemente Kantiana da filosofia académica alemã. A tradição Kantiana considerava todos os objectos do conhecimento como o reflexo do factor subjectivo no conhecimento: a organização pré-existente da mente que determinava a priori que espécie de conhecimento era possível. Husserl desejava uma filosofia que alterasse de novo a revolução «coperniana» de Kant que atribuiu ao sujeito predominância sobre o objecto. O seu objectivo era mostrar que no verdadeiro conhecimento se percepcionavam as «coisas em si mesmas»
e não meras reflexões de
uma consciência pré-existente, autónoma. Também aqui encontramos a aspiração de conseguir uma comunhão com a realidade em si mesma.
A fenomenologia
conhecimento
parecia abrir uma
avenida
substancial; isto era importante,
à «geração da linha da frente».
fresca para o
para o seu apelo
15
Sociologia do Conhecimento O «conhecimento substancial» prometido pela fenomenologia acabou por ser mais o conhecimento das «essências» do que o das coisas tangíveis do mundo exterior; Husserl defendia que, estas nunca
se revelavam
completamente,
mas
só em
aspectos superfi-
iais, parciais. O que se revelava completamente era, por exemplo, o objecto matemático ideal. Este poderia ser conhecido livre dos perigos do conhecimento empírico, com provas completas, apod ícticas. «Contar», por exemplo, pressupõe a compreensão de um procedimento prescrito pelo próprio objecto; era esta compreensão do sentido do procedimento que importava, e não a sequência psicológica, causal em que este ou aquele sujeito dirigia o procedimento. Os processos individuais de aprendizagem eram muitos e cada um
segue
uma
rota causal diferente, mas analisada em si mes-
ma quando aprendida, era a mesma operação, realizada do mesmo modo relativamente às questões «essenciais» — sem atenção ao facto de pormenores não essenciais, como a particular linguagem usada, poderem ser diferentes. O próprio Husserl manteve a sua
análise próxima das essências matemáticas, mas os seus discípulos
estenderam-se cedimentos»,
mais
não
para além; descobriram
de natureza
matemática
muitos outros
ou
lógica,
que
«pro-
foram
igualmente prescritos pelas regras «essenciais» e igualmente independentes das contingências psicológicas dos processos de aprendizagem. Os valores pareciam exemplos particularmente adequados da espécie de entidade que poderia ser compreendida na sua «essência» com segurança completa e numa perspectiva perfeita. Assim, a escola fenomenológica identificou-se sobretudo com a doutrina do absoluto e contra os valores relativos, subjecti-
vos; situava-se no pólo oposto ao historicismo relativista. Max Scheler foi o principal representante da teoria objectivista, absolutista de valores dentro da escola fenomenológica. Curiosamente,
contudo, Scheler também desempenhou um papel considerável na iniciação ao estudo da «sociologia do conhecimento»; tanto quan-
to sabemos, foi ele o 1º a usar o termo. Veremos mais tarde como Scheler,
o absolutista,
se tornou
um
dos iniciadores da disciplina
que é geralmente considerada como inseparavelmente ligada a uma posição relativista. 16
Introdução
Mannheim
recusou a teoria fenomenológica de um conheci-
mento dos valores objectivo, absoluto; mas aceitou outros ensina-
mentos
da escola, e especialmente a doutrina
dos «actos intencio-
nais». Esta doutrina afirmava que para a compreensão de um objecto de um certo tipo, tempos de adoptar uma específica atitude «intencional» que corresponda àquele tipo de objecto. Assim, o conhecimento do fenómeno do mundo material só pode ser alcancado se nos colocamos no papel do observador que parte de dados da consciência, de medidas e deduções de premissas expressas em linguagem quantitativa; mas o estudo dos impulsos, valores e actos humanos requer uma abordagem «intencional» inteiramente diferente. Mannheim usou este tipo de raciocínio na rejeição da sociologia positivista; segundo ele, o erro do positivismo consistiu em negligenciar a diferença «fenomenológica» entre o mundo inanimado e o mundo histórico-cultural (cf. o ensaio sobre a Sociologia do conhecimento, p. 150, infra). Contudo, para ele, as diferenças «fenomenológicas»
entre
os vários
domínios
do
ser, embora
im-
portantes, eram relativas a aspectos superficiais e não a aspectos essenciais das coisas; Mannheim estava impaciente por mergulhar para além da superfície fenomenológica no verdadeiro âmago das coisas, na substância da realidade histórica que só o sujeito activo, completamente comprometido era capaz de alcançar. Esta é a essência da sociologia do conhecimento de Mannheim; é a sua «utopia» no desenvolvimento da qual o marxismo e o historicismo
desempenharam
um papel muito decisivo. A ideia de conhecimen-
to «existencialmente
determinado»,
que é uma
das pedras angula-
res da teoria, pode ser apontada ao marxismo, enquanto que o historicismo é a fonte da doutrina da natureza «perspectivista» do conhecimento. HI. O DESENVOLVIMENTO DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
Algumas das ideias iniciais com
as quais Mannheim
desenvol-
veu a sua teoria sociológica da mente podem encontrar-se expressas 17
Sociologia do Conhecimento
num trabalho anterior, dedicado não a problemas sociológicos, mas a questões filosóficas. É o caso da sua tese de doutoramento,
Structural Analysis of Epistemology (1922). ca.
A
O próprio título chama a atenção para uma nota caracter ístiabordagem «estrutural» é, na verdade, um traço funda-
mental do método sociológico de Mannheim. Observar uma coisa
de um ponto de vista «estrutural» significa explicá-lo, não como uma unidade isolada, auto-suficiente, mas como parte de uma estrutura mais larga; a explicação baseia-se não tanto nas propriedades da coisa em si mesma, mas no lugar que ela ocupa dentro da estrutura. Adoptando esta abordagem «estrutural», podemos ver que o «significado» de algum fenómeno individual, ex: uma declaração, só pode ser determinado em referência ao sistema conceitual a que pertence. Na «sociologia do conhecimento», este princípio desempenha um papel extremamente importante. No Structural Analysis of Epistemology, acrescenta-se que é igualmente válido para a análise «lógica»: Mannheim afirma que a primazia das formas lógicas pertence à «sistematização». Todas as formas mais mais
simples,
elementarmente
lógicas, como
os conceitos
ou
os
juízos, só podem ser compreendidas em termos da sua forma globalizante, compreensiva. O pensamento é definido como «um esforço
para
encontrar
lugar
nas
ordens,
o
lugar
lógico
de um
conceito
na estrutura
total das esferas mentais; por outras palavras, só se pode explicar e compreender uma coisa na medida em que descobrimos o seu séries
e
níveis
correntemente
aceites»
(ver
adiante). «Não existe a criação mental completa e finalmente isolada, auto-suficiente. Mesmo uma acção, pondo de parte o conceito, revela a estrutura de uma sistematização; é esta estrutura que lhe dá o seu significado e consistência, que a torna de facto naquilo que ela é. O Structural Analysis of Epistemology aceita o uso da escola neo-Kantiana na definição de lógica: a lógica é a ciência que trata com
conceitos, juízos e sistemas e, acima
de tudo, com a sua «va-
lidade» ou valor lógico. Esta «lógica» não tem, é claro, nada a ver
com a
18
lógica rigorosa, formal
tal como é compreendida pelos lógi-
Introdução
cos de hoje; Mannheim aparentemente nunca se deixou influenciar pelo «círculo de Viena» que atribu ía aoestudo da lógica nos países de expressão germânica uma base exacta, depois do método dos Principia Mathematica. Para ele, o problema central da lógica era e foi sempre, mais a «validade» do que a consistência: a questão era somente a de saber se devíamos atribuir validade intemporal, absoluta ou validade relativa, «situacionalmente determinada» a afirmações científicas e a sistemas conceituais. No Structural Analysis of Epistemology, a questão é decidida abertamente em favor da validade absoluta, com sacrifício da validade relativa. «Está implícito na própria estrutura da esfera teórica que deve ser tomada como uma validade atemporal». A lógica «dinâmica», de acordo com a qual a própria forma de pensamento muda de maneira que não se pode dizer que uma coisa seja válida num sentido absoluto, sem referência a uma estrutura historicamente determinada, é expressamente rejeitada. Contudo, alguns argumentos contidos no ensaio parecem apontar na direcção da última posição que rejeita uma «validade atemporal». Assim, vemos a comparação entre o desenvolvimento histórico da ciência, da arte e da filosofia. A ciência desenvolve-se numa linha direita; novas perspectivas são acrescentadas ao sistema e as velhas concepções coerentes com as últi-
mas descobertas são simplesmente rejeitadas. Mas com caso é diferente: os trabalhos mais recentes de modo refutam
os
primeiros;
cada
estilo,
cada
período
tem,
a arte o nenhum
por
assim
dizer, a sua própria «validade». A filosofia, contudo, situa-se algures no meio entre estes dois tipos: embora haja só «uma verdade» em filosofia, pelo menos idealmente (o que se afirma em atenção ao princípio da validade «intemporal»), as velhas soluções não são simplesmente rejeitadas; elas têm alguma coisa da glória intemporal de um trabalho de arte. Esta tipologia das formas de desenvolvimento em vários campos desempenha um papel importante nos últimos trabalhos sobre a sociologia
do
conhecimento
of Weltanschauung. «não»
fácil
pode
Em
passar
(ver,
arte ou em de uma
por
exemplo,
/nterpretation
Filosofia, nenhum
época
«sim» ou
histórica a outra, mas
ini-
19
Sociologia do Conhecimento
cia-se um sistema novo, completo em cada época. Este é o argumento central do historicismo de Mannheim; a partir daqui ele conclui no seu último trabalho que o método positivista não é apropriado ao estudo do fenómeno cultural. O problema da relação entre o «processo genético» na história e a «validade»
do
conhecimento,
que
desempenha
um
papel
tão importante na sociologia do conhecimento de Mannheim foi já tocado no Structural Analysis of Epistemology. Embora assegure no seu trabalho anterior que a «validade» é intocável pelas contingências do processo histórico, Mannheim não está sossegado; admite que há uma «tensão» entre o conceito de validade absoluta e a «empatia» de que o estudioso se deve servir quando interpreta filósofos anteriores. Pergunta: Qual o significado do temporal e do intemporal? Quais as ideias que só são possíveis num tempo determinado e não em outras ocasiões? Esta questão recebe mais tarde uma resposta sociológica: é a realidade histórica e social que cria a possibilidade de certas compreensões. A principal conclusão alcançada no Structural Analysis é a de que a epistemologia não é uma disciplina auto-suficiente; não pode fornecer um padrão pelo qual possamos distinguir a verdade da ilusão. Tudo o que pode fazer é reorganizar o conhecimento que se supõe já ter sido alcançado e traçar a sua ligação a alguma ciência que se supõe ser «fundamental» pelo facto de tratar de um campo
em
que
cada
item de conhecimento
pode
ser considerado
com a sua origem. Mannheim menciona três ciências que podem desempenhar o papel de «ciência fundamental» neste sentido: a psicologia, a lógica e a ontologia. O que quer dizer é que podemos tratar todo o conhecimento quer como dado psicológico, quer como entidade lógica, quer como problema ontológico (metafísico); a epistemologia pode ser escrita de qualquer destes três pontos de
vista, mas não pode decidir qual é o correcto. O que nisto é impor-
tante para o ulterior desenvolvimento da sociologia do conhecimento é a afirmação de que uma disciplina filosófica epistemológica é incapaz de resolver os seus problemas pelos seus próprios re-
cursos; deve procurar noutro sítio o padrão do verdadeiro conheci-
20
— mad
Introdução
mento. No Structural Analysis, duas outras disciplinas filosóficas e psicológicas desempenham este papel de ciências fundamental; ultimamente, este papel é tomado pela teoria sociológica: a análise da sociedade como uma entidade que se desenvolve na história vence todas as filosofias como ciência fundamental. A epistemologia é radicalmente desvalorada enquanto crítica do conhecimento; e esta desvalorização é complementada, como vemos, mesmo antes de Mannheim se dirigir para a sociologia, ou para a filosofia sociológica da história, como ciência fundamental. Mas a epistemologia consegue a sua vingança de um modo subtil: todas as análises sociológicas mais recentes concentram-se num problema epistemológico, o da validade do conhecimento «existencial» ou «sociologicamente» determinado; assim, Mannheim nunca coloca os problemas da sociologia do conhecimento em termos puramente empíricos. O seu pensamento nunca se separa realmente da filosofia. H O ensaio sobre a Interpretation of Weltanschauung (1923) considera o problema do tratamênto científico adequado dos objectos «culturais», tal como os trabalhos de arte, filosofia, etc.. A principal tese é a de que tais objectos não podem ser tratados pelos métodos da ciência natural, porque a correcta compreensão do fenómeno cultural implicaa interpretação dos sentidos e os sentidos
não
podem
ser «observados»
como
as coisas de que tratam
os físicos. Toda a interpretação pressupõe, porém, uma compreensão de uma qualquer totalidade, de um qualquer sistema, de que os elementos significativos são partes; esta é de novo a ideia da «análise estrutural», agora aplicada a objectos históricos. No tratamento de tais objectos, a primeira dificuldade que se encontra é a de que enquanto
que
a interpretação é, em
si mesma
considerada
uma procura teórica, as coisas a interpretar são rebeldes a uma aproximação teórica. São produtos do homem enquanto seres circulares, que vivem na esfera volitiva, emocional e estética (como Dilthey
acentuou).
Como
pode,
pois,
a teoria
valer
para
eles?
21
Sociologia do Conhecimento
É possível negar, claro, que a teoria tenha algum significado para eles; a arte, a religião, a acção social e política são, podemos dizer, coisas irracionais, que se «sentem» mas que não podem ser analisadas. Mannheim recusou, porém este irracionalismo. No ensaio sobre a Weltanschauung e também nos últimos trabalhos, combateu numa
batalha de duas frentes: contra a tese de que toda a produ-
ção cultural é essencialmente irracional e insusceptível de análise e também contra a doutrina segundo a qual toda a análise cienti-
fica se deve conformar ao modelo das ciências naturais. «Sabe-se
apresenta
sob
bem
que o espírito helénico ou Shakesperiano
diferentes
aspectos
significa, no entanto, que este sem valor. O que quer dizer sentado pelas ciências naturais cimento histórico — devemos
a diferentes
gerações.
se
Isto não
conhecimento é relativo e, portanto, é que o tipo de conhecimento apredifere fundamentalmente do conhetentar compreender o significado e a
estrutura da leitura histórica na sua especificidade e não rejeitá-la
por não estar em conformidade com os critérios da verdade positivista sansionados pelas ciências naturais (/nterpretation of Weltanschauung ver adiante). A posição de Mannheim no ensaio que apreciamos é a de que o «a-teórico», ex: o «estético», não é «irracional» mas antes interpretável e analisável. A tarefa da análise consiste na descoberta do todo estrutural a que pertencem estes fenómenos a-teóricos; uma vez isto realizado, é possível atender à sua génese e às leis do seu desenvolvimento. Deste modo, a teoria pode sobrepôr-se ao a-teórico. Esta tarefa é, no entanto, realizável a vários níveis. O sentido pode ser definido como «objectivo», «expressivo» e «documental». O significado da primeira natureza é o mais superficial: a «estrutura»
em
termos da qual
se define é uma simples correlação
meios-fim. O sentido «expressivo» é menos óbvio: podemos detectá-lo e interpretá-lo descobrindo qual o estado emocional e físico que um sujeito quis exprimir por uma acção ou por um trabalho. O significado «documental» é o mais profundo e o mais fundamental
22
de todos: consiste no que um trabalho ou acção revela àcer-
Introdução
ca da orientação total do autor e do seu carácter essencial. Em regra ele está escondido mesmo para o próprio autor, que é mais um instrumento
do
que
um
detentor
do
significado
«documental»
manifestado pelos seus produtos. Quando consideramos o significado «documental» das acções e dos trabalhos, temos de considerar a visão geral, a Weltanschauung dos seus autores. Este é o todo mais compreensivo em termos do qual os significados podem ser investigados; e a sua essência é histórica. Cada unidade histórica da civilização — um certo período da cultura ocidental, por exemplo — tem a sua própria Weltanschauung, como tem o seu próprio estilo; e a ciência história é essencialmente a análise dos trabalhos e acções em termos de Weltanschauung. É esta espécie de análise que, segundo Mannheim, as ciências naturais não estão preparadas para realizar; e, na verdade, afirma, que a análise não pode ser realizada de uma vez por todas, de um modo intemporalmente válido. A interpretação documental, a interpretação da Weltanschauung, deve ser realizada de novo em cada período, porque só a «substância compreende a substância»: só o analista historicamente, existencialmente comprometido pode compreender os significados documentais.
O estudo da Weltanschauung é uma
espécie de estu-
do «dinâmico»: exige participação simpática mais do que afastamento. Resulta tanto melhor, quanto maior a afinidade entre o analista e o seu objecto. O que pode afastar os simpatizantes do método científico exacto; seria no entanto, um positivismo errado ignorar a Weltanschauung, porque existe aos olhos de todos. Neste artigo, somos familiarizados com os temas centrais da sociologia do conhecimento. A maior parte dos exemplos são tirados da história da arte (o ensaio apareceu no year Book da History of Art), e todo o argumento pode ser lido como um manifesto metodológico da escola da Geistesgeschichte (cf. a secção anterior). No entanto, o conceito de «significado documental» transcende o puro Geistesgeschichte. É um conceito existencial; foi primeiramente
introduzido
consciente, da (uneigentlich),
em
conexão
com
o problema
da hipocrisia
in-
falsa consciência ou da existência «não-genuína» tal como o entendiam os existencialistas. Isto
23
Sociologia do Conhecimento
pressagia o conceito de «ideologia total», uma das ideias mais arrojadas no /deology and Utopia; o «significado documental» não se confina à arte pela arte, à literatura pela literatura; é relativo ao que é mais real no homem, ao seu lugar dentro do todo da realidade histórica. HI No ensaio que se lhe seguiu, o artigo sobre o Historicismo (1924), a perspectiva sociológica emerge como a decisiva. Porque a Weltanschauung deve ser estudada de dentro da Weltanschauung (só a substancia pode compreender a substância), somos obrigados a uma perspectiva sociológica: a opinião da vida que caracteriza a nossa época «tornou-se fortemente sociológica». Se partimos desta premissa globalizante, vemos que nenhum sistema conceitual, nenhum sistema de valor pode defender a validade intemporal. Contudo, não podemos sucumbir ao relativismo, já que o que afirmamos não é uma
mera
mudança neste sistema conceitual e de valor,
mas antes uma mudança subjectiva segundo um «princípio ordenador». Tudo tem o seu lugar numa estrutura envolvente em que os valores têm o seu ser. A razão, a verdade, o conhecimento, devem ser redefinidos como essencialmente ligados a este dinamismo histórico. «Quando partimos, não de uma Razão estática, mas de uma totalidade dinamicamente em desenvolvimento do todo da vida psíquica e intelectual como o dado último, o lugar da epistemologia... será tomado pela filosofia da história como uma metafísica
dinâmica».
Esta a nova resposta para o problema levantado no Structural Analysis of Epistemology; que é uma resposta provisória. A final nomeará directamente a «sociologia do conhecimento» como a sucessora da epistemologia. O sujeito que conhece a história é o sujeito que participa na história como um sujeito activo, partilhando das aspirações sociais dominantes
24
da sua época.
Há um «laço profundo» entre a «aspira-
Introdução
ção» e o «conhecimento». O conhecimento histórico está determinado a situar-se dentro do processo histórico (standortgebunden); a exigência do conhecimento evidente dos valores «absolutos», querida pelos fenomenologistas, não passa de uma ilusão. Na realidade, não há nada de «absoluto» àcerca de tais posições de valores firmemente mantidas: também eles, reflectem meramente um «ponto de partida» resultante do inter-jogo de forças históricas,
sociais.
Mannheim declara que a sua rico como função das «posições» não é em si mesma relativismo — natureza que pode ser facilmente O
argumento
do
anti-relativismo
doutrina do conhecimento históteóricas produzidas pela história, pelo menos, não é relativismo da refutado como auto-destruidor. é o de
que, ao afirmarmos
que
«todo» o conhecimento é tão somente o reflexo de uma constelação histórica passada, não podemos pretender atribuir a esta afirmação o predicado de «verdadeira». Mas Mannheim defende que o seu ramo de historicismo não sucumbe a este argumento. Por uma coisa, diz, mesmo na sua teoria, o conhecimento histórico permanece
controlável: deve adequar-se aos factos conhecidos, de-
vem tomá-los em conta. Em segundo lugar, e isto é mais importante, todas as objecções desaparecerão se compreendermos que a velha concepção «estática» de verdade não é a única possível; se consideramos que a própria verdade é a soma e a substância do processo dinâmico da história, então tornar-se-á sem sentido aplicar padrões de verdade «estática» ao conhecimento histórico. Vou deixar a discussão crítica desta posição para a próxima secção; neste momento, dedico-me só à exposição da doutrina historicista
doutrina
tal
afirma
como
foi
defendida
por
Mannheim.
O
que
esta
penso é que, o sujeito que fala da história e dos
outros assuntos com ela relacionados (i. e. assuntos fora do âmbito das
matemáticas
e ciências
naturais,
onde os padrões
«estáticos»
de verdade são evidentemente legitimados) só podem alcançar uma
espécie de «verdade», isto é, a comunhão com e a participação nas tendências reais e nas forças da história. Estar fora do alcance da tendência básica é não estar com a verdade; a identificação com a
25
Sociologia do Conhecimento
tendência
básica garante o verdadeiro conhecimento.
É verdade
que este conhecimento muda as suas bases como mudam as tendências. Mas se esta espécie de conhecimento não é «cientifica», então não pode haver conhecimento científico da história. Contudo, seria derrotismo injustificado admitir que a história está para além da esfera da análise científica. Se aceitamos a verdade «dinâmica» como um tipo legítimo de verdade, não haverá então nenhuma dificuldade em aceitar que o conhecimento histórico está ligado a uma perspectiva mantendo, apesar disso o seu carácter científico. Penso que podemos compreender melhor o que aqui se diz se nos lembrarmos que através da história da filosofia, a «verdade» tem sido concebida de duas maneiras. Segundo uma definição (a aristotélica), os adjectivos «verdadeiro» e «falso» só podem ser aplicados a frases; o conceito de verdade não tem nada a ver com
as coisas do mundo tal como elas existem em si mesmas. De acordo com
outra definição, a verdade é em primeiro lugar e sobretu-
do um atributo da existência e só secundariamente do discurso.
Uma pessoas está ou não na Verdade; e a posse da Verdade implica o estarmos em comunhão com a realidade que «é» ou corporiza a verdade. O conceito de verdade é o contido na tradição religiosa do cristianismo, nas filosofias voluntaristas e no existencialismo (1). O pensamento de Mannheim era de tipo voluntarista:a «verdade» que o interessava era a «verdade» corporizada num processo real,
mais do
que
a «verdade»
meramente
exibida num
discurso.
Esta é, no fundo, uma concepção religiosa: a verdade é um objecto da crença. Mannheim acreditava na verdade da História; o historicismo era para ele o sucessor legítimo da religião, como indica no seu ensaio. Por isso, apesar da sua sociologia do conhecimento, ser decerto uma doutrina relativista, pese embora os seus negadores, não era nem céptica nem agnóstica. Na procura de uma melhor
(1)
Para
a rejeição
da teoria
de que a «verdade»
se aplica
especificamente
a afirmações e não a coisas, ver Martin Heidegger, Sein und Zeit, pp. 21421,
26
Introdução
palavra, gostaria de designar a sua posição como uma espécie, não de agnosticismo relativista, mas de «gnosticismo» relativista;a história para Mannheim era mais uma estrada real para a verdade do que uma procissão de erros. IV
O ensaio sobre a Sociologia do Conhecimento (1925), o 1º
esboço de Mannheim da teoria que é apresentada em pormenor no /deology and Utopia, é uma discussão do Problem of a Sociology of Knowledge de Max Scheler (publicado como uma introdução a uma colecção de ensaios de vários autores sobre este assun-
to) (1).
Tal como se mencionou na secção anterior, Scheler foi um membro orientador da escola fenomenológica e autor de uma teo-
ria de valores radicalmente anti-relativista. Que ele se tenha torna-
do o 1º algo de vinte. O teoria da
expoente de uma teoria sociológica do conhecimento é extravagante na história intelectual alemã da década de próprio Mannheim viu em tal uma confirmação da sua Weltanschauung: se uma ideia se torna parte e parcela da
perspectiva geral de uma época, simpatizantes e opositores conservadores e progressistas, os relativistas e absolutistas sentir-se-ão
obrigados a fazer uso dela. Não penso que fosse tão simples como isso; Scheler preocupou-se com a ideia de uma sociologia de conhecimento como parcela de uma vasta concepção estratégica na sua campanha contra o positivismo. O que Scheler queria conseguir pela análise sociológica dos vários tipos de conhecimento era a aniquilação da teoria famosa de Comte dos «três estádios»:o conhecimento humano passa de um estádio «teológico» através de um «metafísico» para um estádio final «positivo», o da ciência. A ciência é a última palavra; depois do seu advento, os «estádios» anteriores
são
postos
de
lado; antiquados,
moribundos,
Scheler,
(1) Versuche zu einer Soziologie des Wissens, Munich and Leipzig, 1924.
27
Sociologia do Conhecimento
um pensador apaixonado, se algum houve, odiava esta doutrina com todas as fibras do seu ser; como é que ela poderia ser destruí-
da? Essencialmente, mostrando que a ciência não era um paradig-
ma, aúnica forma adequada de conhecimento. A supremacia actual das ciências naturais não era, de modo algum, prova suficiente de que a ciência era uma forma superior de conhecimento, mais válida que a religião e a metafísica. Era tao somente a consequência de certos factos sociológicos. Porque na verdade, ela depende de factores sociológicos, da organização prevalecente da sociedade, do tipo de conhecimento que é cultivado. E era necessário uma «sociologia do conhecimento» para encontrar qual o tipo de pensamento
praticado
pelos homens neste ou naquele período. A «men-
te» enquanto tal, era incapaz de determinar isto (ver atrás). A ciência é a forma superior de conhecimento? Nem pensar nisso, dizia Scheler. A ciência é mais cultivada em sociedades que se dedicam em 1º lugar à manipulação e ao controlo das coisas. Essa sociedade é a sociedade burguesa capitalista. As sociedades que se orientam pela procura de outros valores, especialmente os espirituais, cultivarão outras formas de conhecimento. Do ponto de vista de uma reflexão livre e desinteressada das coisas do espírito, a forma científica de conhecimento aparece como uma forma quase inferior de pensamento válido. E Scheler, cujos primeiros trabalhos revelam uma orientação católica, ataca também aqui a tradição cristã ocidental. A própria igreja apoiava a ciência exacta e a tecnologia,
porque
a «mente
espontânea,
metafísica»
era um
inimigo quer da religião dogmática, quer da ciência metafísica. A
ciência necessitava de um aliado na sua luta contra a metafísica
não dogmática. E a igreja tinha poder: assegurava que nenhuma forma de conhecimento radicalmente inimiga dos seus interesses de poder enquanto conhecimento metafísico seria cultivada na Europa. Contudo, a Europa não é o mundo; nas culturas asiáticas, a metafísica, mais do que a religião dogmática ou a ciência materialista, é a força dominante,
Concluindo,
Scheler apela a um «en-
contro entre o Oriente e o Ocidente» de uma forma que prefigura Northrop:
28
Introdução
«Deve rejeitar-se a ideia positivista apaixonada segundo a qual a evolução de todo o conhecimento humano tem de ser julgada em termos de um pequeno segmento da curva da moderna evolução cultural ocidental. Devemos aproximar-nos do interior pelo recurso sociologia do conhecimento, já que ... a Europa e a Ásia desafiaram a tarefa possível de aquisição de conhecimento a partir de direcções radicalmente diferentes. A Europa partia da matéria para a alma, a Ásia, da alma para a matéria. Assim, os estádios de evolução devem ser fundamentalmente diferentes nos dois casos — até que se atinja aquele ponto em que se encontram numa síntese cultural já em curso. O homem universal, em essência possível, só nascerá quando essa síntese se realizar». No seu ensaio sobre a Sociologia do conhecimento, Mannheim não considera a intenção «estratégica» de Scheler. Pelo contrário, Mannheim considera Scheler um pensador conservador que é suficientemente versátil para reconhecer o «facto curioso» da dependência da inteligência dos factores materiais, mas que gostaria ainda de combinar esta perspectiva com a teoria das essências «estáticas», imutáveis. Isto, segundo Mannheim, é impossível. Não podemos, como queria Scheler, atribuir à história apenas um papel de determinação das formas «idealmente possíveis» de conhecimento
a cultivar na sociedade, se se confia numa «inteligência» pura que fora da história teria o papel de elaborar esse conhecimento em si mesmo. A esfera «ideal», a da criação cultural, não é auto-suficiente; é em si mesma, parte e parcela do processo histórico-social. Tais ideias tinham já aparecido nos seus primeiros trabalhos. Mas agora, não estão só afirmadas em termos puramente académicos. As várias ideias em que o processo histórico se exprime são definidas como «postulados universais» e identificadas com uma ou outra classe social. Toda a análise tem uma forte coloração política; a influência do marxismo segue de perto as escolas de pensamento puramente académicas como o historicismo ou Geistesgeschichte.
Mannheim
sai fora delas para mostrar que, na verdade, a
sociologia do conhecimento, como uma nova forma de aproximação, só se torna possível quando a sociedade alcança um certo de-
29
Sociologia do Conhecimento
senvolvimento económico e político. No início, deve ter havido uma «ciência de oposição», cujo objectivo era o «desmascaramento» das ideologias de poder do primeiro sistema hierárquico; este foi o primeiro passo para a revelação da constelação em que uma teoria sociológica da mente é possível. De seguida, a evolução social tinha de conduzir à relativização total de todo o pensamento e ao reconhecimento da esfera social como o decisivo factor determinante da cultura; quando todas estas condições são satisfeitas, a sociologia do conhecimento não só será possível, como será, na verdade, a ciência mestre da validade de todo o conhecimen-
to, tomando o lugar à epistemologia (este o ponto para o qual tende a evolução começada com o Structural Analysis). A análise ideológica dos sistemas de pensamento, a descoberta da primazia do factor social — tudo isto é marxismo puro. Ao construir a sua sociologia do conhecimento sobre esta base marxista, Mannheim rejeitou contudo a exigência da consciência por parte da classe operária como detentora do monopólio do conhecimento «verdadeiro». Cada ponto de partida histórico contém alguma verdade: «Há um conteúdo de verdade existencialmente determinado no pensamento humano em cada estádio do seu desenvolvimento»; e cada ponto de partida não consegue alcançar toda a verdade: nenhuma classe esgota o sentido completo do pro-
cesso do mundo. Tal como no ensaio sobre o historicismo, só se reconhece
um
absoluto: o do processo histórico na sua totalidade,
de que só se pode obter um conhecimento parcial, «perspectivistas». «O ponto de partida historicista, que começa com o relativismo, alcança eventualmente um absoluto de pontos de vista, porque na sua forma final ele coloca a história em si mesma como
Absoluto» (ver adiante). Vemos
como,
depois da introdução de elementos
marxistas,
Mannheim re-afirmou a sua fidelidade básica ao historicismo; mas de algum modo está ultrapassada a serenidade da posição historicista mais antiga, uma contemplação imparcial, puramente académica de todas as épocas. Porque não chega já compreender o passado; daqui para diante, o acento põe-se sobre «o nascente e o
30
Introdução
actual». Tudo depende de estar a par com o que está a dar frutos no tumulto da história; esta seria a melhor espécie de verdade
«perspectivista que alguém poderia conseguir. Mas Mannheim admite que perguntar ao conhecimento humano qual é o «sentido
de fim» do presente período é demasiado. O que é possível é a fé: depois de termos conseguido uma orientação completamente «dinâmica», admitindo a relatividade de todo o conhecimento, incluindo o nosso, devemos ainda reconhecer que os vários pontos de partida relativos se constituem num elemento da verdade. O acento coloca-se agora na «sinceridade» da orientação individual, e não na «adequação» das várias interpretações da Weltanschauung, como antes. Paralelamente, a rejeição inicial do positivismo é agora qualificada: o positivismo está errado quando considerado como o método adequado à interpretação das culturas, mas a sua atitude é «sincera» e, por isso, conserva o seu valor para nós. O marxismo de novo, apesar das suas limitações, é reconhecido como a perspec-
tiva mais «sincera» com que podemos analisar o mundo hoje. No ensaio sobre a Sociologia do conhecimento, observamos uma mudança no sentido do concreto. Os vários pontos de partida são agora considerados como expressões das aspirações de grupos concretos; e a tarefa da sociologia do conhecimento é estabelecer a relação entre «pontos de partida» filosóficos, intelectuais, por um lado, e correntes sociais concretas, por outro lado. Não que toda a «super-estrutura» das ideias possa ser explicada em termos de interesses; as ideias tem o seu conteúdo próprio que não pode ser reduzido a um grupo de interesses a cada instante. Mas pode demonstrar-se,
Mannheim
afirma,
que grupos
concretos
organiza-
dos em volta de certos interesses dominantes estão «comprometidos»
com
um certo «estilo» de pensamento e de sensibilidade, que
não derivam associados.
daqueles interesses enquanto tais, mas que lhe estão
v Num artigo não incluído nesta série, «Ideological and Sociological Interpretation of Cultural Objects» (no Jahrbuch fur Sozio-
31
Sociologia do Conhecimento
logie, 1926, G.Salomon, ed.), estão sumariados os princípios gerais,
metodológicos da sociologia do conhecimento de Mannheim. Qualquer produto da mente humana pode ser interpretado «de dentro»,
relativamente ao conteúdo tomado em si mesmo e «de fora» rela-
tivamente à ideologia que serve uma aspiração social. Quando um objecto cultural é visto «de fora», aparece como funcionalmente
dependente
de uma
qualquer totalidade
mais compreensiva; perde
a sua individualidade aparentemente auto-suficiente. Mas isto não quer dizer que se dissolva completamente enquanto unidade de sentido e não quer dizer que seja considerada somente como um
produto causal de factores sem sentido, brutos. Os factores exis-
tenciais de que depende um trabalho ideologicamente interpretado contêm em si mesmo sentido e não são forças brutas, «puramente» causais. Além disso, os dois tipos de interpretação não podem ser separados um do outro; o significado «funcional» afecta o significado «imanente». Por isso, uma análise sociológica, funcional é importante mesmo para a interpretação «directa». A história consiste essencialmente, é claro, numa interpretação «funcional». VI Quando
este artigo foi escrito, Mannheim
trabalhava no seu
Habilitationsschrift, a tese que tinha de apresentar para sua nomea-
ção como «Dozent» na universidade de Heidelberg. O tópico desta tese era o pensamento conservador alemão nos princípios do
séc. XIX. Esta tese (1) abre uma série de ensaios em que os princi-
pios da sociologia do conhecimento não são já formulados abstractamente, mas aplicados a mostrar como específicos «estilos de pensamento», «correntes doutrinais» e semelhantes estão ligados a grupos concretos, às suas aspirações e às suas interacções.
(1) O Habilitationsschrift como tal nunca foi publicado. Uma versão modificada
apareceu
no Archiv
fur Sozialwissenschaft und Sozialpolitik,
vol.
57,
1927; o texto a publicar é uma versão resumida baseada no Habilitationsschrift e no Archiv, preparada pelo próprio Mannheim
32
para publicação em inglês.
Introdução
O problema traçado neste ensaio sobre o Pensamento Conservador (a publicar no 2º volume) é o de saber como se pode considerar o clima predominantemente conservador e romântico do pensamento na Alemanha entre 1800 e 1830 em termos da luta real entre grupos sociais concretos. A 12 coisa a notar é a peculiar
estrutura de classes da sociedade alemã na altura. Não existia uma
classe média, comercial e industrialmente independente; havia apenas dois grupos politicamente influentes, a nobreza das terras e o pessoal burocrático das administrações centralizadas, monárquicas. Além destes, também apareceu uma intelligentsia socialmente «descomprometida»: um grupo sem influência ou poder social, mas que proporcionava aos outros grupos a formulação convincente, efectiva das suas aspirações. Se os tempos se tivessem mantido calmos, os grupos firmemente estabelecidos não necessitariam de propaganda; poderiam também ter-se mantido sem re-pensarem as suas posições, sem se tornarem articuladamente conscientes dos princípios últimos do seu conservadorismo. Mas os tempos
E”
2288
não estavam
calmos.
Uma
nova classe, a burguesia, alterou quer a
aristocracia fundiária, quer a burocracia absolutista; na Revolução Francesa, o 3º Estado fez barulho para refazer todo o mundo social à sua própria imagem. A nobreza fundiária alemã foi apanhada num duro fogo-cruzado entre as forças capitalistas nascentes, representadas pela Revolução Francesa, e as monarquias burocráticas (de que Frederico da Prússia era o protótipo). Esta a mudança que conduziu à formulação das plataformas conservadoras: de forma a defender o poder ameaçado,
as velhas classes cimentadas come-
çaram a combater o racionalismo abstracto enquanto tal, em que reconheciam a força corrosiva que destruía os fundamentos da velha sociedade. A plataforma conservadora acentuava a importância do concreto,
do único, do pessoal; advertia contra as tentativas
de afastar as tradições «organicamente crescidas» da sociedade e de reconstruir tudo com base em algumas verdades «evidentes». O conservadorismo,
diz Mannheim,
não é a mesma
coisa que «tra-
dicionalismo». O último é uma atitude ou tendência humana inarticulada, irreflectida — uma tendência «instintiva» para formas de
33
Sociologiú do Conhecimento
pénsamento e "de acção familiáres, habituais: /Mas'o conservatiorismio é mais do que isso: é úmá posição complétamente consciente; trabalhada) de resposta a“uiy poder érri mutação O eohservadoris: mo! na “Alemanha” “nasceu deu
a amédiça' de transtórmação”social!
po
da 'atitide' positivista no
Sobre sSótiológia
"ver atras). O uprolétari
EE
h
certa: á civilização
je
h tá ad? máximo,
quanto tal) só tangeghl ós' mhóderda orgânicos de
se
SRP
su
táos thesmo
“óper-
Soriálizadb: 6 tonereto;o'hão:raciónal sóbrevive) quer no sector dá
3a
das». “Assim; “a” posição cOnsANa ora: é depósito de uma fatção dá
Verdade da história queas: outras posições negligenciar: omeb “orantecipando. € à liriguagerh doTdeology and Utópia,'6 pensa! P é Essené te ideológico»; O “proletário é essencialmente «utópico», enquanto uma transição entre osidois:?
en
qué
Ana
Raro '
urguêsde! oisq
e “alimentá-se “dó! que-é
hovo'agora;“6'perisamentoproletário tenta compréenderos! eleo mMeNitos do Tuturó que-támbéra existem no presente; 'conceritrando:
se sobre aquelesofactores presentes em que! se pódem-ver ds Ménsidéiuma sociedade futura» 14rchiv vól..57/p2 102).
é
ger
“N5!0» aparecimento-de um «estilo' despensamentos conservador interpretado,
então,
primariamente
como
vasto” processo! ide) polarização !'sociali>Esta
um: 'ineidenteo nam:
categoria! de
opolari-
zação 'desempenhará: um papel decisivosna: sociologiando conheci meritó de>Marinheirm daqui para afrente, embora, como havemos
dever; a'duréza:com-que é aqui posta se mitigue consideravelimen> te'mais tárde: Neste porto, em todo otasopoúltimo período:da
história moderna-aparece como o'da polarização: Todas-as aspira: ções'humanassão'cada-vez: mais empuúrradas para canais separados;
o indivíduo"é cada vez “mais'iconfrontado: comoa necessidade de
escolher entre os grupos em colisão que pédem'a sua fidelidade: A»
ré,
“de! certo: modo; “a da 'inbcênicia pérdida.' O pensa-
mento ingénio; não auto-constiente não é já possível; 'tódos temos
de dar Contas de?nós é de-analisarmos ds rossos'compórtamentos ém termos das sas implicações práticas, políticas e de grupo” « | môdm sb
V927)'trata"de um problema
q “aproximando! dós Restilos de pensamento» ou das aposições que figuramtão) prosmimentemente haicontendavda história) Se>
35
)
Sociologia do Conhecimento
gundo o historicismo, o mais importante sobre os trabalhos da mente humana é o facto de não poderem ser . datados»: só os podemos compreender se os relacionarmos com o período em que foram originados. Na continuação desta análise, encontraremos o problema da geração com uma unidade histórica. Porque não só é possível
«datar»
um
certo trabalho
como
pertencente
a um
certo
período; dentro de um e do mesmo período, podemos distinguir os trabalhos da geração mais velha e os das mais jovem. Aqui, então, vemos grupos concretos que de certo modo determinam estilos de pensamento e acção; e, contudo, não se pode dizer que são os «interesses» ou as «aspirações sócio-políticas comuns» que dão aos membros da mesma geração uma orientação comum. Assim, o conceito de geração depara com uma dificuldade na sociologia do conhecimento: outros, que não factores «sociológicos», apesar de tudo, parecem ser responsáveis por certas modificações caracter sticas do comportamento.
Dois tipos de explicação, ambos fora da órbita da sociologia
do
conhecimento,
parecem
particularmente
intuição
mas
plausíveis;
uma
é
«positivista», a outra é «romântico-metafísica». Segundo a concepção positivista, a geração é tão só um facto natural, bruto; além disso, o conceito de geração é essencialmente um conceito quantitativo, mensurável. A escola romântica-metafísica, por outro lado, vê nas várias gerações concretas «enteléquias» que podem ser compreendidas
por
que
não
podem
ser sujeitas
a
qualquer análise racional. Aqui de novo, Mannheim faz a guerra em duas frentes. Falando claramente,
a análise positivista é insuficiente, porque cada ge-
ração produz alguma coisa de único que não pode ser deduzido dos meros factos naturais e estatísticos da idade biológica e da juventude. Mas o conceito de «inteléquia» é também inaceitável, porque impede qualquer análise científica. E o pensamento germânico
está
infelizmente
associado
ao
irracionalismo;
ignora
o
facto de «entre o natural ou físico e o mental haver um nível de existência em que operam as forças sociais». Também o problema das gerações, deve ser resolvido pela análise sociológica.
36
Introdução
A própria análise procede segundo linhas que recordam aproximação de Leopold von Wiese, cuja teoria das «relações sociais» no tempo influenciou o pensamento sociológico alemão. Que espécie de «relação social» motiva o fenómeno social particular de um grupo etário? É claro que a geração não é um «grupo concreto»; não possui nem uma estrutura organizacional visível, nem um carácter de «comunidade» vital como a família. Contudo, «a perten-
ça a uma mesma geração» determinou certas facetas do comportamento e do pensamento de várias pessoas; estas pessoas agem e pensam de um certo modo porque ocupam um mesmo lugar num todo «estrutural». Assim, aqui de novo a nossa análise deve ser
«estrutural»: certas formas de pensamento e acção devem ser analisadas em termos do /ugar que ocupam dentro de um processo di-
nâmico. Mannheim introduz aqui o termo Lagerung (estratificação) para significar os traços comuns a alguns indivíduos e determinados não pela escolha consciênte, mas apenas em virtude da sua localização «aqui» e não «ali» num processo contínuo. Nisto, a «geração» é semelhante a «classe», afirma Mannheim. Os membros de um mesmo grupo mostrarão certas semelhanças só porque as suas primeiras experiências cruciais os puseram em contacto com as mesmas coisas. Num dado momento, os grupos de idade mais velhos e mais novos numa sociedade experimentam os mes-
mos acontecimentos, mas os efeitos desses acontecimentos serão diferentes, dependendo se são experimentados «em seco» ou numa base de experiência já formada. Mesmo
assim,
Mannheim
afirma,
o mero
facto de pertencer
a um mesmo grupo etário não determina só por si a orientação total de várias pessoas. Em primeiro lugar, não haverá nada em comum aos membros de um mesmo grupo etário a não ser que também pertençam a uma mesma cultura e à mesma sociedade;a «geração» sobrepõe-se a outros factores históricos e culturais. Além disso, mesmo dentro de uma comunidade histórica, o mesmo grupo etário pode estar dividido em vários sub-grupos definidos, ex: de
acordo
com
as linhas políticas ou de classe; temos
que contar
com isto em épocas de luta social. Os vários grupos etários polarizam-se então, em «unidades de geração» antagónicas.
37
Sociologia do Conhecimento
ae Assim,a: análise-do fenómenoda-geração culmina. de novo
numconceito de polarização, Num dado:momento, todos ou qua-
setodos)os)/iterati;podem pertencer,a uma-destas unidades de «ge-
ração» polarizadas; temos então .asimpressão -que;o; período em
questãoé totalmente «romântico», ou totalmente:xracionalistape assim, por-diante-e, além disso, que, são Os. nossos literati.que marcam com o»seu traço: grupo etáriooPara Mannheim isto é, uma ilu-
são; as-«unidades-de geração» -antagónicas;à tendência dominante
estiveram: ali todo: o: tempo, mesmo, se, por: algumacrazão; não pomais: compactos, reciprocamente: antagónicos : RR
deles; polarizados' 'em'tendência: antagónicas». « 'Uma palavra“acerca' dos
prometidos). Nos' ensaios
ta categoria! soêi
intelectuais
à SU
ara lá
issciatinentá aescoin
Cônservative Thoiight é Gênratiôns, es
aim
de Uma à síntese di passou
E
ç
E, Já. acontece. ção ainda é suprema; é 9 intelectual nm
ste momento, a polarizade. fazer nada a não. ser
tamar-o, partido de um. dos-«pólos»,. E só.mais tarde que ele toma o papel que lhee destinado, o de realizar uma síntese, ViLsben
mi O trabalh enedial parauma síntese; entre as Roviafes Rá niças,. «mais doque um simples processo de polarização, aparece camo;o, conteúdo, essencial de um, processo, histórica, na conferência «Competition as. a; Cultural, Phenomenon»,; proferida no, Sexto
Congresso.dos Sociólogos Alemães (publ. 1929). Neste artigo, Mannheim, revê as principais categorias da sua sociologia-da mente. A análise, sociológica, afirma; foi, chamadaja tratar-do pensamento
«existe!
Imente determinado»,
.contraposto ao, tipo de, pensa-
mento abstracto, neutro que se encontra, nas ciências naturais. Este pensamento
38
«existencialmente determinado» não podeser-compre-
A
dem ser sempre; ouvidas, Em qualquer caso, os-«impulsos-decisivos» não-se criam: com-os Viterati, mas «com-grupos sociais muito
sos) endido como simples «espelho»:do mundo samento
oliatrodução
sem um qualquer pen-
posterior de ordem prática. Realmente, todo o pensamen-
to «existencialmente: determinado»; é «o reflexade alguma jaspiração social; as «teorias» sobre-a sociedade,-o homem, como-um to; do,a-história, têm uma:base «volitiva», prática; política: soco, st «Corremos menos riscos:de erro :se-explicarmos os:movimen:
tos:intelectuais em termos políticos e-não-o- contrário: partindo de uma; atitude-puramente teórica-e'projectando-um (modelo. de pen samento: ia a coa trótico no rnagai daconcretã vida realx iBv “> «cAs várias; ioin ti assim; oie aliferintos ode carai
ticas Ser-a ifilosofia dominante numa sociedadeé um-dos objectos principais da luta social dentro-da-sociedade Cada-grupo-tem a-sua
interpretação: do mundo e:procura-torná-la universalmente aceite, Assim; pademos: conceber: as discussões: teóricas: como;iincidentes de uma luta geral pelo poder. Quando o poder;social;se encontra
monopolizado, por;um grupo; a interpretação; individual do mundo
é- soberana; não; sedá-expressão a umaposição contráriajà.oficial;
mente, prevalecente,; Porém: os monopólios do; poder mente
se rompem, num: dado;
momento; quando
inevitavel;
stal;acontece, :as
teorias e as interpretações. rivais do: mundo Sopeçam a competir entre Sisisy e é
xMannhei distingue frio ti gt de, competição telec; iai em particular, diz a uma fase «atomista».segue-se j uma fase de
«concentração» em que: as-teorias, em; concorrência.se agrupam à volta de-alguns pólos de, poder. e: influência. Esta a imagem da po;
larização «familiar», dos. dois ensaioscanteriores;; mas: agora
O
Mannheim,aponta para lá da mera.polarização;.na direcção, de uma
«síntese» dinâmica a procurar .como resultado possívelda interac:
ção de várias posições em concorrência. Tal síntese/é
amais próxi-
mada verdade «absoluta», já que personifica-todas as aspirações,
todas as-interpretações do: mundo-que existem;num tempo deter: minado. Na: síntese, podemos saproximar-nos» mais;ído: conteúdo último-do; processo, bistánicosiBara além. oct ni i 3 Nofraquiz gil
Sociologia do Conhecimento
IX No artigo Competition, Mannheim levantou a questão da forma
como a
vida intelectual
depende
da distribuição e das formas
de poder em determinada sociedade. Esta maneira de colocar a questão está patente na sociologia de Max Weber. O artigo seguinte, com a discussão da qual terminaremos esta análise Economic Ambition (1930), revela uma influência ainda mais forte de Weber. Este artigo difere dos anteriores por não tratar dos «estilos de pensamento» e da questão da «validade» do pensamento existencialmente determinado, mas por tratar antes dos «tipos ideias» de acção, do comportamento humano. Num sentido muito lato, porém, podemos dizer ainda que este artigo trata da «sociologia do conhecimento» já que o seu objectivo é o de mostrar como os planos de vida dos indivíduos dependem
grupos a que pertencem.
da estrutura sociológica dos
O artigo começa com uma nota que é inteiramente nova nos escritos de Mannheim; levanta a questão da teoria sociológica da educação. (Mais tarde, depois da ida para Inglaterra, o problema da educação tornar-seá um dos seus principais interesses). Mannheim; nota que a educação não está de acordo com a realidade social. A nossa sociedade é uma sociedade industrial e esta civilização urbana, industrial modela as oportunidades e as expectativas dos homens de um modo característico; Contudo, a educa-
ção só fala de princípios e ideiais abstractos; não prepara os jovens para aquilo que têm que fazer para conquistarem um lugar dentro da sociedade industrial. O que se precisa é de uma educação que adapte o aluno à realidade social actual e mesmo mais do que isso: é preciso uma educação que lhe permita transformar a realidade e levá-la a um nível superior. Isto inicia uma análise das várias formas de «sucesso» que os homens podem alcançar em sociedades diferentemente estrutura-
das. Quais são as oportunidades abertas a indivíduos em diferentes escalões sociais? As diferentes culturas valoram diferentemente as diferentes realizações; em certas sociedades o tipo superior é o 40
Introdução
guerreiro; noutras, o sucesso económico determina primeiramente o status. Mostra-se, com a ajuda das categorias de Weber, que as realizações económicas têm um componente mais largo de «racionalidade» e de cálculo do que, digamos, os feitos militares; as sociedades em que o status depende primariamente do sucesso económico, eliminam gradualmente outras formas de diferenciação
de status. Em vez da imobilidade dos sistemas estreitos de casta,
revelarão, em certo grau, uma mobilidade vertical. Já que o sistema económico em si mesmo assegura uma certa interacção ordenada
de
funções,
abandonam-se
cada
vez
mais
outros
mecanismos
de controlo: a esfera «ideológica» é cada vez mais desregulada. Não é já vital para a estabilidade social que todos os indivíduos pensem
igualmente
acerca de matérias de princípio, como a mora-
lidade e a religião, porque, sem importar o que «pensam», são compelidos a agir, em virtude da própria estrutura da sociedade, de um modo ordenado e cooperativo. As motivações espontâneas são relativamente menos importantes. da
Tal como em Max Weber, a «burocracia» representa o cume organização «racional». Dentro do sector burocrático, a obra
mede-se em termos quantitativos e mesmo a promoção está pré-determinada quanto ao seu tempo e grau. Os impulsos criativos não podem ser satisfeitos no trabalho diário; são relegados para o «ócio».
As diferentes áreas da moderna sociedade industrial determi-
nam diferentes tipos e formas de ambição. Mannheim procura demonstrar aqui
um
caso extremo de dependência do «pensamento»
sobre a realidade social objectiva:o homem não é livre de formular os desejos e ambições da sua vida de um modo puramente pessoal, individual; a sua posição objectiva na sociedade determina o que pode ser a sua ambição. Esta ideia, não deve, na opinião de Mannheim, paralisar a ambição. Porque nos casos em que a realidade existente oferece apenas frustração e não satisfação real, o homem sível
pode esforçar-se por mudar a realidade. Isto é, porém, imposenquanto o homem se guiar por máximas abstractas sem re-
lação com a realidade social. Não podemos libertar o homem pelo
4
Sociologia'do Conhecimento
repisar, sobre, a liberdade, do.campo de act cida», A, edi
ag Sena só, pela «observação exi
cação
trar quetodo pelas fórcas sociais; mas a teoria apela a! E Ropas atra! vés “da“quãl estas fórças possam ser actuadas por agêntes «livres». Aaplicação “faz-se, "em primeirolugar-no'campodareducaçãov A
educação “deveria permitirao homem:fazeruso:derumai «liberdade» que não existe se-se-define-só em termos geraisiabstractos. Assim, o'exame-deste:processo:de realização dascategorias da sociologia
de conhecimento de Manhheim conduz:nos a-uma-estranha; conclu-
são: 'a demonstração | da «dependência idospensamento: sn anealidade: sa realara estrada ia a liberdade. « í 48 EVis CRITICA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO: DE MANNHEIM |
n
: 'O-esforço-de-demonstrar queo pensamento humano se determina:por-factores-(objectivos, tal: como ca realidade: 'objectiva, "é uma: empresa árdua. Porque -se defendemos ital posição «arriscamos a expôr-nos à objecção de que a teoria em si mesma, sendo um-elemento:-do pensamento, é o: produto: das forças sociais objectivas que; têm; moldadoro nosso, pensamento; A ser .assim; porém; não é em vão que-discutimos:os méritos da-teoria?. Você concordará comigo se :a-sua consciência está sujeita às mesmas influências deter-
minantes dorque:a minha (sendo euo; apresentador-da teoria); não
concordará-se
é diferentemente-condicionada: Mas seria pura perda
de têmpo: lançar- argumentos: pró-ou contra-asteoria;;um:de:nós deve julgá-la; verdadeira-ou falsa; mas ambos: estamos enganados, por que-nenhum de nós pode:ter quaisquer crenças verdadeiras ou falsas: devemos pensar de acordo com certas-linhas iecisso:é tudo. A: própria teoria torna mec n pa nosseus: méritos; ou mesmo-defendê-la por isso. 3 SEM E bsbil i
42
Introdução
roAcimaiorparte-dosrcríticos de Mannheim utilizam:realmente este argumentocontra eleie a formulação da teoria facilita este átaque: Porque 'Mannhigim não: falou: somente de emoções e'de' juízos
devalor “sócial oii to
Fat
x
era e
Mannheim e: atitude é cont
as
ores,
conhecimento não, era ara dos. valorés, .0 que queriaMannheim, realmente. dizer?
Tal
á to, Dahike (1), Mannheim posicionou primeiro ainatureza, «ideológicay de; todo: o, pensamento::e; só. então, concluiu, porum
«non pnionas imperdoávelas que: atada o pancamete
to-é falsoy.misiso
sb
co
bitnsz
moo oBgsanita
2
«Não-se-deve;negar quê uma vonsidéração mota acorigem de uma ideia ou mesmo sobre a sua'posição núm'contexto 'mais 'largo é sob-diferentes perspectivas E proveitosa para'a sua compreen-
são) más duvidar da Sua”validade Por'isso ou mesmo atribuir the úma Validade «relativa», é um grande 7 non! Séquitury. RITA ntanto, «que
est argumento nnão toca no assun-
to. Porque o obj vo-de Mannheim não era q duvidar. da validade». do conhe: en socialmente determina * pelo contrário, Mannheim, forçou-se por, demonstrar que tal. conhecimento era válido e legítimo, mesmo se não pudesse ser considerado: como «verificável» pelos, padrões positivistas. Nem, partiu simplesmente
da existência.
de desacordo, entre os homens; a sua opinião era a de
que, cada período tinha, de re-escrever .a história para fazer Justiça às ideias que antes não se compreenderam: ..,.. Uma
segunda
observação
de
Dahlke, contido aponta
para
uma verdadeira dificuldade lógiga inerente às teorias da determinação social do conhecimento:
(1) Em: Harry Elmer Barnes, Howard Becker e Frances Bennett Becker, Contemporary Social Theory, New York Appleton:Century), 1940. o.
48
Sociologia do Conhecimento «A
noção de relativismo ou relatismo, tal como foi desenvol-
vida por Mannheim, é contraditória em si mesma, porque deve pressupor a sua própria absolutização. A sociologia do conhecimento... deve assumir a sua validade, se é que tem algum sentido».
Observação
semelhante foi feita por Ernst Griindwald
(1).
Griindwald considerou que a tese de Mannheim da natureza «existencialmente determinada» do pensamento não servia para demonstrar que todo o pensamento é falso». Mannheim, diz Griindwald, rejeitou a tese integralmente «sociologista» segundo a qual «ao demonstrar
que
um
juízo
é existencialmente determinado
se frusta
a defesa da sua validade». No entanto, a sua tentativa de estabelecer uma «posição intermédia» entre a validade intemporal e a ilusão total embrulhou-o numa contradição, porque «é impossível fazer qualquer afirmação com sentido àcerca da determinação existencial das ideias sem fixar um ponto de Arquímedes para lá de toda a determinação existencial». «Não é necessário outro argumento para mostrar, sem qualquer sombra de dúvida, que também esta versão do sociologismo é uma forma de cepticismo e que, portanto, se refuta a si mesma. Porque a tese de que todo o pensamento é existencialmente determinado e, portanto, não verdadeiro, proclama-se verdadeira».
«A «posição intermédia» entre relativismo e o absolutismo que o relativismo de Mannheim pretende ocupar não passa de uma ilusão. O «relativismo» e o «absolutismo» são reciprocamente contraditórios». O que Griindwald afirma não é que Mannheim defendesse o cepticismo, mas que a sua teoria, ainda que intencionalmente não-céptica, implicava realmente o cepticismo com todas as contradições que lhe são inerentes. H
Penso que qualquer teoria que afirma que todo o pensamento é totalmente determinado por factores sociais está efectivamente
(1) Cf. Das Problem einer Soziologie des Wissens, Wien-Leipzig, 1934,p. 184ff. 44
Introdução
destruída pelo seu próprio fundamento. É claro que Mannheim, não aplicou esta teoria a «todo» o pensamento, porque ele não
incluíu as ciências naturais e a matemática no seu veredicto de
«determinação existencial». Mas isto é irrelevante no presente contexto; aquilo com que nos preocupamos é o conhecimento histórico e este, Mannheim afirma, é ao mesmo tempo «conhecimento» e «é determinado por factores sociais». Tal não parece, no entanto, implicar uma contradição — desde que entendamos por «determinação existencial» uma espécie de determinação total de tipo causal que não deixa espaço à liberdade ou à argumentação. Mas pensaria Mannheim numa «determinação social» tão
rígida?
ção»
em
Não parece. Infelizmente nunca clarificou a «determinaque
pensava.
Apenas
podemos
retirar da
sua
forma
de
argumentação geral que, para ele, uma determinação causal rígida era em si mesma uma categoria «estática», própria das ciências naturais, inaplicável a uma entidade «dinâmica» como a mente. Temos de lembrar que para Mannheim a «história» assumia o papel de determinante (ou co-determinante), e que a própria história era em si mesma um processo «significativo». A mente era «determinada», então, não por qualquer força bruta, sem sentido, mas por algo que já em si tinha sentido. Esta conexão deve ser pensada, não como de «determinação» causal de natureza familiar, mas antes como o modo como uma interrogação determina uma resposta: a interrogação
efectivamente
delimita
um
raio
dentro
do
qual
são
possíveis respostas com significado, mas o que a elas responde deve encontrar a resposta por si; ele deve compreender a questão e ser capaz de encontrar a resposta exacta. Claro que este símile é, tão-só uma aproximação à posição de Mannheim; a história é mais do que um questionador. Também «dá» a resposta num certo sentido; além disso, a própria teoria acentua vários factores contingentes de que dependem os processos de pensamento. Contudo, a sua principal afirmação é a de que, o objecto alcança uma espécie de «verdade» que doutro modo não poderia ser obtida por se situar no processo histórico social. As várias interpretações do mundo
«dadas»
pela história não são respostas sem sentido, auto-
45
Sociologiado Conhecimento
o'seu curso dinâmico que am
ess
pri A
osição sinceras je "que posiçao está
'dafiistória.“AS várias perspectivas
diferem em! valor Cognit
Igumas são mais
«sincerasy que! outras beo destinos: absúrão,
'apartiais»”” menos
E
“gimése dé cada” pá
que'é
precisamént aquilo “que”'a “sociologia” do” conhecimento! “deseja: Sé descobrimos” qual E'á'tendencia inerente3 sãa pérpectivá, po-
dem
pure
a tiverdades' Corrida na estrutára” emmovimento!
cialido' pensamento sarje assi ve gasverdades"
para lúfmentar a val idade 'objeoti y
9
Mas» a''tarefa de” derreter esta cedeterminação “sucial» ré:
dna O Seultrapassamos-a objecção de que a'teoria'se destrói: a'Si'mésma; imediatamentedeparainos' cont oútra;nomeadamemte:
ade quera teoria na sua nova roupagem écompletamente metatí
sica Ná'verdade,“ó que faz com que o corhecirmento «existencial> mente determinado» seja válido é o-facto de ter>Sido atoançado em" comunhão vom” o «processo histórico» que-se representa, “de atguína maneira, como
absoluto vêrdadeiro- a!
áiverdade absoluta: “A comunhão com este”
ra ão” póde Re '8
u
ug
das“ dó mesmo alba: que Assifrf se"esta teoria êscá
e final; mas
at
estorhproniétédo+!
órida pudesse ser «conheci: es dão a fcónhec E Ho sdeógfos de
tfádém mietafsica. “Elieio” dilema” Em" quê "sé debatê! à tedhiá da 48
'árbií
e rm
"> mtródução
tidetermiriação social» dó pensamento: O pensamento «existencial: ménte determinado» 'tal“Comó' foi definido pór:Maninheim “ou”é rigidamente determinado»ou'incontrolavelmerte livre para-serrdé!
sr algum
meio" de: co
aêst
co
nominiado E “corihecimentto
RS
opte dilentá) más defende
Rj
elé só exist
Vrdefinir “a “averdade»” de” Um modo estreito
«estático». Se'a única verdade alcançável pelo homeméa verdade!
das próposições áfirmadas' de-úmiavez por todas é verificáveis
todos, 'Bfitaó o o pensamento “(socialmênite ED
pór
estava!
O
O
falgum “carácter rigido dacrésposta indivi '2"kestar na'verdade» e não «falar à verdadey = áreCerá a verdade aleápçavel “pelo”! o:
Há aqui, em parte, uma diferença filosófica insolúvel: a dife-
E
rença entre o conceito existencial
de verdade
como
«estar na ver-
dade» é o conceito aristotélico de verdade enquanto «falar verdade». Alguns filósofos, adoptam para si a primeira definição (como fez Mannheim), e outros a segunda — sabendo, no entanto, se verdadeiros filósofos, que qualquer conceito de verdade precisa de ser complementado pelo outro. Não vou aqui entrar nestes problemas filosóficos, mas antes levantar um problema mais «prático»: Quais as consequências da acção e pensamento sociais se eles são rigidamente colocados com base no conceito existencial de «estar na verdade»? Vemos hoje que a definição existencial de verdade
envolve perigos que eram tão aparentes quando a estrutura da teoria de Mannheim
foi elaborada. O próprio Mannheim surpreendido
O
com a revelação repentina e traumática da realidade «histórica» que era a experiência comum da geração da linha da frente da Primeira Grande Guerra, aceitou como um axioma a unidade orgã-
47
Sociologia do Conhecimento
nica e o carácter criativo e progressivo do processo histórico. Para ele, o «historicismo» era uma doutrina progressiva e humana; Mannheim não considerou que o «nascente e actual» na história poderia ser essencial e totalmente não progressivo. Para nós demonstrou-se desde então que a resposta (feliz) pragmaticamente adequada à realidade histórica, mesmo se acompanhada de um sentimento subjectivo de «verdade» e de comunhão com o Absoluto, pode ser profundamente negativa e perniciosa para o homem,
de tal forma que se torna indispensável um índice para lá da história. Também a teoria social necessita de tais índices: não pode
assentar só na estrutura histórica e nela encontrar a luz. Ainda
assim, a sociologia do conhecimento de Mannheim é profundamente relevante, porque nenhum purismo metodológico pode aliviar-nos da tarefa de tomarmos o processo histórico como um todo e de assim definirmos a nossa relação com a cultura. Se reformulássemos o objecto da sociologia do conhecimento de tal forma que ele aparecesse como o da visão que os participantes num processo de interacção social podem ter de tal processo, a sociologia do conhecimento constituiria uma das áreas vitais de investigação.
Paul Kecskemeti
48
Capítulo ll
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA WELTANSCHAUUNG (1)
|
1. A DELINEAÇÃO DO PROBLEMA
Neste estudo procuraremos fazer uma análise metodológica do conceito de Weltanschauung e determinar o seu lugar lógico dentro da estrutura conceitual das ciências culturais e históricas. Não é nossa intenção propor uma definição substancial de Weltanschauung baseada em premissas filosóficas definitivas; a questão à que gostaríamos de responder é, antes, a seguinte: Qual a tarefa com que se depara um estudante da disciplina cultural e histórica (um
estudante de arte, de religião, possivelmente
também
um
so-
ciólogo) quando procura determinar a concepção universal (Weltanschauung) de uma época, ou delimitar as manifestações parciais relativamente a esta entidade englobalizante? Esta entidade designada pelo conceito de Weltanschauung é-nos revelada a todos e se assim é, como é que nos é revelado? Como é que a sua revelação se compara
com outros dados nas disciplinas culturais e históricas?
(1) Publicado pela primeira vez no Jahrbuch fur Kunstgeschichte, vol 1 (XV), 1921/22; Viena, 1923.
49
Sociologia do Conhecimento
Mas
tais aspectos
não
constituem
todo
o problema.
São
«revela-
das» muitas coisas a que não se atribui uma consideração teórica clara. E agora perguntamos: supondo que alguma coisa como uma «concepção universal» está já compreendida — como havemos de ver — de um modo pré-teórico, haverá algum modo de transpô-la para termos científicos e teóricos? Pode este «dado» tornar-se objecto de um conhecimento científico válido, verificável, cien-
tífico?
O problema que levantamos não é só uma questão de especulação gratuita; surge constantemente na investigação actual sobre questões culturais e históricas e algumas tentativas de o resolver encontram-se já registadas. Tentaremos elucidar os princípios metodológicos por que se guiam os esforços neste sentido.
Mais claramente, as disciplinas históricas nas quais se levanta
este
problema
não estão ainda suficientemente
amadurecidas
que
nos permitam tentar uma resposta final. Tudo o que podemos fazer agora é tornar explícita a lógica que subjaz o actual procedimento
seguido
por alguns estudiosos
seleccionados,
avaliar a obra
lógica das soluções tentadas; em conclusão, devemos, pelo menos, focar os maiores problemas aqui envolvidos. H. A LUTA POR UMA SINTESE
Será
possível
determinar a concepção universal de uma época
de um modo objectivo, científico? Ou será que todas as caracterizações de uma tal concepção universal são necessariamente vazias, especulações gratuitas? Estas questões, por muito tempo esquecidas, estão de novo a atraír a atenção de alguns estudiosos. O que não surpreende se tivermos em atenção o forte incitamento a uma síntese significativa nas várias disciplinas históricas. A seguir a um período de investigação analítica limitada e de especilização crescente, assistimos agora ao aparecimento de um período caracterizado
por
uma
aproximação
sinóptica.
A
concentração
anterior
na investigação histórica analítica foi uma reacção necessária contra a obra de Hegel
50
na filosofia da história que, com
os seus pres-
Sobre a interpretação da Weltanschauung
supostos se mostrou prematura no conteúdo e também no méto-
do; e, demonstrava ao mesmo tempo um contraste radical com as várias «histórias universais» que, apesar de constituirem uma leitura interessante, não acompanharam os modelos académicos e apresentavam uma mistura acrítica de pontos de vista, métodos e categorias incoerentes. Esta síntese prematura deu lugar à ideia de que se o objecto último da investigação histórica é obviamente o processo histórico como um todo, nenhum conhecimento do processo global é possível sem uma investigação prévia das suas partes. Estas partes componentes deveriam, então, ser estudadas separadamente (1); isto conduziu a um processo de especialização ainda presente. A especialização era dupla. Por um
lado, isolavam-se e estudavam-
-se separadamente os vários campos culturais como a ciência, a arte, a religião, etc. Em segundo lugar — e isto é o que primeiramente nos interessa — os domínios isolados em que se fragmentou o todo da cultura não eram considerados integralmente como se apresentam na experiência pré-teórica, mas sujeitos a várias operações de abstracção, realizadas de diferentes pontos de vista teóricos. Este procedimento — que já foi empregue com sucesso nas ciências naturais — provou ser metodologicamente proveitoso também nas disciplinas culturais. Tornou possível levantar questões
E
susceptíveis
de generalização
e elaborar conceitos
bem
definidos;
e assim, a lógica das ciências culturais que haveremos de ter estará em condições de atribuir a cada termo usado nestas ciências o seu lugar ideológico exacto, isto é, será capaz de especificar o problema na estrutura em que o termo em questão tem significado. Como primeiro resultado desta segunda espécie de especialização, tal como
te e uniforme
no caso das ciências culturais, a aplicação coeren-
de específicos procedimentos abstractos nas várias
(1) Talvez se deva acentuar que esta definição crua dos domínios da
religião,
da arte, etc., é estritamente um produto da aproximação teórica à cultura. O participante activo na cultura não experimenta divisões tão rígidas.
51
Sociologia do conhecimento
disciplinas culturais especializadas conduziu a que cada disciplina constituísse o seu objecto em virtude, por assim dizer, do seu método. Tal como o «objecto físico» da ciência é totalmente diferente da experiência diária imediata e é constituído, podemos dizer, pelo método da física, assim, por exemplo, o «estilo» (para retirar um exemplo da estética) é também uma espécie de objecto novo, trazido à luz pela análise metódica dos estudos históricos estilísticos; a abstracção científica, rejeitando gradualmente todos estes aspectos da multiplicidade dos trabalhos e formas de arte que não são relevantes para este problema, descobre finalmente a entidade chamada «estilo». Muito mais importante, contudo, é notar que, apesar desta semelhança, os estudos humanos diferem também essencialmente das ciências naturais quando se trata da relação entre os objectos lógicos respectivos com os correspondentes objectos da experiência diária, pré-científica. O objecto empírico dado na plenitude concreta da experiência sensual actual não levanta nenhum problema para a lógica da física, já que todas as leis físicas podem ser expressas sem referência ao conteúdo global daquela experiência sensual, de tal forma que a física nunca precisa de se preocupar com a tarefa de reconstrução de um objecto concretamente determinado com os seus próprios conceitos, desenvolvido com um resultado da abstracção metódica. Para a análise estética, porém, o objecto tal como foi dado numa experiência pré-teórica concreta nunca deixa de constituir um problema. Ao estudar a evolução histórica dos estilos, podemos temporariamente ignorar o conteúdo e a forma dos trabalhos individuais dos períodos em investigação; podemos
negligenciar o que é unicamente expressivo neste ou
naquele trabalho e considerá-lo
só como
um
ponto de passagem
num processo de transformação, procurando, para cá e para lá dele no tempo, precisamente o que chamamos «estilo». Mas todos os
elementos únicos da forma e do conteúdo que negligenciamos quando o nosso interesse se foca «no estilo» mantêem-se, no entanto, como um problema a resolver pela histérica da arte enquanto tal. Já que o domínio da natureza se fragmentou nos campos da
52
Sobre a interpretação da Weltanschauung
física, química, biologia, etc., sendo cada um estudado por uma disciplina especializada, o problema da reunião destes campos parciais para reconstruir um todo unificado não se levanta agora como.
um problema específico (só uma «filosofia da natureza» (1) pode
ter um tal objectivo), enquanto que as ciências culturais, os todos da experiência concreta negligenciados nos interesses da abstracção sempre se mantêem como um problema. Mesmo supondo que no campo da história da arte, os exames compreensivos e logicamente auto-suficientes do desenvolvimento do estilo e do tema já foram trabalhados, e certo é que todas as experiências necessariamente negligenciadas em virtude de procedimentos abstractos envolvidos nestes estudos apelariam ainda a um tratamento científico; o que inclui o «todo» concreto deste ou daquele trabalho nan «todo» mais compreensivo da obra de um artista e o «todo» ain mais compreensivo da cultura e da Weltanschauung de uma época. Há ainda uma outra razão porque estes objectos concretos são relevantes para os vários ramos da história cultural. Já que cada um destes ramos deve a sua existência a uma operação abstracta, nenhum pode por si só dar uma informação completa e válida do seu objecto nos limites da sua estrutura conceitual; será necemásio
num determinado momento referir-se ao todo concreto. Na história do estilo, por exemplo, possuímos alguns instrumentos analíticos que nos permitem afirmar que os estilos mudam; mas se queremos determinar qual a causa da mudança, temos de ir para além da história do estilo enquanto tal e referir um conceito como o de
«motivo» da arte (Kunstwollen), como foi definido por Riegel, como o factor cujas mutações explicam as mudanças no estilo. Por seu turno,
ao tentarmos elucidar as causas das mutações nos moti-
(1) As modernas
sociologias da natureza procuram reconciliar os princípios
explicativos usados pelas várias ciências (tal como
os princípios mecânicos e
causais usados pelos físicos e os teleológicos usados pelos biólogos). É claro que não tem
nada a ver com a tendência
para uma síntese nas ciências cultu-
rais de que falávamos acima.
53
Sociologia do Conhecimento
tivos de arte, temos de fazer referência a factores ainda mais impor-
tantes como Ao
o de Zeitgeist, «visão global» e outros semelhantes.
relacionarmos
penetrando
entre
si estes vários estratos da vida cultural,
na totalidade mais fundamental
em
termos da qual se
pode compreender a compreender a interconexão dos vários ramos dos estudos culturais — é este precisamente a essência do procedimento da interpretação que não tem contrapartida nas ciências naturais — só esta «explica» as coisas. Assim, mesmo uma disciplina especializada dentro das ciências culturais não pode permitir-se perder de vista a totalidade pré-científica do seu objecto, já que não pode compreender mesmo o seu tópico mais insignificante sem recurso àquela totalidade. Esta a verdadeira razão porque os
estudos históricos da cultura não se satisfazem com um método de investigação especializado, analítico. E a tendência presente pa-
ra uma síntese evidencia-se acima de tudo, pelo despertar do interesse no problema da We/tanschauung, um problema que marca o ponto mais avançado conseguido na procura de uma síntese histórica. Esta série de questões que se levantam só podem ser apreciada se nos afastarmos dos princípios metodológicos das ciências naturais, porque nas ciências naturais, onde faltam problemas desta natureza, não deparamos com nada que seja análogo aos modelos de pensamento
das ciências culturais. Contudo,
o modo de pensar
dos cientistas fascinou a era analítica de tal forma que ninguém ousou abordar certas questões essenciais que ficaram por resolver, pelo facto de não estarem em acordo com o catálogo das ciências
aceites ou com
o modelo geral do preconceito teórico. Quando,
apesar de tudo, se levantam algumas questões de princípio que não podem ser postas de lado, os especialistas da era analítica infalivelmente as atribuíam aos especialistas de um campo próximo, que, por sua vez, prontamente os passavam com desculpa idêntica de não se inserirem no seu âmbito de investigação particular. Neste
jogo
contínuo
não só omitiram
de
passar
responsabilidades,
mas, O que é pior, menosprezaram tar estes problemas.
54
os estudos
humanos
respostas a questões vitais do seu próprio campo,
a obrigação científica de tra-
Sobre a interpretação da Weltanschauung
Temos agora provas de que se está a verificar uma mudança no sentido de uma análise, porque na verdade os especialistas mais recentes revelam interesse nas questões sobre a filosofia da história. Este interesse manifesta-se pela necessidade crescente de enquadrar descobertas particulares num esquema histórico global e pela prontidão em usar métodos não ortodoxos, tal
como os de correlacionar entre si os vários substractos diferencia-
dos por abstracção, de investigar as correspondências entre as esferas económico-social
e intelectual, de estudar os paralelimos entre
as objectivações culturais como a arte, a religião, a ciência, etc.. A metodologia procura tornar explícito em termos lógicos o que se está a passar de facto na investigação recente (1).
e e
pet
HI. RACIONALISMO
VERSUS IRRACIONALISMO
A natureza complexa e paradoxa do conceito chauung deriva do facto de a entidade que lhe subjaz do domínio da teoria. Dilthey foi um dos primeiros isto; cfr. a sua observação: «As Weltanschauungs não
de Weltansse situar fora a reconhecer são produto
do pensamento».
compreender
Tudo
quanto o racionalismo
pode
é que uma visão global de uma época ou de um indivíduo criativo está totalmente contida na sua expressão filosófica e teórica; só precisamos de recolher e organizar estas expressões num modelo para estarmos na posse de uma Weltanschauung. Algumas investigações tiveram por objecto a averiguação por este método das influências que certos grandes filósofos exercem sobre os poetas — por exemplo, a influência de Spinoza sobre Goethe — e isto passa por uma análise da Weltanschauung.
(1) Além
de outros trabalhos que referiremos abaixo gostaríamos de referir
neste ponto certos estudos de Alfred Weber,
que apelam a uma
síntese feita
pela sociologia cf. entre outros, «Principles zur Kultursoziologie», no Archiv
fúr Sozial wissenschaften, 1920, vol. 47, nº 1.
55
Foi o movimento anti-racionalista nos seus estudos culturais, um movimento que Dilthey tornou uma força na Alemanha, que fez compreender que a filosofia teórica não é nem a criadora nem o principal veículo da We/tanschauung de uma época; na verdade, é tão só um dos canais através do qual um factor global -- que se concebe como transcendendo os vários campos culturais e as suas emanações — se manifesta. Mais, se esta totalidade a que chamamos Weltanschauung for compreendida como algo a-teórico e ao mesmo tempo como fundamento de todas as objectivações culturais, nomeadamente a religião, a tradição, a arte, a filosofica e se, além disso, admitirmos que estas objectivações podem ser ordenadas segundo uma hierarquia de acordo com a distância deste irrateórica
aparecerá como
uma das manifestações
uma
56
perspectiva
inteiramente
nova.
Estaremos, então, em posição
e
a vontade
mais remotas desta entidade fundamental. Se a Weltanschauung é considerada como algo teórico, domínios inteiros da vida cultural será inacessíveis a uma síntese histórica. Podemos, no máximo, analisar e comparar o conteúdo teórico minucioso que se infiltrou na literatura, no dogma da religião e nas máximas éticas. Tal é característico desta concepção de Weltanschauung; o apelo de Dilthey, o apóstolo da aproximação anti-racionalista a este problema, ficou abaixo das suas possibilidades, defendendo que as artes plásticas estavam fora do alcance da análise da We/ltanschauug. Se, por outro lado, definimos a We/tanschauung como alguma coisa de a-teórico, considerando a filosofia meramente como uma das suas manifestações e não apenas como a única, podemos alargar o campo de estudos culturais de forma dupla. Por um lado, a nossa investigação a favor de uma síntese estará, então, numa posição de acompanhar qualquer campo cultural. As artes plásticas, a música, os costumes e as tradições, o tempo de vida, o comportamento e os gestos expressivos, todos e também as comunicações teóricas tornar-se-ão uma linguagem decifrável, deixando na sombra a unidade subjacente da Weltanschauung. Em segundo lugar, ao alargarmos o campo de estudos nas sínteses culturais, esta aproximação permitir-nos-á olhar para o nosso objecto a partir de
——————
cional,
dino
Sociologia do Conhecimento
Sobre a interpretação da Weltanschauung
de comparar, não só as expressões discursivas, mas também os elementos de forma não discursivos; e logo que procedemos como tal, sentir-nos-emos mais próximos do impulso espontâneo, não intencional e básico de uma cultura do que se tentássemos destilar a Weltanschauung somente das expressões teóricas em que aparecem os impulsos originais, por assim dizer, de uma forma refractada. O preço a pagar por esta expansão do campo e pela inclusão da análise da forma é, como já indicamos, o de toda a posição se tornar em princípio mais vulnerável. A investigação científica da cultura em si mesma pertence ao domínio da teoria; se se concebe a unidade global da cultura como algo a-teórico, o golfo que separa o processo de investigação em si mesmo do seu objecto tornar-se-á maior. De novo, nos encontramos confrontados com o problema
do racionalismo e irracionalismo, a questão do se e como é que o a-teórico pode ser «traduzido» em teoria; este é o problema central da filosofia hoje e, como veremos, é igualmente crucial para a metodologia das ciências culturais. Porque será que este problema, nunca resolvido, surge sempre de novo,
manifestando
um
enorme
toca numa propriedade fundamental manas,
caracterizando
o homem
poder de sugestão?
É porque
da vida e da inteligência hu-
muito
melhor
do que quaisquer
descobertas da ciência antropológica. O traço fundamental é o de que o homem é cidadão de vários mundos ao mesmo tempo. Possuímos o mpoLr 'vAm, O material primordial da experiência, que é totalmente indeterminado e do qual nem podemos dizer se é homogéneo,
em
várias formas distintas, como
paradoxal
do pensamento
religiosa ou ética e também
a experiência estética,
como consciência teórica. A natureza
teórico que distinguindo-o de várias for-
mas, consiste em procurar impor um modelo lógico, teórico sobre as experiências já modeladas de acordo com outras categorias — por exemplo, estéticas ou religiosas. Mas se isto é assim, não podemos aceitar aquela forma extrema de irracionalismo que defende que certos factos culturais não são meramente a-teóricos mas que estão
radicalmente
afastados
de
uma
qualquer
análise
racional.
57
Sociologia do Conhecimento
As experiências estéticas ou religiosas não são absolutamente alheias à forma; o que se passa é que as suas formas são suí generis e radicalmente diferentes das da teoria enquanto tal. A «reflexão» sobre estas formas e o que está envolvido por elas, sem violar o seu carácter individual, a sua «tradução» em teoria, ou de qualquer modo, a seu «envolvimento» de formas lógicas, é objectivo da investigação teórica, um processo que aponta para estádios iniciais pré-teóricos, ao nível da experiência quotidiana. A tradução da experiência não teórica na linguagem da teoria é-nos «desconfortável» já que não podemos evitar a impressão de que as categorias teóricas são inadequadas e destróiem a autenticidade da experiência directa sobre que se aplicam. Porque será, então, que desejamos um conhecimento teórico de algo que já conhecemos numa experiência directa, não deturpada pela intrusão de interesses teóricos? Porque não nos contentamos com a contemplação estética dos
trabalhos anteriores a nós? Porque passamos de uma atitude de percepção
da
forma
para
uma
de
análise
cognitiva,
uma
atitude
essencialmente incoerente com os dados estéticos? Porque deveria o pensamento ser um meio universal, ferido pela sem gratidão de um
instrutor que é constantemente
precisado e usado e, contudo,
constantemente desprezado e insultado? E que se utiliza mesmo para proporcionar uma linguagem em que pode ser denunciado? Todos estes argumentos, são de peso na verdade. Mas deve haver alguma coisa para teorizar apesar de tudo, alguma coisa de positivo e frutífero; deve conseguir-se alguma coisa mais do que desanimar a experiência autêntica com uma rajada fria da reflexão. Uma remodelagem da experiência original pela qual se lança a luz
sobre ela de uma forma inteiramente nova. De outra forma, não se
compreenderia como é que percorrem o domínio ético, estético e religioso (isto é, o domínio do a-teórico) elementos da teoria mesmo no seu estado original, não reflectido. É certo que as experiências éticas, estéticas e religiosas têm categorias próprias; no entanto, não se pode negar que a experiência religiosa, mesmo se os seus produtos têm carácter irracional, encontra muitas vezes expressão
em
58
exercícios teóricos muito elaborados. E do mesmo
modo, a
Sobre a interpretação da Weltanschauung
a arte, embora se dirija em última análise à «vista», faz uso dos media e dos materiais, os que têm um componente teórico forte. A teorização, pois, não começa com a ciência; a experiência quotidiana pré-científica, é portanto recolhida com pedaços de teoria. A vida da mente é um fluxo constante, oscilando entre o pólo teórico e a-teórico, envolvendo uma combinação e uma re-disposição constante das categorias díspares de diferentes origens. A assim, a teoria tem o seu lugar próprio, a sua justificação e o seu sentido, mesmo no domínio da experiência imediata, concreta — no domiínio do a-teórico. Gostaríamos de sublinhar este ponto em oposição aos descrentes da teoria e do racional e àqueles cépticos radicais que negam categoricamente a possibilidade de transpôr o a-teórico em termos teóricos. No que diz respeito a esta coisa indefinida, Weltanschauung, ela pertence ao reino do a-teórico de uma forma ainda mais radias
cal.
Não
apenas
conceber como sentido em
que
no
um
sentido em
assunto
não pode
que, de algum
modo,
ela se pode
da lógica e da teoria; não apenas no
ser integralmente expressa através de te-
ses filosóficas ou até de comunicações teóricas de qualquer natureza — na verdade, comparados com ela, todas as realizações não teóricas, tal como
os trabalhos de arte, os códigos de ética, os
siste-
mas de religiões, estão ainda de alguma maneira agradecidos à racionalidade, com um sentido explicitamente interpretável, ao passo que a Weltanschauung como uma unidade global é algo mais profundo, uma entidade ainda não formada e totalmente original. As manifestações estéticas e espirituais como as obras de arte e os sistemas de religião são a-teóricos e a-lógicos, mas não irracionais (os últimos são totalmente diferentes dos primeiros). Na verdade, aquelas manifestações baseiam-se em formas de categorias, formas
de
sentido
como
qualquer
proposição
teórica
— a única
diferença é que no seu caso temos de tratar de uma série diferente de categorias básica (estética, religiosa, ética, etc.), e não com categorias teóricas (1). No entanto, a Weltanschauung não perten-
(1) Parte-se do princípio, sem mais elaboração, que para os fins deste estudo, todas as objectivações são consideradas como veículos de significado 59
Sociologia do Conhecimento
ce propriamente
a qualquer destes campos de sentido, nem ao teó-
rico, nem tão-pouco ao a-teórico, mas antes, de um certo modo, a todos eles; só por esta razão, não pode ser totalmente compreen-
dido dentro de qualquer deles. A unidade e totalidade do conceito
de Weltanschauung significa que devemos não só passar para além do teórico,
mas também
para lá de toda e qualquer objectivações
culturais. Qualquer objectivação cultural (tal como um trabalho de arte, um sistema de religião, etc.), e também qualquer sua fase auto-suficiente ou incompleta é, neste aspecto, realmente alguma coisa de fragmentário e a totalidade correspondente não pode ser
(cont.)
(Sinngebilde). Não há já qualquer necessidade de repisar este ponto;
basta referir os trabalhos de Husserl, Rickert e Spranger, entre outros. Foi Spranger
quem
primeiro
utilizou para
uma
«interpretação»
(Ver-
stehen) do comportamento o «significado» irreal, não-psicológico de que Husserl fez um estudo sistemático na esfera lógica e teórica, e Rickert (cujo pluralismo aceitamos no presente estudo) em todas as esferas da cultura. (Cf. Husserl, Logische Untersuchungen vol. |, Halte, 1913. Rickert, System der Phifosophie, pt. |, Tibingen, 1921. E. Sprangm, «Zur Theorie des Verstehens und zur geisteswissenschaftlichen Psychologie» in Festschrift fur Johannes Volkelt, Munique, 1918). Tomamos o «significado» num sentido muito
mais
de seguida,
largo do
que os autores mencionados acima e, tal como
se verá
introduzimos certas distinções neste conceito, já que estamos con-
vencidos que mesmo os problemas mais elementares da interpretação não podem
ser tratados sem estas distinções. Os tópicos importantes para a análise
filosófica
(tal como
a relação do problema da validade intemporal dos valores
sobre o problema do sentido) são quase irrelevantes para a teoria da compreensão: o que aqui importa é, como procuraremos demonstrar através de exemplos, o facto de cada objectivação
cultural ser um veículo do sentido quanto
ao seu modo de ser e de, portanto, não poder ser totalmente compreendida quer como
uma
«coisa» quer como um conteúdo físico; a cultura, por conse-
guinte, necessita de uma ontologia que se desenvolva paralelamente. Podemos, muito
bem
ignorar então todas as tendências platónicas que conotam a maior
parte das tentativas filosóficas na análise da teoria da cultura.
60
|
|
e
RE Rao
Sobre a interpretação da Weltanschauung
dada ao nível das objectivações.
Porque
mesmo
que pudessemos
inventoriar todas as objectivações culturais de uma época (claro
que não podemos porque o número de items é infinito) numa mera adição ou inventário ainda ela estaria longe daquela unidade a que chamamos We/tanschauung. Para compreendermos esta, precisamos de um ponto de partida diferente e devemos realizar uma operação mental que se descreverá mais tarde, transcendendo cada objectivação como qualquer coisa que só é o que é. Só então se tornará parte da totalidade de que tratamos aqui. E a nossa tarefa agora é a de definir esta mudança metodológica para caracterizar o passo decisivo pelo qual se pode considerar uma objectivação cultural, tal como é, de uma nova perspectiva, e, apontando para além de si mesma, como uma totalidade que se situa para lá do nível de uma objectivação cultural. Em si mesmas, as objectivações da cultura tal como imediatamente se nos apresentam, são veículos de sentido e portanto, pertencem à esfera racional (embora não à-teórica); enquanto que a nova totalidade de que falámos está além de todas as realizações de sentido, embora seja de algum mo-
do dada através delas.
Mas é possível obter qualquer coisa desta natureza? Pode tornar-se objecto de investigação científica? Isto é o que devemos in-
terrogar-nos,
mas,
por razões de clareza, vamos
conservar as duas
perguntas separadas. A primeira questão é a de saber se alguma coisa para lá das objectivações culturais nos é dado de alguma maneira. Isto é: sabemos que nos é dado algo com significado estético quando nos aproximamos de uma obra de arte numa atitude estética, e algo com significado religioso quando experimentamos as objectivações religiosas numa atitude que com ela é compatível; mas ser-nos-á dado qualquer coisa mais que possamos designar por Weltanschauung, a tal concepção geral para lá destas objectivações? Se assim é, teremos de adoptar qualquer atitude específica para compreendermos estes novos dados, uma atitude diferente daquela que nos permitem captar os significados originais? Poderemos descrever o novo tipo de acto intencional que corresponde a esta nova atitude?
61
Sociologia do Conhecimento
Só quando
respondermos afirmativamente a esta questão — o
que só pode ser feito através de uma análise fenomenológica dos
actos intencionais dirigidos aos objectos culturais — é que estaremos em posição de abordar o segundo problema — o do modo como os conteúdos alcançados na experiência a-teórica podem
ser traduzidos em termos teóricos, científicos.
IV. WEL TANSCHAUUNG: MODOS DA SUA APRESENTAÇÃO AS TRÊS ESPÉCIES DE SENTIDO
A primeira questão pertence à fenomenologia do objecto intencional (1), e a questão que levanta é a de saber se a Weltanschauung é um objecto possível, se, na verdade, é um dado, e até que ponto na forma em que é dado difere da forma em que nos são dados outros objectos. Um objecto pode ser-nos dado quer imediata, quer mediatamente — e é preciso frisar esta alternativa. Se é dado imediatamente, o objecto apresenta-se a si mesmo, se mediatamente, alguma coisa mediadora se apresenta em seu lugar; e esta «procuração» que se diz tomar o lugar do objecto propriamente dito pode de-
sempenhar diferentes papéis mediadores, dos quais mencionaremos dois com uma relação vital com o problema que se analisa: a função de expressão por um lado, e a de documentação ou evidên-
cia por outro lado (2).
(1) Torna-se claro para quem a medida
esteja familiarizado com
em que esta análise fenomenológica
o trabalho de Husserl
se lhe deve e como
o seu pro-
cesso tem sido modificado de acordo com objectivos deste estudo.
(2) Como um terceiro tipo de mediação, pode referir-se ainda a representação, sobre a qual não nos debruçaremos neste artigo, já que a nossa análise se perderia ao introduzir mais esta dimensão. Limitar-nos-emos à observação seguinte em conexão com este tópico que é de importância capital noutros contextos: a representação é de primeira importância nas esferas é a da pintura e a da escultura; além de modelar um meio visual e um «espaço estético» (um pouco mais tarde), um trabalho de arte nestes campos pode também representar um
62
Sobre a interpretação da Weltanschauung
A marca distintiva da representação mediata é a do dado que se apreende como estando ali de pleno direito poder e, na verdade dever, também ser concebido como estando ali por qualquer outra razão — e este é um dos modos de mediação ou da significação acima mencionado. Assim, para descobrir se o objecto em discussão (no nosso caso, a visão global, o «espírito» de uma época) é, pelo menos, dado mediatamente, teremos de ver se as obras ou as objectivações que são dadas directamente também apontam para além de si mesmas — se as temos de transcender, de as rodear, se queremos alcançar o seu significado integral. Tentaremos mostrar que qualquer produto cultural só pode ser totalmente compreendido nas seguintes condições: deve, em primeiro lugar, ser compreendido como uma «coisa em si mesma», sem atenção à sua função mediadora, após o que se deve também
tornar em consideração o carácter mediador nos dois sentidos indi-
cados. Qualquer produto cultural na sua destinação total, revela três dis-
tintos «estratos de sentido»: (a) o sentido objectivo; (b) o sentido expressivo; (c) o sentido documental ou de evidência. Temos, em
primeiro lugar, de mostrar que estes três estratos são distintos e que são cognoscíveis. Se observamos um «objecto natural», veremos logo ao primeiro relance o que o caracteriza;a atitude cientifica moderna apropriada ao seu estudo é a de o tomarmos em si mesmo, já que é totalmente cognoscível sem necessidade de o transcendermos ou rodearmos nas direcções de que falamos acima. Por outro lado, um produto cultural só será compreendido no seu significado adequado e verdadeiro se atendermos ao «estrato de senti-
(cont.) sem número de objectos. A diferença essencial entre expressões e representação reside no facto de a representação e o objecto representado deverem pertencer ao mesmo campo sensorial. Os sons só podem ser representados por outros sons e, em geral, os dados sensoriais por outros dados sensoriais; os
dados mentais e físicos não podem ser representados, mas tão só expressos ou provados.
3
Sociologia do Conhecimento
do» — o seu significado objectivo; devemos também tomá-lo no seu significado expressivo e documental, se queremos exaurir o seu significado total. Claro que é possível também com a Natureza transcender uma atitude puramente experimental e, ensaiando uma interpretação metafísica conceber toda a Natureza como uma prova de Deus; procedendo desta forma, só transferiremos para a Natureza o modo de análise correctamente adequado à cultura. Que no entanto, este modo de procedimento é estranho à esfera
da natureza, embora
apropriado
ao domínio
mente demonstrado na seguinte experiência mos de transcender o significado objectivo ma mencionadas, o objecto natural será cognoscível, mas o produto cultural perderá Há
ainda
uma
segunda
diferença
entre
da cultura, será facil-
negativa: se nos abstenas duas direcções aciainda cientificamente o seu significado. os objectos
naturais
e culturais. Os primeiros devem ser concebidos exclusivamente como algo que se localiza num espaço-tempo físico ou num meio psico-temporal, enquanto que os últimos são invariavelmente veículos de sentido (nos vários sentidos já descritos) e por isso não são integralmente localizáveis no mundo espácio-temporal (que é, no
máximo,
a estrutura
externa
da
sua realização), ou nos actos
físicos dos indivíduos que os criam ou experimentam (sendo estes actos necessários para a actualização do significado). No que diz respeito a um objecto cultural, o seu significado não é, de modo nenhum,
um
índice ocasional, uma
propriedade
acidental de algo
num espaço físico, como se o físico não fosse o único existente real e o significado cultural um mero acidente. O mármore de uma estátua, por exemplo, só actualiza um significado (uma obra de arte enquanto tal), e a «beleza» de uma estátua não é uma das propriedades
do
objecto
físico
mármore,
mas
pertence
a um
outro
plano diferente. Do mesmo modo, a genuinidade do material, a «textura» (acentuada por Semper), e o tratamento do espaço arquitectural, são dados sensuais que representam o significado estético de um objecto material ou especial — mas precisamente porque
corporizam sentido, não pertencem nem ao plano material nem ao
espacial.
64
Sobre a interpretação da Weltanschauung
Para ilustrar ainda mais claramente o caractér «significante» do fenómeno cultural, e da sua tripla diferenciação, mencionaremos um exemplo concreto. E deliberadamente escolhemos um exemplo
trivial, para tornar claro que o nosso conceito de cultural
engloba não somente os produtos culturais assim denominados graças ao prestígio tradicional, como a Arte e a Religião, mas também manifestações da vida quotidiana que geralmente passam despercebidas e também que estas manifestações demonstram já as caracte-
rísticas essenciais de significado enquanto tal. Considerem o se-
guinte caso: Desço a rua com um amigo; um pedinte está na esquina; o meu amigo dá-lhe uma esmola. O seu gesto para mim não é nem um fenómeno físico nem um fenómeno psicológico; como um dado, é somente o veículo de um significado, nomeadamente, o da «assistência». Neste processo de informação, o acontecimento que é mediado pelo dado visual torna-se o veículo de um significado que é algo inteiramente diferente de um dado visual e pertence ao campo psicológico, onde é teoricamente subsumível à categoria de «assistência social». Só num contexto social é que o homem na esquina é um «pedinte», o meu amigo, «o que lhe oferece assistência», e o bocado
de metal
nas suas mãos, uma
«esmo-
la». O produto cultural neste caso é tão só o acontecimento «assis-
tência», que se define em termos sociológicos; no que diz respeito ao acontecimento (pelo qual se constitui), o meu amigo enquanto indivíduo psico-físico é irrelevante; entra no contexto somente en-
a
quanto
«doador»
como
parte da «situação»
que só pode ser com-
preendida em termos de significado e que seria essencialmente a mesma se o seu lugar tivesse sido ocupado por outra pessoa. Não é necessário um conhecimento do conteúdo íntimo do meu amigo ou da consciência do pedinte para compreendermos o
significado da «assistência» (que é «significado objectivo» da situação); basta sabermos a configuração social objectiva em virtude da qual há pedintes e pessoas com bens supérfluos. Esta configuração objectiva é a única base de orientação que nos permite compreender o significado do acontecimento como um exemplo
de «assistência».
65
Sociologia do Conhecimento
Agora cada produto ou manifestação cultural tem um significado objectivo, e a marca distintiva de tal significadoé o facto de poder ser totalmente compreendido sem sabermos nada acerca dos «actos intencionais» dos indivíduos «autores» do produto ou da manifestação. Tudo o que precisamos de saber (1) é o «sistema» (usado aqui num sentido não-lógico, a-teórico), aquele contexto e aquele todo, em termos dos quais os dados que percebemos se fundem numa entidade significativa. Na ciência, este «significado objectivo» é uma proposição teórica e no nosso exemplo sociológico tem, pelo menos, uma componente teórica considerável. Nas artes plásticas, contudo — como se mostrará em pormenor de seguida — o significado objectivo é, em si mesmo, um conteúdo puramente visual, o significado de alguma coisa só pode ser visto, ou, para usar o termo de K. Friedler, uma «visibilidade pura». Na música, de novo, o significado objectivo é a melodia, o ritmo, a harmonia, etc., com todas as suas leis estruturais objectivas. Estas estruturas são a-teóricas, mas não de natureza «irracional» ou «não-constitutiva» (setzungsfremd!). Contudo, para continuarmos com a análise do exemplo citado, é possível
ou
até
mesmo
provável
que quando
o meu
amigo
realiza um acto cujo significado é o de «assistência», a sua intenção não seja meramente ajudar, mas também exprimir um sentimento de simpatia para comigo ou para com o pedinte. Neste caso, o acto que tem significado objectivo será também o veículo de um significado inteiramente novo que não precisa de ter sempre uma designação terminologicamente fixa; neste caso, pode chamar-se misericórdia, simpatia ou compaixão. Agora, o movimento percebido, o gesto de caridade, não se deve só ao significado objectivo de «assistência», mas também a um segundo estrato de significado sobreposto,
tivo.
Este
por assim dizer, sobre o primeiro: o significado objec-
segundo
tipo difere
essencialmente
do primeiro
pelo
(1) Mas não é necessário, pelo contrário, que sejamos capazes de apreciar este conhecimento teórica e reflectidamente!
66
RR
o
MN
o
Sobre a interpretação da Weltanschauung
facto de não poder separar-se do sujeito e do seu mundo de experiência, mas só adquirir o seu conteúdo totalmente individualizado com referência a este universo «íntimo». E a interpretação do significado expressivo envolve sempre a tarefa de compreendê-la autenticamente — tal como era querido pelo sujeito, tal como lhe parecia a ele quando a sua consciência se concentrou sobre o facto. Agora, curiosamente, este conteúdo expressivo, apesar do facto de não possuirmos dele um conhecimento teórico-reflectido mas somente uma experiência directa, concreta, pré-teórica, é ainda significante, isto é, de alguma forma interpretável, mais do que algo meramente físico, um estado difusamente endurecido.
Tem
um certo cachet (mesmo
se lhe falta uma forma conceitual
definida), que a torna mais do que uma fase elusiva, indistingu ível no fluxo da nossa consciência. Deve notar-se, no entanto, que se pode compreender o significado objectivo pela interpretação objectiva sem recurso ao que é subjectivamente pretendido, i.e., pode ser tratado só como um problema de significado, visto que o significado com expressão, o significado tal como é percebido na experiência directa, foi uma vez um facto histórico (1) único e deve ser investigado como tal. Podemos pensar que com isto se esgotaram todas as possibilidades de interpretação — mas o nosso exemplo mostra que tal não é o caso. Porque eu, como testemunha que interpreta a cena, estou
em posição de partir do significado expressivo tal como foi subjectivamente pretendido, e do ponto de vista objectivo revelado pelo acto numa direcção inteiramente nova. Isto é, analisando todas as implicações do que vejo, posso descobrir subitamente que o «acto
DS
(1) E ainda se conserva como algo irreal; o significado. Podemos chamar-lhe factual porque está tão intimamente ciência de um tutivamente
ligado com a corrente temporal da cons-
indivíduo espacialmente no conteúdo
do
localizado que este nexo entra consti-
significado.
O
«facto»
nesta terminologia
não
é o contrário de «irreal».
67
Sociologia do Conhecimento
de caridade» foi, na verdade, uma hipocrisia. E então não me importa mesmo
nada
não só como
um
o que o amigo fez objectivamente, e nem mes-
mo o que ele «queria»» ou «pretendia» exprimir com a sua acção — tudo o que me preocupa agora é o que está documentado sobre ele, ainda que não intencionalmente, mas pelo seu acto. E ao ver na sua dádiva «hipocrisia», estou também a interpretar o acto como uma «objectivação cultural», embora num sentido novo e inteiramente diferente. Sempre que se alcança um produto cultural significado expressivo mas também como
um sig-
nificado, documental, ele próprio aponta para lá de si em direcção a alguma coisa diferente — com a nota, contudo, de que este «algo
diferente» não é já um conteúdo intencional actualmente admitido
pelo meu amigo, mas é antes este «carácter essencial» tal como foi evidenciado pela sua acção e definido, em termos éticos, como «hipócrita». Posso aplicar a mesma técnica de interpretação também a qualquer outra manifestação da sua personalidade — as expressões faciais, os gestos, o modo
de andar, o ritmo de conversa;
e enquanto eu defendo esta aproximação interpretativa, todos os seus impulsos e acções revelarão um novo estrato de significado. Nada será interpretado em termos de actuação objectiva; antes pelo contrário, cada dado comportamental servirá para ilustrar a minha apreciação sinóptica da sua personalidade como um todo; e esta apreciação não precisa de ser limitada pelo seu carácter moral, pode tomar a sua orientação global como um todo. A nossa primeira tarefa é a de tornar visível, e conservar àparte, o fenómeno relevante neste aspecto; deve mostrar-se acima de tudo, que estas técnicas de interpretação são sempre aplicadas na análise cultural e que especialmente o último tipo de interpretação exemplifica um modo indispensável de compreensão que não pode ser confundido com qualquer dos dois anteriores.
Neste ponto, devemos notar o fenómeno curioso de podermos ocasionalmente, aplicar este último modo de interpretação a nós mesmos também. A interpretação expressiva-intencional das nossas objectivações não nos levanta problemas. O sentido expres-
sivo que
68
se quer expressar
em
qualquer dos nossos actos foi ime-
TIA
To
a
a
Sobre a interpretação da Weltanschauung
diatamente dado num determinado contexto — e podemos sempre referi-lo à consciência
(excepto, é claro, nos casos em que a memó-
ria nos falha). Mas o sentido documental de uma nossa acção é um outro assunto e pode constituir um problema para nós tanto como se as nossas objectivações fossem levadas a um estranho. Dificilmente se encontra um contraste tão grande entre a interpretação expressiva e a documental como nos casos-fronteira do «auto-
reconhecimento». E a totalidade a que chamamos «génio» ou «espírito» (de uma época) é-nos dada, deste modo, no significado documental»; esta é a perspectiva em que compreendemos os elementos que vão constituir a visão geral de um indivíduo criativo ou de uma época. Antes de discutirmos
a diferença entre estes três estratos de
significado em termos mais gerais, examinaremos estes modelos no campo das artes plásticas; para começarmos, no entanto, limitar-nos-emos a uma diferenciação clara entre o significado objectivo, por um lado, e o significado expressivo, por outro. Na análise teórica estética das obras de arte é costume recorrer a uma operação abstracta, cuja substância é uma distinção entre
«forma»
e «conteúdo».
Temos
de levantar, então, a seguinte
questão: Como é que a distinção entre estes três estratos de significado (a propósito uma distinção que também exige operações abstractas para a sua implementação) se relaciona com a distinção entre conteúdo e forma? O estrato do significado objectivo corresponderá porventura ao «conteúdo», ficando os significados expressivos e documental para a «forma»? Nada que se pareça; o significado objectivo cobre um conteúdo já informado e um exame mostrará que qualquer «conteúdo» estético na sua dádiva fenomenal concreta revela vários aspectos sobrepostos de formas mesmo se a acentuação
ciemos.
abstracta sobre o «conteúdo»
faz com que o negligen-
Se estes últimos aparecem claramente, é necessária uma outra distinção e para este fim o inquérito deve prosseguir em duas fases; isto porque a distinção entre «forma» e «conteúdo» pode ser com-
preendida de qualquer das seguintes maneiras: (a) o conteúdo (su-
69
Sociologia do Conhecimento
jeito-assunto) representacional da imagem e a sua forma represen-
tacional, e (b) o conteúdo material do meio (mármore, camadas de tinta) e as suas dimensões formais. teúdo
Para começar: é imediatamente evidente que qualquer conrepresentacional combina elementos objectivos e expressi-
vos.
Mas
mesmo
se tentamos
isolar o conteúdo
representacional
enquanto tal, teremos que admitir que a linha de demarcação entre a forma e o conteúdo é essencialmente flu ída; porque é impossível contar a «história» que subjaz à pintura (ex: uma fábula bíblica ou um motim na aldeia numa pintura flamenga) tão seca e sobriamente de forma a obter um conteúdo em que o cortador não injectou nenhuma «forma». Mesmo as histórias dos jornais são tendenciosas e contadas de tal modo que a própria «formação» do próprio material não deixa margens para dúvidas. Assim, mesmo ao tentar descrever somente o que a pintura «conta», não podemos deixar de não notar a forma como a história é contada. Esta «forma
representacional»
é exemplificada entre outras coisas, pelos se-
guintes aspectos da pintura:a escolha de uma fase visual particular de uma sequência temporal de acontecimentos; a disposição das figuras: se estão hieraticamente rígidas ou antes temporais na sua ordenação, se são trazidas à cena só por efeitos de luz, cor e ritmo linear; se animadas por gestos vivos ou congeladas num desenho estático que aponta para lá do mero realismo da vida, se baseadas num modelo rítmico-arquitectónico ou em efeitos de intersecção e de redução, se apresentadas tal como são vistas por um espectador exterior ou organizadas em torno de um ponto de referência dentro da pintura. Todas estas in-formações do conteúdo representacional devem ser consideradas como objectivas, sobretudo na medida em que podem ser alcançadas só pelo olhar a pintura, sem referência ao artista e à sua consciência. Contudo,
a simples
inspecção
do conteúdo
representacional
em todos estes aspectos revelará também um componente expressivo -— dificilmente há uma «história» sem conteúdo expressivo. Se a Idade Média é em regra, consagrada à representação pictórica de conteúdos
70
sagrados
(derivados
da
Bíblia),
e, além
disso, a certos
Sobre a interpretação da Weltanschauung
episódios seleccionados, a razão é, em parte, a de que se supunha que a arte pictórica se reduzia somente a um campo limitado de estados e sentimentos. Assim, cada vez mais se entrou com um cer-
to inventário emocional dos assuntos seleccionados; cenas particulares da Bíblia absorviam as conotações emotivas definidas no seu complexo de significado objectivo (nos assuntos como tal relatados), e estas conotações tornaram-se tão estandardizadas que os contemporâneos não podiam deixar de considerar certos significados expressivos como objectivamente inerentes a certos conteúdos. Que este não pode ser o caso num sentido absoluto é o que se torna claro pelo facto de os mesmos acontecimentos e as mesmas figuras serem chamadas no decurso da história a apoiar diferentes significados expressivos. Por exemplo, algumas cenas bíblicas que nas primeiras pinturas exprimiam só sentimentos de exaltação religiosa, adquiriram mais tarde um significado expressivo «erótico». Um outro exemplo conhecido de mudança no sentido expressivo é o das peças medievais em que o cego e o perneta desempenharam um papel cómico, enquanto que, pelo contrário, uma geração posterior considerou o herói Dom Quixote como uma figura cómica. Tudo isto torna claro que na interpretação do significado expressivo, incluindo o compreendido num conteúdo representacional, devemos procurar entender o que o artista realmente quis; por isso é necessário, uma estreita familiaridade com as atitudes e as idiosincrasias de uma época ou de um artista se não queremos compreender mal os seus trabalhos. Quando
depois examinamos
o modo
como
é tratado o meio
material (o mármore de uma estátua, a cor e a tela na pintura), é também
evidente que as formas visuais enquanto tal cristalizam di-
rectamente um significado objectivo, àparte de qualquer significa-
do
relacionado
com
a «história»
que se representa. Ao
olharmos
para uma estátua, a nossa experiência visual abrange não apenas os dados sensuais da visão e (eventualmente) do tacto, mas invariavelmente também uma concepção estética (Auffassung) subjacente à disposição das formas visuais enquanto tal. Quando pensamos que não vemos para lá do puramente visual, estamos já a tratar de rela-
nm
Sociologia do Conhecimento
ções de sentido e forma; por outras palavras, o «espaço» da estátua não é o mesmo que o «espaço» preenchido pelo mero pedaço de mármore — a estátua tem o seu «espaço estético» que difere do espaço puramente físico da óptica em que se estrutura em termos de significado visual. O que é uma outra prova de que o significado objectivo não necessita de pertencer à análise teórica dos factos (como acontece relativamente ao significado de um acto de «assistência»), mas pode muito bem ser alguma coisa puramente visual e ainda susceptível de interpretação em termos de significado como um dos modos possíveis de separar a forma estética do espaço visual, E este tipo de significado pode, de novo ser chamado «objectivo», já que todos estes factores que constituem tal sentido numa
obra de arte — o tratamento do espaço, o modo de composição, etc. — podem ser compreendidos sem referência à consciência do artista. Assim,
podemos
ter uma
compreensão
completa
do con-
teúdo visual, estético das obras africanas primitivas sem estarmos obrigados a analisar o que o artista negro queria «exprimir» com elas. Não pode haver produto cultural sem um qualquer significado objectivo e sem um significado visual objectivo em particular não pode haver obra de arte plástica. Mais concretamente, é necessário preparação para compreender este significado objectivo: um caloiro na arte sentir-se-á de início incapaz de compreender o significado objectivo de uma pintura de Cézanne (mas por outro lado, não será o desenvolvimento subjectivo, psicológico de Cézanne que lhe pode ensinar isto, mas tão só a assimilação gradual dos estádios precedentes na hierarquia das experiências pictóricas em que se baseia a compreensão) — e contudo, todos estes estádios preliminares de «aprendizagem» revelam uma forte orientação objectiva. Isto é, não são só estádios num processo de experiência puramente subjectivo mas demonstram uma analogia completa com o processo de compreensão
de uma
proposição teórica como o teorema
de Pitágoras; neste último caso, devemos também em primeiro lugar aprender o significado dos conceitos empregues e a estrutura peculiar do espaço (neste caso, o espaço geométrico) envolvida. 72
Sobre a interpretação da Weltanschauung O modo específico através do qual a arte plástica realiza o significado objectivo num meio visual conduz-nos à distinção entre dois tipos de significado objectivo em geral:o significado objectivo através dos sinais e o significado objectivo conseguido através da forma. Em ambos os casos, há veículos concretos de significado, mas a relação entre o significado e o seu veículo é sem dúvida nenhuma, diferente nos dois casos. O significado teórico — o conceito — não mantém nenhuma relação intrínseca, essencial com o seu veículo sensual, a palavra falada ou escrita; a última é somente um sinal para a primeira. Por outro lado, apesar do significado objectivo estético enquanto significado não ser algo localizado no espaço ou na matéria, ele está, contudo,
essencialmente
relacionado
com
o meio
sensual
de que
não se pode desligar e a que pertence como seu próprio significado visual ou forma. O significado objectivo da natureza que se encontra nas artes plásticas, enquanto forma, abrange de algum modo o meio sensual como um componente essencial dentro do contexto de significado, sem se tornar, por isso, parte do mundo físico. O
significado visual — aquilo a que Fiedler chamou «visibilidade pu-
ra» — é o significado de um dado óptico e precisamente por esta razão não algo óptico em si mesmo. O significado objectivo, isto é, o significado que se alcança por interpretação objectiva, baseia-se em leis estruturais do objecto em
si mesmo;
certos
elementos
e fases da realidade sensível
tor-
nam-se aqui estádios necessários na realização progressiva de significado. Tudo o que precisamos para uma compreensão correcta desta camada de significado é de uma inserção adequada das necessárias características estruturais do campo sensual em questão. E, na verdade, a interpretação do significado objectivo na arte é a menos equívoca e a relativamente
menos
prejudicada, como o exem-
plo acima citado da escultura negra mostrou pela distância cultural e pelas diferenças intelectuais. A nossa frase, «relativamente» menos prejudicada pela distância cultural», implicitamente denota que, embora a interpretação objectiva se ocupe só com o significado objectivo e nada tenha a
73
Sociologia do Conhecimento ver com a prova enfática dos processos subjectivos, está ainda lon-
ge de pressupor algum «universo visual» único e de validade gene-
ralizada — como se o «espaço estético» da escultura negra fosse o mesmo, qua visual universal, da escultura grega ou moderna. São possíveis várias concepções de espaço, e como tal, nenhuma dúvida razoável se levanta a uma qualquer tipologia, mesmo dentro de uma visibilidade objectiva absoluta; todas elas têm a sua consistência interna e constituem, portanto, universos visuais: qualquer parte determinada de uma estátua, uma superfície distinta, um movimento ganham um significado visual diferente tudo dependendo de estarem ou não compreendidos neste ou naquele «universo visual» — sempre condicionados, como é evidente, o que poucas vezes se verifica pelo facto de poderem ser transferidos de um «universo visual» para outro. Se estes são, em alguma medida, comensuráveis tal deve-se ao facto de poderem ser considerados como variantes de «um tratamento» visual do espaço» enquanto tal; um conceito genérico que é supra-histórico porque faculta uma estrutura de comparação dentro da qual podemos opor as caracter ísticas individuais dos vários universos visuais históricos. Porque temos tal categoria de representação visual num espaço estético, porque podemos referir certos pedaços de pedra a um «universo visual» estético, temos, por assim dizer, acesso ilimitado, ubíquo a esta esfera de significado a que chamamos «objectiva» por esta mesma razão. Temos agora, no entanto, de acrescentar que O significado expressivo também está sempre embebido neste estrato de significado objectivo — uma forma dentro de outra forma, por assim dizer. E é o exame do significado objectivo da obra de arte que porá a nu toda a importância da distinção que fizemos acima entre o significado objectivo compreendido como «sinal» e como «forma» respectivamente. Uma vez feita a distinção entre o significado-sinal e o significado-forma, tornar-se-á logo evidente que o conteúdo expressivo (geralmente conhecido como o elemento emocional) pode ser dado mais adequadamente através da forma do que através do signo. Enquanto que — num discurso teórico — a pala-
74
j
Sobre a interpretação da Weltanschauung
vra é tão só um sinal de um conteúdo expressivo, «designar», esta designação verbal apenas se lhe capaz de a exprimir adequadamente. A verdadeira racteriza-se pelo facto de algum conteúdo psíquico num
meio
sensualmente
formado,
dotando-o
só a podemos refere sem ser expressão caser capturado
de uma
segunda
di-
mensão de significado; e esta compreensão do conteúdo físico só é possível se o meio sensual não é tratado como alguma coisa de
secundário e cambiável mas se se lhe atribui a sua forma de valor
individual por direito próprio. Se eu digo ao pedinte «Tenho pena de si», ou se lhe dou uma moeda como «sinal» da minha simpatia, não exprimo, em sentido próprio, um sentimento, eu só o «designo», o «refiro». Mas se o meu gesto compreende a minha forma de emoção visual, o conteúdo psíquico que experimento encontra expressão real. Assim, podemos distinguir dois tipos radicalmente diferentes a um nível tão baixo de expressão como é o do gesto: alguns
gestos preenchem a função de sinal de linguagem (i. e. os gestos demonstrativos, apontativos, os gestos que magoam ou qualquer manifestações convencionais como mas
estes
apenas
traduzem
um sorriso de circunstâncias),
conteúdos
físicos estereotipados; ou-
tros têm o seu modelo individual próprio que chama a atenção e exige interpretação. No último caso, cada modelo individual de movimento
traduz
um
estado
de emoção
especificamente
único
e estamos, então, em presença de um verdadeiro gesto «expressivo». Quando só pensamos no tipo de gesto-sinal de linguagem, podemos partir do princípio que há uma «gramática universal de expressão», pela qual certos movimentos podem ser reunidos numa combinação rígida que corresponde a certos modelos típicos de
emoção.
Mas logo que consideramos a segunda categoria de «ges-
tos expressivos», abandona a nossa tentativa de construir uma tal gramática, conscientes como estamos do facto de dentro deste
grupo
tratarmos
de
relações
entre o psíquico e o meio
únicas
e essencialmente
sensual, e muito embora
diferentes
este meio, ou
antes o seu significado visual, seja constitutivo para o significado expressivo,
seria,
no
entanto,
injustificado
assumir
uma
relação
75
Sociologia do Conhecimento
recíproca, definida, unicamente determinável entre os elementos destes dois estratos de significado. E é esta segunda espécie de expressão que importa na arte, sobretudo enquanto a obra de arteé muito
mais
do que uma
mera
indicação de, ou signo para, certos
estados psíquicos. Antes, cada linha, cada forma, numa só palavra, cada fase formativa do meio tem, pelo menos, uma dupla função significativa: por um lado, confere ao meio um significado estético visual, objectivo, ou uma forma e, por outro lado, corporiza um significado subjectivo único que procura uma expressão adequada.
A forma estética, tal como é exemplificada num trabalho de arte, ultrapassa um simples gesto expressivo num determinado aspecto — a saber, o sujeito que realiza um gesto expressivo espontãneo não está explicita e conscientemente preocupado com a forma visual do gesto e com o modo como traduz o significado expressivo, enquanto que o pensamento do artista encontra quer a forma quer o papel na tradução do significado expressivo como seu objecto intencional. A expressão mímica é algo que acontece, mas o trabalho de arte é feito. Neste ponto, devo talvez, tornar claro que estou a usar as expressões «consciência», «conscenciosamente tomou objectos intencionais», e outras, não no sentido possível de envolver o conteúdo significante numa estrutura teóricae reflectiva definida, mas no sentido de uma atitude não-reflectiva, mesmo se orientada para um significado teórico. No caso do artista, esta atitude não reflectiva é a de «fazer» ou «modelar»; no caso do espectador, é a de «compreender». Sempre que contemplamos uma obra de arte numa orientação de valores directa, realizamos aqueles actos de realização de sentido que o trabalho exige, mas é só na interpretação que tentamos traduzir esta experiência de sentido em conhecimento teórico. É, portanto, legítimo falar do «conteúdo
expressivo
intencional»
de
uma
obra, desde que o «conteúdo
expressivo intencional» se identifique com o objecto intencional no pensamento do artista no segundo sentido de consciência não reflectiva que nada tem a ver com o conhecimento teórico. Que
tencional
76
o espectador
possa
alcançar
o conteúdo
de uma pintura é, em princípio, um
expressivo
in-
milagre tão grande
Sobre a interpretação da Wentanschauung
como o fenómeno geral de podermos associar o conteúdo sensual do trabalho a uma qualquer função significante (1). O significado expressivo também é um dado»; e se a interpretação deste tipo apresenta dificuldades peculiares, tal deve-se somente ao facto de, ao contrário do significado objectivo (como, por exemplo, a composição de uma pintura) que é auto-suficiente e por isso só retirável da pintura em si mesma, o significado expressivo corporizado em elementos estéticos como
o seu tema, a trajectória ou a curva-
tura de uma linha, não se pode estabelecer sem uma análise da base histórica. («Já se experimentam mudanças no significado emotivo»,
(1) Ninguém duvidará deste facto, excepto os que se aproximam das questões com a noção pré-concebida de que a percepção (Anschauung) é exclusivamente uma questão de senso, sem mesmo considerarem a questão de se saber se seria
possível explicar o fenómeno
de uma
percepção
intelectual,
mais simples sem reconhecer
ou mesmo
categorial
a existência
(Anschauung).
Na com-
preensão do significado objectivo visual (configurações visuais) de uma estátua deve este ser imediatamente posto ante mim, deve ser imediatamente compreendido («cor»,
pela
«brilho»,
minha
mente
«sombra»)
são ao
como
os
mesmo
elementos puramente tempo
sensuais
directamente percebidos
pelos meus sentidos. Igualmente formativas, impositivas de significado e imediatamente
perceptíveis para
a mente são as dimensões expressivas
mentárias)
do
trabalho de arte. Os
significado
uma cor ou combinação tal modo
no
«valores
(e docu-
expressivos»
de
de cores e o cachet individual que possuem estão de
presentes na experiência estética que nos apercebemos deles mesmo
antes de notarmos a cor enquanto tal. Na verdade, o significado só pode
ser
dado imediatamente; e a única razão porque podemos comunicar com cada um é porque existe aquilo a que chamamos a percepção categorial do «significado» que
i.e., de alguma coisa que não é imanente à consciência, alguma coisa
é de-subjectivizado
e «irreal». Embora
seja verdade que nenhum
signifi-
cado pode ser traduzido e compreendido sem um meio sensual, este nunca conseguiria traduzi-lo só por si. O verdadeiro meio intersubjectivo é significado no seu sentido próprio que difere de, e é mais compreensivo do que, a definição popular corrente de significado.
77
Sociologia do Conhecimento
tal como
as encontramos em conexão com as primeiras representa-
ções dos cegos e dos deficientes, mesmo na esfera mais facilmente compreensível do objecto de estudo. Esta dificuldade não nos pode, no entanto, conduzir ao cepticismo
por princípio; tudo o que
podemos concluir daqui é que o significado objectivo querido só é apreciável pela investigação histórica factual, i.e. que na sua investigação temos de empregar os mesmos métodos que usamos no inquérito factual histórico. Que o significado expressivo querido não permanece inacessível (como pode ser bem o caso da escultura
negra) é o que resulta em alguma medida daqueles períodos e cul-
turas que estão em continuidade de história com a nossa. A própria estrutura histórica da consciência garante que pode ser possivel uma compreensão do significado querido mesmo em relação a trabalhos remotos no tempo, pela razão de que o raio de emoções e experiências disponíveis numa certa época não é, de modo algum, ilimitado a arbitrário. Estas formas de experiência nascem de, e são moldadas a partir de, uma sociedade que ou retém formas previamente
existentes ou as transforma
de um modo que o histo-
riador as pode observar. Porque a consciência histórica pode contactar com os trabalhos do passado desta forma, o historiador sente-se cada vez mais à vontade no «clima mental» do trabalho cujo conteúdo expressivo ele tenta compreender; assim ele segura a base sobre a qual o conteúdo específico do trabalho, a contribuição única
do
indivíduo
artista, se revelará em
pormenor.
Esta análise
do significado «objectivo» e «expressivo», e do modo como se apresenta pelo assunto e pela forma, está completa de modo a possibilitar-nos uma compreensão mais clara do significado «documental», sobre o qual nos debruçaremos de seguida. A incorporação e a projecção quer do significado «objectivo» quer do significado «expressivo» é objecto de um esforço consciente para o artista. Pelo contrário, a terceira dimensão do significado — o significado documental — não é um objecto intencional para
ele. Só para o receptor, o espectador
pode
tornar-se um
ob-
jecto intencional. Do ponto de vista da actividade do artista, é um derivado inconsciente, totalmente não intencional.
78
Sobre a interpretação da Weltanschauung
Enquanto que a interpretação objectiva se preocupa em compreender um complexo de significado completamente auto-suficiente, penetrando a «representação» do objecto e também a «forma» do meio, que se retira só do trabalho enquanto tal, como vimos, O significado expressivo aponta para além do trabalho e exige uma análise da corrente de experiência psíquica do artista. Agora o significado documental aproxima-se do significado expressivo por nos pedir constantemente que olhemos para além da obra; aqui também, estamos preocupados com o homem para lá da obra — mas de um modo inteiramente diferente. O significado expressivo tem que ver com um cruzamento da corrente de experiência do indivíduo, com a exploração de um processo psíquico que tem lugar em certa altura; o significado documental, por outro lado, é
uma questão, não de um processo temporal em que certas experiências
se
realizam,
mas
do
carácter,
da
natureza
essencial,
do
«ethos» do objecto que se manifesta na criação artística. A melhor maneira de tornar clara esta diferença é imaginarmo-nos partilhando a vida do artista, passando cada minuto de vida com ele, tomando parte dos seus estados de espírito e de cada desejo seu — tudo isto sem nos incomodarmos com a documentação. Neste caso, compreenderíamos o trabalho do artista numa dimensão «expressiva» e teríamos uma imagem mais ou menos adequada da sua corrente de experiência da qual seríamos parceiros — e contudo,
escapar-nos-ia a personalidade
do artista, a sua Wel-
tanschauung o seu ethos. E por seu turno, outro analista com pouca familiaridade com o trabalho e a obra do artista, mas com um sentido documental agudo, poderia construir com o pouco material factual à sua disposição uma caracterização completa da personalidade e visão do artista, não no sentido psicológico, mas no sentido cultural.
O significado documental também se alcança através de «objectivações» — o que é «característico» no significado documental também pode ser compreendido a partir do modo como o assunto
é seleccionado meio.
e representado
E, contudo,
em
muitos
e pelo modo
aspectos
como se apresenta o
essenciais, as coisas não se
79
Sociologia do Conhecimento
passam assim no significado expressivo. Os significados documental e expressivo são semelhantes no facto de pressuporem um estrato objectivo de significado sobre o qual se constróiem o significado expressivo e objectivo. Mas enquanto o significado expressivo não pode ser compreendido sem tomar em consideração todo o conteúdo do significado objectivo, isto é, por outras palavras, enquanto o significado expressivo se funda sobre o significado objectivo como um todo integral, o significado documental pode ser atingido sem considerar o trabalho no seu todo; na verdade, qualquer aspecto parcial de um trabalho, como o tratamento característico de uma linha, de uma estrutura espacial (1) ou uma composição de cor pode revelar o significado documental: não há necessidade de tomar só em consideração partes concretas, verdadeiras da obra. O significado expressivo está intimamente conexionado com o complexo unitário, integrado no significado objectivo; o signi-
(1) Um
bom exemplo de anáslise documental desta natureza, recolhendo pro-
vas documentais Max
Dvorák
a partir de pequenos detalhes, é-nos dado
(«Úber
Greco
und
Kunstgeschichte, vol. | (XV),
den
Manierismus»,
1921/22)
publ.
por um
artigo de
in Jahrbuch
fir
de onde retiro as seguintes considera-
ções âcerca do «Funeral of Count Orgaz» de El Greco; «Desaparecida toda a organização espacial sólida desde Giotto o fundador sacrossanto de toda a representação
pictórica.
quem
o poderá
vesse
estado
O
espaço
ter-seá
alargado?
Ter-se-á
aprofundado?
saber? As figuras ligam-se umas às outras como se o
desajeitadamente
entre
elas.
Contudo,
ao
mesmo
—
artista titempo,
a
trémula luz e a féerie no alto dão-nos impressão de um desenvolvimento infinito. O princípio subjacente à composição é antigo e simples, e foi muitas
vezes usado nos retratos de assumpção. No entanto como o seu significado foi alterado, apenas porque o pintor curtou nada se vê do chão, e as figuras parecem
as figuras na frente e, portanto,
nascer de um ponto qualquer como
se fosse magia...» (p. 24; itálicos meus). A uma exposição da camada de significado objectivo na modelação quer do assunto quer do meio tal que lhe corresponde.
80
segue-se uma especificação do significado documen-
Sobre a interpretação da Weltanschauung
ficado documental pode encontrar-se em aspectos parciais destacáveis. Agora que já compreendemos o significado documental de uma fase do trabalho, precisamos ainda de mais pormenores para con seguirmos uma caracterização do homem para lá de toda a obra. Não procuraremos estes pormenores numa única obra ou num único campo de objectivação. Teremos que cobrir todas as realizações comparáveis do mesmo produtor, como se por assim dizer, o víssemos tomar forma ante nossos olhos. Esta confrontação entre as várias partes de testemunhos não é, no entanto, uma questão de simples adição, como se um item de testemunho fosse parte do todo que procuramos, um todo que só pode ser reunido através da recolha, aqui e ali de pedaços de sentido. Este facto peculiar é
o de, na verdade, num certo sentido um único item de testemunho
documental mais
além,
dar uma caracterização completa do assunto; se vamos
é só
para
corrobar
exemplos
que abrangem
o mesmo
significado documental num modo «homólogo», e não para acrescentar um fragmento a outros. Além disso, qualquer significado documental que descobrimos pela análise de um aspecto parcial do trabalho só pode ser corrobado por outros items de testemunho documental; nem a análise expressiva nem a objectiva podem corroborar
a interpretação
documental
enquanto
tal. Devemos
reali-
zar uma nova espécie de acto intencional, que corresponda a esta nova espécie de objecto intencional que o significado documental é, de forma a separá-lo dos significados objectivos e expressivos que com ele andam associados. E ficaremos a final com a impressão de que se retirou o significado documental comum de um largo complexo de significados objectivos e expressivos. Esta procura de significado documental, de um modelo idêntico, homólogo subjacente a uma grande variedade de realizações de significado totalmente diferentes, pertence a uma classe aparte que não pode ser confundida com a simples adição ou síntese ou com a mera abstracção de uma
propriedade comum
partilhada por vários objectos.
É alguma coisa àparte porque a junção de diferentes objectos e também a existência de alguma coisa idêntico penetrando todo um 81
Sociologia do Conhecimento
grupo de diferenças é específico de um domínio de significado e intenção e não deve ser contaminado por metáforas que se derivam,
pelo
menos
em
parte, do trabalho
de uma
imaginação
espa-
cial e manipulatória. A afirmação de Riegel de que os assim chamados ornamentos «negativos» que apareceram na arte decorativa romana dos últimos tempos manifestam os mesmos «motivos artísticos» da arquitectura do período e a sua análise deste «motivo artístico», feita em termos tão latos que abrange certas analogias com sistemas filosóficos da mesma época, são bons exemplos de aproximação documental. Neste caso, o analista conseguiu, através do exame de um procedimento aparentemente insignificante empregado no tratamento do meio material, por o dedo em algo tão característico que possibilitou
de acordo
com o seu palpite, trazer à luz os traços formais res-
pectivos de outros campos da actividade criativa directamente relevantes para a visão do período. Neste exemplo, o significado documental é retirado da modelação do meio, mas é claro que também pode ser retirado do tratamento do objecto; cada dimensão do estrato objectivo de significado pode tornar-se relevante para a interpretação documental se formos capazes de discernir a sua importância documental. E não só o significado objectivo mas também
o expressivo
podem
ser explorados para
intenções documen-
tais, i.e. para permitir explorações do que é culturalmente característico. O procedimento radical, que é, no entanto, muito aplicado na prática, pode ser aqui sintetizado brevemente. Consiste ele em tomar as declarações teóricas, as confissões estéticas de fé, que os artistas fazem para explicar os seus objectivos formais ou expressivos; estas podem ser sempre exploradas para a interpretação documental. Esta interpretação «documental» de uma Ars poetica ou de uma teoria estética lançada por um artista, não consiste, no entanto, no mero tratar destas declarações como reflexões autênticas da personalidade artística do autor, do seu «motivo artístico»,
ou do «espírito» da sua época. O que precisamos de perguntar não é se a sua teoria está correcta, nem qual é o seu «significado» intencional. Em vez disso, devemos ir para além desta interpretação
82
Sociologia do Conhecimento
Por conseguinte, cometeríamos grave erro metodológico se só equacionássemos este objecto cultural (que foi definido como mera contrapartida de uma generalização cultural objectiva) com objectos colectivos empíricos definidos com base em categorias antropológicas ou sociológicas, tais como a raça ou a classe. E por (cont.) respeito à análise estrutural, o objecto supostamente real da interpretação expressiva está ao mesmo nível do objecto supostamente irreal da interpretação documental e pode igualmente ser resolvido através de relações de sentido. Por conseguinte, se ele é no entanto posicionado como «real», tem de haver uma outra experiência dele que não seja relativa ao sentido mas que seja no seu todo ontológica e imediata; a sua existência psíquica deve de algum modo ser-nos acessível sem ser mediata por manifestações objectiva-
interpretáveis ou
mente
por manifestações de experiências subjectivas que
estão igualmente abertas a interpretação de sentido. Uma experiência ontológica desta natureza em atenção ao objecto da Weltanschauung é professada
por aqueles que o teriam postulado como um objecto metafísico. E assim, quando Hegel ou Lukács falam de «espírito» não pensam já nele como um o faria aquele que ao falar de Goethe, comunga,
metodológico como
produto
através dos seus trabalhos não só com a sua «essência ideal», mas também com a sua realidade ôntica. Podemos tomar duas posições diferentes sobre o modo como se nos apresentam e como são constituídas outras personalidades. A primeira reduz todo o conhecimento da outra personalidade a configurações de sentido, e defende que só podemos
aceder à realidade física do outro através da mediação
da irrealidade inteligível (geistig); Eduard Spranger (op. cit. e Lebensformen, Halle, 1921) inclina-se para esta opinião. Por seu turno, a segunda posição reduz
todo
ôntica,
o conhecimento
esquecendo
a esfera
do
outro
a actos
supra-psíquica
intuitivos dirigidos de sentido
como
à realidade
qualquer coisa
que pode ser separada da corrente concreta de consciência; esta a opinião defendida por Scheller (Uber den Grund zur Annahme des fremden Ich, um suplemento de Phenomenologie und Theorie der Sympathiegefúhle von Liebe und Hass, Halle, 1913).
De uma vez por todas, a verdade parece estar a meio caminho entre estes extremos. A compreensão do outro deve partir de configurações de sentido
84
Sobre a interpretação da Weltanschauung
«imanente» e devemos tratar a confissão teórica como confissão:
como testemunho documental de alguma coisa extra-físico, do «motivo artístico» objectivo como uma força directriz, tal como o médico tomará o auto-diagnóstico de um dos seus pacientes mais como sintomas do que uma correcta identificação da sua doença. Todas estas tentativas na interpretação documental reunem os elementos dispersos do significado documental, envolvendo conceitos gerais que têm sido variamente designados como «moti-
vo artístico»(1) (Riegl), «ethos económico» («Wirtschaftgesinnung») (Sombart), «Weltanschauung» (Dilthey e outros), ou «espírito»
(Max Weber e outros), dependendo dos campos culturais explorados. Podemos também definir, como contrapartida subjectiva de tais generalizações culturais objectivas, o objecto histórico correspondente; em alguns casos, este objecto identifica-se pelo nome de uma pessoa ou colectividade histórica, tal como quando falamos do espírito Shakesperiano, Goethiano, ou do espírito clássico. Tais
expressões no entanto, porque o que queremos mo pessoas reais, mas a mem. O termo espírito porque não sugere um
lo (2).
são sempre usados de um modo oblíquo, significar não é Shakespeare ou Goethe coessência ideal em que as suas obras se resu«clássico» é menos ilusório a este respeito grupo empírico existente como seu veícu-
(1) Cf. Erwin Panofsky, «der Begriff des Kunstwollens» (publ. no Zeitschrift fúir Aesthetik und allgemeine Kunswissenschaft, vol. XIV, nº 4) onde uma análise do conceito de «motivo artístico» de Riegel revela uma compreensão clara do que aqui se define como significado documental.
(2) Podemos
perguntar-nos
cia se pressupõe
se o assim chamado objecto «real» cuja existên-
na análise intencional
não se revelará como
uma ficção, um
mero ponto de referência de configurações de sentido, quando lhe aplicamos este supõe
método
da
do outro
vista da
análise
«análise
estrutural»
eu se dissolverá em estrutural,
de tal forma
que
a «realidade» que se
meras relações de sentido. Do
nada há que possa evitar isto, porque
ponto de no que diz
83
Sobre a interpretação da Weltanschauung
esta razão, nenhuma interpretação documental desta natureza pode ser atacada pela prova de que o autor de uma obra pertence por descendência ou em termos de status a uma raça ou classe diferente da cuja «espírito» se diz estar exemplificado na obra. A nossa formulação mostra que não renunciamos a uma investigação da «raça» como
problema histórico-cultural, ou da «classe» como um
problema de sociologia cultural; decerto que ambos os tópicos designam problemas que merecem ser resolvidos; o que queremos é apontar certas implicações metodológicas que se aplicam a estas linhas de investigação. As investigações desta natureza utilizam duas séries de conceitos que o investigador deve rigorosamente manter
separados;
rizado em
por
um
lado, o objecto colectivo será caracte-
termos de relação com a interpretação documental
de
(cont.) Não pode, no entanto, terminar aqui, a não ser que tomemos o «significado»
num
sentido mais lato do que o usual. Até agora, o domínio do signi-
ficado foi tomado
só no âmbito do teórico; ou, pelo menos, se lhe queremos
atribuir uma construção muito lata, naquele conjunto de fenómenos que designamos pelo termo «significado objectivo». Assim, ninguém tomou os fenómenos
«expressivos»
lembrar
no
entanto,
e «documenta!» que
se algum
como
acesso
fenómenos é possível
de sentido. Devemos
ao outro objecto, só o
é através destas dimensões de sentido. É impossível compreender como um objecto se constitui fora do significado objectivo. Mas mesmo se acrescentamos estes três níveis de significado, não conseguiremos ainda compreender o outro
como
«empatia»
um
psíquico existente. As conclusões retiradas por analogia ou
são expedientes
muito conclusivamente.
=.
num
acto
de
intuição
inteiramente
inadequados,
como
Scheler provou
O postulado existencial de um outro real baseia-se imediato:
quando
olho
os olhos de alguém, vejo não
apenas os seus olhos mas também a existência da sua alma. Como
e em
que nível epistemológico esta apreensão do ser tem
lugar,
se está sempre associada a um acto de interpretação de sentido ou se pode ser
completada através de comunhão ôntica directa, são questões de que não nos ocuparemos
aqui, já que o nosso tópico não é o problema da realidade em to-
das as suas ramificações.
85
Sociologia do Conhecimento
um produto cultural; e, por outro lado, obteremos objectos colectivos de diferente natureza ao usarmos as categorias de ciências como a antropologia e a sociologia que formam os seus conceitos de um modo totalmente diferente. (O conceito de classe, por exemplo, define-se em termos de papel individual no processo económico de produção, e o de raça em termos de relações puramente biológicas). Entre estas duas espécies de objecto — o objecto do espírito colectivo, derivado da interpretação de objectivações culturais, e o objecto antropológico ou sociológico — a discrepância devida à sua origem heterogénea é tão grande que parece absolutamente imperativo interpolar um campo intermédio de conceitos capazes de
mediar
estes dois
extremos.
Esta pode
ser a tarefa na solução
da qual a psicologia cultural interpretativa (geisteswissenschaftliche Psychologie) iniciada por Dilthey encontrará a sua aplicação mais frutífera. Dois estudos importantes exemplificando esta aproximação foram publicados recentemente (1). Regressando à distinção entre interpretação documental e expressiva: os dois tipos de objecto que estudamos trouxeram-lhe uma lufada de ar fresco. Quer na interpretação documental, quer na interpretação expressiva de uma obra, podemos considerar os «objectos colectivos» para lá do trabalho; mas é imediatamente aparente que o objecto colectivo que nos referimos num caso, não é o mesmo a que nos referimos no outro. Porque só podemos atribuir significado expressivo a um objecto real ou à sua corrente de consciência, só podemos elaborar o «significado expressivo» de um grupo de um modo estritamente nominalista como o significado tomado pela média dos membros individuais do grupo. A caracterização do grupo à luz de uma aproximação documental é, no entanto um assunto diferente; para os objectivos de tal caracterização, podemos muito bem servir-nos dos objectos colectivos que
(1) Cf. Karl Jaspers, Psychologie der Weltanschauungen, Berlin, 1919. Eduard Spranger, Lebensformen, geisteswissenschaftliche Psychologie und Ethik der Personalichkeit, Halle, 1921.
86
o
Sobre a interpretação da Weltanschauung
são construções puras e cujo valor cognitivo consiste meramente no facto de servirem como contraparte subjectiva às unidades caracteriológicas sugeridas pela interpretação documental. Finalmente, gostaríamos de mencionar um outro aspecto em que estes 3 tipos de interpretação diferem essencialmente uns dos outros — uma diferença que, embora não derive directamente do diferente modo de «obtenção» dos três significados pode em última análise ser traçada a partir dele. Ao contrário dos dois outros tipos de interpretação, a interpretação documental tem a peculiaridade de dever ser renovada em cada período e de cada interpretação ser profundamente influenciada pela localização na corrente histórica da qual o intérprete tenta reconstruir o espírito de uma época passada. É bem sabido que o espírito helénico ou Shakespeariano se apresenta sob diferentes aspectos em diferentes gerações. No entanto, isto não quer dizer que o conhecimento desta natureza é relativo e, por conseguinte, sem valor. O que quer dizer é que o tipo de conhecimento conseguido pelas ciências naturais difere fundamentalmente do conhecimento histórico — tentaremos alcançar o significado e a estrutura da compreensão histórica na sua especificidade, e não rejeitá-lo porque não está em conformidade com os critérios de verdade positivistas sancionados pelas ciências naturais. Para compreendermos o «espírito» de uma época, temos de atender ao nosso próprio «espírito» — só a substância pode compreender a substância. Uma época pode estar mais próxima em essência de uma era particular do que outra, e a que está mais próxima será aquela cuja interpretação prevalecerá. Na compreensão histórica, a natureza do objecto tem um peso essencial no conteúdo
do conhecimento,
e alguns aspectos
do objecto
a inter-
pretar só são acessíveis a certos tipos de raciocínio — a razão de ser de tal facto é precisamente o da compreensão histórica não ser intemporal como o conhecimento matemático ou científico, mas antes em
xão
si mesmo
filosófica. Um
mente
diferente
da
moldada
pelo processo
histórico na auto-refle-
único exemplo: temos uma personalidade
dos
nossos
imagem completa-
pais
consoante
te-
87
Sociologia do Conhecimento
mos 10, 20, 30, 40 ou 50 anos de idade, mas isto não quer dizer que não existia «a» personalidade ou «o» carácter dos nossos pais; isto só quer dizer que
a cada
nível etário compreendemos o traço
ou aspecto de carácter que é acessível a esse nível e que a caracterização
que
tem
a melhor
oportunidade
de
ser tomada
como
a
mais «compreensiva» (e não como a mais «objectivamente correcta») é aquela a que se chega quando o intérprete tem a mesma idade da pessoa caracterizada. Tal como admitimos isto, temos também de admitir que o processo temporal de compreensão histórica, que não acrescenta um item de conhecimento a um outro masreor
ganiza toda a imagem à volta de um novo centro em cada época,
tem um valor cognitivo positivo — sendo este tipo de conhecimen-
to, na verdade, o único em que um objecto dinamicamente mutável pode dar lugar a um assunto dinamicamente mutável. Isto não quer dizer, no entanto, que toda a interpretação do-
cumental faça a mesma exigência de aceitação. Por um lado, há um critério imanente e formal pelo qual as interpretações documentais devem cobrir todo o domínio de manifestações culturais de uma época, acomodando cada fenómeno particular sem excepção ou contradição, e por outro lado, os produtos culturais que consideramos do ponto de vista documental sempre impõem ou excluem certas interpretações, pelo que sempre temos algum controlo. Se dispomos de várias interpretações diferentes de uma época, estando todas correctas neste sentido, só podemos perguntar qual delas é mais adequada, i.e. qual revela maior riqueza, maior afinidade
substancial com
o objecto. Quando deparamos com
uma
aparente contradição entre as interpretações correctas de uma determinada época ou Weltanschauung, mantidas por diferentes gerações de intérpretes, o que devemos fazer é traduzir as interpretações menos adequadas (mas ainda correctas) na linguagem das interpretações mais adequadas. Deste modo, a imagem obtida na primeira interpretação ainda inadequada será «suspensa» na dupla acepção hegeliana deste termo — isto é, o primeiro centro organizador da interpretação será desactivado, mas o que estava incompletamente compreendido será preservado no novo centro de orga-
88
adia
Sobre a interpretação da Weltanschauung
nização. Nem a interpretação objectiva, nem a expressiva revelam este carácter dinâmico. Para ser mais claro, é igualmente necessária para uma interpretação objectiva e expressiva uma preparação histórica: não podemos compreender correctamente o significado objectivo sem explorarmos os antecedentes históricos do aparecimento de certas formas e não podemos compreender o significado expressivo
sem
estarmos
familiarizados
com
o
desenvolvimento
histórico de certas tendências psicológicas. Mas uma vez realizada esta preparação, as conclusões são simplesmente ou falsas ou verdadeiras, sem qualquer ambiguidade «dialéctica» (tal como a exemplificada pelo termo hegeliano «suspensão»). Podemos descrever a composição de uma pintura correcta ou incorrectamente, podemos ou não fazer justiça a elementos puramente visuais de uma
pintura,
podemos
ou
não
representar o conteúdo
emocional
de uma obra — porque tudo o que este tem de conhecer é o que já está na obra — mas o «espírito» ou a visão global de uma época é alguma coisa que o sujeito intérprete não pode compreender sem regressar à sua «substância» histórica, o que é a razão porque a história das interpretações documentais das idades anteriores é, ao mesmo tempo, uma história da interpretação dos próprios sujeitos.
(1) Na discussão anterior, as expressões significado «expressivo» e significado «intencional» foram usadas como sinónimos. A falta de diferenciação entre estes dois conceitos não pode levar a confusão a este nível de investigação, já
que o significado «expressivo» é sempre significado «intencional» e pode ser compreendido de, no entanto,
como tal. O significado que não é de natureza «expressiva» poser «intencional»,
i.e. querido
pelo sujeito como um objecto
intencional. A
«intencionalidade»
pertence a uma
dimensão
inteiramente diferente
dos três tipos de significado distinguidos acima. A contrapartida do significado «intencional» (i.e. querido pelo sujeito deste modo particular) é o signifi-
cado «adequado» de uma objectivação cultural que pode ser inerente ao último e pode ser compreendida como tal por um observador exterior mesmo se o autor da objectivação
cultural
não a admite conscientemente.
O realizador
89
Sociologia do Conhecimento
V. A ESTRUTURA PRE-TEÓRICA DOS PRODUTOS CULTURAIS
Na análise anterior, distinguimos três estratos de significado em todo o produto cultural. Não devemos esquecer, no entanto, que os três estratos que separamos no nosso relatório puramente abstracto só adquirem a sua identidade separada, a sua estratificação
clara
no quadro
de uma
teoria i.e. uma
teoria interpretativa.
Pode muito bem acontecer que seja só a reflexão que introduza esta estrutura analítica estratificada no objecto que em si mesmo é homogéneo, não estratificado; e que no objecto imediatamente determinado, pré-teórico não se encontra nada que corresponda
aos três estratos.
Este aspecto apela a uma consideração dos produtos culturais
tal
como
eles
são
dados
imediatamente,
ainda
estranhos,
tanto
quanto possível, a qualquer teorização. O produto cultural moná-
(cont.) pode não compreender — o que muito frequentemente acontece — o significado adequado da sua obra e então há uma separação entre estas duas espécies de significado. A distinção entre significado «intencional» e «adequado» corresponde à distinção que Max Weber faz entre significado «real» e «correcto» (Wirtschaft und Geselischaft, pt. HI, sect. |, p. 1 ff.).
Esta alternativa apresenta, contudo, pouco peso no nosso assunto. Podemos,
se o quisermos, aplicar esta distinção aos termos da nossa classificação
de significados e ver que termo nos permite diferenciar entre significado «intencional» e «adequado». Obteremos então: (1) o significado objectivo intencional e o adequado; (2) o significado intencional expressivo; (3) o significado documental adequado (possivelmente reconhecido pelo autor a obra interpretada como documento). Assim,
não importa para o significado objectivo se é intencional ou não;
o significado significado
expressivo
documental
autor do documento.
90
pode não
ser compreendido
como
intencional; e para o
é essencial se ele é ou não «intencional»
para o
Sobre a interpretação da Weltanschauung
dico apresenta-se
sempre
simultaneamente
em
termos de significa-
do objectivo, expressivo e documental? Será mesmo permitido falar a este nível de «elementos», «fragmentos de significado» que podem ser utilizados em várias direcções? E mais: Que espécie de coisa é este significado expressivo? Aparece no produto cultural do mesmo modo como o significado objectivo e, a este propósito; pode ser devidamente designado por significado? Não podemos fugir a estas questões e elas exigem uma caracterização dos produtos culturais na sua forma a-teórica, tal como se apresentam quando as compreendemos adequadamente como objectos de valor na aproximação imediata, irreflectida. As questões desta natureza ainda se preocupam com a forma. O produto cultural tomado na
sua imediaticidade também
tem uma estrutura, sendo difícil des-
crevê-la sistematicamente. Tentemos, então, desenvolver, ainda que de um modo fragmentário, alguns dos traços característicos desta estrutura imediatamente determinada.
1. Em primeiro lugar: Um produto cultural na sua apreensão imediata não se apresenta numa forma estratificada. Numa pin-
tura, o objecto, a forma visual, o significado expressivo e a importância documental apresentam-se-nos imediatamente e em conjunto. As notas e os intervalos de uma composição musical revelam simultaneamente
harmónica
cado
uma
forma
estética,
uma
estrutura
melódica
(significado objectivo), e conteúdo emocional
expressivo),
e o particular
«ethos
musical»
do
e
(signifi-
compositor
(significado documental). A questão que se levanta é a de saber se a estratificação estrutural é reconhecível com esta simultaneidade psicológica. Não pode acontecer que a mesma combinação acústica de sons contenha vários significados ao mesmo tempo, seja acompanhada por várias formas desde o início? Alguns dirão que só o significado objectivo (i.e. a melodia, a harmonia, o ritmo, etc.) está realmente presente, enquanto que o «espírito» e o «ethos» são
introduzidos
do
exterior,
associados
e acrescentados,
de
tal
forma que não podem ser considerados como «estratos de sentido» autónomos. Mas de acordo com este raciocínio, a melodia também
91
Sociologia do Conhecimento
deveria ser tomada como algo que se acrescenta e não como algo que é realmente dado. Porque uma canção é mais do que os tons
isolados e a sua sequência temporal. A melodia é um factor co-
municante de sentido nos vários sons e intervalos que se sobrepõe ao conteúdo puramente acústico e que os define como um fenómeno estético. Mas o «espírito», o conteúdo emocional por seu turno, é também
um
factor comunicante
de sentido exactamente
da
mesma forma em virtude do qual, cada nota individual se torna em alguma coisa que está para além e acima do que seria se só a
síntese da melodia lhe desse forma.
2. A tendência geral para considerar o conteúdo expressivo como
algo
que é associado,
um
resíduo
introduzido
de fora, é explicada
pela
relutância geral para o compreender como um «significado». O que fica depois da abstracção dos elementos puramente musicais (organização acústica) de uma melodia, de uma música,o que fica de uma pintura depois de lhe retirarmos o seu significado objectivo,
é
usualmente
designado
como
o
«espírito»,
a
«atmosfera», o «tom geral da experiência», etc.. Negligenciamos, no entanto, o elemento da «forma» ou do «significado» neste tom emocional — uma forma que certamente ali está apesar de a não podermos definir conceitualmente. Uma das razões porque o teórico da cultura tende a deixar escapar estas coisas é o facto de possuir só alguns termos para designar conteúdos desta natureza. O uso indiscriminado da palavra «sentimento» para nada e para tudo a partir do qual não construimos nenhuma imagem, acaba por dar a entender que os produtos artísticos e culturais apenas podem traduzir vagos sentimentos e emoções. Na realidade, podemos distinguir mais sombras de significados expressivos e documentais do que os que podemos distinguir
através de conceitos teóricos. Podemos distinguir a atmosfera vital num
trabalho
de
Mozart
e Beethoven,
apesar de ainda não estar-
mos em condições de formular esta diferença teoricamente. Assim, mesmo onde os conceitos falham, podem ainda restar distinções não teóricas de significado, e podemos saber como elaborar estas
92
Sobre a interpretação da Weltanschauung
distinções numa intuição estética adequada. Um exemplo mostrará que a «atmosfera vital» de uma obra de arte não é apenas um estado subjectivo inarticulado, mas invariavelmente um significado rigidamente definido, mesmo se não temos nenhum conceito que o define teoricamente. A «sentimentalidade» é uma forma de experiência que muitas vezes se confunde com o significado expressivo. Frequentemente,
um
significado objectivo (ex: uma
pintura)
é acompanhada
de
uma dimensão subjectiva por uma propriedade que podemos designar por «sentimentalismo». Esta «sentimentalidade» estava presente e era discernível mesmo antes do conceito ter aparecido — e certos gestos, certas representações
pictóricas
e certos motivos
revelam-no
irrecusavel-
mente, de tal forma que claramente se diferenciava de outras características emocionais semelhantes, como a tristeza ou a melancolia. Num período anterior, contudo, este modelo subjectivo de experiência ainda não tinha aparecido; Não só faltava o conceito enquanto tal, mas mesmo a forma não teórica, intuitiva de experiência não estava presente. Ao discutirmos trabalhos deste período, não podemos falar de sentimentalidade mesmo num sentido pré-teórico. Naquele tempo, a sentimentalidade não podia ser experimentada enquanto tal; e se uma pessoa experimentava um estado mental desta natureza, não o podia identificar como uma espécie distinta de emoção — e muito menos interpretar nestes termos as manifestações das outras pessoas. Uma experiência como refe-
a
rência
ao
mundo
interior só pode
assumir
um
carácter específico
se contraposta à corrente indiferenciada de experiência que um indivíduo compreende como significado (embora não necessariamente significado teórico). Afastada da mera corrente de estados subjectivos, dirigidos a algo objectivo — isto é o que torna um significado um significado, quer pertença ao subjectivo ou ao objectivo, ao teoricamente definido ou à variedade não teórica. Devemos reconhecer esta esfera de significado não teórico como alguma coisa de intermédio entre a teoria e a intuição, se não quisermos considerar tudo o que é não teórico como intuitivo e irracional; entre os esta-
93
Sociologia do Conhecimento
dos permanentes meramente físicos que na verdade são irracionais, eo reino do significado teórico, temos toda esta faixa de modelos não teóricos, mas significativos de experiência. Uma grande parte do significado expressivo e documental pertence a esta esfera, e está aberta à compreensão mesmo quando ainda faltam os conceitos respectivos. No decurso da evolução, cada vez mais se criam conceitos para designar conteúdos desta natureza, pelo que em 1º lugar se definiu num sentido não teórico se torna mais tarde também conceitualmente identificável. De qualquer forma, é totalmente inadmissível fixar a origem de uma forma de experiência no momento em que o conceito definidor se formou. 3. O domínio
do significado tem, no entanto,
uma
extensão
mais larga do que a que é dada pelo significado teórico juntamente com o reino do significado não teórico representados pelos produtos culturais, pela tradição oficial e académica. Há uma cultura subjacente
que
também
é significativa
nesta estrutura; opondo-se
ao mero fluxo, pode tornar-se um objecto intencional, pode ser apresentado e é «irreal segundo o método do significado» — e por esta razão, não pode ainda ser identificado com o mundo irracional dos seres. Este é o mundo dos modelos de experiência (como por exemplo, para citar alguns para os quais já arranjamos uma designação: ressentimento,
melancolia, acedia espírito do fim
do sé-
culo, o que foi designado por o «númeno», etc.);e estes só porque têm uma história cultural própria, e não são meros acontecimentos subjectivos na vida, têm sem dúvida nenhuma, significado e surgem no desenrolar da vida como entidades significativas. (A dor como um estado vegetativo em que vivemos, não tem história; sentimentalmente, por outro lado, de certeza que o tem). Só nos encontrano reino do radicalmente
mos
dizer
sem sentido, do totalmente irracio-
nal, quando abandonamos todas as experiências formadas, quando reagimos num acto que não tem nenhum significado aparente, quando atingimos a região opaca do desorganizador. Só isto podeque
não
«compreendemos»
em
nenhum
dos
sentidos
da palavra. Vivemos nestes actos que nos acompanham, que possi94
e
ua
|
foi mencionada; e a de toda a Weltansjáes Uma das dificuldad
'hauung (a que é documentada) se situar para lá das objectivações c ulturais e de não ser abrangidas por nenhuma das esferas culturais por si só. Por conseguinte, temos de cobrir todas as esferas culturais, temos de comparar as várias objectivações pela mesma série
de critérios documentais.
A nossa primeira tarefa é, então, a de desenvolver os conceitos aplicáveis (num sistema coerente) a toda a esfera de actividade cultural semelhante, conceitos estes que tornem possível levantar questões significativas relativas tanto à arte como à literatura, à filosofia como à ideologia política, e assim por diante. Um segundo obstáculo para um estudo comparativo da cultura é o facto da cultura se situar num processo de evolução histórica de tal forma que os conceitos que usamos na comparação dos vários campos de actividade cultural na intersecção moderna possam também servir os objectivos de uma análise «longitudinal» de estádios temporais sucessivos. Por outras palavras, podemos formular uma questão «primordial» e definir os conceitos para o seu
tratamento de forma que seja possível estabelecer, por assim dizer, intersecção em duas direcções — uma «através» das várias esferas
de actividade cultural, e outra «através» de sucessivos estádios culturais? E se sim, de onde devem vir esses conceitos: da filosofia, ou
das várias ciências que se ocupam da arte, da religião, etc? Porque a imagem teórica obtida, na verdade, variará, de acordo com a dis-
ciplina a que pedimos estes conceitos-chave usados na comparação.
Examinaremos agora os princípios metodológicos que inspiraram certas tentativas de elaboração de uma síntese histórica a partir destas linhas. A abordagem mais plausível consiste em saber se podemos aplicar certas regularidades e problemas sugeridos pela história da filosofia ao exame de outros campos culturais que não a filosofia. Assim Dilthey, de quem acentuamos acima ter sido o pioneiro ao chamar a atenção para os aspectos irracionais da Weltanschauung,
escolheu
o seu
ponto
de partida
na filosofia;e embora revele uma
grande reserva crítica e uma agudeza teórica na caracterização dos
105
vários «modelos de vida» (Lebenssysteme), as categorias que usa ressentem o selo da sua orientação primariamente filosófica. | seus três tipos de Weltanschauung (os sistemas do naturalismo, do idealismo objectivo panteísta e do idealismo subjectivo) só se revelarão úteis se provarem ser proveitosos na análise da história da arte plástica, entre outras coisas. Esta experiência foi ensaiada por um dos seus alunos, Nohl, (1) que habilidosamente reformou estes três tipos de forma a conseguir os três tipos correspondentes no universo visual, levantando a seguinte questão: «Que tipos de formas visuais correspondem às principais variantes do pensamento filosófico?». O método de investigação do autor é cuidadoso e adequado (analisa o assunto pictórico e a forma pictórica separadamente) e é desapontador que as suas conclusões concretas sejam tão exíguas e vagas. A razão para isto deve-se, em primeiro lugar, ao facto de os conceitos derivarem de e sublimarem um campo teórico, a filosofia, e o facto destes conceitos serem adequados ao seu tratamento pouco contribui para a elucidação dos campos a-teóricos (no seu caso, do universo visual). Em segundo lugar, esta análise padece do uso de uma tipologia intemporal, em que os estilos são definidos em relação às várias tentativas de interpretar o universo, concebido como alternativa absolutamente intemporal. Contudo, qualquer estrutura teórica que não admite variação di-
nâmica
(ou até mesmo dialéctica) é necessariamente obrigada a
equacionar produtos das épocas mais distantes, esquecendo assim, precisamente o que é essencial nelas: o papel constitutivo da tem-
poralidade. Quanto mais sentimos que é impossível explicar correctamente a Weltanschauung em termos de filosofia, mais tentadora é a vontade de partir da arte e analisar todos os outros campos da cultura em termos de conceitos derivados do estudo das artes plásticas. O «nível hierárquico» das artes plásticas está mais próximo da esfera do irracional em que estamos interessados; e justifica-se se
(1) Hermann Nohi, Sti/ und Weltanschauung, Jena, 1920.
106
o
Sociologia do Conhecimento
Sociologia do Conhecimento
lógica entre traços como o destaque de figuras individuais, o intervalo como uma entidade de pleno direito, o aparecimento d nicho, o tratamento rítmico da cor e da sombra, a composição de” grupo sem um carácter colectivo, a objectividade, o anonimato, o estereótipo. Dois aspectos deste poderoso esforço para uma síntese têm
interesse para nós: 1) a tentativa de uma construção estritamente
racional e 2) o esforço de retirar as variações significativas das formas maduras de formas originais semelhantemente diferenciadas. Comecemos com o primeiro ponto. O surpreendente tratamento estritamente racionalizante do material é explicado pelo desejo de Riegl de sujeitar os significados documentais encontrados pela intuição à verificação objectiva. A verificação pode ser realizada de dois modos: (1) pela confrontação empírica das hipóteses com o material histórico; (2) pela tentativa de estabelecer os
laços
lógicos
que
relacionam
os vários
fenómenos
sintomáti-
cos, documentais (i. e. o intervalo como uma unidade independente ou o aparecimento do nicho) uns com os outros e com um princípio orientador. No entanto, tal racionalização, devemos lembrá-lo, não tem nada a ver com a dedução lógica das consequências de um princípio teórico porque constantemente pressupõe a faculdade de compreensão do significado documental pré-teórico. Como já dissemos, só podemos usar uma obra de uma época passa-
da como exemplo corroborador de uma hipótese acerca da Weltanschauung na condição de sermos capazes de realizar um acto específico de apreensão de um estrato de significado a-teórico revelado pelo produto em análise que nos ponha em contacto com a sua importância documental. Devemos ter compreendido o significado documental antes de o pôrmos em contacto com outros significados
documentais.
da figura do plano uma
Além
disso, a explicação
horizontal como
um
de
Riegl da separação
exemplo
total tri-dimensionalidade é mais do que uma
do esforço de dedução
pura-
mente teórica. A existência de uma conexão necessária entre estes dois elementos só pode ser «vista», isto é, na nossa terminologia, compreensível, dentro das categorias do «universo visual».
108
Sobre a interpretação da Weltanschauung
não por outra razão, pelo menos por um interesse tipológico, análise de uma teoria da Weltanschauung a partir da arte. Quería-
os mencionar em primeiro lugar o estudo de Riegl que, não re-
cente, representa ainda um desafio metodológico. O objectivo primário de Riegl não é o de caracterizar a perspectiva global de uma época como um todo; ele apenas quer compreender o «motivo» artístico» expresso nos quatro ramos da arte visual. Estes ramos formam uma hierarquia de acordo com o grau de distinção com que ilustram a «lei orientadora» do motivo artístico. À cabeça estão a arquitectura e a arte decorativa que frequentemente exem-
plificam
estas
«leis»
muma
«pureza
quase
matemática»;
temos
assim uma distinção «horizontal» nas manifestações do «motivo artístico» de um período, a que se acrescenta uma diferenciação temporal dos motivos artísticos de períodos sucessivos. A antiguidade como um todo tem o seu princípio dominante, subdividido nos motivos artísticos oriental, clássico e da última antiguidade, sendo cada um rigidamente delimitado. Para ilustrar este método, escolhemos o capítulo V do estudo que trata da relação entre o
motivo
artístico, por
modernas,
por
outro
um lado, e a ciência, a filosofia e a religião
lado, e assim
estende
o motivo
artístico
a
uma espécie de «motivo universal» ou «motivo cultural». Os estádios sucessivos resultantes da observação das formas de arte correspondem a estádios da interpretação religiosa ou filosófica do
mundo. Na sucessão de formas de arte temos (a) as formas indivi-
duais singulares sem síntese, (b) as formas individuais auto-suficientes dispostas em sequência pura e simples, (c) o caminho para uma espacialidade global, tridimensional, obtida pelo sentimento de elevação das figuras individuais. Há estágios paralelos nos outros campos da interpretação do mundo. A arte indica a necessária emergência do pensamento filosófico, religioso e finalmente, remontando à antiguidade, do pensamento mágico, antigo. Todos os estádios se desenvolvem numa sequência estritamente lógica. Assim, todos os trações sintomáticos da Roma Antiga são referidos a um princípio soberano: a espacialidade tri-dimensional. Pelo menos no domínio dos motivos artísticos, há uma estrita conexão
107
Sobre a interpretação da Weltanschauung
Assim, o desenvolvimento quase lógico da exposição de Riegl não s deve iludir. Este tipo de racionalização pressupõe a assim “hamada intuição (neste caso, a capacidade a-teórica de percepção * das correlações fenomenologicamente necessárias no conteúdo puramente visual); e cada passo na «dedução» (na medida em que esta é objectivamente fundada) só pode ser verificado pela referên-
cia a correlações fenomenologicamente necessárias entre unidades
do universo visual. Para tomarmos um exemplo de um diferente campo a-teórico: não podemos explicar em termos de categorias estranhas porque é que a rejeição religiosa do «mundo» pode conduzir quer ao ascetismo, quer ao misticismo (1). Só a forma de «alternativa» é «lógica»; mas para compreendermos porque um e não outro dos caminhos foi escolhido, temos de regressar à expe-
riência religiosa genuína. De um modo semelhante, é só porque vivemos no universo visual com a sua estrutura específica que podemos reconhecer a relação necessária entre «a aspiração para uma espacialidade tridimensional» e «o afastamento do plano horizontal». Sem dúvida nenhuma que é útil mostrar, mesmo sem «racionalização», i.e. sem demonstrar a necessidade de conexão, que o mesmo significado documental é apresentado por objectivações pertencentes
a diferentes
campos.
Mas se ficarmos por aqui esta-
remos ainda longe do verdadeiro conhecimento científico. Partindo de perspectivas metodologicamente úteis (que pecam contudo, por serem infelizmente «profecias» metafísicas da
história), Spengler
(2) quis alargar o esquema original de Riegl
(o «homem euclideano», com o seu mundo corporal sem espaço, como o tipo de antiguidade que luta por sujeitos auto-suficientes)
(1) O exemplo é retirado de Max Weber, Aufsátze zur Religionsoziologie (vol. |, p. 538; Túbingen, 1920) onde se tenta estabelecer uma tipologia racio-
nalizada das várias formas de religião não espirituais.
(2) Oswald Spengler, The Decline of the West (1920), traduzido por C. F. Atkinson, G. Allen & Unwin, 1926-29 (London).
109
Sociologia do Conhecimento
e discernir o modelo elementar em todos os campos da cultura antiga, confrontando-o com a aspiração Faustiana moderna pel, infinito (1). Ao caracterizar os dois modelos primitivos antitét cos de experiência e de criação cultural, Spengler usa os termos básicos «apolínico», «euclideano», «corporal», «não espacial», «ligado», «não-histórico e mítico», «figura pantonímica» por um lado, e «Faustiano», «infinitesimal», «função», «força», «espacial», «desligado», «histórico e genético», «carácter dramático», por outro. Mas a caracterização permanece fragmentária. Pode admitir-se que a análise da Weltanschauung, a intenção de de descobrir alicerces comuns para lá de todas as objectivações, deve sempre recorrer a tais transposições de conceitos e, por exemplo, usar termos retirados das artes plásticas para caracterizar a música do período, e vice versa (2). Por todos os meios tiraremos
partido das possíveis utilizações metafóricas e ambíguas (3) das palavras
de
modo
a formularmos
esta experiência
«sinestética».
(1) CF. W. Sombart, Der modern kapitalismus, 2? ed., vol. |, p. 47. (2) Alguns
exemplos
«o método
contrapontual dos números»,
radicais
em Spengler: «a física barroca de Newton», «a cor protestante e católica», etc..
Deve acrescentar-se que não nos preocupa a exactidão factual das descobertas de Spengler ou de outros autores cujos trabalhos discutimos; apenas nos interessa o procedimento metodológico em causa. (3) Ignora-se muitas vezes que o uso de termos de forma ambígua, i.e. o uso
da mesma palavra em contextos diferentes, é relevante. Se tanto um poço como um som são descritos como «profundos», isto não quer dizer que a categoria
espacial
se aplica
a um dado musical
não espacial, mas que o termo
«profundo» exprime em ambos os casos o mesmo modelo geral «original» da experiência humana que só posteriormente se diferencia em separados modelos espaciais e acústicos. A ambiguidade exprime uma experiência relevante da
linguagem
pré-científica.
ambiguidade é uma
alguns elementos comuns
subjacentes. A
ofensa à inteligência analítica, mas uma
Indica
fonte de ricas
inserções para o estudioso sinteticamente orientado.
110
Sobre a interpretação da Weltanschauung
Tudo isto no entanto, deve ser só um meio, não o fim da investigação. Já que não dispomos de termos para uma descrição fenomenológica dos «modelos originais» de Riegl (aos quais voltaremos dentro em pouco), vamos recorrer de novo a um método especifico que pode ser descrito como a «sublimação» de um conceito (distinto da mera «transposição». «Sublimar» um conceito significa que um termo que originalmente se refere só ao significado objectivo é utilizado para designar o significado documental que a ele anda associado. Por exemplo, o conceito «barroco» é sublimado se, em vez de designar uma categoria puramente visual, estilística, fôr usado para se referir ao «princípio barroco» geral, ao «espírito» do barroco, que só pode ser compreendido por um acto
ido à essência documentada.
usar os termos exactos; devemos também
Mas não é bastante
trabalhar as conexões ne-
cessárias entre os significados «objectivo» e «sublimado», a progressão necessária de um estádio a outro. Esta é precisamente a tarefa heróica que Riegl (cujo trabalho já discutimos resumidamente) tomou a seu cargo; o que nos levanta a segunda dificuldade inerente ao seu método. Riegl procura caracterizar a Weltanschauung como uma entidade global, atribuindo-lhe certas características comuns às várias objectivações. Todas estas tentativas, no entanto,
não conseguem
passar além das análi-
actuais
a partir destes mode-
ses abstractas, formais. Só conseguem iluminar as categoriase formas de experiência relativas a um determinado período, antes de serem totalmente diferenciadas em objectivações, por outras palavras: o que podem estabelecer é uma tipologia dos modelos «iniciais», «originais» da vida mental. Tais realizações não são nem fúteis, nem ineficazes. Mas nunca será possível sentir a riqueza dos significados
corporizados
nas obras
los originais. Esta é a fraqueza comum ao método de Riegl e às tentativas que vimos até agora. Os significados complexos não po-
dem ser correctamente compreendidos ou interpretados em termos
de conceitos elementares. O resíduo comum que nos fica como «princípio básico» da «Weltanschauung de uma época é tão pobre e tão abstracto que nem sugere a riqueza das formas visível nos produtos culturais em si mesmos. 111
Sociologia do Conhecimento
O esboço desta teoria explica porque certos teóricos da Weltanschauung tomam uma posição diferente: aqueles que, inspirados pelo exemplo fascinante de Dilthey, defendem a aproximação histórica e examinam o fenómeno individual em todo o seu pormenor de forma a re-criar a essência de uma época passada em toda a sua variedade multiforme. O primeiro grupo tendeu, pelo menos em
parte,
para
uma
filosofia
historicismo
desejam
historiadores
«sintetizadores»
da
história; os aderentes do último
ser, antes de mais como
historiadores. Penso
em
Dvórak e Max Weber, que, es-
pecialistas num campo específico, têm um sentido forte da história universal que os impele a correlacionar o objecto escolhido com a «constelação total». O problema metodológico com que se debatem estes autores é o de saber se a unidade dos vários campos culturais deve ser expressa em termos de «correspondência», função»,
«causalidade» ou «reciprocidade» (1). Enquanto Dvóraké a favor da «correspondência» e paralelismo, Weber postula a dependência
causal mútua entre os vários domínios da cultura e considera necessário para uma
«análise causal»
correcta que o material econó-
mico possa, às vezes, ser explicado a partir do mental, outras vezes, sempre que necessário, o espiritual a patir do material, com a reserva, no entanto, de nenhum destes domínios ser totalmente dedutível do outro como se fosse simplesmente uma função dele. Weber
pensa que só desta forma podemos estabelecer certas determinantes parciais do processo histórico. O modo de proceder dos historiadores indica claramente que também para eles, o factor que es-
tabelece as conexões necessárias (causalidade, reciprocidade e cor-
respondência) é ainda o coração do problema. O historiador pode ter isolado correctamente um ou o mesmo sintoma «documental» em
vários domínios
culturais; no entanto,
a questão de saber que
conexão deve ser interpolada, tem de ser resolvida à parte. A cate-
(1) Cf. M. Dvorák, Idealismus und Naturalismus in der gotischen Skulptur und Malerei, Munich-Berlin, 1918, pp. 10; Max Weber, Religionssoziologie,
vol. pp. 12ess. 112
Sobre a interpretação da Weltanschauung
goria da casualidade, que largamente domina as explicações das ciências naturais, parece ser a mais adequada a esta tarefa. Mas, mesmo para além da questão de saber o que quer dizer «explicação causal» nas ciências naturais e qual o seu fim, podemos perguntar-nos se referir um fenómeno, não a outro fenómeno, mas a uma «visão» global» para lá de ambos, não constitui um tipo de elucidação que é totalmente diferente da explicação genética-histórica, causal. Se se reserva o termo «explicação» para a última propomos que se chame ao primeiro «interpretação» (Deutung). A teoria da Weltanschauung é mais interpretativa do que explicatória no sentido que acabamos de definir. O que ela faz é tomar qualquer objecto significativo já compreendido na estrutura da referência do significado objectivo e colocá-lo numa outra estrutura de referência, a da Weltanschauung. Ao ser considerado como um seu documento, o objecto é iluminado a partir de uma perspectiva diferente. Por outras palavras: não há uma relação causal entre um documento
e um outro; não podemos explicar um como um produto
causal do outro, mas apenas traçar uma referência de ambos à mesma unidade global da Weltanschauung de que são partes. De um
modo semelhante, quando referimos duas acções de uma pessoa ao mesmo traço de personalidade, não podemos dizer que uma foi
causada pela outra, i.e. dizer que uma gentileza provocou a outra, em vez de dizermos que as duas acções foram provocadas pela mesma gentileza. Portanto, parece que a forma de conexão preferida
por Dvorák, o paralelismo, é a mais adequada, a que lhe melhor se ajusta ao que é pedido (1). Só podemos elaborar uma teoria da Weltanschauung, i.e. um modelo da necessidade de relacionar os dados documentais, não pela causalidade de uma relação ao outro,
(1) Deve acentuar-se, no entanto, que a análise histórica real de Max Weber nem sempre corresponde aos seus preceitos teóricos. Nos seus artigos teóricos,
Weber insiste na explicação causal; nos seus trabalhos históricos, muitas vezes procede de acordo com o método «documental».
113
Sociologia do Conhecimento
mas antes pela inserção de ambos, como partes na mesma totalidade; desintegrando, passo a passo, a importância documental comum contida em ambos. Isto não quer dizer que a explicação causal genético-histórica enquanto tal não tem lugar nas ciências culturais. A interpretação não torna a explicação causal supérflua. Refere-se a algo diferente econsequentemente não há nenhuma rivalidade entre as duas. A interpretação serve para uma compreensão mais profunda dos significados; a explicação causal revela as condições de actualização ou realização de um determinado significado (sobre esta distinção). De qualquer forma não pode haver uma explicação causal, genética de significados, nem mesmo na forma de uma última teoria acrescentada à interpretação. O significado na sua própria essência só pode ser compreendido ou interpretado.
A compreensão é a apreensão adequada de um significado
intencional ou da validade de uma proposição, (o que inclui tanto o estrato
objectivo
como
o estrato
expressivo
do
significado);
a
interpretação significa pôr em correlação mútua os estratos de significado abstractamente distintos e em especial o estrato documental. Na história da arte e nas ciências culturais em geral, os processos que distinguimos tão rigidamente, a explicação causal e a interpretação, aplicar-se-ão ora uma, ora outra (mas não ao mesmo tempo) de forma a permitir uma ideia tanto quanto possível completa da variedade real e da «vitalidade» do processo histórico em questão, embora seja igualmente compensador analisar uma época de um ponto de vista interpretativo.
Ao compararmos os vários caminhos seguidos pela metodologia da investigação histórica na Weltanschauung, assistimos a uma emancipação gradual da metodologia orientada inteiramente para as ciências naturais. A casualidade mecanicista não detém já o do114
Sobre a interpretação da Weltanschauung
mínio exclusivo; os limites e o raio de acção da explicação histórico-genética são cada vez mais apertadamente definidos. De novo se dá voz a métodos de elucidação anteriormente condenados. O método mecanicista pelo qual o material é partido em constituintes atómicos não é útil quando aplicado a fenómenos de significado o tosuperior. No domínio do mental não podemos compreender do a partir das partes; pelo contrário, só podemos compreender as partes a partir do todo. O nominalismo moderno parece ter sido suplantado por um realismo que reconhece universos (como, por exemplo, o «espírito»), pelo menos como construções metodologicamente justificadas. O conceito de «substância», que praticamente foi derrubado pelo de «função», ganhou de novo acuidade e não perguntamos só pelo Como das coisas mas também pela definição do que Que é que são. A compreensão e a interpretação como modos correctos de apreensão de significado suplantam hoje a explicação histórico-genética e ajudam a determinação do histórico-mental na sua dimensão temporal (1); o problema das dialécticas históricas é de novo actualidade. Da minha parte e para concluir com uma tentativa de inter«documental»,
pretação
isto é apenas repercussão metodoló-
tudo
gica de uma transformação cultural muito mais profunda. O facto
de as ciências naturais terem de restituir à história a autonomia a que tem direito, de se assistir a uma compreensão nascente da diferente natureza do mental e do histórico, de nos esforçarmos por uma síntese e de se querer estabelecêr o significado e a forma dos dados
pré-teóricos
(1)
o ensaio
Cf.
órbita
na
de Troeltsch
historischen
Dialektik»,
begriff
modernen
1919,
da ciência,
sobre
tudo
a metodologia:
isto é um
Uber
den
sinal de
Begriff
einer
in Historische Zeit schrift, série 3, vol. 23,
nº 3, pp. 373-426; vol. 24. nº 3, pp. 393-451. «Der historische Entwicklungs der
Geistes
— und
Lebensphilosophie»,
1920,
in Hist.
1913,
in Phil.
Zeitschr., ser. 3, vol. 26, nº 3, pp. 377-453. «Die Dynamik der Geschichte nach
der
Geschichtsphilosophie
der Kantgeselischaft, nº 23.
des
Positivismus»,
Berlin,
115
Sociologia do Conhecimento
que a ciência juntamente com toda a nossa vida intelectual está em abolição; e embora estejamos a assistir a uma tendência neste processo, não podemos antecipar o seu resultado final. A história nunca se repete literalmente e se tentássemos apressar o processo, tomando nota de fenómenos paralelos retirados do passado, ou acen-
tuando tendências existentes e seguindo-as como modelos, estaría-
mos a renunciar ao nosso destino. O lógico só pode decifrar o que já foi alcançado, a ciência e o espírito seguem o seu próprio ca-
minho.
116
Capítulo Il
O HISTORICISMO (1)
1. O PENSAMENTO ESTÁTICO E DINÂMICO
O historicismo é uma força intelectual que devemos compre-
ender mesmo contra vontade. Tal como em Atenas Sócrates esta-
va moralmente obrigado a definir a sua posição face porque a perspectiva intelectual destes últimos às condições sócio-culturais do seu mundo e porque tões e dúvidas eram um resultado do alargamento cultural
contemporâneo,
também
hoje
estamos
aos Sofistas, correspondia as suas quesdo horizonte
obrigados
curar uma solução para o problema do historicismo.
a pro-
O historicismo tornou-se uma força intelectual de extraordi-
nária importância; resume a nossa Weltanschauung (concepção do mundo). O princípio historicista não só organiza, como uma
mão
invisível, o trabalho das ciências culturais (Geisteswissens-
chaften), mas percorre todo o nosso pensamento quotidiano. Hoje é impossível tomar parte na política, compreender mesmo (1) Primeira publicação
in Archiv fúr Sozialwissenschaft und Sozialpolitik
J.C. B. Mohr, Túbingen; vol. 52, Nº 1, June 1924.
117
Sociologia do Conhecimento
uma
pessoa
(pelo menos
terpretativas
modernas),
se não queremos sem
esquecer as técnicas in-
tratarmos todas estas realidades
de
que tratamos como dinâmica na sua origem e no seu desenvolvimento. Porque também no dia a dia aplicamos conceitos com
acentuação historicista, por exemplo, «capitalismo», «movimento
social», «processo cultural», etc. Estas forças são apreendidas e compreendidas como potencialidades, constantemente em movimento e deslocando-se de um ponto para outro no tempo; mesmo ao nível da reflexão diária, procuramos determinar a posição do nosso presente em tal estrutura temporal, saber pelo relógio cósmico da história que horas são. A nossa visão do mundo já se tornou muito sociológica e a sociologia é uma daquelas esferas que, cada vez mais dominadas pelo princípio do historicismo, reflectem mais veridicamente a nova orientação na vida. O historicismo não é, portanto um mero capricho ou moda; nem
mesmo
é uma
corrente
intelectual, mas a base sobre o qual
construímos as nossas observações da realidade sócio-cultural. Não é qualquer coisa artificialmente inventada, alguma coisa como um programa, mas um modelo básico organicamente desenvolvido, a própria Weltanschauung, que surgiu depois da pintura medieval religiosamente
pois do
determinada
iluminismo,
com
do
mundo
se ter desintegrado,
a sua ideia dominante
de uma
e de-
Razão
supra-temporal, ter desaparecido.
Os românticos modernos que lamentam a falta de uma Weltanschauung contemporânea, que têm sempre nos seus lábios o slogan «organicamente desenvolvido» e que perdem este «organicamente desenvolvido» na vida do dia a dia, estes românticos não notam que é precisamente o historicismo, e só o historicismo, que hoje nos assegura uma concepção do mundo da mesma universalidade da visão religiosa do mundo do passado e que só os historicistas se poderiam ter «organicamente» desenvolvido a partir das raízes históricas intelectuais anteriores. Ao contrário do historicismo, é precisamente o romantismo, na medida em que propaga um
18
modelo
anterior
de concepção
do
mundo
como
um
padrão
O Historicismo
para
as condições
da
vida
moderna,
que
aparece como
artificial,
inventado, e como um simples «programa». Isto não quer dizer que o temos de aceitar como algo determinado, como um destino que não podemos alterar, como um poder hostil e superior: o historicismo é, em si mesmo, uma Weltanschauung e, por conseguinte, sofre um processo dinâmico de desenvolvimento e sistematização. Exige o esforço filosófico de gerações para a sua maturidade e para a elaboração do seu modelo final. Revelaríamos pouca compreensão se aceitássemos qualquer das suas formulações preliminares como definitiva.
Se, portanto, não rejeitamos o historicismo in limine mas pro-
curamos antes compreender a sua mudança, seguindo as suas raízes históricas, devemos perguntar-nos: «Qual o significado do historicismo, o que é que compreendemos
pelo termo
quando
o utiliza-
mos no seu sentido mais lato Weltanschauung?». É evidente que o historicismo não se refere à historiografia em geral. Desde Herédoto que a história tem sido registada numa multiplicidade de modos: como uma simples crónica de factos, como uma lenda, como um
objecto edificante de meditação, como um livro, como
uma imagem espiritual de
retórica, como um trabalho de arte. Só estamos em
face do historicismo quando a história é escrita a partir de uma Weltanschauung histórica. Não é a historiografia que nos traz o historicismo, mas antes o processo histórico que vivemos que nos faz historicistas. O historicismo é, pois uma We/tanschauung, e no pre-
sente estádio de desenvolvimento da consciência é uma caracter istica da Weltanschauung
que não deve dominar
internas e as respostas externas, mas também
mento.
Assim,
no estádio actual,
apenas
as reacções
as formas de pensa-
a ciência e a metodologia cienti-
fica, a lógica, a epistemologia e a ontologia são todas determinadas pela aproximação historicista. O historicismo só existe desde que os problemas relativos às novas formas de encarar a vida problemas que encontram porventura a sua expressão mais tangível na historiografia, alcançam o nível da auto-consciência. A ideia de evolução
foi, sem
dúvida
alguma,
o ponto de cris-
talização, o eixo filosófico da nova história e também
o da nova
119
Sociologia do Conhecimento
concepção do mundo. Podemos, portanto, tomar como ponto de partida a partir do qual o historicismo pode ser útil e claramente compreendido a história da ideia de evolução. A ideia de evolução não é, no entanto, tão-só o elemento mais avançado desta Weltanschauung; quando pensamos e vivemos de acordo com as suas implicações, não podemos deixar de elaborar em seu torno um modo de vida compreensivo e um sistema de pensamento coerente. A primeira aproximação ao modo histórico de pensamento e de vida assenta, em qualquer caso, na capacidade para experimentarmos qualquer segmento do mundo espiritual-intelectual num estado de movimento e crescimento. A nossa atenção só foi dirigida para a teoria do historicismo quando já se tinham escritos livros acerca da evolução das instituições, dos costumes, das religiões, dos conteúdos psíquicos, etc.. Mas enquanto nos confinarmos ao mero registo da «mobilidade» de todos estes conteúdos mentais, enquanto nos contentarmos com um simples sentido do fluxo eterno, não conseguiremos compreender a verdadeira essência do historicismo.
Nada
mais
será
do
que
uma
nova
experiência
que
se
acrescenta a uma variedade de muitas outras, e se desenvolvermos a nossa reflexão moral sobre este ponto, não obteremos nada de melhor que certas ramificações de relativismo que não são difíceis de refutar. Os muitos problemas da dinâmica só se levantam quando começamos a compreender que tem lugar na história alguma coisa mais do que uma mera variação tipo camaleão nos elementos da vida. O historicismo é mais do que a descoberta de que os ho-
mens
pensam,
sentem,
escrevem
poesia, pintam e conduzem os
seus negócios de modos diferentes de acordo com a sua idade. A teoria do historicismo só realiza a própria essência pelo derivar de um princípio ordenador desta aparente anarquia da mudança, pelo
penetrar na estrutura interna desta mudança toda-poderosa. Podemos, contudo, compreender esta ordem por duas vias: a
primeira, através de uma análise histórica vertical e a segunda, através
de uma
intersecção
histórica.
No
primeiro caso, tomamos
um
qualquer motivo da vida cultural-intelectual, uma forma artística, uma ideia política, um certo tipo de comportamento, e referimo-lo 120
O Historicismo
ao passado, tentando mostrar como cada forma última se desenvol-
ve continua e organicamente mente
estendermos
realize
uma
a partir das anteriores. Se gradual-
este método a todas as esferas da vida cultural,
obteremos, por assim dizer, um conjunto de linhas de evolução isoladas. Em cada uma das linhas individuais de filiação desaparece a natureza meramente factual, ocasional de mudança e podemos assim observar a lei da mudança. As diferentes linhas de desenvolvimento são reunidas no entanto, mais ou menos ao acaso sem lei reconhecível. Este tipo de historicismo não se completa até que se segunda
série de observações
interseccionais estas são
feitas para mostrar como, num estádio temporal, os motivos, que
se observaram
isoladamente, estão organicamente ligados uns aos
outros. O fluxo das ideias não corre, portanto, e não aumenta em canais separados (representados pelas várias esferas da vida e da cultura). Os motivos isolados são, antes, mutuamente condicionantes nos sucessivos estádios de evolução e são elementos e função de um processo básico definitivo que é o verdadeiro «sujeito» que sofre a mudança. Revelar a estrutura ou configuração deste processo total com base num exame
rigoroso dos seus elementos separados é o objecti-
da o seu modelo
de mudança
vo último do historicismo — um princípio universal metafísico e metodológico que cada vez mais domina as ciências culturais e que se tornou soberano na estética, na ciência da religião, na sociologia e na história das ideias. Retirar da realidade multifacetalenta e a estrutura do seu equilíbrio
(1) A compreensão da estrutura e compreensão da configuração não são exactamente a mesma coisa. Alfred Weber chamou recentemente a atenção para o facto de haver duas aproximações fundamentalmente diferentes à história («Kulturzosiologie», Der Neue Merkur, vol. 7, 1923, pp. 169). Weber distingue entre uma experiência
(Gestalt). Nesta secção
«lógica» e uma experiência «configuracional»
introdutória, neste momento, estamos a descrever o
historicismo e não precisamos ainda de diferenciar estes dois métodos. tarde, teremos de proceder à sua diferenciação de um modo mais claro.
Mais
121
Sociologia do Conhecimento
interno, é o objectivo e ao mesmo tempo a visão final antecipada do historicismo totalmente desenvolvido. No momento actual, mesmo as investigações históricas especiais são, na medida do possível, levadas a cabo com esta visão antecipadora da totalidade da história em questão, e assistimos a frequentes tentativas de explicar o presente em termos destes conceitos históricos. Nesta
conjuntura,
no
entanto,
as
investigações
históricas
e
também as experiências do presente são mais do que uma simples historiografia, tornam-se uma filosofia da história. Não queremos saber só o «que aconteceu». Estamos interessados não apenas no «porquê» imediato (os antecedentes causais imediatos) de um acontecimento, mas perguntamo-nos constantemente: «O que quer
dizer?». Quando integramos o elemento em questão ( o facto histórico) numa totalidade, na verdade, numa totalidade dinâmica e, por
conseguinte,
compreendemos
o seu significado, a nossa ques-
tão torna-se filosófica e a ciência especial da história e também a concepção da vida, de novo, se tornam filosóficas. Aquilo que no passado era uma estrutura religiosa na qual as várias experiências particulares se inseriam para adquirir um significado filosófico, é hoje
uma
visão
histórico-filosófica
que,
cada
vez
mais, depurada
e tornada concreta na investigação, fornece, com a ajuda de um princípio unificador do historicismo, uma interpretação filosófica para a nossa experiência do mundo. É cada vez mais evidente que a separação rígida e imutável entre a história e a filosofia da história (1), de acordo com a qual a história aparece como uma disciplina
rigidamente
especializada,
só corresponde
a uma
pers-
(1) Esta interdependência da história e da filosofia da história tem hoje sido impressivamente documentada por Croce. Cf. Zur Theorie und Geschichte der
Historiographie, trad. por Enrico Pizzo, Tubingen, 1905; (trad. para inglês por Douglas Ainslie: On the Theory and the History of Historiography ,S.A.S)
Cf. espec. o cap. IV «Entstehunge und begriffliche Auflosung der Geschichts-
philosophie», p. 52 e também p. 104 («The Origin and the Conceptual Solu-
tion of the Philosophie of History»).
122
Sociologia do Conhecimento
filosofia da história, se o conceito final de verdade, a distinção! do absoluto e do relativo, só se concebe de uma forma única e, em
geral, todos os critérios sustentados
nesta controvérsia, dependem
das atitudes que tomamos face à realidade e do particular campo de conhecimento que preferimos invocar. As diferenças têm raízes extra-teóricas e embora compreendamos perfeitamente o que o outro diz, não podemos alcançar uma meditação teórica entre estas
várias posições pré-teóricas enquanto estivermos ligados a elas. Isto é o que temos de demonstrar antes de tudo o mais.
Em
certo sentido, o historicismo possui já uma superioridade
incondicional sobre os seus elementos; o historicismo concebe o
confronto não apenas nas antíteses dos sistemas teóricos, mas pode demonstrar
este contraste
nos modos
opostos de comportamento
prático. Até agora, foi só no campo da teoria que a nossa análise, aguçada por controvérsias, pôde descobrir, sempre que se levantava um conflito, os pressupostos teóricos últimos responsáveis pelo facto de se poderem fazer afirmações divergentes no que diz respeito ao mesmo assunto. Mas agora o historicista encontra-se em posição, e cada vez o estará mais, de apontar que atitudes extra-filosóficas e pré-filosóficas da vida e que realidades sócio-culturais dominantes
determinam a escolha desta ou daquela série de axiomas. Ao fazê-
“lo, o historicista está longe da exclusividade imanente da teoria e
torna-se um «irracionalista» e um «filósofo da vida». Mas mesmo
por esta transgressão dos limites de uma esfera particular não se pode censurar o historicista como objecto em questão, como o fazem aqueles que recorreram à autonomia da teoria como qualquer coisa
completamente a priori. Podemos descortinar na doutrina da autonomia da esfera teó-
rica uma outra distinção fundamental entre a e a não historicista. A doutrina da autonomia considerada pelos seus defensores como uma inquestionável; a razão de tal facto não é, no
filosofia historicista da esfera teórica é finalidade completa entanto, a de que a
tese não está sujeita a dúvida, mas antes o facto de ser tomada como certa, como um axioma aparentemente auto-evidente deste ti-
po de filosofia. Este axioma 130
(a doutrina da autonomia da teoria)
O Historicismo conhecimento, que tomava esta forma: «Como é que as ciências naturais exactas são possíveis? É suficiente para mostrar que embora se pense que a epistemologia fornece a base para as várias ciências, ela é, na verdade, dependente, quer no que diz respeito ao seu quadro estrutural, quer no que diz respeito ao seu conteúdo histórico concreto, daquelas esferas de conhecimento que garantem
o material para as suas análises (1). Por conseguinte, o facto de
partirmos com certos postulados, descobertos na análise de um certo campo de conhecimento, não nos pode permitir afastar aqueles postulados que retiramos do estudo de outros campos de conhecimento. Finalmente, o que fazer se podemos
mostrar
que a acusação
de relativismo provém de uma filosofia que professa uma concepção inadequada do «absoluto» e do «relativo»; uma filosofia que contrapõe a «verdade» e a «mentira» num modo que só faz sentido na esfera das assim chamadas ciências exactas, mas não na história, já que na última são aspectos de um mesmo assunto que não podem ser considerados, nem como verdadeiros nem como falsos, mas
como
essencialmente dependentes
de uma
determinada
pers-
pectiva ou como um ponto de partida que pode co-existir com outros? Nas considerações feitas, já contrapassemos a posição de uma
filosofia estática da Razão com à de uma filosofia histórica dinâmi-
ca da vida. Não nos ocupamos aqui de pormenores, mas tratamos antes
da demonstração
de como,
em
grande
medida,
os argumen-
tos logicamente decisivos das duas filosofias são supra-filosóficos e pré-filosóficos na origem. Todos os problemas fundamentais, de
saber se a Razão deve ser considerada estática ou dinâmica, se a teoria do conhecimento
possui uma prioridade estrutural sobre a
(1) Sobre a dependência estrutural da epistemologia sobre as outras ciências, cfr. o meu estudo: «Die Strukturanalyse der Erkenntnistheorie», Ergânzung-
shefte der Kantstudien. Nº 57. Berlim, 1922.
129
Sociologia do Conhecimento
por duvidarmos da alegada auto-suficiência das posições anti-historicistas. Um outro argumento contra o historicismo é muitas vezes proclamado, de a lógica e a teoria do conhecimento terem prioridade sobre os dados de tais ciências especiais como, digamos, a psicologia e a história. Defende-se que os vários factos genéticos (i.e. as descobertas históricas relativas à variação constante no conteúdo da Razão, tal como se manifesta nas ciências especiais), não podem, de forma alguma, afectar as afirmações de princípio das ciências sistemáticas que fornecem a base a todo o conhecimento. O que fazer então, se se pode mostrar que a teoria do conhecimento de uma época particular não abrange nada para lá das afirmações últimas de um modelo de pensamento que é dominante nessa época? Que o epistemologista e o lógico, na verdade, apenas seguem o caminho aberto por alguns modos particulares de experiência (ex: experiência religiosa), ou em épocas científicas, pelas peculiaridades metodológicas de certas ciências especiais que se tornaram precisamente o centro de interesse? O que fazer então se se pode mostrar, como já é evidente hoje, que o ideal de uma Razão eternamente idêntica não é nada mais do que o princípio condutor de um sistema epistemológico construído post factum, um sistema que obteve os seus fundamentos experimentais a par-
tir de uma
análise da estrutura conceitual das ciências naturais
exactas? Foi para justificar as ciências naturais exactas na sua forma que fomos obrigados a construir uma Razão estática aberta às
leis eternas (1). Obteríamos uma teoria de conhecimento bastante
diferente se tomássemos como ponto de partida a esfera histórica dinâmica. Na verdade, o principal problema da teoria Kantiana do
(1) Isto não quer dizer quea concepção «intemporal» da Razão só tenha surgido
como
um
facto
da
história
na época das ciências naturais; na verdade,
foi muito mais cedo. No texto acima, preocupamo-nos primariamente com a função deste postulado cias naturais exactas.
128
no sistema de pensamento orientado para as ciên-
O Historicismo mostrar-se que mesmo esta posição auto-imobilizadora é histórico-filosoficamente determinada. O formalismo absoluto limita-se a, e só pode surgir num ambiente sócio-cultural em que todos os valores concretos se tornam duvidosos e em que só a forma abstracta do valor enquanto tal permanece credível. O que significa no entanto, introduzir uma distinção abstracta, artificial na unidade indissolúvel dos produtos culturais; uma distinção, a propósito, que nada tem a ver com a validade supra-temporal. Corresponde completamente a uma situação histórico-filosófica, que manifesta este «impulso formal» em todas as esferas e que, por conseguinte, só é capaz de compreender o estado intencional das coisas dentro de uma perspectiva muito parcial. Que, na verdade, a dicotomia forma-conteúdo
que é a base de uma
filosofia estática da Razão está
completamente desprovida de aplicabilidade universal, que só serve um tipo de pensamento unilateral orientado para a manipulação de objectos-coisas rígidos, é o que pode ser demonstrado pelo facto de actualmente, se não mesmo de forma declarada, tal pensamento também operar com modelos desprovidos de vida. Quando falamos de categorias formais ou de valores formais, pensamos em recipientes ou em vasos onde os líquidos, por exemplo, o vinho, podem ser constantemente vertidos e em que os recipientes são considerados como formas permanentes a que se atribui identidade estável. Obtemos, no entanto, uma correlação completamente diferente entre forma e conteúdo, quando partimos de modelos baseados em plantas vivas e em desenvoivimento. Aqui, não só muda a substância que cresce (a seiva sobe e desce) mas a forma e a configuração (Gestalt) da planta cresce com e varia com o «conteúdo»
auto-renovador. Quanto mais afastados estamos do mundo das coisas «rígidas», mais próximos estamos do real substracto histórico da realidade psíquica
e intelectual
de tais tentativas ostensivamente realidade concentradora
e mais duvidaremos da validade
supra-temporais que quebram a
de toda a mudança
de um
lado, e toda a
permanência de outro. As questões da possibilidade e da equação de uma abstracção, generalização e formalização histórica levantam-se de novo neste ponto. Apenas mencionamos estes problemas
127
Sociologia do Conhecimento em que nos encontramos o significado ostensivamente universal de sistemas anteriores deveria ser reduzido e entendido como parcial, limitado e que os seus elementos, na medida em que conservam alguma validade, deveriam ser re-interpretados a partir de um novo
centro sistemático.
O que surge como totalmente impossível, contudo, é negar uma nova filosofia, baseada na análise reflexiva de um novo estádio da realidade sócio-cultural, só porque este novo sistema contradiz os pressupostos últimos de um sistema anterior, que correspondeu a um estádio anterior. Mas isto é exactamente o que é feito pelos que, imbuídos da filosofia do Iluminismo, rejeitam abovo as perspectivas em evolução do historicismo. Neste contexto, queremos significar por «filosofia do Iluminismo» aqueles sistemas que de algum modo contêm uma doutrina da supra-temporalidade da Razão. Todas as refutações vindas deste campo apontam essencialmente para a carga de relativismo que alegam contido no historicismo. Julgam que este slogan é suficiente para destruir o novo sujeito da mudança. Na Alemanha, é sobretudo o Kantianismo que fornece argumentos para este tipo de contestação do historicismo. A ideia de identidade permanente, de estabilidade eterna e do ca-
rácter a priori das categorias formais da Razão constitui o cerne do” pensamento iluminista que é alterado pela doutrina historicista, até onde esta já se desenvolveu. O que temos de demonstrar, contra o Iluminismo, é que variam as definições mais gerais e as categorias da Razão que estão sujeitas a processos de alteração de significado, como qualquer outro conceito, no decurso da história da mente. É muito questioná-
vel em
geral saber se a «forma»
pode ser separada do «conteúdo».
Podemos sempre perguntarmos em que medida o conteúdo particular, que, afinal, é inqualificavelmente histórico, determina uma particular estrutura formal. Se tentamos fugir aos problemas levantados pelo historicismo, assumindo uma «forma enquanto tal», um
«conceito
enquanto
tal»,
um
«valor
enquanto
tal»
e outras
estruturas «enquanto tal» semelhantes, torna-se de todo impossível afirmar alguma coisa de concreto na metodologia. Mas pode
126
O Historicismo consciência antes de prosseguirmos; estas tensões existem sempre que há uma Weltanschauung sistemática, filosófica. Surge um conflito ou uma tensão entre as conclusões e os aperfeiçoamen-
tos que
uma
filosofia
anterior
conseguiu,
pela
análise de um
estádio anterior de consciência, por um lado, e uma diferente série de pressupostos que são retirados da reflexão sobre a nova realidade sócio-cultural, por outro lado. Se pretendemos, portanto, acompanhar a teoria do historicismo até às suas últimas implicações filosóficas, temos a nossos ombros a tarefa peculiar de considerarmos historicamente a filosofia e
de atribuirmos ao carácter histórico de toda a filosófica o estatuto
de uma proposição dentro do sistema filosófico pessoal. Em último termo, é uma questão de interpretarmos em termos de uma inserção sistemática a afirmação de que mesmo a filosofia sofre uma mudança orgânica de modelo. O que pressupõe, portanto, a existência de uma ideia da relação que as filosofias das diferentes épocas suportam em relação umas às outras. O que é dizer que temos de saber se as diferentes filosofias reciprocamente se excluem ou se desenvolvem conjuntamente, por assim dizer, numa divisão supra“temporal
do
trabalho
como
partes
últimas
de
um sistema
ainda
em definição. Ou, ainda, se constantemente se reconstroem novos centros mais compreensivos de tal modo que as velhas concepções são incorporadas nos novos e revestidas de um novo significado. Pensamos que a concepção mencionada em último está presente na
ideia de historicismo.
Seria, portanto, simplista e contra a história rejeitar as conclusões de uma filosofia anterior. Também ela, deriva de uma reflexão sobre um certo estádio da realidade sócio-cultural que é, em si mesma, parte do processo dinâmico total. Só podemos dizer que
as conclusões de uma filosofia anterior foram obtidas numa altura
em que o novo substracto sócio-cultural ainda não tinha aparecido,
de tal forma que nenhuma reflexão lhe poderia ser dirigida. Mas isto não é certamente uma justificação para uma rejeição imediata das conclusões e problemas anteriores; o que devemos fazer é, antes, incorporá-los no nosso sistema. O que significa que, ao nível
125
Sociologia do Conhecimento
cular, deduzindo o último da primeira. O processo é, antes, alguma coisa como isto: a vida não reflexiva preocupa-se em primeiro lulugar com experiências imediatas, concretas e começa in media res.
Só posteriormente, a um nível reflexivo é que são abstraídas premissas que se contêem nestes estímulos. Mas aquilo que compreendemos na imediatidade «fenomenológica» está já, na verdade, moldado pelo processo histórico; está já permeado por categorias formais de uma nova «razão», de uma nova «psique». Em cada facto, então, há qualquer coisa mais do que o facto «em si mesmo». O facto é moldado por uma totalidade, quer no sentido de uma lei de modelação, quer no sentido de um princípio de sistematização. Por conseguinte, há premissas contidas no único acontecimento de que podem ser retiradas. Podemos chamar a isto um «milagre»; mas tal prova, em todo o caso, que a nossa criação inconsciente de cultura, as nossas acções, o nosso comportamento, a nossa percep-
ção que criam novos mundos em nós e à nossa volta, possuem já categorias e estão mentalmente ligados ao pensamento reflexivo. Estas considerações revelam também que o pensamento é apenas um dos órgãos que usamos na procura às apalpadelas do espaço histórico que nos rodeia, tomando
contacto
com
ele, criando-o e,
“ao mesmo tempo, explicando-o. A cognição não é uma pura contemplação — (embora se aproxima deste limite em certos campos especializados ) —, não é receptividade directa, mas é antes, como todas as formas sensoriais de organização, num só e ao mesmo tempo, criativa e receptiva; segue para a frente, criando e recebendo novas formas num processo contínuo único. Vamos agora analisar o estádio presente do historicismo nas suas últimas implicações filosóficas, desintegrar os pressupostos factuais, epistemológicos e lógicos presentes na sua aplicação não-reflexiva. Assim, com a sistematização do historicismo, realiza-se o destino que o historicismo descobriu a partir das formas passadas dos processos mundiais: a vida tem uma tendência constante para se ossificar um sistema. Neste nível de sistematização de uma nova forma de WeltansCchauung, acentuam-se tensões que têm de ser analisadas à luz da 124
O Historicismo pectiva, ou melhor, à falta de perspectiva, de uma época particular. Ao mesmo tempo, é cada vez mais claro que mesmo a investigação aparentemente mais especializada do pormenor histórico tem a sua base na filosofia da história; de outro modo, como se levantaria o seu problema?
Se, depois do que foi um período de grande concentração em tópicos isolados de investigação especializada, a ciência histórica cada vez mais procura investigações especializadas numa estrutura compreensiva e se, como consequência, a ciência histórica é finalmente conduzida à descoberta das suas fronteiras, dos seus fundamentos
e pressupostos
na forma de uma
filosofia da história, isto
só quer dizer que a história está hoje consciente do que até agora foi o seu princípio orientador inconsciente. O historicismo é uma filosofia da história ao libertar a filosofia implícita numa descrição histórica e ao analisar conscientemente
os problemas que se levan-
tam na representação do passado. Neste processo, no entanto, as condições de vida que dão origem ao historicismo e à historiografia que delas recebeu também o seu impulso, alcançam o estádio da consciência, o estádio da auto-realização sistemática. Os problemas filosóficos que determinaram já existencialmente as pressões e as tensões da Weltanschauung actual apresentam-se agora ao ní-
vel da consciência reflectiva. As novas
novo
sistema
filosofias não
ou
uma
nova
nascem quando alguém elabora série de ideias; elas surgem
um
quando
o
conteúdo filosófico já existente, mas ainda não reflectido das novas
atitudes
vitais
invade o centro do campo
de visão. É possível
mostrar que mesmo os problemas metodológicose lógicos aparentemente mais especializados surgem como um resultado da concentração da atenção consciente sobre, e o completo desenvolvimento
de todas as implicações daquelas premissas que já estavam presentes, ainda que não explicitamente expressas nalguns novos modelos
vitais. Constitui
no entanto,
uma
pecularidade de vida e do pensa-
mento vivo, o facto de eles, como pareceria do ponto de vista de um sistema completo, não procederem a uma premissa generalizada ou a um ponto de partida sistemático para o concreto e o parti-
123
O Historicismo
tem as suas raízes e as suas bases últimas num solo pré-teórico. Quando esta doutrina da autonomia da Razão apareceu nos tempos modernos, ela era expressão de uma relação sociológica entre as diferentes esferas que actualmente prevalecem no moderno «sistema de vida e cultura». Esta relação não é intemporal e eterna, mas sujeita à variação histórica, e isto de tal forma que se fôssemos descrever as diferentes esferas da vida apresentadas à experiência imediata em diferentes períodos, recolheríamos uma lista fundamental das mudanças culturais. Como prova das bases pré-teóricas da doutrina da autonomia da teoria, mencionaríamos o facto de na Idade Média, a filosofia e qualquer outra teoria experimentarem em relação à teologia uma relação subordinada, protegida e do ponto de vista da religião, qualquer esfera para lá dela estar completamente fora de questão. Este facto que em grande parte se devia à mente estreita, era igualmente uma formulação última da relação entre as diferentes esferas da vida que caracterizavam o
mundo medieval e dominavam o seu modo de vida. Tal como não existia
nenhuma
teoria
autónoma
naquela altura, de igual forma,
não havia nenhuma ética autónoma, estavam de tal forma mergulhadas na mos falar delas como autónomas no mos fazer com perfeita justificação
nenhuma arte autónoma, etc.; esfera religiosa que não podemesmo sentido como o podequando tratamos de períodos
posteriores. É só quando a determinação hierárquica de todos os segmentos da vida medieval perdeu o seu fulcro na esfera religiosa,
que podemos distinguir um processo no decurso do qual as várias esferas
de vida
se tornam
independentes
umas
das outras em vez
de se verem submergidas numa unidade. E no desenrolar da história, encontramos teorias que se preocupam com a autonomia destas esferas vitais como uma reflexão dos processos existenciais da sua separação. A arte emancipou-se no Renascimento e conheceu todo aquele desenvolvimento que culminou posteriormente na ideia da arte pela arte. A acção ética, que primariamente se baseou na experiência
religiosa e num
sistema metafísico que lhe era ade-
quado, tendeu para uma autonomia de valores (Se/bswertigkeit). O mesmo aconteceu com a filosofia e com a esfera teórica como
131
Sociologia do Conhecimento
um todo, que também se emancipou da sua posição de protegida em relação ao centro religioso. É no Renascimento que as diferentes esferas da vida se começam a emancipar e a conseguir uma autonomia de acção ética, de criação artística e de pensamento teórico. A doutrina da autonomia das diferentes esferas é só uma justificação reflexiva daquele processo que já se completou e que só ganhou em profundidade e em intensidade em resultado da reflexão filosófica. A estética, constituída agora como uma nova ciência, a ética, com a sua doutrina da autonomia da avaliação ética e não menos, a doutrina da autonomia da esfera teórica sobre e contra todas as esferas, são tudo construções normativas e
hipostatizações
da
relação
pré-reflexiva
e historicamente
deter-
minada das diferentes esferas entre si. Mas só neste momento
a
nossa concepção cultural parece estar a sofrer uma transformação. Notamos em todas as esferas (sendo a ideológica a mais evidente) que em movimento contrário ao destas tendências para a autonomia, a atomização e a análise (três tendências fundamentalmente diferentes, que, no entanto, têm algo em comum), está a ter lugar um movimento para a síntese. O que o historicismo tenta aqui nas esferas
individuais histórico-culturais, na história da arte, na histó-
ziu
esforço
ria da religião, na sociologia, etc., tomando estas diferentes esferas da cultura não na sua exclusividade imanente, mas como uma parte integrativa de um todo, o que o historicista realiza aqui, é também ensaiado, entre muitos e só para dar um exemplo, na moderna psicologia. Aqui também, o princípio afirma que não só devemos investigar os vários campos sensoriais um por um, mas também explorar os problemas da solidariedade e unidade da experiência sensorial. Aqui também, esta tendência analisadora, atomizadora e isoladora que dominou também as outras ciências e que se traduno
pela
elaboração
de
estruturas
mais complexas
a
partir de elementos simples, está a ser superada pelo reconhecimento de «complexos» e «totalidades» como dados primários e irredutíveis, tal como surgem, por exemplo, nas percepções da Gestalt. Todos estes exemplos são sintomáticos do facto de poder-
mos no lado reflexivo (ideológico), dos processos totais, encontrar
132
O Historicismo várias tendências paralelas. O que levanta a questão de saber se estes fenómenos não representam uma contrapartida ao nível do método científico, do processo de transformação que está a ter lugar na estrutura social. Se o tipo de pensamento atomizador e seccionado pode ser considerado como um correspondente de uma estrutura social que permite um máximo de fragmentação dos vínculos sociais e que produz uma economia liberalisticamente independente, de unidades atómicas, a presente tendência para uma síntese, para uma investigação das totalidades pode ser considera como o nascimento, ao nível da reflexão, de uma força que
está a inserir a realidade social em canais mais colectivistas. Pode muito
bem
acontecer
tuação
mundial
que
este
impulso
nascente
para
restaurar
uma unidade física e intelectual em lugar da separação das esferas conseguidas pelas épocas anteriores, a atenuação das fronteiras entre elas corresponda a uma mudança geral das atitudes práticas. Aqui também, portanto, até onde podemos ver hoje, a sialterada
é a base
do
aparecimento
de uma
nova
que os anteriormente
men-
super-estrutura teórica. Aqui também, se revela a doutrina da autonomia da teoria, aos olhos do sociólogo do conhecimento e do filósofo
da
história, do mesmo
modo
cionados axiomas hispostaziados intemporais da filosofia da Razão, tal como aparece ligada à posição histórico-filosófica e à sua correspondente «vida de base» (Lebensunterlage). Ao apontarmos a conexão
básica das premissas teóricas de uma época com
toda a realidade sócio-cultural, não pretendemos negar rotundamente que estas doutrinas têm uma qualquer validade duradoura. Porque na análise final destes problemas, teremos de examinar a questão de saber se se podem estabelecer os resultados de uma
análise estrutural e de uma demonstração da determinação filosófico-histórica e sociológica da teoria ou, se assim é, refutar a estrita
validade sistemática (Ge/tungssinn) da própria teoria. Interessou-nos inicialmente a confrontação dos pressupostos últimos das duas teorias radicalmente opostas por um lado, uma filosofia supra-temporal
histórica
da
Razão,
dinamicamente
e
por
concebida.
outro
lado,
Eis alguns
uma
dos
perspectiva
pontos
que 133
Sociologia do Conhecimento
tentamos estabelecer: as bases de suporte de possíveis argumentos estão organicamente ligados à alternativa estático ou dinâmico; uma concepção estática de autonomia da Razão está ligada à doutrina da autonomia
da teoria; e ao mesmo
tempo,
a defesa da pri-
mazia da epistemologia conduz à mesma posição por um caminho diferente; e esta mesma posição está ligada à distinção particularmente rígida e não temperada por considerações históricas, entre o «absoluto» e o «relativo» e também a uma completa separação de todos os laços entre o temporal
e o supra-temporal.
Por outro
lado, pretendemos demonstrar como todas aquelas posições, que num tipo de pensamento estático consistem num sistema de pro-
posições
reciprocamente
suportativas e que, como tal, são conside-
radas auto-suficientes, se tornam problemáticas mesmo nos seus pressupostos para um tipo de pensamento dinâmico. Quando partimos, não de uma razão estática, mas de uma totalidade dinamicamente desenvolvida de toda a vida psíquica e intelectual como dado último, o lugar da epistemologia enquanto ciência fundamental será tomado pela filosofia da história como uma metafísica dinâmica; os problemas das correlações dos vários domínios do pensamento e da vida são re-orientados a partir deste novo ponto de partida. O que antes era tomado como certo, por conseguinte, de novo se torna problemático. 11.0 PONTO DE PARTIDA DE UMA TEORIA DO HISTORICISMO (TROELTSCH)
A
análise
anterior
foi necessária para tornar claro os pontos
essenciais a ter presentes na tentativa de compreensão do estatuto presente do historicismo, para não obscurecermos o problema, atendendo a aspectos de pormenor inconsequentes. Era absolutamente necessário tornar explícito as questões decisivas que no estado actual, ainda bastante caótico, das discussões sobre este assunto,
A
clareza
estão
estão
ainda
sobre
próximas
por
desenterrar
estas questões
do
problema
e descobrir
é muito
de
garantir
uma
ciências culturais e à sociologia em particular. 134
ou
importante base
não visíveis.
porque elas
adequada
às
O Historicismo
Vamos prosseguir estas discussões preliminares com um exame do trabalho realizado pelo historicismo actual pelo que nada melhor do que debruçarmo-nos sobre o livro recente de Ernst Troeltsch, que expressamente se dirige aos problemas do historicis-
mo (1). A personalidade intelectual do autor, com todas as suas
virtudes e limitações e também a própria obra no seu tratamento objectivo da questão, são característicos das atitudes historicistas
actuais e da teoria do historicismo.
Troeltsch representa aquele tipo de cientista cultural que, graças a um profundo desejo de compreender a totalidade da vida, gostaria de transcender a especialização recente da investigação histórica e realizar uma síntese. O que nos oferece não é, de modo nenhum, um campo de investigação claramente definido, cuidadosamente delimitado e demarcado de outros campos. O que lhe interessa é a sobreposição dos problemas individuais particulares, a sua inserção em problemas mais gerais e a sua fusão íntima com a totalidade da vida. Assim, o seu pensamento revela um fluxo constante,
sem
repouso de uma
multidão
de questões sobre questões,
um bombardear de problemas já tomados e um não manter aparte os problemas históricos e sistemáticos. Todas estas características são, ao mesmo tempo, uma força e uma fraqueza. Na verdade, Troelsch não desejava uma ilha feliz de reclusão académica onde, afastado da vida, apolítico (2) e inactivo, pudesse viver uma existência parcial, manipulando problemas menores na ordem aparente de um mundo irreal. Troeltsch prefere
sentir-se no meio das coisas e combinar os seus interesses teóricos com a dor de um mundo
profundamente perturbado. O que mui-
tas vezes conduz a uma aptidão para declarar as últimas conclusões
sem reflectir e a uma aptidão para procurar novidades sem prece-
(1) Ernst Troeltsch, Der Historicismus und seine Probleme, Vol. |, Túbingen, J. C. Morh, 1924.
(2) Cf. o recentemente publicado Spektator-Briefe, de Troeltsch, Tubingen,
J.C. Mohr, 1924.
135
Sociologia do Conhecimento
dentes. Ele é um jornalista da ciência (no bom sentido da palavra) pelo facto de conseguir uma reunião improvisada entre o toque delicado de causas profundas e oferece demasiado apressadamente uma formulação final dos problemas ainda não suficientemente maduros. Troeltsch deseja, parece reunir na sua pessoa os dois tipos antagónicos em que se divide o pensamento alemão actual como consequência de causas sociológicas: a do estudioso original e muitas vezes, profundamente não académico e a do conhecedor que,
no entanto,
muitas
vezes
consome
as suas energias pela sua
liberdade psicológica e profissional, por um lado, e a do professor académico que é o mestre da vida, por outro. Esta síntese parece ser muito desejável em si mesma. Sacrifica-se a interioridade completa (/nnerlichkeit) se se faz tal tentativa; mas este resultado do destino tem um significado que se pode
parafrasear da seguinte maneira: «Este homem
desistiu do
que nele havia de melhor, porque não desejava ser melhor do que
pode um homem hoje, ligado às realidades do dia a dia». Este es-
tilo de produção intelectual e esta atitude face aos problemas da vida demonstram já o papel que a temporalidade está a desempenhar no pensamento quotidiano. O homem não se sente hoje como anteriormente
situado em
«situações absolutas» como se a virtude
mais elevada só pudesse ser eterna e definida de uma forma não ambígua. Podemos viver ainda uma vida exemplar e sem mancha ao assumirmos certas posições anteriores que sobreviveram até hoje residualmente. Mas as pressões da situação contemporânea, logo que
penetraram
a nossa consciência,
não só permitem
uma
ultra-
passagem estes limites. Neste processo, vamos demolir todas as bases firmes sob os nossos pés e vamos tentar compreender o eterno como
um
elemento
dos problemas
temporais
significa que o profeta e o chefe se tornam esperar-se
que
a realidade
do compromisso
mais
imediatos. Isto
culpados, mas pode
seja compensada
pela
limitação temporal dos objectivos. Como consequência desta falta de delimitação e de especialização, o trabalho de Troeltsch caracteriza-se por um alcance enciclopédico, pela universalização do conhecimento, por perspecti-
136
O Historicismo
vas largas; o «globe-trotting» do homem moderno manifesta-se cada vez mais no mergulho no passado. Todo o problema é colocado em termos simultaneamente históricos e sistemáticos; mas o assunto, o tópico histórico em si mesmo, nunca está exclusivamente no foco de atenção, já que também estamos interessados em saber os pressupostos sistemáticos e históricos de que dependem os vários
desenvolvimentos reais. Este desassossego eterno, esta necessidade
de transcender a posição pessoal e, por assim dizer, de olhar para lá dos nossos ombros, atitudes geradas pelas últimas tendências para o pensamento epistemológico e também
histórico, parecem con-
vergir aqui para uma posição integrada. Assim, o historicismo (que o livro tenta delinear) é considerado sob dois aspectos: é discutido como um problema sistemático, e é também apresentado em termos de uma história do seu problema: Deste modo,
podemos considerar o livro como uma contribui-
ção para a história da génese das ciências culturais. O historicismo
tem interesse em traçar o seu nascimento e desenvolvimento: o decurso do seu desenvolvimento não é, no entanto, descrito numa
compreensão épica, mas só em relação a problemas com significado sistemático. Dois desses problemas são tomados como
represen-
tativos: (a) a história da luta por um modelo de julgamento histórico e (b) a história do conceito de evolução.
No tratamento do primeiro problema, assistimos ao descobrir do problema epistemológico contido na investigação histórica; o segundo ilustra a história de uma importante categoria lógica. Na
1º investigação é claro como os problemas do valor e do conhe-
cimento assumem aspectos diferentes justamente por terem sido levantados no contexto do conhecimento histórico e como as conclusões alcançadas contrastam com as de uma epistemologia essencialmente orientada para as ciências naturais. Com a 22 investigação mostra-se como certas categorias fundamentais de uma única
rente
disciplina
em
temporais
grupos
podem
assumir
um
aspecto
culturais diferentes e em
culturais.
Um
contraste
radical
completamente
dife-
diferentes sequências
entre
as filosofias
mânicas e ocidentais da história está demonstrada
ger-
pelo diferente
137
Sociologia do Conhecimento uso de uma categoria fundamental, a da evolução histórica. Enquanto que na ciência ocidental, a aproximação «atomizadora» e causalmente relacionada se torna gradualmente soberana nas disciplinas históricas e também sociológicas, a filosofia germânica da história é dominada pelas categorias da «totalidade individual» e da «evolução» compreendidas no sentido dialéctico. Como vemos, neste exemplo, certos modelos fundamentais de pensamento e conhecimento (na verdade, e, em certa medida, a própria lógica) estão integralmente fundidos em diferentes unidades históricas concretas. Assim, não uma mera afirmação programática, mas uma investigação científica da história do conceito geral, o da evolução,
revela-nos claramente em
que medida
e de que modo
mesmo as
ciências culturais e mesmo as suas categorias lógicas, são diferenciadas, de acordo com unidades culturais concretas e as respectivas perspectivas.
Nenhuma
das filosofias que consideram
a Razão
co-
mo um absoluto e um supra-temporal, nenhuma daquelas filosofias que fixam o seu olhar na identidade permanente desta Razão e na região utópica das verdades e valores supra-históricos podem sentir um interesse especial no desenvolvimento destas verdades, no seu nascimento e no das categorias em que se baseiam, no decurso do processo histórico. Para tais filosofias, todas as coisas são colocadas na alternativa rígida entre verdadeiro e falso, e tudo o que é afectado pela temporalidade e historicidade é eo ipso falso. Assim só o historicismo
que
procura
a verdade
na própria
história, que
tenta traçar a conexão entre o facto e o valor, pode ter um verdadeiro interesse no problema da história e da sociologia do Pensa-
mento.
Para os pensadores não históricos que consideram a verdade
como um absoluto supra-temporal, todos os sistemas passados são colocados no mesmo plano e são aceites ou rejeitados com referência a um sistema (nomeadamente, ao que tais casos está sem-
pre hipostasiado como verdade absoluta). Com este tipo de aproximação,
não
se pode
ver como
uma
confrontação
directa dos sis-
temas passados com o nosso para a determinação do valor de verdade dos anteriores possa ser, em sentido estrito, impossível.
138
O Historicismo
Se os primeiros filósofos como por exemplo, Platão, Augustino, ou Nicolas de Cusa parecem ter qualquer coisa em comum com as teses modernas, considerados de perto, eles sempre podem ser vistos como qualquer coisa de diferente. Porque no seu sistema e, ainda mais fundamentalmente, no conteúdo vital das suas vidas, toda a frase e todo o modelo de pensamento necessariamente desempenhavam uma função diferente e, por conseguinte, tinham um significado diferente. Não é nossa tarefa ocuparmo-nos em pormenor da parte histórica da obra. O que sobretudo
nos interessa neste contextoé sa-
ber que posições concretas se conseguem na parte sistemática. Tomaremos conhecimento, pelo menos de passagem, com uma filosofia e uma teoria do conhecimento que se baseia não nas ciências exactas, mas na história. Também a este propósito esqueceremos pormenores e limitar-nos-emos a uma discussão dos princípios filosóficos últimos do autor. Começaremos com as opiniões de Troeltsch relativas ao sujeito que
tem conhecimento
histórico. Aqui encontramos o primeiro
ponto de discordância com a filosofia de Kant e a dos seguidores contemporâneos de Kant, que estabelecem uma separação rígida entre a contemplação (teoria) e a prática e entre o sujeito omnipotente e a personalidade total. De acordo com Troeltsch, o sujeito detentor de conhecimento histórico não é um contemplativo puro.
No Kantianismo, o sujeito omnisciente, o assim chamado sujeito epistemológico, está completamente libertado de todos os impulsos voluntários concretos e das condições historicamente determinadas da vida física e geral. Como tal, é evidentemente um sujeito de abstracção, uma construção. Na nossa opinião é, em atenção à
sua
estrutura,
um
substituto
subjectivo
criado
para
responder
aos resultados cognitivos (Denkergebnissen) concebidos de um mo-
do puramente teórico, não afectado por determinações espaço“temporais. É porque as ciências exactas podem, na verdade, fazer
afirmações
em
cujo conteúdo
não entram
a posição
histórica e
local do sujeito conhecedor e a sua orientação de valores, que aqui podemos legitimamente construir um sujeito correspondentemente
139
Sociologia do Conhecimento
abstracto (livre da determinação histórica). Mas se tomamos como base da construção um sujeito cognitivo, a estrutura dos juízos e das afirmações do historiador, em todas as questões essenciais, chegaríamos a conclusões inteiramente diferentes. Não é possível nenhuma afirmação acerca da história sem que os pre-conceitos do sujeito observador entrem no seu conteúdo. A posição histórico-
“filosófica do observador torna-se evidente não só no sentido de
uma posição de concordância ou discordância com o que é relatado mas mesmo nas categorias de significado, no princípio da selecção e da sua direcção. Para tornar isto claro, aqui vai um exemplo: a partir do conteúdo de uma proposição matemática não é possível descobrir quando e onde foi concebida. Pelo contrário, todo o estudante de historiografia pode, em relação a qualquer relato histórico posto diante de si, determinar em que época, de que ponto de
partida de que aspirações culturais concretas a narrativa, pura matéria de facto, é escrita. E de novo, é possível fazê-lo, não somente
em termos de «pro» ou «contra» orientações do escritor, em termos daquilo que ele aceita ou rejeita, mas no sentido de categorias constitutivas de significado. Um positivista, um seguidor da escola histórica,
um
Hegeliano,
um
marxista
basearão
em
cada
caso
os
seus relatos em diferentes princípios de selecção e diferentes modelos
de
síntese,
ou categorias que dependem
das suas diferentes
posições histórico-filosóficas. Assim, a selecção de factos e o modo como são apresentados dependem não só da área de valor em que se conduz a investigação (i.e. se o assunto que tratamos pertence à arte, à ciência, à religião, etc.), mas a materialização concreta, historicamente determinada dos vários valores também entra numa estrutura categorial das análises históricas. Mas não podemos, no entanto,
conseguir
uma
metodologia
peculiar
deste
de conhecimento.
da história, se formalizamos
numa abstracção concreta aqueles aspectos que formam a natureza tipo
Todas estas observações
in-
terpretativas que em muitos aspectos estão para lá dos argumentos de Troeltsch foram necessários para clarificar o significado total da sua tese central:a de que o conhecimento histórico só é possível a partir de uma posição intelectual descoberta (Standort), o
140
O Historicismo
que pressupõe um sujeito que acolhe aspirações definitivas relativas ao futuro e que activamente apelam à sua compreensão. Só fora do interesse que o sujeito na acção presente tem no modelo do futuro, é que é possível a observação do passado. A tendência da selecção histórica, a forma da objectivação e representação só se tornam compreensíveis em termos de orientação da actividade presente. Este é o significado último e estas são as implicações do que Troeltsch designa pela expressão «síntese cultural dentro do presente» (gegenwartige Kultursynthese) (cf. Der Historismus und
seine Probleme, pp. 164-179).
Mas a nós parece-nos que este sujeito histórico, que procura uma síntese dentro do presente (i.e. a integração produtiva daquelas tendências do presente que ao homem activo aparecem ao mesmo tempo como louváveis e criativas) não deve ser identificado com o ego ocasional, subjectiva e empiricamente determinado do
historiador. O sujeito histórico está a meio caminho entre o ego
empírico do historiador e o sujeito puramente supra-temporal da teoria Kantiana do conhecimento. O sujeito histórico-filosoficamente relevante é precisamente o cerne da personalidade humana cujo ser e dinamismo
se consubstanciam
com
as forças activas do-
de
histórico que dependem
das aspirações con-
minantes da história. Muito se poderia ainda acrescentar à tese de Troeltsch: suplemento que, no entanto, seguiria muito de próximo o esquema geral da sua argumentação. Partindo de premissas semelhantes. Troeltsch selecciona quer os factos quer a objectividado
conhecimento
cretas do homem contemporâneo; assim, ele rejeita a utopia de um sistema supra-temporal de padrões e valores. Para Troeltsch a conexão essencial
entre
«padrão
de valor» e «síntese cultural dentro
da história» torna-se a verdadeira pedra angular da teoria da história. Assim, o problema da objectividade da ciência é levado a um nível inferior, e aproximado da investigação concreta. Este proble-
ma é deixado já no estreito ambiente da «relação de valores» for-
mal
em
geral,
onde
as diferenças
essenciais
entre
a história
e as
ciências naturais podem, de forma alguma, afirmar-se de forma total, mas é transformado numa questão de avaliação real, substan-
141
Sociologia do Conhecimento
tiva. O problema da objectividade torna-se assim mais difícil e complicado, mas por outro lado, é possível enriquecê-lo com vários traços retirados da prática da investigação histórica. Ao aproximarmos os problemas metodológicos e epistemoló-
gicos da história dos aspectos concretos da investigação histórica,
tornam-se imediatamente visíveis muitos problemas que estiveram escondidos quando nos ocupávamos só com um ponto de vista de estrita abstracção formal. Em primeiro lugar, ocupamo-nos com o significado das aspirações pragmáticas, extra-teóricas do homem. Assim se põe a descoberto um ponto essencial de todo o conhecimento histórico: isto é, o ponto de convergência entre a possibilidade de análise racional do passado e a ousadia, primariamente sugestiva, do irracional mental e as potencialidades psíquicas do homem total e da sua actividade. Esta convergência não deve ser posta de parte como fonte de erros; pelo contrário, devemos reconhecê-la como um elemento constituinte do conhecimento histórico, necessário para a sua caracterização. Em segundo lugar, torna-se possível mostrar e compreender a determinação posicional
(Standortgebundenheit)
histórico-filosófica
(sociológica) de cada
templação
a sua contemplação é uma espécie de acti-
item de conhecimento histórico (de que é consequência o facto de as imagens históricas do passado mudarem em cada época). Torna-se claro a existência dum /aço profundo entre a aspiração e o conhecimento e qual a natureza deste laço; são, por assim dizer, partes da mesma totalidade. Na medida em que o homem moderno só quer aprender para clarificar as suas aspirações supra-racionais, ele molda já o presente, mesmo se aparentemente persiste na conpura; mesmo
vidade. Por outro lado, este esforço de futuro é também uma fonte de conhecimento
das épocas passadas que uma qualquer época po-
de conseguir e que igualmente determina os limites do seu conhecimento. O que estas conclusões realmente nos permitem nada mais é do que a descoberta e a caracterização muito geral da estrutura factual do mundo que uma filosofia inspirada pela ideia cognitiva das ciências naturais tem de desrespeitar e tratar como
142
um
resíduo
enc
o
O Historicismo a eliminar. O facto de a história, porque está muito para além da crítica das fontes, dever ser sempre escrita de novo, não no sentido de um processo de correcção mas no sentido de uma nova orientação total, o facto de a história criar os seus princípios, pontos de vista e modelos fora da síntese contemporânea real, é aqui reconhecido como um princípio teórico da ciência histórica. Queremos frisar, como já dissemos à laia de introdução, que a teoria do conhecimento, no que diz respeito à sua estrutura profunda, não consegue muito mais do que isso. Kant, por exemplo, só podia levantar a sua questão crítica da seguinte forma: «Encontramos as ciências exactas na vida; como é que elas são possíveis?» — e tudo o que ele a este propósito consegue só pode ser compreendido como uma tentativa de descobrir, a partir da sua questão central, todos aqueles princípios que estão implícitos quando postulamos este tipo de conhecimento. A esta luz a sua crítica nãoé tanto uma crítica como uma justificação subsequente da validade presumida de tal conhecimento.
Troeltsch
não o diz, mas realmente ele assu-
me uma posição epistemológica semelhante em relação à ciência histórica como o tipo de conhecimento que é postulado. Também ele diz: O conhecimento histórico, tal como nos é dado, tem esta e esta estrutura (que descreve); mas devemos aceitá-la como válida, i.e. como reveladora de um conhecimento verdadeiro; a ser assim,
como e com base em que afirmações é possível? Já vimos que as afirmações implícitas se revelam aqui diferentes das que subjazem o conhecimento do tipo das ciências naturais. Podemos pensar que dos princípios desta teoria do conhecimento, semelhante ao pragmatismo, se conclui uma doutrina da relatividade de todo o conhecimento histórico. Mas é precisamente neste ponto que o historicismo se afasta do relativismo. O simples facto de todo o item do conhecimento histórico se determinar por uma perspectiva posicional particular, e de haver uma fusão íntima da imagem histórica particular de cada época com as verdadeiras aspirações e valores concretos, não implica, de modo algum,
a relatividade do conhecimento assim obtido. Os valores concretos que
servem
como
um
modelo
desenvolveram-se
na sua totalidade
143
Sociologia do Conhecimento
de
sentido,
organicamente
fora do mesmo
processo histórico que
ajudaram a interpretar. Existe assim um elo subtil entre o pensamento e a realidade o sujeito e o objecto são aqui essencialmente
idênticos.
Nenhuma dúvida se levanta ao facto de o historiador
só poder aplicar o seu padrão de valores à sua área cultural, à parte do corpo
de história de onde
saiu o sistema de valores actual —
e, na verdade, Troeltsch esboça estas conclusões. Fica ainda a questão de saber o que dizer acerca das diferentes análises históricas
que
dos
mesmos
acontecimentos
gerações de historiadores.
Em
foram
feitas
por
sucessivas
relação a isto, Troeltsch, introduz
uma ideia ainda não mencionada aqui, nomeadamente, a que de além da aplicação de modelos baseados na posição histórica da
perspectiva
do observador, podemos
as épocas passadas em
também
descrever e avaliar
atenção aos seus padrões e valores próprios.
Esta caracterização do conhecimento o histórico também é correcta. Na verdade, os historiadores podem compreender épocas passadas a partir de contos das suas próprias épocas, num modo de interpretação
denominado
de crítica
e representação
imanente
do
passado. Isto é possível através da compreensão (Verstehen) como uma faculdade intuitiva do historiador que lhe permite penetrar no seu objecto, nas apreciações concretas das épocas em questão, a um grau impossível quando tratamos com a natureza. Neste contexto,
portanto,
nenhuma
dificuldade se levanta nesta fase do co-
nhecimento histórico. Subsiste, no entanto, o problema mencionado em 1º lugar da formação de modelos que permitam ainda a coexistência de análises contraditórias do mesmo objecto histórico. Troeltsch não trata esta parte do problema com clareza suficiente, mas faz algumas observações passageiras que sugerem a direcção da sua solução. Assim diz ele: «O assunto histórico no seu pormenor concreto e na sua autenticidade crítica (Begrundetheit) permanece o mesmo, e só podemos desejar aprofundá-lo de diferentes ângulos». Esta afirmação parece apontar, mesmo se com clareza
acima
assim
144
insuficiente,
delineado.
dizer,
de
para
a possibilidade
O objecto histórico
uma
época)
permanece
de
resolução
(o conteúdo idêntico
do
problema
histórico, por
«em
si mesmo»,
O Historicismo
mas é condição essencial da sua cognoscibilidade o só poder ser compreendido de pontos de partida intelectuais históricos diferentes, ou, por outras palavras, o só podermos
visionar vários
«aspectos»
do mesmo. Por analogia com a descoberta de Husserl (1), segundo a qual é característica do objecto espacial o facto de o só podermos ver em diferentes «perfis» (Abschattungen), i.e. de posições locais definitivas e em perspectivas definitivas, podíamos, pareceme, aventurar a tese segundo a qual só uma parte da essência de um objecto histórico-cultural, mas também de um objecto físico é penetrável em «perfis mentais e físicos», isto é, através de certas
intersecções e dimensões de profundidade da natureza de que é dependente na localização perspectivista físico-mental do sujeito observador, intérprete.
As diferentes imagens históricas não se contradizem entre si nas suas interpretações, mas rodeiam o conteúdo histórico materialmente idêntico de diferentes pontos de partida e a diferentes graus de profundidade. Perfeitamente trabalhadas, esta doutrina deveria conduzir à demonstração da existência do «progresso» (embora não necessariamente o progresso unilinear) na sequência de várias teorias históricas de épocas sucessivas. Na obra de Troeltsch faltam discussões mais extensivas neste sentido. Tais elaborações exigiram uma dialéctica total (2) que, no entanto, falta. Em vez
(1) Cf. Husserl, Ideen zu einer reinen Phanomenologie und phanomenologischen Philosophie, 8 41, Halle, 1913, Husserl alarga a sua tese de forma a abranger
também
todas as particularidades do objecto espacial; nós limitamo-
-nos nesta imagem à Gestalt. (2) Gostaríamos de citar uma passagem que consideramos importante: «Compreender
uma
das que
sejam.
época é medi-la pela sua natureza e ideias, por mais complicaSe esta
é a primeira
tarefa
relativa à totalidade
estranha,
a
segunda é comparar e, portanto, também, medir este espírito estranho (Geist) com o do nosso contexto de vida. Então, julgaremos o mundo estranho não só pelos seus padrões, mas também pelos nossos, e a partir destes dois impulsos diferentes resulta finalmente um movimento novo e particular».
145
Sociologia do Conhecimento
disto, encontramos uma tentativa de distinguir períodos na história da historiografia, que, estimulante em si mesma, não pode de maneira nenhuma determinar hierarquicamente o significado e o valor das diferentes posições. Se concedemos prioridade à filosofia da história, há ainda necessidade de descobrir não só a sequência genética, mas também uma sequência interpretativo-genética (sinngenestische) dos modelos de cultura; o sistema estático dos modelos deve de algum modo ser transformado num sistema dinámico. Que possibilidades de desenvolvimento futuro podemos conseguir pela observação das tendências inerentes ao nascimento do pensamento historicista até ao nossos dias? Um exame do campo
revela imediatamente
duas vias fundamentalmente diferentes de
conseguirmos o mesmo objectivo. Esta diferença surgiu pela primeira vez quando a dialéctica Hegeliana e o método da «escola
histórica» alemã se diferenciaram entre si; mas a mesma dualidade
persiste ainda hoje, no tratamento de muitos problemas tal como se mostra pela diferente aproximação dos «pensadores formais» (Formdenker) como Troeltsch lhes chama,e os «filósofos da vida». Reduzida a uma forma, a diferença entre as duas orientações pode ser expressa pela afirmação de que uma apela ao substracto último do processo
histórico
«vida», e a outra, ao «espírito». O espírito e
a vida referem-se a dois tipos de experiência fundamentalmente di-
ferentes, a duas atitudes fundamentalmente diferentes face ao mis-
tério semi-escondido para lá de cada acontecimento histórico cada uma designa a outra por slogans depreciativos que partem da contraposição de termos como. O racionalismo e o irracionalismo, a construção e a intuição, o conceito e a imagem. Podemos definir o modo como as doutrinas principais da «filosofia da vida» apareceram
pela primeira vez na obra dos históricos alemães e, por outro lado, como o conceito dialéctico hegeliano persiste e se tornou mesmo mais acentuado nas construções históricas do marxismo (1). (1) Cf. o livro de G. Lukáks que vamos citar mais tarde e também Karl Korsch
Marximus und Philosophie, Leipzig, 1923. H. Cunow, Die marxistische Geschichts
— Geselischafts
-se ainda neste contexto.
146
— und Staatstheorie,
Berlin, 1920, pode
mencionar-
O Historicismo
A oposição fundamental entre os «hegelianos» e a «escola
histórica», entre os filósofos históricos racionalisticamente orientados, por um lado, e os filósofos da vida, por outro, está correctamente demonstrada no seu tratamento do conceito. Enquanto que para o hegeliano, o lógico, a essência do processo do mundo é um conceito e, por conseguinte, o movimento fundamental do espírito é traçado no movimento dialéctico do conceito, para o pensador irracionalista e intuitivo, o movimento fundamental da vida só pode ser compreendido nas suas manifestações pela assimilação intuitiva do fenómeno concreto; poderíamos, no máximo, tentar uma sua caracterização através de conceitos descritivos» ou retratar as suas propriedades de Gestalt. É imediatamente evidente que a última posição conduz à elaboração de novos tipos de conceitos. Assim, aos conceitos de tipo «funcional» e de «classe» já estabele-
cidos acrescentar-se-iam os conceitos «descritivos» no sentido de
Husserl (1), e também o conceito histórico-filosófico de «totalida-
de individual» no sentido de Troeltsch, que, segundo ele, se caracteriza
pelo
facto
de
não ser totalmente
abstracta ou formal, mas
retendo sempre um núcleo intuitivo irredutível. Com a ajuda de tais conceitos é possível representar todas as manifestações de vida numa unidade sócio-cultural como uma documentação da mesma totalidade historicamente individualizada. Nesta análise histórica, Troeltsch aponta já para as capacidades e limitações de ambos os métodos. A dialéctica hegeliana torna a história demasiadamente lógica. Transforma artificialmente todos os conteúdos irracionais em conteúdos lógicos e esquematiza todo o processo evolucionário dentro da tricotomia particular da tese, antítese e síntese; algo que não pode ser feito sem violentar os factos reais. Por seu turno, ex. os irracionalistas, os seguidores da escola histórica, por muito que se excedam no tratamento intuitivo das correlações subtis entre as várias manifestações da vida dentro da mesma época, não fazem mais nada do que esboçar retratos indi(1) Sobre «conceitos descritivos», cf. Husserl, loc. cit., seccção 73-74. 147
Sociologia do Conhecimento
viduais dos vários períodos (ou «espíritos do povo»). Nem mesmo
estão conscientes da necessidade de combinar retratos individuais numa unidade dinâmica de um processo evolucionário. Mas já vi-
mos que é uma questão de vida ou de morte para o historicismo o de ser capaz de ligar as várias épocas num modelo evolucionário significativo, apesar das suas diferenças superficiais. Por outro lado, como resultado de tendências irracionalistas, que próximas dos esforços da escola histórica, incluem também filósofos como Schopenhauer, Nietzsche, Bergson, Dilthey, Simmel e os modernos fenomenologistas, parece imediatamente e de todo impossível impor em história um esquema conceitual, como tentaram os hegelianos, para servir uma estrutura histórico-filosófica. Parece também certo que a filosofia da história não atingiu o seu objectivo quando se ocupou exclusivamente com a investigação documental sem manter um contacto mais próximo com o empirismo histórico. A filosofia da história não pode significar uma dedução de um princípio, um constrangimento dos factos; só pode significar um esforço deliberado para conseguir a unidade das regularidades mais profundas no processo histórico. Neste sentido, a necessidade de uma dialéctica como um sistema dinâmico hierarquicamente ordenado de modelos ainda existe para aquelas áreas da investigação histórica que são susceptíveis de racionalização. Que
Troeltsch
procura
a reunição
dos
dois
métodos
é uma
conclusão que se retira dos comentários que faz sobre as várias tentativas de definir um conceito de evolução. Não nos é, no entanto, claro, o modo como esperava conseguir tal síntese sem tentar mesmo elaborar uma dialéctica completamente amadurecida, e pela substituição no fragmento publicado da sua obra da ideia de «modelo da história», e mesmo da ideia de um «esquema periódico» ainda mais estreito por uma ideia de evolução. De qualquer forma o trabalho é um tronco, a que falta a continuação do 1º volume. Não podemos, portanto, afirmar nada de certo, mas dificilmente
se poderá duvidar que este 2º volume teria acrescentado algo de essencialmente novo a este respeito (1). (1) Em
relação ao que foi dito, não encontramos
dificuldade mencionada
148
acima, mesmo
solução essencial para a
nas cinco conferências proferidas por
O Historicismo
Troeltsch, parece-me, foi o primeiro a encontrar uma verdadeira aproximação à teoria do historicismo. É surpreendente encontrar as ideias essenciais do seu trabalho volumoso já claramente esboçadas num ensaio publicado há cerca de trinta anos, Moderne Geschichtsphilosophie (1) ainda é mais surpreendente como uma manipulação relativamente pequena de uma multidão de material
tornou
as suas conclusões mais transparentes. Neste caso e pela
terceira vez parece que a tentativa de uma filosofia pessoal da história é inserida num exame histórico de concepções histórico-filo-
sóficas e sociológicas de outros autores (2). HI. AS FORMAS
DO MOVIMENTO HISTÓRICO
Neste estudo apenas quisemos formular tão concisamente quanto possível os problemas mais essenciais do historicismo, com base na literatura existente e na demonstração da sua fusão íntima com a situação presente. Na nossa opinião, a principal questão que apela
à discussão
neste
contexto
é a da oposição
radical entre o
historicismo, por um lado, e a filosofia da supra-temporalidade e do «modo» estático de vida que lhe corresponde, por outro. Espera-se que esta discussão, nos permita finalmente, indicar onde assentam aqueles problemas que levantam uma dificuldade intrínseca à própria doutrina, e qual acção sobre o problema devemos
desenvolver para não perdermos o contacto com os problemas importantes do nosso tempo. Uma filosofia da história completamen-
(cont.) Troeltsch Berlin, 1924. (1) Apareceu
sob o título Der Historismus und seine
na altura
no Theologische Rundschau
VI,
Uberwindeung,
1904; agora re-edita-
do no vol. Il do seu Gesammelle Scriften (pp. 673 e ss.) (2) Cf. dois trabalhos igualmente volumosos: R. Flint, History of the Philosophy of History,
Edinburgh and
London,
1893; P. Barth, Die Philosophie der
Geschichte als Soziologie, vol. |: Grundlegung und Kritische Ubersicht, aa,
e 42 edições, 1922; o segundo volume nunca chegou a ser escrito.
149
Sociologia do Conhecimento
te elaborada só pode ter lugar em consequência da devoção de uma geração de investigadores a esta tarefa comum de impulso vital; a análise metodológica será, como no passado, meramente incidental em relação ao trabalho substantivo. Na explanação que se vai seguir, de forma alguma seguir, de forma alguma queremos fixar todo o conjunto de problemas no historicismo; pretendemos, antes acrescentar só alguns comentáriose apontar outros problemas que se rendem com o ponto em que nos afastamos da obra de Troeltsch. Se pensamos de novo numa alternativa fixa e imutável entre a construção lógico-dialéctica da filosofia da história, no sentido, digamos, hegeliano, e numa representação orgânico-intuitiva das Gestalts das várias unidades vitais e culturais, como é desejada, por exemplo, pela escola histórica, veremos, num exame cuidadoso, que um qualquer
método
de análise só é, na verdade, adequado a
tratar desta ou daquela área específica da vida ou cultura. Não se pode esquecer que um método conceitual-sistemático está muito melhor adaptado à representação, por exemplo, da evolução da filosofia do que, por exemplo, à análise da história da arte. Com qualquer dos dois sistemas filosóficos (ou mais especificadamente, com qualquer dos dois tipos de filosofia) será sempre possível su-
mariar o núcleo sistemático de uma de forma a ser directamente
comparável com o da outra. E mesmo
mais do que isto será tam-
bém
internas surgem
possível
mostrar que dificuldades
com
o de-
sintegrar de um sistema anterior e que seus elementos serão incorporados num sistema posterior, embora suplantados por ele, no sentido hegeliano de Aufhebung (1). Assim, em relação aqueles
(1) Uma
análise das posições últimas dos diferentes sistemas filosóficos, na
forma restrita de uma justaposição sociológico-histórico-filosófica, contrastará não com os sistemas dos pensadores individuais, mas com tais grupos de filosofias (tendências) que possuem
(um comum
pontos de partida significativamente comuns
axiomático, por assim dizer). As formulações individuais destes
pontos de contacto
nos sistemas dos pensadores
individuais são só tentativas
de conseguir versões sistematicamente renovadas destes pressupostos últimos
150
O Historicismo
campos em que o conceito está realmente no seu elemento, podemos proceder a uma análise puramente conceitual, e estaremos também em posição de conseguir uma dialéctica histórica (que, no entanto, não necessita sempre de seguir um ritmo triádico, nem de assumir que tudo o que é mais recente é de maior valor). Os campos culturais já racionalmente organizados no que diz respeito à sua constituição original permitirão, em grande medida, uma análise racional do seu desenvolvimento histórico. Isto aplica-se, em primeiro lugar, a todos os campos filosóficos, desde as ciências especiais à filosofia, que utilizam procedimentos conceituais (no sentido mais lato da palavra) no tratamento do seu assunto, e sistemati-
(cont.) que em últimas análise derivam do processo total da vida. Em tais análises sociológico-histórico-filosóficas, o tempo
cronológico
e o tempo históri-
co-filosófico não são automaticamente coincidentes. Os primórdios de uma filosofia dos nossos dias pode já existir (como precursora) numa forma sedimentar
antes
do seu aparecimento
nela, De novo, as filosofias cujas orienta-
ções se baseiam em pontos anteriores de partida podem sobreviver juntamente com
uma
nova filosofia. E mais: os sistemas individuais podem conter e, con-
terão geralmente, elementos de sistemas anteriores mais ou menos conexionados com o novo. Também a mesma
aqui, a estrutura do desenvolvimento intelectual é
de qualquer outro: em primeiro lugar, as novas ideias aparecem den-
tro da estrutura do velho sistema e só se separam dele a pouco e pouco. Mas mesmo aqui é possível, como em qualquer outro lugar, distinguir totalidades ou tendências ideais-típicas umas das outras. Só neste sentido podemos tentar contrastar
uma filosofia estática, supra-temporal com o historicismo. Tais teo-
rias são controláveis no sentido de que se pode mostrar que os sistemas axiomáticos distinguidos pelas teorias correspondem, na verdade a dois tipos de fi-
losofar fundamentalmente distintos. Tal justaposição só é histórico-filosófica e sociologicamente relevante na medida em que estas filosofias, que se mostra
diferirem em 1º lugar no que diz respeito ao seu conteúdo imanente, teórico, se sucedem umas às outras em conjunção com uma sequência semelhante de um par de orientações não filosóficas, e em correlação com uma mudança correspondente em toda a estrutura social.
151
Sociologia do Conhecimento
za-se desta forma. Mas está também aberto a uma análise racional
daqueles campos que não estão limitados às manipulações do reflexivo e do conceitual mas que ainda constituem sistemas vitais permeados por uma estrutura racional apesar da sua origem não-racional, não-reflexiva. A economia, o sistema legal, os costumes de uma época não nascem na sua totalidade com base num plano intencionalmente escolhido de um indivíduo. No entanto, eles têm uma estrutura realmente significativa, sistematicamente compreensível, em virtude da orientação racional, significativa da conduta humana em geral. O crescimento histórico de tal estrutura é também susceptível de ser conceptualmente analisado como uma
sucessão de modelos vitais de uma sociedade. O historiador e o fi-
lósofo da vida estão sempre em posição de demonstrar, por exemplo, o sistema económico da Idade Média, do 1º capitalismo e do capitalismo desenvolvido, como uma sucessão de modelos sistemáticos, intrincados uns nos outros. Há uma certa afinidade entre as teorias reflexivas por um lado, e os modelos vitais permeados pela racionalidade, por outro, em virtude da qual a mesma construção
radical pode abranger ambos sem constrangimento (1). São precisamente estes campos que atraem primariamente a atenção daqueles cujos objectivo principal é a ordenação racional do processo
histórico.
Por outro lado, temos aqueles pensadores para quem a tarefa da filosofia da história consiste exclusivamente na elaboração, numa aproximação tão próxima da realidade concreta quanto possivel, da relação das várias manifestações vitais de uma época. Estes filósofos concentraram a sua atenção sobre campos da cultura diferentes dos da primeira escola procuraram os seus modelos em áreas inteiramente diferentes. A religião e a arte, o ethos e o erotis(1) A este nível de investigação, não queremos entrar no facto de se diferenciarem ainda dentro do desenvolvimento racionalizável outros dois tipos: o desenvolvimento racionalmente progressivo e o racionalmente dialéctico; em breve trataremos desta distinção .
152
O Historicismo mo, isto é, todos aqueles campos que são, por natureza essencialmente psíquicos a uma tal sinopse são acessíveis: uma logificação extrema violenta-os. Estes campos são compreendidos hoje menos como sistemas do que como «partes» de uma Gestalt psicológica unificada de várias épocas. Mas mesmo aqui, podemos traçar um modelo da transformação progressiva desta Gestalt, mesmo se este modelo de transformação difere do da sucessão dos sistemas teóricos. Devido à tendência «imperalista» inerente a cada método, os racionalistas excederam a aplicação da ideia racionalista de progresso, e os «filósofos da vida» a do método sinóptico concreto; assim ambos realmente falsificaram a análise do crescimento ou progresso dos seus campos escolhidos de cultura. Os racionalistas não consideraram a natureza peculiar dos campos irracionais; os irracionalistas a dos campos racionais. Para evitar estes perigos, o melhor procedimento parece ser o de combinar os dois métodos histórico-filosóficos, isto é, descrever o crescimento nos campos psíquicos
campos
culturais
como
intelectuais, como
uma
uma
transformação
sucessão
de
Gestalt,
racionalmente
e nos
explicá-
vel e como uma descoberta sistemática das fases consecutivas. Mas
então a questão que se levantará é a de saber se não estaremos a aplicar dois métodos separados, distintos um do outro. Será possível combinar a perspectiva de transformação da Gestalt relacionada com a esfera psíquico-emocional, com o método sistemático-racional, que pertence correctamente ao tratamento da «evolução» intelectual? Somos da opinião que tal é possível, devido à unidade essencial do racional e do irracional na consciência humana, uma unidade de natureza tal que o racional está conexionado com o seu pólo oposto, o irracional, através de um sem número de estádios intermédios. Podemos mencionar, desde já, o facto de haver áreas que assentam,
por assim dizer, numa zona intermédia entre a expressão
psíquico-emocional
e o «documento»
(1), e o sistema
racional-
(1) Sobre o «significado documental», ver o ensaio sobre a Teoria da Interpretação da Weltanschauung, neste volume.
153
Sociologia do Conhecimento
mente
organizado,
intelectual.
Este é o caso,
por
exemplo,
dos
«costumes». Os costumes de uma sociedade podem ser facilmente compreendidos em termos de Gestalt, como uma projecção e uma documentação concreta da psique de um povo (Vo/ksseele). Mas podem simultaneamente ser representados de uma forma sistemática, porque constituem um sistema mais ou menos consistente, auto-suficiente, estruturado. O sistema legal por seu turno, representa uma orientação para o pólo racional, quando comparado com os costumes; mas contém ainda abundantes elementos psiíquico-emocionais, de tal forma que também pode ser entendido como um «documento». A escola histórica já usou a esfera da lei como uma expressão privilegiada do «espírito popular» (i.e. psique). Mas é sobretudo a filosofia o exemplo mais importante de um campo em que o racional e o supra-racional se interpenetram. A lógica, a teoria do conhecimento, a metafísica de um determinado período revelam uma mistura de racional e irracional. Já que de todas estas disciplinas, é a lógica que revela a maior preponderância de racionalidade, podemos discernir na sua história um progresso mensurável em termos de um modelo imanente. Na epistemologia, no entanto, os dois extremos tocam-se. A teoria do conhecimento proclama ser um sistema racional estritamente auto-suficiente; à luz de uma análise estrutural pode mostrar-se que os axiomas de que parte qualquer sistema epistemológico, derivam sobretudo de pressupostos metafísicos-ontológicos (1). Embora a epistemologia defenda ser ela quem faculta o modelo pelo qual se pode apreciar a verdade dos sistemas metafísicos, a sua base parece ser igualmente constituída por posições metafósicas definitivas. Assim, por exemplo, toda a orientação epistemológica pessoal depende de sabermos se partimos do objecto ontológico como um princípio, como faziam os antigos, ou de uma filosofia da consciência, como fazemos hoje; e, neste caso se concebemos a Razão como o ele-
(1)
Trato
este
assunto
acima, em rodapé. 154
no
Strukturanalyse
der Erkenntnistheorie,
citado
O Historicismo mento essencial da consciência que o torna irracional como limite, ou antes, posicionamos a experiência mística irracional como o elemento central, representando racionalmente a periferia. Outras dife-
renças críticas desta natureza separam os que tomam, uma posição
dinâmica e estática respectivamente; aqueles que consideram as várias esferas culturais como independentes e auto-suficientes, por um lado e aqueles que as consideram agrupadas numa unidade, por outro; aqueles que separam nitidamente o Ser e o Valor, e aqueles que retiram um do outro, quer deduzindo o Ser do Valor logicamente, ou, de outro modo, o Valor do Ser geneticamente; aqueles que vêm na teoria e na prática aspectos da mesma unidade e aqueles que os conservam separados como atitudes estritamente heterógeneas. Todas estas questões estão já lá antes de a epistemologia o ser; dentro da epistemologia, são tratados como evidências. Derivam, no entanto, de fontes metafísicas definitivas que reflectem
algum
modo novo de experimentar uma base existencial constan-
temente em movimento. Todos temos uma metafísica, mesmo o positivista que nega todas as metafísicas por uma questão de princípio; não podemos ter hoje qualquer dúvida sobre isto. Os pressupostos metafísicos que desta forma entram na estrutura puramente lógica da epistemologia não são, como vimos, nem puramente racionais, nem auto-suficientes. Não representam, além do
mais,
exercícios
puramente
cerebrais,
mas
expressões
concei-
fenomenológico,
com
certeza eterna, co-
tuais de experiências primárias contrastantes dos diferentes sujeitos que vivem e filosofam ao mesmo tempo. Mas a este respeito, a filosofia do sujeito filosofante não é, de um modo estrito, o seu produto, mas sempre a reflexão da psique que supra-individual e da posição intelectual. O que o indivíduo experimenta, com um sentimento
de evidência
mo pressuposto a-problemático, são na verdade, meras correlações de uma configuração específica dos factores vitais e culturais, de uma Gestalt cultural que está permanentemente em movimento. Só a relativa rigidez das palavras pode esconder o facto de para lá das mesmas haver uma mudança constante dos significados reais. Um exame mais próximo mostra-nos que são sempre diferentes as
155
Sociologia do Conhecimento
conotações das várias palavras. A única razão de os sistemas filosóficos serem sempre desintegráveis, e de as correlações últimas que a mente
deixa
a descoberto
constantemente
se quebrarem
é a de
o substracto básico (quer lhe chamem «vida» ou «corrente de experiência») sempre se apresentar em configurações diferentes quando sucessivas gerações de observadores o analisam: porque a «cultura objectiva», como uma projecção deste substracto básico, sempre se revela em diferentes aspectos materiais e formaise porque a auto-reflexão sempre quer significar algo diferente, portanto, ela também
vai encontrar diferentes dados
no «eu».
É, então,
na
filosofia que os dois lados do princípio — Razão e Psique — se batem mais radicalmente; não é de admirar já que ela represente ao
mesmo tempo, o conhecimento e a construtividade (Gestaltung).
A filosofia da história, portanto, tem disponíveis dois métodos separados. Ao aplicarmos um, retrataremos o crescimento dos campos de cultura primariamente psíquicos. Este método é essencialmente o mesmo que foi introduzido pela «escola histórica»; consiste em mostrar a unidade básica de todos os vários campos da expressão psíquica e a delienação de uma imagem concreta da Weltanschauung unitária para lá destes campos. O outro método consiste em acompanhar a história daqueles sectores de cultura que se desenvolvem
de um
modo
racional-sistemático, ou pelo menos, ra-
cional na definição desta estrutura racional. Mas estes dois métodos não estão completamente desligados. Porque, como já mostramos, encontramos certos pontos mesmo nos campos culturais que revelam uma organização racional, onde é possível mostrar como o racional depende de factores psíquico-emocionais; estes pontos em filosofia são precisamente os princípios axiomáticos. Por seu turno, os campos predominantemente psíquico-emocionais, como a arte, a religião, os costumes, etc., são racionalizáveis em graus diferentes e a diferentes níveis e, portanto, sempre revelam um
«ponto de correspondência» em que se pode demonstrar um paralelismo, por exemplo, entre a racionalidade económica dominante numa época e o modo específico de expressão emocional. 156
O Historicismo
Podemos ver agora qual o significado da sugestão que Alfred Weber (1) faz no sentido da distinção entre um processo de «cultu-
ra» e um processo de «civilização», tratando o primeiro como uma Gestalt concreta e o último como uma progressão racional e limitada que permita o levar de todas as obras de uma época para a seguinte. Weber encontrou um modo de utilizar tanto a ideia de progresso, definida pelo racionalismo, como a ideia de organicismo que é característica da escola histórica pela simples aplicação de cada um destes princípios ao campo apropriado. O fenómeno «psíquico-emocional», que preenche aquilo a que Weber chamou de «cultura», só pode ser correctamente compreendido através de métodos de intuição concreta e de representação que acentuem a Gestalt e por um tipo específico de conceito criado para este objectivo. A «civilização», no sentido de Weber, pode por outro lado ser descrita pelo método racionalizador da filosofia do Huminismo que a concebia como um progresso contínuo. Acreditamos no entanto, que há um terceiro caminho que fica a meio termo entre a «cultura» e a «civilização» neste sentido, nomeadamente, a filosofia e as disciplinas que lhe estão ligadas, e também que este campo intermédio revela um carácter acentuadamente dialéctico na estrutura do seu desenvolvimento. Para os objectivos deste debate, definiremos a diferença entre o tipo de «progresso» racional e de «evolução» dialéctica da seguinte maneira: uma sequência de desenvolvimento é dialéctica quando as sucessivas estruturas substituem outras de tal forma que a estrutura seguinte preserva as anteriores na forma de um novo sistema com um
novo centro de sistematização. Uma sequência, por outro lado, tem carácter de um progresso limitado quando todo o desenvolvi-
(1) Cf.
«Principielles zur
Kultursoziologie», Archiv fur Sozialwissenschaft,
1920. Weber diferencia, para lá do «processo de civilização» e do «movimento de cultura», um outro «processo social» que é irrelevante no contexto pre-
sente. Uma investigação especificadamente orientada, concentrar-se-ia natural-
mente neste campo.
157
Sociologia do Conhecimento
mento
é abrangido
dentro de um e do mesmo sistema que mera-
mente se torna mais completo com o tempo que passa e que, por
assim dizer, acrescenta novos capítulos a um sistema que ainda po-
de crescer, mas que é sempre coerente consigo. Enquanto que a
evolução da filosofia, particularmente da ética, da metafísica e da epistemologia, é dialéctica por natureza, a da tecnologia e das ciências naturais exactas revela um tipo progressivo. A quantificação, a redução de fenómenos a um sistema estático de medida, assegura-nos que o «progresso» das descobertas das ciências naturais tem lugar dentro de um «sistema estático». Pode acontecer que as hipóteses que os prendem
a estas descobertas
matematicamente
ex-
pressas sejam de natureza diferente. Mas nem todas as ciências têm
esta estrutura «estática», que sempre desenvolve um e o mesmo sistema. Com
base no que tem sido dito, aceitaremos a tese de que
a filosofia da história e mesmo a da ciência histórica, na medida em que abrange elementos da filosofia da história (1), revela um tipo de desenvolvimento
semelhante ao psíquico ou cultural, em
cada um dos estádios essencialmente difere dos outros.
É só pelo tomar em consideração as diferenças da sua estrutura interna que podemos aceitar a opinião frequentemente expressa segundo a qual a filosofia e ainda a história são ciências num sentido diferente da matemática ou da física, não permitindo uma al-
ternativa erradamente levantada que nos ilude ao classificarmos as
primeiras como arte» (num sentido depreciativo). A filosofia e a história representam um tipo de conhecimento que é essencialmen-
(1) Há uma dimensão da historiografia que tem uma estrutura «progressiva»: a investigação documental e a crítica estão a tornar-se mais «exactas» nos seus
métodos, não só no sentido em que a fonte material é maior, mas também no sentido em que a crítica está a ganhar
em
actividade. Quea
escrita história é
determinada pela «posição temporal» do escritor só se tornar evidente nas interpretações globais e na apresentação literária que são determinadas por uma
filosofia da história definida mesmo no caso dos autores professarem um positivismo a toda a prova.
158
O Historicismo
te determinado por uma posição cultural e que é semelhante à cultura e ao psíquico; mas se aceitarmos a ideia de uma perspectiva dialéctica dinâmica do tipo de conhecimento, elas não perdem a sua dignidade de ciências por este facto. Das observações feitas é claro que a distinção entre o «psíquico cultural», o «civilizacional» que revela uma estrutura progressiva racional e o tipo «dialéctico» de desenvolvimento racional, não coincide com a delimitação essencial das «esferas» ou «campos culturais. Por exemplo a «arte», que à primeira vista apareceria como algo pertencente exclusivamente ao domínio do «psíquico-cultural», inclui elementos que revelam traços «progressivos» de «civilização». Também aquilo que em arte designamos por técnica, que é primariamente o jeito, mas também a aptidão diferencial que
alguns
artistas
possuem
(questões de perspectiva, etc.), pode
ter uma estrutura progressiva de desenvolvimento. A dimensão psico-emocional da arte começa quando nos perguntamos que uso e que certa época fez destas capacidades, que estados físicos exprimiu, e que «preferência de desenho» (Gestaltungswollen) se manifestou. Por seu turno, a dimensão «progressiva» das capacidades, etc., depende de factores psíquico-culturais em atenção à sua génese psicológica, e ao facto de uma determinada sociedade ter al-
cançado uma certa «maturidade»
para dominar as realizações civi-
lizacionais. Os elementos civilizacionais, já existentes, fortalecidos
pela sua dinâmica evolucional própria, podem desenvolver-se independentemente da esfera psíquica; mas dependem largamente de factores psíquicos quando aparecem pela 12 vez e quando ultrapassam certos pontos críticos de transformação. Devemos lembrar-nos da principal questão que preocupava Max Weber, a questão de saber que
bases
culturais favoreceram
o aparecimento
e descoberta
completa de forças como o capitalismo, as ciências exactas, etc.. Tomando e desenvolvendo a distinção de Alfred Weber entre «civilização» e «cultura», distinguimos três tipos de sequências de desenvolvimento: o desenvolvimento psíquico que só pode ser representado como uma Gestalt concreta; o desenvolvimento dialéctico em que certos campos racionalizados se re-organizam em torno
159
Sociologia do Conhecimento
de novos centros sistematizadores; e a evolução progressiva em que se re-elabora gradualmente o mesmo sistema. O problema dos pa-
drões de valores deve ser diferenciado de acordo com estes três ti-
pos de sequências históricas. Assim, quer os conceitos empregues, quer os modelos aplicados são os mais simples quando escrevemos a história de um campo cultural, como a tecnologia ou as ciências exactas, que «progridem» em linha directa e só se desenvolve num único sistema. Neste caso, não precisamos de tomar em consideração nem a nossa «localização» histórica, nem as várias peculiaridades historicamente determinadas do tempo que consideramos. Tudo o que temos de dizer é que os nossos antecessores nestes campos não conheciam ainda a maior parte dos aperfeiçoamentos que possuímos hoje, ainda não os tinham descoberto. O que eles já possuiam nestes campos civilizacionais sempre expansores, era uma parte autêntica
do mesmo
sistema que estamos
ainda interessados
em desenvolver. O fenómeno peculiar da mudança de significado não tem lugar nestes campos. O teorema de Pitágoras significa para os gregos o mesmo que para nós. Uma intervenção técnica (1), ex: um machado, não sofre alteração no sentido com o decurso do tempo. Pelo contrário, um fenómeno psicológica e «culturalmente» determinado, como por ex., um culto grego, significa algo tão inteiramente diferente para os gregos e, digamos, para os Indianos ou para nós, que mesmo o uso de um conceito generalizador (o de «culto») é extremamente problemático, se queremos, na verdade, compreender a essência profunda do fenómeno. Como, no entanto, um fenómeno desta natureza nada mais é do que aquilo que o
homem
pensou dele no seu tempo, o mais importante não é consi-
derá-lo como
(1)
A
entidade
rígida, imutável,
tecnologia pode, porém,
é evidente
que a interpretação
mas antes ter atenção aos
aparecer «disfarçada» de magia. Nestes casos mágica
que acompanha
a invenção
técnica,
enquanto tal, pertenceà invenção psíquico-cultural da época em questão, mas as épocas
posteriores
dificilmente
deixarão
isolado
o elemento
técnico da invenção — que melhora de uma forma «progressiva.
160
puramente
O Historicismo vários significados. Assistimos a um progresso na esfera da civilização; as conclusões primitivas e falsas são substituídas por novas e verdadeiras, os erros são eliminados e, apesar de todos os enrique cimentos e correcções, ainda trabalhamos basicamente dentro do mesmo sistema. Os conceitos e conclusões do presente podem servir como um modelo em termos do qual se julga o passado já que, na verdade, são independentes de qualquer posição temporal. Mas naqueles campos em que o progresso é dialéctico, a posição já é diferente. Um qualquer tipo de sistema filosófico não destrói o anterior, mas também não o completa; antes o organiza a
partir de centros sempre novos. Estes novos centros são, no entan-
to, supra-filosóficas, ou melhor, supra-teoricamente baseados; são dependentes da nova situação da vida que, em épocas científicas, inclui o tipo de sistema científico prevalecente. São estes centros de organização que, então, neste sentido, exprimem a verdade da época considerada. Estes sistemas não são, quando comprados entre si, iguais em valor. Na verdade não são «progressivos» no sentido de uma construção tipo manta de retalhos de um sistema único pela adição de novas conclusões; neste caso, as primeiras conclusões só seriam eliminadas quando a sua «falsidade» fosse reconhecida. O progresso que revelam é, antes, dialéctico, na medida em que
afirmam
um
mundo
considerado
de um
ponto
de vista supe-
rior, de um centro mais compreensivo onde as primeiras perspectivas são «integradas» neste sistema novo. Esta a razão porque os problemas essenciais nunca desaparecem. Eles regressam a todo o tempo,
apesar das suas correlações materiais e do seu significado
funcional serem novos em cada período. Se nos concentramos exciusivamente no constante refluxo destes problemas, podemos estabelecer uma tipologia generalizadora sobre as várias teorias metafísicas e epistemológicas, à maneira de Scheler, que na esteira de Dilthey, defende que só existem alguns tipos de metafísica que sempre se repetem periodicamente (1). Mas se tomamos em consi-
(1) Cf. Max Scheler, Schriften zur Soziologie und Weltanschauungslehre, |, Leipzig, 1923. 161
Sociologia do Conhecimento
deração que tal «ocorrência» tem lugar a um nível cada vez mais elevado e que o novo centro de sistematização que representa uma posição mais elevada do que a precedente, comunica um novo significado aos elementos repetidos, compreenderemos então que a tipologia generalizadora não é suficiente; precisamos, antes, de uma hierarquia histórico-filosófica a um nível temporal único (1).
(1) Neste momento, trazemos a luz toda a profundidade dos problemas da dialéctica. Enquanto orientarmos os diferentes modelos da vida intelectual pela justaposição dos diferentes tipos, num procedimento que não só é possível como tem a sua justificação, não penetraremos ainda no âmago mais essencial, na
individualidade
última
do
intelectual
e psicológico.
tracção generalizante toma o indivíduo apenas como cular, uma
combinação
série de propriedades repetidamente encontradas.
experimentamos pela
Este método
uma
primeira
já o sentimento fundamental,
vez
pelo pensamento
romântico,
o sentimento segundo
de absparti-
Se, no entanto, experimentado
o qual
contido
em
qualquer fenómeno psíquico-intelectual-histórico há algo de único, um princípio criativo pelo qual o indivíduo é mais do que uma combinação peculiar de propriedades
gerais, poderemos
gulariedade a uma de uma
correr o risco paradoxal
reduzir esta sin-
teoria. O que dificilmente conseguiríamos pela utilização
tipologia generalizadora
(já que tal teoria não considera, por princí-
pio, nada mais do que o geral); por conseguinte, a única possibilidade que nos resta é a de considerarmos a singulariedade temporal do fenómeno a partir da sua própria posição dentro de uma sequência histórica. Mas é só com estas sequências únicas que a filosofia da história se ocupa. (a possibilidade de compreensão de tais totalidades dinâmicas de dentro, a sua compreensão como
partes de
um
movimento
histórico com
um valor concreto espontanea-
mente apreendido que ilumine o segmento da história em questão, com um
objectivo significativo, esta possibilidade é irredutível, e é-o tanto mais quan-
to mais surpreendente é a capacidade do sujeito que reflecte a história). Nesta operação de estabelecermos o significado único de um fenómeno histórico em termos da sua posição numa sequência temporal (a visão geral retirada de tudo o que já se sabe), a localização do fenómeno adquire a dignidade de uma fonte de significado Se para uma
162
visão generalizadora sub specie aeternitatis
O Historicismo
Toda a filosofia tem, portanto, neste sentido, um critério duplo. O primeiro é o da verdade imanente: isto é, o critério de saber se uma determinada filosofia pode fazer uma análise correcta das perspectivas científicas e vitais dum período particular. O segundo é o da verdade dialéctica: isto é, o de saber se a filosofia actual é mais compreensiva, de maior alcance que as filosofias anteriores já que aquela sistematicamente domina os elementos retirados do passado, juntamente com os novos, numa perspectiva superior, e não só
(Cont.) temporalidade do indivíduo que se quer caracterizar aparece como um factor irrelavante (tipos auto-suficientes que são simplesmente justapostos sem atenção à sua génese), uma ordem dinâmica de um fenómeno histórico procura orientar as diferenças específicas do significado pela concentração no elemento que é susceptível de lhe atribuir um significado singular: um momento cheio de significado em virtude do qual surge um elo numa sequência histórica filosoficamente interpretada. A generalização, apesar da sua inadequação, é, no entanto, possível porque factores geralmente repetidos são «reais» na história. Assim há certas metafísicas e certas teorias de conhecimento
que são compreensíveis por ge-
neralização,
as características últimas do fe-
nómeno
mas elas não podem
determinar
intelectual a que se referem.
No meu estudo já mencionado sobre
a análise estrutural da epistemologia, estava ainda a elaborar uma outra tipologia meramente
«justaposta», que negligenciava os elementos temporais, diná-
micos. Tal como a tipologia das metafísicas representadas por Dilthey e Scheler isto só possível em certo grau; quanto
mais concretos queremos ser, mais de-
vemos passar pelo dinâmico. Tentei mesmo mostrar ali até onde uma estrutura lógica supra-temporal
compreende todas as diferenças de tipo nas possíveis
teorias do conhecimento que se tornam estruturalmente possíveis como tal e dentro desta estrutura. Não precisamos de negar que há um pequeno estrato do lógico que é supra-temporal (no sentido de civilizacional tal como aqui é definido). Quanto mais mergulhamos nos problemas históricos, no entanto, cada vez mais estreitos se torna a extensão deste resíduo destilável de supra“temporalidade
e o
processo
intelectual
de formalização
torna-se
cada
vez
mais complicado (ver acima).
163
Sociologia do Conhecimento
os preserva e reproduz. Mas nenhum sistema último é necessariamente superior, neste sentido dialéctico, ao anterior. Assim, o materialismo dos meados do séc. XIX não era superior ou mais compreensivo que a filosofia de Kant, o que se pode objectivamente ver pela análise e contraste dos pontos de partida sistemáticos des-
tes sistemas. Também não é necessário que o ponto culminante de uma sequência histórica seja tomado como o tempo próprio do filósofo
Hegel.
ou
do
seu
sistema,
como
se passava,
por
exemplo,
com
Há uma «utopia», um postulado lógico, subjacente a esta concepção histórica da verdade filosófica, nomeadamente, a de que os processos filosóficos gerais possuem a sua verdade. Mas não podemos compreender a verdade tal como ela é entendida de uma posição que se coloca acima da corrente histórica. Antes a devemos compreendê-la tal como aparece corporizada em sistemas filosóficos
auto-suficientes,
desenvolvidos
a partir de
vários
centros
que se formam dentro da corrente. Dizer que a filosofia tem a sua vida significa que constantemente ela projecta novos elementos numa nova totalidade e cria novos pontos de partida para a recolha e sistematização dos já anteriormente considerados e de novos elementos. Como vemos, há uma utopia correspondente a esta concepção dinâmica de verdade, tal como a «verdade in se» ou a «clas-
se de todas as afirmações válidas» era a utopia da Razão estática. Mas a utopia dinâmica tem a vantagem de seguir a direcção indicada
pelo
progresso
do
trabalho
filosófico real não
impondo
sobre
ele um ideal utópico a que falta o contacto com a sua especificidade histórica, a sua Gestalt temporal. Acima de tudo, estas utopias,
estes postulados da lógica não são de modo algum especulações arbitrariamente conseguidas; nem são visões repentinas recolhidas, por assim dizer, por revelação; o que elas exprimem é, antes, uma perspectiva estrutural concreta, embora até às últimas consequên-
cias, cujo ímpeto é dado pelo modelo concreto do movimento histórico. É, pois, possível, em princípio, trabalhar com base nesta utopia dialéctico-dinâmica, uma hierarquia histórico-filosófica das po-
164
O Historicismo sições filosóficas que se têm vindo a suceder; e podemos proceder assim de um modo racionalmente exacto. Já que o objecto da análise dialéctica, o pensamento filosófico, se desdobra em conceitos e sistemas, este tipo de análise não é de modo algum, estranho e irrelevante. A mudança de um tipo de sistema para outro pode ser explicada pela orientação de um centro de sistematização para outro, e pode sempre demonstrar-se qual destes tipos de sistemas é mais compreensivo. Tal apresentação deve aceitar na verdade, que toda a sistematização (mesmo a mais livre) é determinada pela «localização» particular e neste sentido representa um conhecimento «perspectivista». No entanto, este procedimento de forma alguma implica relativismo; isso quer significar, antes, um alargamento do nosso conceito de verdade o que só por si nos defende de estarmos impedidos de explorar aqueles campos em que quer a natureza do objecto a conhecer, quer a do sujeito omnisciente só torna possível o conhecimento perspectivista. Não seria sensato adoptar uma atitude relativista e agnóstica face à percepção da forma espacial do objecto, só porque só o podemos observar perspectivisticamente e em «tamanho reduzido», dependendo da nossa posição. De um modo semelhante, não se deve ignorar a natureza perspectivista, posicionalmente determinada da filosofia e também do conhecimento histórico; pelo contrário, ela deve ser reconhecida como
essencial
para a estrutura destes tipos de conhecimento.
As expressões «posicionalmente determinadas» (standortsgebunden) «perspectivista» só são utilizadas em sentido analógico quando aplicadas a objectos histórico-filosóficos e não a objectos espaciais. A analogia justifica-se, desde que haja uma semelhança entre estas duas espécies de objectos, pelo facto de nem o objecto histórico nem o objecto espacial poderem ser totalmente compreendidos a partir de uma só imagem. Mas há também diferenças essenciais. As posições de que falamos ligadas ao conhecimento histórico-filosófico não são, na verdade, posições «espaciais»; nem o objecto de tal cognição se mantém numa rígida imobilidade face ao sujeito. Dizer que a visão da história é «posicionalmente determinada» significa que ela se forma no sujeito que ocupa uma posição singu165
Sociologia do Conhecimento
lar na «corrente histórica», de que todas as partes, quer as ocupadas por nós, como as ocupadas pelo objecto que estudamos, estão constantemente em transição e em mutação. Quanto à forma de desenvolvimento e interpretação (1) de campos que não têm nem o tipo de racionalidade «progressivo», nem o «dialéctico-sistemático», mas que são essencialmente irracionais (como a arte, a religião, etc.), é claro que só uma interpretação histórico-filosófica em termos de Gestalt lhes pode fazer justiça. Só conduziria a uma distorção infeliz tentarmos estabelecer a unidade e coerência interna das manifestações «irracionais» de uma época a partir de um sistema racionalizado. Mas é possível mostrar que elas constituem uma Gestalt como partes de um todo
individual — como «documentos» da mesma
configuração «psiqui-
co cultural» (2). Isto não quer dizer que o tratamento destes fenómenos não está sujeito à controlabilidade científica. Também aqui,
o objecto da investigação científica é constituído com base em categorias objectivas. Só que desta vez não se trata, por exemplo da
(1) A forma do movimento num campo ou disciplina cultural (e.g. a filosofia) e a forma do movimento
na sua interpretação histórica (a sucessão e a relação
das diferentes imagens históricas do «desenvolvimento» passado da filosofia) são
dois
mesmo
assuntos modo,
diferentes
o problema
que
devem
ser
estudados
separadamente.
Do
da padronização na apreciação dos fenómenos his-
tóricos (a disposição histórica das diferentes filosofias de acordo com o seu conteúdo dialéctico de verdade) e o problema do modelo que nos oriente na apreciação das várias obras historiográficas no mesmo grupo de fenómenos (neste caso, os factos filosóficos) são diferentes séries de questões. Num tratamento final destes problemas, eles deveriam ser considerados separadamente. Na
análise feita
tempo.
Nenhuma
sua
unidade
acima, foram tratados conjuntamente
fonte de erros se levanta
por uma
razão de
no nosso caso onde, em atenção à
real, a historiografia e a filosofia da história são tomadas como
um todo. (2) Sobre os problemas da interpretação «documental», cf. o meu ensaio sobre «A Theory of the Interpretation of Weltanschauung», neste volume.
166
O Historicismo categoria da causalidade, mas da do todo e da parte numa particular especialização. Não pretendemos com tal, defender que a investigação causal deve ser eliminada da história; o nosso assunto neste estudo é só a filosofia da história e aquela parte da historiografia que é, em si mesma, filosófica; só queremos apontar o facto de que não podemos passar sem conceitos do tipo Gestalt quando tratamos
de
«campos»
irracionais
de cultura.
Logo que falamos,
por exemplo, de «tendências», a enorme riqueza de todo o processo reúne-se na sua concreta caracterização como uma Gestalt. O que é que o historiador poderia fazer sem conceitos como «tendência», «estilo», etc.? A questão é a de saber como assegurar que uma tal caracterização global de um processo total tenha validade objectiva. Que padrão devemos aplicar na selecção daqueles pormenores cujos traços salientes constituem uma «tendência» de entre vários pormenores? O que Troeltsch disse acerca da conexão entre a formação de padrões e a síntese cultural contemporânea tem aplicação aqui. Na verdade, podemos formular a tendência quer com base nos valores materiais concretos conscientemente defendidos pela sociedade em questão, quer com base nos nossos
valores motivantes.
Assim, parece que o elemento «psíquico-cultural» é aquele componente da história que não pode ser interpretado «progressivamente»; cada época
deve ser re-interpretada
de novo a partir do
seu próprio centro psíquico. Os padrões usados baseiam-se e são inseparáveis da situação «psíquico-cultural» do intérprete. O que nada tem a ver com o relativismo. Isto é dizer que as sucessivas interpretações do passado a partir dos vários centros temporais não fazem a mesma exigência de reconhecimento de validade, embora não haja nenhum critério racional-formal (ex: o critério segundo o qual o mais recente é o mais correcto), ou racional-dialéctico (de acordo com o qual os diferentes centros de sistematização seriam comparáveis), com base nos quais possamos decidir entre estas duas interpretações. Mas temos ainda um critério material que tentativas,
não deve ser desprezado. Se compararmos as outras levadas a cabo em diferentes épocas, para interpretar
167
Sociologia do Conhecimento
o mesmo período histórico, temos de admitir, antes do mais, que a variedade de opinião não é, de modo algum, anárquica. As interpretações, é certo, diferem entre si: mas porque têm todas de respeitar as provas históricas concretas, tal como são estabelecidas pelo crítico histórico, e porque, além do mais, devem apresentar uma imagem consistente e coerente, há limites às diferenças de interpretação e torna-se possível uma comparação. Estabelecida tal comparação, veremos em primeiro lugar, que as diferenças não são excessivamente grandes e, em segundo, que cada mudança de pode
orientação
como
ser explicada
uniformemente
determinada
pela «localização» especial do intérprete. Além disso, as posições «psíquicas» de onde derivam as várias interpretações tem todas o mesmo valor cognitivo. Se olharmos os factos mais de perto, seremos sempre capazes de definir que posições psíquicas permitem uma inserção mais profunda no objecto que se quer interpretar. Ajuizando das várias posições com base na profundidade de pene-
tração
que
permitem,
fundidade
todas as posições
ordenar
podemos
que se
hierarquia definitiva. Mas esta «pro-
materializam até agora numa
de inserção» é, no entanto, uma categoria metodológica
que apresenta aqueles elementos que a metodologia e a epistemodas
logia
ciências
devem
culturais
acrescentar
à metodologia
e à
epistemologia que se baseiam somente nas necessidades e práticas
das ciências naturais exactas.
As interpretações histórico-culturais, na verdade, não só têm
de
ser
«correctas»
no
sentido
em
que
devem
respeitar as provas
disponíveis e ser internamente coerentes; devem também ser «adequadas», i.e. devem compreender o objecto na sua profundidade total. Mas só podemos considerar os vários períodos em termos da «profundidade» de interpretações que forneceram pelas provas «qualitativas», «materiais». Que esta solução do problema na ver-
dade, ultrapassa o relativismo é coisa de que só duvidarão aqueles
cuja orientação é exclusivamente racional-formalista e que acreditam
que
tudo
o que
faça
apelo
a provas
não formais, materiais,
ultrapassa as fronteiras da ciência. Temos de mencionar outra diferença essencial entre o kantismo e o historicismo — uma diferença
168
O Historicismo que faz com que a fenomenologia se coloque a lado do historicismo (1) —, nomeadamente, a de o kantianismo reconhecer no todo só os critérios formais de objectividade, enquanto que o historicismo faz também apelo a «provas materiais», adoptando assim uma posição a partir da qual só é possível construir uma filosofia mate-
rial da história.
Como vemos, quer os modelos de mudança histórica quer os padrões de valores que os historiadores têm que aplicar variam de acordo com o campo que é sujeito da análise histórico-filosófica. Todos os três tipos de teorias de evolução que analisamos — a do Huminismo, que está orientada para as ciências naturais, a da evolução dialéctica que tem a sua raíz em Hegel e que apresentamos de forma modificada e, finalmente, a caracterização concreta, «documental» das várias «psiques do povo» que se iniciou com a escola histórica — todos estes tipos de teoria têm a sua verdade, mas
a verdade
de cada
uma
só se aplica
a certos segmentos
do
processo total. Estas teorias evolucionárias representam as diferentes aproximações que o pensamento histórico desenvolveu sucessiva ou concorrencialmente, aproximações que se completam umas às outras, sendo cada uma correcta no seu campo próprio. E mais: mesmo uma certa universalização de cada um destes métodos tem a sua justificação relativa. Como vimos, a doutrina civilizacional, psíquico-cultural e dialéctico-cultural não podem ser rigidamente
(1) A diferença consiste no
reino
entre
o historicismo
e os representantes
no seguinte: os fenomenologistas dos
valores,
como
concebem
da fenomenologia
as «provas
algo de estático; procuram
descobrir
materiais», em
todo
o lado essências intemporais e como Troeltsch disse (Historismus), «só posteriormente é que lhes acrescentam factos empíricos, individuais». Contra tal, o historicismo
defende
que a história
não apenas
individualiza
leis essenciais
gerais, «mas mantém-nos alerta quanto à criação de valores absolutamente no-
vos, imprevisíveis». (/bid).
169
Sociologia do Conhecimento
separadas umas das outras, já que qualquer obra concreta ou qualda cultura contém,
quer manifestação
por assim dizer, um estrato
civilizacional, psíquico e dialéctico. Por conseguinte, cada um destes métodos pode, em certa medida, ser aplicado a todos os cam-
pos. Vimos como mesmo as obras de arte (que certamente se con-
siderariam em 1º lugar, no campo psíquico-emocional) incluem uma dimensão «civilizacional», tal como a historiografia, que como ciência que é tem de ser pensada enquanto parte do campo civilizacional, tem também uma dimensão dialéctica histórico-filosófica. Do que se conclui que o esquema da evolução que se baseia exclusivamente numa concepção dialéctica consegue acompanhar todo o processo histórico já que é capaz de analisar todos estes aspectos do processo psíquico cultural que os conduz a uma racionalização dialéctica. Por seu turno, o método concreto intuitivo
será susceptível de tomar em conta aqueles aspectos dos campos
racionais que são psiquicamente determinados, apesar da sua racionalidade. No entanto, há sempre um certo exagero quando um qualquer destes métodos se considera o único, quando, por exemplo,
o defensor
da racionalidade
«dialéctica»
menospreza
o facto
de as manifestações culturais terem um resíduo estranho aos seus métodos;
ou
se
o
irracionalista
não
consegue
reconhecer
que
a
interpretação psicológica não nos permitirá compreender a lei peculiar da evolução das teorias científicas, deixando de fora o seu conteúdo. E mais: precisamente porque afirmamos que é susceptível de ser descoberto o movimento dialéctico permanente e compreensivo, devemos
acentuar que um certo tipo de fenómenos não
necessita de pertencer a um mesmo campo todo o tempo. O «estado», por exemplo, em certas épocas teve um carácter largamente «psíquico-cultural»; mas isto não quer dizer que, noutras épocas não possa passar para a esfera «civilizacional». É justamente por causa da possibilidade de variações desta natureza que podemos caracterizar a estrutura real de um período; a riqueza das combinações só proporciona um inventário mais rico para uma interpretação dinâmica, histórico-filosófica do processo do mundo. 170
O Historicismo
IV. HISTORICISMO E SOCIOLOGIA
Tudo o que se disse, no entanto, só indica a direcção na qual procura a solução dos problemas levantados pelo historicismo. Na medida em que podemos explorar a determinação sociológica das formas metodológicas, é provável que no momento actual as tendências activistas-progressivas estejam para lá de uma elaboração gradual do método racional dialéctico, expresso numa linguagem absolutista (1). Esta forma de pensamento permite uma análise mais completa do processo mundial e está indicada como uma
orientação imediata da acção política. O método orgânico, intuiti-
vo, que no seu início foi o fruto de um período reflexivo pós-revolucionário, focará os fenómenos irracionais da cultura e será usado, em 1º lugar pelos carentes de estabilidade social. Tal distribuição de papéis é, afinal, um fenómeno regular: uma das leis sociológicas da história é a de que a mesma distribuição de papéis entre as forças intelectuais em contenda reaparece sempre ao nível de uma interpretação histórica-reflexiva da sua luta. Isto sugere que também a «determinação posicional» do conhecimento, da cultura e da vida podem ser concebidas num sentido diferente do que discutimos acima, isto é, como uma co-ordenação e afinidade entre estilos de pensamento e vida, por um lado, e certos grupos sociais e a sua dinâmica particular, por outro. A filosofia da história que trata os períodos históricos como unidades, deve ser complementada
por uma perspectiva socialmente diferen-
ciada do processo histórico-social como um todo, tomando expressamente em consideração a distribuição dos papéis sociais e o seu
significado para a dinâmica do todo. Nenhum estrato social isola(1) A mais profunda e mais significativa de todas estas tentativas é provavelmente a de Georg
Marxistische
Lukácks: Geschichte und Klassenbewusstein, Studien uber
Dialektik,
Berlim,
1923
(cf. em
particular os ensaios sobre
«Reification and Proletarian Consciousness», «Class Consciousness», «Rosa Luxemburg as Marxist».
171
Sociologia do Conhecimento
do, nenhuma classe social só por si detentora do movimento total; nem é legítimo aceder a este processo global em termos da contribuição de uma só classe. Pode muito bem acontecer que só uma classe seja a portadora, por assim dizer, do «leimotiv» da evolução, mas, no entanto a harmonia do todo só pode ser compreendida to-
mando
vozes.
em
o
consideração
modelo
contrapontual
de
todas
as
Assim vemos surgir, neste momento uma dimensão inteiramente nova da interpretação histórico-filosófica: a estratificação social do processo cultural e a identificação das tendências culturais com as classes sociais; mas não podemos alongar-nos neste assunto. O aparecimento do problema da dinâmica cultural, que com o impacto do historicismo permeabiliza todas as ciências culturais, é responsável pela mudança surpreendente na orientação da sociologia. A sociologia desenvolveu-se originalmente a partir do modelo das ciências naturais generalizadoras. Por conseguinte, só podia trabalhar com o método generalizador e ignorava a dimensão especificadamente histórica do seu objecto. O resultado foi uma justaposição a duas dimensões das relações sociais e psicológicas mentais
mais
diferentes
de
todas
as épocas e de todas as pessoas
ao mesmo nível, numa tipologia generalizadora. Tal sociologia não
percebeu que só os elementos superficiais do processo social poderiam ser compreendidos desta forma. Isto não é dizer que certas relações gerais a descobrir, digamos, entre a ciência e a religião, não podem ser instrutivas; alguns dos problemas principais da sociologia têm, no entanto, uma natureza diferente. De qualquer modo, pode prever-se que certas ideias hegelianas, que sobreviveram na sociologia marxista e também no pensamento de certas escolas, substituirão a tipologia intemporal, generalizadora das formas económicas e sociais por uma sequência temporal destas formas, introduzindo-se, assim, um elemento histórico-sociológico na sociologia. Tal mudança de orientação não nos deve, no entanto, surpreender; afinal, todas as ciências culturais se transformam ao longo do pro-
cesso histórico. Na história literária, e também na história da arte, a selecção dos problemas e métodos empregues demonstraram 172
O Historicismo sucessivamente a influência do Romantismo, do positivismo, do marxismo, etc. Para estas ciências, as mudanças intelectuais e as sucessivas remodelações do substracto experimental, são constitutivas. Esta transformação contínua das ciências culturais não deve ser considerada um defeito, mas antes algo inerente à sua
essência.
As concepções positivistas e kantianas da ciência, que tomaram as ciências naturais exactas como o único protótipo ideal a que todas as ciências, incluindo as culturais, se devem conformar procuraram sujeitar a sociologia a este modelo. Apesar das numerosas descobertas valiosas que se conseguiram a partir desta posição,
esta
tentativa
estava
no
entanto,
condenada
ao
fracasso:
a
sociologia também participou nas outras formas de evolução intelectual. O que deu lugar a uma multiplicidade de sociologias que não podiam, afinal, ser reunidas num único esquema. Assim, a opinião tradicional segundo a qual uma ciência só podia ter uma forma verdadeira conduziu ao desejo de punir a sociologia por não ser capaz de demonstrar um método unificado, excluindo-a da lista das ciências. Na nossa opinião, no entanto, devemos começar pre-
cisamente por outro lado e perguntarmo-nos se não é mais aconselhável em 1º lugar ver se a nossa concepção de ciência não é falsa, ou, pelo menos, unilateral, porque se baseia exclusivamente nas ciências naturais, antes de rejeitarmos uma área vital factualmente existente de investigação, só porque não corresponde à nossa concepção
de
ciência.
Se
agimos
assim,
se observamos
o desenvolvi-
mento histórico concreto da estrutura das ciências culturais —, tal
como
em certa altura, as ciências naturais tentaram aprender com
as ciências culturais, em vez de se imporem a elas — veremos não só o facto de a sociologia e todas as outras ciências culturais sempre deverem necessariamente ser escritas de novo, mas descobriremos também as suas razões profundas. V. PADRÕES DINÂMICOS NO PENSAMENTO
como
E NA PRÁTICA
Da análise feita parece podermos concluir que o historicismo Weltanschauung consegue atingir os pontos mais remotos e
173
Sociologia do Conhecimento
os problemas mais especializados da filosofia e da metodologia; na verdade, é um
princípio que
influencia todas as fases da nossa ex-
periência do mundo. Se, no entanto, voltamos ao nosso problema e examinamos não só o que o historicismo significa para o nosso pensamento teórico e para a nossa concepção do conhecimento, mas
também
a extensão
em
que
molda
a nossa
vida
existencial
(isto é, se examinamos o significado vital do historicismo), de novo somos confrontados com o mesmo problema do «relativismo» mas agora a partir de um outro ponto de vista. Para muitos, o relativis-
mo e o historicismo estão intimamente
ligados de tal forma que
interpretam o historicismo como uma doutrina que diz, já que tudo, de certo modo, é «história», toda a acção e decisão são relativas e faltam-lhe um modelo. Já mostramos que esta só pode ser a filosofia de uma espécie de historicismo não elaborado que não é bem pensado em todas as suas consequências. O verdadeiro historicismo também não se pode confundir com o naturalismo, que, como filosofia, consiste em retirar certas conclusões
radicais das hipóteses da ciências naturais,
i.e. das dis-
ciplinas individuais. Mas o historicismo não consiste numa combinação de descobertas de uma disciplina individual (i.e. a história);
é antes, pelo menos
em
intenção,
uma
espécie de filosofia que se
situa para lá da epistemologia e que tenta construir uma base a partir dela. Assim, o seu lugar sistemático corresponde ao da «metafísica» dos primeiros tempos. Se a filosofia não fosse nada mais do que uma doutrina da instabilidade de todas as obras e instituições do homem, que se baseava indutivamente numa comparação das religiões, costumes e modos de pensamento dos diferentes povos, então é que ela se aproximaria da filosofia naturalista. Mas ela realiza, o seu passo essencialmente filosófico ao ultrapassar as descobertas
especializadas da ciência histórica e ao tentar compreen-
der o significado global profundo do processo de transformação histórica com a ajuda da categoria da «totalidade». Deste modo, as séries de cadeias causais (que nas ciências especiais ou conduzem a um retrocesso infinito ou compelem o investigador a restringir-se às assim chamadas «causas próximas» e, portanto, ao quebrar arbi-
174
O Historicismo
* trário dos traços das relações causais) estão ultrapassadas e a aten-
ção dirige-se para o substracto da vida em si mesmo auto-revelador, a «tendência» dominante de que o filósofo da história se apercebe. Ao contrário das primeiras tentativas filosóficas, esta caracterização do substracto último não é já dedutivamente baseada em princípios a priori, mas é retirada do contacto imediato com o próprio material histórico. A investigação causal histórica também tem de pressupor de um certo modo tal substracto «filosófico» em que se baseia esta «tendência» história global. É absolutamente necessário estar consciente deste substracto último se queremos compreender porque fora da confusão dos casos individuais só alguns são reais em todo o processo histórico total, quer ajudando, quer
impedindo a tendência da evolução. A questão
que nos preocupa agora não é já a do significado
metodológico do historicismo mas a do seu suporte sobre a filosofia sistemática e em última análise sobre a própria vida. Para fugirmos
ao relativismo ameaçador, muitos dos que aceitaram o princípio da
natureza englobante da génese histórica refugiaram-se na doutrina do absoluto dos valores formais. Isto é, aqueles pensadores admitem que os vários actos individuais em que os valores se realizam podem ser temporalmente determinados e neste sentido, relativos, insistem no entanto, no postulado de que a estrutura da Razão
nos assegura e assume uma só verdade e, por conseguinte, uma só
validade absoluta de todos os outros valores. É evidente ao primeiro relance que esta solução de nenhuma forma vence o historicismo; tudo o que faz é incorporar um novo elemento, a experiência do carácter fundamentalmente dinâmico da vida, na filosofia formal da Razão, que, no entanto, continua essencialmente estática. Aqueles que procedem desta forma não se apercebem realmente dos novos problemas levantados pela realidade nascente; tentam apenas e sempre encaixá-los no seu velho sistema. Neste processo, as tensões no interior do sistema tornam-se ainda mais agudas e a doutrina
do
relativismo,
avaliada
segundo
o modelo
inadequado,
parece ainda mais perturbadora. Não há solução mais relativista do que a da filosofia estática da Razão que conhece uma transcendên-
175
Sociologia do Conhecimento
cia de valores «em si mesmo» e considera esta transcendência assegurada na forma de cada julgamento concreto, mas relega o conteúdo material do julgamento para a esfera da relatividade comple-
ta, recusando-se a reconhecer no cosmo histórico real das realizações de valores qualquer princípio de aproximação aos valores transcendentes enquanto tais. Na verdade, tal como Troeltsch viu correctamente,
um
apenas
o historicismo
resultado de exigências de um
“temporal
em
termos
do
qual
a
levou
modelo
realidade
ao
relativismo
como
absolutamente suprahistórica
deveria
ser
julgada. Só assim se pode realmente conceber cada acto de realização de valores como «relativo», referindo estes actos a um padrão «absoluto» e, além disso, definindo este padrão absoluto de tal forma que o privam de uma conexão intrínseca com o material do fluxo processo histórico em si mesmo. As garantias de uma verdade objectiva que possa realmente ultrapassar o relativismo só se revelam a partir de provas materiais e não vemos os nossos actos históricos reais, cognitivos apontarem para algo de real, e a nossa acção a ter uma bondade positiva, a não ser que tenhamos a certeza que os modelos que defendemos têm um
suporte
na realidade concreta tal como é dada hic et nunc. Ou,
para colocar a questão na linguagem da vida activa: só um modo de pensamento, só uma filosofia que seja capaz de dar uma resposta concreta à questão de saber o que devemos fazer, pode proclamar ter ultrapassado o relativismo. Se a doutrina de um pensador não oferece
resposta a esta questão, ela deve,
na verdade,
abster-se de
todo o juízo de valor, por exemplo, porque o seu sentido de verdade não lhe permite fingir que possui soluções que realmente não possui, quer na vida quer na teoria. E podemos louvar tal veracidade, mas nunca podemos esperar reconhecimento por termos finalmente proposto uma doutrina que, na verdade, vence o relativismo. O único modo, o concreto porque podemos ultrapassar o relativismo, só pode
derivar do
material, e assim precisamos de cer-
tificar as nossas provas materiais. Neste contexto precisamente é que a filosofia estática da Razão estava «no seu elemento» durante o período do domínio das
176
O Historicismo
«leis naturais« (que ainda hoje sobrevivem em algumas escolas «estáticas» da filosofia). Isto é, tal filosofia estática só pode ser libertada de uma contradição interna insustentável quando podermos afirmar que a doutrina e os ideiais de uma verdade supra-temporal e de um modelo ético supra-temporal automaticamente determinaram as condições de realização destes valores. Quando acreditávamos ainda que havia só uma razão e uma rectidão ética valiosa na Razão, estando esta simplesmente velada pela história, quando suponhamos que era possível também deduzir todo o conteúdo desta verdade dos princípios da Razão, possuíamos, ao menos subjectivamente, algo de absoluto que podíamos dar à história. Tal sistema nunca se podia desintegrar a partir de dentro. Quando, no entanto, a própria vida, ao tornar a consciência histórica cada vez mais poderosa, gradualmente minou a filosofia estática da Razão, nada permaneceu de todo o conteúdo do sistema excepto, como
resíduo
e como
gesto de resignação, a limitação des-
te absoluto supra-temporal a formar. A antítese de uma concepção estática da Razão nasceu quando o material da experiência vital se tornou dinâmico, ou, pelo contrário, quando se reconheceu a fluidez deste material. Se ainda hoje analisamos esta fluidez em termos de uma filosofia estática, tal deve-se a um esforço para analisar a antítese tomando em consideração a tese. Mas isto é, claramente, impossível: causa tensões que eventualmente conduzem à destruição do sistema. Inevitavelmente devemos seguir pela antítese, devemos estar conscientes de que toda a nossa experiência
se tornou dinâmica e neste sentido, mesmo um historicismo ainda
que relativista está mais próximo de uma correcta solução do que uma filosofia estática que se agarra aos seus absolutos formais, antes de conseguirmos a solução para estes problemas na síntese. Mas a solução, a síntese só pode, no entanto, ser alcançada tornando o padrão, a própria forma, dinâmico e pela re-definição da correlação entre o absoluto e o relativo de acordo com a nova inserção dinâmica. Contra esta solução, mesmo
o argumento anti-relati-
vista clássico, repetido ad infinitum e ad nauseam, não tem valor — i.e. o argumento (que na verdade constitui a única prova da dou-
177
Sociologia do Conhecimento
trina do absoluto formal da verdade) segundo o qual a afirmação da relatividade em si mesma exige validade absoluta e, por conse-. guinte, pela sua própria forma pressupõe um princípio que o seu | conteúdo manifesto rejeita. Este o argumento do Sócrates platóni-. co contra os sofistas só prova, no entanto, a insustentabilidade, a contradição interna de um relativismo incondicional e nada acrescenta acerca da qualidade estática ou dinâmica da concepção de verdade. Dizer que o absoluto se revela no processo genético e que só pode ser compreendido a partir de posições definidas dentro do mesmo processo, em categorias que são moldadas pela descoberta do contacto material do fluxo genético em si mesmo dizer isto não é professar o relativismo. O que esta posição nega é somente um sujeito que está fora do movimento, que nunca muda e que milagrosamente mantém contacto com o movimento. O substracto último que se revela no tempo tem a sua verdade no seu progresso. O que é acessível a partir de várias perspectivas é, em si mesmo, um aspecto da verdade; e a pluralidade destas perspectivas não involve arbitrariedade, mas somente a aproximação a um objecto mutável a partir de posições mutáveis. E se alguém objectar que o que estamos a dizer é dito de uma forma absoluta e não meramente num sentido perspectivista, responderemos sem dúvidas que não | defendemos ter dito a última palavra acerca deste objecto. Na verdade, o que estamos a dizer depende de uma perspectiva definitiva em que a historicidade do fenómeno cultural que tentamos analisar apareceria a uma luz inteiramente diferente, de acordo com o
nível de questionação e o ponto de partida. A verdade num sentido perspectivista significa que dentro da constelação histórica só uma conclusão perspectivista pode estar certa (1). (1) Queremos até
que
ponto
clarificar com uma observação essencial para a tese defendida a nossa
análise está posicionalmente
determinada
e até que
ponto temos consciência disso. No início deste artigo, postulamos um dualismo metodológico rígido entre as ciências exactas e as «ciências histórico-culturais».
178
Este dualismo
não pode ser a forma
final sob que se apresenta o
O Historicismo
A partir destas considerações teóricas, podemos concluir que para as questões da vida real que não há exigências válidas para todos os tempos, de uma vez por todas, mas que o modelo concreto do absoluto é diferente em cada época e, mais do que isso, que ao satisfazermos as «exigências diárias», ao tomarmos o «passo seguinte», estamos ao mesmo tempo a transcender o «meramente
(Cont.) problema do método científico (e nem mesmo a forma afinal conseguida no nosso estádio de desenvolvimento). Devemos encontrar uma solução que não torne este dualismo central o quadro da questão, mas que encontre o ponto de unidade a partir do qual este dualismo provisório possa ser ultrapassado. Encontramo-nos, no entanto, numa idade da história do pensamento que está tão preocupada com as disciplinas especiais e, assim, com os sistemas parciais, que a construção filosófica inevitavelmente se torna um destes «sistemas parciais» e portanto, uma metodologia, ainda que não intencional. Só podemos ver «o pensamento ou do ponto de partida das ciências naturais ou, 'cada vez mais, a partir das ciências históricas. Se queremos passar para lá deste
nível é necessário demonstrar a oposição entre o pensamento dinâmico e o estático no grupo das disciplinas especiais onde, ao contrário das ciências naturais, a nossa consciência super-especializada é capaz de reconhecer o elemento dinâmico: nas ciências histórico-culturais. Ao mostrarmos, numa investigação (cuidadosa, que há esferas de pensamento que não podem ser dominadas a partir de uma posição anterior, forçamos pela primeira vez o reconhecimento do dinâmico. Que este modo de conseguirmos reconhecimento para a esfera diInâmica depende de uma perspectiva particular deve ser admitido, no entanto, mesmo por aqueles que usam este método, por que pressupõe que uma discilina é considerada a partir de uma outra. O nosso pensamento está ainda em erta medida confinado a sistemas parciais de tal forma que o dinâmico só é isível neste contraste dualístico e na série de problemas que assim se deterinam. Só este ponto de partida provisório explica, também, que mantenhas um contraste dualista de estruturas progressivamente racionais, dialecti-
amente-racionais e psíquico-culturais (monadicamente desligadas). Só quanultrapassamos esta posição, que se baseia na especialização das disciplinas
no pluralismo metodológico e retiramos a cortina dinâmica da ciência espe-
179
Sociologia do Conhecimento
temporal», já que esta sucessão de passos em si mesma alimenta a verdade. Da nossa posição, da nossa perspectiva, podemos observar o caminho ascendente desta verdade que nos conduz a este ponto, ao consultarmos a história e a filosofia da história. A história recebe a sua articulação das nossas aspirações instintivas e dos nossos pressentimentos, e por seu turno, a evolução dos valores! concretamente realizados que observamos no fluxo histórico até hoje alimenta as nossas vontades ambíguas e não esclarecidas com um material maneável que podemos trabalhar. Assim, retiramos da história padrões de valores exemplificados por realizações concretas, mas só os podemos retirar porque já os compreendemos instin-| tivamente, através da nossa participação na mente colectiva (Ge-:
samtgeist) activa na história. Este é, talvez, o significado último do!
pedido de Troeltsch de que compreendessemos a história com a ajuda da história, e que retirássemos os valores de que precisamos) para esta tarefa da própria história. Ao mesmo tempo, só esta afir-
(Cont.) cial da história como base para uma construção filosófica, quando, portanto, tomamos uma totalidade dinâmica como ponto de partida, é qui podemos
perguntar-nos o que é que os «sistemas parcelares» significam den:
tro daquela
totalidade. Mesmo
neste caso, as conclusões a que chegamos sãc
negadas ou destruídas; só será necessário mostrar a possibilidade e interpreta: o
significado
de tais «terrenos»
estáticos a partir de uma
sistemática
mai
compreensiva que uma concepção sobretudo dinâmica nos permitirá conse: guir. Deve acentuar-se a não encobrir-se que aquele historicismo não resolv ainda esta tarefa. De forma alguma abandonamos a concepção da possibilidade de conhe cimento
histórico-cultural quando defendemos quea nossa análise tem apena:
uma verdade «perspectivista» e é determinada pelas formas diárias de pensa mento
que
estão
ligadas a disciplinas especiais e à metodologia.
Ao chamar;
mos a atenção para isto, só caracterizamos a situação geral que tornou este: problemas visíveis para nós, mas que contém já potencialmente em si a direc: ção dos próximos passos.
180
O Historicismo
mação implica o reverso completo de todo o sistema «axiomático» da filosofia estática da Razão, e põe-nos de novo face a face com o contraste dos princípios últimos dos dois tipos principais de filosofia que desenvolvemos no início deste artigo. Vemos como esta afirmação implicitamente pressupõe uma relação de natureza diferente entre a teoria e a prática, entre a filosofia da história e a teoria do conhecimento e nos obriga a reformular a alternativa entre «absoluto» e «relativo». Todos aqueles problemas de que se ocupou a filosofia estática da Razão, no entanto, não são pura e simplesmente postos de lado a partir deste momento, mas são considerados sob um princípio mais compreensivo. A tarefa última a este respeito é a de re-interpretar o fenómeno do pensamento estático, tal como foi exemplificado pelas ciências naturais e por outras manifestações da esfera civilizacional em geral, de um ponto de partida dinâmico, e de determinar especificadamente em que
medida a lógica pertence a esta esfera. Embora esta tarefa não te-
nha ainda sido resolvida, não há razão para a considerarmos insolúvel. De um mesmo modo, a filosofia dinâmica tomará também a seus ombros o problema do «absoluto» e «relativo» enquanto tais, já tratado na filosofia estática, mas, tal como vimos, este problema será colocado numa perspectiva muito mais profunda na qual será tomado em consideração o peso da temporalidade sobre o problema. Assim, toda a contribuição dos sistemas anteriores, será ainda preservada, mas num contexto mais compreensivo. Esta re-apreciação particular, esta preservação do problema do absoluto a um nível superior de investigação, pode ser citada como um exemplo do progresso dialéctico da sistematização filosófica. Vimos, ao mesmo tempo, como a filosofia histórica se levanta numa nova atitude que é já supra-racional, e como todo o seu problema estrutural é explicável a partir de um único elemento (a partir da experiência dinâmica), cujas consequências sistemáticas podem ser desenvolvidas a partir das premissas mais fundamentais. O historicismo é, portanto, na nossa opinião, a única solução do problema geral de como descobrir padrões e normas materiais concretamente exemplificadas para uma visão do mundo que se 181
Sociologia do Conhecimento
tornou dinâmica. O historicismo partilha desta insistência sobre as provas materiais, entre outras, com a escola fenomenológica; enquanto que, no entanto, a escola fenomenológica; procura e encontra uma certeza de valores no sentido estático, sobretudo pelo recurso a valorações cristãs-católicas, e de novo assim se aproxima deste problema com uma atitude supra-temporal, ansiosa de estabelecer uma hierarquia supra-temporal de exigências de valores materialmente realizados, o historicismo não pretende ser capaz de definir as constelações materiais de valores que persistem para lá de um determinado período histórico-filosófico. O louvável no esforço fenomenológico assenta em que reconhece que o relativismo só pode ser ultrapassado pelos padrões materiais, concretamen-
te realizados. A sua limitação, por outro lado, consiste no facto de
ser tal como o relativismo, incapaz de incorporar organicamente o impulso dinâmico. A fenomenologia dinâmica sente-se compelida a fugir à relatividade inerente a cada apreciação histórica, quando confrontada com um modelo supra-temporal, concluindo que nada que não possa coincidir com o objectivamente «correcto» deve estar ou em erro ou ser uma
«variante» ou «individualização»
do valor, hispostaziada como um absoluto. Contra tal, a seguinte afirmação feita por Troeltsch parece dizer: «Nunca houve um modelo de apreciação mais objectivo (do que o dinâmico), e é de todos o único que, embora teoricamente definido como eterno, intemporal e absoluto, não pode ser aplicado na prática, quer porque tem que ser «individualizado» em qualquer caso concreto, quer porque só se pode realizar num progresso infinito, i.e. nunca. O que falta a tal modelo é tão-só a admissão da sua falta de absolu-
to» (Historismus).
E é precisamente nesta admissão que vemos a força do historicismo; ele implica uma filosofia e uma visão do mundo que não faz violência ao novo elemento que nos move — a dinâmica — tratando-o segundo um velho sistema estático como um resíduo a ser relativizado,
mas tenta antes colocá-lo
no centro e fazer dele o
nível arquimediano pelo qual se desiquilibra toda a nossa concepção do mundo. E em nenhum lugar como aqui se pode ver como
182
O Historicismo
qualquer experiência fundamental definitivamente nova exige um
novo mundo, e como a nossa filosofia, a nossa concepção do mundo e toda a nossa auto-tortura intelectual nada mais é do que o construir de um cosmos intelectual centrado em realidades supra“teóricas, que o processo genético supra-racional em cujo elemen-
to vivemos, de novo e sempre coloca no centro da nossa experiência.
183
Capítulo IV
O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO (1)
1. O PROBLEMA CONSTELAÇÃO
O termo «constelação» vem da astrologia; refere-se à posição e à relação recíproca das estrelas na hora do nascimento de uma pessoa; investigamos estas relações na ideia de que o destino da criança recém-nascida é determinado por esta constelação. Num sentido lato, o termo «constelação» pode designar a combinação específica de certos factores num determinado momento, o que apela a uma investigação para sabermos quando temos razão para afirmar que a presença simultânea de vários factores é responsável pela forma assumida pelo facto em que estamos interessados. A astrologia não tem qualquer significado ou realidade para nós; a categoria da constelação, no entanto, foi retirada do contexto descritivo e teórico da astrologia e, tendo sido incorporado num novo contexto de Weltanschauung, representa agora uma das categorias mais importantes que usamos na interpretação do mundo e
(1) Publicado pela 12 vez no Archiv fir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, Túbingen, vol. 3, nº 3 Abril, 1925).
185
ET TRE E EE
+
Sociologia do Conhecimento
da mente humana. Também aconteceu noutros campos que categorias fundamentais foram destacadas do seu contexto original que se tornou obsoleto, para serem utilizadas posteriormente num próprio contexto teórico. Embora pouco se tenha feito até agora para estudar categorias desta natureza e embora tenham estado quase ausentes nas investigações metodológicas, podemos dizer que são precisamente estas categorias que constituem a série mais preciosa de instrumentos de que dispomos na interpretação do mundo e no domínio de fenómenos que encontramos na vida diária e também nas ciências culturais. As categorias da filosofia da história em particular (e.g. o «destino» demonstram ser de utilidade permanente, apesar de sofrerem mudanças constantes de forma,
e sempre a nossa interpretação do mundo se baseia nelas.
A categoria da «constelação», retirada assim do seu contexto
original, provou ser particularmente útil para nós no único campo em que podemos ainda fazer uso de um verdadeiro instinto metafísico hoje: o da contemplação da história do pensamento. Enquanto que a natureza se tornou muda e sem significado para nós, resta o sentimento, quando
tratamos com a história e também
com
a psicologia da história, de que somos capazes de compreender a interacção essencial das forças básicas e de alcançar as tendências fundamentais que moldam a realidade, para lá da aparência dos acontecimentos diários. A este propósito, mesmo o estudioso especializado é um metafísico, quer queira quer não, porque não pode impedir-se de atravessar as conexões causais individuais entre os acontecimentos isolados, inclinando-se sempre para as forças «decisivas» que tornam possíveis os vários acontecimentos individuais. É claro que esta espécie de metafísica, que é a única que nos convém, difere grandemente de todas as outras espécies de metafisica que existiram
no passado
— tal como
a categoria da constela-
ção não significa a mesma coisa para nós do que significava, por exemplo, na astrologia. O nosso conhecimento do pensamento humano em si mesmo desenvolve numa sequência histórica; e somos levados a levantar este problema da «constelação» pela convicção que o passo seguin-
186
O Problema da Sociologia do Conhecimento
te no conhecimento é determinado pelo status conseguido pelos vários problemas teóricos, e também pela constelação de factores extra-teóricos, num dado momento, tornando possível prever em que medida certos problemas serão solucionáveis. Sobretudo nas ciências culturais, estamos convencidos que nem toda a questão a resolver pode ser inserida em cada situação histórica, e que os problemas surgem e desaparecem a um ritmo particular que pode ser compreendido. Enquanto que nas matemáticas e nas ciências naturais, o progresso parece ser determinado, em larga medida, por factores
dade
imanentes,
puramente
culdades
ainda
uma
questão
lógica, com
não
levantando
outra numa
necessi-
interrupções que se devem só a difi-
resolvidas,
a história das ciências culturais só
mostra tal «progresso imanente» em períodos limitados. Noutras ocasiões, os problemas não previstos por algo de imanente aos pro-
cessos de pensamento precedente surgem abruptamente e outros
problemas são repentinamente retirados; mas estes no entanto, não
desaparecem
de uma vez por todas reaparecem
mais tarde sob uma
forma modificada. Podemos sentir antes o segredo deste ritmo agitado das marés das sucessivas correntes intelectuais e descobrir ne-
le um modelo significativo, pela tentativa de compreendermos a evolução do pensamento como um processo de vida genético, quebrando assim a imanência intelectual pura da história do pensamento. Confirmamos assim, também aqui a afirmação de que nada é um problema intelectual sem ser anteriormente um problema da vida prática. Se alargamos o nosso campo de visão de um modo correspondente os problemas implícitos na categoria «constela-
ção» exigem-nos não só que consigamos uma visão sinóptica de
todos os problemas teóricos levantados em certo momento, mas também que tomemos em consideração os problemas práticos da vida no mesmo momento. E então, a nossa questão assumirá a forma seguinte: que factores intelectuais e vitais tornam possível o aparecimento de um determinado problema nas ciências culturais,
e em que medida é que eles garantem a resolução do problema?
Colocando a questão desta forma, podemos afirmar que as correntes vitais e práticas e também as teóricas e intelectuais do
187
Sociologia do Conhecimento
nosso tempo parecem apontar para uma extinção dos problemas epistemológicos e para o aparecimento da sociologia do conhecimento como disciplina central, e a constelação é também excepcionalmente favorável à resolução, precisamente, dos problemas desta disciplina. Tentaremos em primeiro lugar caracterizar a constelação que deu lugar aos problemas da sociologia do conhecimento e descrever exactamente as correntes fundamentais que favorecem a nossa aproximação. Pensamos que não é um esforço vão interrogarmo-nos sobre preliminares desta natureza antes de tratarmos qualquer problema da história do pensamento. Temos de levantar tais questões preliminares porque
o horizonte
se alargou e porque a maior
reflexão não só nos permite mas também nos obriga a evitarmos
certas questões quando elas se nos colocam, de num modo ingénuo e inconsciente, e a prestarmos atenção à estrutura intelectual dos problemas, às constelações que são responsáveis pelo seu aparecimento. Tais investigações parecem ter-se tornado necessárias, graças ao modo particular de organização do trabalho nas ciências culturais, nomeadamente à ausência de qualquer divisão de trabalho institucionalmente prescrita, em resultado da qual todas as pessoas procuram a resolução dos seus problemas. Em vista disto, torna-se cada vez mais imperativa uma visão sinóptica do estado de todos os problemas neste campo. Mas do que precisamos, no entanto, não é somente de um catálogo das correntes e tendências
existentes, mas sobretudo
de uma análise estrutural radical dos
problemas que se podem levantar numa determinada época, uma análise que não só informa o exterior do que se está a passar na investigação, mas que aponta para as escolhas finais com que de-
bate o cientista cultural no decurso do seu trabalho, as tensões em
que vive e que influenciam o seu pensamento consciente e inconscientemente. Tal análise do trabalho que se realiza nas ciências culturais permitir-nos-á uma caracterização fundamental da situação intelectual prevalecente no nosso tempo. Na interrogação os factores fundamentais, que entram na constelação que necessariamente possibilita o problema de uma
188
O Problema da Sociologia do Conhecimento
sociologia do pensamento seguintes quatro aspectos:
no nosso tempo, cabe mencionar estes
(1) O factor primeiro e mais importante que torna possível levantar questões sociológicas acerca do pensamento é o que podemos denominar por auto-transcendência e auto-relativização do pensamento. A auto-transcendência e auto-relativização (1) do pensamento consistem no facto de os pensadores individuais, e ainda mais a visão dominante de uma época determinada, longe de
concederem a primazia ao pensamento, conceberem o pensamento
como algo subordinado a quaisquer outros factores mais compreensivos, no que diz respeito à sua emanação, à sua expressão, ao
(1) O que queremos
significar por «auto-relativização» não é de modo nenhum
o «relativismo» epistemológico, mas antes o contrário de «autonomia». Podemos afirmar que o pensamento é «relativo ao ser», «dependente do ser», «não autónomo»,
nenhum
«parte do todo que está para lá dele», «sem
professarmos
«relativismo» em atenção ao valor de verdade das suas descobertas.
Neste momento, está ainda aberta a questão de saber se a «relativização existencial»
do
pensamento
se
deve
ou
não
combinar
com
o
relativismo
epistemológico. De qualquer modo, no entanto, gostariamos de registar, neste momento, que não podemos partilhar do medo generalizado do relativismo. O «relativismo» tornou-se um estribilho que, julga-se aniquilar imediatamenteo adversário contra quem é usado. Mas quanto um
a nós, definitivamente preferimos
«relativismo» que acentue a dificuldade da sua tarefa chamando a atenção
para aqueles momentos que tendem a tornar as afirmações feitas em certo momento, parciais e situacionalmente condicionadas, preferimos tal «relativismo»
a um
«absolutismo»
que proclame alto e bom
som, como
princípio, o
absoluto da sua posição ou da «verdade em si mesma», mas que é na verdade tão parcial como
qualquer dos seus adversários e, o que é pior, profundamen-
te incapaz de tratar o aspecto epistemológico dos problemas de determinação temporal e situacional de qualquer processo concreto de pensamento, desprezando
completamente
o modo
em que o condicionante situacional entra
na
estrutura e evolução do pensamento.
189
Sociologia do Conhecimento
seu paralelismo ou, em geral, a qualquer coisa condicionada por algo diferente. Levantam-se obstáculos consideráveis no caminho de tal auto-relativização, acima de tudo o paradoxo de um pensador que se se lança a relativizar o pensamento, isto é, subordiná-lo a factores supra-teóricos, implicitamente colocar a validade autónoma da esfera do pensamento enquanto pensa e trabalha fora do seu sistema filosófico; arrisca-se assim a desacreditar-se, já que uma relativização de todo o pensamento igualmente invalidaria as suas próprias afirmações. Assim, esta posição envolve o perigo de um circulus
vitiosus teórico. A tentativa de relativizar qualquer outra
esfera, como a arte, a religião, etc., não encontra tal obstáculo; quem quer que esteja convencido de que a arte, a religião, etc., dependem de um factor mais compreensivo, como a «vida social», podem
afirmá-lo
sem
receio de entrarem
em
auto-contradição
ló-
gica. Neste caso, não se levanta nenhuma contradição, porque ao afirmarmos a relação dependente em questão, não temos de nos colocar na posição da arte e da religião como algo válido em virtude daquela afirmação; mas no que diz respeito ao pensamento, é claro que não o podemos relativizar sem estarmos ao mesmo tempo a sermos um sujeito pensante, i.e. sem posicionarmos a esfera do pensamento como algo válido. Podemos fugir a este círculo vicioso, concebendo o pensamento
como
um
mero fenómeno
parcial que pertence a um factor
mais compreensivo dentro da totalidade do processo do mundo, e desvalorizando particularmente, por assim dizer, a esfera da comunicação teórica em que se levanta a auto-contradição. Para mencionarmos um só tipo de solução: se defendermos que a esfera de pensamento (a dos conceitos, juízos e conclusões) é tão só a da
expressão e não a da constituição cognitiva última dos objectos,
desfaz-se a contradição, de outro modo insuperável. Para sermos claros, este modo de afastarmos a contradição teórica não está implícito na teoria e se, de um modo paradoxal, pensarmos só «dentro do pensamento», nunca seremos capazes de levar a cabo esta operação mental. Tratarmos aqui de um acto de ultrapassagem da imanência do pensamento, para compreendermos o pensamento
190
O Problema da Sociologia do Conhecimento
como
um fenómeno parcial dentro do campo
mais lato da exis-
tência e de o determinarmos, por assim dizer, a partir de dados existenciais. O «pensador existencial», no entanto, afirma precisamente que esta última se situa fora do pensamento, que para ele o pensamento não constitui objectos nem busca compreender matérias de facto reais, mas que exprime só ideias extra-teoricamente constituídas e justificadas. Uma vez depreciado desta forma, as contradições profundas e os paradoxos (cf. Hegel) não podem ser considerados como sintomas de um pensamento deficiente — pelo contrário, tais sintomas são apreciados como manifestações de algum fenómeno extra-teórico que pode ser verdadeiramente compreendido na existência. Já que os princípios filosóficos últimos são supra-teoricamente fundados, o progresso histórico de um sistema filosófico para outro não se limita a uma espécie de refutação teórica. Nunca abandonamos tal princípio último só porque se prova que involve contradições; os sistemas filosóficos mudam se o sistema vital em que vivemos sofrer uma mudança. É, importante prestar atenção no entanto, a estes princípios filosóficos básicos, porque estão presentes, de uma forma ou outra em qualquer investigação nas ciências culturais. Se consideramos a «relativização do pensamento teórico» de um ponto de partida histórico e sociológico, vemos que pode ser realizada de várias formas, dependendo de que entidade está presente, de que pensamento se diz depender; este papel pode ser desempenhado pela consciência mítica, pela religião ou por qualquer outro gnosticismo, ou por uma esfera empiricamente investigada, posteriormente
fera biológica pensamento se contraste entre de acordo com
hipostaziada como
sistemas, o «ser»
aparece como
compreendermos
o
mento»
realidade última, tal como a es-
ou social. Em todos estes casos, o factor de que o diz depender é-lhe confrontado como um «ser», e o «pensamento» e «ser» é elaborado filosoficamente o modelo da filosofia grega. Na maior parte de tais um
ao contrário do «pensa-
todo,
que é uma mera parte; e muitas vezes afirma-se que, para
(ie. a intuição)
ou
ser,
de
precisamos
uma
forma
de
um
superior
dialéctica contra o conhecimento reflexivo).
órgão
supra-racional
de cognição
(ie. a
191
CEE Sociologia do Conhecimento
Mas esta relativização do pensamento não é um fenómeno exclusivamente moderno. A consciência mística e religiosa sempre tenderam a relativizar o pensamento em relação ao conhecimento extático ou revelado, em que a doutrina da primacia da vontade representa precisamente mais um modo de resolver o problema da relativização. Se se tratasse somente de uma questão de auto-relativização, a sociologia do conhecimento poderia ter surgido em qualquer altura; O traço característico é, no entanto, precisamento o de aquele factor singular nunca ser uma razão suficiente para o aparecimento do problema: é preciso toda uma constelação de tendências mentais e práticas. O traço distintivo que a nossa época devia acrescentar à auto-relativização do pensamento em geral para tornar possível a sociologia do conhecimento era o de o pensamento ser relativizado numa direcção particular, isto é, em atenção à realidade sociológica.
(2) Nas últimas observações, especificamos mais um factor
cuja análise nos ajudará na completa elucidação da constelação total em que surge a sociologia do conhecimento. Depois da auto“liquidação da consciência religiosa medieval (um tipo de consciência que, como
vimos, continha elementos que transcendiam a pura
racionalidade) vemos como sistema compreensivo seguinte o racionalismo do período do Iluminismo. Este sistema, que era o único a atribuir à Razão autonomia real, era como tal, menos capaz de efectuar uma relativização do pensamento, apontando antes na direcção contrária, isto é, para uma auto-hipostatização da Razão contra todas as forças irracionais. Neste ponto, no entanto, surge um factor completamente diferente, que só podemos analisar em termos de desenvolvimento real social e não em termos de desenvolvimento
imanente de ideias,
isto é, para usar uma expressão de C. Brinkmann, a constituição da ciência oposicional da sociologia. O humanismo, o primeiro exemplo de grupos declarados empenhados nas descobertas científicas no Ocidente, já representava uma espécie de ciência oposicional 192
O Problema da Sociologia do Conhecimento
mas este tipo de ciência só alcançou um nível sistemático no período do Iluminismo que preparava o estádio para a Revolução bur-
guesa. O âmago sistemático e também sociológico desta ciência oposicional era a sua hostilidade à teologia e à metafísica e encon-
trou a sua tarefa principal na desintegração da monarquia, com a sua tradição residualmente teocrática, tendo o clero como um dos seus defensores. Nesta luta, encontramos pela primeira vez um cer-
to modo
de depreciar as ideias que se tornou
um elemento essen-
cial desta nova constelação. As ideias que se combatiam é factor de importância secundária; o que importa é que vemos aqui pela primeira vez uma espécie de atitude face a ideias que a partir de então se tornaram a marca de contraste de todas as classes nascentes e que tinham encontrado a sua primeira consciência, a formulação relfexiva no marxismo. Estamos a referirmo-nos ao fenómeno a que
podemos
chamar
a «viragem desmascarada
da mentalidade».
Esta é uma viragem na mentalidade que não procura refutar, negar, ou pôr em dúvida certas ideias, mas antes desintegrá-las, e de tal forma que toda a visão geral do mundo de um estrato social se desintegra ao mesmo tempo. Devemos tomar atenção, neste momento, à distinção fenomenológica entre a «negação da verdade» de uma ideia, e a determinação da sua função». Ao negar a verdade de uma ideia, ainda a proponho como uma «tese» e assim me coloco na mesma base teórica (e nada mais do que teórica) em que a ideia se constituiu. Ao por em dúvida a «ideia», ainda penso dentro do mesmo modelo categórico em que ela tem o seu ser. Mas quando eu nem mesmo levanto a questão (ou, pelo menos, quando não faço desta questão a base do meu argumento) de saber, se a ideia que
tenho
é verdadeira,
mas
a considero
somente
em
termos da
função extra-teórica que serve, então, e só então, alcanço o «desmascarar» que na verdade não representa nenhuma refutação teórica mas a destruição da efectividade prática destes ideias. Mas
podemos
distinguir vários tipos de destruição extra-teó-
rica da eficácia das proposições teóricas. Assim, podemos apontar para uma certa diferença fenomenológica, por exemplo, entre o «desmascaramento»
de uma
mentira enquanto
ramento» sociológico de uma ideologia.
tal, e o «desmasca-
193
Sociologia do Conhecimento
Quando chamamos a certa declaração uma «mentira», não refutamos, também teoricamente ou negamos o que afirma a declaração; o que dizemos é antes relativos a uma certa relação do sujeito que faz a afirmação com a proposição que a exprime. O que se quer invalidar o teor da afirmação, atacando a personalidade moral da pessoa que a faz. Na verdade, no entanto, o teor teórico de uma afirmação não é invalidado pela demonstração de que o autor da afirmação mentiu. Pode muito bem acontecer que uma pessoa faça uma afirmação verdadeira e falsa ao mesmo tempo, o que ele diz é objectivamente verdade, mas «na sua boca», como diz o provérbio, a afirmação é uma mentira («com a verdade se mente»)*. Admitamos que a utilização é a este respeito ambígua;
o termo
«mentira»
é muitas
vezes
usado
no sentido de uma
afirmação falsa conscientemente feita. Mas mesmo neste caso, a «mentira», ao contrário do «erro» é uma categoria ética e não teórica. O termo «mentira», parece-me, refere-se a uma certa relação entre a existência real por um lado e certos objectos mentais
por outro; quer dizer que consideramos
as afirmações de
um sujeito do ponto de vista da sua personalidade ética. No entanto, não podemos dizer que o «desmascaramento» de uma ideologia, mesmo se ambos pertencem ao género da análise funcional, dirigidos ao desmascarar de um sujeito, de certos complexos teóricos do ponto de vista da sua relação com a realidade existen-
cial.
A diferença essencial entre o desmascarar de uma mentira e o de uma ideologia consiste no facto da primeira se dirigir à personalidade moral de um sujeito e procura destruí-la moralmente, desmascarando-o
como
um
mentiroso, enquanto
que o desmasca-
rar de uma ideologia na sua forma pura ataca, por assim dizer, só uma
força sócio-intelectual
impessoal.
No
desmascarar das ideolo-
gias procuramos trazer a luz um processo inconsciente, não para aniquilar a existência moral das pessoas que fazem certas afirma-
(x) Nota da Tradução.
194
O Problema da Sociologia do Conhecimento
ões, mas para destruirmos a eficácia social de certas ideias, desscarando a função que realizam. O desmascaramento das entiras sempre foi praticado; o desmascaramento das ideologias o sentido aqui definido, no entanto, parece ser um fenómeno xclusivamente moderno. Também neste caso, o facto de a função cio-psíquica de uma afirmação ou ideia ser desmascarada não ignifica que seja negada ou sujeita à dúvida teórica, nem levantaos mesmo a questão da verdade ou falsidade. O que acontece, anes, é que a proposição se «dissolve»: tratamos aqui do desgaste xistencial de uma afirmação teórica, numa atitude para com as omunicações teóricas que negligenciam o problema da sua verdale ou falsidade e procuram transcender o seu significado imanante eórico na direcção da prática existencial. O aparecimento da iragem da mentalidade «desmascarante» (que temos de compreder se queremos alcançar o carácter distintivo do nosso tempo) é segundo factor, que apela a uma interpretação em termos socioógicos, que representa algo de radicalmente novo, devido não anto à direcção, mas sobretudo ao modo como se transcende a
manência teórica. A luta prática das classes sociais deu lugar a um
ovo tipo de atitude face às ideias que, praticada ao princípio só im atenção a umas poucas, se torna mais tarde o protótipo de um
ovo caminho de transcender a imanência teórica em geral.
(3) O aparecimento da viragem de mentalidade «desmascaralora», cuja história escondida ainda apela a uma investigação mais xacta, não é, no entanto, suficiente para explicar a razão porque emos hoje uma constelação que permite o desenvolvimento de ima sociologia do pensamento. Temos ainda de mencionar dois utros factores que contribuem para a modelação da variante tual do pensamento existencialmente relativizante. Em primeiro lugar, a relativização, tal como a caracterizamos té aqui (em termos de «desmascaramento» e «transcendência») eferida somente
a certos items individuais de pensamento era ain-
ja parcial na sua intenção. Em segundo lugar, não indicamos ainda
terminus da moção transcendente, o absoluto em relação ao qual
195
Sociologia do Conhecimento
certos items são relativizados. E no entanto, como dissemos,o pensa mento, a imanência do significado teórico, não pode ser ultrapassada a não ser que confrontemos com algo mais compreensivo, um «ser» — um ser a partir do qual as ideias são concebidas como «expressão», «função», ou «emanação». Mas a este nível, falta-nos ainda o ponto de referência, a esfera ontológica de importância central em relação à qual o pensamento pode ser considerado como relativo ou dependente. Como dissemos, tal centro nunca pode ser pensado; ele sempre tenderá para a esfera da vida em que o pensador sistematizador enquanto sujeito prático vive mais intensamente. Em épocas passadas, os sujeitos que transcendiam o pensamento «viviam» na religião revelada, no êxtase etc. durante o
último estádio de desenvolvimento da consciência, no entanto, al
característica era a de que o sentido da realidade cada vez mais se] concentrava na esfera histórica e social, e que nesta esfera, o factor económico
era
considerado
o
central.
Assim,
a teoria
no
nosso,
tempo não se transcende na direcção da experiência religiosa ou estática; as classes nascentes experimentam em particular o campo histórico e social como o imediatamente mais real; e este é, por conseguinte, a esfera que se contrapõe às ideias do «ser» ou «rea lidade», em relação às quais as ideias são consideradas como algo) parcial, funcional, como uma mera «consciência» de algo mais| compreensivo. Este é um novo tipo de metafísica ontológica, mes mo se recebe a sua formulação mais rígida do positivismo anti -metafísico. Que esta nova metafísica foi criada pelo positivismo, não nos surpreende se nos lembrarmos que apesar de tudo, tam bém, o positivismo é uma metafísica, na medida em que retira um certo complexo da totalidade do determinado e, tal como qual-| quer outra metafísica, a hipostasia como um absoluto ontológico.. Este complexo hipostasiado para o positivismo é o das descobertas: da ciência
empírica.
Foi
na
linha da mudança
do centro vital de:
experiência para a esfera sócio-económica que a sociologia se de-| senvolveu pela corrente positivista. Quando nas suas últimas obras Saint-Simon analisou os trabalhos literários, as formas de governo, etc., em termos do processo sócio-económico, ele especificou a
196
O Problema da Sociologia do Conhecimento
esfera que mais tarde começa a desempenhar o papel cada vez mais decisivo do pólo «absoluto» em direcção ao qual a imanência teó-
rica se transcendeu. Quando a sociologia se constituiu dentro da
estrutura da consciência positivista, determinou-se o «terminus» ontológico do sinal que transcendeu a imanência teórica.
(4) Mas ainda precisamos de um outro traço para a caracterização completa da constelação moderna. Antes de alcançar o estado actual, o «desmascaramento» enquanto método teve de ultrapassar a parcialidade inicial, do seu exercício dentro de limites. Embora o objectivo tivesse sido, desde o início, a desintegração de toda a Weltanschauung das classes dominantes, o que realmente se conseguiu foi somente a desintegração de certas ideias, cuja natureza funcional foi demonstrada em termos sociológicos; a ideia de Deus, da metafísica, etc., foi relativizada deste modo. Esta realização só podia, no entanto, tocar o seu objectivo final quando fosse trazida á luz a natureza interesseira das ideias, a dependência do pensamento sobre a «existência» não somente no que diz respeito a certas ideias da classe governante, de tal forma que toda a «supra-estrutura» ideológica (tal como Marx a definiu) apareceu dependente da realidade sociológica. O que havia a fazer era demonstrar a natureza existencialmente determinada de todo um sistema de Weltanschauung, e não desta ou daquela ideia particular. Que não podíamos, a este respeito, considerar as ideias e as crenças isoladamente, mas antes, compreendê-las como partes mutuamente interdependentes de uma totalidade sistemática, esta a lição que aprendemos do historicismo moderno. Não precisamos de investigar aqui questões de pormenor, como a relativa à contribuição exacta de uma ou outra escola ou época para o surgimento de toda a concepção total da ideologia — ex: de que forma é que o historicismo está já embrionariamente presente no «iluminis-
mo», e como
cepção global
a mentalidade romântica tornou possível uma con-
dos todos
possíveis. Temos,
no entanto, de mencio-
nar o representante mais importante do pensamento histórico de que Marx retirou o conceito de totalidade histórica referido aci-
197
Sociologia do Conhecimento
ma — isto é, Hegel. No seu pensamento, também encontramos motivo da auto-relativização da teoria, embora numa estrutur. peculiar. Assim, Hegel distingue o pensamento «reflexivo» d «filosófico»; deprecia a esfera em que o princípio da contradição é válido quando comparado com o verdadeiro movimento di ideia; cria uma doutrina do «subterfúgio da ideia» segundo a qua as crenças subjectivas dos homens são meros instrumentos que au xiliam os desenvolvimentos reais. Em todos estes casos, se acres: centássemos a palavra «ideologia», encontraríamos a mesma con cepção fundamental que subjaz a teoria marxista subjacente, Que em Hegel quer em Marx, encontramos a mera «crença subjectiva» como lhe chama Hegel, ou «ideologia», como é designada na lin guagem marxista, depreciada; a esta esfera subjectiva é retirad a sua autonomia em favor de alguma realidade básica. Há uma di ferença relativamente insignificante entre Hegel, que se situa n tradição idealista, para quem esta realidade básica é mental, e Mar; que partilha da aproximação positivista da realidade e define est: realidade básica como social e económica. Porque existe esta seme lhança estrutural, é que a categoria da «totalidade» pode desempenhar um papel crucial em ambos os autores; as crenças das pessoa: não depende da sua existência social fragmentária, mas é a totali dade do seu mundo mental, toda a super-estrutura, que é função
da sua existência social.
É por causa desta aspiração para a «totalidade» que a tentati va de transcender a teoria com a ajuda da técnica de «desmascara: mento» assume uma nova forma específica, claramente distint: das versões anteriores. Como resultado disto, assistimos a um nov tipo de relativização, de invalidação das ideias. Neste momento podemos relativizar ideias, não pela sua negação uma a uma, nãt pela sua colocação em dúvida, não pela demonstração de que sã: expressões deste ou daquele interesse, mas pela demonstração que são parte de um
sistema, ou, mais radicalmente, de uma tota
lidade de Weltanschauung, que, como um todo, está ligado a, e determinado por, um estádio de desenvolvimento da realidade so cial. A partir deste momento, os mundos confrontam-se com mun
198
O Problema da Sociologia do Conhecimento
dos — não se trata já de proposições in:
iduais contra proposições
individuais.
Como vimos, o problema da sociologia do conhecimento sur-
ge como um resultado da interacção de 4 factores: (1) a auto-rela-
tivização do pensamento e do conhecimento; (2) o aparecimento de uma nova forma de relativização introduzida pela viragem da mentalidade «desmascarante»; (3) o surgimento de um novo siste-
ma de referência, o da esfera social; e (4) a aspiração de tornar to-
tal esta relativização, equacionando não um único pensamento ou ideia, mas todo um sistema de ideias, à realidade social subjacente. Quando este estádio é atingido, transfere-se a acentuação original que acompanha o aparecimento destes novos modelos de s pensamento e afastam-se do seu acordo muitas formas superfi de expressão originalmente associadas à nova aproximação. Assim, a acentuação do «desmascaramento» na determinação da função social das ideias pode ser cada vez mais eliminada. À medida que a nossa teoria se alarga em extensão, ficamos menos interessados em depreciar as ideias individuais, arguindo-as de falsidades, de decepções, de mistificações e de «mentiras de uma classe»; quanto mais conscientes do facto de todo o pensamento de um grupo social se determinar pela sua existência, menor o espaço para O exercício do «desmascaramento», e este sofre um processo de sublimação que o converte numa mera operação de determinação do papel funcional de qualquer pensamento. O «desmascaramento» não
consiste já em descobrir «a fraude do abade» e coisas semelhantes;
vamos mesmo tão longe como rejeitar a nossa decepção na maior parte dos casos; o objectivo da operação crítica é conseguido quando especificamos que a «localização» da ideia que se combate pertence a um sistema teórico «obsoleto» e, mais, a um todo existencial que a evolução deixou para trás. A segunda «mudança» que ocorre a este nível consiste num alargamento natural da aspiração para a totalidade. Quando nos familiarizamos com a concepção de que as ideologias dos nossos opositores são, afinal, precisamente função da sua posição no mundo, não podemos impedir-nos de concluirmos que as nossas
199
Sociologia do Conhecimento
ideias são, também, função de uma posição social. E mesmo se nos recusamos a admiti-lo, o opositor obrigar-nos-ia a reconhecê-lo, porque também ele eventualmente utiliza o método da análise ideológica e aplica-o ao utilizador original. E esta é precisamente a principal característica da situação actual: o conceito de «ideologia» foi desenvolvido pela primeira vez pela «ciência da oposição», mas não se manteve um privilégio das classes nascentes. Os seus opositores,
também,
empregam
esta técnica
de pensamento,
em
primeiro lugar, a burguesia que alcançou o êxito e estabilizou a sua posição. Hoje não é um privilégio dos pensadores socialistas observar a determinação social das ideias; tal prática tornou-se parte integrante da nossa consciência contemporânea como um todo, um novo tipo de interpretação histórica a acrescentar aos anteriores (1). Em relação a isto, o ponto saliente que exige atenção é o facto de novos métodos e técnicas de pensamento surgidas nas
ciências culturais terem a sua origem na realidade social, embora
sofrendo posteriormente uma evolução própria e perdendo eventualmente o contacto com o seu lugar social de origem. A este ní-
vel, podemos
observar como
mudam
o conteúdo
e função das no-
vas técnicas quando perdem o seu significado social original. Já assistimos a dois exemplos de tal: em primeiro lugar, a modificação da atitude «desmascarante», i.e. o facto de certos complexos teóricos determinados serem ultrapassados por indirecção, por referência a uma concepção sinóptica do processo histórico, e não pelo «desmascarar» de items isolados; e, em segundo lugar, o facto de a escolha da esfera social enquanto sistema de referência ser efectuada, em primeiro lugar, por uma «ciência da oposição» e gradualmente tornar mais ou menos propriedade comum de todos os campos. Podemos mencionar um terceiro aspecto da expansão natural e evolução das ideias, i.e. o facto de a tendência fundamental para a auto-relativização
(um
traço
característico
da mentalidade
mo-
(1) Cf. o meu ensaio sobre «Ideological and Sociological Interpretation», /nternationales Jahrbuch fr Soziologie, vol. 1.
200
O Problema da Sociologia do Conhecimento derna) não poder parar num determinado momento. Partindo do princípio que as ideias, os complexos teóricos são relativos ao ser, é ainda possível conceber este ser, quer como essencialmente imutável, estático, ou como dinâmico. Hoje é característico do pensamento moderno a consideração do seu último ponto de referência, neste caso o ser, simultaneamente como algo dinâmico e «em devir». Não só as «ideias», mas também o «ser» de que dependem, devem
ser reconhecidos
como
algo dinâmico, tanto mais quanto,
para aqueles que defendem uma posição, o seu ponto de partida está igualmente sujeito a mudança constante. O que coloca a tarefa
de satisfazer a necessidade de totalidade de um modo mais radical.
Não basta considerar as «ideias» de uma classe antagónica ditadas pela sua «existência»; não é suficiente reconhecer que as nossas ideias são ditadas pela nossa existência; o que temos de compreender é que
quer
as nossas «ideias, quer a nossas «existências»
são
elementos de um processo evolutivo compreensivo em que estamos empenhados. Este processo geral, por conseguinte, é posicionado como o nosso «absoluto» básico (embora seja mutável e se desenvolva); as ideias conservadoras e também as progressistas (para usar designativos simplificadores) aparecem como resultados neste processo (1). Na nossa opinião, a questão presente da constelação ne-
(1) As expressões
«progressista»
e «conservador»
para caracterizar certos pensadores numa
serão utilizados mais tarde
primeira aproximação.
Não preten-
dem de modo algum uma caracterização exaustiva de toda a personalidade po-
lítica dos pensadores em questão. Neste artigo, procuramos apenas as «afinidades»
e «correlações»
entre certas estruturas de pensamento
por um
lado,
e certas exigências da realidade, por outro. Mas é evidente para o curioso da história que não pode haver nenhuma correspondência imutável entre um certo tipo de
pensamento
e uma
corrente
política, ex: entre o pensamento
«histórico» e o «conservadorismo». A maior parte dos tipos de pensamento admitem uma sentido
interpretação múltipla, quer num
conservador.
sentido progressista, quer num
O que não nos pode, no entanto, impedir de investigar
em pormenor como na situação histórica real algumas exigências da realidade
201
Sociologia do Conhecimento
cessariamente implica este acompanhamento radical das ideias até às suas consequências últimas; e as dificuldades levantadas nesta série conduzem ao aparecimento dos problemas da sociologia do
Conhecimento.
Temos de voltar ao ponto em que os problemas da realidade
social procuram possíveis
ciência.
uma solução sistemática, e de rever as soluções
disponíveis
nos
vários
estádios de evolução
da
cons-
II. POSIÇÕES TEÓRICAS Até aqui, delimitamos a constelação daqueles factores que têm de ser determinados conjuntamente para que se possa levantar o problema de uma sociologia do conhecimento. Mesmo nesta investigação preliminar, a nossa aproximação foi primariamente sociológica: mostramos como uma corrente de oposição de pensamento conduz a questões relativas à determinação sociológica dos
modos de pensamento. Tendo sofrido duas fases (sendo a primeira
ou preparatória o pensamento nascente da burguesia, a segunda a da classe de oposição seguinte, o proletariado), estas ideias alcançaram agora uma extensão e uma necessidade que ninguém que queira pensar em categorias de uma importância genuinamente global se pode permitir ignorá-las como elemento do pensamento quotidiano.
Se olhamos a história como um fluxo dividido em vários ra-
mos e se concebemos a história do pensamento como algo de fragmentado em várias correntes por necessidade histórica inevitável
(Cont.) se aliam a um
certo estilo de pensamento, e que mudanças de função
ocorrem nesta conexão. Como categorias de
«conservadorismo»
estas investigações são muito e de «progressismo»
devem
elaboradas, as ser ainda dife-
renciadas e tratadas como entidades dinâmicas. De momento, no entanto, es-.
tamos ocupados só com uma 12 aproximação grosseira às afinidades existentes entre as exigências da realidade e as estruturas de pensamento.
202
O Problema da Sociologia do Conhecimento
(qualquer estudo profundo da história só pode fazer confirmar tal
visão), podemos facilmente ser conduzidos a assumir a posição ex-
trema de que a história das ideias consiste em consequência completamente isoladas de pensamento sem a menor intercomunicação, de tal forma, que, por exemplo, o pensamento conservador e o pensamento progressista teriam cada um a sua tradição independente auto-suficiente de interpretação do mundo. Os que pensam deste modo acabam por adoptar uma solução de direita ou de esquerda radicais para o problema da interpretação da história; não tomando em consideração nada que não seja a estrada histórica atravessada pelo seu próprio grupo, e as exigências por ele levantadas, não fazem de todo justiça à função e significado dos modos de pensamento dos outros grupos. Não pode duvidar-se agora que as teorias sociológicas e históricas, os métodos e atitudes são sempre postos em íntima correlação com a posição social específica e os interesses intelectuais de uma classe ou grupo social. No entanto, deve admitir-se que depois de uma classe ter descoberto algum facto sociológico ou histórico (que pertence a este horizonte de visão em virtude da sua posição específica), todos os outros grupos, sem atenção aos seus interesses, podem igualmente tomar tal facto em consideração mais ainda, devem de algum modo incorporar tal facto no seu sistema de interpretação do mundo. Admitido tal facto, podemos concluir que todos os grupos, ainda que comprometidos com diferentes tradições, procuram no entanto desenvolver uma imagem compreensiva do mundo, não ignorando qualquer dos factos trazidos à luz por algum deles. Por conseguinte, a pergunta com que se debate uma sociologia concreta do conhecimento, é a seguinte: «que categorias, que concepções sistemáticas são usadas pelos diferentes grupos num determinado estádio no que diz respeito a um mesmo facto descoberto no decurso das operações práticas? E que tensões se levantam na tentativa de enquadrar estes novos factos nas categorias e concepções sistemáticas?
Podemos
colocar
a pergunta
mais
simplesmente
se
não atendermos ao papel dos pressupostos sistemáticos a priori no processo de pensamento; o que fica então é o facto das diferentes
203
o Sociologia do Conhecimento
correntes intelectuais não actuarem isoladamente, mas antes se afectarem mutuamente e se enriquecerem reciprocamente, não
aparecendo
no
entanto,
no mesmo
sistema
comum,
tentando
antes uma aproximação para a totalidade dos factos descobertos, a partir cada um de diferentes axiomas gerais. Esta visão da estrutura histórico-sociológica dos processos intelectuais leva-nos à conclusão de que em cada momento há «posições» filosóficas sistemáticas diferentes com as quais podemos realizar a análise de um facto recentemente iluminado, a partir de uma nova faceta da realidade cognitiva. Na verdade, nenhum de nós está num vacuum supra-temporal de verdade descorporizadas; todos confrontamos a «realidade» com as questões já colocadas e as sistematizações pretendidas, e a obtenção do novo conhecimento consiste na incorporização dos novos
factos
na
velha
estrutura
de
definições
e categorias,
de partida sistemático a partir do qual são examinados. Esta
a razão porque é tão tentador observar como a descoberta de certos factos (como a «classe» a «ideologia») se relaciona com certos compromissos sistemáticos e sociológicos; como, por exemplo, o conceito de classe pertence essencialmente ao pensamento da oposição, enquanto que certos conceitos «orgânicos» tais como «tradição» ou «protocolo» têm uma afinidade com o pensamento conservador. O que isto sugere é que determinados compromissos, por assim dizer, nos tornam sensíveis a certas realidades do passado, presente e futuro. No entanto, logo que os factos se tornam apa-
204
E
e na
determinação do seu papel ali. Não pretendemos negar que a «classe» e a «ideia» são realidades objectivas; no entanto, falta-lhes o carácter de «facto obstinado» atribuído às coisas (ainda que a algo erradamente, como parece) em virtude do qual nos seriam dados inquestionavelmente do modo exacto como objectivamente «são». Que os conceitos que mencionamos («classe», «ideia») são objectivamente reais é o que se prova pelo facto de teimosamente afastarem as tentativas de duvidar deles e de irresistivelmente imporem um modelo de Gestalt sobre o espectador. Mas a questão de saber o que são será respondida de modo diferente, dependendo do ponto
|
|
O Problema da Sociologia do Conhecimento
rentes, eles são também
conhecidos pelas outras correntes na pers-
pectiva específica em que aparecem para elas. E a questão mais tentadora é, talvez, a do modo em que os preconceitos sistemáticos daqueles outros grupos modifica no seu pensamento a realidade descoberta por outros. Tudo isto supõe, claro, que mesmo as descobertas científicas especializadas estejam ligadas a certos pressupostos filosóficos, sistemáticos
e que
só possam
ser separados
destes
em
atenção a
certos aspectos parciais. Quando se interpretam os «novos» dados, o reconhecimento dos novos «factos» depende das tendências para a elaboração de um sistema num sentido filosófico que acaba por prevalecer. Como vimos acima, não podemos afirmar de uma vez por todas que as posições filosóficas conservadoras e as progressistas, respectivamente que utilizam estas correlações são também dinâmicas por natureza. É preciso investigar histórica e sociologicamente há quanto tempo e em que medida o positivismo é um modo de pensamento característicamente «burguês»; que «nuance» do positivismo se torna base do pensamento proletário; em que medida o positivismo de uma burguesia consolidada com sucesso difere do positivismo revolucionário e do materialismo; que pensamento «dinâmico» será apropriado pelos grupos revolucionários e conservadores, respectivamente, etc.
Não tentaremos traçar a história social da génese das várias posições a partir das quais a realidade é hoje interpretada. O nosso plano é, antes, escolher uma inter-secção das posições contemporâneas e descobrir que princípios fundamentais básicos estão na base a partir da qual podemos tentar analisar o problema recentemente levantado. E isto porque parece que chegamos ao estádio em que o problema da sociologia do conhecimento que até agora pertencia ao contexto do pensamento progressivo, se reconhece
como
uma
realidade «refractária» e está a ser tratado como tal
por outras posições também. Tendo delineado a constelação que tornou possível o aparecimento do problema, temos agora de encarar a outra questão: quais são as posições sistemáticas pré-existentes no pensamento dos vários grupos com que se debate este
205
Sociologia do Conhecimento
problema
no momento
em
que consegue o estatuto de «realidade
refractária» a exigir consideração por parte de cada grupo? Que filosofias contemporâneas, que «posições» permitem o trabalho sistemático sobre este problema, e qual é a característica específica destas posições? Parece que as posições filosófico-sistemáticas mais importantes a partir das quais podemos tomar a ombros a tarefa de elaborar uma sociologia do conhecimento incluem hoje as seguintes:
(a) o positivismo, (b) o apriorismo formal, (c) o apriorismo material (i.e. a escola fenomenológica moderna), (d) o historicismo. Em temos correctos, só o positivismo elaborou até hoje uma
sociologia do conhecimento extensamente desenvolvida e em duas variantes sendo uma a assim chamada teoria materialista da histó-
ria (1), que pertence ao «nuance» proletário do positivismo, e a outra a teoria «positivista burguesa» desenvolvida por Durkheim, Lévy-Bruhl, Jerusalem, etc.. O apriorismo formal contribuiu somente com uma aproximação inicial para o problema da sociologia do conhecimento, sem se preocupar com investigações históricas pormenorizadas. Podemos pensar a este propósito nas várias «nuances» do neo-Kantianismo que obteve reconhecimento quer entre burgueses, quer em parte, entre os sociais-democratas. A discussão mais pormenorizada será reservada para a moderna escola fenomenológica, o apriorismo material, de forma que omitiremos aqui outra caracterização dela neste ponto. Dedicar-
-se-á igualmente uma análise à parte à posição filosófica do historicismo que é eminentemente relevante para o problema da sociologia do conhecimento. Entre os representantes desta posição podemos mencionar Troeltsch e o ortodoxo marxista de esquerda
G. Lukácks.
É o debate entre as escolas mencionadas em último lugar (a fenomenologia e o historicismo) que consideramos decisivo. Antes de considerarmos estas posições, faremos algumas observações
(1) Discutir-se-ão mais tarde variantes da teoria histórica marxista.
206
O Problema sa Sociologia do Conhecimento
acerca das duas escolas mencionadas em 1º lugar. A nossa concep-
ção será apresentada na secção final deste artigo.
(a) O positivismo, que é simplesmente uma filosofia de não-
-filosofia, trata o problema da sociologia como uma disciplina científica especializada. Mas é uma escola essencialmente ilusória, quer porque hipostasia um conceito particular de empirismo, quer porque defende que o conhecimento humano não pode estar completo sem a metafísica e a ontologia. Além disso, estes dois princípios são reciprocamente contraditórios: uma doutrina que hipos-
tazia certos métodos paradigmáticos e as esferas da realidade que
lhes correspondem como «absolutamente» válidas torna-se em si mesma uma metafísica, embora de alcance particularmente limitado. Aplicada à prática, a doutrina positivista tem a consequência de que cada particular campo de investigação, o cientista toma
como realidade última ou o substracto «material» ou o substracto
«psíquico», a partir do qual todos os outros fenómenos podem ser
traçados
(sejam
eles intelectuais,
artísticos ou
outros fenómenos
culturais). Uma espécie de positivismo é particularmente importante para a sociologia do conhecimento: a que considera que a esfera económica corporiza a realidade última. Os defensores de tal teoria — especialmente os que representam o marxismo comum — defendem, em 1º lugar, que nada existe senão a matéria e, em 2º lugar que a realidade factível da matéria é revelada na esfera social, pelas relações económicas; só em atenção a estas é que po-
demos analisar as realidades culturais.
Como resposta às experiências decisivas do nosso tempo, todas as variantes do positivismo são basicamente genuínas: na nossa opinião representam uma reflexão progressista do facto de o centro da nossa experiência se ter deslocado da esfera espiritual e religiosa para a esfera sócio-económica. Foi o capitalismo, com a intensificação das lutas de classe que trouxe consigo, que foi o responsável por esta deslocação do centro de esperiências para estes campos e também pelo facto de o pensamento tecnológico e científico se tornar o único protótipo reconhecido de todo o pensamento. Não
207
Sociologia do Conhecimento
]
deixa de ser surpreendente que uma filosofia que procurava fornecer uma interpretação do mundo com este tipo de experiência e pensamento como sua estrutura básica de referência que assentava epistemologicamente de um modo exclusivo nas ciências naturais e na ontologia, atribua realidade apenas aquelas esferas que experimentava como reais, negando reconhecimento teórico completo àquelas esferas que na sua experiência prática apareciam só na perife Este defeito, esta unilateralidade, poderia facilmente ser corrigida; do que se precisava era de alargar o horizonte que permitiria uma transformação do mero anti-metafisicismo numa visão positivista segundo a qual todo o pensamento humano está tão estruturado que deve colocar uma ou outra esfera de experiência como absoluta. Muito mais grave é, no entanto, um outro defeito do positivismo, nomeadamente, o dos seus pressupostos fenomenológicos inconscientes serem falsos, de tal forma que os seus métodos são inteiramente inadequados especialmente no tratamento da realidade intelectual-espiritual-artística. As descrições positivistas da realidade são endEne no logiên mente
falsas,
porque
os seus defensores,
tal como
os naturalistas
e os psicólogos, são cegos ao facto de o «significado» intencional ser algo de específico, sui generis, incapaz de se dissolver em actos psíquicos.
Estão cegos ao facto de a percepção e o conhecimento
finalmente
de o seu naturalismo
de objectos significantes enquanto tais precisarem de interpretação e compreensão; ao facto de os problemas levantados a este propósito não poderem ser resolvidos por um monismo científico; e, os impedir de verem a relação en-
tre a realidade e o significado de um modo correcto.
Não desprezando estas exactidões, devemos reconhecer que foi o positivismo que descobriu e articulou o problema de uma sociologia
métodos
do
conhecimento.
E mesmo
que possamos
e premissas do positivismo como
considerar os
não suficientes porque
demasiado estreitas, sempre temos de reconhecer que esta doutrina
contém dois pontos que revelam uma experiência genuína e que portanto, ainda permanecem válidos mesmo para nós. Um ponto diz respeito ao facto do positivismo nos ter possibilitado pela pri-
208
O Problema da Sociologia do Conhecimento
Tr
'meira vez uma formulação filosófica para a posição central da esfera económico-social na experiência do homem contemporâneo — tal a orientação «conceitual» do positivismo; o outro ponto é o seu respeito pela realidade empírica que torna a metafísica, pura especulação, impossível em todos os tempos. Afirmamos, então, que o positivismo substancialmente desempenhou a mudança essencial para um modo de pensar adequado à situação contemporá'nea; sistemática e metodologicamente, no entanto, não se superiorizou a um nível relativamente primitivo, já que, por exemplo, não reconheceu o facto desta sua orientação «conceitual» implicar, também, uma hipostatisação, uma metafísica. (b)
A
filosofia
da
validade
formal
representa
um
segundo
onto de partida a partir do qual podemos compreender uma soiologia do conhecimento. Mas tudo o que esta escola conseguiu, ouco mais é do que o embrião de uma teoria geral da sociologia ja cultura; pouco importa, na nossa opinião, saber que este tio de filosofia não inspirou nenhuma investigação sociológica conreta. Porque a filosofia da validade depreciou o ser, contra o penmento, numa afirmação de completo desinteresse do ser. Esta esla procura sobretudo compreender o pensamento em termos de ensamento, isto é, numa forma imanente e também dar uma justiicação teórica desta posição «imanente». A partir deste ponto de ista imanente,
para sermos claros, a diferença fenomenológica en-
re O «ser» e o «significado», a que a atitude positivistaé compleamente
estranha,
torna-se mais facilmente discernível, e faremos
ustiça à diferença essencial entre um acto de experiência e o signiicado
por
ele querido.
No
entanto,
se não passamos
além
deste
onto de vista (como é o caso com a filosofia da validade), este lualismo será hipostasiado como algo absoluto e o segundo termo relação, o significado, irá inevitavelmente receber uma acentuaão metafísica exagerada. Esta filosofia da validade interessa-se soretudo
pela
«validade»
dos
instrumentos
da
génese
histórica
e
ociológica, preservando-a numa sublimidade supra-temporal. Mas isto é prova de uma ruptura no sistema: a esfera da «validade» teó-
209
Sociologia do Conhecimento
rica, tal como as dos outros valores, e hipostasiada como absolut
supra-temporal, enquanto que o substracto material em que se cor
poriza é abandonado ao fluxo anárquico do ser. Esta filosofia foi coerente enquanto teve a coragem de afir mar, tal como fez a filosofia do iluminismo, a sua fé segura n: Razão e, seguindo o exemplo das teorias «das leis naturais» e di declarar uma posição específica de «validade» como a única exclu sivamente correcta. (É claro que ao procedermos assim, necessa
riamente subestimamos o facto de atribuirmos validade «eterna
a um estádio transitório da história do pensamento). Mas a coerên cia interna deste tipo de filosofia perde-se quando, sob a impressãc da variabilidade histórica do pensamento, todas as proposições ma
teriais são dadas como relativas e existencialmente determinadas,
defendendo-se, no entanto, a autonomia e a supra-temporalidad: para os elementos formais do pensamento, tais como as categoria ou os valores formais, em novas variantes destas filosofias. Sociolo gicamente, o estádio anterior, a afirmação da verdade exclusiva di uma posição material, corresponde a uma auto-afirmação da or dem burguesa nascente que perdeu a fé em certos princípios] Quando, no entanto, a burguesia foi mais tarde forçada a adopta uma posição defensiva, a ordem social burguesa tornou-se uma me ra «democracia formal», i.e. uma ordem que se contentava com afirmação do princípio de uma liberdade completa de opinião r cusando-se a fazer uma escolha entre as várias opiniões. Tal atitu! de corresponde ao pressuposto metodológico segundo o qual st pode haver uma verdade e de que tal verdade só pode ser expre:
de uma forma; no entanto, a tarefa de encontrar tal verdade er: deixada à discussão livre. (Este processo de transição dentro da de mocracia burguesa, já foi descrito na análise histórica). Filosoficamente,
o defeito
desta
posição
consiste na sua in
capacidade de analisar de um modo orgânico a unidade do ser e d significado,
um
problema
que
inevitavelmente
se
levanta
e
qualquer sistema. Além disso, adoptar esta posição significa torna a filosofia como não problemática, manter fora do alcance di investigação histórico-sociológica precisamente os problemas mai:
210
O Problema da Sociologia do Conhecimento
essenciais de uma sociologia do conhecimento como por exemplo o problema da transmutação das categorias e das mudanças na hierarquia da esfera de valores e também o problema de saber se a afirmação de «esferas de valores» isoladas, auto-suficientes não
conduz
somente
a uma
hipostatização de um
estado de coisas
transitório, especificadamente moderno. O único modo como os defensores desta posição filosófica poderiam tratar problemas da sociologia do conhecimento e particularmente do pensamento, consistiria em examinar o substracto material em que as esferas de valores formais se corporizam. Mas esta aproximação nunca se revelaria útil porque se se separa rigidamente a «forma» e a «matéria» a matéria é, por assim dizer, deixada à mera sorte. Esta a razão porque esta escola não podia produzir nenhum material filosófico da história. Além disso, todos os produtos culturais das épocas passadas devem inevitavel-
mente ser considerados em termos de uma
«forma de validade»
actual. Já que só o «tema» muda, só há uma «arte» uma «religião, etc., que é essencialmente o mesmo que hoje. Esta escola despreza o facto de, e usando a sua terminologia, a «forma de valida-
de», vigente num determinado momento, ser influenciada pela mudança do substracto material, de tal forma que uma transformação na esfera material provoca uma transformação na esfera da validade «formal». A «arte» nem sempre foi a «arte» no sentido definido pela escola da «L'art pour I'art», como pensamos; e, de modo semelhante, de acordo com o contexto existencial em que surge, um
pensamento nem sempre representa, «pensamento» e a «cogni-
ção» no mesmo sentido em que são definidos pela matemática e pelo pensamento científico, tal como o tomaria a filosofia da validade, inconscientemente tomando a «forma de validade» do pensamento científico como todo o pensamento enquanto tal. HI. A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO NO PONTO DE VISTA DA MODERNA FENOMENOLOGIA
(MAX SCHELER)
Depois desta breve análise das contribuições do positivismo e da filosofia de validade formal (neo-Kantianismo) para o problema
2
Sociologia do Conhecimento
da sociologia do conhecimento, voltamo-nos agora à confrontação de duas outras escolas — a moderna fenomenologia e o historicismo — que pela 12 vez nos permitirão enfrentar os decisivos problemas presentes no estabelecimento de uma base sólida para uma sociologia do conhecimento e cognição. Na comparação das duas escolas, adoptaremos tudo aquilo que julgamos ser doutrina válida do historicismo (1) analisaremos a aproximação fenomenológica deste ponto de vista. Tal como há várias variantes no historicismo, é possível retirar muitas conclusões diferentes quanto ao problema de uma sociologia do conhecimento a partir de premissas fenomenológicas; na nossa análise, no entanto, não trataremos das atitudes fenomenológicas que são possíveis em abstracto para com este problema, mas apenas da delimitação fenomenológica de uma sociologia do conhecimento recente-
mente publicada por Max Scheler (2).
De acordo com o ponto de vista adoptado, o estudo de Scheler é particularmente interessante como uma ilustração surpreendente da tese segundo a qual os problemas originalmente levantados pela oposição social são depois tomados pelos pensadores conservadores; este estudo permite também observar a transformação estrutural que sofre um problema quando é inserido na estrutura sistemática de uma teoria que se baseia numa diferente tradição. Temos aqui um exemplo concreto do estádio final conseguido pelo desenvolvimento das ideias num determinado meio social, um estádio em que, reconhecidos como «factos evidentes», são tomados pelo movimento adversário e transformados por ele. Podemos caracterizar a posição de Scheler sucintamente dizendo que ele combina vários motivos da moderna escola fenomenológica com elementos da tradição católica. Não podemos dizer sem mais que a fenomenologia é uma filosófica católica (embora (1) Cf. o nosso ensaio sobre o Historicism. (2) Cf. Max Scheler, Probleme Leipzig, 1924.
212
einer Soziologie des Wissens,
Munich and
O Problema da Sociologia do Conhecimento
pensadores católicos como
Bernhard Bolzano e Franz Bretano es-
tejam entre os seus percursores); no entanto, em muitos pontos es-
senciais isso conduziu ao reforço de conceitos católicos como «intemporalidade», «eternidade», como novos argumentos. Ao estabelecer uma separação extremamente rígida entre conhecimento «factual» e «essencial», a fenomenologia oferece provas concretas
justificadoras do dualismo católico entre o eterno e o temporal e
prepara o terreno para a construção de uma metafísica não-formal, intuitiva. A fenomenologia defende que é possível compreender verdades de validade supra-temporal por «intuição essencial» (Wesensschau). Na verdade, observamos divergências consideráveis entre as intuições dos diferentes membros da escola. Estas divergências são explicáveis pelo facto de as intuições de essência dependerem sempre da base histórica do sujeito. As análises fenomenológicas mais impressivas baseiam-se nos valores católicos tradicionais e a nossa civilização é, afinal, em larga medida, um produto desta tradição. Deve acentuar-se, no que diz respeito a Scheler, que ele já se separou de vários princípios católicos. O que, no entanto, é menos importante no presente contexto do que o facto de ainda estar profundamente ligado ao tipo formal de pensamento demonstrado pelo catolicismo. O principal ponto de Scheler e do seu novo ensaio é dado pelo facto de ele estar em afinidade apertada com a realidade actual e de tomar em atenção os novos desenvolvimentos culturais muito mais seriamente do que a maioria daqueles que interpretam o mundo em termos de tradição católica. Como filósofo de infatigáveis e sensíveis mudanças de mentalidade, impaciente com as limitações e o formalismo rígido, Scheler não se satisfaz com a fronteira demarcada entre a eternidade e a temporalidade; sente-se impelido a analisar os novos factores culturais nascentes no mundo. A afinidade com o presente, ligada a modos de pensamento e experiência conservadores, produz tensões extravagantes na estrutura dos seus argumentos, de tal forma que o leitor receia sempre que todo o edifício explodia ante seus olhos, atirando pedras em todas as di213
Sociologia do Conhecimento
recções. Porque acentuamos precisamente os problemas complexos inerentes à interacção das várias posições, estamos sobretudo interessados no modo pelo qual um representante moderno de uma fa-
se intelectual e emocional anterior se concentrou sobre os novos
factores da realidade cultural, numa configuração de significado real simbólico; e isto porque a riqueza essencial dos processos histórico-sociais do mundo deriva em grande parte da possibilidade de «anacronismos» como este tentarem interpretar os factores con-
temporâneos do mundo com base em premissas que pertencem a
um estádio anterior de pensamento. Há, no entanto, um tom particular no tratamento que Scheler dá ao problema, não só pelo facto de procurar
incorporar
os novos elementos
numa
velha estrutura,
mas também por tentar mesmo apresentar a posição do «historicismo» e do «sociologismo» em termos de uma filosofia do intemporal.
Deliberadamente limitaremos a nossa discussão a este lado es-
trutural da teoria de Scheler e seleccionaremos da riqueza surpreendente das suas afirmações só aqueles pontos que são importantes para o problema das várias posições intelectuais. Não estamos interessados em descortinar erros ou inadequações, mas apenas em traçar a linha de determinação histórica que fez com que este tipo de pensamento seja exactamente como é. A principal característica do ensaio de Scheler é, tal como afirmamos acima, a grande extensão do seu estudo: Scheler tenta analisar o sociológico do ponto de vista do intemporal, o dinâmico a partir de um sistema estático. Encontramos na sua teoria todos os pontos enumerados na descrição de «constelação» subjacente
ao aparecimento da sociologia do conhecimento: (a) o pensamento
concebido como relativo ao ser, (b) a realidade social como o sistema de referência em relação ao qual o pensamento é concebido como relativo, e (c) uma visão compreensiva da totalidade histórica. A acrescer a isto, podemos também observar em Scheler a «mudança» da tendência original de «desmascaramento» para uma sociologia imparcial; isto não surpreende já que a mudança está muito mais em linha com uma atitude conservadora do que com
214
O Problema da Sociologia do Conhecimento
uma oposição. A questão que queremos examinar é a de saber em 'que medida uma aproximação estática sistematizadora pode fazer justiça ao dinâmico e sociológico, i.e. se uma filosofia «intemporal» pode tratar adequadamente aqueles problemas que se levan'tam na situação intelectual presente. Scheler, para quem a sociologia do conhecimento tem sido tratada até agora a partir de um ponto de vista exclusivamente positivista, propõe-se uma aproximação a este problema a partir de utro ponto de vista «que rejeita as doutrinas epistemológicas do positivismo e as conclusões por ele retiradas, e vê no conhecimento tafísico um postulado «eterno» da razão e uma possibilidade rática» (Prefácio). Para ele, a sociologia do conhecimento faz rte da sociologia cultural que por seu turno é parte da sociologia; esta divide-se em sociologia «real» e sociologia «cultural». primeira examina os factores «reais» do processo histórico, espe-
ialmente derivações como o sexo, a ambição e o poder enquanto ue a última trata de factores «culturais». A sociologia como um odo,
tem
no entanto, a tarefa de «determinar
os tipos e
leis fun-
ionais da interacção» destes factores, e especialmente estabelecer ma «lei de sucessão» de tais tipos de interacção. Assim temos qui, como em todas as sociologias da cultura, uma distinção da «infra-estrutura» e da «super-estrutura», mas com a diferença esecífica (esta a «mudança» que caracteriza a posição de Scheler) le que (a) a «infra-estrutura» compreende factores psicológicos) (orientações) e não factores sócio-económicos, e (b) de que há uma separação rígida entre as duas esferas, ao contrário da variante neo-Hegeliana do marxismo. Segundo esta última posição, a relação da «infra-estrutura» com a «super-estrutura» é a do todo com a parte; ambas formam uma unidade inseparável, já que uma certa configuração «ideal» só pode surgir em conjunção com uma certa configuração «real» e vice-versa; uma certa «configuração real» também só é possível quando factores «ideais» revelam uma tal configuração. Scheler, no entanto, não é capaz de elaborar uma teoria histórica desta natureza, já que baseia a sua «sociologia cultural» numa teoria das orientações e da mentalidade do homem
215
Sociologia do Conhecimento
em geral. Esta teoria procura determinar certas características intemporais do homem e explicar qualquer situação histórica concreta como um complexo de tais características. E também não consegue estabelecer uma afinidade íntima com o historicismo quando examina de um modo «generalizador» a interacção do «real» e dos factores
«culturais»,
tomando-a
como
expressão
de uma
lei geral
de sucessão, e não como uma sequência de fases concretas, únicas no tempo. Embora Scheler se esforce por formular uma «lei» da génese dinâmica possível das coisas pertencentes a uma ordem de «eficácia temporal», é claro que tais «leis» só podem resultar da aplicação de categorias generalizadoras das ciências naturais. Esta sociologia só é minimamente consistente quando tenta, segundo o modelo
das ciências
naturais, estabelecer
regras, tipos
e leis dos
processos sociais. Neste momento gostaríamos de chamar a atenção para a diferença fundamental entre os tipos de sociologia que são possíveis hoje. Uma continua a tradição das ciências naturais com o objecti-
vo de estabelecer leis generalizadoras (a sociologia ocidental é des-
ta natureza); a outra volta à tradição da filosofia da história (Troeltsch, Max Weber). Para o 1º tipo, cada individuo histórico é tão-só um complexo de propriedades gerais, imutáveis, e tudo o que não pode ser reduzido a estas propriedades é desprezado. O último tipo, por outro lado, prossegue na orientação contrária e considera as individualidades históricas, compreendendo não só as personalidades mas também qualquer constelação histórica na sua singularidade, como o objecto correcto de investigação. O individual, de acordo com esta concepção, não pode ser determinado por uma combinação de características abstractamente destiladas, imutáveis; pelo contrário, o historiador pode e deve penetrar no âmago psíquico e mental de um indivíduo singular, sem a mediação de propriedades gerais, e proceder então à determinação de todas as características e factores parciais individualmente. É assim que procedemos quando compreendemos a fisionomia de uma face humana; não combinamos características gerais (olhos, boca, etc.), mas a coisa mais importante é agarrar o centro único de expressão
216
O Problema da Sociologia do Conhecimento
e caracterizar os olhos, a boca, e os outros à luz desta inserção central. A escola em questão defende que este método, espontaneamente empregue na vida real, tem também a sua aplicação na ciência e tem na verdade sido inconscientemente utilizado pelos cientistas; é altura, então, de fixarmos o carácter metodológico deste tipo de conhecimento. Porque não se dá o caso do «centro de expressão», a fisionomia particular de uma situação, a singular linha evolucionária revelada por uma sequência de acontecimentos poderem ser compreendidos unicamente pela intuição e não poderem ser comunicados ou cientificamente objectivados. Todas estas inserções
no
todo
podem
ser traduzidas
num
conhecimento
cientí-
fico controlável e o renascimento actual dos modos de pensamento histórico-filosóficos podem, na nossa opinião, ser explicados pelo desejo de encontrar um método de comunicar o que é unico no processo histórico. Na sociologia da cultura, faz-se uma tentativa de analisar as situações históricas únicas em termos de comunicações singulares de propriedades e factores subjacentes a processos constantes de transformação, constelações que em si mesmo são fases
num
processo
determinada.
genético,
cuja
direcção
totalizante
pode
ser
O próprio Scheler parecia estar consciente do facto de uma
sociologia
baseada
numa
doutrina generalizante da essência do
homem se ter tornado uma questão muito problemática, já que as essências gerais sempre aparecem vazias quando comparadas com os fenómenos históricos e mentais concretos (esta uma das razões porque podem ser separados). Assim, Scheler acentua que a mente existe só numa multiplicidade concreta de grupos e culturas infinitamente
variáveis, de tal forma
que em vão se fala de uma
«unida-
de da natureza humana» como pressuposto da história e da sociologia. Isto significa, no entanto, que não devemos esperar que a teoria das essências ilumine a questão, já que se admite agora que ela só pode traçar a estrutura formal mais geral das leis dos actos intencionais. Scheler, na verdade, coloca-se desta forma muito próximo do Kantianismo e da filosofia formal em geral.
217
Sociologia do Conhecimento Mas porquê esta rejeição sumária das teses da «unidade de natureza humana», depois do próprio Scheler ter proposto basear a sociologia numa doutrina geral da essência do homem? A resposta segundo a qual a unidade supra-temporal do homem (a tratar numa orientação geral e numa teoria da mente) se refere à essência «homem», enquanto que a «multiplicidade» concreta trata apenas do facto «homem», ainda que esperada, não nos pode satisfazer. A uma mente humana existente em desenvolvimento numa multiplicidade concreta, só pode corresponder uma essência dinâmica «homem»; na nossa opinião, não podemos pensar à maneira historicista na investigação factual e permanecer estáticos na análise essencial. Se, no entanto, tendemos para uma doutrina «essencialista» da mente humana e dos actos intencionais, inspirada por ambições «supra-temporais», então o problema que fica é o de saber como podemos compreender a realidade histórica concreta a partir desta posição. A natureza questionável da generalização e da formalização estática não é eliminada pela restrição desta forma de pensamento às «essências». A generalização e a formalização são, na nossa opinião, procedimentos técnicos válidos com utilidade em sociologia, já que podem ser empregues para controlar a multiplicidade de dados; para o pensamento concreto, para o pensamento do concreto, só servem como um trampolim. Na verdade, a formalização não conduz à distorção, se a olharmos do ponto de vista do concreto? Afinal de contas, uma forma só é o que é em conjunção com
a questão histórica
concreta que a informa, e sofre mudanças
e cresce juntamente com as mudançase o crescimento da questão. Aqueles que se comprometem com a formalização ilimitada apenas se deixam guiar, precisamente no sentido da distinção feita por Scheler, por modelos e relações estruturais prevalecentes no mundo morto e mecanizado das meras «coisas» e o esquema assim obtido obscurece a natureza peculiar da vida.
Estamos, assim, neste momento na presença de um grave con-
flito. Por um lado, Scheler propõe uma doutrina da essência «intemporal» do homem; por outro lado, está consciente da,e sente-se responsável pela singularidade dos objectos históricos. Este con-
218
O Problema da Sociologia do Conhecimento
lito é possivelmente a experiência fundamental do nosso tempo pelo menos no que diz respeito à tradição cultural germânica).
Outra tese muito característica da doutrina de Scheler relaciona-se com a «lei da ordem de eficácia do real e dos factores
ideais», a que já se aludiu. A interacção dos dois factores é desbrita do seguinte modo: a mente é um factor de «determinação», não de «realização». Isto é, as obras que podem ser realizadas por uma cultura só podem ser determinados pela mente, em virtude Ha sua estrutura profunda; mas o que realmente é criado depende Ha combinação particular dos factores reais prevalecentes num dado momento. Assim, a função dos factores reais é a de fazer uma elecção entre as possibilidades abertas pela mente. Através desta unção selectiva, os factores reais controlam os factores ideais. Mas no entanto, quer os factores ideias que os reais existentes num deerminado momento são inteiramente desprovidos de poder face aqueles factores reais nascentes. As constelações de poder na poítica, as relações de controlo de produção na economia, seguem o seu caminho determinado de um modo robotizado; estão sujeitas a
«uma causalidade evolucionária cega a todos os significados». A mente
humana
pode,
no máximo,
bloqueá-los ou desbloqueá-los,
mas nunca alterá-los. O que é proveitoso nesta forma de olhar o problema é o facto de a singular natureza fenomenológica e estrutural do mental, que materialismo monista necessariamente despreza, ser aqui bem pa-
ente. A sua unilateralidade consiste, no entanto, na nossa opinião, no facto de Scheler não ir além da afirmação de uma separação fenomenológica do «real» e do «mental». Em consequência, a sepaação e a imanência abstracta do «mental» permanece inalterável mesmo quando finalmente se faz uma tentativa de síntese, de claificação das relações mútuas entre as duas esferas e de resposta às questões relativas à sua origem. Para ilustrar a diferença entre a posição de Scheler e a apreentada por nós, mencionaremos um exemplo demonstrando as duas possíveis concepções relações mútuas entre o existente e o possível, o real e o mental. Uma destas concepções, para a qual
219
Sociologia do Conhecimento
Scheler parece, em certa medida, inclinar-se, é expressa por umal das personagens de uma peça de Lessing que diz que Rafael teria! sido um artista se tivesse nascido sem mãos, já que é sobretudo a visão artística que importa e não a realização visível. Para tal teo-| ria, que mantém a tradição platónica, em que as ideias e o modelo são considerados como pré-existentes, a realizaçãoé algo secundário. E permanece secundária mesmo na versão moderada de Scheler| desta concepção. Ao aludir-se ao exemplo acima citado, Scheler|| diz: «Rafael necessita de um pincel; as suas ideias e sonhos artísticos não o criam. Ele necessita de mecenas políticas e socialmente poderosos que lhe paguem para glorificar as suas ideias. De outro modo o seu génio não se poderia realizar». Scheler acentua explicitamente que ele não tem influência essencial sobre os factores reais na mente, em resultado do que eles determinariam em parte a substância dos seus trabalhos. Esta concepção, que na sua essência se| prende ainda ao Platonismo, contrasta com uma outra especificamente baseada numa atitude moderna para com a vida. Esta concepção moderna é expressa, por exemplo, na estética de K.Fidler| Parafraseando a teoria de Fiedler de um modo livre: nem o processo criativo
em
si mesmo,
significado podem ta tem
nem
o trabalho
com
um
complexo
de
ser analisados partindo da ideia de que o artis-
os seus modelos
na cabeça
antes de começar
a trabalhar e
que ele se limita a copiá-los o melhor que pode. Verdade parece ser antes
que
o trabalho
e a sua ideia surgem durante o processo
de
criação. Cada «factor existente», cada linha já traçada, cada movimento da mão não apenas determinam os que se seguem, mas também criam novas possibilidades não sonhadas previamente. Todo o «factor existente», como a estrutura da mãoe dos gestos humanos,
a particular textura do material, a constituição orgânica e física do artista são fonte de sentido neste processo. A sua contribuição para a obra não é dispicienda sobre o significado «imanente» que exprime. Por conseguinte, não devemos dizer somente que o artista deve existir como homem, e como este homem particular, de forma que possa ganhar forma (ser realizada) no mundo espaço-temporal uma possibilidade absoluta do mundo ideal. O que devemos
220
O Problema da Sociologia do Conhecimento
dizer é que a existência do artista, determinada como esta existênja concreta, é em si mesma uma condítio sine qua non do significado e da ideia corporizada nas obras particulares. Esta nova forma de interpretar a correlação entra a «ideia» e a «realidade» é também uma componente essencial da nossa concepção do papel dos «factores reais» na criação cultural. Para nós, também, há uma separação fenomenológica entre o
Ser e o Sentido; mas esta dualidade fenomenológica não pode ser
considerada ainda como fundamental quando examinamos ambos os termos como partes de uma totalidade dinâmica genética um problema que também se levanta no sistema de Scheler. Quando compreendemos a «existência» como uma unidade última em que se destroem todas as diferenças fenomenológicas, o «Ser» e o «Sentido» aparecem como esferas parciais hipostasiada que são em última análise as «emanações» de uma e da mesma Vida. Para qualquer filosofia ou teoria da cultura ou sociologia (ou o que quer que chamemos à síntese última em questão) que procure transcender a imanência abstracta dos vários produtos culturais e os analise como partes e parcelas de um processo global de vida, a dualidade fenomenológica não pode ser mais do que uma solução provisória. Neste momento não objectaremos que o historiador comprometido na investigação positiva não está interessado nestas questões metafísicas, já que não necessita de ir além da separação metodológica das esferas do «ser» e do «significado» quando procura fazer uma análise histórica da evolução imanente das ideias. Esta objecção só se levanta em virtude de uma ilusão positivista que nos impede de compreendermos quão profundamente o cientista supostamente puro está comprometido na metafísica sempre que interpreta, sempre que estabelece relações históricas ou afirma «tendências» históricas, ou coloca os factores «reais» em correlação com os «ideais». Sempre que tentamos explicar uma obra pelos
factos da vida de um artista ou dos acontecimentos culturais de
um período e assim por diante inevitavelmente mergulhamos o «significado» imanente das obras na estrutura global do processo da vida, retirando às obras o seu carácter de unidades auto-sufi-
221
Sociologia do Conhecimento
cientes e preocupando-se por seu turno, com a experiência centra! que determinou o modo de vida e a criatividade cultural de um: época. Temos de reconhecer, à luz do passado, que há algo de verda deiro na concepção materialista da história, segundo a qual é o Ser realidade, que cria o sector ideal. O erro do materialismo consists somente na sua errada metafísica que equaciona o «Ser» ou «Rea: lidade»
com
a matéria.
Porque,
no
entanto,
nega
o conceito
d
«ideal» como algo absolutamente auto-suficiente, como algo qu é de alguma forma pré-existente, que se revela a si mesmo, somen te com base numa lógica imanente de significado, ou possibilita à realidade histórica ou a qualquer outra espécie de realidade o estímulo necessário que torna a auto-realização possível, na medid em que, como dizíamos, nega este conceito de «ideal», o materia lismo está correcto. Não ultrapassaremos este dualismo idealista! se procedermos como Scheler que com a sua doutrina idealista! combina uma teoria da «impotência do mental», uma tese que reflecte a transformação que o pensamento conservador alemão sofreu durante a sua última fase de desenvolvimento. O pensamento
conservador na Alemanha tem vindo a afastar-se gradualmente das!
suas origens humanistas, desde o aparecimento da tendência do «Realpolitik» e das políticas do poder, e ao mesmo tempo cada vez mais fracassa quando confrontado com realidades sociais recentes
que
não
favorecem
as
ambições
conservadoras.
É
in-
teressante observar que as classes nascentes, cujas aspirações são determinadas pelos «factores reais» dominantes de uma época, consideram estes factores essenciais, enquanto que os conservadores, embora conheçam a importância dos factores reais, apenas lhe atribuem um papel e significado negativos.
Numa palavra, afastando-nos da concepção platónica, a diferença fenomenológica dos factores reais e ideais subordinar-se-á à unidade genética do processo histórico, aproximando-nos assim do ponto em que um factor real se converte num dado mental. De uma perspectiva meramente fenomenológica (i.e. uma perspectiva que envolve somente a descrição imediata do dado, não aten-
222
O Problema da Sociologia do Conhecimento
dendo aos aspectos relacionados com a génese) esta «conversão» do real em mental não é possível, já que para esta corrente nun-
ca pode ser ultrapassado o fosso existente entre o «ser» puro
e simples desprovido de sentido por um lado, e o «significado» por outro. Mas porque nós como sujeitos interpretativos somos seres humanos reais, e temos uma experiência imediatada da «existência» em
que os factores
reais são convertidos em dados mentais, somos
capazes de fazer convergir na investigação as duas esferas, a do ideal e a do mental. No que diz respeito a esta conversão deve notar-se
além
do
mais,
que
muitos
factores
classificados
como
reais são de todos desprovidos de significado e puramente «materiais». Somos muitas vezes tentados, por exemplo, a considerar os dados económicos e geográficos como pertencentes integralmente à esfera «material» e «natural». Não devemos esquecer, no entanto,
e tomando
só
o primeiro
exemplo
utilizado,
os dados
económicos, que só a psicologia da fome pertence à mera mera «natureza», mas que este substracto psicológico só constitui um elemento do processo histórico na medida em que entra em configurações mentais, por exemplo, ao pressupor uma qualquer ordem económica ou qualquer outra forma institucional. O que dissemos não deve ser mal compreendido. Não queremos negar o papel fundamental das tendências e não é, de modo algum, nossa intenção compreender a economia sem o impulso da fome; mas se um é condição necessária da outra, isso não quer dizer que tenha de ser incondicionalmente equacionado com a última. O que nos importa é que as várias formas de instituições económicas não podem ser explicadas sem o impulso da fome enquanto tal. O im-
pulso enquanto tal mantém-se essencialmente imutável através dos
tempos, enquanto que as instituições económicas sofrem mudanças constantes; a história apenas e interessa por estas mudanças institucionais. Este excesso que acima do substracto puramente psicológico sozinho transforma este impulso num factor histórico é já o «intelecto». Assim, não basta dizer que a economia não pode existir sem
o intelecto;
deve acrescentar-se que este é o elemento
mental que torna a economia autónoma em relação à satisfação do
223
Sociologia do Conhecimento
impulso. Então, ao baixarmos o limite do «natural» aperfeiçoando as nossas distinções de tal forma que o «económico» se torna mental mais do que «material», devemos reconhecer, como seu resultado, duas esferas «mentais», a relação mútua do queé sub-estrutura e do que é super-estrutura. A questão que se levanta é a de saber como uma esfera afecta a outra no processo total, como uma mudança estrutural determina uma mudança estrutural na superestrutura. Se distinguirmos deste modo as duas esferas do «mental», somos então da opinião que o intelecto na infra-estrutura (compreendendo esta primariamente as condições de produção, juntamente com todas as relações sociais concomitantes) em parte modela e determina o intelecto na super-estrutura. Porque não devemos esquecer que o intelecto tem mais peso na infra-estrutura ainda que não fosse, porque são os componentes desta infra-estrutura que criam a estrutura permanente da existência contínua dos seres humanos, aquilo a que geralmente chamamos milieu. E porque a conversão do real em mental (o acontecimento mais misterioso no processo histórico) tem lugar dentro do homem como um ser vivo, a maior força determinante é exercida por estas categorias
do significado em
(1) Adiante
que o homem
qualificaremos
ponto de vista de uma mo.
Aquela
maior intensidade (1).
esta teoria «economicista» em
doutrina
aparecerá,
vive com
então,
sentido lato do
mais compreensiva, a doutrina do historiciscomo
algo que corresponde
simplesmente
a
uma fase particular do processo histórico, e isto porque o «centro vital» do homem
se move
para diferentes esferas de actividade em diferentes épocas, e
que cada época compreende a realidade histórica em conexão mais clara com a esfera em que vive intensamente. Assim, o economismo que é predominante no marxismo
e historicamente determinado.
que o princípio explicativo fundamental é bastante poderoso, factor
que
social e que por
224
porque caracteriza o processo total em termos daquele
é o princípio
das várias épocas.
Deve, no entanto, reconhecer-se
usado pelo marxismo, o económico,
da
isso mesmo,
organização serve
muito
mental bem
base
de qualquer
realidade
para caracterizar a estrutura
O Problema da Sociologia do Conhecimento
ão é então como Scheler parece pressupor (se o compreendemos orrectamente), ao afirmar que a selecção entre as outras formas entais pré-existentes tem lugar na super-estrutura sob a pressão
recta de uma infra-estrutura puramente «natural» (1), mas antes
lo contrário, que aquilo que vagamente se compreende como natural» se converte em várias configurações mentais da infrastrutura, e deste modo modela, em primeiro lugar, os homens omo seres e só depois, a realidade cultural como um todo (em nalogia com a concepção de Fiedler do papel co-determinante
os factores reais).
O que temos dificuldade em aceitar é, acima de tudo, a intro-
lução da dimensão «natural» da infra-estrutura como uma entida-
le supra-temporal, imutável, em termos da qual o processo histório se explica em parte. Scheler fala, na verdade em «mudanças na trutura tendencial», mas isto só pode ser interpretado no seu istema como tendências relativas, isto é, como modificações meraente quantitativas; assim, Scheler sugere que é o poder da modiicação que predomina numa dada época, o instinto racial noutra, tc.. Na nossa opinião, contudo, os factores naturais desta naturea só podem ser usados como princípios dinâmicos de explicação o processo histórico se aceitarmos que estes sofrem mudanças ualitativas ao longo da história. Tal afirmação é, na verdade, possível se recordarmos que o «natural» aos vários níveis das suas
(1) Não afirmamos que a doutrina da pré-existência das ideias que atribuimos Scheler tenha um elemento metafísico, e ainda menos que ela deva ser inerpretada no sentido de uma pré-existência temporal. O que queremos dizer é que Scheler ensina uma emanência lógica da esfera ideal, e assim uma comreensão separada e independente do ideal como algo fora do real. A função real seria limitada a uma selecção entre os dados ideais, e não a uma sua riação, pelo menos em parte. No entanto, é impossível estabelecer um paalelo
entre a nossa
posição
e a de Scheler, já que definimos de modo
dife-
ente a fronteira entre o «intelecto» e a «natureza».
225
Sociologia do Conhecimento
transformações mentais desempenha um papel histórico diferent: em cada período (1).
A altura e a forma de manifestação do assim chamado pode da mudança se é que ele se manifesta — depende também da cons: telação cultural total com que se confrontam as várias gerações n amadurecimento. Também nesta relação, não há nenhum poder d modificação auto-identificável eternamente enquanto tal e qual é! mais ou menos reprimido, mas a mesma expressão poder de modi ficação, cobre uma grande variedade de «intenções de vontade» diferentemente estruturadas, diferentemente experimentadas, ten do a cada momento diferentes objectos como seus correlativos. Dificilmente aceitamos também o posicionismo de um mun: do mental com uma lógica imanente de significado face à qual o; mundo histórico com os seus «factores reais» desempenha só um papel selectivo. Concebemos a relação dentro do «possível» e do «actual» de, um modo diferente de Scheler. Para nós também, há em cada momento o que é actual, rodeado por um horizonte de possibilidades;) este horizonte, porém, não é o abstractamente «possível enquanto: tal», mas contém somente o que é possível numa determinada situação como resultado de uma certa constelação de factores. Este horizonte, por seu turno, é tão-só o ponto de partida de um novo processo conducente a novas actualidades; o que sempre requer o papel completamente novo e criativo do momento e da situação única. Na nossa concepção do mundo, portanto, não é o abstractamente
possível
que é superior; o acento de valor repousa sobre
o nascente e o actual. O real não é, como
no sistema de Scheler,
(1) Assim, um facto geográfico, como a posição insular de um país, não tem sempre o mesmo
significado histórico; o seu impacto
sobrea história será di-
ferente, consoante analissmos uma época histórica primitiva ou os vários estádios da evolução capitalista. O mesmo factor natural desempenha uma fun ção diferente em diferentes situações sociais e culturais gerais; o seu «signifi cado» no processo cultural altera-se concomitantemente.
226
O Problema da Sociologia do Conhecimento
ima selecção sempre inadequada de um tesouro transcendente de ormas,
ões
mas
uma
concretização
historicamente únicas.
criativa
resultante
de
constela-
Só quando consideramos o actual ex post (1), i.e. só depois le ele ser actual (e não in statu nascendi, como seria considerado
partir da perspectiva do centro criativo do processo evolucioná-
io) só então o podemos considerar como um complexo de signifiado imanente completamente auto-suficiente. Só os que concenram a sua atenção exclusivamente no actual, nos produtos acabalos desligados de todas as suas relações funcionais dentro do proso genético, podem ter o sentimento de que o que aconteceu oi a realização de qualquer coisa pré-existente, de uma entidade auto-suficiente e absoluta. Já que, no entanto, a sociologia cultural se preocupa primariamente com a reconstrução das relações funcionais entre o «actual» por um lado, e o processo genético passado por outro, é na nossa opinião demasiado arriscado para este ramo de conhecimento adoptar a premissa de um mundo de ideias «pré-existentes», mesmo se só no sentido de uma génese não temporal de «significado» puro. Parece-nos que só pode haver uma ló-
(1) Esquece-se geralmente que o sujeito que estuda e compreende a história pode considerá-la de muitos pontos de partida, o que provoca uma diferença existencial considerável. Assim, tal como se sugeriu acima, há uma grande diferença entre analisar os produtos da inteligência retrospectivamente como produtos acabados e ensaiar uma representação do processo da sua criação. Na
nossa opinião, no entanto, é um erro adoptar uma perspectiva «retrospec-
tiva», e tentar analisar a estrutura da génese em termos do existente como facto consumado, quando tratamos com os problemas de uma metafísica dos processos genéticos. (Por outro lado, o problema da «perspectiva» do sujeito ue estuda a história não é o mesmo problema das «perspectivas na teoria do istoricismo. Todos os historicistas defendem a determinação do pensamento ela
perspectiva
do
pensador,
mas estas teorias
historicistas podem
revelar
ma inclinação conservadora ou progressiva respectivamente se são concebidas «retrospectivamente» ou de uma perspectiva statu nascendi).
227
Sociologia do Conhecimento
gica imanente de significado numa perspectiva retrospectiva di analista da estrutura: logo que se tornam reais, todas as obras d! intelecto revelam uma estrutura inteligível, significante. A este propósito queremos acentuar que é uma das tarefas mais importan tes compreender esta estrutura inteligível de significado de uma sé
rie de obras existentes e acabadas. Discutimos a concepção
de Scheler da relação entre a infra
estrutura e a super-estrutura em pormenor, e analisamos profun
damente a nossa posição contrária, para demonstrarmos que pres supostos à primeira vista puramente formais da investigação histó rica dependem de uma perspectiva valorativa e social; quisemos! demonstrar também que neste campo o processo de cognição, lon-| ge de resolver a pouco e pouco problemas que já existiam, aproxima de diferentes lados problemas resultantes da experiência de vida dos grupos pertencentes à mesma sociedade. Tudo o que distin-
gue a visão estática e dinâmica relaciona-se de algum modo com
este ponto central, o das relações entre o ideal e o real. Porque para Scheler a essência última é algo pré-existente, que transcende a história, o processo histórico pode alcançar essencialidade e substancia reais no seu sistema em que as entidades estáticas, livremen-
te transcendentes
não são realmente «constituídas» mas somente
«realizadas» pelo processo histórico. Este dualismo rígido não pode nunca conduzir a uma filosofia da história real e em mais nenhum lugar é tão visível como aqui o facto das decisões metodoló-
gicas estarem também relacionadas com orientações metafísicas e
«vitais». Compreendemos agora porque Scheler decidiu a favor de um tipo de sociologia generalizador quando confrontado com a opção que se coloca hoje à sociologia proceder de acordo como o método generalizador ou procurar uma renovação com base nas tradições histórico-filosóficas. De um modo mais correcto, o caso de Scheler não é assim tão simples. Como vimos, levanta-se uma tensão no sistema de Scheler pelo facto de este reconhecer, mau grado a sua doutrina básica de valores eternos, a dinâmica tal como é particularizada em várias «perspectivas» e querer analisá-la de
acordo com 228
a sua doutrina básica. A extensão do seu estudo e a
O Problema da Sociologia do Conhecimento
obreposição não resolvida entre os elementos estáticos e dinâmicos na sua doutrina são visíveis na seguinte passagem em que Scheler diz pretender «alcançar», por assim dizer, o reino das ideias e valores absolutos, correspondente
à ideia essencial
de ho-
E muito superior a todos os sistemas de valor factuais até agora realizados na história. «Assim, afastamos por serem totalmente relativas, e histórica e sociologicamente dependentes de perspectias particulares, as ordens de valores, objectivos e normas nas soiedades humanas, tal como são expressas pela ética, pela religião pela lei, pela arte, etc., e apenas retemos a ideia do Logo eterno, ujos segredos transcendentes não podem ser explorados, na forma de uma história metafísica, por uma qualquer nação, época, por qualquer civilização cultural até agora aparecida, mas apenas por todas em conjunto, incluindo as futuras, numa cooperação temporal e espacial do insubstituível, porque sujeitos culturais individuais, únicos estão a trabalhar em conjunto em perfeita solidariedade». As tensões reveladas por esta passagem ilustram a luta interna
entre a doutrina da eternidade de Scheler e a consciência histórica dos nossos dias; na nossa opinião, o mais importante Scheler tenta incorporar no seu sistema, teses estranhas disso também pressupostos sistemáticos estranhos. Para os cistas, as entidades não existem fora do processo histórico;
é que e além historisó nele
se tornam entidades, só nele se realizam e só através dele se tornam
inteligíveis. O homem tem acesso a entidades criadoras de história
e dominadoras lhe está
de várias épocas
existencialmente
ligado.
porque, vivendo A
história
na história, ele
é o caminho,
para o
historicista o único caminho, para a compreensão das entidades que geneticamente nascem dela. Mas este abismo entre o temporal e o eterno que o sistema de Scheler assume decisivamente, afecta a sua teoria de interpretação da história. As verdadeiras entidades são supra-históricas; por isso, ao contrário do que afirma Scheler, a Eae não pode contribuir de modo relevante para a sua explora-
ão ou só contribuir de modo concebe Scheler.
limitado se concebida tal como a 229
Sociologia do Conhecimento
A história neste sistema é como um mar de chamas rodeand
entidades eternas. As chamas podem erguer-se alto ou acalmar-sel podem aproximar-se das entidades ou afastar-se delas, e o ritmo di seu movimento, imposto pelo destino, está mergulhado em misté rio; tudo o que sabemos é que alguns períodos se aproximam mai das entidades que outros. Os fanáticos da Idade Média, cuja teoria da
história
se baseia
no
romantismo,
afirmam
que a Idade Média
marcou a maior proximidade com as entidades eternas,e especifi cam o ponto culminante na Idade Média em vários momentos, de: pendendo da natureza da sua própria experiência subjectiva Scheler marca um certo progresso em relação a esta glorificação estreita de uma época histórica e afirma a este propósito que cadal período e cada civilização tem uma «ideia missionária» própria que está ligada auma determinada série de entidades, em cada caso
diferente (1). Mas Scheler ainda se inclina essencialmente para a! concepção
estática de entidades, porque também
as entidades
eternas
permanecem
desligadas
do
na sua opinião,
fluxo
da vida!
histórica, a sua substância é estranha à da História. O que Scheler admite é um princípio de aproximação algumas entidades eternas são primariamente acessíveis a um grupo cultural, outras a outro. A
«síntese»
histórica consiste, então, numa
combinação
de todas
as essências descobertas no curso da história. Este modo de ver as coisas, no entanto, pressupõe certos «saltos» abruptos que não podemos equacionar com a nossa experiência fundamental.
(1) Também progressivo
aqui
podemos
e o conservador.
detectar a diferença essencial entre o pensamento! Quando
um
pensador
conservador
concebe
a
ideia de humanidade como um todo, a sua orientação é cosmopolita, i.e. ele)
apela à cooperação entre as diferentes naçõese civilizações conservando cada! uma
delas a sua
identidade peculiar.
Porém,
a concepção
progressiva de E
manidade como unidade envolve internacionalismo, i.e. uma negação daquelas especificidades nacionais. O conservador quer multiplicidade,o progressis-
ta quer uniformidade; o primeiro pensa em termos de cultura, o último sã
termos de civilização.
230
O Problema da Sociologia do Conhecimento
A teoria de Scheler compreende dois destes «saltos». Scheler admite que os sistemas de normas concretos são histórica e sociologicamente determinados, e que em cada momento o homem permanece dentro da história. Mas para ele, isto não se aplica à compre-
ensão daquelas entidades cuja realização é missão da humanidade. No que diz respeito a estas entidades, o homem histórico surge repentinamente como um conquistador de intemporalidade e adquire uma capacidade sobre-humana de afastar todas as limitações históricas e determinação. Este é um dos «saltos» da teoria de Scheler. Mas logo se levanta uma outra pergunta. Na análise da história, como podemos saber quais das entidades proclamadas pelas várias civilizações são verdadeiras entidades? Por que critérios podemos julgar que uma certa civilização foi suficientemente
madura
para conseguir
realizar a «missão» de humanidade rela-
tivamente a uma ou outra entidade? Se realmente queremos atribuir tais papéis a todas as épocas e civilizações passadas, não nos é suficiente termos um conhecimento válido e objectivo das nossas entidades próprias; temos de ter poderes intuitivos supra-históricos, sobre-humanos para identificar todas estas entidades, ou pelo menos daquelas que foram aparecendo, até agora ao longo da história. Por isso, a história das ideias na realização da sua própria intuição deve transcender a temporalidade duplamente: em 1º lugar, na identificação das entidades eternas atribuídas à sua própria época; em 2º lugar quando interpreta o passado, tentando separar o genuíno do falso, a verdadeira essência da mera aparência subjectiva. Isto conduz, porém, ao postulado de uma intuição absoluta das
essências, pelo menos de todas as essências até agora descobertas,
em cada momento da história; ou, pelo menos, à afirmação do carácter absoluto do momento presente. Mas assim perde-se de
novo a ideia de «missão» colectiva de todas as épocas e civiliza-
ções, que teria permitido um ponto de partida para a filosofia da história; frusta-se o processo histórico enquanto tal por ser relativo e todo o significado absoluto se concentra no segundo «salto» de transcendência da temporalidade. Scheler tenta incorporar as ideias historicistas na sua teoria da intemporalidade e chega mesmo
231
Sociologia do Conhecimento
a adoptar a ideia de visão «perspectivista». Mas a sua concepção estática de eternidade nunca se concilia com a posição do histo ricismo com que tenta combiná-lo. Aqueles para quem a sua experiência metafísica fundamental revela tal carácter estático, vêm a filosofar do conhecimento, e também todas as outras esferas da cultura, como um assunto totalmente secundário. Consequentemente, nunca é formulada por Scheler a verdadeira tarefa da sociologia do pensamento, a qual na nossa opinião consiste na descoberta da linha do desenvolvimento desde a génese dos vários pontos de partida. Uma outra objecção deve ser levantada à doutrina das essências de Scheler. Scheler esquece que qualquer compreensão e interpretação das essências (e também, por conseguinte, das essências das épocas passadas) só é possível de um modo perspectivista. O que nos é acessível das intuições essenciais do passado e o modo como nos é acessível depende da nossa posição. Cada «elemento de significado» (se é que podemos falar de tal coisa em abstracto) é determinado pelo contexto de significância no seu todo, e finalmente pela base vital que lhe dá origem; esta é uma visão que devemos ao historicismo. Assim, um acto de compreensão consiste numa incoporação de elementos «de significado» estranhos no nosso contexto de significado próprio, abandonando as suas relações funcionais originais e fazendo-os funcionar no nosso modelo de função. Este o modo como procedemos na compreensão dos factos e também dos «significados» intencionalmente atribuídos às épocas passadas. Seria um preconceito «tecni-
cista» pensar que podemos integrar dados mentais (significados)
numa totalidade ao acrescentarmos peça a peça. Scheler facilmente se deixaria convencer da exactidão desta opinião, já que ele mesmo distingue vários tipos de conhecimento e vários tipos de progresso cognitivo. Qualquer outro conhecimento das essências inteligíveis só seria possível se o conhecimento essencial fosse do tipo do conhecimento tecnicista, «cumulativo» como Scheler lhe chama. Segundo o próprio Scheler, o conhecimento essencial pertence a um tipo de conhecimento limitado a uma só cultura; mas se
232
O Problema da Sociologia do Conhecimento
À
assim é, parece-nos que o conhecimento dos significados e das escias do passado só pode ser de natureza perspectivista, i.e. determinado pela nossa posição histórico-existencial, por um lado, e pelo nosso sistema de axiomas básico, por outro. Num outro artigo, já apontamos que uma caracterização rígida da diferença fun-
damental entre a racionalidade científico-tecnológica e o conheci-
mento filosófico, e entre os modelos de evolução existentes nos dois campos, só se torna possível se recuarmos ao princípio estrutural sistematizador que lhes subjaz. Como tentamos mostrar, o conhecimento científico-tecnológico difere do pensamento filosófico na medida em que o primeiro tipo de pensamento completa um só e o mesmo sistema de pensamento durante sucessivos períodos, enquanto que o último parte de novos centros de sistematização em cada época, tentando controlar a crescente multiplicidade do mundo histórico. Porque é o mesmo sistema que se constrói na ciência ao longo dos séculos, o fenómeno da mudança de significado não acontece nesta esfera e podemos figurar o processo de pensamento em directo progresso para o último conhecimento correcto que só pode ser formulado de um modo. Na física, há várias concepções de «força», e se diferentes conceitos aparecem na história da física, podemos classificá-los como meros preparatórios antes da descoberta do conceito correcto prescrito por um modelo axiomático do sistema. Pelo contrário, temos na filosofia, assim como nas ciências hitórico-culturais que lhe são próximas,o fenómeno de uma mudança de significado intrinsecamente necessária. Todo o conceito nestes campos inevitavelmente muda o seu significado com o decurso do tempo, e isto porque ele continuamente é inserido em novos sistemas dependentes de novas séries de axiomas. (Por exemplo, o modo como o conceito de ideia sofreu mudanças no seu significado: podemos compreender o que ele quer significar para cada época quando recuamos aos sistemas totais na estrutura
da qual o conceito foi definido). Se observamos a linha histórica da evolução
nestes campos
ficados que se sucedem nenhum progresso para
e também
as relações mútuas
de signi-
uns aos outros, não podemos vislumbrar um sistema único, um único significado
233
Sociologia do Conhecimento
exclusivamente correcto do conceito, mas antes o fenómeno dai
sublimação (Aufheben). Esta «sublimação» consiste no facto del nestes campos de sistema o último e superior incorporar os sistemas] anteriores, as relações funcionais anteriores e também os conceitos individuais pertencentes àqueles sistemas. No entanto, quando isto acontece, os princípios de sistematização anteriores expressos nos vários conceitos são substituídos e os «elementos» retirados dos sistemas anteriores re-interpretados em termos de um sistema superior e mais compreensivo, i.e. «sublimados». Só podemos manter separados os dois tipos de pensamento, o científico e o filosófico-histórico, ao termos em atenção esta diferença fundamental na elaboração do sistema; este é o único modo de o reconhecer. Uma síntese histórica genuína das culturas passadas não pode consistir numa adição não perspectivista dos fenómenos sucessivos, mas tão só numa tentativa sempre renovada de incorporar entidades retiradas do passado num novo sistema. A verdadeira evolução historicamente observável do pensamento na filosofia
(e também
nas ciências culturais com ela relacionadas) revela um
modelo diferente, como vimos, do modelo de evolução das ciências naturais. Já o descrevemos como «dialéctico», e Scheler propõe agora designá-lo como «crescimento cultural pela intervenção e incorporação de estruturas mentais existentes numa nova estrutura». A parte das diferenças terminológicas, um ponto essencial distingue estas afirmações: no caso em consideração o pensamento humano organiza-se em torno de um novo centro em cada época, apesar do homem sublimar (no sentido hegeliano de aufheben) os conceitos anteriores pela sua incorporação em novos sistemas, o que envolve uma mudança de significado que torna a síntese aditiva impossível. Quando se admite que o conhecimento filosófico é essencialmente determinado por e limitado a uma civilização específica, só é possível pressupor um sistema dinâmico nesta esfe-
ra de pensamento porque de outro modo estaríamos a utilizar con-
ceitos de um tipo de estrutura numa estrutura diferente. Assim sendo, só o perspectivismo é possível, i.e. uma teoria segundo a qual os vários significados essenciais se concretizam juntamente
234
O Problema da Sociologia do Conhecimento
com as épocas a que pertencem; estes significados essenciais pertencem a essência que têm o seu próprio ser num sentido absoluto, mas o estudante de história só os pode compreender de um modo perspectivista, analisando-o de um ponto de partida que em si mesmo é um produto da história. Esta espécie de perspectivismo não é, de modo algum, redutora, ao contrário do que afirma Scheler na sua crítica desta análise, porque, pelo menos em nossa opinião, quer as várias épocas, quer as suas essências têm a sua existência independentemente
do
conhecimento
que
delas que possa poste-
riormente ser conseguido. Como dizemos numa passagem do nosso ensaio sobre o Historicismo citada por Scheler: «O assunto histórico (o conteúdo histórico, por assim dizer, de uma época) permanece idêntico em si mesmo, mas em virtude das condições essenciais da sua cognição só pode ser compreendido a partir de posições intelectuais-históricas divergentes ou, por outras palavras, só podemos analisar alguns dos seus “aspectos'». As palavras em itálico desta frase indicam claramente que não é nossa intenção usar o perspectivismo
como
um meio de dissolver o verdadeiro ser in se
dos objectos da investigação histórica; isso seria, na verdade, tal como Scheler o coloca correctamente, uma consideração refutado-
ra. Por isso, a essência e a existência real do helenismo não se dis-
solvem nas várias perspectivas abertas por sucessivas gerações de estudiosos históricos. O helenismo é, na verdade, um «dado», uma «coisa em si mesma», estudada de vários ângulos, por assim dizer, por diferentes explicações. Estamos assim justificados quando posicionamos este ser real do objecto in se, porque apesar de nenhuma perspectiva singular lhe fazer toda a justiça, sempre a podemos utilizar como controlo para afastarmos caracterizações arbitrárias. Um exemplo para ilustrarmos mais claramente o significado do perspectivismo: a consciência humana só pode perceber uma paisagem como paisagem a partir de várias perspectivas; e contudo a paisagem não se dissolve nas suas várias representações pictóricas possíveis. Cada uma das pinturas possíveis tem uma contrapartida «verdadeira»
e a exactidão de cada perspectiva pode ser controla-
da a partir das outras perspectivas. O que pressupõe que a história
235
Sociologia do Conhecimento
só é visível de dentro da história e não pode ser interpretada através de um «salto» para lá dela, ao ocupar uma posição estática arbitrariamente ocupada fora da história. A posição historicista que parte do relativismo, consegue talvez uma visão absoluta, porque na sua forma final posiciona a história em si mesma como o Absoluto; só isto torna possível que as várias posições, que inicialmente aparecem como anárquicas, possam ser ordenadas como partes componentes de um processo geral significativo. Na verdade, se recuarmos a uma época da história relativamente próxima, como o período do capitalismo inicial até ao aparecimento dos sistemas capitalistas totalmente desenvolvidos, podemos
perceber a direcção
significativa em
que aponta
a linha de
desenvolvimento. Podemos assim interpretar todas as posições sociológicas e até teóricas pertencentes a uma época de acordo com a sua direcção de objectivos. Para precisarmos, toda a teoria proclama absoluta validade quando é apresentada; mas nós encontramo-nos em posição para avaliarmos a sua verdade relativa e as suas potencialidades. As teorias passadas proveitosas encontram no entanto, a sua justificação mesmo em retrospectiva, porque podem sobreviver como problemas e componentes do sistema mais compreensivo em termos do qual pensamos hoje. Mas elas são, ao mesmo tempo relativizadas, porque só podem sobreviver inseridas num sistema mais compreensivo. Não queremos negar que o historicismo encontra dificuldades e que elas se levantam precisamente neste ponto. Embora possamos distinguir o significado, a direcção dos objectivos de todo o desenvolvimento no que diz respeito a períodos próximos do nosso, não podemos distinguir tal direcção no nosso período. O futuro é sempre um mistério e só podemos fazer conjecturas sobre o modelo total de significado de que o nosso presente faz parte; e porque
não podemos
ter nada mais do
que conjecturas, é verdadeiramente compreensível que cada corrente de pensamento assuma que o significado do objectivo do
presente
seja
idêntico
às tendências
contemporâneas com
que
aquela corrente acaba por se identificar. Assim, o futuro significado do objectivo da totalidade da história será visto diferentemente,
236
O Problema da Sociologia do Conhecimento
de acordo com a posição particular que cada um ocupa no processo total; a história da filosofia de um autor progressista será diferente da de um conservador, por exemplo. Seguindo esta corrente de pensamento, concluiremos que épocas como estas que descrevemos como relativamente próximas e por isso transparentes quanto ao significado de objectivo (como o capitalismo inicial) podem, em alguma medida, perder a sua clareza de significado e tornar-se problemática se inseridas em modelos genéticos mais compreensivos. Segue-se daqui que cada teoria histórica pertence essencialmente a uma dada posição; mas isto não quer significar, como pretendemos frisar, que toda a realidade, a «factualidade irrecusável» dos dados e significados essenciais se dissolva numa multidão de diferentes perspectivas. Qualquer um
de nós se refere aos mesmos dados e essências. Como vimos no ca-
pítulo, introdutório, um determinado movimento só pode descobrir um ramo limitado de factos (aqueles que entram dentro da sua reflexão) mas logo que estes factos se tornam evidentes, somos todos obrigados a tomá-los em consideração. Além disso, compreendemos, na nossa opinião, a possibilidade e necessidade de outras perspectivas; e qualquer que seja a nossa perspectiva, todos nós experimentamos a irrecusabilidade controladora dos dados; assim, todos
temos
razão
para
pressupor
que nos movemos
realidade, pelo que rejeitamos toda a ilusão.
Podemos
perguntarmo-nos
no meio da
neste momento porque não nos
contentamos com o mero registo daqueles factos que reconhecemos como irrecusáveis, tal como o fez o positivismo; porque não reduzimos aquelas «totalidades de significado» e adições à mera factualidade que só por si conduz ao perspectivismo, como um resíduo metafísico que não interessa de modo algum à ciência positiva? A nossa resposta é a de que há algo de específico nesta «factualidade»: a «positividade» daqueles «factos». Eles são «irrecusáveis» no sentido em que constituem um controlo que podemos usar ao orientarmos as nossas construções arbitrárias. Mas não são «irre-
cusáveis» no sentido em que podem ser compreendidas fora de qualquer sistema, isoladamente, sem referência a significados. Pelo
237
Sociologia do Conhecimento
contrário, só os podemos
compreender dentro da estrutura de um
significado, e eles revelam um aspecto diferente, de acordo com o modelo de significado dentro do qual se apreendem. Termos como «capitalismo», «proletariado», etc., mudam o seu significado, se-
gundo o sistema em que são usados e «dados» históricos tornam-se «factos» históricos só por terem sido inseridos dentro de um pro-
cesso evolucionário como «partes» ou «estádios». Já terminou esta época do positivismo confiante, satisfeito em que pensamos ser possível compreender «factos» sem qualificação; pensava-se assim porque se esquecia que a história da cultura positivista só tomava em consideração ingenuamente um sistema de significado, uma metafísica particular como absolutamente válida, embora só os pensadores daquela época os pudessem aceitar como não problemáticos. Se o positivismo conseguia harmonizar-se com o seu próprio quadro de significados era porque ele cultivava a investigação especializada num ou noutro campo; nestas circunstâncias, ninguém reparava que os pressupostos metafísicos dos cientistas especializados
nos seus campos particulares se basea-
vam numa perspectiva global e numa filosofia da história, tanto como os das escolas não positivistas. Pelo nosso lado, podemos ver que pelo menos as ciências culturais e históricas pressupoem a metafísica, isto é, um incremento que reúne aspectos parciais numa totalidade; e na nossa opinião, é no seu todo mais proveitoso conhecer este estado de coisas do que ignorá-lo. Tal como foi afirmado acima, isto não quer dizer que não recolhamos os aspectos do positivismo «genuínos», aspectos estes que marcaram o positivismo como um progresso real na história do pensamento. Toda a metafísica que apareceu depois da supremacia do positivismo terá que incorporar e «sublimar» de alguma forma estes elementos «genuínos» do positivismo. Mas este componente «genuíno», não é uma questão de epistemologia e metodológica do positivismo, mas por mais paradoxal que pareça, da sua intenção metafísica, do sentimento vital de que é a expressão teórica. O estilo de pensamento positivista marca na história das disciplinas teóricas a mesma transição gradual que, no campo
238
O Problema da Sociologia do Conhecimento
da política, é designada pelo termo «Realpolitik», e na história da arte,
pelo
termo
«realismo»,
uma
transição
que
deixou
as suas
marcas quer no pensamento conservador, quer no pensamento pro-
gressista. Estes termos sugerem que certas esferas da vida (ex: as económicas) ocupam cada vez mais o centro da experiência e facultam as categorias fundamentais em termos das quais se experimentam todas as outras esferas. A transição em questão significa que na nossa experiência, o acento ontológico é posto mais nesta mundaneidade, nesta imanência, do que na «transcendência». Procuramos a origem de todos os conceitos «transcendentes» precisamente nesta experiência imanente. Deve notar-se, no entanto, que
esta
antítese entre
«imanência»
e «transcendência»
está em
si
mesma expressa na terminologia da velha atitude vital e por isso não pode fazer justiça ao que é essencialmente novo e genuíno no positivismo. Aquilo a que chamamos o respeito positivista pela realidade empírica representa uma segundo princípio positivista que, pensamos, permanece válido para o nosso pensamento. Este respeito da realidade empírica (que, no entanto, não significa já para nós a crença numa interpretação não metafísica dos factos mentais) consiste no facto de não podermos conceber as entidades metafísicas fora de um contacto essencial com aquele reino da experiência que
para nós representa a realidade última do mundo. Esta a principal razão porque não podemos aceitar este «salto» para lá da realidade e nem mesmo em conexão com a construção de um reino pré-existente de verdade e validade. Não proclamamos ser capazes de fazer quaisquer deduções relativas às estruturas da verdade e validade, excepto a partir da transformação empiricamente alcançável da estrutura das várias esferas de pensamento, tal como as encontramos na história. Todos os tipos essenciais de novas metafísicas suportam o peso deste processo de transformação que resulta num imediato acentuar da classe ontológica do «imanente» e do «histórico». Foi talvez Hegel que realizou o passo mais essencial para um verdadeiro positivismo quando identificou a «essência», o «absoluto», com o processo histórico e ligou o destino do absoluto ao da
239
Sociologia do Conhecimento
evolução do mundo. Mesmo se não podemos aceitar as suas afirmações pormenorizadas, a posição geral de Hegel está bastante próxima da nossa orientação imediata. Concordamos completamente com Scheler quando este de-
fende que a metafísica não foi e não pode ser eliminada da nossa
concepção do mundo e que as categorias metafísicas são indispensáveis para a interpretação do mundo histórico e intelectual. Concordamos igualmente com ele na afirmação de que o conhecimento factual e o conhecimento essencial representam duas formas diferentes de conhecimento mas não admitimos uma separação
abrupta entre os dois; o que pensamos é que o conhecimento es-
sencial apenas vai mais longe e mais fundo na mesma direcção em que o conhecimento factual se lança. Parece-nos que está sempre a ter lugar uma passagem do conhecimento factual empíricoà intuição das Essências. Este Dualismo do «facto» e da «essência» é totalmente paralelo ao da ciência histórica e ao da filosofia da história. Há uma tendência geral para fazer uma separação rígida entre estas duas disciplinas; mas na nossa opinião, a visão correcta é a de que uma boa parte da «filosofia da história» está já embebida nos vários conceitos que usamos na caracterização de factos particulares, conceitos estes que desempenham um papel considerável na determinação do conteúdo da ciência «empírica». Sempre que inserimos um conceito aparentemente isolado num contexto somos de algum modo ligados a um «plano», uma «estrutura inteligí-
vel» da história.
Aceitar tal continuidade e interpretação destes dois tipos de conhecimento não significa, no entanto, negar que são diferentes, qualitativa e hierarquicamente. O que rejeitamos é apenas o «salto» entre os dois mundos que coloca as respectivas estruturas completamente aparte, uma concepção obviamente inspirada na ideia de «conhecimento-revelação ». Não nos surpreenderia que na tentativa de caracterização do ponto de partida da sociologia do conhecimento, tivessemos que discutir os pressupostos sistemáticos e filosóficos. Porque o nosso problema é precisamente o de saber até onde o tratamento empí-
240
O Problema da Sociologia do Conhecimento
ico, científico de um problema é influenciado pela posição filosóica, metafísica de investigador.
O confronto das divergências entre a nossa concepção de so-
iologia do conhecimento e a defendida por Scheler tornou claro ue a nossa tarefa é comum: os produtos mentais podem ser interpretados não só directamente no que diz respeito ao seu conteúdo, 'mas também indirectamente, em atenção à sua dependência da realidade e especialmente à função social que realizam. Esta a fonte ja sociologia do conhecimento e cultura. Esta tarefa tem sido leada a cabo por várias correntes filosóficas, todas elas comprometilas com uma posição social definida. Porque a posição sociológica le Scheler postula um sistema de verdades supra-temporais, imutáeis (uma posição que conduz sempre na prática à proclamação da alidade eterna da perspectiva individual histórica e sociologicaente determinada), ele pretende a introdução da «contingência» dos factores sociológicos como uma reflexão nesta estrutura imóel, supra-temporal. Mas é impossível incorporar os factores hisóricos e sociológicos organicamente no sistema individual se se adopta esta doutrina «a partir de cima». Um abismo inultrapassáel separará, então, a história do supra-temporal. Nós seguimos a direcção oposta: para nós, o imediatamente lado
é a mudança
dinâmica
das posições,
o elemento
histórico.
Concentramos a atenção neste elemento e exploramos as possibiliHades de ultrapassagem do relativismo. Isto pressupõe, como 12 arefa da sociologia do conhecimento, que se faça uma análise tão eo quanto possível das posições intelectuais co-existentes num
leterminado momento e do seu desenvolvimento histórico. Mesmo
is posições individuais enquanto tal não são «estáticas», eternaporte inalteráveis; pelo contrário o fluxo incessante do processo istórico traz sempre consigo novos dados à superfície que necessiam de interpretação e que podem conduzir à desintegração ou odificação dos sistemas previamente existentes. Além do mais, im dos pontos importantes da evolução das posições intelectuais sua a contribuição para o processo evolucionário geral dentro da ociedade. É possível mostrar em retrospectiva o modo como cada
241
Sociologia do Conhecimento
utopia singular e também cada imagem singular da história passa ajudou a moldar a época em que surgiu. Há um conteúdo de verd de existencialmente determinado no pensamento humano em cad! fase do seu desenvolvimento; tal consiste no facto de em cada m
mento se fazer uma tentativa de aumentar a racionalidade do mu:
do social — intelectual de um modo específico, na direcção impos ta pelo passo evolucionário seguinte. Outra tarefa da sociologia d
cognição (como deveria ser chamada por direito próprio) consist:
em descobrir este papel funcional do pensamento social, existenl cialmente empenhado nas várias fases do processo real. O pressul posto metafísico aqui presente (e queremos acentuar que a nos: teoria pressupõe tal afirmação) é o de que o processo global de: tro do qual emergem as várias posições intelectuaisé um proce: significativo. As posições e conteúdos não se sucedem uns aos o! tros de um modo completamente ao acaso, já que são todos part: de um processo geral significativo. Todo o problema da verdad «absoluta» coincidirá, então, com o da natureza deste significad unitário do processo como um todo; a questão é a de saber at; que ponto somos capazes de compreender o objectivo evolucion: rio perceptível num dado momento. Já apontamos uma resposta esta questão: na medida em que uma época já passou (pode, com é óbvio, e como já dissemos, dizer-se que passou apenas num sei tido relativo), na medida em que se apresenta como uma Gestai completa, podemos especificar o papel funcional dos modelos di pensamento relativos à direcção que o processo evolucionário te tomado. Porém no que diz respeito aos processos a correr, a dire: ção ainda não está dada; e não se pode dizer que existe in se que é, de algum modo, pré-existente. Neste caso, estamos tot: mente in statu nascendi e só nos é possível distinguir a explosã de aspirações antagónicas. Mesmo a nossa posição intelectual situa dentro de uma destas posições rivais; por isso, só podemos t uma perspectiva parcial do que se está a desenrolar e também passado, sempre que a interpretação do passado depende da intel pretação dos processos a correr. Já foi acentuado que isto ni conduz necessariamente a um engano, a uma negação da realida
242
O Problema da Sociologia do Conhecimento do processo histórico. Podemos, portanto, admitir sem dificuldade que uma doutrina absolutista no velho sentido não pode ser deduzida destas premissas sem um salto e uma hipostatização da nossa posição; por esta razão não podemos desejar uma tal posição absolutista que nada mais é senão uma hipostatização do modelo estrutural de uma concepção estática de verdade. Na nossa opinião, só podemos ainda acreditar numa verdade estática in se quando não queremos reconhecer que não é um único sistema que gradualmente se constrói no processo histórico-cultural, como é o caso no sistema da matemática e das ciências naturais. Dentro do processo histórico, o pensamento constantemente regressa ao ponto de partida a partir de novas e mais compreensivas ideias centrais. A própria ideia de «diálogo sublime» dos espíritos de todas as idades, como
Scheler
a concebe, só pode acontecer mesmo como fantasia
utópica, para alguém que acredita num único sistema de verdade. Quando reconhecemos que um diálogo desta natureza não pode ter lugar desta maneira tão simples, se não já por qualquer outra razão, porque cada palavra tem um significado diferente em diferentes culturas, como resultado do facto de a sua função existencial ser diferente em cada caso, quando compreendemos isto, po-
demos
pensar ao menos como
uma crença «utópica», que cada
À deoc contém em si mesma de uma forma «sublimada» as tensões de todo o processo histórico que a ela conduziu. Assim, podemos chegar à ideia, ignorando a posição estrutural hoje observada, de que a rivalidade actual dos sistemas e posições antagónicas, e as suas tentativas de incorporar as posições rivais dentro de si, indicam
uma
tendência
inerente
analisar o todo da realidade, jectivo já que não foi ainda totalmente compreensivo. O na limitação das perspectivas quanto
podemos
a todo
o pensamento
humano
para
uma tendência que fracassa o seu obdescoberto um princípio sistemático que se reflectirá, então, na finitude, parciais do pensamento actual. Tanto
ver, a realidade é sempre muito mais compreensi-
va do que qualquer das posições parciais a que dá lugar. Então, se extrapolarmos, podemos acreditar que uma se encontrará talvez ideia sistemática central que permitirá, na verdade, uma síntese de
243
Sociologia do Conhecimento
todo o processo. Mas não podemos acreditar que esta síntese seja pré-existente, senão por outra razão, porque não foi ainda materializada a situação real que apelaria a uma tal síntese. A nossa «utopia» da síntese total final é superior à da verdade estática pré-existente, porque é retirada da estrutura actual do pensamento histórico enquanto que a última reflecte uma mentalidade não his-
tórica, ligada a um sistema estático.
Ao partirmos destas premissas, ultrapassar íamos o relativismo através de um «salto», mesmo se este defende que a sua posição é
a fase final de toda a dinâmica (como fez Hegel), e mesmo que
afirme que o pensamento não será existencialmente determinado no futuro. O que, no entanto, redundaria numa «re-estabilização» de uma concepção originariamente dinâmica. Quando se toma na história uma posição absoluta, o pensamento torna-se, na verdade, estático; o dinamismo não é reconhecer que a história está a mudar, mas antes saber que a posição individual não é menos dinâmica do que outras. Para uma concepção radicalmente dinâmica, a única posição possível é, pois, reconhecer que a posição individual, apesar de relativa, constitui-se no elemento da verdade. Ou, para caracterizar a diferença entre a solução de Scheler e a nossa através de uma metáfora, podemos dizer: na nossa opinião, Deus tem os seus olhos no processo histórico (i.e. o processo histórico não é desprovido de sentido), enquanto que Scheler precisa de pressupor| que olha o mundo com os olhos de Deus. Uma análise meramente estrutural das duas doutrinas revela que nenhuma consegue ultrapassar totalmente as contradições que! lhe são inerentes. Scheler, que coloca o Absoluto no pnii nunca consegue o dinamismo (não pode cobrir o abismo entre estático e o dinâmico); a outra concepção, que nasce do desloca mento factual de uma posição por outra, não pode alcançar absoluto,
pelo menos,
na forma
confiante
de uma
espécie de pen
samento estático. Mas enquanto que a teoria de Scheler se torn: contraditória pelo reconhecimento da parcialidade de cada posi ção e especialmente da sua, tal reconhecimento não só não condu a uma
profunda contradição na nossa teoria e sociologia do conhe
cimento, como constitui antes um exemplo confirmativo dela.
244
O Problema da Sociologia do Conhecimento
Todo o conhecimento existente num determinado momento
nasce em perfeita dependência do processo social real, mas este processo aproxima-se da totalidade através de antíteses e tumulto; por isso não surpreende que posamos descobrir só as correntes intelectuais parciais opostas e contrárias e que consideremos a totalidade como uma mera soma destas correntes parciais antagónicas. «Quando várias filosofias surgem simultaneamente», diz Hegel, «estamos a braços com distintos aspectos que juntamente constituem a totalidade subjacente a todas, e é apenas por causa da sua unilateralidade que podemos ver numa tão só a refutação da outra. Além disso, estas teorias não só discutem pormenores mas lançam cada uma delas um novo princípio; que temos que encontrar». Até agora em toda a discussão tentamos centrar a nossa atenção sobre os princípios gerais cujas divergências múltiplas não representam «uma discussão de pormenores», mas ilustram as soluções conflituantes do problema particular que enfrentamos, compreendido a partir das posições existentes hoje. A nossa próxima
tarefa é a de mostrar como os problemas da sociologia do conhecimento podem
sentam.
ser tratados a partir da posição dinâmica que repre-
IV. A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO A PARTIR DA POSIÇÃO DINÂMICA
Pensamos que a constelação presente é favorável ao desenvolvimento de uma sociologia do conhecimento, porque as inserções esporádicas na estrutura social do conhecimento conquistadas nos períodos anteriores se multiplicaram rapidamente nos dias de hoje e alcançaram agora um estádio em que se torna possível um tratamento sistemático e não esporádico e causal destes problemas. E precisamente porque esta «causalidade» é cada vez mais ultrapassada, a atenção centra-se mais e mais nas premissas filosóficas das
descobertas
de
pormenor,
premissas
que
não
foram
directa-
mente exploradas até agora. De momento, mesmo os estudiosos comprometidos em estudos especializados têm consciência desta
245
Sociologia do Conhecimento
tendência para uma rotatividade sistemática. O ensaio de Scheler é valioso em primeiro lugar porque apresenta um plano que compreende, várias disciplinas; e goza ainda da vantagem de Scheler ser um filósofo que é, ao mesmo tempo, um sociólogo. O trabalho no campo da sociologia do conhecimento só é útil se as premissas filosóficas e metafísicas de cada autor se revelam abertamente, e se os autores possuem a capacidade de analisar simultaneamente «de
dentro», em termos da sua estrutura lógica, e «de fora», em mos da sua função e condicionamento social.
ter-
Tentaremos agora indicar o modo como se pode desenvolver uma sociologia sistemática do conhecimento com base numa con-
cepção dinâmica. Já traçamos os princípios básicos da nossa dou-
trina; o que falta é analisar também os problemas metodológicos. Se adoptamos uma concepção dinâmica de verdade e conhecimento, o problema central da sociologia do conhecimento será o da génese existencialmente determinada das várias posições que acompanham os modelos de pensamento existentes numa determinada época. Todo o nosso esforço se concentrará sobre este ponto,
porque
a mudança
e o crescimento interior das várias posi-
ções contém para nós toda a substância da história do pensamento. A análise sociológica do pensamento, feita até agora de um modo fragmentário e causal, torna-se hoje objecto de um programa científico compreensivo que permite a divisão do trabalho quando analisa o resultado intelectual de cada período e descobre as posições e premissas sistemáticas que basearam o pensamento em cada caso. Este, o primeiro grande problema com que se debate a sociologia do conhecimento em conjunção com o trabalho feito no campo da «história das ideias», que se revelou muito proveitoso quer no que respeita a resultados, quer no que respeita a métodos. Em vários campos (político, filosófico, económico, estético, moral, etc.) a história das ideias revela-nos uma variedade extrema de elementos
mutáveis de pensamento;
mas estes trabalhos
só conse-
guirão êxito, a realização total do seu significado, quando descobrirmos não só os novos conteúdos de pensamento, mas também as premissas sistemáticas muitas vezes meramente implícitas em
246
O Problema da Sociologia do Conhecimento
ue se baseou uma determinada ideia na sua forma original, modiicada posteriormente de forma a satisfazer uma outra série de remissas, sobrevivendo assim sob condições mudadas. Isto é: a
istória das ideias só realiza o seu objectivo (o de estudar todo o rocesso da história intelectual de um modo sistemático) se com-
plementada com uma análise histórica estrutural dos vários centros de sistematização que se sucedem de um modo dinâmico. Começamos pelos princípios deste tipo de análise (ex. os trabalhos que
distinguem o «romantismo»
ou o «iluminismo» como diferentes
climas vitais que dão lugar a diferentes modos de pensamento); seguiremos, então, estas ideias até às suas últimas consequências lógicas no esforço no sentido da queda dos últimos axiomas subjacentes ao pensamento «romântico» e ao «iluminismo» respectivamente, e na definição deste tipo de sistema a que pertencem estes modelos de pensamento com a maior lógica e precisão metodológica possível hoje. Isto significaria que utilizariamos na análise histórica a precisão lógica característica do nosso tempo. Podemos agora apontar uma limitação da história das ideias, que deriva do facto de a sua análise ser feita em termos de «época». De um ponto de vista sociológico, quer as «nações», quer as «épocas» podem servir indiferentemente de base de referência na descrição do processo histórico. O historiador sabe que uma certa época só parece ser dominada por uma única corrente intelectual quando dela temos uma visão superficial. Aprofundando o pormenor histórico, seremos capazes de distinguir em cada época várias correntes. Pode
acontecer, e tal acontece
na maior parte das vezes, que uma destas
correntes domine, relegando as outras ao estatuto de correntes inferiores. Nenhuma corrente é sempre completamente eliminada; mesmo quando uma é vitoriosa, todas as outras que pertencem a
um ou outro sector social continuarão a existir como correntes in-
feriores sempre, prontas a aparecer e a constituir-se a um nível superior quando for caso disso. Basta pensar no ritmo peculiar em que se sucederam
uma
á outra durante
o período
mais recente da
história europeia as fases «racionalista» e «romântica» para compreendermos que estamos em face de tendências separadas de evo-
247
Sociologia do Conhecimento
lução que de algum modo se relacionam entre si através de um: qualquer norma superior. No entanto, não é suficiente reconhece esta evolução em cursos separados; temos também de tomar em consideração a forma como as correntes principais sempre se ajustam entre si. Ambas estas questões têm de ser trabalhadas por uma! história sistemática das ideias num primeiro capítulo da sociologia de pensamento. Porque não se pode esquecer, por exemplo, que sempre
que
faz
um
novo
avanço,
o romantismo
toma
em
consi-
deração o estado do pensamento racionalista simultaneamente existente e dominante; não só aprendem as duas escolas uma com a outra, mas ensaiam num trabalho em conjunto uma síntese mais compreensiva, reguladora da nova situação. Mas a sociologia do conhecimento não fica só por aqui. Mais ou menos sistemática, uma análise puramente imanente da génese das posições intelectuais nada mais é do que uma história das ideias. Este trabalho sistemático preliminar na história das ideias só pode conduzir a uma sociologia do conhecimento quando examinamos o problema de sabermos como as várias posições intelectuais e «estilos de pensamento» se enraízam na realidade histórico-social subjacente. Mas a este propósito, seria um erro, na nossa opinião, considerar a realidade, a realidade social, como uma corrente unitária. Se na história das ideias é irrelevante o procedimento que toma as épocas como unidades, já é no entanto, um grande erro conceber a realidade para além do processo ideológico como uma unidade homogénea. Porque acima de tudo não se pode duvidar que qualquer tipo superior de sociedade se compõe de vários estratos diferentes, tal como a vida intelectual revela uma grande variedade de correntes; na nossa sociedade, a estratificação é uma
estratificação de classe. E a dinâmica geral da sociedade é resultan-
te de todos os impulsos parciais emanados destes estratos. A primeira tarefa será, pois, a de descobrir correlação entre as posições intelectuais em abstracto e as correntes sociais (posições sociais). A descoberta desta correlação é a primeira tarefa específica da sociologia do conhecimento. A descrição abstracta da génese das posições intelectuais pode ainda ser considerada como a continuação
248
O Problema da Sociologia do Conhecimento do trabalho do historiador das ideias; a história da estratificação social pode ainda ser considerada como parte da história social. Mas a combinação destes dois campos de investigação introduz uma aproximação especificadamente sociológica. Torna-se assim importante, neste momento particular eliminar o naturalismo e também aquelas atitudes que estão ligadas à intenção original polémica da sociologia. Formulado inicialmente pela filosofia marxista da história, o problema acima referido deve ser analisado com atenção para renunciarmos a toda a metafísica materialista e para excluirmos (ou para reduzirmos aos elementos de verdade nelas contidos) todas as considerções propagandistas. Em primeiro lugar, mesmo a visão mais superficial dos dados históricos demonstrará que é praticamente impossível identificar uma certa posição intelectual com uma determinada estrutura ou classe (por exemplo, como se o proletariado tivesse uma ciência própria, desenvolvida num espaço intelectual fechado, e a burguesia a sua, distinta daquela). Este exagero propagandstico só pode conduzir a uma aguda e errónea simplificação histórica; por conseguinte, a adesão deve ficar suspensa até à análise da verdade nela contida, porque
também ela detém um certo elemento de verdade.
Mesmo a análise imanente das várias posições intelectuais e cognitivas, tal como é levada a cabo pela história das ideias sistemáticas, mostra que estas não habitam o vazio nem se desenvolvem ou ramificam nele, mas antes que elas se correlacionam com certas tendências manifestadas pelos estratos sociais. Em primeiro lugar, esta «correlação» apresentará uma certa dificuldade para o sociólogo. A época
naturalista do marxismo reconheceu
uma única corre-
lação possível entre a realidade social e os fenómenos intelectuais; nomeadamente, a correlação segundo a qual uma atitude mental é ditada por um interesse material. A única forma de condicionamento social das ideias reconhecida era a de que esta fase inicial da investigação ideológica se motivava exclusivamente por este «desmascaramento»
ditado
por um
interesse. Não negamos que se
podem adoptar ou promover certas posições intelectuais porque elas são úteis quer na propagação, quer na conciliação de interesses
249
Sociologia do Conhecimento
de grupo; e reconhecemos que é desejável o desmascaramento de tais atitudes. No entanto, esta motivação pelo interesse não é a única correlação que pode existir entre um grupo social e as suas posições intelectuais. A investigação ideológica socialista é unilateral, já que concentra primariamente a sua atenção naquela forma de condicionamento social das ideias que é representado pela motivação pelo interesse.
Se se reconhece a categoria do «interesse» como a única «re-
lação existencial»
das ideias, seremos forçados a
restringir a análise
sociológica da super-estrutura que manifesta o «disfarce ideológico de interesses» ou o que é apesar de tudo melhor porque se analisa toda a super-estrutura em termos da sua dependência sobre a realidade social, a definir o interesse em termos tão latos que este perderá o seu significado original. Na nossa opinião, nenhum destes caminhos conduz ao objectivo desejado. Se queremos reunir a investigação ideológica a uma sociologia do conhecimento, e se a queremos combinar com o trabalho recente da história das ideias, a primeira coisa a fazer é ultrapassar a unilateralidade do reconhecimento da motivação pelo interesse como única forma de condicionamento social das ideias. O que facilmente se consegue pela demonstração fenomenológica do facto de a motivação pelo interesse ser somente uma das formas possíveis por que a dopção de certas atitudes pela psique pode ser condicionada pela experiência social. Assim, pode muito bem acontecer que professemos uma certa teoria económica ou certas ideias políticas porque elas se ajustam aos nossos interesses. Mas de certeza que nenhuns interesses imediatos estão ligados à nossa escolha de um certo estilo artístico
ou
estilo de
pensamento; e no entanto,
estas entidades tam-
bém não planam no vazio, antes se desenvolvem em certos grupos como resultado de determinados factores socio-históricos. No caso das
ideias defendidas
por
um
interesse directo, podemos
falar de
«interesseirice»; para designar a relação mais directa entre o sujeito e aquelas outras ideias, podemos utilizar a expressão paralela de «comprometimento». Na verdade, é um dos traços mais marcantes da história o facto de um determinado sistema económico estar
250
O Problema da Sociologia do Conhecimento
empre mergulhado, pelo menos nas suas origens, num determinalo cosmo intelectual, de forma que aqueles que procuram uma certa ordem económica, procurem também a omniscência intelectual coerente com ela. Quando um grupo está directamente interessado num sistema económico, também estará então indirectamente «comprometido» com outras formas intelectuais, artísticas, filosóficas, etc., correspondentes àquele sistema económico. Assim,
O «comprometimento»
parcial
quando
indirecto
com
certas formas
men-
tais é a categoria mais compreensiva no campo do condicionamento social das ideias. A motivação pelos interesses aparece, assim, como um caso comparado
com
a categoria geral do
«comprome-
timento», já que é à última que temos de recorrer na maior parte los casos quando queremos compreender as relações entre «estilos de pensamento», «posições intelectuais», por um lado,e realijade social por outro. Enquanto que o método do marxismo corente consiste numa associação directa dos produtos esotéricos e spirituais da mente com os interesses económicos e de poder de ma certa classe, a investigação sociológica dirigida à elucidação ja confirmação total da vida intelectual não imitará esta aproxiação cruel; no entanto, desejosa de salvar o elemento de verdade ja filosofia marxista da história, a investigação sociológica re-exainará cada um dos passos postulados por este método. Este rexame começará se usarmos a categoria da motivação de interesses uando só interesses estiverem em jogo, e não quando existe o comprometimento» com uma Weltanschauung. Podemos agora egressar ao método sociológico que nos ajudará a reconhecer que sta aplicação exclusiva da categoria de interesses é em si mesma leterminada por uma certa constelação histórica, caracterizada la predominância da aproximação económica clássica. Se, pom, elevamos a categoria de interesses ao nível de um princípio bsoluto, o resultado só pode ser a redução do papel da sociologia reconstrução do homo economicus, quando a sociologia, tem na erdade, de examinar o homem como um todo. Assim, não podeos atribuir um estilo de pensamento, uma obra de arte, etc. ao
251
SS
SS STE
Sociologia do Conhecimento
grupo de que faz parte com base numa análise de interesses. Pode
mos, no entanto, mostrar que um certo estilo de pensamento, uma
posição intelectual está compreendida num sistema de atitudes que, por seu turno, pode ser relacionado com um certo sistema económico ou de poder; podemos então perguntar que grupos sociais estão interessados no aparecimento e na manutenção deste sistema social e económico e ao mesmo tempo «comprometidos» com a visão do mundo que lhe corresponde. Por isso, só se pode construir uma sociologia do conhecimento quando se toma um caminho circular, adoptando o conceito de
sistema total de uma concepção do mundo (através da sociologia
cultural). Não podemos relacionar uma posição intelectual directamente com uma classe social; o que podemos fazer é descobrir a correlação entre o «estilo de pensamento» subjacente a uma determinada posição, e a «motivação intelectual» de um certo grupo so-.
cial.
Se analisamos a história do pensamento e do conhecimento: tendo presentes estas questões, procurando compreender como ela! está embebido na história do processo real, social, encontraremos) em cada momento não só grupos antagónicos que se combatem uns aos outros, mas também um conflito de «postulados mun
diais» opostos (Weltwollungen). No processo histórico, não são só) os interesses que combatem dos
universais
que
os interesses, mas também os postula.
competem
com
outros
postulados
universais
Tal facto é sociologicamente relevante, porque estes vários «postu: lados universais» (de que os vários «estilos de pensamento» sã:
só aspectos parciais) não se confrontam de um modo descorporiza:
do, arbitrário; antes pelo contrário, cada um destes postulados est: ligado a um certo grupo e desenvolve-se dentro do pensament desse grupo. Em cada momento, só um estrato está interessado ni manutenção do sistema económico e social existente e por enero guinte defende o estilo de pensamento correspondente; há sempr: outros estratos cujo lar espiritual é um outro estádio anterior d evolução, e outros ainda que estão agora a aparecer e que sendo novos não se desenvolveram ainda completamente e que depositam
252
O Problema da Sociologia do Conhecimento
a sua esperança no futuro. Porque os diferentes estratos estão «interessados em» e «comprometidos com» diferentes ordens e postulados universais, alguns dos quais são reminiscência do passado enquanto que outros estão a aparecer, é óbvio que os conflitos de valor permeabilizam cada estádio da evolução histórica. Demonstra-se facilmente que um «estilo de pensamento» anda associado ao aparecimento de um certo estrato social pelo facto de o moderno racionalismo (como já repetidamente apontamos) estar ligado a postulados universais e a aspirações intelectuais da burguesia
nascente,
de as últimas contra-correntes se aliarem ao irra-
cionalismo e de existir uma conexão semelhante entre o romantis-
mo e as aspirações conservadoras. Partindo de tais perspectivas, podemos analisar as correlações entre os estilos de pensamento e os estratos sociais, correlações estas que só serão proveitosos se não forem
estáticas,
ex.
identificando
o
racionalismo
com
o pensa-
mento progressista e o irracionalismo com o pensamento reaccionário em cada uma das constelações possíveis. Temos é que recordar que nem o racionalismo nem o irracionalismo (particularmente na sua forma presente) são tipos eternos de tendências intelectuais e que um certo estrato não é sempre, respectivamente, progressista ou conservador num mesmo sentido. «Conservador» e «progressista» são atributos relativos; isso de um certo estrato ser progressista ou conservador ou, pior ainda, reaccionário, sempre depende da direcção em que o sistema social se move. À medida que a tendência fundamental do progresso económico e intelectual se desenrola, estratos que foram inicialmente progressistas tornam-se conservadores quando alcançam o ambicionado; estratos que num determinado momento desempenharam um papel condutor podem repentinamente sentir-se impelidos para abraçar a oposição contra a tendência principal. É importante evitar, já neste momento, a interpretação destes conceitos relativos como características eternas; mas temos de fa-
zer ainda uma outra distinção se queremos fazer justiça à enorme variedade da realidade histórica. Ao estabelecermos correlações entre
os produtos
da mente
e os estratos sociais, devemos
distin-
253
Sociologia do Conhecimento
guir entre estratificação intelectual e social. Podemos definir os es: tratos sociais, de acordo com o conceito marxista de classe, em ter-, mos do seu papel no processo de produção; mas é impossível, em nossa opinião, estabelecer um paralelismo histórico entre as posições intelectuais e os estratos sociais definidos desta forma. A di-
ferenciação no mundo
da mente é demasiado grande para permi-
tir a identificação de cada corrente, de cada posição, com uma certa classe (1). Assim, temos de introduzir um conceito intermediário para efectuarmos a correlação entre o conceito de «classe», definido em termos de papel no processo produtivo, e o de «posição intelectual». Este conceito intermediário é o de «estrato intelectual». Por «estrato intelectual» queremos significar um grupo de pessoas que pertencem a uma certa unidade social e partilham de um certo «postulado universal» (Daquele fazem o sistema económico, o sistema filosófico, o estilo artístico por eles «postula-
do») (2) e que num dado momento estão comprometidos com um certo estilo de actividade económica e pensamento teórico (3).
Devemos em primeiro lugar identificar os vários «postulados universais», sistemas de We/tanschauung, que rivalizam entre si, e encontrar os grupos sociais vencedores; só quando estes estratos intelectuais» estiverem especificados, podemos perguntar que «estratos sociais» lhe correspondem. Assim, é possível identificar os grupos de pessoas que num dado momento estão reunidos numa concepção conservadora, e ligados por uma série comum de ideias que se desenrolam num processo incessante de transformação; o
sociólogo da cultura não deve, no entanto, ficar satisfeito com a
aproximação ao tema a partir deste ponto de vista doutrinal, mas
(1) No Wirtschaft und Geselischaft, Max Weber tentou uma análise total da grande variedade da estratificação social. (2) Esta postulação não é «vontade» consciente reflectida, mas uma tendência latente inconsciente, análoga à «motivação artística» de A. Riegle (Kunstwollen) (3) Num
contexto
puramente económico, W. Sombart
define «classe social»
de modo análogo; cf. Sozialismus und Soziale Bewegung, 82 edição, p.1.
254
O Problema da Sociologia do Conhecimento
deve também
perguntar-se que «classes sociais» formam
este «es-
trato social». Só podemos compreender a transformação das várias ideologias com base nas mudanças de composição social do estrato social que lhe é correspondente. O mesmo se aplica obviamente aos tipos progressistas da Weltanschauung. O proletariado (para mostrar o outro lado da correlação de que tratamos) constitui uma classe; mas esta mesma classe social está dividida quanto aos «postulados universais» dos seus membros, tal como se mostra
claramente pelo vário número de partidos políticos que o proletaiado defende. O que interessa para o sociólogo é o seguinte: Que tipos de postulados universais progressistas existem num dado momento, quais são os estratos intelectuais progressistas que a eles aderem, e que estratos sociais dentro do proletariado pertencem a
estes vários estratos intelectuais?
A função particular deste conceito intermediário, o de «estrato intelectual», consiste em coordenar as configurações intelectuais com os grupos sociais possíveis sem obscurecer a diferença profunda quer do mundo da mente quer da realidade social. Mais ainda, temos de tomar em consideração que em nenhum momento da história um estrato social produziu as suas ideias, por assim dizer, no vazio, como uma invenção pura. Os grupos conservadores e progressistas de várias naturezas herdaram ideologias que de algum modo já existiram no passado. Os grupos conservadores recuam a atitudes, métodos de pensamento, ideias de épocas remotas e
adoptam-nas a novas situações; mas os grupos recentemente surgi-
dos também tomam, como seus, em primeiro lugar, ideiase métodos já existentes, de forma que uma fotografia das ideologias rivais num dado momento representa igualmente uma fotografia do passado histórico da sociedade em questão. Mas obteremos uma espécie de historicismo completamente erróneo se, nos sentarmos exclusivamente sobre esta «herança» da história e tentarmos reduzir a ela toda a relação entre a realidade social e o processo intelectual. Olhando o processo de evolução intelectual e o papel nela desempenhado pelos estratos sociais apenas deste ponto de vista, parecerá
então, na verdade, que só teve lugar o desenrolar de po-
255
Sociologia do Conhecimento
tencialidades dadas à partida. Mas esta visão é, mera peculiaridade da concepção conservadora que interpreta a natureza contínua do processo tido de que tudo tem a sua origem em algo que precedeu. A variante progressista do historicismo
de evolução do ângulo do status nascendi.
no entanto, uma do historicismo histórico no sentemporalmente o olha o processo
Só esta perspectiva nos permite ver como os mesmos motivos e aspectos retirados de um momento anterior se tornam sempre algo de diferente e graças a esta mesma passagem, e isto só porque o seu defensor actual é alguém diferente e também porque se relaciona com uma diferente situação. Ou, de um modo mais sucinto: a mudança de função de uma ideias envolve sempre uma mudança de significado, sendo este um dos principais argumentos a favor da afirmação de que a história é um meio criativo de significados e não somente um meio passivo em que os significados pré-existentes encontram a sua realização.
Distinguiremos, no entanto, dois tipos de mudança de função: uma imanente e outra sociológica. Falamos de mudança imanente de função
(no reino do pensamento, para mencionar apenas
um dos campos em que este fenómeno pode ser lugar), quando um conceito passa de um sistema de ideias para outro. Termos como «ego», «dinheiro», «romantismo», etc., significam algo de diferente, consoante o sistema no qual são usados. Por mudança sociológica de função queremos dizer uma mudança no significado de um conceito que tem lugar quando um conceito é adoptado por um grupo que vive num meio social diferente, de forma que o significado vital do conceito se torna diferente. Cada ideia adquire um novo significado quando aplicada a uma nova situação da vida.
Quando
novos estratos tomam sistemas de ideias de outros estra-
tos, pode sempre mostrar-se que as mesmas palavras significam coisas diferentes aos novos utilizadores, porque estes últimos pensam em termos de diferentes aspirações e configurações existenciais. Esta mudança social da função é, também, tal como se afirmou acima, uma mudança de significado. E embora seja verdade que diferentes estratos sociais que cultivam o mesmo campo cultural
256
O Problema da Sociologia do Conhecimento partilham das mesmas ideias «germinais» (razão pela qual a compreensão é possível de um estrato para outro), o desenrolar da realidade social introduz algo de incalculável e criativamente novo no processo intelectual, porque as novas situações imprevisíveis que nascem dentro da realidade e constituem novas bases existenciais de referência para ideias familiares. Os estratos sociais desempenham um papel criativo porque introduzem novas intenções, novas direcções de intencionalidade, novos postulados universais, na estrutura de ideias já desenvolvidas nos velhos estratos aproprianEs deles sujeitando-os a uma mudança produtiva de função. Os diferentes estratos sociais não «produzem diferentes siste-
mas
de
ideias»
(Weltanschauungen)
num
sentido materialístico
(no sentido em que ideologias destruídas podem ser «retomadas») produzem-nas antes no sentido em que grupos sociais nascentes dentro de um processo social são sempre capazes de projectar novas direcções daquela «intencionalidade», daquela tensão vital, que acompanha toda a vida. A razão pela qual é tão importante estudar as mudanças «imanentes» de função de uma determinada ideia (a passagem de uma unidade de significado para um outro sistema) e também observar as tensões e as aspirações vitais operativas para lá do pensamento teórico, e introduzir antagonismos na vida da sociedade como um todo, a razão porque é tão importante estudar estas tensões reais, diziamos é a de que é extremamente prováx que uma mudança imanente da função seja precedida de uma mudança sociológica, i.e. que as alterações na realidade social sejam a causa subjacente das mudanças nos sistemas teóricos. Uma sociologia do conhecimento que se aproxima destas premissas apresenta-se da seguinte forma: sua a principal tarefa consiste em especificar, para cada fotografia temporal do processo histórico, as várias posições intelectuais sistemáticas em que se baseia o pensamento de indivíduos e grupos criativos. Isto feito, não deo confrontar-se estas diferentes tendências de pensamento como posições
num
debate
meramente teórico, mas devemos explorar as
suas raízes não teóricas, vitais. Para fazermos isto, temos de descobrir primeiro as premissas metafísicas escondidas das várias posi-
,
257
Sociologia do Conhecimento ções sistemáticas; devemos perguntar ainda quais dos epomuados | universais» co-existentes numa determinada época são os corres-
pondentes de um determinado estilo de pensamento. Quando esta-
belecemos estas correspondências, identificamos já os estratos intelectuais que se combatem entre si. A tarefa sociológica propriamente dita só começa depois de ter sido feita esta análise «imanente», que consiste em revelar os estratos sociais que compoem o estrato intelectual em questão. Só pelo papel que estes desempenham dentro de todo o processo, só pelas suas atitudes face a uma nova realidade emergente, podemos definir as aspirações funda- | mentais e os postulados universais existentes num determinado momento que podem absorver já as ideias e os métodos existentes e sujeitá-los a uma mudança de função, isto para já não falarmos das formas recentemente criadas Estas mudanças de função não são de modo algum misteriosas; é possível determiná-las com suficiente exactidão, combinando os métodos sociológicos com os da história das ideias. Podemos, por exemplo, recuar à origem histórica e sociológica de uma ideia e assim, seguindo a sua evolução, determinar, por assim dizer, o «ângulo de refracção» de cada vez que ela sofre uma mudança de função, ao especificarmos o novo centro
sistemático ao qual a ideia se liga, e simultaneamente perguntando
que mudanças existenciais na base real se reflectem naquelas mu-
danças de significado. Como
um exemplo familiar, podemos mencionar a mudança
de função do método dialéctico, o /eimotiv da presente discussão.
A dialéctica foi formulada por Hegel dentro da estrutura de um postulado universal conservador (não discutiremos a história anterior do método). Quando Marx o adoptou, modificou-o em vários aspectos. Vamos mencionar só duas destas modificações. Em primeiro lugar, a dialéctica veio «assentar sobre os pés e não sobre a cabeça», i.e. foi afastada do seu contexto idealistae re-interpretada em termos de realidade social. Em segundo lugar, o termô final da dinâmica histórica tornou-se o futuro, mais do que o presente. Ambas estas tendências, que representam uma mudança de significado no método, podem ser explicadas pela «mudança de fun-
258
O Problema da Sociologia do Conhecimento
ção» provocada pelo impacto das aspirações vitais do proletariado
que Marx defendeu. Podemos explicar as novas características do sistema recordando que a vida do proletariado se resumia aos problemas económicos, e que a sua tensão vital é dirigida para o futuro. Por outro lado, pode mostrar-se também que o sistema de Hegel é sociologicamente determinado. O facto de neste sistema a
fase final do dinamismo da história ser o presente reflecte o sucesso conseguido por uma classe que, com consciência de classe,
apenas quer conservar o já conquistado. Se definirmos, assim, a sociologia do conhecimento como uma disciplina que explora a dependência funcional de cada posição intelectual sobre a diferente realidade social que lhe está para além e como uma disciplina que se fixa a si mesma a tarefa de retraçar a evolução das várias posições, parece então que o historicismo conseguiu apontar o caminho para um possível progresso posterior. Indicadas as premissas sistemáticas que caracterizam o historicismo como o ponto de partida para uma sociologia do conhecimento, sugerimos alguns problemas metodológicos levantados
por esta orientação. Ao mesmo tempo, quisemos também mostrar o método em análise, e descrever as principais «posições» a partir das quais pode ser realizada a elaboração de uma sociologia do conhecimento na presente constelação. Pensamos que uma tal análise do estatuto presente do problema em termos das categorias da sociologia de conhecimento contribuirá para dar a esta disciplina uma noção mais clara de si mesma.
259
Nota EGMORBE o nresd
cr x Corta o pain ia ces ada jon bed
Capítulo | — Introdução .................
1. H. Il. IV.
EIA
Casos as 4
Observações Prévias ...........cccicrseos fase Influências. ......... , O Desenvolvimento daEcon do nn to Crítica da sociologia do conhecimento de Mannheim .
Capítulo Il — Sobre a interpretação da Weltanschauung ..... |. A delineação do problema ..... H. A luta por uma síntese. .....
aid WA
CiSb us
So
HI. Racionalismo versus irracionalismo ............... IV. Weltanschauung: Modos da sua apresentação. As três espécies de sentido. ..... ERAS TS RO isa é V. A estrutura pré-teórica dos produtos culturais: ns ão VI. Como é que a visão geral pode ser cientificamente tra-
ABBMP
ars
ass
ciais Co
MS gia
Capítulo Ill — O Historicismo. ............. Raro apa 1. O Pensamento estático e dinâmico. ..............
H. O ponto de partida de uma teoria do
260
HI. As formas do movimento histórico .............. IV. Historicismo e sociologia. . ............cctrccos V. Padrões dinâmicos no pensamento e na prática .....
149 171 173
Capítulo IV — O problema da sociologia do conhecimento. .
185
1. O problema constelação. .............ciiicoos
11 SPOBCOOETOOTICAS: eis = estos ss ego se ap HI. A sociologia do conhecimento no ponto de vista da moderna fenomenologia (Max Scheler)...........
IV. A sociologia do conhecimento a partir da posição di-
PRATICAS
4: ento store saraEs
Srta aro É a lStS Sao
STS
185
202 2 245
261
ÍNDICE 2º Volume
Capítulo V — A competição como fenómeno cultural. ....... Capítulo VI — A natureza da ambição económica e seu significado para a educação social do homem ..... |. H. Il. IV.
A educação social do homem... ................. O que é o «sucesso»? O sucesso objectivo e subjectivo......... Formas de sucesso subjectivo instável e relativamente
Co
np
q
RR
OA
ade nto DONDE
V. A estrutura social e as oportunidades de sucesso .
VI. O sucesso numa carreira. Ê VII. Os sectores sociais sujeitos e lespravidod de conflito . Ê VIII, Lutando pelo sucesso em geral. ............... EE A. A influência da ambição na experiência individual do tempoe doeu ......... ER erica dci a B. Relações com outros eus . E
C. A auto-observação .............. D. A racionalização (« Vollzugsbedachtheit»). .....
E. A dissipação de sentimentos de ansiedade . F. A adaptabilidade e o poder de decisão. . E G. A experiência da realidade... .. ...cccccttties
262
ez -sasejduexa 000 Z op ue6esn eun esed “ep 'elonpa-sou ap olpmisa ou ojsoduios |oy ou aisa
+gL
aa
LEVAS
SEL
ijeu 4 sonaeuisos $9407984 SORNO SO & 092106 | v'o * "OpÓe:ab ap sepepiun ap usôo
y 'j
tree reenenereecenenenennanes ogseiob ap apepjun “spepijes1 ouoo ogdeJ9b 'ogÍesab ep seis '7 das sagóeIab se SONNE/as SIEJuaLBpuny SOJ98J 'Q **'*"jeros Ogóisod ewn e «ejuasauy» ejougpuaa y '
ver
ces
LEL
eus|gosd op e21bpjo190s a ea1bpjo1g opóejnusos y 'g * (Bunsa687) jeroos ogóisod e — ojas9u09 odnib O "py
GRI
ae
LZL GL
*** euejgoJd op eaLpIsty eamuguios ogóenulos y "gq Et euss|goJd op ezsiAnIsod ogóejnuos y “y
eq
EIS CE CRAC OI OdcES fue DALsag5e188 sep
sagõe1ab sep o9!Bojo190s eua|gold O "||
ce ee see ara
Mae
era
eus|goJd op jenj9e ogóeniis "|
sagõeJab sep eua|goJd Q — IA ojnydey
GOL
cet eeererreereeenenerrerao jeros ogóeio
TOL
-UBJ84!P E LUOD OP109B AP OBÍIQUIE PP apep!|!qixa|) y "||X Sette erre re ren are rnen er enannara eum
Og
-jno ep sody) 'apepijeuossad ap sodi “ogóiquie ap sod!| “IX cas BOILUQUODS OpÓIQUIE BP B9LJQISIY SPepi|iqixaly y "X
Apis v6 pgs
eee eaIuQuoza eznj eu jeossad 0984 O "9 *** eajuguoss eqnj eu ojuauwejJoduioo op ezesmen 'g ese O9JuQUOIa OsSB9NS Op apepijigesnsuaw y 'y
TO
teses
* "OD ILUQUODA OSSS9NS Ojad eIn| y 'X|