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Portuguese Pages 165 [186] Year 2002
cosmopolitismos periféricos ensaios sobre modernidade, pós-modernidade e estudos culturais na américa latina
angela prysthon
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SUMÁRIO Nota Prévia Prefácio: A utopia provinciana por Paulo C. Cunha Filho I. COSMOPOLITISMO & MODERNIDADE Modernismos e cosmopolitismos da periferia: América Latina e cultura urbana no início do século XX Como manda o figurino: João e o Rio na virada do século Dois cosmopolitismos paulistas: Mário de Andrade e Oswald de Andrade II. PÓS-MODERNIDADE & PÓS-MODERNISMO(S) Pós-modernidade e pós-modernismo(s): apontamentos para possíveis definições América Latina e pós-modernidade: as idéias em trânsito Mercados globalizados e cultura: cosmopolitismo pós-moderno Neoliberalismo tropical: a indústria cultural brasileira pós-moderna Diogo Mainardi e a narrativa pós-moderna brasileira Rubem Fonseca e o pós-modernismo literário brasileiro III. ESTUDOS CULTURAIS: AS HISTÓRIAS DA TEORIA Perspectivas teóricas no “Terceiro Mundo” Estudos culturais latino-americanos contemporâneos Estudos culturais brasileiros contemporâneos
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NOTA PRÉVIA Estes ensaios foram escritos ao longo do meu curso de doutorado em Teoria Crítica e Estudos Hispânicos, na Universidade de Nottingham, Inglaterra, entre os anos de 1994 e 1999. Alguns deles foram publicados anteriormente sob a forma de artigo em periódicos especializados, outros foram apresentados em congressos e simpósios, a maioria – com alterações, recortes, acréscimos, naturalmente – formou parte do corpus da tese. * “Modernismos e cosmopolitismos da periferia: América Latina e cultura urbana no início do século XX” foi publicado na revista do Programa de PósGraduação em Letras e Lingüística da UFPE, Investigações, v.10, 1999, pp.57-73. * “Como manda o figurino: João e o Rio na virada do século” saiu na revista do Mestrado em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Goiás, Signótica, v.9, 1997, pp.21-31. * “Pós-modernidade e pós-modernismo(s): apontamentos para possíveis definições” foi publicado on-line no site da disciplina Configurações do Pósmoderno da Universidade Federal de Pernambuco (http://www.virtus.ufpe.br/) em 1999. * “América Latina e pós-modernidade: as idéias em trânsito” saiu nas atas do IV Congresso de Pós-graduandos em Estudos Hispânicos da Grã-Bretanha de 1996, publicação da Embaixada Espanhola em Londres, pp. 47-60. * “Mercados globalizados e cultura: cosmopolitismo pós-moderno” saiu na revista do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Ícone, ano 3, nº4, 1999, pp. 22-33. * “Neoliberalismo tropical: a indústria cultural brasileira pós-moderna” foi publicado em inglês com o título “Tropical Neo-Liberalism. Postmodernity and Brazilian Culture in the Eighties” nas atas da conferência de pósgraduandos em Estudos Latino-Americanos da Grã-Bretanha em Liverpool, Inglaterra, em 1997. * “Diogo Mainardi e a narrativa pós-moderna brasileira” foi publicado em inglês com título “Diogo Mainardi and the Postmodern Brazilian Narrative”
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no livro Brazil and the Discovery of America, editado por Bernard McGuirk e Solange Ribeiro de Oliveira, Lewiston/Queenstown/Lampeter: The Edwin Mellen Press, 1996, pp.162-171. * “Estudos culturais latino-americanos contemporâneos” foi apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (INTERCOM) de 1998. Finalmente, gostaria de agradecer aos Departamentos de Hispanic and Latin American Studies e Critical Theory da Universidade de Nottingham. À CAPES (Fundação Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo financiamento de quatro anos. À FACEPE (Fundação de Amparo à Ciência e Teconologia do estado de Pernambuco) por seis meses de bolsa de pré-doutorado. À Universidade Federal de Pernambuco pela licença para cursar o doutorado. Ao meu orientador, Bernard McGuirk, por seu acompanhamento preciso e sua amizade. Aos colegas Isaltina Mello Gomes e Paulo C. Cunha Filho, da UFPE, pelo apoio constante. Ao professor Wander Miranda, da UFMG, por suas sugestões instigantes. A Augusto Valença, em Amsterdã, por fazer a temporada européia muito mais divertida; Sheila Oliveira, Monica Fontana e Helder Aragão, em Recife, e José Tavares C. de Lira, em São Paulo, por, na medida do possível, fazer-se presentes à distância. À família Cordiviola, em Buenos Aires, por suportar ausências tão longas. Aos meus pais, Walter e Cecília, em Recife, e irmãos Walter, em Paris, e Juliana, em São Paulo, por sempre estarem tão perto mesmo tão longe. A Alfredo Cordiviola, em todos os lugares, por tudo.
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A Utopia Provinciana Paulo C. Cunha Filho “Você é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa você é vítima da educação portuguesa. Você admira Paris, admira as grandes cidades. Se você tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura européia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si.” Fernando Pessoa “É difícil olhar naturalmente para as pessoas e as coisas dos trópicos por causa das cores que emanam delas. Estão em ebulição, cores e coisas. Uma lata de sardinhas vazia, meio-dia, numa calçada, projeta tantos reflexos diferentes que ela adquire para os olhos a importância de um acidente. Impossível não prestar atenção. Lá, como só existem homens histéricos, as coisas tentam imitá-los.” Céline
Cosmopolitismos Periféricos, de Angela Prysthon, não carece a rigor de um prefácio. Esta reunião de ensaios extremamente claros se dá como um documento inteiro, um documento teórico homogêneo - e no meu entender incontornável para quem deseja discutir as mais urgentes questões
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da cultura contemporânea. Os textos de Angela Prysthon foram produzidos nos anos recentes em que ela preparou o seu doutorado em Teoria Crítica na Universidade de Nottingham, no Reino Unido - o que explica, pelo menos em parte, a atualidade de suas referências no campo dos Estudos Culturais. Nos ensaios são trabalhados conceitos de cosmopolitismo, modernismo, pósmodernismo, analisados com extrema originalidade autores brasileiros como João do Rio, Diogo Mainardi, Mário e Oswald de Andrade, e discutidas questões ligadas à indústria cultural, à globalização e ao “terceiro mundo” (expressão, esta última, cujo destino se iguala, no século que finda, ao da multidão de deserdados que se tentou abrigar sob sua própria sombra). Se é verdade o que afirmo de saída, isto é, que os ensaios de Angela Prysthon são tão bem articulados e luminosos que dispensariam um prefácio, em que consistirão, afinal, as linhas que se seguem? Caso o leitor queira fazer a gentileza de seguir adiante, antes de se deleitar com a perspicácia da autora, fique então advertido de que estará lendo apenas o resultado de minha própria leitura do livro de Angela Prysthon, ou seja, estará diante da discussão, fatalmente parcial e precário, de alguns poucos aspectos daquilo que está tão bem tratado no livro, entre muitas outras coisas que a proposta de um texto introdutório me obrigam a deixar de lado. O que me chamou atenção é a maneira precisa com a qual Angela Prysthon recoloca a questão das fraturas entre os centros hegemônicos da cultura moderna e as periferias, e a posição de parte da produção brasileira e latino-americana neste contexto. A reflexão que faço, a partir do que li, é a de que toda produção de regiões periféricas, seja ela qual for, nasce marcada pela contradição que se dá entre o discurso provinciano e a prosa do mundo. Prysthon procura dar as descrições mais finas desta contradição, suas peculiaridades, suas interseções. A partir do que ela expõe nos diversos ensaios, várias perguntas sobre as formas de inserção da produção cultural e das relações sociais são redimensionadas. Sobretudo, para mim, o problema central e atualíssimo do provincianismo. O que seria, efetivamente, o provincianismo? Que atributos representativos estão na base daquilo que é dado como provinciano? Em que sentido poderíamos usar o termo provinciano sem cobri-lo com a capa superficial de conotações inadequadas que estamos acostumados a perceber e pouco interessados em rebater? Grosso modo, o termo “província” sugere separação, de ordem política ou simplesmente administrativa, entre regiões subordinadas a um mesmo poder central. De forma ainda mais aberta, evoca a divisão entre áreas de características urbanas e áreas com características rurais – a cidade e o campo. Neste aspecto em particular, Prysthon joga novas cores sobre a dimensão urbana, sobre as transformações do caráter metropolitano para demonstrar de que forma as cidades do mundo espelharam a cultura,
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notadamente no campo literário. Como sabemos, classificou-se como província o conjunto das regiões conquistadas pelo Império fora de Roma, o que explica a incorporação do termo pela Igreja Católica para caracterizar um conjunto de conventos de determinada região – e, também neste caso em particular, reiterando o estágio de assujeitamento (visto que cada grupo de religiosos era comandado por um “provincial”, atrelado, por sua vez, ao superior da ordem, o que queria dizer, na maioria das vezes, a Roma). Assim, de forma geral, o uso histórico do termo provinciano está carregado de significações recorrentes, evocando sem cessar a equação centro - periferia (ou, para ser bem exato, poder central – posse periférica), além de outras subseqüentes, como o problema da dominação ou do estabelecimento de áreas vistas como “diferentes” mas administradas como se fossem iguais, nessa diferença, para o centro. É desta tradição que decorrem todos os usos pejorativos, paralelos ao sentido estrito: provincianismo indexa desde a pronúncia (risível, naturalmente) de falas de povos habitantes da província como, de forma ampla, seus comportamentos, a sua cultura. O provincianismo também pressupõe conservadorismo e retrocesso: obrigado a retrabalhar as representações oriundas dos centros, o provinciano distorce-as, incapaz de absorvê-las integralmente. Um caso exemplar é a arquitetura e a estatutária barroca brasileira, considerada por Germain Bazin como uma “involução” do barroco europeu. O trabalho de Angela Prysthon refere-se ainda, com acuidade, ao papel do intelectual periférico. Isso, é claro, sem deixar de relativizar as relações entre o local e o global. Creio ter percebido, nas análises da autora, que para o intelectual periférico a província representa um fato de civilização complexo. Afinal, “viver na província” é algo que implica numa correlação de forças perversa, na qual encontra-se implícita a “limitação” do cronotopo provinciano. Os depoimentos são em geral concordantes neste sentido - e, lendo as interpretações de Prysthon sobre João do Rio ou Oswald de Andrade, lembrei de como, certa feita, o poeta Ferreira Gullar referiu-se ao que sentia quando morava em São Luís do Maranhão: “...eu me sentia à margem da história, à margem da vida. A sensação que eu tinha de viver naquela cidade pequena, com preocupações literárias e culturais, era de isolamento, porque me interessava por pintura, literatura e pelo mundo, pelas coisas que aconteciam no mundo. E eu sentia que me manter ali naquela cidade era me manter deliberadamente à margem das coisas. [...] Eu vivi em São Luís até onde eu pude, enquanto eu pude. Depois, realmente, eu não podia mais. Eu me sentia
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sufocado. Eu tinha muitos problemas existenciais: por que estou vivo? O que estou fazendo? Que sentido tem viver, escrever? Essas perguntas me atormentavam e eu não encontrava resposta.” O que espanta no pensamento de Gullar é a expressão “deliberadamente” – a integração ao sistema provinciano sendo, portanto, um ato assumido, não um recalque. É preciso ler atentamente o que a autora escreve para entender como o depoimento do intelectual massacrado pelo sistema provinciano reflete aquilo que, de forma menos emocional, Fernando Pessoa chamava de “síndrome provinciana” e para o qual ele detectava três sintomas: “o entusiasmo e a admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia”. Ora, há nos três estágios algo de extraordinário e que se coloca em absoluto contraponto ao drama exposto pelo poeta Gullar: no provincianismo, não se trata apenas de conviver com um modelo restritivo, mas, de forma mais insidiosa, subordinar-se a um sistema de fascinação. Neste sistema, o que fascina é a completa inadequação entre o que está sendo produzido alhures e os meios de produção local, muito mais do que as dificuldades de inserção da produção local no mainstream cultural. O intelectual, retido nas malhas do provincianismo, está a um só tempo alheio (embora não exatamente alienado, pelo menos não no sentido marxista do termo) e vinculado defensivamente à prosa do mundo. Só os que não produzem admiram a produção, reforçando assim o fato de o provinciano, essencialmente não-produtivo, dar tanta importância à moda, ao progresso e à modernidade. Assim, o provinciano não é o produtor marginal, como às vezes pensamos - mas, como diz Pessoa, “o provinciano pasma do que não fez, precisamente porque não o fez.” A distância entre a marginalidade e a fascinação indica a amplidão do universo provinciano, campo minado onde todo vacilo pode transformarse, sem qualquer ironia, num desastre, de tal maneira que determinados discursos sobre (e contra) o provincianismo são perigosamente provincianos. Ademais, o que não se encontra em Gullar ou em Pessoa é a urgente e indispensável distinção entre o provincianismo e a geografia física. O provincianismo, neles, plasma-se a Lisboa ou a São Luís do Maranhão. Apenas com um pouco de boa vontade poder-se-ia argumentar que, sob os nomes das cidades, escondem-se sentidos mais vastos, como o de um ecossistema onde evolui a intelectualidade lisboeta ou nordestina. Mas é deste equívoco terrível que eclodem sucessivamente análises paradoxalmente provincianas em discursos antiprovincianos, mesmo quando existe um esforço enorme para superar a situação de improdutividade e de
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subserviência. Basta atentar para o que a autora mostra do neoliberalismo tropical ou do cultural business no Brasil. Longe de ser uma questão meramente geográfica, o provincianismo é um sistema estruturado - seria possível dizer: a máquina perfeita da improdutividade. Independe de fronteiras naturais e nem todos percebem, apesar de ser óbvio: há provincianismo em todos os lugares, assim como o discurso provinciano não está preso a nenhum tempo histórico. Permito-me evocar aqui outro depoimento, o do pintor paraibano (radicado em Olinda), João Câmara, para quem esta confusão entre teias de produção cultural e geografia não é inocente: “...o problema é todo de forma e de sentido de ação. Se eu, aqui no Nordeste, visasse uma expressão nacional, estaria tomando um ângulo de partida todo provinciano. Este tipo de viagem é que está implícita na frase de Mário Quintana – não há nada mais provinciano do que viajar. Agora, expressão regional é também pretensiosa como o Diabo, porque se eu definir como campo de ação só um trecho do Nordeste, um estado, uma cidade, minha rua, ainda estaria projetando uma viagem sobre um território grande demais. A carta de viagem do artista é seu mapa interno de operações, daí o sentido de saúde crítica de que ele necessita para enxergar dentro o que veio de fora. Na prática, política e taticamente, gerar uma condição crítica deste ou daquele eixo é resistir às estruturas de alienação que são propostas por força de colonização ou pela sedução do dinheiro e do prestígio. A resistência é então uma luta não só contra o Sul, o Norte ou o Leste-Oeste, mas contra quaisquer mapas fictícios impressos nos centros de pressão cultural.” Como permite enxergar o trabalho de Prysthon, no caso das atividades intelectual e artística, produzir se diz inventar. Em qualquer hipótese, estimular a saúde crítica que, por sua vez, inicia um processo de resistência aos centros, aos diversos eixos centralizadores – estejam eles onde estiverem. A geografia imaginária de todo produtor é vinculada à prosa do mundo. Pelo menos enquanto ele não visa outra esfera de poder, mais baixa, e atola-se no discurso provinciano, que não se refere a um espaço ou a um tempo específicos, mas a um sistema de legitimação passiva de modas, progressos, grandes meios ou modernidade. É evidente que esta abordagem dos processos culturais da modernidade e da pós-modernidade continua
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pecando por uma unilateralidade flagrante. Observado assim, o ser provinciano seria um subalterno, alguém que não cria modas, não inventa o progresso, não incentiva a modernidade, mas apenas repete-os, persegue-os a partir de modelos acríticos. Por outro lado, explicado assim, o provincianismo não teria nenhuma razão de existir, já que seria uma atividade totalmente negativa, inadequada do ponto de vista intelectual, e bastaria verificar a sua própria improdutividade para que o provinciano abandonasse de vez o seu discurso para ingressar na produtividade do mundo. Mas, é o que deduzo da leitura do belo livro de Angela Prysthon, mesmo consciente da redução do seu próprio campo de influência, o discurso provinciano continua sendo gerado porque é, a seu modo, funcional e carregado de razões positivas de manutenção. Porque há, de fato, uma utopia cuja base de justificação é a província: a proximidade, a familiaridade, o imediatismo, a ausência de polêmica. Trata-se, seguramente, de um protocolo de intenções respeitado porque opera num circuito fechado. A influência do provinciano, mesmo diminuta, é imediata; seu projeto é defensivo. Como são conhecidos seus pressupostos e como não há verdadeiramente intervenção criativa, o provinciano protege-se na sua própria improdutividade. A dificuldade cruel é aceitar que, apesar de diretamente subordinado a centros múltiplos e dispersos na inconsistência do contemporâneo, a produção da cultura muitas vezes é eficiente na sua improdutividade. Como se pudéssemos ser cosmopolitas e nos resguardar no nosso provincianismo – esta é a utopia, o “lugar nenhum” de onde o contemporâneo fala.
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I. COSMOPOLITISMO & MODERNIDADE
Modernismos e cosmopolitismos da periferia: América Latina e cultura urbana no início do século XX
O conceito de cosmopolitismo como fenômeno urbano, de avanço tecnológico, da utopia do novo, vai ser importante não apenas para os grandes centros, para as grandes metrópoles européias que se constituíram como arquétipos da modernidade urbana, mas é um dos pilares da formação dos modernismos locais, dos movimentos artísticos de vanguarda nos países periféricos. Ao mesmo tempo, enquanto a atitude cosmopolita vem servindo de modelo para as culturas periféricas desde os séculos XVIII e XIX (este artigo refere-se especificamente à América Latina ), a apropriação do exotismo, de elementos culturais não-europeus nas primeiras aparições do modernismo (influências africanas no Cubismo, primitivismo, jazz, etc) não deixam de fazer parte do cosmopolitismo metropolitano. Edward Said nota, entretanto, que:
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Most histories of European aesthetic modernism leave out the massive infusions of non-European cultures into the metropolitan heartland during the early years of this century, despite the patently important influence they had on modernist artists like Picasso, Stravinsky and Matisse, and on the very fabric of a society that largely believed itself to be homogeneously white and Western. (SAID, 1994, 292) Se, do lado europeu esta influência periférica no modernismo ocidental foi , em parte, constante e deliberadamente omitida da maioria dos relatos históricos desse modernismo “dominante”, do lado dos países periféricos, a hegemonia da visão européia vai provar ser difícil de ignorar ou superar. Nos países da América Latina, a idéia de cópia de modelos metropolitanos foi desde o período colonial e quase sempre durante as épocas anteriores aos movimentos modernistas tida como característica inerente das culturas dessa região, como um fardo a ser carregado por todos os artistas, escritores e pensadores das “margens”. Na verdade, a cópia da cultura européia configurava-se como única forma de legitimar a produção cultural desses países. Neste sentido, a adoção de uma postura cosmopolita talvez tenha um peso, uma gravidade maior na periferia que no centro. Os sonhos tecnológicos e a fascinação pela moda são mais fantasmagóricos (porque mais distantes, porque em geral chegam depois) para o artista periférico e quiçá por isso de alguma forma mais intensos. Convém, entretanto, não admitir ingenuamente de antemão que os latino-americanos seriam mais cosmopolitas que os europeus por esse motivo. De modo geral, inclusive, a afirmação de um produto cultural cosmopolita é mais relevante dentro de um contexto interno (a saber, de um nível nacional) que no contexto amplo exterior (internacional). Como se a cultura cosmopolita fosse mais importante diante de um consumidor local (que estaria supostamente mais exposto aos fascínios das “diferenças em desfile”) que diante de um mercado mundial (já que o que faria “diferença” seria a cor local, a “diferença” regional, ou as marcas folclóricas). Jeffrey D. Needell menciona um padrão comum nas relações entre a cultura dos colonizados e a dos colonizadores, como constando de três etapas: conflito, adaptação e rejeição (NEEDELL, 1993, 12). De acordo com a sua abordagem, estas três fases se estenderiam desde o início do processo colonialista propriamente dito até um período onde já não se tratava de ser colônia, mas neo-colônia (colonialismo cultural apenas, sem que necessariamente existisse vínculo oficial). As últimas décadas do século XIX na América Latina se inscrevem mais certamente na segunda fase do colonialismo cultural, onde é indispensável a adaptação aos moldes
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cosmopolitas europeus, para que os intelectuais (mais provavelmente também parte da elite econômica) destes países vejam a si próprios fazendo e tendo sentido. Desde a época colonial, a problematização da “impossibilidade” da afirmação de uma cultura autóctone e das relações da colônia com a metrópole já se havia configurado como o eixo de discussão sobre a identidade cultural da América Latina. Entretanto, a adoção de modelos culturais europeus em um contexto diferente do original ia além do âmbito cultural, fazendo parte de uma estrutura maior, que também dizia respeito a ordens econômicas e arranjos políticos. A óbvia inadequação de certos modelos para o contexto latino-americano não impediu, contudo, que aparecessem soluções imprevistas, originais e sugestivas de combinação entre os elementos nativos e a imitação da metrópole. Inclusive, simultaneamente a esse movimento de constantemente buscar no estrangeiro (na metrópole) os embasamentos econômicos, culturais e políticos, surge também a ideologia da “identidade nacional”. Justamente quando aparece a noção de que o produto de integração do elemento alienígena com o autóctone vai fundar uma identidade única, vai iniciar uma cultura propriamente nacional. As “identidades nacionais” latino-americanas estariam sempre, portanto, sob o signo da miscigenação, do hibridismo, do “atraso” e, no mínimo, do descompasso (em relação à metrópole). Considerando-se que tanto hibridismo quanto descompasso são conceitos extremamente negativos no pano de fundo dessa época (século XIX e início do século XX), a auto-imagem resultante para os países latino-americanos não pode ser muito positiva. De um lado o hibridismo, que conota, durante o século XIX e grande parte do século XX, degeneração racial e conseqüentemente sócio-cultural (YOUNG, 1995, 1-25); do outro o descompasso, o atraso em relação às organizações políticas, ao avanço tecnológico, às modas culturais do “Centro” desenvolvido. A identidade cultural latino-americana foi, assim, sendo desconsiderada (tanto por europeus e norte-americanos como pelos próprios latino-americanos) ao longo dos séculos por sua “irrelevância” no mundo ocidental, por estar permanentemente neste lugar intermediário entre Mesmo ocidental e Outro exótico. O nó da questão é que a Ibero-América sempre foi vista, mesmo por seus pensadores clássicos, não como autóctone, mas simplesmente como obsoleta. (MORSE, 1988, 127) Apesar da hegemonia de uma visão negativa ou simplesmente negligente das identidades e culturas nacionais latino-americanas (principalmente da parte dos “metropolitanos” europeus e norte-americanos),
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não só despontam os nacionalismos, como também a construção de uma contra-ideologia, que mina e/ou relativiza as hierarquias, e de uma dialética da colonização na América Latina. Embora que entre uma e outra atitude (sentimento de inferioridade ou proclamação de uma superioridade nacionalista) perante o problema da colonização cultural exista o predomínio de uma das duas em distintas épocas; não existe, porém, uma cronologia linear e óbvia que possa definir tal processo. As três etapas da relação cultural entre colonizados e colonizadores descritas por Needell tanto podem se suceder, como se alternar ou mesmo estar em ação simultaneamente. A concepção de culturas “genuinamente” nacionais latinoamericanas faz parte dessa busca de identidade, onde, em determinados momentos, prevalece a oposição e o combate a tudo o que vem de fora, ao alienígena e ao estranho. Nesses momentos também pode começar uma oposição entre cosmopolitismo e nacionalismo e podem aflorar posições conservadoras em relação à cultura popular, à existência de tradições únicas, à originalidade de um povo. Pode vir à tona, da mesma maneira, a lógica do “arielismo” como concebido pelo uruguaio José Enrique Rodó (RODÓ apud MORSE, 1989), onde a América Latina simbolizaria o lado mais “espiritual, cultivado e heróico” do Novo Mundo, enquanto os Estados Unidos seriam o emblema da “vulgaridade, do utilitarismo e da mediocridade da democracia”. Contudo, isso também demonstra que sempre vai ser praticamente impossível sair dos limites de uma tradição e visão de mundo ocidentais (o que pode servir como denúncia da ingenuidade e inutilidade dos nacionalismos isolacionistas e puristas), vai estar sempre presente a dualidade margenscentro. Como se a América Latina fosse estar sempre condicionada (e “condenada”) pela existência dessa arquetípica anterioridade da metrópole européia. Mas, exatamente por fazer parte (ou ter sido obrigada a fazer parte) da tradição ocidental, a América Latina é “forçada” a entrar em contato e participar da modernidade, por mais difícil que isso seja para a situação periférica. A modernidade na América Latina é, de início, apenas um desejo: desejo de tecnologia, de urbanidade, de liberdade e de transcendência dos localismos e provincianismos do subcontinente. A modernidade é o grande projeto ocidental e como parte do Ocidente a América Latina quer alinhar-se a ele. As dificuldades provam ser maiores que o desejo e a modernidade na América Latina fica reduzida a uma modernização atrapalhada, inconclusa e definitivamente desigual. Seja por uma inerente “inabilidade” democrática herdada do estatismo ibérico ou por razões que escapam à lógica historicista e positivista, a modernidade chega para poucos latino-americanos (e não havia chegado tampouco para todos os do Centro, vale lembrar), àqueles que pertencem a uma exclusivíssima elite intelectual, e principalmente,
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econômica. E esta elite periférica vai, em geral, continuar seguindo os preceitos da imitação da metrópole e vai inutilmente correr contra o tempo para compensar o atraso cultural e tecnológico. Ela também tenta ignorar as margens das margens, os ainda mais atrasados dentro do “grande atraso” que seria a condição periférica. Os burocratas e a maioria dos ideólogos, economistas e políticos latino-americanos viam, desejavam e efetivamente trabalhavam para uma modernidade (modernização) calcada em modelos europeus— com isso também trazendo à tona dívidas externas assombrosas, dependência econômica, social e cultural— ignorando que estes talvez fossem “inaplicáveis” à sua realidade. Alguns intelectuais e artistas e os movimentos que estes criaram, entretanto souberam equacionar (até por estarem na privilegiada posição de prescindir de resultados políticos) o desejo de modernidade e cosmopolitismo com uma bem fundamentada dialética da colonização, principalmente depois de um primeiro impacto cheio de deslumbramento e afetação. As vanguardas latino-americanas conseguem simbolizar para a região (mais do que a sua contraparte representada pelos políticos) uma sensação bem mais concreta de pertencer à modernidade, de fazer parte de um novo mundo. Entretanto, não é mais possível ignorar a real modernização que ocorria nas cidades latino-americanas a despeito das irregularidades e impropriedades deste processo. No sorprende entonces que modernidad, modernización y ciudad aparezcan entremezclados con nociones descriptivas, como valores, como espacios físicos y procesos materiales e ideológicos. (SARLO in BELLUZZO, 1990, 32) Algumas cidades latino-americanas, as capitais sobretudo: Buenos Aires, Cidade do México, Santiago, São Paulo, etc, tiveram um crescimento gigantesco entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Um crescimento que significou a expansão das diversidades cultural e tecnológica, cosmopolitização compulsória da cultura urbana nessas emergentes novas metrópoles. Então, a modernidade (urbana, econômica e cultural) latino-americana experimentada neste período prepara o terreno para as vanguardas estéticas. As cidades e a sua evolução em cidades modernas vão ser a principal referência também para os cosmopolitas latinoamericanos. A efervescência sócio-cultural e tecnológica das metrópoles é um dos temas recorrentes dos primeiros modernismos e vanguardas latinoamericanos. Todas as novidades que aparecem junto à cidade moderna entram na poética vanguardista: tramways, cinematógrafos, publicidade,
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automóveis, até máquinas de costuras, esportes, danças, figurinos ilustrados... E os cosmopolitas do mundo inteiro ávidos por essas novidades, dos gadgets e sonhos modernos da nova cidade vão dirigir o seu olhar para um lugar em particular: Paris. Paris é a Meca dos artistas latino-americanos do início do modernismo, é a matriz de onde se originam todos os discursos cosmopolitas, é a fonte do que pode haver de mais heterogêneo nas culturas ocidentais na virada do século. Para Jorge Schwartz, Essa dependência cultural dos intelectuais latinoamericanos que vêem Paris como modelo, mito e meta, aparece definida da seguinte maneira por Horácio Quiroga, em seu Diario de viaje a París: “Para nós, pobres desterrados da suprema intelectualidade, a visão de Paris é a nostalgia de um lugar que nunca vimos e que, hoje ou amanhã, nos leva a conhecer Paris(...).” Esse caráter mítico aparece corroborado por Darío, ao descrever sua chegada a Paris: “E eu ia conhecer Paris, realizar o maior anseio de minha vida. E quando na estação Saint Lazare pisei terra parisiense julguei encontrar solo sagrado”. (SCHWARTZ, 1983, 14) Esta concepção de um Centro de onde emanam todas as possibilidades da modernidade e o qual todos têm de seguir para não correr o risco de estagnação, obsolescência e, sobretudo, provincianismo, é uma das principais características dos primórdios do modernismo na América Latina. Os intelectuais e artistas, tal qual as elites políticas, buscando numa longínqua (e idealizada) metrópole o aval e as garantias para a sua afirmação no mundo moderno. (Não deixa de ser irônico que quanto mais autoconsciência de provincianos, mais essa vontade de copiar, de não ser provincianos, de estar em Paris.) A partir do instante em que os primeiros modernistas (ou prémodernistas) latino-americanos começam a se dar conta da transformação gradual de suas próprias cidades em metrópoles modernas, em “Parises” de dimensões menores, mas comparáveis, a fascinação com o Centro continua e aparecem os paralelismos, as transferências e adaptações de mitos urbanos europeus (parisienses em geral) para o cenário local. As cidades latinoamericanas vêem surgir os seus flâneurs, que esbarram em dândis e demoiselles muito chics, passeando em recém-inaugurados bulevares ou galerias com o último modelo do figurino, esperando a hora do chá para entrar em elegantes cafés. A tecnologia começa a estar ao alcance de uma parcela maior da população urbana. A vivência dessas conquistas da modernidade altera profundamente não só o cotidiano das pessoas (pessoas abastadas, vale ressaltar), como também instiga novas maneiras de pensar e
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intervir sobre a realidade, em termos artísticos, inclusive. As linguagens adquirem um repertório inédito, renovam-se, rompem com o passado. Nesse primeiro momento, a técnica, a moda e um acentuado esteticismo ocupam o centro das atenções neste renovado repertório. A “descoberta” da modernidade na América Latina significa um impulso de otimismo tecnológico e social, a crença absoluta na lógica ocidental do progresso (Esse viés otimista dos primeiros “modernos” latino-americanos vai estar mais evidente em cronistas, nos diários de viagem e nos prosistas mais leves). Porém, a consciência da modernidade e o advento de movimentos de vanguarda latino-americanos significaram também uma nova maneira de conceber a identidade nacional e resultaram numa revisão dos valores culturais próprios ao subcontinente. Ou seja, depois desse primeiro estágio de identificação total com a metrópole, as vanguardas latino-americanas passam a buscar na combinação urbanidade moderna, transnacional e tecnológica, e raízes nacionais e populares a receita de uma modernidade e modernismos estritamente “originais”. La tendencia modernizadora de la racionalidad metropolitana usa lo nuevo como categoría de exportación, para que la red periférica se ponga al día en materia de novedades y suscriba— dependientemente— su dogma centralista de progresso. Esta red periférica, en su conformación latino-americana, recibe lo nuevo como categoría escindida que le habla de sus propios descalces de identidad entre pasado y presente, entre universalismo y regionalismo, entre dependencia y autonomía. (RICHARD in BELLUZZO, 186) É exatamente a tensão entre esses elementos que define uma espécie de novo marco zero —como no título de uma das últimas obras de Oswald de Andrade— (embora o marco zero latino-americano, ao contrário de sua contraparte européia não poderia prescindir do passado— mesmo que um passado revisitado anarquicamente— para existir) para as culturas latinoamericanas. A maioria dos movimentos de vanguarda latino-americanos já identifica desde os seus inícios a necessidade de uma redefinição de papéis do nacional, do popular e da conjunção destes como a emergência de uma cultura cosmopolita que avançava de acordo com preceitos metropolitanos. A partir das redefinições culturais específicas da região, o modernismo e as vanguardas latino-americanas se inscrevem num projeto de redescobrimento da América (da sua América) e das respectivas “argentinidades”, “brasilidades”, “mexicanidades”, etc. Vão entrar no jogo das identidades nacionais modernas latino-americanas, então, o aprofundamento das discussões raciais (nem plano que visa ultrapassar as
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interpretações racistas e positivistas do século anterior), a idéia de fusão e síntese de várias culturas em uma, a valorização das tradições locais e o redimensionamento da noção de cópia e original. De certo modo, se os modernismos periféricos por um lado destroem as ultrapassadas teorias da sua própria inferioridade racial e cultural, por outro preenchem o vácuo ideológico dessa destruição com igualmente míticas noções da superioridade da mescla (tanto racial, como cultural); de uma (superficial) modernização tecnológica como sinônimo de modernidade política e social (o que leva ao esquecimento das enormes desigualdades de classe e de raça nas sociedades latino-americanas); da cultura tradicional, em certos casos, como uma categoria estática onde as mudanças ou elementos externos seriam indesejáveis, em outros como única redenção possível do nacional moderno, como fetiche do exótico, do característico, do original. Vê-se, portanto, a posição extremamente complexa dos modernistas e vanguardas latinoamericanos, quando se impõe, ao mesmo tempo, a retomada de um passado (incluindo o passado pré-colonial), a opção por uma utopia futurista onde raízes e identidades nacionais são irrelevantes e uma visão de mundo que cada vez mais clama por uma sensibilidade subjetiva e um individualismo anti-heróico. Esta tensão entre passado, presente e futuro, entre individualismo e tradição coletiva, promove, por sua vez, uma prática dialética nas artes latinoamericanas modernas; esta tensão está na base do discurso da maioria dos representantes das vanguardas da época (Jorge Luis Borges, Oswald de Andrade, José Carlos Mariatégui, César Vallejo, Vicente Huidobro, entre muitos outros), cuja produção revela a inexorabilidade da experiência latinoamericana: ser Outro e Mesmo, simultaneamente, não podendo ser plenamente nenhum dos dois. É uma condição marcada por “impossibilidades” plenas de possibilidades. Sendo Outro, o espaço latinoamericano vai ser sublinhado como território do exótico, do curioso, do marginal, assim difícil de enquadrar-se num “Cânon universal”. Em sua posição de Outro, a cultura da América Latina vai ser sobretudo o resultado de um passado, de uma tradição “nativa” pré-colonial e da “ultrapassada” atitude civilizatória ibérica (um quase-Outro europeu). De acordo com a concepção hegeliana, portanto, fora da história, fora do Centro e da modernidade representados pelo Norte da Europa. Pois, de um lado, temos as culturas nativas (“primitivas”) e de outro, a tradição “pobre” e “desimportante” dos países colonizadores, Espanha e Portugal. Entretanto, a América Latina também pode inscrever-se como Mesmo em outras visões, pois, como já foi dito antes, não escapa à modernidade —mesmo que incorporando-a de maneira problemática—, nem à tradição ocidental, nem aos ideais do Iluminismo. Mas a América Latina sendo Mesmo vai estar
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sempre sob o signo do atraso e da dependência, sempre vai ser um arremedo pálido de um Mesmo muito mais poderoso que ela. Na encruzilhada entre duas impossibilidades (de ser Outro e de ser Mesmo), encruzilhada perfeitamente encarnada pelo ‘Tupy or not Tupy, that is the question’ do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, a América Latina está exatamente no ponto intermediário entre o auto-exotismo e cultura ocidental, entre o primitivo e o sofisticado, entre o rural e o urbano, entre provincianismo e cosmopolitismo, finalmente entre Outro e Mesmo. A arte das vanguardas e os modernismos latino-americanos captam justamente esse espaço intermediário, esse cruzamento de “impossibilidades” que se torna paradoxalmente fértil nas suas mãos e mentes. Nesse momento, onde o artista latino-americano reconhece o sentido crítico da modernidade dentro do seu próprio contexto, as subseqüentes experiências formais redefinem o projeto de autonomia cultural e política da região em termos mais abertos e sugestivos. Os manifestos que proliferam na América Latina até as primeiras décadas do século XX são um exemplo disso, como demonstra com humor Girondo no manifesto para a revista Martin Fierro: “MARTIN FIERRO” cree en la importancia del aporte intelectual de América, previo tijeretazo a todo cordón umbilical. Acentuar y generalizar , a las demás manifestaciones intelectuales, el movimiento de independencia iniciado , en el idioma , por Rubén Darío, no significa, empero, que habremos de renunciar, ni mucho menos finjamos desconocer que todas las ma anas nos servimos de um dentífrico sueco, de unas toallas de Francia y de un jabón inglés. (GIRONDO in IBIDEM, 262-263) O humor dos manifestos e declarações modernistas latinoamericanas neutraliza e subverte a tendência anterior de considerar-se um fardo ou uma fatalidade o destino cultural das “periferias”. Há, nessa época, um verdadeiro entusiasmo e uma sincera alegria na produção artística e cultural das vanguardas latino-americanas, apesar de todos os horrores e desolação emergidos no mundo moderno. A alegria é a prova dos nove. (ANDRADE in IBIDEM, 247) Lembra-nos mais de uma vez Oswald de Andrade. E esse otimismo não poderia ser mais integral se não estivesse aí no Novo Mundo, na América Latina, com tantas promessas a ser cumpridas, com tantas potencialidades a ser exploradas. O programa das vanguardas reside precisamente em utilizar e propagar a energia fundamental da América Latina, em estender as promessas inerentes da região como base criadora.
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O foco e ponto de partida de um projeto vanguardista estão nas cidades, nas progressivas metrópoles latino-americanas. Nelas, a concentração de energia e promessas do Novo Mundo é maior. Nelas está a prova de uma adesão (desigual, atrasada, ingênua, mas adesão assim mesmo) à modernidade. A movimentação intelectual latino-americana do início do século XX está voltada indubitavelmente para o âmbito urbano e para todo o imaginário ligado à cidade moderna, que ganha um impulso considerável com os novos meios de transporte e comunicação. Cidade e técnica são, pois, as fontes de metáforas mais poderosas mais estimulantes para os vanguardistas latino-americanos. Cosmopolitismo e tecnologia passam a ser, como no modernismo europeu, os pontos-chave nos esquemas modernistas : Cosmopoliticémonos. Ya no es posible tenerse en capítulos convencionales de arte nacional. Las notícias se expanden por telégrafo, sobre los rasca-cielos, esos maravillosos rasca-cielos tan vituperados por todo el mundo, hay nubes dromedarias, y entre sus tejidos musculares se conmueve el asensor eléctrico. (ARCE in IBIDEM, 247) As cidades e o espírito urbano são invocados constantemente nas vanguardas latino-americanas, assim como nas predecessoras européias. Porém, os latino-americanos acrescentam ao sentimento cosmopolita uma dimensão muito mais evidente de mistificação localista da cidade, que por vezes poderia ser resultado de um sentimento nacionalista e reconhecimento da superioridade da diferença latino-americana. Ou seja, ao contrário do cosmopolitismo em geral expatriado europeu, a noção de pátria, de estar em cidades que pertencem a uma determinada cultura é mais forte mesmo nos mais cosmopolitas dos vanguardistas latino-americanos: sobretudo Borges e seu Fervor de Buenos Aires (1923), Mário de Andrade e sua Paulicéia Desvairada (1924). A cidade, para além de sua condição de cosmópolis tecnológica é o centro da construção de uma cultura nacional, é o símbolo da própria identidade nacional (e continental também) que surge da diversidade metropolitana. Ser cosmopolita na periferia , portanto, implica no reconhecimento da diferença latino- americana e na inserção dessa diferença no contexto mais amplo da metrópole moderna, da cosmópolis arquetípica da modernidade ocidental. As vanguardas latino-americanas da primeira metade do século XX operam nos domínios de uma síntese entre o progresso tecnológico e urbano e o universo natural e simbólico da América Latina, como receita para estéticas modernistas autênticas e originais. Poder-se-ia dizer também que estas estéticas estão contaminadas por um sincretismo cultural onde vão ser apropriados tanto os elementos primitivos e exóticos do passado não-
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ocidental, como também tudo o que há de mais ocidental como as noções de progresso e decadência , a cultura tecnológica e seus princípios maquinistas, o individualismo... Cabe lembrar, contudo, que os modernistas metropolitanos também lidaram como uma síntese parecida ao incluir na sua estética passeios pelo primitivismo, pelo exotismo, por sinais de uma exuberância não-ocidental (Picasso, Stravinsky, etc) reforçando a idéia da anterioridade européia e da apropriação desse modelo pela periferia. Ironically, the ‘liberating’ possibilities of an international, oppositional, and ‘revolutionary’ modernism for earlytwentieth century ‘Third World’ writers and artists came into being at a time when modernism itself was recuperating the cultural products of non-western countries largely within an aesthetic of the fragment. (SANGARI in ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 1994, 145) Ou seja, estes produtos culturais não seriam os pontos focais ou fundamentais que originariam esta estética. Seriam fragmentos-bônus de um mundo cada vez mais sujeito à mercantilização da cultura. No caso da estética modernista latino-americana, ao contrário, os contrastes, as intersecções e os produtos desse cruzamento entre o ocidental e o não-ocidental são os motores para a própria constituição da sua cultura e identidade. Se os artistas e intelectuais periféricos professam naturalmente esse “sincretismo cultural”, essa mistura de influências e modelos, nas metrópoles latino-americanas o cidadão comum também vai ser forçado a entrar em contato com esta fusão: arranha-céus imponentes e lá embaixo carros de boi atravessando as ruas, salões de chá à inglesa e casas de candomblé, passeios de domingo nos bulevares e lutas de faca entre compadritos. Os latinoamericanos, principalmente no século XIX, refazem uma Europa a partir da fantasia, mas não conseguem impedir a emergência de elementos incongruentes com esse desejo cosmopolita. Os modernistas/vanguardistas, ao invés de tentar esconder ou impedir a aparição dos desestabilizadores da europeização, promovem e estimulam o aproveitamento dessa estética que desperta uma hibridização cultural consciente na América Latina. Com isso, então, caracterizando uma modernidade (estética) capaz de ir se independentizando aos poucos de uma urbanidade estritamente européia, uma modernidade que depende tanto da projeção de possíveis futuros metropolitanos, como da reelaboração do arcaico dentro de uma cidade cheia de novidades e tecnologia. Será esta a “diferença”, o traço comum latino-americano que ao mesmo tempo insere e afasta a América Latina da tradição ocidental, em seguida dando possibilidades de subvertê-la e inová-la? Esta pergunta só
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pode ser elaborada esquematicamente a partir dos movimentos modernistas e vanguardistas na região, pois mesmo que antes ela estivesse embutida em qualquer manifestação cultural, a organização, o repensar teórico das questões do nacional, da tradição, da cópia e/ou rejeição da cópia e da cidade confrontados com a modernidade tecnológica, urbana e social só se concretizam como área de estudo ou programa estético-filosófico a partir do século XX, com a constituição de movimentos específicos e com o aparecimento de uma consciência dialética por parte dos artistas e intelectuais que os criaram. As concepções “latino-americanas” de modernidade e modernismos, contudo, não são apreendidas ou reconhecidas de imediato. Os modernismos e vanguardas periféricos são simplesmente ignorados, ou são identificados como apenas imitações (mais ou menos) fiéis dependendo da “habilidade” e do cosmopolitismo do modernismo europeu; ou, no melhor dos casos, como parte menor do projeto totalizador de modernidade ocidental. Um dos dados mais importantes, entretanto, é que, embora a existência da consciência moderna e cosmopolita especificamente latinoamericana não tenha muita relevância num contexto internacional, para os latino-americanos ela representa a possibilidade de “redescoberta” e “retomada de posse” dos seus próprios países e tradições, além da revisão e reavaliação da própria tradição ocidental. Como postulou Borges em 1932: Creo que los argentinos, los sudamericanos en general, estamos en la situación análoga [à dos irlandeses dentro da cultura inglesa]; podemos manejar todos los temas europeos, manejarlos sin supersticiones, con una irreverencia que puede tener y ya tiene, consecuencias afortunadas. (BORGES, 1989, 273) Ou seja, a curto prazo o otimismo —ou a visão afirmativa da cultura argentina ou sul-americana— de Borges pode não significar muito em termos da presença no “Cânon ocidental”, mas ao longo das várias décadas que sucederam-se às suas primeiras vanguardas, a cultura latino-americana vem constituindo-se como um corpus que vai conseguir interferir, fazer parte e, inclusive, demarcar novos preceitos para este Cânon.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELLUZZO, Ana Maria de Moraes (org). Modernidade: Vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial/UNESP, 1990. BORGES, Jorge Luis. “El escritor argentino y la tradición”, Obras completas, Buenos Aires: Emecé, 1989.
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MORSE, Richard M. . O espelho de Próspero. Cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. MORSE, Richard M. New World Soundings. Baltimore: The Johns Hopkins University Press,1989. NEEDELL, Jeffrey D. . Belle Époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SAID, Edward. Culture And Imperialism. London: Vintage, 1994. SANGARI, Kumkum. “The Politics Of The Possible”, The Postcolonial Studies Reader (edited by Bill Ashcroft, Gareth Griffiths, Helen Tiffin). London/ New York: Routledge, 1994. SCHWARTZ, Jorge.Vanguarda e cosmopolitismo na década de 20. Oliverio Girondo e Oswald de Andrade. São Paulo: Perspectiva, 1983. YOUNG, Robert J. . Colonial Desire: Hybridity in Theory, Culture and Race. London: Routledge, 1995.
Como manda o figurino: João e o Rio na virada do século De novo será nossa a cidade Pois toda felicidade é um retorno Walter Benjamin, Soneto 37 Entre projeções futuristas e revalorizações do passado, escritores do Brasil na passagem do século tentavam fazer o que o modernismo, depois adotaria como programa: redescobrir o país. Confiança extrema no progresso técnico ou consciência das heranças que pesavam em nosso desconcerto nacional, eis as duas visões que conviviam num mesmo dilema. Francisco Foot Hardman , Antigos modernistas.
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Reconstituir o processo de construção da identidade nacional do Brasil no século XX pressupõe— para além dos primórdios das teorias raciais oitocentistas, das subseqüentes apropriações políticas da idéia de "cultura brasileira" pelo Estado ou mesmo das relações entre cultura de elite universitária e indústria cultural brasileira— uma análise direta de um novo tipo de configuração urbana, da introdução de novos media de comunicação e técnicas de reprodução no início do século (basicamente, novas tecnologias e maquinárias ligadas à cultura) e da influência da cultura internacional (e aspirações cosmopolitas) e movimentos da Belle Époque não só na intelectualidade como também no cotidiano do país. A difusão e proliferação de novos métodos de impressão, de aparelhos de reprodução de imagem e de som e a fotografia são novidades que, se não introduzidas, são popularizadas em escalas inéditas no início do século XX. A essas corresponde o período literário e cultural caracterizado principalmente de "pré-modernismo" pela historiografia literária brasileira tradicional. Período este, até bem pouco tempo, considerado pouco relevante (das duas primeiras décadas deste século só alguns autores isolados entram no cânone literário brasileiro e ainda assim quase que "marginalmente": Euclides da Cunha, Lima Barreto...) no panorama cultural do país. A revisão do "prémodernismo" brasileiro vai ser feita vigorosamente a partir dos anos 80, no trabalho de ensaístas, historiadores, críticos e teóricos como, por exemplo, Flora Süssekind (1984) (fazendo a ponte entre literatura e o novo horizonte técnico do início do século XX), Nicolau Sevcenko (1983) (trabalhando principalmente com a história política e sua interferência nas letras nacionais), Francisco Foot Hardman (1983 e 1992) (analisando a imprensa operária desta época), Raúl Antelo (1989) (tentando incluir no cânone brasileiro a obra de João do Rio/Paulo Barreto), José Paulo Paes (1985) (revendo este período literário como correspondência do art-nouveau nas artes visuais), que se debruçaram sobre esta época (a nossa "Bela Época") para reavaliá-la não apenas como continuidade dos procedimentos parnasianos e/ou naturalistas ou como estágio preparatório para a revolução modernista, mas como fenômeno importante em si e como sintoma de novas relações do artista como o mundo moderno. Um dos primeiros aspectos a serem destacados na Belle Époque brasileira é a modernização urbana e tecnológica do país, em especial, a modernização da capital, o Rio de Janeiro. O Rio civiliza-se, era a frase do momento. Realmente, o Rio começava a civilizar-se, a urbanizar-se, a adotar uma aparência e uma sensibilidade de metrópole moderna,
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uma trepidação de "cidade tentacular", com as grandes obras de Pereira Passos. (MARTINS, 1971, 13) Essa crescente urbanização (sempre tendo como modelo principal a Paris finde-siécle) teve como conseqüência e mola propulsora, ao mesmo tempo, a modernização da sociedade, mais precisamente da camada burguesa desta sociedade. O remodelamento do Rio de Janeiro teve um impacto muito grande tanto para a burguesia como para os homens de letras do país inteiro: A civilização do Brasil divide-se em duas épocas: antes e depois da avenida Central. Entre a rua do Ouvidor e a Avenida vai uma distância como de Sabará a Marselha (JOÃO DO RIO, 1920, 115-6) Nesse período, a "frivolidade" floresceu, em forma de vários fatores que se justapuseram às mudanças mais materiais e estruturais das cidades brasileiras: a saber, moda, flânerie, dandismo e a busca pela tradição cultural genuinamente brasileira. As avenidas alargaram-se, o comércio cresceu espantosamente, os cafés e cinemas se multiplicaram, não só para e pelo "progresso" e evolução capitalista no país, mas também para que os dândis brasileiros pudessem observar essas mudanças, aproveitar-se delas e serem observados na sua elegância rigorosamente copiada dos figurinos parisienses. O espaço público configurando-se cada vez mais como passarela, como teatro. Eles tomavam sorvetes na Alvear ou na Colombo, sempre lotadas; o five o'clock tea fica para a Cavé ou a Lallet, antes do demi-monde invadi-las para o aperitivo. Café Belas Artes e Confeitaria Castelões, Café do Rio ou da Pascoal. Charutaria Paris. (ANTELO, 1989, 11) Nesse sentido, a modernização, em um intrincado processo de interpenetração e mútua influência, foi sendo traduzida —e traduziu as— pelas aspirações cosmopolitas da burguesia ascendente brasileira, a carioca em especial. O papel do intelectual e do artista nesta relação foi principalmente o de explicitar essa fascinação pelo moderno, pelo novo, pela moda e, ademais, esse desejo cosmopolita e transformá-los em palavras-deordem. No caso do Brasil do início do século, um tipo especial de intelectual (que se estaria desenvolvendo com características distintas coincidentemente nesta época) foi quem tomou para si esta tarefa: o jornalista. O gênero adotado por esse jornalista da Belle Époque brasileira para estabelecer o elo entre modernização e cosmopolitismo foi a crônica. Flora Süssekind relaciona a modalidade crônica do início do século com a introdução de novas técnicas e máquinas no cotidiano urbano do país. O jornalismo praticado no período teria, então, características derivadas, por exemplo, da
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instantaneidade fotográfica, da rapidez e do movimento do cinematógrafo, da sonoridade do fonógrafo: Diante dos novos maquinismos, a reação, meio no susto, numa primeira instância, é, pois, de imitação. (SÜSSEKIND, 1985, 47) Segundo a autora, a técnica seria não tanto material de reflexão sobre a linguagem mas sobretudo passível de uma analogia por essa crônica. O cronista brasileiro do início do século para Süssekind ainda não seria capaz de reelaborar criticamente esse influxo técnico. É possível somente uma espécie de flirt rápido com ele. (IDEM, 47) Pode-se acrescentar a essa afirmação as idéias de que, primeiro, tudo ainda era muito novo, muito fresco para que se pudesse ir além do flirt, mas que a marca da técnica estava numa dimensão mais formal, no "como" dessas crônicas e que isso é mais um sinal de que a modernização é parte constitutiva da produção cultural da época. A figura do jornalista/cronista ligada a esse Brasil cosmopolita e em processo de modernização pode ser montada a partir de algumas imagens recorrentes: a do fotógrafo de "instantâneos", a do "cinematógrafo de letras", a do flâneur fazendo "botânica no asfalto" (BENJAMIN, 34), a do árbitro de modos & modas das ruas e dos salões, a do introdutor/tradutor do que vem de fora, do estrangeiro do Outro... Daí, deduz-se as duas relações principais que se conjugam neste arquétipo: as relações com a técnica (ou novos meios e linguagens) e as relações com a cidade, com as ruas (ou seja, com os espaços públicos) — En el intinerario por la ciudad moderna, el escritor encuentra a la técnica, en su relación con la técnica aprende a ver una ciudad nueva para la literatura. (SARLO, 1992, 23) —além de uma terceira que perpassa as outras duas, o olhar para a(s) metrópole(s). Esse olhar é movido por um "desejo de ser estrangeiro" (SEVCENKO, 1983, 36), de ser europeu, ou, mais ainda, de não ser brasileiro, de não ter cor "local": o cosmopolitismo sendo menos uma tentativa de mosaico de muitos lugares e mais um tempo onde modas, idéias, simulacros, novidades e frivolidades flutuam num sem-lugar. A prescrição de uma cidade ideal brasileira (ou latino-americana) vai se dando a partir dos reflexos desses elementos no cotidiano metropolitano nacional. Angel Rama afirma que as cidades latino-americanas ideais não se configuram apenas como cópias dos modelos europeus reais, mas uma somatória de desejos, idéias e imagens literárias:
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(...) we may well suspect that Latin American understandings of the ideal city could not but differ substantially from European models, both actual and imagined. Rather than reproducing precise copies of European models, as has so often been said, the renovated cities on the western shore of the Atlantic resulted in something partly original, offspring of a desire not strictly tied to the sources of its inspiration, a desire that, in striving to realize itself, must necessarily produce a muddy amalgam compounded of dreams and stubborn material realities. (RAMA, 1996, 83) Mas parece evidente que havia um modelo “principal” a ser copiado e que isso naturalmente pressupõe um "lugar", ou no mínimo, uma referência. Essa referência é basicamente a idéia de uma metrópole colonizadora, no caso das aspirações culturais brasileiras essa metrópole é Paris. Paris era a origem, o oráculo, não só dos cronistas brasileiros da época, mas de artistas, urbanistas e, inevitavelmente, políticos. Nada a estranhar, portanto, se para se harmonizar com os pardais- símbolos de Paris- que o prefeito Passos importara para a cidade, se enchessem as novas praças e jardins com estátuas igualmente encomendadas na França ou eventualmente em outras capitais européias. (SEVCENKO, 36) O cronista da Belle Époque brasileira tinha duas obrigações principais frente a esse ímpeto cosmopolita: manter-se sempre "atualizado" (ao mesmo tempo "atualizando" o público leitor) e clamar (em alguns casos, impor) pela adoção das novidades e superfluidades metropolitanas na malha urbana do país. A civilização da cidade pode ser avaliada pelo amor e o valor que nelas dão os habitantes às flores. Paris é a cidade mais civilizada do mundo vista por êste prisma, que é o único verdadeiro. O Rio é lamentável. (JOÃO DO RIO, 1920, 115) Do lado desse Brasil "moderno", urbano, sofisticado e ao mesmo tempo decadente, e extremamente otimista do início do século (quase em contraposição aos Sertões de Euclides da Cunha e à revolta crítica e rebeldia boêmia de Lima Barreto, por exemplo), pode-se eleger como emblema a obra do escritor, tradutor, dramaturgo e, acima de tudo, jornalista e cronista, Paulo Barreto, o João do Rio. João Paulo Alberto Coelho Barreto, nascido no Rio de Janeiro, em 1881, filho de um matemático positivista, começou sua carreira como jornalista aos dezoito anos, escrevendo para diversos veículos e até obter relativo sucesso popular com os artigos e crônicas redigidos na
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Gazeta de Notícias (jornal onde trabalharia até 1913), a partir de 1904. Os anos seguintes veriam mais fama, aceitação, como também infâmia (alegações públicas do seu homossexualismo, caricaturas, alusões literárias ridicularizantes) e sérias inimizades para João do Rio e suas várias personae. Paulo Barreto fez várias viagens à Europa, entrou para a Academia Brasileira de Letras, fundou revistas e jornais. Escreveu sob diversos pseudônimos: Claude; Joe; João do Rio, o mais célebre de todos; Godofredo de Alencar; José Antonio José... Paulo Barreto/João do Rio morreu de infarto do miocárdio, dentro de um táxi, no Rio de Janeiro, em 1921. A trajetória de João do Rio é exemplar, na medida em que oferece uma síntese das relações da intelectualidade brasileira da época com as idéias de metrópole, evolução tecnológica, modernização, cópia de modelos estrangeiros. Mais do que isso, a sua obra sugere uma rica e intensa relação com os extremos da confiança no progresso, no jornalismo e, principalmente, no cosmopolitismo. Nas suas peças, nos seus contos, nos seus romances (dois), mas fundamentalmente nas reportagens e crônicas, João do Rio emprega a apologia do flâneur, o discurso da moda, o domínio das ruas, o sabor da marginalidade boêmia e do underground carioca. Se fazendo isso não ignora a realidade social brasileira, João do Rio suspende a noção de que essa realidade poderia ter algo a ver com a identidade nacional. Embora em sua obra se possa encontrar traços nacionalistas (um nacionalismo talvez clichê e superficial), a teorização sobre uma nação brasileira com especificidades, diferenças, propriedades "únicas" não é propriamente o mais relevante na escrita de Paulo Barreto. Em João do Rio, o dândi e a especulação (1989), Raúl Antelo associa o autor com as noções de máscara, disfarces e espelhos; ou seja, Barreto estaria sempre numa relação mimética com o Outro, sempre numa tentativa de apropriação do Outro (esse Outro de João do Rio quase sempre sendo o europeu, a vida nas metrópoles européias): o lá referencial (sempre Paris) aparece substituindo as experiências primárias do cá. (O cosmopolita) Tenta, ainda, absolutizar-se como parâmetro das trocas, controlando todo lugar, sem desdenhar os ecos mágicos de sua palavra de ordem: a expressão vertiginosa, religião do século. Sua conseqüência lógica é a desterritorialização, processo transitivo da cultura moderna. (ANTELO, 16) Essa "desterritorialização" do cosmopolitismo de João do Rio pode levar a duas conseqüências lógicas no momento de reavaliação do autor e do pré-modernismo como um todo: a primeira delas é a natural dificuldade da historiografia literária tradicional brasileira em admitir João do Rio como expoente realmente pertinente do pré-modernismo (por estar sempre na busca
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desse "nacional por subtração", pela insistência na autenticidade das marcas locais, regionais), vendo nele apenas um "escritor menor", representante de um "gênero menor". E a segunda, movimento oposto, é considerar sua obra como modernista avant la lettre (em termos de literatura brasileira). João do Rio desafia as duas alternativas ao oferecer um dos retratos mais precisos (e provavelmente mais divertidos) do Rio de Janeiro burguês e bas fond da cidade através do uso relativamente original da linguagem jornalística— vale dizer também, da consciência desta linguagem, mas não a ponto de uma ruptura modernista. Ou seja, a sua obra se destaca no panorama das letras brasileiras da sua época, mas não exatamente como vanguarda formal (algo que seria proposto efetivamente na Semana de 1922). João do Rio redimensiona o jornalismo brasileiro na primeira década do século XX quando expõe o seu fascínio com a técnica (por exemplo, na mimesis direta da rapidez do cinematógrafo). Ele utiliza o impulso de otimismo— e um certo deslumbramento— frente à modernidade para ampliar o território da crônica. (Sendo moderno, se não modernista...) Em Cinematographo, por exemplo, livro de crônicas reunidas, Barreto parte, no seu prefácio, para a associação direta com o cinema, para descrever a rapidez, a velocidade do mundo moderno. O cinematographo é bem moderno e bem d'agora. Essa é a sua primeira qualidade.(...) Basta fechar os olhos e as fitas correm no cortical com uma velocidade inacreditavel. Tudo quanto o ser humano realisou, não passa de uma reprodução ampliada da sua propria machina e das necessidades instinctivas d'essa machina. (JOÃO DO RIO, 1909, VII) João do Rio estende essa associação para justificar as suas próprias crônicas e criar o "cinematógrafo de letras": A chronica evoluiu pra a cinematographia. Era reflexão e commentario, o reverso d'esse sinistro animal de genero indefinido a que chamam o artigo de fundo. Passou a desenho e caricatura. Ultimamente era a fotographia retocada mas sem vida. Com o delirio apressado de todos nós, é agora cinematographia,— um cinematographo de letras, o romance da vida do operador no labirintho dos factos, da vida alheia e da fantasia. (IDEM, IBIDEM, X) E aponta várias vezes o caráter fácil e frívolo tanto do cinematógrafo e da crônica, como da própria vida moderna: Esta é a sua feição, o desdobramento das fitas, que explicam tudo sem reflexões, e como o século está cançado de pensar, e como a frase verdadeiramente
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exacta da humanidade na fartura dos casos é o classico: já vi! o operador escreve despreocupado, pouco lhe importando de que vejam a fita, que a comprehendam ou não , ou que tornem a vêl-a. (IDEM, IBIDEM, X-XI) Assim, embora não esteja fazendo nenhuma “revolução” formal no sentido de manifestos ou dimensões profundamente auto-reflexivas da linguagem literária ou jornalística, João do Rio está delineando impressões de um mundo novo, indo na direção da construção dessa nova sensibilidade, da qual o cinema é uma das mais poderosas metáforas. A sintonia de Barreto cronista com a modernidade tecnológica é traduzida também pela afluência de outros gadgets, aparatos e máquinas, principalmente os novos meios de transporte: tramways, automóveis e até aerobuses da sua ligeiramente pessimista e exarcebada projeção para o "O dia de um homem em 1920", ironicamente mais pós- que pré-moderna: Instalou-se neste momento por quinhões, a Sociedade Anônima das Cozinhas Aéreas no Turquestão. O movimento ontem nos trens subterrâneos foi de três milhões de passageiros. As ações baixam. O movimento de aerobus de oito milhões havendo apenas vinte desastres. O recorde de velocidade: chega-nos da República do Congo com três dias de viagem apenas, no seu aeroplano de course, o notável Embaixador Zambeze. (IDEM, 1971, 70-1) A tecnologia para João do Rio, entretanto, não era apenas um delírio futurista e sim algo que se via (existia para ser visto e provocar admiração) e se vivia nas ruas, nos escritórios, nos salões (a função desses aparatos não era eminentemente visível e exterior, mas perdia grande parte de sua força exibicionista, limitada apenas ao domínio doméstico). Em frente, os destroços da antiga Ucharia, embocando na rua Clapp, cheia de prédios grandes com lanternas. Para baixo, os jardins sucessivos da praça até o cais sob o permanente espasmo de um estendal de lâmpadas elétricas. (IDEM, 1990, 113) A tecnologia, além disso, era grande responsável por uma concepção temporal completamente diferente, pela aceleração desenfreada— com seus aspectos positivos e negativos— da vida e das pessoas, de corpos, corações e mentes: O Automóvel ritmiza a vida vertiginosa (grifo meu), a ânsia das velocidades, o desvario de chegar ao fim, os nossos sentimentos de moral, de estética, de prazer, de economia, de amor.(...) Se não fôssem os 120 quilômetros
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por hora dos Dietriche de course não se andaria moralmente tão depressa. O automóvel é o grande sugestionador. (IDEM, 1971, 48 e 50) As máquinas sugeriam, facilitavam, a às vezes até regulavam as paixões humanas, particularmente os "movimentos" das paixões humanas. Na sua obra de ficção os personagens se utilizam freqüentemente dos bondes, locomotivas, navios, automóveis. Os meios de transporte modernos eram um dos promotores dominantes do cosmopolitismo e mundanismo do burguês carioca. E não só isso: eram também os lugares apropriados para os vícios modernos, como o do infeliz Rodolfo de "Dentro da Noite", que não podia ver um braço feminino sem ter ímpetos de espetar-lhe alfinetes e devido à impossibilidade de continuar picando a noiva, parte para as desconhecidas: Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes. (IDEM, 1990,19) A tecnologia, porém, não é exatamente o nervo central do universo barreteano. O avanço técnico, o progresso das máquinas, o desenvolvimento do cinema e dos meios de transporte e comunicação são elementos que compõem a paisagem moderna, são instrumentos também para o cronista e para os seus personagens. E tudo isso em João do Rio converge para a rua. O cronista é um flâneur tentando captar a alma encantadora das ruas, desde as mulheres mendigas da Igreja de São Francisco, dos velhos cocheiros no antigo Largo do Paço, dos tatuadores portuários, dos crimes passionais no velho centro, até os músicos ambulantes, os chopps da rua do Lavradio e da rua da Carioca, às confeitarias cheias de modern girls da recém-inaugurada Avenida Central. Para comprehender a psychologia da rua não basta gosarlhe as delicias como se gosa o sol e o lirismo do luar. É preciso ter o espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpetuo desejo incomprehensivel, é preciso ser aquelle que chamamos flaneur e praticar o mais interessante dos sports— a arte de flanar. (IDEM, 1908, 7) João do Rio exercitava, portanto, a dialética das ruas. A sua obra vai ser não só um reflexo dos anseios cosmopolitas dos abastados cariocas, como também crítica à sociedade daquele tempo, no momento em faz o reconhecimento da precariedade e indigência, da pobreza e da decadência
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suburbana do Rio de Janeiro. O cronista e alguns dos seus personagens fictícios vão ao mesmo tempo fascinar-se e assustar-se com as ruas modernas, vão fazer um itinerário que é, em igual medida, delicioso e doloroso. O aspecto voyeurista em relação aos trabalhos de João do Rio vai ser mais ressaltado nos seus contos, nos quais o autor vai com mais liberdade abordar, além dos aspectos deploráveis do que é observado, as próprias perversões do observador (o que não seria muito conveniente no caso das crônicas para a Gazeta de Notícias). Augusto Guimarães, em "D. Joaquina", passa as noites a contemplar a low life carioca, com especial atenção para as prostitutas velhas nas ruas do antigo centro, "pontos equívocos de dramaticidade misteriosa", e a arrastar o amigo narrador para compartilhar os prazeres da observação da "gente baixa": O certo é que o acompanhava, sem preconceito, sem vergonha, por curiosidade. A vida normal, aliás, a vida dos ônibus e dos transeuntes, passava sem nos ver. A outra, a das esquinas de má-fama, nem dos carros e dos pedestres era vista nem por acaso os via. Augusto estudava. Pobre Augusto! Ficávamos horas a ver repetidas as mesmas cenas de luxúria animal e de sordidez. (IDEM,1990, 114) Mas o flâneur-voyeur também está presente na antologia de crônicas, mais abundante em história urbana do Rio de Janeiro, A alma encantadora das ruas. Nesse volume, a pequenez, os aspectos sombrios da cidade, a pobreza, o marginal são ressaltados e predominam num Rio menos próspero do que se queria crer na época. Contudo, o nosso cronista revela uma paixão, um enorme fascínio, um voyeurismo aparentado com a atitude baudelaireana imediatamente anterior e um olhar para os detalhes , para a "história dos vencidos" que poderia ser ligado às "imagens do pensamento" benjaminianas. Os séculos passam, deslisam, levando as coisas futeis e os acontecimentos notaveis. Só persiste e fica o legado das gerações cada vez maior, o amor da rua. (...) A rua é o applauso dos mediocres, dos infelizes, dos miseraveis da arte. (...) Oh, sim, as ruas têm almas! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas pobres, delicadas, tragicas, depravadas, puras, infames, ruas sem historia (...), ruas medrosas, spleeneticas, snobs, ruas aristrocaticas, ruas amorosas... (IDEM, 1908, 4-11) A Alma Encantadora das Ruas está dividido em 5 partes, "A rua" (espécie de introdução), "O que se vê nas ruas", "Três aspectos da miséria", "Onde às vezes termina a rua" (sobre as prisões no Rio de Janeiro) e a "Musa das ruas".
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Nessas crônicas, Barreto descreve minuciosamente os tipos que povoam as partes menos favorecidas do centro construindo uma variegada coleção, fazendo propriamente a botânica no asfalto sugerida por Benjamin. Aparecem os mais diversos dados, como o significado das tatuagens, a reprodução de orações populares, os títulos da "biblioteca popular", as descrições de tabuletas publicitárias e pinturas anônimas, os relatos de crimes "de amor" e os retratos das cadeias cariocas e seus presos. As ruas, aí, são formadas por cenários e personagens abandonados à própria sorte e à margem das reformas do prefeito Pereira Passos. A alma encantadora das ruas funciona também como um conjunto de pequenos glossários individuais que formam um tipo de complicada e emaranhada sintaxe urbana do Rio de Janeiro de 1908. Ou como queria o cronista, poética urbana: Nesta Cosmopolis que é o Rio, a poesia bróta nas classes mais heterogeneas. A camara regorgita de vates, o hospicio tem duzias de versejadores, as escolas grózas de nephelibatas, a cadeia fornadas de elegiacos. Onde fôr o homem lá estará á sua espera, definitiva e teimosa, a Musa. (...) A Musa Urbana! (IDEM, IBIDEM, 295-6) Sim, a rua é central para o nosso cronista (e contista), mas cabe lembrar que seu olhar é para a rua é claramente um olhar distanciado e superior. Que a sua atração voyeurista não deve ser confundida com um real envolvimento com esse lado mais duro e obscuro das ruas. Seu compromisso com a rua, especialmente em A alma encantadora das ruas é o de simplesmente observar. Aí, o colecionador urbano não vai ser confundido com a sua coleção. Embora em outro tipo de espaço público, vai ser quase impossível dissociar João do Rio do seu objeto de análise e observação. Os salões, os cafés, as galerias, as exibições, as estações de águas e os bulevares são prolongamentos das ruas, como espaços públicos e lugar por excelência para o flâneur. Contudo, eles representam o papel mais extremo das ruas para o cronista (e especialmente um cronista como Paulo Barreto): são ruas ideais, são passarelas para tudo o que é mais notável, mais destacável, mais relatável. Em contraposição às ruas verdadeiras (há toda uma gama de "ruas verdadeiras", como vimos em A Alma...), esses outros espaços possuem diversas vantagens, mesmo sem considerar as óbvias diferenças de função social e de ordem econômica, para o cronista cosmopolita. Primeiro, porque neles não há o que esconder (nada de becos, ruelas escuras ou cantinhos mal iluminados), muito pelo contrário, é bem mais fácil captar a essência dos tipos urbanos que aí estão. Além disso, nessa sua transparência, claridade e visualidade, esses lugares (a outra rua) também se configuram como teatro, justamente um palco onde atores sociais exacerbam seus gestos, suas falas, seus figurinos. Cada um desses espaços
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sendo um microcosmos, onde todos os espécimes urbanos estariam representados. Como pôs Ferdinand Von Gall, ao tratar das galerias de Paris: De ambos os lados dessas vias se estendem os mais elegantes estabelecimentos comerciais, de modo que cada uma de tais passagens é como uma cidade, um mundo em miniatura. (VON GALL apud BENJAMIN, 35) Paulo Barreto vai estar mais à vontade— especialmente levando-se em consideração suas peças e contos— neste microuniverso, onde tudo é mais que real, é hiperreal. A conversar nos salões da "gente bem" carioca ou sentado nos cafés da Avenida Central, ele pode, então, fingir que está neste sem-lugar, nessa Cosmópolis imaginária que é todas as cidades ao mesmo tempo e ser esse dândi universal e arquetípico (Baudelaire, Wilde, Jean Lorrain...): Era o momento verde, o momento do aperitivo outrora absinto, hoje uma série de envenenamentos de cores variadas e de nomes ingleses, a que a leve estética sem inventiva dos cafés e das confeitarias continuava de chamar sempre o momento da água glauca. Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço de confeitaria, os olhos perdidos na contemplação de Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e ruído. (...) Ah! os contos de fada que são as cidades! (...) Que fazer? Os meus olhos descansaram na multidão. (JOÃO DO RIO, 1990, 93-2) O narrador-flâneur está sempre participando do jogo urbano, está atuando como mandam os figurino e o script do cinematógrafo da vida moderna. Ele também tem que ser mais real que o real nesses espaços, ele é tão ator quanto os outros: Flâneur, apache, dândi e trapeiro, não passavam de papéis entre outros. Pois o herói moderno não é herói- apenas representa o papel do herói. (BENJAMIN, 94) Nos prolongamentos das ruas também se pode encontrar a "outra face" em contraposição à claridade das confeitarias, à elegância dos salões de festas, ao charme dos cafés. A dialética das ruas pode ser feita nestas "outras" ruas, nestas não-ruas. Nos prostíbulos, bordéis igualmente entram em cena os heróis e heroínas modernos. E novamente é nos contos de João do Rio que se vai ver com maior incidência e liberdade a aparição deste lado "obscuro" e da inclinação voyeurística de Barreto. Como no único conto onde ele trata abertamente de homossexualismo (feminino), “Histórias de Gente Alegre” (1909), que transcorre desde o Smart-Club na Praia do Russell até uma sórdida pensão no Catete:
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Elsa partiu do music-hall diretamente para casa, pretextando ao banqueiro que lhe ia pôr pequeno palácio, a forte dor de cabeça— a clássica migraine das cocottes enfaradas ou excedidas. E apareceu na ceia da pensão como uma louca, a mandar abrir champagne por conta própria. Quando por volta de uma hora apareceu a figura de larva da Elisa, deu um pulo da cadeira, agarrou-lhe o pulso: "Vem, tu hoje és minha!" (JOÃO DO RIO, 1990, 31) Como já foi anteriormente colocado, mesmo neste processo dialético de flanar por dois Rios de Janeiro (o da Avenida Central e Rua do Ouvidor e o do Porto e dos becos e pensões do Catete), o narrador está sempre naquela posição voyeurística, ele é sempre este dândi superior e deslocado. Elsa e Elisa servem como contraponto aberrante a um narrador que está acima de tudo o que acontece no conto. A obra de João do Rio não se constitui como parte de uma vanguarda estética, muito menos como superação do cosmopolitismo tradicional por parte de artistas e intelectuais periféricos; ela é, ao contrário, a confirmação de um ethos aspiracional e imitativo, é a continuidade estilística do decadentismo europeu do século XIX. Entretanto, essa obra também revela as contradições de uma incipiente modernidade periférica, e traz à tona um Brasil polimórfico e, de certa forma, despido do auto-exotismo da versão hegemônica corrente na época.
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Dois cosmopolitismos paulistas: Mário de Andrade e Oswald de Andrade A cópia cultural praticada durante as primeiras décadas do século XX serve como princípio para ocultar superficialmente as disparidades e os descompassos de um país subdesenvolvido como o Brasil em relação ao ideário e ao concreto progresso industrial europeus. Contudo, ela paradoxalmente precipita a tomada de consciência moderna das contradições brasileiras, tomada de consciência que vai ser desenvolvida, plena e programaticamente, a partir do modernismo. Ao importar idéias, costumes, arquitetura e artigos de luxo parisienses e simplesmente fingir não reconhecer a existência de uma realidade social extremamente dura que oprime a maioria dos brasileiros, em especial a descendência africana e mestiça, a elite realça e sublinha inconscientemente a impropriedade do modelo europeu para o Brasil. Ao estudar a reprodução social brasileira no século XIX, Roberto Schwarz reconhece nessa cópia da cultura européia um deslocamento de idéias, um elemento interno e ativo da cultura brasileira que é simultaneamente problema e solução para o intelectual que reflete sobre o processo de colonização no Brasil: Submetidas à influência do lugar, sem perderem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra
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nova, cujas graças, desgraças, ambigüidades e ilusões eram também singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatalidade (...). (SCHWARZ, 1977, 22) Os artistas, intelectuais e escritores que se alinhavam ideologicamente à Belle Époque brasileira (ou seja, pertenciam ao mainstream cultural do país) levam a extremos a cópia cultural, quase pensando que estão em Paris e não no Rio de Janeiro. Essa “chegada aos limites” da imitação, essa “macaquice” exagerada vai ser importante para os fundadores do modernismo brasileiro porque deixa, de certa maneira, implícito um dos preceitos do cosmopolitismo moderno que é proliferação e multiplicação dos centros. Ou, melhor dizendo, abre às cidades em crescimento (seja no continente europeu ou na América) a possibilidade de ser metrópole e, mais além, ser também essa cosmópolis ecumênica onde toda diversidade co-existe. O Rio de Janeiro não é nem pode ser Paris, mas pode apresentar aos brasileiros um modelo de Civilização e modernidade assim mesmo —pelo menos isso é o que postula quase toda a produção cultural do período e o que prescreve a ideologia da elite. Os modernistas estenderam e problematizaram a questão, dizendo que São Paulo é Paris e Londres e Milão e Lisboa e Luanda e Vera Cruz, ao mesmo tempo, sempre e nunca. O cosmopolitismo periférico vai ser definido pelos modernistas justamente como essa capacidade de assimilar e reprocessar todas as origens e influências culturais dentro dessa metrópole. Os pré-modernistas reverentes, cosmopolitas ingênuos, deslumbrados e acríticos, tentaram, pois, implantar a Civilização num Brasil selvagem e provinciano. Os modernistas deram-se conta da impossibilidade e , mais relevante, da inutilidade desse projeto e propuseram, alternativamente, combinar a “Civilização” da Belle Époque com a “Barbárie”, com a selvageria carnavalizada do Brasil primitivo do passado ou subdesenvolvido do presente. A atitude cosmopolita brasileira a partir dos anos 20, sintetizada pelos modernistas paulistas, dá um passo adiante do deslumbramento, do entusiasmo inocente e dos “complexos de inferioridade” do cosmopolitismo Belle Époque dos cariocas. O modernismo brasileiro resgata aquela busca da identidade, da diferença nacional sem, entretanto, esquivar-se da modernidade urbana e dos confrontos do lado mais “negro” do Brasil com o lado metrópole de aspecto europeu. Não resta dúvida, contudo, que o modernismo não consegue abandonar de todo o auto-exotismo praticado desde o romantismo. A principal mudança (e avanço) é que a miscigenação (racial e cultural) passa de fato a ser ocultado, a razão de celebração e inversão, mesmo que relativa,
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do complexo de inferioridade. Porém, o Brasil ainda é um lugar a ser redescoberto e explorado por sujeitos necessariamente expatriados (cosmopolitas) que vão, somente a partir da “expedição” pelos mais diversos aspectos dessa cultura multifacetada, construindo gradualmente sua própria identidade nacional e definindo o que seria a “diferença” brasileira. O autoexotismo é necessário, então, como ponte entre a “Civilização” (mal ou bem) alinhavada pelos períodos precedentes e toda a história cultural (de subdesenvolvimento) que sempre se tentou apagar. Desta vez, ao invés de tentar mistificar apenas um elemento de diferença —como fez o romantismo com o indígena— o movimento modernista vai idealizar a própria mescla, a miscigenação cultural como solução, como antídoto para o problema da cópia, do atraso e do descompasso periféricos. O movimento modernista brasileiro consegue ultrapassar o cosmopolitismo e a noção de modernidade da Belle Époque também nas relações com a técnica e em como a mesma pode influir na estruturação do próprio discurso e linguagem artísticos. Se o pré-modernismo adota com entusiasmo despreocupado as novidades tecnológicas e gadgets no cotidiano e na temática, não consegue ir muito além disso. A máquina é basicamente recurso temático para escritores e quiçá alguns poucos artistas plásticos (bem poucos) nos primeiros tempos da República. O modernismo de 1922 é que vai realizar a transição das novas técnicas de tema a modelo para estratégias formais. Aí sim (no modernismo) se encontra uma literatura-decorte, em sintonia com uma concepção também diversa do cinema, e pouco preocupada em parecer com as fitas em falar de biógrafos e cinematógrafos. Uma literatura na qual, já incorporados os sustos, dialoga maliciosamente com as novas técnicas e formas de percepção. (SÜSSEKIND, 1987, 48) A modernização tecnológica aparece para os modernistas como repertório inédito de temas, de imagens e, sobretudo, de novas maneiras de organizar o discurso (seja visual, sonoro ou verbal). Tal repertório – associado ao reprocessamento das origens indígenas e africanas do brasileiro – forma a base de uma estética nova, de uma profunda reestruturação na cultura brasileira Finalmente, nessa nova estética, são considerados não apenas o sucesso e a adaptação à uma modernização alienígena e forçada, mas os pontos de contradição e desproporção, os anacronismos e as incongruências. O reaproveitamento de tais desvios é algo que foi apreendido, porém, das tendências vanguardistas da metrópole, com suas propostas de ruptura com a ordem e a estruturação das linguagens estabelecidas. O movimento
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modernista brasileiro (que começa em 1922, mas estende-se até as experimentações concretistas nos anos 60) é a realização do flerte com a modernidade urbana iniciado pelos pré-modernistas, acrescentada do espírito vanguardista de ruptura formal com o passado e de criação estética do Novo. O elemento que se destaca, todavia, neste exercício de construção do moderno no Brasil é a utilização simultânea do novo e do arcaico, do futuro (e da ruptura com o passado) e do reaproveitamento do passado —algo que, em si, poderia ser considerado como expressão antimoderna. Essa busca pelo popular, o tradicional, o local e o histórico não era tida como menos moderna, indicando, muito ao contrário, uma nova atitude de desprezo pelo europeísmo embevecido convencional e um empenho em forjar uma consciência soberana, nutrida em raízes próprias, ciente de sua originalidade virente e confiante num destino de expressão superior. (SEVCENKO, 1983, 237) Assim, o modernismo brasileiro rejeita o cosmopolitismo da Belle Époque (um cosmopolitismo paradoxalmente “provinciano”) e coloca em seu lugar a dialética do cosmopolitismo. Então, na dialética do cosmopolitismo inaugurada pelo modernismo brasileiro vai-se encontrar uma maior complexidade no que diz respeito aos termos e elementos que definem a imagem do Brasil para os próprios brasileiros. A síntese resultante dessa dialética é um auto-retrato mais preciso de um país que começa a rever e reformular (até certo ponto, diga-se de passagem) certos pilares da sua identidade cultural: a ideologia do branqueamento, o paternalismo, a preguiça, o clientelismo... Se o modernismo não é a radicalização completa, até o ponto da destruição dessa identidade cultural estabelecida ao longo de muito tempo, ele é, ao menos, o momento de tomada de consciência desta identidade, como se o Brasil pela primeira vez se visse através do espelho. Não foi fácil, evidentemente, chegar a essa autoconsciência “brasileira”. A elite intelectual (tanto no Rio de Janeiro, como em São Paulo na primeira década do século) está mais interessada em praticar seu francês, seguir o último figurino vindo de Paris e compôr versos parnasianos ou simbolistas, no melhor dos casos. Apesar do sucesso popular de obras “nacionalistas” como Os Sertões de Euclides da Cunha e Urupês de Monteiro Lobato e do início de uma “tradição da cultura nacionalista militante” (IDEM, IBIDEM, 223-257), o padrão hegemônico da cultura brasileira ainda é calcado na imitação da cultura européia e, sobretudo, na ocultação das raízes nacionais populares. A dialética do cosmopolitismo começa a ser construída a partir do contato e intercâmbio de jovens artistas brasileiros com
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a arte modernista de vanguarda internacional e de uma apropriação menos fechada das idéias do nacional emergidas em Cunha, Lima Barreto ou Lobato, entre outros. O movimento modernista brasileiro só se faz possível a partir da dialética do cosmopolitismo, e esta decorre de uma relação distinta da elite brasileira com a metrópole e do contato com a vanguarda internacional. Em resumo, uma das razões pelas quais o cosmopolitismo brasileiro transformase é porque no mundo inteiro a noção de cosmopolitismo está se modificando, está enriquecendo-se das experiências locais e desse gosto pelo exótico. Alguns membros da elite intelectual e econômica paulista, como Paulo Prado e Olívia Penteado, captam perfeitamente o zeitgeist e tornam-se os principais patrocinadores de uma arte brasileira que preencha essas necessidades do cosmopolitismo moderno. As artes plásticas e a música são as pontas-de-lança do movimento, com nomes com os de Anita Malfatti, Lasar Segall, Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald revolucionando o panorama cultural do país, em especial o da cidade de São Paulo. As transformações das artes plásticas e musicais impõem-se também em manifestos que lançam novas diretrizes para a literatura brasileira, em especial para a poesia, veículo por excelência para esse cosmopolitismo dialético em formação. Oswald de Andrade e Mário de Andrade vão ser os principais catalizadores dessa nova poética; e não apenas como homens de letras, mas como os representantes mais destacados de um “Renascimento” brasileiro globalizante. Na nova poética nascente, a cidade de São Paulo ocupa o lugar central, assim como o Rio de Janeiro na Belle Époque. Porém, ao invés de ocultar-se e se abafar os “aspectos de miséria” urbana ou evitar os bairros periféricos como fez a maioria dos literatos aclamados do pré-modernismo, os modernistas procuram ver nos interstícios dessa cidade, nos contrastes entre centro comercial burguês, proletariado industrial e periferia suburbana os pontos-chave para a compreensão da modernidade, não só a paulistana ou a brasileira, mas a modernidade como projeto universal. O modernismo brasileiro elege como locus poético a cidade, em especial São Paulo, e define um tipo de urbanidade diferente daquela da Belle Époque. Afinal, a modernidade não é feita apenas de confeitarias, bulevares e edifícios artnouveau, mas sobretudo da multidão, dos proletários a caminho do trabalho nas fábricas, do cotidiano, da sujeira e da poluição das ruas. A literatura brasileira, a partir da Semana de Arte Moderna, dos manifestos da Poesia Pau-Brasil e Antropófago, toma um rumo cada vez mais urbano, mas sem perder de vista as origens rurais ou o passado selvagem dos homens (brasileiros ou não) que constroem essa metrópole.
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A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história. (OSWALD DE ANDRADE, 1990, 45) São Paulo configura-se como cenário ideal para o cosmopolitismo dialético dos modernistas. Se o modernismo conforma na sua prática poética uma outra concepção de cidade, assim o faz porque outro tipo de cidade está em jogo. O ritmo acelerado de crescimento da capital paulista desde os anos da Primeira Guerra Mundial —em escalas inéditas para os brasileiros; a imigração européia e oriental contribuindo para uma diversidade étnica e cultural inigualável em termos de Brasil, uma arquitetura que se desenvolve na direção de um ousado modernismo (em contraste com o floreio beaux-arts carioca). Todos esses fatores fazem de São Paulo o terreno mais propenso para a formação de uma vanguarda brasileira. São Paulo é a epítome da chegada da modernidade ao Brasil com seus primeiros arranha-céus, seus viadutos de ferro, suas fábricas e seus bairros de operários. Nos anos 20, São Paulo dá esse salto “rumo ao progresso” e começa a simbolizar o que há de mais avançado, civilizado e moderno no Brasil. Em contrapartida ao cosmopolitismo carioca, a noção de Civilização paulista tem mais a ver com o fruto de trabalho e influências das mais diversas origens (culturais, étnicas, econômicas) que com o esforço isolado de uma elite ilustrada. Essa valorização do trabalho e da diversidade persiste até hoje como característica cultural de São Paulo e seus habitantes. Os modernistas concentram-se na diversidade da metrópole e nas diferenças entre os diversos elementos que a compõem (sejam estas diferenças de classe, de raça ou de sotaque). Daí também a recorrência a procedimentos como “polifonia” e “simultaneidade” para caracterizar o discurso modernista. São Paulo é para o movimento modernista de 22 a concretização da simultaneidade espacial (representada pela presença de muitas culturas e raças nos diferentes bairros étnicos a partir principalmente da imigração do início do século) e temporal (o passado provinciano dos bairros e dos caipiras, o presente dos bondes e avenidas, o futuro das indústrias e arranha-céus) e da polifonia de todas essas vozes, línguas e cores soando e ecoando no Vale do Rio Tietê. Como se, dona de um poder quase mágico, a metrópole moderna concedesse para os seus habitantes a possibilidade do cosmopolitismo; essa é a cidade que dá ao poeta modernista finalmente a chance de ser e não ser brasileiro. Sou brasileiro. Mas além de ser brasileiro sou um ser comovido a que o telégrafo comunica a nénia dos povos ensangüentados, a canalhice lancinante de todos os homens e o pean dos que avançam na glória das sciências, das artes e das guerras. Sou brasileiro. Prova?
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Poderia viver na Alemanha ou na Áustria. Mas vivo remendamente no Brasil, coroado com os espinhos do ridículo, do cabotinismo, da ignorância, da loucura, da burrice para que esta Piquirí venha a compreender um dia que o telégrafo, o vapor, o telefonio, o Fox-Jornal existem e que A SIMULTANEIDADE EXISTE(N). (MÁRIO DE ANDRADE, 1972, 266) A cidade dos modernistas apresenta outra diferença em relação à cidade idealizada da Belle Époque carioca. A metrópole periférica moderna não pode ser apenas a sombra de Paris. São Paulo não olha apenas para a capital francesa, não pode comportar um só modelo para sua identidade. Aliás, uma de suas características precisamente é a profusão de modelos ou impossibilidade dos mesmos, é essa falta de identidade, que Willi Bolle chamou de “ausência de caráter”, inspirando-se no Macunaíma de Mário de Andrade: (...) Uma cidade “sem nenhum caráter” se prestava perfeitamente às intenções do escritor modernista, no sentido de abrir um processo de revisão contra a tradição literária brasileira e redimensionar o projeto de identidade cultural do país. (BOLLE, 1989,24) Os modernistas, portanto, encontram em São Paulo um vácuo de identidade, de limites redutores e preenchem-no com o discurso do cosmopolitismo dialético, onde vai ser possível ser universalista e localista, onde a massa urbana converge conjuntamente com as oligarquias dos industriais, comerciantes ou dos velhos latifundiários para o centro, onde os imigrantes vão esbarrar nos caipiras mestiços. A Paulicea desvairada (1922), de Mário de Andrade, abre precedente não só para a composição, como para a publicação (como é o caso do Losango Cáqui, “diário” dos três meses em que Mário serviu como militante do tiro-de-guerra, escrito em 1922, mas publicado quatro depois) de outros livros de poesia baseados nos mesmos princípios da sua estética polifônica e numa associação inerente à cidade de São Paulo. Em quase todos os seus subseqüentes volumes de poesia, aparecem como foco os temas metropolitanos e as alusões à cidade de São Paulo, sob as formas modernistas e pluritonais descritas, defendidas e praticadas por Mário desde seu volume de estética A escrava que não é Isaura (publicada em 1924, mas escrita em 1922) e da Paulicea. O cosmopolitismo nesta fase aparece como elemento básico e até inerente neste contexto. A partir da Paulicea, a literatura brasileira enriquece-se desse universo temático concernente à identidade metropolitana e desde então, Mário decide expor com seus poemas os mecanismos e paradoxos das experiências urbanas paulistas. O poeta procura
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unir estrutura e conteúdo neste empreendimento, daí a opção pela estética da simultaneidade. Num poema como “Rondó do tempo presente”, do Losango Cáqui, por exemplo, o resultado final depende dessa escolha da referência musical, da disposição pelo contemporâneo (no tempo do poema, e no tempo do poeta) e , principalmente, pelo múltiplo, característica permanente de São Paulo: Noite de music-hall... Não, faz Sol. É meio dia. Hora das fábricas estufadas digerindo (...) Olhar especula para todos os lados! (...) Os meninos-prodigios caminham seculovinte (...) Seculo Broadway de gigolôs, boxistas e pansexualidade! Que palcos imprevistos! Programas originais! (...) Faz Sol. É meio-dia... Noite de music-hall... (ANDRADE, 1980, 1045) Mário de Andrade consegue aí, através da estrutura repetitiva e circular do rondó e da profusão de elementos, lugares e personagens, representar um certo aspecto rítmico da modernidade paulista e autenticar uma urbanidade arquetípica numa metrópole sulamericana. Este escopo urbano ecoa mesmo na poesia mais tardia do escritor, na qual São Paulo continua sendo tema recorrente e indispensável. Lira Paulistana (1945), uma das últimas obras de Mário de Andrade, publicada postumamente inclusive, volta a celebrar São Paulo, desta vez com menos “desvario” e mais nostalgia, como para relembrar a Paulicea, sem, entretanto, o mesmo entusiasmo “arlequinal”, nem tanta alegria da diversidade. A alucinação e a euforia dos anos 20 são substituídas pela melancolia da maturidade, sem esquecer, contudo, o amor pela cidade, um amor mais difícil, mais contido e menos evidente que o da Paulicea: Ruas do meu São Paulo, Onde está o amor vivo, Onde está ? Caminhos da cidade, Resposta ao meu pedido, Onde está ? (IDEM, IBIDEM, 283)
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Isto não significa, porém, que há na São Paulo dos anos 20 uma harmonia social e cultural nem que todas as classes adotam a estética modernista como acontecia com o ideário da Belle Époque no Rio de Janeiro, onde mesmo as classes menos abastadas aspiravam aos figurinos europeus utilizados pela elite. É necessário lembrar que, embora apoiados e patrocinados por famílias da aristocracia agrária —em declínio— paulista (Prado, Penteado), os vanguardistas não eram apreciados pelos novos-ricos do setor industrial e comercial, que preferiam as tendências mais convencionais em matéria de artes e literatura. Diferentemente da Belle Époque carioca, a elite paulista não se caracteriza como bloco homogêneo no sentido da sua influência cultural. Aliás, aos artistas e escritores modernistas já não interessa tanto a associação direta com a elite. Muito pelo contrário, a vanguarda paulista em geral era também composta por exercícios antiestablishment político, social, econômico e até acadêmico, como no caso dos manifestos de Oswald de Andrade que dirigem-se explicitamente contra a erudição empolada dos doutores e bacharéis e contra a catequese ocidental na insultosa “Ode ao burguês” de Mário de Andrade. Os modernistas paulistas substituem, então, o deslumbramento dos cariocas com a técnica, a modernidade e as modas culturais lançadas na metrópole por uma anarquia subversiva que iria utilizar todos esses elementos citados acima para revolucionar a história cultural brasileira. A dialética do cosmopolitismo funciona neste processo como agente de um “ufanismo crítico”, como chamou Roberto Schwarz ao procedimento utilizado por Oswald de Andrade para compor a poesia pau-brasil: (...) o Brasil pré-burguês, quase virgem de puritanismo e cálculo econômico, assimila de forma sábia e poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pósburguesa, desrecalcada e fraterna(...).(SCHWARZ, 1987,13) Impõe-se, a partir desta apropriação “tropical” da modernidade, uma revisão do tradicional binarismo identidade nacional versus cosmopolitismo, presente na cultura brasileira desde o período colonial e acentuado a partir do romantismo. Quiçá a mais bem realizada transição brasileira moderna do universo popular e “autenticamente” brasileiro para o literário, seja precisamente um dos frutos mais diretos das “expedições brasileiras” de Mário de Andrade, da influência da obra de Koch-Grünberg, e de algumas idéias latentes nos outros modernistas, especialmente em Oswald de Andrade: o Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928). Nessa singular “rapsódia”, Mário de Andrade apresenta uma série de oposições fundamentais: a saber, entre o urbano e o rural, entre
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Civilização e Barbárie, entre o progressivo e o retrógrado, entre o moderno e o primitivo para relocar e redefinir tais oposições. O herói sem nenhum caráter é confrontado ao longo dos dezessete capítulos do “livro” —categoria escolhida por Mário para (não) definir Macunaíma— com diversos mitos indígenas, histórias populares, do folclore, símbolos das religiões afrobrasileiras, como também as máquinas, os estrangeiros e a paisagem da metrópole. Esse “herói da nossa gente” vai servindo simultaneamente como símbolo e agente de uma identidade brasileira em construção. Ou seja, tal identidade vai ser a síntese que Macunaíma vai fazendo a partir das referidas oposições e elementos. Contudo, em nenhum momento o escritor pretende que esta síntese seja unidimensional. Muito ao contrário, tanto a estrutura rapsódica da obra, como a composição fragmentária e polissêmica do personagem principal facilitam um processo múltiplo e des-geografizante da identidade cultural brasileira. Mário firmemente renega a possibilidade de que a “brasilidade” tenha algo a ver com a simples enumeração e catalogação de peculiaridades regionais ou bairrismos redutores. Ele superpõe as lendas colhidas pela pesquisa etnográfica às peripécias romanescas, sem que a trajetória de Macunaíma seja necessariamente linear ou se estabeleça uma hierarquia entre seus pontos. A principal linha narrativa do romance— mais “romance” no sentido folclórico que no sentido de forma burguesa— concerne à busca pelo “muiraquitã” (um amuleto mágico) perdido. No início do livro somos apresentados a um herói índio-negro, com “cara de piá”; a partir do cap. V, Macunaíma “fica” branco. Não só a identidade étnica do nosso herói é flutuante como também sua consciência é móvel e dispensável. Macunaíma não precisa de lógicas, tempos ou justificativas morais, principalmente sendo herói e representante do povo brasileiro: No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá e deu uma chegada até a foz do rio Negro pra deixar a consciência na ilha de Marapatá. Deixou-a na ponta dum mandacaru de dez metros, para não ser comida pelas saúvas. (ANDRADE,1992, 29) Macunaíma parte do mato-virgem da Amazônia rumo a São Paulo em busca do muiraquitã, pedra verde que havia sido presenteada por sua mulher, a Mãe do Mato que foi pro céu, Ci. Para isso ele tem que percorrer o Brasil inteiro, vencer o gigante Venceslau Pietro Pietra e entrar em contato com inúmeras alegorias, mitos, lugares e subtramas. Ao chegar a São Paulo, ele confronta-se pela primeira vez com a modernidade. Mário de Andrade, neste momento, começa a elaborar uma das mais importantes reversões de valores e de percursos da história literária brasileira. Macunaíma como explorador desafia a imagem tradicional do explorador branco (sim, ele é
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branco, mas um mestiço tornado branco), ocidental, desbravador de terras exóticas. Nosso herói percorre lugares exóticos, mas é precisamente a modernidade o lugar do exótico em Macunaíma. Ou seja, a modernidade e tudo o que ela representa (a “civilização européia”, as indústrias, as máquinas, a urbanização da cidade de São Paulo) vão sendo exoticizadas no romance: A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina. (...) Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! (IDEM, IBIDEM, 31-2) A introdução da cidade e especificamente da cidade de São Paulo na história define Macunaíma como uma descoberta do Brasil às avessas. Macunaíma descobre o Brasil moderno e descobre-se a si mesmo no processo. Esse caminho invertido de descoberta da modernidade como outridade exótica (representada em Macunaíma pelas cidades e máquinas) vai ser evidenciado no capítulo IX, com a “Carta pras Icamiabas”. Nessa carta, Mário executa uma paródia quase à moda de seu então amigo Oswald de Andrade. Macunaíma assume o papel, além de descobridor, de narrador da descoberta, repetindo Pero Vaz de Caminha, ao descrever as habitantes de São Paulo: Andam elas vestidas de rutilantes jóia e panos finíssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra ordem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram, no brincar, que enumerá-las, aqui, seria fastiendo porventura; e, certamente, quebraria os mandamentos de discrição, que em relação de Imperator para súbditas se requer. (IDEM, IBIDEM,61) Para Silviano Santiago, é exatamente aí na “Carta pras Icamiabas” onde Mário consegue indicar o “entrelugar” da cultura brasileira: (...) é aí que se faz ouvir o conflito entre o discurso do dominador e do dominado. É neste pouco pacífico entrelugar que o intelectual brasileiro encontra hoje o solo vulcânico onde desrecalcar todos os valores que foram destruídos pela cultura dos conquistadores. É aí que se constitui o texto-da-diferença, da diferença que fala das possibilidades (ainda) limitadíssimas de uma cultura popular preencher o lugar ocupado pela cultura erudita,
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apresentando-se finalmente como a legítima expressão brasileira. (SANTIAGO, 1982, 39) Macunaíma é, pois, ao mesmo tempo, descoberta e confirmação da diferença. Com este livro, Mário de Andrade efetua, então, a sedimentação de uma linguagem que, se não quebra com certas tradições formais do relato (como fazem outros modernistas, especialmente Oswald de Andrade), define uma visão de mundo especificamente brasileira. Uma cosmogonia composta das contradições com as quais o homem brasileiro se confronta no momento de produzir cultura. Mário revela, através do Macunaíma, o seu primeiro “auto-retrato do artista como antropólogo”. Nesta busca das raízes de uma cultura brasileira original, o autor paulista se embrenha não apenas no passado distante de tradições semi-extintas, de mitos e lendas esquecidos, mas na conjunção destes com a modernidade estética proposta pela Semana de 1922. Mário de Andrade, a partir das viagens pelo Brasil, das pesquisas antropológicas e das obras decorrentes delas, estende o cosmopolitismo inerente dos seus primeiros trabalhos poéticos sobre São Paulo, até transformá-lo em cosmopolitismo dialético, ao transformar o deslumbramento tipicamente europeu com a modernidade tecnológica, em apreensão dessa modernidade através dos sábios olhos “primitivos” de Macunaíma. Macunaíma torna-se o cosmopolita ideal nesta nova acepção, já que ele pode manipular e trafegar as várias faces e fases do Brasil. O Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, outro marco da concepção brasileira modernista de cosmopolitismo, define outro momento crucial da cultura brasileira no século XX: a inauguração de uma teoria da cultura que propõe superar a lógica da dependência e do descompasso nacionais. A partir dele e apesar dessa condição de manifesto (modismo já repetido ao desgaste no final dos anos 20), é precipitada uma interpretação que tenta desafiar e inclusive inverter os tradicionais binarismos original / cópia, metrópole / colônia, centro / periferia. Segundo essa interpretação da antropofagia, esses binarismos já não se podem sustentar diante do argumento de que a cultura original não se copia, digere-se: Perguntei a um homem o que era o Direito. Elle me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o. (ANDRADE, 1972, 270) A antropofagia interpretada dessa forma retira do descompasso, da ignorância nacionais a carga negativa, transformando-as em energia criativa, em pontes para a diferença brasileira. Involuntária e intuitivamente, Oswald torna-se praticante da “dialética rarefeita” de que fala Paulo Emílio Salles Gomes, e precursor de certos aspectos do desconstrutivismo e de teorias pós-
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coloniais de afirmação das identidades nacionais periféricas. (McGUIRK e OLIVEIRA, 1996) Cabe relembrar, entretanto, que o Manifesto Antropófago faz parte de uma tendência mundial da época de buscar no primitivo, no folclore, elementos para a subversão modernista. Diga-se de passagem que Oswald de Andrade não estava sozinho, nem era o primeiro a apostar na “selvageria” como fator de composição de uma identidade cultural brasileira. Este segundo manifesto tem muito do auto-exotismo dos românticos, por mais que seu autor os repudie veementemente: Nunca fomos cathechisados. Fizemos foi Carnaval. O indio vestido de senador do Imperio. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas operas de Alencar cheio de bons sentimentos portuguezes. (ANDRADE, 1972, 270) Como mais ou menos na mesma época Mário de Andrade no seu Clan do Jaboti (1927), o tom é de mistificação da temática “nativa”. Mas esse tom é ainda mais acentuado e acrescentado de tintas xenófobas, como observa Nicolau Sevcenko: A temática e a técnica são semelhantes às do primeiro manifesto; o que se nota agora, porém, é um acirramento da atitude militante, passando do tom axiomático para o categórico e da atitude decidida para uma disposição intransigente. (SEVCENKO, 299) As utopias selvagens de Oswald são motivadas, portanto, pelo paradoxal gosto moderno pelo primitivo despertado pelas vanguardas européias e por um ímpeto nacionalista resultante do contexto econômico-político-social brasileiro da época (queda do café, surgimento de grupos políticos nacionalistas, ascensão do movimento socialista brasileiro através da figura de Luís Carlos Prestes, etc). A originalidade e a força da antropofagia oswaldiana residem menos no nacionalismo e na maneira como sua fórmula é apresentada (o improviso, os jogos-de-palavras, as piadas, a paródia continuam as estratégias estilísticas fundamentais de Oswald de Andrade...) e (muito) mais no impacto que a idéia da “digestão” da cultura dos colonizadores tem nas gerações posteriores. O conceito, de fato, é muito sugestivo. Mais do que isso ele perfeitamente preenche a necessidade de afirmação da periferia em relação à metrópole. Trata-se de uma teoria que simultaneamente inverte os papéis de colonizador e colonizado, abole a noção de posse ou primazia de um código sobre outro, celebra e faz o elogio da diferença e redimensiona o problema do atraso nacional. O Manifesto Antropófago, mesmo como produto do zeitgeist global e apesar de não representar em si nenhum avanço formal no quadro da obra de Oswald de Andrade, inegavelmente cria um
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novo patamar para a produção de cultura no país, onde tudo vai poder ser assimilado e digerido num eterno presente sincrético. O que também significa dizer que a antropofagia de Oswald de Andrade vai ser uma das referências mais presentes nas teorias da cultura brasileira pós-moderna. Não chega a ser surpreendente, portanto, a ausência de referências diretas a um cosmopolitismo centrado na experiência metropolitana e na apologia da diversidade da cidade, como foi o caso dos pré-modernistas e, em parte, de Mário de Andrade. Talvez pela participação no ambiente modernista internacional (o que seria bastante improvável para João do Rio, por exemplo) e por ter vivenciado na prática um cosmopolitismo muito mais intenso que Mário. Claro que não se pode esquecer que Mário de Andrade e seu Macunaíma compartilham com Oswald muito de suas concepções de modernidade e cosmopolitismo. Entretanto, Mário não chega à carnavalização de Oswald, nem ao universo anárquico e irreverente da antropofagia. O que Mário tem de antropólogo, folclorista dedicado e erudito, Oswald tem de bon vivant, improvisador e performático. As duas figuras mais conhecidas e influentes do modernismo podem ter se afastado e procurado caminhos distintos após os primeiros anos do modernismo brasileiro, mas suas visões de mundo e de Brasil juntas definem mudanças profundas na estética brasileira no século XX. Contudo, Oswald não sentia essa urgência em afirmar a cultura brasileira urbana e o cosmopolitismo inerente das suas grandes cidades. As cidades, aliás, não têm a mínima importância numa teoria des-geografizada. A antropofagia pretende operar num mundo sem territórios e divisões: E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mappa mundi do Brasil. (ANDRADE,1972, 268) Os atributos do cosmopolita tradicional derivam de uma ordem, de uma hierarquia precisa onde necessariamente existe um centro, uma “cosmópolis” ideal. O cosmopolitismo convencional lida com distinções muito marcadas entre o “civilizado” e o “atrasado”. O cosmopolitismo definido pela antropofagia de Oswald de Andrade depende justamente da dissolução deste tipo de distinção: afirmar a barbárie e propor uma utopia selvagem é lançar adiante o cosmopolitismo moderno, é criar uma alternativa completamente diferente para cosmopolitas brasileiros (ou periféricos). O cosmopolitismo oswaldiano confia na antropofagia como o agente máximo e na tecnologia como o acessório principal de uma modernidade antiburguesa, revolucionária, sensual, matriarcal e carnavalizada: A alegria é a prova dos nove. — No matriarcado de Pindorama.(...)
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Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformal-o em totem. (...) A baixa antropofagia agglomerada nos pecados de cathecismo— a inveja, a usura, a calumnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e christianisados, é contra ela que estamos agindo. Antropofagos. (IDEM, IBIDEM, 272) Oswald conseguiu com seus dois manifestos problematizar as questões mais fundamentais da cultura brasileira como um todo: identidade, nação, original, cópia, civilização, barbárie, desenvolvimento, atraso... Com o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, privilegiando a forma e estabelecendo um código extremamente sintético, ele lança uma fórmula estética de simplicidade e eficácia poéticas que busca sincronizar passado e futuro, barbárie e tecnologia num presente anárquico e revolucionário. No Manifesto Antropófago está em jogo uma definição de Brasil: tal definição abrange aspectos formais e quase que especificamente literários (no caminho de uma teoria da paródia e do pastiche, de uma estética da ironia e do improviso, de uma síntese sincrética de padrões e estilos) e aspectos políticos (quando desestabiliza valores como original e cópia, quando prepara as bases de uma teoria da cultura periférica, quando traz os fundamentos de um pensamento pós-colonial avant la lettre). A antropofagia muda os rumos (mesmo que um tanto tardiamente, já que a obra de Oswald de Andrade só vai chegar a alcançar uma maior popularidade a partir dos esforços dos concretistas nos anos 50 e da projeção conseguida pelo movimento tropicalista nos anos 60 —que se inspiraram em muitos aspectos da antropofagia oswaldiana) da ideologia da cultura brasileira e torna propícia a construção de novos parâmetros para tanto o pensamento e a estética no país como para a produção artística propriamente dita. Da antropofagia emerge um cosmopolitismo próximo ao de Mário de Andrade em Macunaíma, uma atitude que afirma a cultura brasileira e o Brasil, reconhecendo ao mesmo tempo a necessidade de se utilizar todas as influências, todos os códigos disponíveis, sem preconceitos de origem ou hierarquias nacionalistas, e sintetizá-los numa linguagem própria capaz de ser universal e particular ao mesmo tempo. A antropofagia libera de culpas e complexos de inferioridade a literatura brasileira, aplicando uma dialética que transforma as limitações do subdesenvolvimento em instrumentos para uma postura crítica e libertadora. Não se pode deixar de lembrar, entretanto, que, ao propor a antropofagia e tudo o que ela implica, Oswald também, de certo modo, sugere a mistificação do atraso para a qual resvalaram tantas e tantas interpretações de sua estética e sua obra.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo/Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. _________. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro/BeloHorizonte: Villa Rica, 1992. __________. Obra imatura. São Paulo/ Brasília: Martins/INL/MEC,1972. ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo/Secretaria de Estado da cultura, 1990. __________. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. BOLLE,Willi. “A cidade sem nenhum caráter”, Espaço e debates, n°17, 1989. Pp.14-27. McGUIRK, Bernard e OLIVEIRA, Solange Ribeiro de (eds.). Brazil and the Discovery of America. Narrative, History, Fiction 1492-1992. Lewiston/ Queenston/ Lampeter: The Edwin Mellen Press, 1996. PRYSTHON, Ângela Freire. “O tempo presente e Mário de Andrade”, Jornal do Commercio: JC cultural, Recife: 1 de março de 1991, 6-7. SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. _________. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Teorias sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1983. SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras. Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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I. PÓS-MODERNIDADE & PÓS-MODERNISMO(S)
Pós-modernidade e pós-modernismo(s): Apontamentos para possíveis definições
Eu também, como todo mundo, fico às vezes muito entediado com o slogan "pós-moderno", mas quando começo a me arrepender de minha cumplicidade com ele, a deplorar seu uso errôneo e sua notoriedade, e a concluir, com alguma relutância, que ele levanta mais problemas do que resolve, eu me vejo parando
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para pensar se qualquer outro conceito poderia dramatizar essas questões de forma tão eficiente e econômica. Fredric Jameson, Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. Postmodernism can best be defined as European culture's awareness that it is no longer the unquestioned and dominant centre of the world. (O pós-modernismo pode ser melhor definido como a consciência que a cultura européia tem de que ela já não é mais o inquestionável e dominante centro do mundo.) Robert Young, White Mythologies. Numa configuração geral e ampla poderiam ser identificadas duas maneiras distintas principais de se utilizar o conceito de pós-modernismo. A primeira trata de enumerar e descrever uma série de características textuais, desvios estilísticos, figuras de linguagem específicas, a partir de análises de literatura, cinema, artes plásticas, arquitetura, etc. contemporâneas. A segunda observa a situação cultural da chamada pós-modernidade como um todo e tenta uma postura crítica (positiva ou negativa) a partir de categorizações e elementos sociais e históricos em primeiro plano. As duas correntes, obviamente, interrelacionam-se, interpelam-se, intercruzam-se. (E não é a minha intenção afirmar que as duas posturas são estamentos separáveis e totalmente independentes.) Em resumo, esses dois vieses de interpretação da contemporaneidade são determinados pelas próprias diferenças entre os dois termos: pós-modernismo e pós-modernidade. Numa das mais didáticas, lúcidas e sucintas abordagens do(s) conceito(s) dos últimos anos, Terry Eagleton chama o pós-modernismo de "forma da cultura contemporânea", enquanto a pós-modernidade seria um "estilo de pensamento": Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação.
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Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades. (...) Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, autoreflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura "elitista" e a cultura "popular", bem como entre a arte e a experiência cotidiana. (EAGLETON, 1998, 7) A partir dessa profusão de adjetivos fica claro que a principal característica de ambos os termos é a de reação, de oposição a certos paradigmas modernos e modernistas. Esse desafio à modernidade proposto pelo pós-moderno (tomado mais amplamente) é, portanto, indubitavelmente uma trilha dupla (mais do que isso, uma trilha múltipla, mas, por enquanto, vou me concentrar em dois enfoques). É ora reação à institucionalização estética do alto modernismo e extrema desilusão com as vanguardas (onde se delineia precisamente como pósmodernismo), ora proliferação de novos agentes, micropolíticas e discursos teóricos como resposta à falência do projeto social e histórico de pretensões totalizantes (aí, então, pós-modernidade). Tanto em um caso como no outro, a relação com a modernidade é intensamente reforçada por essa presença da própria palavra da qual a pós-modernidade/pós-modernismo se afasta. A modernidade como projeto e como ruptura mais radical e consciente com os tempos antigos assume forma e coerência a partir dos ideais da Revolução Francesa e das promessas do Iluminismo: Specifically the idea of being "modern" by looking to the ancients changed with the belief, inspired by modern science, in the infinite progress of knowledge and in the infinite advance towards social and moral betterment. (HABERMAS, 1983, 4)
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Mas a noção de modernidade que se cristalizou no século XIX (e que pode ser claramente vislumbrada na obra de Charles Baudelaire) foi a que lançou o ethos do modernismo estético subseqüente (e é a esse ethos basicamente que é dirigida a crítica pós-modernista). A modernidade do século XIX era a resposta a experiências traumáticas (o choque benjaminiano) como a fragmentação, o caos, as novidades tecnológicas, as doenças, etc. da vida moderna e, ao mesmo tempo, era também a busca, nestas inéditas relações com o tempo, pelas chaves para o eterno, o imutável, o total: A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e de contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, "tudo o que é sólido desmancha no ar". (BERMAN, 1986) O projeto iluminista de modernidade e a modernidade concreta advinda das ruas, fábricas e das novas relações de trabalho vão se tornando pólos quase que irreconciliáveis e precisamente dessas contradições surge o modernismo (ou os vários movimentos modernistas). A categoria fundamental do Iluminismo (a razão) parece não cumprir as promessas libertárias e as condições reais da vida moderna são degradantes e subumanas para a maioria dos cidadãos. Entre a crença no progresso e o medo do futuro (principalmente o que foi resultado pela Grande Guerra e pela crescente pobreza das grandes massas), entre deslumbrados e horrorizados, os movimentos modernistas e as vanguardas dão voz à perplexidade diante deste "admirável mundo novo". A dimensão estética da modernidade revitaliza o foco na racionalidade através da primazia das formas sobre os conteúdos, e essa seria uma das principais maneiras de se desvencilhar do caos moderno, ou de, pelo menos, tê-lo sobre o controle da racionalização. A criação de novos códigos, de diferentes modos de se construir as linguagens artísticas foi uma das principais preocupações do artista moderno/ modernista.
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A ênfase nos códigos (e na rigidez e seriedade destes códigos) resultou, portanto, na cada vez maior especialização e fechamento das linguagens artísticas. A modernidade, através do(s) modernismo(s), tornou-se sistemática, institucionalizada e extremamente formalizante. O(s) modernismo(s) respondeu (responderam) primordialmente ao caos da vida moderna com a ordem do significante, com formas herméticas, com o ciframento das linguagens. A sociedade dos anos pós-2ª Guerra Mundial (especialmente a sociedade dos Estados Unidos) apreendeu e institucionalizou a linguagem modernista de várias maneiras: como elemento mercantilizável (na organização capitalista), como discurso oficial e até como arma na Guerra Fria1. Um dos primeiros impulsos pós-modernistas é, pois, confrontar a condição mainstream do alto modernismo. De certo modo, isto coincide com os movimentos políticos revolucionários dos anos 60. Da mesma maneira que os estudantes, guerrilheiros, pacifistas iam às ruas ou aos campos de batalha, os primeiros pósmodernistas se contrapuseram ao modernismo (erudito, sério, fechado, institucionalizado) através do pastiche, do jogo e da insistência na abertura desse pastiche e desse jogo. Nesse movimento, aliás, os pós-modernistas se aproximaram dos princípios vanguardistas do modernismo (em especial do dadaísmo e surrealismo). Até porque, ir de encontro às proposições do alto modernismo era uma demanda para qualquer iniciativa cultural que quisesse se estabelecer como "nova". Nesse sentido, esse "primeiro" pós-modernismo (o da arquitetura- campo, aliás, onde emergiram as discussões inaugurais do pós-modernismo como estilo; o da Pop Art, o da literatura beatnik, o da música de John Cage, entre outros movimentos e artistas) seria paradoxalmente uma versão anacrônica norte-americana da vanguarda européia. Porém, as subseqüentes "encarnações" do pósmodernismo se encarregaram de desfazer (ou de verem ser
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telessérie do Channel 4, da Inglaterra, Hidden Hands. A Different History of Modernism (veiculada em quatro partes entre outubro e novembro de 1995), mostrou em um dos seus segmentos como a CIA patrocinou clandestinamente o trabalho dos modernistas, em especial a dos expressionistas abstratos norteamericanos, com o propósito da "defesa da liberdade de expressão".
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desfeitas) as ilusões com a vanguarda ou de qualquer idéia de revolução ligada a ela (como também acontecia com a política mundial, onde as revoluções estavam sendo sucessivamente sufocadas, reprimidas, eliminadas ou distorcidas...): cada vez menos, a partir dos anos 70, os movimentos artísticos pósmodernistas se preocupavam com o "novo" ou mesmo com o repúdio às formas modernistas. O que gradual, mas não tão lentamente como em períodos anteriores, acontecia era a absorção (como no caso do alto modernismo, mas mais profundamente ainda) dessa arte pós-modernista pelo mainstream cultural. A partir da consciência dessa absorção, a própria concepção de pósmodernismo começa se transformar: o pós-modernismo, para se constituir como tal, tem que ter autoconsciência, tem que reconhecer a inutilidade e o ocaso das vanguardas, tem que saber se adaptar (e até mesmo criar) às regras de um mercado mundial de cultura cada vez mais sofisticado e veloz. Então, o pós-modernismo poderia ser definido também como o reforço final do elo entre Arte e Indústria Cultural (ou em última instância, como a tomada de consciência frente a esse elo) e a dificuldade crescente de impor fronteiras nítidas entre as esferas erudita, popular e de massas; como antes no modernismo havia sido difícil conter as interrelações entre as linguagens artísticas (música, pintura, literatura, etc. não podendo mais se constituir como códigos "puros"). Paralelamente a isto, nos termos mais gerais de uma linguagem pós-modernista, houve uma substituição de enfoques: o modernismo se ocupou da criação de novos códigos, na ruptura com as velhas formas; o pós-modernismo, ao contrário, interessa-se pela manipulação dos códigos (quaisquer que sejam) préexistentes e pela citação de velhas formas e fórmulas. Ou seja, a linguagem pós-modernista pretende operar nos limites da intertextualidade "ilimitada"... A manipulação descompromissada dos códigos, os jogos de linguagem e a intertextualidade não são exatamente inéditos na literatura e outras artes (que poderíamos dizer de Laurence Sterne ou Lewis Carroll...?), mas, no caso do pós-modernismo, eles adquirem o status de dominantes culturais. Além de elementos constituintes da arquitetura, literatura, música, cinema, pintura pós-modernistas, tais noções passaram a ser filtradas pela filosofia contemporânea e abordagens históricas e sociológicas sobre a "condição pós-moderna" como ruptura social com a modernidade.
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A primeira fase de delimitação do conceito de pósmoderno/pós-modernismo coincidiu, curiosamente, com o florescimento do chamado (em termos bem gerais) pósestruturalismo francês, o que resultou na subseqüente e freqüente associação da terminologia do último à construção do primeiro. A arte e a cultura pós-modernistas implicam na prática da citação, na recuperação lúdica do passado, na des-hierarquização, no descentramento das formas; e quase todos os filósofos franceses pós1960 (Foucault, Derrida, Barthes, Guattari, Deleuze, Baudrillard, Lyotard...), vale lembrar que lidando com objetos, perspectivas e graus de complexidade muito diferentes entre si, chegaram a analisar discursos e sociedades sob o filtro de noções como descentramento, fragmentação dos sujeitos e das experiências, esquizofrenia, micropolitização do social, etc. A intersecção entre pós-modernismo e pós-estruturalismo se intensificou com a conhecida e discutida proposição de JeanFrançois Lyotard (1979), que começa a definir o pós-moderno no fim dos anos 70 e início dos anos 80. Lyotard afirma que a pósmodernidade é a época onde já não existem mais metanarrativas, onde os jogos de linguagem, múltiplos e heteromórficos predominam numa sociedade pontilhista, na qual é impossível estabelecer regras gerais. Ou seja, nesta concepção estão incluídos para além dos jogos de linguagem, a tendência para a pulverização dos grupos que os praticam e o desmantelamento dos valores universais e absolutos. A filosofia francesa desta época, em geral, condenou os esquemas interpretativos absolutos (como o marxista e freudiano, por exemplo) e se baseou em uma crítica dos procedimentos racionais ocidentais, mesmo que não nomeassem diretamente o pós-moderno/pós-modernismo. A conseqüência mais imediata deste tipo de corte epistemológico e de enfoque foi a inclusão de nomes como os de Foucault, Derrida, Deleuze , etc sob o rótulo de pós-modernos, mesmo quando o rótulo não encaixava perfeitamente. Andreas Huyssen afirma que: Em si, isso não reduz o poder da teoria. Mas faz com que haja uma espécie de mixagem em que a linguagem pós-estruturalista não está em sincronia com o corpo pós-moderno. (HUYSSEN in BUARQUE DE HOLANDA, 1991, 62) Huyssen, como outros críticos dessa "ligação de ocasião", quase que apenas circunstancial, do pós-estruturalismo com o pós-
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modernismo, insistiu em considerar esta linha de pensamento crítico uma arqueologia da modernidade: os objetos de análise, os procedimentos mais básicos, as categorias mais fundamentais da teoria pós-estruturalista, todos seriam derivados de um olhar predominantemente voltado para a modernidade e para os modernismos. O pós-estruturalismo seria, então, uma fronteira da modernidade (com tudo o que implica nessa condição de fronteira) e não a encarnação teórica do pós-modernismo; por mais que por ser um modernismo nos seus limites carregasse necessariamente um potencial autodestrutivo e autocrítico, marcado pela transgressão dos limites da linguagem. Não sendo uma rejeição da modernidade nem do moderno, o pós-estruturalismo está, portanto, em pelo menos um dos domínios essenciais do pós-modernismo (e Huyssen e outros apontaram para isto, naturalmente): o da releitura. Ou seja, fazer a arqueologia da modernidade é em si um procedimento pósmoderno. Nesta interpretação, contudo, importa mais esta teoria como sintoma da cultura contemporânea, que como conjunto de hipóteses e proposições. Fredric Jameson também considera a teoria pós-estruturalista um sinal cultural dos tempos pósmodernos: Mas meu argumento é que o que se chama hoje de teoria contemporânea —ou melhor, de discurso teórico— é também um fenômeno estritamente pós-moderno. Seria então inconsistente defender a verdade de seus achados teóricos em uma situação em que o próprio conceito de "verdade" é parte de uma bagagem metafísica que pós-estruturalismo procura abandonar. (JAMESON, 1996, 40) Contribuindo para a relativa confusão entre pósestruturalismo e pós-modernismo, a crítica à razão (ocidental) que fizeram muitos dos mais importantes filósofos franceses contemporâneos é um dos pontos mais polêmicos para as primeiras reações anti-pós-modernistas. Tornou-se comum, pois, chamar alguns desses pensadores de irracionalistas. Habermas, o mais influente de todos os críticos, tanto da pós-modernidade, quanto do pós-estruturalismo, chegou, inclusive, numa de suas primeiras aproximações ao tema do pós-moderno, a colocar no mesmo rol Derrida, Foucault, Leo Strauss e Daniel Bell sob a égide de conservadores (jovens, velhos e neo-conservadores) (HABERMAS,
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13). Para o filósofo alemão, o que unia todos esses nomes era a rejeição da modernidade cultural (embora os "velhos conservadores" como Strauss, por exemplo, não rejeitassem a modernidade social e o conceito de modernização...), por conseguinte do Iluminismo. Para Habermas não só a modernidade cultural tem que ser resgatada, como é o único modo de completar e corrigir o projeto de modernidade social (do qual ele denuncia os mecanismos de poder, como o "jovem conservador", Foucault). Vários autores associaram as idéias habermasianas com alguns pontos de Foucault, tanto pelas influências compartilhadas como pela persistência da dimensão de crítica à sociedade, ao saber e ao sujeito em ambas as obras. Sergio Paulo Rouanet, por exemplo, em vários ensaios (ROUANET, 1987), tentou refutar as noções de um Foucault pós-moderno e irracionalista e o aproximou esquematicamente das teorias de Habermas. Não é tão fácil, todavia, dissociar o chamado pósestruturalismo do pós-modernismo. Especificamente os conceitos e teorias derivados desta linha teórica é que deram sustentação filosófica ao pós-modernismo. Mesmo fazendo a arqueologia da modernidade, como sugerem Huyssen e outros, não se pode deixar de reconhecer que a teoria francesa tem algumas características relativamente anti-modernas: a denúncia que se faz da razão; o contraponto à metafísica ocidental; o ataque à ideologia da representação;... São diferenças consideráveis em relação à visão de mundo moderna (na qual predominam idéias de totalidade, forma, racionalidade). Porém, mais do que isto, o chamado pósestruturalismo aparece como uma certa força "utópica" na medida em que oferece alternativas em termos de novas maneiras de pensar (pode-se destacar, então, obras-chave como as de Deleuze e Guattari, as de Derrida e, especialmente, as de Foucault, neste sentido). Sendo, então, segundo a classificação de Fredric Jameson, mais proto-pós-moderno que anti-moderno (tendo características dos dois lados)(JAMESON, 85-6). Além do pós-estruturalismo, que seria uma teoria pósmoderna em si, existem as teorias do pós-moderno. A maioria delas lidando com o pós-modernismo como estilo, como os casos de Ihab Hassan, Alan Wilde e Linda Hutcheon, entre muitos outros, que trabalham principalmente com a literatura pós-modernista como estratégia de discurso. Hutcheon (1991), numa das obras mais paradigmáticas dessa concepção de pós-modernismo, A Poetics of Postmodernism, aplica à literatura contemporânea
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conceitos filtrados do pós-estruturalismo, do desconstrucionismo derrideano, do novo historicismo norte-americano e do póscolonialismo. O pós-moderno/pós-modernismo, neste tipo de abordagem, seria um conjunto de procedimentos e elementos estilísticos (paródia, pastiche, intertextualidade, etc) realizados num contexto des-centralizante, aberto, des-hierarquizante. Há também as teorias do pós-modernismo que consideram o "fenômeno" como um sintoma cultural contemporâneo. Neste caso, o pós-moderno é visto como o resultado de mudanças no capitalismo. O pós-modernismo, então, é a "lógica cultural do capitalismo tardio", como aponta a principal figura (embora seu destaque seja maior nos Estados Unidos que na Europa) da defesa deste tipo de conceituação do pós-moderno, Fredric Jameson. Jameson parte de um ponto de vista marxista confluindo em uma concepção mais histórica, completa e política do pós-modernismo. Entretanto, precisamente por ser marxista e falar da pós-modernidade, Jameson tem sido caracterizado de traidor do marxismo por alguns marxistas e de marxista vulgar e ultrapassado por alguns pós-modernistas: Quanto ao pós-modernismo, e a despeito do cuidado que tive em demonstrar, no meu principal ensaio sobre o tema, como não é possível, do ponto de vista intelectual ou político, simplesmente fazer apologia ou "condenar" o pós-modernismo (o que quer que seja isso), alguns críicos de arte de vanguarda rapidamente me identificaram como um tamanho marxista vulgar, enquanto alguns dos nossos camaradas de coração mais puro concluíram que, seguindo o exemplo de tantos predecessores ilustres, eu tinha finalmente dado a volta por cima e me tornado um "pósmarxista" (o que significa, em uma certa linguagem, um renegado e um vira-casaca e, em outra, alguém que preferiu mudar a lutar). (JAMESON, 302-3) O que se pode contrapor a estas interpretações é que, além de renovar e ultrapassar o marxismo tradicional, a obra de Jameson impulsionou ainda mais a consideração do pós-modernismo dentro de mais campos do conhecimento , para além das mudanças nas artes e na literatura. Mas o ponto mais relevante das sugestões de
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Jameson (e sem dúvida das subseqüentes interpretações da sua obra) é de como o pós-modernismo tem relações, ou antes é conseqüência imediata também da política mundial contemporânea e de uma completamente nova configuração global de poder, "in which the old imperial maps have been lost" (YOUNG, 1990, 117). O viés marxista de interpretação do pós-modernismo e os conceitos e teorias derivados do pós-estruturalismo e ao aparecimento das modas "multiculturalistas" nas artes, na literatura e nas estruturas acadêmicas no mundo inteiro deram origem à teoria pós-colonialista, à revisão, reavaliação e retomada em outros termos do Terceiro Mundismo, e ao interesse cada vez maior primeiro na produção cultural, depois na produção teórica (dado quase inédito em épocas anteriores) de países "terceiro-mundistas", a América Latina incluída.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998. HABERMAS, Jürgen. "Modernity versus Postmodernity", New German Critique 3,October 1983, pp. 3-14 HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo — História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. LYOTARD, Jean-François. La Condition Postmoderne. Paris: Les Editions de Minuit, 1979. ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. YOUNG, Robert. White Mythologies. Writing History and the West. London/New York: Routledge, 1990.
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América Latina e pós-modernidade: as idéias em trânsito A crise do conceito de Terceiro Mundo ocorrida desde o final da década de 70 traz em si um problema para a América Latina como objetivação teórica: ao substituir as teorias terceiromundistas de dependência e liberação, a abordagem pós-colonial não coloca exatamente como prioridade a necessidade de se revisar as noções de América Latina existentes até então. A teoria póscolonial ou inclui indiferenciadamente a América Latina no seu corpus ou simplesmente ignora a relevância que esta parte do mundo teria para o entendimento global da situação pós-colonial. A própria história da América Latina desfavorece o "ponto de vista" pós-colonial. Pois, de maneira geral, a descolonização latino-americana foi feita mais de um século antes da independência das ex-colônias africanas e asiáticas, e a própria relação colonial na América Latina foi por demais particular para que se possa estabelecer paralelos. É fundamental, inclusive, frisar que, em relação às outras regiões do Terceiro Mundo, a América Latina é a mais "ocidental" (no sentido cultural)— "Latin American cultural experiences constitute alternate ways of being Western"(YÚDICE, 1991, 209)— e que isso muitas vezes não é levado em consideração. Outra peculiaridade latino-americana é que o "Terceiro Mundo" como concepção foi indispensável para a formação cultural contemporânea da região. Mais do que em qualquer outra
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região a unidade terceiro-mundista dos anos 60 foi constitutiva dos fenômenos culturais e políticos como América Latina da época. De certo modo, quase tudo o que a América Latina oferece de mais original e fecundo durante estas décadas está ligado às esquerdas revolucionárias e à idéia de um Terceiro Mundo unido em prol da independência e da negação do imperialismo. O que surge com a crise do conceito de Terceiro Mundo nos anos 80 é uma séria crise de identidade cultural latino-americana que foi forjada nas décadas anteriores pela música de protesto, pela "estética da fome", pela história cubana, pela influência de Franz Fanon, pelos cinemas nacionais,pelas denúncias sistemáticas e didáticas do imperialismo norte-americano, pela literatura de resistência, pelas guerrilhas, pelas revoluções (ou tentativas). Não só essa linha cultural cessa de funcionar e quase que totalmente de existir, como já não servem tão bem os parâmetros através dos quais se analisava as sociedades e culturas latino-americanas. A América Latina perde, então, seu lugar como vanguarda terceiro-mundista na mesma medida em que a idéia de Terceiro Mundo se esfacela. Talvez daí o pouco interesse pela América Latina na gênese das novas abordagens pós-coloniais e vice-versa. Há um outro fator, entretanto, para essa adesão apenas superficial da América Latina às teorias pós-coloniais e seu jargão: a questão central que preocupa a maioria dos intelectuais latinoamericanos hoje não é o discurso colonial e seus desdobramentos, mas sim como relatar a experiência de países de contextos multifacetados que incluem ao mesmo tempo culturas primitivas e tecnologia de ponta; tribos indígenas, favelados e uma elite cosmopolita. Esses intelectuais parecem estar mais interessados em caracterizar uma pós-modernidade essencialmente latinoamericana. Um dos tour-de-force das últimas teorias de cultura latino-americanas é justamente a noção de estado híbrido. Estas teorias tentam associar as múltiplas temporalidades e espacialidades latino-americanas com a sugestão de um pósmodernismo avant la lettre (IDEM, 1992; CANCLINI, 1992; CALDERON, 1993). Assim sendo, o simples fato de numerosas identidades culturais conviverem na sociedade favoreceria o surgimento de um discurso que contesta, modifica e supera o discurso da modernidade.
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Contudo, antes do aparecimento desta posição (o pósmodernismo em sua "encarnação" latino-americana tendo como conceito básico o estado híbrido; mais ainda, o estado híbrido como "o" elemento constitutivo do pós-modernismo...), o pósmodernismo "latino-americano" concernia a fenômenos estéticos circunscritos num território bem definido: uma espécie de jet-set, cujo dinheiro é totalmente dependente de países desenvolvidos. Estão ligados à cultura internacional e pós-moderna. (JAMESON, 1992) Para a grande maioria dos críticos, historiadores e filósofos latino-americanos no início dos anos oitenta, o pósmodernismo é uma categoria deslocada, uma "idéia fora do lugar" que não pode servir para explicar as "margens" do capitalismo. O conceito de pós-moderno na década de oitenta na América Latina está totalmente relacionado com uma situação de business total, do mercado como mecanismo regulador de todas as esferas da sociedade, inclusive (quiçá principalmente...) a cultural. A partir disso, portanto, a cultura latino-americana não poderia se adaptar aos moldes pós-modernistas (sob esta ótica, também necessariamente pós-industriais) e quando o fizesse nada poderia ser mais distante das afirmações terceiro-mundistas das décadas anteriores. Ou seja, adotar o pós-modernismo como estética na primeira metade dos oitenta na América Latina é visto como um atestado de adesão ao neoliberalismo, ao mainstream capitalista transnacional, de dependência cultural. O debate sobre o pós-modernismo, entretanto, foi um dos mais vigorosos e polêmicos na academia latino-americana da década. Se a primeiríssima reação foi tentar dar conta dos recentes fenômenos estéticos "estrangeiros" e das idéias que os acompanhavam com um entusiasmo deslumbrado e superficial, o que se segue é uma crítica ferrenha às bases neoliberais embutidas no programa inicial do pós-modernismo. Além da discordância ideológica, the critical modernists see in the postmodern enthusiasts an intellectual fad of the decade of the eighties, which, like all fads, is marked by frivolity and inconsistency. (HOPENHAYN, 1993, 95)
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O conceito de pós-moderno foi, por um lado, tomado como bandeira no caso da América Latina pelos que se entusiasmavam com as modas culturais lançadas no Primeiro Mundo, pelos que viam com otimismo o horizonte pós-industrial, a ideologia neoliberal. Por outro, foi bombardeado pelos intelectuais (principalmente os marxistas) que ainda apostavam na modernidade como "projeto inconcluso". Quiçá um pouco anacronicamente, a América Latina escolhe a polarização "Lyotard-Habermas" como principal eixo do "problema" pós-moderno: Mas allá de las colonizadas discusiones teóricas, en las cuales, al parecer, se trataría tan sólo de tomar partido (a favor de Habermas: "la tarea pendiente"; de Lyotard: "el feliz fin de la modernidad"; de Baudrillard..., de...), lo único cierto es que el nuestro es un tiempo en el cual, estéticamente- estéticamente ? -"todo vale". (KATZ, 1990) E durante a primeira metade dos anos oitenta na América Latina, a dimensão filosófico-social do termo aparece como se estivesse reduzida a essa oposição: radicais pós-modernos contra modernistas críticos. Uma espécie de prolongamento "nativo" da guerra velada entre os pós-estruturalistas e os herdeiros da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Do lado do pós-moderno estilístico (pós-modernismo, mais propriamente), as polarizações são mais suaves ou quase inexistentes. Pois, para chegar a uma classificação organizada, nada mais fácil que reunir convenções comuns a certas manifestações artísticas contemporâneas. O conceito de pósmoderno apareceu primeiro através dessa classificação na arquitetura e agora encontra nos departamentos de literatura seus partidários mais conspícuos. Outro aspecto relevante dessa concepção estilística do pós-moderno na América Latina é a sua ligação com o mainstream cultural norte-americano. O pós-moderno, durante suas primeiras aparições no contexto latino-americano quase não pôde ser dissociado dos Estados Unidos: pop art, minimalismo, fast food, desertos & neon, shopping centers... Todas as principais referências para a definição do conceito de pós-moderno eram, na sua origem, norte-americanas. E quando a intelectualidade latino-americana
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rejeitou esse conceito (principalmente nas Ciências Sociais) como instrumento relevante de análise da situação contemporânea da região, estava rejeitando também o imperialismo norte-americano implicado na importação dessas culturas e teorias pós-modernas e a ligação sem pudores da arte pós-moderna com a Indústria Cultural. Tal atitude de rejeição tinha, em parte, como mola propulsora, a vontade de continuidade do projeto revolucionário terceiromundista (e a dificuldade de abandonar este projeto) compartilhada no início dos anos 80 pela maioria dos intelectuais latinoamericanos. O pós-modernismo (e muitas teorias afins) talvez aportou na América Latina como mais um modismo acadêmico, como outro estrangeirismo "aberrante" apropriado imprudentemente. E sua "natureza" norte-americana era vista como um dos fatores mais graves para que se denunciasse o conceito como inadequado para o contexto latino-americano (até mesmo por um preconceito cultural contra a "frivolidade" norte-americana). O próprio fato de se ter apresentado uma imagem clichê dos Estados Unidos (a America2) como a base para esse conceito, contribuiu para que essas objeções ao pós-moderno parecessem extremamente lúcidas e difíceis de replicar: ...the Latin American image of U.S. culture, an image of consumerism and simulation or of postmodern high art and literature, as projected, respectively, by the mass media and high culture institutions: (...) In Latin America, "American" postmodernism means Robert Venturi, Philip Johnson, Andy Warhol, David Salle, Robert Longo, Cindy Sherman, Laurie Anderson... The list could go. (YÚDICE, 1991, 207) Pós-modernismo latino-americano seria, então, as aproximações e as tentativas de copiar a estética desse estilo norte2
Como no documentário realizado e veiculado em 1989 no Brasil, "America", dirigido por Walter Salles Jr., com livro de entrevistas por Nelson Brissac Peixoto e vídeo sendo lançados logo depois do programa de televisão da Rede Manchete.
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americano. Forçosamente, portanto, um simulacro (que em si já é um traço pós-moderno) da cultura norte-americana. Mas esta noção parte do pressuposto bem determinado do pós-modernismo como um estilo de época, como um conjunto de maneirismos. Justamente porque o pós-modernismo e a pós-modernidade não podem prescindir dos contextos sociais, políticos e filosóficos que os constituem, é que essa redução ao estético não serve mais nem aos "entusiastas" nem aos "críticos" dos conceitos. O pós-modernismo (pós-modernidade) também é relevante para a América Latina porque oferece alternativas para a incessante busca de "identidade" na região. Tanto as concepções estritamente estéticas e estilísticas como as teorias mais globalizantes e completas do panorama social e cultural pósmoderno trazem a idéia de descentramento no seu bojo. Ora, a dualidade margens-centro sempre foi um dos principais componentes da identidade latino-americana e a quebra (ou a aparente quebra...) desta dualidade coincide com a emergência do questionamento deste tipo de dicotomia pela cultura, arte e teoria latino-americanas. Para a América Latina como construção simbólica são inquestionáveis a importância e a recorrência a termos como metrópole, cópia, simulacro, deslocamento, nação, alteridade... Presenças por vezes incômodas que o pensamento pósmoderno propôs-se a desafiar e que a teoria latino-americana também tem desconstruído através de uma crítica às formas mais tradicionais de se colocar teoricamente a "diferença" latinoamericana. Em última instância, a categoria pós-moderno beneficiou um viés de interpretação da identidade latino-americana que se não é essencialmente novo, ao menos parece mais aberto, polivalente que os anteriores esquemas binários metrópole/ colônia, europeu / indígena, etc... Um viés que se caracteriza pela utilização positiva do termo híbrido e suas derivações. Se no século XIX, hibridismo e hibridização eram palavras e noções quase que exclusivamente circunscritas ao âmbito da biologia e da antropologia e vinham carregadas de um sentido extremamente negativo, no final do século XX, têm conquistado mais e mais destaque nas Ciências Humanas, Letras e Estudos Culturais. Um relevo que atinge seu ápice na teoria pós-colonial, embora uma das primeiras áreas além da biologia e antropologia a focalizarem o hibridismo tenham sido a Filologia e a Lingüística, primeiro superficialmente no século
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XIX e com mais profundidade e especificidade depois na obra de Bakhtin: The word's first philological use, to denote a composite word formed of elements belonging to different languages, dates from 1862. An OED entry from 1890 makes the link between the linguistic and racial explicit: "The Aryan languages present such indications of hybidity as would correspond with ... racial intermixture."(...) These gendered dissonant dialetics recur in a later development of the linguistic model of hybridity in the work of Bakhtin. (YOUNG, 1995, 6 e 20) Na América Latina, o trabalho de Nestor García Canclini (1990), por exemplo, tem especial ressonância na teoria pósmoderna, pois redimensiona o híbrido como o dominante mais básico e geral da cultura latino-americana contemporânea. O Estado Híbrido passa a denominar o caráter múltiplo da cultura contemporânea mundial, em especial a de regiões marcadas pela existência de várias espacialidades ou “origens”: ameríndia, européia, africana, asiática...; várias temporalidades: pré-industrial, moderna, tecnológica; e pela possibilidade de abolição das fronteiras entre cultura erudita, popular e de massas. Canclini analisa detalhadamente como se deu um esgotamento nos aparatos do Estado e como as políticas culturais se tornaram obsoletas diante dessa hibridização. De certa maneira, a idéia do Estado Híbrido substitui o pós-moderno em algumas das teorias de cultura latinoamericanas mais recentes, na medida em que aponta o hibridismo inerente das sociedades latino-americanas como uma espécie de antecedente e pressuposto para a constituição dos conceitos de pluralismo, multiculturalismo e pós-moderno na “metrópole”. No aporte “celebratório” a esse pluralismo, à hibridização latino-americana, outras denominações e outras teorias entram em cena : transferência, transculturação tradução e des-centramento pós-moderno para Nelly Richard (1993); teorias “antropofágicas” para Augusto de Campos e Haroldo de Campos (1981), entre outros; as temporalidades mistas de Fernando Calderón; as sensiblidades culturais contemporâneas de Celeste Olalquiaga (1998). Quase todas essas abordagens têm em comum uma visão
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otimista da pós-modernidade— mesmo quando extremamente críticas do eurocentrismo da maioria das teorias do pós-moderno— e, principalmente um tom de “superioridade”: ao se contrapor ao eurocentrismo (melhor dizendo “nordocentrismo”(YÚDICE, 1993)), essa leva de teóricos latino-americanos investe na atitude equivalentemente pretensiosa e hierárquica de “latinoamericanocentrismo”, ou no que George Yúdice chamou de “a more-postmodern-than-thou-on-account-of-our-hybridization syndrome” (IBIDEM). O risco dessas teorias da pós-modernidade latinoamericanas “festivas” é evidente quando se sabe o quão desigual é esse pluralismo, essa hibridização. As “múltiplas temporalidades simultâneas” exibem relações de poder diferenciado entre elas. Grupos étnicos e culturais “marginais” ou minoritários dificilmente deixam de ser “marginais” ou minoritários. A idéia de hibridismo como forma de se chegar a uma configuração da “identidade nacional”, além de ser uma herança das teorias raciais e do positivismo do século XIX, também pode dar margens a interpretações nacionalistas: Nationalistic appropriations of the politics of mestizaje, however, Moreira reminds us, have often threatened less integrated marginalized groups, indigenous groups among them.(GARCÍA-MORENO, 1994, 68) A hegemonia política “nordocêntrica” sequer se viu minimamente abalada por essa “nova” motivação cultural. No lugar comum da mídia “primeiro mundista”, a América Latina é ainda uma pequena side-window do mundo onde anacronicamente ainda há um interesse pelo pós-moderno...3
Na seção “What’s Up?” da revista I.D., n 145, outubro 1995, p. 136, é publicada a curiosa resenha sobre a antologia The Postmodernist Debate in Latin America, da boundary 2: “Nice to know that postmodernism hasn’t gone away in some parts of the world. It’s just been bundled into larger questions about nation, identity, utopia and marginality. What’s interesting about this collection of essays is how much it understands postmodern culture (Madonna, Baudrillard etc) as essentially a reflection of “Anglo3
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Mas um dos principais pontos suscitados por toda essa discussão é como o estado híbrido incide sobre a questão da identidade latino-americana, de como a “rearticulação da tradição” dentro das possibilidades da heterogeneidade cultural latinoamericana pode aprofundar e problematizar as lições do “terceiro mundismo” na reelaboração de noções como nação, unidade, democratização cultural; de como também a cultura global é composta pela cultura latino-americana, e principalmente, de como é problemático falar em unidade na América Latina pós-moderna: This view, which could help demythify the tendency to construct a non-existing homogenous continental body, nevertheless imposes a paradoxical imperative on whomever wishes to claim participation in the postmodern, that is, more modern than the modern, requires adopting a “universal” position agains notions of universality that have come to be perceived at the center as totalitarian. (YÚDICE, 1993, 546) Justamente de contradições e aporias é que está sendo feita a relação da América Latina com o Pós-modernismo; na malha desses problemas é que se encontra a resposta para a pertinência, oportunidade e validade, ou não, do conceito para a região: 1) desafiando a idéia de universalidade, a pós-modernidade latinoamericana contesta a própria noção de América Latina; 2) a partir de uma modernidade conflituosa, desigual e certamente incompleta, a América Latina começa a construir a sua pós-modernidade; 3) a teoria latino-americana tenta combater a hegemonia nordocêntrica através de um instrumental fornecido primeiramente pelas teorias européias e norte-americanas que tenta negar; 4) o terceiromundismo combativo e unificador dos anos 60 é substituído pela busca de um lugar ao sol no mercado global; 5) a teoria pósmoderna latino-americana quer opor-se às hierarquias do cânone literário e cultural ocidental ao mesmo tempo proclamando a “cultura híbrida” como uma das vanguardas dessa mesma tradição. European provincialism”. A nice little side-window into all those heated debates of the ‘80s.”
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As incompatibilidades são muitas, as controvérsias inúmeras, entretanto, a entrada da América Latina na problematização do pós-moderno traz à tona contribuições relevantes para o tema. Falar sobre pós-modernidade na América Latina implica numa revisão da modernidade, não só da modernidade latino-americana, mas do projeto da modernidade lato sensu. Estando assim na posição estratégica (posição de todos os terceiro-mundistas quiçá...) para reconhecer a desigualdade da modernidade e dos seus muitos modernismos (por ter experimentado uma modernidade ainda mais desigual e inconclusa que a do Primeiro Mundo), as abordagens latino-americanas da pós-modernidade —e, efetivamente, o cotidiano contemporâneo na região— põem em questão não a existência da modernidade, mas a validade dos seus meios e de algumas de suas conquistas (como antes outras crises da modernidade o fizeram: a Segunda Guerra Mundial, a Bomba Atômica, as guerras e revoluções nos anos 60, etc.). O salto para a pós-modernidade na América Latina é um movimento que ao mesmo tempo expõe e revê a relação dúbia (de desejo e rejeição através dos movimentos revolucionários dos 60) com a modernidade e apresenta elementos próprios e únicos para a composição do conceito (narcotráfico, economia informal, hiperinflação... literatura, música, arte híbridas...). Com a contribuição das leituras latino-americanas —e todas as outras não hegemônicas—, as teorias do pós-modernismo vão se constituindo através de outros pontos de vista. O próprio conceito de pós-moderno vai se revelando como uma configuração mais aberta, mais plena de história, mais polissêmica e não apenas como um conjunto de maneirismos de origem norte-americana ou um árido e estático relativismo cultural. Alguns pontos de interrogação podem ser levantados neste contato com a pós-modernidade. O crucial, contudo, é evitar uma celebração acrítica da “nova época”: há poucas coisas para celebrar, realmente. É extremamente sedutor pensar o hibridismo, a transcodificação de culturas como o lugar do novo, da diferença, da transformação, tanto em termos culturais , como em termos sociais. Mas é preciso ter presente o outro lado, as “alternativas” mais cruéis que as sociedades e culturas latino-americanas contemporâneas têm oferecido (favelas, hiperinflação, narcotráfico, desemprego crescente, Collor, Menem, Fujimori...) no seu pósmodernismo “fora-da-nova-ordem-mundial”:
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To celebrate parasitism (whose Latin American correlate is the problem of informal economies) or the hyperreal (which in Latin America is wrought by the hyperinflationary effects of the external debt and narcotraffic) is like cheerleading on the side-lines as neo-conservatives sell out the citzenry. (IDEM, 1992, 23) Teoricamente, a atitude acrítica frente a alguns aspectos do pós-modernismo latino-americano acarreta em diversos equívocos metodológicos, alguns dos quais já mencionamos anteriormente: primeiro, naquele pressuposto arrogante da superioridade cultural do híbrido, do fronteiriço; também num “culturalismo” exagerado, onde se espera que todas as esferas sociais sejam transformadas pela ação cultural localizada ademais numa rearticulação da esquerda cada vez mais marcada por uma crença ironicamente absoluta no microscópico, nos particularismos, no espontâneo. Neil Larsen, num dos artigos-chave da discussão política do pós-modernismo latino-americano, afirma que : The contemporary emphasis on “cultural politics” which one finds throughout intellectual and radical discourse in Latin America as well as in the metropolis, while useful and positive to the degree that it opens up new areas for genuinely political analysis and critique, is symptomatic, in my view of this theoretical surrender(...). One might almost speak these days of a “culturalism” occupying the ideological space once held by the “economisms” of the Second International revisionists. (LARSEN, 1995, 96) Larsen se refere especificamente à influência de algumas teorias pós-modernas na postura dos marxistas latino-americanos, no que ele chama de “esquerda pós-moderna”, incluindo nesta categoria nomes como os de Ernesto Laclau, Rigoberta Menchú, Enrique Dussel, George Yúdice, etc. Como também observaram Beverley e Oviedo (1992, 9), ao mesmo tempo em que é um lúcido aviso contra os excessos do “culturalismo”, este tipo de comentário reflete um certo desconforto do intelectual tradicional com a
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emergência dos novos agentes sociais e das novas formas de ação dessas organizações. Contudo, para além de poderosos exemplos de novos movimentos sociais de esquerda na América Latina (O Partido dos Trabalhadores —PT— no Brasil; a experiência sandinista na Nicarágua; movimentos de mulheres em toda a região...), o pós-modernismo ainda não trouxe nenhuma alternativa teórica razoável para a falência do capitalismo no subcontinente. Ademais, o contexto cultural e artístico latino-americano recente deixa dúvidas quanto ao sucesso do hibridismo, da transcodificação cultural. Pois, especialmente desde a década de 80, o eixo artístico cultural se volta para a iniciativa privada, a classe média intelectualizada latino-americana se “yuppifica” ; o modelo de política cultural é o pós-modernista de direita, uma espécie de “thatcherismo tropical”. Se por um lado, há uma inegável profusão de iniciativas locais, de “novidades” regionais, de produtos culturais que se constituem neste espaço híbrido e que indubitavelmente ampliam a ressonância mundial do popular, do regional, do local (o que antes era improvável, no mínimo), por outro, a adesão a um mercado pretensamente internacional faz com que as diferenças se diluam e seja crescente a homogeneização cultural. De certo modo, uma coisa está intimamente relacionada com a outra: para afirmar esse particular, esse produto híbrido único numa circulação internacional, é preciso também atenuar as diferenças, “pasteurizar” as peculiaridades. Todavia, a inserção da América Latina não só no debate teórico como também no mercado de cultura levanta bases para várias mudanças no que era chamado de “terceiro mundismo” e para a própria versão latino-americana do pós-colonialismo. Como já foi mencionado antes, toda a concepção de uma América Latina unificada, como um bloco cultural, social e politicamente relativamente homogêneo parece ver cada vez mais exposta a sua corrosão. Discutir, rever, avaliar esta unidade é um imperativo para qualquer tipo de análise cultural contemporânea da América Latina, seja o enfoque em prol ou contra a pós-modernidade. Confiar na unidade latino-americana como uma categoria estável é conservar um pouco da ingenuidade dos anos 60 (uma ingenuidade que, então, era imprescindível). Não admitir o fracasso, mesmo que relativo, de algumas bandeiras daquela época e reafirmar o mito de um projeto histórico único para o subcontinente. É tentar legitimar uma alternativa comum para países de contextos tão diferentes. É talvez ignorar que tal alternativa comum só poderia vir a ser uma
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possibilidade através da consideração de todas as outras, múltiplas, advindas das várias Américas Latinas... Porém, como acontece com o conceito de “Terceiro Mundo”, “América Latina” pode servir de molde para esta reavaliação, de ponto zero de partida. Curiosamente, a própria globalização da cultura originada nesta época pós-moderna traz os mais claros indícios para se repensar a América Latina como unidade. As teorias pós-modernas com a sua pulverização metodológica, com a sua multiplicação de sujeitos, com o seu interesse pelo microscópico, trazem inerentemente ao domínio geral as diferenças que marcam cada aspecto de cada país, de cada região, da cada produto cultural que estão sendo analisadas. Em princípio, ao menos, isso é positivo porque aumenta o interesse e o conhecimento de objetos de estudo que antes estavam geralmente relegados a um plano meramente exótico (nem sempre acontece assim, o exotismo é, aliás, quase sempre o primeiro elo para esta “popularização” do periférico, do marginal, do diferente). Por enquanto, no mínimo, as teorias pósmodernas latino-americanas, principalmente da “esquerda pósmoderna”, têm problematizado os clichês ao abordá-los diretamente. As imagens tradicionais pelas quais se descrevia a América Latina tanto nos mass media como na academia se não estão desaparecendo (não vimos sumir o “amante latino”, o “bandido”, o realismo mágico como única expressão literária da região, as comidas picantes, a “preguiça”, os ditadores de bigode, o futebol, as Banana Republics, etc...), estão ao menos sendo examinadas à uma luz mais intensa de historicidade, e com uma concentração maior de informação. Desde as análises literárias às de cultura popular, dos estudos sobre as organizações nãogovernamentais (ONGs) aos da situação política e econômica da região, tudo está permeado por esta “vontade” de refinar nossas concepções de “Terceiro Mundo”, de terceiridade, de terceiro termo (McGUIRK, 1996, 180-98) através da história. O pós-moderno tem acentuado então a crise da objetivação da América Latina como uma totalidade mais ou menos homogênea e como “Terceiro Mundo”. Entretanto, as teorias pósmodernas latino-americanas ainda apontam uma ausência, um vácuo: a discussão de uma das características mais fundamentais embutidas no conceito de América Latina, justamente uma de suas grandes subdivisões (a maior delas), ou seja, entre América Espanhola e América Portuguesa. Talvez essa subdivisão seja tão problemática e homogeneizadora quanto insistir na América Latina
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como uma unidade, mas especificar sempre essa condição fornece alguns elementos ao teórico da cultura latino-americana, especialmente aos "brasilianistas", que ajudam, pelo menos, a começar a delinear um mapeamento mais preciso e menos idealizado da pós-modernidade na região. Os dois grandes blocos lingüísticos da América Latina deram origem a diferenças —sem esquecer que esses dois blocos se formaram também por diferenças importantes entre uma e outra colonização— que ultrapassam o simples fato de falas diferentes: o espanhol e o português . Várias distinções históricas, políticas, sociais e, principalmente, culturais poderiam ser enumeradas na construção dessas “duas” Américas Latinas predominantes (CANDIDO, 1993). Contudo, o que me interessa no momento é demarcar a condição do Brasil como único país da América Portuguesa e o seu conseqüente maior isolamento (geográfico, lingüístico, cultural), fato que está refletido, por exemplo, na maioria das coletâneas sobre a pós-modernidade latino-americanas publicadas em inglês.4 Ou seja, tal condição é realçada/reforçada pela quase ausência de ensaios de brasileiros nas mesmas, e raras são as discussões sobre o Brasil e esta sua “condição” num plano mais específico e aprofundado. É óbvio que existem muitas identidades entre os dois blocos, assim como existem diferenças de ordens históricas, sociais, culturais, etc. entre os muitos países da América espanhola e como existem diferenças enormes entre as várias regiões do Brasil. Mas no sentido da discussão do pós-moderno, a alusão a esta grande subdivisão da América Latina é útil, pois dá conta de um fenômeno que ocorre até meados da década de 90 entre as duas produções teóricas contemporâneas, uma em português, a outra em espanhol: o desconhecimento e desinteresse mútuos. Quase nunca se via 4Da
mesma maneira que acontece com a teoria pós-colonial, a área de estudos "Pós-modernismo e América Latina" tem ganhado um impulso notável nos meios acadêmicos e editoriais norteamericanos e europeus. Nos últimos anos, vários periódicos científicos como boundary 2, Social Text, Critical Inquiry, diacritics, South Atlantic Quarterly, etc., têm dedicado ensaios, às vezes até números inteiros à questão do pós-moderno na América Latina.
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citados teóricos brasileiros nos trabalhos de seus pares hispanoamericanos e vice-versa. O universo cultural contemporâneo de cada uma dessas Américas Latinas parecia, com raras exceções, excluir a outra, ignorar a outra, sem nenhum motivo aparente além da evidente fronteira lingüística. E na esfera teórica, este estado de “quase” ignorância recíproca se intensifica. A partir da década de 90, a situação se modifica consideravelmente, com a crescente tradução das obras mais recentes de autores como Beatriz Sarlo, Néstor García Canclini e Jean Franco, entre outros, no Brasil. E, se não com a respectiva tradução de autores como Renato Ortiz, Roberto Schwarz ou Silviano Santiago nos países de língua espanhola, a cada vez maior freqüência de citações desses nomes nos trabalhos de alguns dos colegas hispano-americanos. Essa espécie de “lentidão” na absorção recíproca dos textos de uma e outra “Américas Latinas” é quiçá o reflexo da eterna busca de modelos metropolitanos para a constituição de uma teoria “atual”, up-to-date com o centro. A maioria dos intelectuais latino-americanos ainda se volta para o eixo Estados UnidosEuropa como a bússola dos seus esforços de “desprovincianização”, embora estejam adotando precisamente as teorias que contestam o binário centro-periferia e toda hierarquia proveniente do mesmo. Voltamos ao “more-post-modern-than-thou-on-account-of-ourhybridization syndrome” de que falávamos anteriormente e ao processo descrito por Roberto Schwarz em seu ensaio “Nacional por Subtração”: De atrasados passaríamos a adiantados, de desvio a paradigma, de inferiores a superiores (aquela mesma superioridade, aliás, que esta análise visa suprimir) isto porque os países que vivem na humilhação da cópia explícita e inevitável estão mais preparados que a metrópole para abrir mão das ilusões da origem primeira (ainda que a lebre tenha sido levantada lá e não aqui). Sobretudo o problema da cultura reflexa deixaria de ser particularmente nosso, e, de certo ângulo, em lugar da almejada europeização ou americanização da América Latina, assistiríamos à latino americanização das culturas centrais. (SCHWARZ, 1987, 35-6)
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Schwarz continua sua reflexão na direção de uma crítica às impossibilidades concretas desta hipótese, às dificuldades práticas da abolição da condição de inferioridade da cópia: ou seja, o que acontece, de certa maneira, é que, afora algumas iniciativas isoladas e pouco recentes como as de Ángel Rama e Antonio Candido, não existe um projeto cultural unificador para o subcontinente. Mais do que isso, a história cultural contemporânea da América Latina tem se caracterizado pela vontade de superação justamente da unidade “terceiro-mundista”, pela tentativa de afirmação das culturas locais, pelo desejo de entrada no mercado internacional. Sem que isso implique necessariamente numa interpenetração dos blocos majoritários das culturas latinoamericanas, a América Espanhola e a América Portuguesa —sem falar no caso mais “à parte” do Caribe.
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Mercados globalizados e cultura: cosmopolitismo pós-moderno Instead of renouncing cosmopolitanism as a false universal, one can embrace it as an impulse to knowledge that is shared with others, a striving to transcend partiality that is itself partial, but no more so than the similar cognitive strivings of many diverse peoples. The world’s particulars can now be recoded, in part at least, as the world’s “discrepant cosmopolitanisms”.
84 Bruce
Robbins,
“Comparative
Cosmopolitanism”. A partir da modernidade e dos vários modernismos locais, presenciamos a emergência de um cosmopolitismo dialético na periferia, que atua justamente na tensão entre a realidade e a tradição nacionais e as aspirações a uma cultura metropolitana internacional e moderna. Ser cosmopolita nesses tempos e nesses espaços implica, em um primeiro momento de tomada de consciência, a constatação da existência de uma “metrópole”, de um modelo de civilização a ser seguido, e da importância de se modificar esse modelo a partir da “diferença”, das especificidades nacionais. Os modernismos locais foram alterando as concepções unidimensionais da cultura cosmopolita como exclusividade de uma elite metropolitana. Entretanto, tais alterações são parte de um processo lento e que ainda confia na idéia de um centro. Ou seja, a aspiração a uma cultura que emana da metrópole mais próxima (ou da mais distante). O cosmopolitismo dialético é centrífugo inclusive porque depende da idéia de centro para poder questionála. As teorias pós-modernas —e do pós-moderno—, inevitavelmente, pois, lançam outras dimensões ao conceito de cosmopolitismo: a sua constante remissão ao crescente descentramento da vida urbana e da cultura pós-moderna, a evidente globalização em diversas esferas da sociedade —entre elas economia e cultura—, a insistência pelo relativismo cultural e o estabelecimento de um ciberespaço agora como realidade e não mais alucinação futurista são algumas das razões mais importantes para essa redefinição do cosmopolitismo. Basicamente, entretanto, a emergência dessa sociedade pós-industrial com todas as suas nuances, entre elas a valorização do periférico, do exótico, do excêntrico (refletidos no multiculturalismo), desestabilizam a força centralizadora das metrópoles modernas. O cosmopolitismo pósmoderno vai ser diferente sobretudo porque ele não supõe necessariamente um ponto norteador (algo essencial no cosmopolitismo moderno, como fica claro, por exemplo, através da obra de Walter Benjamin sobre as Passagens de Paris, através da Paris-mito dos modernos e os subseqüentes prolongamentos dessa Paris na periferia Belle Époque— São Paulo, Buenos Aires, etc—). Isso não significa, contudo, que deixem de existir os grandes centros de onde emanam as tendências culturais. É óbvio
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que as grandes metrópoles do mundo moderno continuam a exercer influência e determinar o cânon cultural ocidental. Entretanto, essa hegemonia está sendo abalada pelos desdobramentos da economia contemporânea. Assim como o cosmopolitismo moderno está intrinsicamente associado ao desenvolvimento de um capitalismo industrial multinacional, o cosmopolitismo pós-moderno define-se pelo dispersamento do capital e pela emergência dos mercados transnacionais. Cada vez menos importa onde se está, mas como fazer fluir a informação para todos os lugares da maneira mais rápida possível. O cosmopolitismo pós-moderno, portanto, tem mais relação com o desenvolvimento tecnológico da mídia e de novas formas de comunicação do que com a urbanidade e o cotidiano metropolitano. A própria configuração urbana contemporânea vai sendo determinada pelo imaginário cultural e conceitual do pós-moderno. Mike Featherstone fala de um entrelaçamento entre as esferas cultural, social e econômica da cidade pós-moderna: The postmodern city is therefore much more image and culturally self-conscious; it is both a centre of cultural consumption and general consumption, and the latter, as has been emphasized, cannot be detached from cultural signs and imagery, so that urban lifestyles, everyday life and leisure activities themselves in varying degrees are influenced by the postmodern simulational tendencies. (FEATHERSTONE, 1991,99) As transformações do cenário urbano têm sua responsabilidade na redefinição do cosmopolitismo. Não é apenas a metrópole como “centro do mundo” que deixa de vigorar, também desaparecem os “centros” das cidades, cada vez mais entregues ao abandono ou à transformação em museus urbanos (as “revitalizações dos centros antigos”, noção já estabelecida na Europa e um pouco mais recente em cidades coloniais em outros continentes, mas especialmente na América Latina). Os subúrbios de classe média e os condomínios e bairros da classe alta tornam-se os núcleos dessa nova urbanidade descentralizada, da qual os shopping centres seriam a expressão máxima. La ciudad no existe para el shopping, que ha sido construido para reemplazar a la
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ciudad.(...) Se nos informa que la ciudadanía se constituye en el mercado y, en consecuencia, los shopping pueden ser vistos como los monumentos de un nuevo civismo: ágora, templo y mercado como en los foros de la vieja Italia romana. (SARLO, 1994, 17-18) Os “shoppings” são também uma espécie de desenvolvimento da galeria e das passagens do século XIV. Nesse sentido, a cidade pós-moderna, de certo modo, também pode ser vista como a realização de parte dos prognósticos e desejos modernos de tecnologia, consumo, velocidade e simultaneidade. Entretanto, isso vai ter que ser levado a ponto da própria destruição da idéia de metrópole (os “shoppings” também servem como agentes secundários deste processo) pelo menos no nível do imaginário cosmopolita. Paul Virilio descreve assim a passagem à urbanidade pós-moderna: Se a metrópole possui ainda uma localização, uma posição geográfica, essa não se confunde mais com a antiga ruptura cidade/campo, tampouco com a oposição centro/periferia. A localização e a axialidade do dispositivo urbano perderam há muito sua evidência. Não somente o subúrbio provocou a dissolução que conhecemos, mas também a oposição ‘intramuros’, ‘extramuros’ se dissipou ela própria, com a revolução dos transportes e o desenvolvimento dos meios de comunicação e de telecomunicação, daí esta nebulosa conurbação de franjas urbanas. (VIRILIO, 1991, 11) A cidade pós-moderna como núcleo urbano já não se configura como o fetiche mais recorrente para o cosmopolita contemporâneo, já não é a instância principal do seu roteiro de vícios e virtudes, não é mais lugar do “choque” e a sua “aura” já foi perdida há muito tempo. Se determinados espaços podem ainda ser considerados como território por excelência do cosmopolitismo pós-moderno (lugares, situações que ligam o indivíduo ao consumo e a uma rede mundial de informações e produtos), já não existe um flâneur como o do século XIX e início do século XX, porque não
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existe mais a cidade onde flanar. As ruas e os bulevares onde o flâneur andava para “ser visto” tampouco existem. O espaço onde “ser visto” fragmentou-se em bares, restaurantes, lojas não do centro de uma metrópole em particular, mas do mundo inteiro. Mais além, é mais relevante “ser visto” através da telas (de televisão, cinema, computador). As imagens são mais valiosas para o cosmopolita pós-moderno que a realidade. Muito embora valha lembrar que nem todos os códigos sociais e culturais estabelecidos pelo consumo e cosmopolitismo modernos vão ser totalmente abandonados a partir dessa mudança. Há, contudo, uma fundamental transformação em termos quantitativos. Cada vez mais pessoas expostas à diversidade e à tecnologia em vários tipos e tamanhos de cidades diferentes fazem com que o cosmopolitismo torne-se uma condição quase geral do cidadão comum pós-moderno, mais do que um privilégio exclusivo da elite. Claro que a elite seria “mais cosmopolita” que a classe média, pelo menos em termos de consumo, diversidade e velocidade de informação. Sendo, pois, basicamente dependente da estrutura econômica do capitalismo transnacional, o cosmopolitismo pós-moderno funciona —muito mais do que o cosmopolitismo moderno— de acordo com a flutuação dos mercados internacionais. Já não depende tanto das divisões entre países e suas principais metrópoles, e sim de como funciona o mercado de determinado núcleo social e urbano. O mercado, então, vai ser o regulador desse cosmopolitismo — afinal não tão diferente do cosmopolitismo moderno, mas com um mercado que “sonha” muito além do capitalismo industrial do século XIX e da primeira metade do século XX. Um dos principais fatores diferenciais do mercado pósmoderno é justamente a sua condição de pertencente ao capitalismo tardio ou capitalismo pós-industrial, ou ainda, capitalismo “global”. Embora as Ciências Humanas e Sociais ainda não tenham abandonado categorias como nação e Estado, e mesmo a um nível pragmático a economia e os padrões de mercado estejam totalmente vinculados às mesmas, é inegável a “mundialização” do capitalismo e das sociedades como um todo (a ocidental e capitalista em especial, mas todas as outras também em diferentes graus). Arif Dirlik resume assim a nova fase do capitalismo: Fundamental to the structure of the new global capitalism (the term I prefer) is what Folker Fröbel and others have
88 described as “a new international division of labor”, that is, the transnationalization of production where, through subcontracting, the process of production (of even the same commodity) is globalized. The international division of labor in production may not be entirely novel, but new technologies have increased spatial extension as well as speed of production to an unprecedented level. (DIRLIK, 1994, 348) Inevitavelmente, a globalização da economia implica em profundas alterações na cultura mundial. Até porque a indústria cultural é parte constituinte do mercado, totalmente sujeita a suas regulações. Não apenas a divisão de trabalho vai se internacionalizar cada vez mais, como também a indústria cultural vê acontecer um processo semelhante em todas as suas instâncias. A cultura de massas, tal como se conhece hoje, desenvolveu-se com feroz intensidade a partir do pós-guerra. Tecnologia e consumo passam a ser os vetores a partir do qual desenvolve-se a cultura em detrimento da divisão clássica entre cultura de elite, cultura de massas e cultura popular. Triunfa a lógica do capitalismo tardio em todas as esferas da sociedade, e ela não vai ser menos influente no campo da cultura. O homem pósmoderno acostumou-se a seu status de “consumidor”, também tomando como naturais as asserções sobre o “homem unidimensional” dos anos 60 de Marcuse. As observações de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural norte-americana no final dos anos 40 são constantemente reafirmadas pelos fatos sem provocar o mínimo de estranhamento, alarde ou preocupação. A indústria cultural passa a fazer parte de uma espécie de “ordem natural” do mundo pós-moderno. The striking unity of microcosm and macrocosm presents men with a model of their culture: the false identity of the general and the particular. Under monopoly all mass culture is identical, and the lines of its artificial framework begin to show through. The people at the top are no longer so interested in concealing monopoly: as its violence becomes more
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open, so its power grows. (ADORNO e HORKHEIMER, 1972, 120-21) De certa forma, a pós-modernidade toma ao pé-da-letra e leva a extremos uma interpretação conservadora da modernidade: a racionalização teleológica, a tecnologia e a modernização passando por cima dos ideais iluministas. As formas culturais produzidas nesse esquema têm que se adaptar ao declínio da arte tradicional e das hierarquias marcadas entre os diversos tipos de cultura. A estatística, a publicidade, as pesquisas de opinião tornam-se as estratégias mestras de um sistema, onde padronização, reificação e fetichização são dados inerentes. Rótulos e marcas substituem a “aura” e o ritual na obra de arte. (Às vezes até literalmente, como no caso da Pop Art.) The words which dominated Western consumer societies were no longer the words of holy books, let alone of secular writers, but the brand-names of goods or whatever else could be bought. (HOBSBAWN, 1995, 513) O mais surpreendente, contudo, no caso da indústria cultural a partir da segunda metade do século XX é a rapidez com que seus valores, estratégias e estruturas se espalharam para além do núcleo de sua formação original, que estaria na Europa e nos Estados Unidos. Pode-se dizer que a origem da indústria cultural é paralela à criação e ao desenvolvimento do “American way of life”, ao ponto deles até se confundirem. A própria cultura pós-moderna (da qual a indústria cultural é a principal amostra) tem suas raízes nessa afirmação de valores e ideais americanos. Fredric Jameson, na primeira abordagem associada à teoria crítica a não recusar o conceito de pós-moderno de antemão, sublinha um fundo imperialista tradicional por trás do que seria simplesmente uma marca “cultural”: (...) this whole global, yet American, postmodern culture is the internal and superstructural expression of a whole new wave of American military and economic dominance throughout the world: in this sense, as throughout class history, the underside of culture is blood, torture, death and terror. (JAMESON, 1991,5)
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Assim, nada mais natural que na maioria das análises sobre a indústria cultural pós-moderna sobressaia a enorme quantidade de exemplos e críticas dos modelos americanos. E, assim como se deu a penetração e o monopólio das corporações econômicas e industriais americanas na economia mundial, sua ideologia e valores também vão sendo inegavelmente incorporados e a indústria cultural americana serve de modelo para a maior parte dos países. Por um lado (como numa clássica abordagem frankfurtiana marxista) essa hegemonia americana pode ser interpretada como a versão contemporânea do imperialismo tradicional de séculos passados, estendido de maneira implacável sobre a cultura. Seria, de acordo com esta interpretação, a vitória dos Estados Unidos diante das outras potências mundiais. Outro ponto de vista (a do liberalismo) é que os americanos simplesmente aperfeiçoaram e estreitaram os laços da técnica, consumo e cultura, “saindo na frente” num processo que seria mundial acima de tudo. A hegemonia mundial desse tipo de indústria cultural, entretanto, tem mais relações diretas com a propagação do capitalismo que com uma suposta “maior eficiência” do modelo americano. O capitalismo tardio pode ser definido como a predominância do “capital transnacional” (sobrepondo-se à idéia de nação) e “gestão local” (também minando a “nação” a partir de suas próprias subdivisões). O que implica numa mudança em termos mais gerais e não restrita aos países ocidentais desenvolvidos. ... the capitalist mode of production, divorced from its historically specific origins in Europe, appears as an authentically global abstraction. The narrative of capitalism is no longer a narrative of the history of Europe; nonEuropean capitalist societies now make their own claims on the history of capitalism. (DIRLIK, 350) É inquestionável, então, que, independentemente de ser fruto direto do poder econômico e político norte-americano ou um processo resultante da modernidade nordocêntrica (indubitavelmente ambas as coisas), que o estágio de globalização do capitalismo tardio está em pleno andamento. É importante, porém diferenciar com clareza a globalização da simples internacionalização da economia. A globalização, mais do que um sistema de multinacionais ou de “livre comércio” entre nações, é uma forma transnacionalizada dos
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modelos de produção associada a uma maior fragmentação da distribuição de poder e produtos, e estendendo-se também à cultura. A afirmação do todo não nega a fragmentação ou a diversidade do mercado mundial. Pelo contrário, ela parte desta constatação empírica. No plano teórico, a sinergia é a noção que dá conta desta realidade múltipla. (ORTIZ, 1994, 168) Ou seja, se a primeira impressão que o termo “globalização” provoca é a idéia de uma homogeneidade mundial, é sempre importante lembrar que um dos resultados desse processo, todavia, parece ser uma desterritorialização geral: da economia, da cultura, da política. Migrações em massa, fragmentação dos movimentos políticos, interpenetração do global e do local, “hibridização” por um lado e padronização cultural por outro, capitalismos e socialismos “mistos” são apenas algumas das características difundidas nesse mundo globalizado cada vez mais complexo e cheio de paradoxos. O local e o regional são enfatizados diante de uma cultura de massa e de uma espécie de vasta aldeia global de informações com que McLuhan teria conseguido apenas sonhar. (...) E isso parece estar ocorrendo apesar — e eu afirmaria, talvez até por causa— do impulso homogeneizante da sociedade de consumo do capitalismo recente: mais uma contradição pósmoderna. (HUTCHEON, 1991, 30) Então, o acesso à diversidade que caracterizava o cosmopolitismo moderno é imensamente multiplicado no cosmopolitismo pós-moderno. Se já era possível para Mário de Andrade sentir-se “vivedor simultâneo de todas as terras do universo” (1972, 265) nos anos 20 no Brasil, para o cidadão pósmoderno as facilidades das redes de informação, transporte e consumo no final do século tornam essa afirmação mais do que um clichê otimista ou um lugar comum de “periféricos abastados e deslumbrados”. O cosmopolitismo pós-moderno é, pois, marcado tanto por essa permeabilidade entre expressões culturais (implicada na diversidade promulgada pelo capitalismo transnacional), como pela evidente consolidação de um “estilo de vida” internacional (de certa maneira esse estilo que domina o “Ocidente” seria uma
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extensão do American way of life, que agora pode ser encontrado em cada esquina desse mundo). Assim, o cosmopolitismo pósmoderno configura-se nesse horizonte de expansão do capitalismo e conseqüentemente dos mercados transnacionais como a possibilidade de poder usufruir dessa expansão do ponto-de-vista cultural. O cosmopolitismo pós-moderno diz respeito prioritariamente às relações entre a cultura e as mudanças vindas no bojo da globalização econômica. É praticamente impossível pensar a cultura deste final de século —e neste sentido o cosmopolitismo— dissociando-a do modo de produção do capitalismo tardio. Por mais que as bases desse novo cosmopolitismo estejam fundadas sobre a maneira como se dá a relação entre a cultura e o mercado numa economia globalizada, tal conceito, porém, não é um mero reflexo das novas tendências do consumo mundial. Em outra perspectiva o cosmopolitismo pode ser a expressão de uma retomada pós-moderna de certas questões colocadas pelo internacionalismo dos anos 50 e 60 (época da descolonização na África e Ásia, das revoluções estudantis, das guerrilhas marxistas): para além dos interesses econômicos que possa ter o multiculturalismo —em voga principalmente a partir do final dos anos 80— para a hegemonia de certos oligopólios transnacionais de cultura, a progressiva abertura do mundo às culturas periféricas denota uma vitória — mesmo que parcial— deste movimento. If cosmopolitanism cannot deliver an explicitly and directly political program, it is at least a step toward this sort of internationalist political education. (ROBBINS,1991, 183) O cosmopolitismo pós-moderno pode ser, além de uma condição inerente ao capitalismo transnacional (cada vez mais pessoas compartilhando experiências culturais, cada vez mais trocas entre culturas e produtos distintos em espaços e tempos simultâneos), uma postura política que urge pela des-hierarquização do mundo. Sem o enfoque no “personagem” cosmopolita (o “cidadão do mundo” do significado mais comum da palavra “cosmopolita”) com seus privilégios, com a deteriorização da idéia da metrópole como o centro do cosmopolitismo e com a definição de uma nova acepção do conceito que ultrapasse um relativismo cultural “absolutizado” e os modismos da “hibridização” e do pós-
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colonialismo, o cosmopolitismo pós-moderno pode ir na direção de uma política das diferenças. Estendendo a dialética do cosmopolitismo, a pósmodernidade acrescenta uma dimensão intersticial para a cultura do fim-de-século. O hibridismo— que antes seria uma característica inerente, mas negativa das culturas periféricas (colônias ou póscolônias)— passa a ser uma marca geral da cultura contemporânea. A globalização seria, portanto, um conjunto de expressões de “fronteira”, um multilingüismo cultural. Como coloca Homi Bhabha, Cultural globality is figured in the inbetween spaces of double-frames: its historical originality marked by a cognitive obscurity; its decentred ‘subject’ signified in the nervous temporality of the transitional, or the emergent provisionality of the ‘present’. (BHABHA, 1994, 216) Sem dúvida, as relações interculturais estabelecidas no final do século XX vão muito além do (limitado) relativismo cultural proposto pela antropologia moderna. O cosmopolitismo pósmoderno redimensiona a dualidade Mesmo / Outro na medida em que evidencia o terceiro termo na dialética do cosmopolitismo: um espaço onde se conjura simultaneamente o centro e a periferia, o Mesmo e o Outro, a modernidade e o arcaísmo.
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Neoliberalismo tropical: a indústria cultural brasileira pósmoderna Éramos mais cosmopolitas há dez anos. Tudo que cheirasse a folclore e a nacionalismo era rejeitado com mais facilidade. Vivia-se uma estética “clean”, a luz fluorescente dava charme à sala de estar, o filme “Diva” era “cult”, vestir-se de preto era o máximo. Tudo tinha um toque de “nouvelle cuisine”. Marcelo Coelho Na predominância de uma situação de relativo isolamento cultural entre as “Américas Latinas”, há, a partir dos anos 80 no Brasil, uma espécie de retorno aos valores de imitação cultural,
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dizendo melhor, talvez de reforço— já que eles nunca desapareceram— deles, que eram especialmente dominantes na Belle Époque: substitui-se gradualmente a cultura engajada e internacionalista dos anos 60 e 70 pela adesão ao mercado e pela constante cópia dos modelos do Primeiro Mundo. Neste momento, porém, não vai ser a França —mais especificamente Paris, como a cidade principal do cosmopolitismo centrífugo— ou a cultura européia como um todo que vão ser tomadas como referências máximas. E sim os Estados Unidos, que passam de alvo de contestação (desde as denúncias do imperialismo norte-americano do Cinema Novo e da música de protesto dos anos 60 e 70) a modelo cultural principal da classe média letrada brasileira. Na relação do Brasil com a cultura norte-americana, dois elementos podem ser destacados. O primeiro deles é a consolidação da cultura de massas e por conseguinte do universo de referências pop americanas ao qual o mundo inteiro vai ter acesso. Isso vai ser refletido não apenas diretamente na produção cultural do país, mas também na maneira como se pensar essa produção. Paralelamente ao desenvolvimento da cultura de massas americana, há um inegável crescimento da indústria cultural brasileira. A própria existência de uma indústria cultural brasileira que não apenas é calcada nos moldes da americana, como também veicula os próprios produtos da mesma e cresce de forma espantosa para os padrões da periferia pressupõe o desvio das atenções que antes estavam concentradas na cultura popular e sua “autenticidade” e na tentativa de definição da “identidade nacional”. A partir dos anos 80, ocorre no Brasil o casamento entre cultura e mercado (poder-seia dizer que antes havia um flerte, um noivado), em contraposição à cultura invariavelmente ligada à política e às relações (positivas ou negativas) com o estado repressor dos anos 60 e 70. E o mercado desta época já não era o mesmo que vinha totalmente condicionado ao protecionismo governamental. A indústria cultural brasileira dessa época legitimou-se a partir de uma notável — mesmo que em alguns casos (como a Rede Globo de Televisão por exemplo) apenas aparente— ruptura com o aparelho estatal. Outro aspecto importante é a crescente rapidez com que o Brasil torna-se a par das evoluções do mercado cultural internacional, fixando-se numa posição significativa no quadro mundial: Portanto, uma indústria cultural de dimensões nacional e internacional: sétimo mercado mundial de televisão e
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publicidade, sexto na produção de discos. (ORTIZ, 1988, 202)5 O segundo elemento está circunscrito no âmbito mais específico da teoria e da história da cultura — embora tenha muitas relações com o primeiro elemento. A discussão teórica crucial (e que ultrapassa os limites da teoria, entrando no discurso cotidiano) que abre a década de 80 no Brasil é a mesma que tinha sido iniciada nos 70 nos Estados Unidos: o pós-moderno. O pós-modernismo e a pós-modernidade tornaram-se, mais do que estilos artísticos ou conceitos filosóficos, verdadeiras modas culturais —algo que aconteceu talvez em outra dimensão também nos Estados Unidos. Como já foi visto antes, o pós-moderno no Brasil (e na América Latina) foi tomado inicialmente na sua acepção estética, mais como um estilo norte-americano — e mais estritamente das artes plásticas e arquitetura— que como postura teórica. Rapidamente, contudo, o termo espalha-se para inúmeras áreas. Desde as escolas de arquitetura passando por cursos de comunicação, chegando no jargão do jornalismo cultural, nas mesas de bar e em análises sociológicas. Pós-moderno, mais do que um conceito teórico propriamente dito, torna-se um adjetivo “curinga” prestando-se a qualquer definição desejada. Suplementos culturais dos principais jornais do país, periódicos científicos, debates nas universidades: o pós-moderno configura-se como uma espécie de “epidemia cultural” dos principais centros urbanos brasileiros a partir dos anos 80. O pós-moderno, aliás, encaixa como o perfeito paralelo ideológico aos rumos tomados pela economia e política locais e ao desenvolvimento de um novo mercado cultural. É o nexo discursivo ideal para a tentativa de neoliberalismo nos trópicos, é uma justificativa sob medida para os novos tempos do “livre consumo”, da cultura como moda e do descompromisso político e social. O discurso da pós-modernidade no Brasil revela-se como expressão do desejo de uma cultura que não tenha nada a ver com a “identidade nacional”, uma cultura que mimetize as inclinações de uma urbanidade primeiro-mundista, uma cultura que afirme enfim a 5Estes
dados referem-se a 1984 e foram obtidos em Lívia Antola e Everett Rogers, “Television Flows in Latin America”, Communication Research, v. 11, n 2, abril de 1984.
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modernização tecnológica do país— sem referir nem mesmo lembrar os incríveis desníveis entre classes nessa sociedade. O pósmoderno, como discurso e movimento cultural, é, no caso do Brasil dos anos 80, então, uma manifestação peculiar da classe média urbana. Um “estilo” que repete os ímpetos cosmopolitas da elite da Belle Époque carioca, só que desta vez com muito mais pessoas— o pós-moderno não vai estar restrito apenas à elite, mas vai ser o domínio por excelência de uma classe média em ascensão ou dos “yuppies tropicais” — com acesso a esta identificação. O discurso pós-moderno no Brasil dos anos 80 é também o sinal de uma época de transição, na qual o país começa a adequarse (ou tenta, pelo menos) às mudanças no capitalismo. O capitalismo transnacional transforma não apenas as instâncias da produção material, como também a superestrutura. A cultura brasileira inicia efetivamente nos anos 80 um processo de internacionalização totalmente diferente dos ideais libertários do internacionalismo socialista e combativo proposto nos anos 60. Este processo está totalmente condicionado pelo desenvolvimento da indústria cultural de acordo com o modelo norte-americano, na qual já inexiste uma divisão muito clara entre cultura de massas, cultura popular e cultura de elite. Nessa equação cultural, o elemento mais importante torna-se o mercado: tudo é passível de compra e venda desde objetos materiais a olhares, idéias e imagens. The market becomes the only sphere of social action, and the economic becomes the only motive of morality. Ultimately, economic activity becomes the principal form of human expression. As the obsession with “style” during the eighties shows —exemplified by the magazine The Face launched in 1980— you are what you buy. (HEWISON, 1995, 212) Há uma reorientação mercadológica no universo cultural brasileiro que leva ao aparecimento de uma cultura pop brasileira— o cenário mais propício aliás para o florescimento do discurso pós-moderno. É necessário, portanto, definir em linhas gerais o que seria essa cultura pop brasileira. É imprescindível deixar claro que não estou me referindo nem à cultura popular propriamente dita, nem à liberal identificação da cultura de massas com a cultura popular (ver em CHAUI, 1985, 9-15). Em uma primeira aproximação, o que chamamos de cultura pop abrange a cultura
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massificada (com possibilidades de reciclagem), um maior acesso (mesmo que as classes mais baixas ainda estejam à margem) à cultura de elite e um domínio simultâneo da cultura de massas e da cultura de elite. A cultura pop brasileira vem responder a uma demanda desse mercado cultural emergente nos anos 80, um mercado com um público e um foco de produção e consumo específicos: os jovens da classe média letrada dos grandes centros urbanos — predominantemente no sudeste do país. A cultura pop brasileira opera num sistema regulado pelo mercado que por sua vez está sujeito à conformação da cultura como moda, à “movença precipitada das variações” (LIPOVETSKY,1989, 35). As lógicas do slogan, da publicidade, da efemeridade dos produtos e estilos, dos modismos persistem nesse período de intensa efervescência, não propriamente de idéias originais, mas pelo menos de produtos os mais variados possíveis. No contexto da cultura pop brasileira e da disseminação de um discurso pós-moderno —e pós-modernista— no país, a palavra impressa é extremamente relevante. Através dela são repassados os outros itens do bazar cultural dos anos 80, por isso vai-se concentrar nela neste item, em detrimento de outras esferas como a música popular, o cinema, a televisão ou o teatro. A metalinguagem é fundamental para que essa cultura estabeleça-se como moda. É através do discurso sobre a cultura pop, através de uma constante autodefinição do sistema que o mercado cultural consegue vender seus produtos. O jornalismo cultural, a editoração e o discurso acadêmico exercem papéis centrais no sistema da cultura pop brasileira dos anos 80: o de renovadores das modas e estilos, o da autoconsciência como indústria e o de reveladores dos processos que regem a produção e o consumo dos objetos culturais. A imprensa cultural brasileira vive a partir dos primeiros anos da década de 80 uma transformação radical em relação às épocas anteriores. Ela passa de reduto relativamente fechado dos literatos “à moda antiga” e intelectuais acadêmicos a espaço publicitário intensamente rentável e agitado. Nos suplementos culturais diário (Ilustrada) e semanal (Folhetim) da Folha de São Paulo de 1980 a 1989, encontra-se a síntese de um projeto jornalístico que realiza claramente a transição para esta cultura pop. Não é arriscado dizer que a Ilustrada —também o Folhetim, mas numa escala mais reduzida e de maneira mais sofisticada— vai definindo ao longo da década o perfil do consumidor (e às vezes até do produtor) de cultura pop no país. Num texto comemorativo
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sobre o suplemento, os editores deixam bem claras suas pretensões —que, mesmo em termos, chegam a ser realizadas: Ao chegar na década de 80 a Ilustrada vai estar presente no universo cultural brasileiro como um agente duplo. Ela passou a ser ao mesmo tempo narrador e militante. Atua no universo cultural como partícipe. (ILUSTRADA 1960-1990, 1) Embora essas noções de militância e participação sejam ligeiramente imprecisas e parcialmente exageradas, o que é natural quando os responsáveis pelo veículo falam do próprio veículo, é verdade que o embrião do discurso pós-moderno brasileiro apareceu lá. A ponto de artistas como Caetano Veloso dizerem: Antigamente eu ficava falando uma porção de coisas do Jornal do Brasil, mas agora, na transa do jornalismo, penso no aspecto positivo. Gosto da Ilustrada, assino a Folha, porque tem páginas polêmicas (...). Acho ótimos esses rótulos de pós, neo, pré que ela cria (grifo nosso). Adoro moda, mas prefiro o rótulo do Planeta Diário, pós-pop-pró-pobre, poético para o Brasil. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1985) Não se pode negar que a Folha de São Paulo foi a vanguarda jornalística brasileira dos 80. Até o seu rival mais direto, o Estado de São Paulo, teve a influência da Ilustrada, no lançamento do seu caderno de variedades, o Caderno 2, que apareceu apenas em abril de 1986 . O jornalismo cultural brasileiro realmente ganhou uma nova face a partir da Ilustrada. Alguns jornais de menor alcance nacional chegaram a copiar sem muitos pudores o seu projeto gráfico e seu ‘estilo’6. Aliás, foi esse tipo de imprensa cultural que conferiu a importância devida ao estilo' (um estilo especial: jovem, pós-moderno, high tech ) na linguagem jornalística. O novo jornalismo' brasileiro dos 80 viabilizou o surgimento de dois 6Como
foi o caso do pernambucano Jornal do Commercio, em 1987, que refez todo o seu projeto gráfico baseado na Folha de São Paulo, principalmente.
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procedimentos básicos na linguagem da crítica cultural: uma maior coloquialização e, paradoxalmente, uma maior sofisticação, através de códigos cada vez mais cifrados (o código da música pop e seus subcódigos, o código dos cult movies, o código das artes plásticas...). Novamente estamos diante de uma lógica que privilegia a busca estética da diferença e do inédito camuflando, na verdade, a continuação do mesmo. Os próprios jornalistas se referem a um certo jornalismo cultural que carrega como fardo a necessidade permanente de inventar tendências para ter o que publicar no dia seguinte. Uma legião de idiotas que sobrevive à base de invenção desses novos fenômenos' ... (CARVALHO, FOLHA DE SÃO PAULO, 1992) Os suplementos culturais da Folha de São Paulo indubitavelmente lançaram modas e estabeleceram o padrão para uma nova concepção de jornalismo cultural no Brasil, além disso, eles serviram para a disseminação e popularização de uma cultura pósmoderna brasileira. A reportagem “Fique por dentro, fique por fora” (CASTRO, FOLHA DE SÃO PAULO, 1984), por exemplo, pequeno texto com depoimentos de personalidades do showbusiness e intelectualidade brasileiros e um quadro in-out dá uma “receita” de pós-modernidade e resume o que seriam os principais procedimentos do jornalismo cultural para a solidificação da cultura pop brasileira: a enumeração esquemática de modas culturais, o receituário de pós-modernidade e cosmopolitismo, o uso de imagens e figuras cult da classe média jovem. A Ilustrada e o Folhetim apreenderam dispositivos da imprensa internacional para viabilizar um “novo jornalismo” brasileiro. Esse “estilo” cujos dois procedimentos básicos descrevíamos anteriormente, que refletem uma grande sintonia com os tempos pós-modernos. Os anos 80 no jornalismo cultural brasileiro impulsionaram uma linguagem “juvenil”, tanto no sentido dos seus objetos, como nas suas formas. O que contribui inclusive para o aumento de circulação dos diários na década. Ao final de uma palestra sobre Balzac e a ética jornalística, José Miguel Wisnik avalia assim o papel da Folha de São Paulo no jornalismo brasileiro: A Folha (justiça seja feita) ganhou uma certa dianteira no processo jornalístico e
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cultural, deixando atrás de si não só os seus concorrentes, mas também intelectuais, artistas, universidades, políticos, partidos, graças a um diagnóstico da situação contemporânea onde o poder da imprensa foi pensado como poder em estado puro. Nos termos de Balzac: não mais sacerdócio, nem serviço aos partidos, mas negócio. O negócio supõe uma explicitação agressiva da concorrência aliada à inovação técnica, legitimação universal pelo mercado e avaliação da cultura como territótrio das ilusões perdidas (permeabilidade máxima com a moda, cenas de niilismo explícito, e transgressões éticas e estéticas que fizeram época no incêndio da Ilustrada de que hoje temos o rescaldo.).(WISNIK, 1992, 256) O próprio embrião do discurso do pós-moderno— novamente faço lembrar que este conceito tem mais que ver com a existência de um “estilo”, que com as elaborações filosófico-sociais subseqüentes sobre a pós-modernidade na teoria brasileira— no Brasil aparece primeiro na Ilustrada e nos ensaios do Folhetim, para depois se alastrar pela mídia e pela academia. É estabelecido no país um padrão de comportamento e de consumo “pósmodernos” alicerçados pelo poder do jornalismo cultural. Esse estilo pós-moderno vai estar ainda mais evidente no jornalismo cultural especializado das revistas, por exemplo. É aí que está concentrado o maior número de jornalistas adeptos dos modismos cosmopolitas, da fashion culture, dos rótulos. E embora grande número desses jornalistas também trabalhe na imprensa diária, no jornalismo especializado (em música, moda, cinema e “comportamento”) eles podem exercer uma faceta mais doutrinária no que diz respeito a uma cultura pop e pós-moderna. Revistas como a Bizz, edição mensal sobre música pop e rock, ou a Set, sobre cinema, ambas da editora Azul, parte do grupo Abril, dão a dimensão de como se dá esse trabalho de “adestramento” para a cultura contemporânea. Na abertura da matéria “Dark? Eu?”, na Bizz, José Augusto Lemos introduz o tema (o estilo dark na música e na moda— a terminologia, aliás, uma “in-tradução” da mídia brasileira, já que no seu lugar de origem,
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Inglaterra, os adeptos do movimento são conhecidos como góticos) e joga para outro jornalista, Pepe Escobar a “culpa” da invenção e disseminação do modismo no Brasil. Escobar continua no mesmo volume, então: O Brasil é longe. Muito longe (...). E tudo era dark como nos últimos tempos andou sendo punk, beat, uêive, póisshhmoderrrrno, etc. (...) Dá para escapar dessa palhaçada? (...) Leia Nietzsche com atenção, completando com os ensaios sobre ele por Deleuze e Bataille. (...) Só estudando e tentando compreender nossas sombras é que podemos almejar e pressentir alguma iluminação. (BIZZ, 1986, 37-40) Com pomposidade e gravidade, a imprensa especializada presumese autorizada para ditar o que é ou não de “bom-tom” para os seus leitores (ou epígonos), para lançar ou abandonar os modismos que lhe aprouvesse. Os jornalistas se travestindo de arautos dessa nova era pós-moderna. A constante remissão ao esquema in-out, a rápida substituição de uma moda cultural por outra, a permanente mudança no jargão do jornalismo cultural são sintomas das transformações do mercado cultural brasileiro na década. Um fator como o Plano Cruzado (plano econômico do governo de José Sarney de 1986 que, entre outras medidas, congelava a moeda para controlar a inflação), mesmo de forma muito transitória, favorece expressivamente novas publicações, novas edições discográficas, confecções, bandas de rock, concertos de artistas internacionais no país. O que reverte em uma inclinação muito mais cosmopolita em todas essas camadas da cultura e manifestações da mídia. Um tipo de publicação particularmente influente nessa cultura pós-moderna brasileira foi as “revistas de moda & estilo & frescuras em geral” (BIZZ, 1987, 112): as precursoras e as mais disputadas nas importadoras eram as inglesas The Face e I.D.. Não só esse tipo de revista modificou completamente as idéias sobre planejamento gráfico e comunicação visual na imprensa cultural brasileira —influências sentidas desde a diagramação da Ilustrada até nas revistas mais especializadas— , como até os detalhes de sua estrutura foram copiados fielmente em muitos casos. Como o da revista HV (Humor-Verdade), veiculada apenas entre 1988 e 1989,
103 uma somatória de registros diversos copiados do “estilo inglês”: moda, economia, televisão, música, cinema e, principalmente, em qualquer assunto, o estilo. Na HV estavam os jornalistas mais eminentes deste tipo de imprensa (Pepe Escobar, Sérgio Augusto, Leão Serva, entre outros), colaboradores de destaque (Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, Caio Fernando Abreu —escritores—, Guilherme Isnard —músico—, Bob Wolfeson, J. R. Duran — fotógrafos—) para mencionar apenas os mais famosos na época. Quase todos representantes da cultura pop e da ascensão do yuppie tupiniquim. A HV chegava a ter entre as principais funções editoriais um ‘assessor de estilo’. Num mesmo número, artigos sobre 68, o grupo de rock Titãs, extraterrestres, arquitetura pós-moderna, Luiza Brunet, a prepotência (como estilo) e um teste inquirindo “Você é jeca ?” (HV, 1988). Embora não haja termos para a comparação entre a penetração da Ilustrada ou de outros ‘caderninhos pós’ da imprensa diária nas cabeças brasileiras dos 80, é marcante a proliferação de publicações especializadas ou do gênero ‘estilo em geral’. A linguagem veiculada por elas, mais codificada e marcada que a do jornalismo diário, fez escola (particularmente entre os jovens concluintes do curso de jornalismo): clichês, chulices, e coloquialismo foram as constantes do jornalismo pop brasileiro (uma ‘popcrítica’ que “preocupa-se muito mais com a refração verbal dos estilhaços” (GIRON, FOLHA DE SÃO PAULO, 1985)) que poderíamos dizer envelhecido, mas que ainda tem forças para surgir como novidade nos jornais provincianos nos anos 90. Ao jornalismo cultural coube a liderança no estabelecimento da cultura pop pós-moderna brasileira, contudo outros representantes da cultura impressa também tiveram sua parcela de responsabilidade na disseminação desse sistema de modas culturais. O mercado editorial pode ser um excelente exemplo do processo de “pós-modernização” da cultura brasileira nos anos 80, não só pelos claros sinais de um crescimento absoluto, mas pelas transformações sofridas pela produção de livros. A editora Brasiliense, de São Paulo, especialmente, sintetiza esse movimento de expansão e mudança e vai ser tomada como emblema da adaptação a um novo conceito de mercado no Brasil. Esse boom vai se dar realmente a partir da década de 80, mesmo que já tivessem passado quarenta anos de sua fundação. Até os anos 80, a Brasiliense publicava majoritariamente livros teóricos de orientação marxista (cabe lembrar que a família de Caio Prado Jr.
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controla a empresa). A partir desta década, a editora torna-se um dos palcos mais recorrentes para a presentação de novidades literárias e culturais. Uma coleção de livros de bolso de divulgação, a Primeiros Passos, e um best-seller “autobiográficojovem” lançado em 1982, Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva (que em 1983 já estava na sua décima edição), são os primeiros sucessos de venda da Brasiliense na década, os primeiros indícios de uma nova mentalidade executiva do livro, e alguns dos sinais do primeiro pós-modernismo em formação no país. Um aspecto de relevo nesse projeto editorial foi a publicação de coleções pela Brasiliense; além da já citada Primeiros Passos (pequenos volumes sobre diversos temas com objetivos introdutórios; desde assuntos mais amplos como O que é filosofia, O que é música até os mais específicos como O que é cometa Halley, O que é neologismo7); as outras, Encanto Radical (rápidas biografias de personalidades cult), Tudo é história (episódios de diversos períodos da história geral e da história do Brasil), Primeiros vãos (versão mais politizada e aprofundada de alguns temas da Primeiros Passos) e as coleções de literatura, Circo de Letras e Cantadas Literárias (novelas, conto e poesia, na maior parte das vezes escritos por autores jovens e/ou pouco conhecidos e/ou temas marginais). O que interessa em toda essa enumeração é dar uma idéia geral desse público que a Brasiliense atingiu (de certa maneira, até formou) e de como fez isso: dirigindo-se a uma maioria de jovens de esquerda (geralmente a chamada “esquerda light”), universitários da classe média, pessoas de “comportamento alternativo”, a Brasiliense, através dessa política editorial e da revista trimestral da editora, a Primeiro Toque, contribuiu para fundar o perfil da nova movida cultural brasileira, o pós-modernismo brasileiro dos oitenta. Poderíamos dizer, então, que esse “primeiro” pós-modernismo brasileiro está intrinsicamente associado a uma concepção empresarial que lida constantemente com a idéia de cópia de modelos (culturais, 7É
interessante atentar para os autores desses livrinhos, na sua maioria ligados às universidades e à própria editora. Como por exemplo os citados O que é música, escrito por J.J. de Moraes (1983); O que é filosofia, pelo dono da Brasiliense Caio Graco Prado (1982); e O que é neologismo, de Nelly Carvalho (1987).
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comportamentais) que se não são totalmente alheios à cultura brasileira, têm a ver com a absorção mainstream da contracultura norte-americana. É importante assinalar a presença da Brasiliense — principalmente os livros de bolso à Que-sais-je (coleção francesa de divulgação)— nas universidades brasileiras. Embora essa série de livros não tenha sido dirigida exclusivamente para o público universitário, teve uma participação nada desprezível na vida acadêmica da década. Talvez porque: o que se lia no colégio se lê na universidade, o que era bibliografia de universidade é hoje de pós-graduação. (GOLDFEDER, FOLHA DE SÃO PAULO, 1985) O fato é que, desde os anos 80, não houve área acadêmica sequer que não incluísse em sua bibliografia alguns desses textos. Como a Perspectiva —também de São Paulo— nos 70, as Ciências Humanas eram o forte da Brasiliense, apesar de certa superficialização do enfoque e vulgarizacão do saber. Pois, ao contrário da Perspectiva, específica e teórica, a Brasiliense tentou viabilizar a possibilidade de um humanismo simplificado com a Primeiros Passos. Começa a delinear-se, portanto, um projeto editorial que pretende unir utopia e consumo, um saber “enciclopédico” simplificado com o “radicalismo” de uma literatura jovem e/ou marginal. Aliás, a concentração no mercado juvenil marca profundamente não apenas a Brasiliense como outras editoras de menor destaque, como a L & PM , de Porto Alegre. A partir desse público-alvo as editoras deram um grande impulso à cultura pop e a muitos modismos culturais. Uma espécie de “culto ao cult” pode ser percebida tanto nos títulos lançados pelas coleções das editoras (principalmente nas Encanto Radical e Circo de Letras da Brasiliense, e Alma Beat e Olho na Rua da L & PM), quanto nas revistas das editoras. Para vender em nome do cult, esse tipo de editora comete alguns excessos, como confundir cronologicamente movimentos e autores ou confiar demasiado no “hype” de certos autores e modismos. Um “mapa” de critérios pode ser estabelecido a partir de certas recorrências nesse mercado de publicações: obras pouco conhecidas de autores muito falados —mesmo que às vezes
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pouco lidos— (como o caderno Giacomo Joyce,de James Joyce, traduzido pelo poeta Paulo Leminski8), escritos de artistas pop de outras áreas que não literatura (John Lennon, Bob Dylan), personalidades “marginais” e cult por excelência (Pasolini, Benjamin, Kafka), modas especificamente em alta nos anos 80 (os beats, o romance policial noir americano, o cinema de vanguarda, a onda “retrô”), jovens “memorialistas” brasileiros com uma prosa exclusivamente urbana, entre outras estratégias de menor ocorrência. Na segunda metade da década surge uma editora igualmente significativa nesse fenômeno de conformação do discurso pós-moderno dos anos 80 no Brasil: a Companhia das Letras, também de São Paulo, fundada pelo ex-diretor comercial da Brasiliense, Luís Schwarcz. Entretanto o “igualmente significativa” só se afirma pelas marcantes diferenças entre a Companhia das Letras e editoras como a Brasiliense, a L & PM e a Max Limonad (outra editora concentrada no mercado cult jovem). A Companhia das Letras vai aperfeiçoar as ligações com o cultural business e vai atenuar a insistência no cult e no fatia jovem do mercado. Uma hipótese: a Companhia das Letras torna-se a editora para o leitor da Brasiliense que vai passando dos trinta. Como se com o desenrolar da década, todos os rótulos, conceitos, cultos, estigmas e penteados se revelassem esvaziados diante de necessidades mais básicas e reais de um mercado mais amadurecido. Se, por um lado, esse amadurecimento mercadológico pode denotar o início da mudança de rumos do pósmodernismo brasileiro, por outro, revela com mais nitidez ainda os processos de imitação cultural — uma espécie de cosmopolitismo unidimensional— implicados na recepção superficial do conceito de pós-moderno. A Companhia das Letras é conseqüência de uma visão ainda mais empresarial da cultura. Se a Brasiliense e outras editoras similares encarnam um tipo de “irmandade” onde o novo, o cult e o marginal podem ser reverenciados, na Companhia das Letras a referência ao já validado por outras épocas (como alguns 8
Giacomo Joyce, aliás, havia sido publicado pela primeira vez no Brasil pelo Folhetim da Folha de São Paulo, em junho de 1984, com tradução de José Antonio Arantes.
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autores brasileiros dos anos 70 que foram praticamente esquecidos pelo outro projeto editorial, como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna), ao “clássico”, ao bem-acabado graficamente — sem tantas ousadias ou popismos como na outras editoras—, à reputação comprovada são algumas das características da política de publicações. Com um catálogo relativamente pequeno, mas muito seletivo, a Companhia das Letras publicava autores reconhecidos, mas não exatamente populares. Poetas ingleses da década de 40, romancistas irlandeses pós-Joyce e iugoslavos “revelação”, escritores brasileiros dos 70, ensaístas brasileiros e estrangeiros das universidades mais respeitadas. Talvez o projeto editorial tipo Brasiliense tenha tido mais impacto na formação de “corações e mentes” pós-modernos no Brasil. É que a Compahia das Letras é o resultado de uma segunda leitura da “pós-modernidade” editorial brasileira. Uma segunda leitura que não abandona de todo a fascinação do cult, mas aperfeiçoa a “embalagem” e amplia seus públicos alvos. A Companhia das Letras reconhece de antemão que existe uma atração pelo underground, pelo diferente, pelo novo na cultura brasileira dos anos 80, mas que o mainstream, uma certa tradição, e o “bom-gosto”—talvez até de uma maneira padronizada— oferecem mais segurança no sentido mercadológico mais amplo. Outra evolução é que o projeto editorial da Companhia das Letras vem com uma visão bem menos deslumbrada e perplexa da cultura pós-moderna que o projeto anterior, o que traz uma revisão mais madura — e lucrativa— das idéias surgidas alguns anos antes. O terceiro tipo de cultura impressa, a produção crítica universitária (com muitos nexos com o projeto editorial dos anos 80) vê-se afetado também por essa nova situação de mercado: o discurso acadêmico. No caso da Companhia das Letras, por exemplo, é no ensaio que a editora encontrou o seu território mais fértil, já que é o gênero predominante dos seus lançamentos. Assim, a política brasileira mainstream de publicações não apenas instituía personalidades ou livros cult, como também assuntos e áreas de acordo com uma concepção da “cultura como espetáculo”. E acaba por, de certa maneira, estabelecer um star system da academia brasileira, onde professores universitários ganham um considerável espaço na mídia e acabam por ficar conhecidos em outros âmbitos que não a universidade. A Companhia das Letras lança, desde 1985, uma série de volumes com ensaios sobre um tema bem geral com diversas abordagens distintas por intelectuais
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reconhecidos, proferidos em ciclos de palestras no início promovidas pela extinta FUNARTE, em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Os volumes são graficamente sofisticados, seus preços não são baixos, mas vendem mais do que satisfatoriamente. Esses livros9 demonstram que não só as instituições acadêmicas (e seus membros constituintes) começam a adaptar-se à cultura de mercado, como também que a própria indústria cultural acaba por reconhecer o potencial mercadológico do saber (e dos “divulgadores” desse saber). Eles apontam também um novo tipo de presença na academia; mesmo que pareça, à primeira vista, um modo usual de cooptação oficial ou colaboração com as instituições. Ao contrário, as instituições é que estão se adaptando ao mercado . O saber agora pode ser exposto como num bazar, e seus produtores não são mais ilustres desconhecidos . Os nomes dos intelectuais universitários ganharam em algumas editoras uma aura que em outras épocas era privilégio apenas dos ficcionistas e poetas10. A Perspectiva nos anos 70 usava o potencial universitário como instrumento para a renovação intelectual do país. A Brasiliense, nos anos 80, desconfiava das virtudes mercadológicas do saber acadêmico, mas apostou quase todas as fichas na informação simplificada das coleções e nos atrativos do cult. Já a Companhia das Letras, a partir de 1987, aproveitou o ensinamento de ambas as "correntes", mas amplificou o público alvejado pela Perspectiva e foi além da Brasiliense no seu conteúdo, nos nomes escolhidos e na embalagem dos produtos11. 9
Entre os títulos da série geralmente organizada por Adauto Novaes, incluem-se :Os sentidos da Paixão (1987), O desejo (1990), Ética (1991) e Tempo e história (1992). 10Através
da organização dos debates, através da publicidade e também promovidos pela imprensa especializada. Os suplementos culturais dos pincipais jornais do país deram cada vez mais destaque aos ensaios publicados pela Companhia das Letras. 11Ver
os catálogos das respectivas editoras para notar a marcada diferença entre o seus merchandising. Enquanto a Perspectiva investia na neutralidade das capas brancas com um listra de cor forte para identificar a área ou a Brasiliense fazia capas mais ou menos simples, a Companhia das Letras contratou designers
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Nessa conjuntura bem geral da cultura brasileira dos anos 80 chama a atenção, contudo, uma notável ausência: pouco se discute ou até se coloca em pauta a problematização da identidade nacional. É como se durante esta década a discussão central do ser “brasileiro” ficasse em suspenso diante da urgência em se adequar aos novos padrões pós-modernos internacionais e de superar a década anterior com seu nacionalismo exaltado, seu provincianismo e seu inegável nexo com a ditadura. Na verdade, desde a absorção modernista até o Tropicalismo, com toda censura e cooptação, a identidade brasileira às mostras na cultura de massas parecia estar cada vez mais próxima de uma pretensa “unificação”.A identificação com o nacional, erudito ou popular, tinha raízes mais profundas na indústria cultural (o que não significa dizer que não existia importação dos “enlatados” para TV, da música popular norte-americana ou das fotonovelas italianas) . A cultura brasileira não era tão voltada para o elemento urbano e tecnológico nas suas manifestações. O cosmopolitismo era quase um elemento “negativo” no discurso dominante da cultura brasileira. O que pode ter acontecido foi a delineação de um projeto mundial de cultura pop. A cultura pop podia ser muito clara, pelo menos desde o pós-guerra, em outros lugares do mundo, mas no Brasil só se manifestou sem rodeios nos anos 80 . Com o surgimento da cultura pop (que não é igual à Cultura Popular e não é a Cultura de Massas simplesmente dita; a cultura pop poderia ser definida como uma Cultura de Massas mais ativa e consciente de si mesma ) afirmou-se a universalização do rock, da contracultura, do cinema de grandes públicos como os principais valores da cultura ocidental contemporânea. Esse Brasil “aspirante a pós-moderno” —uma fatia da população que envolve principalmente jovens da classe média intelectualizada, mas que foi crescendo a cada ano da década de 80— quer fazer parte desse universo pop, desse império do efêmero, dessa constelação brilhante da cultura fin-de-siècle. Um desejo veemente —não de todo um povo, mas de uma classe urbana intelectualizada e com certo poder aquisitivo— de conhecidos para elaborar trabalhos sofisticados de comunicação visual.
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pertencer a algum lugar, bem demarcado e bem longe da cultura do campesinato e das favelas de morro. A concepção dominante de cosmopolitismo volta a ser aquela do início do século, onde a compulsão pelas modas “estrangeiras” —ou a veemente rejeição delas, ainda em linha com a herança dos anos 60— passam a dar o tom, não apenas na cultura impressa, mas em todas as outras áreas, como música —com a “explosão” do chamado “rock brasileiro”—, cinema —filmes como A dama do Cine Shangai, Anjos da noite, Doida demais, Faca de dois gumes e A grande arte revelando uma imagem yuppie e estilizada do Brasil—, televisão —a Rede Globo caracterizando-se como importante mercado de nível internacional— e também teatro— com uma figura controversa como Gerald Thomas e novos talentos como Bia Lessa transformando os padrões textuais e visuais da dramaturgia brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIZZ n 20, março de 1987. CARVALHO, Bernardo de. "Cultura média é invenção" in Mais!, Folha de São Paulo, 21 de junho de 1992.
111 CASTRO, Ruy. “Fique por dentro, fique por fora”, Folha de São Paulo, 22 de setembro de 1984. CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência. Aspectos de cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. COIMBRA, Márcia. “Entrevista com Caetano Veloso”. Folha de São Paulo, 22 de outubro de 1985. GIRON, Luís Antônio. "o mito (descartável) do descartável", Folha de São Paulo, 28 de abril de 1985. GOLDFEDER, Miriam. "Os executivos do livro: a imaginação contra a crise econômica", Folha de São Paulo, 15 de setembro de 1985. HEWISON, Robert. Culture and Consensus. England, Art and Politics since 1940. London: Methuen, 1995, p. 212. HV n 10, setembro de 1988. ILUSTRADA 1960-1990, setembro de 1990 [edição especial para assinantes da Folha de São Paulo]. JOYCE, James. Giacomo Joyce. São Paulo: Brasiliense, 1985. LEMOS, José Augusto e ESCOBAR, Pepe. “Dark? Eu?”, Bizz, n 15, outubro de 1986, pp.37-40. LIPOVETSKY, Gilles. O Império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 35. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.202. WISNIK, José Miguel. “Ilusões perdidas”, Ética [org. Adauto Novaes], São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, pp. 235-58.
Diogo Mainardi e a narrativa pós-moderna brasileira A ficção brasileira das últimas décadas, em especial a da segunda metade dos anos 80 e início dos anos 90, tem se orientado, principalmente por dois cânones: o de continuidade da tradição
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literária brasileira regionalista, com influências do romance histórico e do realismo mágico; e o da citação e "excitação" urbana, representado por Rubem Fonseca e seus romances policiais pinçados com uma erudição heterodoxa e pela ficção pop dos jovens prosistas dos anos 80. Esta , sem dúvida , seria a "prosa cheek to cheek com o mercado" (SÜSSEKIND, 1993). O mercado cultural no Brasil desta época soube muito bem se dividir entre estes dois pólos. Pois, se o romance regionalista poderia garantir às editoras a liderança na lista de bestsellers , a "novidade" chamada por alguns de pós-modernismo poderia explorar uma nova fatia do público: a camada jovem. No final dos anos 60 e durante os 70, os itens culturais brasileiros estavam quase que completamente vinculados (positiva ou negativamente) ao regime militar, irrompido pelo Golpe de 1964. Ou se era cerceado pela censura, ou se aceitava os subsídios oferecidos pelos órgãos repressores. A partir dos 80, as "leis" da cultura brasileira começaram a se orientar basicamente pelo mercado. A maneira de se pensar a cultura no Brasil mudou porque o mercado também mudou. O protecionismo governamental diminuiu ou ganhou novas formas, outros espaços foram sendo criados. Houve uma aceleração dos processos culturais em termos de concepção, transmissão e recepção. Os empresários de cultura no Brasil começaram a levar cultura a sério como Cultural Business. O movimento editorial das últimas décadas, por exemplo, propiciou o lançamento de um grande número de escritores desconhecidos entre os nomes sagrados do romance brasileiro e a maior parte das estratégias de marketing editorial estava dirigida a estes novos nomes. Um veterano como Rubem Fonseca pôde exemplificar uma sofisticação mercadológica ao se colocar estrategicamente entre as duas vertentes da ficção brasileira: fez o elogio ao pós-moderno através da idealização erudita dos seus narradores e das fontes de citações mais diversas possíveis (cinema, literatura, botânica , zoologia, etc) e optou pelo gênero policial mais trivial, utilizou técnicas do romance histórico ao escrever Agosto (1989) e O selvagem da ópera (1994) e em nenhum momento deixou de ter consciência do livro como bem de consumo. Os autores da tradição regionalistas e os romancistas históricos recorreram ao tom épico , aos romances de fundação. E os autores jovens, os frutos diretos da cultura pop, produziram grande parte das novelas e contos com fundo total ou parcialmente
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autobiográfico do país. Um dos maiores sucessos de venda no Brasil dos anos 80 foi a novela autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva, Feliz Ano Velho. E tantos outros fizeram as suas "memórias precoces", explícita ou implicitamente (Pepe Escobar, Reinaldo Moraes, Eliane Maciel, Alita Sá Rego, etc). Essa propensão para o autobiográfico pode ser vista também como resultado de uma necessidade mais geral : a de purgar o que aconteceu nos anos de ditadura. Além disso, foi o prosseguimento estilístico natural do panorama literário dos anos 70. Ambas as tendências dominantes deste período estavam longe da invenção, do experimentalismo e do humor. A riqueza temática das obras é bem maior que sua inovação estrutural, embora os prosistas pop não se cansassem de jogos de palavras e de desvios lispectorianos num pós-modernismo hesitante. A tentativa de ruptura nos anos 80 pode ser comparada a cacoetes de segunda mão, tomados dos experimentalistas dos 70. Havia o tom regionalista, o romance de fundação e "um máximo de referências num mínimo de estratégias formais"(Prysthon, 1993). Apareceram os heróis populares de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro e a violência urbana de Chico Buarque de Holanda e Fonseca. Foram criados o Gregório de Matos de Ana Miranda, o Graciliano Ramos de Silviano Santiago, o Getúlio Vargas também de Fonseca e o word processor de Pepe Escobar, a avenida Paulista de Rubens Paiva e Teixeira Coelho. Entre essas polaridades, o escritor Diogo Mainardi prefere não escolher... O meu propósito é descrever em linhas gerais em que consiste esta negação. Mainardi lançou suas duas novelas, Malthus (1989) e Arquipélago (1992) quando o mercado já estava saturado de jovens memorialistas e suas autobiografias precoces, quando o discurso pop já se esgotara, quando o romance histórico já se encontrara institucionalizado. Neste contexto, ele representou uma das vozes dissonantes. Trouxe para a literatura brasileira recente o nonsense e as estruturas cômico-filosóficas (confinadas ao limbo machadiano e ao modernista). Sem apologias cultura pop, sem referências diretas pós-modernidade no seu discurso (como faziam os ficcionistas pop), sem a experimentação formal típica dos 70 (Osman Lins, Clarice Lispector), Diogo Mainardi se inscreve, por assim dizer, numa tradição de escritores humorísticos, no pósmodernismo ligado à paródia e ao Maneirismo: Rabelais, Cervantes, Sterne, Carroll, Flann O'Brien, Italo Calvino, Barth, Barthelme... Depois de uma década onde os escritores brasileiros
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consideravam os elementos referenciais e a história recente (de suas vidas, nos piores dos casos) como os únicos recursos possíveis para a legitimação de um discurso pós-modernista brasileiro, Malthus veio como uma configuração não-programática e menos monolítica desse pós-modernismo - para além da estilização das citações, para além do exagero intertextual explícito. Malthus conta em suas poucas páginas a trajetória de Loyola y Loyola, o personagem principal que no início do livro era um habitante da mansão da Sra. Robalinho e que tinha como principal ocupação vender os móveis desta propriedade a um outro morador chamado Ovas Negrão. Da casa da Sra. Robalinho a tripulante do navio Deodoro da Fonseca e uma carreira como fabricante de refrigerantes, Loyola y Loyola termina sendo quadruplicado, depois multiplicado por quinze, depois por quarenta nos sucessivos supostos milagres do agora beato Ovas Negrão. A noveleta de Mainardi traz uma série de situações atordoantes, um contínuo esbarrar de personagens, fatos e revelações. O que já determina uma grande distância do que norteou boa parte da produção literária brasileira dos 80. Ovas Negrão foi impedido de remover os móveis que Loyola y Loyola depositara na biblioteca; caiu do terceiro andar , sobre o canteiro de flores. - Magistrados destroncando os meus membros. São Fortunato. - Magistrados me jogando lá de cima." (Malthus, 16) Nenhum dos temas da prosa pop (violência e caos urbanos, juventude, drogas, política nacional recente, homossexualismo...) está presente, nem a recorrência às citações e intertextos pós-modernos. Malthus aparece com uma textualidade limpa e clara, uma temática absurda, algumas poucas referências à história clássica e à vida dos santos, uma ausência de contextualização. Loyola y Loyola desaprovava essa promiscuidade. Tentava despistar seus análogos nos corredores do supermercado, nas ruas movimentadas, nos estádios de futebol. (...)Os quádruplos, no entanto, jamais o abandonavam.
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- Pense num número... - Pronto. - Oito. - Cinco. (...) Eles jamais acertavam, nem por coincidência. (80) Malthus – com seus personagens multiplicados em desastrados milagres, com suas enumerações intermináveis, com os estigmas hagiológicos de Ovas Negrão, com as falcatruas do personagem principal – articulou uma noção particularmente cara aos escritores e teóricos pós-modernistas, a paródia, porém com características muito peculiares... Pois, se para o pós-modernismo a paródia constitui a "irônica descontinuidade que se revela no âmago da continuidade; a diferença no âmago da semelhança" (HUTCHEON,1988), a paródia aí subverte porque nos permite duvidar de certos modelos (podem ser gêneros, estilos ou determinadas obras escolhidas como arquitexto), chegar à conclusão de que esses modelos são artificiais e podem ser retomados de outras maneiras. Em Malthus, a subversão não está dirigida a nenhum modelo em especial, mas a um modelo genérico de verossimilhança. Por se contrapor à verossimilhança, não necessariamente a novela renegou o ilusionismo ou se aliou à metaficção. Em nenhum momento, Malthus é literatura sobre literatura. Preocupado com o destino do animal, Ovas Negrão reuniu a congregação, orou por alguns instantes e traçou no ar o sinalda-cruz. O carneiro respondendo ao comando divino e simultaneamente identificando o seu algoz, começou a balir de dentro da barriga de Loyola y Loyola. -Milagre! Milagre! Loyola y Loyola pediu perdão. (75) A grande paródia que é Malthus é feita a partir de microcaricaturas (caricaturas negativas já que não acentuam os traços dos personagens ou das situações, mas refinam o seu despojamento). Mainardi criou as tramas sucessivas da novela sem os luxos da narrativa que assegurariam o efeito de realidade. Ao mesmo tempo, o livro conjura, mesmo ignora, perguntas ou certezas sobre a metalinguagem, sobre a própria literatura ou o destino formal de fim-de-milênio. Assim, o grande traço de
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Malthus vem a ser o paradoxo: para minar o modelo de verossimilhança, a estratégia utilizada é a verossimilhança absoluta (onde tudo é possível, cabível, verossímil), a não-paródia. Em Arquipélago, a segunda novela do escritor paulista, tudo continua sendo possível. Entretanto, Mainardi delineou uma trama menos elíptica: O livro começa em seguida a uma inundação da cidade de Pedranápolis. O narrador e alguns desabrigados (todos devidamente anônimos) estão procura de terra firme; o único lugar que paira acima da água é a cúpula de uma igreja de 80 metros de circunferência. É nessa ilha que o intelectual e massa gelatinosa de desabrigados vão criar uma nova sociedade na base do autoritarismo e da fuzarca. Não parece familiar? (PIZA, 1992) Justamente por ser um relato menos marcado pela fragmentação, Arquipélago suscitou, época de seu lançamento, uma série de interpretações alegóricas que relacionavam as ilhas e legisladores do livro ao Brasil e seus acontecimentos políticos. O que não é muito evidente, nem provável , se temos em vista o texto , mais inclinado à parábola nonsense: "Quatro desabrigados aferravam-se ao mesmo tronco de carnaúba. Apresentamonos. O primeiro desabrigado estava com o braço esquerdo fraturado. O segundo desabrigado, num gesto de solidariedade, tentou fraturar o braço esquerdo dos dois outros desabrigados. Foi contido. Abraçamo-nos." (Arquipélago, 7) Arquipélago tem cor local; é ambientada no norte do estado de São Paulo, de onde o narrador (o filósofo e legislador da ilha-cúpula) se deslocaria , após uma progressão de incidentes e catástrofes na abóbada da igreja, primeiro para a cidade de São Paulo, depois para uma peregrinação pelas ilhas da Baía de Guanabara. "Finalmente cheguei ao Rio de Janeiro. Na baía de Guanabara havia uma fartaquantidade de ilhas. A minha
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intenção era trilhar cada uma delas procura de lugares nos quais me estabelecer." (99) Como em Malthus, a sucessão de fatos é bem rápida, e incontáveis peripécias alteram a linha da história em pequenos lapsos de tempo. A cada desastre o protagonista (narrador) parece sortear de forma aleatória um outro para substituir o anterior, onde nunca haveria um desenlace satisfatório para essa série de catástrofes, senão resoluções provisórias: Depois de me submeter a um breve julgamento, decidiram me atirar na água com um pesado fardo de tijolos amarrado ao pescoço.(...) Com alguns cacos de vidro de uma garrafa de refrigerante, desatei a corda que prendia o fardo ao meu pescoço e voltei superfície. Assim que referi as minhas descobertas aos desabrigados, eles aclamaram o meu nome e mais uma vez me instauraram o cargo de legislador.(43-45) As estratégias de Arquipélago foram inauguradas em Malthus: Mainardi não renunciou nem à enumeração nem ao nonsense. Continua sistematizando ludicamente suas citações, continua com as listas aleatórias (As listas de Mainardi diferem das do Modernismo- em Malthus e Arquipélago não há a intenção de manifesto): -O que significam as nossas numerosas deformidades físicas? A que se referem ? - Aos mancos de Montaigne ? - Aos hipópodes de Plínio ?(...) - Ao homem mais feio de Friedrich Nietzsche? (75) O jogo das enumerações é um elemento essencial da escrita mainardiana e ele determina o nonsense que opera neste texto : "O sistema do nonsense opera como um jogo dentro de um espaço e tempo fechados e, como num jogo, no espaço-tempo em que ele decorre, excluindo-se as relações afetivas subsistem apenas as relações dialéticas." (UCHOA LEITE, 1985). O "vácuo afetivo" de Malthus e Arquipélago confunde os críticos, que têm visto neste processo uma falha - a falta de empatia :
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É um livro que não dá quase nenhum espaço empatia. Traduzindo : o leitor não se sente na pele do narrador-personagem. (PIZA) Mas dessa superfície "mais fria", desse aparente distanciamento do receptor é que se origina o humor e a originalidade do trabalho de Mainardi. Ao contrário de seus "colegas de geração", Mainardi não buscou no repertório comum, nos armazéns da cultura pop a identificação com o leitor e a legitimação de seu discurso. Os prosistas pop dos 80 no Brasil espelhavam com grande definição de imagem seus costumes, linguagem e até fatos da década, através de uma obsessão contextual. Malthus e Arquipélago fugiram do contexto (cada um sua maneira). Em Arquipélago, os elementos parodísticos são mais explícitos, ou tratados de modo mais tradicional, afastando-se um pouco da não-paródia de Malthus. O Arquipélago de Mainardi se refere a várias ilhas famosas. A cada capítulo irrompe um pequeno ensaio sobre pensadores utopistas em ilhas reais. Cada experiência fracassada (as ilhas de Rousseau; São João em Patmos; Platão em Siracusa e a ilha de Villegagnon) serve como paralelo à abóbada da igreja e à eterna busca do narrador por sua ilha ideal. Cabe ressaltar que a relação entre os ensaios e e o relato não é direta, um não faz alusão aos outros e vice-versa. O "vácuo afetivo" persiste nos dois discursos. Na ilha, não existiriam carruagens. Eclesiásticos e mulheres poderiam usar calechesde duas rodas. (...) O projeto inacabado de Rousseau, esparso em três cadernos, só seria publicado cerca de cem anos mais tarde. (31) Mesmo com este registro paródico mais evidente e mais "clássico", não parece correta a associação a um "desses livros parasitários que situam Cristo num bulevar, Hamlet na Cannebi re ou Dom Quixote em Wall Street" (BORGES), tão comuns na literatura pós-modernista. Arquipélago não é uma transposição ridicularizante da Utopia de Thomas More, nem apenas parábola de déspotas e seus poderes ou da falta de senso prático dos intelectuais. Os recursos da paródia (ou das várias naturezas da paródia) foram utilizados para falar do mundo das idéias de forma inventiva, divertida e, principalmente, descompromissada.
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Arquipélago trata da Utopia demonstrando a sua necessidade e ao mesmo tempo a sua impossibilidade. Seus vários projetos utópicos (os do filósofo da abóbada, os dos ensaios, e também os dos desabrigados), todos fracassam. Um fracasso geral que poderia ser lido como intenção de falar do Brasil, do fracasso brasileiro. Muito pouco provável. Até porque o fracasso em Mainardi não é nem bom, nem mau; não postula nada de definitivo e está completamente destituído de valor moral remissor. A Utopia é uma força idealista e Mainardi quis "pesquisar o idealismo e o desespero patético que há nele" (PIZA). Também o narradorfilosófo-legislador era um idealista por força do hábito. Ao sair da baía de Guanabara, iria seguir em direção ao norte, analisando uma a uma todas as ilhas que encontrasse. Não tinha nada melhor a fazer." (113)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Jorge Luis. Obra completa. Buenos Aires: Emecé, 1989. HUTCHEON, Linda. A poetics of postmodernism - History, Theory, Fiction. Londres/Nova York: Routledge, 1988. LEITE, Sebastião Uchoa. Crítica clandestina. Rio de Janeiro: Taurus, 1986. MAINARDI, Diogo. Arquipélago. São Paulo: Companhia das Letras , 1992. MAINARDI, Diogo. Malthus. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. PIZA, Daniel. "Novela é arquipélago de sacadas e tiradas", Folha de São Paulo, 4 de novembro de 1992. PRYSTHON, Ângela. Absolute Beginners- Circunstâncias e algazarra na ficção pop do Brasil dos anos 80. Recife: UFPE, 1993. SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro : Editora da UFRJ, 1993.
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Rubem Fonseca e o pós-modernismo literário brasileiro
Rubem Fonseca, que nos anos 60 e 70 concentra-se primordialmente nos relatos violentos e diretos que de certo modo “denunciavam” aspectos da ditadura militar, passa, a partir da década de 80, a representar a concepção de estética pós-moderna delimitada principalmente pela dissolução de fronteiras entre cultura erudita e cultura de massa e por uma associação com o romance policial norte-americano. O propósito deste ensaio é — além da identificação e análise de um cosmopolitismo pósmodernista em Rubem Fonseca — apresentar um rápido panorama (quase que inevitavelmente enumerativo e superficial) das várias características, gêneros e tendências que compuseram o establishment literário dos anos 80 no Brasil. Os anos 80 no Brasil evidenciaram uma alta permeabilidade entre cultura e modas cada vez mais transitórias. A disseminação de uma cultura pop internacional fez com que a cultura brasileira suspendesse —mesmo que temporariamente— a discussão que antes vinha sendo o eixo central do debate de idéias no país: a definição da identidade nacional. Na falta desse confronto (entre a atitude cosmopolita momentaneamente hegemônica e a idéia de uma identidade “autenticamente” nacional para a defesa da “tradição brasileira”), os anos 80 são, portanto, essa espécie de intervalo neo-Belle Époque no qual a inteligência
121 brasileira vai sendo seduzida pelo apelo internacionalista —ou globalizante—, consumista e transitório da cultura pós-moderna. Autores já estabelecidos e aclamados há muito como Fonseca, Jorge Amado, Silviano Santiago ou Sérgio Sant’Anna seguem produzindo durante a década de 80, entretanto algo muda não apenas em estratégia e temas literários, mas na maneira em como esses textos vão ser comercializados. Flora Süssekind vê uma extensão modificada dos anos 70 na década conseguinte: Do ego ao epos, da literatura-reportagem policial ao romance policial propriamente dito, do memorialismo individual ou geracional ao romance que se crê História, à literatura de fundação. Esta a trajetória de uma ficção que, trocando em parte modelos e trajes, tenta manter, no decênio de 80, antigos rumos. (SÜSSEKIND, 1993, 239-40) É evidente que há uma progressão natural, nos termos do que já estava sendo feito desde as duas décadas anteriores. Contudo, o contexto propiciado pela maior abertura ao mercado internacional —tanto no seu aspecto econômico, como no cultural— define para a literatura brasileira novos parâmetros estéticos, temáticos e mesmo formais. Primeiro, o livro configura-se cada vez mais como mercadoria, tanto no seu aspecto gráfico como no sentido de temas, abordagens e estruturas— as escolhas baseiam-se cada vez mais nos critérios das modas culturais. No caso específico da prosa, as primeiras dessas modas são o tom memorialista geracional (francamente adotado pela ficção pop de jovens —ou não tão jovens assim— escritores como Reinaldo Moraes, Teixeira Coelho, Caio Fernando Abreu, Pepe Escobar, entre outros, e por muitas outras vertentes) e a voz das minorias12. Entretanto as duas 12A
“voz das minorias” é uma tendência também aproveitada lateralmente na ficção pop, mas principalmente por autores que pouco ou nada têm a ver com o rótulo, como Moacyr Scliar com narrativas sobre a comunidade judaica brasileira desde o final da década de 70 e início dos anos 80; Silviano Santiago e o romance sobre o jovem homossexual Stella Manhattan (1985) ou João Gilberto Noll, com Rastros de Verão (1986), também sobre
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tendências mais representativas em termos de vocações cosmopolitas —no sentido das estruturas em voga no Primeiro Mundo, e no sentido da tematização metropolitana— para uma fase posterior do pós-modernismo brasileiro são o romance histórico (ou, alternativamente, o de fundação) e o romance policial urbano. A partir dos anos 80, a prosa literária brasileira começa a ser sistematicamente povoada por personagens que haviam existido realmente, mesmo que alguns dos fatos narrados não tivessem acontecido exatamente da mesma maneira; ou as narrativas passam a ser emolduradas por uma minuciosa descrição e contextualização histórica. Um dos primeiros romances brasileiros da década a utilizar mais experimentalmente o recurso da História como material literário é Em Liberdade, de Silviano Santiago (1981). Escrita em forma de diário, narra a vida de Graciliano Ramos depois dos anos de prisão. Santiago estende a história pessoal de Graciliano Ramos a partir da época imediatamente posterior ao relatado em Memórias do Cárcere para tecer comentários sobre as relações entre o intelectual e o estado no Brasil. ...posicionando-se sobre o tema da liberdade e repressão, procura pensá-lo sob a perspectiva do passado e do presente, do escritor e da personagem. Isto não significa que o esgote, nem que o conclua. Pelo contrário, aceita a vigência dele na moderna literatura brasileira, é preciso igualmente enfatizar suas ramificações, polivalência e caráter multifacetado. (ZILBERMAN, 1991, 103) O teor intersticial de diário, ensaio e historiografia de Em liberdade garante um lugar de inovação e originalidade no panorama do romance histórico brasileiro pós-moderno. A história, como no pósmodernismo internacional, passa a ser parte fundamental do discurso literário. Para Fredric Jameson, isso se deve justamente ao desaparecimento da História modernista e sua noção de progresso, da idéia do Novo e da temporalidade tradicional:
homossexualismo; e veteranas como Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Lya Luft explorando os meandros da condição feminina.
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At that point, all the precursors fall into place in the new genealogy: the legendary generational strings of the writers of the Boom, like Asturias or García Márquez; the tedious autoreferential fabulations of the short-lived Anglo-American “new novel”; the discovery , by the professional historians, that “all is fiction” (see Nietzsche) and that there can never be a correct version; the end of “master narratives” in much the same sense, along with the recovery of alternate histories in the past (...) at a moment when historical alternatives are in the process of disappearing, and if you want to have a history, there is henceforth only one to participate in. (JAMESON, 1991,367) Então, nesse caso, não só de relatos pessoais da ditadura ou de romance histórico propriamente dito é feita a relação da história com a literatura no Brasil dos anos 80. Figuras como Jorge Amado ou João Ubaldo Ribeiro tentam, a partir do romance de fundação, de uma prosa quase épica, não só contar uma história, mas reescrever a história brasileira ao gosto popular. Mais precisamente isso significa que, romances como Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro ou Tocaia grande (1985), de Jorge Amado, buscam uma identificação com o popular, “traduzem” para um universo folclórico idéias de identidade nacional e patriotismo. Entretanto, o resultado final de tais iniciativas é mais uma caricatura da História, onde certos clichês de heroísmo patriótico, certas imagens de povo brasileiro são resgatados direta ou indiretamente do ideário nacional-popular das décadas anteriores. Esse veio, iniciado pelo próprio Amado a partir de Gabriela, cravo e canela (1958), mistura o auto-exotismo herdado dos românticos, a apologia do popular, um apelo extremamente comercial e toques muitos ligeiros de realismo mágico— em alguns casos—, mantendo ainda assim um certo compromisso com uma “história dos vencidos”, com uma versão “politicamente correta” da história cotidiana brasileira. Como aponta Neil Larsen sobre a obra de Jorge Amado: It must be admitted that Gabriela, despite its retreat from Amado’s earlier epic and
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politically impassioned mode of narration, is still a work concerned with the historical portrayal of Brazilian society at a decisive phase. Amado the realist remains very much present in this work despite the new tone of preciosity and farcical remove from history as “grand récit”. (LARSEN, 1995, 76-7) O romance de fundação pode ser visto também como o preenchimento de um vácuo: se a cultura mainstream brasileira, a cultura da classe média, a cultura da elite, a mídia para os letrados, estão nos anos 80 num momento de expansão cosmopolita, de afirmação de valores internacionalistas, sobra um espaço considerável para a eterna busca de “identidade nacional” ser efetuada, para o auto-exotismo endêmico da cultura brasileira vir mais uma vez à tona com destaque. No caso de Amado ou Ribeiro, essa empresa é profundamente lucrativa. Pode-se ver marcas dessa “inclinação” para se fazer uma história de minúcias, de pequenos detalhes do cotidiano, de manifestações populares ou mesmo de uma “história dos vencidos” mesmo em outras tendências da literatura dos anos 80. Romances mais elaborados como O nome do bispo (1985), por exemplo, de Zulmira Ribeiro Tavares, onde os anos 60 e 70 em São Paulo são apresentados de maneira mais distanciada que os usuais relatos da ditadura, mas por isso mesmo mais intrigantes e sugestivos de um cotidiano coletivo. Aparecem, entre outros: o tempo em que os moços finos faziam o corso de baratinha no Brás; o tempo em que os freqüentadores de livrarias progressistas acabavam na Polícia Federal (...); o tempo da glória dos entregadores de supermercado (...), o tempo em que prima Lavínia (...) passa a freqüentar motéis de cama redonda (...). Pela heterogeneidade mostram que a História se move em toda parte e toma formas imprevistas. (SCHWARZ, 1987, 68-9) O cotidiano coletivo pode referir-se também a certas comunidades específicas, como é o caso de Relato de um certo oriente (1989), de Milton Hatoum, onde a narradora (uma mulher
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que volta depois de anos à cidade de sua infância) vai tecendo a história de uma família de imigrantes libaneses em Manaus. Sobressai nesse romance a possibilidade de deslocamentos entre oriente-ocidente, entre cidade-selva e entre tempos diferentes, período pós-guerra, entre-guerras, etc. A narradora também acaba revelando outras vozes, outros narradores, como o fotógrafo alemão radicado em Manaus: Pouco tempo depois mandei às favas o laboratório e o material fotográfico. Na verdade, troquei tudo por uma biblioteca com obras raras editadas nos séculos passados, que pertencera a alguns juristas famosos da cidade. Essa biblioteca cresceu com os livros que adquiri dos alemães que fugiram de Manaus na época da guerra. (...) O convívio com teu ai me instigou a ler As mil e uma noites, na tradução de Henning. (HATOUM, 1989, 79) Ao final da década, entretanto, o romance histórico propriamente dito passa a constituir um gênero de certa importância na literatura brasileira contemporânea. Com o romance Boca do inferno (1989), tendo como personagens centrais o poeta Gregório de Matos e o padre António Vieira, a escritora Ana Miranda passa a ser destaque e “a grande promessa” da prosa brasileira para a década seguinte. Sob a influência confessa do português José Saramago — que escreveu diversos romances históricos, entre eles, Memorial do convento (1982) e Ano da morte de Ricardo Reis (1984) — e com o “apadrinhamento” de Rubem Fonseca, Miranda impressiona por elaborar uma obra que desfila simultaneamente qualidades narrativas e vívidas descrições históricas. Boca do Inferno como que estabelece mais firmemente o mercado para o gênero histórico no Brasil. Continuando a desenvolver o gênero histórico, Ana Miranda lança O Retrato do Rei (1991), sobre a Guerra dos Emboabas, de Minas Gerais. Em 96, Desmundo, sobre o século XVI e a viagem pelo Brasil das órfãs da rainha Catarina. Com Amrik (1997) conta a história de Amina, garota árabe que foge do Líbano invadido pelos turcos e vem dar num Brasil, no final do século 19, aberto aos imigrantes. O seu relativo sucesso no final dos anos 80 possivelmente estimulou o lançamento de outros novos nomes do romance histórico brasileiro
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e a incursão de veteranos de outros gêneros, como é o caso de Rubem Fonseca, ao publicar, em 1990, Agosto, romance policial não só ambientado na era Vargas, mas tendo o chefe da guarda pessoal do próprio Getúlio, Gregório Fortunato, como um dos personagens centrais da sua trama. O homem conhecido pelos seus inimigos como Anjo Negro entrou no pequeno elevador, que ocupou por inetiro com seu corpo volumoso, e saltou no terceiro pavimento do palácio do Catete. Andou cerca de dez passos no corredor em penumbra e parou em frente a uma porta. Dentro, no modesto quarto, vestido com pijama de listas, sentado na cama com os ombros curvados, os pés a alguns centímetros do assoalho, estava o homem que ele protegia, um velho insone, pensativo, alquebrado, de nome Getúlio Vargas. (FONSECA, Agosto, 8) Rubem Fonseca vai novamente aventurar-se nas malhas do romance histórico em 1994 com O selvagem da ópera, recriação da vida do compositor brasileiro Antônio Carlos Gomes sob a forma de um argumento cinematográfico. Fonseca vai contando a história, sempre lembrando ao leitor que o texto é na verdade um filme em potencial; portanto, a narrativa é composta de possíveis cenas, imagens, enquadramentos e enfoques, além de uma extrema autoconsciência como texto: Houve um momento em que pensei iniciar o filme com Carlos já em Milão, ignorando a fase adulta no Rio de Janeiro. Com exceção de um acontecimento essencial à nossa dramaturgia, que por enquanto quero manter em segredo, suprimi toda a infância do maestro (...). (...) Como se vê, isto não é um tratamento, um argumento, ou mesmo um roteiro. É um texto básico, assim como Guerra e paz, de Tolstoi, para dar um exemplo de peso, pode ser considerado um texto básico para que King Vidor, primeiro, e
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depois Sergei Bondarchuk fizessem filmes nele baseados. (O selvagem da ópera,31) Contudo, Fonseca vai destacar-se no panorama literário pós-moderno brasileiro não propriamente por sua ficção histórica, mas pela narrativa urbana — e na maior parte dos casos, policial—, que havia sido o seu gênero favorito desde os anos da ditadura. Até o fim dos anos 70, há nos livros de Fonseca uma insistência em retratar a brutalidade e a miséria das grandes cidades brasileiras, em especial do Rio de Janeiro, através de contos —e um romance, O caso Morel (1983)— precisos, diretos e extremamente violentos. “O cobrador”, do volume homônimo de 1979, evoca com uma linguagem muito crua, a particular agonia da vida urbana brasileira: A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita. Rua Marechal Floriano, casa de armas, farmácia, banco, china, retratista, Light, vacina, médico, Ducal, gente aos montes. De manhã não se consegue andar na direção da Central, a multidão vem rolando como uma enorme lagarta ocupando toda a calçada.(Contos reunidos, 492) A cidade, principalmente para o Fonseca de antes do romance A grande arte (1983), é o lugar de vagabundos, assaltantes, prostitutas e toda a sorte de desvalidos e desviados. Os lugares que mais interessam nessa paisagem urbana são as delegacias, as prisões, os bordéis, repartições públicas empoeiradas e favelas. Vilela saiu da sala. Pelo corredor de paredes brancas sujas seguiu na direção da sala dos fundos, onde estavam localizadas as seções de Roubos e Furtos e de Vigilância. (...) Washington estava sentado na mesa, segurando uma palmatória. Pálido, seu peito chiava. Sobre a mesa
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estava uma lata de banha vazia, com água. Ao lado, Jaiminho, boca aberta, beiço frouxo. Seu corpo curvado, sua cabeça caída estavam numa expectativa de cachorro que acabou de ser espancado.(ibidem, 219) Mesmo quando localiza seus contos em outros países, a cidade continua sendo um lugar de melancolia, escuridão e mediocridade. Como em alguns contos de Lúcia McCartney (1967), com seus ligeiros toques de policial noir americano. Eu gosto da rua porque ninguém me acha. É o meu último refúgio. A rua e o cinema. Se não houvesse nem rua nem cinema eu estava perdido. Perdido eu já estou, eu estava morto. Saí do Bellevue de mão no bolso e andei um dia e uma noite e, de manhã cedo, cansado, entrei no primeiro cinema que abriu as portas na 42, sessão dupla; vi todos os filmes da 42, e da Broadway, das 9 a.m. às 5 a.m., vinte horas seguidas de filmes, comi dois sacos de pipoca e bebi cinco sucos de laranja e foi lá dentro do cinema que eu fui chorar; quando saí estava bom, até a mão tinha cicatrizado. (ibidem, 341) Inúmeras vezes a cidade entra aparentemente apenas como pano-de-fundo, como ruído marginal em alguns contos. Como na história do paralítico obcecado por gravações telefônicas em “O gravador”, de A coleira do cão (1965), que envolve-se à distância com uma dona-de-casa entediada e insatisfeita com o casamento malogrado. O encontro entre os dois acaba não acontecendo em meio a um dia chuvoso no centro da cidade: “Onde você quer se encontrar comigo?” “Onde você quiser, meu bem.” “Não, você diz.” “Na praça, no centro, perto da estátua, daquela estátua que você diz ser muito feia.” (...) Jorge não apareceu. Uma chuvinha fina caía quando cheguei, mas
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não podia ser esse o motivo. A chuva nem dava para molhar, havia mesmo na praça uma babá com duas crianças e um paralítico numa cadeira de rodas, sendo empurrado por seu empregado. Jorge não apareceu. A praça ficou totalmente vazia, depois de algum tempo. (ibidem, 114-116) A malha urbana é, pois, determinante para a composição dos relatos de Fonseca. Seja numa Copacabana em franca decadência, nas delegacias centrais, nas academias de luta da zona norte ou na redação de um jornal popular. Seus personagens estão perfeitamente inseridos na paisagem carioca, em um sentido que fica muito longe do clichê da cidade “maravilhosa”, exótica e naturalmente exuberante. O escritor delineia uma urbanidade especificamente brasileira, o território de classes médias e baixas, um espaço de negociação entre a marginalidade, a perversão e as normas da sociedade brasileira. Na década de 80, porém, há uma mudança considerável no relato urbano de Rubem Fonseca. Não apenas há uma leve transferência de ênfase para outros aspectos da cidade (galerias de arte, apartamentos de classe média alta, museus, restaurantes); há a preferência por romances — ainda que ele continue na esfera do relato policial — e, particularmente, o gosto por referências literárias e extraliterárias de um certo grau de sofisticação. Fonseca parece apropriar-se de indícios de “pós-modernidade”, quer captar o zeitgeist através de signos da sociedade de consumo e da cultura da moda. Mudam os personagens principais; já não são os bandidos ou delegados de classe média os que habitam o epicentro de suas narrativas— eles continuam aparecendo, mas de forma menos ubíqua — mas escritores, fotógrafos, cineastas. O território explorado por Fonseca nos três romances (A grande arte, Bufo & Spallanzani (1985) e Vastas emoções e pensamentos imperfeitos) do auge de sua “pós-modernidade” – como dominante cultural do neoliberalismo – é a urbanidade sofisticada das classes altas do Rio de Janeiro e seus vai-e-vem. O enredo policial é uma desculpa para a enumeração de passatempos sofisticados de vítimas e algozes, um suporte para citações óbvias ou elípticas, um coadjuvante para a crônica dos costumes —não raro meio inusuais— de ricaços cariocas, yuppies ou artistas e intelectuais da elite.
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Usava um vestido de seda e o tecido fino delineava a forma atraente de suas coxas. Tive vontade de me ajoelhar aos seus pés (ver M. Mendes) mas achei melhor uma abordagem convencional. Os slides eram todos de quadros de Chagall. ‘Você gosta de Chagall?’, perguntei na primeira oportunidade. Ela respondeu que sim. ‘Essa gente toda voando’, eu disse e ela respondeu que Chagall era um artista que acreditava acima de tudo no amor.(Bufo & Spallanzani, 9) Em Bufo & Spallanzani, o protagonista é Gustavo Flávio, um escritor obeso que narra o desenrolar de um crime onde ele é um dos suspeitos. A vítima é Delfina Delamare, sua amante milionária que recentemente havia descoberto ter um câncer. Outro personagem relevante é o policial Guedes, que tenta desvendar o assassinato de Delfina. Guedes dá continuidade à galeria dos detetives e policiais de classe média que servem de ponte entre os extremos da sociedade carioca (os muito ricos e os muito pobres) no trabalho anterior de Fonseca. E embora aqui esse tipo de personagem vá ter menos destaque, ainda é Guedes quem oferece as melhores descrições da cidade, suas nuances e divisões de classe no romance. Os ricos eram enterrados no São João Batista, pensou Guedes, pegando um outro ônibus circular. Saltou na rua Voluntários da Pátria, esquina da Real Grandeza, e caminhou até onde ficavam as capelas do cemitério. Debaixo do sol forte, que fazia a caminhada parecer mais longa do que era. Sem poder tirar o blusão (um policial não anda por aí mostrando sua arma mesmo que seja um elegante Cobra), Guedes suava abundantemente. Como nunca usava um lenço, o inspetor removia o suor da testa e da face com os dedos da mão, como fazem os trabalhadores braçais. (ibidem,25) Mas é fundamentalmente do universo do personagem central, o escritor, que a narrativa vai se ocupar. A trama também
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serve como trampolim para comentários sobre literatura (afinal, seu narrador é um autor de best-sellers), venenos e violinos (temas do livro que Gustavo Flávio está escrevendo), e para a apresentação de trechos do livro que está —com dificuldades— em vias de escrever, Bufo & Spallanzani. Voltei para o quarto e tentei escrever Bufo & Spallanzani. Meu editor queria que eu escrevesse outro policial como Trápola. (...) “Não entendi muito bem o que você quer dizer com essa história”, disse Juliana. “É apenas uma história de sapos & homens. Nada a ver com a simbologia de Of mice and men. Na orelha do livro o editor dirá alguma coisa para ilustrar e motivar o leitor. Na França, pois o livro será editado em outros países, como tem acontecido com as minhas obras, dirão que o livro é uma metáfora sobre a violência do saber.” (ibidem, 120 e 123) Se em A grande arte e Bufo & Spallanzani, ainda há figuras centrais, alheias e marginais a esta “alta sociedade” —o personagem principal de A grande arte e o detetive de Bufo...—, em Vastas emoções... tudo está perpassado pelo universo cosmopolita e pelas alusões a um consumo sofisticado (de bens simbólicos e materiais) quase que completamente alheio àquele dos contos dos anos 60 e 70. Nesses três romances, e mais ainda no último, a violência é mais estilizada (como no uso das facas em A grande arte, que aliás é a “grande arte” que dá título ao livro) e a política está quase ausente. Rubem Fonseca encontra uma fórmula de sucesso que rechaça definitivamente os padrões temáticos e as maiores obsessões das décadas anteriores—tortura, política, censura— para configurar-se como a expressão mais bem acabada de uma ideologia neoliberal na cultura brasileira. Enquanto os jovens representantes da ficção pop manipulam rudemente as suas referências e citações, desfilam um deslumbramento marcante e praticam exercícios de um cinismo paradoxalmente ingênuo, Fonseca, utilizando muitos elementos em comum, logra estabelecer um ponto médio entre cultura de massas e alta cultura com a suas obras. Em um dos grandes sucessos editoriais da década, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988), o escritor mineiro usa
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o cinema como pano de fundo para desenvolver a história de um cineasta (o narrador) envolvido no roubo de um diamante raro (Fonseca aproveita para pincelar informações extremamente específicas sobre minerais), obcecado pelo escritor russo Isaac Babel (outra oportunidade para o autor desfilar suas erudições específicas) e marcado pela morte da mulher. Vastas emoções... está perfeitamente sintonizado com o ambiente cultural brasileiro do período, com suas investidas cosmopolitas (os personagens oscilam entre o Rio de Janeiro, Berlim, Frankfurt e Paris), com a sofisticação das citações literárias e das referências cinematográficas, com seus personagens atraentes e abastados. Rubem Fonseca, talvez inadvertidamente, servindo de patrono para a ficção pop dos seus contemporâneos mais jovens. Depois que Liliana saiu peguei o livro de Bábel e fiquei olhando para seu retrato tentando me lembrar onde o vira antes. Num filme? Parecia o Alexander Knox em Man in the Middle, mas não fora em um filme que eu vira um rosto como o dele. Então me lembrei: um pintor, era isso, um pintor! Já ia quase desistindo quando vi um livro com pinturas de Goya. Ali estava a pessoa parecida com Bábel que eu queria encontrar— o próprio Goya, num autoretrato feito em 1787, que está no Museu de Belas Artes de Castres.(Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, 49) Em resumo, a referencialidade de Fonseca pode ser mais sofisticada — ou mais adequada a à sua geração —, mas os princípios são os mesmos: a identificação com o leitor através da construção de um repertório comum, um repertório que, como na ficção pop, necessariamente envolve ideais de exclusividade, linhagem, erudição, rareza, estranhamento e preciosismo. Enquanto na ficção pop abrolhavam alusões à cultura de massas, ao underground, à contracultura e essencialmente a todo um universo ligado à juventude, em Fonseca as citações têm às vezes fontes mais eruditas: ele não renega forçosamente tudo que foi mencionado acima, mas acumula mais discursos e referências. Em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, demonstra com ênfase e com engenho esse acúmulo ao coligir informações da cultura erudita e da cultura de massas
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indistintamente. Isaac Babel ou Milos Forman, Mussorgski e Goya ou Fellini e Altman ou Roald Dahl e o isqueiro Zippo ou a descrição de pedras preciosas. Tudo podendo fazer parte da mesma saturação de signos, de uma absorção pós-modernista da cultura e da história. Lembrei-me de um filme de TV, baseado numa história de Roal Dahl, em que um sujeito aposta um dedo contra um automóvel esporte que seu isqueiro Zippo acenderá sem falhar dez vezes seguidas. Percebi pelo estalar estudado do isqueiro, que ela estava quase perdendo o controle. Deu uma tragada funda. “Quer apostar que o seu Zippo não acende dez vezes seguidas?” (ibidem, 128) A permanência de um discurso pós-modernista na cultura brasileira, contudo, vai depender da evolução de outras estruturas que não só o romance policial e a ficção pop. O próprio Fonseca vai reconhecer isso (consciente ou inconscientemente) ao estabelecer em geral duas alternativas ao seu “romance policial yuppie”: um regresso aos contos secos e violentos e a ficção histórica. Ou seja, começa a elaborar outras estratégias e soluções mais sofisticadas para sua prosa, sem todavia abandonar as regras do mercado de cultura dos anos 80 no Brasil. Um excelente exemplo de como Fonseca maneja essas regras é o conto “Labareda nas trevas— Fragmentos do diário secreto de Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski”. Nele, um amargo Joseph Conrad confessa a obsessão e profunda inveja pela obra de Stephen Crane e a sua reação à morte deste último. Fonseca começa a desenvolver um tipo de paródia irrefutavelmente pós-moderna, um gosto pela ficção histórica e ainda a insistência na referencialidade seletiva que marcou a década: Continuo com os recortes referentes a Crane sobre a minha mesa e apanhei recortes antigos que falam do meu quarto romance, The Nigger of the Narcissus. W. L. Courtney, o crítico imbecil do Daily Telegraph de Londres, diz que procurei imitar The Red Badge of Courage de Crane. (...) Na verdade não o queriam
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mais nas festas, sua fama já não era suficiente para tornar engraçadas suas bebedeiras. Em menos de seis anos, antes mesmo de fazer trinta anos, começava a ser esquecido por todos. Menos por mim. (Romance negro e outras histórias, 55 e 56) Rubem Fonseca parece reunir todas as características para ser a epítome do escritor pós-moderno no Brasil, pelo menos no sentido de completa adesão ao conceito como dominante cultural da época: o gosto pelo insólito, pelo urbano, pelas perversões e pela violência, a referencialidade, a historicidade e, sobretudo, a sintonia com as modas culturais cosmopolitas e a adequação à sociedade do consumo e do simulacro dos 80. “Olhar”, por exemplo, explora a singular transformação do sujeito que, depois de passar toda a vida sendo vegetariano, começa a querer degustar carnes exclusivamente de animais que ele vê morrer: Depois fui escovar os dentes. Contemplei, através do espelho, pensativo, a banheira. Quem fora mesmo que dissera que os cabritos tinham um olhar ao mesmo tempo meigo e perverso, uma mistura de pureza e devassidão? E o olhar dos seres humanos? Hum... Aquela banheira era pequena. Precisava comprar uma maior. Talvez uma jacuzzi, das grandes, com jatos estimulantes. (ibidem, 73) O interesse pelo relato urbano, pela focalização da cidade e da violência metropolitana como centro das atenções narrativas é renovado nas suas obras mais curtas escritas a partir do final dos 80. Particularmente quando ambienta seus contos no Rio de Janeiro, Fonseca reitera toda uma tradição de literatura urbana compartilhada por Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Machado de Assis e João do Rio, com seus contrastes, com a exploração simultânea do submundo carioca e da alta sociedade, com o choque entre os extremos (um dos pontos mais marcantes da obra de João do Rio) em uma das maiores metrópoles brasileiras. Quiçá o melhor exemplo desse traço seja precisamente o conto “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”, onde Augusto, “cujo verdadeiro nome é Epifânio”, através de suas caminhadas pelo centro do Rio pretende escrever um livro. No seu percurso, ele vai
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dividindo o seu tempo entre a observação de igrejas, esculturas francesas, encontros com mendigos, prostitutas e pastores evangélicos: Desce pela Presidente Vargas maldizendo os urbanistas que demoraram dezenas de anos para perceber que uma rua larga daquelas precisava de sombra e só em anos recentes plantaram árvores, a mesma insensatez que os fizera plantar palmeirasimperiais no canal do Mangue (...). (...)Estão na rua. Kelly, ao ver o bicheiro na esquina sentado em sua carteira de estudante, diz que vai fazer uma fezinha. “Jogo no carneiro ou no veado?” (ibidem, 28-30) Há nos relatos mais curtos, a partir do final dos 80, uma concentração maior nos personagens de classe média e classe baixa, como os que povoavam os contos das décadas de 60 e 70. Fonseca regressa às delegacias, às crônicas policiais dos jornais populares, aos botecos da Cinelândia como estratégia de retomada da sua própria tradição narrativa. No livro O buraco na parede (1995), por exemplo, ele abre e fecha o volume com dois contos extremamente evocativos da sua produção anterior, mesmo que contenham elementos contextuais para reforçar a sua contemporaneidade. Em “O balão fantasma” é criado um grupo especial composto de um policial, funcionários da prefeitura e defensores do meio ambiente para detectar e impedir o lançamento de balões no Rio de Janeiro. Aparece, como de praxe, o diálogo entre as classes mais baixas e as classes médias da sociedade carioca. Também como usualmente esse elo vai ser representado pelas relações do narrador (um policial) com seus subalternos e com as duas mulheres do relato (as ecologistas). A cidade, — especialmente no caso desse conto — seus subúrbios e arredores voltam a ser a malha onde se desdobram essas ligações: Andei por toda parte, com o Cão e sem ele. Méier, Madureira, Caxambi, Del castilho, Bangu, Penha, Campinho, Quintino Bocaiúva, Cascadura, Anil, Pavuna, Costa Barros, Honório Gurgel, Cidade de Deus, Rio das Pedras, Gardênia Azul, Anchieta, Deodoro, Curicica, Ricardo de Albuquerque, Magalhães
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Bastos, Realengo, Camorim, Padre Miguel, Senador Camará, Vargem Pequena e Vargem Grande, Santíssimo, Curupira, Senador Vasconcelos, Campo Grande, Mendanha, Cosmos, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Caxias, Nilópolis, não nessa ordem, indo cada vez mais longe. (...) Balões estavam sendo feitos em toda parte, nos municípios adjacentes, na zona rural, nos subúrbios, nos morros, nos bairros. (O buraco na parede, 19-20) Em “O buraco na parede”, último conto do livro, o Rio de Janeiro permanece como marco geográfico desse retorno às origens narrativas de Fonseca. Novamente o narrador percorre as ruas do centro para ir aos poucos explicando o prognóstico revelado nas primeiras linhas. Dessa vez, contudo, Fonseca insiste em dar um tom de inocência e fragilidade ao seu flâneur. O narrador é um rapaz humilde e ingênuo, que mora numa pensão decadente e divide o seu dia entre idas à Biblioteca Nacional e o exercício do voyeurismo. Ele observa Pia, a filha adolescente da dona da pensão e Tânia, uma outra moradora do edifício tomando banho através de um buraco na parede do seu quarto. Envolve-se com ambas, acaba sendo descoberto e cometendo um crime para satisfazer um pedido da moça que ama (Pia). Eu estava desempregado e ia ler na Biblioteca Nacional todos os dias. Seguia pela Mem de Sá até o largo da Lapa e pegava a rua do Passeio. Eu podia descer pela Evaristo da Veiga, que desembocava na 13 de Maio ao lado do Teatro Municipal, mas preferia a rua do Passeio, que era mais movimentada, tinha mais gente para ver. (...) Quatro dias sem olhar pelo buraco da parede, mas sempre voltando antes das cinco da Biblioteca. (...) Armando devia ter sabido dos meus encontros com Tânia e me denunciara para dona Adriana, que nunca entrava no meu cubículo e se entrasse não veria o buraco na parede, eria o quadro. (ibidem, 136 e 156) Não é apenas a cidade, entretanto, que vai compor essa mudança de orientação na prosa de Fonseca. A intertextualidade e a paródia vão ser exploradas nos contos de maneira mais refinada que nos seus romances da década de 80. Ele continua a citar e a
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escrever sobre literatura e sobre história da cultura. Podem ser meras citações, alusões esparsas a autores, obras, frases, como nos romances mencionados. Podem ser recriações da vida de alguém conhecido, como citado anteriormente no relato baseado em Conrad ou no livro sobre Carlos Gomes. Mas podem ser também tempos em que o imaginário e o real se interpenetram. Como no conto “A santa de Schöneberg”, onde personagens fictícios e história novamente se mesclam. Desta vez, um personagem profundamente interessado em Egon Schiele parece encontrar em Viena uma carta que talvez diga respeito ao pintor. Ou não: Com a carta no bolso, subitamente pensa em Edith. Precisa ir ver o Schiele, mais exatamente a mulher dele. Pressente que há uma estranha conexão entre Schiele e a carta. (...) Não há dúvida de que ela está olhando para o marido— ansiando para que tudo termine logo. E tudo vai mesmo terminar imediatamente, naquele 1918. Mas Roberto agora sabe que existe algo que liga tudo o que aconteceu à carta.(Romance negro e outras histórias, 88) A partir do final dos anos 80, Fonseca concentra-se na História (e mais insistentemente, a História da cultura e da literatura) como maior fonte de material literário. Além dos dois romances históricos propriamente ditos, os contos cada vez mais trazem detalhes, informações precisas sobre autores, movimentos ou datas. No conto “Romance negro”, por exemplo, um festival de literatura policial serve como pano-de-fundo para o desenrolar da trama e para a apresentação de dados referentes ao assunto: ‘Reconheço’, continuou, ‘que os franceses, conquanto medíocres participantes do gênero —Simenon é uma exceção não muito brilhante—, são inteligentes exegetas e entusiasmados consumidores; eles decidem quem faz, ou não, parte do clube. Por exemplo, Walpole, que escreveu O castelo de Otranto em 1746, considerado por alguns estudiosos equivocados como o iniciador do romance negro, quando na verdade é um
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dos precursores da novela gótica, não entra no clube. (ibidem, 162) Entretanto, talvez o relato que melhor exemplifique as conexões de Fonseca com o novo historicismo pós-moderno a partir do final dos 80 seja “A recusa dos carniceiros”, no qual funde trechos de discursos sobre execuções e pena de morte da Câmara dos Deputados do Brasil da época do Império, com comentários sobre o mesmo tema, referências a fatos históricos e literários do mundo ocorridos no mesmo tempo e detalhes sobre a execução de alguns prisioneiros. A reconstrução histórica constitui-se, para Fonseca, como adulteração do passado e apagamento das fronteiras entre literatura e História: O condenado à pena de morte, hoje, é morto na forca. (...) Na Câmara a discussão continua. Os discursos são prolixos, a retórica vociferante, como é de se esperar de quem ocupa uma tribuna. (...) “A pena de morte considerada em sua eficácia material tem por fim reduzir o culpado à impotência, suprimir o perigo social pela morte do inimigo, e procurar a segurança da sociedade pela satisfação de uma vingança. (...)” (...) Ano em que o sr. Théodore Taunay publica, no Rio de Janeiro, Idilles Brésiliennes, escrito em versos latinos; (...) (ibidem, 136 e 136) Fonseca é, em suma, quem melhor representa a absorção do pós-modernismo e de uma ideologia cosmopolita no mainstream literário brasileiro das décadas de 80 e 90. Ele trouxe um ímpeto renovado ao establishment literário brasileiro, o de franca concordância com uma cultura de mercado. Ao aliar as estratégias da referencialidade pop e midcult aparentadas com a ficção dos prosistas mais jovens com as técnicas do romance policial, ao popularizar o romance histórico mesclando-o aos gêneros acima referidos, Fonseca soube adaptar-se confortavelmente aos novos tempos. Tempos nos quais era imperativo ultrapassar o ideário nacionalista-populista do passado, aceitar incondicionalmente as regras do mercado e ainda incluir algo de subversão textual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FONSECA, Rubem. Agosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. _________. Bufo & Spallanzani. São Paulo: Companhia das Letras 1993. _________. O buraco na parede. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _________. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _________. A grande arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. _________. Romance negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. _________. O selvagem da ópera. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. _________. Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism. London: Verso,1991. LARSEN, Neil. Reading North By South. On Latin American Literature, Culture and Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995. SCHWARZ, Roberto.Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. SÜSSEKIND, Flora.Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. ZILBERMAN, Regina. “Brasil: cultura e literatura nos anos 80", Organon, 17/1991, pp.93-104.
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III. ESTUDOS CULTURAIS: AS HISTÓRIAS DA TEORIA
Perspectivas teóricas no Terceiro Mundo The term “Third World” is most meaningful in broad political-economic terms, and becomes blurred when one adresses the differently modulated politics in the realm of culture, the overlapping contradictory spaces of inter-mingling identities. The concept of “Third World” is schematically productive if it is placed under erasure, seen as provisional and ultimately inadequate. Ella Shohat, “Notes on the Post-Colonial”.
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O termo Terceiro Mundo começa a ser utilizado por demógrafos e geógrafos franceses nos anos 50 como a outra peça no quebra-cabeças do mundo pós- Segunda Guerra Mundial, em relação a um Primeiro Mundo capitalista e ocidental e um Segundo Mundo socialista. We speak all too willingly of two worlds and their possible wars, their co-existence, etc, often forgetting that there exists a Third , more important, world, one which in terms of chronology comes first... (SAUVY apud HARLOW, 5) Nesta época, talvez como uma espécie de eufemismo, o termo substitui a idéia mais difusa, menos organizada e mais traumática de “países pobres”. A partir das lutas de independência das colônias européias na África e na Ásia, o termo adquire um certo prestígio. A unidade pretendida por ele traz, pois, em seu bojo, uma dimensão revolucionária. A dimensão de relevar as diferenças em prol de um ideal libertário (mesmo que esteja implícito uma certa inclinação militar nesse ideal...) legitimaria então a noção de Terceiro Mundo. Na conferência de Bandung, em 1955, o termo tem a sua primeira expressão política oficial, quando se reúnem todas as nações “nãoalinhadas” nem ao Primeiro Mundo, nem ao Segundo. Ou seja, por um lado a criação do termo se deve a propósitos “cosméticos” em relação aos subdesenvolvidos, pobres, famintos, wretched of the earth por parte do “mundo ocidental”. Por outro, define ou tenta definir, uma consciência comum para todos os países incluídos neste "Terceiro Mundo" – consciência esta que deve ser, portanto, a da luta revolucionária contra a hegemonia "ocidental" e o poder socialista soviético. Claro, nesta condição terceiro-mundista deve estar embutido o não-alinhamento a nenhum dos outros dois blocos. Se este não-alinhamento significa também a exclusão dos privilégios, serve, no entanto, e principalmente na década de 60, como bandeira libertária não só aos países que estão se tornando independentes como àqueles que já são ex-colônias há mais de um século. A concepção libertária de Terceiro Mundo foi favorecida inclusive por modas literárias e intelectuais que apareceram nos séculos e, principalmente, nas décadas anteriores: pelo
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existencialismo, pelas leituras que o Terceiro Mundo fez de Sartre, pelo próprio declínio do humanismo. However, at the dawn of the 60s, the Sartrean paradigm of the Look and the struggle for recognition between individual subjects will also be appropriated dramatically for a very different model of political struggle. (JAMESON, 1984, 187-8) Jameson se refere aí ao modelo colocado por Frantz Fanon, em Les damnés de la terre, de 1961, obra precursora, em certa medida, dessa unidade, desse "chamamento" ao Terceiro Mundo. Um chamamento de luta, de violência, de uma relativa rejeição dos canônes "ocidentais": uma tentativa de livrar-se de certas concepções de cultura, sociedade, história, política... A principal proposta (a que abre o livro, inclusive) de Les damnés de la terre é o ato consciente de violência do Escravo contra o Senhor, violência que se opõe ferozmente à violência do colonizador e constrói a utopia através da revolução e da união em torno do ideal "terceiromundista". Porque the unity of the Third World is not yet achieved. It is a work in progress(...). This is what Fanon explains to his brothers in Africa, Asia and Latin America: we must achieve revolutionary socialism all together everywhere, or else one by one we will be defeated by our former masters. (SARTRE in FANON, 10) O impacto da visão de Fanon é notável por sua disseminação em todo(s) o(s) mundo(s) (especialmente no "Terceiro", obviamente), mesmo que às vezes se dê muito indiretamente. A sua influência deve-se tanto à sua teorização sobre descolonização e violência, à sua apreensão do espírito da época e à denúncia antiimperialista que ele inspira, como à sua capacidade de pensar essa descolonização como construção violenta sim, mas com fins utópicos através de um trabalho que: splits between a Hegelian-Marxist dialectic, a phenomenological affirmation of Self and Other and the psychoanalytic ambivalence of the Unconscious. (BHABHA, 41)
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Além disso, o seu projeto é para todo o Terceiro Mundo (ou para todos os povos oprimidos, já que Fanon analisa o mundo colonial sem distinções entre Primeiro e Segundo): The colonial world is a world cut in two.(...) The zone where the natives live is not complementary to the zone inhabited by the settlers. The two zones are opposed, but not in the service of a higher unity. (...) No conciliation is possible, for the two terms, one is superfluous. (FANON, 29-30) Keith Buchanan, num dos primeiros textos que tentam abarcar o fenômeno de emergência do Terceiro Mundo e que fazem referência a Fanon, discorre sobre o que mantém a unidade terceiro mundista: The Third World shows a great human diversity(...). Yet whatever the diversity of colour and creed, it has an overriding unity and this tendency to unity comes, in the words of Ché Guevara, "from a similarity in economic and social conditions and from a similarity in desire for progress and recuperation".(...) The emergent states of the Third World share a common legacy of past humiliation, of exploitation and poverty, a legacy which binds together two thousand million people in a vast 'fellowship of the dispossessed', a 'commonwealth of poverty'. (BUCHANAN, 6) A unidade possibilitaria a atuação destacada do Terceiro Mundo no "mundo", na ordem internacional. A voz coletiva desse legado de pobreza e exploração se faz ouvir mais forte durante os anos 60 e com as revoluções vencedoras e também as fracassadas que assustam e maravilham este "mundo". O "mundo" vê Cuba, as guerrilhas, Ché, a Revolução Cultural chinesa; parte desse mundo reage: os estudantes em Maio de 1968, o movimento norteamericano contra a Guerra do Vietnã, a Nouvelle Vague francesa revolucionando esteticamente o cinema e o neo-realismo italiano mostrando uma Europa quase terceiro-mundista, os hippies americanos “instituindo” uma contra-cultura. A cultura mundial
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vai, assim, sendo influenciada e influenciando os movimentos políticos simultaneamente. A unidade terceiro-mundista também abalou concepções marxistas tradicionais ao definir as "nações proletárias", buscando na classe trabalhadora de Marx uma metáfora desse grupo emergente para se contrapor aos estados poderosos econômica e politicamente. Ou seja, é também propagado implicitamente aí que os proletários primeiro-mundistas já não são os verdadeiros proletários, pois também se beneficiam da exploração do Terceiro Mundo e portanto não se opõem ao sistema colonial: The workers of Europe have not replied to these calls; for the workers believe , too, that they are part of the prodigious adventure of the European spirit. (FANON, 253) Esta noção é expressa tanto pela esquerda revolucionária como pela direita. É ademais inspiradora da (e inspirada pela) violência redentora de Fanon e seus discípulos. Então, though the socialist terminology remains in the course of this argument, international class solidarity has been subtly transformed into international antagonism. (WORSLEY, 243) Ou mesmo maniqueísmo, quando se examina mais de perto o modo como o discurso terceiro-mundista é construído nos anos 60 e 70. Entre colonizadores e colonizados, não há possibilidade de diálogo, entre eles e nós está fechado o entendimento. E sempre só há um tipo de eles e um tipo de nós. Para Jameson, a estrutura maniqueísta implícita no modelo fanoniano é, em si, o motivo principal da decadência desse modelo para o Terceiro Mundo: For with the Slave's symbolic and literal victory over the (now former) Master, the “politics of otherness” touches its limit as well; the rethoric of a conquest of collective identity has then nowhere else to go but into a kind of secessionary logic of which black cultural nationalism and (later on) lesbian separatism are the most dramatic examples(...). Ultimately, in the absence of the clear-cut Manichean situation of the older imperialist period, this hard-won collective self-definition of
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a first moment of resistance will break up into the smaller and more comfortable unities of face-to-face microgroups. (JAMESON, 1991, 189-90) No curso histórico do conceito de Terceiro Mundo, ora se viu a sua ligação com idéias conservadoras (que no melhor dos casos chegavam a ser reformistas e desenvolvimentistas), ora se detectaram movimentos libertários e utopistas revolucionários. Neste primeiro momento (anos 60 e 70), a segunda opção é a mais importante e profícua que o Terceiro Mundo escolhe. Inclusive em relação às alternativas culturais advindas desta “atitude”. Ao contrário dos terceiro-mundistas “complexados e entreguistas” – que se identificariam com o termo por suas inclinações cosméticas –, os terceiro-mundistas “revolucionários” trouxeram à tona os movimentos pelas culturas nacionais e populares, os novos movimentos de cinema nacional (como no caso do Cinema Novo e do manifesto da Estética da Fome de Glauber Rocha, que foi assumidamente inspirado por Frantz Fanon13), a literatura de resistência, o Boom latino-americano, a música de protesto. O que se pode opor a esta via, a esta proposta cultural, é que ela talvez esteja contaminada por um caráter irremediavelmente ingênuo. Ao se determinar uma estética terceiro-mundista, novamente se cai na armadilha maniqueísta que enfraqueceu em termos teórico-políticos a unidade do Terceiro-Mundo: A mística terceiro-mundista encobre o conflito de classes e traz uma visão ingênua, ainda que violenta, dos antagonismos e sobretudo das interdependências internacionais. A estética que ela inspira existe e é herdeira dos aspectos retrógrados do nacionalismo. (SCHWARZ, 128) Mesmo sendo também equivocado colocar tão enfaticamente como retrógrada qualquer manifestação autoconsciente de terceiro Ver em Glauber Rocha, “An Esthetic of Hunger”, Brazilian Cinema (Randal Johnson e Robert Stam, org.). Rutherford/Madison/Teaneck/London/Toronto: Fairleigh Dickinson University Press/ Associated University Presses, 1980. pp.68-71. 13
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mundismo-estético (claro que alguns desses movimentos culturais são em si mesmos fundamentais, ricos e produtivos para a história dos países onde eles foram desenvolvidos...), é provável que a opção “radical” terceiro-mundista tenha começado a declinar já nos anos 70, com a descolonização quase completa; com o terrorismo e as guerrilhas quase que totalmente reprimidos, ou pelo menos relegados a uma situação de exceção; com uma idéia de “globalização” crescente e cada vez mais visível. Os anos 80 são definitivos para o “Terceiro-Mundismo” (para o conceito de Terceiro Mundo, para a estética terceiramundista, para a prática revolucionária terceiro-mundista que restou dela). Primeiro porque é a partir desta década que se questiona teoricamente com mais ênfase a validade do termo, encontrando uma outra categoria para substitui-lo (pós-colonial – sobre a qual deter-me-ei no ensaio subseqüente.) . Também nos 80, começamos a assistir ao ocaso do Segundo Mundo (culminando na sua “dissolução” como Segundo Mundo, simbolizada pela queda do Muro de Berlim, em 1989). O não-alinhamento às grandes potências se esgota como estratégia de resistência e oposição ideológica. O neocolonialismo é uma forma mais sutil de colonização, mas igualmente eficaz: a exportação indiscriminada da cultura de massas é agora (mais do que nunca) uma das armas mais poderosas do “Império Ocidental”. Por isto também, a estética terceiro-mundista radical perece e outras “terceiras margens” são buscadas, já que não funciona mais a apologia do oprimido Por um lado, nos 80 o que acontece é a desilusão final do Terceiro Mundo como categoria unificada e indivisível: The term Third World, post-colonial critics insist, was quite vague in encompassing within one uniform category vastly heterogenous historical circumstances and in locking in fixed positions, structurally if not geographically, societies and populations that shifted with changing global relationships. (DIRLIK, 332) Por outro, acontecem também verdadeiras mudanças nas condições estruturais dos que ainda são chamados de “Primeiro” e “Terceiro Mundos”: elas não são intercambiáveis como um todo, mas há cada vez mais bolsões de pobreza nesse Primeiro Mundo; mais setores dos países do Terceiro Mundo já não podem ser reconhecidos como
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tal, devido à sua importância no capitalismo transnacional. A crise mundial torna mais aguda ainda a crise terceiro-mundista. Comentando a Guerra do Golfo e a invasão da Somália , Arif Dirlik afirma que The Third World, viewed by radicals only two decades ago as a hope for the future, now has to be saved from itself. The crisis could not get much deeper. (IBIDEM, 353) É curioso, entretanto, observar que com todas as objeções feitas ao termo e à conceituação de Terceiro Mundo, ele continua sendo utilizado. Como se o tempo tivesse se encarregado de legitimar a expressão. Terceiro Mundo: há quase cinqüenta anos existe esse termo e isso lhe empresta uma idéia de naturalidade. Mas essa não é a única razão para a sobrevivência do seu uso: One can only deplore the ideological implications of oppositions such as that between “developed” and “underdeveloped” or “developing” countries; while the more recent conception of northern and southern tiers, which has a very different ideological content and import than the rhetoric of development, and is used by very different people, nonetheless implies an unquestioning acceptance of “convergence theory” - namely, the idea that the Soviet Union and the United States are from this perspective largely the same thing. (JAMESON, 1986, 67) (Jameson não podia prever em 1986 a derrocada socialista, mas seu raciocínio procede na medida em que ainda é muito difícil de classificar o que hoje é o Segundo Mundo.) Mesmo as mais recentes críticas pós-colonialistas ao mesmo tempo em que recusam o conceito, não deixam de retornar a ele pelo o que ele tem de mais “neutro”. Ou seja, a categoria Terceiro Mundo vai-se acomodando como apenas um instrumento. Limitado instrumento que serve para definir vagamente áreas de estudo em um sentido meramente descritivo. Porque, no final, como diz Gugelberger em seu estudo sobre a literatura terceiro-mundista ,
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the framework of a Third World separate from a First and a Second World (...) does not hold at all and never did. It was nothing but an idealist's dream. (GUGELBERGER, 511)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BHABHA, Homi K.. The Location of Culture, London/New York: Routledge, 1994. BUCHANAN, Keith. “The Third World —Its Emergence and Contours”, New Left Review 18, Jan-Fev. 1963, pp. 5-23. DIRLIK, Arif. “The Postcolonial Aura: Third World Criticism in the Age of Global Capitalism”, Critical Inquiry, 20, 1994, pp. 32856. FANON, Frantz. The Wretched of the Earth. London: Penguin, 1963. GUGELBERGER, Georg M.. “Decolonizing the Canon: Considerations of Third World Literature”, New Literary History, 22:3,1991. pp. 505-24. HARLOW, Barbara. Resistance Literature. London/New York: Methuen, 1987. JAMESON, Fredric. “Periodizing the 60s”, The 60s without apology. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984, pp. 178-209. ___________. Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism. London/New York: Verso, 1991. ___________. “Third World Literature”, Social Text, 15 (1986), pp. 65-88. SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. WORSLEY, Peter. The Third World. London: Weidenfeld and Nicolson, 1967.
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Pós-colonialismo contemporâneos
e
Estudos
Culturais
latino-americanos
O pós-moderno como conceito, como teoria e como estilo consegue preencher certas funções dentro da cultura de final de milênio: dominante cultural do capitalismo transnacional, paradigma ideológico do neoliberalismo, tendência artística de certas facções das elites, entre outras. Entretanto, o pós-moderno não atende satisfatoriamente certos pleitos das culturas periféricas. Se por um lado, a teoria latino-americana tenta, durante toda a década de 80 e mais além, equalizar pós-moderno e hibridismo, tenta associar o conceito a certas evoluções do tecido social, tenta quebrar os elos do pós-moderno com o neoliberalismo, por outro, fica patente a insuficiência dos resultados, pelo menos até agora, no sentido de um verdadeiro remapeamento cultural do mundo, em especial do papel dos países periféricos nesta nova configuração. Então, se o pós-moderno depende excessivamente de uma visão positiva do capitalismo tardio e do neoliberalismo, o terceiro mundismo dos anos 60 prova ser ultrapassado demais politicamente e simplesmente ineficaz do ponto de vista econômico. Contudo, do ponto de vista periférico, faz-se necessária uma instância teórica que trabalhe as questões colocadas pelo problema do pós-moderno agenciando simultaneamente a identidade terceiro-mundista (ou periférica).
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A partir dos anos 80, pois, mais precisamente já no final dos anos 80, surge um termo substituto (como instância teórica e talvez até como instância política) para o Terceiro Mundo. Póscolonial, pós-colonialismo, substituem Terceiro Mundo em esferas bem específicas, a saber nos campos da produção acadêmica e polêmicas intelectuais. Não por acaso a terminologia póscolonialista aparece num contexto onde aquela esperança de unidade terceiro-mundista, mais do que enfraquecida, está totalmente eclipsada por crises internas e externas no Terceiro Mundo. O que se evidencia a partir dos anos 80 é que não só que o Terceiro Mundo não é um bloco homogêneo (algo que sempre esteve implícito em todas as discussões relevantes sobre o Terceiro Mundo, desde a aparição do rótulo) como também que o Terceiro Mundo não pode e não quer se identificar consigo mesmo como bloco homogêneo. (Isto acontece porque nem todos os países compartilham o ideário revolucionário-utopista que caracterizou o primeiro momento de euforia terceiro-mundista e aqueles que “lutaram juntos” já não têm as mesmas necessidades, nem os mesmos problemas— o legado de pobreza já não é suficiente para levantar a voz coletiva terceiro-mundista...) Então, em termos mais gerais, emerge um outro tipo de atitude terceiro-mundista: aquele que tenta usar a “diferença”, a “alteridade” como ponto de partida para a integração ao modelo capitalista global, especialmente em relação aos bens culturais. O mercado de cultura mundial abre-se ao chamado multiculturalismo e os efeitos de uma cada vez maior presença de bens simbólicos periféricos junto à cultura de massa internacional se fazem sentir em todos os cantos do planeta, especialmente desde o início da década de 80. William Rowe e Vivian Schelling constatam que: All meanings are available and transferable from Mozart to Bolivian folk music, from Dallas to Brazilian telenovelas, from hamburgers to tacos. The tendency for products from different cultural environments to mix on a global scale is accelerating as the century draws to an end. (ROWE e SCHELLING, 1992, 1) A busca de espaços no mercado cultural internacional obviamente não é o único fenômeno, nem o mais relevante no Terceiro Mundo hoje (as guerras no Oriente Médio, África e
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Europa do Leste; crises financeiras em escala global), porém as suas conseqüências são determinantes para a nova configuração do próprio conceito de Terceiro Mundo. O multiculturalismo, como fenômeno ligado à disseminação de massa das culturas locais, não pode ser visto sem reservas: mais do que iniciativas independentes “nacionais & populares” ou do que uma utópica rearticulação do local em escala global, ele também é um jogo de interesses recíprocos por parte de empresas, grupos políticos e indivíduos. Outro receio provocado pela disseminação generalizada de culturas tão diversas e peculiares é de que ela tenha um efeito homogeneizador sobre essas culturas. Alguns exemplos rápidos: passa-se cada vez mais a consumir o Realismo Mágico já consagrado —e filtrado— pelas academias européias e norteamericanas (mais escritores seguidores deste “estilo” aparecem e se parecem); a cozinha étnica vem a ser o que o “Ocidente” quer que essa cozinha étnica seja (sushies, curries, tacos de sabor "internacional"...); a principal preocupação de world musicians se torna adaptar seu trabalho aos ouvidos norte-americanos dos big bosses das gravadoras. Como uma maneira mais fácil de visualizar o fenômeno, bastava passar alguns minutos no Trocadero na primeira metade da década de 90, em Piccadilly, Londres (aliás, talvez Londres seja a cidade européia onde o efeito aplastador sobre as culturas "exóticas" aparece com mais evidência...) e ver as possibilidades dessa lógica da world culture transformadas em um coquetel etnotechnotrash: praça da alimentação "étnica", show de realidade virtual, réplicas de fotos antigas. Quando as alternativas culturais libertárias propostas pelo terceiro mundismo militante nos anos 60 e 70 são substituídas a partir dos anos 80 pelas estratégias de mercado transnacional, as abordagens teóricas sobre o Terceiro Mundo também têm que mudar. O que acontece com as teorias sobre o “Terceiro Mundo” nos 80 é uma transferência de campos do conhecimento: o que antes era o quase absoluto domínio das ciências políticas e sociais agora faz mais parte da história e mais especificamente da história da cultura, estudos culturais e literários. O multiculturalismo (como inicialmente é chamada a disseminação de diversas culturas no Ocidente no final dos anos 80 e que pode ser denominado também de “estado híbrido”, “mundialização”, “globalização cultural” (CANCLINI,1990; ORTIZ, 1994; FEATHERSTONE, 1995) vai ultrapassar as fronteiras de um mercado cultural de massas mais sofisticado e
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acaba por tomar conta também da academia- principalmente dos círculos anglo-americanos- como fenômeno pós-moderno (visto assim como conseqüência de um dos traços da pós-modernidade — a des-centralização). E assim como acontece com tudo relativo à pós-modernidade na primeira metade dos anos 80, todas as questões relacionadas com o multiculturalismo ocupam lugar de destaque nas principais discussões culturais na segunda metade desta década. Basicamente como discurso, mas um discurso altamente influente dentro da política universitária primeiromundista. Por exemplo, quando o multiculturalismo e os discursos sobre ele se mesclam às tendências “politicamente corretas” da sociedade contemporânea e diferenças culturais, raciais e sexuais passam a ser critérios positivos na escolha de cargos para professores no final dos anos 80, principalmente na academia norteamericana. Por um lado, o debate sobre multiculturalismo tem resvalado desde então para uma oposição extrema entre conservadores e radicais multiculturalistas, acabando por isolar cada parte nas suas tentativas de provar a superioridade de sua cultura. Por outro, é reaceso o interesse cultural no Outro para além da psicologia, antropologia, lingüística e etnografia. O Outro que emerge no final dos anos 80 nos cursos universitários europeus e norte-americanos é sobretudo o “Terceiro Mundo” (claro, também a mulher, os gays e lésbicas, os negros, mas para os propósitos de delimitação do território pós-colonial é a reemergência da temática terceiro-mundista—com outros nomes— que vai ser importante aqui). E em especial assuntos concernentes às relações entre “Império” e “Colônias”, ou “ex-colônias”... Daí o termo, pós-colonial. A partir do termo, uma série de antologias, cursos, tratados, ensaios, todos com relativo sucesso de marketing garantido, pelo menos nos Estados Unidos e GrãBretanha. As teorias culturais do final do século XX estão indissoluvelmente impregnadas por esse novo interesse pelo Outro, interesse que tem diversas naturezas (“científicas”, culturais, mercadológicas...) e onde todas podem conviver numa mesma teoria e num mesmo teórico. Como coloca Ella Shohat, the “post-colonial” did not emerge to fill an empty space in the language of political-cultural analysis. On the contrary, its wide adaptation during the late eighties was coincident with and
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dependent on the eclipse of an older paradigm, that of the Third World. (SHOHAT, 1992, 100) O paradigma “Terceiro Mundo” desaba porque é excessivamente indiferenciador, porque homogeniza diferenças e principalmente porque vem carregado com uma essência revolucionária advinda das lutas de independência nos anos 60 e 70. E a teoria póscolonial que de certo modo o substitui não deixa de ser ela também homogeneizadora: entretanto, ao impor o colonialismo como algo “passado”, inevitavelmente o componente utópico-revolucionário é suprimido desta proposta teórica. O que pode ser mais conveniente para as consciências acadêmicas primeiro-mundistas. Em contrapartida, destituir a idéia de Terceiro Mundo e substituí-la por periferia na linguagem coloquial e por pós-colonial no sentido teórico é também um movimento que parte de terceiro-mundistas que não se reconhecem como tal ou que se sentem diminuídos com esse tipo de classificação: in India, people who can think of the three worlds explanation are totally pissed off by not being recognized as the centre of the non-aligned nations, rather than a “Third World country”. (SPIVAK, 1990, 91) No sentido estritamente acadêmico, o surgimento da teoria pós-colonial vem tentar resolver certos problemas embutidos no “multiculturalismo radical”. Ao fundir todas as “etnias e histórias” em um só rótulo (pós-colonial), os intelectuais póscoloniais não se isolam tanto quanto, digamos, um professor de “Estudos africanos”, mesmo que estes intelectuais estudem um mesmo fenômeno. Ao introduzir o contexto pós-colonial, estes teóricos estão assumindo que tal fenômeno tem que ser visto em relação a outras experiências e dados deste contexto. Ao mesmo tempo, também podem considerar países do Primeiro Mundo como pós-coloniais, já que agora não estão em jogo espaços geográficos e sim condições temporais. A teoria pós-colonial tenta, então, abarcar a cultura mundial depois que a experiência colonial “já passou”. Assim, tomando como “passada” tal experiência. O que parece inevitavelmente controverso quando a condição colonial, em vários casos, ainda persiste. Ademais, a teoria pós-colonial não considera um fator fundamental para a maioria dos países “terceiromundistas” ou “pós-coloniais”: o neocolonialismo. Somemos a
155 isso o fato de que há países “pós-coloniais” que são “pós-coloniais” há mais de dois séculos (os Estados Unidos, por sinal...)— o que não apaga o seu passado colonial— e de que cada experiência colonial é um experiência colonial diferente (há diversos tipos de colonizadores, colônia e colonizados), e temos para a teoria póscolonial uma premissa inescusavelmente vulnerável. Esta vulnerabilidade não anula a abertura que a teoria pós-colonial traz para a cultura (e principalmente para os intelectuais) dos países periféricos. Pois, o pós-colonialismo também pode ter “algo” de utópico, na medida em que traz à tona a “história da cultura dos oprimidos” e des-hierarquiza a origem dos teóricos. Nunca se viu antes tamanha profusão de nomes “exóticos” na primeira linha do mundo acadêmico primeiromundista (Spivak, Said, Bhabha, Prakash, Mohanty,etc...)—sem contar com a intelectualidade judaica nos Estados Unidos pósguerra, que talvez tenha representado uma das primeiras grandes transformações no establishment acadêmico primeiro-mundista—, alguns destes nomes que já vêm trabalhando há décadas, mas que no final dos 80 e início dos 90 foram alçados ao “estrelato”. E é crescente o interesse por outros nomes “exóticos”. Contudo, quase todas as “estrelas” da teoria póscolonialista (e da literatura) têm em certa medida algo em comum: a língua inglesa. Quase todos estão ligados ou ao passado do império britânico ou ao presente do império norte-americano. O que compromete o pós-colonial no sentido de um estreitamento do seu escopo. Quase todas as abordagens pós-coloniais são sobre as ex-colônias britânicas e/ou sobre o “estado híbrido” da cultura norte-americana (em uma escala bastante menor, a África, a Ásia, o Caribe e o Canadá franceses são analisados). Por exemplo, uma das primeiras antologias a nomear diretamente a teoria póscolonial, Colonial Discourse/ Postcolonial Theory, antecipa na sua folha de rosto o “globalismo” de seus propósitos: This truly global volume ranges geographically from Brazil to India and South Africa, from the Andes to the Caribbean and the USA. (BARKER, HULME, IVERSEN, 1994, I) Porém, na sua introdução delimita mais claramente o que define como “globalismo”: One factor involved in this move is the increasing globalisation of culture ,
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especially the publishing phenomenonfirst seen with the Latin American “boom” of the 1970s -whereby so-called “Third World” or “post-colonial” writers, either writing directly in English or quickly being translated, have been so successfully marketed (grifo meu). (IDEM, 1) Ainda mais específico que esse volume em relação à língua inglesa é o mais recentemente publicado The Postcolonial Reader (editado pelos mesmos autores de The Empire Writes Back, que é uma das obras-chave para os inícios desse tipo de definição de pós-colonial como a literatura de língua inglesa escrita em países que sofreram uma situação colonial, inclusive os Estados Unidos), que é mais direto e contundente para apresentar este conceito de pós-colonial: One of the most exciting features of English literatures today is the explosion of postcolonial literatures, those literatures written in English in formerly colonised societies. (ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 1994, I) Excetuando-se os ensaios de Said sobre Orientalismo, de Fanon sobre negritude, dois sobre o Haiti de Aléxis e Dash, outros dois específicos sobre cartografia e história de Rabasa e Hulme, respectivamente, os outros oitenta ensaios do livro ou são “testemunhos” de escritores pós-coloniais no sentido indicado pelo prefácio (como o de Jamaica Kincaid), ou tratam do tema no mesmo sentido (ensaios que na sua maioria são escritos por intelectuais pós-coloniais: Bhabha, Derek Walcott, Spivak, Mohanty, etc). O conceito de pós-colonial vai se acomodando, assim, dentro dos limites de um território lingüístico determinado. Mesmo que se isso não implique na negação de espaços a abordagens de outras experiências pós-coloniais, demarca o lugar especial que ocupam as ex-colônias (que só no século XX se tornaram excolônias, cabe lembrar ...) européias— especialmente britânicas— da Ásia, África e Caribe nas universidades anglo-americanas hoje. Se no conceito e na atitude do “Terceiro Mundo” espalhados nos anos 60 e 70 havia a predominância do anticolonialismo como um projeto único para todos os países terceiro-mundistas, no póscolonial é como se ele não fosse mais necessário. O que tem se
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sobressaído por enquanto, como ponto de intersecção entre os adeptos do projeto pós-colonial é, nas suas instâncias mais básicas, a língua inglesa como signo de uma reação específica ao Império Britânico e da influência da diáspora que levou tantos intelectuais terceiro-mundistas à outra força hegemônica da língua inglesa, os Estados Unidos. E em segundo lugar, a capacidade que essa teoria tem de se tornar uma mercadoria tão facilmente negociável no circuito acadêmico anglo-americano (até por sua estreita ligação com outros “pós”: o pós-estruturalismo e o pós-modernismo). Sinais talvez de uma estranha mistura de nostalgia, culpa e redenção, tanto por parte de “colonizadores”, como de “colonizados”. Viu-se, anteriormente, que o cosmopolitismo pósmoderno está sublinhado pela suposta globalização da economia mundial e pela série de remapeamentos culturais implicados nela. Uma das primeiras conseqüências da globalização é o enfraquecimento da noção de estado-nação, o que pode sugerir, de certa maneira, a gradual des-hierarquização dos países europeus ou dos Estados Unidos como centros irradiadores de modismos culturais mundiais. Sem que isso chegue a significar o desaparecimento das grandes cidades como potências culturais. Nova York, Paris, Londres ainda são tanto algumas das peças mais fundamentais do imaginário metropolitano do Ocidente, como líderes incontestes de tendências artísticas e do mercado cultural mundial. Essas metrópoles lançam o periférico como principal tendência das modas culturais de fim de milênio. Ou seja, o próprio centro desestabilizando a condição de centro com o multiculturalismo —o que pode deixar dúvidas em relação a essa desestabilização: modismo passageiro? Neocolonialismo camuflado? Exploração cultural? É inegável, entretanto, que transformações inéditas ocorreram, principalmente no nível acadêmico, dos Estudos Culturais, no sentido da des-centralização do cosmopolitismo, do redimensionamento do cânone cultural ocidental e estabelecimento de políticas internacionais da teoria. Os Estudos Culturais se estabelecem como o terreno por excelência tanto para o estudo como para o próprio desenrolar dessas transformações. É neles que se revela mais profundamente o grau de globalização cultural e como se está dando a penetração não só dos bens culturais periféricos, como também das teorias pós-coloniais na metrópole. Contrastados com disciplinas mais tradicionais como História da
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Cultura, Antropologia, Teoria Literária, os Estudos Culturais, especialmente a partir dos anos 90, fornecem um ponto de vista muito mais abrangente —sendo simultaneamente bem específico na sua historicidade—, condensam um instrumental capaz de dar conta da contemporaneidade de maneira desmistificadora e deshierarquizada e servem como ponto de partida para o estabelecimento de uma política da diferença que desafie a hegemonia nordocêntrica, redefina a modernidade a partir de novos termos, aponte alternativas para um padrão cultural baseado na cópia e na imitação e garanta voz a sujeitos que anteriormente não tiveram direito a voz. The new cultural politics of difference are neither simply oppositional in contesting the mainstream (or malestream) for inclusion, nor transgressive in the avantgardist sense of shocking conventional bourgeois audiences. Rather, they are distinct articulations of talented (and usually privileged) contributors to culture who desire to align themselves with demoralized, demobilized, depoliticized, and disorganized people in order to empower and enable social action and, if possible, to enlist collective insurgency for the expansion of freedom, democracy and individuality. (WEST, 1994, 204) Se pode parecer ridiculamente otimista colocar tamanhas expectativas numa teoria e numa apreensão claramente pósmoderna da história, por outro lado são evidentes as conquistas intelectuais tanto dos Estudos Culturais, como da teoria póscolonial na revisão das desigualdades da modernidade e na apresentação de alternativas teóricas aos modelos econômicos, sociais e políticos do “Primeiro Mundo”. Neste contexto, a importância da revisão de um conceito como o de cosmopolitismo parece inegável inclusive por suas potencialidades de aplicação como uma terminologia muito mais precisa e aceitável que “relativismo cultural” ou “internacionalismo”. O cosmopolitismo tal como vinha se manifestando ao longo do século XX na periferia parece estar profundamente modificado e virtualmente superado. Uma conceituação contemporânea do cosmopolitismo tem que levar em conta pelos
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menos alguns dos seguintes fatores: 1) uma nova configuração urbana que torna caduca a noção da vivência da cidade como base do cosmopolitismo: algumas das maiores metrópoles do mundo não estão no centro, mas na periferia —Cidade do México, Jacarta, São Paulo, Istambul; 2) a dissolução do chamado Segundo Mundo; 3) a emergência dos países asiáticos como potências econômicas; 4) a hibridização cultural da maioria dos países periféricos e especialmente dos países centrais; 5) embora, simultaneamente veja-se o crescente isolamento cultural de alguns países muçulmanos; 6) a diáspora dos intelectuais da periferia para o “Primeiro Mundo”; 7) o avanço gigantesco das redes de comunicação: canais de tv a cabo, conglomerados da imprensa abrangendo vários países e, fundamentalmente como maior revolução, a Web, a Internet. Estes seriam os principais elementos para que se fundem novos parâmetros para as culturas periféricas. O pós-colonialismo, por exemplo, reafirma, como antes o terceiro-mundismo, mas agora de modo muito mais articulado teoricamente, o papel do periférico na História e a própria História periférica. A teoria pós-colonial é uma empresa de descolonização, mas não a descolonização concreta (algo que já foi mais ou menos realizado) das lutas armadas e acordos militares, mas a descolonização da História e da teoria, uma abordagem de fato alternativa do Ocidente. De teoria estritamente relacionada com as ex-colônias de língua inglesa a abordagem de muito maior escopo, os estudos pós-coloniais reinserem o debate da identidade nacional, da representação, da etnicidade, da diferença e da subalternidade no centro da história da cultura mundial contemporânea. Comentando a obra de Gayatri Chakravorty Spivak, Robert Young considera a classificação de subalterno tanto para a historiografia produzida pelo “Outro”, como o sujeito que a produz. The subaltern historian not only locates historical instances of insurgency but also aligns him— or herself with the subaltern as a strategy for ‘bringing hegemonic historiography to crisis’ —which amounts to a good description of the strategic orientation of Spivak’s own work. (YOUNG, 1990, 160) Ou seja, ao contrário da antropologia clássica ou da historiografia tradicional, a teoria pós-colonial poderia representar a periferia diretamente, mais do que isso —já que o pós-colonialismo contesta
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uma já ultrapassada concepção de representação—, é a própria voz do subalterno que está em jogo. A reescritura periférica da História, ou a desconstrução do Ocidente feita pelos estudos póscoloniais, portanto, implica num constante ataque à hegemonia ocidental e, se não uma completa inversão, uma reavaliação dos valores do cosmopolitismo convencional, uma reacomodação do cânone cultural, o des-centramento anunciado pelas teorias pósmodernas, enfim. O que não significa, contudo, que a revisão do cosmopolitismo implícita no pós-colonialismo seja a proposta de um relativismo cultural generalizado, a absolutização do relativismo. Como sugere Bruce Robbins, o cosmopolitismo pode ser uma denominação mais apropriada para a noção de “estado híbrido” e para a abrangência de certos aspectos do internacionalismo dos anos 60: The interest of the term cosmopolitanism is located, then, not in its full theoretical extension, where it becomes a paranoid fantasy of ubiquity and omniscience, but rather (paradoxically) in its local applications, where the unrealizable ideal produces normative pressure against such alternatives as, say, the fashionable “hibridization”. (ROBBINS, 1992, 183) O cosmopolitismo pós-moderno, então, vai se constituindo como um cosmopolitismo quase que necessariamente periférico, tanto pelo problema da representação mencionado anteriormente, como pela óbvia e inerente experiência cosmopolita vivida no cotidiano da maioria das regiões periféricas. Embora isso se aplique à experiência do mundo urbanizado como um todo. Grandes metrópoles “nordocêntricas” como Nova York, Londres e Paris também têm no seu cotidiano uma experiência que inegavelmente se chama cosmopolitismo periférico. As zonas de contato entre “Primeiro” e “Terceiro” Mundos vão se multiplicando nas duas regiões e, como seria de se esperar, no destroçado “Segundo”. A existência de bolsões de “Terceiro Mundo” no “Primeiro Mundo” e seu contrário, o “Primeiro Mundo” no “Terceiro Mundo” são não apenas a confirmação do cosmopolitismo periférico, como também uma condição sine qua non do capitalismo transnacional e o sinal de que um “mundo” somente está cada vez mais parecido na sua diversidade. Justamente no espaço intersticial, no fluido território intermediário,
161 nessa zona de negociação entre “mundos”, é que está localizado o arcabouço cultural que serve de objeto para a teoria pós-colonial e o instrumental teórico para analisá-lo. Criticism formed in this process of the enunciation of discourses of domination occupies a space that is neither inside or outside the history of western domination but in a tangential relation to it. This is what Homi Bhabha calls an in-between, hybrid position of practice, or what Gayatri Chakravorty Spivak terms catachresis; “reversing, displacing, and seizing the apparatus of value-coding.” (PRAKASH, 1992, 8) O lugar do periférico na configuração da cultura contemporânea e na crítica, análise e teoria dessa cultura, portanto, está muito diferenciado em contraste com as disciplinas mais tradicionais. É um ponto de observação privilegiado no sentido da multiplicidade desse espaço intermediário. Mesmo que tantas outras teorias e estéticas já houvessem problematizado conceitos como representação, identidade, outridade, hibridismo, colonização, Ocidente, Oriente; com o pós-colonialismo esses elementos são colocados num marco de referências que, ao invés de simplesmente inverter ou descartar termos e hierarquias, vai questioná-los na sua essência e na sua malha de inter-relações, vai pensar as condições de possibilidade, continuidade e de utilidade da sua construção. Postcoloniality represents a response to a genuine need, the need to overcome the crisis of understanding produced by the inability of old categories to account for the world. (DIRLIK, 1994, 352) O que não corresponde a dizer que o pós-colonialismo é teleologicamente positivo em relação à pós-modernidade ou às micropolíticas de final de milênio. Não se trata de simplesmente ser ingenuamente “otimista” por causa da globalização, por causa do hibridismo cultural e por uma suposta superação da experiência colonial, ou, no campo da estética, de tentar inverter os valores do cânone à moda da “antropofagia” brasileira modernista, por exemplo, assim proclamando a superioridade do periférico, do “terceiro-mundista”. O pós-colonialismo tampouco vai ser o mero
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reflexo teórico das tendências politicamente corretas surgidas na academia primeiro-mundista a partir do final da década de 80. No caso da América Latina, o pós-colonialismo vai estar irremediavelmente associado às teorias pós-modernas e ao discurso pós-estruturalista. Aí, a teoria pós-colonial vai desenvolver-se sobretudo como resposta às questões mais diretamente ligadas à modernidade e ao desenvolvimento social da região, além de ser um instrumental auxiliar relevante para os Estudos Culturais. Neste contexto, sobressai-se especificamente a linha de trabalho sobre o hibridismo na cultura latino-americana. Hibridismo, híbrido, hibridização são conceitos-chave dos Estudos Culturais latinoamericanos dos anos 90, prolongando discussões que haviam iniciado na abordagem do pós-moderno latino-americano na década anterior. Como havia sido dito antes, a obra de Néstor García Canclini ocupa um posto extremamente influente no debate sobre o estado híbrido da cultura latino-americana. Seu livro Culturas híbridas— Estrategias para entrar y salir de la modernidad postula a necessidade de uma abordagem “transdisciplinária” para a compreensão da cultura latino-americana contemporânea, esta fundamentalmente marcada por uma intensa “heterogeneidade multitemporal”. Canclini tenta ademais redefinir a modernidade — e tangencialmente a pós-modernidade— tendo em conta os processos de hibridização da América Latina. Las reconversiones culturales que analizamos revelan que la modernidad no es sólo un espacio o un estado al que se entre o del que se emigre. Es una condición que nos envuelve, en las ciudades y en el campo, en las metrópolis y en los países subdesarollados. Con todas las contradicciones que existen entre modernismo y modernización, y precisamente por ellas, es una situación de tránsito interminable en la que nunca se clausura la incertitumbre de lo que significa ser moderno. (CANCLINI, 1990, 333) Como no trabalho de outros latino-americanos e “latinoamericanistas”, a preocupação de Canclini com a modernidade (ou pós-modernidade) e seus processos especificamente latinoamericanos o leva a elaborar outro trabalho onde a discussão da
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hibridização e mais ainda da emergência do multiculturalismo vão estar no cerne desses processos, nos quais é acentuada a tensão permanente entre o local e o global. A partir sobretudo de Consumidores y ciudadanos (1995), Canclini redimensiona principalmente a identidade urbana latino-americana moderna (ou pós-moderna) a partir das transformações do final do século. Seu interesse na nova configuração da cidade, principalmente na Cidade do México, mas na metrópole latino-americana de modo geral, desemboca na reflexão mais ampla sobre a pós-modernidade e a globalização. As grandes cidades, dilaceradas pelo crescimento errático e por um multiculturalismo conflitante, são o cenário em que melhor se manifesta o declínio das metanarrativas históricas, das utopias que imaginaram um desenvolvimentohumano ascendente e coeso através do tempo. Mesmo nas cidades carregadas de signos do passado, como a capital mexicana, o encolhimento do presente e a perplexidade diante do devir incontrolável reduzem as experiências temporais e privilegiam as conexões simultâneas no espaço. (CANCLINI, 1995, 130) A vivência urbana — não a experiência da cidade moderna, mas toda a gama de complexidades e entrelaçamentos que surge de uma concepção pós-moderna de cidade e conseqüentemente de cosmopolitismo— na América Latina passa a ser o foco central do pensamento de Canclini. Nas três conferências que constituem Imaginarios urbanos (1997), Canclini explicita ainda mais a inquietação sobre a pós-modernidade urbana na região, sempre retomando o debate acerca do contexto modernizador da globalização contemporânea e da hibridização cultural, ressaltando as particularidades dos processos de desterritorialização e reterritorialização latino-americanos e chamando a atenção para as possíveis interpretações equivocadas desses fenômenos — numa espécie de recado às teorias pós-coloniais: Hay que aclarar en seguida que este reordenamiento global de las culturas no elimina las desigualdades ni la asimetría
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entre las metrópolis y las sociedades periféricas. Sin embargo, tampoco estamos en régimen de desigualdades comprensible con nociones de otro tiempo, como colonialismo o imperialismo. Es necesario construir una nueva conceptualización que vincule las desigualdades con las hibridaciones, de acuerdo con esta descentralización de los mercados globalizados, que ya no puede ser explicada, como hace Homi K. Bhabha, oponiendo la hibridación colonial a la hibridación de la resistencia. (CANCLINI, 1997, 44) No item anterior ficou evidente a preocupação latinoamericana com os conceitos relacionados com a pós-modernidade. Tal preocupação surge indubitavelmente da complexidade de uma modernização desigual e em descompasso com o centro (o que não nega necessariamente a desigualdade e o descompasso da modernização no centro também). A modernização e todos os discursos que a bordeiam —modernidade, modernismos, pósmodernidade, pós-modernismos— evidentemente formam o eixo principal dos Estudos Culturais latino-americanos contemporâneos. Entretanto, são as condições da modernização latino-americana no final do século XX que vão ser focos de interesse dos teóricos latino-americanos. Nessas condições estão implicados o hibridismo, o ser periférico, as noções de caráter nacional, globalização, colonialismo e dependência. Apresentando um colóquio de cultura latino-americana em Yale em 1994, Josefina Ludmer enumera certos temas e discursos que vão aparecer nos trabalhos apresentados: Hay una tonalidad, un conjunto de lugares comunes, que ti e nuestra máquina “fin de siglo”: modernidad y posmodernidad, nación y narración; minorías y excluidos, identidades nacionales, sexuales, raciales, culturales (“géneros” de discursos); la representación y la política; territorializaciones y desterritorializaciones, periferias, fronteras, bordes y cuerpos; el problema
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del lector y de la existencia misma de la literatura en la era de la información visual. Y la cultura latinoamericana en el interior de estos lugares comunes. (LUDMER, 1994, 9) Esse conjunto de termos, além de temas específicos do colóquio, de maneira geral representa grande parte do novo paradigma das ciências sociais latino-americanas, um paradigma que tem muitos pontos em comum com a teoria pós-colonial, mesmo que não seja completamente coincidente. É importante notar que, especialmente a partir da década de 90, a teoria latino-americana contemporânea explicita a sua conformação às metodologias e processos próprios aos Estudos Culturais (originados nos Estudos culturais britânicos, mas com os acréscimos da teoria crítica contemporânea), começa a delinear as conexões mais diretas com a teoria pós-colonial e fixar as especificidades dos Estudos Culturais latino-americanos: Once this same heterogeneity and archaic latency that goes hand in hand with the aspiration to modernity is transformed into a source of Latin American exoticism in the European or North American mind, it rebounds off Latin America with the prestigious weight of those cultures (exotic, in their turn, to the eyes of Latin America), catalizing, with ‘consciousness of identity’, what was merely the projection of an idealized Other. In this sense, Latin American Cultural Studies, whether conducted from within the continent or abroad, assumes an ideological counter effect which is not apparent in the case of Cultural Studies pure and simple. (SEVCENKO, 1993, 148) Como nos Estudos Pós-coloniais de língua inglesa, nos Estudos Culturais latino-americanos também está em jogo uma teoria da representação que necessariamente tem que levar em conta o problema da subalternidade. Inspirados pelo Subaltern Studies Group, uma organização de acadêmicos sul-asiáticos liderados por Ranajit Guha, alguns acadêmicos latino-americanos propuseram a formação de um grupo parecido com o Founding
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Statement (Discurso de fundação) do Grupo latino-americano de estudos subalternos para contrapor à historiografia tradicional da elite um estudo da cultura latino-americana que recupere as especificidades da subalternidade e corrija as distorsões estabelecidas pelas abordagens hegemônicas. Para isso é imperativa para o grupo uma revisão não só do conceito de subalternidade, como também o profundo escrutínio das concepções de nação, identidade nacional, política e cultura implicadas na história prévia do pensamento latino-americano: To represent subalternity in Latin America, in whatever form it takes wherever it appears—nation, hacienda, work place, home, informal sector, black market— to find the blank space where it speaks as a social political subject, requires us to explore the margins of the state. (...) We must be careful, in the process of conceptualizing subalternity, not to ensnare ourselves in the problem, dominant in previous articulations of “national” liberation (...), of the national elite itself as subaltern, that is, as transcriber, translator, interpreter, editor: to avoid, in other words, the construction of postcolonial intelligentsias as “sharecroppers” in metropolitan cultural hegemony. (LATIN AMERICAN SUBALTERN STUDIES GROUP, 1993, 119) Mas, exatamente no foco de todo repensar sobre a subalternidade e suas relações com a identidade nacional e as políticas de superação do subdesenvolvimento, está a dualidade centro-periferia. Neste sentido, o debate sobre o pós-moderno serve, apesar de sua multiplicidade de “encarnações”, propósitos e definições, para designar precisamente a crise de centralidade pela qual passa o Ocidente. Tal crise é uma das pedras de toque da teoria latino-americana contemporânea, que tem buscado repensar a identidade, o hibridismo e a diferença cultural da região a partir do des-centramento pós-moderno. Curiosamente, o des-centramento vai ser muitas vezes tomado como uma inversão de valores. De
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repente, as margens passam a centro e o centro a margem, numa celebração catártica da diferença. La singularidad cultural es el campo utópico del subalternista. El subalternista debe a la vez afirmar, y subsecuentemente encontrar y representar (es decir, precisamente, no “construir”), singularidad cultural entendida como diferencia de la formación cultural dominante. (MOREIRAS, 1996, 876) Esse viés de interpretação, corrente em diversas áreas e autores e com diversos níveis de concordância com ele, desde a abordagem literária de Carlos Rincón (1996) diferença latinoamericana a partir do Boom do realismo mágico; à recuperação da antropofagia modernista brasileira pelos irmãos Campos e pelas teorias da tradução (VIEIRA, 1996); a diversos trabalhos da chilena Nelly Richard; à definição de uma literatura pós-modernista na Argentina por Santiago Colás (1994); à própria idéia de “reconversão cultural” e aos estudos sobre as cidades latinoamericanas de García Canclini ou à obra sobre a pós-modernidade de Beatriz Sarlo (1994), pode ser controverso e ingenuamente otimista, como já foi apontado anteriormente no item anterior ao discutirmos o latino-americanocentrismo de certas apreensões do pós-moderno na América Latina. Então é preciso tomar cuidado sobretudo com a apropriação feita pelo neoliberalismo do discurso da diferença. Faz parte do próprio princípio de manutenção da hegemonia a apropriação das diferenças. A identidade cultural latino-americana é, portanto, apropriada por um sistema “multiculturalista” por sua “diferença”, mas que de fato seria apenas uma “diferença” a mais. Em um certo sentido, o neoliberalismo admite, então, a diferença simplesmente porque estas formam um quadro de igualdade, um sistema de “diferenças uniformes”. That is to say, the transparency of the social has simply been transferred from the uniqueness and intelligibility of a system of equivalences to the uniqueness and intelligibility of a system of differences. (LACLAU e MOUFEE, 1985, 182)
168 Por outro lado, cabe lembrar —algo que já foi mencionado acima— que um sistema que valoriza a diferença, estabelece uma espécie de valor positivo para sociedades culturalmente mais heterogêneas, caso da América Latina. O que por sua vez proporciona as abordagens celebratórias as quais mencionamos anteriormente. Ou seja, simultaneamente ao reconhecimento das possibilidades desse processo, há que se levar conta também os perigos da inversão de hierarquias culturais ou absolutização da diferença. Como avisa Nelly Richard, Celebrating difference as exotic festival — a complement of otherness destined to nuance, more than subvert, the universal law— is not the same as giving the subject of this difference the right to negotiate its own conditions of discursive control, to practice its difference in the interventionist sense of rebellion and disturbance as opposed to coinciding with the predetermined meanings of the official repertory of difference. (RICHARD, 1993, 160) Além disso, o hibridismo, a diferença e o reconhecimento de heterogeneidade cultural latino-americana servem como um princípio de contestação muito vago da hegemonia nordocêntrica, que os mais pessimistas não hesitam em subestimar como parcelas minúsculas de uma ideologia da globalização que serve a propósitos neo-liberais. Uma das saídas dessa encruzilhada é mostrar-se atento às armadilhas da inversão total do esquema binário centro-periferia e marcar a fundamental distinção entre o autoexotismo e a consciência crítica do que constitui a identidade cultural latino-americana, para que realmente se concretizem os fundamentos de um cosmopolitismo periférico.
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Estudos culturais brasileiros contemporâneos
No Brasil da década de 80, o ethos dominante envolve o pós-moderno, grande parte dos conceitos que o circundam, e as nuances mais intensas de um cosmopolitismo mais tradicional. Como se obedecendo à ondulação de um pêndulo, a década de 90 assiste à reemergência da busca da identidade nacional, a retomada da “essência brasileira” nas artes e cultura. Todas as tendências e políticas culturais mundiais originadas mais ao final dos anos 80, como o multiculturalismo, o politicamente correto, a world culture contribuíram para essa reorientação cultural. A crítica de cultura brasileira contemporânea vai sendo influenciada pelos Estudos Culturais e pelas teorias pós-coloniais contemporâneos europeus e norte-americanos, e também redimensionada pelo quase súbito e crescente prestígio internacional e nacional que gozam certos nomes de uma arraigada tradição da teoria brasileira como Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Antonio Candido, Heloísa Buarque de Holanda e Renato Ortiz, entre outros. Tais fatores vão ser cardeais no sentido de fazerem reemergir com força noções que andavam parcialmente adormecidas durante toda uma década. Grande parte da teoria cultural elaborada a partir do final dos anos 80 vai ser baseada nessas noções ou abordagens. A premissa elaborada por Schwarz, por exemplo, em Ao Vencedor as batatas (1977), sobre “as idéias fora do lugar” na sociedade brasileira —a saber, o ensaio específico sobre o liberalismo adotado no Brasil do século XIX e usado como discurso de um regime escravocrata— é retomada no Brasil e no exterior como ponto de partida para uma crítica marxista do aporte celebratório da diferença e para o redimensionamento do conceito de dependência: Schwarz, that is, thinks of the “national” as a product —social, economic, historical— of the international, the
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global. The part is thought through the whole. “Dependency”, it now becomes apparent, could never, despite its formal grasp of imperialism and colonialism as global and systematic, do otherwise than think the whole through the part, the international through the national. Those who currently protest the anachronism of the “national” as such, reducing all to a question of the “transcultural” and global hybridity, merely think the whole without the part, apparently “solving” the problem by conceptual fiat but in fact condemning themselves to theoretical and political irrelevance. (LARSEN, 1995, 214-5) Schwarz é o mais relevante dos críticos para a continuidade —ou talvez até constituição— de uma teoria crítica no pensamento brasileiro. Tal teoria está baseada na constante vigilância contra as armadilhas da inversão do binarismo cópia/original, contra o elogio do “atraso”, contra, enfim, um sentido de “nacional por subtração”: Quem diz cópia pensa nalgum original, que tem a precedência, está noutra parte, e do qual a primeira é o reflexo inferior. Esta diminuição genérica freqüentemente responde à consciência que têm de si as elites latino-americanas, (...). Nem por isso adianta passar ao pólo oposto: as objeções filosóficas ao conceito de originalidade levam a considerar inexistente um problema efetivo, que seria absurdo desconhecer. A historiografia da cultura ficou devendo o passo globalizante dado pela economia e sociologia de esquerda, que estudam o nosso “atraso” como parte da história contemporânea do capital e de seus avanços. (SCHWARZ, 1987, 47-8) Se Schwarz vai ser recuperado nos 90 como a expressão máxima de um marxismo renovado e da teoria crítica contemporânea no Brasil, seu antecessor (e podemos arriscar até mentor) Antonio Candido é visto não apenas como o marco zero de uma sociologia da cultura brasileira, mas também como o antídoto
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para os excessos do estruturalismo e pós-estruturalismo que haviam se instalado no país desde os anos 60, e passa, inclusive, a ser apontado em algumas esferas como precursor dos estudos subalternos contemporâneos (mais ou menos num mesmo sentido em que Raymond Williams foi recuperado de forma geral na América Latina14). Seus textos sobre a literatura regional e as relações entre subdesenvolvimento e literatura marcaram toda uma geração de críticos brasileiros, tanto os que adotam, como os que rejeitaram veementemente a abordagem sociológica da cultura. Para Candido, a consciência do subdesenvolvimento econômico e da dependência cultural é pré-requisito fundamental para uma possível superação deles, especialmente desta última. Tal discussão vai servir como perspectiva inicial para a ligação feita por Alberto Moreiras da sociologia cultural de Candido com o grupo de estudos subalternos latino-americanos: En mi opinión esta afirmada “normalidad” o “naturalidad” de la dependencia cultural se convierte en el asunto decisivo y en la piedra de toque contra la que el subalternismo latinoamericano puede y debe organizar su deseo de oponerse a paradigmas previamente articulados. (MOREIRAS, 1996, 881) Antonio Candido é um dos poucos críticos latinoamericanos a comentar e procurar as razões para a distância e a falta de intercâmbio entre os diversos países que compõem a América Latina e particularmente entre os dois blocos lingüísticos majoritários, as Américas espanhola e portuguesa. Com uma obra que se destaca no pensamento brasileiro desde os anos 40, Candido vem recolocando ao longo das décadas o papel da literatura na construção da “nacionalidade”, as questões sobre cópia e original, a dialética do cosmopolitismo brasileiro (mesmo que indiretamente), a existência de uma latino-americanidade e as definições de subdesenvolvimento. Ver em Beatriz Sarlo, “Raymond Williams. Uma releitura”, Paisagens imaginárias. São Paulo: EDUSP, 1997, pp. 85-95, a discussão mais específica sobre a influência de Raymond Williams no panorama acadêmico argentino desde as décadas de 60 e 70. 14
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Considerada como derivação do atraso e da falta de desenvolvimento econômico, a dependência tem outros aspectos que manifestam a sua repercussão na literatura. Lembremos de novo o fenômeno da ambivalência, traduzido por impulsos de cópia e rejeição, aparentemente contraditórios quando vistos em si, mas que podem ser complementares se forem encarados desse ângulo. (CANDIDO, 1989, 156) Em 1998, ano em que Candido completa oitenta anos de vida, sai um suplemento Mais! da Folha de São Paulo em sua homenagem. Nele reúnem-se desde usuais admiradores e continuadores da sua sociologia crítica (e crítica sociológica) — Walnice Nogueira Galvão, Luiz Costa Lima, Maria Sylvia Carvalho Franco — até dois dos mais renomados teóricos da linguagem literária no Brasil— Haroldo de Campos e Leyla Perrone-Moisés. Essa reunião em torno a Candido dá uma medida aproximada da grande fluidez teórica entre “formalismos”, “historicismos” e “sociologismos” na década (de certo modo, demonstrando a continuidade do processo iniciado nos anos 80 com a nova história brasileira e uma maior autocrítica por parte do estruturalismo). Tanto Candido como Schwarz são extremamente influentes no meio acadêmico brasileiro, com vários nomes de peso tendo sido formados nessa tradição. Cabe destacar o trabalho de Flora Süssekind, que nas suas meticulosas análises literárias, tenta apreender, ao lado de uma abordagem estilística geral, as implicações do discurso social das épocas que toma como objeto de estudo. Nesse sentido, podem ser consideradas a concepção sociologizante da tradição de Candido e Schwarz e também uma dedicada percepção histórica, como demonstram seus estudos mais longos desde o final dos anos 80, Cinematógrafo de Letras (1987), sobre as relações entre técnica e a literatura pré-modernista brasileira, e O Brasil não é longe daqui (1990), sobre os narradores-viajantes nas décadas de 1830 e 1840. Outro nome que vem trabalhando no sentido de dar continuidade à essa abordagem histórico-social da literatura —sem perder de vista a dimensão estrutural, é óbvio— é Francisco Foot Hardman, que relaciona concepções de progresso, modernidade, ideologia e política ao
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discurso do trabalho, do anarquismo e da literatura no Brasil do final do século e início do século XX, em Nem pátria, nem patrão (1985) e Trem fantasma. A modernidade na selva (1988). Essa nova concepção brasileira de discurso acadêmico — que tenta fronteiras mais fluidas entre análise literária, sociologia da cultura e discurso historiográfico— vai ser o lado mais bem sucedido —embora nada disso seja muito inédito ou propriamente pós-moderno— da “pós-modernização” da cultura brasileira. Mesmo alguns dos mais estabelecidos e tradicionais professores de literatura, como Alfredo Bosi, experimentaram essa fusão da sociologia literária à maneira de Candido, de uma historiografia mais aberta e da análise formal. Em Dialética da colonização (1992), Bosi desvela as implicações da experiência colonial brasileira através não só de uma história e uma literatura específicas e os comentários sobre essas, mas as relações entre elas na contemporaneidade, num exercício constante de diálogo entre o passado, o presente e o futuro brasileiros —sempre em relação a um contexto universal: É então que imagens míticas de outros tempos se atualizam na memória das culturas tentando fazer justiça à densidade sempre nova da condição humana. No caso da formação colonial brasileira, essas transferências simbólicas, que varam tempos e lugares, operam com experiências sociais peculiares à nossa história: mas, enquanto modos de produzir significados, elas confirmam uma constante do processo de aculturação tal como o conhecemos desde, pelo menos, a antigüidade oriental e mediterrânea. (BOSI, 1992, 383) É notável, contudo, a ausência das alusões diretas ao pósmodernismo ou a pós-modernidade no discurso teórico brasileiro contemporâneo. Uma das exceções é Sergio Paulo Rouanet, que na maioria dos ensaios de Mal-estar na modernidade (1993), retoma o conceito de pós-moderno (ou, mais precisamente, a sua negação) na década de 90 – na década anterior havia sido um dos principais “divulgadores” do conceito no país – para novamente especular sobre as condições da crise e da continuidade da modernidade no mundo e na periferia. Retomando o tema de um Iluminismo
176 renovado em “A coruja e o sambódromo”, seu principal ataque é ao relativismo cultural e aos “etnocentrismos” que parecem ter invadido todas as esferas teóricas nos últimos anos. O iluminista latino-americano combate o eurocentrismo, porque é a extrapolação abusiva de uma particularidade que se quer hegemônica. Mas combate também o latinocentrismo, forma equivocada de responder a um particularismo com outro particularismo. Nesse combate, ele pode apoiar-se na própria tradição, a tradição das Luzes, época universalista e portanto antietnocêntrica por excelência. (ROUANET, 1993, 90) Entretanto, passado o gosto pela polêmica das primeiras encarnações do conceito de pós-moderno no país, o problema parece ser agora definir em que medida os conceitos relativos à ou modificados pela pós-modernidade (e em menor escala, mais fechado na análise de cada gênero artístico e certos estilos, ao e pelo pós-modernismo) — determinam as condições da modernidade brasileira e o papel do país em relação ao desenvolvimento e aos desafios propostos por essa nova acepção de globalização surgida nos anos 90. Nessa linha, destaca-se a obra de Renato Ortiz, sociólogo e teórico da comunicação, que vem refletindo desde os anos 80 sobre como a modernidade e os discursos que a caracterizam — principalmente os discursos relativos à cultura de massas — vêm se acomodando no Brasil (sem contar com o trabalho sobre os inícios da modernidade na Europa e, particularmente, na França (1991)). Primeiro com Cultura brasileira e identidade nacional (1985), onde faz um apanhado das principais idéias que embasaram a cultura do país, desde a ideologia do branqueamento do século XIX até as utopias revolucionárias da década de 60. Depois com A moderna tradição brasileira (1988), onde relata a emergência de uma indústria cultural no país. Mas é com Mundialização e cultura (1994) que ele problematiza as questões relativas à identidade nacional tendo em vista as transformações e complexidades trazidas à tona pela globalização (entendida como desdobramento transnacional do capitalismo tardio). Refletir sobre a mundialização da cultura é de alguma maneira se contrapor, mesmo
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que não seja de forma absoluta, à idéia de cultura nacional. Diante deste desafio, temos às vezes a tendência em negar o processo que estamos vivendo, nos refugiando nas certezas e convicções contidas nas análises clássicas das Ciências Sociais. (ORTIZ, 1994,116) Como a literatura, a teoria literária e a sociologia da cultura, outra área de estudos que se beneficia de um viés múltiplo e mais aberto (e talvez mais relativista, como teme Rouanet) de análise no Brasil do final da década 80 e início da década de 90 é a história. Há uma preocupação com a devida representação das manifestações culturais (literatura particularmente) não apenas como mera apresentação de documentos, mas como partícipe e agente da história. O caso evidente de Nicolau Sevcenko demonstra as possibilidades da Nova História associada à multidisciplinaridade dos Estudos Culturais. Seu livro Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20 (1992) combina expressão literária, apreciação minuciosa dos arquivos da época, e o mapeamento do imaginário popular coletivo para delinear conceitos de modernidade e os efeitos dessa modernidade na história brasileira —com uma concentração maior, naturalmente, na história da cidade de São Paulo. Ocupando uma trincheira quase oposta a essa interpretação mais social e histórica da cultura e do discurso literário estão membros igualmente destacados dos Estudos Culturais brasileiros. Como se a história cultural brasileira estivesse sempre marcada por essa oposição entre análise histórica e social e análise formalista e estetizante. O que é sugerido através da polêmica ocorrida em meados dos anos 80 entre Roberto Schwarz e Augusto de Campos sobre o poema póstudo, escrito por este último, onde foram discutidas questões como pós-moderno, formalismos, conteudismos. Tal polêmica caracterizaria um confronto permanente na teoria literária brasileira que, segundo José Miguel Wisnik, teria duas leituras possíveis: Nós teríamos de fato , na polêmica entre Roberto Schwarz e Augusto de Campos, um confronto entre uma leitura literária que privilegia a prosa e outra que privilegia a poesia. Uma que privilegia o
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vínculo da História social interna à obra e outra que, de certo modo, descaracteriza esse vínculo como sendo importante e se interessa pelo diálogo sincrônico da obra literária, pelo permanente diálogo entre as obras, o que se faria como um modo de reler o passado, recriar o passado e o futuro no permamente presente da linguagem. (WISNIK, 1988, 258) Essa segunda facção da crítica cultural brasileira caracteriza-se também por uma retomada das teorias antropofágicas sugeridas na obra de Oswald de Andrade e a adoção da semiótica geral como metodologia possível. Seus mais famosos —e antigos— membros incluem os poetas e teóricos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, ativos propagadores da semiótica desde os anos 50 e 60. Entretanto, o que interessa nessa versão pós-moderna, fim-de-secular, de paradigmas teóricos da modernidade e de estratégias estilísticas do modernismo, mais do que o conjunto de obras teóricas e críticas desses autores especificamente é a adaptação de seus esquemas de pensamento, de suas teorias da tradução, da sua estética literária baseada na idéia de canibalismo cultural tirada do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade para o campo da crítica cultural contemporânea, dos Estudos Culturais propriamente ditos e de uma emergente teoria póscolonial brasileira, como sugere, por exemplo, Else Vieira: The perspective I would like to foreground is that the Orient-imported label, by reintroducing a heightened awareness of a (post)colonial condition, brings to visibility a Latin American body of postcolonial theory and even enables its constitution as such. (...) In the early 1920s, Oswald de Andrade and Mário de Andrade, associated with the movement of anthropophagy (cannibalism) against mental colonialism, also emerge as postcolonial thinkers. (VIEIRA, 1999, 274) A Antropofagia cultural, tal como proposta por Oswald e mais ainda por uma interpretação que talvez pudéssemos chamar de semiótica, seria a condutora da diferença brasileira e, assim,
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serviria como estatuto para a constituição de um ponto de vista póscolonial para a teoria brasileira e para a superação das noções de atraso e descompasso. But the main point is that cannibalism or the mask or getting into another’s skin are diverse ways of describing a relation not grounded on binary power oppositions (superior-inferior) but on the notion of continuation and becoming, a becoming that operates at threshold of “fusion and distinction”, permanence and transcendence, union collateral with autonomy (sic), etc. (VIEIRA, 1996, 11) Nem sempre utilizando uma perspectiva lingüística ou semiótica à maneira dos irmãos Campos ou Pignatari, os “canibalistas” pós-modernos, entretanto, propõem a identidade nacional como uma construção discursiva que visa a delinear diferenças, inverter e subverter oposições e questionar a dependência cultural. O modernismo —especialmente as duas figuras-chave, Oswald de Andrade e Mário de Andrade— vai sendo viabilizado, através das interpretações contemporâneas, como o discurso que primeiro enuncia a relação de alteridade como constitutiva da formação da cultura brasileira. Os manifestos de Oswald são tomados como pontos de partida para a constituição de uma teoria da cultura “nativa”: Os Manifestos dão conta da ausência de teorias explicativas da realidade local e, mais, da explicação sempre enviesada pelas teorias cosmopolitas espelhadas no liberalismo econômico e social. Propondo assim uma via alternativa de análise dos modelos sociais, crítico às mais recentes pesquisas desenvolvidas no campo do pensamento europeu da época. (VERONA, 1996, 47) O Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade torna-se assim, para esse viés de interpretação, um dos textos fundamentais de uma teoria “brasileira” da cultura, uma espécie de atestado de uma “precoce” pós-modernidade latino-americana, quase como a précondição de existência de Estudos Culturais brasileiros, uma espécie de pedra de toque de uma abordagem pós-colonial no país.
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Fazendo uma pilhagem filosófica em Freud, Marx, Kierkegaard, Nietzsche, Schopenhauer e Engels, Oswald de Andrade vai propor que a força vital do homem é a devoração. Ou seja, ela é o impulso necessário para a criação e crítica de um projeto cultural e ideológico que questione a dependência e a colonização. (...) Assim, pela antropofagia como perda produtiva, articulada à paródia e à inversão hierárquica carnavalizante, Oswald de Andrade reinstala uma modalidade de prática sacrificial. (HELENA, 1996, 62) Fundamentando, pois, a subversão (canibal) parodística como o principal elemento de desestruturação da hegemonia ocidental, a antropofagia como teoria estética instaura simultaneamente o lugar da tradição num discurso que se pretende de ruptura (o discurso da modernidade). O que essa condição parodoxal provoca é precisamente as duas linhas de interpretação do canibalismo cultural brasileiro: a primeira que vê a antropofagia como sinal de uma modernidade acrítica e a outra que conclui da deglutição (que pode ser associada a um estado híbrido, já que se devora o Outro, digere-se o Outro, tornando-se um pouco esse Outro) o espaço pós-moderno avant la lettre na América Latina. Repete-se um pouco a tensão entre os dois pólos da crítica de cultura brasileira, o da linha sociológica e do da linha estruturalista. Renato Ortiz, por exemplo, através do instrumental fornecido pela teoria crítica frankfurtiana, detecta na modernidade brasileira um sentido de acomodação: Moderno como tradição, mas não como colocava Octavio Paz, enquanto tradição de ruptura; os sinais da “modernidade” brasileira indicam que realmente “somos”, e que por isso não devemos nos rebelar na direção de um outro futuro.(ORTIZ, 1988, 209-10) Um dos mais influentes críticos brasileiros contemporâneos, Silviano Santiago, por sua vez, propõe o modernismo brasileiro (e particularmente o modernismo de Oswald de Andrade) como recuperação suplementar da tradição européia, como discurso utópico do “eterno retorno em diferença” (SANTIAGO, 1989, 109), como possiblidade de repensar as
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vanguardas em relação à tradição (fazendo desse modo uma ponte com o pós-moderno através do discurso modernista), como ponto de partida para a constituição de um pensamento pós-colonial que desconstrua a história da dependência: O sentido da paródia em Oswald de Andrade é você comer o outro para ser mais forte. O pensamento dele está muito vinculado, a meu ver, a uma discussão sobre dependência cultural. É uma maneira do Brasil se afirmar pela via oposta à da colonização. (IDEM, IBIDEM, 121-2) A discussão sobre dependência cultural vai ser, aliás, um dos pontos de partida para que Silviano Santiago, baseado numa abordagem pós-estruturalista e inspirado pela desconstrução derrideana, elabore a sua definição de entrelugar, primeiramente no ensaio escrito em 1969, mas estendida até os anos 90, quando vai ser recorrente não só no trabalho do próprio Santiago, mas principalmente em inúmeros outros teóricos brasileiros. Em “O entre-lugar15 do discurso latino-americano”, Silviano Santiago lança mão da história colonial e das relações entre indígenas e catequizadores para chegar a uma proposição talvez por demais generalizante para a contemporaneidade cultural da América Latina. Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião entre a assimilação e a expressão, — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o o ritual antropófago da literatura latino-americana. (IDEM, 1978, 108) O entrelugar explicaria fundamentalmente a diferença subalterna como devendo ao mesmo tempo às idéias de progresso e modernidade — cumprindo uma espécie de pacto com a História ocidental — e à incorporação de elementos alternativos das
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primeira aparição do termo, Santiago utilizava o hifen. Já nos ensaios subseqüentes dos volumes Vale quanto pesa e Nas malhas da letra, ele passa a abolir o hifen de entrelugar.
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minorias lingüísticas, sociais e culturais que compõem os tempos e espaços multifacetados das culturas da América Latina. Com essa mescla de culturas e imaginários, a América Latina representaria desde o período de colonização não somente esses processos de hibridização em si, mas a consciência deles: A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato do seu significado, perdem o seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latinoamericanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. (IDEM, IBIDEM, 18) A sua proposta, contudo, revela-se aplicável não só à cultura latinoamericana, mas ao que ele chama de “cultura dominada” em geral; consituindo então a desconstrução da hierarquia colonizadorcolonizado. Paradoxalmente, o texto descolonizado (frisemos) da cultura dominada acaba por ser o mais rico (não do ponto de vista de uma estreita economia interna da obra) por conter em si uma representação do texto dominante e uma resposta a esta representação no próprio nível da fabulação, reposta esta que passa a ser um padrão de aferição cultural da universalidade tão eficaz quanto os já conhecidos e catalogados. (IDEM, 1982, 23) A obra teórica de Santiago de uma certa maneira representa uma alternativa ao esquema binário da crítica brasileira dividido entre “conteudismo”e “formalismo”. Dialogando com as duas frentes, Santiago tenta escapar de uma ortodoxa concepção de identidade nacional embutida na primeira proposta, como também de uma determinada a-historicidade da segunda. Daí, talvez, a sua posição estratégica nos Estudos Culturais brasileiros, sendo um dos nomes mais conhecidos da teoria latino-americana contemporânea. A expressão entrelugar passa a ser corrente no domínio da teoria brasileira contemporânea tanto como expressão do cosmopolitismo
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periférico implicado na pós-modernidade, e como terminologia especificamente brasileira da teoria pós-colonial. Além do Manifesto Antropofágico, outro texto literário que vai ser fundamental para os Estudos Culturais brasileiros contemporâneos é o conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa, retrabalhado, especialmente a partir dos anos 90, como instância para se pensar o Brasil sob a ótica dessa condição de entrelugar, de diferença, de terceiro termo. Uma série de críticos brasileiros e latino-americanistas utilizam o conto para delinear questões teóricas pertinentes à pós-modernidade, ao póscolonialismo e à própria história brasileira. Essa “terceira margem” apontada por Rosa pode ser um lugar inatingível, do silêncio, da imobilidade ou de uma promessa ainda a ser realizada: A threshold that we never venture across, and which even now we do not confront. A symbolic prison, so to speak, or the bank of a river, the edge of a sea or cliff, from which bridges are not built and from which we cannot set off back to the interior whence we came, because of the conviction that reality lies neither at the beginning nor at the end, but in the middle of the crossing. It is now an advantage for this restrictive imperative of magic to be laid bare, but how many alternatives for the imagination are there flourishing on the third bank of the river? (SEVCENKO, 1992, 83) Ou ainda o território da problematização do sujeito, alternativa aos binarismos redutores, um entrelugar, um espaço de interpenetrações: And so the textualizing —fictionally, narratively, historically— of the third term echoes both poetically and ethically through Latin American, European, Latin American spaces as the play of the interpenetration of Self in Other in Self extends ever across, ever trans(Atlantically) only as soon-to-be unsettled term of provisionality. Play
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before presence and absence? Before Self, before Other? (McGUIRK, 1996, 195)
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Angela Prysthon nasceu em 1968, em Recife-PE. É professora universitária desde 1993. É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutora em Teoria Crítica e Estudos Hispânicos pela Universidade de Nottingham, Inglaterra. É professora de graduação e pós-graduação de Comunicação na UFPE.