A Razão Sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e de seus ocidentais [1 ed.] 9788577152094

Lançado na Alemanha em 2004, esta obra consiste numa reunião de quatro ensaios de Robert Kurz, originalmente publicados,

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Brazilian Pages 239 Year 2010

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SUMÁRIO
1) RAZÃO SANGRENTA: 20 teses contra o assim chamado Iluminismo e os valores ocidentais (pág. 3)
2) ONTOLOGIA NEGATIVA: Os obscurantistas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade (pág. 44)
3) TABULA RASA: Até onde é desejável, obrigatório ou lícito que vá a crítica ao Iluminismo? (pág. 89)
4) DOMINAÇÃO SEM SUJEITO: Sobre a superação de uma crítica social redutora (pág. 161)
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A Razão Sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e de seus ocidentais [1 ed.]
 9788577152094

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RAZÃO SANGRENTA Ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais.

ROBERT KURZ

Editora Hedra

SUMÁRIO 1)

RAZÃO SANGRENTA: 20 teses contra o assim chamado Iluminismo e os valores ocidentais (pág. 3) 2) ONTOLOGIA NEGATIVA: Os obscurantistas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade (pág. 44) 3) TABULA RASA: Até onde é desejável, obrigatório ou lícito que vá a crítica ao Iluminismo? (pág. 89) 4) DOMINAÇÃO SEM SUJEITO: Sobre a superação de uma crítica social redutora (pág. 161)

RAZÃO SANGRENTA 20 Teses contra o chamado Iluminismo e os "Valores Ocidentais" 1.

O capitalismo a si mesmo se vence até à morte, tanto materialmente como no plano ideal. Quanto maior a brutalidade com que esta forma de reprodução, tornada modelo social universal, devasta o mundo, mais ela vai infligindo golpes a si mesma e minando a própria existência. Neste quadro se inscreve também o comum ocaso intelectual das ideologias da modernização, numa ignorância e falta de ideias de tipo novo: direita e esquerda, progresso e reação, justiça e injustiça coincidem de forma imediata, uma vez que o pensamento nas formas do sistema produtor de mercadorias paralisou por completo. Quanto mais estúpida se torna a representação intelectual do sujeito do mercado e do dinheiro, mais horroroso fica o seu tagarelar repetitivo das estafadas virtudes burguesas e valores ocidentais. Não há paisagem do planeta, marcada pela miséria e pelos massacres, sobre a qual não chovam a cântaros lágrimas de crocodilo, de um humanitarismo policial democrático; não há vítima desfigurada pela tortura que não seja usada como pretexto na exaltação das alegrias da individualidade burguesa. Qualquer idiota servidor do estado, que se esforça por escrever umas linhas, invoca a democracia ateniense; qualquer patife ambicioso, da política ou da ciência, pretende bronzear-se à luz do iluminismo.

Agora, o que ainda quiser ser designado por crítica radical só pode distanciarse com raiva e nojo de todo o lixo intelectual do Ocidente. Fica muito aquém das necessidades a bem conhecida figura do pensamento, que pretende defender o iluminismo como tal dos seus banais açambarcadores burgueses da atualidade, reivindicando para si, numa atitude como que da burguesia culta, uma elevação da reflexão passada, contra a plebe intelectual e a populaça ocidental do século XXI. Esta populaça é o próprio iluminismo vindo a si. É pelos seus resultados devastadores que a chamada modernidade deve ser

avaliada: sem subterfúgios, sem uma forçada dialética de justificações e relativizações.

A crítica, no entanto, não pode deixar-se guiar só pela "raiva que sente nas entranhas"; ela tem de alicerçar a sua legitimidade intelectual sobre novos fundamentos. Mesmo quando maneja conceitos teóricos, tal não significa uma renovada vinculação aos padrões do próprio iluminismo, antes pelo contrário, apenas se verifica a necessidade de destruir a autolegitimação intelectual do iluminismo. Não se trata de, à velha maneira iluminista, manietar os afetos, em nome de uma racionalidade abstrata e repressiva (ou seja, ao arrepio do bemestar dos indivíduos) mas, pelo contrário, de derrubar a legitimação intelectual desta autodomesticação moderna do homem. Para tal é necessária uma antimodernidade radical e emancipatória, que não se refugie na idealização de um qualquer passado, ou de "outras culturas", segundo o padrão bem conhecido do anti-iluminismo, ou da antimodernidade meramente "reacionária", ela própria burguesa e ocidental; mas que rompa, pelo contrário, com a história até hoje ocorrida, como história de relações de fetiche e de dominação.

No sentido do dito marxiano, que designa a superação do fetichismo moderno como o "fim da pré-história", o que está na ordem do dia é um megaprojeto revolucionário, que se estenda a todos os níveis da reflexão e a todas as áreas da vida, que abranja tanto as categorias mais abstratas como as formas culturais e simbólicas e o quotidiano: uma grande teoria negativa, que coloque a alavanca da crítica radical a uma profundidade consideravelmente maior que as suas predecessoras nos séculos XIX e XX. Também isto não deve ser confundido com uma continuação da pretensão iluminista por outros meios. Antes, tal abordagem teórica qualitativamente nova, à maneira de grande teoria, decorre apenas da necessidade de romper a construção legitimadora da modernidade produtora de mercadorias, ela própria com caraterísticas de uma grande teoria positiva, negando-a a fim de a quebrar, em vez de se contentar em a fintar. Precisamente por isso tem que tratar-se de uma grande teoria negativa, a construir para ela própria ser ultrapassada e tornada redundante, e já não do estabelecimento legitimador de um novo princípio positivo (semelhante à abstração capitalista do valor), segundo o qual tudo se deveria moldar.

2.

A pretensão de uma nova grande teoria, negativa e emancipatória, já está formulada sob o título de "crítica do valor", como crítica categorial do sistema produtor de mercadorias; mas esta ainda não se afirma com clareza e inimizade emancipatória suficientes face ao iluminismo, cuja ontologia burguesa e ideológica, pelo contrário, está positivamente presente como "dimensão tácita", mesmo na crítica aparentemente mais radical, sendo ocasionalmente invocada de forma axiomática e sem conteúdo, com floreados suplicantes.

É um fato que, perante a imparável produção de miséria e o avolumar dos processos destrutivos, no decorrer da história da modernização, já no passado se tinha formado, para além da contramodernidade reacionária, também uma crítica de "esquerda" de intenções emancipatórias, mas que também ela era "modernista" no sentido mais lato do termo; no entanto, tais tentativas nunca iam além de meras relativizações, visto que apenas podiam entender-se como uma pretensa "autocrítica" do iluminismo. Um modo de proceder assim pusilânime, que antes de mais mantinha relações amistosas com o objeto da suposta crítica, implicava a priori que não se pusesse em causa o cerne substancial da ideologia do iluminismo (a forma burguesa do sujeito e da circulação). Por isso, continua por dar o passo decisivo, que separe definitivamente a crítica da ontologia burguesa; o Rubicão ainda não foi transposto.

A categoria da ruptura tornou-se decisiva, uma vez que a crítica até hoje elaborada sempre acabou por constituir uma simples componente afinal afirmativa do seu objeto, tendo assim posto a ênfase mais na continuidade do que na ruptura; muitas vezes revestindo a fórmula hipócrita de uma "herança" positiva a preservar. Neste início do século XXI, porém, já não é possível qualquer via positiva de pensamento e de ação nas formas do moderno sistema produtor de mercadorias. Qualquer referência à forma do sujeito e à história das ideias legitimadora da modernidade, negativamente socializada sobre a abstração real do valor, seja qual for a forma amenizada ou alterada

que assuma, já não pode senão fazer figura ridícula, ao querer passar por crítica.

Por isso se tornou necessária uma crítica radicalmente nova da constituição burguesa e da sua história. As ruínas inabitáveis da subjetividade ocidental não chamam pela arquiteta de interiores intelectual de bom gosto, mas pelo condutor da escavadora de demolição. Isto diz respeito, no essencial, aos alicerces e à referência ao passado, legitimadora de todas as elaborações teóricas dos séculos XIX e XX, nomeadamente à própria filosofia do iluminismo. Contrariamente às teorias posteriores, tratava-se aqui de uma reflexão que não pressupunha, desde logo, o sujeito burguês da modernidade plenamente desenvolvido, tendo antes, de certo modo, ajudado a trazê-lo ao mundo; assim, o chamado iluminismo foi uma "ideologia de imposição" do moderno sistema produtor de mercadorias, num sentido incomparavelmente mais enfático do que as reflexões teóricas que nele se basearam ou dele julgaram distanciar-se, ao longo da posterior história da imposição da socialização do valor.

O pensamento iluminista, que no seu tempo ainda se fizera notar como um modo de pensar distinto e inaudito, em parte até difícil de entender, não só se converteu no pressuposto de todo o pensamento teórico posterior, como se tornou parte integrante do tipo de consciência socialmente generalizado, tendo passado a constituir, sob a forma de uma espécie de sedimentação inconsciente, também o modo de pensar não reflexivo do senso comum burguês. E também como tal tem de ser completamente destruído.

3.

É preciso, contudo, algumas considerações preliminares. Pois qualquer história tem, por seu lado, a sua história e, por conseguinte, também o pensamento iluminista naturalmente não é destituído de pressupostos; nem no sentido de uma "história intelectual", nem no dos desenvolvimentos sociais objetivados. A pré-história, ou constituição social primordial da modernidade, poderia ser situada, enquanto "economia política das armas de fogo", nos

séculos XV e XVI, quando a "revolução militar" (Geoffrey Parker) produziu uma forma de organização nova e repressiva sob novas formas, a qual conduziu, através dos regimes despóticos militares da modernidade incipiente, quer ao estado moderno, quer ao desencadeamento do processo de valorização capitalista ("economia monetária" como fim em si irracional).

A este processo sobrepunha-se parcialmente um movimento intelectual, que se iniciara de forma independente e que conduzia para fora da chamada "Idade Média" (o que de resto já em si é uma classificação proveniente do pensamento do iluminismo), que hoje se apresenta sob a designação de época do "Renascimento". Provavelmente uma reformulação crítica-do-valor da história e da teoria da história também tornará necessário o estabelecimento de outra divisão histórica. Em todo o caso, o pensamento renascentista, com a sua redescoberta dos clássicos da antiguidade e da respectiva sociedade, ao menos numa determinada fase de crise e transformação – recordemos por exemplo os levantamentos populares dos primórdios da modernidade – era ainda relativamente aberto a desenvolvimentos e percursos do pensamento alternativos.

Contudo, após a passagem pelo absolutismo, que constituiu o processo primário econômico e político de formação sistémica do modo de produção capitalista, ficou cortada a possibilidade de outra via de desenvolvimento, ainda que a resistência dos movimentos sociais contra este processo se tivesse prolongado até ao início do século XIX. A moderna socialização pelo valor começou então a desenvolver-se sobre os seus próprios fundamentos, sendo que o pensamento iluminista acompanhou esta segunda fase de arranque, que viria a desembocar na industrialização sob a forma do valor, como ideologia de domesticação, tão militante como afirmativa.

Ao mesmo tempo, a subjetividade concorrencial da circulação, introduzida pela economia dos canhões dos primórdios da modernidade e pelos seus protagonistas sociais, foi burilada nos seus ideais e, em simultâneo, passou por um processo de revelação, que apenas sacudiu o invólucro absolutista, para largar sobre o mundo o puro sujeito moderno do dinheiro e do estado, para lá da sua tosca forma embrionária, e para o fundamentar ontologicamente. O

fato de este pensamento, que pela primeira vez formulou explicitamente a forma do valor, como uma pretensão totalitária sobre o homem e a natureza, se ter legitimado através de um conceito paradoxal e repressivo de liberdade e progresso, transformou-o numa armadilha para o desejo de emancipação social. Precisamente por isso, a crítica seria sempre instrumentalizada apenas para a imposição continuada da forma do valor.

A eterna referência positiva ao sistema de conceitos e aos chamados "ideais" do iluminismo constitui o contexto de ofuscamento de um pensamento crítico da sociedade, que até hoje assim se amarra a si próprio às categorias do sistema dominante da destruição universal. Enquanto estas amarras do pensamento iluminista não forem cortadas, a crítica continuará a serva do seu objeto, ou terá de se extinguir, juntamente com a capacidade de desenvolvimento ulterior deste.

4.

Um ponto central do mal-entendido da crítica social acerca do iluminismo é a interpretação entranhada, segundo a qual se teria tratado de uma promessa emancipatória, ou até da promessa de uma liberdade de procura da felicidade pelo homem (pursuit of happiness). Essa promessa, com uma intenção de razão enquanto tal e de "crítica permanente", seria posta em curto-circuito perante o tribunal desta razão, de modo a parecer que o pensamento iluminista poderia e deveria ir sempre mais além, mesmo para lá dos seus criadores e protagonistas originais, até ser "realizado". Foi precisamente devido a isto que se pôde manter o mal-entendido fundamental, segundo o qual o iluminismo seria outra coisa que não a autorreflexão positiva do capitalismo, ou a lógica do sistema produtor de mercadorias, e que conteria em si momentos transcendentes de emancipação, para além dele próprio, na sua constituição burguesa.

Embora o conceito impreciso e opaco de razão do pensamento iluminista tivesse sido repetidamente tematizado, ainda assim a respectiva crítica continuou pouco acutilante, por invariavelmente evitar uma definição exata do

conteúdo reduzido e normativo do conceito iluminista de razão. Este entendimento da razão, no entanto, no fundo não continha outra coisa senão a afirmação militante da forma metafísica, isto é, da forma do valor do moderno sistema produtor de mercadorias, ou da forma irracionalmente autonomizada do "sujeito automático" (Marx); designação esta que remete para o carácter absurdo do movimento de valorização do capital, reacoplado a si próprio enquanto fim-em-si e, com isso, ao mesmo tempo, para o correspondente absurdo da respectiva forma do sujeito, tal como ela confere o seu cunho ao pensamento e à ação dos indivíduos sociais atados a esta roda. Este conceito destrutivo de razão foi, no essencial, desenvolvido no seio do pensamento iluminista, sendo o pensamento reflexivo talhado à sua medida e eliminado qualquer outro plano da reflexão, até que, com o sistema da socialização do valor capitalista a impor-se progressivamente, o "poder dos fatos" pudesse chegar ao pensamento, como positivismo dessa razão "realizada", podendo a reflexão, em geral, ser reduzida ao mínimo. Assim sendo, a aurora iluminista da razão constituiu, ao mesmo tempo, o crepúsculo da razão, mediante o aprisionamento da capacidade humana de pensamento no interior da forma nada racional da socialização do valor.

Por isso, também não se pode falar de uma permanência dos objetivos transcendentes da intenção iluminista da crítica. O iluminismo, em todas as suas variantes e graus de desenvolvimento, sempre se limitou a submeter à crítica as situações e manifestações que de algum modo se atravessavam no caminho da esmagadora roda do movimento da valorização. Por isso mesmo, a sua crítica das realidades anteriores à modernidade apenas constituía uma crítica do poder, na medida em que as formas tradicionais de dominação eram censuradas pela sua falta de eficiência e pela sua falta de capacidade de ingerência no íntimo dos indivíduos. O iluminismo foi, desde o início, o perscrutar dos pontos fracos do poder, com o intuito de fortalecer este último sob uma forma nova, objetivada que, ao mesmo tempo, seria ideologizada como forma natural inultrapassável. O início da crítica iluminista foi, por conseguinte, simultaneamente o fim de toda a crítica, o desaparecimento da crítica na forma autorreferente da subjetividade burguesa. O iluminismo, não apenas quis rejeitar uma crítica fundamental desta forma, mas tentou torná-la literalmente impensável.

Por isso, a filosofia iluminista, como fundamento dos valores ocidentais, não era uma promessa, nem sequer pela sua natureza, mas, na verdade, uma ameaça; mais precisamente: a ameaça assumiu perfidamente a forma duma promessa. Não era prometida a felicidade, mas apenas a sua busca, sob a forma de uma concorrência desenfreada e assassina, que prontamente desmente o conceito de felicidade. O conceito de felicidade, já de si vago e aleatório, nunca designou outra coisa senão o êxito na concorrência, o que sempre já pressupõe os objetos da felicidade numa forma capitalista, em cujo exterior não deve existir qualquer forma alternativa. A coação dos indivíduos a procurarem a felicidade sob a pressão do movimento de valorização equivale a uma ameaça monstruosa, na medida em que, primeiro, preestabelece a história da felicidade como uma história de sofrimento e desaforo e, segundo, ainda no interior do sofrimento e do desaforo, não só admite como possível o fracasso total e a perda da existência social, e até da física, mas desde logo o pressupõe para os necessários perdedores.

Decifrada como ameaça, a promessa iluminista de uma liberdade de procura da felicidade, já não pode ser entendida como ideal positivo (de qualquer maneira inexpressivo, sem conteúdo, correspondendo à falta de conteúdo da forma do valor). Por conseguinte, o que está em questão não é porventura o estabelecimento de uma diferença entre o ideal burguês e a realidade burguesa: seja com a finalidade de reivindicar o ideal contra a realidade, e de constituir uma realidade burguesa ideal (a variante ingénua); seja submetendo essa ingenuidade a uma crítica aparente, com o único fim de se tentar realizar o ideal, que continua burguês, supostamente para lá da condição burguesa. Antes, a tarefa da crítica radical consiste em pôr a descoberto o carácter negativo e destruidor do próprio ideal burguês e iluminista e, com isso, a identidade de fato entre o ideal e a realidade, nomeadamente na história dos sofrimentos e desaforos da modernidade. Juntamente com a forma moderna da felicidade, que se apresenta como uma verdadeira desgraça, também a forma moderna da riqueza tem de ser sujeita a uma crítica fundamental. Isso pressupõe uma crítica igualmente fundamental das concepções iluministas de razão, sujeito e história.

5.

Nada inculcou a ideologia burguesa do iluminismo nas nossas cabeças com mais insistência que a respectiva metafísica da história. A metafísica real do trabalho e do valor é historicamente enquadrada na construção teleológica do "progresso". À ontologia burguesa do trabalho, que define a abstração real "trabalho" (segundo Marx, a "substância" da forma do valor) como condição eterna da Humanidade, e à daí resultante metafísica do trabalho, consistindo na suposta libertação do trabalho (e libertação pelo trabalho), correspondem a ontologia e a metafísica burguesas do sujeito: o sujeito do trabalho, da circulação, do conhecimento e do estado da modernidade, produtor de mercadorias, passa a ser "o Homem" enquanto tal, e ligada a isto está a promessa metafísica de uma "autonomia e autorresponsabilização", através da forma burguesa de pensar e agir. A esta construção ideológica do sujeito corresponde, por outro lado, a ideologia burguesa do progresso, que entende toda a história anterior a si como a ascensão de uma forma mais baixa para uma forma mais elevada, e a metafísica do progresso constituída sobre esta última, que vê na moderna socialização do valor o culminar e o fim da história.

No pensamento original do iluminismo, tratava-se inicialmente do suposto progresso do "erro" para a "verdade", classicamente formulado por Condorcet. A Humanidade até então, assim opina ainda Kant em todas as suas obras principais, teria caído em erros sistemáticos e inconsequências, no pensamento e na ação; ter-se-ia entregue à irracionalidade e a inclinações erróneas, ao passo que só agora, com a modernidade burguesa, se teria iniciado a era da "razão".

Hegel criticou esta construção apenas na medida em que a refundiu numa forma mais refinada: Segundo a sua versão, as condições pré-modernas do intelecto e da sociedade não devem ser concebidas como meros erros, mas como "necessárias formas de evolução" e estados de passagem do "Espírito do Mundo", que na história humana se aproximaria de si próprio. A história é, portanto, uma história de desenvolvimento, e ainda necessária. A todas as formações anteriores é concedido o direito decorrente desta necessidade que,

no entanto, vai minguando à medida que elas vão recuando no passado. Na identificação metafórica da ontogênese e filogênese histórico-social apresentam-se, como etapas de um processo de amadurecimento da Humanidade, desde estados pré-humanos e meio-humanos ou meioanimalescos, passando pela infância e juventude, até ao glorioso estatuto do adulto (masculino e branco) finalmente "racional". O positivismo, como legítimo herdeiro do iluminismo, vulgarizou, popularizou e politizou este esquema desde Comte, por exemplo nas teorias legitimadoras do colonialismo e nas posteriores teorias político-econômicas do "desenvolvimento".

6.

A forma do sujeito que vem a si nesta construção da história é, por um lado, abstrata e universal ("igualdade") e, nessa mesma medida, assexuada. Por outro lado, porém, os momentos da reprodução social, das formas de expressão humanas etc., que não podem ser abrangidos pelo valor, são delegados n’ "a mulher" (enquanto ser biologicamente sexual e materno) e dissociados da "verdadeira" forma do sujeito do valor. Assim sendo, a relação de valor apenas à primeira vista se apresenta como de extensão universal, sugerindo constituir uma totalidade que não é nem pode ser. Para além de um conceito positivo da totalidade, na sociedade moderna ocorre realmente uma meta-relação, eclipsada nas categorias do valor, a saber, a "relação de dissociação" de base sexualmente determinada (Roswitha Scholz).

Esta relação, que desmente precisamente a suposta universalidade, por um lado desaparece no mundo conceptual burguês e iluminista; onde, por outro lado, tem de ser denominada, nas suas manifestações práticas do quotidiano, estes fenómenos significativamente só podem ser representados nas categorias burguesas como "desigualdades objetivas (naturais)". Assim, a igualdade abstrata refere-se exclusivamente ao universo interior à forma do valor, e aplica-se à mulher, apenas na medida em que ela atua nesta forma (como compradora ou vendedora de mercadorias ou de força de trabalho), ao passo que ficam invisíveis os momentos dissociados deste universo só aparentemente autossuficiente.

O universalismo do sistema produtor de mercadorias, assim sendo, não só é (realmente) abstrato e destrutivo, como também é aparente, visto carecer de uma efetiva universalidade social. Como essência dissociada, a "feminilidade" social está situada no exterior do universalismo, enquanto a mulher empírica é cindida em si precisamente por isso: enquanto sujeito também monetário, está "dentro", como portadora dos momentos e das áreas dissociadas da vida, está "fora".

A relação de dissociação, enquanto relação geral paradoxal da socialização do valor, implica, portanto, a universalidade não verdadeira, formal, no seio da esfera do valor e, ao mesmo tempo, a definição sexual dos momentos dissociados e excluídos, de modo que o sujeito verdadeiro e pleno da forma do valor acaba por ser definido como masculino. Assim, também o sujeito da história, ou seja, o portador do "progresso histórico" e da ontologia que "vem a si", é em princípio masculino, ao passo que o momento do não-sujeito, que compulsivamente continua natural e por isso sem história, é considerado feminino, por força de uma suposta determinação biológica.

7.

Numa relação entre sexos constituída como relação de dissociação, os momentos da reprodução material, cultural e psíquica, socialmente necessários mas não representáveis sob a forma do valor, são excluídos da igualdade e da universalidade da socialização do valor e, assim, despedaçados numa forma mutilada, em que vivem penosamente uma existência muda, como sombra da forma do valor. Precisamente porque não podem ser objetivamente representados sob a forma do valor, também não faz sentido querer introduzir à força os momentos dissociados na universalidade abstrata, delimitada pela forma do valor. Esta universalidade falsa, negativa, afinal repousa justamente sobre a dissociação, sem a qual não pode existir nem ser pensada. Inversamente, os momentos dissociados, por seu lado, não constituem qualquer "realidade (Eigentlichkeit)" social, cultural ou psíquica, em que o universalismo abstrato pudesse ser positivamente integrado. Antes o que é dissociado, como dissociado não pode senão estar reduzido e mutilado; a

ultrapassagem (Überwindung) da relação de dissociação e, com ela, da própria relação de valor, só é possível como ultrapassagem de ambos os lados.

Acontece que a relação de dissociação constitui a lógica extensiva da modernidade, que não deve ser confundida com a realidade empírica imediata das relações entre os sexos. A atribuição sexual do universalismo do valor, por um lado, e a dissociação, por outro, afinal não constituem uma realidade objetiva de fato natural, mas uma construção social; no entanto, uma construção não fortuita e aleatória, mas historicamente objetivada, que só pode ser rompida em conjunto com a constituição da forma do valor. É, pois, nesta precisa medida que ela configura um momento empírico, irrefutável da identidade dos indivíduos, mas sem que estes se resumam a ele.

Por isso empiricamente é inteiramente possível que, por exemplo, as mulheres ajam no interior da esfera abstratamente universalista do universo do valor, não apenas de forma parcial, mas também integrando-se nele por inteiro, fazendo carreira etc. Nesta medida, elas são "sujeitos", ou seja, quase estruturalmente "masculinas", se bem que, na maior parte dos casos, em formas de identidade paradoxalmente fragmentadas. Tal não interfere minimamente com a lógica da relação de dissociação enquanto tal. As mulheres de carreira, por exemplo, não desmentem esta relação, antes a representam enquanto sujeitos face a outras mulheres (e, em certa medida, perante si próprias). A dissociação enquanto tal prolongar-se-á mesmo sob formas mil vezes fraturadas e fragmentadas, enquanto a relação do valor continuar a existir.

8.

O carácter abstrato, repressivo, dissociador e exclusionista do universalismo ocidental, constituído com base na relação de valor, não se afirma apenas no seu nível basilar sexual, mas também para além deste. Este universalismo, referido unicamente ao mundo interior à forma do valor, constitui sob vários aspectos um sistema de exclusão, com os seus mecanismos. A definição "do ser humano" como sujeito do valor não só reduz o feminino dissociado a um

patamar meio-humano, como, pela sua própria natureza, exclui socialmente da humanidade todos os indivíduos que, a título temporário ou definitivo, não (ou já não) possam atuar no âmbito do automovimento do "sujeito automático" e que, por conseguinte, do ponto de vista deste, que se tornou o ponto de vista da reprodução social em geral, têm de ser considerados "supérfluos" e assim, em princípio, não-humanos. O direito iluminista do Homem implica a desumanização temporária ou total dos indivíduos não reproduzíveis de forma capitalista, porque desde o início se refere somente ao Homem enquanto sujeito do valor.

A desumanização do Homem está objetivamente estabelecida pela própria definição do universalismo, como delimitação ao universo interior à metafísica do valor; este resultado, no entanto, apenas é executado pelo processo da concorrência. A concorrência decide, quem, quando e onde sai da categoria "Homem". É por isso que a concorrência recebe a priori, partindo da autodefinição ocidental do iluminismo, uma conotação racista e (como ultima ratio da concorrência de crise) antissemita. O racismo e o antissemitismo não constituem, por isso, uma oposição de princípio relativamente ao universalismo iluminista, sendo pelo contrário componentes integrais da sua existência, como consequência necessária do encerramento na forma do valor e logo na concorrência. O sujeito, segundo o seu próprio conceito, é não só masculino, mas também branco.

Para a dupla lógica da desumanização social e da exclusão racista, precisamente através do universalismo ocidental, vale o mesmo que para a relação de dissociação basilar: Trata-se de uma lógica eficaz como construção objetivada, que não coincide de forma imediata com as circunstâncias empíricas, mas de qualquer modo as estruturas. Com os indivíduos não brancos tende, por isso, a passar-se algo de semelhante ao que ocorre com os femininos: No decurso da globalização, podem ascender de forma minoritária (e frequentemente no meio das regiões de desmoronamento global) ao universalismo abstrato do valor; enquanto sujeitos, porém, com isso são sempre apenas "brancos não brancos". Tal como a ascensão de mulheres ao estatuto de sujeito do universo do valor não desmente a relação de dissociação, tampouco uma correspondente ascensão minoritária de indivíduos não brancos desmente o universalismo ocidental, como relação de

exclusão social e racial. E do mesmo modo não faz sentido querer de novo universalizar secundariamente o universalismo ocidental, visto que este se baseia justamente nessa exclusão por via da concorrência. A emancipação social pode invocar o universalismo do iluminismo tampouco como a emancipação sexual.

9.

O sujeito do valor e da história, que pela sua lógica inerente é esclarecido, masculino e branco, contém em si uma aporia sem solução no terreno do valor. Por um lado, é definido como o sujeito sobranceiro da "livre vontade" burguesa, que para si cria um mundo de objetos, dos quais ao mesmo tempo fica separado para sempre, como que por um biombo impenetrável, devido à sua própria forma autorreferente: o que é representado afirmativamente na problemática kantiana da coisa em si; em Hegel, como movimento de exteriorização da livre vontade em direção aos objetos, nos quais esta no entanto se mantém outro, ao qual conserva a pretensão à autossuficiência ou autorreferência, para regressar a si própria – é esta a representação lógicofilosófica do processo de valorização e do seu movimento do sujeito.

Por outro lado, esta forma da "livre vontade" é ela própria essencial e irredutivelmente objetiva, não coincidindo, nessa medida, com a "liberdade" de escolher uma alternativa. Trata-se apenas da "livre escolha" no seio do universo das mercadorias, em função da capacidade de pagamento e jurídica do indivíduo, que nem sequer existe como ser humano fora destes critérios. Com isso, o livre sujeito do valor é um objeto para si, a si mesmo se objetivando como ser empírico, despedaçado no conceito, na ética kantiana de uma verdadeiramente monstruosa autoviolação do indivíduo real, segundo os critérios da forma vazia de uma "lei em geral".

A mesma Filosofia, ampliada e apoiada no iluminismo capital-economístico escocês (anglo-saxónico), leva a relação aporética ao paroxismo, tanto sob o ponto de vista da teoria do conhecimento, como sob o da teoria da ação ("ética"): O sujeito enquanto sujeito, tal como a sua "liberdade", não é deste

mundo, encontrando-se separado, pela sua própria essência, de toda a sensualidade, objetualidade prática e necessidade social; ele é um mero fantasma da vazia forma fetichista do valor. No entanto, na medida em que este sujeito-fantasma se refere ao mundo real, ele também já é "não livre por necessidade natural", uma vez que apenas pode conhecer e agir segundo as (mecânicas) "leis naturais", físicas e sociais, as quais, paradoxalmente e para cúmulo, segundo de Kant, nem sequer são as leis da existência imanentes à própria natureza, mas tão-só a forma de conhecimento da sua própria relação alienada (que a si mesma parece estranha) com o mundo dos sentidos. A liberdade é vazia e do outro mundo, ao passo que a vida real se desenrola segundo a batuta da impiedosa "lei natural" do capital e do seu infindável processo de valorização.

Aqui, o próprio conceito de sensualidade é definido de forma abstrata, como "sensualidade em geral", precisamente porque a verdadeira referência sensual permanece indiferente à abstração do valor. Daí resulta uma inversão paradoxal no conceito da sensualidade e da natureza: Por um lado nega-se que o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) é, ele próprio, desde sempre culturalmente constituído, não sendo de modo algum imediato; que, portanto, a própria sensualidade se apresenta de modo histórica e culturalmente diverso, incluindo a concepção de espaço e tempo. A sensualidade, em vez disso, aparece de forma ahistórica, como a desde sempre abstrata e indiferente relação de valor. Por outro lado, a socialização do valor "trabalha" com o poder, como nenhuma formação anterior a ela, para adequar de fato completamente ao seu próprio conceito a totalidade do mundo natural e sensual, incluindo a sexualidade humana; ou seja, para converter a própria natureza num estado ahistórico, de plena compatibilidade com a abstração do valor, nivelando qualquer diferença entre a natureza e a sociedade capitalista (o que constitui um projeto necessariamente votado ao fracasso).

Ao objetivar deste modo toda a natureza e, com ela, também a sensualidade como abstração do valor, a socialização do valor como um todo desintegra-se em si própria, tal como qualquer dos seus sujeitos, numa polaridade aporética de sujeito e objeto; a sociedade converte-se numa objetividade cega, que se opõe aos sujeitos por ela formados (estruturalmente masculinos e brancos), como um poder estranho (segunda natureza), ao passo que os momentos que

não consigam enquadrar-se nesta lógica têm de ser dissociados e, com isso, "irracionalizados". O autodomínio e "incondicionalidade" da livre vontade totalmente insensível e, de um modo geral, irrealizada transforma-se no preciso contrário de um objetivismo igualmente incondicional.

Assim, tal como a metafísica do sujeito, também a metafísica da história tem de ser de natureza aporética: Ao sujeito da história, masculino e branco, corresponde a "lei natural" objetiva da história, na medida em que esta é a verdadeira história da sociedade; quanto mais livre, mais necessário (Hegel: "A liberdade é o conhecimento da necessidade"). O iluminismo é, assim, essencialmente uma ideologia de autoviolação e autossujeição dos indivíduos ao imperativo objetivado da "segunda natureza", segundo os critérios do movimento espontâneo da forma do valor (valorização do valor) autonomizada relativamente a eles.

Como tal, se mulheres e não brancos ascendem empiricamente ao estatuto de sujeito da metafísica do valor, não se emancipam, limitando-se a trocar a redução ao estatuto da dissociação e exclusão pela outra redução ao estatuto da auto-objetivação.

10.

Em consequência da sua estrutura aporética, o sujeito da história, masculino e "livre", que é "livre" precisamente como executante do movimento determinado do fim-em-si do valor, não só tem de dissociar os momentos da emocionalidade, sensualidade etc., mas também tem de cindir-se a si mesmo numa oposição interior entre pensamento e ação: de um lado surgem os "pragmáticos" (econômicos e políticos), representando as elites funcionais em larga medida isentas de reflexão (ao menos no meta-nível das formas sociais); do outro, os teóricos sociais, em grande medida contemplativos, que não atuam a nível social de forma imediata e os quais (tão privados de sensualidade e emoções como os "pragmáticos") têm de comportar-se como observadores meramente "exteriores"; de certo modo como o cérebro a boiar numa solução nutriente em Marte que, através da forma apriorística de

pensamento do valor e por intermédio de aparelhos técnicos (ou da capacidade de abstração teórica), observa do exterior a fervilhante vida objetual da sociedade terrena.

Por isso, cisão sistemática entre teoria e prática é na realidade parte integrante da constituição do valor, e manifesta-se simultaneamente na correspondente ideologia metafísica do sujeito e da história. Os pragmáticos executam a marcha da objetividade, enquanto os teóricos contemplativos vão comprovando que tudo tem a sua razão de ser e nem pode ser doutra maneira.

11.

O subjetivismo, aparentemente contrário, é apenas um produto colateral periódico e uma manifestação secundária desta lógica; ou seja, a hipostasiação do outro pólo, sem abandonar a constituição da forma. Pelo que ele também fracassa invariavelmente, sendo reintroduzido na objetividade, tanto do sujeito como da história. No entanto, no decurso da história intelectual burguesa, ele também se consolidou e autonomizou, como postura subjetivista de uma falsa imediatez, que eclipsa o contexto constitutivo, histórico e lógico, do sujeito determinado pela forma do valor do sistema produtor de mercadorias, pressupondo-o de forma positivista na sua gênese irrefletida.

O resultado é a mistificação, ou a estetização (ou ambas) da subjetividade moderna, na sua existência banal e miserável, como agente e "bocal" do movimento de valorização sem sujeito. Desde o romantismo, passando pelos supostos solitários Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, até à chamada Filosofia da vida, ao existencialismo de Heidegger e similares, à ideologia nazi a este ligada e de poderosos efeitos sociais, e aos movimentos de pensamento alimentados por estas raízes na segunda metade do século XX, vai toda uma cadeia manifestações desta falsa imediatez ideológica do sujeito do valor, que dolorosamente se vivencia como "lançado" num mundo estranho e pregado na cruz da sua objetividade para, no mesmo fôlego, a si próprio se heroicizar nesta existência, em vez de se insurgir contra ela e dela se emancipar.

12.

A forma do pensamento e do conhecimento, tanto dos "pragmáticos" como dos teóricos contemplativos é a lógica identitária. Nesta, em termos práticos, o mundo, a natureza, assim como a sociedade e todos os seus objetos, são assimilados à abstração do valor, tornados compatíveis e até iguais ao valor. Esta abordagem, já de si destrutiva, configura, por assim dizer, uma "intenção objetiva"; ou seja, uma inversão que remete de novo para o paradoxo basilar da relação social, na medida em que as intenções dos indivíduos e das instituições estão pré-formadas pela sua própria forma de percepção e de ação, antes de qualquer intenção "subjetiva". No processo de valorização reacoplado a si próprio (processo do trabalho, processo da circulação, retorno a si próprio do capital financeiro mais valorizado), o sujeito do valor estende as qualidades de sinal diverso na cama de Procrustes da abstração do valor. Tudo, seja o que for, desde a matéria mais bruta até às emoções da alma, é sujeito a este processo de identificação prática, segundo a marca una e única desta abstração real.

O resultado é uma economificação sempre crescente do mundo e o seu consequente tratamento em função do processo de abstração do valor, que apenas é flanqueada, e em muitos aspectos até reforçada, pelas ideologias subjetivistas aparentemente contrárias da mistificação e da estetização. Até o processo de consumo, como reprodução material da vida, tem que submeterse o mais possível a esta forma e adequar-se a ela, ao passo que os momentos que nunca se enquadram nela, que sempre constituem o avesso da forma e nunca um mero "resto", ficam remetidos à dissociação (sexualmente conotada). No entanto, o sujeito da dissociação histórico-socialmente "feminino", as mulheres dos escombros da história, como companhia de consertos da socialização do valor e das suas devastações, justamente enquanto "virtudes femininas", não pode deter a catástrofe da forma do valor, nem ultrapassar os seus imperativos, precisamente porque ele próprio constitui apenas a figura simetricamente invertida, negativamente idêntica, do sujeito do valor "masculino", e em conjunto com ele está constituído.

O mesmo se aplica também às culturas pré-modernas, excluídas de forma racista, ou às suas réplicas ideológicas. O "bom selvagem", que desde Rousseau povoa o pensamento iluminista, um fantasma projetivo do pressentimento dos conteúdos destrutivos da própria Filosofia iluminista, muito menos proporciona um potencial para a ultrapassagem emancipatória da modernidade produtora de mercadorias. As reais relações de fetiche prémodernas nem eram melhores que as modernas, nem são capazes de fornecer a menor indicação sobre como o amoque da socialização do valor poderá ser detido. Muito menos ainda se encontra um potencial emancipatório na construção meramente ideológica de um passado idealizado, ou de "culturas" extraeuropeias que, após séculos de história da imposição do capitalismo, só podem ser caricaturas da socialização do valor e da respectiva subjetividade.

13.

O impulso interno do movimento da valorização, como processo histórico, consiste em chegar à autossuficiência absoluta da abstração vazia da forma: por conseguinte, maltratando os objetos do mundo durante o tempo necessário para que estes desapareçam no vazio dessa forma – ou seja, através da aniquilação do mundo. Está assim estabelecida a pulsão de morte do sujeito iluminista e da sua razão lógico-identitária e dissociadora, que se vai desenvolvendo através da história da modernização. Esta pulsão de morte dirige-se igualmente contra o princípio do dissociado, conotado com o "feminino", embora e justamente porque este configura a forma da manutenção negativa do sistema. Como a pretensão totalitária da forma do valor só pode ser representada ao preço da dissociação, ou seja, da (inadmitida) "incompletude" e da deficiente autossuficiência no mundo físico e social, o impulso totalitário tem de acabar por se virar contra a capacidade de reprodução do próprio sistema. A impossibilidade lógica da forma do valor total, da perfeita dessensualização e associalidade, torna-se prática como aniquilação do mundo e de si próprio.

Ao prático economismo totalitário da forma vazia corresponde a política, primeiro como forma enfática da sua imposição (reforçada desde a revolução francesa), que paralisa sob a forma da administração da relação de valor

(administração de crise), para finalmente vir a acabar como forma de consciência da pulsão de morte moderna, como forma de aniquilação e autoaniquilação, nos processos de decomposição do sistema produtor de mercadorias.

A mesma forma de pensamento e de conhecimento se reproduz na reflexão teórica, contemplativa, como uma lógica identitária conceptual, refletida. Tal como os "pragmáticos" do iluminismo burguês, estruturalmente masculinos e brancos, na prática querem adaptar totalitariamente o mundo, assim os teóricos contemplativos correspondentes procuram abranger o mundo conceptualmente de um modo não menos totalitário. Tal como na prática, também no pensamento reflexivo tudo o que não couber no conceito identificador (da abstração do valor) ou é riscado, ou é dissociado. O teórico contemplativo enquanto sujeito do valor reflete-se de modo narcisista e autista no mundo, em cujos objetos ele sempre volta a reconhecer-se e a adorar-se, na sua existência abstratificante e permanentemente dissociadora.

O mundo tem de caber e ser representado na totalidade do valor, sem deixar de fora quaisquer sobras, ou simplesmente soçobrar. Daí a exigência da absoluta e positiva inequivocidade e "dedutibilidade" conceptual (pensamento sistémico positivo). Tanto à lógica identitária prática como à teórica, corresponde a tendência para a ausência de relações (quer sociais, quer eróticas) e a incapacidade para as mesmas, como reflexo da tendência da abstração do valor para a autossuficiência na forma vazia. Naturalmente, mesmo o mais obstinado teórico contemplativo da lógica identitária, como qualquer outro indivíduo, não consegue caber na sua pele do valor. É precisamente para lidar com os dilemas que aí se perfilam que servem as ideologias de mistificação e estetização do subjetivismo, em que o sujeito do conhecimento do valor, branco e "masculinamente" lógico-identitário, pode refugiar-se e entregar-se à equivocidade em caso de necessidade.

14.

No romantismo, na filosofia da vida, no existencialismo e seus vários derivados, a irracionalidade repressiva e destrutiva da relação de valordissociação manifesta-se de forma imediata, também pelo lado do sujeito do valor, fazendo-o, no entanto, sob formas adequadas. Enquanto os momentos dissociados da sensualidade, da emoção, do ato de "cuidar e acarinhar" (impossível de economizar ou, a sê-lo, apenas ao preço de fricções catastróficas, na falta da sua representabilidade sob a forma do valor), das áreas de reprodução associadas ao mesmo etc., que não cabem na forma do valor, se apresentam como irracionalidade "feminina", natural, impossível de abarcar conceptualmente (e, em última análise, a eliminar), por oposição ao sujeito couraçado do valor - este sujeito da racionalidade definida pelo valor a si mesmo se naturaliza e irracionaliza, nas ideologias subjetivistas; mas apenas de forma compensatória, como aquilo que é: a racionalidade abstrata dá lugar imediatamente a uma irracionalidade igualmente abstrata, tornando-se clara a identidade entre a razão burguesa e a loucura objetiva.

Com a adoção romântico-existencialista da irracionalidade, o sujeito do valor masculino e branco não se desmente; descobre em si consequentemente o lado "feminino" (sensual), apenas sob a forma de uma imaginação de morte e matança, como ela já se tinha formado desde os primórdios da "revolução militar" protomoderna no "culto dos canhões" e desenvolvera a relação com o mundo sensual como uma lógica abstrata de aniquilamento, que se objetivou na pulsão de morte da forma do sujeito determinada pelo valor. O culto romântico do fragmentário é o culto dos escombros do mundo devastado pelo valor, ou seja, não é oposto ao totalitarismo da lógica identitária, sendo antes o seu reflexo no mundo dos sentidos. O sujeito do valor iluminista só é "sensual" se arrasar o mundo e nadar em sangue, em sentido figurado ou literal. Esta sensualidade negativa é, ela própria, abstrata, e nela se manifesta de forma imediata, periodicamente e em degraus historicamente crescentes, a pulsão de morte do sujeito do valor, que quer integrar o mundo na forma vazia da sua abstração real.

O amor romântico masculino prefere o seu objeto sob a forma de um cadáver na água (Ofélia); desde as formas de expressão mais artificiosas até à mesa da tertúlia ("A barriga estava coberta de musgo; meus senhores, à nossa!"). A historiadora literária Elisabeth Bronfen apresentou a esse propósito, no início

dos anos 90, uma extensa monografia ("Só por cima do seu cadáver"; morte, feminilidade e estética). Nas ideologias de "sangue e solo", esta irracionalidade assume, ela própria, a forma do conceito de razão; e é nos campos de batalha da história da modernização que esta sensualidade negativa, abstrata, do sangue vem a si; no abraço amoroso de homem a homem entre os sujeitos do valor, que se trespassam mutuamente com as baionetas, e na romantização dos delírios sanguinários, nas grandes guerras industrializadas do século XX (Ernst Jünger).

Tal como a dissociação dos momentos da reprodução definidos como "femininos" (imprescindíveis mas, ainda assim, cada vez mais frequentemente negligenciados com brutalidade, coarctados ou diretamente destruídos) não põe em causa o sujeito-do-valor destrutivo, antes apenas o torna ainda possível, enquanto a pulsão de morte não se tiver cumprido, assim a irracional ideologia existencial e a negativa e sangrenta sensualidade da masculinidade do iluminismo tornada romântica muito menos ultrapassa este sujeito, antes revela a sua essência destruidora do mundo.

É no próprio ataque de febre periódico dos pragmáticos esclarecidos e racionais, tal como dos próprios teóricos contemplativos esclarecidos e racionais, que se mostra a irracionalidade desta Ratio. Trata-se, portanto, de Kant no estado da sensualidade, isto é, da dizimação de tudo quanto seja vivo e não consiga encaixar-se na abstração do valor. Nisso se evidencia a identidade negativa, polar, entre a modernidade burguesa e a (aparente) antimodernidade burguesa. E é só nesta identidade imediata entre razão e aniquilação na forma do valor que o pragmático pode coincidir com o pensador. A unidade burguesa entre teoria e prática é o campo de extermínio, a explosão atómica, o bombardeamento de área. É nisso que consiste o oculto denominador comum entre Kant, Hitler e Habermas, entre a ideologia alemã e o pragmatismo dos EUA, entre a liberdade compulsiva dos liberais e o autoritarismo totalitário. Apesar de todas as diferenças históricas na história da imposição da socialização do valor, este denominador comum torna-se visível nas grandes crises, e especialmente nos limites do sistema. E, deste ponto de vista, convém pensar junto o que junto está.

15.

Sob muitos aspectos, o marxismo não constitui a ultrapassagem, mas apenas a continuação e ampliação da destrutiva metafísica-do-valor iluminista do sujeito e da história. Como é sabido, o próprio Marx, e muito mais o chamado marxismo, adoptaram no essencial a versão hegeliana ampliada da ontologia e da metafísica iluminista do progresso, para supostamente a virar de pernas para o ar, de um modo "materialista". A "história necessária do desenvolvimento" converteu-se na história político-econômica de "modos de produção", com "modos de pensar" a condizer (materialismo histórico). À reinterpretação materialista correspondeu um prolongamento da construção iluminista: tal como a história necessária do desenvolvimento do espírito do mundo a vir a si se converteu numa história necessária de forças e condições de produção, assim o final glorioso não havia de consistir na sociedade burguesa, mas no "socialismo operário".

Portanto, o marxismo apenas postulou um "estádio de desenvolvimento objetivamente necessário" adicional e suplementar, que ainda deveria seguir-se ao burguês, revelando-se assim um mero apêndice da metafísica iluminista da história. É um fato que Marx ocasionalmente designou o socialismo/comunismo como, em vez de o final da história, pelo contrário, precisamente como esse "fim da pré-história", cujo conceito poderá fornecer um primeiro ponto de partida para uma crítica que vá mais longe; no entanto, esta formulação corresponde justamente aos momentos da teoria marxiana que não são compatíveis com a ideologia do iluminismo e que, por isso, (sobretudo sob na forma do conceito de fetiche) também não são compatíveis com o materialismo histórico. A forma de fetiche do valor, em si mesma, nada tem de "material".

Do ponto de vista do "duplo Marx", portanto, o materialismo histórico enquadra-se plenamente na herança burguesa e iluminista, no Marx da modernização e do movimento operário; o mesmo se aplica também à versão marxista do conceito de "progresso" que, no essencial, apenas fez a função de vanguarda do marxismo do movimento operário no processo de

modernização capitalista (criação da subjetividade jurídica e da cidadania generalizadas, etc.).

O que, consequentemente, implicou a parcialidade categorial do marxismo também quanto aos outros momentos da ontologia e da metafísica capitalistas; não apenas no que diz respeito às formas de relacionamento social objetivadas do trabalho e do valor, mas também relativamente à forma burguesa do sujeito, visto que o acesso à mesma e o reconhecimento social através dela constituiu a causa histórica essencial do movimento operário. À versão materialista da metafísica iluminista da história correspondia necessariamente uma versão materialista da metafísica iluminista do sujeito (nomeadamente sob a forma da ideologia sociologista das classes) incapaz de pensar até ao fim a superação da forma histórico-social subjacente.

Como é lógico, deste modo o marxismo também só foi capaz de abordar a relação entre os sexos no âmbito da forma burguesa do sujeito, a fim de resolver as "tarefas" fundamentalmente já colocadas pela ideologia do iluminismo, mas ainda não resolvidas, isto é, como "questão da igualdade" abstrata e jurídica, referente à cidadania num estado (em analogia com a correspondente lógica dos sujeitos masculinos assalariados), enquanto, ao mesmo tempo, a delegação dos momentos dissociados n’ "a mulher" (a proletária "parideira" de "soldados do trabalho") foi igualmente recebida da ideologia do iluminismo, na forma de um materialismo biologista da relação de dissociação já por ela congeminado.

De um modo em tudo semelhante se apresentava a relação marxista para com o racismo e o colonialismo: também a este respeito, o movimento operário adoptou em larga medida a ideia iluminista da superioridade branca e da "missão civilizatória" do capital, apenas atenuada pela crítica contida dos "excessos" colonialistas. Também o sujeito do progresso da metafísica da história rumo ao socialismo, como suposto paroxismo da história de progresso da Humanidade, só podia ser, em princípio, masculino e branco ocidental.

Ao apego às categorias reais capitalistas, ao essencial da ideologia iluminista e à relação de dissociação tinha de corresponder um igual apego às formas da reflexão teórica. Marx, na sua crítica da economia política, representou com clareza a conexão categorial e o processo de reprodução do capital mas, em primeiro lugar, limitou-se ao cerne da relação de valor, sem contemplar a dimensão da relação de dissociação, e sem abranger sistematicamente a forma da política (no primeiro caso por falta de entendimento, no último por falta de ocasião para a sua elaboração). Igualmente abreviada e por isso contraditória, uma vez que enquadrada na metafísica iluminista do progresso, teve de ficar a representação marxiana do colonialismo.

Em segundo lugar, a forma de representação é tal que pode ser lida positiva e lógico-identitariamente como teoria sistémica totalitária no sentido hegeliano, simplesmente invertida político-economicamente em termos materialistas, enquanto a teoria negativa da constituição do fetiche se apresenta, antes de mais, como "golpe falhado" (que sempre tem causado sobretudo estranheza ao pensamento dedutivo masculinamente lógico-identitário). Por isso, depois de isolado este corpo estranho, o marxismo do movimento operário pôde adoptar positivistamente a teoria de Marx, como instrução de procedimento no interior do invólucro da forma do valor e da forma burguesa do sujeito.

Deste ponto de vista, o marxismo apresenta-se de modo especialmente consequente como um mero apêndice da ideologia do iluminismo, na medida em que, como seu "herdeiro", sempre se colocou consistentemente do lado da racionalidade na forma do valor ("razão") e até do seu "progresso". Assim, a irracionalidade dessa relação teve de ser sempre mal-entendida como exterior e hostil às respectivas formas de pensamento, em vez de se reconhecer o carácter perfeitamente imanente das ideologias subjetivistas e irracionalistas e das suas consequências devastadoras. Na redução ao "racionalismo dos interesses" pretensamente sociológico na forma do valor, o pensamento marxista acabou por mostrar-se mais papista que o papa quanto ao conceito de razão capitalista-iluminista, na medida em que sempre quis "realizar" os ideais burgueses abstratamente universalistas (justamente como tais não verdadeiros, porque dissociativos e exclusionistas) contra a irracionalidade burguesa ideologicamente exteriorizada, tentando compreender os movimentos intelectuais e as formas de atuação destrutivas correspondentes a

esta irracionalidade objetivada da razão burguesa como uma "traição" do mundo burguês à sua própria razão, em vez de a encarar como sua consequência intrínseca e necessária (exemplarmente em Lukács, no seu banal ensaio sobre a pretensa "Destruição da Razão").

O marxismo do movimento operário tornou-se assim o impulsionador da história subsequente da modernização capitalista, justamente pelo fato de parecer representar a pura forma lógico-identitária do pensamento e da ação da razão burguesa idealizada, contra a própria irracionalidade transbordante desta última. Foi isso que constituiu a sua força à época, enquanto a socialização do valor ainda se encontrava em ascensão histórica; posteriormente, contudo, foi igualmente isso que o tornou obsoleto, no final deste desenvolvimento imanente da relação do valor.

Tal como na ideologia iluminista e no processo real do moderno sistema produtor de mercadorias em geral, também o movimento operário teve de reproduzir a cisão burguesa entre teoria e prática, no modo de reflexão de um marxismo positivista. Os seus representantes (na sua maioria, como é evidente, também empiricamente masculinos e brancos) novamente se dividiam em "pragmáticos" e teóricos contemplativos. Os primeiros dividiram a prática social, segundo o padrão burguês e à medida da lógica identificadora do valor, em atuação econômica (sindicatos analogamente à gestão, entretanto sua parte integrante) e atuação política (o partido, primeiro como aspirante e por fim também como parte integrante da classe política); os últimos desenvolveram e cultivaram um aparelho conceptual marxista lógicoidentitário, no sentido da abstração do valor (percepcionada sociologicamente de um modo reduzido e, logo, deficiente na sua imanência).

16.

No decorrer do século XX, a concepção iluminista da metafísica da história e do sujeito foi-se tornando cada vez mais duvidosa e frágil, sem poder ser resolvida de forma positiva no terreno da socialização do valor e da sua relação de dissociação. Só a passagem para a crítica do valor aproxima da

possibilidade de ser pensada a ultrapassagem desta forma social moderna. Neste aspecto, uma teoria de charneira ou de transição foi constituída, especialmente, pela teoria crítica de Adorno. A reflexão deste põe em causa a forma burguesa do sujeito (para lá da teoria do marxismo do movimento operário, limitada em termos de sociologia das classes) fundamentalmente em dois momentos: Por um lado, como forma da circulação da troca de mercadorias e, por outro, e pensada em ligação com a primeira, como forma do pensamento da lógica identitária, em que o mundo é abstratamente reduzido ao mesmo denominador da forma abstrata, com o que é violado e, por fim, destruído.

No entanto, a crítica de Adorno à metafísica iluminista do sujeito fica a meio caminho, e isto em três aspectos. Primeiro, a crítica desta forma é incompleta, porque limitada à forma da circulação primária (a troca de mercadorias), sem abranger sistematicamente nem o modo de produção (trabalho), nem a forma da circulação secundária (subjetividade jurídica, política), compreendendo, portanto, a forma negativa da totalidade do valor apenas ao nível da circulação. Segundo, a crítica antes de mais também é incompleta porque Adorno, apesar de esboços e chamadas de atenção dispersos, chega tão pouco como Marx até à forma hierarquicamente superior da relação de dissociação. Terceiro, por fim, ele até acaba por retirar a crítica, na medida em que nomeia precisamente a mesma forma do sujeito da circulação, que para ele é o portador da lógica identitária destrutiva, simultaneamente como portador positivo indispensável da emancipação de si próprio, o que, como é evidente, só pode constituir uma ampliação e uma caricatura da ideologia aporética do iluminismo, que repousa sobre a estrutura real aporética do valor.

Do mesmo modo como em Adorno a libertação da metafísica iluminista do sujeito continua incompleta e acaba por falhar, se passam as coisas também com a metafísica iluminista da história. Adorno não resolve a construção histórico-metafísica, apenas a prolonga com sinal inverso: No lugar do optimismo histórico do iluminismo surge um pessimismo histórico correspondente. A história do progresso converte-se numa história da decadência, precisamente porque fracassa a libertação da forma do sujeito burguesa.

Isto desenrola-se a dois níveis, que têm de ser bem distinguidos, e que dão a conhecer o duplo apego de Adorno, ainda não resolvido de forma consequente, tanto à filosofia iluminista, como ao marxismo do movimento operário. Nomeadamente, por um lado, ao meta-nível da ontologia suprahistórica e antropológica; aqui, a libertação do Homem da "primeira natureza", convencionalmente conotada com o feminino, afigura-se como fundamentalmente falhada, visto transformar-se na "segunda natureza" de relações de poder (o domínio destrutivo sobre a natureza e o domínio do homem sobre o homem). Assim, a história em geral transforma-se numa história da fatalidade, que ameaça acabar em recaída na "primeira natureza". Isto, no entanto, também poderia ter a leitura de que o sujeito do valor, abstratamente universal e "masculino", deslizara para o apego "feminino" à natureza e, assim, como o medo do sujeito-burguês-do-valor das suas próprias consequências.

Por outro lado, Adorno pensa a mesma história da decadência também ao nível da ontologia histórica, capitalista. Neste contexto, a "realização da Filosofia" afigura-se-lhe como mal sucedida, o que não quer dizer outra coisa senão que os potenciais emancipatórios supostos (de certo modo alucinados) da ideologia do iluminismo, a que ele se agarra com unhas e dentes, apesar de ele próprio ter comprovado o contrário, teriam infelizmente fracassado, podendo apenas ser saudosamente recordados ("in memoriam").

No que diz respeito à teoria, (contrariamente à solução aparente de Adorno, errónea, paliativa e, por isso mesmo, sem saída), paradoxalmente, o caso não seria, de fato, que o modo de reflexão do iluminismo e do marxismo, profundamente marcado pela lógica identitária, e que deveria ter-se "realizado" como "Filosofia", tivesse soçobrado em tal desafio; mas que se "realizou" de fato, de forma real e destrutiva, justamente como processo de imposição da socialização do valor e da relação de dissociação.

Relativamente ao estatuto do portador desta emancipação supostamente perdida, teria sido o movimento operário, segundo Adorno, o "realmente" vocacionado para salvar e "realizar" os conteúdos ditos libertadores do sujeito burguês da circulação (que, na realidade, constituem o contrário de uma

libertação) através da sua generalização extensiva; no entanto, este teria falhado essa sua vocação, com o que, no fundo a oportunidade histórica estaria perdida. Na realidade, porém, o movimento operário cumpriu a sua vocação, limitada à socialização do valor, e por isso mesmo esmoreceu.

Por conseguinte, Adorno fica preso à metafísica da história, tanto do iluminismo, como do marxismo do movimento operário, apenas numa versão negativa e pessimista. Pois na história da "fatalidade" de uma libertação mal sucedida da "primeira natureza", à qual ele acaba por reduzir toda a história da Humanidade pré-moderna, teria sido apenas o nascimento do sujeito do valor, do sujeito lógico-identitário da circulação (cujo o alter ego do sujeito do trabalho fica implicitamente pressuposto, numa ontologização inadmitida) que teria oferecido uma possibilidade de deter o curso desta fatalidade – quando na realidade, mesmo observado de forma imanente no sentido da construção histórica de Adorno, o acelerou e o levou ao seu ponto culminante.

E, ao mal entender ideologicamente a luta do movimento operário pelo reconhecimento na forma do sujeito burguesa, tal como esse próprio movimento, como possível transformação emancipatória, que conduziria para lá da socialização do valor, a sua revelação (mesmo assim incipientemente refletida) como aquilo que realmente foi tem de parecer-lhe uma recaída na, aliás suposta, marcha da fatalidade. O iluminismo, o sujeito burguês da circulação e o movimento operário teriam assim constituído, por assim dizer, um mero compasso de espera, ou uma indefinição temporária nessa marcha. Os seguidores "ortodoxos" de Adorno que tenham ficado parados neste nível de reflexão não podem, por conseguinte, pensar mais longe, nem libertar-se realmente do marxismo do movimento operário, só podem prolongá-lo numa versão negativa para finalmente, chegados à fronteira histórica da relação de valor (e perante os acelerados processos destrutivos a ela associados) voltarem a cair diretamente na ideologia iluminista e, com isso, atrás do nível da reflexão de Adorno.

17.

Paralelamente à reflexão de Adorno desenvolveram-se dois outros filões da elaboração teórica, que tentaram assimilar a obsolescência da metafísica do sujeito e da história, de um modo sem dúvida substancialmente mais afirmativo que Adorno. O estruturalismo (Lévi-Strauss, Barthes, Lacan etc., em versão marxista, Althusser) e a teoria dos sistemas (Luhmann) liquidaram a ilusão do sujeito do pensamento iluminista, apenas para formular a cega objetividade da socialização sob a forma do valor, ou seja, o outro pólo da mesma forma de pensamento e ação, de um modo novo e mais avançado. Já o próprio pensamento iluminista tinha confinado a autonomia do sujeito e, com ela, o seu poder de fazer a história, estritamente ao férreo enquadramento de uma objetividade irrefletida, sem mais equiparada à "natureza" e às suas leis. Afinal, é precisamente nisso que se manifesta a aporia deste pensamento, na conversão instantânea da autonomia em heteronomia, da liberdade em coação da necessidade. As supostas liberdade e autonomia revelam-se, assim, como um instinto condicionado de uma irracional "segunda natureza", de uma pseudonatureza da forma social ontologizada, que é ideologizada como componente da primeira natureza.

O estruturalismo e a teoria dos sistemas, a última das quais até remonta diretamente à biologia teórica (H. Maturana), prolongam este falso naturalismo do histórico-social de forma reforçada: O pensamento iluminista não é ultrapassado, apenas a sua aporia é encoberta por uma unilateralização objetivista. O sujeito autónomo ilusório apenas é derrubado do seu trono para festejar a objetividade quase naturalista, com ele existente e pensada desde o início, numa apoteose árida, sem paixão, "liberta" das emoções ideológicas da história da imposição – festejar seria dizer demais, visto que meros guardalivros de uma facticidade em processamento cibernético já nada conseguem glorificar, na melhor das hipóteses sendo capazes, como Luhmann, de evidenciar uma certa lucidez sardónica. A aporia de sujeito e objeto no pensamento iluminista é devolvida inteiramente ao âmbito do objeto, sendo que este último, por assim dizer, se refina relativamente ao naturalismo abstrato do iluminismo, num movimento estrutural e sistémico, que toma o lugar do anterior sujeito da história. O suposto triunfo do estruturalismo e da teoria dos sistemas sobre a metafísica e

a ideologia do sujeito do "pensamento da velha Europa" revela-se como a mera conclusão da história da sua vulgarização positivista, em que ele vem a si.

O sujeito da história, antes enfático e masculino, põe de lado os podres estandartes e emblemas da sua liberdade para, como uma espécie de analista social automatizado, observar a sua própria miserabilidade nos "processos de informação" das máquinas sociais. Althusser, na circunstância, involuntariamente resume a luta de classes ao seu conceito imanente, como mero processo estrutural com executantes-atores mecânicos. E Lacan terá dito sobre o movimento de 1968: "São as estruturas que saíram à rua."

Com esta autodesmontagem do sujeito masculino e branco do iluminismo, na forma quer de teórico contemplativo, quer de pragmático (os imperativos sistémicos, cibernéticos e sem sujeito, já apenas têm que ser constatados, por um lado, e executados, por outro), a relação subjacente de dissociação sexual não é desmentida com ele, como se poderia esperar, mas, pelo contrário, é definitivamente eclipsada enquanto objeto específico, tal como a forma do valor: Ela dilui-se no contexto sistémico abstrato, como uma estrutura entre estruturas. Deste ponto de vista, agora todos os gatos são pardos e todas as contradições que se manifestem são passadas a ferro numa lógica afirmativa e cibernética, que é sempre a mesma; isto foi levado à perfeição por Luhmann, com o tratamento sucessivo de todas as "áreas" no âmbito da mesma conceitualidade árida e tautológica: o casal de amantes e, de um modo geral, a relação entre sexos é tratada como "sistema" ou "subsistema", tal e qual como "a economia", "a cultura", "a religião" etc.

Juntamente com o conceito enfático do sujeito autónomo desaparece necessariamente também o da história. A história dissolve-se na atemporalidade de uma lógica estrutural e sistémica abrangente, que comanda a natureza e a sociedade de igual modo segundo leis eternas. As alterações já não se apresentam como história feita por seres humanos, mas como a chamada "diferenciação" por lógicas estruturais, ou como a "autopoiesis" de contextos sistémicos. As crises não são percebidas como limites de uma formação histórica, mas como "interferências" e "curtos-circuitos" nos

processos de diferenciação, de modo que os indivíduos apenas as podem vivenciar como uma espécie de amebas sociais.

O lugar da crítica que se legitima com argumentos históricos é tomado pelo encolher de ombros do cibernético da teoria social. Com isto foi atingido o estádio terminal tanto do teórico contemplativo como do pragmático. O rasto é apagado, o criticável conceito do valor ou do movimento de valorização capitalista desaparece no fim da história da sua imposição, no Nirvana ahistórico da forma de um "sistema em geral" e da sua "estruturalidade em geral".

18.

Este penúltimo estado de decadência do pensamento iluminista é de tal modo insatisfatório e desmascarador que teve de dar origem a outro subsequente e último, sob a forma das chamadas teorias pós-modernas ou "pósestruturalistas", em que a falta de saída da modernidade produtora de mercadorias aparentemente se resolve às mil maravilhas, se bem que, por assim dizer, de um modo precário. Uma vez mais, foram sobretudo teóricos franceses (que entroncam de um modo imanentemente crítico no estruturalismo) como Lyotard, Derrida e, em especial, Foucault que, com acentuações diversas e com recurso a um vastíssimo acervo histórico e contemporâneo, tentaram superar a esterilidade e monotonia estruturalista, sem no entanto recorrer à relação subjacente da forma social do valor e da dissociação, nem chegar, portanto, a reformular a questão da crítica radical. Pelo contrário, a pós-modernidade e o pós-estruturalismo pressupõem positivamente o ofuscamento, próprio da teoria dos sistemas e do estruturalismo, da definição especificamente histórica do sujeito e da forma, a fim de se posicionarem de novo sobre esse pano de fundo e, de certo modo, recuperarem uma ilusória operacionalidade nesse terreno já afirmativamente demarcado.

É, pois, precisamente nisso que consiste a comunhão destes pensamentos, que apenas costuma ser negada pelos seus receptores porque estes nem sequer

reconhecem o quadro de referência comum – tão massivamente foi em geral eliminada a própria formulação do problema. Juntamente com o marxismo do movimento operário, simplificado abusivamente sob o prisma da sociologia das classes, há muito que foi enterrada também a crítica marxiana do fetiche e da forma, erroneamente confundida com aquele e inteiramente incompreendida. Assim sendo, embora a reflexão da teoria dos sistemas e do estruturalismo se encontre ao mesmo nível de abstração que o "outro" Marx, tal acontece, porém, de um modo deshistoricizado, acrítico da forma e, por isso, afirmativo.

Todo o pensamento do "pós" pressupõe as categorias do sistema produtor de mercadorias como fundamento natural da existência, mais ainda que a mais ordinária das velhas ideologias burguesas; no entanto, já não o faz de forma explícita, uma vez que já o faz para lá da história da imposição. Afinal o estruturalismo e a teoria dos sistemas já tinham preparado esse mesmo terreno. Agora, o sujeito é "recuperado" sob uma forma reduzida, mutilada, mas não a história.

Depois de ter desaparecido da reflexão a forma social e, com esta, toda a análise e crítica da história da respectiva formação, resta como substrato ahistórico uma ontologia positivista do "poder" (Foucault) ou uma igualmente positivista ontologia do "texto" (Derrida), de cujo carácter ontológico os respectivos protagonistas já nem se apercebem, uma vez que é estabelecida como axioma, sem justificação e, por conseguinte, também sem constituição (pura e simplesmente: de forma ahistórica). Dissociados da sua limitativa definição, os conceitos de poder e texto, ou "intertextualidade" (Julia Kristeva) convertem-se em sinónimos da totalidade indefinida da realidade social.

Estas construções de poder e texto, que se vão confundindo na recepção, na sua qualidade de ahistóricas permanecem muito explicitamente delimitadas ao nível fenomenológico. A sua definição indeterminada constitui tão-só uma nomenclatura geral para um caleidoscópio de manifestações, cuja essência já não deve ser denominada. Se o estruturalismo e a teoria dos sistemas ainda se davam ao trabalho de insistir no problema da forma, já deshistoricizado, na medida em que andaram a ruminar afirmativamente as supostamente

inultrapassáveis leis lógicas dos contextos sem sujeito, os teoremas do "pós" já se limitam a evitar esse temível nível do problema, denunciando já a forma de colocar a questão como um inadmissível "essencialismo" e "universalismo" ("próprio das grandes teorias").

Em vez disso o seu olhar dirige-se para a azáfama no interior do enquadramento social, já não percebido como tal. Por isso, a suposta crítica pós-moderna do universalismo nem aflora a pretensão totalitária da forma do valor, a qual, ao invés, é cegamente adotada como um dos seus pressupostos (o que é criticado são apenas as teorias universalistas, mas não o universalismo real objetivado e negativo da forma de reprodução e circulação capitalista, que subjaz a todas as teorias modernas); a interpretação limitada em termos culturalistas é suposta esclarecer na sua própria essência as meras manifestações no interior da forma vazia (sistematicamente ocultada), dando assim uma aparência colorida à vida democrática, na parada cinzenta do quartel e nas câmaras de tortura subterrâneas do terror econômico.

Estas tendências abertamente afirmativas do pós-modernismo, já há muito predominantes, que protegem os flancos à ideologia neoliberal da globalização capitalista, embora abandonem as intenções originais da posição pósmoderna, não deixam de ser consequentes. É que, na medida em que em Foucault, Kristeva etc. é elaborada uma análise do racismo e da construção da alteridade, esta, se bem que torne visíveis mecanismos superficiais de exclusão, por falta de uma concepção crítica da totalidade da forma não pode relacionálos com o seu pano de fundo social, que fica sistematicamente ofuscado.

Assim, o poder e o texto constituem a objetividade em estado líquido, por assim dizer o eterno fluido ou o éter de qualquer relação social, um meio ou um complexo de meios impossível de determinar com maior precisão, no qual se desenrolam constelações em constante mutação. Já pelo seu conceito, este poder-texto remete, no entanto, simultaneamente para a subjetividade; ele é, de certa forma, o sujeito-objeto – já não de uma história, (como em Lukács o proletariado), mas de uma ondulante "respectividade", em que os indivíduos tecem as teias do poder e parafraseiam o texto, sem serem poder nem texto. O fetichismo da modernidade, juntamente com o seu terror econômico e a

sua forma política de administrar seres humanos, transformou-se de objeto criticável na água eterna da vida, na qual o sujeito nada. Concretamente, como um ser reduzido e desarmado, porque ele agora, afinal, já não passa, como Razão, por um fazedor da forma e, com esta, da história, mas por um ser que se limita a debater-se e a fazer bricolagem com as constelações da respectividade ahistórica. E é apenas neste contexto da redução e do desarmamento teórico que se encontra (cada vez menos) uma análise crítica do sexismo, do racismo, etc.

Há aqui um certo ponto de contato das teorias pós-modernas e pósestruturalistas com Adorno, ainda que se trate de tudo menos uma coincidência de posições. Afinal também Adorno não tinha invocado o sujeito do valor na sua ênfase original, tendo-o apenas recuperado como portador da emancipação para, ao mesmo tempo, o denunciar como portador da destruição do mundo pela lógica identitária. Este sujeito burguês já aparado assemelha-se de certo modo ao sujeito pós-moderno, pelo que não é por acaso que o Foucault tardio pôde referir-se positivamente à teoria de Adorno. Se, no entanto, em Adorno, a aporia deste sujeito se manifesta com toda a acuidade dolorosa, os animadores pós-modernos e pós-estruturalistas do sujeito pretendem, de certo modo, trocar pragmaticamente as voltas a esta aporia.

Não é por acaso que neste contexto se afirmou o conceito de "jogo". O "jogo dos sinais" é, ao mesmo tempo, o "jogo dos sujeitos" que já não o são; tratase, por isso, mais de um "jogo com o subjetivo", que já não é concebido como uma autoconsciência social generalizada. No entanto, esta concepção de jogo não tem, por isso mesmo, nada de emancipatório contra o rigor burguês da relação do valor e da dissociação, apesar de tudo cegamente pressuposto, limitando-se a indicar como o sujeito burguês, ao regressar desarmado e reduzido, é tomado pela demência senil e se torna infantil. Justamente porque já não pode nem quer pensar o rigor da forma do fetiche e dos seus imperativos repressivos, agora concede a si próprio o direito à falta de seriedade. O jogo ao eterno texto e com o eterno poder, que já não tem um nome histórico, limita-se à fenomenologia das coisas, à postura da pessoa como máscara do valor. A máscara do sujeito do valor, que se transformou em rosto, empreende um baile de máscaras secundário, no qual, piscando o

olho, simula a soberania em tempos imaginada, quando, na realidade, já está sempre com um olho posto no contexto comercial.

Não é de modo algum por acaso que todas teorias do "pós" recorrem ao filão romântico-irracionalista e existencialista da história das teorias burguesas, nomeadamente a Nietzsche e a Heidegger. O momento subjetivista, no entanto, já não é colocado em oposição aparentemente exterior ao objetivista, sendo antes logo mesclado com este. O superpoder da objetividade como "sistema" e "estrutura" já está reconhecido e pressuposto, o subjetivismo do sujeito burguês regressa apenas sob uma simples forma reduzida. Por isso desaparece também a heroicização da própria miséria da forma (cada vez mais aceite como intransponível); o que resta é a sua estetização (pós-moderna). Dissociada da mistificação e da equivocidade das épocas da história da imposição, esta autoestetização do sujeito do valor no final do seu desenvolvimento já só pode constituir uma autoestilização superficial, que apresenta por igual as marcas do tédio e do medo.

O que este jogo tem de jocoso é apenas a falta de independência face ao cego movimento objetal do sistema, porque no restante os jogadores ao sujeito evidenciam uma crescente obstinação, que já não é minimamente adequada às suas atividades coletivamente suicidárias: quanto mais irreais são o sujeito e a sua vontade, tanto maior a obstinação. O que o jogo dos bailes de máscaras é suposto ainda conter, em termos de possibilidade de ingerência e de mudança social, parece bastante irrisório, mesmo na própria terminologia dos teoremas do "pós": Aí, já se fala apenas de uma "deslocação" dos componentes do texto e das constelações do poder, enquanto o todo social desconceitualizado continua tabu. Mas até a ideia já modesta de uma simples deslocação das pedras, no "jogo" das estruturas constituídas pelo valor, tem de parecer exagerada e até arrogante, face às "possibilidades de intervenção" realmente remanescentes. Quanto mais os teoremas do "pós" tagarelam sobre um sistema "anarquicamente aberto", mais inevitavelmente o totalitarismo da forma do valor se adensa em crise.

O feminismo, seguindo fiel e bem comportado as pegadas do mundo científico e teórico oficial, masculino e académico, em grande parte

acompanhou o desenvolvimento do estruturalismo para o pós-estruturalismo. Como, na falta de uma concepção crítica da relação de valor ou do sistema produtor de mercadorias, também não se pode conseguir uma concepção suficiente da relação de dissociação, a análise teórica do sexo social continua igualmente limitada ao nível das manifestações empírico-sociológicas (e a dissociação, ao nível da estrutura e do signo) como todas as outras abordagens; e representada na falsa e ahistórica ontologia do poder e do texto, na qual tem de continuar escondida a verdadeira causa lógico-histórica da assimetria sexual na modernidade.

A mera desconstrução do sexo ao nível semântico, que tomou o lugar da emancipação das coações do sexo, cai assim na aleatoriedade geral do "jogo" pós-moderno, sob a capa tabuizada da relação de valor e dissociação; a superficialidade habitual das pretensões de uma "deslocação" das constelações no texto do poder apresenta-se, especialmente sob este aspecto, literalmente como um baile de máscaras dos signos sexuais (por exemplo na teoria tornada moda de Judith Butler). Precisamente porque a relação de dissociação constitui a relação total generalizada da socialização do valor, evidencia-se com especial clareza na questão sexual o carácter decadente e reduzido do sujeito "retornado" na ideologia pós-moderna, que já nem a si mesmo se leva a sério.

19.

Com o pós-estruturalismo, esgotou-se definitivamente a história da teoria marxista-burguesa vinda da ideologia do iluminismo; tal como a capacidade de reprodução social do moderno sistema produtor de mercadorias e das formas nele incluídas da subjetividade do trabalho, da circulação e do direito. Os pensadores contemplativos já não podem continuar a pensar, porque os pragmáticos não podem continuar a agir. O que ainda se pode seguir ao baile de máscaras secundário pós-moderno das máscaras de carácter do valor literalmente encarnadas já não é qualquer outra reflexão conceptual, capaz de ir mais além. Por maioria de razão é impossível, seguindo afirmativamente esta história das teorias, pensar e copensar de modo realmente novo aquilo que

saltou fora da lógica identitária e não se enquadra na respectiva conceitualidade.

O que, como grito de guerra de Lyotard, parecia evocar de novo o espectro da emancipação ("guerra à totalidade, ativemos as diferenças", etc.), teve de acabar numa miserável capitulação, perante o pano de fundo de uma teoria estrutural ontológica, desde sempre sem conceitos, sem história e sem sujeito. Se já nem pode ser pronunciado o nome do todo, como algo historicamente devindo, a palavra de ordem da "guerra à totalidade" não passa de uma impostura. Nem o princípio real repressivo da forma fetichista do valor é atacado, nem é descoberto e tido em conta o que das coisas e relações não se enquadra no totalitarismo desta forma. Em vez disso, apenas são ativadas aquelas "diferenças" que não passam de múltiplas manifestações do todo negativo, do "um" secularizado da ontologia capitalista. O que assim é ativado, apesar de todas as intenções de crítica do poder, acaba por dar num revestimento culturalista da concorrência de crise e aniquilamento.

Teoricamente, já estamos apenas perante um prolongamento exausto e sem ideias das teorias "pós", nos diversos campos mediáticos e acadêmicos do editorialismo, da sociologia, da politologia, etc. Para lá da história das teorias modernas, o jornalismo e a ciência académica já não podem formular qualquer pretensão própria, vendo-se limitados à possibilidade de se servirem ecleticamente dos escombros de trezentos anos da história intelectual do Ocidente, para com eles remendarem as suas deploráveis cabanas intelectuais, na era final e glaciar do pensamento moderno. Fórmulas tautológicas e vazias, como as de uma "modernização da modernidade" (Ulrich Beck) ou de uma "democratização da democracia" (Helmut Dubiel), relevam de uma já inexcedível falta de conteúdo, em tudo semelhante à que tomou conta da chamada política há muito tempo. Nos insípidos e aborrecidos discursos de uma "ética pragmática" totalmente inconsequente (comunitarismo, sociedade civil, etc.), que se vão arrastando como produtos de decadência do positivismo, o esvaziado conceito burguês de racionalidade dá voltas e mais voltas sem o menor sentido.

O lugar da reflexão é tomado cada vez mais pela "ajuda prática" intelectual ao sujeito do valor dessubjetivado, que se vai desgastando na concorrência universal. E, depois de a forma contrária imanente, romântico-existencialista, do pensamento dominado pela moderna constituição fetichista se ter dissolvido na indiferença pós-moderna, ela converte-se num igualmente eclético esoterismo barato. Visto tudo ser, de qualquer forma, igual ao litro, os produtos finais pouco apetitosos da racionalidade e da antirracionalidade jazem pacificamente lado a lado, nas prateleiras do supermercado discount intelectual. O pragmatismo racional do valor e o espiritismo supersticioso vãose entrosando, porque não passam um sem o outro.

Quando o analfabetismo intelectual secundário, que gaguejando apregoa a eternidade e inevitabilidade do mercado mundial, invoca o iluminismo, fá-lo com todo o direito, porque se trata de fato do estado atual do iluminismo e simultaneamente do seu estado final. Por um lado, esta invocação assume traços nostálgicos, por exemplo quando um pensador dos EUA, que apenas dá nas vistas por ser especialmente tagarelas, reclama o "segundo iluminismo" (Neill Postman), a fim de curar a ainda assim constatada estupidez mundial burguesa atual com a sua própria raiz. Por outro lado, face aos acontecimentos de crise crescentemente catastróficos, a frase iluminista é expurgada de qualquer conteúdo e transformada na professada idolatria do aparelho de dominação democrático. Assim, um fanatismo regressivo e autista acaba por se substituir ao charlatanismo intelectual dos agitadores e curandeiros ecléticos tardo e pós-iluministas.

A vulgaridade do alarido em torno dos valores ocidentais torna-se militante. Assim, um filósofo bombista democrático francês reclama a "guerra pelo iluminismo" (Bernard-Henri Levy), com o que estabelece o padrão para toda a antiga "intelligentsia" de esquerda, que se vai engasgando com as vagens ocas das palavras da sua história intelectual, para as vomitar sobre o mundo na forma de chuva exterminadora. Na "guerra santa", na cruzada contra os monstros por ele próprio criados, num mundo por ele próprio devastado e barbarizado pela via do terror econômico, o não-espírito esclarecido já só pode assumir a forma de caças-bombardeiros dos EUA.

20.

Com cada nova leva da crise mundial capitalista, que já não será estabilizada por qualquer novo modelo de regulação, antes deixando o sistema mundial ingressar no século XXI em queda livre, os enunciados teóricos, mediáticos, políticos, sociais, etc. vão-se tornando cada vez mais monótonos e monossilábicos. No fim do mundo a prestações da ontologia capitalista, o "um" metafísico secularizado, o nada divino do valor, consegue uma "coincidentia oppositorum": coincidem de imediato não apenas a direita e a esquerda, ou o progresso e a reação, mas, de um modo geral, o ser e o nada, a razão e a irracionalidade, a crítica e a afirmação.

Uma vez que a crítica iluminista era na sua essência a autoafirmação da destrutiva forma burguesa do sujeito, através do seu processo de desenvolvimento histórico, ela extingue-se de fato diante dos nossos olhos, juntamente com o seu objeto. Na mesma medida em que todo e qualquer pensamento se retira em fuga desordenada para a derradeira e extrema linha de resistência da filosofia iluminista, ele deixa de existir de todo como pensamento. No entanto, o espetáculo de uma redescoberta militante dos valores ocidentais, como se nunca tivesse existido a história da reflexão, apegada ao seu objeto, dos últimos cento e cinquenta anos, nada tem de trágico, nem sequer de ridículo; é pura e simplesmente nojento.

O que, ao mesmo tempo, se afirma nesta última metamorfose, que dá à luz o monstro violento da autoaniquilação democrática global, é a "necessidade ontológica" do sujeito burguês, que já apenas se faz ouvir sob a forma de um ganido inarticulado e maligno e que, após a sua morte natural, continua a assombrar o mundo como zumbi do iluminismo – em especial nos casos dos supostos críticos da ontologia em geral, tanto adormistes como pósmodernos, na medida em que se passaram para as fileiras da comunidade da aniquilação mundial ocidental e democrática. Quando começa realmente a oscilar o terreno ontológico, sobre o qual ainda se conseguia aguentar a crítica aparente da ontologia, incapaz de se libertar da forma do sujeito burguesa, evapora-se, nos idiotas históricos da modernização, a reflexão apenas adquirida pela leitura. O desplante denunciatório, com que é exigida a

homenagem ao cadáver já nem sequer malcheiroso do pensamento iluminista, desvenda a sua própria falsidade.

Agora a salvação já só pode ser encontrada se de fato descartarmos a falsa ontologia positiva da modernidade e da sua forma do sujeito e queimarmos os navios, porque não pode haver qualquer regresso à segurança e à terra natal ontológicas do iluminismo. A negatividade da crítica emancipatória apenas chegará ao fim quando abrir mão desta ilusão.

Original alemão: BLUTIGE VERNUNFT. 20 Thesen gegen die sogenannte Aufklärung und die „westlichen Werte" in Krisis 25 (6/2002). Junho de 2002. Tradução de Lumir Nahodil, revista por Boaventura Antunes.

ONTOLOGIA NEGATIVA Os obscurantistas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade "Se o fosse de todo, a ontologia seria possível sob um ponto de vista irónico, como o suprassumo da negatividade... Se quiséssemos esboçar uma ontologia e, ao fazê-lo, ater-nos ao fato fundamental, cuja repetição faz dele uma invariante, o resultado seria o horror...; bom é tão-só o que escapou à ontologia". Theodor W. Adorno, Dialética Negativa

A libertação tem de ser repensada. Após o fim do marxismo e do socialismo do movimento operário, não resta dúvida de que quanto a este postulado abstrato existe um consenso entre a maioria das teóricas e dos teóricos de esquerda que ainda continuem a querer sê-lo. No entanto, mal se trate de definir o novo, que é o que se supõe estar em causa, este não se revela apenas regularmente como o velho em traje novo, mas, antes de mais, como o mais vetusto de entre o velho; nomeadamente, como recaída para o que antecede o marxismo, para o seio da Filosofia iluminista burguesa, em vez de uma tentativa de ir para além do marxismo.

É certo que já o marxismo do movimento operário em todas as suas variantes, devido à sua forma do sujeito e do interesse, estritamente associada ao moderno sistema produtor de mercadorias, se manteve apegado ao pensamento burguês do Iluminismo; no entanto, ao mesmo tempo, ele não deixou de o criticar como sendo burguês, mesmo que fosse apenas de um modo restrito ao prisma da sociologia de classes, sem se aproximar de uma crítica categorial da Modernidade. Adorno, com a sua teoria transitória, até chegou, por momentos que fosse, a ir para além desta limitação abandonando o quadro de referência sociológico ("classista") e criticando o carácter do Iluminismo no que diz respeito à sua lógica identitária e autodestrutividade sem, contudo,

conseguir levar esta crítica até ao fim. É precisamente o mesmo que tem de ser feito agora, mas é precisamente a esta tarefa que toda a gente recusa sujeitar-se. Venham da estrebaria de esquerda que vierem, os que até à data foram os portadores da crítica de renome recuam perante este problema-obstáculo como cavalos que tomaram os freios nos dentes. E, no seu pânico cavalar, todos eles galopam de volta ao século XVIII, como se nem sequer tivesse existido a redutora crítica marxista do pensamento iluminista. Numa azáfama febril debitam-se as frases feitas mais decrépitas da constituição capitalista, como se fossem as mais recentes descobertas empolgantes da crítica radical do capitalismo. Há algo de lúgubre na forma como os resquícios da intelligentsia de esquerda competem com os arautos do capitalismo de linha dura, para saber quem consegue apregoar mais alto os tópicos essenciais da ideologia do Iluminismo, que já há muito tempo se tornaram insípidos e absurdos. Em que poderá ainda consistir o debate se dos dois lados se ouvem as mesmas palavras de ordem? Pelos vistos já não se trata de nada de fundamental, mesmo que a crise mundial do sistema produtor de mercadorias se encontre, ao mesmo tempo, em plena efervescência e com tendência a alastrar.

Seja como for, não é assim que se repensa a libertação. Em primeiro lugar, um pensamento que queira adequar-se a esta tarefa tem de libertar-se a si próprio do assim chamado Iluminismo. Tal não será possível da noite para o dia, mas nesse caso simplesmente serão necessárias duas, três, muitas tentativas. Em vez de continuar a papaguear irrefletidamente os conceitos do pensamento iluminista sedimentados nos edifícios teóricos modernos, a crítica tem, antes de mais, de os virar de pernas para o ar, tem de sacudi-los e atirá-los para a lixeira da história intelectual.

O indivíduo abstrato no uniforme da chamada subjetividade

O pérfido carácter fanático da ideologia iluminista afirma-se precisamente no fato de ela enaltecer permanentemente a "autonomia" e "liberdade" do "indivíduo" reclamando-as exclusivamente para si. Esta apoteose burguesa do individualismo, pela qual ainda se deixaram levar Adorno e os posteriores adeptos de uma pretensa ortodoxia adorniana, pelo menos no que faz dele um "ideal" burguês, foi sempre legitimada de uma forma dupla: por um lado, contra a totalidade das sociedades agrárias de um contexto pré-moderno que eram sumariamente desqualificadas; por outro lado, contra o próprio absolutismo burguês dos primórdios da Modernidade, assim como contra os regimes totalitários de estado da história da imposição do capitalismo do século XX.

Ao mesmo tempo que as formas do fetiche pré-modernas são denunciadas, na ideologia iluminista ideologicamente agudizada, a priori e sem qualquer investigação concreta, como o horror puro e duro de um "apego à natureza" supostamente total, elas evidenciam-se sob a forma da estrutura da sociedade similar à de uma torpe manada de gado que não teria admitido qualquer laivo de individualidade. Esta ideia caricata serve única e exclusivamente para desviar as atenções do fato de a própria máquina produtora de mercadorias ainda ser uma sociedade fetichista e, mais concretamente, a primeira de cariz totalitário, cuja pretensão justamente imprime aos indivíduos, com uma violência nunca antes vista, uma forma única: o "uniforme" do sujeito do trabalho, do dinheiro e da concorrência.

A individualidade existiu em todas as sociedades históricas, uma vez que uma relação do ser humano particular para com uma forma social já se encontra estabelecida à partida com a segunda natureza e, daí, coincide com a humanização. Por isso, o ser humano particular também tinha de ser percepcionado enquanto tal, tendo os seus espaços de manobra, mesmo que essa individualidade se exprimisse de formas diversas, consoante a mediação com relações de fetiche diversas

da constituição social. A tensão entre o indivíduo e a sociedade pode, por isso, ser comprovada em qualquer parte pela respectiva expressão cultural. Até a expressão "indivíduo" é, afinal, proveniente da Antiguidade clássica (não constituindo, de modo algum, o protótipo do conceito moderno da individualidade); da mesma forma, o conceito do ser humano particular (individuitas) apresenta-se sob formas múltiplas nas civilizações agrárias da assim chamada Idade Média. O mesmo também se aplica às sociedades pré-modernas extraeuropeias, mesmo que ali a individualidade se manifestasse sob formas ainda outras que muitas vezes não eram visíveis ao olho ocidental, fixado na sua própria constituição.

O que a ideologia do Iluminismo faz passar pelo conceito único do indivíduo, reclamando-o para si ou, então, para a Modernidade capitalista, é sem dúvida o "Eu" abstrato, ou seja, a forma especificamente moderna da individualidade abstrata. Neste sentido, "indivíduo" significa já a forma sob a qual os seres humanos particulares são pensados como sendo imediatamente idênticos com a relação social compulsiva: nomeadamente, como seres socialmente separados, societariamente atomizados que (em última análise, até à própria esfera da intimidade) já apenas são capazes de se mediarem mutuamente através da forma de relação coisificada e morta do dinheiro. Esta forma, porém, remete para que tenha sido dada aos indivíduos reais, sensíveis, necessitados e sociais uma margem de manobra maior face às sociedades pré-modernas, meramente sob a forma de uma amarração ainda mais inexorável ao fetichismo moderno e coisificado. Os indivíduos apenas podem atuar de um modo crescentemente independente da família, do clã, da condição social, da relação de fidelidade pessoal, porque na sua existência imediata se encontram condenados a serem o órgão executivo do movimento do fetiche geral: precisamente porque a máscara de carácter da forma social, relativamente solta no passado, se fundiu com a cara.

O aparente alargamento do espaço de manobra na Modernidade constitui, portanto, ao mesmo tempo um extremo estreitamento. Este até foi originalmente sentido como tal, pelo que a sua imposição, desde

a história europeia da constituição da Modernidade, nos séculos XV e XVI, até aos retardatários históricos que foram os regimes da "modernização a posteriori", em pleno século XX, apenas foi possível, contra resistências prolongadas e insurreições sangrentas das pessoas, com base em formas de violência estatal e burocrática. Assim sendo, as situações de coerção absolutistas e, mais tarde, totalitárias de estado, não constituem, de forma alguma, o oposto exterior do indivíduo moderno “livre” e “autônomo”, mas, longe disso, o seu próprio invólucro compulsivo. A autonomia e a liberdade referem-se única e exclusivamente ao espaço interno da relação de valor e dissociação, em que o indivíduo já se encontra abrangido pela forma do fetiche, não lhe sendo lícito qualquer desvio que seja. No molde da individualidade abstrata, o absolutismo social da forma e a existência real e sensível do indivíduo humano parecem coincidir de forma imediata.

Deste modo, os indivíduos modernos são destituídos de toda a sua originalidade: eles ameaçam transformar-se em meros "exemplares" da forma do valor, em "seres humanos de confecção". Quanto mais estridente se torna o discurso da maravilhosa "individualidade" moderna e ocidental, mais os seres humanos particulares tornados realmente abstratos se assemelham uns aos outros como um ovo se assemelha a outro, até à postura exterior e mesmo até aos pensamentos e sentimentos, que são comandados mecanicamente pelas modas e pelos media, em conformidade com as conveniências do fetiche da valorização.

Sob este prisma é evidente que a individualidade moderna e abstrata não representa, de modo algum, uma fase de transição "necessária" e "progressiva" no processo da libertação da individualidade humana de situações de um constrangimento social irracional. Antes pelo contrário, trata-se de que o carácter obrigatório da relação do fetiche chegou a colar-se à própria pele dos indivíduos. O espaço de atuação da "liberdade" burguesa deve-se essencialmente a uma ilusão óptica que deriva precisamente do fato de, contrariamente à situação prémoderna, o verdadeiro indivíduo e a sua forma social serem definidos como quase idênticos. O que pode dizer-se em termos gerais sobre a

Modernidade e a sua ideologia iluminista muito mais se aplica à individualidade abstrata moderna. Esta não constitui um fundamento positivo alcançado de uma vez por todas e a partir do qual se pudesse continuar a improvisar rumo à libertação (supostamente apenas "inacabada") do indivíduo mas, antes pelo contrário, faz parte do monte de entulho do campo de ruínas global do capitalismo que tem de ser desbastado e removido.

Neste sentido, no entanto, também tem de se redefinir a relação do indivíduo real, sensível e social para com a sua forma social negativa, relação esta que ficou obscurecida na constituição moderna da individualidade abstrata. Desde o Iluminismo, as teorias modernas da sociedade definem os conceitos do indivíduo e do sujeito como sendo em grande medida sinónimos. Este modo de encarar as coisas corresponde exatamente a essa ilusão óptica em que a forma do fetiche e a individualidade parecem quase idênticas, de modo que a individualidade, de forma geral, apenas passe a ser considerada existente no âmbito da Modernidade produtora de mercadorias. Na realidade, o sujeito não é outra coisa senão a forma que a relação de valor impõe aos indivíduos autênticos (reconhecendo esta forma do sujeito às mulheres, devido à relação de dissociação, apenas parcial e condicionadamente). O sujeito não é mais que o portador consciente (tanto individual como institucional) do movimento de valorização sem sujeito.

Mesmo assim, o indivíduo real, também na Modernidade, acaba por não se resumir por completo à sua forma social obrigatória de fetiche. Esta forma, porém, afinal é precisamente a forma do sujeito: Não o é, porventura, no sentido de se tratar de uma definição ontológica suprahistórica, correspondendo à forma moderna do sujeito outras formas do sujeito em sociedades anteriores; antes foi somente a moderna socialização do valor que produziu, de todo, a "forma sujeito"

É bem possível que nas antigas civilizações agrárias se detectem formas correspondentes de relações humanas face à natureza e à

sociedade (o que teria de ser deixado a cargo de investigações mais detalhadas), visto que sem dúvida qualquer sociedade humana, contrariamente aos agrupamentos correspondentes entre animais, produz uma relação de consciência ativa para com os objetos que integram o seu mundo. No entanto esta, tampouco como outras definições formais societárias, não pode ser projetada retroativamente a partir da realidade e do sistema conceptual correspondente do moderno sistema produtor de mercadorias para a totalidade da História humana. Afinal é precisamente nisso que consiste a ontologização por parte da teoria iluminista das definições fundamentais apenas produzidas pela moderna relação do valor e da dissociação. Antes do século XVI não existia nem trabalho, nem economia, nem estado, nem política, e muito menos um sujeito (estruturalmente "masculino"): estes termos foram em parte inventados de raiz e, em parte, totalmente revolucionados quanto ao seu significado; e talvez tal tenha sucedido da forma mais evidente com o conceito da subjetividade.

Encaradas assim as coisas, não é ao conceito de sujeito mas, antes de mais, ao de indivíduo que assiste, de certo modo, um carácter suprahistórico. No entanto, tal não acontece, porventura, no sentido de um substrato imutável, de uma "essência" ontológica que se encontre oculta sob as sucessivas camadas históricas. A individualidade nunca existe por si só, mas sempre apenas com relação a uma forma social. É que só se pode ser individual enquanto ser social. Assim sendo, a individualidade não significa outra coisa senão a tensão entre os seres humanos particulares reais e sensíveis e a forma social que se encontra plasmada a fogo no interior dos mesmos, a "brecha" vivida com sofrimento, a falta de encaixe das necessidades e sensações dentro dessa casca obrigatória. Através de múltiplas formações volta sempre a transpirar o que esta contradição tem de tormentoso, de doloroso, de impertinente, enquanto a sociedade for dominada por cegas formas de fetiche, em que os indivíduos não se põem de acordo enquanto tais para formarem uma sociabilidade consciente de si própria mas, por assim dizer, como que numa espécie de transe da objetivação por eles próprios produzida, atuam de uma forma irracional e destrutiva no sentido das suas próprias necessidades e possibilidades.

A possível "associação de seres humanos livres", assim designada por um Marx cheio de pressentimentos, seria, portanto, definida com mais precisão como uma "associação de indivíduos livres", isto é, uma sociedade de indivíduos que se medeiam conscientemente a si próprios na sua relação social e natural e que se livraram da sua pele obrigatória da segunda natureza. No entanto, é precisamente esta libertação que não pode, de modo algum, construir-se sobre a individualidade abstrata do Homem produtor de mercadorias, que é justamente a escravizante forma do sujeito dos indivíduos modernos, na qual eles se torturam tanto a si próprios como uns aos outros. O "Eu" abstrato da Modernidade constitui a forma da violência das condições do valor e da dissociação, extremas em termos históricos e totalitárias, em que o sofrimento e a insolência se agudizam até ao limiar do insuportável.

Com isso, no entanto, apenas se torna nítida toda a crítica social elaborada até à data, que tencionava alcançar a "libertação" logo através da "subjetividade", no que toca à dimensão mais profunda da sua estreita associação ao sistema da sociedade do valor e da dissociação. A subjetividade não é o modo da libertação mas, pelo contrário, a forma do agrilhoamento do indivíduo. Ao encararem-se como sujeitos, os seres humanos já se encontram apanhados na dialética sujeito-objeto da constituição moderna do fetiche.

Também aqui estamos novamente perante uma ilusão óptica: O sujeito apresenta-se como contrário do objeto e, com isso, supostamente da objetivação pelos poderes anónimos da forma social, de modo que a subjetividade é invocada contra a coação por eles exercida. Esta perspectiva superficial não se compenetra de que a relação de fetiche moderna pode mover-se unicamente em opostos polares que, ainda assim, designam uma identidade negativa. Assim sendo, o sujeito apenas entra em contradição com a objetividade na medida em que aquele representa a voz ativa própria desta, meia consciente e meia inconsciente, que é necessária justamente porque esta objetividade nem sequer existe enquanto uma existência material "fora" da consciência dos indivíduos (pensamento e ação estão coisificados, não sendo, no entanto, "coisas" independentes dos indivíduos). São-no, e

ao mesmo tempo não o são, na medida em que necessariamente não se resumem a isso. Só por isso é que a sua própria forma de percepção, conhecimento e atuação pode vir ao seu encontro nos seus resultados como um poder alheio, aparentemente exterior. Esta forma é precisamente a forma do sujeito (a "forma sujeito") em que elas executam a coação da relação de fetiche. A dialética sujeito-objeto não é outra coisa senão o circuito da agregação em que os indivíduos se alienam de si próprios pela sua própria atuação, constituindo, em degraus cada vez mais altos da escada do desenvolvimento, um resultado que os domina, acabando por aniquilá-los a eles próprios, sob a forma de uma objetividade aparentemente exterior.

Classes e lutas de classes como meras formas da subjetividade burguesa

Por ironia, foi precisamente o marxismo que, sem querer e, no fundo, de forma traiçoeira resumiu esta moderna dialética entre sujeito e objeto, e fê-lo de um modo positivo e afirmativo em vez de crítico. O proletariado, na versão marxista da ideologia iluminista, é a clássica coisa sujeito-objeto, a forma pura da consciência burguesa; e não o é tão-só na famosa formulação de Lukács que quis compreender a "classe" como o "sujeito-objeto" da história. De fato, a forma da consciência, amarrada à forma do valor, tal como ela se exprime nos interesses constituídos formas, é invariavelmente as duas coisas ao mesmo tempo: objeto ou existência objetivada anterior a toda a reflexão própria; um ser que cegamente já dá consigo próprio numa determinada forma que não é refletida enquanto tal e que nem sequer é percepcionada como distinta – e, por outro lado, portador consciente de ações inserido em precisamente essa forma.

É nesta medida que este ser social ou sujeito-objeto existe "em si", ou seja, de forma objetivada e independente da sua própria consciência individual. Ao seguir os seus interesses constituídos forma, ou seja, ao percepcionar o mundo, ao pensar e atuar em consonância com a sua forma objetivada, torna-se "para si", ou seja, "consciente"; mas

justamente apenas no sentido daquilo que já objetivamente é "em si". Trata-se precisamente da realização social e ideológica dessa reflexão hegeliana da socialização do valor, em que esta descreve o movimento do espírito do mundo a vir "a si", ou seja, do valor que se valoriza a si próprio (que é a divindade secularizada e coisificada da Modernidade) como contexto sistémico processante. Marx não só andou a namoriscar o estilo hegeliano, o que ele próprio admitia, como, com a sua concepção de um desenvolvimento da consciência proletária de uma "classe em si" para uma "classe para si" desmistificou o aparente movimento espontâneo da forma do valor a um nível meramente "materialista" sem, no entanto, poder criticá-lo nesse ponto. Por isso, a teoria das classes faz parte, antes de muitos outros, dos componentes da reflexão marxista que se encontram estreitamente associados ao fetiche do valor e à correspondente teoria iluminista.

Daí também se torna compreensível que a deplorável "procura do sujeito" da esquerda radical após a segunda guerra mundial apenas possa ter acabado no ridículo, uma vez que ela não compreendeu o nexo lógico da dialética do sujeito-objeto. Se o marxismo ocidental ainda queria invocar a "subjetividade proletária", a nova esquerda prosseguiu com uma série de sucedâneos para o sujeito-objeto em pleno desvanecimento (grupos marginais, mulheres, subsistência etc.) sem alguma vez conseguir sair do apego à forma da consciência constituída na relação de valor e dissociação: Sempre se andou à procura do sujeito precisamente por intermédio da questão da sua definição "objetiva", sem se reparar que tal constituía um paradoxo, que desmentia a priori a própria pretensão de libertação; e que se tratava de uma definição que, embora fosse "certa", apenas o era enquanto descrição (tão inconsciente quanto afirmativa) da relação de fetiche.

A procura do sujeito nem poderia ter sido outra coisa senão a procura desesperada do ponto, algures no infinito, onde se cruzam duas linhas paralelas: a procura de uma "objetividade" logicamente impossível da libertação, ou seja, justamente de um sujeito-objeto suposto de conduzir para além da objetivação negativa, embora ela própria não

passe disso mesmo. Esta paradoxal "teoria da libertação", que corresponde ao sujeito da dissociação masculino e dotado de uma lógica identitária, não podendo aspirar a ser mais que um reflexo da lógica do sistema, permanece até hoje fixada na meramente aparente oposição imanente entre o sujeito e o objeto, ou seja, na objetivação, ao passo que a única abordagem do problema capaz de rebentar o "espartilho de ferro" teria de partir de uma meta-perspectiva, ou seja, assumir um ponto de vista exterior à problemática: então, a crítica radical não significaria porventura querer mobilizar o sujeito (ou um determinado sujeito-objeto predestinado) contra a escravizante objetivação mas, antes, mobilizar, através da "brecha" existente nos indivíduos reais, a "individualidade organizada", que vai ganhando consciência do fato de não se encaixar nas, nem se reduzir às, formas do fetiche, contra a compulsiva relação sujeito-objeto da constituição moderna da forma.

O desmoronamento da subjetividade moderna em todas as suas variantes sociais, face ao peso esmagador da objetividade destruidora do mundo que ela própria produziu, mostra quão insustentável se tornou a coisa chamada sujeito-objeto, que constitui a destrutiva forma de movimento do moderno sistema produtor de mercadorias. Mas é precisamente devido ao fato de a libertação do mesmo não poder ser, por seu lado, de cariz "objetivo" que ela não pode tampouco ser levada a cabo na forma do sujeito. Enquanto os indivíduos continuarem a deixar-se amarrar à forma do sujeito, eles não poderão alcançar senão a própria perdição.

A igualdade para a morte: a universalidade negativa da forma jurídica como mecanismo de seleção

O mesmo que se aplica ao conceito da individualidade pode também constatar-se quanto ao conceito da universalidade. Também a este respeito, a ideologia iluminista, juntamente com as suas objetivações, tem de ser destruída por, de forma fundamental, não corresponder à verdade nem comportar qualquer espécie de essência emancipatória.

Tal como a individualidade moderna é associada, desde as palavras de ordem da Revolução francesa, à "liberdade" (autonomia), o moderno universalismo ocidental é associado à "igualdade". A ideologia da igualdade sugere o igual reconhecimento sem restrições de todos os indivíduos como "seres humanos enquanto tais", portadores de direitos inalienáveis (originalmente resumidos pelo termo "direito natural") que devem refletir-se tanto nos "direitos humanos" universais como na forma dos sistemas jurídicos nacionais. Como é sabido, é precisamente disto que se reclama o presente imperialismo ocidental dos direitos humanos, e mais do que nunca, para justificar as suas atrocidades globais.

Mas, tal como a tanto invocada individualidade não é outra coisa senão o "Eu" abstrato, o indivíduo meramente abstrato e encerrado na moderna forma do sujeito que é a do valor, o universalismo ocidental moderno não passa de um conceito abstrato e, assim sendo, negativo. Tal como os indivíduos apenas são "livres" e "autónomos" na medida em que tomam as suas decisões no âmbito da forma capitalista, mantendo-se compatíveis com a "necessidade" da cega valorização do valor e as respectivas leis pseudonaturais, eles apenas são "iguais" na medida em que se encontrem igualmente submetidos à forma do valor, sendo sujeitos da sua realização. O "ser humano enquanto tal" é o Homem meramente abstrato; o Homem, na medida em que pode ser sujeito do valor. É apenas a isso que se reporta o seu "reconhecimento" enquanto Homem, e é apenas neste sentido que ele pode possuir "direitos do Homem" universais e ser um sujeito jurídico no âmbito de estruturas estatais. Daí decorre que no exterior disso, ou seja, fora do implacavelmente limitativo universo da forma do valor, ele deixa de ter qualquer semelhança com um ser humano, vendo-se reduzido ao patamar dos animais ou da vil matéria. A capacidade legal geral e, por extensão, também a referente aos direitos humanos, encontra-se assim vinculada à capacidade de valorização, de trabalho, de venda, de financiamento ou, por uma palavra: à "rentabilidade" da existência que, para qualquer outro efeito, é declarada "objetivamente" nula.

Como a socialização do valor por si só, com a sua negatividade e com a concorrência universal que institui, não se conseguiria reproduzir nem por um dia, ela teve de desmentir a sua própria universalidade já pela relação de dissociação de contornos sexistas que lhe é própria. É por isso que o sujeito legal, mesmo o dos direitos humanos, é à partida exclusivamente masculino. Embora, na maior parte dos estados, se tenha imposto a equiparação jurídica e em termos de cidadania das mulheres em relação aos homens, esta apenas tem um sentido real na medida em que elas constituem sujeitos do valor, ao passo que os momentos dissociados exteriores à universalidade, que continuam a ser definidos como "femininos", permanecem em grande medida exteriores a qualquer ordem jurídica ou se subtraem à forma do direito do universalismo abstrato e a reduzem ao absurdo. Em numerosos casos particulares, regulamentos de pormenor, detalhes, assim como no que "não está escrito" nas entrelinhas (ou seja, no âmbito da capacidade de interpretação) volta sempre a emergir a capacidade legal diminuída das mulheres, onde o universo abstrato do valor esbarra com os truculentos momentos da realidade sensível que não lhe possam ser adequados por completo.

A socialização do valor necessita dos momentos dissociados para de todo poder existir no mundo sensível e social em geral, mas o seu abstrato universalismo da igualdade não quer admitir este fato. A promessa do universalismo jurídico ocidental dificilmente poderia ser mais sinistra: Trata-se da promessa de tornar todos os seres humanos "iguais" e de os "reconhecer" como assimilados à forma do valor, assim como de, à maneira de Procrustes, decepar-lhes tudo o que não couber dentro dessa forma. Mas como o mundo sensível, ao fim e ao cabo, nunca se deixa "igualizar" por completo nesta forma de universalidade negativa, a pulsão de morte e destruição do sujeito dessensibilizado não só conduz à destruição dos momentos dissociados necessários à sua própria reprodução como à destruição do mundo em geral. Só então, o mundo, homogeneamente destruído, se torna inteiramente livre e igual e universal.

O reconhecimento do Homem reduzido ao estado da subjetividade do valor é, por isso, idêntico ao seu fundamental não reconhecimento enquanto um ser que não se resume a esta última e que, ainda por cima, patenteia necessidades sensuais e sociais. A inclusão universal corresponde, ao mesmo tempo, a uma exclusão universal. Na medida em que os momentos, as coisas e os seres excluídos não deixam de ser necessários à vitalidade social, e a pulsão de morte do sujeito do valor ainda não se tenha desenvolvido plenamente, eles são dissociados, ou então são simplesmente ignorados ou mesmo aniquilados. O processo de reconhecimento do universalismo abstrato ocidental corresponde, assim, necessariamente a um processo de seleção e eliminação, e não é por acaso que este recorda o tão burocrático quanto bárbaro "processo de reconhecimento" dos requerentes de asilo que, como toda a gente sabe, na sua maioria são recusados. Também a associação com a rampa de seleção de Auschwitz de maldosa nada tem, cingindo-se a corresponder à essência da questão. Auschwitz foi apenas a variante mais extrema e brutal do "processo de reconhecimento" dos direitos humanos ocidentais.

Qualquer um tem o direito de ser um sujeito do valor, de vender-se a si próprio ou uma coisa qualquer etc. – mas apenas na medida em que for "apto" a tanto ou o for declarado; de outro modo, é menos que nada. Vamos reconhecer-te de tal maneira que te vai cortar a saliva e a respiração. Como um ser sensível e social precedente à forma do valor e do dinheiro, o Homem ainda não é de modo algum reconhecido per se por parte do universalismo do valor e do direito, não passando para já de um pedaço de natureza, um naco de carne. Os ideólogos iluministas ocidentais desde sempre fizeram de conta que os indivíduos saíam diretamente do corpo da mãe sob a forma "natural" do sujeito jurídico. Esta forma tanto tem de natural como um contrato de aluguer ou a cópia do projeto de um míssil intercontinental. Ela nem é natural, nem socialmente primária, constituindo antes uma forma secundária, derivada, da relação de valor enquanto relação de produção e de circulação.

Os ideólogos iluministas viraram a relação entre o sujeito do valor (no sentido restrito da relação de produção) e o sujeito jurídico do avesso. Na realidade, a capacidade de valorização passa a integrar a promessa "jurídica" de reconhecimento como condição tácita. É precisamente por isso que os indivíduos só se podem transformar em seres humanos e em sujeitos jurídicos após terem passado pelo crivo seletivo de um processo de reconhecimento, porque ainda não o são "em si", devido à sua existência física. O processo de seleção pode ser "objetivo" (funcionando em função das leis da valorização e da situação no mercado) e pode, ainda, ser praticado de forma "subjetiva" (ideológica, baseada em critérios de estado). As gritantes contradições da socialização do valor, com toda a sua irracionalidade e assimilação por uma ideologia assassina, concorrem tanto para este processo de seleção como a racionalidade intrínseca à economia industrial.

Por isso, o universalismo jurídico ocidental abstrato é, em princípio, tão compatível com a escravatura como com a marginalização ou o extermínio racista, antissemita ou nacionalista. Uma vez que entre a existência física e a capacidade jurídica enquanto sujeito do valor reconhecido se abre uma brecha sistemática, onde atua o processo de reconhecimento enquanto processo de seleção, esta existência física pode ser recusada ou adstrita a uma utilização diferente, tal como uma mercadoria não "reconhecida" pelo mercado e que se prova ser "supérflua" para o capitalismo.

Se os fundadores dos EUA consideraram a escravatura dos negros certa ou até conforme às leis naturais, e se o bastião da "freedom and democracy" deveu o seu arranque econômico ao trabalho escravo, tal não constituiu uma maior infração contra o universalismo ocidental abstrato do que o fato de os representantes da revolução francesa terem mandado esmagar a insurreição dos negros do Haiti com fogo de metralha, embora estes invocassem os princípios de igualdade da própria Revolução francesa. Os ideólogos, ou ingénuos, ou pérfidos, do universalismo ocidental, até aos Habermas e Companhia, interpretam estes fatos regularmente como mera inconsequência ("fruto da época") e como mero sinal de imperfeição do projeto universalista, visto

ignorarem sistematicamente o carácter de seleção prévia objetivosubjetiva do "reconhecimento".

Enquanto os negros apenas podiam encontrar um aproveitamento rentável enquanto objetos da valorização sob a forma da escravatura, para os negros dos EUA o processo de reconhecimento simplesmente acabava com um parecer negativo. A "libertação dos escravos", por outro lado, não sobreveio como consequência final de um princípio universalista que já reconhecesse em si a existência física, mas porque a escravatura se tinha tornado disfuncional para o processo de valorização nos EUA. Isto, no entanto, não é uma mera história evolutiva que para todo o sempre tivesse acabado com o estatuto do escravo. Nos dias de hoje, o processo global de valorização vai cuspindo cada vez mais "supérfluos" que, por isso, vão sendo continuamente selecionados e dizimados no posterior processo (permanente) de reconhecimento do universalismo abstrato. Da massa destes seres humanos objetivados como não-sujeitos, apenas físicos e já não "reconhecíveis", nascem novas situações de escravatura ou semelhantes à escravatura, se é que não são abandonados à miséria pura e simples e à morte por inanição.

Se lermos as cláusulas escritas em letra miúda, a suja simpatia dos lutadores ocidentais pela liberdade da atualidade não oferece aos marginalizados deste mundo quaisquer garantias de virem a ser reconhecidos per se na sua existência física. Antes, a promessa, em toda a sua profunda perfídia, limita-se a dizer: Estamos cheios de pena que vocês (possivelmente por culpa própria, ou porque não se esforçaram o suficiente e não adoptaram suficientemente os valores ocidentais etc.) tenham ficado excluídos da capacidade de valorização e, com ela, do universalismo do valor; e queremos fazer tudo o que esteja ao nosso alcance para que voltem a entrar, ou entrem pela primeira vez (se de futuro vos dominardes muito bem e agradecerdes todas as imposições como se de presentes se tratasse). Pois seria o máximo se todos os seres humanos no estado da maravilhosa subjetividade do valor (capacidade de trabalho e de se apresentar no

mercado) pudessem ser reconhecidos como portadores de direitos humanos inalienáveis.

No entanto isto, trocado por miúdos, também quer dizer: Se a reconstituição do vosso estatuto de reconhecidos será bem sucedida, é uma questão em aberto (talvez porque ainda não vos esforçais o suficiente para terdes parte dessa honra). As condições são para se cumprir. A promessa, por isso, sempre já constitui uma ameaça: Se a condição não puder ser satisfeita (e, para a maioria das pessoas, ela hoje já é "objetivamente" impossível de cumprir, mesmo que se esforcem até ao limiar do suplício), infelizmente, e creiam-nos que lamentamos imenso, também não pode haver lugar ao reconhecimento. O fim da existência já apenas física dos "supérfluos" como dano colateral do mercado mundial está à vista.

De resto, isto não se aplica apenas às "supérfluas" massas do terceiro mundo. Um périplo pelas instalações da segurança social alemã ou pelas autoridades de assistência social dos EUA é o suficiente para descortinarmos por onde passam os limites da capacidade ocidental e universalista de ser reconhecido como ser humano. A capacidade de ser um sujeito jurídico, aqui, ainda não se encontra eliminada por completo, porque estas pessoas ainda são referenciadas como "cidadãos", "eleitores" etc., continuando assim a constituir uma micropartícula do "soberano", do sujeito-objeto total ideal; mas esta capacidade legal mesmo assim já se encontra reduzida, como facilmente podemos depreender ao lidarmos com estes sujeitos menores do valor: estes veem-se cada vez mais reduzidos a um estatuto de menoridade, de já não plenamente imputáveis, de uma espécie de animais falantes ou ferramentas tornadas inúteis, de "selvagens" ou de crianças que são tratados por "tu".

Precisamente os EUA, enquanto única superpotência global rendida à "liberdade e igualdade" voltaram a criar, nos finais do século XX, sob as capas dos "jobs" (atividades miseráveis e relações de servidão pessoal) e da "execução penal", situações próximas da escravatura em

milhões de casos, em que o direito abstrato se converte bruscamente numa arbitrariedade terrorista. Os refugiados ou requerentes do estatuto de asilo, que frequentemente nem sequer são cidadãos de estado algum, mas "expatriados" sem passaporte, perdem por completo o estatuto de seres humanos por via da respectiva capacidade legal (para o que, de resto, já Hannah Arendt tinha chamado a atenção) e são tratados literalmente como animais, seja em relações de trabalho "ilegais", ou seja, despojadas de qualquer garantia jurídica, ou em campos de internamento similares a campos de concentração.

Como no terreno da socialização do valor não há meio de escapar a esta lógica, o processo de reconhecimento e, com isso, de seleção sempre já se encontra também sujeito a uma concorrência "subjetiva". A concorrência universal como componente indissociável do universalismo jurídico é por isso, enquanto combate pela capacidade de sobreviver no mercado, necessariamente também uma luta pela capacidade de se fazer reconhecer, uma vez que todos sabem que nunca chega para todos. Isto nada tem a ver com a capacidade dos recursos sensíveis e materiais, e tudo com a falta de capacidade de absorção da forma de reprodução social que, afinal, não é menos que a base e o pressuposto do universalismo jurídico abstrato e, com isso, a condição prévia de toda a sua lógica.

Sob essa condição tem de se formar uma tendência imanente de não deixar a universalidade jurídica na sua função de mecanismo de seleção meramente a cargo das vicissitudes das pré-existentes e cegas leis da valorização, mas de adicionar ao mui doloroso processo de reconhecimento, por assim dizer a título de dispositivo de segurança, critérios nacionais, racistas etc. Nesta medida, a existência da (velha e nova) escravatura nos EUA não constitui uma maior inconsequência do pensamento do que o fato de se encontrarem, nos enunciados de quase todos os heróis intelectuais da ideologia iluminista, invectivas racistas e antissemitas em barda. Também isso não constitui uma infração contra o princípio moderno da universalidade, mas, antes de mais, a sua própria consequência intrínseca enquanto mecanismo de seleção.

O universalismo abstrato da socialização do valor e do respectivo pensamento iluminista, enquanto "igualdade" negativa e assassina, não constitui de forma alguma uma base em que pudesse assentar a construção de um projeto emancipatório. Também a este respeito não há nada que se pudesse "completar" ou desenvolver, restando unicamente a opção pelo derrube de toda esta relação. A capacidade de existência dos indivíduos reais, sensíveis e sociais, precisamente em toda a sua diferença qualitativa enquanto evidência social que, por isso, não precisa sequer de qualquer estatuto jurídico de "reconhecimento", apenas pode ser alcançada a partir de uma oposição fundamental ao ocidental universalismo de exclusão. Já a forma jurídica em si e enquanto tal, já a mera "necessidade" de um estatuto específico de reconhecimento, diz-nos que não se trata de um pressuposto nem de uma evidência, mas, sim, de um resultado que sempre está sujeito a uma decisão prévia.

O avesso do reconhecimento é, à partida, a exclusão. O pensamento inconsequente da emancipação no espartilho da forma jurídica burguesa, assim como o princípio desta da universalidade abstrata, assemelha-se, por isso, tal como acontece com relação à individualidade apenas abstrata e irreal, a mais uma tentativa de chegar por meios empíricos ao ponto onde, no infinito, as linhas paralelas acabam por cruzar-se. De tudo isto resulta que nada, mas nada mesmo, do Iluminismo tem salvação possível. A ideologia iluminista, juntamente com a constituição social subjacente, já apenas pode ser liminarmente rejeitada.

Iluminismo e Contra-Iluminismo: a polaridade do desenvolvimento capitalista e a identidade dos contrários

Embora diversos aspectos de uma crítica radical emancipatória do Iluminismo tivessem teimado em fazer-se notar ao longo dos tempos, estes nunca foram pensados até ao fim de uma forma consequente, sendo abordados, na maior parte dos casos, apenas sob uma perspectiva parcelar ou (como foi o caso de Adorno) de tal modo que,

no momento decisivo, se opera uma inflexão em direção à forma do sujeito definida pelo valor, se reclama face à realidade o ideal incompreendido, etc. A razão disso é fácil de explicar: Ela consiste no fato de que contra o Iluminismo e a Modernidade sempre foram reclamados um "Anti-Iluminismo" e uma "Antimodernidade", do ponto de vista de um putativo homem superior de direita, reacionário, defensor de uma ideologia elitista, irracional, racista e antissemita etc. O fato de o pensamento emancipatório sempre voltar a deixar-se levar pelo Iluminismo e cair na repetição dos respectivos tópicos centrais deve-se, por isso, ao medo de ir parar ao "lado errado" ou de ser interpretado dessa forma. Quem é que quer voltar, em nome da emancipação, "às trevas da Idade Média" (ou mesmo à Idade da Pedra), quem quer ser insultado de reacionário ou expor-se à suspeição de querer responder ao universalismo ocidental com "diferenças" étnicas ou raciais e à individualidade abstrata com a torpe comunidade de uma horda indistinta?

É precisamente este temor, que a qualquer altura pode ser provido de uma carga denunciatória por parte de políticos identitários de esquerda menos inovadores a nível teórico do que esforçados por defenderem o seu estatuto (pelo que faz parte dos pratos fortes de todas as escaramuças no seio da esquerda designarem-se mutuamente como reacionários), que impede invariavelmente o avanço decisivo contra a ideologia iluminista, paralisando o pensamento crítico mal este ameace franquear a linha de demarcação da ontologia burguesa.

No entanto, isto obscurece precisamente a relação intrínseca entre o Iluminismo e o Contrailuminismo, a Modernidade e a Antimodernidade. Em vez de desenvolver uma metacrítica desta relação intrínseca, desta identidade negativa de ambas as faces da história moderna e da socialização do valor, o pensamento refugia-se num lado pretensamente melhor, mais luminoso, a fim de não ficar do lado dos "maus". Para que este reflexo afirmativo possa finalmente ser superado, é necessário adoptar-se uma abordagem inteiramente diferente que dirija o olhar para o todo da socialização do valor, para o sistema de referência comum das contradições existentes no seio desta

forma, em vez de se deixar condenar a uma tomada de partido a favor de um dos dois lados. Tem de ser rejeitado o todo social, a comum forma do valor e da dissociação, que foi o que produziu estas oposições e em primeiro lugar estes partidos imanentemente antagónicos (através da consciência e dos atos dos indivíduos).

A crítica do valor implica, já pelo próprio conceito, não mais se deixar envolver na disputa imanente em torno de uma história ulterior da imposição do valor (já nem possível em termos reais), mas situar a crítica radical a um nível "meta". Para tal, o conceito da crítica do valor e da dissociação tem, no entanto, ainda de ser desenvolvido. De uma forma incipiente, tal aconteceu até à data sobretudo no que diz respeito à assim chamada luta de classes entre "o capital" e "o trabalho". O marxismo do movimento operário definiu esta oposição como absoluta, ontologizou o trabalho e, assim, se manteve circunscrito à forma de movimento de um par de contrários no seio das categorias capitalistas. Do ponto de vista da crítica do valor, esta oposição social converte-se numa oposição apenas relativa e imanente, num caso específico no seio da concorrência burguesa universal; o trabalho não é outra coisa senão a forma ativa ou o estado "vivo" do próprio capital; "o capital" e "o trabalho" constituem em conjunto uma identidade negativa de ordem superior; o conceito do trabalho constitui apenas um aspecto inerente ao conceito do capital que se apresenta como sistema de referência de todas as categorias sociais por ele constituídas. O capital tem de ser criticado e superado, não enquanto categoria social isolada, mas enquanto a forma sistémica do valor e da dissociação que, em vez disso, foi entendida pelo movimento operário de um modo positivo e ontológico.

O desenvolvimento conceptual do nível "meta", no entanto, não pode ficar-se por esta crítica histórica da luta de classes enquanto mera forma de movimento e desenvolvimento do próprio capital. É que a oposição entre "o capital" e "o trabalho" constitui apenas um dos aspectos de todo um sistema de polaridades, em que a socialização do valor tem de se representar e mover. É necessário traduzirmos esta

polaridade enquanto tal em conceitos, em vez de nos limitarmos a analisarmos uma a uma as suas manifestações.

A relação do valor é, em si, uma identidade negativa que, enquanto tal, não pode manter-se unida. Por isso, tem de se desdobrar permanentemente em oposições polares, tal como já no seu próprio pressuposto se baseia numa cisão, configurada precisamente pela dissociação sexualmente determinada de todos os objetos, áreas da vida, etc. que não se enquadram na forma do valor. A relação do valor enquanto relação de dissociação é, já em si, uma identidade dividida em si, definida pela polaridade. Esta identidade negativa constitui a raiz de onde não param de nascer cisões e, com elas, polaridades sempre novas.

E não se trata de dualismos equilibrados e complementares, como por exemplo foi o caso das formas retratadas nos mitos das culturas prémodernas, mas de polaridades renhidamente hostis que se encontram numa permanente luta de extermínio embora não constituam mais que os dois lados da mesma identidade. Estas polaridades são, nessa medida, o modo como se manifesta a pulsão de morte da subjetividade do valor: A luta até à exaustão e à destruição final entre contrários inimigos é a única forma de existência e forma imanente de movimento possível da relação de valor e dissociação. No seu âmbito, os contrários polares vão-se sucessivamente convertendo nos respectivos contrários e demonstram a sua identidade negativa até, no ponto final da história da modernização, coincidirem de forma imediata nesta identidade destrutiva. Isto aplica-se tanto à estrutura como igualmente à dinâmica histórica da em si interrompida relação total. Já ao nível da relação de dissociação geral e sexualmente determinada podemos identificar uma série de semelhantes polaridades:

Sujeito – Objeto

Masculinidade – Feminilidade

Publicidade – Privacidade

Este sistema de polaridades hostis prossegue no âmbito da relação do valor de definição masculina:

Política - Economia

Estado – Mercado

Poder – Dinheiro

Planeamento – Concorrência

Trabalho – Capital

Teoria – Prática

Como é sabido, toda a história da modernização do valor no sentido mais restrito (político-econômico) tem-se desenrolado como uma luta permanente entre estas polaridades; "mercado ou estado?", esse clássico de entre as pseudoalternativas burguesas no espartilho da forma do valor, que contudo sempre se limitam a representar a irremediável estrutura esquizoide desta sociedade inconsciente de si

própria, ainda hoje é incansavelmente trauteado. Da mesma forma que a crítica do valor atua para além da luta de classes meramente imanente entre o trabalho assalariado e o capital, ela também se desenvolve para lá da eterna disputa entre o mercado e o estado. O objeto da crítica apenas pode ser o comum sistema de referência do valor, ou seja, precisamente essa relação superior do valor e da dissociação que foi o que, à partida, estabeleceu à sua imagem os contrastes entre trabalho e capital, mercado e estado etc., constituindo a sua identidade negativa.

O contraste entre Iluminismo e Contrailuminismo, Modernidade e Contramodernidade enquadra-se na mesma classificação de polaridades imanentes da relação de valor e dissociação. Se não observarmos apenas a basal relação de dissociação por um lado, e a relação do valor, por outro, cada uma por si, centrando-nos antes na relação total mais abrangente e intrinsecamente quebrada da identidade negativa, podemos reconhecer uma série de outras polaridades que remetem precisamente para a estrutura esquizoide do Iluminismo enquanto forma de reflexão do valor:

Progresso – Reação

Racionalidade – Irracionalismo

Civilização – Barbárie

Cultura – Natureza

Liberdade – Servidão

Democracia – Ditadura

Indivíduo – Sociedade

Igualdade – Diferença

Sociedade – Comunidade

Existe uma quantidade de relações em que as polaridades hostis se movem por níveis diferentes, saltam de um nível para outro, se interpenetram, configurando apenas neste jogo dinamizado de contrastes a totalidade negativa. Assim sendo, não é apenas a oposição entre sujeito e objeto, entre a masculinidade (adepta da lógica identitária) e a feminilidade (dissociada), ou entre o mercado e o estado que constitui a forma de movimento e existência da relação de valor e dissociação, mas igualmente o contraste entre o Iluminismo e o Contrailuminismo, entre a Modernidade e a Contramodernidade. Esta oposição é a Modernidade da socialização do valor que, sendo desde sempre dividida e negativa, nem tem como alcançar uma identidade positiva e consolidada. Longe de representarem uma consciência préou extrailuminista, o Contrailuminismo e a Contramodernidade constituem partes integrantes do próprio Iluminismo e da Modernidade, que apenas pode existir na polaridade com a sua própria negação imanente.

O que acabamos de dizer também pode ser demonstrado de um modo histórico-empírico. O Contrailuminismo nasceu do seio do próprio Iluminismo, não como uma reação contrária vinda do exterior mas, de certo modo, como Atena da cabeça de Zeus: As ideias contrailuministas e "antimodernas", tal como deixaram as suas marcas na história intelectual romântica e existencialista e ganharam influência prática em formas de expressão políticas, são, na sua origem, pensamentos do próprio Iluminismo dotados da sua estrutura aporética originária. Isto não se aplica apenas ao racismo e ao antissemitismo,

mas igualmente ao nacionalismo, biologismo, autoritarismo, irracionalismo, enquanto o avesso da racionalidade constituída na forma do valor etc. Estes momentos imanentes do Iluminismo foram isolados e aparentemente ganharam uma vida própria, mas sem alguma vez alcançarem uma forma de consciência independente; antes, eles constituem o pólo oposto imanente da forma da consciência "esclarecida" do próprio sujeito-objeto.

Tal como o filão romântico e existencialista tentou repetidamente, sob formas e denominações diversas, desligar o sujeito da sua própria figura enquanto objeto recorrendo à heroicização e à estetização (não em último lugar no caso da política) a fim de supostamente escapar à aporia, o Contrailuminismo e a Contramodernidade tentaram, de um modo geral, isolar o lado "escuro" do pensamento iluminista nas suas diversas definições a fim de chegarem a uma identidade positiva supostamente livre de contradições no invólucro formal negativo. O resultado sempre apenas pôde consistir na agudização dessa mesma negatividade até ao extermínio; a campanha de extermínio é justamente a forma de movimento da aporia social.

Perante o pano de fundo desta origem também se torna evidente que, e por que razão, o Iluminismo burguês e o Contrailuminismo burguês operam, em parte, segundo padrões idênticos que se limitam a diferir um pouco mais ou menos quanto aos seus conteúdos; mas que, em parte, também se convertem diretamente uns nos outros, podendo respectivamente transformar-se na manifestação do seu oposto imanente. Assim, tanto os representantes do Iluminismo como os do Contrailuminismo idealizaram, para a sua própria legitimação, situações sociais pré-modernas: uns, as repúblicas da Antiguidade, os outros, a assim chamada Idade Média. E a mudança brusca do progresso para a reação, da racionalidade para a irracionalidade, da democracia para a ditadura etc. acompanhou toda a história da modernização; e não o fez, porventura, sob a forma de "peripécias" na luta pelo poder de forças que fossem exteriores umas às outras, mas como manifestação da identidade negativa, isto é, como manifestação do reacionário no seio do próprio progresso (por exemplo, no que diz

respeito ao desenvolvimento do aparelho burocrático herdado do absolutismo por parte da revolução francesa, para que já Tocqueville chamou a atenção), do irracional no seio da própria racionalidade (por exemplo na lógica de externalização na economia industrial, na passagem inadvertida da concorrência econômica para a guerra etc.), de elementos ditatoriais na própria democracia (por exemplo na implementação de "leis de emergência", no tratamento de refugiados e de pessoas que vivem a cargo da segurança social e, de um modo geral, na administração burocrática de seres humanos). Em termos puramente fenomenológicos, este fenómeno da transição brusca de uma coisa para outra de sinal contrário foi repetidamente notado e recebido com o devido escândalo, mas pura e simplesmente nunca foram daí retiradas todas as ilações, porque de outro modo o embuste da oposição imanente não poderia ter funcionado como justificação paradoxal do Iluminismo.

Tal como o progresso da socialização do valor e do Iluminismo sempre apresentou elementos reacionários, assim, de modo inverso, também a reação e o Contrailuminismo, em forte contraste com a sua idealização ideológica de situações pré-modernas, campesinas etc., sempre também constituíram outro motor do progresso em direção à e no seio da relação de valor e dissociação (assumindo-se, durante certos períodos, como concorrência ao movimento operário, mas precisamente apenas como concorrência, o quer dizer que atua no interior da mesma forma comum). O romantismo, por exemplo, não se limitou a glorificar a chamada Idade Média, mas também fez progredir em muitos aspectos a ideologização positiva da moderna individualidade abstrata.

Também o nacional-socialismo, enquanto suposta encarnação de todo o pensamento reacionário e contrário ao Iluminismo, foi, na realidade, a versão alemã do ímpeto fordista no seio da socialização global do valor. Os nazis modernizaram, neste sentido, a indústria, a guerra, a relação entre os sexos, o consumo e o sujeito. A forma como os nacional-socialistas estruturaram a Alemanha constituiu a todos os níveis da sociedade o protótipo da sociedade democrática e

economicista do pós-guerra alemão; isto foi nítido até ao ridículo no "Volkswagen" ["carro do povo"; N.T.], mas igualmente no desenvolvimento ulterior da forma capitalista do sujeito. Justamente o núcleo da ideologia nacional-socialista, o antissemitismo, é um produto específico da Modernidade a que se recorreu em cada surto de crise da "modernização". É traiçoeiro o pormenor de que tanto os democratas conformistas como uma esquerda radical ainda apegada à ideologia iluminista gostariam de reduzir o nacional-socialismo aos elementos antimodernos e de romantismo agrário da sua legitimação ideológica, uma vez que para eles a "Modernidade" e a "modernização" têm conotações positivas, representando o lado "bom", putativamente emancipatório do Iluminismo. No entanto, esta hipocrisia ideológica da modernização e do Iluminismo não tem nada, mas mesmo nada a ver com os fatos históricos.

Se a identidade negativa entre o progresso e a reação, entre o Iluminismo e o Contrailuminismo, se torna imediata nos finais do século XX, isso acontece em primeira linha porque, entretanto, se consumiu a dinâmica interna da socialização do valor. As polaridades, em tempos inimigas de morte, tocam-se na queda da crise, e a todos os níveis. O mercado, sob a forma de gigantescas organizações empresariais, adopta cada vez mais funções do estado; os aparelhos estatais, por seu lado, vão-se transformando em empresas quase comerciais cada vez mais adaptadas à economia de mercado. O público é privatizado sob a forma dos media capitalistas; o privado, por seu lado, é tornado público de um modo voyeuresco no conteúdo ordinário desses mesmos media (desde a miséria pessoal das vítimas até à vida sexual dos políticos). Também o progresso agora já não é meramente parcial e temporário, mas inteiramente idêntico com a reação: toda a reforma limita-se a ser uma contrarreforma, e o pensamento correspondente apenas rejeita as ideologias do século XX para regressar às do século XVIII (e, com isso, às raízes da repressiva Modernidade). A marginalização racista já há muito que se transformou numa política liberal e jurídica (incluindo a mais brutal violência policial e de deportação) que já apenas se distingue em pormenores do pensamento e da atuação dos grupos de malfeitores de extrema-direita, etc.

Na Alemanha, a crescente identidade imediata entre o Iluminismo e o Contrailuminismo manifesta-se especificamente, por exemplo, no desenvolvimento da política intelectual e editorial da "SuhrkampKultur". Esta editora que, no tempo do pós-guerra foi quase o símbolo de uma ofensiva burguesa esquerdista e iluminista como sinal de oposição "republicana" à hipoteca antimoderna e contrailuminista da história alemã, dá hoje guarida a autores exclusivos e vedetas como Martin Walser, Botho Strauss e Peter Sloterdijk (este último até se viu promovido, numa sucessão bem simbólica a Habermas, ao spiritus rector da programação editorial) que representam aquela "viragem" intelectual em cujo seio, de uma forma despudorada e eloquente, já se anda a relativizar Auschwitz, se pratica uma crítica cultural reacionária ao estilo de um elogio de "Trono e Altar" e se debate sob um prisma biologista o "melhoramento genético do Homem".

Esta viragem não representa uma "traição do Iluminismo", mas, sim, a queda da máscara do Iluminismo no contexto da nova crise mundial da sociedade do valor e da dissociação. Por isso, não se trata de mais um problema especificamente alemão, mas, sim, da direção em que se move o mainstream intelectual em todo o mundo ocidental. O sistema de "freedom and democracy" conduz a sua guerra mundial contra os fantasmas do terror por ele próprio criados em nome de um racismo culturalista (Huntington, Fukuyama & Cia.), sob a égide de uma figura como o presidente Bush, que é a imagem viva da coincidência do Iluminismo com o Contrailuminismo.

Os exemplos que corroboram a cada vez mais evidente identidade imediata destes dois pólos são inúmeros. O Iluminismo desvenda que desde sempre traz em si o seu suposto contrário definido por e a partir dele próprio, que agora tem de voltar a integrar em si e que ele próprio irreversivelmente é no âmbito da identidade negativa. Embora a velha polaridade hostil ainda continue a vigorar formalmente, os contrastes vão empalidecendo progressivamente porque a partilha da identidade negativa se vai tornando por demais evidente. É por isso que a polaridade imanente já nem sequer num contexto conformista para com o sistema pode ser dotada de uma conotação

pseudoemancipatória. Já não interessa minimamente (nem mesmo no sentido táctico) rebatermos os insípidos contrastes da diferença imanente entre o Iluminismo e o Contrailuminismo; antes o pensamento emancipatório já apenas pode assinalar o que ambos têm em comum a fim de quebrar a relação total negativa.

A antimodernidade emancipatória nada tem a ver com a burguesa, visto que a sua crítica, enquanto metacrítica, atinge pela mesma medida ambos os lados das polaridades modernas: Rejeita o universalismo abstrato juntamente com a nação, as ideologias raciais etc.; o mercado juntamente com o estado; a individualidade abstrata de par com a ideologia da comunidade; a racionalidade moderna juntamente com irracionalismo moderno; o romantismo burguês juntamente com o classicismo burguês; a masculinidade dissociadora juntamente com a feminilidade dissociada; o progresso repressivo juntamente com a reação repressiva; numa palavra: o Iluminismo juntamente com o Contrailuminismo.

A metafísica histórica burguesa do "progresso" e o relativismo histórico burguês

Resta saber qual é a compreensão da história que tal antimodernidade emancipatória irá desenvolver. A ideia de um progresso "inevitável" (que seguiria uma suposta lei natural) com graus de desenvolvimento que pacificamente vão sucedendo uns aos outros com a Modernidade como seu expoente máximo está tão fora de questão como a glorificação e romantização de quaisquer relações de fetiche prémodernas. É precisamente neste sentido que também o chamado materialismo histórico se torna insustentável, visto ter-se revelado como mero apêndice da metafísica histórica iluminista. Ultrapassar o modus da lógica identitária também significa deixar de se construir um sistema fechado da história que aparente ter pleno cabimento em si próprio. A metafísica histórica do Iluminismo, tal como a moderna "forma do sujeito", não deve ser apenas substituída por outra qualquer,

sendo, antes, de superar não só no que diz respeito ao seu conteúdo como igualmente enquanto forma de pensamento.

Tudo o que Marx disse enquanto "materialista histórico" está, na sua essência, certo; o que se passa é que se aplica apenas ao capitalismo, à moderna socialização do valor, não passando de uma projeção em relação às formações sociais pré-modernas. O fato do esquema não resultar de forma alguma a este respeito já foi notado muitas vezes, mesmo da parte de marxistas; mas este problema nunca foi devidamente traduzido em conceitos, sendo invariavelmente, ou utilizado para legitimar o abandono da crítica econômica radical de Marx, ou encoberto, na medida dos possíveis, por todo o tipo de remendos conceptuais "dialéticos".

O modo mais óbvio de se desembaraçar aparentemente do problema consiste na adoção da postura de um relativismo e agnosticismo histórico. Não poderíamos simplesmente dizer a nós próprios que apenas temos a tarefa histórica de nos vermos livres do capitalismo, enquanto destrutiva sociedade mundial da dissociação e do valor, e que podemos deixar o resto da História às impenetráveis brumas do passado e aos respectivos mortos? Assim ficaríamos com uma teoria apenas para a socialização do valor da Modernidade, quedando-nos sem qualquer teoria para a história restante.

Mas não deverá ser assim tão fácil superarmos o modus da lógica identitária. Faz parte da essência humana querer-se ter uma ideia do passado. A arqueologia, a crítica dos textos históricos, a investigação das fontes etc. não irão acabar juntamente com a lógica do valor. As investigações puramente empíricas, por outro lado, são uma impossibilidade lógica e prática, visto precisarem sempre de um enquadramento conceptual. Juntamente com o modus da lógica identitária, não pode acabar a generalidade do pensamento conceptual da história.

Sobretudo, porém, um relativismo e agnosticismo histórico não é nada de novo, nem constitui uma superação da metafísica histórica do Iluminismo, sendo antes sua parte integrante. Já o século XIX produziu esse historicismo hermenêutico, cujo credo foi resumido pelo historiador alemão Leopold Ranke nas famosas palavras, segundo as quais "Qualquer época está igualmente perto de Deus", ou seja, tem respectivamente a sua lógica e o seu direito próprios que não devem ser medidos pela bitola da Modernidade. Como demonstrou recentemente o colega de ofício de Ranke nosso contemporâneo Reinhart Kosellek, o rasto desta "política da relativização" por parte da teoria histórica encontra-se já no pensamento iluminista do próprio século XVIII. Isso aponta no sentido de que o relativismo histórico não se encontra necessariamente em oposição à apoteose histórica da racionalidade burguesa.

Na realidade, os enunciados centrais deste relativismo e agnosticismo são, antes de mais, banais. Assim, ele afirma que não podemos formular qualquer juízo seguro acerca das situações pré-modernas e pré-históricas, visto pura e simplesmente não estarmos na pele das gentes do passado. Nem a chamada de atenção um pouco mais refletida para que qualquer teoria histórica reflete, em certa medida, o "ponto" histórico em que nós próprios nos encontramos, uma vez que este determina a nossa perspectiva, resolve o problema de forma satisfatória. Isso deve-se sobretudo ao fato destas afirmações serem de um carácter pura e simplesmente afirmativo: Trata-se de um relativismo histórico segundo o pachorrento mote "viver e deixar viver", que se limita a complementar e a flanquear a metafísica histórica iluminista. Ao mesmo tempo, a euforia desenvolvimentista de Hegel transparece pelas casas de todos os botões: Tem algo de repugnantemente arrogante a atitude de quem reconhece às situações sociais do passado o seu respectivo direito próprio, a sua própria "proximidade de Deus", o seu próprio modus; é aproximadamente como se um adulto burguês maltratado pela sua racionalidade condescendesse em admitir ao estádio da infância um jocoso "valor próprio". Ao fim e ao cabo tudo vai dar à afirmação de que a maravilhosa Modernidade possui o seu valor próprio e o seu direito de existir tal como o passado que, no entanto, tem a vantagem de estar

morto e enterrado e de não poder defender-se de semelhante jovialidade.

O que falta ao mero relativismo histórico é o sal na sopa, nomeadamente a crítica radical. Da perspectiva de uma crítica fundamental da Modernidade iluminista, porém, não pode haver lugar a uma reconciliação jovial com a história pré-moderna, na qual a Modernidade afinal se encontra enraizada. O paradigma de uma antimodernidade emancipatória não se encontra, portanto, caraterizado pela glorificação, ou mesmo pelo branqueamento, mas, sim, pela crítica radical das formas sociais pré-modernas; uma crítica que se encontra logicamente integrada na crítica radical da Modernidade. Neste ponto ela distingue-se de forma fundamental da crítica iluminista da prémodernidade por intermédio da autoafirmação da Modernidade, assim como da crítica anti-iluminista da Modernidade através da afirmação da sociedade agrária pré-moderna. A posição da antimodernidade emancipatória, pelo contrário, justifica a crítica da Modernidade pela crítica da pré-modernidade que nela se encontra incluída, e vice-versa.

A crítica fundamental das formações pré-modernas pode, sem dúvida, apoiar-se em um determinado saber. Mesmo que as fontes sejam mais ou menos escassas, e mesmo que dificilmente possamos reviver a consciência do mundo das situações de um passado mais remoto, pode-se comprovar sem margem para dúvidas que o que sempre esteve em causa foram relações de domínio dotadas de potenciais destrutivos. Pode igualmente ser comprovado com base nos documentos e artefatos o sofrimento permanente com estas situações em que os indivíduos nunca se puderam encaixar, nem mesmo no passado pré-moderno.

As teorias ideológicas afirmativas da história da modernização habitualmente retiraram daí a ilação de que "o Homem" pura e simplesmente é assim e que a história da humanidade tem de ser uma história permanente de sofrimento. De forma inversa, uma antimodernidade emancipatória incluirá na sua crítica da moderna relação de valor e dissociação a crítica desta falsa ontologia da história

e, com isso, de um modo geral, a crítica de toda a história precedente, operando assim uma ruptura histórica de ordem superior. Contrariamente ao relativismo histórico (ele próprio de sinal iluminista), a crítica das situações pré-modernas não só é permitida como até é necessária; mas não o é do ponto de vista e com a bitola da modernidade produtora de mercadorias, mas unicamente do ponto de vista e com a bitola de uma crítica não menos radical dessa mesma Modernidade.

Despido da dimensão da crítica, demonstra-se o denominador afirmativo comum das diversas e aparentemente contrárias teorias históricas ou "filosofias históricas". Seja sob a forma de uma história do progresso quase que obrigatório, em que as sociedades prémodernas são desqualificadas como pertencentes às trevas do apego à natureza e da irracionalidade; ou, ao contrário, sob a forma da glorificação e romantização reacionária de relações de fetiche e, assim sendo, de domínio; ou como "reconhecimento" arrogante da especificidade na mera relativização; ou ideologizada sob a forma do eterno retorno do mesmo no que diz respeito ao sofrimento necessário por lei natural e ao domínio: Invariavelmente o conteúdo real da história e das formações históricas acaba por ser tão indiferente a este pensamento como os objetos do mundo, de um modo geral, são indiferentes à abstração do valor, sempre se trata de um mero quiproquó, da instrumentalização da história para a legitimação do existente, por muito contraditórias e divergentes que essas instrumentalizações possam ser.

A teoria histórica e a crítica reduzida do poder

Só na negatividade da crítica volta a tornar-se possível uma concepção da história geral em que a teoria histórica coincida com uma crítica emancipatória do poder. Esta concepção não pode, no entanto, circunscrever-se ao entendimento convencional, apenas sociológico, das "relações de dominação". É um fato que o marxismo e o anarquismo não partilharam, mesmo assim, a restante ontologia

burguesa do conceito da dominação. Esta, de qualquer modo, deveria tender para ser abolida. Mas esta ideia permaneceu uma má utopia na medida em que ela não foi apresentada de uma forma realizável – devido ao apego, tanto marxista como anarquista, às formas da relação de valor e dissociação.

De qualquer modo, o marxismo situou esta utopia muito para além de todos os conflitos sociais reais, num futuro indeterminável, ao passo que o desenvolvimento da "necessidade histórica" deveria passar primeiramente pelo proletariado tornado estado e, com isso, poder (e a respectiva "ditadura"). Apenas nos momentos mais luminosos este estado era condecorado com o atributo de "já não o ser"; o que, contudo, tinha o único efeito de tapar a contradição com uma formulação paradoxal. Na realidade, as ditaduras estatais do proletariado da periferia do capitalismo provaram ser ordinárias ditaduras burguesas de modernização. O anarquismo, pelo contrário, quis abolir de forma imediata o "poder" e, com ele, o estado mas, por isso mesmo, quis fazê-lo sem a mediação com a abolição da relação de valor e dissociação (não indo, a este respeito, mais longe do que o marxismo do movimento operário).

Em ambos os casos, o "poder" apresentava-se apenas na sua dimensão social, sociológica e subjetiva, ou seja, reduzida quanto ao problema da forma. Foi por isso que tanto o marxismo como o anarquismo puderam adoptar o conceito da democracia de um modo ingenuamente positivo, embora nele já se encontre etimologicamente contido o conceito do domínio. Na medida em que a abolição do poder devia realizar-se sob a forma de um final "autogoverno" ou "autodomínio do povo", na realidade o conceito do domínio apenas foi trazido a si no sentido dos imperativos coisificados da relação de valor e dissociação, tal como já havia muito tempo que os ideólogos mais militantes do Iluminismo (Kant, Bentham, Hegel & Cia.) o tinham pensado em primeira mão. Assim, a crítica esquerdista do poder apenas pôde ridicularizar-se a si própria.

Também em termos históricos, esta crítica reduzida das relações de dominação permanece apegada ao pensamento iluminista e às falsas ontologizações do mesmo. Por um lado, o conceito do domínio com a sua redução ao estado apenas pôde ser estendido a condições prémodernas na medida em que a estas foi estendido de forma projetiva, muito no sentido da deturpação da história praticada pelo Iluminismo, o conceito do estado, ao passo que o estado enquanto tal, na realidade, é apenas um produto da Modernidade. Por outro lado, onde, tal como nos estádios sociais mais primordiais como o dos caçadores e coletores nem o pensamento iluminista mais obstinado era capaz de descortinar algum estado, tinha de se atestar a essa assim chamada "sociedade primitiva" uma "libertação do domínio", à qual, no grau supremo do desenvolvimento e, por isso, numa forma superior, o socialismo/comunismo haveria de regressar.

As incongruências de semelhante crítica do domínio apenas podem ser resolvidas a partir do momento em que a relação de dominação é criticada como relação formal, ou seja, para lá de uma observação sociológica meramente exterior. Neste sentido, a crítica da relação de valor e dissociação, ao recuperar o conceito marxiano da constituição do fetiche, contém em si já um novo e negativo conceito da totalidade da história pré-existente que, por isso mesmo, pode ser resumida, no sentido marxiano, como "pré-história". Já não entendida de um modo sociologicamente reduzido como "história de lutas de classes", mas, por inclusão da reflexão da forma, como "história de relações de fetiche", a um certo nível de abstração torna-se discernível algo de negativamente abrangente que une as sociedades pré-modernas com as sociedades modernas. Sob este ponto de vista, é evidente que mesmo as chamadas "sociedades primitivas" representam constituições de fetiche e, assim sendo, relações de dominação, na medida em que o conceito do domínio já não se reporta a relações meramente exteriores de subordinação entre pessoas, mas à subordinação coletiva a relações formais alienadas e autonomizadas (como por exemplo o totemismo, o culto dos antepassados etc.).

A ontologia negativa como teoria da história negativa Somente neste sentido de um conceito negativo da história préexistente como uma história de relações de fetiche o enunciado de Marx, segundo o qual as situações sociais pré-modernas poderiam ser determinadas de forma retrospectiva a partir das modernas, tal como a anatomia do macaco o pode ser a partir da do Homem, desvenda, de um modo que aponta o caminho para além da ideologia iluminista, o seu verdadeiro significado. Neste contexto, a Modernidade já não figura como uma base positiva para a libertação de situações constrangidas mas, muito pelo contrário, como uma forma extrema do constrangimento que, por motivos que se prendem com a autopreservação, já apenas pode ser rebentada; não como desabrochar da libertação em resultado de um constante e "inevitável" desenvolvimento ascendente, mas como agudização da destrutividade das relações de fetiche em geral até à ameaça da destruição do mundo.

Não precisamos de agradecer ao capitalismo por qualquer "missão civilizatória", tendo nós como única obrigação a de o abolirmos enquanto resumo maligno de uma negativa história do sofrimento da Humanidade (à qual não se descortina qualquer sentido metafísico positivo para tamanho sofrimento, contrariamente ao que diria a religião sadomasoquista do cristianismo. Não há qualquer "mérito" no sentido de uma base positiva no fato de a moderna relação de valor e dissociação ter literalmente corrido e bombardeado a Humanidade até ao limiar da superação da pré-história das relações de fetiche; antes pelo contrário, esta situação de partida é puramente negativa (em Walter Benjamin encontram-se pensamentos neste sentido, sob uma forma ainda parcialmente mistificada).

A partir desta reavaliação da história também se clarifica a relação de uma crítica do valor e da dissociação ulteriormente desenvolvida para com o conceito da ontologia social. Tanto no seu uso filosófico mais restrito como no mais amplo emprego geral, este conceito é algo impreciso e polissêmico, visto remeter de forma indireta para a relação de fetiche que não é palpável enquanto tal nas formas do fetiche. Por um lado são abrangidas por ele, num sentido quase que antropológico

(naturalizante) supostas condições suprahistóricas da Humanidade que alegadamente constituiriam "o Homem" ou a sua "essência" enquanto tal; por outro lado também parece tratar-se de ontologias históricas, de condições existenciais que, embora se suponha que em certas épocas possam ter sido gerais, não o são face à História na sua totalidade. No entanto trata-se sempre de ontologizações positivas (e, nessa medida, ideológicas) e, com isso, afirmativas de determinadas definições préexistentes, quer se trate de uma ontologização meta-histórica do domínio e do trabalho, ou de uma ontologização histórica no sentido de uma ontologia especificamente moderna do sujeito (circulante) e da sua estranha "liberdade" transcendental.

Contrariamente a isto, o conceito da constituição do fetiche contém, enquanto parte integrante da crítica do valor e da dissociação, um momento ontológico no sentido do conceito marxiano da “préhistória”, mas, lá está, trata-se de um momento puramente negativo. Toda a história pré-existente, não a história humana em geral (porque "o Homem", devido à sua essência, não seria capaz de outra coisa), é uma história de relações de fetiche, com cujo conceito, no entanto, também já se encontra definida a sua crítica radical – e, assim, a possibilidade da sua superação.

Esta ontologia negativa de uma pré-história de relações de fetiche já não é capaz de retratar um sistema histórico que traz a marca da lógica identitária como o processo inevitável de um desenvolvimento ascendente positivo. Ela apenas é abrangente enquanto conceito que designa um todo de condições negativas descontínuas em que, de formas historicamente diversas, se desenvolve a contradição entre os indivíduos sensíveis e sociais e a sua própria forma negativa, que são as constituições do fetiche, sendo, através de tormentosas lutas, consecutivamente reformulada. Aqui não vigora nenhuma lei natural teleológica nem nenhum plano divino, tratando-se antes de um contínuo, descontínuo nas suas alterações históricas, de formas sociais em desavenças consigo próprias, em que ocorrem metamorfoses repentinas que não obedecem a nenhuma lei mecânica, visto serem

produtos da consciência a debater-se consigo própria e com a natureza, e não processos que apenas se desenrolem na natureza.

Por isso, o momento da ontologia negativa, que reflete este contínuo negativo, também não passa de um momento de uma determinada crítica histórica (nomeadamente, da crítica da relação de valor e dissociação) e, nessa medida, constitui o momento de uma crítica que sabe e não deixa de ter em conta nas suas reflexões o ponto histórico em que ela própria se situa: ou seja, tudo menos uma filosofia histórica. Existe apenas uma única filosofia histórica, e esta é a ontologia positiva do Iluminismo burguês. A filosofia histórica enferma, pelo próprio conceito, de uma lógica identitária, ou seja, é causalista, preocupada com esquemas de desenvolvimento e totalitária; e a teoria marxiana apenas tem caraterísticas de uma filosofia histórica na medida em que argumenta no âmbito do materialismo histórico, ou seja, se mantém iluminista ao arrepio da sua própria concepção das relações de fetiche.

O ato (negativo e destrutivo) de se atingir o limite do contínuo da "préhistória" configura mais uma espécie de salto quântico do que um resultado de processos causais – tal como, de um modo geral, o esquema de desenvolvimento da metafísica histórica do Iluminismo se desenrola em paralelo à mundividência mecanicista e causal da física sua contemporânea. O entendimento da natureza e o entendimento da sociedade sempre se encontram relacionados e, nesta medida, a ontologia negativa da crítica do valor e da dissociação não pode deixar de lançar uma luz diferente sobre a natureza física e biológica. Na mesma medida em que a crítica social se aproxima das ciências da natureza da física quântica, talvez no futuro também o enigma da natureza física possa ser, ao menos, mais bem entendido.

O fim da galeria dos antepassados e a superação da teoria positiva

Desde o ponto de vista de uma necessária crítica radical do Iluminismo e dos "valores ocidentais" é evidente que nem os corifeus da Filosofia

iluminista podem escapar a uma avaliação nova e negativa. Que os pouco profundos pensadores do democratismo de esquerda, assim como os inculcadores oficiais da máquina propagandística ocidental, democrática e guerreira mundial invoquem Kant e Companhia de uma forma positiva entende-se por si. Mas quando uma reflexão que se entende como crítica do valor fica pouco aquém ao reconhecer aos senhores Kant, Hegel etc., numa espécie de deferência ritual, as "realizações do (respectivo) pensamento" (e isto também se aplica, de uma forma ou de outra, ao desenvolvimento que a abordagem crítica do valor sofreu até à data), tal demonstra uma vez mais o apego ao modus da lógica identitária e à metafísica histórica iluminista.

Este modo de lidar com a filosofia iluminista (para a qual, sob este ponto de vista, Kant pode servir de sinónimo) diferencia-se apenas aparentemente do meramente afirmativo dos ideólogos democráticos ao remeter para o fato que, por exemplo, os pensadores éticos de pacotilha que hoje temos nem compreenderiam Kant, porque nem sequer reparam que este se digladia a nível conceptual com o problema da constituição da moderna socialização do valor apontando as antinomias ou aporias que lhe são intrínsecas. Em vez disso, estes ideólogos tomariam a constituição da forma do valor e da forma jurídica problematizada por Kant já como um cego pressuposto, tal como, entretanto, se estabeleceu na consciência quotidiana, deixando, justamente por isso, de percepcionar o problema levantado por Kant.

Isto, embora esteja certo, não é suficiente para a avaliação de Kant e do modo deste de "identificar os problemas". Acontece que o pensamento de Kant, com o enorme alcance da sua reflexão, aparece como que um precursor da crítica do valor que, passando pelos escalões intermédios Hegel e Marx, julga poder prolongar esta cadeia de reflexões. O que é omitido ou, de algum modo, posto de parte por não parecer ter importância, é o fato de Kant pura e simplesmente não ter sido apenas um pensador reflexivo, mas igualmente um militante ideólogo da imposição da socialização do valor.

Nesta omissão revela-se o apego ainda não superado à forma do valor e da dissociação e ao respectivo modo de pensar. Como já acontece no pensamento próprio de uma crítica do valor assim reduzida, assim também na avaliação de Kant e Cia. é nivelada a diferença decisiva entre uma mera reflexão positiva e (no sentido de Hegel) uma mera "consciência em si refletida" do assunto, por um lado, e a sua crítica radical teórica e prática, por outro. O necessário esforço próprio da crítica no sentido contrário, que se insurge justamente contra um curso dos acontecimentos apenas "necessário" e prefigurado numa lógica objetivada, desaparece; e assim, Kant, em cujas obras principais a palavra crítica faz parte do título, mas que é o preciso oposto de um crítico da socialização do valor, pode ser incluído na galeria dos antepassados do pensamento crítico "em si e por si".

Este modo de ver as coisas também é possível porque um pensamento de crítica do valor que, ele próprio, ainda não superou a lógica identitária, ainda por cima se processa no estado da contemplação, ou seja, num regime de segregação sistemática da reprodução social embora, de um certo modo (que, no entanto, não é considerado na reflexão), também volte a fazer parte dela. Vai de si que também uma crítica do valor que já não proceda segundo os preceitos da lógica identitária tenha como ponto de partida a separação determinada pelo valor entre a teoria e a prática, tendo de começar por se mediar, num processo complexo, com a prática social. No entanto, o estado contemplativo também pode ser superado, aqui e ali (mas de modo algum de forma completa), no próprio pensamento teórico, começando este já a deixar de ser um pensamento puramente teórico no sentido contemplativo da cisão burguesa; e, nomeadamente, por se converter num pensamento realmente crítico ao nível da própria teoria em vez de não passar do estado positivamente reflexivo. A diferença consiste também na inclusão na crítica do estado contemplativo enquanto tal (e, com ele, de mais um momento da dimensão até agora "tácita" das relações de fetiche modernas).

Para já isto significa pormos a descoberto a real identidade negativa entre a teoria e a prática na constelação burguesa da sua separação e

polaridade hostil. É que, precisamente na negatividade objetivada da sua segregação radical da prática reprodutiva, a teoria contemplativa, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma forma sui generis da prática social; um momento radicalmente separado da prática na sua totalidade e, assim, uma prática de segunda ordem no seio dessa separação; no entanto, é-o sem o saber conscientemente e sem incluir esse fato na reflexão. Afinal é precisamente nisso que consiste a cisão polarizadora e, com ela, o carácter contemplativo, separado da atuação, da teoria burguesa. O dito marxiano sobre os atores de relações de fetiche também aqui se aplica: "Não o sabem, mas fazem-no". Onde a crítica do valor não se ampliou a uma crítica deste carácter, também lhe falta este nível de reflexão, de modo que tem de atuar, no que diz respeito ao pensamento teórico, como se realmente estivesse perante uma mera "história intelectual", cuja relevância prática não é considerada.

Na realidade, porém, a teoria, mesmo a separada pela contemplação, é desde sempre indireta e, enquanto prática de segunda ordem, também atua sobre a prática social integrando-se ela própria de uma forma objetivadora na realidade circundante. A este respeito aplica-se o mesmo que à dialética sujeito-objeto em geral: O que se passa na realidade não é, de modo algum, que de um lado tenhamos apenas os fatos puramente objetivos e, do outro, o pensamento teórico que se limita a refletir esta objetividade e que, por intermédio de um esforço de reflexão, se aproxima e se adequa mais ou menos ao seu objeto. É o que parece a um teórico contemplativo, mas é precisamente esta a aparência fetichista.

Tal como as realidades autonomizadas em formas de fetiche não são objetivas, mas apenas objetivadas, ou seja, de um fabrico bem caseiro, mesmo que o sejam num modus não consciente, também a teoria contemplativamente separada se integra neste "fabrico". Ela, longe de se limitar a reagir, também age; ela não se limita a refletir as situações uma vez criadas, mas também ajuda a criá-las. Ela, sendo a reflexão sobre objetivações passadas, é ao mesmo tempo o nascimento, a partir da cabeça, de futuras objetivações. As relações de fetiche objetivadas, portanto, nunca nasceram apenas de alguma cabeça, mas, também,

nunca são meros objetos do pensamento exteriores ao mesmo. Também a teoria contemplativa "realiza-se" de certo modo convertendo-se em programa e incarnando-se a nível institucional, mesmo que, por outro lado, todas as instituições, formas de relacionamento etc. sejam em grande medida produtos de cegos processos práticos independentes da teoria.

Neste sentido, os filósofos do Iluminismo não podem deixar de ser encarados, também, como ideólogos da imposição, para não dizer como criminosos da imposição da sociedade do valor e da dissociação. Todos eles são os criminosos de colarinho branco de uma história de sofrimento da Humanidade insuportavelmente agudizada pelo sujeito do valor. E, enquanto tais, eles encontram-se bem presentes com os seus crimes intelectuais que passaram a fazer parte da objetivação capitalista e, por esta atividade criminosa tem de lhes ser feito o processo. A invocação apologética do "contexto temporal" equivale, neste caso, à defesa do processo de objetivação. É evidente que qualquer pensamento se desenrola inserido num qualquer "contexto temporal", mas isso ainda não o justifica. Importa saber a importância que esse pensamento tem na História.

Talvez se pudesse objetar que uma condenação sumária dos pensadores do Iluminismo sujeitaria esses senhores a um tratamento que obedeceria a uma lógica identitária injustificada, como se eles se resumissem totalmente ao seu crime intelectual negativo. Até certo ponto teremos mesmo de comportar-nos em relação a eles dum modo assim tão supostamente "injusto" para finalmente nos livrarmos desta pesada hipoteca ideal. Tal como os democratas musculados, como se sabe, espalham a palavra de ordem "Nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade" (referindo-se com isso, sem qualquer dúvida, mais à crítica emancipatória do que aos próprios familiares racistas), a crítica do valor e da dissociação poderia proceder segundo o mote: "Nenhuma isenção do processo da lógica identitária para os ideólogos da lógica identitária" porque, de outro modo, nunca mais nos vemos livres deles.

É evidente que nesta aparente vertigem também a posição histórica da crítica do valor e da dissociação entra como algo que inevitavelmente determina a perspectiva: Se for mesmo verdade que nos encontramos no limite da "pré-história" das relações de fetiche, todo o pensamento que faça parte dessa pré-história de forma afirmativa (ou seja, se encontre apegado às relações de fetiche, as justifique e ajude a constituí-las) chegou ao fim do respectivo prazo de validade e, sob esse aspecto, tem de ser negado.

No entanto, isto não quer dizer que o pensamento se encontre num zero absoluto e que todo o pensamento desenvolvido até à data possa ser deitado para a lixeira da História sem mais considerações. O pensamento nunca se limitou a pensar e a representar a escravizante forma, tendo igualmente abordado o sofrimento causado por ela, por muito distorcido ou pouco claro que tenha sido o modo de o fazer. A este respeito, o que importa é elaborarmos uma nova diferenciação dos resultados desse pensamento, darmos à "história intelectual" préexistente uma arrumação diferente que se coadune com a nova perspectiva. E aí os pensadores do Iluminismo que afirmaram de forma militante a moderna forma do sujeito e, com isso, andaram a afirmar a moderna história de sofrimentos e impertinências acabam infinitamente mais mal vistos do que seria o caso numa crítica que apenas se enquadrasse na história imanente da imposição da Modernidade e que ajudou a relação de valor e dissociação a adquirir a sua autoconsciência em vez de a superar.

É precisamente nesta medida que a crítica do valor e da dissociação pode aferir a medida em que superou o modus da lógica identitária, de certa maneira, também pelo modo como se debate com a época do Iluminismo. Por um lado, trazendo à luz ideias dissidentes que até à data mereceram pouca atenção para lá da disputa imanente do Iluminismo e do Contrailuminismo a ele associado, debruçando-se sobre as resistências sociais e os movimentos sociais etc. da época de um outro modo do que o faz a metafísica iluminista da história. A época do Iluminismo de modo algum se resume ao Iluminismo.

Por outro lado, também importa colocar em destaque a contraditoriedade interna da própria filosofia iluminista. Mas tal simplesmente não pode acontecer da mesma forma que até à data, tal como por exemplo até o próprio Adorno ainda tentou extrair desse corpo de ideias repressivo e caraterizado por uma ideologia autoritária um elemento supostamente "bom" e emancipatório. Antes já pode apenas tratar-se de demonstrar como o Iluminismo se enreda em antinomias e aporias impossíveis de superar no seu próprio âmbito, assim desvendando involuntariamente como o totalitarismo da socialização do valor não dá e nem pode dar certo. Original alemão Negative Ontologie. Die Dunkelmänner der Aufklärung und die Geschichtsmetaphysik der Moderne in Revista KRISIS, nº 26, janeiro de 2003. Tradução de Lumir Nahodil, 05.03.2003.

TABULA RASA Até onde é desejável, obrigatório ou lícito que vá a crítica ao Iluminismo? A crítica radical tem que se debater com a inércia aparentemente avassaladora do existente que se sedimentou na consciência geral e, por conseguinte, também na esfera teórica da sociedade; e não apenas no plano da reflexão enquanto tal, mas igualmente nos hábitos e preconceitos intelectuais, nas imaginações e nos ideais, assim como nas limitações institucionais, nos limites impostos por tabus etc. Tanto mais importa, quando se trata de formular uma crítica radical da própria crítica radical, revolucioná-la, dotá-la de um paradigma novo. Nesse contexto coloca-se o problema da resistência de atrito em potência, porque nesse caso a sedimentação de algo existente tem de ser superada em um sentido duplo: por um lado, na consciência geral da sociedade oficial e, por outro, no seio da consciência geral da crítica exercida até à data que se pretende transformar.

A sociologia do saber de variadas proveniências demonstra em que medida no desenvolvimento da ciência, e igualmente no desenvolvimento da teoria crítica, tanto no que diz respeito à sua relação para com a ciência oficial como no seu próprio solo, se encontram em ação fatores e motivações em tudo divergentes da mera reflexão pura, procura da verdade e honestidade intelectual. O postulado de Weber da isenção de juízos de valor e o de Habermas no sentido do discurso isento de dominação são igualmente ilusórios. Sob as condições das relações de fetiche no geral e da subjetividade concorrencial capitalista em particular erguem-se obstáculos à reflexão, não apenas no plano do conteúdo, mas igualmente ao nível das referências.

Aí aplicam-se leis tacitamente pressupostas no que respeita à reputação, defendem-se identidades, desenvolvem-se aversões, exprimem-se idiossincrasias e resolvem-se rivalidades. Existe algo como uma etiqueta teórica que estabelece o que é "sério", "científico", "em concordância com os requisitos metódicos", etc., e o que não o é. Assim não se estabelece uma

fronteira apenas formal, mas igualmente extensiva aos conteúdos, não se cultiva uma mera correctness do trato social, mas também se defende um common sense. Tanto a ciência oficial como a teoria crítica no seu respectivo status quo cerram fileiras contra intrusos e arrivistas, em nada diferindo a esse respeito de quaisquer outras instituições burguesas e sociedades herméticas; defendem-se tanto de diletantes e charlatães como de renovadores e revolucionários, sendo que não distinguem necessariamente entre uns e outros. O "pontapé na gramática" começa invariavelmente por deparar com uma rejeição veemente. Mas obviamente existem vários graus de comportamentos defensivos. Desde o que ainda passa à justa como suportável ou o que apenas é considerado marginal, excêntrico etc. até ao pura e simplesmente insuportável estende-se um vasto parêntesis.

No entanto, também qualquer movimento renovador ou revolucionário se apresenta, por seu lado, como descontínuo e fragmentado. Um avanço vanguardista nunca chega à superfície da consciência social como paradigma novo finalmente imposto na sua versão e forma primitiva. E o movimento ocorre de um modo nem uniforme, nem simultâneo: Até que uma transformação tenha alcançado o seu objetivo, são necessárias inúmeras tentativas. Tal conduz, sempre de novo, a conflitos, necessários e desnecessários, muitas vezes aflitivos. Também a própria crítica transformadora segue inevitavelmente não apenas pontos de vista cognitivos ou um puro caminho para a verdade. Nem todos acompanham todos os movimentos, alguns deslocam-se para o lado, outros encontram uma fronteira onde talvez ainda não haja fronteira nenhuma. Quando "chega" e onde se vai "longe demais" é coisa que ainda tem de se revelar.

Não raramente a rejeição manifesta-se em primeiro lugar como uma crítica formal e estilística. Cada invectiva para além das fronteiras pré-existentes encontra-se associada a uma espécie de alegria da descoberta e a um certo gesto agressivo, em que se reflete a autoafirmação do novo contra a inércia paralisante do velho. E quase todas as batalhas de retirada teóricas começam pelo aparecimento de portadores de dúvidas que perdem o gosto ao ímpeto do ataque, ao passo que outros somente se deixam ganhar pelo mesmo para a nova teoria crítica, visto com as suas próprias interrogações conseguirem identificar-se precisamente com o desenvolvimento ulterior agudizado. A

consciência refreadora, pelo contrário, que ou recusa a crítica transformadora por princípio, ou não quer acompanhá-la mais a partir de um determinado ponto, preferindo ficar por aí, começa por se incomodar, segundo o gesto, "à boa maneira burguesa", com o estilo supostamente "triunfalista", com o ímpeto agressivo, com a formulação polémica, com o exagero, com a "unilateralidade", com as maneiras teóricas de se portar à mesa, etc.

No desenvolvimento da teoria crítica do valor para além do "marxismo" foi, até à data, sobretudo a passagem para a crítica categorial do trabalho o que provocou um bloqueio identitário e uma campanha formal de difamação pela parte dos que ficaram para trás: "Agora foram longe demais" era o subtexto de um discurso em contrário que se servia de argumentos em tudo semelhantes aos habitualmente utilizados pelos guardas académicos locais e de quarteirão contra quaisquer teses revolucionárias. Os críticos do trabalho, assim se faziam ouvir os ontólogos do trabalho marxistas, "não teriam lido" Marx (ou, em todo o caso, não o teriam lido da forma adequada), o seu processo seria "impuro" em termos metodológicos e filológicos, as contradições interiores à teoria de Marx seriam apenas "construídas", sendo a contextualização histórica a bem ver "inadmissível", etc. A negação pura e dura da categoria do "trabalho", tudo menos relativizante, provocou mesmo nos comentadores bem intencionados, mas em parte ainda fiéis ao marxismo do movimento operário, por assim dizer as fúrias da relativização. Quanto mais pobres e apologéticos eram os contra-argumentos referentes ao conteúdo, maior era a veemência com que os seus autores se refugiavam na arrogância de anotações de pauta ao estilo de professores de liceu inveterados: "Assim não se pode lidar com o assunto." Como se mostrou até à data, nos pontos fulcrais do desenvolvimento da teoria crítica do valor podem surgir dificuldades inesperadas, que tanto podem tomar a forma de desencaminhamentos da crítica como a de bloqueios identitários.

O rasto de travagem parece manifestar se, antes de tudo o mais, na crescente tendência para uma espécie de pachorra e equilíbrio académicos, o que poderia provocar uma agudização apodíctica tanto mais veemente do outro lado. Mas enquanto as questões não estiverem formuladas com a clareza suficiente e, por isso, as fronteiras não se encontrarem definidas com precisão, não se pode formular uma delimitação definitiva, mas, sim, fazer avançar uma

disputa. O ímpeto polémico não deve induzir em uma pessoa, invertendo simplesmente o bloqueio identitário, bloquear por seu lado a priori toda a anticrítica que vise a crítica com pretensões transformadoras, e negar o carácter discursivo da elaboração teórica. Um mero progredir sem qualquer resistência seria fatal, visto a transformação da crítica ser assim defraudada de uma instância reflexiva imprescindível. Nem toda a relativização atua como um travão, e nem todo o reparo que invoque a complexidade é reacionário no plano teórico. Também a hesitação pode ser produtiva, também o calcorrear de descaminhos pode trazer à luz do dia conhecimentos novos. E mesmo o bloqueio identitário tem a sua significância, se bem que infeliz, ao coagir a crítica transformadora a revestir-se de acuidade e precisão terminológica. Por fim também influem sobre a complexidade da elaboração teórica as diferenças de temperamento e relativas ao modo de proceder que não implicam a priori uma oposição inamistosa (e que muitas vezes apenas descambam em um ressentimento aberto devido a uma falta de reflexão e autorreflexão a este nível).

No avanço da crítica transformadora para além das formas de pensamento e atuação da Modernidade produtora de mercadorias coloca-se, portanto, sempre de novo a velha questão: O que é o quê? O que é um bloqueio identitário e o que é um reparo produtivo, o que é uma ruptura em termos de conteúdos e o que não passa de um estilo diferente, o que é uma apologética e o que é uma necessária diversificação da crítica? Estas questões não podem ser decididas à partida, por decreto ou idiossincrasia, mas apenas "na coisa em si", ou seja, colocando-se em destaque o conteúdo tanto pela via discursiva como de forma apodíctica, tanto em termos polémicos como pela relativização. Na mesma medida em que a anticrítica se torna identitária e assim apologética no que diz respeito ao objeto social da crítica, ela talvez já não possa ser alcançada por qualquer argumentação; mas é lícito ter-se confiança suficiente na dinâmica própria do movimento transformador para se fazer fé em que este ainda assim saberá ultrapassar todas as tentativas de travagem até ter alcançado a sua destinação histórica.

Neste sentido é fácil de ver que o percurso da "destruição criadora" do velho paradigma da crítica social, categorialmente vinculado ao seu objeto, ainda não se encontra de forma alguma terminado. Ainda há que matar várias vacas

sagradas. Isso diz respeito, antes de tudo o mais, aos tópicos essenciais do chamado Iluminismo, desse movimento filosófico do século XVIII, em que a constituição do mundo moderno e do seu sistema produtor de mercadorias se encena como reflexão positiva, permeando e determinando desse modo até hoje, implícita ou explicitamente, não só a apologética ruminante como igualmente a crítica demasiadamente inconsistente e igualmente ruminante. Especialmente sob esse aspecto a destruição radical dos conceitos não pode ser moderada, tendo de ser levada até ao fim de um modo coerente.

Certamente, na crítica do Iluminismo em geral, ainda mais do que no que diz respeito à crítica do trabalho, em particular, o que está em causa é a prata da casa da consciência burguesa, incluindo os seus derivados ou apêndices "de esquerda" ou "marxistas". Por isso, o que importa é, por um lado, passar em revista com toda a minúcia todos os seus cantos e recantos, argumentando com um cuidado redobrado, tendo em conta todos os seus níveis e não deixando aberta nem uma porta do cavalo para uma apologética sorrateira. Tal, no entanto, não pode, de modo algum, querer significar uma renúncia às teses agudizadoras, antes pelo contrário. É que, por outro lado, a crítica do Iluminismo até tem de atuar de um modo particularmente agressivo, visto que apenas nesse ponto é alcançada a fonte de toda a paralisia e cegueira do pensamento emancipatório da Modernidade. A questão decisiva é esta: O que é que se mantém do pensamento da Modernidade burguesa, e o que tem de ser implacavelmente abolido? Por outras palavras: Até onde pode e deve ir, afinal, a dura negação? A questão central, neste contexto, é o destino do pensamento iluminista. Haverá aqui algo a salvar, ou nem por isso? No caso afirmativo, o que é, e no caso contrário, quais são as implicações?

A análise que se segue refere-se a argumentações em parte publicadas (e devidamente assinaladas), em parte orais e internas, algumas explícitas, outras implícitas ou virtuais, em parte afirmadas no círculo restrito da própria crítica do Iluminismo, em parte exteriormente ao mesmo, ou que, de um modo geral, se encontram na ordem do dia na esfera teórica, dizendo respeito a este problema do alcance e da "admissibilidade" da crítica radical do Iluminismo com pretensões emancipatórias. Trata-se de definir com maior clareza a lógica da negação radical na sua relação fundamental para com as conquistas

inegáveis da História e de desvendar as estratégias defensivas do "sujeito ocidental" masculino.

Inimizade ou herança?

Como não seria de esperar de outro modo, o aprofundamento da crítica radical da filosofia burguesa do Iluminismo depara com um largo espectro de resistências no seio da assistência crítica da sociedade (é que o que já foi um movimento social, tendo agora sido relegado para uma nova reflexão teórica, para já não passa de uma assistência). O que, como consequência de uma travessia transformadora do pensamento pré-existente da crítica social emancipatória, entretanto tornado obsoleto, parecia ser desenvolvido, por assim dizer, com base na reflexão teórica pura – em termos concretos justamente a negação do pensamento iluminista, das suas justificações filosóficas e das suas ideologias em uma dimensão nova, crítica do valor – adquiriu, o mais tardar a partir do 11 de Setembro, uma atualidade imediata inesperada com relação ao processo de crise real da sociedade mundial capitalista. É que precisamente no mesmo momento em que este novo nível da reflexão se abria como uma necessidade imanente da reflexão teórica, a consciência mundial burguesa oficial recordou-se, com uma militância de crise de dentes arreganhados, da fundamentação dos seus "valores ocidentais" no século XVIII, a fim de se legitimar, na guerra de fantasmas com os seus próprios demónios.

A crítica radical da ideologia iluminista dotada de uma nova qualidade não pode, por isso, ser percepcionada, em uma situação de uma relativa acalmia social, como "pensamento interessante" no âmbito do jogo ao berlinde da esotérica burguesa; manifesta-se, antes, de forma imediata como uma declaração de guerra ao nível de abstração mais elevado. E assim ela torna-se, de uma forma igualmente inesperada, ao mesmo tempo um casus belli [caso de guerra] a esse mesmo nível, no seio da esquerda residual de inspiração marxista; e é-o muito mais ainda do que já o foi a crítica do trabalho. É que uma parte do que resta da esquerda radical, ao menos da alemã, descobriu, sob a impressão da escalada da barbárie no seio da sociedade global de crise, as suas raízes e a sua pátria intelectual na Modernidade ocidental, a fim de

agora debitar, com um fanatismo tanto maior, uma homenagem solene, que ainda supera o catecismo democrático oficial, ao chamado Iluminismo como ponto de partida e de chegada de todo o pensamento emancipatório "lícito", denunciando qualquer intenção de beliscar as vacas sagradas do Ocidente como uma cumplicidade supostamente reacionária com a barbárie, como "fascista", como fruto de uma nostalgia irracional da "idiotia da vida rural", como recaída para os "horrores da natureza" anteriores à Modernidade, etc.

Esta soada burguesa de esquerda e iluminista, que mais uma vez tenta puxar todos os registos do mais que obsoleto pensamento ideológico da história do movimento de modernização capitalista, evidentemente já não pode ser levada completamente a sério em termos intelectuais. Do mesmo modo poderíamos debruçar-nos, no plano da reflexão teórica da sociedade, sobre os comentários sobre o estado do mundo proferidos pelo papa por ocasião da Páscoa, ou sobre documentos provenientes da Al-Qaeda. Mas a pressão ideológica é tão grande e as raízes do pensamento iluminista são tão profundas que, na "hora da aflição", precisamente para muitos representantes da esquerda que aparentam ser portadores de uma reflexão a nível teórico, não parece impor-se a agudização da crítica radical mas, pelo contrário, a defesa da "herança burguesa" que tem aproximadamente o mesmo valor que a herança das casas geminadas fordistas insuportavelmente feias, já decrépitas a ponto de não terem conserto, e cujos empréstimos ainda não se encontram completamente saldados.

Mas até nos arrabaldes de uma posição que faz questão de declarar inevitável a despedida do Iluminismo e da respectiva herança fazem-se ouvir, ao mesmo tempo, fortes dúvidas quanto à necessidade de uma ruptura clara e inequívoca. A despedida assume os traços de uma cortesia exagerada, sendo acompanhada de um chorrilho de lisonjas de tal modo interminável que, antes pelo contrário, poderiam surgir dúvidas quanto ao seu carácter de despedida. A discrição diplomática pode chegar a um ponto onde morremos à fome na soleira da porta, ou onde andamos a burilar a declaração de guerra tanto tempo que não chegamos a enviá-la. Em todo o caso, é notório que mesmo a crítica do Iluminismo declarada necessária é acompanhada de muito mais escrúpulos que, por exemplo, a crítica do trabalho. Aqui parece tocar-se em um ponto muito mais doloroso. Nas chamadas análises de cartas, se as

mesmas fossem aplicáveis aos processos revolucionários no seio da teoria crítica, falar-se-ia sem dúvida de uma "linha de resistência".

Nas disputas mantidas até à data, que não se referiam apenas ao “como”, mas, no fundo, invariavelmente também ao "quê" da necessária crítica do Iluminismo, já antes de se ter chegado ao ponto de definir conteúdos surgiram dois tópicos da relativização ou quiçá da anticrítica. Por um lado, diz-se que a crítica do Iluminismo tem de ter sempre em mente que ela própria é proveniente do pensamento iluminista e faz parte do mesmo. Por outro lado, afirma-se, como outra dedução do mesmo reparo, que o pensamento iluminista tem amplitude suficiente para conter em si a sua própria crítica. Tal, apesar de toda a conformação com a crítica do Iluminismo nas questões de pormenor, já quase soa como uma despedida da despedida, antes mesmo que tenha sido clarificada com maior pormenor a relação objetal da despedida.

Evidentemente é difícil de negar: A dificuldade de uma abordagem crítica do Iluminismo consiste, desde já, no fato de qualquer relação para com ele, mesmo crítica, ter a priori de ser determinada ou contaminada pelo Iluminismo e o respectivo modo de pensar e aparelho conceptual. Afinal os tópicos essenciais do Iluminismo não são apenas umas quaisquer ideias equiparadas a outras ideias, nem uma escola de pensamento equiparada a outras escolas de pensamento, nem determinados temas equiparados a outros tantos temas, nem tampouco um paradigma pertencente a uma disciplina científica particular, ou histórico, equiparado a outros, mas, sim, o modus de todas as ideias, escolas de pensamento, temas e paradigmas em geral no mundo moderno desde o século XVIII. Uma verdadeira crítica radical do Iluminismo, por isso, apenas é possível se não fizer referência apenas a este ou àquele conteúdo particular do pensamento iluminista, mas se destruir igualmente o modus, a forma, o método ou a abordagem fundamental desse pensamento, pondo a descoberto a respectiva mecânica interior.

Um aspecto importante desse pensamento é a categoria do "progresso" falando de um modo mais neutro e, por assim dizer, "metódico", "desenvolvimento"; este aspecto encontra-se mais "desenvolvido" arquitetura do pensamento sistémico de Hegel. Este modo de pensar

ou, do na tira

proveito da evidência lógica de que todas as coisas e relações neste mundo são finitas e percorrem um processo inserido no tempo. No entanto, a esta evidência banal é associada, a jeito de um passageiro clandestino, uma determinada valoração positiva, segundo a qual primeiro os estados de desenvolvimento respectivamente posteriores são necessariamente "mais elevados" e "melhores", apesar de em princípio poder verificar-se o preciso oposto; e, segundo, que a dinâmica do desenvolvimento é suportada por um princípio ontológico positivo, ou seja, que invariavelmente tem de transportar ou levar consigo "algo" que não pode ser rejeitado.

Esta valoração não é de modo algum obrigatória, mas tornou-se parte integrante do conceito moderno do desenvolvimento. A conotação positiva deste conceito serve, no entanto, um desígnio ideológico, nomeadamente o da apologética da socialização do valor, da respectiva forma do sujeito e dos seus protagonistas filosóficos, ou seja, precisamente dos iluministas que, por assim dizer, deste modo quiseram tornar impermeável o posicionamento do seu objeto social, assim como o seu próprio, no seio da História. Pretende-se empurrar qualquer crítica do Iluminismo para o papel da lebre a correr contra a tartaruga. Por conseguinte, o primeiro requisito de uma crítica do Iluminismo realmente transcendente e que arrombe a prisão categorial consiste em negar a lógica iluminista do desenvolvimento, ou seja, em pôr a descoberto o truque grosseiro da tartaruga e nem sequer se disponibilizar para jogar segundo as suas regras. Só por ser a Modernidade, ou seja, o patamar mais recente das formações sociais fetichistas, ela ainda não tem de representar necessariamente um estado social "mais elevado", nem tem de conter necessariamente um momento emancipatório digno de ser conservado.

Uma vez que esta rasteira da constelação inicial esteja posta a nu, a inimizade emancipatória face à ideologia apologética do Iluminismo pode ser formulada sem quaisquer constrangimentos e, assim, com a devida dureza. Nesse caso, as relativizações apriorísticas acima referidas assumem um aspecto peculiarmente paradoxal. Evidentemente uma crítica radical do Iluminismo pode por seu lado ser criticada no que a conteúdos diz respeito, e tem de se afirmar de um modo argumentativo, mas não tem de começar por comprovar a possibilidade da sua existência. A questão apriorística da possibilidade da sua existência corresponde ao truque saloio da tartaruga que nem sequer põe a hipótese de

participar na corrida real. Do ponto de vista próprio da crítica, o paradoxo consiste justamente em fazer de si a priori a estúpida de uma lebre que faz suas as condições do objeto da sua crítica, ameaçando desmentir desse modo a sua qualidade de crítica.

Uma crítica que, antes de tudo o mais, se interroga se tem de todo o direito de existir, retrata-se mal tenha colocado um pé em terra. Desde quando começa a inimizade com a afirmação da irmandade de sangue, a despedida com a declaração da respectiva impossibilidade, e a crítica radical com a constatação de se encontrar desde sempre contida no seu objeto? O pensamento iluminista como reflexão teórica da abstração do valor tem somente a amplitude suficiente para absorver e "abarcar" todos os objetos, necessidades, ideias ou épocas na medida em que os mesmos são assimilados à lógica do valor e, assim, aniquilados na sua qualidade própria. A própria crítica deste modus de uma capacidade de absorção universal apenas aparente, porém, não só não é contida nesse pensamento como é tornada quase que impossível de ser pensada. Nesta medida, a ideia desta crítica é, já na sua primeira forma embrionária abstrata, o princípio do fim do pensamento iluminista; contudo, apenas o é na medida em que não é relativizada a priori e retirada da forma paradoxal que acabamos de descrever.

Afinal, se eu sei que o objeto da minha crítica, que tenho todas as razões para superar, me agarra com todas as fibras, o meu impulso tem de consistir em sacudir essas amarras à força se assim tiver de ser, e não em certificar-me de forma empolada de semelhante prisão. O alfa e o ómega da crítica que merece o seu nome pode ser unicamente a negação. Se e em que medida algo resta do objeto da negação podendo ser levado para diante, e o que seria esse algo, isso apenas pode ser constatado a posteriori, depois da passagem pelo processo negatório. Os referidos tópicos da anticrítica e da relativização, porém, sugerem um modo de proceder diametralmente oposto: Segundo eles, a seriedade e a defensabilidade argumentativa da crítica do Iluminismo deverão comprovar-se logo pelo fato de, a priori, anteriormente a qualquer confronto com o objeto em si, se postular que a crítica apenas pode e deve existir se ela mantiver "algo" do objeto ou se desde sempre se movimentar no âmbito desse objeto.

No fundo, semelhante postura apenas pode ser assumida se o ponto de partida não for a incondicionalidade da crítica, mas a incondicionalidade do que há que conservar, da afirmação, da "vontade de salvação" (quase que uma "mania da salvação"); se não se proceder de um modo ofensivamente negatório, mas defensivamente positivador e se a crítica radical do Iluminismo for vivenciada, na realidade, antes de todo o mais como assustadora e quase que vexatória. Deste modo, a crítica ameaça ser recapturada pela concepção a priori afirmativa e legitimadora do pensamento iluminista.

Certamente naquilo que aqui tem de ser negado por princípio não se trata de um objeto exterior, tal como talvez, apesar de todos os processos de interiorização, ainda pudesse ter sido considerada a categoria do trabalho. Antes trata-se agora do modus da contemplação e do tratamento do mundo, do modo de pensar o próprio pensamento, da suplantação da forma de mediação da consciência que de um certo modo (se bem que masoquista) parece ser o Eu social próprio. Por tudo isso, a desconfiança do pensamento crítico para consigo próprio não deixa de se justificar.

Mas o que significa, neste contexto, a advertência pronunciada com o dedo indicador estranhamente erguido: Tem em mente, ó crítico, que tu próprio és uma criatura do Iluminismo, que és necessariamente carne da carne daquilo contra o que te viras? Se assim for, e evidentemente é assim mesmo, a crítica de fato tem de desconfiar de si própria, mas em que aspecto? Certamente não no sentido de ter de temer que tenha porventura "ido longe demais", antes de ter realmente começado! Antes, e logicamente, única e exclusivamente no sentido de porventura vir a recuar perante as consequências decisivas, de vir a tomar um desvio e bater em retirada a fim de regressar às putativas panelas de carne egípcias da autoescravização iluminista.

A ideologia iluminista não pode ser morta da mesma forma como uma velha tia maliciosa e dominadora, cuja herança, no entanto cobiçamos. Nas considerações gerais do modus social tem de ficar inscrito: Não há nada a herdar, há é que livrar-se de algo. E livrar-se bem livrado.

Os ícones do Iluminismo

Não deixa de haver algo de estranho no fato da atitude da crítica dever tornarse repentinamente modesta, logo quando começa a estar em causa a prata da casa. Onde, em etapas anteriores da crítica do valor, se dizia "refrescante", agora lê-se "duvidoso" ou "repugnante", para não dizer "melindroso". Sabe-se lá porquê, de repente começa a feder a incenso. Segundo parece, estamos a aproximar-nos sem o devido respeito do santuário, onde de repente é exigido respeitinho do melhor. Baixa a cabeça, dobra o joelho; e nunca por nunca te esqueças de entregar as armas no bengaleiro, porque no templo não se arrastam durindanas, nem se brinca com o revólver.

A veneração é um sentimento essencialmente religioso; e na maior parte das religiões existem, como objetos exteriores da veneração, ídolos ou ícones. Esta relação pode evidentemente ser transposta igualmente para a História terrena, sob a forma de uma iconografia, ou hagiografia, intelectual ou política. As relações de fetiche têm sempre as suas galerias de antepassados, as suas imagens de santos e objetos de devoção que pouco têm que ver com um respeito por realizações pessoais, e muito com uma autointegração supersticiosa em um contexto tradicional irrefletido. Qualquer escola convencional do pensamento, qualquer época de situações de dominação, qualquer estado e qualquer instituição, e até qualquer clube de futebol tem de certo modo os seus próprios ícones, pais fundadores, ideólogos, heróis, nossas senhoras, etc. A ruptura com uma determinada relação ou contexto é, por isso, necessariamente também e sobretudo uma ruptura com a sua forma específica de devoção. É que não em último lugar é esta que coloca ao pensamento libertador outras limitações que não são apenas cognitivas.

Sem dúvida também o próprio Iluminismo representa a ruptura com um determinado tipo de devoção, e até, de certa forma, uma ruptura com tudo o que até à sua época foi designado por religião, ou seja, a consciência de fetiche das velhas civilizações agrárias. Na sua crítica da agudização da crítica do Iluminismo, Anselm Jappe pega nesse fato para, por assim dizer, virar o bico ao prego: "Mas existe um ponto em que a crítica do Iluminismo realmente parece permanecer profundamente iluminista, e até mais iluminista que o

próprio Iluminismo: estamos a falar do desejo de fazer tábua rasa, do iconoclasmo, da ruptura com todas as tradições. Se apenas podemos ‘virar as costas, com raiva e nojo, a todo o lixo intelectual do Ocidente...’, o que nos resta é realmente começarmos do zero sem nos podermos basear sobre qualquer coisa que viesse de trás" (Uma questão de ponto de vista. Anotações a propósito da crítica do Iluminismo, in: Krisis 26/2003).

Quero referir-me aqui, para já, apenas ao conceito do iconoclasmo, do ataque dirigido contra as imagens. O que terá isso de mau? Os ícones de todo o tipo não são o mundo, representando apenas um determinado entendimento do mundo e relacionamento com o mesmo. É evidente que a acusação do iconoclasmo evoca determinadas associações negativas: Quem não se recordaria, mesmo sem querer, da muito badalada barbárie dos talibãs que, perante os olhos do mundo inteiro, usaram canhões para reduzirem a escombros estátuas de Buda historicamente valiosas? A barbárie, aqui, no entanto, reside na falta de sincronicidade histórica. Evidentemente apenas pode ser "historicamente valioso", no sentido de uma obra de arte de Museu ou de um artefato protegido como património histórico, um objeto que já há muito se encontra despido da respectiva veneração devota e que, por isso, já não consegue despertar de forma imediata afetos positivos, nem negativos, mas apenas sensações estéticas dissociadas e interesses antiquários em um sentido que, de resto, já é especificamente moderno.

Como é evidente, para os talibãs as estátuas de Buda não constituíam semelhantes objetos de interesse histórico ou estético, mas, sim, símbolos imediatamente ameaçadores e incómodos na atualidade de princípios inimigos a superar. O fato de se ter tratado, mesmo assim, em termos objetivos de pura barbárie, e não de um ato revolucionário ou até libertador, deve-se unicamente à circunstância de os talibãs não representarem um movimento transcendente, uma nova forma de estar em sociedade ou o futuro da Humanidade, não sendo, eles próprios, outra coisa senão produtos de decomposição da própria Modernidade: tal como todos os fundamentalismos contemporâneos, pseudo-religiosos ou étnicos, constituem uma regressão tão assustadora como destrutiva, como se a uma parte da Humanidade voltassem a crescer rabos ou pelos em todo o corpo. É que, independentemente de, no contínuo negativo das relações de fetiche, não poder existir um "progresso"

positivo das relações sociais rumo a estados "superiores", também nunca pode existir um "regresso" a situações anteriores; o impulso reacionário sempre apenas representa um momento de crise no seio da respectiva formação, e a regressão sempre pode apenas assumir os traços fantasmaticamente irreais de um ser não-morto.

Tratou-se, portanto, neste caso de um iconoclasmo não só assíncrono, como igualmente ahistórico, meramente regressivo. No entanto, isso não altera o fato de também qualquer verdadeira ruptura histórica, qualquer revolução mental e social, qualquer força histórica que estava prenhe de um futuro, no seio de relações de fetiche sempre tiveram de se fazer acompanhar de alguma forma de iconoclasmo, porque de outro modo o novo não teria sido capaz de se impor ao velho. Se S. Bonifácio cortou o carvalho de Donar, se os protestantes atiraram para fora das suas igrejas os santos católicos ou se Voltaire atacou a igreja no seu todo com o grito de guerra "écrasez l’infâme", sempre as imagens e os símbolos da época a abater foram removidos sem dó nem piedade. Não existe qualquer motivo para a suposição de que, no limite histórico das relações de fetiche em geral, as coisas poderiam passar-se de outro modo com a Modernidade e os seus ícones. Justamente porque não ultrapassámos a forma de uma síntese social fetichizada, a luta mais ou menos aguerrida para se sair dessa forma tem de fazer-se acompanhar, por seu lado, por uma música de fundo iconoclasta.

Nesta medida, de certo modo está a acontecer ao Iluminismo simplesmente o mesmo que o Iluminismo tinha feito, por seu lado, com os ícones da consciência pré-moderna, embora evidentemente, no seu tempo, também tivesse de começar por ser carne da carne daquilo contra o que se voltava. No entanto, virar-se, agora, do mesmo modo contra o Iluminismo não constitui nem a repetição, nem a caricatura do modo de proceder iluminista, na medida em que pelo seu objeto se trata de destruir, desta feita, o próprio Iluminismo juntamente com os seus ícones como momento constitutivo da religião secularizada, ou metafísica real, da relação do valor e da dissociação. Pela postura, porém, igualmente não se trata de uma atividade especificamente iluminista, em todo o caso enquanto falarmos do iconoclasmo como tal. É que semelhantes atos acompanharam os movimentos revolucionários em todas as épocas da História.

Ainda assim existe uma diferença importante em relação aos iconoclasmos anteriores. É que os ícones do Iluminismo são de outra índole que os ídolos e objetos de devoção históricos. Em um sentido ainda muito mais eminente que, por exemplo, o Deus islâmico, o ser metafísico real do valor não consente qualquer retrato de si, qualquer objeto de devoção palpável e qualquer objetualidade para além da mistificação banal do dinheiro. A abstração real escarnece de todos os símbolos e imagens secundários, satisfazse a si própria como vácua abstração, ao passo que toda a expressão sensível e simbólica e toda a representação física lhe serve apenas de cenário material indiferente. Em termos imediatos, os ícones do Iluminismo são, por isso, de uma natureza tão abstrata como o que representam: Não se trata de imagens no sentido verdadeiro, mas das figuras de reflexão teórico-filosóficas e positivadoras da relação de valor e dissociação. Neste fato também se exprime a objetualização da nova, mais recente e última forma de fetiche e das respectivas exigências de submissão.

As qualidades da abstratificação (abstração real), secularização e objetualização excluem a tentativa de um iconoclasmo pessoal ou objetal face ao Iluminismo. Seria apenas ridículo proceder, por exemplo, à destruição solene de bustos de Kant. As sumidades intelectuais do panteão burguês masculino não constituem o objeto de uma veneração supersticiosa na sua figura pessoal imediata ou respectivas réplicas, mas unicamente como portadores do conteúdo afirmativo da reflexão.

Por isso, também é inadequada outra associação que talvez se imponha quando se faz ouvir a acusação de iconoclasmo, nomeadamente a recordação dos famigerados autos-de-fé. Este ato, que sempre apenas pode ser de barbárie, na história das formações de fetiche apenas raramente foi acompanhado por meros atos iconoclastas de forças progressistas; antes pelo contrário, na história do "Ocidente cristão" tratou-se sobretudo de tentativas da respectiva reação de literalmente extinguir pensamentos sentidos como revolucionários. Houve quem dissesse com toda a razão que quem queima livros também queima pessoas.

A crítica do Iluminismo, no entanto, não só não pode equivaler a um auto-defé por ser revolucionária em vez de reacionária e devido ao seu iconoclasmo específico já não se referir a qualquer objetualidade grosseira, mas sobretudo por se tratar de um iconoclasmo no limite das relações de fetiche em geral, já não se inserindo nesse contínuo. Afinal o que está na ordem do dia é a ruptura com esse próprio género de relação, excluindo por si só qualquer tipo de mero fanatismo e, com ele, qualquer vontade de destruição meramente exterior e objetualizada. Com efeito, nessa mesma medida ainda é inevitável que a crítica do Iluminismo como disputa no plano do fetiche se faça acompanhar de momentos de iconoclasmo. No entanto, na sua função de crítica do fetichismo no seu todo, que já não cria qualquer relação de fetiche nova, ela distingue-se também qualitativamente de todos os iconoclasmos anteriores. Tanto pelo seu objeto como pela sua intenção, a crítica radical da qualidade negativa do fetichismo especificamente moderno, que conduziu de um modo catastrófico aos limites da "pré-história" no seu todo, no sentido que lhe era dado por Marx, exige que se vá além de todo o tipo de vinculação simbólica exteriorizada que se encontre subtraída à reflexão. Apenas onde uma forma de fetiche é substituída por outra, o iconoclasmo pode ocorrer sob a forma de um literal ataque às imagens, ou até acarretar a reação de se queimarem livros ou pessoas.

A crítica do Iluminismo tem de destruir a devoção da Modernidade, a qual, no entanto, se manifesta de uma forma imediata sob a forma da devoção face à forma social e à sua forma de reflexão. É precisamente nesse sentido que ocorrem os perpétuos salamaleques perante os philosophes e sobretudo diante de Kant, tal como são exercidos de uma forma ritual pelos teóricos tanto liberais como conservadores e esquerdistas, com ramificações até ao âmago da esquerda radical e até da própria crítica do Iluminismo. Os bastiões avançados desta fortaleza da devoção são constituídos por determinadas mentiras piedosas que, por seu lado, devem encontrar-se situadas de forma apriorística a montante de qualquer tipo de conteúdo, ou que devem fazer com que a crítica se perca no vazio antes de ter de todo começado.

Deste modo, por exemplo, o ataque polémico ao Iluminismo e respectivos ícones é rejeitado de uma forma meio irónica, meio piedosa como sendo inadequado, visto parecer maltratar os mortos de um modo geral. Piedosa em

conformidade com o velho mote: De mortuis nil nisi bene [Dos mortos apenas se deve falar bem] – daí que o que estás a dizer constitui uma profanação de cadáveres, de cemitérios e de monumentos; algo que um teórico decente nunca faria. E um pouco irónica, se bem que de forma forçada: Afinal, o mundo já há muito ultrapassou esses tempos, o condicionamento de um Kant hoje já não existe – e lá estás tu a bater no ceguinho; e isso não fica nada bem a quem se reclama de uma atitude culta e refletida.

Se e quando aqui é referido o momento dos condicionalismos históricos, a tal encontra-se implicitamente associado o relapso nessa lógica iluminista do desenvolvimento. A mensagem subliminar desta anticrítica quer dizer que "no seu tempo" foi simplesmente "a vez" de Kant dizer de sua justiça, tendo representado um determinado patamar (supostamente necessário) do desenvolvimento do pensamento reflexivo ou do "progresso teórico"; hoje em dia, evidentemente ter-se-ia de ir mais longe, mas afinal não se pode atacar a História enquanto tal. E assim Kant aparece, uma vez mais, como arquiteto de um edifício de pensamentos que não terá porventura de ser demolido, mas cuja construção de algum modo deverá ser continuada: ou seja, a continuidade em vez da ruptura. Ou então, de um modo paradoxal, a ruptura parece rompida por seu lado; como uma ruptura que já deixou de o ser.

Pois é claro que não se pode criticar a História enquanto tal; mas pode, sim, criticar-se a História na medida em que é presente. O fato de Kant ser tudo menos um ceguinho, apresentando-se antes, na sua elaborada arquitetura de uma obra de arte integral teórica de afirmação pura e dura, como um adversário vivo e bem vivo, enquanto a forma de reflexão por ele tornada explícita se entranhou até à inconsciência do pensamento quotidiano de uma Humanidade capitalista – este fato decisivo apenas é admitido da singular maneira que consiste na afirmação de que, logo devido a esse fato, a crítica radical teria de "reconhecer" a consciência reflexiva de Kant de um modo algo respeitoso para se conseguir dar conta da forma entretanto socialmente sedimentada desta reflexão, em vez de lidar e ajustar as contas com Kant, o portador e ideólogo desta forma de pensar e agir entretanto inconscientemente objetivada, de um modo tão polémico e agressivo como é adequado ao carácter destruidor do mundo da mesma.

Uma variante desta falsa devoção no seio da crítica do Iluminismo consiste em atestar aos iluministas em geral, e a Kant em especial, que de certa forma já se teriam desmentido a si próprios pelas suas contradições interiores, pela sua argumentação aporética e pela insustentabilidade das suas conclusões e que a ímpia "polémica póstuma" assim no fundo carecia de assunto, visto que já não poderíamos criticar esses senhores ainda mais que eles próprios "objetivamente" já se teriam criticado a si próprios. Se é para as meras contradições interiores e a insustentabilidade, ou então um "fim ruim", serem critérios da crítica, nesse caso aí Nero foi o primeiro crítico do princípio imperial, e Hitler, o primeiro antifascista. Aqui volta a ser assumido implicitamente um ponto de vista objetivista que deixa de lado a qualidade específica da crítica como "negação não abalizada" e vê o elemento negatório unicamente na "realização" objetiva "da história" que apenas deveria ser expressa – ou seja, mais uma vez, e mais que nunca, um relapso para o interior da lógica do Iluminismo. Kant, com a sua franqueza e consciência de uma reflexão afirmativa da condição do mundo tão pouco antecipou a crítica como por exemplo de Sade o fez com a sua propaganda descarada da tortura de seres humanos e da vontade de destruir (tal como, de um modo geral, Kant e de Sade não deixam de ser figuras aparentadas que ambas deram uma mãozinha à construção da mesma lógica da abstração real).

A crítica do valor como crítica do Iluminismo não tem o menor motivo para lidar logo com esta temática de uma maneira devota e objetivista, contrariamente ao que acontece, por exemplo, no caso do desmame polémico do marxismo do movimento operário; antes pelo contrário. A polémica teórica contra todo o complexo do pensamento iluminista e da sua ideologia tem de se tornar a polémica mais acutilante de todas. Neste e apenas neste sentido aplica-se à crítica do Iluminismo, mais que alguma vez na História, a palavra de ordem despreocupada: Iconoclasmus now!

O verdadeiro objeto da crítica negatória

Ora, em Anselm Jappe a acusação de iconoclasmo encontra-se inserida em um contexto associativo muito mais amplo, caraterizado por tópicos como "fazer tábua rasa" etc. A tentativa de virar o bico ao prego vê o carácter por seu lado iluminista da crítica sobretudo na circunstância de que, no seu juízo, essa lógica implicaria: "ruptura pura e dura, a partir de amanhã nada será como dantes" (ibidem). Acontece que já no passado os ataques às imagens se referiram sempre apenas a determinados símbolos, e não a "tudo"; e lá está, a ruptura com a devoção iluminista da Modernidade pode apenas referir-se ao modo de pensar e agir fetichista, e não de um modo geral a todos e quaisquer produtos de toda a História anterior.

Por isso trata-se de um quiproquó se, no âmbito da equiparação de uma crítica do Iluminismo radical e "iconoclasta" ao próprio Iluminismo e à respectiva lógica, lemos o seguinte: "Quem está possuído pela ideia de poder fazer tudo melhor e de ser capaz de recriar o mundo com base na própria razão, ou no que se julga sê-lo, tem toda a facilidade em dar expressão à hibris e ao mecanicismo da sociedade industrial da mercadoria, para a qual o mundo não passa de um material em que a forma pura se pode realizar a bem do seu melhor enaltecimento. Por conseguinte, os movimentos revolucionários dos últimos 210 anos, na sua qualidade de expressão mais concentrada da lógica iluminista, também levaram ao paroxismo esta concepção do início em tudo novo (e assim pareciam simpáticos por comparação aos reformistas que teimavam em considerar que muito do que vinha de trás merecia ser salvo); foi esse o caso da Revolução francesa com o seu novo calendário, foi o da russa com o seu "homem novo", o da espanhola, em que Buenaventura Durruti vaticinou que o proletariado iria herdar apenas ruínas, mas que isso não o assustava, foi o caso da revolução cultural chinesa com a sua rejeição dos "quatro velhos: ideias, cultura, costumes e usos" e as suas orgias da destruição. As reformas de Atatürk, que se estendiam mesmo à escrita e à língua, aos nomes de família e ao calendário oficial, constituem outro exemplo. Invariavelmente o novo estado virava as costas, "cheio de raiva e nojo", a todo o lixo do passado a fim de criar um mundo novo à sua imagem e semelhança" (ibidem).

Aqui, momentos iconoclastas são misturados com uma caraterística fundamental do pensamento iluminista e da lógica moderna da valorização, que já não se refere a uma mera manifestação da ruptura transformadora, mas à forma de reprodução destrutiva especificamente moderna. Mas o que aqui é metido no mesmo saco tem de ser criteriosamente distinguido. A ruptura invariavelmente iconoclasta com a devoção de um estado que se queira superar é sempre um assunto temporal e tematicamente limitado, vinculado a um determinado e nada permanente processo transitório.

A ruptura iluminista, porém, libertou e desencadeou, com o princípio da valorização, um programa demoníaco de destruição do mundo que se realiza em permanência como forma de reprodução: a dissolução do mundo sensível na abstração real da forma do valor. Por isso, os momentos mais iconoclastas da ruptura burguesa e revolucionária com a sociedade agrária foram quase que insignificantes e inócuos, no que diz respeito aos seus efeitos destrutivos, se os compararmos à realização reprodutiva permanente do capitalismo sobre os seus próprios fundamentos, para lá das transições revolucionárias de outrora. O sistema produtor de mercadorias moderno é a primeira sociedade que no seu funcionamento quotidiano "normal" produz mais devastação que qualquer nascimento de uma formação nova no passado, por muito difícil que este tenha sido, incluindo o próprio.

Afinal é um pouco esquisito imputar-se e acusar-se à crítica desta lógica da destruição reprodutiva e da respectiva forma de reflexão, juntamente com o ímpeto iconoclasta contra o correspondente heroísmo intelectual do Iluminismo, de ir dar em última consequência a um programa idêntico que por fim quereria até extinguir todos os conteúdos culturais: "Existem motivos de sobra para virarmos as costas ao Iluminismo com um sentimento de raiva e nojo. Mas não necessariamente a todo o "Ocidente". E o que quer isso dizer? Aos seus filósofos? Semelhante atitude é muitas vezes justificada. Mas também à sua música? À sua literatura? À arquitetura tradicional?" (Jappe, ibidem).

A cadeia associativa da anticrítica e da relativização parece completar-se neste ponto: Quem rejeita o Iluminismo de um modo radical e iconoclasta, assim se

sugere, não quer apenas destruir, à moda dos talibãs, valiosos símbolos e objetos de arte, mas arruinar a História cultural e intelectual no seu todo, censurar as belles lettres à maneira de um índex papal e proibir a fruição da música de Beethoven ou de Mozart; a bem ver, ele até quer abolir a faca e o garfo e, de um modo geral, "regressar à idade da pedra". A bola pode já ser devolvida à origem, visto que este tipo de anticrítica em regime de associação livre foi evidentemente desde sempre a especialidade da própria consciência burguesa, destinada a emprestar aos desaforos da Modernidade a bênção do progresso e da necessidade. Foi de forma idêntica que os apologistas argumentaram tanto contra os Ludditas "maquinoclastas" do início do século XIX como contra os críticos da energia nuclear do século XX tardio: vocês querem o regresso à natureza, ao sílex, ao macaco; no fundo, vocês negam, juntamente com a nossa lógica do desaforo, a roda, o alfabeto, a arte da fuga e a roldana.

Mas certamente o cerne da questão não consistirá no vaivém da bola. Qual é ao certo o problema que se oculta atrás desta cadeia de associações, desta acusação e contra-acusação do desejo de "tábua rasa"? Parece ser um fato incontestado no contexto da crítica da lógica iluminista por ambas as partes considerada necessária que esta lógica, como derivado e forma de reflexão do princípio capitalista da valorização, pôs em marcha uma roda de Juggernaut que atropela e aniquila todos os conteúdos culturais, todos os momentos de uma "boa vida" e por fim até as bases naturais biológicas do planeta. O pomo da discórdia reside pelos vistos em saber a que pode e deve referir-se a crítica desta lógica destrutiva sem ser, por seu lado, destrutiva. O que tem, portanto, de ser ao certo criticado, negado, destruído por sua vez e superado para fazer parar o curso da destruição?

As fórmulas polémicas do "lixo intelectual do Ocidente" e do "condutor da escavadora de demolição" devem ter suscitado a rebelião de todos os arquitetos de interiores de bom gosto no campo da crítica do valor exercida até ao momento presente. Acontece, porém, que está clara e inequivocamente indicado a que se referem estas fórmulas. Não se referem a "tudo", não a toda e qualquer criação humana e natural (como o faz a lógica do valor com o seu potencial destrutivo), mas de um modo muito determinado à forma autorreflexiva do próprio princípio da destruição, nomeadamente às "ruínas

inabitáveis da subjetividade ocidental" (Robert Kurz, Razão sangrenta. 20 Teses contra o chamado Iluminismo e os "valores ocidentais", in: Krisis 25/2002). Não deixa de ser surpreendente e causador de alguma estranheza como esta referência clara é ampliada em regime de associação livre à música e à arquitetura, às forças produtivas e às conquistas de todo o tipo, assim como à cultura em termos gerais. Aqui existe, pelos vistos, alguma necessidade de clarificação.

Também não é aceitável que as metáforas fortes e polémicas possam ser tidas como responsáveis por semelhantes interpretações pejorativas, que por tanta associação abandonam o objeto realmente designado, por a isso "soarem" e porque de resto poderiam assustar pela sua agudização polémica os representantes alegadamente dispostos a discutir provenientes, por exemplo, do círculo dos adeptos ortodoxos de Adorno. Tudo o que não agrada e não sabe bem a uma pessoa por princípio "soa" sempre precisamente da forma que se quer ouvir para facilitar a rejeição, passando, por conseguinte "despercebido" tudo o que dificultaria essa mesma rejeição, mesmo que seja o próprio objeto. Existe uma espécie de jeito burguês para a discussão (incluindo nomeadamente a de uma paróquia pentecostal adorniana tornada afirmativa) que, sob o pretexto dos costumes linguísticos e das maneiras do estilo, pretende estabelecer determinados limites protegidos por tabus, delimitar os seus talhões e proteger a sua identidade juntamente com a dos seus ícones sem ter de enfrentar a disputa pelo cerne da questão.

Não nos detenhamos, portanto, com as cadeias associativas das interpretações pejorativas, mas única e exclusivamente com o verdadeiro enunciado, que pode ser conferido preto no branco, a fim de chegarmos sem rodeios ao cerne da questão. Este cerne é a forma do sujeito moderna, burguesa e estruturalmente masculina. É isso que está em questão a bem dizer, e não a música, a arquitetura e todo o tipo de conteúdos culturais, etc. Por isso, a discussão deveria centrar-se precisamente nesse ponto, e não em algo diferente que tenha a ver, quando muito, de forma indireta e mediata, ou que nem sequer tenha relevância para a questão em apreço.

Será que essa forma burguesa do sujeito da Modernidade deve ser arrancada juntamente com as respectivas raízes, radicalmente negada e superada sem apelo nem agravo, ou nem por isso – é esse o ponto. A posição contrária consistiria em presumir que essa forma do sujeito contém enquanto tal momentos emancipatórios que deveriam ser "aproveitados", de modo a que depois da passagem pela crítica "algo", talvez até o essencial, viesse a sobrar dessa forma do sujeito. O que evidentemente reduziria a crítica a um acontecimento meio apologético e a converteria, antes de mais, em um "projeto de salvamento". Salvar ou abolir, eis a questão. Ou salvar um pouco e abolir outro tanto, e o quê um pouco mais que o outro, e em que aspecto?

A forma do sujeito não é outra coisa senão esse modus geral da relação de valor moderna e capitalista, a forma geral de pensar e agir da socialização do valor. Trata-se aqui, por um lado, dessa forma que se apresenta aos indivíduos como contexto geral dominador autonomizado ou como totalidade fetichista do "sujeito automático" (Marx) objetivado: o princípio formal abstrato e assombrosamente vazio de conteúdo, cujo movimento espontâneo incansável e objetivado vai cilindrando, sob a forma dessa roda de Juggernaut da valorização do valor, a natureza e a sociedade. Mas por outro lado esta forma também é simultaneamente a dos portadores da ação individuais e institucionais; e, enquanto tal, ela constitui, num sentido mais restrito, a forma do sujeito ou a "forma sujeito". Esta forma dos portadores da ação, por seu lado, é estruturalmente masculina e dissociadora: o sujeito da lógica do valor e da dissociação.

Como processo, o devir desta forma do sujeito pode ser feito remontar até à "economia política das armas de fogo" dos primórdios da Modernidade e ao potencial destrutivo destas; mas lá está, como constituição e forma de reflexão teórica consciente apenas pode ser encontrada no Iluminismo, e com acentos diversos. Assim, o Iluminismo escocês e anglo-saxónico, por exemplo nos teoremas de um Adam Smith ou Jeremy Bentham, colocou em destaque sobretudo o aspecto economicista real desse sujeito, a figura do homo oeconomicus, bem como a forma abrangente do "sujeito automático" (em Adam Smith, a "mão invisível" do mercado). O Iluminismo francês de Montesquieu a Rousseau e até aos pregadores da virtude da revolução de 1789, porém, fixou-se mais no aspecto de estado e jurídico, na figura do homo

politicus da Modernidade. O Iluminismo alemão, por fim, com Kant na linha da frente (e com Hegel de certo modo a completar a arquitetura do sistema), retratou a forma do sujeito abstrata, que se encontra na base dessa aparente polaridade entre o homo oeconomicus e o homo politicus, enquanto tal, como forma essencial, assim como as suas consequências sistémicas, de um modo tão positivador como militantemente adepto de uma defesa agressiva.

Se a constituição objetiva e própria da sociedade real remonta originalmente à "economia política das armas de fogo", em vigor aproximadamente desde o século XV, os momentos filosófico-ideológicos da sua constituição primordial encontram-se, antes do respectivo aperfeiçoamento conceptual no discurso iluminista, não só no protestantismo dos primórdios da Modernidade, como podem ser seguidos, em certos aspectos, até à Antiguidade greco-romana. Dito isto, no entanto, tem de ser claro que a Antiguidade não pode simplesmente ser incorporada a posteriori no processo constitutivo moderno; antes, este foi ali buscar apenas os elementos aparentemente idóneos e assim criou em primeiro lugar o entendimento moderno da Antiguidade. Como suposto contínuo de uma "civilização" do valor e da dissociação, o chamado Ocidente é evidentemente uma construção histórica do próprio Iluminismo. Na medida em que esta construção e a sua ideologia de legitimação que remonta até à Antiguidade ocidental concorreu para a constituição da forma do sujeito moderna, capitalista, masculina e permeada pela ideologia do valor e da dissociação, pode falar-se com uma certa justificação de uma "forma do sujeito ocidental". E é fácil de comprovar que a forma de reflexão ideológica desta relação já desde o protestantismo, mas definitivamente desde o Iluminismo, se define essencialmente pelo objetivismo e pela misoginia, pela homofobia, pelo racismo e pelo antissemitismo aberto ou latente.

Trata-se, portanto, única e exclusivamente da negação, ou do grau ou do "como" e talvez até do "quê" da negação desta forma do sujeito, e há que insistir neste pormenor tanto mais implacavelmente quanto este plano primário da crítica (contrariamente à crítica das afirmações formais secundárias do marxismo do movimento operário), no desenvolvimento que a teoria crítica do valor tomou até à data, simplesmente ainda não foi de modo algum desbravado de forma satisfatória. A crítica da forma do sujeito, dessa "forma sujeito" como ela foi adoptada pelo marxismo do movimento operário

que a retirou do pensamento burguês, sendo ainda em Adorno definida de um modo bastante equívoco para, no final de contas, ainda assim voltar a ser afirmada e até hoje comportar conotações positivas para a esquerda, não foi levada até ao fim, nem de longe, de um modo satisfatório e consequente como crítica do cerne da forma moderna do fetiche.

Um primeiro avanço teórico em direção a uma crítica fundamental do sujeito (cf. Robert Kurz, Dominação sem sujeito. Para a suplantação de uma crítica social redutora, in Krisis 13/1993) começou por não ter seguimento no contexto da crítica do valor. Isso deveu-se sobretudo ao fato de o relacionamento entre os sexos como relação de dissociação não ser sistematicamente contemplado pela elaboração teórica da crítica do valor. A crítica do valor e a crítica da dissociação foram-se desenrolando em paralelo e de um modo em larga medida não mediado. Como é próprio da relação de domínio da Modernidade carregada de conotações sexuais e, com isso, da estrutura da maior parte das escolas do pensamento modernas, o contexto da crítica do valor foi originalmente o de uma associação masculina, de onde decorre que a elaboração teórica se encontra fortemente marcada pelo objetivismo e dotada de um traço contemplativo(1).

No entanto não se pode exercer uma crítica radical do sujeito sem se incluir de forma sistemática a crítica da dissociação na crítica do valor, acabando-se assim de vez com as tendências objetivistas mais próprias das associações masculinas no próprio pensamento. É precisamente neste sentido que devemos refletir a nossa proveniência de um modo consciente e inequivocamente explícito (não nos limitando a pressupô-la, de certo modo, com um piscar de olho como algo já pacífico) e nutrir uma determinada desconfiança face ao próprio processo de elaboração teórica face às rasteiras ainda não suficientemente descortinadas do modus da ideologia iluminista. A relação de dissociação é a relação central da moderna constituição de fetiche que em primeiro lugar torna de algum modo possível uma relação de valor. Como a forma do sujeito se encontra essencialmente determinada pela dissociação sexual, ela não pode ser criticada de um modo fundamental no modus da elaboração teórica estruturalmente "masculino" vinculado a essa mesma forma do sujeito, sob pena de se tratar de uma mera crítica aparente

que não pode deixar de ser superficial (o que, no entanto, teria de ser comprovado caso a caso).

Este modus "masculino" de elaboração teórica moderna foi sem dúvida fundado pela Filosofia do Iluminismo, que assim de modo algum se limitou a refletir um objeto "objetivo" e casual, por assim dizer, de uma forma neutra e contemplativa; assim ela apresenta-se unicamente no seu próprio modus, cuja ação se prolonga até à atualidade e (ao menos nos respectivos primórdios) para o interior da crítica do valor das associações masculinas. Antes, a Filosofia iluminista também concorreu para a constituição do sujeito moderno, estruturalmente "masculino" e sob todos os aspectos destrutivo, tal como apenas os processos estruturais cegos e a reflexão apologética em conjunto constituem de todo o processo histórico real. Ao mesmo tempo, a constituição filosófica da "forma sujeito" não configura, de modo algum, um mero aspecto do Iluminismo, após cuja subtração crítica possa subsistir algum elemento positivo e redentor no respectivo cerne, mas ela perfaz a essência da totalidade do pensamento iluminista que assim tem de ser rejeitado de um modo correspondentemente essencial.

A crítica da dissociação, a crítica do sujeito e a crítica do Iluminismo constituem uma unidade indivisível, não sendo qualquer destes momentos, possível sem qualquer dos outros. É de um modo correspondente, que prescinda de simplificações abusivas, que a crítica tem de proceder se quiser concluir o novo paradigma crítico do valor e da dissociação – o que não equivale à conclusão da elaboração teórica em termos gerais, mas unicamente à conclusão preliminar da "destruição criadora" do velho paradigma. Podem e devem existir, sem dúvida, diversas posições, acentuações e aspectos no contexto da teoria crítica do valor e da dissociação; mas não podem existir lado a lado, em uma aleatoriedade quase que pós-moderna, sendo irremediavelmente opostas umas às outras, tendo antes de ser mutuamente compatíveis a um nível fundamental, o que também significa terem de comportar um carácter vinculativo comum.

Uma coexistência pacífica com o modus dissociativo "masculino" da elaboração teórica está excluída. Assim sendo, para a forma do sujeito

moderna, capitalista e "ocidental", que de qualquer modo já apenas existe nas respectivas formas de decadência, não deve crescer nada que a salve se for para a emancipação da relação de coação destruidora do mundo, que é a socialização do valor, constituir uma opção séria. Provavelmente isto até nem suscita controvérsia; mas nesse caso a crítica do sujeito não deveria ser apenas mantida coerente, mas também deveria ser cautelosamente delimitada em termos conceptuais, face a outras questões que dizem respeito a conquistas culturais da Humanidade de um modo geral. Há que fazer tábua rasa com a forma do sujeito capitalista e ocidental e com a vinculação a uma forma de fetiche em termos gerais, mas, lá por isso, não com tudo e qualquer coisa que a Humanidade tenha produzido até à data apesar da sua vinculação fetichista e através da mesma.

Os artefatos da História

No entanto, não quero contestar que a questão da delimitação da crítica do sujeito em si e face ao princípio de tábua rasa da lógica do valor e da dissociação tem a sua legitimidade. Por muito pouco aceitável que seja o ato de se "ler por cima" da verdadeira referência das metáforas demolidoras, ainda assim há que reconhecer ao mesmo tempo que essa delimitação ainda não se encontra concluída com a mera referência ao objeto do ímpeto demolidor, ou seja, à forma do sujeito masculina, capitalista e ocidental. A única pergunta legítima que se consegue isolar é a seguinte: Qual é a relação entre a forma do sujeito e, com ela, a da respectiva negação, para com os conteúdos no sentido mais lato culturais da História humana? Estes conteúdos podem ser designados como artefatos da História, tanto da moderna como da prémoderna. Trata-se de produtos de todo o tipo, intelectuais e materiais, de assim chamadas forças produtivas, de técnicas culturais no sentido mais lato, de "potenciais" que resultaram da história do confronto humano e social com a matéria terrena e a existência física, mas igualmente consigo próprio, com a sua própria forma de estar em sociedade, assim como com os problemas metafísicos da própria proveniência, da morte, etc.

Para já, aqui há que colocar a ênfase no conceito de conteúdo. Trata-se de conteúdos (também as formas artísticas arquitetônicas etc. podem aqui ser

consideradas como conteúdos) que, embora se encontrem sujeitos aos ditames de uma determinação formal social fetichista e, assim, de uma forma de consciência (a forma do sujeito da Modernidade), não se reduzem à mesma. Faz parte da essência da "história de relações de fetiche" que os conteúdos nunca coincidam com a forma, que a forma e o conteúdo entrem em oposição mútua e que os conteúdos sempre voltem a ser adaptados à forma à maneira de Procrustes, até à respectiva destruição.

Desta tensão e oposição entre a forma e o conteúdo evidentemente não resulta que os conteúdos (culturais) de qualquer tipo sejam sempre por si só "bons" ou, em relação à coação formal, desde sempre a melhor parte da existência, autónomos face à forma e sempre claramente separáveis da mesma. Apesar de toda a tensão, a forma do fetiche permeia, tinge e confere o seu cunho aos conteúdos que, por seu lado, não só podem alterar essa forma como a podem rebentar; isto encontra-se abarcado da maneira mais clara nessa famosa formulação de Marx, contudo apenas aplicável ao próprio capitalismo moderno, segunda a qual as "forças produtivas" (conteúdo) iriam rebentar as "relações de produção" (forma). Tal como com isso ainda não se encontra determinado (contrariamente à própria opinião de Marx) qualquer juízo de valor por si só positivo desse conteúdo, mas apenas a sua força explosiva, o mesmo é válido em termos gerais para a relação entre os conteúdos culturais e as formas sociais no seio do que a "história das relações de fetiche" tem sido até à data.

Será, por exemplo, difícil invocar a mutilação sexual de pequenas raparigas como um "conteúdo cultural" positivo, e muito menos como um maravilhoso potencial de resistência de uma cultura agrária pré-moderna ainda não conspurcada pela relação de valor contra os desaforos modernos; tal como, de um modo geral, as relações de fetiche mais antigas são outras tantas relações de desaforo e dominação, devendo ser, por isso, negadas nas suas formas de consciência que incluem domínio, sujeição e autossujeição, com a mesma dureza como a forma do sujeito moderna. A crítica radical desta encerra em si a crítica radical de todas as formas de fetiche pré-existentes. Desde sempre e até à data, a relação assimétrica entre a forma (forma da consciência como forma de pensamento e de ação) e conteúdo conduziu na "história das relações de fetiche" também a determinações de conteúdos destrutivas,

repressivas e autorrepressivas sem que por isso todo e qualquer conteúdo tivesse de ficar sujeito a esta ou apenas a esta qualidade negativa.

No entanto, também os conteúdos, potenciais e conquistas culturais positivos dessa história, que não podem ser negados pura e simplesmente, trarão em si para todo o sempre os estigmas das condições do seu devir, o que não pode ser recalcado, em especial naquelas situações em que esses potenciais são necessariamente transportados para uma Humanidade liberta de estruturas de coação fetichistas. É nesse sentido que deverá ser entendida, sob a perspectiva da crítica do valor e da dissociação e da crítica do Iluminismo, a célebre sequência de Walter Benjamin: "Como sempre foi costume, os despojos são levados no cortejo triunfal. Os mesmos são designados por bens culturais. No materialista histórico, eles terão de contar com um observador distanciado. É que, o que o olhar deste alcança em termos de bens culturais é para ele, sem excepção, de uma proveniência em que ele não consegue pensar sem horror, devendo a sua existência não apenas aos esforços dos grandes génios, mas igualmente ao trabalho escravo anónimo dos seus contemporâneos. Nunca semelhantes bens culturais constituem documentos de cultura sem serem em simultâneo documentos da barbárie" (Walter Benjamin, Geschichtsphilosophische Thesen [Teses histórico-filosóficas]).

Em boa verdade, este ponto de vista pode ser invocado tão-só para lá do chamado materialismo histórico, o qual não é outra coisa senão a projeção da dialética especificamente capitalista sobre a História e a positivação desta no contínuo de um "progresso" a que preside uma lógica de formação. Após a ruptura com a herança iluminista, o problema apresenta-se de um modo totalmente diferente. A ruptura com a forma do sujeito capitalista implica necessariamente a ruptura geral com as relações de fetiche no seio da sociedade. Uma Humanidade libertada neste sentido defronta-se com um gigantesco deserto de escombros de conteúdos passados de todo o tipo, a partir do qual ela tem de criar, igualmente impelida pela necessidade, em parte pela apropriação, em parte pela rejeição provavelmente acompanhada de um enorme esforço de "reciclagem", um relacionamento diferente com a natureza e consigo própria.

O referido deserto de escombros não é evidentemente o resultado de um iconoclasmo perpetrado pela crítica do Iluminismo mas, sim, o do próprio Iluminismo, das forças destrutivas do capitalismo e da sua fúria destrutiva provavelmente mais uma vez potenciada. A recuperação seletiva de conteúdos, por outro lado, é inevitável em termos tanto lógicos como práticos; um regresso a Adão e Eva, uma tábua rasa da História no plano dos conteúdos, seria perfeitamente impossível. Mesmo no interior de relações de fetiche nenhuma ruptura com o passado, nem mesmo a iluminista e capitalista, conseguiu varrer "tudo" e começar em um tempo zero virtual, por muito cega que tivesse sido a raiva com que a mesma foi consumada; sempre no passado os artefatos da História foram, de verdade, essencialmente apropriados, reagrupados e redirecionados. No ponto de ruptura da história das relações de fetiche, as coisas não se passam de outro modo, com a única diferença que a mesma questão se coloca com referências mudadas e de um modo muito mais consciente.

De resto já se podem desenvolver alguns critérios a partir do que foi dito até este ponto. Assim, a apropriação de artefatos da História primeiro não recalcará nem escamoteará a proveniência bárbara dos mesmos, conservandoa antes, no sentido de Benjamin, como "memento [Eingedenken]". Em segundo lugar, esta apropriação é acompanhada por um processo de rejeição, precisamente porque não existem conteúdos "inocentes" e uma determinada parte dos mesmos se encontra de tal modo inquinada pela forma que, tal como (e juntamente com) a forma, tem de ser cabalmente negada. Mas isso, e assim chegámos ao ponto terceiro, ainda tem de ser posto em pratos limpos; para tal não pode existir qualquer padrão abstrato e geral de seleção que afinal não representaria, por seu lado, outra coisa que uma forma de fetiche. Finalmente, e em quarto lugar, não pode existir por isso mesmo qualquer preconceito no que toca a uma divisão dos conteúdos em modernos e prémodernos; e tal não pode acontecer nem no sentido de que os artefatos prémodernos não possam ser descobertos e apropriados de uma forma nova, nem de forma inversa no sentido de que os artefatos modernos teriam de ser rejeitados em bloco como capitalistas, ou seja, que teria de ser feita tábua rasa sob esse prisma. Juntamente com a forma do fetiche, qualquer apriorismo abstrato e geral com relação aos conteúdos ficou sem efeito como critério.

Neste âmbito podem distinguir-se três níveis ou manifestações de artefatos da História: obras de reflexão intelectual e, no sentido mais lato, filosófica (com inclusão da religiosa, política etc.); produtos artísticos de todos os géneros e nas suas várias áreas e formas (música, literatura, pintura, arquitetura etc.); e finalmente temos as técnicas culturais e produtivas no sentido mais amplo.

Embora não exista uma separação estrita entre estes níveis e manifestações, podemos em regra afirmar em relação às obras intelectuais e artísticas que elas são impossíveis de reproduzir no sentido mais restrito da criação de conteúdos (contrariamente à sua reprodutibilidade meramente técnica); tratase de monumentos. Já não somos capazes de pensar como Aristóteles ou Santo Agostinho, e já nem sequer inteiramente como Marx; mas podemos ler as suas obras e conhecer os seus pensamentos, ainda que seja a partir duma posição histórica diferente. Do mesmo modo não podemos produzir uma música como o canto gregoriano, as composições de Mozart ou Beethoven ou a "música popular" (anónima) chamada tradicional, visto que todos estes estilos musicais se encontram associados a um determinado tempo e respectivo relacionamento com o mundo; mas podemos tocar essas músicas, escutá-las e, de certo modo, desfrutá-las, retirar-lhes elementos para os introduzir em outros contextos etc. As técnicas culturais e produtivas, pelo contrário, devido à sua própria natureza são concebidas para serem tecnicamente reprodutíveis, mas naturalmente também elas podem ser submetidas a um desenvolvimento ulterior (ou mesmo abolidas).

O que quer isso dizer em relação à forma de consciência fetichista em geral e à forma moderna do sujeito em particular? Todos estes conteúdos e artefatos surgiram no contexto de uma determinada forma de fetiche, mas a sua concordância com essa forma não é a mesma, nem eles constituem necessariamente uma semelhante forma. Certamente os produtos intelectuais são os primeiros a frequentemente constituírem, de uma forma perfeitamente imediata, a forma de fetiche e a respectiva afirmação como forma de reflexão. Neste sentido trata-se, por assim dizer, de monumentos negativos. Como tais não podem ser abolidos, visto que a sua destruição ou uma "proibição" de tomar conhecimento deles constituiriam, afinal, uma recaída em relações de coação fetichistas. Para lá das formas de fetiche já não podem ser proibidos quaisquer conteúdos. A destruição desses monumentos negativos do

pensamento, por seu lado, consiste na sua refutação intelectual e prática. Nesse caso, eles conservam-se do mesmo modo como os produtos antihumanos das arquiteturas autoritárias do passado são poupados como uma espécie de memoriais.

Ora, o mesmo se aplica muito em especial e de forma redobrada às obras do Iluminismo, e tanto mais assim é, quanto mais claramente concordam ou coincidem diretamente com a constituição da forma do sujeito capitalista, masculina e dissociadora. Podemos ler Kant com a mesma atitude com que visitamos o espaço das convenções do partido nazi em Nuremberg. No entanto, quanto mais o pensamento do passado se debruçou sobre conteúdos culturais, estéticos, naturais etc. e se debateu com os problemas correspondentes, menos ele coincide com a forma de reflexão do sujeito do fetiche e em menor medida é afetado pela "tábua rasa" da crítica do sujeito. No panteão da filosofia iluminista, tal muitas vezes não conduzirá muito mais longe que às contradições e aporias desse pensamento que revelam a sua falta de veracidade e o seu carácter apologético.

Mas, para além disso, deveria ser levado a sério e não "lido por alto", por sua vez, o enunciado segundo o qual "A época do Iluminismo de modo algum se resume ao Iluminismo" (Robert Kurz, Ontologia Negativa. As eminências pardas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade, in: Krisis 26/2003), isto é, que não se esgota no pensamento iluminista da forma de reflexão da subjetividade burguesa. Quanto mais o olhar se afasta do panteão dos iluministas, mais se manifestam igualmente momentos contrários e antagónicos que, não obstante, não podem ser equiparados à reação imanente da contrarreforma burguesa e do romantismo. O que reúne o pensamento romântico e contrarreformista com o próprio Iluminismo em uma identidade negativa e polar é precisamente a comum referência positiva, apenas conotada e acentuada de formas diversas, à "forma sujeito" que constitui uma inquinação comum pela forma. Na medida em que se trata da negação fundamental dessa forma, o contrailuminismo não escapa ao mesmo veredicto que o próprio Iluminismo, do qual constitui um mero derivado.

No entanto, em todo o lado onde o pensamento atinge os limites da forma do sujeito masculina e permeada da lógica da dissociação enquanto tal e se afoita a debruçar-se sobre conteúdos pouco compatíveis com essa forma, ele pode conter este ou aquele elemento positivo de que evidentemente não há que fazer "tábua rasa", não querendo isso dizer que possam substituir a crítica do sujeito hoje necessária ou que esta possa ser composta a partir desses mesmos elementos. A investigação da dissidência histórica nesse sentido (ou seja, transversal à oposição aparente burguesa e imanente entre a Iluminismo e o Contrailuminismo) constitui um campo importante em uma teoria histórica e historiografia crítica do valor e da dissociação e crítica do Iluminismo que ainda haverá de ser colocada em destaque (materiais sobre esta temática encontram-se nas investigações históricas feministas que até à data têm sido em grande medida ignoradas pela crítica do valor). Mas sobre isso não se pode construir qualquer linhagem tradicional e galeria de antepassados da crítica, podendo somente ser tornados visíveis os rastos de uma não concordância defunta.

Deste modo bem podem ser encontrados, tanto no pensamento moderno como no pré-moderno, e aí provavelmente de preferência nas suas ramificações colaterais e dissidências, momentos de reflexão de uma história do sofrimento das relações de fetiche. Isso aplica-se tanto mais aos conteúdos artísticos, que não coincidem com as reflexões filosóficas do Iluminismo na afirmação da forma do fetiche e que sempre deram também expressão ao sofrimento causado por essa forma, embora de modo algum tenham sido poupados à inquinação masculina e permeada pela lógica da dissociação. Afinal não foi em vão que Adorno até quis descobrir na arte um possível reduto do possivelmente "não idêntico", embora a arte, como esfera separada do processo de vida restante da sociedade, nesse estado separado no fundo já se encontrasse contaminada pela forma. Também sob este aspecto importa investigarmos e revelarmos as contradições e assinalarmos a tensão entre o conteúdo e a forma do sujeito sem afirmarmos o conteúdo já de si como neutro ou isento de influências externas e aparentemente inocente.

No que diz respeito às referências a conteúdos filosóficos e artísticos, desde que se trate de monumentos, a sua existência continuada positiva ou negativa pode afigurar-se relativamente pouco problemática. No entanto já não é o

mesmo que se passa com aqueles artefatos da História que, sob a forma de técnicas culturais e de produção, continuam a ser aplicados na prática ou voltam a sê-lo no contexto de uma renovação crítica com o estatuto de redescobertas, integrando o processo real de reprodução e de vida. Sob este ponto de vista, coloca-se a questão da negação crítica de conteúdos, ou da sua manutenção e do seu desenvolvimento ulterior em um sentido totalmente diferente.

Por um lado, a referência aos conteúdos tem aqui um significado perfeitamente existencial para o desenvolvimento ulterior da sociedade, dependendo da decisão que venha a ser tomada. Visto não serem meros monumentos, mas, sim, e de uma forma muito imediata, questões práticas e, assim, da vida, não podem perdurar como negativas, podendo na sua negatividade apenas ser abolidas, isto é, pura e simplesmente cessar de existir. No caso inverso podem unicamente ser recuperadas como consideradas positivas ou necessárias, agregadas de formas novas e ulteriormente desenvolvidas.

Por outro lado, não pode acontecer por isso mesmo que os artefatos da História sob a sua forma em termos de conteúdo de técnicas culturais e de produção coincidam sem excepção com a forma do fetiche, sob cujo domínio foram produzidos. O fabrico da cerveja e a fermentação do vinho foram inventados há milénios, provavelmente na Mesopotâmia, mas nós não somos obrigados a ter a forma de consciência social das culturas antigas da Ásia Menor nem temos de acreditar no seu panteão para sermos capazes de reproduzir essas técnicas no que diz respeito às suas caraterísticas fundamentais. O mesmo aplica-se evidentemente à escrita, assim como a muitas outras coisas. Ler-se-á e escrever-se-á até ao fim dos dias. Inúmeras técnicas culturais e de produção, conhecimentos naturais, matemáticos etc. foram transmitidos e desenvolvidos através de formas de fetiche muito diversas, e o mesmo certamente também se aplica a uma sociedade liberta das grilhetas da forma do sujeito. Por pouco que os conteúdos sejam independentes da forma social, não é mais verdade que possam ser necessária e absolutamente representados apenas nessa forma.

Nomeadamente em relação aos artefatos capitalistas, um "programa de abolições" deverá certamente abranger um âmbito muito amplo, uma vez que o enquinamento capitalista das coisas pela forma, entretanto progrediu de uma forma assombrosa. Apesar de tudo, mesmo em relação aos artefatos capitalistas no sentido mais lato isso não pode significar que se queira arrancar com um programa de tábua rasa. Há tão pouca necessidade de abolir a bicicleta e a lanterna de bolso juntamente com a forma do sujeito masculina do valor e da dissociação como o fecho de correr (ou será que os botões são mais eróticos de abrir?). E por que haveriam de desaparecer o telefone ou a Internet ou, de um modo geral, a utilização da eletricidade? Ou determinadas técnicas médicas, mesmo que a caixa de previdência e o hospital acabem como formas da restrição e da alienação? A abolição do transporte individual, por seu lado, não tem de significar necessariamente que nunca e em lado algum se volte a usar um motor de combustão interna.

Certamente as forças produtivas capitalistas são agregadas e socializadas em uma medida muito superior à de todas as anteriores; todas as tecnologias individuais encontram-se inseridas em um amplo contexto de encadeamento. E, de acordo com a abstração do valor, que nega toda a sensualidade, este contexto constitui ao mesmo tempo um sistema de forças destrutivas. Isso, no entanto, não pode querer dizer que se rejeite por si só e em bloco toda e qualquer agregação de tecnologias, habilidades e conhecimentos. Tal iria configurar uma negação por sua vez totalitária segundo o mesmo princípio de uma lógica que pretende fazer tábua rasa dos conteúdos, não passando da inversão do ingénuo fetichismo da força produtiva do marxismo do movimento operário. A negação de conteúdos e artefatos não pode iniciar-se de uma forma apriorística, independentemente da definição desses conteúdos. Também as agregações e os contextos de encadeamento têm de ser revistos um a um e tendo em conta as suas especificidades, selecionados, reagrupados, em parte negados e noutra parte compostos de outra maneira etc.

A crítica, ou inversamente a recuperação dos conteúdos, dos artefatos da História, pode ela própria sempre apenas voltar a ser referente a conteúdos, ou seja, respectivamente específica, dependente de qualidades e com determinadas razões, nunca porém meramente abstrata e geral em relação à forma do sujeito (o que não passaria da reprodução negativa da mesma). A

frigideira de teflon não pode ser rejeitada por ser um produto colateral da tecnologia espacial capitalista e, com isso, do complexo militar e industrial e, de uma forma geral, da forma do sujeito burguesa; mas ela tem evidentemente de ser rejeitada se for cancerígena. Daí, no entanto, não se pode derivar nenhuma teoria, sob pena de ser apenas a "teoria da frigideira de teflon", a qual, por falta de generabilidade, nem chegaria a ser uma teoria. Também as agregações dos processos de produção industrial, das diversas redes de informações e das tecnologias de gestão não são por si tão unidimensionais e monolíticas que o veredicto pudesse ser alcançado independentemente da penetração, seleção etc. dos respectivos conteúdos com base em alguns enunciados áridos e apriorísticos sobre a concatenação da forma com o conteúdo.

Assim, o problema em questão pode ser, para já, resumido na fórmula: Tábua rasa sim, nomeadamente da forma do sujeito que se rege pela lógica do valor e da dissociação (assim como com a forma de consciência apenas dissociada e, com isso, reduzida e conotada com o feminino); tábua rasa, portanto, da generalidade abstrata ou abstração real violadora da existência e, de um modo geral, da forma de uma relação de fetiche. Tábua rasa não, pelo contrário, no que toca aos conteúdos, aos artefatos da História. A este respeito não existe uma definição inequívoca, mas apenas um processo de transformação, de seleção, de rejeição e de desenvolvimento ulterior, de penetração crítica sem positivação ou negativação absoluta.

Nem podem, por isso, os conteúdos ou artefatos da História ser rejeitados por princípio apenas por terem sido produzidos, de um modo geral, por uma forma de consciência fetichista e, na Modernidade, pela forma do sujeito. Nem pode, no entanto, ao invés a forma do sujeito ser minimamente justificada e, no final de contas, "salva" por eventualmente ter criado, de um modo geral, conteúdos e artefatos a adoptar. Tal não seria muito mais inteligente que o argumento da consciência do progresso fordista, segundo o qual os nazis não podem ter sido assim tão maus se construíram a autoestrada; mesmo que determinados artefatos do capitalismo – contrariamente à autoestrada – possam ser transformados em uma sociedade pós-fetichista.

A ruptura ontológica: a desfetichização

A disputa em torno dos conteúdos reprodutivos, que já nesta fase se manifesta numa discussão virtual de um processo de exame, de seleção, de rejeição ou de apropriação, não pode colocar-se com base nos seus objetos ao nível de uma generalidade abstrata. É que os objetos do mundo, os objetos da natureza e da sociedade, não se encontram eles próprios num estado de generalidade; esse sempre apenas lhes foi imposto pela forma social do fetiche. No que diz respeito aos conteúdos apenas existe o estado definido do que é individual e particular, ou o geral não existe como algo de abstrato, mas apenas como generalidade interior no seio de uma determinada área objetal; por exemplo a generalidade relativa com relação ao domínio vegetal e ao modo de se lidar com seres vivos florais, um nível a que acabam por existir determinados pontos em comum, mas sem constituir como real uma generalidade absoluta ou abstrata. E isso já é para não falar de uma ordem ainda superior como ela foi produzida unicamente pela forma do fetiche totalitária da socialização do valor.

Com isso também está dada a indicação daquilo a que irá referir-se o debate para lá das relações de fetiche: precisamente à definição concreta de conteúdos, à ponderação e ao processo da busca a esse respeito e não a definições abstratas e gerais da vida em sociedade que nessa altura terão desaparecido do processo da vida real.

Certamente a ruptura com a forma das relações de fetiche constitui, de um modo geral, algo como uma ruptura ontológica. Neste sentido poder-se-ia dizer com Walter Benjamin que o que está em causa é "rebentar com o contínuo da História" (Benjamin, ibidem), mesmo que haja que ter certas reservas relativamente ao termo religioso de Benjamin do "messiânico". Em todo o caso, a última coisa que poderá estar em causa é a criação de um "Homem novo", por assim dizer retirado da proveta de uma espécie de metamodernização. A ideologia do "Homem novo" é uma construção positiva, uma má utopia de como o Homem deveria ser, para mais com critérios que são facilmente decifrados como os estigmas da coação pela forma do valor e da dissociação e da sua pretensão totalitária. O rebentar do

contínuo de relações de fetiche, pelo contrário, é em si puramente negativo; trata-se unicamente de se livrar de algo, nomeadamente da forma de coação de uma generalidade formal abstrata, violadora de qualquer referência a conteúdos.

Esta negatividade da libertação é uma libertação para um manuseamento desembaraçado com a qualidade própria de conteúdos de toda a espécie. Assim nasce apenas através da negação sob uma capa positiva um critério que, a respeito desses conteúdos, justamente não transmite qualquer pretensão totalitária, não edificando nesse sentido qualquer muralha chinesa entre o passado e o futuro. Entre estes conteúdos inscrevem-se mesmo os próprios seres humanos, tanto no seu ser devindo como no seu devir, na sua diversidade. Mas figura entre os mesmos a intelecção de que as doenças e o sofrimento, embora possam ser mitigados, não podem ser abolidos na sua totalidade; e que a morte, embora possa ser adiada, não pode ser definitivamente superada. O que está em causa é a abolição dos sofrimentos desnecessários e dos produzidos pela própria sociedade, o modo adequado de lidar com os conteúdos tanto naturais como histórico-sociais; e não a positividade abstrata e destrutiva de um mundo totalmente novo como a que resulta unicamente da arrogância do imperativo da valorização e da sua forma vácua e autorreferente.

A ruptura ontológica, o "rebentar do contínuo" da História anterior, não cria nenhum "super-homem" nietzscheano, tão frio, tão superiormente inumano e, em última análise, louco, que apenas poderia representar a apoteose do sujeito submetido à lógica do valor e da dissociação. A ruptura na sua negatividade é muito mais modesta, mas precisamente por isso também tem um maior alcance: Não contém outra coisa senão a desfetichização e, com isso, a desformalização da consciência social. À velha forma da generalidade abstrata não se substitui nenhuma forma nova, nem o velho princípio é trocado por um novo.

A consciência social desprincipializada não é outra coisa senão a consciência, o saber e a sensibilidade do homo sapiens existente, mas sem o anel de ferro de uma relação de coação formada a apertar-lhe a cabeça. As instituições de

uma sociedade desfetichizada, os "conselhos", já não executam um princípio formal (a autogestão com base na produção de mercadorias seria uma contradição em si) mas negoceiam sem uma condição formal prévia sobre a diversidade qualitativa dos objetos da sua reprodução. A instância da forma organizada de estar em sociedade dos indivíduos e, com ela, a síntese da reprodução, apresenta-se como uma consciência viva, aberta e inconclusa, com uma referência livre aos objetos; e já não como uma forma fechada e morta que pesa sobre a consciência como um pesadelo. E este pesadelo, depois da sua travessia da história da modernização acabou por se tornar visível nas suas formas finais de decadência e, por assim dizer, "maduro" para a sua abolição. Nesta medida, a desfetichização também significa uma desritualização da sociedade, visto que qualquer relação de coação fetichizada faz-se acompanhar de rígidos rituais, a todos os níveis em que o alheamento de si próprio se traduz em comportamentos grotescos, sejam eles gestos de submissão religiosa ou o ritual objetivado na caixa do supermercado, no arquivo de identificação ou na secção de pessoal.

A necessidade ontológica

Ora, o problema ontológico, no estado atual da reflexão, parece consistir justamente no fato de não se distinguir entre a negação absoluta da forma e a referência livre, isenta de apriorismos, aos conteúdos (mesmo àqueles que constituam um legado do passado). Pois lá está, a forma do sujeito não constitui um fenómeno exterior, tendo permeado a referência ao conteúdo na sua totalidade. A apologética e afirmação mais ou menos clara desta forma "falsa" do Eu é acompanhada de uma necessidade ontológica que de algum modo pretende apostar na falsa continuidade da consciência que, no entanto, apenas poderia ser uma continuidade da mesma forma com que se tem de romper.

Ainda no interior da crítica, esta necessidade ontológica apresenta-se como compulsão no sentido da construção de uma lógica positiva do desenvolvimento, de uma galeria de antepassados, de uma sequência generativa, em que uma pessoa possa de algum modo inserir-se. O pensamento iluminista aproveitou-se dessa necessidade para escudar a sua

afirmação pautada pela lógica do valor e da dissociação. É também daí que advém o grande receio de se provocar a derrocada do pensamento iluminista. Quer-se ter debaixo dos pés um chão histórico. Acontece que a última coisa que a ruptura ontológica com a "História das relações de fetiche", tem a oferecer é a manutenção desse chão.

Os conteúdos culturais como artefatos da História, mesmo positivos, não são passíveis de constituir um semelhante chão devido à sua definição específica. Na sua especificidade, separados e tornados relativamente independentes da respectiva consciência social que os produziu ou que os recupera (da agricultura até à forma lírica do soneto), eles continuam a não ser mais que objetos mortos ou técnicas e receitas desconexas. Tão-só a consciência, que apenas pode ser social, dá vida aos artefatos, inserindo-os em um contexto histórico-social. No entanto é a esse nível da consciência que tem de ocorrer a ruptura ontológica que não se refere primariamente aos artefatos, mas à própria forma de consciência. Inversamente, essa ruptura não pode ocorrer por isso mesmo com base em uma referência positiva a determinados artefatos da História, visto nem sequer se inserir nesse campo. Uma sociedade liberta das relações de fetiche pode e deve recuperar artefatos sob os aspectos mais diversos, mas não é nisso que consiste a ruptura.

Por isso parece-me tratar-se de um mero mal-entendido se Anselm Jappe afirma, com referência a determinados artefatos da História como sejam os "melhoramentos no âmbito da agricultura ou da navegação ou do transporte..." e, por exemplo, "progressos culturais, tais como o refinamento do sentido rítmico no desenvolvimento do lirismo europeu a partir de 1100" (Jappe, ibidem) ou, noutro lugar, a "arquitetura tradicional": "O Homem que não obedece à forma do valor não é, portanto, uma mera coisa do futuro, sendo já existente, ainda que o seja sob uma forma parcelar" (ibidem). Estas parcelas dispersas, porém, não têm vida própria, não se podendo compor a partir delas qualquer Homem posterior à forma do valor, como homúnculo de artefatos, potenciais e realizações.

Não me custa conceder que mesmo das sociedades agrárias pré-modernas poderão ser recuperados muitos momentos individuais para uma "boa vida"

que o capitalismo tenha destruído, desde uma concepção do tempo dotada de referências concretas em vez de ser abstrata e linear, até a uma arquitetura correspondente às medidas e necessidades humanas em vez de outra tornada abstrata por um funcionalismo subordinado aos ditames do valor. Mas não é aí que reside o problema. É que essas parcelas dispersas nem podem constituir um fio condutor para a ruptura ontológica com a forma do fetiche, nem o chão para uma outra forma de socialização. Nem a positivação, nem a negação de determinados artefatos e conteúdos chegam a aproximar-se da verdadeira problemática. Movimentos que se limitam a protestar aqui contra a energia nuclear, ali contra o trânsito individual e acolá contra a poluição do ar sem se debruçarem sobre a forma do sujeito e de reprodução enquanto tal têm um alcance por demais limitado, à semelhança do que acontece com o impulso inverso que consiste em enaltecer as realizações positivas de uma possível boa vida como o vagar agrário aqui ou as realizações estéticas acolá.

O problema da ruptura com a forma de fetiche e do sujeito é apenas adiado se Jappe transfere a mesma necessidade ontológica para a sociedade agrária prémoderna em lugar do Iluminismo e assim se limita a pôr a lógica iluminista de pernas para o ar. Deste modo, pretende-se evitar a ruptura ontológica pela deslocação quase que caraterizada por um romantismo agrário do chão ontológico para um passado anterior. Como tal, Anselm Jappe formula a sua anticrítica da crítica radical do Iluminismo, contrariamente aos apologistas da Modernidade, menos pelo Iluminismo que para salvar a sociedade agrária prémoderna como âmbito de referência em grande medida positivo e quase que como bitola da crítica do Iluminismo; este ímpeto parece prevalecer nos grupos pós-situacionistas em França. A recriminação de querer fazer tábua rasa dirige-se, sob este ponto de vista, sobretudo contra a inclusão na crítica radical do Iluminismo da crítica não menos radical de todas as formas do fetiche pré-modernas, o que, no entanto, é inevitável.

Aqui se torna evidente um défice complementar da anticrítica da crítica radical do Iluminismo, tanto na versão apologética do Iluminismo, como da sua congénere inspirada pelo romantismo agrário. Para o pensamento que se pauta pela ideologia do Iluminismo e da modernização, a ruptura com a sociedade agrária constitui o dealbar positivo de um movimento de libertação que, embora possa conter em si rupturas estruturais no seu desenvolvimento

ulterior, enquanto tal deve ser prosseguido sobre o chão ontológico uma vez conquistado. Na medida em que ainda assim é concedido que é necessária uma ruptura com o Iluminismo e com a forma do sujeito, tal atitude permanece inconsequente, não passando de uma asseveração inconsequente. Jappe simplesmente inverte esta lógica e vê o pecado original nessa própria ruptura iluminista e moderna que agora bastaria anular pela ruptura com a Modernidade para conseguirmos recuperar o verdadeiro terreiro ontológico do "progresso" situado nas culturas pré-modernas. A concessão de que evidentemente terá de se romper "de algum modo" também com as formas de fetiche pré-modernas permanece igualmente com o estatuto de uma asseveração inconsequente.

No entanto, com isso nada se ganhou. Ambas as opções passam ao lado do verdadeiro problema da ruptura e permanecem no interior da continuidade histórica negativa. Tal deve-se ao fato de, em ambos os casos, a necessária lógica de tábua rasa da ruptura com a forma do fetiche e do sujeito é obscurecida e confundida com a questão da referência muito menos inequívoca aos artefatos da História.

O fato de a ideologia da modernização não ter sido superada pode ser reconhecido ainda nas suas formas mais refletidas e até parcialmente críticas do Iluminismo (por exemplo de proveniência adorniana) pela circunstância de não só se referir a determinados artefatos, "potenciais" e realizações da Modernidade como ao mesmo tempo escamotear a negatividade da forma do sujeito permeada da lógica masculina da dissociação, a fim de refrear e subverter a crítica radical dessa forma.

A ideologia do romantismo agrário, pelo contrário, pode ser identificada, por seu lado, por não só se referir positivamente a determinados artefatos, "potenciais" e realizações da Pré-Modernidade cilindrada pelo capitalismo (em que medida tal acontece, de fato, de uma forma por demais ingénua tem igualmente ainda de ser clarificado com referência ao conteúdo) mas, ao mesmo tempo, deixar de um modo muito semelhante a negatividade das formas de fetiche pré-modernas no âmbito do indefinido para sempre poder

tomar-lhe algum gosto, para porventura a revitalizar parcialmente e para, em todo o caso, a poupar igualmente à crítica radical.

Seja como for, a rejeição aparentemente evidente de uma lógica de tábua rasa não suficientemente definida quanto à sua referência pode deste modo converter-se de forma indireta em apologia da forma. E como de qualquer modo não pode ocorrer um regresso às formas pré-modernas, o momento apologético da forma contido em este tipo de argumentações ameaça, no final de contas, limitar-se a flanquear de forma involuntária o sujeito que obedece à lógica do valor e da dissociação (no campo da teoria: o sujeito objetivista e masculino rei dos filósofos).

Que o que está em causa na realidade na anticrítica contra a lógica de tábua rasa da crítica radical do Iluminismo não são estes ou aqueles artefatos (modernos ou pré-modernos), realizações culturais etc. mas, lá está, a forma social da consciência torna-se perfeitamente evidente quando Jappe denomina como critério positivo não apenas alguns potenciais, conhecimentos etc. individuais, mas repentinamente um "ser" da História (pré-moderna): "Não existe uma natureza que pudesse ser invocada como ponto de referência e face ao qual a falsidade da sociedade da mercadoria se revelasse como tal, e muito menos uma natureza que possa servir de estabelecimento normativo no sentido de um ponto de partida, qualquer afastamento do qual seria pecado. Mas existe uma ‘natureza’ no âmbito do desenvolvimento da Humanidade. Tal como se pode falar de uma ‘ontologia negativa’ (embora semelhante expressão, no fundo, constitua um oximoro) no âmbito das relações de fetiche históricas – ou seja, de circunstâncias que, não se encontrando associadas ao ‘Homem’ enquanto tal, podem ser encontradas mais ou menos em todas as formas da ‘pré-história’ a registar até à data – também se pode falar de uma ‘natureza’ imanente à História. Esse ser ‘social e sensível’ que hoje se defende dos desaforos do capitalismo manteve-se, no essencial, com uma surpreendente constância e uniformidade desde a revolução neolítica até às vésperas da revolução industrial. É neste enquadramento que pode ser designado de ‘natural’..." (Jappe, ibidem).

Aqui de repente já não se fala apenas de determinados "bons" conteúdos e artefatos como parcelas dispersas, mas da continuidade de um "ser" que apenas pode ser concebido como a continuidade de uma forma de consciência pré-moderna e agrária que, no entanto, tem de ser negada como fetichista de par com a sua congénere moderna. Se a "falsidade" da sociedade da mercadoria não puder ser aferida pelas disjecta membra [parcelas dispersas] sob a forma de artefatos pré-modernos, muito menos poderá sê-lo pela forma de consciência de um "ser natural social" pré-moderno. Já a escolha das palavras remete para essa "segunda natureza" da coação formal impossível de ser positivada com intenções emancipatórias e tomada por parâmetro. Sem dúvida o nível da forma constitui, como tal, uma caraterística comum da constituição que não reúne apenas as diversas formações pré-modernas como, juntamente com estas, também a moderna sob uma definição comum; mas esta é única e exclusivamente negativa.

Se Jappe faz referência, a este propósito, ao momento da não concordância dos indivíduos com as relações de fetiche, sobretudo com as modernas, parece-me residir também aqui um mal-entendido. É verdade que esta não concordância existe, mas unicamente em relação à respectiva forma de fetiche e às respectivas condições de sofrimento. Ela mostra que os indivíduos não se resumem às condições da forma. Mas este fato não pode, de modo algum, ser separado como definição positiva independente da sua mediação com a negatividade das relações de fetiche e transformado em um "ser ontológico" da Pré-Modernidade, sobre o qual se pudesse edificar fosse o que fosse. Embora exista a não concordância, não existe tal ser.

O sofrimento não é um ser. Um sofrimento vivido pode tornar-se ponto de partida e parâmetro negativo da crítica, mas não constitui um ser próprio que possa ser invocado independentemente daquilo de que se sofre como fundamento essencial positivo. Nesse caso estaríamos justamente perante a construção ideológica de uma "natureza humana" que apenas teria de ser desenterrada por debaixo dos descaminhos iluministas e modernos, mesmo que esse substrato, na opinião de Jappe, deva ser por seu lado um produto histórico em um contínuo que, no entanto, seria quase que ahistórico, prolongando-se desde o neolítico. Assim voltámos evidentemente a ir parar à mera inversão da própria ideologia iluminista que afinal também quis

desenterrar a "natureza humana", desde sempre capitalista, por debaixo dos descaminhos pré-modernos.

Mais um mal-entendido neste contexto consiste em Jappe identificar o fato de os indivíduos não se resumirem à forma e o seu sofrimento com essa circunstância com a "área dissociada" e, para mais, esta última com esse "ser" pré-moderno. Por um lado, porém, a dissociação surgiu apenas na Modernidade juntamente com a forma do sujeito, embora, à semelhança desta, momentos determinados a posteriori e provenientes de sociedades prémodernas (relações patriarcais entre os sexos em outras constelações) possam ser reconhecidos como elementos que para ela contribuíram. Por outro lado, a dissociação constitui pela mesma razão apenas o reverso da constituição capitalista. Por isso, o dissociado, no seu estado reduzido, é tão negativo como a própria forma do sujeito e tanto mais não pode servir de fundamento e parâmetro positivo. O grande inferno do processo de valorização capitalista não pode ser criticado desde o terreiro do pequeno inferno familiar dissociado, e muito menos ainda a partir do ponto de vista imaginário de um ser agrário caraterizado pelos laços de sangue. Não em último lugar o ser materno seria, como fundamento ontológico da libertação, um fiasco tão horrendo como o ser do trabalho. Juntamente com a "masculinidade" também há que abolir a "feminilidade". Especialmente sob este ponto de vista o mote é, mais do que nunca: Iconoclasmus now!

Tudo isto acaba por significar evidentemente que a crítica radical não pode ter um parâmetro positivo apriorístico, que ela nunca é segura, nunca resultando "por si só" e necessariamente ou podendo de algum modo ser "derivada" de algum fundamento ontológico. A necessidade ontológica é impossível de satisfazer. Apenas através da negação, como possível consequência (mas não necessária nem garantida) do sofrimento pode ser alcançado um estado positivo qualitativamente novo, na conversão positiva da própria negação (que justamente não se refere a "tudo", mas precisamente à forma do sujeito e à forma da dissociação); no entanto, tal não pode acontecer devido a que a negação pudesse, por seu lado, apoiar-se já em um estado positivo, em um fundamento ontológico, uma definição essencial.

Hannibal Lecter ou o "potencial" da capacidade de manter a distância

Segundo parece, a inversão da lógica iluminista dotada de traços de um romantismo agrário constitui, antes de mais, uma especialidade francesa, ao passo que a restante apologética da forma tenciona menos escolher esse desvio do que discernir diretamente e conservar algum momento positivo no seio da própria forma do sujeito moderna. Na Alemanha, a reação que consiste no recurso ao romantismo agrário encontra-se muito mais desacreditada do que noutro lado qualquer, visto ser considerada um momento central da ideologia nazi; e com isso já nem os neonazistas querem ter alguma coisa a ver. Qualquer ideologia natural e agrária pode assim apresentar-se por si só como "fascista", e esta desqualificação aniquiladora na RFA desde os anos oitenta não só se transformou no argumento principal para a esquerda radical se delimitar dos Verdes, como também se converteu (juntamente com a acusação de antissemitismo) numa arma denunciatória para todo o serviço no seio da própria esquerda.

Esta grosseira "crítica ideológica" passa na sua maior parte ao lado do assunto e já há muito que degenerou num autismo de política identitária de uma fauna estéril; nessa medida não se pode senão dar toda a razão a Jappe. Os nazis foram muito mais os ideólogos de uma modernização fordista e inculcadores da individualidade abstrata do que românticos agrários e protetores da natureza. É isso mesmo que não quer ver a esquerda alemã, ela própria possuída pela ideologia da modernização, para a qual o conceito da Modernidade desde sempre pertence ao vocabulário de devoção de uma referência desde sempre positiva ao Iluminismo. Embora existam numerosos pontos de intersecção entre a ideologia do sangue e do solo, a doutrina racial e o antissemitismo por um lado e o romantismo agrário e a ideologia natural por outro, ambas as coisas não são idênticas. Na realidade, a terminologia nazi provém principalmente do culturalismo específico do romantismo alemão e das ideologias alemãs correspondentes e daí derivadas e situa-se em um plano de referência e abstração totalmente diferente do da crítica ecológica de uma Greenpeace que, embora permaneça irrefletida no que diz respeito à forma social e não vá suficientemente longe com o seu falso imediatismo, não pode de modo algum ser denunciada como compatível com o nacional-socialismo.

Esses sectores burgueses devotos do Iluminismo, fiéis à ideologia da modernização e contrários ao romantismo agrário da esquerda radical alemã, que tencionam escapar às ideias verdes e ecológicas com recurso a uma denunciação tão barata, rendem-se por seu lado ao falso imediatismo e às falsas alternativas da socialização do valor se, por uma mera inversão lógica, quase que festejam a destruição capitalista dos fundamentos naturais como um "feito antifascista". Com isso apenas comprovam que passam pelo menos tanto ao largo da crítica emancipatória do trabalho abstrato como os românticos agrários, os democratas verdes ou os pragmáticos da Greenpeace. Não foi minimamente por acaso que uma grande parte desta esquerda modernizadora se tenha passado, sob a impressão da barbarização na crise mundial da terceira revolução industrial, para as hostes do imperialismo global democrático e ocidental e tenha sucumbido a uma ideologia belicista do ódio contra o terceiro mundo em desagregação, sendo que as invectivas racistas mais primárias fazem parte do bom tom.

Aqui não é o lugar para analisarmos ao pormenor os enganos e as vulgaridades desta esquerda pró-ocidental que já deixou de o ser. O que é essencial é que a falsa crítica, por seu lado abusivamente simplificada, da ideologia natural e do romantismo agrário que a tal se encontra associada se faz acompanhar de uma apologia quase que fanática da forma do sujeito capitalista moderna (e, com isso, da generalidade abstrata e destrutiva da referência ao mundo). Este momento central até agora oculto de toda a devoção esquerdista ao Iluminismo manifestou-se abertamente nas violentas disputas subsequentes ao 11 de Setembro. E é precisamente aqui que há que procurar o verdadeiro casus belli que torna impossível qualquer mediação e marca a linha da frente de posições incompatíveis. Qualquer, mesmo a mínima apologia da forma do sujeito moderna, sujeita à lógica do valor e da dissociação, tem de ser rejeitada por princípio, e com a mesma veemência como a apologia reacionária das formas de fetiche pré-modernas ou a construção própria do romantismo agrário de um "ser" positivo pré-moderno da segunda natureza. A "forma sujeito" constitui tampouco um fundamento ontológico positivo da emancipação como as formas de consciência das sociedades agrárias. Quanto a este ponto, a linha de tábua rasa tem de ser estritamente mantida.

A falta de clareza que, a este respeito, se prolonga até ao interior dos debates da crítica do valor e da dissociação, encontra-se estreitamente associada ao conceito dos "potenciais". Na medida em que esse conceito se enquadra naquela definição que tentei conceber como os artefatos da História no sentido mais lato, apenas se pode tratar de potenciais tais que, enquanto conteúdos, possam ser destacados desta ou daquela maneira da forma do fetiche e enquadrados em um contexto social alterado. As capacidades da representação simbólica de tons (notação musical) ou do tratamento siderúrgico do ferro são semelhantes potenciais, de par com aquelas que tornam possíveis os transplantes renais ou a produção de microprocessadores etc. Semelhantes potenciais não devem, no entanto, ser confundidos com a estrutura da própria forma de fetiche como forma de pensamento e atuação negativa e destrutiva. Através dessa forma, não obstante a sua cegueira e destrutividade, podem ser desenvolvidos conteúdos que não se resumem a ela de todo ou na sua totalidade e que podem ser transformados em outras referências; mas a própria forma mantém-se enquanto tal puramente negativa, não constituindo os seus modos e estruturas qualquer "potencial" transformador.

Esta delimitação conceptual pelos vistos permaneceu até à data extremamente desfocada, de modo que especialmente o conceito dos "potenciais" que, contrariamente aos artefatos palpavelmente materiais, para já não é percepcionado separadamente da forma do sujeito, parece transportar um momento apologético relativamente a essa forma. Assim, por exemplo, a capacidade de distanciamento especial ou acrescida do Homem moderno é reivindicada como sendo um tal potencial da forma do sujeito que haveria que salvar, com referência explícita ou implícita ao paradigma do suposto "processo civilizacional" (Norbert Elias).

Contra este argumento há que invocar em princípio os mesmos motivos como contra o argumento do "potencial" da individualidade abstrata moderna. Primeiro, a capacidade de distanciamento como tal, como também a individualidade enquanto tal, não é uma realização específica da Modernidade. Tal como, com a constituição de uma "segunda natureza", se encontra estabelecida, de um modo geral, uma relação do Homem individual para com uma forma social e, com isso, a existência da individualidade, também a

humanização estabelece em geral uma relação de distanciamento para com a natureza e uma relação de distanciamento entre os membros da sociedade. Sem capacidade de distanciamento não há cultura, nem que seja da idade da pedra. A presunção de uma pura e simples "falta de distanciamento" de toda e qualquer sociedade pré-moderna é, tal como a presunção complementar da sua pura e simples "falta de individualidade", pura ideologia burguesa e iluminista que vê toda a Humanidade anterior ao século XVIII a vegetar no crepúsculo indiferenciado do "apego à natureza", apenas para de algum modo poder justificar a barbárie e estupidez específica da forma do sujeito moderna como um "progresso".

No entanto, tal como a individualidade, também a capacidade de distanciamento se encontra em todas as relações de fetiche sob o encantamento de uma forma social compulsiva. Este encantamento não se tornou menor na forma moderna do sujeito, tendo-se antes potenciado de um modo insuportável. Trata-se precisamente de libertar tanto a individualidade como a capacidade de distanciamento da forma do sujeito e, com ela, do encantamento de qualquer forma de fetiche. Tal corresponde sensivelmente ao contrário da opção de querer atribuir precisamente à própria forma de fetiche do sujeito uma capacidade de distanciamento "salvadora" específica como uma realização positiva.

Na realidade, a capacidade de distanciamento "aumenta" na forma do sujeito moderna sujeita à lógica do valor e da dissociação apenas em um sentido puramente negativo, nomeadamente para dar lugar a essa relação abstrata entre sujeito e objeto que executa a pulsão de morte do sujeito do valor. Tal pode ser demonstrado nos símbolos populares contemporâneos do "mal". As piores e mais horrendas caraterísticas do sujeito do valor e da dissociação refletem-se, desde o aparecimento da indústria cultural capitalista no século XX, muitas vezes de uma forma indisfarçada e involuntária nas imaginações da cultura "pop". Em especial os monstros e os megacriminosos sobrehumanos criados sempre de novo em variações novas lançam uma determinada luz sobre o próprio sujeito burguês tido como "bom", e fazemno particularmente no que diz respeito aos seus supostos "potenciais".

No que toca ao famigerado "potencial" da capacidade de distanciamento especificamente moderna e burguesa, ele é ultimamente representado pela indústria cultural de um modo tão impressionante como pouco apetitoso na figura canibalesca do Hannibal Lecter. Em uma recensão acertada da nova adaptação cinematográfica desta matéria lemos a este propósito: "Acontece que o que inquieta na figura do psiquiatra assassino não reside exatamente em um carácter implacavelmente maligno, mas antes na sua ambivalência, nas duas almas que coabitam no mesmo peito de um modo assombrosamente harmonioso e que encontram a sua expressão em ambas as partes do nome Hannibal Lecter: o lado hannibalistico e animal, rude, impulsivo e destrutivo que, como um gémeo siamês, é sempre acompanhado por uma ratio que se afigura muito kantiana (!) – de uma razão domesticadora que se eleva sobre tudo que seja sensível e impulsivo e que analisa a ferocidade ao seu lado de uma forma fria e isenta de emoções. Lectoriza. Os assassínios mordazes de Hannibal, o canibal, assim justamente não podem ser classificados como os crimes hediondos de um psicopata inimputável, mas manifestam-se ao observador horrorizado como ações conscientes e perfeitamente controladas que a todo o momento se encontram subordinadas à lecture [leitura] minuciosa do intelectual Lecter..." (Alexandra Stäheli, ‘Red Dragon’ oder Hannibal zum Hors-de’oeuvre [Red Dragon’ ou Hannibal como entrada], in: Neue Zürcher Zeitung, 31.10.2002). Melhor não poderiam ser retratadas a lógica e a relação para com o mundo do sujeito do valor e da dissociação. É assim que hoje se "ama", é assim que se constroem casas, é assim que se viaja e se tomam refeições, é assim que se fazem referências à História. No entanto, o lado "canibalesco" descrito como "impulsivo" não constitui porventura o fundamento natural que é "racionalmente lectorizado" pela forma destituída de conteúdo, mas é o lado sensível e impulsivo no estado dessa mesma "lectorização"; e este é bastante horroroso. A forma vazia e autossuficiente da abstração do valor e da lógica da dissociação é e permanece absolutamente transcendente face a todo e qualquer conteúdo sensível e social, e mesmo relativamente ao sentimento mais íntimo e à sexualidade.

A "capacidade de distanciamento" aqui se transforma em um abismo intransponível. Trata-se, por um lado, daquele distanciamento que Procrustes assume face aos seus semelhantes humanos e, por outro lado, do distanciamento em relação a todo o mundo e à totalidade das coisas de que sofre Tântalo. Em última análise, o sujeito do valor regido pela lógica

masculina da dissociação demonstra-se totalmente incapaz de qualquer relacionamento. O cariz absoluto do distanciamento dá, no entanto, lugar a uma falta de distanciamento igualmente absoluta, em uma impertinência de raízes autistas, que faz com que o objeto do afeto tornado impossível acabe por ir parar literalmente à frigideira. A impossibilidade de deixar valer o objeto ou a pessoa como outro com qualidade própria torna a incorporação imediata a ultima ratio. Por fim, a relação desde sempre falida é despachada pela via mais natural. É nisto que consiste a verdadeira dialética do sujeito do valor. E, na medida em que o próprio Eu é sensível e impulsivo, pode igualmente apenas ser dominado de uma forma autocanibalista. A pulsão de morte capitalista também pode ser descrita como o processo de um autocanibalismo progressivo.

Esta lógica pode bem fazer-se acompanhar por mostras de uma sensibilidade cultural burguesa. Logo no início do "Red Dragon", encontramos Hannibal Lecter no concerto clássico, onde a sua sensibilidade cultural afinada lhe permite distinguir a fífia que escapa a um violinista por demais medíocre. A desaprovação do conhecedor faz com que este não tarde em associar o lado desagradável do lapso ao que é útil ao bem corporal. É que o infeliz daquele músico é demasiado bem nutrido. Assim, Hannibal revela-se duplamente conhecedor. Poder-se-ia encontrar uma melhor metáfora para a relação moderna entre o intelecto e o dinheiro, para toda a atitude de burguesia culta, todo o esteticismo iluminista de tempos livres e todo o mecenato capitalista?

Pensar-se-ia que Hannibal Lecter como imagem do sujeito do valor constitui um símbolo de extremos que não podem ser igualados pela realidade. Mas não é isso o que se passa: os Hannibal Lecter, entretanto, existem real e fisicamente. Em dezembro de 2002 o público alemão foi surpreendido pelo caso do "canibal de Rotenburg". Os detalhes em princípio não são menos apetitosos que a realidade capitalista restante: "Havia dias em que o educado Armin M. tomava conta do Rottweiler e do pónei dos vizinhos. Havia dias que vinha tomar um café, que tomava a sua cerveja na taberna, que servia à mesa na festa de família de um colega. E houve um dia em que esquartejou um ser humano e comeu a sua carne. Armin M., diz hoje o psicólogo policial, é psiquicamente são (!) ... O que se passou na Primavera do ano passado na cave de um ... edifício histórico em Rotenburg do Fulda deixa os

investigadores policiais atónitos. E desvia o olhar para os mais escuros pátios traseiros da Internet onde inúmeros concidadãos aparentemente normalíssimos partilham as suas perversões sob formas cada vez mais crassas. Até que a brincadeira se torne séria. Até que seja ultrapassado o derradeiro limite ... No dia 9 de Março de 2001, o especialista em microprocessadores Jürgen B., de 43 anos, estava pronto a dar esse passo, tinha vendido o seu carro, redigido um testamento, tirado um dia de férias (!) ... Muitos indícios fazem crer que o organizado e inconspícuo B., equipado apenas com o seu celular e alguns milhares de marcos alemães, se deslocou diretamente ... a Rotenburg para visitar o seu conhecido da World Wide Web... Na solitária herdade em Rotenburg-Wüstefeld, já havia muito que M. tinha tudo preparado. Após a morte da sua mãe, quatro anos antes, tinha mandado construir duas divisões na cave. Uma delas tornou-se o quarto da matança. Ali, M., que em dias de trabalho normais dava assistência aos computadores de um banco, colocou o engenheiro de Berlim à frente de uma câmera de vídeo. B. despiu-se, depois deixou M. cortar-lhe o pénis. A ferida foi profissionalmente estancada. Em seguida o vizinho simpático da herdade tentou comer o genital juntamente com a sua vítima. Com a câmara ligada, o ex-soldado depois matou a sua visita com punhaladas e cortes no pescoço, pendurou-o pelos pés e desmembrou o cadáver. M. guardou a carne dividida em doses individuais na sua arca congeladora." (Conny Neumann, Sven Röbel, Wilfried Voigt, "Ich will dich schlachten" [Quero-te para matança], in: Der Spiegel 51/2002).

Realmente não falta nem um cliché do homem e sujeito de dissociação burguês deformado: perito em computadores, voluntarioso e conformista (para a bad trip para a morte a vítima até tira férias para que tudo se passe nos conformes, encontra-se de fato "psiquicamente são" segundo os padrões capitalistas, o que ninguém pode atestar com maior competência que o psicólogo policial, tem uma casa histórica a transbordar de bom gosto (provavelmente um eldorado para arquitetos de interiores), é ex-soldado (primeiro-sargento) e em termos familiares encontra-se profundamente marcado pela normalidade: "O pai foi polícia, o irmão mais tarde saiu de casa e foi para padre. Armin M. ficou com a sua mãe e tomou conta dela até à sua morte" (ibidem).

Pelo menos no que toca às fantasias não se trata de modo algum de uma excepção absoluta. Na normalidade pós-moderna pouco falta para semelhantes figuras serem um fenómeno de massas, tendo já estabelecido uma espécie de moda: "O que é certo é que M., depois de matar o berlinense de 43 anos, andou à procura de mais vítimas. Ele respondeu em vários fóruns de canibais na Net (!), por exemplo em agosto à mensagem de Michael ‘from Germany’ que oferecia o seu corpo: "24 anos, 1,85 metros, 75 quilos. ‘Está interessado?’ ‘Franky’ estava interessado. ‘Quero matar-te e comer a tua boa carne!’ E em setembro escreveu a Hänsel que andava à procura de um ‘cortador radical’: ‘Vou matar-te segundo todas as regras da arte, vou esquartejar-te e comer-te todo com outros amigos canibais. O teu cortador de primeira’. A 7 de Setembro de 2001 até um certo Bernd fez saber em ‘[email protected]’ que desejava ser comido vivo... (Os) muitos milhares de ofertas nos recreios da Internet não têm limites. Nem mesmo quando se trata de torturar e de comer seres humanos, especialmente se forem jovens e esguios... Entretanto também se tornou moda entre os amadores de torturas sanguinolentas e perversas chocarem clubes amadores inofensivos ou esconderem-se por detrás dos rótulos inofensivos destes. Assim supostos canibais já andaram a conversar sob a categoria ‘Aldi-Fanclub’... Há cerca de dois anos uma plataforma especialmente selvática foi o campeão declarado de semelhantes representações. Ali era bem possível encontrar o vídeo particular de um casal que andava nu a esquartejar um cadáver, divertindo-se especialmente com os seus genitais. Ou filmagens de acidentes onde suspiram vítimas com membros decepados – filmes aparentemente provenientes dos arquivos da polícia. Entretanto, porém, o endereço de má fama já não alberga horrores que cheguem. É mais qualquer coisa para parolos, dizem os mais durões... O que leva seres humanos a terem fantasias semelhantes, o que acaba por levar alguns a passar aos atos? Psicólogos e criminalistas em toda a república intentam nestes dias explicar no caso do Armin M. o que não tem explicação... E o caso terá os seus fãs... ‘Não são poucas as pessoas na Alemanha’ diz o criminalista de Wiesbaden (2) Rudolf Egg, ‘que pagariam muito dinheiro para verem o filme vídeo que a polícia apreendeu’..." (ibidem)

É em tudo semelhante com o que se passa com os perpetradores de atentados suicidas e os autores de matanças indiscriminadas: A cada um que passa aos atos correspondem milhões que brincam com essa ideia na sua imaginação ou que ao menos querem deleitar-se com as imagens do horror. A bem ver, o

canibalismo e o autocanibalismo apenas representam variantes da matança indiscriminada, do amoque. Aqui pontifica a mesma lógica de destruição e autodestruição simultâneas. E é certamente o estádio final da Eu-S.A. que os "amigos canibais" celebram quando se encontram para a matança como quem vai praticar música de câmara ou brincar com o comboio em miniatura na cave dedicada aos passatempos. O homem que come juntamente com o seu cortador o seu próprio pénis cortado como a última refeição do condenado simboliza apenas o Homem de alto rendimento da nova economia que se sacrifica a si próprio no altar da economia industrial e a quem esse ato dá ponta.

O sujeito-objeto moderno chegou aqui à sua última manifestação ainda pensável que completa a sua autodesmontagem de uma forma terrível. Tratase da medida extrema do distanciamento em relação ao mundo cujo reverso consiste em um distanciamento igualmente extremo em relação a si próprio. De formas respectivamente diferentes, também um Adolf Eichmann ou o autor, entretanto executado do atentado de Oklahoma City, Timothy McVeigh, representaram a "capacidade de distanciamento" constituída pela relação de valor e dissociação. O símbolo há muito que ganhou vida, e o horror que espreita no fundo do sujeito concorrencial manifesta-se cada vez mais imediatamente à superfície dos indivíduos no contexto da crise mundial do sistema produtor de mercadorias. A dissolução do Eu que se quebra sob o peso da forma do sujeito no economismo real da forma vazia pare o monstro, o Alien que espreita em qualquer ser burguês. O que interessa é manter sempre a compostura e não manchar a toalha à refeição! Tanto sobre a capacidade de distanciamento do sujeito do valor e da dissociação como sobre o "potencial emancipatório".

O arrasamento do que tudo arrasa

Despeçamo-nos, portanto, da ilusão de querermos imputar à forma do sujeito como tal algum potencial positivo e "redentor". Concentremo-nos em organizar por um lado o debate concreto e cingido ao conteúdo em torno da seleção, da apropriação ou da negação dos potenciais em termos de conteúdo, dos artefatos da História. Tal refere-se, para já e sobretudo, à questão das

forças produtivas no sentido mais lato, à relação entre as realizações prémodernas e modernas, assim como à relação específica entre a força produtiva e a força destrutiva na Modernidade produtora de mercadorias. E concentremo-nos simultaneamente em, por outro lado, fazer avançar a crítica radical da forma moderna do sujeito e de reprodução para realmente fazermos tábua rasa a esse respeito. Neste sentido há que definir a coerência de um procedimento que quero designar por lógica da negação.

Esta lógica no fundo é muito simples, mas é obscurecida pela indefinição na relação entre forma e conteúdo. A sociedade do valor e da dissociação representa em si um programa de tábua rasa; ela é em si uma negação, nomeadamente acabando por ser a negação brutal de todo o mundo sensível e social. Pode unicamente tratar-se de libertar o mundo desta diabólica negação objetivada. A emancipação constitui sempre a libertação de algo de negativo sendo, assim de um modo muito determinado a negação emancipatória uma negação da negação. Nesta medida o que está em questão é precisamente fazer-se tábua rasa da lógica capitalista da tábua rasa. Não se trata de mais nada.

Como é conhecido, Kant, com um misto de admiração e de horror de antecipação, foi designado por "arrasador de tudo" filosófico. Esta caraterização bem pode ser tomada à letra, pois o raciocínio de Kant não representa outra coisa senão a forma reflexiva pura do sujeito do valor, da dissociação e do Iluminismo, e justamente não a sua crítica. A crítica, se é que pretende ser séria consiste, por isso, precisamente em arrasar o próprio "arrasador de tudo" e, como consequência prática, por seu lado o "arrasamento de tudo" pela sociedade real.

Ora, está por demais patente que o arrasamento do arrasador de tudo não pode constituir, ele próprio, um arrasamento de tudo, visto que o arrasador de tudo pura e simplesmente não é "tudo", se bem que lhe (à sua lógica) seja própria a tendência para se tornar tudo e, com isso, dissolver o mundo no seu vazio de forma, para o destruir na sua qualidade de sensível. O próprio arrasamento do arrasador de tudo é precisamente idêntico à salvação de "tudo", na medida em que possa ser sonegado ao arrasamento de tudo

iluminista e capitalista. Trata-se de ganhar capacidade de distanciamento face à capacidade de distanciamento capitalista e de também se distanciar do mesmo de uma forma real e radical. A capacidade de distanciamento capitalista anterior e encontrada é um puro potencial destrutivo, e enaltecer esta como positiva e transformável significa precisamente falhar a distância decisiva e trair os potenciais verdadeiros. Tal como menos vezes menos dá mais, somente a negação emancipatória da negatividade capitalista produz essa liberdade positiva do manuseamento adequado da qualidade própria dos conteúdos, em vez de se continuar a expor estes últimos ao arrasamento de tudo próprio da lógica do valor e da dissociação.

Daí se torna evidente a rabulística e distorção dos fatos que seria no fundo acusar-se a negação emancipatória logo devido à sua coerência de, no fundo, não ser outra coisa senão um "arrasamento de tudo" – logo por querer arrasar o arrasador de tudo! O que mais pode significar esta anticrítica senão defender de forma indireta a forma do sujeito ou a forma de fetiche em termos gerais e, com elas, o arrasador de tudo? O argumento estranhamente associativo vai dar ao fato de se imaginar o mundo apenas no modus da lógica da dissociação porque, de outro modo, tudo supostamente seria nada, o que, no entanto, apenas vai dar a querer-se conservar pelo menos um momento precisamente daquela lógica que realmente converte "tudo" em "nada".

Aqui vemos uma negação da negação exatamente invertida, nomeadamente a negação ao menos parcial da negação emancipatória, ou seja, a tentativa de travar os arrasadores do arrasador de tudo a fim de salvar "alguma coisa" dele, algum "potencial" que sempre de novo apenas poderia revelar-se como momento do destrutivo arrasamento de tudo. Também aqui menos vezes menos dá mais, mas esse próprio mais é outro menos que tal, uma negatividade absoluta que se definiu a si própria como positivo totalitário, nomeadamente o tal sujeito masculino do valor e da dissociação que tem de ser dado o golpe de misericórdia, e mais nada. Quanto a este ponto, em todo o caso, não pode haver qualquer relativização, aí não nos podemos furtar a tomarmos uma decisão clara.

O subjetivo na crítica do sujeito ou a dialética dos bonzinhos

Tal como a constituição social do fetiche em geral e a forma do sujeito moderna em particular representam uma relação paradoxal, assim também ainda o sacudir libertador dessa forma tem de se haver de certo modo com o paradoxo. Tal pode conduzir a confusões, visto que a própria forma do sujeito como "inimigo" não é tão fácil de retirar de circulação como um objeto exterior, mesmo que essa forma nunca seja apenas interior, defrontando-se aos indivíduos alienados sempre ao mesmo tempo como um poder exterior. Também a este respeito há que aguçar a lógica da negação em termos conceptuais para não deixar nem um furo à apologética.

Assim poder-se-ia invocar com alguma justeza contra a argumentação desenvolvida até este ponto que ela faz de conta que não é, ela própria, ainda a argumentação de um sujeito, ainda que fosse um sujeito que formula a crítica dessa forma. Afinal é isso mesmo o que perfaz o momento paradoxal desta constelação. Agora evidentemente não pode nem deve negar-se que é precisamente esse o estado das coisas. Mas o que resulta daí? A anticrítica poderia prosseguir com alguma justeza: Escondes-te, fazes de conta que já estás além da forma de fetiche, que já não és um sujeito masculino regido pela lógica da dissociação e que formulas a sua crítica por assim dizer "desde o exterior". Por isso, não te armes em "quem está acima das coisas", como metafeminista e como comedor de sujeitos, ou então – pois, o quê?

Para já há que questionar onde quer chegar semelhante anticrítica. Se o que está em causa são apenas as dificuldades em "rebentar" juntamente com o contínuo histórico das relações de fetiche a forma do sujeito dotada da lógica masculina da dissociação pode apenas tratar-se do problema de saber com que meios e de que modo nos veremos livres desta "jaula de ferro" da forma. Uma discussão sobre este tema nem poderia adquirir uma acuidade especial, tratando-se apenas de um debate sobre modalidades, tácticas, modos de abordagem e sobretudo o modo de representação teórica de um objetivo comum indiscutível. Afinal ainda nos encontramos apenas no início da crítica do sujeito e da dissociação e do seu modus da reflexão teórica, de modo que

nem poderá ser de outro modo senão que a nossa representação dessa crítica ainda se encontre contaminada por esse modus.

Mas se a tal não se encontram associadas quaisquer propostas de como melhor há que dar cabo do sujeito do valor e da dissociação, a fim de avançarmos na representação teórica da crítica radical, permanecendo a acusação acima referida, para já, a pairar no ar sem nada resolver, no mínimo ela é passível de ser interpretada. O subtexto não tem de, mas poderia ser nesse caso: Pois não faças de conta que atacas a forma do sujeito seriamente sob todos os seus aspectos, como se isso fosse de algum modo possível! Afinal tal nem sequer é possível, por isso, "assume-te", não tentes ser quem não és e quem todos nós não somos! Descansa lá um pouco e, já agora: "alguma coisa" do sujeito tem de ficar, seja lá o que for... E com isso voltamos, no entanto, à questão de princípio da negação. Não é possível um pouco gravidez e também não se pode praticar um pouco de crítica do sujeito.

Na realidade bem há o que se possa dizer sobre as modalidades da transformação. Está claro que não pode ser assumida uma posição social real para além da determinação formal profundamente vincada nos indivíduos, isso é evidente. Mas bem pode ser apontado um ponto de partida imanente e um caminho da crítica e da transformação. Que os indivíduos não são tão reféns da forma de fetiche "como as formigas (no) formigueiro" (Anselm Jappe) faz-se sentir, e fá-lo como sofrimento. Não em último lugar há que assinalar um sofrimento permanente com a relação entre sexos dominada pela dissociação que em última análise configura a incapacidade de qualquer relacionamento. O sofrimento é o ponto de partida concreto. O tratamento deste conteúdo empírico pode constituir uma posição para já virtual "do lado de fora": nomeadamente a reflexão crítica dos próprios relacionamentos sexuais e sociais. Seria ridículo negarmos esta possibilidade e querermos relegar a verdadeira existência desta crítica para a irrealidade.

"Virtualidade" aqui não significa no sentido pós-moderno a indiferença de um "vale-tudo" ou a terraplenagem da diferença entre a realidade e a representação mediática, mas a autopercepção distanciada e crítica no seio da realidade capitalista ainda não superada e constituída pela lógica do valor e da

dissociação; ou seja, qualquer assunção de um distanciamento face à "capacidade de distanciamento" destrutiva capitalista.

"Virtual" neste sentido é o que a crítica é pela sua essência, pois afinal se trata da negação, para já mental, de uma situação real ainda não superada. Uma pessoa ainda se pode encontrar "apanhada" nessa situação em termos reais, mas negá-la com base na sua experiência de sofrimento, isto é, assumir uma posição transcendente em termos ideais ou virtuais, de onde a crítica quer tornar-se prática. O conceito pós-moderno da virtualidade quer dizer sensivelmente o contrário, nomeadamente a mera substituição da crítica por uma outra "percepção" da realidade que se considera poder interpretar-se de qualquer maneira.

A posição virtual da crítica neste sentido tudo menos pós-moderno permite, por um lado, que se dê início a um certamente difícil processo de transformação prática, desde o próprio comportamento quotidiano até à revolução das instituições sociais. No entanto, o fato de este processo prático evoluir de um modo contraditório, descontínuo etc. não altera nada no fato da posição virtual da crítica permitir, por outro lado, que no relativamente independente campo da teoria a lógica da crítica da forma do sujeito já se desenvolva nos seus princípios fundamentais e se formule com toda a acuidade e em todos os aspectos essenciais; ainda que esta crítica não possa ser ainda exaustiva, visto apenas encontrar a sua forma definitiva nas experiências da prática negatória. Aqui se torna visível o momento que há que inverter pela via da transformação da cisão burguesa da reflexão social em uma oposição entre a teoria e a prática.

O argumento acima referido, se e na medida em que aparece no horizonte de uma anticrítica meramente defensiva, dirige-se, no entanto, precisamente contra a elaboração teórica da posição virtual da crítica e, a bem dizer, até contra a possibilidade da mesma. Como argumento por seu lado teórico, ele já constituiria o embrião de uma qualquer apologia da forma do sujeito. Tal implicaria uma decisão com relação a um conflito que se desenrola no interior do peito dilacerado pela lógica masculina da dissociação. É que a experiência do sofrimento de modo algum tem de conduzir "objetivamente" à posição da

crítica; esta experiência também pode conduzir – em especial desde a posição "masculina" – a uma afirmação compensatória da situação de sofrimento que não em último lugar se alimenta da supremacia estrutural masculina: em termos práticos, fazendo da dissociação a sua vivência quotidiana; no campo teórico, sob a forma dessa realeza filosófica que não se manifesta unicamente como postura, mas que se objetivou no próprio modus teórico.

Já que se sofre, que seja ao menos na falsa consciência da reflexão efetuada que seria a vantagem que se tem sobre a parte dissociada. Isso é que é a verdadeira "atitude de quem está acima das coisas"! A consciência da suposta superioridade ainda no sofrimento e através do sofrimento oferece a compensação, que no plano sexual imediato se apresenta como a heterossexualidade irrefletida, sob o ponto de vista social e teórico como afirmação quase que natural do sujeito da dissociação. Ou seja, em termos práticos e quotidianos, e mais ainda sob a forma teórica objetivista e contemplativa: O aspecto de Tântalo é compensado pelo aspecto de Procrustes, e atrás desse já espreita – Hannibal Lecter.

Ora, com esta definição da contradição e das suas possíveis implicações ainda não se encontra estabelecida uma clara distribuição dos modos de comportamento. Quem desenvolve de uma forma coerente a crítica teórica, ainda assim pode atuar na prática do dia-a-dia e dos relacionamentos de uma forma em grande medida caraterizada pela lógica masculina da dissociação. E vice-versa: Quem aprendeu, sob muitos aspectos, na prática quotidiana ou no contexto de movimentos sociais, a evitar comportamentos próprios da lógica da dissociação, no âmbito da elaboração teórica sempre pode apesar de tudo agarrar-se com unhas e dentes ao modus da dissociação e, com isso, à apologia da forma do sujeito (ou de algum dos seus momentos). Evidentemente também outras combinações são possíveis. A situação como situação de contradição pode resolver-se unicamente em um movimento contraditório.

Aqui, contudo, apenas nos interessa a formulação teórica da crítica radical. E aqui o que se passa é isto: O fato de, em termos de prática social, ainda não termos ultrapassado a forma do sujeito impregnada da lógica da dissociação

não é um argumento contra a formulação da crítica teórica dessa forma. E muito menos serve de argumento que não se "possa" ou "deva" formular essa teoria de um modo consequente. E menos ainda serve de argumento que "alguma coisa" desta forma do sujeito "deveria" ser mantida por motivos emancipatórios e levada para uma sociedade posterior à forma do valor.

Ainda existe outro aspecto desta possível anticrítica. Para tal, poder-se-ia virar mais uma vez o bico ao prego e dizer: Na mesma medida em que assim, segundo o princípio da tábua rasa, arrasas a pobre da forma do sujeito e o pobre do ser masculino dissociado, tu próprio estás a denunciar-te involuntariamente como um sujeito masculino com todos os atributos da militância e com toda a armadura da forma. O que queres é, por assim dizer, dissociar implacavelmente a dissociação e pavonear-te na pose de um supersujeito.

Mas semelhante argumento equivaleria mais uma vez à rejeição e deturpação rabulística da inevitável lógica da negação emancipatória. Se seguíssemos essa deturpação, no fundo nunca se poderiam negar e sacudir situações formais negativas. É que de fato uma negação e suplantação ativa não é pensável nem exequível se a crítica da forma do sujeito não tiver, ela própria, um momento subjetivo, tal como ela apenas nasce a partir da forma do sujeito como consequência do sofrimento submetida a um tratamento emancipatório.

Para poder fazer guerra contra alguém ou alguma coisa, uma pessoa ainda tem de se encontrar no mesmo solo. Para se tratar da saúde à forma, tem de se vencê-la, por assim dizer, com as suas próprias armas. O lado subjetivo da crítica do sujeito é imprescindível como dialética da negação. Precisamente nesse sentido não devemos limitar-nos a admitir passivamente que infelizmente ainda não conseguimos ultrapassar a forma do sujeito, mas virar essa imanência ativamente contra a própria forma.

Isso justamente não quer dizer que a negação e o seu objeto fossem idênticos e que assim a negação deveria ser relativizada ou rejeitada no seu todo. Uma caraterização semelhante seria apenas expressão da falta de vontade ou de

capacidade de refletir profundamente sobre a lógica da negação emancipatória. A crítica radical permanece unicamente "subjetiva" porque e na medida em que se dirige contra a própria forma do sujeito, ou seja, no potencial negatório face ao princípio real negativo, contra o qual (e contra o qual unicamente) o momento subjetivo tem de ser virado como elemento conscientemente destruidor. Isto significa que, face ao sujeito destrutivo e caraterizado pela forma do valor e pela lógica da dissociação (ainda) não é possível uma referência diferente que respeitasse o outro e tivesse em conta a lógica própria das coisas, mas unicamente a sua própria, destrutiva, precisamente para destruir a destruição. Evidentemente não se trata de assassinar o assassino ou de violar o violador, mas de fazer parar o morticínio e as violações (também no sentido mais lato e figurado do desenvolvimento capitalista das forças destruidoras), o que não pode ser feito sem um momento de "contradestruição" que apenas perderia a sua razão de ser em uma sociedade libertada da forma de fetiche e, com ela, da forma do sujeito.

A dessubjetivação, pelo contrário, é a atitude indicada desde o início em relação aos conteúdos da referência ao mundo. Por isso, o processo de transição irá virar, por um lado, o momento subjetivo contra o próprio sujeito, mas, ao mesmo tempo, já desenvolver face aos objetos e às relações sociais os momentos do que já não é subjetivo, isto é, do que já não é subjetivamente objetivador. Precisamente por isso, o momento subjetivo, negatório e emancipatório, face ao próprio sujeito não é de modo algum idêntico a este, ou seja, à forma do sujeito e ás respectivas consequências: Se esta última se relaciona com o mundo de um modo subjetivo e negatório e consigo própria de um modo positivador, o primeiro relaciona-se, da forma exatamente inversa, com o mundo de um modo não subjetivo e que faz referência ao conteúdo, e de um modo subjetivo e negatório com a forma do sujeito enquanto tal.

Isso significa tornar-se subjetivo de um modo negativo e transformador logo contra aquilo, em que o sujeito segundo o seu próprio conceito nunca pôde ser subjetivo em um sentido próprio e positivo, mas sempre apenas o objeto da auto-objetivação; com isso, contra o que sempre estivera escondido no ângulo morto da sua autopercepção: Ou seja, já apenas sujeito no sentido de abolir o sujeito; e exclusivamente para esse fim, esse ato e nesse momento

histórico ou ponto de viragem dialético a subjetividade até é imprescindível. Esta, porém, pela inversão da negação da referência ao mundo e da autorreferência negativa dos indivíduos à forma do sujeito já constitui uma subjetividade que já não o é. A errada e precipitada "renúncia" ao momento subjetivo, precisamente neste aspecto, na verdade não seria outra coisa senão "renúncia à renúncia", ou seja, logo na pose da autointitulada falta de sujeito com relação à destruição da forma, a real vontade de deixar incólume essa forma do sujeito.

Afinal o sujeito de qualquer modo já é desde sempre um objeto na sua autoobjetivação; é por isso que pode sempre retirar-se para o lado do objeto quando a situação se torna séria. Quanto mais subjetivo, mais objetivo: Sou pequeno, o meu coração é puro, e nele não entra ninguém, a não ser o espírito do mundo. Nunca foi o sujeito, sempre apenas a objetividade, e tanto mais subjetivos no sentido burguês banal podemos ser. Precisamente esta capacidade de camuflagem do sujeito da dissociação tem de ser brutalmente quebrada, sem quaisquer cerimónias, mesmo que a bagunça seja considerável e se manche a toalha da mesa.

Assim sendo, tem de chegar o dia de o homem e a mulher juntamente "serem homens" e investirem contra a masculinidade dissociadora; tal terá de acontecer com a mesma falta de consideração que caracteriza o próprio sujeito do valor e que este costuma querer consumar com o mínimo possível de alarido. Seria uma ilusão sem qualquer esperança de realização pensarmos que a forma do sujeito pudesse ser de alguma maneira superada ou até apenas mitigada sem esta passagem pela negação dura e aberta. Se o capitalismo como forma de reprodução não pode ser reconvertido a um tratamento vegetariano do mundo, o mesmo se aplica ao sujeito dessa forma. O predador tem de ser abatido. E aí falham todos os estratagemas e filosofemas chineses que parecem mais próprios da avó face a essa forma e que propagam coisas como a "ação pela inação", recomendando que esperemos à beira do rio numa postura contemplativa que o inimigo passe por nós a boiar feito cadáver só por si, sem qualquer golpe ou tiro. Independentemente daquilo com que se possa lidar deste modo, com a forma do sujeito seguramente não é!

A anticrítica dirigida contra o elemento subjetivo da crítica do sujeito vem cair em cima de si própria, visto que a renúncia a precisamente esse momento subjetivo não passaria por seu lado da tentativa de fazer de conta que já nos encontramos para além da forma de fetiche e da forma do sujeito, como se no meio da forma do sujeito e com relação à mesma já pudéssemos dedicar-nos descansadamente a sermos não-sujeitos. Com isso, porém, não seria ganha qualquer transformação, mas apenas essa "falta de Eu" no sentido de Hannah Arendt, tal como ela sempre espreitou no fundo da "forma sujeito", tendo-se manifestado nas suas piores atrocidades. O "desejo de já não ter de ser um sujeito", em especial quando se refere precisamente a não ter de se ser subjetivo contra o próprio sujeito, não é outra coisa senão o desejo de sem luta poder ser e permanecer um sujeito da dissociação masculino sem ter de sofrer a tortura inerente a essa situação: estar "em cima", de preferência na posição do missionário permanente, sem ter de se sentir "em cima", poder sentir-se superior sem carregar com o peso da superioridade.

Deste modo, porém, a correspondente anticrítica dirigida contra a subjetividade da crítica radical do sujeito não pode apenas ser entendida desde a perspectiva da crítica como deficiência e inconsequência, mas igualmente como defesa ativa do próprio sujeito da dissociação. Para essa defesa não existe, afinal, apenas a opção da atuação por seu lado blindada, da afirmação pura e simples, em que o sujeito "assume" ser e querer ser o que é. Também no plano da relação direta entre sexos não existe apenas o machão secundário, mas igualmente e sempre de novo o bonzinho, o homem do grupo masculino, que por vias fraudulentas se quer dotar de uma emancipação que não o é. É esse o hetero da dissociação puro e duro que emparedou os impulsos homossexuais debelados com pânico na cave do subconsciente como sempre aconteceu, mas que adorna o seu exterior com os acessórios da homossexualidade e da feminilidade que nem uma árvore de Natal. Esse tipo de homens apenas brinca com os atributos da feminilidade; não para superar a situação da dissociação, mas para a cimentar de uma forma especialmente pérfida. É o homem que quer ser cem por cento "masculino" e abarbatar-se ainda por cima com o "feminino”, ou seja, que quer "ter tudo"; tal como inversamente a mulher que quer "ter tudo", a profissão e a carreira incluindo a concorrência desenfreada, assim como ao mesmo tempo uma "feminilidade" dissociada, família, filhos e uma vida caseira burguesa. O que evidentemente

apenas pode correr mal dos dois lados, visto que, como se sabe, não existe uma vida verdadeira no seio da falsa.

Neste lugar não quero nem posso debruçar-me mais sobre os problemas conexos dos comportamentos práticos na relação quotidiana entre os sexos que de qualquer modo não podem ser resolvidos em primeira linha por uma abordagem teórica. Antes aqui o que está em causa é a forma como a "dialética dos bonzinhos" se pode apresentar na argumentação teórica e com respeito à crítica do sujeito ou à sua rejeição ou denúncia. Como apologista teórico positivador do sujeito, o bonzinho – que reflete a alma da dissociação como o economista reflete a alma da mercadoria – poderia seguir a estratégia de assumir o papel da inocência perseguida; tal como o antissemita se apresenta sempre como perseguido e encurralado por judeus. O sujeito da dissociação no disfarce da "feminilidade" teria de acusar de um modo em tudo semelhante a negação dura da forma do sujeito, a lógica de tábua rasa da crítica do sujeito, de atuar de um modo demasiado "masculino" e guerreiro, de não ter abdicado da "masculinidade" etc. Com isso, evidentemente os fatos sairiam virados do avesso e paradoxalmente a negação do sujeito seria subvertida fazendo-se referência precisamente à crítica do sujeito. Contra isso haveria que mobilizar a velha palavra de ordem dos autónomos, "sensibilidade e dureza": sensibilidade para conteúdos e relações, dureza contra a forma do sujeito – e pede-se o favor de não se confundir uma coisa com a outra!

Não existe uma dialética do Iluminismo: Para lá do conceito hegeliano da Aufhebung

Estas reflexões, no entanto, atingem também o entendimento até à data positivo da dialética nas teorias de crítica social. Quando, por exemplo, Adorno e Horkheimer falam de uma "Dialética do Iluminismo", certamente não se referem a uma dialética de formas e conteúdos, isto é, da negação da forma destrutiva (forma do sujeito) e da transformação positiva dos conteúdos culturais. Por exemplo apenas à margem se fala das famosas "forças produtivas". Os ideólogos da "Escola de Frankfurt" têm uma clara percepção do fato da invocação de determinados artefatos, potenciais quanto a conteúdos, técnicas etc. apenas seria banal no contexto da problemática por

eles levantada e passaria ao lado do assunto. Quando falam da "Dialética do Iluminismo", referem-se essencialmente a uma relação ou a um processo no interior da própria forma do sujeito. É precisamente nisso que consiste o carácter contraditório e a inconsequência do seu pensamento: Por um lado veem a tendência para a destruição e a dissolução de todo o mundo sensível na abstração real que caracteriza a priori esta "forma sujeito"; com isso aproximam-se da crítica da forma enquanto tal. Mas, por outro lado, continuam a encarar a constituição desta forma como o ponto de partida original e verdadeiro da emancipação, o que faz com que o seu pensamento se emaranhe numa aporia irresolúvel.

No entanto há que ressalvar neste contexto que a "Dialética do Iluminismo" de Adorno e Horkheimer acaba por ser bem negativa. Eles não fazem uma conta de merceeiro do estilo "crítica do sujeito light", mas assumem a aporia que para eles não tem solução. Eles veem o potencial emancipatório mais no passado irrecuperável do sujeito, ao passo que o presente se apresenta como essencialmente caraterizado pelo desenvolvimento do potencial destrutivo. Nesta medida, a teoria crítica desemboca neste patamar sem dúvida no pessimismo cultural que afinal não constitui apenas uma especialidade do pensamento anti-iluminista de direita, mas igualmente uma possível consequência do próprio pensamento de esquerda que ainda se encontre apegado à lógica do Iluminismo, desde que a sua reflexão tenha atingido uma determinada elevação. Esta consequência é, de resto, muito mais honesta do que o raciocínio de todos os papagaios de Adorno e invocadores positivos do sujeito (especialmente depois do 11 de Setembro) que invertem mais uma vez essa dialética e logo na sua agonia tencionam imputar novamente à forma do sujeito capitalista esse potencial libertador que Adorno e Horkheimer já há quase sessenta anos viram desaparecida.

A aporia apenas pode ser resolvida pela constatação de que nem sequer existe uma dialética do Iluminismo e que o sujeito moderno como tal tem de ser definido como puramente negativo (visto que o Iluminismo no fundo não significa outra coisa senão a reflexão positiva dessa mesma forma). Se houvesse que falar de uma dialética história em um sentido novo, completamente diferente, crítico do valor e da dissociação, primeiro poderia unicamente tratar-se dessa relação de contradição entre a forma e o conteúdo;

e, segundo, essa definição referir-se-ia a toda a "história de relações de fetiche" anterior e já não poderia ser uma "dialética do Iluminismo" específica. O entendimento moderno da dialética refere-se, no entanto, apenas à dialética formal de sujeito e objeto, no final de contas à relação com o mundo do sujeito do valor e da dissociação e à relação deste consigo próprio. E, neste sentido convencional, a dialética tem de ser liminarmente rejeitada como algo de emancipatório; ela apenas pode ser referida de forma negativa ao processo imanente da destruição de si própria e do mundo da forma do sujeito.

Na sua "dialética negativa", Adorno não deixa de dizer coisas que de certo modo vão no sentido certo; por exemplo quando logo no prefácio refere que considera que a sua tarefa consiste em "romper com a força do sujeito o engano da subjetividade constitutiva" (7ª edição 1992, p. 10). Mas aqui ele apenas avança até ao limite da sua aporia sem a resolver, uma vez que o conceito da "força do sujeito" na sua referência puramente negativa à forma do sujeito até aqui é concebido de uma forma meramente implícita, nunca se tornando explícita. A necessária adoção da subjetividade contra o próprio sujeito não é colocada em destaque como tal na sua definição puramente negatória, mas mantém-se retida na referência positiva à "liberdade autoritária do sujeito" (ibidem, 31), que depois sempre deve libertar-se no terreiro do próprio sujeito não superado da consequência destrutiva do mesmo. Assim a razão desse mesmo sujeito tem de ser acusada uma vez após a outra de "proibir esse desenvolvimento para a liberdade que se encontra contida no seu próprio conceito" (ibidem, p. 47). Mas lá está, nesse conceito e na realidade que se encontra na sua base não existe "liberdade" alguma, mas nada senão a coação formal fetichista.

Por outras palavras: Supõe-se que essa "força" seja negatória sem que negue o essencial. A subjetividade negatória contra o próprio sujeito não é entendida como uma suplantação transformadora do sujeito, mas, no fundo, como a sua (vã) autocura, o que poderia recordar-nos as famigeradas "forças de autorregulação do mercado". Deste modo, a negação inconsequente acaba por voltar a dar à aporia, em assaltos sempre novos e atormentadores, por exemplo quando lemos: "O domínio universal do valor de troca sobre os seres humanos, que impede os sujeitos a priori de serem sujeitos e que rebaixa a própria subjetividade a um mero objeto, remete qualquer princípio de

generalidade que afirma instituir a predominância do sujeito para o domínio da falta de veracidade" (ibidem, p. 180).

Aqui a negatividade do valor de troca aparece definitivamente como externa ao sujeito, pelo menos em desejo, de modo que essa auto-objetivação realmente contida no conceito do sujeito tem de ser imaginada como passível de ser subtraída do sujeito que continua a ser entendido como positivo, desde que se subtraia o valor de troca – como se ao menos nesse caso pudesse ou "devesse" ser instituída a verdadeira "predominância do sujeito". A cada passo Adorno volta a tropeçar na mesma aporia, visto não conseguir chegar, mesmo que seja a muito custo, a uma definição claramente negativa e transformadora da formação do sujeito contra o sujeito, devendo a negação permanecer sempre no solo ontológico do próprio sujeito positivo. Nesta mesma medida o próprio Adorno, apesar da sua polémica contra a necessidade ontológica, não consegue ir além deste ponto da ontologia, que é justamente a ontologia do sujeito (iluminista).

O que aqui falha é a negação da negação no sentido emancipatório, nomeadamente a negação da negação do mundo contida na própria forma do sujeito. A bem dizer, Adorno quer negar esta última, mas como se atém a um conceito positivo indeterminado da forma do sujeito, ele vai caindo, uma vez após a outra, na negação invertida da negação emancipatória; ele apenas ganha balanço para logo em seguida ganhar balanço contra o balanço ganho, de modo que o golpe nunca mais acontece. Assim, no final de contas, também não escapa à dialética sistémica fechada de Hegel, na qual a negação da negação significa desde sempre e a priori a afirmação da forma do sujeito e a negação do mundo sensível.

Na dialética vulgar marxista, a dialética hegeliana é prosseguida sem qualquer ruptura na sua lógica positiva, com a única diferença que esta é referida ao igualmente vulgar materialismo das forças de produção e das condições de produção em lugar do idealismo objetivo do espírito do mundo e da história da sua alienação. Nesse caso cria-se a aparência de que a negação da negação se refere a um processo histórico contínuo, ora em versão materialista, em que uma formação resulta necessariamente da outra, nega esta e, ainda assim, leva

consigo um pouco dela, nomeadamente as respectivas "forças produtivas materiais" que se teriam tornado demasiado estreitas para a formação antiga.

Mas tal como nesta lógica se encontra contido, inalterado e incompreendido, o velho conceito iluminista do progresso e do desenvolvimento, plenamente desenvolvido por Hegel, como momento da própria constituição burguesa (em vez da História no seu todo), também escapa aos dialéticos "materialistas" que eles mantêm igualmente inalterada a lógica da forma do sujeito capitalista. É que, independentemente de se tratar da versão objetiva e idealista ou da sua variante materialista: A negação dialética da negação significa, na verdade, a continuidade da forma do sujeito que ainda continua a constar de forma implícita da versão materialista. A negação hegeliana da negação é desde sempre uma negação da negação emancipatória, antes mesmo de esta se encontrar formulada como tal.

Meras forças produtivas, artefatos, conteúdos díspares, técnicas etc. nem podem constituir qualquer dialética, coisa que sempre é apenas conseguida pela forma da consciência. Só na sua agudização como forma moderna do sujeito esta constitui uma dialética subjetiva e objetiva, cuja estrutura e dinâmica Hegel colocou em destaque de uma forma afirmativa. O sujeito, tanto como forma dos indivíduos como igualmente enquanto "sujeito automático" do movimento social total, que em Hegel figura como espírito do mundo, vontade etc., também se encontra implicitamente contido na versão materialista como portador irrefletido do "desenvolvimento das forças produtivas". Em ambos os casos, ele constitui o verdadeiro suporte da dialética e da negação da negação que é designada por Aufhebung (superação).

No seu famoso tríplice significado, o conceito da Aufhebung corresponde exatamente tanto à metafísica iluminista da história promovida a teoria do desenvolvimento, como também ao requisito associado a esta de um movimento espontâneo apenas imanente do sujeito do valor e da dissociação.

Como é sabido, Aufhebung significa, em primeiro lugar, o ato de se guardar algo ou a conservação (Aufbewahrung oder Konservierung): É aqui que se

encontra codificada a identidade contínua que se mantém a despeito de todas as alterações do sujeito do movimento que se desenvolve (precisamente do espírito do mundo em Hegel e do "sujeito automático" da valorização do valor em Marx, incluindo a reflexão consciente do sujeito do conhecimento masculino e contemplativo que se lhe encontra associado). Este sujeito permanece junto de si a despeito da respectiva alienação para sempre voltar a regressar a si próprio como algo que devém "para si".

Em segundo lugar, Aufhebung significa a elevação (Höherheben), o ato de subir para um novo degrau, tanto do desenvolvimento objetivo como igualmente do conhecimento (o que em Hegel vai dar ao mesmo). O regresso do valor e do sujeito do valor da alienação para a identidade nunca superada ocorre como processo de um "devir para si" em patamares cada vez mais elevados, até que esteja alcançado o estado final iluminado da forma "refletida em si" e da sua consciência "em si e por si"; o que de fato é idêntico à aniquilação do mundo, à Armagedon da história de imposição capitalista.

Terceiro, Aufhebung designa também de certo modo a eliminação (Beseitigung) ou suplantação (Überwindung), mas precisamente não do protagonista de todo este espetáculo, ou seja, do sujeito. O que vai sendo eliminado aos poucos e em patamares cada vez mais elevados é o mundo e a referência sensível ao mesmo. O sujeito formal vazio, ou a "forma sujeito", pelo contrário, nunca se encontra na perspectiva da ruptura, mas sempre apenas na perspectiva da continuidade, tal como ela é garantida pelos outros níveis de significação do conceito do Aufhebung. A reconversão materialista deste conceito pelo marxismo nada altera neste carácter autoafirmativo e retorcido de volta à identidade do valor do movimento do Aufhebung; e isso afinal corresponde ao carácter afirmativamente imanente, referente ao mero reconhecimento na forma, do marxismo do movimento operário.

Tal como o movimento imanente, também o resultado é tautológico: No fim da linha não temos a ruptura com a forma do sujeito e com a lógica do valor e da dissociação, mas a "consciência refletida em si mesma" da própria forma do sujeito, a sua própria consciência positiva, ou seja, a realização agora consciente da constituição fetichista até à data apenas natural. E esse seria o

fim bastante inglório da história, a Aufhebung da consciência de fetiche em si mesma, o paradoxo de uma inconsciência consciente. Na versão marxista tratar-se-ia do "vir a si" das categorias capitalistas sob a forma do estado operário, a suposta imobilidade das categorias como "refletidas em si", e na verdade o estado do mundo enquanto fisicamente arruinado. Ao nível do sujeito do conhecimento seria o estado do rei dos filósofos "refletido em si" que pode concordar com tudo porque sabe tudo e já não tem de fazer nada por iniciativa própria, ou seja, de certo modo ingressou para o nirvana da contemplação de si próprio.

Como conceito positivo da crítica, o conceito da Aufhebung assim apenas se aplica à história de imposição imanente, ao desenvolvimento da relação de valor e dissociação no seu próprio solo e no âmbito dos limites da sua identidade fetichista sendo, assim, apenas um outro nome para a "modernização" ou a progressiva definição do mundo nos termos do valor e a progressiva dissociação até ao pleno desenvolvimento da pulsão de morte nela contido contra a própria existência. Por isso não se trata de um conceptualismo arbitrário e picuinhas, de uma mera discussão em torno de palavras, mas o que está em causa é a coisa em si, quando rejeitamos o conceito até à data usado de um modo nada problemático nos textos críticos do valor e da dissociação da Aufhebung (superação) para em seu lugar falarmos em Überwindung (suplantação) e Bruch (ruptura).

O que também seria o fim da dialética moderna, a suplantação do movimento sujeito-objeto que desemboca na autodestruição. Nessa medida, a "dialética do Iluminismo" não seria a contradição entre um conteúdo em si emancipatório do sujeito e o seu reverso destrutivo, que neste sentido não existe, mas nada mais que o movimento espontâneo do sujeito, que em si desde sempre é destrutivo, movimento esse que tem de ser detido. A continuidade identitária da forma do sujeito tem de ser quebrada, para rebentarmos as amarras da lógica iluminista e escaparmos ao seu potencial de indução de cegueira. Ceterum censeo subjetum delendum esse (3).

NOTAS 1. Embora nesse ensaio de 1993 já seja referido o conteúdo afirmativo da reflexão kantiana, esta ainda continua a ser integrada numa história intelectual marcada por um desenvolvimento progressivo do "conhecimento", com o que se mantém um momento dessa iconização que encobre o modus objetivista. Como componente da própria constituição, porém, a reflexão kantiana tem de se tornar objeto de uma crítica radical em vez de um "reconhecimento" do seu conteúdo reflexivo; só então pode ser quebrada a positivação do sujeito do conhecimento masculino e fiel à lógica da dissociação que ainda se mantém ativa em Adorno. 2. Cidade em que é sedeado o BKA (Bundeskriminalamt / Agência Criminal Federal), que dirige e coordena a congénere alemã da PJ portuguesa. (N. do Tr.) 3. Paráfrase da famosa frase de Catão, repetida vezes sem conta até cumprir o seu desígnio, reclamando a destruição de Cartago. (N. do Tr.)

Original alemão Tabula Rasa - Wie weit soll, muss oder darf die Kritik der Aufklärung gehen? in Revista Krisis nº 27, novembro de 2003. Tradução de Lumir Nahodil.

DOMINAÇÃO SEM SUJEITO: Sobre a superação de uma crítica social redutora Um dos vocábulos mais diletos da crítica social da esquerda, tagarelado com a inadvertência da obviedade, é o conceito de "dominação". Os "dominantes" foram e são tidos em inúmeros tratados e folhas volantes como grandes e universais malvados difusos, a fim de explicar os sofrimentos da sociabilização capitalista. Essa moldura é aplicada retrospectivamente a toda história. No jargão especificamente marxista, esse conceito de dominação amplia-se no de "classe dominante". O entendimento de dominação recebe dessa maneira uma "base econômica". A classe dominante é a consumidora da mais-valia, da qual ela se apropria com astúcia e perfídia e, é claro, com violência.

Salta aos olhos que a maioria das teorias da dominação, inclusive as marxistas, reduzem o problema de modo utilitarista. Se há apropriação de "trabalho alheio", se há repressão social, se há violência aberta, então é para uso e proveito de uma pessoa qualquer. Cui bono - a isto se reduz a problemática. Uma tal consideração não faz jus à realidade. Mesmo a construção das pirâmides dos antigos egípcios, que devorou uma parte não insignificante do mais-produto dessa sociedade, não se deixa remontar à força a uma perspectiva do desfrute (puramente econômico) de uma classe ou casta. A matança recíproca dos diversos "dominantes", por razões de "honra", fica notoriamente de fora de todo simples cálculo de utilidade.

A redução da história humana a uma luta infinita por "interesses" e "vantagens", travada por sujeitos imbuídos de um árido egoísmo utilitário, (l) simplesmente abrevia ou distorce muitos dos fenômenos reais para que possa pleitear um decisivo valor explicativo. A ideia de que tudo o que não se resolve no cálculo utilitário subjetivo é mera roupagem de "interesses" sob formas religiosas ou ideológicas, instituições ou tradições, torna-se ridícula quando o gasto real com essa pretensa roupagem supera em muito o núcleo substancial do suposto

egoísmo. Muitas vezes se tem antes de dizer o contrário: que os pontos de vista do egoísmo, se é que podem ser reconhecidos, representam uma mera roupagem ou uma mera exterioridade de "algo diverso" que se manifesta nas instituições e tradições sociais.

Ora, poder-se-ia dizer que aqui existe simplesmente um típico anacronismo do pensamento burguês. Uma constituição e um modo de pensar capitalistas, isto é, próprios à sociedade moderna, são impingidos às épocas pré-modernas, cujas verdadeiras relações não são com isso apreendidas. Isto significaria que a redução da dominação ao egoísmo e à luta de interesses seria válida pelo menos para a modernidade burguesa, em cujo solo brotou essa própria forma de pensamento. De fato, não se há de negar que o aspecto externo das sociedades modernas, inclusive a psique dos homens "que ganham dinheiro", parece resolver-se no egoísmo abstrato.

Porém justamente o caráter abstrato desse "proveito", para além de todas as necessidades sensíveis, é ao mesmo tempo o que desmente essa superfície. Se o egoísmo moderno é retraduzido para o plano sensível das necessidades, ele ganha com isso algo de fantasmagórico, de puramente irracional. Paradoxalmente, o egoísmo, do modo como é posto na forma-dinheiro totalizada, parece ser algo perfeitamente autonomizado em relação aos indivíduos e sua "singularidade". Esse carácter alheio do interesse, que em hipótese é imediatamente egoísta, permaneceu ainda encoberto na fase histórica da ascensão do capital, quando o egoísmo de constituição moderna ainda não se separava por inteiro do conteúdo sensível da riqueza. Poderia parecer então que o egoísmo era realmente a simples forma da luta pelo ("escasso") maisproduto material, e como se isso fosse um fundamento comum a toda a história até hoje, que só na modernidade capitalista foi simplificado ao extremo e por fim descoberto como tal.

Essa concepção do marxismo vulgar, a mesma daquela do Manifesto Comunista, torna-se sem dúvida fora de propósito no confronto com a realidade do capitalismo que se tornou maduro. Hoje, o egoísmo

constituído emancipou-se definitivamente de todo conteúdo de carência sensível na forma-dinheiro. O mais-produto material não pode mais ser definido como objeto de apropriação para uso e proveito de uma pessoa qualquer: ele se autonomizou à vista de todos como monstruoso fim em si mesmo. A capitalização do mundo e os pululantes projetos abstratos de utilidade ganham uma desesperada semelhança com a construção das pirâmides no limiar da civilização, mesmo que sob relações sociais inteiramente diversas (mercadoria e dinheiro). Às pessoas que só clamam ainda por "empregos", e não mais pela satisfação das necessidades, terá de ser atestada uma espécie de inimputabilidade que denuncie seu assim chamado egoísmo como mera ratificação de um princípio religioso secularizado. Isso vale igualmente para aqueles que, como proprietários, administradores, políticos, etc., são forçados a manter em curso esse princípio autonomizado. Também seu proveito é meramente secundário, sendo custeado cada vez mais com o próprio prejuízo.

Pode-se depreender, portanto, que a modernidade possui de fato algo em comum com todas as formações sociais anteriores. Só que isto não é o egoísmo abstrato, que enfim se teria desvelado como tal no capitalismo. Justamente o inverso: esta identidade é antes aquilo que não se resolve em nenhum cálculo econômico ou político de interesses, e o que na modernidade surge paradoxalmente como egoísmo, na verdade não é nada de próprio ao indivíduo, mas algo que os domina. Também os dominantes são dominados; de fato, eles nunca dominam pela própria necessidade ou bem-estar, mas para algo simplesmente transcendente. Nisso eles sempre prejudicam a si próprios e realizam algo que lhes é alheio e aparentemente superficial. Sua suposta apropriação da riqueza transforma-se em automutilação.

A redução utilitarista, numa versão modificada, ocorre também nas modernas teorias da dominação não-marxistas ou não-liberais. O proveito econômico abstrato é substituído aqui apenas por um proveito não menos abstrato do "puro poder". Se o marxismo vulgar pressupõe uma base ontológica do "interesse econômico", as outras teorias burguesas da dominação presumem a base biológica e geneticamente

ancorada de um "impulso para o poder" (ou impulso para a agressão) ou pelo menos constantes antropológicas e a-históricas. Arnold Gehlen, por exemplo, vê a necessidade de poder na existência de instituições sociais em geral, que teriam tomado o lugar do instinto a fim de guiar a conduta. Uma concepção que reaparece diluída naqueles aforismos de botequim de que "o homem" em si é um animal livre de peias, que tem de ser amansado pelo Estado autoritário.

No melhor dos casos, o poder ou a dominação sempre aparecem como domesticáveis para o direito, que caberia então ser definido igualmente como lócus ontológico fundamental. De maneira eclética, toda essa espécie de derivações da dominação duplica-se nas fórmulas dualistas de poder e dinheiro como "meios" daquela imaginável sociabilidade. A domesticação pelo direito pode então, de acordo com o temperamento e a situação histórica, ser entendida como desnaturação infamante, que eclipsa a verdadeira imagem humana da luta pela existência (survival of the fittest), ou inversamente como progresso rumo à verdadeira imagem humana de uma dominação escoimada. A própria dominação permanece um princípio eterno e a sua "diferenciação" reformista, até o cúmulo do ocultamento, mantém-se a única forma possível de emancipação, com Habermas, aliás, como seu profeta. Assim se provaria que toda história até hoje foi no fundo a história dos socialdemocratas.

O marxismo sempre combateu as teorias "reacionárias" da dominação somente de uma outra perspectiva da dominação, a saber, da perspectiva de sua determinação econômica, ao passo que a ideia de uma superação da "dominação do homem pelo homem" permaneceu no estado de uma promessa para um futuro indeterminado - promessa esta débil e abstrata, para além de toda a teoria e práxis. Se, contudo, a abstração é um princípio ontológico, quer seja por razões econômicas, biológicas ou antropológicas, só restaria ainda a questão de quem afinal domina ou deve dominar, e de que modo se consuma a dominação. "Impulso para o poder", prazer e benefício do puro poder ou cálculo econômico utilitário como padrões explicativos chegam sempre ao mesmo resultado: a existência empírica da dominação, à

diferença de sua determinação ontológica, é um produto da vontade subjetiva. O sujeito da dominação domina porque quer dominar, porque disto "tira alguma vantagem".

Essa redução da dominação empírica à simples face subjetiva é manifesta mais fatalmente nos próprios critérios da dominação. Enquanto as teorias biológicas e antropológicas da dominação tendem normalmente a afirmar a ordem existente ou no máximo exigir outra ainda mais autoritária, os marxistas (que querem substituir o tipo existente de dominação por um outro, "em conformidade às classes") e os anarquistas (que sugerem uma abolição imediata e sem sucedâneos da dominação) denunciam empiricamente os dominantes, de preferência como porcos subjetivos. Ocasionalmente, isso pode ser desmentido por asserções teóricas contrárias, ao se trazer espectralmente ao campo de visão a objetividade estrutural da dominação, para além dos sujeitos existentes. Mas o assombro nunca vinga. Os tímidos princípios de uma penetração teórica da sistemática ausência de sujeito da dominação não são conservados. Quanto mais o pensamento se consagra às relações em isolado, à práxis e à agitação para fins sociais, tanto mais ele se torna subjetivo, tanto mais grosseiramente o reducionismo vulgar transfunde-se num mero cálculo de interesses. Os dominantes são "injustos", abocanham todas as vantagens para si, exploram, mandam e desmandam a seu bel-prazer, vivem à tripa forra e no bem-bom à custa da maioria, e, caso quisessem, poderiam emendar-se, pois sempre sabem perfeitamente o que fazem.

Desse modo, a redução rasteira da dominação a um cálculo utilitário requer uma redução rasteira da execução da dominação a um sujeito volitivo autárquico. Essa redução pode ser demonstrada à vontade na literatura marxista e da esquerda. O conceito subjetivo de dominação é pressuposto axiomaticamente, e ante esse pano de fundo ocorrem então as detalhadas análises. A "assimetria entre capital e trabalho no processo produtivo" é evocada sem pressupostos, para então se afirmar de modo superficialmente subjetivo

"que os empresários individuais ou os administradores, na medida em que dispõem sozinhos dos meios de produção, têm também o poder exclusivo ( ! ) de destinar tais meios e os trabalhadores a eles ligados pela organização do trabalho para algumas finalidades de uso e igualmente dispor dos produtos que daí surgem de acordo com seus próprios ( ! ) cálculos de valorização". (2)

A "valorização" reduz-se aqui completamente ao cálculo egoísta, subjetivo e particular dos depositários da dominação, uma concepção que caracteriza de certo modo o tradicional marxismo do movimento operário e a Nova Esquerda, apesar de todos os antagonismos (que hoje se tornaram irrelevantes). De maneira tanto mais coerente, o "Grupo Marxista" expressa a mesma redução num canto de cisne na data de sua autodissolução. Censura-se nos dominantes o descaro da conduta

"que cada trabalhador que ganha seu dinheiro (!) tenha de lhes agradecer a oferta de um emprego. Que, inversamente, insistem em não poder evitar demissões, pois as coações do mercado, de que eles próprios fazem uso (!), lhes proibiria a tanto “. (3)

Essa declaração dificilmente pode ser mal compreendida, uma vez que o "Grupo Marxista" define seus esforços de agitação junto às "vítimas do capital" como exigência de "não se deixar mais usar pelas coações que outros criaram" (op. cit. p. 5: grifo meu) e reduz de tal modo o trato prático com a coação da forma-mercadoria social a ponto de mais uma vez ver nele somente a ousadia de "repassar os efeitos problemáticos desagradáveis a seus criadores (!)" (idem).

A pressão agitadora esquece claramente todas as percepções rudimentares e pouco claras da natureza da relação do valor, esmaga toda a reflexão referente a ela e exige a interpretação de que subitamente todos os "capitalistas", políticos e administradores "fazem uso" arbitrário das leis do sistema produtor de mercadorias.

Desemprego, sugere-nos sistematicamente a tosca declaração agitadora do "Grupo Marxista", não é uma lei estrutural do sistema produtor de mercadorias, mas um ato de vontade negativo dos "dominantes". Este é o conceito de dominação burguês e iluminista de 1789, que apesar das múltiplas categorias do capital inculcadas à força, jamais esteve presente na crítica econômica de Marx.

A valorização do valor, a máquina social de um objetivo em si mesmo sem sujeito, é em Esser - um dos sociólogos sindicais de esquerda dos anos 70, igualmente remontável ao sujeito de uma vontade pura, que através de sua suposta "vontade de exploração" cria toda a organização de nome "capitalismo". Também faz parte do reportório-padrão argumentativo das esquerdas de fundo agitador, entre elas os "realos" (4) devotos do Estado e crentes da economia de mercado, desmentir as coerções da sociabilização pela forma-mercadoria e denunciá-la como pura manobra estratégica daqueles dominantes, que teriam inventado o argumento da coerção apenas em benefício próprio (provavelmente por "sede de lucro").

No nirvana político onde agora jaz pacificamente, pode parecer ao "Grupo Marxista" uma espécie de infâmia equipará-los a um publicista reformista ou até mesmo aos "realos" (poder-se-ia acrescentar obviamente, e com mais razão, também os autônomos). Mas no que respeita à questão decisiva da crítica social, ele não foi um pingo melhor do que os outros. O problema do fim em si mesmo sem sujeito permaneceu-lhe oculto ou não foi mobilizado teoricamente.

2.

A redução do capital e de sua perniciosidade a agentes subjetivos, a sujeitos guiados pela vontade e pelo interesse, não é só um crasso erro teórico, mas tem também consequências práticas fatais. Com os veneráveis lemas agitadores sobre a vontade malevolente e o cálculo subjetivo de utilidade dos dominantes, não se apreende mais a

realidade em progresso nem são captados os sujeitos constituídos por essa realidade. Como é patente, o caráter tautológico e autodestrutivo da máquina capitalista ultrapassou qualquer egoísmo dos agentes e proprietários. E, por outro lado, as "vítimas e serviçais do capital e do Estado" se encontram arejadas e esclarecidas no que respeita ao conteúdo objetivo da realidade daquelas coerções que os marxistas tão obstinadamente imputam ao interesse subjetivo dos dominantes.

O argumento subjetivista prestava-se para a fase histórica de ascensão do capital, quando os trabalhadores, ainda nesse invólucro social, tinham de se revelar sujeitos da forma-mercadoria. Enquanto os diversos sujeitos-mercadoria se formam e travam a luta por seus interesses monetários no terreno da forma-mercadoria, enquanto eles criam e mobilizam as instituições e os vínculos para tanto, a crítica social pode reduzir-se ao prisma subjetivista. Desde o início, porém, este argumento não se apresentou teoricamente, mas permaneceu oculto, pois todo o movimento prático da crítica podia ainda ser imanente ao capital.

A partir desta imanência são avançadas em forma abstrata as posições pseudorradicais do marxismo vulgar, como por exemplo a do "Grupo Marxista"; hoje contudo elas estão ultrapassadas e fora de propósito, pois o capital, como relação universal, atingiu seu estágio maduro (de crise) e assim impossibilitou em princípio uma crítica imanente. A coerção da forma-mercadoria é objetiva, não no sentido antropológico, mas no histórico. Ela é superável, mas somente com a superação da própria forma-mercadoria. O fardo da agitação subjetivista e de sua imanência consiste apenas no fato de ela não abordar este problema da superação. Já que os "efeitos desagradáveis" procederam apenas da vontade e do cálculo de utilidade dos dominantes, que supostamente, apesar da forma social sem sujeito, poderiam mudar de atitude, eles devem ser eliminados já nessa forma, com o que as "vítimas e serviçais" poderiam safar-se dos "efeitos" sem ter de tocar em sua própria forma como sujeitos-mercadoria.

A vantagem dessa conclusão redutora para o agitador é, porém apenas ilusória, em especial quando ele "não quer ser reformista". O axioma de sua agitação já é per se reformista, na medida em que não define criticamente em sua forma social a necessidade sensível. Nisto ele permanece compatível com a consciência constituída pela formamercadoria de seus destinatários "ganhadores de dinheiro', embora com isso, quer queira ou não, caia nas garras da coerção material. Ele incorre na insolúvel contradição de exigir por um lado que os sujeitos façam valer as suas necessidades sensíveis sem levar em consideração as leis estruturais coercitivas da forma-mercadoria, mas por outro lado faz esta exigência dentro da própria forma-mercadoria ou ao menos cala o fato de que só assim ela pode ser compreendida. O "Grupo Marxista", por exemplo, ocasionalmente deixa transparecer em seus tratados que a "correta economia planificada" não poderia mesmo funcionar com "dinheiro", mas isto se torna letra morta e incompreensível quando, anteriormente, ele próprio fizera causa comum com a noção monetária do cotidiano capitalista, à qual apela a todo momento em nome do "interesse" das senhoras e senhores da classe trabalhadora.

A partir desse dilema explica-se também por que a teoria estreitamente ligada à agitação é incapaz de fundar sistematicamente a crítica da relação dinheiro-mercadoria nos escritos de Marx. Uma reciclagem teórica do marxismo histórico do movimento operário e de seu conceito de socialismo é tão impossível como uma mediação social da crítica indispensável da economia. Com a crítica radical do dinheiro não se pode, de imediato, fazer a agitação proletária - e vice-versa: quem faz sem mediação a panfletagem de massas não pode elaborar a crítica radical do dinheiro. A suposta "tapeação" das "vítimas serviçais" tem sempre de ser atacada em sua própria forma sem sujeito, que é o verdadeiro "autor" social. A agitação fracassou, portanto, devido a si mesma, e não por causa da tolice das massas ou das pressões do Tribunal de Defesa Constitucional. (5) O esforço em vão dos agitadores passou ao largo dos ativistas e dos movimentos sociais, censurados apenas por "pensamento equivocado", "inconsequência" etc., embora o mais importante ainda não tenha sido dito nem elaborado; de fato, foi a própria inconsequência dos marxistas que manteve incólume o

abismo entre o cálculo de interesses constituído pela forma-mercadoria e a crítica do capital.

A mobilização per se sempre imanente da "assimetria entre capital e trabalho", que podia mover apenas uma contradição no interior do próprio capital, chegou historicamente a seu término. Os momentos da teoria de Marx nela contidos caem por terra, tornam-se documentos históricos, e com isso morre o marxismo em todas suas variantes. Mas a teoria de Marx contém, no conceito de crítica do fetichismo, um acesso inteiramente diverso à realidade, até agora mantido encoberto. O marxismo nada pôde fazer com ele, sobretudo nada de prático. Para o "Grupo Marxista" (a fim de estender um pouco seu necrológio), o problema do fetichismo nas análises do "capital" contidas em seu documento originário de fundação não é apreendido sistematicamente. O Grupo, porém, julgou oportuno denunciar o "palavrório sobre a reificação e a alienação" (6) e repudiar expressamente uma infiltração fetichista da vida burguesa nas "esferas derivadas" (formas de pensamento, sexualidade, arte etc.). Em vez de livrar o problema da pecha de "palavrório" e assimilá-lo teoricamente, não se tomou nenhum conhecimento de seu alcance para, em troca, investir de forma pseudopositivista contra as categorias econômicas. A crítica simultânea - bastante vaga - das concepções do capital como uma "relação pessoal de dependência" e das "teorias vulgares dos agentes" (Resultate /.../, ibidem) estava assim fadada a permanecer sem eficácia. O próprio "Grupo Marxista" não se ateve a isso, na medida em que, na sua imagem teórica redutora, recaía constantemente num conceito de dominação subjetivista.

De fato, toda a teoria da dominação que remonta a um cálculo de utilidade econômico ou político tem dificuldades de livrar-se exceto de maneira superficial de um conceito de "dependência pessoal". O problema da coisificação das relações sociais e da dominação é apreendido de forma muito redutora quando ele se limita ao fato de, na forma da mercadoria, "os homens se utilizarem reciprocamente como meio para seus objetivos individuais" (Resultate /.../, ibidem). O apego à subjetividade dada e constituída, incompreendida em sua

constituição sem sujeito, permanece com isso insuperada. Essa concepção redutora sugere um salto lépido e imediato entre a constituição dos sujeitos pautada pela forma-mercadoria e a "exploração capitalista". A coisificação e a "utilização recíproca" reduzem-se então bem rápido ao fato de que, na dependência do trabalhador, só não se trata de um vínculo "pessoal" na medida em que ele não permanece por toda a vida dependente do capitalista Fulano de Tal, mas antes da "classe capitalista" em geral e de "suas" instituições. O conceito subjetivista de dominação é criticado aqui como "pessoal" no sentido mais tosco, embora não seja resolvido, mas apenas deslocado para um sujeito coletivo da dominação.

O "Grupo Marxista", de fato, relativiza a sua própria crítica das teorias de dominação "vulgares" e de fundo pessoal moralizador ao infletirem a referência de Marx sobre a coisificação (fetichista) no sentido de que, "por outro lado", na "mesma declaração esconde-se a referência de que, com a abstração que constitui o conteúdo social de sua atividade, os indivíduos produtores de mercadorias submetem-se a outros indivíduos" (Resultate /.../, ibidem, grifos meus). Desse modo, a argumentação esquiva-se do problema do fetiche e volta a falar em resolver a relação coisificada num ambiente subjetivo. O conceito de "sujeito automático" (Marx), o verdadeiro plano sem sujeito da relação fetichista, é assim fundamentalmente perdido.

O fato de indivíduos produtores de mercadorias se "submeterem a outros indivíduos" por meio da abstração da forma-mercadoria é simplesmente falso como afirmação isolada. Semelhante concepção poderia valer no máximo enquanto a forma-mercadoria dos sujeitos ainda não estivesse totalmente desenvolvida, enquanto portanto o restante das demais tradições pré-modernas fossem ainda ineficazes. Enquanto restava dúvida de quem trataria quem por "senhor", a própria abstração da mercadoria ainda não constituía em pleno sentido para os indivíduos "o conteúdo social de sua atividade". Hoje em dia o mestre-de-obras diz com toda a cordialidade para seu ajudante: "Senhor X, traga-me por favor do depósito o cavalete e 20 paletas com os prospectos". Uma conversa com o pronome "você" (du), por outro

lado, não significa uma diminuição, mas a confiança igualitária (pensese também na hierarquia francamente absurda do aperto de mãos em muitas empresas). Os mais recentes programas de administração operam de caso pensado com tais formas de interação igualitária.

Isso não é simplesmente uma formalidade superficial, por trás da qual se ocultaria a antiga "submissão guilhermina a outros indivíduos". Nenhum sujeito-mercadoria plenamente modernizado tem mais a sensação de se "submeter" a um outro indivíduo como tal. E essa avaliação espontânea não engana. O que os indivíduos percebem hoje como sua heteronomia é sempre um funcionalismo abstrato do sistema que não se resolve mais em nenhuma subjetividade. Todos os funcionários das hierarquias funcionais são tomados pelo que são: executores subalternos de processos sem sujeito a que as pessoas não somente não se "submetem", mas que são até julgados pela sua "capacidade funcional".

Um superior odiado é avaliado em seu irracionalismo menos por padrões satisfatórios de relacionamento humano do que antes pelo fato de em que medida sua conduta é disfuncional para o funcionamento da empresa, isto é, em que medida ele desempenha mal "seu trabalho". Um "sujeito durão", pelo contrário, com comportamento correto, igualitário e norteado pelo "sucesso", pode ser aceite justamente porque "realiza seu trabalho" ("eu faria exatamente o mesmo"). Por isso não se pode cogitar aqui de "submissão" a um indivíduo, pois, primeiro, em sua função o executor não é uma resistência individual nem é apreendido como tal, e, segundo, porque a própria identidade individual mantém-se intocada como sujeito-mercadoria monadizado. Segundo a hora e a situação, é plenamente aceitável fazer executar com sobriedade comercial as funções empregatícias sobre os indivíduos e, depois, se possível, sair com eles para tomar uma cerveja.

O discurso da "submissão a outros indivíduos", que deve ser levada a cabo pelos homens produtores de mercadorias justamente por meio da "abstração que constitui o conteúdo social de sua atividade", passa

evidentemente ao largo do problema. Trata-se de uma linguagem confinada às categorias de um conceito de dominação superficial e subjetivo, ligado ecleticamente em curto circuito ao problema ainda por elaborar da ausência fetichista de sujeito. Com tal sorte de agitação não se pode mais apreender a verdadeira heteronomia dos indivíduos produtores de mercadorias nem a consciência que eles têm do assunto.

Ora, com isso a própria base do sistema é concebida erroneamente. O fato de os sujeitos-mercadoria "utilizarem-se reciprocamente para os seus objetivos individuais" não é o X da questão e muito menos a sua explicação. Antes, é a mera forma fenomênica de "algo diverso" - a saber, de fetiche sem sujeito que se manifesta nos sujeitos que agem. Seus "objetivos individuais" não são o que parecem ser: segundo a sua forma, não são objetivos individuais ou voluntários, e por isso também o conteúdo é distorcido e desemboca na autodestruição. O essencial não é os indivíduos se utilizarem mutuamente para seus objetivos individuais, mas sim, na medida em que parecem assim fazer, executarem em si mesmos um objetivo totalmente diverso, supraindividual e sem sujeito: o movimento autônomo (valorização) do capital.

3.

A diferença não poderia ser mais precisa: para o marxismo vulgar, o movimento autônomo do capital, a valorização do valor, é justamente aquela aparência que deve ser remontada aos objetivos, à vontade e à atitude subjetiva das pessoas, resolvendo-se, portanto, na subjetividade (de cunho autoritário e "errado"). Uma crítica radical e coerente do fetichismo, pelo contrário, teria de denunciar como aparência a própria subjetividade empírica, ou seja, teria de dissolver os objetivos, a vontade e a ação subjetiva das pessoas produtoras de mercadoria em sua verdadeira ausência de sujeito, como simples execução de uma forma-fetiche pressuposta a todos os sujeitos - não para se submeter ao "sujeito automático", mas para poder apreendê-lo como tal e superá-lo.

Só esta inversão possibilita reconhecer em geral o escândalo da total falta de consciência no plano da determinação social da forma, que é o pressuposto para superá-la. Quando afirma que a ausência de sujeito no sujeito burguês e constituído pela forma-mercadoria é mera aparência ou simples ilusão, o marxismo vulgar e as teorias tradicionais da dominação tornam-se cúmplices do fetiche e se veem impossibilitadas de criticá-lo em sua objetividade. A contradição do pseudorradicalismo da agitação tem profundas raízes no conceito de sujeito. Ironicamente, a evocação direta do sujeito pressuposto e a priori não é outra coisa senão a forma teórica da submissão à ausência fetichista de sujeito.

O eterno anátema lançado aos dominantes e a eterna suposição de que nas próprias formas modernas do dinheiro e da mercadoria seria possível uma organização inteiramente diversa e mais humanitária, bastando apenas uma vontade diversa e melhor que a guiasse, sem dúvida tornaram-se com o tempo uma terapia ocupacional para os mais parvos entre os críticos sociais. Este insigne círculo abarca hoje tanto o restante dos marxistas ortodoxos e pseudorradicais quanto os realos. À parte estes incorrigíveis não-pensadores, porém, há muito se desenvolve a teoria da dominação. Já desde a virada do século, ou no mais tardar desde os anos 20, os mais inteligentes entre os críticos sociais do Ocidente se batem cada vez mais com os fenômenos da ausência de sujeito.

Um produto destes esforços foi a tese da burocratização. Nas análises burguesas, que, ao contrário do breviário da literatura marxista, não se fixavam tão fortemente num malévolo grupo personificado chamado "burguesia", desde cedo pairou no ar o emblema do "mundo administrativo". Na famosa sociologia das associações partidárias de Robert Michels (7) e sobretudo na teoria de Max Weber começou a se formar um conceito estrutural da verdadeira ausência de sujeito da dominação moderna. Weber fixa o conceito geral da burocracia aos "interesses" dos poderes sociais, embora ainda superficialmente, ao chamá-la de "instrumento de precisão"

"que se pode pôr a serviço dos interesses dominantes tanto puramente políticos quando puramente econômicos ou quaisquer outros “. (8)

Ao mesmo tempo, contudo, ele também faz referência à dinâmica "material" e sem sujeito do processo moderno de burocratização, que se afasta das tradicionais teorias da dominação:

"O funcionário de carreira é [...] somente um membro isolado, incumbido de tarefas especializadas, num mecanismo [...] de progressão infatigável, que lhe prescreve, na essência, a marcha forçada [...]. Os dominados, além do mais, não podem por sua vez prescindir nem substituir o existente aparato burocrático de dominação [...]. O vínculo do destino material das massas ao funcionamento sempre correto das organizações de capital privado cada vez mais burocráticas cresce constantemente, e a possibilidade de sua desvinculação torna-se assim cada vez mais utópica [...]. A burocracia tem caráter racional: regra, objetivo, meios e impessoalidade material regem sua conduta." (Weber, ibidem, p. 570 ss.).

Na retórica da luta de classes da esquerda, a tese da burocratização insinuou-se primeiro e sobretudo nos trotskistas, que se tinham como defensores do Graal das respectivas advertências de Lênin e viam-se às voltas com o problema de explicar uma suposta dominação nãocapitalista sobre a "classe trabalhadora" num Estado com "fundamentos econômicos socialistas" por eles defendidos. Por isso veio a calhar a fórmula da dominação burocrática. Com ela, sem dúvida, não se avançava um conceito de dominação sem sujeito. Antes, tratava-se unicamente de substituir sem rodeios, especialmente para a União Soviética, o antigo sujeito explorador e dominante da "classe capitalista" pelo sujeito dominante supostamente transitório da "casta burocrática". O conceito subjetivo de dominação não foi posto teoricamente em xeque, embora tenha sido involuntariamente enfraquecido. O conceito de burocracia foi antes um sucedâneo teórico; ele foi utilizado com desculpas e zelosamente separado do conceito de "classe dominante" no sentido próprio. Mesmo Trotsky força este

hesitante conceito de burocracia no antigo esquema, que em Weber soa apenas surdamente:

"Na sociedade burguesa, a burocracia representa os interesses dos proprietários e da classe cultivada, que dispõe de inúmeros meios de controlar a sua administração. A burocracia soviética, entretanto, ergueu-se sobre uma classe que acaba de se livrar da miséria e da escuridão e não possui nenhuma tradição de domínio ou comando (!). Se os fascistas, após alcançarem as sinecuras, conluiaram-se à alta burguesia por meio de interesses comuns, amizades e laços matrimoniais, a burocracia da União Soviética tomou para si os costumes burgueses, sem ter ao seu lado uma burguesia nacional." (9)

Pelo que se vê, Trotsky não abandona sequer vagamente o conceito de dominação subjetivo e coletivamente pessoal do marxismo vulgar. A burocracia é introduzida como uma espécie de ajudante de xerife socioeconômico que perdeu casualmente o seu chefe e agora governa por sua própria conta, sem dispor da "particularidade" da dominação (de classes). Esse pensamento - preso a meras categorias sociais (classe trabalhadora, alta burguesia, burocracia), cuja constituição pela forma social sem sujeito não entra no campo de visão e que só são apreendidas como tais de modo acrítico, em sua reciprocidade subjetiva de ações - não pôde render teoricamente nada de novo à tese da burocratização. O conceito trotskista de burocracia manteve-se empiricamente redutor e foi somente instrumentalizado para poder representar o desenvolvimento incompreendido da União Soviética com uma aparência de plausibilidade própria ao marxismo vulgar. (10) Um passo além foi dado pela Teoria Crítica, cujos representantes vislumbraram as mudanças com muito mais clareza do que o marxismo vulgar de partido. Os teóricos da Escola de Frankfurt afastaram-se da mera retórica da luta de classes, cuja palidez foram os primeiros a notar (sem no entanto poder superá-la teoricamente), lançaram mão da tese de burocratização da sociologia ocidental e buscaram aclimatá-la num projeto de crítica social (cada vez mais pessimista). Mas Horkheimer esboçou para tanto uma imagem peculiar da dominação, na qual os

conceitos do marxismo vulgar e das teorias sociológicas de burocracia são ecleticamente fundidas:

"A burguesia está dizimada, a maioria dos burgueses perdeu a sua autonomia; quando não se rebaixam ao nível do proletariado ou da massa de desempregados, eles caem na dependência de grandes empresas ou do Estado. […] O que resta como caput mortuum do processo de transformação da burguesia é a burocracia industrial e estatal de alto escalão." (11)

Se Weber ainda formula o problema de modo ambivalente, se para Trotsky e seus pupilos ocidentais domina ainda inequivocamente o conceito subjetivo e classista de dominação em face do conceito de burocracia, Horkheimer (que obviamente está mais próximo de Weber que de Trotsky) já tematiza a dissolução do conceito de dominação de classes através do desenvolvimento real das próprias sociedades ocidentais. Mas a expressão "caput mortuum" mostra que ele não se livrara da obstinada ideia subjetivo-sociológica da dominação. Esta se encontra profundamente lastreada no pensamento iluminista ocidental, que a princípio fixa a "subjetividade" como abstrata e a priori. Todas as relações sociais devem e têm de ser deduzidas de algum modo desse sujeito francamente quimérico, que permanece o alfa e ômega de todas as análises.

A tese da burocratização, em todas as suas variantes, parece aproximarse de um conceito de dominação sem sujeito. Contudo, ela revela ao mesmo tempo a resistência da ideia iluminista de sujeito, propensa ao melindre quando perde as suas prerrogativas. O fato de tanto Weber quanto Horkheimer e Adorno, e aliás também como Freud, resvalarem para um pessimismo antropológico os alinha involuntariamente àqueles pessimistas culturais reacionários que eles sempre criticaram. Tal afinidade impura não é devida apenas às experiências catastróficas das Guerras Mundiais, mas também às contradições da ideologia iluminista do sujeito e do marxismo como seu apêndice.

O conceito de burocracia reflete apenas negativamente o despropósito tanto das teorias de dominação burguesas quanto das marxistas. No tocante à manifesta ausência de sujeito dominante, porém, ela permanece inexplicada e simplesmente descritiva. O confinamento à ideologia burguesa do sujeito e com isso a um conceito subjetivo de dominação permite pouco mais que a constatação de um fenômeno sociológico que não pode ser deduzido senão de acordo com padrões "técnicos" e de "organização". O conceito de tecnocracia é o eco deste desamparo até hoje insuperado. A dominação da burocracia ainda é discutida em termos teóricos subjetivos, embora a sua verdadeira dependência (em contraste aos grupos dominantes facilmente apreensíveis, como a nobreza ou a burguesia) aponte para aquele "Outro" sombrio, já incapaz de ser captado pelo espírito iluminista. Assim, pouco espanta que a própria Teoria Crítica não tenha assimilado sistematicamente a crítica do fetichismo de Marx. Esta incapacidade não é fruto de uma debilidade analítica, mas indica antes uma limitação básica da racionalidade ocidental, que não se dá a conhecer nem mesmo nas variantes críticas de seu próprio caráter fetichista

4.

A dissolução das antigas teorias subjetivas da dominação estendeu-se, com base na tese da burocratização, pelas mais modernas concepções de estruturalismo, do estrutural-funcionalismo e da teoria dos sistemas. A sistemática ausência de sujeito é aqui enfim abertamente tematizada, não apenas como resultado histórico (lamentável) da modernidade, mas pela primeira vez como princípio próprio da sociabilização humana. A partir das análises estruturais da linguística firmou-se a ideia de que constitutivo não são o sujeito nem a práxis dos sujeitos, mas antes as "estruturas" sem sujeito nas quais e por meio das quais se constitui a respectiva ação. Não é o homem (o sujeito humano) quem fala, é "a língua que fala". Ou, em termos sarcásticos: o homem "é falado".

Este projeto teórico, desbravado por Ferdinand de Saussure ("linguística estrutural"), estendeu-se rapidamente à etnologia (Claude Lévi-Strauss) e à psicologia (Jacques Lacan), para de lá alcançar a história, a sociologia e a filosofia. Segundo tal projeto, por toda parte o que está em jogo não são, em última instância, indivíduos e sujeitos humanos, mas estruturas sem sujeito como pseudo-sujeitos (embora não conscientes e ativos, e sim "determinantes"). Se o homem não fala, mas "é falado", então ele também não pensa, mas "é pensado"; então ele não atua de forma social, política ou economicamente, mas "é atuado" etc. Preconizou-se assim nada menos do que a morte do sujeito. (12)

Ninguém expressou tal resultado de modo filosoficamente mais consequente do que Michel Foucault, cuja obra extremamente contraditória é tratada, ora como pós-estruturalista, ora como pósmoderna:

"No instante em que se toma consciência de que todo o conhecimento humano, toda a existência humana, toda a vida humana e talvez todo o legado do homem repousa em estruturas, ou seja, num conjunto formal de elementos que estão submetidos a relações passíveis de descrição, o homem como que para de ser o sujeito de si próprio para ser ao mesmo tempo sujeito e objeto. Descobre-se que aquilo que torna o homem possível é um conjunto de estruturas que ele pode pensar e descrever, mas da qual ele não é o sujeito nem a consciência soberana. Essa redução do homem às estruturas que o circundam, parece-me caraterística de todo pensamento contemporâneo; dessa forma, hoje a ambiguidade do homem como sujeito e objeto não é mais uma hipótese frutífera nem um tema frutífero de pesquisa." (13)

Como, porém o verdadeiro tema de Foucault é o "poder" de corte nietzschiano (e ele tem a proeza de ser um nietzschiano estruturalista ou um estruturalista nietzschiano), o conceito de dominação sem sujeito parece assim totalmente liberto da antiga tese de burocratização. Onde tudo é "poder" e nada mais é "sujeito",

esgotam-se também as antigas teorias subjetivas da dominação, para as quais o "poder" é impensável sem um sujeito-poder, em cuja vontade o "poder" pode ser assimilado. Foucault obviamente não se mostra contente com isso, por mais que admire Nietzsche e a "vontade" mantenha-se relevante para ele. Contudo, a vontade é ao mesmo tempo um camarada perdido que, ao exprimir-se, só pode executar "funções" da "estrutura", quer esta seja ou não a sua "vontade". Da mesma maneira que a vontade, expressa em "desejos", está por toda parte, assim também o "poder" está por toda parte como estrutura sem sujeito, em cujas formas pode expressar-se exclusivamente a vontade. Foucault tenta rastrear esta inevitável constelação até os mais ínfimos poros da psique na "microfísica do poder" - este é também o título de uma de suas coletâneas de ensaios.

Com isso, sem dúvida, a práxis emancipatória entra definitivamente em desespero. Ou melhor: o vínculo entre práxis e fundamentação teórica rompe-se aparentemente em definitivo. Agir apesar da teoria - eis o lema explícito ou implícito. O próprio Foucault ligou-se apaixonadamente ao grupo de informação penitenciária (GIP) e envolveu-se com as revoltas dos presos. Ele levava por assim dizer uma vida dupla como "professor de história dos sistemas de ideias" no College de France em Paris e como "inimigo da normalidade" (por meio também de sua própria situação como homossexual). O dilema de Foucault não é, entretanto nem unicamente pessoal nem puramente o mesmo do estruturalismo, mas antes assemelha-se ironicamente ao do adversário "humanista" e existencialista tão duramente criticado. Aqui inclui-se também a Teoria Crítica. Ao fim e ao cabo, Foucault expressou-se de forma positiva até mesmo com relação a Adorno.

A práxis sem esperança, sem mediação e incapaz de ser fundamentada é uma consequência universal desse sistema de ideias, sem falar do resto dos antagonismos. Os estruturalistas haviam frequentado juntos a escola das teorias ocidentais do sujeito (marxismo, existencialismo, fenomenologia, Teoria Crítica). Seus ataques ao humanismo ideológico foram sempre também uma discussão interna. Nesse sentido, o próprio estruturalismo é uma forma decadente do pensamento iluminista que

destrói a si mesmo até a consequência última da completa dessubjetivação. Se para a Teoria Crítica esse processo de dessubjetivação ainda é histórico - a extinção de uma promessa ou o colapso de uma realidade - os estruturalistas por sua vez reconhecem que jamais existiu um sujeito no sentido iluminista.

Se mesmo os chamados povos selvagens agem em estruturas sem sujeito, como a etnologia de Claude Lévi-Strauss tenta mostrar, então a "estrutura" é integral e ontológica, então pode haver "processos diacrônicos", mas não propriamente história. O conceito final alcançado de dominação sem sujeito, por ser idêntico à "morte do sujeito" em geral, destrói também o adversário hipotético da dominação, o contrassujeito emancipatório. A ideia de dominação sem sujeito é, portanto, forçosamente idêntica à separação definitiva entre teoria e práxis. O estruturalismo apenas levou às últimas consequências o pensamento iluminista. Por isso a grita raivosa de Sartre e dos marxistas ortodoxos na França mereceram tão pouco crédito quanto a dos gestores do espólio da Teoria Crítica na Alemanha. E por isso foi possível aos industriosos bacharelotes acadêmicos, a exemplo dos artiodátilos e ruminantes, regurgitar como uma grande massa unitária de pensamento todas as teorias ocidentais de dominação e do sujeito desde a virada do século e vertê-la na tolerante folha em branco.

Ao conceito de "estrutura" corresponde o de "sistema", seja como sinônimo, seja como princípio do "conjunto de relações [...] que se conservam e modificam independentemente dos conteúdos por elas unificados". (14)

Aqui o estruturalismo entra em contato com a teoria dos sistemas, que se desenvolveu a partir da sociologia positivista anglo-saxã, sobretudo a de Talcott Parsons. (15) Em conformidade ao atalho anglo-saxão, a teoria dos sistemas tem poucos pruridos e absolutamente nenhum escrúpulo teórico-subjetivo de dissolver o sujeito dominante e, portanto, o sujeito em geral nas leis cibernéticas do movimento dos "sistemas". O funcionário público alemão Niklas Luhmann, alçado à

estatura de grande teórico, aluno de Parsons e um dos mais destacados teóricos contemporâneos da teoria dos sistemas, parece mesmo divertir-se furtivamente ao descrever em linguagem protocolar o mundo social como uma máquina de relações sem sujeito e afirmar o ponto de partida do Iluminismo como uma ideologia ultrapassada e précientífica:

"A teoria dos sistemas rompe com este ponto de partida e não tem, portanto, nenhuma utilidade para o conceito de sujeito. Ela pode formular, então, que cada unidade usada neste sistema [...1 tem de ser constituída por este próprio sistema e não pode manter relações com seu ambiente." (16)

O impacto desta declaração só se tornará claro ao se compreender que sob "ambiente" deste sistema não se entende outra coisa senão os atuais "sujeitos", ou seja, os homens reais com sua consciência real, suas necessidades, seus desejos, suas ideias etc.:

"Obviamente não afirmamos que pode existir sistema social sem consciência presente. Mas a subjetividade, a presença da consciência, a radicação da consciência é concebida como ambiente do sistema social, e não como sua autorreferência.", (17)

Não carece de (involuntário) humor negro os sujeitos humanos serem degradados a mero "ambiente" de seu próprio "sistema" social. O sistema nada mais é do que o sistema das relações entre os homens que se tornou estruturalmente autônomo destes últimos. A história pode então ser entendida, no máximo, como a "diferenciação" cada vez mais progressiva dos subsistemas do "sistema" ontológico chamado sociedade. A sociedade torna-se cada vez mais um "sistema de sistemas", com o que, no entanto, a autonomização das "autorreferências" sistêmicas, em oposição à consciência humana e subjetiva, impõe-se de forma tanto mais inevitável. Como os sujeitos podem somente pensar e agir em relação a este "sistema dos sistemas"

e no interior de seus respectivos subsistemas, eles permanecem desde o início reduzidos funcionalmente, sob o plano das relações "como tais", pensáveis apenas como sem sujeito. A "autorreferência" do sistema é, portanto, o processo - vazio de sujeito - de marcha, diferenciação e desenvolvimento sobre o plano das relações sociais, que têm de ser consideradas estruturalmente com independência dos homens reais que lhe servem de base apenas como "ambiente". Este árido funcionalismo não se espanta mais diante da cabeça de Medusa da ausência de sujeito: ele próprio já é uma. (18)

O "sistema" sempre preexiste, não apenas no macroplano, mas também no microplano do relacionamento humano em geral:

"Todo contato social é concebido como sistema, inclusive a sociedade, na condição de conjunto das considerações de todos os contatos possíveis. A teoria geral dos sistemas sociais tem a pretensão, em outras palavras, de apreender toda a esfera de objetos da sociologia e, nesse sentido, ser uma teoria sociológica universal." (19)

Deste prisma, o próprio casal é um "sistema", a exemplo aliás do indivíduo solteiro (como sistema para si próprio na robinsonada de sua autorrelação social). Como o tormento das dores do sujeito desaparecem com a total amputação deste membro gracioso mas ressequido, pode-se com toda inocência avançar um sistema indutivo de abstrações a partir da descrição banal de relações "sistêmicas" no micro e macroplano da sociedade - uma espécie de oráculo da sociologia vazia de conceitos, em que todas as relações imagináveis ocorrem sob tipos ideais e podem ser diferenciadas ou "calculadas". Além do sujeito, extingue-se todo conceito do conjunto da sociedade.

Dessa perspectiva, ou a "dominação" desaparece por completo ou adquire um significado inteiramente novo. Se para Foucault ela ainda é um adversário, embora sem sujeito, inapreensível e incontrastável, Luhmann por sua vez nem sequer chega a perguntar "e daí?" Para a

teoria dos sistemas, toda crítica da dominação é tão absurda quanto uma crítica da circulação sanguínea ou da evolução. Como todo tipo de relação sempre acarreta, com necessidade lógica, um sistema de relações transcendente aos que se relacionam e inacessível em sua autonormatividade, aquilo que até agora parecia "dominação" pode também ser apenas uma função indispensável dos sistemas. E como os sujeitos são sempre mero "ambiente" de sistemas, a dominação não pode ser mais que um tipo de campo de forças de sistemas, comparável talvez a relações gravitacionais num sistema solar.

5.

O marxismo mostrou-se incapaz não apenas de permanecer imune aos desenvolvimentos do estruturalismo e da teoria dos sistemas, com exceção é claro dos ignorantes dos movimentos de agitação, mas também fez nascer quase ao mesmo tempo em seu próprio solo uma variante teórica pseudoestruturalista, que por sua vez influenciou projetos não-marxistas (Foucault, por exemplo ). Como se sabe, foram os trabalhos de Louis Althusser que produziram tal avanço. Althusser foi e permanece, em muitos aspectos, um marxista tradicional (e também, aliás, um marxista de partido no PCF, ainda que inconformado e oposicionista). Com ajuda das ideias "estruturalistas", porém, ele tentou fundar uma nova leitura de Marx.

Esta não constou apenas de um flerte com a terminologia estruturalista, como Althusser tentou mais tarde fazer crer, (20) mas de um elemento plenamente genuíno do "processo" estruturalista e da teoria dos sistemas voltados "contra o sujeito". O próprio Althusser, já no texto "Pour Marx" escrito em 1965, indica como seu objetivo

"traçar uma linha demarcatória entre a teoria marxista e as formas do subjetivismo filosófico (e político) nas quais ela se embrenhou ou que a põem em perigo." (21)

O verdadeiro objetivo mostra-se aqui ainda velado pelo conceito de "subjetivismo", muitas vezes instrumentalizado pelo vocabulário marxista mediano - conceito este que em si não implica nenhuma reflexão sistemática sobre o conceito de sujeito em geral. Mas Althusser logo se tornou mais explícito, como indicam exemplos pinçados quase aleatoriamente em sua obra:

"O processo (ou a dialética) sem sujeito da alienação é o único sujeito reconhecido por Hegel. No próprio processo não há sujeito: o processo mesmo é o sujeito, justamente pelo fato de não ter sujeito. [...] Eliminase, quando possível, a teleologia, e resta a categoria filosófica de um processo sem sujeito assimilada por Marx. Este é o mais importante legado positivo incorporado por Marx e Hegel: o conceito de um processo sem sujeito. Tal conceito dá sustentação a O Capital. [...] Falar de um processo sem sujeito implica porém que a expressão "sujeito" é uma expressão ideológica." (22)

As consequências inferidas por Althusser para a "nova leitura" da principal obra de Marx (Lire le capital, 1965, em colaboração com J. Ranciére, R. Balibar et alii), contêm todos os principais momentos do estruturalismo e até mesmo da teoria dos sistemas, como nos esclarece o resumo de modo algum inadequado de Günther Schiwy. Segundo ele, o marxismo teria de assimilar um conhecimento essencial, o de que:

"O homem não está no centro do mundo e nem sequer no centro de si mesmo, pois um tal centro não existe. Ora, isto confirma a desconfiança marxista ante toda concepção humanista do homem e ante o conceito de homo oeconomicus, como se o homem fosse sujeito e alvo da economia, e o conceito de homo historicus: o homem como sujeito e objeto da história mundial. Na verdade, os verdadeiros sujeitos da atividade econômica não são os homens que possuem empregos, e tampouco os funcionários que distribuem cargos, e muito menos os consumidores, mas as condições de consumo, distribuição e produção. Tais condições formam um sistema complexo, a cujas estruturas o homem é estranho, mas que o determinam até nos

menores detalhes. Só o equívoco ideológico e humanista converte tal conhecimento científico na ilusão da indispensável interioridade do homem, que determina o curso das coisas." (23)

Resta saber como Althusser harmoniza essa interpretação com posições "revolucionárias". De fato, com a exclusão do sujeito, Althusser aliviou o marxismo da velha crítica da dominação. O que ele desejava mais? O estruturalismo não exclui de maneira alguma "processos diacrônicos", e a teoria dos sistemas permite perfeitamente mudanças, crises e até mesmo transformações sistêmicas. Só que estas, de acordo com suas essências, são tão desprovidas de sujeito quanto o "funcionamento" e o movimento dos próprios sistemas. É exatamente neste sentido que Althusser compreende a sua reinterpretação do marxismo. Ele supera o marxismo não com um passo adiante, isto é, através de uma assimilação sistemática da crítica ao fetichismo, e tampouco enfrenta o suposto adversário, mas antes absorve em seu núcleo, sem modificações, todo o marxismo do movimento operário, se bem que agora plasmado na nova forma "normativa" de movimento estruturalista e sem sujeito. (24) Tudo está lá, como antes: a burguesia, o proletariado, a luta de classes, os intelectuais flutuantes. Só que agora não se trata mais de sujeitos autônomos sobre o ringue histórico, mas justamente do "funcionamento" de um processo contraditório sem sujeito. Todos agem como devem agir segundo a sua "função sistêmica". Althusser não ousa sequer uma vez tocar inocentemente no famigerado "instinto de classes" do proletariado. A burguesia executa as funções sem sujeito da conservação do sistema, o proletariado executa (já que se trata de um processo sistêmico contraditório) a função contrária e sem sujeito da crítica ao sistema, e assim desenvolve-se a luta de classes igualmente sem sujeito como resultante sistêmica. O saldo final deste "processo sem sujeito" só pode ser a transformação sistêmica - obviamente sem sujeito - no socialismo, que por sua vez constará então, pasmem só, de um (outro) sistema sem sujeito.

Feitas as contas, a construção de Althusser parece extremamente insatisfatória. O fato de ela não ter sido uma inovação no marxismo,

mas antes um sepultamento teórico, foi prontamente reconhecido. Na verdade, o marxismo viveu sempre da ideologia iluminista do sujeito autônomo e a priori. Amputá-lo e continuar a desfiar o antigo novelo era uma empreitada fadada ao insucesso. O aleijão desdentado que restou não pôde ser a noiva radiante da renovação humana. Porém não só a ênfase revolucionária do marxismo tinha de escapulir com a interpretação estruturalista como o ar de um balão furado, mas também toda a justificativa prática lhe foi arrebatada contra a própria intenção de Althusser. De fato, se tanto a luta de classes quanto o próprio socialismo almejado são simples "processos sem sujeito", quem poderá garantir um conteúdo humanitário e os resultados norteados pelas necessidades humanas? Os comunicados da "frente de construção socialista" no Leste e da práxis dos "movimentos de libertação" no Sul tornavam-se cada dia piores e mais alarmantes. Althusser foi somente um entre os muitos coveiros do marxismo que, na França, logo poriam mãos à obra de maneira muito mais aberta e menos contrita.

Como já ocorrera com os estruturalistas em geral, a antiga ideologia do sujeito ergueu-se também, em todas as suas variantes, contra sua destruição na interpretação de Althusser. Mas nem as reprimendas do Partido, que temia um "enterro do engajamento revolucionário", nem as polêmicas de Sartre ou Alfred Schmidt puderam mais conter, uma vez iniciado, o processo teórico de destruição do sujeito iluminista. Tais tentativas eram tão impotentes quanto a discussão análoga entre Jürgen Habermas e Niklas Luhmann, por exemplo. (25) Como foi dito, as teorias ocidentais do sujeito há muito tinham-se destruído e revelado a si mesmas as aporias do conceito de sujeito como "Dialética do Esclarecimento". O estruturalismo e a teoria dos sistemas não fizeram mais do que deduzir as consequências que estavam no ar. Assim foi que a longa história teórica do sujeito ocidental chegou a seu definitivo fim.

De fato, dificilmente se contesta o profundo conteúdo de verdade dos conceitos "sistema", "estrutura" e "processo" sem sujeito com relação à empiria observável das relações burguesas da modernidade tardia ou

"pós-modernas". O estruturalismo e a teoria dos sistemas dizem somente o que de fato é o caso, ou seja, o que aparece como realidade. Os ideólogos humanistas e iluministas do sujeito, inclusive o marxismo, não contestam o "caso" superficialmente, mas querem criticá-lo. Seu ponto de vista é, porém bastante precário, pois eles têm de aceitar um sujeito a priori que "se esqueceu" de que assim é e daquilo que fez. A lira desse conceito de sujeito entoa sempre a mesma canção: há de se restabelecer uma consciência que se perdeu da fatura subjetiva dos processos sociais. Isto é na verdade o mais rasteiro rousseauismo, puro século XVIII, mal-e-mal enriquecido em sua superfície com os resultados das ciências modernas e os saldos da crítica da economia de Marx. O pensamento iluminista é fundamentalmente incapaz de imaginar a "fatura" de "algo" sem um sujeito preexistente desta ação; uma ação sem sujeito não lhe parece apenas monstruoso, mas também uma impossibilidade lógica. O fato de que aqui, na sociedade existente, algo gira em falso, lhe é de algum modo consciente (sobretudo na sua variante marxista); mas por certo há de se tratar de um "erro", que por sua vez foi causado subjetivamente, ou seja, pela "vontade de exploração" ou pela "vontade de poder" dos dominantes. Os sólidos argumentos do estruturalismo e da teoria dos sistemas concluem que a aceitação desse sujeito a priori é "metafísica" inconsistente, que esse sujeito jamais existiu nem poderá existir de acordo com a lógica.

Essa posição é sólida, mas também irremediavelmente afirmativa. Ela põe água na fervura de toda a crítica social. Contra ela nada podem a desesperada "práxis apesar da teoria" de Foucault nem o vaporoso projeto "secundário" da luta de classes de Althusser. Esta também já era há muito a posição da Teoria Crítica. De outro lado, a práxis social do "sistema" moderno, que se tornou um sistema mundial direto, é mais do que nunca digna de crítica ou, para dizer tudo, insustentável. É patente que esse "todo sistêmico" – a par, ironicamente, da ideologia crítica do sujeito - chega a seu fim histórico cada vez mais catastrófico.

A práxis crítica e revolucionária tem de ser, porém, fundamentável e, portanto, fundamentada novamente. Os movimentos práticos, os

partidos e as seitas marxistas (como por exemplo o acima citado "Grupo Marxista") "pensaram por inércia", anos a fio, numa forma teoricamente ignorante. Eles não compreendem nem superam o desenvolvimento teórico e seus resultados, mas ou não os tomaram em conhecimento ou simplesmente os descartaram como "falsos" ou "absurdos". Tudo parecia tão "simples": os homens tinham apenas de seguir seus "interesses" ou serem levados a tal; a "práxis" parecia antes de tudo fundamentável a partir de si mesma. A pena para essa ignorância infundada é justamente o fracasso prático - e isso de forma definitiva. O fato de todos os antigos marxistas e as suas organizações, revistas etc., abalados pelos colapsos do leste europeu, morrerem como moscas no outono tem em si algo de libertário. A mais recente "crise do marxismo", proclamada já em meados dos anos 60 por Althusser, foi na verdade a sua última.

Se hoje ainda há a possibilidade do pensamento de crítica social e da práxis transcendente (não a partir de reações ideológicas obstinadas, mas porque a práxis clama por isso ), e se isto tem de ser efetuado lançando mão da incontornável teoria de Marx, o único caminho viável é o que se embrenha pelo "continente sombrio" da crítica do fetichismo, que foi encoberto pelo marxismo de corte subjetivoideológico. Não por acaso Althusser tachou expressamente o conceito de fetichismo como "ideologia" a ser descartada. (26) Resta provar em que medida a readmissão sistemática do conceito de fetichismo possibilita, para além do marxismo, a metacrítica da modernidade burguesa, ou seja, se se pode formular um conceito fundamentalmente diverso de consciência social, capaz de romper efetivamente os grilhões técnicos do estruturalismo e da teoria dos sistemas, e não somente fornecer uma nova infusão, diluída até a insipidez, da metafísica rousseauista e iluminista da subjetividade a priori. Só então a crítica da dominação seria novamente fundamentável, só então seria possível uma rehistoricização do movimento estrutural sem sujeito de base aparentemente a-histórica.

6.

A rigor, isto é, sem as reduções do marxismo iluminista e subjetivoideológico, o conceito de fetichismo de Marx contém uma crítica ao menos tão forte da metafísica humanística e a priori do sujeito quanto a iniciativa estruturalista e da teoria dos sistemas. Uma crítica inteiramente diversa, sem dúvida, que antes de afirmativa é revolucionária. Na medida que Althusser não leva isso em conta e atribui justamente o conceito de fetichismo à interpretação humanista e subjetivo-apriórica do marxismo, rejeitando-o de uma penada, ele destrói para si mesmo qualquer esboço de solução crítica e acaba forçosamente no beco sem saída do estruturalismo.

O conceito de fetiche da mercadoria não por acaso é avançado a partir da analogia com as relações pré-modernas, e tampouco se trata de uma simples analogia. Nomeia-se com ele aquela identidade da história humana que une a pré-modernidade e a modernidade burguesa no continuum da "pré-história" (Marx), sendo que só para além dela começa a "verdadeira" história do homem. Essa declaração de Marx, tão obscura quanto surpreendente, pode ser esclarecida apenas diante do pano de fundo da crítica do fetichismo, que é incompatível com a metafísica iluminista do sujeito. Se a própria modernidade consta da "pré-história", então ela faz parte, juntamente com as suas formas subjetivas, de um processo que se mantém de fato inconsciente no plano da determinação social da forma - porém não como impossibilidade lógica da consciência em geral nesse plano, mas como um processo de devir no qual só se pode constituir a autoconsciência social após uma longa e dolorosa história evolutiva. Essa constituição está à nossa frente e manifestar-se-á na superfície social como revolução contra a forma-mercadoria, ou seja, contra a última e a mais elevada constituição do fetiche da pré-história humana, cuja insuficiência prática rompe o horizonte do fetichismo em geral.

A partir dessa ideia básica caberia desenvolver uma nova estratégia teórica de ação dupla, tanto contra o estruturalismo ou a teoria dos

sistemas quanto contra o pensamento iluminista de cunho humanista e subjetivo-apriórico; nesse sentido, seria possível também elaborar a identidade interna destes dois opositores como formas de ascensão e declínio do pensamento teórico na modernidade burguesa. Ambos são igualmente incapazes de uma crítica da forma-mercadoria fetichista como tal, ou seja, em última instância de sua manifestação como dinheiro. O humanismo iluminista do sujeito permanece cego para a verdadeira constituição fetichista sem sujeito de seu sujeito metafísico e supostamente "esquecido", que deve ser "reconstruído" eternamente em vão. O estruturalismo e a teoria dos sistemas abrem mão deste propósito, sem, no entanto, compreender as respectivas premissas, quanto menos alterá-las. Elas percebem a constituição sem sujeito da "pré-história" atual, embora simplesmente como lógica a-histórica da sociabilidade, ou até mesmo como identidade humana e constituição não-humana de sistemas (sem sujeito) vivos. Como, por exemplo, na afirmação de que os

"Processos complexos são caraterizados pelo acaso, não-linearidade e contradição; e o nexo entre mutação e evolução, entre desvio e inovação é o fundamento da vida (ou seja, do desenvolvimento da célula até a sociedade (!) [...]" (27)

A redução da história a história natural cega, a uma ausência de sujeito e mutante, "da célula até a sociedade" remonta de certo modo aos primórdios da sociologia moderna de Comte e Spencer, ou seja, a uma consideração pseudobiológica na qual as relações naturais e sociais "da vida" são tratadas como estruturalmente idênticas, de sorte que cada diferença fundamental entre a sociedade (homem) e a natureza pode ser denunciada como "estreitamento humanista" (Luhmann). A diferença é que o estruturalismo e a teoria dos sistemas incluem o processo de desenvolvimento das sociedades modernas e seus sistemas de conhecimento, e por isso são muito mais elaborados. (28) Ora, também Marx fala da "história natural" das atuais formações sociais históricas sob influência da modernidade, porém não numa acepção afirmativa, mas num sentido crítico-revolucionário: a saber, como uma

condição superável e a ser superada praticamente, com cuja superação aquele "fim da pré-história" é alcançado.

Essa perspectiva só é possível porque Marx, apesar da ausência de sujeito comprovável no plano da determinação social da forma, não cai na equiparação rasteira de leis sistêmicas absurdas "da célula até a sociedade", mas antes propõe uma distinção entre "primeira" e "segunda natureza". Tal distinção é decisiva para a historicização crítica, com base num metaplano, de "leis naturais da sociedade" aparentemente a-históricas. O conceito de fetichismo é a chave para a compreensão deste nexo.

A "segunda natureza" significa que a sociabilidade dos homens, elemento de sua essência, constitui-se e apresenta-se, de maneira análoga à primeira natureza, como uma essência que lhes é externa, alheia e subjetivamente não integrada. De fato, trata-se de uma constituição sem sujeito posta em movimento pela ação e atividade dos homens, embora atue simplesmente como função de um processo sem sujeito -exatamente como exige o jargão da teoria dos sistemas. A comparação com outros sistemas vitais é natural, já que praticamente todas as populações biológicas possíveis comportam-se, diferenciam-se e desenvolvem-se "sistematicamente" (por exemplo, sociedades de animais ou plantas, sistemas celulares etc.), sem que se suponha um sujeito no sentido iluminista.

Ora, aqui já existe uma ignorância fundamental da teoria dos sistemas, pois a analogia não é uma identidade, isto é, primeira e segunda natureza não podem de forma alguma ser equiparadas. O fato da constituição sem sujeito, de processos sem sujeitos e formações sistêmicas no plano da segunda natureza não é simplesmente história natural, mas uma história de segunda ordem, uma história elevada à potência. Seu pressuposto é que o homem se liberta da mera história biológica e natural de primeira ordem. Ao mesmo tempo, a constituição sem sujeito da segunda ordem é antes de tudo a condição de possibilidade para tal libertação.

O homem liberta-se da primeira natureza (e assim opõe se a ela, embora permaneça como uma das suas partes integrantes) ao desvencilhar-se do instinto dos animais. Ele é o animal sem instintos (eis aqui, em todo caso, o momento de verdade da teoria de Arnold Gehlen). Com isso, no entanto, impõe-se a necessidade de consciência como subjetividade em face da primeira natureza. O que diferencia o pior mestre-de-obras da melhor abelha, diz Marx numa passagem famosa, é o fato de a construção do primeiro ter antes de atravessar por sua cabeça. Assim, o homem opõe-se à primeira natureza como sujeito, mas ele só é capaz disso como homem, ou seja, como ser social. Como este ser social, porém, ele é constituído na ausência de sujeito, justamente como constituição de segunda ordem sem sujeito. Isso quer dizer apenas que o homem não se criou diretamente como sujeito social nem foi criado por um deus-sujeito, mas pôde surgir apenas sem sujeito como animal liberto. Ele surge como sujeito em face da primeira natureza, mas necessariamente não sabe quem é; só sabe e tem consciência do que se tornou, isto é, um ser ou organismo de segunda ordem.

A diferenciação ante a primeira natureza, a formação do homem como sujeito em oposição a ela, é por si mesma necessariamente sem sujeito. O ser social "surgido" e não criado só pode vir à luz como sistema de segunda ordem sem sujeito. Essa ausência de sujeito de segunda ordem é o preço inevitável para o devir do sujeito diante da ausência de sujeito de primeira ordem, - ausência esta absolutamente natural e biológica. “Surgem”, portanto, sistemas de segunda ordem sem sujeito, sistema simbólicos (códigos) do ser humano surgido e a surgir. É isso precisamente, em essência, a constituição do fetiche. Mesmo os primeiros degraus do desenvolvimento não têm mais nada a ver com os sistemas da primeira natureza. Numa consideração superficial, os sistemas totêmicos, através do critério da "consanguinidade", podem parecer estreitamente ligados à primeira natureza. Mas os animais, quando muito, não formam mais que pares ou bandos guiados pelo instinto (e não simbolicamente regulados); mesmo o jovem sexualmente maduro (ou nubente) corta relações com os seus progenitores. O sistema de consanguinidade já é um sistema simbólico

de segunda ordem, incapaz de ser fundamentado biologicamente. Ao que tudo indica, ele é a mais antiga constituição do fetiche humano.

Constaria de uma tarefa em separado investigar a sequência e diferenciação históricas dos sistemas de fetiche. A história, sob este aspecto, não é mais definida de modo abrangente como "a história das lutas de classes" (como corresponde ainda ao estágio de conhecimento do Manifesto Comunista), mas como "a história das relações fetichistas". As lutas de classes (e outras formas de confronto social) obviamente não desaparecem, mas são rebaixadas a uma categoria interna de algo hierarquicamente superior, a saber, a constituição sem sujeito do fetiche e os seus respectivos códigos ou leis funcionais. A forma-mercadoria, transformada em forma social de reprodução na figura do capital, é assim a última e a mais elevada forma-fetiche, capaz de ampliar ao extremo o espaço da subjetividade em relação à primeira natureza. Só no terreno dessa constituição-fetiche secularizada, (29) depurada de toda religiosidade, que assume um caráter sistêmico abrangente e se desenvolve até chegar a verdadeiro "sistema mundial" (Immanuel Wallerstein) - puderam surgir os conceitos de "estrutura" e "sistema".

Como segundo Marx a anatomia do macaco tem de ser explicada a partir da do homem, e não o contrário, a natureza da constituição do fetiche só pode ser inferida a partir do seu mais alto grau de desenvolvimento, do fetiche da mercadoria como fetiche do capital; só nesse grau ela se torna reconhecível e ao mesmo tempo obsoleta. Podese reconstruir, a partir da constituição e crise do fetiche secularizado, o modo pelo qual se criou um nexo por trás das costas dos sujeitos ativos com base em efeitos involuntários de ações isoladas, nexo este que se consolida "em sistema" e cria tanto códigos quanto regularidades que ninguém jamais "imaginara", e que portanto não nascem de nenhum acordo consciente. Com isso também se destrói definitivamente o projeto rousseauísta do "contrato social", que no debate contemporâneo sobre a contenção da crise da forma-mercadoria goza de uma sobrevida fantasmagórica e ainda serve de pasto à proliferação conceitual imanente e ilusória (sobretudo das esquerdas decrépitas).

7.

À primeira vista, poderia parecer que, com o conceito de constituição do fetiche não só o antigo conceito subjetivo-iluminista de dominação tornar-se-ia obsoleto, mas o próprio conceito de dominação em geral. A destruição do sujeito teria então de ser apreendida no conceito de simples marionete. Um tal abandono imediato do conceito de dominação seria por assim dizer taticamente inaceitável. Primeiro, ele pareceria dissuadir os homens das coerções experimentadas na realidade (e sentidas em todo o seu peso), que se insinuam até nos poros do cotidiano das sociedades-fetiche secularizadas do mercado total e do Estado democrático de direito. Em nada altera o caráter dessa repressão o fato de ela não poder ser remontada a um sujeito determinado, de ela ser "estrutural" e ainda digna de ódio.

Segundo esse conceito de marionete desculparia de certa maneira a "dominação do homem pelo homem". Assim que se percebe o caráter sem sujeito das determinações sociais, assim que os conceitos de "papel" e "estrutura" descem do Olimpo científico para a consciência diária, eles são instrumentalizados de forma mais ou menos ingênua para a justificar e apaziguar os detentores de certas funções de dominação. Alguém "apenas" faz seu trabalho, cumpre seu "dever", age segundo seu "papel" e expõe-se, quanto ao resto, às próprias "estruturas" - tais afirmações há muito fazem parte do repertório da falsa e equivocada legitimação do exercício do poder dominante. Assim, o conhecimento crítico é transformado em afirmação banal.

Isso é particularmente desagradável quando as funções de dominação não se acham rigidamente formalizadas como nas relações econômicas e burocráticas, mas são antes executadas informalmente e se manifestam em atribuições estruturais de papel, como na relação entre os sexos ou na relação de ensino (e também em preconceitos e discriminações raciais). A autocomplacência do homem compulsoriamente heterossexual e não verdadeiramente interessado, apesar das corteses reverências ao feminismo, em superar a si mesmo é

notória quando se afirma que, no fundo, não é ele próprio como pessoa o veículo de certas manifestações autoritárias na relação entre os sexos, mas que ele "apenas" executa, forçado e a contragosto, uma estrutura socialmente prevalecente e historicamente sem sujeito. Isto é evidente em diversos graus e em expressões implícitas ("mudas") ou explícitas de um pseudorrefletido trabalho de repressão masculino. Da mesma maneira que o sistema produtor de mercadorias pode aparentemente transformar em mercadoria todas as formas de crítica e tomá-las com tal "estruturalmente" inofensivas, assim também a consciência masculina e compulsoriamente heterossexual da dominação, com suas exigências obsoletas de independência e soberania, parece dobrar todo o conteúdo cognitivo da crítica da estrutura dos sexos para uma forma superior e mais elaborada de autoafirmação. Precisamente a fim de não ter de largar o seu "altivo" ponto de vista dominante, cada vez mais inconfessado, e não deixar a crítica estender-se até a "identidade" compulsória ou mesmo até o seu próprio corpo, o sexo masculino remonta por assim dizer aliviado à ausência de sujeito e a seu conceito. Esta é quase a forma de consciência do criminoso psicótico, que se convence da própria inocência já que "nada pode contra o ato", embora tenha pleno conhecimento de si mesmo e de suas ações. Para permanecer o que é e poder continuar exercendo a dominação, o homem compulsoriamente heterossexual, soberano e idêntico a si mesmo está disposto a declarar-se inimputável e transferir o status de sujeito à "estrutura" ou ao "sistema" - ao poder esmagador da ausência de sujeito que não lhe faz nenhum mal concreto (este é talvez o sentido psicológico da teoria de Niklas Luhmann e de seu considerável sucesso ).

Obviamente, contudo, o abandono do conceito de dominação e da metáfora das marionetes não deve ser simplesmente repudiado por razões pseudotáticas, a fim de poder firmar uma posição negativa no tocante às relações como odiosas e insuportáveis. O problema tem de ser destrinchado também teoricamente. Em seu paradoxo, de fato, a astúcia quase "feminina" da autoafirmação masculina "estruturalmente" pseudorrefletida aponta para um problema teórico, a saber, a questão da relação entre a constituição do fetiche e a subjetividade. O reconhecimento de que a estrutura e o sistema não são

de natureza ontológica nem descem até a natureza orgânica, mas de que antes "surgiram" em sua alteridade no plano da segunda natureza e tornam-se tão manifestos quanto obsoletos no estágio de desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias, ainda não é capaz de solucionar a relação interna entre sujeito e ausência de sujeito. Se o conceito de fetiche conduz espontaneamente à reprodução do ponto de vista estruturalista e da teoria dos sistemas (e à proximidade com seu conteúdo afirmativo) respaldada em concepções simplesmente modificadas e numa ampliação historicista, se a metáfora das marionetes e a negação do conceito de dominação impõem-se espontaneamente, então fica claro que existe ainda um "elo perdido " na reflexão teórica.

O sujeito não desaparece meramente como simples erro, mas continua a existir, se bem que agora como mero sujeito interno da constituição do fetiche, ela própria sem sujeito. O problema é que o fetiche não é, todavia um "ser" autônomo e provido de consciência própria, a quem se pode por assim dizer dotar de endereço e caixa postal. A ausência de sujeito não é, por sua vez, um sujeito que pode "dominar", mas constitui dominação e é paradoxalmente definida como algo simultaneamente próprio e alheio, interno e externo. Marx captou metaforicamente essa questão no conceito de "sujeito automático", na figura do qual o "valor" invisível, onipresente e objetivado da reprodução capitalista do fetiche reina cegamente. No contexto da crítica da economia política e da determinação econômica da forma do capital em termos gerais, essa definição metafórica pode ser suficiente, embora para a compreensão da constituição do fetiche e do problema do sujeito como tal ela seja insatisfatória. Marx expressou assim apenas o paradoxo e o contrassenso dessa relação, pois o "automatismo" e a subjetividade excluem-se mutuamente.

Obviamente, é difícil pensar a meta-reflexão da relação dentro das formas de pensamento dessa própria relação, que se acham pressupostas. A consciência constituída pelo fetiche toma a decisão espontânea de explicitar o "ser" codificador e legiferante para então, como sujeito, bancar a marionete. O "externo", porém, é "nada". O

sujeito é uma marionete que maneja os próprios fios. Isso é, entretanto, um absurdo, ou melhor, é a metáfora de algo impensável no interior das formas de pensamento pressupostas. Para o sujeito existem, como grandezas relativas, o objeto inconsciente (natureza) ou outros sujeitos. O fetiche pode então ser ou objeto (natureza), e, portanto, inevitável, (30) ou justamente um sujeito exterior. (31) Os conceitos de fetiche e segunda natureza apontam para o fato (e esta é a diferença em relação à teoria dos sistemas, que não conhece nenhum contraste entre primeira e segunda natureza) de que existe "algo" que não se resolve no dualismo sujeito-objeto e que não é nem sujeito nem objeto, embora constitua essa relação.

No fundo, o estruturalismo, a teoria dos sistemas e outros programas teóricos possuem um caráter teórico transitório, assim como o sistema capitalista produtor de mercadorias possui um caráter transitório como formação social. (32) A destruição unilateral do sujeito não pode sustentar-se por si mesma, o sujeito não pode ser abandonado como mero erro ou marionete, já que não se pode afastar a pergunta pelo "sujeito do sujeito" na forma de pensamento pressuposta. Um retorno à consciência religiosa é tão pouco provável quanto a simples operacionalização do sujeito rebaixado nas estruturas internas da ausência de sujeito assimilada ou em vias de assimilação, como parece sugerir o lado toscamente pragmático da teoria dos sistemas. A própria hipótese de Rousseau sobre o contrato social "esquecido", que tenta ainda solucionar a problemática pelo caminho inverso, viu-se severamente abalada e indigna de crédito. Nem a dissolução da segunda natureza no sujeito, nos primórdios da modernidade ainda orgulhosa e ávida de iniciativas, nem a sua dissolução no objeto, no final da modernidade frustrada e sem autoconfiança, pode explicar a constituição do fetiche ou o problema da dominação.

8.

O ponto decisivo é que tem de haver um plano no interior da constituição humana e social, e, portanto, também no interior de cada

homem isolado, plano este situado além do dualismo entre sujeito e objeto. (33) Para a consciência iluminista, existe apenas sujeito (consciência) ou objeto, mas nunca um tertium genus. O conceitochave para a compreensão deste "tertium genus " verdadeiramente constitutivo só pode ser o conceito de inconsciente. Sem dúvida, cabe a Freud o mérito teórico de ter introduzido sistematicamente este conceito. Contudo, aqui não se tratará (ou pelo menos não em específico ou de modo exclusivo) do inconsciente na concepção particular de Freud. Não por acaso o retorno a Freud consta de um dos momentos constitutivos do próprio estruturalismo. Para a ideia iluminista do sujeito, a teoria freudiana foi desde o princípio um tormento, uma vez que o conceito de inconsciente - não sem razão - foi sentido como um ataque frontal a seus próprios fundamentos; a destruição do sujeito radiante e maduro da modernidade como um ser autoinconsciente, guiado por impulsos inconscientes ( e ainda por cima sexuais), tinha de lhe parecer insuportável. Porém com isso passaram despercebidos aqueles momentos afirmativos da teoria freudiana que só puderam ser aproveitados no declínio histórico da teoria iluminista do sujeito e que por assim dizer caíram do céu para os estruturalistas.

O inconsciente freudiano ainda não representa uma superação do sujeito iluminista, mas é um divisor de águas que pode ser desenvolvido tanto na direção das toscas concepções da ausência de sujeito (estruturalismo) quanto na direção da metacrítica da constituição do fetiche. De fato, Freud elaborou em primeiro lugar o conceito de inconsciente sobretudo e unilateralmente no aspecto individual e psicológico, ainda que as relações sociais sejam imensas e também discutidas em seus escritos sobre a teoria da cultura. Entretanto, o verdadeiro problema da constituição social do inconsciente não é abordado sistematicamente por Freud.

Sob as suas premissas teóricas, isto é também absolutamente impossível, pois, em segundo lugar, e nisso ele continua um pensador iluminista, Freud de pronto ontologizou seu conhecimento. Ele desenvolve as categorias do inconsciente, em última instância, de maneira a-histórica como estrutura de um inconsciente em geral, razão

pela qual ele ontologiza o problema no horizonte da própria teoria da cultura e o define como a relação de um inconsciente em geral (mais sua estrutura) com a cultura em geral. (34) Daí se explica também sua dedução pessimista em relação à cultura, pois as contradições ontologizadas de impulsos inconscientes e produtos culturais parecem insuperáveis e afinal de contas desastrosas (O mal-estar na cultura).

Em terceiro lugar, Freud - e nisso o seu pensamento prende-se ao positivismo biológico do século 19 - atrelou elementos essenciais do inconsciente diretamente à primeira natureza, sobretudo com base num impulso sexual concebido de modo a-histórico. A definição de Marx de uma relação entre a primeira natureza (biológica) e a segunda natureza (constituída pelo fetichismo e codificada simbolicamente) falta por completo em Freud, o que naturalmente facilita a ontologização. Sob o signo da instância básica do "id" e dos chamados impulsos, a primeira natureza alcança direta e imediatamente a sociedade e as suas produções culturais:

"A mais antiga das províncias ou instâncias psíquicas chamamos de id: seu conteúdo é tudo o que foi herdado, trazido pelo nascimento, fixado constitucionalmente, sobretudo os impulsos que provêm da organização corporal [...] As forças que supomos por trás das tensões de necessidade do id chamamos impulsos. Elas representam as exigências corporais à vida anímica [...]." (35)

Nem a diferenciação da "estrutura de impulsos" nem a análise dos "produtos sublimados" na cultura modifica algo nesse vínculo imediato, já que a mediação histórico-social daquilo que se manifesta como puro "impulso" (natural e biológico) simplesmente não ocorre. Isto obviamente não significa que não exista o substrato da primeira natureza no homem e que não haja relação alguma com a consciência ou nenhum influxo sobre a vida anímica do homem. Todavia, quando entre este substrato (que também deve conter, além da natureza biológica no sentido fisiológico, alguns restos atrofiados do instinto animalesco) e a consciência superficial do homem concebido

historicamente ergue-se a natureza diversa da constituição do fetiche, com a sua gigantesca história, então a base natural determinada (e determinante ) biologicamente apreende com muito menos profundidade a constituição do homem do que Freud o supõe. (36)

Em quarto lugar, por fim, Freud relaciona o conceito de inconsciente primordialmente aos planos "inferiores" da consciência aparente do ego, procedendo a uma diferenciação entre o simples "inconsciente", por um lado, e o iceberg anímico do inconsciente profundo e estrutural, por outro. Além disso, ele supõe na figura do superego uma outra instância e por assim dizer "superior" do ego consciente, condicionada por influxos externos, cuja determinação entretanto não alcança a constituição social do fetiche, mas antes permanece restrita de forma fenomenológica e por assim dizer técnica à condição de simples "influência" (especialmente durante a infância) sobre o aparato psíquico individual:

"Como resíduo do longo período da infância, durante o qual a pessoa em desenvolvimento vive na dependência de seus pais, forma-se em seu ego uma instância peculiar na qual persiste este influxo paterno. Tal instância recebeu o nome de superego. Na medido em que se separa do ego e a ela se opõe, este superego constitui um terceiro poder que tem de levar em conta o ego […]. No influxo paterno, é claro, não age apenas o ser pessoal dos pais, mas também a influência de tradições de família, da raça e do povo por eles promovida, assim como as exigências por eles representada do respectivo meio social. De forma análoga, no curso do desenvolvimento individual o superego aceita contribuições de avatares e substitutos dos pais, como professores, exemplos públicos e ideais venerados na sociedade." (37)

A absorção das instâncias sociais e históricas mostra-se aqui claramente insatisfatória. O inconsciente parece apenas na figura daquelas instâncias ou "províncias" do aparato psíquico sobre as quais o ego não tem nenhum controle. Porém inconsciente não é apenas o reino anímico acima ou abaixo da consciência do ego. Se

compreendermos o conceito de inconsciente em termos bem simples e gerais, independentemente do rumo de investigação específico de Freud, surge um fato bastante diferente. Inconsciente não é só o conteúdo anímico para além da consciência fenomênica do ego, inconsciente é também a própria forma da consciência. Pois a forma da consciência não é de modo algum equiparável à própria consciência ou a seus conteúdos e "províncias". E na forma de si mesmo inconsciente à consciência deve-se buscar o segredo do tertium que não é nem sujeito nem objeto, mas que plasma a subjetividade, a objetividade e a dominação como cega constituição formal. A forma histórico-social da consciência é o mais profundamente próprio e ao mesmo tempo o mais profundamente estranho e inconsciente; por isso, tão logo ele seja sistematizado, terá de ser compreendido e vivenciado como "poder" externo e alheio.

A questão da forma (universal) da consciência e das ações sociais humanas fora esboçada antes de Freud -independentemente de seu conceito inconsciente - por Kant e mesmo por Marx. Bastaria apenas reunir estas concepções aparentemente esparsas e unificá-las de modo histórico e crítico. Kant foi o primeiro a investigar de modo sistemático e "crítico" a forma geral (inconsciente à própria consciência) da consciência - crítico apenas no sentido de uma conscientização afirmativa dessa forma. (38)

O caráter afirmativo de sua investigação impõe-se pelo fato de ele ontologizar de imediato, como bom iluminista, os conceitos descobertos das formas gerais da consciência e tomá-los como formas humanas de consciência em geral (de maneira análoga, quanto a isso, à ontologização do conhecimento por Freud). Kant qualifica assim as formas universais da sensibilidade (espaço e tempo) e as formas universais do entendimento como as célebres "formas a priori" da capacidade cognitiva, independente de seus objetos, e o "imperativo categórico" como a "simples forma de uma lei universal", ou seja, como princípio ético para toda ação humana. Estas formas de consciência a priori se manifestam, contudo, de modo a-histórico e

estigmatizadas "no homem"; Kant não discute o lócus deste estigma nem sua relação com a natureza fisiológica.

Marx, que mal parece ter-se ocupado com Kant e o seu problema formal da consciência, chega por meio de Hegel a uma historicização da história da forma, exposta num primeiro momento como história das formações (político-econômicas) da sociedade; e nisso ele topa obviamente com o problema da forma universal da consciência, por ele abordada historicamente como constituição do fetiche e exposta brevemente em seus principais elementos no capítulo introdutório de O Capital, para então ser desenvolvida, com base em suas determinações sociais objetivadas, na figura das categorias econômicas da relação capitalista. Ele não deixa dúvidas, contudo, que se trata aqui de formas de consciência universais e "invertidas". Se Marx não se estende sobre a forma universal de consciência do sistema produtor de mercadorias constituído pelo fetiche, isto ocorre porque seu pensamento defronta-se aqui com um limite: a referência ao trabalho ( ontologia do trabalho) e o ponto de vista de classes e do operariado exige uma abordagem dualista e antagônica e faz a questão da consciência recuar à respectiva "consciência de classe", de sorte que a questão da forma universal da consciência não pode ainda ser posta claramente "antes" do antagonismo de classes". (39)

Hoje, sob as condições da crise já madura do sistema produtor de mercadorias, a crítica do fetiche de Marx só pode ser reformulada e desenvolvida adequadamente como crítica da forma universal da consciência que inclui todas as categorias de classe e interesse (e vai muito além das meras determinações socioeconômicas em sentido estrito). Só agora as concepções de Kant, Marx e Freud podem ser assim unificadas sistematicamente, só agora se pode ousar a reformulação da "história das lutas de classes" como "história das relações fetichistas" (e com isso, para além das "lutas de classes", remontar à origem da transformação humana).

9.

A forma universal da consciência e as suas categorias não devem ser apreendidas de modo ontológico, mas sim histórico-genético. Para cada degrau de formação corresponde uma específica forma inconsciente de consciência com "regularidades" e códigos específicos. A (respectiva) forma de consciência constitui uma grade universal de percepção assim como de relação social e entre os sexos; a percepção do mundo ou percepção da natureza e a percepção das relações sociais entre os homens são portanto apreendidas na mesma e inconsciente matriz formal, que é sempre ao mesmo tempo forma universal do sujeito e forma universal de reprodução da vida humana. Essa forma surge inconscientemente no processo histórico com a acumulação de efeitos colaterais imprevistos e sua concentração - e isso desde que o ser humano deixou o reino animal.

Essa concepção pode ser ampliada tanto "para cima" quanto "para baixo". Pois, em primeiro lugar, desse modo podem ser avançadas definições universais da "constituição do fetiche em geral" para toda a história humana até hoje, como há pouco foi sugerido; a ruptura estaria situada provavelmente na transição para a chamada cultura elevada, que corresponderia por exemplo à separação marxista entre sociedade primitiva ou "comunismo primitivo" e início da sociedade de classes. O problema básico então não seria mais a questão sociológica e utilitarista da "distribuição desigual de proveitos", mas antes a questão de como a constituição social do fetiche se modifica sob as condições de um mais-produto social (novos objetivos fetichistas, como por exemplo a construção de pirâmides, ou seja, "surtos de desenvolvimento" cegamente guiados). Em segundo lugar, porém, as respectivas constituições do fetiche devem ser representadas dentro dos próprios termos históricos, isto é, em sua história de formação e ascensão, por um lado, e em sua história de declínio e decomposição, por outro.

Em todos os planos, as definições - constituídas pelo fetiche - de "verdadeiro" e "falso", "moral" e "imoral", "justo" e "injusto" deveriam ser decifradas (e também relativizadas, é claro) em seu

respectivo condicionamento. Isso vale também para o inconsciente freudiano, ou seja, aquelas "províncias" psíquicas situadas para além da consciência aparente do ego. O problema formal não tematizado de modo histórico-social por Freud estender-se-á também a estas "províncias" remotas, isto é, a matriz da respectiva forma universal de reprodução e consciência inclui também o id e o superego. A forma de consciência da respectiva constituição do fetiche abarca todos os aspectos da vida humana. Estamos às voltas, portanto, com uma estrutura ou canalização tanto da reprodução social (socioeconômica) quanto as relações sociais e sexuais, tanto da consciência do ego e da percepção externa quanto das camadas psíquicas profundas (id) e do superego. E como este processo já dura ao menos uns cem mil anos, as mais diversas formações históricas sedimentaram-se de certa forma "geologicamente" em diversos graus de decomposição e assentamento. "Sobre" o original substrato biológico e animalesco, jazem inúmeras camadas de constituições passadas do fetiche em todos planos da vida social (40), que são, porém, dominados e determinados pela respectiva constituição do fetiche mais recente e "válida".

A decifração da constituição do fetiche em geral pode ser efetuada, de acordo com a frase de Marx já aludida sobre a reconstrução da anatomia do macaco com base na do homem, a partir de sua forma mais recente e elevada, e esta é, como foi dito, a nossa própria, ou seja, a do sistema produtor de mercadorias da modernidade. O que Marx, ainda com a inflexão sociologista de seu próprio princípio de conhecimento, disse das "relações de classe" pode ser agora relacionado às relações de fetiche: só a modernidade secularizou e simplificou tais relações a ponto de torná-las transparentes e lhes revelar o princípio subjacente. Em todos os planos da teoria social, da teoria do conhecimento, da teoria da consciência, da teoria sexual e da psicoterápica pode-se agora empreender a viagem de volta pela história humana das formações, pois um novo estágio da historicização parece possível; o pressuposto para tanto é sem dúvida o conhecimento e a crítica de nossa própria formação, cuja crise constitui o pretexto derradeiro. Somente sobre este metaplano pode-se realizar a unificação entre práxis e história.

As consequências para os conceitos de dominação e subjetividade encontram-se à mão. O homem torna-se sujeito no processo de sua formação em face da primeira natureza; a forma do sujeito, contudo, é a princípio fraca e embrionária até que o sujeito, após uma longa e contraditória história de desenvolvimento através de muitas formações, revele-se em forma pura (ante a primeira natureza) no sistema produtor de mercadorias da modernidade e dê voz à pretensão iluminista. Mas o Iluminismo, a ciência natural e a industrialização não passam de momentos de forma-mercadoria universal e de sua constituição do fetiche, que encerra em si toda a história da humanidade até hoje e pela primeira vez o generaliza globalmente. O sujeito da modernidade, que superou em si todas as formas de sujeito até agora, possui tão pouco consciência de sua própria forma quanto todas as configurações anteriores; ele representa, por assim dizer, a forma mais elevada da inconsciência da forma.

Com isso se formula a definição universal: um sujeito é um ator consciente que não tem consciência de sua própria forma. Ora, é justamente essa inconsciência da forma que impõe às ações conscientes em relação à primeira natureza e aos outros sujeitos um caráter objetivo e opaco: a objetivação obtida através da cadeia de ações passadas já é cegamente pressuposta pelo sujeito. A consciência restringe-se, portanto, a uma ação isolada que, a diferença dos animais, não é guiada cegamente pelos instintos, mas antes "tem de atravessar pela cabeça". Por outro lado, a consciência não apreende o quadro de ações social e universal, que "surge" historicamente e é cegamente pressuposto. A consciência é assim uma simples consciência interna a uma constituição do fetiche que entretanto - e isso marca a diferença decisiva para com o estruturalismo e a teoria dos sistemas ou as concepções redutoras do problema do fetiche - não é algo externo, porém a forma da própria consciência.

Isto acarreta como consequência a constante mescla de um fator desconhecido nas ações conscientes, fator este que não acede à consciência. Uma tal estranheza do que é próprio aparece novamente como estranheza do vínculo com a primeira natureza e com os demais

sujeitos. Por outro lado, uma tal estranheza - que é condicionada pela inconsciência da forma - cinde de maneira necessariamente dicotômica o conjunto das ações e percepções. O sujeito, por não ter consciência de sua forma e, portanto, de si mesmo, tem de experimentar a natureza e os outros sujeitos como mero mundo exterior (4l). A limitação da consciência ativa e perceptiva não permite galgar a um metaplano nem perceber a si mesmo (o sujeito) em sua relação com o mundo exterior e, portanto, compreender todo o complexo em que o sujeito e os seus objetos de ação e percepção se acham encerrados. A inconsciência da forma pelo sujeito, a qual constitui uma simples dicotomia entre sujeito e mundo externo, rebaixa assim os objetos (Gegenstände) de ação e percepção (natureza e demais sujeitos) a puros e simples objetos (Objekten). O dualismo sujeito-objeto é resultado do fato de que o metaplano - a partir do qual o ator e seus objetos aparecem como um todo comum - não está, por assim dizer, "ocupado"; este metaplano assume justamente a forma sem sujeito do sujeito (42), com o que se produz o dualismo aparentemente inevitável e intransponível. Daí ser possível uma segunda definição complementar do sujeito: um sujeito é um ator que tem de rebaixar os seus objetos (Gegenstände) a meros objetos (Objekten) externos. É claro que também tal definição há de ser encarada historicamente, ou seja, também a dicotomia sujeitoobjeto teve de desenvolver-se a partir de rudimentos embrionários através da longa história das formações, até que encontrou no sistema produtor de mercadorias da modernidade sua expressão mais pura e elevada. (43)

Aliás, tal problema da dicotomia sujeito-objeto reluz de certa forma em Niklas Luhmann, embora irremediavelmente infletido para a franca afirmação. Em entrevista a uma revista italiana, ele se declarou de modo expressamente crítico sobre a exteriorização do sujeito em relação a seus objetos:

"Acredito que esta figura da autorreferência, ou seja, a inclusão do observador e dos instrumentos de observação nos próprios objetos de observação é uma qualidade específica das teorias universais não percebida pela antiga tradição europeia. Trata-se sempre, em última

instância, de uma descrição de fora, ab extra, através por exemplo da mediação de um sujeito. Quero dizer é que a lógica clássica ou a ontologia clássica sempre supuseram um observador externo em condições de observar de maneira falsa ou correta, ou seja, com valores bipartidos; mas elas não pensaram que tal observador, para poder observar a realidade, tem de observar a si mesmo" (44).

Luhmann encontra-se aqui bem próximo do problema, mas não o reconhece. De fato, ele age de forma ontológica, isto é, iluminista, no próprio metaplano da autorreferência do observador. A auto-observação do observador, em Luhmann, não pode observar senão a própria imanência. A contradição não existe na realidade, mas no máximo como erro na cabeça do observador, ou seja, ela se reduziria ao fato de que o observador não observa a si mesmo, mas restringe-se a objetos externos que ele "avalia", sem dar-se conta de sua própria participação. Com isso escapa também todo protesto contra as relações, que para Luhmann só pode vir da posição "ab extra". Luhmann reproduz, portanto, a concepção iluminista da crítica social, e precisamente por isso a ascensão ao metaplano da autorreferência parece-lhe idêntica à eliminação da crítica fundamental da sociedade. (45)

A auto-observação luhmanniana do observador permanece, todavia, incompleta na medida em que ele é incapaz de reconhecer a imanência sistêmica objetiva da dicotomia sujeito-objeto. No metaplano da suposta autorreferência, ele volta a ser iluminista (e este é o outro aspecto da ontologização) ao cair por sua vez no esquema do "certo e errado" e ter de qualificar o "ponto de vista ab extra" como simples "erro" ideológico ou imanente à teoria. Seria preciso, em oposição a Luhmann, ocupar de modo mais consequente um metaplano ( ou manter de forma mais consequente o metaplano da autorreferência), para então poder compreender a dicotomia sujeito-objeto ou o próprio "ponto de vista ab extra" como elemento genuíno da estrutura sistêmica e como funcionalidade sistêmica das modernas sociedades (ocidentais), em vez de como simples erro do observador. Só então não haverá mais uma simples duplicidade valorativa de "certo" e "errado", e o supostamente "errado" será reconhecido em seu próprio

condicionamento sistêmico. Isso, é claro, não vale apenas para a ideologia do sujeito iluminista, mas também para seu crítico Luhmann, cuja teoria, por sua vez, pode ser decifrada como produzida pelo sistema e funcional ao sistema (e, neste sentido, não simplesmente "errada").

Esse ataque insuficiente da "autorreflexidade" luhmanniana (como autorreferência) ao eu na auto-observação do observador procede da obtusidade desta observação, que se contenta com a afirmação banal de que também o observador ou o sistema observador (sob a figura da sociologia, por exemplo) tem de ser considerado e refletido como sistema ou subsistema dentro de um sistema, ou ainda como ambiente de um sistema. A autorreflexão se dá sempre em relação a um determinado sistema ou "sistema em geral", mas não com referência a uma certa forma histórica do sistema, na qual se pode avançar um conceito de sistema, e tampouco com referência à "forma em geral" (que é algo diverso do sistema em geral). Justamente, a própria forma da consciência não consta dos objetos autorreferenciais do observador luhamanniano, que tem antes de partir de uma "consciência em geral". A deshistoricização e ontologização aderem a essa cegueira sistemática da forma, como a expõe Luhmann de modo exemplar (insistindo assim na cegueira formal do pensamento iluminista e de certa maneira aperfeiçoando-o).

Ora, o desenvolvimento teórico (o de Luhmann, inclusive) e a destruição teórica do pensamento iluminista aponta para uma crescente autocontradição do sistema, que assim se vê impelido não só à manifestação e, portanto, à simples reflexão teórica, mas também à superação prática. Luhmann crê que tanto o "ponto de vista ab extra" como a crítica prática e superadora do sistema estão extintos. Mas justamente com uma autorreferência dilatada do observador, que inclui também a própria forma da consciência e portanto o caráter sistêmico objetivado da dicotomia sujeito-objeto ou a autocontradição objetiva do sistema (produtor de mercadorias), será possível reformular - a partir de um metaplano - não só a história, mas também a práxis radical.

A superação prática então não será mais uma superação do "ponto de vista ab extra", pelo qual o "sujeito avalista" não é compreendido, como o supõem a ideologia iluminista da razão e do sujeito e o seu apêndice marxista com o "ponto de vista de classe" calcado no trabalho ontológico. Mas se o autoconhecimento do observador, que abarca a si mesmo na observação, inclui também a observação da autocontradição do sistema e portanto do próprio observador (de sua própria forma), um outro conceito de superação prática é avançado, a saber, a identidade entre a autossuperação prática e a autossuperação do observador, que por esse mesmo fato deixa de ser mero observador, e com isso abandona pela primeira vez, de fato, o "ponto de vista ab extra ". Enquanto ele permanece mero observador, a própria descrição permanece também, em última instância, "de fora". O momento contemplativo afirmado tanto por Luhmann quanto por Hegel revela na verdade não um "excesso", mas uma falta de imanência (críticosuperadora), ou seja, é um resto ou refugo do "ponto de vista ab extra ", no qual a autocontradição prática entre sistema e observador não vem refletida. (46) A própria autorreflexidade mantida de forma consequente conduz assim, em oposição a Luhmann, à crítica radical do sistema, embora com inclusão do observador/crítico, que não parte mais de um "ponto de vista ab extra", quer seja ele uma ontologia do "trabalho", uma ontologia do "sujeito" ou (muito menos) uma ontologia dos "sistemas sem sujeito". Antes, a própria dicotomia sujeito-objeto será sistematicamente historicizada em vez de apenas descartada. 10.

Em semelhante historicização "autorreferencial" também não pode permanecer oculto que a dicotomia sujeito-objeto (constituída pelo fetiche) de um determinado estágio evolutivo refere-se a uma ocupação em termos sexuais. Se nas sociedades não-europeias ( e também nas sociedades agrárias da antiguidade europeia) a estrutura sexual da relação sujeito-objeto ainda é difusa, nos surtos desiguais de desenvolvimento da sociedade de mercadorias ocidental ela é elaborada desde a antiguidade grega com crescente nitidez, para então vir à luz com máxima precisão no sistema produtor de mercadorias da modernidade. Pode-se formular a seguinte regra de ouro: quanto

menos desenvolvida a dicotomia sujeito-objeto, menos clara é sua ocupação em termos sexuais, e quanto mais precisa avulta essa dicotomia, mais inequivocamente ela é determinada pelo sexo masculino. Na constituição ocidental do fetiche presente na formamercadoria, o sexo masculino desempenhou o papel histórico de sujeito, ao passo que os momentos da sensibilidade que não se resolviam na forma-mercadoria (criação dos filhos, dádiva emocional, atividade doméstica, etc. ) foram cada vez mais delegados à mulher como "ser doméstico" (47). A mulher em si é, portanto, degradada a objeto de maneira estrutural pelo homem em si. Tal objetivação deve ser diferenciada do mecanismo em que, para o sujeito masculino, a primeira natureza e os demais sujeitos masculinos surgem como relação objetiva. A terceira definição do sujeito, só plenamente revelada na sociedade mercantil ocidental, seria a seguinte: Um sujeito é um ator determinado estruturalmente pelo sexo masculino. (48)

A partir das definições avançadas até agora, é possível reformular o próprio conceito de dominação. A ausência de sujeito da dominação é a ausência de sujeito da forma do sujeito, que constitui uma relação de ação e percepção objetivada e compulsória. Nessa relação, a natureza e os outros sujeitos (e especialmente a mulher como pseudonatureza) são rebaixados a objetos, porém não a partir da subjetividade volitiva da consciência aparente do ego, mas da inconsciência de sua própria forma. Este caráter compulsório que se sedimenta na dominação, ou seja, em ações repressivas, não abrange somente a relação externa do sujeito, mas necessariamente também sua autorrelação. Pois como a estranheza da relação de ação e percepção é a estranheza daquilo que é próprio, isto é, a estranheza da forma própria, o sujeito também é incapaz de perceber a si mesmo em sua totalidade, mas permanece restrito à consciência aparente do ego constituída pelo fetiche. Uma parte considerável de si próprio tem de se lhe tornar, portanto, "mundo externo": a autorrelação torna-se uma forma fenomênica da relação com o exterior. Ou melhor, o ditado da percepção que parte da forma de consciência inconscientemente constituída só abarca o "eu" do sujeito na medida em que este se comporta consigo mesmo como possibilidade de reprodução formal (como objeto da forma mercadoria) e objetiva as próprias capacidades sob este aspecto. O sujeito tem,

portanto, de objetivar a si mesmo e "autodominar-se" em nome de sua forma própria inconsciente, a ponto de ajustar maquinalmente seu próprio corpo, que é literalmente rebaixado a máquina corporal na mais pura e excluída forma-fetiche do sistema produtor de mercadorias. Podemos então formular uma quarta definição do sujeito: um sujeito é um ator que se torna mundo externo para si mesmo e assim objetiva a si próprio.

O conceito de dominação recobra desse modo a sua dimensão crítica. Em suas elaboradas configurações, as teorias subjetivas da dominação, entre elas também o marxismo e o feminismo, há muito descreveram em termos fenomenológicos os diversos planos e as formas fenomênicas da dominação e tentaram captá-las em seu contexto, sem, no entanto, poder avançar um conceito de tais manifestações. Se as antigas teorias subjetivas da dominação permaneciam aferradas a uma brusca separação dicotômica entre "dominantes" e "dominados", sendo que, do ponto de vista dos "dominados" (povo, classe trabalhadora, nações oprimidas, mulheres, etc. ), a "dominação" parecia como algo externo e palpável, os projetos mais recentes e elaborados levam em conta o fato de que os próprios "dominados" contribuem para a dominação, exercendo até funções de dominação para consigo próprios.

A tentativa mais primitiva de explicação consiste nas diversas variantes da "teoria da manipulação", segundo a qual os "dominantes", por intermédio do controle externo da consciência através da religião (cf. para tanto a velha ideia iluminista do "embuste clerical") e hoje através da mídia, da publicidade, da "propaganda enganosa", etc., manipulam a consciência dos "dominados" e os forçam a agir contra seus "verdadeiros" interesses. Nesse meio tempo, projetos mais refletidos passaram até a falar, com respaldo na psicanálise, de uma internalização psíquica da dominação nos dominados. Como aqui não se trata mais de um supersujeito manipulador, que supostamente exerce o controle último, tais projetos se avizinham mais do problema da dominação sem sujeito, na medida em que o inconsciente em geral é inserido no contexto da teoria da dominação. Essa reflexão restringe-se

em boa parte, porém a mecanismos psíquicos de autossubmissão, sem que o conceito subjetivo e sociológico de dominação seja fundamentalmente superado ou suplantado. Ele ameaça resvalar, portanto, para a afirmação estruturalista e da teoria dos sistemas.

Só quando o conceito de inconsciente for alçado ao nível reflexivo da forma comum a todos os membros da sociedade, e, portanto, da constituição do fetiche, o conceito de dominação sem sujeito poderá ser avançado, sem cair num novo déficit explicativo. O inconsciente como forma universal da consciência, como forma universal do sujeito (com a ressalva sexual descrita acima) e como a forma universal de reprodução da sociedade objetiva-se na figura de categorias sociais (mercadoria, dinheiro) sem excetuar nenhum dos membros da sociedade, mas por este fato mesmo é uma particularidade inconsciente do próprio sujeito. No interior dessa constituição social inconsciente, resultam dessas categorias " funções", códigos, condutas, etc., por intermédio das quais surgem tanto a "dominação alheia" quanto a "autodominação" em diversos graus e diversos planos.

A "dominação do homem pelo homem" não deve, portanto, ser entendida em seu tosco sentido externo e subjetivo, mas como constituição abrangente de uma forma compulsória da própria consciência humana. Repressão interna e externa se acham no mesmo plano de codificação inconsciente. Dominação das tradições, poder militar e policial, repressão burocrática, "coerção muda das relações", reificação, autorreificação, autoviolação e autodisciplina, opressão sexual e racial, auto-opressão, etc. são apenas formas fenomênicas de uma única e mesma constituição da consciência fetichista, que lança uma rede de "poder" e portanto de dominação sobre a sociedade. O "poder" nada mais é do que o fluído universal e penetrante da constituição do fetiche, a forma fenomênica tanto interna quanto externa - presente desde sempre - da própria inconsciência formal.

O conceito de dominação não deve assim ser meramente descartado para em seu lugar se erguer o conceito de constituição do fetiche, que

rebaixaria o sujeito e suas declarações a simples marionete. Antes, o conceito de dominação e seu conceito mediador "poder" devem ser deduzidos como conceitos da forma fenomênica universal das constituições do fetiche, que por sua vez se manifestam tanto prática como sensivelmente como espectro da repressão ou autorrepressão em diversas formas e em diversos planos. A forma de si mesmo inconsciente à consciência manifesta-se como dominação em todos os planos. Na figura da dominação, o sujeito como ser constituído pelo fetiche trava contato real consigo mesmo e com os outros. As categorias objetivadas da constituição formam assim o (respectivo) padrão ou a matriz da dominação.

O sistema produtor de mercadorias ingressa hoje em seu estágio maduro de crise, e a autocontradição da constituição do fetiche agravase até às raias do insuportável. A consequência não é a dissolução aprazível no metaconhecimento, mas o assombro perante tal metaconhecimento, o temor ante a dissolução do sujeito e o apego (que beira o desvario ululante) a códigos da forma inconsciente da consciência. Sob tais condições, o "poder" concentra-se novamente ao extremo. A repressão externa da força estatal e da administração burocrática e misantrópica da crise cristaliza-se, a exemplo da concorrência mutuamente exclusiva e da força bruta, nos planos da criminalidade, do ódio político, pseudo-político, racista ou etnicista e das relações pedagógicas e entre os sexos: a "coerção muda" dos critérios fetichistas de êxito cristaliza-se como autorrepressão dos indivíduos, que a eles obedecem cegamente.

11.

Quais são então as consequências universais do conceito de dominação sem sujeito? Em primeiro lugar, há de se compreender o alcance do conceito de emancipação a ser agora formulado. Não se trata apenas de uma superação da relação capitalista como tal, mas ao mesmo tempo da superação da "pré-história" em geral, isto é, da "pré-história" no sentido marxista, que inclui todas as formações sociais até hoje,

inclusive a nossa. O marxismo já tivera certa noção disso com base nesta declaração de Marx, porém resvalou para um conceito subjetivo e sociologista de dominação, com o que a formulação do problema permaneceu forçada e insatisfatória.

A "classe trabalhadora" deveria superar não só a dominação da "burguesia", mas também a dominação em geral do homem sobre o homem. A autonegação deste programa mostrou-se por um lado no fato de a superação da pré-história ter de se dar sob o ditame do "trabalho" abstrato, ou seja, do "ponto de vista do trabalho" e de sua universalização - um programa que ainda não excede o horizonte do sistema produtor de mercadorias. De outro lado, porém, a superação da dominação (em conformidade com o ditame do "trabalho" abstrato) devia ser executada através justamente da "dominação da classe trabalhadora", o que conduziria no Leste e no Sul, sob os pressupostos da modernização tardia, à ditadura sobre a classe trabalhadora por uma burocracia representativa. No Ocidente, bem como em outras regiões do mundo, o desenvolvimento ainda não se achava maduro para a superação da constituição do fetiche, da forma-mercadoria, do "poder" e da dominação. Tal situação correspondia à redução teórica do conceito de dominação e ao apego a ilusões iluministas.

Somente sob as condições atuais de uma crise objetivamente madura do sistema produtor de mercadorias globalizado, que fez da transição para um segundo barbarismo uma ameaça direta, o conceito de dominação pode (e deve, sob pena de colapso) não apenas ser avançado, mas também efetivamente posto na ordem do dia como objeto de superação, o que implica ao mesmo tempo a superação da pré-história. Ironicamente, isso significa a superação do próprio marxismo, ao passo que agora só os momentos renegados da teoria de Marx (e não desenvolvidos coerentemente pelo próprio Marx) podem tornar-se relevantes em termos práticos e, portanto, teóricos. (49)

Isto significa também que a superação da pré-história deve ser teoricamente concretizada. Desse ponto de vista, podem ser

destrinchadas algumas dificuldades não somente da filosofia da história, mas também da maioria das concepções teóricas modernas. O problema central está na ontologização. Em todos os projetos sociológicos, o momento a-histórico que se repete com grande obstinação e, como foi mostrado, comparece tanto em Rousseau e Kant quanto na psicanálise e nas concepções mais recentes do estruturalismo e da teoria dos sistemas ( e que também está contido na ontologia do trabalho de Marx), obtém sua justificação relativa através do enorme quadro histórico da "história das relações fetichistas" comum a todas as formações sociais até hoje. Num plano teórico e elevado de abstração, sempre voltam a aparecer necessariamente determinados problemas que se ligam em parte à atual história humana (e sob influxo portanto das formações pré-históricas dificilmente reconstituíveis, que de maneira alguma podem ser equiparadas aos "povos selvagens" ainda existentes na modernidade ), e em parte à história das culturas elevadas (criadoras do mais-produto ), do reino egípcio ou formas análogas até o sistema capitalista mundial de hoje.

Enquanto o horizonte da pré-história no sentido marxista não for ultrapassado, persistirá neste contexto do desenvolvimento humano a formulação de ontologias ou pseudo-ontologias. Tal é por exemplo a "relação sujeito-objeto" em face da natureza - ainda que ela se manifeste em graus e formações extremamente diversos - para toda a transformação humana. Tal é também o "trabalho", ao menos para a história das civilizações produtoras de mais-produto. (50) A predisposição ontológica das categorias básicas da existência humana extingue-se, porém quando (e na medida em que) o horizonte da constituição do fetiche é ultrapassado. Dito de modo enfático: estaríamos às voltas com um segundo "despertar da humanidade", comparável apenas à diferenciação do homem em relação à mera constituição biológica (animalesca). A superação da segunda natureza possui o mesmo alcance que a superação da primeira natureza. "Superação" refere-se obviamente ao plano da ação e da consciência, e não ao vínculo biológico e fisiológico do homem à natureza. Do mesmo modo que a história da pré-história iniciou com a marcha extremamente longa após a diferenciação em face do mundo animal, assim também inicia com o colapso do sistema produtor de

mercadorias e da diferenciação em face da constituição do fetiche a longa marcha de uma "segunda história". Da mesma maneira que o substrato animal na "primeira história" (a história da primeira natureza) não desaparece simplesmente, e aliás jamais desaparecerá por completo, assim também o substrato secundário da constituição do fetiche na "segunda história" não desaparece sem deixar traços, mas continuará a atuar como momento sedimentado, a exemplo da primeira natureza. Mas superação significa também eliminação e supressão, um "libertar-se" - e nesse sentido a ontologia atual será superada. Esta ideia tem de tomar a dianteira na vanguarda da superação.

Mas é bom lembrar: a diferenciação em face da segunda natureza contém uma diversidade fundamental em relação à diferenciação em face da primeira natureza. De fato, ela não pode mais ocorrer pelas costas dos homens como concentração reguladora de efeitos secundários imprevistos. O segundo homem, ao contrário do primeiro, não pode "surgir", porém tem de criar a si mesmo de forma consciente. Ele tem de ganhar consciência de sua própria sociabilidade, da mesma maneira que na primeira história constitutiva ganhara crescente consciência em face da primeira natureza. Consciência, é claro, de uma ordem diversa e mais elevada, pois consciência como autoconsciência é algo fundamentalmente diverso do simples controle ou "dominação" em face de coisas naturais. Como a relativa consciência em face da primeira natureza fora comprada com a constituição do fetiche da segunda natureza, a sua inconsciência retroagiu também sobre a relação consciente do sujeito em face da natureza-objeto. Hoje a própria relação social "tem de atravessar pela cabeça", e é impossível que isso seja a repetição mecânica da transformação do sujeito em face da primeira natureza. A autoconsciência social modificará, portanto, fundamentalmente a própria relação com a natureza, sendo que "cabeça" aqui não deve ser entendido como oposto de "barriga" ou sentimento, mas como consciência em que se inclui o plano dos sentidos.

Será mesmo possível a segunda constituição do homem? Na abstração histórico-filosófica, a tarefa parece gigantesca e quase insolúvel. Mas

do mesmo modo que, com toda verossimilhança, a diferenciação em face da primeira natureza seria representável com base nos primeiros passos isolados e talvez pareça mesmo espantosamente fácil (por exemplo como o jogo "imitativo", prenhe de símbolos e abstração, com os elementos comunicativos, como supõe Lewis Mumford) (51), assim também a diferenciação em face da segunda natureza será representável em passos ou em tarefas realizáveis no plano da vida social. Serão as próprias e tangíveis potencialidades humanas e sociais (conhecimento natural e social, reflexão, comunicação em rede ), sob o manto da última e mais elevada constituição do fetiche do sistema produtor de mercadorias, que possibilitará e até mesmo sugerirá o passo para além da segunda natureza.

Esse passo não é, porém, uma simples possibilidade de escolha que pode ser abandonada. A crise criada inconscientemente pela segunda natureza exerce uma pressão cada vez maior para que se ouse dar um salto aparentemente arriscado. De fato, o risco de continuar a viver sob o ditame formal da segunda natureza já começa a exceder, sob nossos olhos, o risco do salto para além da segunda natureza. Eis a ironia da constituição humana: o problema da segunda transformação do homem ainda se cruza forçosamente com as relações coativas da primeira. O homem inconsciente de si próprio, pela própria forma de consciência e reprodução inconscientemente constituída, força a si mesmo a abandonar e superar sua própria inconsciência. Talvez essa constatação seja melhor compreendida como a decifração daquilo que Hegel denominou ainda criticamente de "astúcia da razão".

Mas obviamente não há garantia alguma de que a superação tenha sucesso. O salto pode não ocorrer, vir muito tarde, ser muito curto, errar o alvo. O ser humano pode também destruir a si próprio, e o sistema produtor de mercadorias e a relação capitalista dispõe em seu arsenal de todos os meios para tanto e desenvolve todas as tendências nessa direção. Os chamados conservadores, cujas fileiras são cada vez mais engrossadas por velhos críticos sociais (apegados a velhos padrões de conflito), são hoje conservadores justamente em relação ao caráter absurdo e autodestrutivo da sociedade de mercado total, e por isso não

são mais "mantenedores", mas enfermos sacerdotes da aniquilação. Talvez esta aniquilação não seja necessariamente tão absoluta e física como ainda se evocava nos apocalipses atômicos, embora também esta versão não deva ser de todo descartada. Mas ainda mais perverso e cruel seria transitar do sistema produtor de mercadorias para a segunda barbárie, como hoje já se pode observar em muitos fenômenos.

Barbárie é obviamente uma metáfora para um acontecimento que ainda não dispõe de um conceito. O termo é de origem eurocêntrica e foi reiteradamente utilizado no contexto de denúncias europeias de sociedades não-europeias e pré-modernas. Tratava-se, nesse sentido, da destruição de outras culturas. Agora, porém esse conceito deve ser aplicado à própria formação - nascida em solo europeu - do sistema produtor de mercadorias, e nesse contexto sua aplicação pode ser justificada. Apesar de sua aparente superioridade, a sociedade ocidental liberou desde seus surtos históricos de afirmação potenciais inéditos de barbarismo: da Guerra dos Trinta Anos, passando pela história do colonialismo e da acumulação primitiva até chegar à época das Grandes Guerras e às destruições atuais no terreno social e ecológico, estende-se pela modernização um vestígio de barbárie, sempre compensado ou mesmo temporalmente alternado por conquistas civilizatórias. Esse caráter bifronte da modernidade ocidental chega hoje a seu fim. Os próprios momentos civilizatórios transformam-se em seu contrário e tornam-se momentos da segunda barbárie. Liberdade e igualdade, democracia e direitos humanos começam a acusar os mesmos traços de desumanização do sistema de mercado que lhe serve de base.

O motivo para tanto está na qualidade peculiar e insidiosa da constituição secularizada do fetiche da forma-mercadoria. A formamercadoria como forma universal da consciência, do sujeito e da reprodução realmente ampliou, por um lado, o espaço da subjetividade para além de todas as formas pré-modernas, mas, por outro, incutiu precisamente por isso em seu caráter inquebrantável como formafetiche inconsciente uma liberação cultural que agora, com sua totalização espacial e social no globo, libertou definitivamente o

momento monstruoso sempre latente nessa constituição e temporariamente manifesto em suas crises de afirmação. Tal monstruosidade reside na abstração sem conteúdo do fetiche da formamercadoria, manifesta como total indiferença da reprodução por todo conteúdo sensível e como igual indiferença mútua de homens abstratamente individualizados. Ao termo de seu desenvolvimento e de sua história de afirmação, a forma-mercadoria total produz seres desumanizados e abstratos, que ameaçam regredir a um estágio préanimalesco. A liberação em face da primeira natureza persiste, porém, a constituição última e superior do fetiche da forma-mercadoria universal ameaça produzir em seu colapso objetivado um desprezo às regras, ao mundo e ao homem sem norte. A liberação em face da segunda natureza pode ocorrer também em termos negativos, como libertação cega e suicida, que resulta da crescente capacidade de reprodução do regimento da sociedade mercantil. O ser duplamente liberado e sem as correntes da primeira e da segunda natureza, embora permaneça cego em sua inconsciência própria, assumirá forçosamente traços perversos e repugnantes, para os quais não servirá mais a comparação com o mundo animal. Os prenúncios desse colapso cultural já são mundialmente visíveis, e não por acaso se manifestam sobretudo como negligência moral e cultural de um número crescente de jovens. A consciência conservadora do fetiche, inclusive a chamada "esquerda", não quer admitir tal potencialidade social destrutiva de sua própria forma de consciência e reprodução, e fracassa em sua débil e hipócrita campanha ética, que visa a manter intocado o momento constitutivo central da barbárie, ou seja, a própria forma social da mercadoria. Com isso, a questão decisiva ainda resta em aberto ao final da modernidade, mas as constrições próprias à crise e ao colapso crescem constantemente.

12.

A crítica fundamental da dominação aparece também como "radical" em sua nova figura meta-reflexiva de uma crítica da dominação sem sujeito. E isso com razão, pois, como se sabe, a radicalidade denota um procedimento que desce "às raízes". Não se confundindo tal

procedimento com uma ideologia militante raivosa (ou heroicoexistencialista), que precisamente não alcança as raízes das relações, a crítica radical deverá ser exigida com maior razão sob as novas premissas. No entanto, essa nova radicalidade não há de ser apartada criticamente apenas das ideias sobre um procedimento "radical" que se prendem à lógica imanente (e constituída pelo fetiche) do "ponto de vista do trabalho" e da "luta de classes", mas igualmente também das ideias sobre o objetivo social do radicalismo crítico até hoje.

A meta transcendente tanto das concepções utópicas quanto das marxistas foi sempre a (suposta) superação da moderna relação capitalista por intermédio de uma outra forma universal e abstrata de reprodução social. Ou melhor, isso foi um axioma bastante óbvio da crítica social, uma suposição implícita que não era tematizada explicitamente, pois o problema essencial da forma da constituição universal do fetiche ainda não fora alçado ao contexto reflexivo do pensamento crítico. Muito se especulou sobre a forma almejada de uma sociedade solidária, "justa", etc. para além do capitalismo; todas as tentativas, porém, reproduziam de algum modo a universalidade abstrata da forma-mercadoria, seja como relações de troca e produção "empresariais" ou análogas ao mercado - relações estas pensadas como "naturais" - , seja explicitamente como a produção alternativa (ou alternativamente regulada) de mercadorias. A meta de uma forma alternativa, abstrata e universal (além de supostamente superadora) que vigoraria então - em aparente oposição à forma capitalista - para todos os membros da sociedade e para todos os momentos da reprodução social, implicava logicamente a ameaça de ditadura, não importa com que fundamentos ou justificativas. (52)

Sob as premissas da crítica do fetichismo e da superação da segunda natureza, o problema tem de ser formulado de modo totalmente diverso e surpreendente para o pensamento imanente. De fato, agora não se trata mais da "instalação" de uma nova forma abstrata e universal, mas antes da superação da forma social abstrata em geral. Isso não significa obviamente que não haja mais instituições sociais e que a sociedade se reproduza arbitrariamente no sentido de uma contingência caótica. A

consciência moderna constituída pela forma imagina espontaneamente a superação da "forma em geral". Deve-se lamentar, porém que a "forma", no interior da segunda natureza, é a (respectiva) forma de consciência e reprodução universal inconsciente de si mesma, sobre a qual a consciência aparente do ego e, portanto, todas as instituições sociais não têm poder algum. Nesse sentido, a forma codifica todas as ações e impõe a cega "normatividade" da (respectiva) segunda natureza. A superação da segunda natureza é com isso necessariamente a superação dessa forma ou, nos termos da abstração teórica, a superação da "forma social em geral".

Pois quando a consciência e a ação prática e social não se submetem mais a uma forma inconsciente à consciência e à sua normatividade objetivada, não poderá mais surgir nesse plano uma nova determinação formal. (53) O que até então seguia um cego mecanismo normativo deve ser transposto à "consciência consciente" dos homens - à autoconsciência. Essa transformação é talvez mais facilmente imaginável com base naqueles momentos da reprodução social que até agora receberam o nome de "economia". (54) A crise socioecológica no campo negativo e o pensamento em rede no campo positivo sugerem que não se dê mais livre curso às intervenções na natureza e na sociedade segundo um princípio universalmente válido (formadinheiro, "rentabilidade"), mas que antes elas sejam selecionadas de acordo com critérios sociais e ecológicos, em vista do conteúdo sensível da intervenção e de seu alcance. Uma tal diferenciação, que se tomou inevitável sob pena da crescente ameaça de catástrofe, só pode, contudo, ser efetuada praticamente por meio de uma vinculação direta entre os processos de decisão social e o conteúdo sensível da reprodução, e não mais codificados e filtrados por uma forma inconsciente. Para um tal processo de decisão é preciso naturalmente instituições (“conselhos”, “mesas redondas”, ou seja, lá o nome que for), organizados como um conjunto em rede e (pelo menos na época do processo social de transformação para além da forma-mercadoria) responsáveis por certos critérios de decisão. No futuro, só cum grano salis se poderia falar assim de um "contrato social", embora o próprio conceito de "contrato" faça parte da forma jurídica (55), e, portanto, do mundo da mercadoria.

É interessante notar que as condições globais de desenvolvimento no final do século XX simplesmente não permitem mais submeter todos os ramos de reprodução e todas as regiões, todos os vínculos e todas as relações a um único e mesmo princípio cegamente formal. "Imaginar" e pôr dogmaticamente em prática social, segundo um único critério formal (como o exige a constituição universal do fetiche), o turismo e a produção de maçãs, a construção civil e a enfermagem, o destino do lixo e autoestima pessoal, a pintura de quadros e o jogo de futebol é uma loucura consumada. No lugar da forma de consciência e reprodução universal (válida para todos e para cada um), pela qual o homem "é socialmente feito" mas que se situa fora do alcance de sua consciência e portanto de seu controle, tem de surgir uma "deliberação" consciente e uma conduta organizada, tratadas de acordo com as necessidades materiais e sensíveis do turismo, da enfermagem, da produção de maçãs, etc. Não haverá mais um "princípio" universal (rentabilidade, "capacidade de exposição" na forma-fetiche dinheiro) que guiará de maneira independente da consciência o emprego dos recursos sociais.

De modo geral, pode-se dizer que o que até agora foi forma inconsciente da sociabilidade terá de ser extinto e substituído pela comunicação direta entre os homens, numa forma muito mais organizada e ligada em rede. A "forma" inconscientemente reguladora será substituída pela "ação comunicativa" (Habermas) dos homens, que refletirão conscientemente sua própria sociabilidade e as suas ações sociais, organizando-as com base nisso. Se nos valermos mais uma vez da analogia da primeira e segunda natureza, a transformação seria idêntica à superação do "instinto" no plano da segunda natureza. Na "pré-história" que dura até hoje, a liberação em face dos instintos animais foi comprada com a formação de instintos secundários (não menos inconscientes) que pairam sobre o código simbólico da segunda natureza. A ação social não é assim primariamente comunicativa, mas segue os pseudoinstintos produzidos pela constituição do fetiche. Porém a subjetividade, em relação à primeira natureza, desencadeou nesse meio tempo potencialidades que, com o posterior governo dos quase-instintos da segunda natureza, ameaçam conduzir a humanidade ao conhecido destino dos lemingues. A "autopoiesis" do sistema

produtor de mercadorias é o programa letal da humanidade globalizada. O que parece suicídio coletivo nada mais é do que o cego império dos instintos reguladores, que sob condições diversas conduzem à perdição.

Há muito se acham presentes os comportamentos, as concepções, percepções e ideias, do sistema de transportes ao acondicionamento do lixo, que nos ramos sociais de produção levam em conta as exigências materiais e sensíveis do atual nível de sociabilização e desenvolvimento produtivo. Ora, de modo aparentemente incompreensível, as percepções compartilhadas por quase todos não podem ser convertidas em ações, uma vez que a forma universal inconsciente, ao impor a "autopoiesis" do sistema, prolonga a sua sobrevida fantasmagórica e impede os homens de agirem conforme suas percepções. A própria forma de consciência cai em contradição com os conteúdos da consciência.

Mas a completude da constituição do fetiche não é de modo algum absoluta. Os conteúdos e as percepções de todas as esferas do pensamento e da ação estão muito próximos dos limites da inconsciência formal para que a contradição entre forma e conteúdo da consciência possa continuar ofuscada para a própria consciência. Isso não se revela apenas na consciência socioecológica da crise. Também no tocante às "províncias freudianas" ocorreu uma alteração. Os mecanismos do inconsciente e de sua reflexão (por exemplo os conceitos de "repressão" e de "projeção") passam da ciência à consciência geral, ainda que muitas vezes numa forma diluída e vulgarizada. O homem mediano atual não pode comportar-se para consigo mesmo de modo tão ingênuo e imediato como há algumas gerações. Esboça-se assim uma perspectiva na qual o "inconsciente" é extinto pouco a pouco (embora de modo contraditório e hoje ainda instrumental) e tem início um processo em que as "províncias" psíquicas ocultas do id são trazidas à luz da consciência aparente. Inversamente, o próprio superego começa a perder sua autonomia. Também para a consciência cotidiana toma-se cada vez menos aceitável a cega orientação segundo padrões preconcebidos e

inculcados desde a infância. As normas morais, políticas e culturais têm de ser provadas e analisadas em seu alcance e plausibilidade. Some tendencialmente o antigo superego automático (56). Até mesmo a língua como sistema regulador não está mais imune à reflexão. A crítica da linguagem realizada por feministas e a implementação consciente de novas regras linguísticas, com as quais os códigos "masculinos" serão desativados, não é de modo algum tão tolo quanto gostariam de supor alguns monopolistas (masculinos) da língua e da teoria. Antes, esse processo indica o início de um processo no qual "o homem não será mais falado", mas tomará iniciativa consciente em seu desenvolvimento linguístico (e não simplesmente assentirá aprés coup e de modo inconsciente às alterações executadas). O mesmo vale para a crítica das demais regras linguísticas (as racistas, por exemplo).

Contudo, por mais que a reflexão esteja perto da constituição do fetiche, a transformação necessária, com a qual a segunda natureza será superada, ainda não encontrou nenhum princípio decisivo. A questão de um "movimento de superação" ainda não está clara, pois as forças sociais ainda não estão formadas para tanto; em vez disso, as soluções continuam a ser buscadas dentro da forma-mercadoria (do sistema Estado-mercado), e, portanto, no mesmo caminho dos lemingues. Na antiga constelação, este problema teria suscitado a questão do "sujeito revolucionário". A crítica do aforismo do sujeito iluminista é incontornável. Como não há um sujeito (social) a priori da formafetiche social e a essência da segunda natureza consiste justamente em sua constituição sem sujeito, a própria superação dessa constituição não pode ser sustentada por um sujeito a priori socialmente definido, no estilo da antiga concepção do sujeito "classes trabalhadoras". Todos os sujeitos sociais do sistema produtor de mercadorias são como tais "máscaras de caráteres" da forma-fetiche. Um momento de superação não pode, portanto, utilizar como rastilho um mau "interesse" imanente e a priori constituído pela forma, mas antes uma crítica da forma pressuposta de um interesse cego. Isso vale para "todos", e assim todos podem em princípio constituir e portar "todo" este movimento de superação. Um tal movimento não corre por pistas traçadas imanentemente, mas por brechas do sistema produtor de mercadorias e na resistência contra o processo de barbarismo. Seus

portadores não podem remeter-se a um apriorismo ontológico (ao "trabalho", por exemplo), mas somente a percepções parciais embora inevitáveis, nas quais a consciência rompe seu próprio cárcere formal. Desse modo, o conflito social não desaparece, mas é reformulado num outro plano. De fato, não se trata agora de um antagonismo cegamente constituído, no qual todo membro da sociedade já tem sua parcela designada pela constituição do fetiche antes mesmo de poder tomar uma decisão. Trata-se antes de um antagonismo no qual a crítica prática da forma-fetiche, de um lado, e o apego caturra à sua "normatividade" cada vez mais absurda, de outro (a consciência social superior, de um lado, e a consciência codificada do lemingue, de outro) encontram-se frente a frente.

A tentação é grande de chamar de "sujeito" o portador consciente de um movimento futuro de superação, mesmo que ele não possa mais ser um sujeito em "em si" preexistente e altivo diante de sua tarefa. Tratarse-ia então de um sujeito não-apriórico e autoconstitutivo naquele plano até agora ocupado pela forma sem sujeito e inconsciente. Mas o sujeito a priori (ou seja, constituído inconscientemente) a ser descartado é o sujeito em geral. Se o sujeito for desmascarado como um ator inconsciente de sua própria forma e que, na tarefa de pôr o mundo externo como objeto, objetiva-se a si mesmo e define-se estruturalmente como "masculino" e "branco", então a consciência da ação e percepção para além da segunda natureza não pode mais tomar a forma da subjetividade no sentido atual, perdendo assim sua conotação positiva e enfática. A metaconsciência para além da segunda natureza não é mais uma "subjetividade". Para a consciência imanente, de um modo paradoxal e provocativo, a tarefa histórica resume-se à seguinte fórmula lapidar: a revolução contra a constituição do fetiche é idêntica à superação do sujeito.

NOTAS

(1) Não deixa de ser interessante que o egoísmo utilitário seja afirmado com sinais trocados também pelos adversários do marxismo. Especialmente os

ideólogos liberais e neoliberais voltados radicalmente ao mercado tomam como evidente que, a "nós homens", seja "congênito" um egoísmo axiomático: e desde a "fábula das abelhas" (1705) de Bernard de Mandeville e da .'invisible hand" na teoria de Adam Smith (1776), a soma social do egoísmo de utilidade privada equivale ao bem-estar público ou "bem geral".

(2) Josef Esser, Gewerkschaften in der Krise, Frankfurt, 1982, p. 226.

(3) MSZ 4/91 (última edição), "Der Fall MG", p. 8.

(4) Fação do Partido Verde alemão [N. do T.]

(5) Verfassungsschutz, no original. Repartição federal subordinada ao Ministério do Interior e incumbida de evitar ou pôr cobro às assim julgadas ofensas à Constituição da República. [N.T.]

(6) "Der Aufbau des Kapital" (I). In: Resultate der Arbeitskonferenz, n° 1, Munique, 1974, p. 73.

(7) Robert Michels, Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie, 1911.

(8) Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen, 1972, p. 571 (1ª edição de 1922).

(9) Leon Trotsky. Die verratene Revolution, 1936, p. 242.

(10) Isso vale também para todos os esforços posteriores, como por exemplo as análises de Ernst Mandel, que jamais se livrou das limitações teóricas de seu "mestre".

(11) Max Horkheimer, Autoritärer Staat, escrito no início de 1940, Frankfurt, 1968, p. 35.

(12) Uma sinopse da gênese e da irradiação teóricas é oferecida por Günther Schiwy, Der franzosische Strukturalismus, Reinbek, 1969.

(13) Michel Foucault, Von der Subversion des Wissens, Frankfurt, 1987, p. 14 s, (trata-se de uma citação de uma entrevista concedida a Paolo Caruso em 1969).

(14) Foucault numa entrevista de maio de 1966, citado por Schiwy, op. cit., p. 204.

(15) O fato de Parsons ter sido aluno de Max Weber e ter desenvolvido a teoria deste último no meio positivista e pragmático do pensamento anglosaxão revela as mediações e os vínculos subcutâneos no processo imanente de destruição do ideário iluminista ocidental e aponta para o conceito de dominação sem sujeito.

(16) Niklas Luhmann, Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie, Frankfurt, 1991, 4ª edição, p. 51.

(17) Luhmann. op. cit. p. 234.

(18) "Enquanto a teoria, no que se refere a conceitos e declarações de conteúdo, escreveu-se como por si mesma, problemas de construção custaram-me muito tempo e reflexão", revela Luhmann no prefácio a seu livro Soziale Systeme (op. cit., p. 14).

(19) Luhmann, op. cit, p. 33.

(20) Cf. Louis Althusser, Elemente der Selbstkritik, Berlim, 1975.

(21) Louis Althusser, Für Marx, Frankfurt, 1974, p. 11.

(22) Louis Althusser, Lenin und die Philosophie, Reinbck, 1974, p. 65 ss. (grifos de Althusser).

(23) Günther Schiwy, op. cit, p. 76 s.

(24) Valeria pesquisar em que medida semelhante concepção em última instância plenamente "determinista" do Capital já se achava (embora sem a formulação metódica ou metateórica) na velha socialdemocracia; em que medida, portanto, Althusser não teria apenas elevado a um conceito sistemático a concepção marxista do antigo movimento operário.

(25) Cf. Jürgen Habermas / Niklas Luhmann, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Was leistet die Systemforschung, Frankfurt, 1971.

(26) Cf. Louis Althusser, Elemente der Selbstkritik, op. cit., p. 63

(27) Helmut Willke, Systemtheorie, Stuttgart/Nova Iorque, 1982, p. 10.

(28) No entanto, também Comte - que considera a biologia como "ciência básica", da qual a ciência social terá de "crescer" - fala que a tarefa da biologia das relações do órgão ativo num determinado ambiente (cf. Auguste Comte. Die Soziologie. Die positive Philosophie im Auszug, Leipzig, 1933, p. 31).

(29) Que a secularização do fetiche não deva ser necessariamente equiparada a uma forma "mais elevada" de consciência revela-se como notável ironia. Pois na mesma medida em que a suposta "crença religiosa" dá lugar ao Iluminismo, que aliás não se ilumina a si mesmo, desaparece também a consciência da sujeição externa do homem. Se de um lado o sujeito do Iluminismo imagina que suas ações são decompostas em termos teóricos subjetivos e voluntaristas (e portanto não percebe sequer indiretamente ou fantasticamente transfigurada a sua própria determinação fetichista da forma), os homens prémodernos, por sua vez, pelo menos sabiam que suas ações como caudilhos, príncipes e reis não era "autodeterminada", mas antes cego instrumento de "poderes celestes".

(30) Os axiomas e códigos sociais são então definidos como natureza, isto é, a primeira e a segunda natureza são equiparadas, a exemplo do que aparece como ontologização na teoria dos sistemas. Porém a natureza é justamente objeto pelo fato de ser reconhecida em sua insuperável "normalidade natural" sem sujeito. O que se vê rebaixado a objeto é inapreensível também como não-sujeito, já que a sua "normatividade" como tal não é instrumentalizável, mas permanece pressuposta a toda instrumentalização. O pensamento instrumental pressupõe, portanto, a não instrumentalidade no plano do serobjeto.

(31) A consciência religiosa da pré-modernidade ainda não tem problemas com isso. O sujeito exterior como deus ou mundo divino, como mundo espiritual, e animação da natureza é uma obviedade. Mas exatamente por isso a própria subjetividade do homem é apenas embrionária e ainda não pode haver um conceito de sujeito no verdadeiro sentido, pois a própria natureza ainda não é objeto, ainda não é uma ausência de sujeito regular e calculável, mas se acha guiada por sujeitos ou é ela própria sujeito (expresso em termos modernos: no plano em que ele ainda não é formulável). A dissociação entre

sujeito e objeto ainda não ocorreu de modo consequente ou apenas em esboço, e a natureza se manifesta como tão incerta quanto os homens.

(32) A relação capitalista é o primeiro e único modo de produção dinâmico que se dinamiza a si mesmo e se transforma a partir de dentro. Nesse sentido, ele aponta para além de si mesmo e impele à autossuperação, além de conter em si toda a "pré-história" e ao mesmo tempo superá-la. Sociedades prémodernas e não-europeias, por sua vez, embora se desenvolvam, não dão ensejo a nenhuma dinâmica autodestrutiva nesse sentido.

(33) Desde modo, o problema é idêntico ao da modernidade e vem formulado nas categorias da modernidade. O moderno sistema produtor de mercadorias foi o primeiro a elaborar em forma pura o dualismo sujeito-objeto. Nas formações pré-modernas, o problema seria, como foi dito, informulável. Mas lá ele se encontra "latente", mesmo que não diferenciado. Talvez se possa dizer que o dualismo sujeito-objeto representa a determinação universal e abstrata do modo funcional da "segunda natureza" como um todo, mas que só na história da "segunda natureza" seria diferenciado, para então ganhar status de conhecimento na modernidade e assim ser formulado. (34) O momento histórico aparece então apenas como pré-histórico, isto é, como história da formação do homem em geral e da cultura em geral. No interior do ser humano completamente formado, entretanto, tem de ser suposta uma estrutura básica ontológica e a-histórica como relação entre "a estrutura do impulso e a sociedade" (Marcuse). Essa concepção não foi superada pelos seguidores de Freud, e em última instância tampouco pela teoria crítica, já que a "base natural" da "estrutura do impulso" permanece intocada como suposto ponto de partida inevitável.

(35). Sigmund Freud, Abriss der Psychoanalyse, Frankfurt, 1972, p. 9 ss.

(36) A total negação da base biológica é sem dúvida uma burrice teórica. A ampliação ideológica do alcance das determinações biológico-genéticas no campo social, pelo contrário, não é somente burra, mas também sangrenta em

suas consequências. Desde o século XIX, infletir fenômenos sociais a fim de tomá-los como determinações biológicas para a legitimação de massacres segregacionistas foi um instrumento do nacionalismo, do racismo e do machismo. Estas pseudoexplicações biológicas vieram à luz de forma mais ou menos grosseira, sobretudo no contexto das crises de afirmação do sistema produtor de mercadorias. Hoje também se pode prever essa conjuntura ideológica na crise mundial do sistema fetichista da forma-mercadoria. O sujeito-mercadoria não quer tomar conhecimento de sua própria crise formal, não quer tocar em sua "segunda natureza", e por isso tem novamente de lançar mão do regresso "científico" à base biológica. A reflexão crítica da sociedade nos anos 70, ainda que sociologicamente redutora, há de ser assimilada à ciência natural e à tecnologia social. Cientistas americanos dizem por exemplo ter descoberto que as pessoas de cor são de fato geneticamente mais propensas à criminalidade do que os brancos. Uma tal concepção, que anos atrás não teria suscitado mais que risos de escárnio, é posta novamente em debate com toda seriedade. E se Freud vincula esse conceito de inconsciente de modo relativamente imediato à estrutura biologicamente determinada, nesse meio tempo o próprio inconsciente foi negado como reino intermediário estruturado entre a base natural e a consciência superficial. O jornalista Dieter E. Zimmer é por exemplo na Alemanha um representante dessa regressão teórica que pretende infletir o problema da consciência diretamente para as ciências naturais (neurologia etc.) e seus métodos positivistas (cf. Dieter E. Zimmer, Tiefenschwindel. Die endlose und die beendbare Psychoanalyse, Reinbek, 1986).

(37) Sigmund Freud, Abriss der Psychoanalyse, Frankfurt, 1972, p. 10 ss.

(38) Mais tarde, Hegel reproduziu o princípio deste procedimento, embora lhe tenha historicizado a evolução, com o que perdeu parcialmente o ponto de partida crítico. Ou seja, ele expõe, na esteira crítica de Kant, a história e a fenomenologia da consciência, mas perde em boa parte a consciência problemática no tocante à forma.

(39) O problema está em que Marx, sem ainda dar-se conta, embaralha dois planos e concepções teóricas historicamente imiscíveis: ora a luta de interesses

interna ao capitalismo (i.e. luta de classes), que pode ser concebida como o motor da modernização pela forma-mercadoria, ora a crise e a crítica da própria forma-mercadoria (isto é, da constituição do fetiche), que só hoje ingressa no campo de visão como algo "além da luta de classes". Os marxistas dos movimentos operários e suas formas tardias, como o citado "Grupo Marxista", sempre puderam referir-se ao "primeiro Marx", mas por isso mesmo a problemática do "segundo Marx" teve de permanecer um livro fechado a sete chaves.

(40) Assim, só para citar um exemplo, na formação do moderno sistema produtor de mercadorias a reprodução e o convívio há muito não são regrados pelos códigos da consanguinidade; contudo, este código não desapareceu simplesmente sem deixar vestígio, mas atua desde o desvelo próprio ao moderno núcleo familiar até às formas jurídicas. Também nesse sentido podem ser constatados sedimentos arcaicos em diversos graus e deformações, o que sempre acarreta falsas ontologizações ou mesmo naturalismos.

(41) Para sociedades pré-modemas isso só vale na medida em que uma estrutura geral de sujeito-objeto esteja desenvolvida. (42) Os conceitos (próprios à teoria dos sistemas) de "autopoiesis" (autocriação ou autoprodução) e de "autorreferência" não assumem o ponto de vista do metaplano, pois, de acordo com este jargão, "autopoiético" e "autorreferente" não é o sujeito que é compreendido como simples erro, mas o sistema sem sujeito. Com isso a teoria dos sistemas só faz reproduzir a lógica dos sistemas sem sujeito, sem poder criticá-los. O fato de a própria consciência humana galgar este metaplano da "autopoiesis" e da "autorreferência" e poder assim superar a cegueira do sistema parece impossível aos teóricos afirmativos do sistema ou nem mesmo chega a ser tomado em consideração. Aliás, é sintomático que o conceito de "autopoiesis" tenha sido introduzido pelo biólogo Humberto Maturana no plano das ciências naturais e reinterpretado sem modificações por (entre outros) Niklas Luhmann no campo das ciências sociais.

(43) A "impureza" da imaturidade do dualismo sujeito-objeto no passado prémodemo é uma eterna fonte sedutora para que se resolvam as dores e a crise desta cisão em termos passadistas e se suponham nas sociedades prémodernas (em especial nos chamados povos selvagens) uma almejada relação puramente simpática com a natureza. Esse romantismo não vê que a dicotomia sujeito-objeto não estava inteiramente ausente nas formações primitivas, embora fosse muito menos diferenciada. O homem primitivo era menos capaz de perceber-se separado de seu ambiente do que o homem moderno, e por isso era incapaz de perceber seus objetos como separados de determinadas situações ou constelações, ou seja, sua capacidade de abstração era (e hoje ainda é em muitas regiões do mundo e em certas populações) menos desenvolvida. Essa deficiência na capacidade de diferenciação é, entretanto absolutamente o inverso da capacidade de galgar àquele metaplano a partir do qual a dicotomia sujeito-objeto pode ser superada e todo o complexo, percebido conscientemente. Estamos, portanto, menos às voltas com um crescente "não-mais" do que antes com um decrescente "ainda-não" (Bloch), até que se atinja o limiar cuja transposição significa a superação da constituição em geral do fetiche. O menor grau de desenvolvimento da dicotomia sujeito-objeto implica obviamente, porém mais inconsciência nas relações natural e social. O que parece uma relação simpática é na verdade uma ação constituída pelo fetiche. Com isso, de modo algum está excluído o fato de que, com o desenvolvimento da capacidade de abstração, se percam também os marcos e as habilidades do saber. (44) Niklas Luhmann, Archimedes und wir, (Coletânea de entrevistas), Berlim, 1987, p. 164.

(45) De certo modo, pode-se até dizer que neste ponto Luhmann volta a ser hegeliano. Para Hegel, de fato, a "superação" não ocorre na prática, mas simplesmente na cabeça do observador cognitivo. A história como o tornar-asi do espírito universal tem, portanto, de acabar no conceito imanente, de modo que Hegel, com toda inocência, pode dizer que o conjunto da filosofia termina com ele e a práxis, com o Estado prussiano. Implicitamente, também Luhmann ergue esta pretensão (ainda que de modo aparentemente mais modesto) para um determinado plano cognitivo da funcionalidade sistêmica. À diferença de Hegel e na esteira da tradição positivista, o "sentido" e a história se acham eliminados para Luhmann (ou rebaixados a meros objetos de uma meta-reflexão funcionalista). Ele se compatibiliza assim com o Fim da

história de Fukuyama, justamente pelo fato de que ele, na teoria, não insiste de forma enfática e "plena de sentido" na democracia e na economia de mercado, mas antes aceita com fina ironia o vazio funcionalista de sentido nas instituições ocidentais.

(46) Não por acaso Luhmann tenta redefinir o conceito de contradição sistêmica na sociedade para torná-lo inofensivo, ao referir-se por exemplo à contradição entre o conceito lógico e o tradicional (ou sociológico) de contradição e dizer que, no sentido lógico, nem a concorrência nem o antagonismo entre "capital" e "trabalho" é uma contradição ( cf. Niklas Luhmann), Soziale Systeme. Grundrisse einer allgemeinen Theorie, Frankfurt, 1987, p. 488 ss.). Mas com isso ele apenas destrói a ideologia imanente do sujeito, sem, contudo, libertar-se dela. De fato, no metaplano da "autorreferência sistêmica" (à diferença da contradição de classes imanente e funcional ao sistema) pode-se perfeitamente formular uma autocontradição lógica e prática não mais "diferenciada" da relação capitalista, a saber, a autodestruição do "valor" pelo cego processo sistêmico da concorrência e da cientificização - processo este que, sem sujeito usurpador ou justamente como "sujeito automático", conduz ao colapso histórico e à necessidade da autossuperação prática do sistema (refletida fenomenologicamente em termos redutores no discurso da "crise da sociedade do trabalho"). Toda a força de Luhmnann reside apenas no fato de utilizar a contradição social imanente ao capital como saco de pancada e querer com isso torcer o conceito de contradição sistêmica para o plano da sociabilidade em geral como simples "forma de autorreferência especifica e imanente" na funcionalidade do sistema.

(47) Faço referência aqui, em forma resumida, ao "teorema da cisão" de Roswitha Scholz. Cf. em pormenores Roswitha Scholz, Der Wert ist der Mann. Thesen zu Wertvergesellschaftung und Geschlechterverhältnis. In: Krisis, 12, Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft, Bad Honnef, 1992, pp. 19-52). Tradução portuguesa de José Marcos Macedo, O Valor é o Homem. Teses Sobre a Socialização pelo Valor e a Relação entre os Sexos, publicada em S. Paulo, NOVOS ESTUDOS – CEBRAP, Nº. 45 - Julho de 1996, pp. 15-36

(48) Isso não significa de modo algum que as mulheres empíricas não possam ocupar a posição de sujeito: no entanto, elas têm de assumir traços estruturalmente "masculinos", o que por sua vez leva a conflitos com o papel atribuído às mulheres. Tal contradição agrava-se hoje de maneira particularmente explosiva - junto com a relação sujeito-objeto em geral - na crise do evoluidíssimo sistema fetichista da moderna produção de mercadorias.

(49) Isso pode perfeitamente ser entendido como uma nova "revisão" da teoria de Marx, embora como uma revisão diametralmente oposta àquela do início do século XX. Se então o revisionismo bernsteiniano e o reformismo sindical refletem ainda a imanência capitalista do movimento operário e suas tarefas dentro de um campo de forças ascendente na produção de mercadorias, hoje a crítica da forma-mercadoria tornada insustentável tem não apenas de ser formulada de forma mais concreta do que em Marx, mas também ser desvinculada como crítica da dominação sem sujeito, ao paradigma do "ponto de vista do trabalhador" ou "da classe". Ambas as "revisões" espelham tanto o nível diferenciado de desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias quanto a contradição e o patamar duplo da teoria de Marx, que em conformidade à sua posição história contém em si um e outro momento: de um lado a tarefa imanente de modernização e de outro lado a crise e a crítica ao término do processo de modernização.

(50) À diferença de uma relação sujeito-objeto sempre embrionária com os objetos naturais, o "trabalho" não deve ser tido como conceito ontológico para todo o processo de transformação humana até hoje. Só nas culturas elevadas o "trabalho" foi diferenciado como esfera particular (na figura de uma "abstração real" sustentada pelos escravos), e só no sistema produtor de mercadorias da modernidade essa abstração real ganha uma universalização e torna-se o momento central da constituição do fetiche.

(51) A concentração do jogo em ritual poderia assim ter cumprido um papel decisivo na constituição da segunda natureza. Cf. Lewis Mumford, Mythos der Maschine, Frankfurt, 1977. Embora o projeto de Murnford seja criticável em muitos aspectos, esta ideia tem mais fôlego sob o aspecto (não tematizado

pelo próprio Mumford) da constituição do fetiche e da segunda natureza que o projeto "materialista" e calcado na ontologia do trabalho do marxismo, ao qual (por exemplo em Engels) escapa totalmente o problema do fetiche e da forma da consciência.

(52) O pensamento utópico manteve-se sempre compatível com a história de afirmação da forma-mercadoria total e com suas formas ditatoriais, ainda que não fosse por elas absorvido. Assim, o marxismo tornou-se a ideologia de legitimação das formas de uma modernização tardia no horizonte de uma sociabilização pela forma-mercadoria. Da mesma maneira que o problema da forma abstrata e universal gerou sempre novas roupagens do sistema produtor de mercadorias, assim também o problema de sua implementação forçada gerou sempre novas alusões à ditadura, que apontam para o caráter compulsório da constituição irrefletida do fetiche. O liberalismo e a sua crítica da dominação referem-se a uma total internalização das exigências da formamercadoria, isto é, à dominação sem sujeito (hoje empreendida e realizada) da forma-mercadoria total, que é pressuposta cegamente como "sistema de regras do jogo" e - num tipo ideal - não necessita mais de nenhum poder coativo externo. Nesse sentido, o liberalismo representa a mais abjeta legitimação da chamada "ditadura das necessidades", que sempre contém o momento da dominação sem sujeito e faz parte do mesmo continuum histórico que o utopismo e o marxismo.

(53) Foi Rosa Luxemburgo quem, depois de Marx, formulou e postulou pela primeira vez para no âmbito da economia política a ideia de que uma sociedade pós-capitalista não poderia mais ter "uma economia política". Obviamente, ela logo foi espinafrada pelos marxistas oficiais, pois o marxismo sempre pensou "no interior" das categorias da economia política do moderno capitalismo e nunca "contra" elas.

(54) A superação da forma-mercadoria não é um simples procedimento interno à "economia", mas antes a superação da forma universal de consciência e reprodução. A concretização da ideia de Rosa Luxemburgo significaria assim que, junto com a "economia política", seria superada também a separação social entre as esferas. De fato, o sistema produtor de

mercadorias foi o primeiro a diferenciar a sociedade em esferas opostas e autônomas entre si ou em "subsistemas" (no jargão da teoria dos sistemas) do tipo política e economia, trabalho e tempo livre, ciência e arte, etc., reunidos pela totalidade da forma fetiche na figura da consciência constituída pela forma-mercadoria.

(55) A forma jurídica é um momento derivado da forma-mercadoria e faz parte do contexto geral funcional da constituição do fetiche. Na forma do direito (ou em suas formas básicas e embrionárias nas sociedades prémodernas), os homens relacionam-se diretamente entre si apenas de modo secundário, ou seja, em relações internas ao contexto já constituído pelo fetiche, que são meras relações interativas e conflituosas de "máscaras de caráter" (Marx) cegamente confeccionadas. As leis e decretos isolados são "feitos" por sujeitos humanos (instituições), mas não a forma jurídica como tal, que se impõe inapelavelmente como momento da forma-mercadoria e situa-se "para além" do "livre arbítrio" por ela constituído, como Kant foi o primeiro a notar. Isso já basta para mostrar que o lema dos "direitos humanos" não tem mais nada de libertário, pois só serve para obscurecer o verdadeiro problema (da própria constituição do fetiche). (56) Sem dúvida, tal desenvolvimento é particularmente perigoso na crise da insuperada sociedade mercantil e ameaça tornar-se um momento de barbárie. De fato, enquanto a progressiva extinção do superego não for acompanhada pela simultânea construção de uma estrutura de ação e reprodução comunicativa, não pautada pela forma-mercadoria, ela conduzirá apenas à liberação do sujeito-mercadoria e dos potenciais destrutivos. Essa tendência já ensejou uma crítica retrógrada que deseja reviver novamente (e talvez pela última vez) os "valores" conservadores da velha burguesia (do "amor à pátria" e da "obediência aos pais e professores" até à ética dos trabalho) e portanto a antiga estrutura do superego - um esforço tão inútil quanto absurdo e reacionário.

Original Subjektlose Herrschaft. Zur Aufhebung einer verkürzten Gesellschaftskritik em www.exit-online.org. Publicado na Revista Krisis, nº 13, 1993. Versão portuguesa difundida no Seminário Internacional "A Teoria Crítica Radical, Superação do Capitalismo e a Emancipação Humana", Fortaleza, Ceará, 29.10.2000.