As Américas na Primeira Modernidade [1]


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As Américas na Primeira Modernidade [1]

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Jorge Cañizares-Esguerra Luiz Estevam de O. Fernandes Maria Cristian Bohn-Martins (Organizadores)

As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750) Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristian Bohn-Martins (Organizadores) 1ª Edição - Copyright© 2017 Editora Prismas Todos os Direitos Reservados. Editor Chefe: Vanderlei Cruz - [email protected] Agente Editorial: Sueli Salles - [email protected] Diagramação e Projeto Gráfico: Jean Garcia Capa: Raphaël Miranda Imagem da Capa: Baseada no mapa de Sebastian Münster, die neue welt, c.1540. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz Bibliotecária CRB 9-626

Nome do Autor XXXX Nome do Livro XXXX / Nome do Autor. – X. ed. – Curitiba : Editora Prismas, XXXX. XXX p. ; 23 cm ISBN: XXX-XX-XXXXX-XX-X 1.XXX. 2. XXX. 3. XXX. 4. XXX. 5. XXX. I. Título. CDD xxx.xxx(xx.ed) CDU xxx(xx)

Coleção XXXXXX Diretor Científico XXXXXX

Consultores científicos

Editora Prismas Ltda. Fone: (41) 3030-1962 Rua Morretes, 500 - Portão 80610-150 - Curitiba, PR www.editoraprismas.com.br

Apresentação da coleção e do primeiro volume Organizamos esta coleção ao longo dos últimos 2 anos. Nosso intuito era fazer um manual de História das Américas na Primeira Modernidade. Transnacionais, de enfoques múltiplos e variados, sempre trazendo documentos primários, os textos que se seguem são fruto da colaboração de dezenas de especialistas do Brasil, Américas e Europa. Compusemos três volumes que trarão reflexões e sínteses históricas e historiográficas para alunos de graduação e pós-graduação, bem como para o grande público não acadêmico que deseje conhecer mais das tantas histórias de nosso continente nos primeiros séculos depois de Colombo. Como viveram os indígenas depois da chegada dos europeus? Como se deu a Conquista militar e quem compôs os multiétnicos exércitos que lutaram por aqui? E a Conquista espiritual? E a chegada de africanos? Como se organizaram as colônias britânicas, espanholas e portuguesas? Quais os múltiplos fluxos de pessoas, bens, microrganismos e outros seres vivos, livros e ideias que singraram os oceanos entre as Américas e o resto do mundo? Como viveram os descendentes dos conquistadores? Como e quando as ideias de independência tomaram forma? Como se deram as relações de gênero deste lado do planeta? Para responder estas e muitas outras questões criamos estes manuais. Com estes livros, o que há mais de mais recente em pesquisas do mundo todo aparece para o leitor de forma simples e condensada, mas com escrita rigorosa e atenta de grandes especialistas. A todos os nossos colaboradores, muito obrigado por ajudarem a compor esta coleção. No primeiro volume, começamos com um estudo introdutório sobre as Américas na Primeira Modernidade, mapeando as formas de se fazer sua história comparada ao longo do tempo. Terminamos por propor como ler nossa história a partir da lógica das histórias entrelaçadas. Em seguida, no primeiro capítulo, Alexandre C. Varella, docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e pesquisador em história cultural da Nova Espanha e Peru, visita as formas de vida indígena pós-conquista. Em “Os índios: povos ances-

trais, sujeitos modernos”, Varella realiza imenso esforço de síntese para localizar na profunda América o problema da globalização comandada pela Europa ocidental. O que faz no seu texto é jogar com a tradicional discussão das permanências e mudanças no início da modernidade detendo-se na Mesoamérica reconfigurada vice-reino da Nova Espanha e nos Andes Centrais como vice-reino do Peru. Num período de dois séculos, os indígenas dessas regiões passaram por situações dramáticas com grande perda populacional. Uma época de desmoronamento dessas sociedades que, por outro lado, insistem rebrotar e crescer vingando numa terra arrasada. Tarefa instigante e complicada tratar esses coletivos e indivíduos como figuras tanto conservadoras como receptivas do novo. Esta é a aposta. Quanto aos itens do ensaio: primeiro, um breve panorama da América pré-colonial acentua aspectos da sociedade e do poder mexicano e incaico. Muitos emblemas da Primeira Modernidade podem ser notados nesses horizontes. Uma mirada sobre a forte incorporação de motivos da Europa pelo mundo americano introduz o assunto da conquista como cataclismo, evento que se encaixa em concepções indígenas de mudança de era. Em seguida, o texto trata das formas de exploração do trabalho na sociedade de tensões e compromissos entre conquistadores, clérigos, funcionários reais, índios de elites, índios comuns, africanos, mestiços. Mais linhas para tratar das alterações e sobrevida das elites indígenas, bem como para observar a constituição, sob antigas e novas bases, dos núcleos sociais e políticos dos pueblos e reducciones. Mas os índios escapam dessas instâncias da governança nativa, pois trabalham e vagabundeiam nos campos e nas cidades dos espanhóis. Bem como aprendem a ser bons igrejeiros, pleiteantes, escritores, sem perder a peculiaridade de suas origens e o norte de suas intenções. São nostálgicos, são reformadores, e aproveitadores. O penúltimo item trata do tema dos alimentos e drogas enfocando diversas situações que revolucionam o cotidiano, apesar das resistências da dieta tradicional. O último ponto é a religiosidade considerando diversas combinações de crenças, cultos e magias, particularmente na discussão sobre movimentos de rebelião de pessoas que não correspondem aos modelos de população servil elaborados pelos colonizadores, pela Igreja e pelo Estado no império Habsburgo. No capítulo seguinte, Eliane Cristina Deckmann Fleck e Luiz Estevam Fernandes recriam o uso do vocábulo Conquista e um pou-

co dos eventos das conquistas militares ao longo do século XVI. Fleck é professora titular da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS, pesquisadora do CNPq (Bolsista de Produtividade PQ 2). No texto, os autores advogam que a ideia de Conquista é vocábulo de conotação forjada na Idade Média europeia, em meio a Cruzadas e guerras entre reinos cristãos. Ao migrar para a América, ainda nos tempos colombinos, a noção parece ter sido revigorada. Mas foi a partir das empresas capitaneadas por Cortés e de Pizarro que a palavra Conquista reinventou-se e ficou aderida inextricavelmente ao mais medular do mundo americano. Ao mesmo tempo, Fleck e Fernandes retraçam os episódios centrais das expedições contra a Confederação asteca e o império inca não apenas como feitos espanhóis, mas como empresas multi-étnicas, frutos da Primeira Modernidade. Terminam por explorar a conquista das regiões meridionais da América do Sul e do Rio da Prata, bem como a maneira pela qual o universo português e inglês se reapropriaram do termo conquista, o primeiro ligado a suas experiências no oriente, ao passo que o segundo, ao menos no início de suas experiências colonizadoras, seguindo de perto os passos espanhóis. Maria Cristina Bohn Martins e Leandro Karnal, professor de História da América colonial da Universidade Estadual de Campinas, analisam a chamada Conquista Espiritual no terceiro capítulo deste volume. O texto propõe um estudo sobre o esforço institucional de organizar a Igreja nos territórios coloniais hispânicos na América e sobre o tecido complexo das suas relações com a Monarquia na Primeira Modernidade. Por meio dele, os autores buscam refletir sobre como papado, ordens religiosas, estado ibérico, conquistadores, colonos e indígenas foram atores de uma trama que desenhou no Novo Mundo, relações de aliança e complementaridade, assim como de oposição e conflito. No capítulo 4, Jorge Cañizares-Esguerra e Brad Dixon, doutorando em História na University of Texas at Austin, tomam o bastão onde o texto de Fernandes e Fleck o deixou e majoram a tese. O texto explora como a inveja que a Inglaterra tinha dos impérios ibero-americanos levou-a a estabelecer um império próprio. Os ingleses não apenas sonhavam em liberar as posses espanholas americanas, como também imaginavam emular os sucessos espanhóis em sua própria parte do Novo Mundo. Além de buscar conquistas para rivalizar com a Espanha

no México e no Peru, os ingleses também adotaram medidas - muitas delas, de fato, portuguesas - para o desenvolvimento de uma economia de plantations que levaria ao sucesso como produtores de tabaco e o açúcar. A rivalidade entre Inglaterra e Espanha foi mais duradoura do que se acreditava anteriormente e continuou a moldar os dois impérios até o século XVIII. No quinto capítulo, Benjamin Breen, Professor assistente de História na University of California, Santa Cruz, refaz uma história ambiental das Américas na Primeira Modernidade. A história ambiental do mundo atlântico ajuda a compreender duas das mais colossais catástrofes da história humana recente. A primeira é a impenetrável tragédia ocasionada pelas mortes de dezenas de milhões de nativos americanos devido a doenças infeciosas como a gripe, o sarampo e a varíola, contra as quais os indígenas não possuíam resistência.  A segunda é a contínua diminuição da biodiversidade global, a qual muitos ecologistas identificam, nos dias atuais, como a maior extinção em massa desde o desaparecimento dos dinossauros há 65 milhões de anos. Ao conectar os estudos acerca da história do período colonial a preocupações contemporâneas a respeito tanto da sobrevivência de culturas não-ocidentais quanto da preservação da biodiversidade restante no planeta, o estudo do intercâmbio colombiano emergiu como uma das mais dinâmicas subáreas da historiografia. O objetivo do texto de Breen é destacar a ampla gama de interesses e métodos que convergem atualmente na história ambiental do mundo atlântico. O penúltimo texto deste volume, “Saberes e livros no mundo atlântico: o intercâmbio cultural na Carreira de Indias”, foi escrito por Pedro Rueda Ramírez, Professor da Universidad de Barcelona, e Carlos Alberto González Sánchez, Catedrático de História Moderna na Universidad de Sevilla. O capítulo se ocupa da circulação de textos através de redes de comércio das índias e sua chegada em terras americanas no mundo moderno. O denso estudo nos mostra os modos de transporte, dificuldades dos livreiros e o papel da política de controle ideológico da Coroa espanhola, analisado através do Conselho das Índias e da Casa do Comércio. Estes meios de vigilância não impediram efetivamente que os livros impressos cruzassem o Atlântico, contribuindo para o desenvolvimento de uma cultura original e sincrética, revelando a crescente presença da cultura ocidental em territórios americanos, criando híbridos interessantes deste lado do mundo.

Beatriz Helena Domingues, professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Breno Machado dos Santos, doutor pela mesma instituição, escrevem o texto final de nosso primeiro volume. A partir de meados do século XVIII, a natureza da América e seus habitantes tornaram-se objetos de um célebre debate intelectual de amplas proporções que envolveu, por algumas décadas, ilustres letrados de ambos os lados do Atlântico. Trata-se da “Disputa ou Polêmica do Novo Mundo”, conforme denominada por Antonello Gerbi, suscitada principalmente pelas teses sobre a inferioridade do continente americano em relação ao Velho Mundo então formuladas pelo naturalista francês Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, e pelo filósofo prussiano Cornelius de Pauw. Assim, fazendo eco, de certo modo, às observações de Antonello Gerbi e de Jorge Cañizares-Esguerra, o capítulo lança luzes sobre a participação de notáveis jesuítas desterrados das colônias hispano-americanas e de alguns dos mais conhecidos “pais fundadores” dos Estados Unidos da América na “Polêmica do Novo Mundo”. Rompendo, porém, com um silêncio presente em boa parte da produção historiográfica sobre o tema, os autores buscaram também, a exemplo de outros estudos por ele realizados, chamar a atenção para a inserção de membros da Companhia de Jesus ligados à América portuguesa no debate em questão. Desta maneira, a ideia central consistiu em averiguar a maneira como representantes de ambos os grupos envolvidos na “Disputa” reagiram às teses ilustradas denegrindo a natureza e os habitantes das Américas, inclusive em termos epistemológicos e metodológicos, relacionando suas defesas com os contextos que as condicionaram. Por fim, gostaríamos de agradecer aos tradutores Pedro Telles da Silveira, Fernanda Bastos Barbosa e Renato Denadai Silva pelo cuidado e precisão com a versão em português dos textos em espanhol e inglês. Também temos débito com os colegas e alunos do GEHA (Grupo de Estudos de História das Américas), em especial Fernanda Barbosa, Renato Denadai e Filipe Cotta Barbosa, e do NEHM (Núcleo de Estudos de Historiografia e Modernidade), com o programa de pós-graduação da UFOP, a Fapemig (pelo apoio ao projeto que gerou parte das pesquisas aqui contidas). A Lucas de Oliveira Fernandes, que tanto incentivou esta publicação, bem como Raphaël Miranda pelo design da coleção, agradecemos muito.

Boa leitura a todos! Jorge Cañizares-Esguerra, Maria Cristina Bohn Martins e Luiz Estevam de O. Fernandes, com o auxílio dos autores do volume.

Sumário Introdução - As Américas na Primeira Modernidade...................... 13 Jorge Cañizares-Esguerra (Univ. Texas) Luiz Estevam de O. Fernandes (UFOP) Maria Cristina Bohn-Martins (Unisinos) Capítulo 1 - Os índios: povos ancestrais, sujeitos modernos........... 47 Alexandre C. Varella (Unila) Capítulo 2 - A Conquista da América como uma História emaranhada: o intercâmbio de significados de uma palavra controversa...... 103 Luiz Estevam de O. Fernandes (UFOP) Eliane Deckman Fleck (Unisinos) Capítulo 3 - Fama, Fé e Fortuna: o tripé da conquista................... 171 Maria Cristina Bohn Martins (Unisinos) Capítulo 4 - “O lapso do rei Henrique VII”: Inveja imperial e a formação da América Britânica .......................................................... 205 Jorge Cañizares-Esguerra (University of Texas-Austin) Bradley J. Dixon (University of Texas-Austin) Capítulo 5 - Meio ambiente e trocas atlânticas.............................. 245 Benjamin Breen (UC Santa Cruz) Capítulo 6 - Saberes e livros no mundo atlântico: o intercâmbio cultural na Carrera de Indias............................................................... 277 Carlos Alberto González Sánchez (Univ. Sevilha) Pedro Rueda Ramírez (Univ. Barcelona) Capítulo 7 - Entre textos, contextos e epistemologias: apontamentos sobre a “Polêmica do Novo Mundo”............................................... 317 Beatriz Helena Domingues (UFJF) Breno Machado dos Santos (UFJF)

Introdução As Américas na Primeira Modernidade Jorge Cañizares-Esguerra Luiz Estevam de O. Fernandes Maria Cristina Bohn Martins.

1. Introdução: Moderno e Modernidade A palavra “moderno” já foi alvo de vários estudos. Por meio desses textos, sabemos que ela tem origem no latim, significando uma oposição entre o “de hoje” e o tempo que o antecedeu. Tal oposição era, no mais das vezes, neutra ou fraca em termos de antagonismo. Assim, com este sentido, foi usada por toda a chamada Idade Média, em diferentes contextos. A mudança teria ocorrido no início do Renascimento italiano. Em meados do século XV, na península italiana, uma tensão entre a emulação ou a imitação dos antigos convivia com o elogio do novo, daquilo que era superior aos antigos. Patricia Seed (2013) mostra-nos como o vocábulo, carregado dessa tensão, foi incorporado pelo catalão e, logo em seguida, pelo português. Das terras da última flor do Lácio, a palavra “moderno” passou a ser utilizada por franceses e, de lá, espalhou-se para a Europa do Norte, incluindo a Inglaterra, Alemanha e Escandinávia. Se em Dante, “moderno” tinha conotação negativa, a oposição contida na expressão, entre temporalidades distintas, uma anterior, antiga, e outra do presente, de um tempo atual que se projetava a um novo futuro, inverteu seu sentido durante o Renascimento. Tal mudança ocorreu tanto na Itália quanto em Portugal, coincidentemente ao mesmo tempo, revelando o “advento de uma nova epistemologia” que elevou a observação em primeira mão como o “meio mais confiável para se adquirir conhecimento” (Seed, 2013, 120). Era o triunfo da experientia sobre a auctoritas (Cezar, 2002, p. 42). Para os italianos, isto se fazia presente na observação do humano como sujeito/objeto da pintura ou da As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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escultura, por exemplo. Para os portugueses, a ênfase na superioridade dos modernos sobre os antigos estava ligada às navegações e a ideia de que as antigas geografias e histórias tinham que ser corrigidas ou, em certos casos extremos, abolidas1. O navegador e matemático português Duarte Pacheco Pereira, um dos primeiros homens a entender as marés da costa de Malabar, na Índia, escreveu em mais de uma ocasião que cautela era necessária para com os “abusões e fábulas que alguns dos antigos cosmógrafos escreveram” e que a “experiência nos faz viver sem engano” (Pereira, 1892, p. 77). Foi mais além e proclamou: “[...] nossa nação dos Portugueses precedeu todos os antigos e modernos em tanta quantidade, que sem repreensão podemos dizer que eles, em nosso respeito, não souberam nada” (Pereira, 1892, p. 82). Na mesma época, na virada para o século XVI, quando o célebre cronista Pedro Mártir de Anglería chegou à Espanha, o que o movia de Roma, onde passara seus últimos dez anos, era a vontade de estar no centro daquilo que ele (e tantos outros contemporâneos) considerava ser o acontecimento mais importante de seu tempo: a derrota dos mouros e sua definitiva expulsão de terras cristãs europeias. A pujança espanhola em fins do século XV o arrebatou. Ele acabou por se tornar historiador, participar da corte dos Trastâmara e narrar outro evento singular, tão ou mais importante que a queda de Granada: a chegada de Colombo às Índias. Em mais de uma ocasião, o insigne cronista nos falou em corrigir os antigos ou no ineditismo de seu tempo: “o direi com a permissão dos antepassados, quanto, desde o princípio do mundo, se fez e escreveu, é pouca coisa, a meu ver, se o comparamos com estes novos territórios, estes novos mares, essas diversas nações e línguas, essas minas, esses viveiros de pérolas”, escreveu na Carta Proemial de sua primeira Década, editada em 1516, com uma dedicatória da obra ao jovem Carlos V, que deveria se apressar em chegar a Espanha. Uma vez em seu trono, seus súditos haviam preparado, ao jovem Habsburgo, “o círculo equinocial desconhecido até estes tempos, e a zona fervente que, na opinião dos antigos, seria tostada pelos ardores do sol, [mas que é, na verdade] povoadíssima de gente, amena, fértil, riquíssima, e ilhas mil, coroadas de ouro e pérolas; e, em um 1  “Although they may seem dramatically different, the two positions are not incompatible, because we are studying multilayered consciousness. Reverence for ancient knowledge, for example, may have operated as an obstacle, but it also offered pathways and techniques for understanding the new” (Kupperman, 1995, pp. 2-3).

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só, que reputamos como continente, oferecer-te-emos três Europas. Vem abraçar um novo mundo […] (Anglería, 1989, p. 6). Mas um dos exemplos mais contundentes talvez seja o de João de Barros, cronista e gramático português, que em suas décadas da Ásia deixou clara essa ideia de que, à luz de novos dados, trazidos pela experiência, pela observação em primeira mão, os antigos e sua autoridade baseada na tradição deveriam ser revistos: “respondemos com uma universal Geografia de todo o descoberto, assim em graduação de tábulas como de comentário sobre elas, aplicando o moderno ao antigo, a qual não sofre compostura em linguagem, e por isso irá em latim” (Barros, 1778, p. 14). É claro que essa modernidade esboçada em meados do século XV e desenvolvida dali em diante encontraria desdobramentos inéditos no século XVII e entraria em nova fase na centúria seguinte, com o a filosofia das Luzes. A este momento da Modernidade, compreendido entre c. 1450 até c. 1750, convencionou-se chamar de primeira modernidade. Este é o período de que trata esta coleção, de que o leitor tem em mãos o primeiro volume.

2. Por um conceito de “Primeira Modernidade” em diferentes escalas A expressão “Primeira Modernidade” corresponde a “early Modern History”, conceito muito comum na historiografia de língua inglesa, cunhado ainda no século XIX, na universidade de Cambridge. Atribui-se seu uso, pela primeira vez, ao historiador William Johnson, fellow do King’s College, que, em 1869, proferiu uma palestra em Cambridge intitulada ‘Early Modern Europe’. Em sua fala, ele referia-se apenas ao século XVI quando mencionava a Europa da primeira modernidade. Aquele século seria, para Johnson, um momento chave na passagem da Idade Média para valores modernos, ao qual, contudo, recusava-se a chamar de a “Era Tudor”, ou de Renascimento, Reforma, Cinquecento. Tal recusa, afirmou, se dava por não querer colocar maior foco ou se concentrar demasiadamente em um único aspecto do rico século XVI. A opção por “Early Modern” parecia estar relacionada mais As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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a uma questão de consciência da modernidade, de pertença a um momento de ruptura na história: “Not Shakespeare only, but all the good writers of the age, dealt with classical antiquity and with Scriptural antiquity in a different way from the middle age writers. These early moderns were vividly conscious of being moderns ( Johnson, 1869, p.13-14). O conceito foi instrumentalizado pelos sucessores de Johnson, como o historiador econômico J. H. Clapham, estendendo-o para o século XVIII de modo a incorporar as mudanças de uma modernidade propriamente dita, abrangendo o Iluminismo, a Revolução Industrial. Mas o termo continuava fluido, designando um período que, por vezes, podia se estender até o XIX ou retroagir ao século XV. Apenas nos anos 1940, quando começou a ser usado nos EUA, “Early Modern” passou a designar as múltiplas mudanças ocorridas entre os séculos XVI (ou de meados do XV) e o XVIII. De fato, a expressão “Primeira Modernidade” só ganhou popularidade nos anos 1970, com a publicação de livros como os de Peter Burke, Popular Culture in Early Modern Europe (1972 – que já entende o período como aquele entre c.1500 a c.1800, cf. p. XIV) e Economy and Society in Early Modern Europe (1978); ou o de Natalie Zemon Davis, Society and Culture in Early Modern France (1975). Em língua inglesa, o termo acabou se tornando comum. Em Espanhol, a expressão “Edad Moderna temprana” parece conservar o significado de uma primeira modernidade, ainda que seu uso esteja normalmente relacionado a traduções de “Early Modern age” do que propriamente incorporada à tradição de periodização historiográfica. Em português, contudo, o mesmo não parece ter ocorrido. Os livros acima citados, por exemplo, foram traduzidos para nosso idioma sem se preocupar em manter o “Early” do original. Mantiveram apenas a expressão “Idade Moderna”, em oposição ao que, no Brasil e em Portugal, se chama, tradicionalmente, de Idade Contemporânea (do século XVIII para frente). Mas se, por um lado, o uso da expressão parece ser unânime no mundo do inglês, há algumas críticas ao conceito de “Early Modern”. Há aqueles que o veem com certa suspeição, descrença ou como um termo inútil, uma vez que ligado a outros conceitos como os de “desencantamento” e “secularização”.  Em outras palavras, a categoria “Early Modern” (assim como a de moderno/modernidade, em português) dá ênfase a certa noção de progresso ou avanço, de ruptura com a Idade 16 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Média, não levando em consideração que certas condições e processos tidos como inexoravelmente modernos podem ser traçados até o medievo, ao passo em que tanto a secularização como o desencantamento são processos que atravessaram boa parte da chamada modernidade, sem, contudo, se concluir (cf. Randolph Starn, 2002). Outros apontam para o fato de que a modernidade, como problema sociológico, surge na virada do XVIII para o XIX, e estabelece-se em meados do XIX, primeiro na “querela entre antigos e modernos”, depois entre pensadores que quiseram mapear o capitalismo e suas origens. Logo, como escreveu Jack A. Goldstone (1998), cometeu-se “o erro” de chamar de primeira modernidade ao período de capitalismo mercantil (entre 1500-1800) e de expandir essa periodização “não natural” europeia para o resto do mundo. Assim como os estudiosos da Idade Média são capazes de falar em “Antiguidade tardia”, “Baixa” e “Alta” Idade Média, nesta coleção, por pensarmos a modernidade em termos de movimentos sucessivos que se imbricam e completam, e porque estamos cientes de que os europeus desse período viam-se em diatribe com os antigos de forma consciente, a nomenclatura “primeira modernidade” nos parece válida. E um dos maiores signos da primeira modernidade, como aqui a vemos, é o da mobilidade. A mobilidade foi o elemento fundamental no estabelecimento das conexões mundiais que deram aos contemporâneos à noção de que a experientia era epistemologicamente mais importante que a auctoritas (ainda que esta jamais fosse deixada de lado). Se foi algo que se deu na Europa, este fenômeno não é, por certo, exclusivo ao continente. “Pela primeira vez, todos os recantos do mundo são mutuamente revelados” (Gruzinski, 1999, p. 336). É óbvio e patente que em períodos anteriores às Navegações os homens se movimentavam em largas distâncias. Ou seja, nos é claro que o comércio de longa distância já era conhecido e praticado desde tempos remotos. Nas Américas, o contato entre grupos indígenas atravessava centenas ou milhares de quilômetros. Nomes de países contemporâneos registram isso: Nicarágua, etimologicamente, segundo alguns cronistas, advém do náuatle Nic–atl–Anahuac, algo como “até aqui chegaram os de Anahuac”, ou seja, os astecas, povo originalmente distante em mais de 700 quilômetros para o norte. Na Antiguidade, via Rota da Seda, Roma estava ligada à China, a ponto de Sêneca criticar as mulheres que se vestiam com o precioso tecido oriental. Poderíamos ir ainda mais para trás As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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no tempo e, como sugere Felipe Fernández-Armesto (2006), lembrar que o contato entre os povos era mais intenso no paleolítico do que em outros períodos históricos, uma vez que a tecnologia da pedra lascada parece ter se difundido pelo mundo todo. Mas, na primeira modernidade, o mundo todo entrou em contato de uma maneira que, paulatinamente, tornou-se inexorável e nos une até os dias atuais. Ademais de uma parte se ligar com as outras, os indivíduos daquele tempo estiveram cônscios dos limites expansíveis de seu universo. E, para esta etapa da modernidade, o papel dos ibéricos foi central: “la modernidad de los ibéricos no se realiza en el suelo de la Península y apenas si admite la idea que nosotros nos formamos de la modernidad. No adopta el recorrido obligado que va directamente de Italia a Francia para encontrarse con Inglaterra y los países del norte, evitando una Europa meridional que inevitablemente se percibe como arcaica y oscurantista. Esta modernidad ya no pasa por la construcción del Estado-nación ni por la marcha hacia el absolutismo ni tampoco se explica por el triunfo de la ciencia y del racionalismo cartesiano. Pone en juego otros espacios, otras configuraciones políticas –la monarquía católica- otros imaginarios y, sobre todo, otros actores que ya no son solamente los europeos sino también los indios, filipinos, japoneses, mulatos de África. Henos aquí lejos de las fronteras de la Europa occidental” (Gruzinski, 2010, pp. 92-93).

Homens que andaram o “mundo todo”, míticos ou reais, como Marco Polo ou John Mandeville, deixavam de ser exceções. Para Serge Gruzinski, tais homens que andaram por todos os cantos do mundo recém-conhecido de seu tempo, e que estabeleceram ligações entre as partes desse orbe, tornaram-se mediadores entre códigos culturais antes distintos e isolados. Ao transitarem de um lugar a outro, eles também disseminaram ideias, projetos, costumes, hábitos, crenças, saberes etc. Esses passeurs tinham como característica sua própria diversidade: podiam ser de diversas nacionalidades, como portugueses, espanhóis, franceses, judeus, malaios, tupis, ou bantôs; assim como podiam ocupar diversas posições sociais ou desempenhar diversas atividades e profissões: administradores, comerciantes, missionários, soldados, cronistas, letrados, mas também escravos, marujos etc. Entretanto, nem todos, em tais condições, poderiam 18 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

ser definidos como passeurs. Para isso, eles deveriam estar conscientes de que eram habitantes de fronteiras, vivendo nos limites de sociedades diferentes ou em pontos de encontro entre elas. Os passeurs eram, pois, capazes de transformar a periferia, na qual viviam, em centro de seus novos mundos; capazes de pensar a totalidade do globo, a partir desse novo centro. Nas palavras de Stuart Schwartz, esses indivíduos “tornaram-se intermediários culturais, levando ideias e tecnologias europeias para as sociedades que os acolhiam. Mas a influência deles também funcionava no sentido oposto, e eles se tornaram agentes e intérpretes de outras culturas em suas sociedades de origem” (2009, p. 119). Ao longo do período das navegações, são inúmeros os exemplos de pessoas como essas, que avançaram pelo mundo que então se descortinou. Para cada mulher indígena que transitou entre seu universo de origem e outro que distava um oceano, como Pocahontas/Rebecca ou Malinche/Marina, encontramos descendentes de indígenas como Garcilaso de la Vega, muito lido em sua própria época, ou um Felipe Guamán Poma de Ayala, cronista peruano, cujo rico manuscrito ficou escondido em uma biblioteca europeia até muito recentemente. Para cada Michel de Montaigne, homem cujas viagens pela Europa e cujo humanismo o levaram a escrever ensaio sobre canibais, é possível encontrar um Anjirô/Paulo de Santa Fé, neófito japonês, braço direito, intérprete e cronista dos jesuítas em sua empreitada pelo Japão. Para nomearmos indivíduos, também devemos nos lembrar de novos processos e coletividades. Tanto Montaigne quanto Albrecht Dürer viram indígenas ou seus objetos em gabinetes de curiosidade ou festivais como o de Ruão, que recriou a América na cidade francesa. Um nobre indígena da Nova Espanha da virada do XVI para o XVII, Domingo Francisco de San Antón Muñoz Chimalpain, também registrou o mundo desde sua visão privilegiada da capital do vice-reino: ele podia discorrer, em suas anotações, sobre japoneses, filipinos e africanos que andavam nas ruas de sua cidade (ponderando sobre suas terras de origem e concebendo, com isso a magnitude terrestre), com a mesma facilidade com que registrava a morte de monarcas franceses. Ou seja, a escala da mobilidade de seres, mercadorias, ideias e corpos, depois das navegações, teve escopo nunca antes visto. Só depois de 1450, portanto, foi possível pensar o globo em “termos modernos”. Como vimos, há muitos autores que pensam este mundo em aberto como “uma invenção europeia”, ao mesmo tempo em que recoAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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nhecem “a contribuição de povos não europeus a esse desenvolvimento” (Armitage, 2002). De fato, o mundo, ou melhor, os muitos mundos já existentes abriram-se de forma forçada por europeus em busca de comércio, metais, especiarias, expansão de suas diferentes fés no mesmo Cristo, lucro, glória, aventura, utopias e nobreza. Alguns locais ou grupos receberam essas múltiplas ambições de braços abertos e passaram a fazer parte dessa larga engrenagem mundial, cujo centro integrador cada vez mais se concentrava no Atlântico, ao passo que muitos outros foram escravizados, mortos, subjugados ou destratados. Para cada interação bem-vinda, havia uma mestiçagem e um foco de resistência. Para cada resistência, uma interação forçada, mas irrefreavelmente transformadora. O mundo da primeira modernidade tornou-se o mundo da interação, um mundo, pois, muito maior do que a Europa. Um mundo em que um índio carijó - Essomeriqc/Içá-mirim, possivelmente o primeiro índio americano a chegar à França - podia vir a ser tornar herdeiro das armas e bens daquele que o levara para a Europa, o capitão Binot Paulmier de Gonneville, e lá, do outro lado do mundo, viver uma vida longeva e deixar descendência (Perrone-Moisés, 1992). Por outro lado, ao mesmo tempo em que porções do mundo se interconectavam, questões locais continuavam absolutamente importantes e, aparentemente, na contramão do novo mundo que se descortinava. Na década de 1570, por exemplo, durante o início do sistema de frotas espanhol, a China importou cerca de 1200 toneladas de prata do Novo Mundo; na virada do século XVII, a quantia mais que duplicara, atingindo cifras próximas de 3000 toneladas. Potosí, fonte de boa parte desse precioso e desejado metal, tinha quase o mesmo tamanho de Londres à época e certamente era maior do que Madri, Paris ou Roma. Sua importância era tamanha que o jesuíta Matteo Ricci a incluiu no mapa-múndi que ele produziu para a corte imperial chinesa. Don Quixote disse a Sancho Panza, no imortal livro de Cervantes, que “Para pagar tudo o que você merece até mesmo as minas de Potosí não seriam suficientes”, enquanto a expressão “vale um Peru”, traduzia a ideia da formidável riqueza gerada pelas entranhas das montanhas andinas. As minas e a cidade impressionaram viajantes franceses e espanhóis no século XVII (Christensen, 2012, pp. 72-4). Se Potosí tinha relevo mundial, ainda assim, em meados do século XVI, a cidade tinha questões absolutamente locais. Era meio termo entre duas facções incas em 20 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

disputa, além de temer a irrupção dos chiriguanos, etnia que resulta do “avassalamento” dos chanés, grupo arauque que intercambiava produtos diversos com as comunidades andinas ao sul de Potosí, pelos belicosos guaranis. Os chiriguanos procuravam por objetos metálicos e, desde c. 1540, novos reforços guaranis provenientes do Paraguai instalavam-se nos contrafortes da cordilheira, espoliando os pacíficos chibchas de seus machados e anzóis de ferro, e ocupando o vale de Tarija, de onde pretendiam atacar Potosí. Circulavam boatos de que os guaranis haviam sido instigados pelo Inca Titu Cusi, que buscava ajuda dos chiriguanos e dos diaguitas para se levantar contra o jugo espanhol (Bernand & Gruzinski, 2006, p. 77). Ou seja, questões locais, muitas vezes anteriores ao mundo da primeira modernidade, conviviam com questões de escopo muito maior, atlânticas, globais, ora se complementando, ora se ignorando ou, por que não, se potencializando e se imiscuindo umas com as outras. Logo, o que propomos nesta coleção é justamente compreender a primeira modernidade por meio do ganho heurístico que o jogo de escalas pode nos dar. Ou seja, devemos estar sempre atentos à escolha de uma escala peculiar de observação dos eventos que estudamos, pois cada escala fica associada a efeitos de conhecimentos específicos. Como o próprio Jacques Revel já afirmou mais de uma vez, não se trata de unicamente aumentar ou diminuir o tamanho de um objeto no visor, mas de modificar sua forma e sua trama. De perto, um objeto revela tramas peculiares; de média e longa distância, não vemos o mesmo objeto em escala diferente, mas tramas diferentes: “a escolha de uma ou outra escala de representação não equivale a representar em tamanhos diversos uma realidade constante, e sim a transformar o conteúdo da representação mediante a escolha do que é representável” (Revel, 2010, p. 438).

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3. Perspectivas transoceânicas: das muitas maneiras de se estudar a Primeira Modernidade em escalas 3.1. Das Histórias Imperiais às Histórias de Impérios As perspectivas da expansão europeia da primeira modernidade foram abordadas na forma de uma história dos impérios ultramarinos desde a própria época em que estes existiam e se orgulhavam de si mesmos. Mesmo após as independências, enquanto as recém-criadas nações esforçavam-se por narrar o período colonial como parte de sua história nacional (normalmente como uma época de gesta ou período formativo do chamado “caráter nacional”) ou por refutá-lo em prol de suas histórias republicanas mais recentes, na Europa ainda se usava a perspectiva imperial para pensar o passado do XVI ao XVIII. No início do século XX, países imperialistas lançavam coleções de síntese histórica que buscavam abarcar o passado do mundo como um todo, mantendo a velha perspectiva do império agora sob outras roupagens. Na Espanha de pós-1898, por exemplo, o hispanismo julgava que fora o império quem levara civilização, idioma e religião ao Novo Mundo. Na Inglaterra, o vasto projeto da universidade de Cambridge (as Cambridge Histories) iniciou-se às vésperas da Primeira Guerra Mundial, no apogeu do Império Britânico. Os intelectuais ingleses tentavam produzir uma visão de síntese da história mundial, escrevendo tomos e mais tomos dedicados à história europeia em suas periodizações clássicas, além da história do globo, com volumes sobre a “África”, a “Ásia” ou a “América Latina” (em suma sobre as unidades geo-históricas que constituíam a curiosidade sobre “o outro” nos meios acadêmico-literários): “a constituição de visões amplas sobre o mundo conhecido acompanha, em geral, a formação dos impérios” (Karnal, 2000). No pós-guerra, outras Histórias imperiais, ou melhor, Histórias de Impérios, buscavam perspectivas menos etnocêntricas que as primeiras, e criaram longas listas de livros importantes, seja para falar do Império Britânico, Espanhol, Francês, Português ou Holandês. Fundiram-se, em geral, aos estudos igualmente ricos e férteis da História das navegações e dos descobrimentos, acerca dos quais os trabalhos de Charles Boxer, Vitorino Magalhães Godinho, Avelino Teixeira da Mota, Luís de Albuquerque, entre outros, ainda são incontornáveis.

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Sobre o império português, o pioneiro império europeu, há longa lista de estudos que datam desde as obras de Godinho (que pensou as grandes estruturas imperiais e os processos correlatos de acumulação primitiva e enraizamento do capitalismo em uma perspectiva de longa duração) até, mais recentemente, os estudos de Luís Filipe Reis Thomaz (que, focando-se na porção asiática do império, fornece pistas consistentes para a compreensão global do seu funcionamento). Mas, fora do mundo de fala portuguesa, o interesse sobre as realizações lusas parece ser significativamente menor, ainda que se destaquem historiadores tão importantes quanto Boxer, Stuart Schwartz, A.J.R. RussellWood e Sanjay Subrahmanyam2. As perspectivas comparadas dos impérios europeus também têm se mostrado tendência. O trabalho de Patricia Seed, por exemplo, procura dissolver a perspectiva de que houve uma única “Europa” colonizando a América, mostrando como as cinco principais potências imperiais da primeira modernidade (Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda) criaram mecanismos que lhes outorgavam a posse de territórios deste lado do Atlântico. A historiadora norte-americana argumenta que os espanhóis, por exemplo, tinham uma noção de posse pautada na leitura formal de documentos (cujo centro era o Requerimiento), ao passo em que os portugueses valiam-se de marcos astronômicos e criam que o próprio descobrimento de uma determinada área por meio de suas naus e instrumentos de navegação assegurava-lhes a posse da mesma; os holandeses aproximavam-se dos lusos, mas como se lançaram ao mar décadas depois, buscavam rebatizar terras não habitadas e novamente registrar-lhes, com novos nomes, em mapas, capazes de lhes assegurar posse. Os ingleses, de forma diferente, viam a posse apenas com a ocupação efetiva do solo por meio de plantações ou cercamentos; os franceses, diferentes dos demais, apostavam nas procissões e nos aspectos formais 2  Giuseppe Marcocci crê que a razão para esse aparente desinteresse pelo império luso foi a difusão da imagem historiográfica segundo a qual os portugueses não teriam nutrido uma preocupação significativa pela justificação do seu colonialismo (2011, p. 12). Um preconceito que “somente hoje começa a ser abandonado”, voltando-se a pensar o Portugal da primeira modernidade como o inventor de um modelo de império colonial retomado, em seguida, e reelaborado por outras monarquias: “tratava-se do primeiro império colonial europeu da idade moderna: um modelo inédito, em aberta ruptura com a noção que regia o sacro império romano” (p. 51), que teve uma construção jurídica em perfeita sintonia e sincronia com as práticas de conquistadores, comerciantes e missionários.

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de uma transferência consentida de posse pelos novos súditos, perguntando aos índios (depois de lhes explicarem sobre o funcionamento da Igreja e do império) se estavam de acordo com a posse ser dada ao Rei de França. Ou seja, num mundo em que inexistia uma política internacional propriamente dita, cada Estado, baseado num misto de suas próprias definições jurídicas, costumes e idiomas, acreditava que tomava posse de partes do Novo Mundo à sua própria maneira, o que ocasionou projetos de colonização diferentes e muitos conflitos de jurisdição e de direito entra os impérios que aportavam deste lado do Atlântico. Pensando o próprio conceito de Império e como ele foi apropriado e ressignificado desde o Romano, passando pelo Sacro-Império até os impérios modernos ultramarinos, o livro Lords of All the World, de Anthony Pagden (1995) tornou-se referência obrigatória no tema. Nele, Pagden compara as ideologias imperiais da Espanha, Inglaterra e França na primeira modernidade, ainda que, diferentemente, do que o título possa sugerir, centre-se na relação desses impérios com a conquista e colonização do Novo Mundo. O autor concentra-se nos debates intelectuais metropolitanos sobre a expansão imperial, em termos morais e de ideias, mostrando como as elites de cada Estado moderno elaboraram, legitimaram ou criticaram seus próprios objetivos e práxis coloniais. Uma de suas teses é a de que os discursos de Espanha, Inglaterra e França desenvolveram-se de forma muito distinta, condicionados por contextos políticos, culturais, históricos e coloniais diferentes, ainda que versassem sobre temas correlatos e viessem de um passado comum (emulando Roma, por exemplo, no conceito de império como dominus mundi – “senhor de todo o mundo”, de onde o título da obra). Nessa abordagem de história intelectual de Pagden, o grande contraste se dá entre Espanha e Inglaterra, ao passo que a França aproximar-se-ia mais dos britânicos. Sua conclusão é a de que as “lições” dos primeiros impérios europeus no Novo Mundo serviram de base para as colonizações posteriores da Ásia, África e Pacífico, principalmente ao mostrar aquilo que um império não deveria ser. No Brasil, a ideia de pensar a história do país como tendo se iniciado no período colonial, como uma fase da vida do país algo imatura, atrelada a sua metrópole, data do início da historiografia brasileira ainda no século XIX. Essa tradição historiográfica ganhou seus contornos mais conhecidos com as teses do “Antigo Sistema 24 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Colonial”. Trabalhos mais recentes, contudo, têm enfatizado o uso da perspectiva de “Império” ultramarino, em vez de apontar a relação dual e contraditória entre metrópole e colônia, consagrada no trabalho de Caio Prado Júnior e, sobretudo, na leitura possível e sofisticada que Fernando Novais dele fez. À mesma época em que Novais defendia sua inovadora tese de doutorado, outra visão era inaugurada pelo já mencionado brasilianista Charles R. Boxer (mas que estava também em Russell-Wood ou nos trabalhos de José Roberto do Amaral Lapa). Era uma perspectiva de “Império”, que buscava as regularidades e especificidades presentes nas colônias americanas, africanas e asiáticas portuguesas, e seus intercâmbios e contrabandos, conforme se pode inferir a partir da observação de certas instituições como as Câmaras Municipais e a Santa Casa de Misericórdia, o comércio inter e intra-colonial (sem a presença portuguesa como mediadora) e a carreira das Índias. Tal perspectiva faz emergir recorrentemente conceitos como o de “rede”, “conexão” e “dinâmica imperial”. Nesses estudos, tem-se apontado para a necessidade de se relativizar a existência de um poder real absoluto emanado de Portugal e de colônias passivamente recebendo ordens e enviando gêneros de primeira necessidade. Procura-se, no lugar dessa abordagem sistêmica, utilizar a categoria analítica de “autoridade negociada”, desenvolvida por Jack Greene (1994). Luís Felipe de Alencastro, João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Fernanda Bicalho, entre tantos outros renovaram substancialmente esse parâmetro teórico. Tais trabalhos, com muitas distinções entre si, partem da lógica de “Antigo Regime” estendida aos espaços coloniais, uma transposição e adaptação para o ultramar da sociedade heterogênea e hierarquizada típica da modernidade dos séculos XVI a XVIII que, em terreno colonial, misturou-se a tradições locais pré-existentes ou foi reconfigurada mediante as circunstâncias locais. O recente livro de Giuseppe Marcocci (2011) também faz parte do esforço mais amplo de renovação historiográfica, que data, ao menos, da década de 1970, quando se iniciou uma profunda discussão acerca das formas de se compreender a colonização portuguesa. Nesse debate, como vimos, alguns historiadores criticaram uma visão polarizada entre metrópole versus colônia, que privilegiaria a existência de um sistema colonial rígido e de uma dominação rigorosa da metrópole portuguesa As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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sobre a colônia brasileira. Conforme esta perspectiva, se por um lado a metrópole estava apenas interessada na transferência de excedentes econômicos, por outro a colônia reduzia-se a ocupar o papel inconteste de vítima de sua dominação e fornecedora de matérias primas e metais preciosos. Nas palavras de Russell-Wood: “O que os historiadores têm demonstrado é que a visão de pacto colonial, baseada em noções dualistas, polarizadas, ou mesmo bipolarizadas, necessita ser recolocada a partir de uma perspectiva mais aberta, mais holista e flexível, que seja mais sensível à fluidez, permeabilidade e porosidade dos relacionamentos pessoais, do comércio, da sociedade e do governo dos impérios, assim como da variedade e nuança de práticas e crenças religiosas. [... Deve-se favorecer] a percepção de que havia um elevado potencial para a negociação entre os representantes da coroa no ultramar e os colonos” (2001, pp. 14 e 12).

3.2. Histórias mundiais, conectadas e globais O tema das interconexões entre distintas regiões do mundo também tem ocupado a agenda dos historiadores dedicados à Primeira modernidade sob outros vieses. O fenômeno contemporâneo da globalização renovou de forma bem ampla o interesse no debate sobre a historicidade de certos fenômenos, tais como a ampliação das escalas de deslocamento geográfico, ocorrida a partir de finais do século XV com a assimilação/criação de novas rotas de circulação pelos europeus, como também o da intensificação dos fluxos comerciais e migratórios, a difusão de novos conhecimentos e a conformação de extensas e complexas redes de sociabilidade (Wanderley, 2008, p. 19). Serge Gruzinski, por exemplo, destaca-se nessa vertente, estudando as associações de regiões através das redes internacionais e intercontinentais, das relações entre o local e o global. Para o historiador francês, a “história da mundialização”, processo em que, se por um lado, há uma ocidentalização do planeta, há também uma reinvenção da Europa advinda dos contatos com o Oriente e, principalmente, com a América e regiões antes desconheci26 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

das da África. Para Gruzinski, a mundialização promovida pelas coroas ibéricas abrange duas dimensões diretamente ligadas a suas difusões planetárias: a ocidentalização e a globalização. A ocidentalização, para o autor, refere-se a todo um conjunto de acontecimentos que buscam transformar a natureza, os seres, as sociedades e os imaginários sob o jugo da “Monarquia católica”, como ele costuma designar os impérios ibéricos. A cristianização, a sujeição política, a urbanização de tipo europeu, a difusão do alfabeto latino, da imprensa e do livro, a exploração econômica são complexas estratégias, nem sempre coordenadas, do processo de ocidentalização, que ocorreram desde o século XV, marcando o início da globalização3: “Essas empresas de transformação são destruidoras. Quem resiste é eliminado. Porém, muitas vezes a ocidentalização provoca mesclas e mestiçagens, tais como: as mestiçagens biológicas; das línguas e das crenças; dos saberes e das técnicas; a sobreposição e a imbricação das formas de organização do trabalho: o trabalho comunitário de origem pré-hispânica e as exigências do mercado espanhol; a conexão dos circuitos indígenas com os circuitos internacionais (o comércio do cacau, do anil etc.). Em outros termos, a ocidentalização provoca, deliberadamente ou não, mestiçagens” (Gruzinski, 2003, p. 336).

No mundo anglo-saxão, a observação das “histórias conectadas” (connected histories, termo ligado à produção de Subrahmanyam), dos sujeitos e mecanismos articuladores dos mencionados processos de mobilidade e de circulação também têm abandonado antigas perspectivas imperiais mais conservadoras, quando não simplistas. Os novos estudos concentram-se na apreciação da diversidade de agentes da mobilidade moderna, provenientes de distintas partes, mas principalmente, do mundo ibérico. Tais “historiadores investigaram a feitura do mundo moderno desde as concomitantes descobertas europeias do novo continente em 1492 e das velhas civilizações em torno do Oceano Índico, em 1498”, e como, nos séculos que se seguiram, os “‘atrasados’ europeus de então não apenas adquiriram habilidades e poder, mas igualmente 3  Essa globalização não seria a “mundialização mercantil”, que se iniciaria com a Revolução Industrial; tampouco a globalização atual, marcada pelas transações financeiras, mas, como já argumentamos, a da consciência planetária.

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vieram dominar grande parte do planeta, num longo processo que se denominou ‘a ascensão do Ocidente’” (Malerba, 2009, p. 166). Para esses historiadores da World History (ou Global History), como Jerry Bentley (1993), Robert Marks (2002), Janet Abu-Lughod (1989), Andre Gunder Frank (1998) e Felipe Fernández-Armesto (2009), as macro-perspectivas, de longa ou longuíssima duração, muitas vezes utilizando-se de abordagens wallersteinianas ou braudelianas, deslocam o início da globalização para muito antes das navegações. Frank, por exemplo, desafia o discurso eurocêntrico predominante nas ciências sociais e, especialmente, na historiografia, defendendo que um sistema-mundo “horizontalmente integrativo” surgiu muito antes de 1500. Um único sistema-mundo Afro-eurasiano teria pelo menos cinco mil anos de existência, com relações comerciais de longa distância formando sua base, em oposição à economia-mundo caracterizada pelo “excepcionalismo europeu” que teria surgido a partir do século XV. O autor afirma ainda que, no período entre 1400 e 1800, esse sistema-mundo foi controlado principalmente pela China, ao passo em que a Europa dominava o comércio mundial. De fato, Frank diferencia os conceitos de “controle” e “dominação”, reiterando que, naquele largo lapso temporal, a Europa não era nem mais importante, nem mais avançada, nem sequer central para o sistema-mundo oriental. Sua conclusão é a de que a “ascensão do Ocidente” se deu apenas no século XVIII e não se deveu ao “excepcionalismo europeu”, mas a fatores que se deram fora da Europa. Precisamente em meados dos Setecentos, os impérios orientais caíram simultaneamente: foi o colapso dos safávidas, dos mongóis e o início do declínio da influência chinesa. Ao mesmo tempo, a prata americana possibilitou que a economia-mundo europeia desenvolvesse a Revolução Industrial. Logo, foram tais as condições que criaram uma situação favorável para a ascensão da Europa ao controle do sistema-mundo oriental, não a ética protestante do trabalho. Fernández-Armesto, por sua vez, ao estudar como a humanidade se espalhou pelo globo desde o surgimento do Homo sapiens até o século XX, faz a longa duração de Frank parecer uma escala reduzida de tempo. Subjacente a essa mega-estrutura temporal, arma-se um conceito de História a partir dos bipolos de exploração do mundo que nossa espécie criou: “divergência” (os modos como a humanidade criou e fomentou diferenças) e “convergência” (como os grupos humanos “vol28 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

taram a se por em contato, trocaram dados culturais, copiaram os modos de vida uns dos outros e se tornaram novamente mais parecidos entre si” (Fernández-Armesto, 2009, p. 13). Para a Primeira Modernidade, Fernández-Armesto sustenta terem sido as rotas marítimas mais importantes que as terrestres, por ampliarem o potencial exploratório e permitirem o transporte mais rápido e econômico de mercadorias. O autor insistentemente enfatiza quão importante foi o fato de os exploradores terem desvendado os sistemas eólicos típicos de cada oceano, possibilitando o uso das correntes de vento e o domínio do ambiente oceânico. Em comparação com essa descoberta, pensa Férnandez-Armesto, a cultura, as ideias, o gênio ou o carisma individual, as forças econômicas e todos os demais “motores da história” seriam insignificantes.

3.3. A escala atlântica de observação Também no mundo Anglo-saxão, a perspectiva de realização de uma história global ou mundial está condicionada e limitada a uma proposta de análise geo-espacial com variantes historiográficas bem distintas. Em seu conjunto, tal tendência vem sendo tratada em diferentes perspectivas como “História Atlântica”. Suas matrizes originárias estão radicadas no pós-Guerra em propostas bastante conservadoras, ligadas aos esforços da criação de tendências anti-isolacionistas dos EUA e de historiadores católicos Norte-americanos, como Robert Palmer. Bernard Bailyn, ao explicar como surgiu a “História Atlântica”, frisa que a ideia de se estudar um “mar fechado” que une terras já havia sido proposta por Fernand Braudel em seu monumental Mediterrâneo. Os primeiros “atlanticistas”, todavia, não o teriam imitado quando começaram a pensar o Atlântico como um oceano que unia continentes e que era, por isso, um mundo fechado, ainda que alguns estudiosos franceses como Pierre Chaunu tenham dito exatamente o contrário e revelado como deviam sua abordagem historiográfica ao grande nome da segunda geração dos Annales. Em língua inglesa, a ideia de uma História Atlântica surge conservadora, ligada à noção de “Comunidade Atlântica”, advinda de debates anteriores à Grande Guerra, mas que teria sucumbido no isoAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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lacionismo pós-1918. Apenas depois da Segunda Guerra é que Forrest Davis e Walter Lippmann voltaram a defender tal comunidade: um “sistema oceânico” no qual os principais poderios militares eram, em relação uns aos outros, como ilhas. Havia, claro, diferenças nacionais dentro da “região atlântica”, mas estas seriam variações de uma mesma tradição cultural da cristandade ocidental ou latina, que ocuparia do Mediterrâneo até a bacia do oceano Atlântico. Era uma espécie de resposta acadêmica à ameaça representada pelo comunismo ao cristiniasmo, Baylin mostra como isso foi forte no Atlântico norte, anglo-saxão, mas como, desde 1948, a Europa como um todo pareceu responder a essa tendência. O historiador belga, Jacques Pirenne (filho de Henri Pirenne), publicou no terceiro volume de seu monumental Grands Courants de l’Histoire Universalle, uma seção intitulada: “O Oceano Atlântico forma um mar interior ao redor do qual se formou a Civilização ocidental”. Meses depois, Michael Kraus publicava The Atlantic Civilization: Eighteenth-Century Origins e, em 1950, Vitorino Magalhães Godinho, lançou dois textos nos Annales, “Création et dynamisme économique du monde atlantique (1420-1670)” e “ Problèmes d’économie atlantique. Le Portugal, flottes du sucre et flottes de l’or (1670-1770)”. Três anos depois, Pierre and Huguette Chaunu publicariam o ensaio “Économie atlantique Économie atlantique, économie-monde (1504-1650)”. Na mesma rota, tantos outros seguiram. A ideia subjacente a essas publicações, inextricavelmente ligada à lógica da Guerra Fria, afirmava a existência de um “sistema atlântico”, expressão cunhada por Palmer para descrever os movimentos revolucionários ocorridos na Europa Ocidental e nos Estados Unidos no último quartel do século XVIII. Tal “sistema atlântico” de Palmer foi alargado para uma derivação ontológica: a de que o Atlântico representaria o oceano da “civilização ocidental” de matriz europeia, liberal, democrática, cristã que se espalhara para a América do Norte, onde bem germinara, e também para a América do Sul e África, onde teria se degradado. Essa derivação não era explícita, mas jazia como pressuposto nas estruturas com as quais se descreviam o comércio e intercâmbio atlânticos. Com o fim da Guerra Fria, a partir dos anos 1980 e 1990, houve o nascimento de uma “nova História atlântica”, em que se buscava fazer a crítica dessa versão do Atlântico “à la OTAN”, centrada em um “Atlântico Norte”, “Branco” ou “Inglês” para usar expressões de 30 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

David Armitage e Baylin. A expressão “sistema atlântico” cedeu vez à “mundo atlântico”, com uma substancial ampliação da escala geográfica, que passa a dar lugar mais privilegiado aos continentes africano e latino-americano, e ao Caribe. Alguns temas, como o do comércio, permanecem, mas outros, como os da mobilidade humana, forçada ou não (as diásporas e as migrações), os intercâmbios de ideias, os vínculos políticos, permanências e transformações culturais entram para agenda de pesquisa. Bernard Bailyn, Jack Greene, John Elliott, Nicholas Canny, Jorge Cañizares-Esguerra e David Armitage promoveram diferentes iniciativas acadêmicas, inclusive do ponto de vista institucional, criando seminários e grupos de pesquisa em universidades norte-americanas, e incentivando publicações no sentido de estimular o debate e a compreensão de alguns aspectos da história dessa comunidade atlântica. Dentro dessa vertente, diferentemente do que propusemos no item anterior, continua-se a se pensar o mundo atlântico como um mundo feito pelos europeus e euro-americanos: “esta concentração em europeus se justifica porque o mundo que emergiu foi, principalmente, da sua concepção e europeus permaneceram seus gestores até o fim do século XVIII”. Os historiadores atlanticistas estão, contudo, cada vez mais cientes de que os europeus não fizeram nada sozinhos neste mundo, e a contribuição de africanos e nativos para formá-lo é pedra angular para que esse trabalho naturalmente comparativo a que se propõe a História Atlântica seja, de fato, efetivo (Canny, 2001, p. 408). Outro fator de razoável consenso entre as várias formas de História Atlântica é a periodização, ligada inextricavelmente à Primeira modernidade: se antes das navegações o mundo não esteve integrado pelo Atlântico, desde o Iluminismo e, no decorrer do século XIX, o mundo teria entrado em um sistema mundial global. Também é ponto pacífico que escrever Histórias atlânticas é não se prender a projeções nacionais, nem tampouco pressupor que a comparação deva se restringir à soma de várias histórias nacionais: a comparação a ser feita é a de coisas compartilhadas por e abrangendo todas as localidades banhadas pelo oceano (Baylin, 2005, p. 111). Outro fator bastante presente nessa forma de pensar a modernidade é o pressuposto de que as estruturas formais e legais não necessariamente refletem a realidade. Como a História Atlântica é a história de um mundo em movimento, multitudinário, por vezes muito violento, As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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abarcando pessoas e processos em três continentes, com suas inúmeras economias regionais, línguas e estruturas sociais, a “tarefa não é a de descrever os elementos estruturais abstratos e meta-históricos”, mas mapear movimentos e dinâmicas (Baylin, 2005, p. 61). Se considerarmos que, de 1492 até o início do século XVII (em algumas regiões até o XVIII), tudo o que houve nas áreas de contato entre europeus e autóctones foi fluido, indeterminado, sem estruturas ou identidades estáveis, e que uma imensa parte das trocas comerciais se dava de forma ilegal ou sem controle estatal, fica difícil crer que documentação legal reflete “a” realidade. Há que se reconhecer o alto grau de incerteza e o espectro de falha sempre presente nos empreendimentos daqueles que viviam no início da Idade Moderna. Poucos aspectos da vida cotidiana daqueles seres humanos eram permanentes ou perenes: “Carefully constructed relationships could crumble without warning because of changed policies or personnel in places thousands of miles away. Epidemic disease mad all plans vulnerable, as did the presence of pirates” (Kupperman, 2012, p. 3). Aqui reside uma das principais diferenças da abordagem Atlântica para com as Histórias imperiais ou com as que apostam em um Antigo sistema colonial, e [que?], por outro lado, aproxima-a da noção de Antigo Regime estendido aos “trópicos”. Karen Kupperman nos ajuda a entender essas aproximações ou distanciamentos epistemológicos, quando escreve que a História Atlântica não pensa a existência de impérios europeus apriorísticos para, consequentemente, seguir suas ligações transatlânticas entre os centros do Velho Mundo e suas colônias ou feitorias na África e América. Em um mundo em que as contingências criam as formas de experiência, cada colônia ou estação deixa de ser vista como uma ilha isolada que se comunicava apenas com sua metrópole. Concordamos com a autora quando ela afirma que: “One could go so far as to say that no colony or venture could have survived if its people had not exchanged and traded with all comers, whether they were from supposedly enemy empires or from indigenous people. […] This means that much of the trading and exchange was along the coasts, as circum-Atlantic enterprises came to be as important as trans-Atlantic ones. In short, Atlantic people were caught in webs of interdependence” (Kupperman, 2012, p. 1).

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Os críticos da História Atlântica construíram, contudo, uma pletora de observações sobre essa forma de abordar a primeira modernidade que vale a pena ser passada em revista. A primeira crítica é quanto à periodização. Como já argumentamos, o mundo era conectado anteriormente, ainda que essa conexão não tivesse a magnitude que adquiriu depois do século XVI e que não tivesse a Europa como sua mola propulsora (mas não necessariamente como centro). Nesse sentido, ainda que não pelo Atlântico, é lícito reconhecer um mundo interconectado no Índico, rotas africanas de intercâmbio comercial e cultural, mundos eurasiáticos e interamericanos. Muitas dessas rotas foram, a bem da verdade, incorporadas ou utilizadas pelos europeus quando da expansão moderna. Por outro lado, escolher a “Era das revoluções” como ponto de fim da experiência atlântica é, talvez, algo reducionista, pois embora haja que se pensar que o Pacífico ganha muita relevância para o imperialismo europeu com o desabar da colonização americana, o mundo africano, americano e europeu continuaram a ter ligações íntimas e interdependências. Uma segunda crítica bastante comum: os parâmetros da nova História Atlântica, por mais que se esforcem em fazer o contrário, continuam a ser anglo-saxões, uma vez que o mundo ibérico ou, para usara expressão de Gruzinski, a monarquia católica, desde seu início, era global, mundializada. Ainda que os “atlanticistas” advoguem, com certo grau de razão, que o Pacífico continuou sob controle asiático depois das navegações, negar a carreira entre Oriente-Manila-Acapulco ou a presença portuguesa e holandesa por aqueles cantos do mundo, é menosprezar experiências definidoras da modernidade. Durante todo o século XVI, as Américas foram celeiro de utopias de enriquecimento fácil, de almas para o paraíso, mas também empecilho para se chegar à Ásia por uma rota ocidental: a passagem para o Pacífico, pelo norte e pelo sul, continuou a ser buscada. A África oriental estava integrada ao funesto comércio de homens tanto quanto Angola e Guiné. O douto inaciano José de Acosta, um dos grandes eruditos do XVI, pensou uma categorização de povos civilizados e bárbaros (de longa fortuna crítica) baseado em suas observações da realidade peruana e mexicana, bem como em notícias recebidas pela inacreditável e multifacetada teia global de comunicação dos jesuítas, que lhe trouxe descrições vívidas e marcadamente europeias tanto de japoneses, indianos e chineses, como dos “selvagens índios do Brasil”. Em Tepozotlán, imagens As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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cristãs feitas no Oriente, assim como murais dos 23 mártires do Japão, enfeitaram igrejas até o XVIII. Na mesma época em que Montesquieu usou o trabalho dos jesuítas sobre a China para criticar a sociedade cristã europeia e a escolástica desses mesmos padres da Companhia, mostrando como era possível existir uma civilização refinada sem a Igreja, a catedral de Mariana, na América portuguesa, ganhava um órgão de tubos feito em Hamburgo, por Arp Schnitger, que fora rejeitado por uma igreja franciscana em Portugal, depois de ter sido todo pintado com cenas, estilo e cores orientais. Ou seja, por mais que a nova História Atlântica apresente-se como uma recuperação da experiência atlântica, daquilo que é comum como pano de fundo formativo, e que faça a autocrítica de sua fixação no Atlântico norte de língua inglesa, tal historiografia ainda é uma história das diferenças entre católicos e protestantes, e do sucesso do mundo da Europa do Norte e do fracasso do mundo Ibérico. Pagden, por exemplo, ao fazer um livro sobre a primeira modernidade do ponto de vista da mobilidade e dos valores políticos dele advindos, escreve, sem nenhuma novidade, que “em virtude da obsessão de seus governantes pela riqueza ilusória contida nos metais preciosos, a Espanha também deixou de desenvolver o potencial comercial e agrícola de suas possessões de além-mar”; ou que, “na maior parte do continente onde houvera unidade religiosa, erguera-se uma cortina de confessionário separando o norte predominantemente protestante do sul predominantemente católico. Essa distinção não era apenas religiosa. Era também cultural, política e econômica. Na metade do século XVII, novas ideias nos campos das artes e ciências encaminhavam-se a passos firmes para o norte” (Pagden, 2002, pp. 118 e 123).

Trechos como esse continuam a mostrar apenas as diferenças entre um mundo católico, ibérico, e outro protestante, e, numa apropriação pobre de ideias weberianas, em termos valorativos, coloca a Península Ibérica como obcecada por metais preciosos e sem cultura, ao passo em que o Norte, protestante, seria trabalhador e culturalmente rico. Se as colonizações protestantes fossem assim, tão desapegadas do vil metal, e mais concentradas em produzir riquezas pelo trabalho e pelo comércio, a ocupação do Oeste americano e da África do Sul, de subsolos ricos em ouro, petróleo e diamantes, teria sido distinta. Colonizadas por “eluci34 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

dados reformados abnegados, cultos, e comerciantes trabalhadores”, tais terras parecem ter padecido dos mesmos males da colonização ibérica do XVI..., mas em pleno século XIX, tão cônscio das experiências da primeira modernidade! Tentando chamar a atenção para a necessidade de dar um enfoque mais “pan-americano” à História Atlântica, Cañizares-Esguerra (2006), por exemplo, mostrou o fenômeno de “Iberianização” do Atlântico na modernidade; ou seja, como tradições, fontes e tropos de historiografia ibérica foram apropriadas pela literatura puritana. Sua tese aproxima católicos (em especial, espanhóis) e protestantes (puritanos da Nova Inglaterra), mostrando que, malgrado séculos de bibliografia que os diferenciam, existem semelhanças em seus projetos colonizadores, quando pensados como atos de Reconquista e cruzada contra o demônio no Novo Mundo. A própria geografia – pensar o Atlântico como mar interno dos três continentes que são por ele banhados– é passível de críticas. Mais uma vez, Cañizares-Esguerra, desta feita com Erik Seeman, lembra-nos que devemos considerar o “Atlântico” como um conceito e não como um dado natural ou unidade de análise. Pensando a cartografia e o vocabulário da primeira modernidade, de fato, não existia o Atlântico. O que hoje reconhecemos como Atlântico Norte era visto, no XVI, como “Oceanus septentrionalis”, o Atlântico Equatorial como “Oceanus Occidentalis”, e o Atlântico Sul como “Oceanus Australis”. Da mesma forma, nos séculos XVII e XVIII, cartógrafos geralmente chamaram o Atlântico Norte de “Mar del Norte” e o Atlântico Sul de “Oceano etíope”. Apenas no século XIX é que a extensão de água entre as Américas, Europa e África passou a ser conhecida pelo termo “Oceano Atlântico”. Mesmo assim, os autores argumentam: “para termos uma noção se o Atlântico é uma categoria natural, tente responder a esta pergunta: quais são suas fronteiras do sul e no norte? Ou seja, onde termina o Atlântico?” (Cañizares-Esguerra & Seeman, 2006, p. IX). Mas, esse “flagrante anacronismo” caso seja “iberianizado” pode revelar uma noção de unidade: afinal, espanhóis e portugueses, mais do que ingleses, chamaram o “mar” que separava a Europa da América, como um todo, de “Mar Oceano” desde o início das navegações. As críticas podem ainda se tornar mais severas. Há aqueles que acreditam que a História Atlântica é mero disfarce de uma clássica As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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História imperial, apenas mais “politicamente correta”: a história imperial norte-americana (com substrato britânico). Além disso, ao fazer História Atlântica, não se estaria escrevendo apenas uma História litorânea e, com isso, criando outras margens? O atlanticista, segundo muitos críticos, concentra-se em áreas costeiras urbanas, portos, esquecendo-se que tal “mundo atlântico” era interligado, por terra, ao interior dos continentes e ao mundo do Pacífico. Por fazer isso, marginalizaram-se comunidades indígenas, camponeses e toda uma gama de inter-relações das mais variadas sortes entre interior e litoral. “Muchas de las técnicas y de los saberes que posibilitaron la llegada de los exploradores europeos a América procedían de Asia y habían sido utilizados por los musulmanes durante siglos” (Guardia Herrero, 2010, p. 156). Em resumo, o Atlântico surgiu como um paradigma, em primeiro lugar, para criticar a redução da historiografia colonial como um prelúdio da história nacional (em especial no mundo anglófilo) e, em segundo lugar, para diversificar a história colonial da América do Norte, introduzindo vozes de outros atores numa antiga, mas dominante, narrativa masculina e anglicista do nordeste dos EUA. A historiografia atlântica trouxe, para a narrativa da história colonial da América do Norte, a pradaria e as comunidades ameríndias do Sudeste, além de africanos, mulheres, plantadores caribenhos e várias outras políticas imperiais (holandesas, francesas, espanholas e até russas) que não apenas inglesas. Apesar de todos os êxitos no alargamento das narrativas tradicionais das origens da nação norte-americana, a categoria, em si, continua problemática à medida que o desequilíbrio historiográfico entre as várias regiões da bacia atlântica se torna evidente. Tomemos o exemplo da história do Atlântico Africano. O comércio africano de escravos e a história afro-americana são campos vibrantes e crescentes na historiografia atlântica. Mas o campo como um todo privilegia o estudo dos povos de ascendência africana nas Américas, ou mesmo na Europa, à custa daquelas no próprio continente africano. James Sweet talvez tenha oferecido a crítica mais penetrante disso em seu Domingos Álvares. Embora o livro seja claramente sobre a história do tráfico de escravos e sobre a escravidão no Atlântico português, Sweet usa a história do curandeiro Domingos para cavar fundo na história pré-colonial setecentista do reino africano do Daomé. Em vez de usar os arquivos da Inquisição para lançar luz sobre a europeização 36 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

do conhecimento médico de Domingos, Sweet utiliza a documentação associada a um julgamento que condenou Domingos a abandonar o Rio de Janeiro e a uma vida de exílio peripatético em Portugal para interpretar a história pré-colonial da África. Sweet move-se através do Atlântico para explicar o papel dos curandeiros vodu em comunidades sob turbulência e coação. Domingos pertenceu a uma tradição vodu que se modificou e se adaptou no Daomé tanto quanto, mais tarde, o faria no Brasil. Em todo o livro de Sweet, Domingos continua a ser um sacerdote Sakpata vodu. Este movimento analítico permite a Sweet colocar as tradições políticas de cura Yorubá no centro de uma história intelectual do Atlântico. As narrativas de “criolização” (europeização) perdem força, cedendo espaço a uma história do Atlântico construído sobre a história da África e dos seus povos, e não sobre a Europa, como é frequentemente o caso (Sweet, 2011). Colocando a África e os africanos diretamente no centro do Atlântico, David Wheat ofereceu-nos também um relato notavelmente fresco da colonização do Caribe. O autor estuda o assentamento original dos portos atlânticos espanhóis no Darien (atual Panamá), Tierra Firme (continente sul-americano) e Cuba. A maioria dos escravos africanos do século XVI trazidos para as Américas acabou em portos atlânticos como Veracruz, Nombre de Dios, Cartagena e Havana, onde os africanos trabalhavam como escravos de aluguel, ganhando a manumissão. Estes escravos acumularam bens, construíram riqueza e tornaram-se vecinos (algo como a cidadania do mundo espanhol). Era o mesmo modelo de colonização seguido pelos portugueses em Cabo Verde. Wheat mostra-nos que para entender a história primitiva do Caribe é preciso recorrer à Gâmbia e Cabo Verde, e não à Europa (Wheat, 2016; sobre a cidadania, cf. Herzog, 2003). Há outro descentramento que também é importante. Trata-se de pensar quais tradições institucionais atlânticas foram normativas e dominantes. O Atlântico britânico (a origem e ainda o foco de muito da historiografia atlântica) foi construído sobre modelos e esquemas ibéricos. Não apenas pelo fato de que a Espanha dominou a colonização das Américas por pelo menos cento e cinquenta anos nos quais, portanto, os britânicos ocuparam posições marginais. É também que o Atlântico britânico emergiu como um apêndice subordinado do mundo ibérico. Mark G. Hanna, por exemplo, mostrou que todas as colônias britânicas As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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nas Américas começaram como ninhos piratas, predando o comércio e as commodities espanholas para a sobrevivência. Somente no final do século XVII a economia britânica de invasões deu lugar a redes intercoloniais comercialmente viáveis e auto-sustentáveis (Hanna, 2015). E mesmo depois que a pirataria passou a ser considerada crime contra a monarquia e o império, o Atlântico britânico continuou a crescer e a expandir-se predando prata americana espanhola obtida através de contrabando (O’Malley, 2014. O mesmo pode ser dito do Atlântico holandês; cf. Rupert, 2012). Essas novas percepções sobre as origens derivadas e dependentes do Atlântico britânico têm significado historiográfico. Como Christopher Heaney demonstrou, os primeiros movimentos ingleses de colonização aspiravam a imitar a Espanha, e incluíam entre seus planos encontrar seu próprio império inca para conquistar e enterros indígenas cheios de ouro e prata para saquear. Foi a incapacidade de encontrar um tesouro funerário semelhante ao de um Inca que organizou as percepções imperiais etnográficas inglesas sobre as comunidades indígenas locais, desde a Guiana até Massachusetts, ao longo dos séculos XVI e XVII (Heaney, 2016).

Conclusão: as Américas como um cadinho de Histórias emaranhadas. Em suma, a história do Atlântico da Primeira modernidade que propomos nesta coleção deixam claros os complexos emaranhados que entrelaçam vários grupos étnicos. O Atlântico foi uma co-criação de muitos povos que se misturaram e lutaram uns com os outros. Nenhuma vila, cidade ou indivíduo, depois do contato, poderia apenas ser vista de forma isolada (Cañizares-Esguerra & Breen, 2013; Gould, 2007). A literatura sobre commodities, pirataria e contrabando, por exemplo, tornou esses emaranhados aparentes. Quer se trate de bacalhau, mogno, cochonilhas, vinho da Madeira, pau-brasil, açúcar, prata, tabaco, chocolate ou cauris, a produção e distribuição de qualquer bem desencadeou uma série de emaranhados comerciais e étnicos que tornaram toda a bacia atlântica uma fronteira de limites porosos. Em muitas ocasiões, entretanto, ultrapassar fronteiras tornou-se a política 38 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

deliberada de alguns Estados para enfraquecer seus rivais. O agressivo cruzamento de fronteiras que dava corpo às práticas de pirataria e contrabando, por exemplo, tornou-se o meio preferido para que os britânicos e os holandeses tivessem acesso à prata espanhola (Hanna, 2015; O’Malley, 2014). Ao mesmo tempo, a América e a África Central Ocidental testemunharam o aumento da escravidão em uma nova escala continental. Milhões de cativos viajaram involuntariamente grandes distâncias para serem vendidos a famílias, minas e plantações na Europa, África e Américas. Todo grupo ameríndio que teve contato direto ou indireto com gente vinda de fora das Américas acabou por se reconfigurar por conta dessa integração agressiva de estranhos, que incluía os africanos (Snyder, 2010). As primeiras cidades europeias na bacia atlântica não eram compostas de colonos europeus, mas de africanos. Os estudiosos estão agora nos lembrando vigorosamente que os africanos no século XVI não vieram para as Américas principalmente para trabalhar em plantations, mas para serem colonos em cidades portuárias, como as de Cabo Verde, Panamá e Havana (Wheat, 2016). Todas as cidades da vasta bacia atlântica, desde Lisboa e Sevilha, na Europa, passando por Benguela e Ouida, na África, até Potosí e Jamestown, nas Américas, eram microcosmos étnicos, mosaicos de histórias atlânticas emaranhadas (Cañizares-Esguerra, Childs & Sidbury, 2013). Trabalhos recentes também deixaram claro que as mercadorias eram, elas próprias, transmissoras de velhos e novos mundos étnicos. Os estudos sobre tabaco e chocolate, por exemplo, demonstraram que os padrões de consumo mexica e maia se moveram praticamente incontestes para a Europa. Charutos ameríndios para tragar, misturas de pós com especiarias para inalar, e folhas aromáticas secas e curadas para serem mascadas, primeiramente, afastaram-se do controle das elites ameríndias para o mundo informal dos marinheiros euro-africanos caribenhos que, por sua vez, contrabandearam essas mercadorias para todos os principais portos europeus do Atlântico. Na Península Ibérica, a coroa espanhola rejeitou o mundo ameríndio associado ao tabaco, mas incorporou a mercadoria em sua economia fiscal. A tributação sobre o vício levou a um “monopólio” estatal sobre o tabaco, ou seja, o cultivo de impostos sobre a produção e comercialização. No final do século XVII, a coroa espanhola ganhava mais do monopólio fiscal do tabaco do que da prata. Este era o mundo emaranhado da produção de tabaco (Norton, 2008). As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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A literatura sobre a história do conhecimento também tem nos mostrado um mundo igualmente emaranhado. Até recentemente, a história da ciência nos oferecia viajantes e cientistas solitários percorrendo terras americanas e africanas em busca de curiosidades e coleções. Sob um exame mais atento, porém, este mundo de viajantes, cosmógrafos e naturalistas europeus parece muito menos europeu e muito mais atlântico e híbrido. Suas descobertas, afinal, eram, muitas vezes, nada mais do que uma tradução ou pirataria disfarçada. Era típico de tripulações ibéricas, holandesas e britânicas integrar pilotos indígenas para ganharem conhecimento de novas correntes e novos mares. Alianças e oficinas de tradução de informações úteis são o cerne das descobertas europeias (Safier, 2008; Delbourgo, 2011). Essa rápida apropriação também aconteceu com a materia medica. A nova historiografia sobre a história natural do século XVI mostrou a enorme escala de oficinas de tradução em todo o continente americano, particularmente no México, onde os nativos treinados pelos franciscanos produziram, em latim, obras de referência sobre plantas, além de imensas enciclopédias de história natural, redigidas de forma poliglota, como o caso do Códice Florentino. Tais histórias naturais mexicanas moldaram profundamente ideias sobre a natureza na Academia dei Lincei de Galileu, bem como na Royal Society Britânica. Os estudiosos estão agora começando a perceber que o Renascimento e Iluminismo Europeu são vastas enciclopédias de conhecimento global híbrido: processado e embalado na Europa, mas não invenções europeias (Freedberg, 2003; Conrad, 2016; Carney & Rosomoff, 2009). Historiadores também perceberam que, no reino dos encontros religiosos, há vastos mundos submersos de conhecimento atlântico. Vodu e curandeirismo, por exemplo, tinham agentes transatlânticos próprios, que se tornaram formidáveis figuras intelectuais nos subterrâneos da cultura popular. Esses agentes, sacerdotes Sakpata, como Domingos Álvares, uniram firmemente os mundos médicos do Daomé à diáspora católica africana na Bahia, Rio e Lisboa. Este mundo médico-religioso transatlântico do século XVIII não se enfraqueceu com o fim do tráfico de escravos no Atlântico, mas sim aprofundou-se na medida em que o candomblé brasileiro moldou as paisagens nigerio-yorubanas ao longo do século XX (Sweet, 2011; Matory, 2005). No entanto, apesar de toda essa nova consciência das dimensões atlântica e global da história da primeira modernidade, o campo 40 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

ainda segue atrelado à histórias nacionais. Uma das críticas mais acentuadas do paradigma atlântico surge quando se pergunta a história de quem se pretende recuperar. Como vimos, há preconceitos geoculturais integrados na própria categoria de Atlântico. Mas, apesar das limitações, os muitos outros insights historiográficos que se seguem a partir da premissa que defendemos nesta coleção (que busca inserir as Américas, em perspectiva emaranhada, na Primeira Modernidade), e que não podem ser abordados nesta breve introdução, são evidências de um campo que continua a expandir seus horizontes originais.

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Capítulo 1 Os índios: povos ancestrais, sujeitos modernos Alexandre C. Varella Os primeiros povoadores da América trazem consigo e difundem muitos traços de seu modo de vida ancestral na reconexão entre dois mundos. Aliás, estruturas mentais ameríndias não persistem até hoje apesar da aceleração dos tempos? Se esse entendimento é ponto pacífico na etnologia, também para muitos há a convicção de que os indígenas se reinventam constantemente. Apropriam-se dos outros com facilidade tremenda. Quanto a isso, não dá para saber se existe um peculiar substrato cultural “transformativo” para que aflorem as teses mais ousadas sobre o comportamento nativo, ou então, se essas teses, na esteira de pensadores como Claude Lévi-Strauss, é que mantêm a esperança de uma característica inerente à América profunda. Não importa: o poder de mutação é o grande charme dos indígenas. Ao menos no raciocínio de que foi inevitável lidar com as circunstâncias da irresistível globalização. Entretanto, na interpretação das aparências de perdas e assimilações, ensinamentos como de Marshall Sahlins indicam que há sempre lógicas arcaicas debaixo dos choques de qualquer modernidade. Convém apresentar os indígenas como tradicionais e inventivos ao mesmo tempo. Afinal, não é novidade, inúmeros acadêmicos têm jogado com a tensão entre forças e sentidos de conservação e de alteração na leitura de uma nova época inaugurada em 1492. Mas nessa discussão é crucial e difícil ponderar os âmbitos do protagonismo indígena, bandeira da etno-história. Porque a narrativa pode concentrar-se na “agência” desses povos ou de certos indivíduos, porém, não tem como esconder aspectos como o terror e a coerção, formas graves da sujeição social. Além do mais, a hegemonia europeia oferece regras e caminhos para a expressão dos subalternos. Ao privilegiar os atores sociais indígenas, é salutar que os pesquisadores advirtam sobre a dominação social e as assimetrias nas relações de poder no instante em que mostram as vias de mão-dupla e a vaAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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riedade de processos (tais como) de apropriação, justaposição e recriação entre as culturas. No diáfano das práticas e representações, a América fora povoada de misturas e conjunções, adaptações entre diferentes povos, ou melhor, entre subculturas e grupos de poder de várias origens. Assim, foi tomada pelos impasses, resiliências, confrontos físicos, embates no imaginário. É envolvente a força das interdições e das imposições de hábitos. Também ocorrem mútuas incompreensões e os indígenas podem ficar no meio do caminho, pendulando entre duas culturas, como no sentido de nepantla.4 Esta terra torna-se campo privilegiado de trocas fragmentárias. Contudo, existem sempre traduções e arranjos em que os diversos “outros” de alguma forma se entendem. Assim, despontam elementos e posicionamentos indígenas que são – com o perdão da palavra – sincréticos, como no sentido de tinkuy.5 Talvez tão importante quanto reconhecer a grande diferença entre os nativos e os adventícios é evitar a sedutora ideia de blocos coesos e rígidos vistos em contraposição na evolução histórica. Mas esta inclinação ainda hoje é natural. Não há muito como fugir disso. Porém, contribui para evitar a dicotomia culturalista uma atenção para os mecanismos de construção étnica e identitária a partir de aportes como de Fredrik Barth e Richard Jenkins, sendo que (a velha) História Nova e outras iniciativas também oferecem substanciais reflexões sobre a alteridade na época colonial. Seguem fortes as tendências – já chamadas de pós-estruturalistas e de pós-modernas – por perceber um caleidoscópio de posições e situações instáveis, contextuais, plurais. As manifestações sociais e discursivas talvez despontem mais de maneira caótica e não progressiva, que de um jeito ordenado e direcionado para chegar a uma determinada configuração. Seguramente, a força inexorável da história são as mudanças, apesar de que elas também se definam por acomodações e indiquem regularidades. Essas assertivas denotam mais paradoxos que soluções para a análise dos indígenas no início da modernidade. Não obstante, para ob4  O Vocábulo náuatle do centro do México nepantla (no meio, entre) remete a uma situação de limbo cultural, como acentuou Miguel León-Portilla e outros autores depois dele, em resgate de uma passagem da obra do frei Diego Durán, terminada na década de 1580. Este cronista dominicano situou a palavra em conversa com um indígena que não se via mais com as antigas crenças e nem tomado pela nova lei cristã. 5  A palavra quéchua significa “encontro”, como na junção de dois rios, mas também tem a semântica de “luta”, resume Luis Millones ao retomar reflexões de outros etno-historiadores em referência aos cronistas indígenas andinos.

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servar alguns aspectos da construção do “índio”, nada melhor do que enfocar o estudo perante os principais núcleos de expansão da Coroa católica que obteve o apoio de Roma e controlou as instituições clericais em seus domínios. Após algumas décadas da experiência de exploração das Antilhas começa a entrada dos espanhóis nas regiões da Mesoamérica e dos Andes Centrais. Note-se que num período de mais ou menos duzentos anos, os “naturais” da Nova Espanha e do Peru passam por situações e processos que redundam em franco desmanche do corpo social. Acima de tudo, pela enorme queda populacional. Em aparente contradição, é concomitante e contínua a ressurgência política e cultural dos “povos locais”. Um novo ritmo de trabalho com a entrada em cena dos invasores ibéricos vem integrado à campanha evangelizadora e ao reconhecimento da escrita alfabética como instância privilegiada de conhecimento para os mais diversos propósitos. De fato, forças avassaladoras se impõem aos nativos. No entanto, isso significa também novos instrumentos para seu posicionamento ou afirmação na ordem pós-conquista. A figura do índio é uma generalização, mas também uma fórmula inovadora. A condição ou status de naturais das “Índias de ocidente” tem pervagante impacto social com fortes consequências identitárias, quando o ideal de uma nova cristandade e da vassalagem real consiste no fator central para as diretrizes do governo sobre essas populações. Enquanto que a distinção torna-se a principal carta na manga dos próprios indígenas e mestiços aderentes à condição jurídica e às corporações “índias” formando a mais importante “nação” daqueles “reinos” do Novo Mundo sob domínio espanhol. O começo da história do índio praticamente se confunde com a história geral dos primeiros séculos da América. Assim, entre os objetos de vários capítulos desta coleção necessariamente estão os descendentes dos antigos americanos. Até por causa disso, este ensaio está longe de constituir um esquema abrangente. Pouco se dedica em pensar os índios nas histórias conectadas ou na história atlântica e raramente beira o século XVIII. Mas algo traz da comparação entre duas grandes regiões indígenas nos termos da árida discussão de permanências e transformações com assuntos relevantes de um longo século da conquista espanhola e formação da Nova Espanha e do Peru, aludindo a As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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diversos documentos/monumentos. Que esse esforço venha incentivar leituras e investigações a respeito dos ancestrais habitantes da América como sujeitos modernos.6

América antiga em mudança A população desta terra viveu quase que totalmente separada da outra por tanto tempo que os currículos escolares teriam como contemplar uma disciplina regular de História da América Antiga. Devido à intensidade dos fluxos internos, tudo foi mais ou menos compartilhado: o mundo simbólico, os costumes, inclusive a cultura material. A atenção para um substrato comum e práticas aparentadas faz notar que apesar da enorme diversidade de línguas e culturas, havia pouco contraste entre povos sedentários e não-sedentários. Como exemplo: a busca de visões e outras formas de contato com mundos extraordinários, práticas geralmente associadas aos “bandos” de caçadores-coletores, eram endêmicas entre castas sacerdotais e dirigentes políticos, inclusive entre outros setores das sociedades que viviam à base da agricultura intensiva. O arcabouço comum aproxima troncos linguísticos e populações tão distantes e incomunicáveis como os tupis-guaranis sul-americanos e os uto-astecas do hemisfério norte. Contudo, é incorreto imaginar que esse mundo estivesse patinando numa só sintonia sem o ritmo das mudanças pelo comércio de produtos e ideias. E palavras como conquista, colonização, migração ou diáspora, usadas comumente para descrever o início da modernidade, podem muito bem ser apontadas para eventos e dinâmicas comuns da época pré-colombiana e que envolviam todo o continente. 6  Optou-se por não citar as referências ao longo de uma narrativa com característica de manual introdutório ao tema proposto, tendo em conta que o roteiro bibliográfico mostra algumas das principais fontes do conteúdo e da análise. Mas as avaliações indicam acima de tudo opiniões do autor. Foram acessadas (ou visitadas) as fontes históricas mencionadas e comentadas no decorrer do trabalho e que em muitos casos relacionam-se a pesquisas e publicações como A embriaguez na conquista da América (São Paulo, 2013), o artigo “Dulces regalos del Nuevo Mundo” na Revista Allpanchis (2009), os capítulos “A dietética no Novo Mundo” em Al otro lado del cuerpo (Bogotá, 2014) e “Las huacas en Nueva España” em La idolatria de los indios y la extirpación de los españoles (México, 2016). Na revisão final do texto houve o apoio decisivo de Maria Cristina Bohn Martins. Muito grato.

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Se havia batalhas ritualizadas em regime de vingança tribal, como nas terras de tupi-guaranis do leste sul-americano ou dos povos nauas do México Central, existiram também verdadeiras campanhas que casavam guerra com ocupação. Os tupinambás e outros percorrem a costa do Brasil eliminando ou expulsando as populações apelidadas de tapuias, práticas pouco distintas daquelas dos portugueses contra os anteriores invasores indígenas, apenas dezenas de anos depois. Os grupos geralmente não-sedentários da região árida do centro-norte do México eram chamados de “nações” chichimecas.7 Os mais antigos desses povos, como os astecas que falavam náuatle, entre os quais os mexicas e tlaxcaltecas, chegaram ao mundo mesoamericano cerca de quatro séculos antes da conquista espanhola. Eles se mesclaram às elites toltecas tornando-se mais um elemento da região. A etnia inca também teria saído de uma área para outra. De toda forma, o grupo é incubado num processo de interação com as parcelas mais antigas de Cusco, o que deve ter durado algumas gerações. O processo de ocupação espanhola não foi tão diferente a esses padrões de conquista e acômodo com mescla populacional. E a despeito do argumento de o movimento dos cristãos ter tido o diferencial de um deus zeloso que afrontava o politeísmo, não se pode afirmar que o emblema do sol e da lua ou que a “serpente emplumada” deixassem de implicar verdadeiro domínio social. A entidade Quetzalcôatl, motivo do centro urbano e cerimonial de Teotihuacán e de outras monumentais “Tula”, base da autoridade de diversos governantes, locais do centro do México no século XVI; ou então, o culto ao “grande filho do Sol”, o Sapa Inca, que se associara a oráculos regionais como o poderoso Pachacámac, com sua casta de senhores e sacerdotes no litoral peruano, são exemplos de cultos de elites expansionistas. Elas se colocam superiores perante a heterogeneidade de crenças, muitas vezes de âmbitos corporativos e étnicos bem precisos.8 As chamadas “altas culturas” americanas muitas vezes têm sido apontadas, com boas razões, como sociedades estatais. É complicado, entretanto, destacar uma qualidade superior perante demais sociedades 7  As palavras indígenas aparecem neste trabalho ora no plural pelas corruptelas no espanhol colonial ou devido a usos na academia, que, por outro lado, também traz termos em singular mesmo que tratando de coletivos, ferindo-se a sintaxe de línguas locais no intuito de facilitar a leitura. 8  Advirta-se que não há espaço para destacar, nesta síntese de comparações entre as “grandes áreas culturais”, as variações ecológicas, desenvolvimentos históricos peculiares, interações regionais e a diversidade étnica e cultural dos pequenos nichos sociais.

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que também manifestavam, a seu modo, culturas complexas. Mas é claro que as “civilizações originais” da América nunca deixariam de fascinar pelas peculiares realizações. Entre outras que inferem centralização política, estão à vista as ruínas de antigas plataformas e edifícios com pedras alcantiladas, adobes e outros materiais. Essas construções espalhavam-se pela Mesoamérica e a região andina, mas também estavam fora dessas esferas.9 Padrões iconográficos pan-indígenas podem ser vislumbrados e associavam-se a práticas festivas, cultuais, guerreiras, senhoriais. Muito comum em toda a América foram os bailes com percussão e outros instrumentos e cantos para tratar de eventos e situações diversas boas e ruins, da guerra ao amor. Os hayllis peruanos e os mitotes mexicanos deslumbraram muitos cronistas espanhóis. As falas melódicas e performáticas podiam ser chamadas taki nos Andes e cuicatl no México central. Nesse ponto convém ressaltar as milenares escrituras logográficas mesoamericanas em suportes como os vasos de cerâmica, as lápides de pedra, e particularmente os biombos de couro ou de fibra conhecidos como amoxtli e que os espanhóis chamavam de “libros de pinturas”, atualmente catalogados como “códices”. Serviam para uma gama de coisas, como a organização de rituais, e davam suporte à narrativa dos mitos. Podiam fazer o registro para a coleta de tributos e muitos códices representavam o calendário “divinatório” comum em toda Mesoamérica,10 o qual interagia de forma complexa com os cálculos astronômicos. Havia anais que destacavam as conquistas e as sucessões de grupos governantes, como entre mistecos e maias.11 Também peculiares foram os registros andinos de quantidades e memórias, lidos em arranjos de cordas com nós e fitas coloridas conhecidos como quipos.12 Enfim, essas ex9  Como em Cahokia no atual estado de Illinois, como na ilha de Marajó no Pará. 10  Esse ciclo conhecido como tonalpohualli compreendia duzentos e sessenta dias na combinação de treze números com vinte signos que podiam variar de acordo com a região, mas eram relacionados a coisas, animais, vegetais e outros códigos animados. Caracterizavam, influenciavam as entidades divinas e as pessoas. 11  A partir de caracteres logossilábicos, a escrita maia se destaca e podia expressar orações completas junto a uma cronologia que reportava à data de princípio da era ou mundo atual. Mas esse calendário se perde com o colapso da época “clássica” maia, antes do fim do primeiro milênio cristão. 12  Muitos contestam a tese de que os quipus pudessem auxiliar na narração de eventos, como faziam as escritas mesoamericanas. A principal finalidade era o controle, a contagem da força de trabalho, da produção agrícola, dos rebanhos de lhamas e alpacas. Há vestígios arqueológicos

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pressões e muitos de seus usos inferem ricas culturas e a centralização política com o controle de grandes populações.

Anáhuac e Tahuantinsuyo A Mesoamérica estava coalhada de senhorios conhecidos em náuatle como altépetl (água-montanha). Um paralelo muito grosseiro pode ser feito com as cidades-estados helênicas. Cada altépetl mantinha um centro cerimonial e urbano proeminente que podia ter a concentração de bairros de artesãos e vários mercados, dominando aldeias voltadas para a agricultura intensiva. Havia altépetl considerados, posteriormente, como cabeceras, pois mantinham sob controle outros senhorios menores que os espanhóis chamariam de sujetos e que entregavam tributos e ocasionalmente mão-de-obra no sistema rotativo de trabalho coatéquitl, para serviços que exigissem mais empenho, como a construção de templos.13 Muitos altépetl eram compostos por vários grupos étnicos, cada qual normalmente dividido em poucas organizações “clânicas” que usufruíam de um pedaço de terra ou constituíam bairros de artesãos. Podiam chamar-se calpulli, tlaxilacalli, entre outras denominações e subdivisões.14 Dentro dessas corporações estava uma massa de trabalhadores que os espanhóis conheciam como maceguales. Nessas corporações havia algumas famílias que se destacavam formando suas lideranças políticas. Algumas das unidades de famílias estendidas, porém, constituíam-se em grupos da elite superior, entre as quais, as unidades chamadas teccalli (casas de senhores). Compunham uma espécie de casta nobre dos pilli e também havia corporações de elites de guerreiros, comerciantes, sacerdotes. Entre as casas senhoriais mais importantes sedimentavam-se alianças ou pactos em diversas formas de persuasão, coação e entrevero que promoviam grandes líderes tlahtoani (aquele que fala/manda). desse instrumento no horizonte Wari-Tihuanaku, séculos antes do período incaico. 13  O método foi convertido para as demandas dos espanhóis. A organização da tributação das “províncias” próximas e distantes dos grandes senhorios era o principal controle “estatal” supralocal, também apropriado pelos espanhóis. 14  Esses grupos se configuram de várias maneiras e podiam justapor especializações técnicas e de culto às complexas relações de parentesco e de regime de agregados (o que está pouco esclarecido até hoje).

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Havia terras para sustentar ao tlahtoani e grupos de pilli, os quais, ao que parece, tinham oportunidades de negociar as terras, e muitas vezes estas podiam ser de usufruto hereditário. Eles mantinham serviçais, dependentes diretos, como os mayeques. O tlahtocayotl (senhorio) mais importante antes da chegada dos espanhóis no Anáhuac (a terra cercada por águas) era o dos mexicas, que tinham vários altépetl subalternos e que formaram laços com os texcocanos e tepanecas na “tríplice aliança”. Fórmulas tripartites de governo eram comuns na região. Mas os principais inimigos dos mexicas e de seus aliados, os tlaxcaltecas, conformavam uma aliança entre quatro grandes senhorios. Importa salientar que a renda e o uso da terra devem ter-se vinculado muito mais às complexas redes de dependência senhorial do que à definição de associações político-territoriais, o que se assemelha à fragmentária estrutura hierárquica e fundiária da Europa de tempos medievais. No resumo sobre os Andes Centrais há como destacar semelhanças e diferenças com o mundo mesoamericano. Certamente, um bom contraste é o sentido propriamente estatal de uma estrutura supra-regional desde o final do século XV que é herdeira do horizonte WariTihuanaku de centenas de anos antes. Mas seria impróprio identificar o avanço dos incas à imagem do império romano. Edifícios como os templos do sol e das acllas (mulheres escolhidas), os tambos (hospedarias) nas estradas do Tahuantinsuyo (as quatro regiões ligadas) eram também manejados pelos governantes da região onde se encontravam. Respeitados na aliança com os incas, ainda que pactuando a subordinação, os grandes senhores das macro-etnias regionais podiam ser chamados de cápac apu, hatun curaca, entre outros termos. Havia uma quantidade de categorias de curacas abaixo dos grandes senhores. Eles tutelavam a mão-de-obra dos camponeses que viviam em ayllus, corporações similares aos calpulli do México. Os curacas regionais e locais separavam indivíduos dos ayllus que em turnos iam viajar e depois voltavam dos serviços ao estado. Formavam as milícias, os trabalhadores da construção, os pastores de camélidos do inca. Essa gente tornava-se mitmae e chamou-se de mita o sistema de destacamento da mão de obra para as minas de prata, plantações de coca e outros serviços, depois requisitados também pelos espanhóis. As peculiares dinâmicas de prestação e con54 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

traprestação dos serviços aos caciques e auxiliares podem ser descritas como de “reciprocidade assimétrica”. Assim, a instituição de festivais e cultos perpassam o mundo laboral amenizando o fardo. O mesmo acontece na Mesoamérica. Mas a extrema disponibilidade de mão de obra fora das comunidades constitui a base de um modelo econômico característico ao mundo andino.15 No topo da nobreza incaica estavam as panacas. Eram estruturas formadas pela parentela mais próxima de cada um dos incas decessos que, mumificados, continuavam servidos com alimentos e outras oferendas. Esses corpos eram considerados poderosos huacca, ou seja, grandes oráculos. Os grupos dessa alta estirpe empossavam os palácios e terras dos incas anteriores, enquanto o atual mantinha vários ayllus nobres em Cusco para compor sua corte. Os incas também empregavam os yanas em suas terras e palácios, uma categoria de serviçais desgarrados das comunidades de origem e, portanto, distintos dos mitmaes. Assim como em diversas estruturas de poder regionais e locais, os incas se distinguiam pelo exercício compartilhado da chefia. Esquemas duais, trinos, ou quádruplos se relacionam a divisões territoriais e de funções específicas governamentais e religiosas.16 Apesar da crescente centralização política e burocrática, o Tahuantinsuyo apenas extrapolava a partir de mecanismos de controle comuns aos grandes senhorios regionais em boa parte preservados na composição do estado, o qual, antes da conquista espanhola, já se via dividido na guerra entre dois grupos da elite incaica. O Tahuantinsuyo parecia desmoronar, ou pelo menos reconfigurar-se nessas disputas intestinas e na ressurgência de líderes regionais. A Mesoamérica tampouco se encontrava estável, 15  Os trabalhadores transitavam por vários “pisos ecológicos” ou migravam para distantes regiões. Por isso, o mercado e as caravanas de comércio a longa distância, bem como a nucleação urbana e mesmo o tributo em gênero não eram práticas muito comuns ou fortalecidas nas serras andinas. Distinguindo-se do modelo “tributário” característico da distante Mesoamérica ou, ainda, do tão próximo litoral do Peru. 16  Havia o inca de hanan Cusco (da parte de cima) e o de urin Cusco (da parte de baixo). Se as metades de Cusco eram relacionais, havia uma hierarquia e o inca hanan era superior ao urin. Pode ser que este último fosse o líder religioso, enquanto o inca principal representava o poder guerreiro. A organização social dos ayllu e das “províncias” se dava igualmente em metades, em quádruplos (a própria concepção do território inca do Tahuantinsuyo). Na Mesoamérica também houve formas de poder e organização social de metades e outras divisões. Destaque-se que o huey tlahtoani (grande senhor) de México-Tenochtitlan, que fazia a guerra e a embaixada, tinha o apoio do homem da administração doméstica, chamado cihuacôatl (mulher-serpente).

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pois havia fortes rivalidades entre os aliados astecas, bem como poderosos inimigos dentro dessa macro-etnia, ou fora dela, como os purépechas do “reino” de Michoacán. Termina aqui o esboço bastante esquemático e seletivo dos tempos prévios à conquista do México e Peru, o que deve servir para as avaliações de um verdadeiro choque de civilizações que muitas vezes é chamado de “encontro de dois mundos”.

Renascença e Antigo Regime na América indígena Em que sentido os americanos podem assumir a posição de sujeitos tipicamente modernos? É verdade que estavam no mesmo barco das grandes transformações que criaram a mestiçagem biológica (e as combinações simbólicas) pelos quatro cantos de um sistema-mundo de comércio e capitalização. Certamente, alguns poucos nativos e mestiços nobres tornam-se inusitados sábios numa esfera de subjetividade própria do mundo literário renascentista. Mas, normalmente, as grandes massas e as elites mesoamericanas e andinas não teriam sido empurradas para o universo mental e as práticas de cunho tipicamente medieval dos conquistadores e missionários? Não se busque resposta para esse paralogismo, até porque qualquer conclusão não teria como fugir do referencial bastante disputável das eras europeias. É interessante a perspectiva de uma “renascença” na Baixa Idade Média, em especial na Andaluzia, que também foi o foco da intolerância na Reconquista castelhana. Também a noção de primórdios da época moderna pode ser contestada se observados os contornos culturais e as bases institucionais do Antigo Regime. A península ibérica é outra vez exemplar para sustentar questionamentos. Sendo que a América indígena (com os ibéricos) participa decisivamente na construção de uma época e lugares peculiares. Há diversas questões para levantar, como a natureza das legislações e tribunais corporativos, o poder das cidades, a força da aristocracia nas cortes reais. As colisões e imiscuidades de âmbitos civis, militares e eclesiásticos, também às vezes contando com quase indistinção entre administração e justiça no patrimonialismo.

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A exploração de magia posta como natural, ou seja, sem recurso ao diabo e, portanto, lícita, ela vem paralela à condenação das ditas superstições plebeias e das intenções supostamente malignas dos curandeiros, benzedores, parteiras e outros, tratados como feiticeiros ou bruxos pela cultura dos clérigos escolados. Mas as práticas mais comuns dos católicos talvez se encontrem no culto “participativo” de devoção a veneráveis e anjos ou suas imagens, signos de guerra e de milagre. Essas e outras heranças talvez sejam exponenciadas nas relações com os indígenas, que se apropriam desses códigos muitas vezes semelhantes a certos modos e figuras de suas culturas. A ciência aristotélica, o neotomismo e o galenismo dos teólogos e doutores, o que dominava as universidades, conventos e as cortes na mentalidade renascentista ou barroca, mesmo na ortodoxia com a crescente vigilância do Santo Ofício, deixa efervescer, contudo, novas formas de anatomia do homem e do mundo natural, particularmente em certos tratados e crônicas do Novo Mundo. São obras que surgem no redemoinho de impressões no contato entre dois mundos e são consideradas por certos estudiosos como etnografias avant la lettre ao compor-se com “informantes indígenas” e propor ousadas plataformas da descrição das novidades. É o caso do soldado escritor Pedro de Cieza de León que se encontra com amautas (sábios) e orejones (a nobreza cusquenha). Teria falado com Cayu Tupac Yupanqui, nada menos que o filho de Huayna Cápac, o inca que morreu pouco antes de Francisco Pizarro desembarcar no Peru. Mas a obra mais surpreendente é a enciclopédia de tradição medieval composta de cadernos com colunas de texto em náuatle e traduções ao espanhol do franciscano Bernardino de Sahagún.17 Essas obras não se desvencilham, porém, das questões inerentes ao choque e acômodo de bagagens culturais distintas dentro de situações com interesses e identidades diversos. Cronistas indígenas também navegam sobre os códigos renascentistas, mas a profundeza da memória com a transmissão oral, as escrituras e outras formas da herança pré-colombiana seguem presentes em seus textos e imagens.18 Um mestiço, 17  O famoso exemplar conhecido como Códice Florentino teve doze livros produzidos em diferentes momentos no século XVI. Sahagún fez falar vários anciãos que viveram as vésperas da conquista. Jovens neófitos alfabetizados praticamente transcreveram os relatos dos entrevistados, recuperando exortacões morigerantes e adágios populares, entre outros e diversos discursos que eles também construíram na sua escrita. 18  Assim, o historiador Domingo Chimalpáhin da região de Chalco professaria o catolicismo e os mitos cristãos, ao mesmo tempo em que explora as tradições e os sentidos indígenas da época “gentílica” como se tivessem sido iluminadas (e ele também iluminado) por Deus.

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descendente de um nobre da Extremadura com uma “princesa” inca, sem dúvida foi o maior expoente da “renascença índia”. O Inca Garcilaso de la Vega absorveu a cultura erudita desde pequeno em Cusco, acompanhado também do leite de sua cultura materna.19 É perfeitamente compreensível que muitas dessas iniciativas dos índios e mestiços – mas também de vários clérigos e outros espanhóis – transpirassem nostalgia dos tempos anteriores à conquista espanhola.

De encontro ao cataclismo A abrupta queda do mundo americano é inconteste. A rápida decadência começa nas ilhas caribenhas. Ali não houve saída para os nativos, quase eliminados antes de começar a aventura das companhias de mercenários espanhóis no continente. Diversos são os fatores da depopulação, mas pouco se relaciona às rápidas campanhas de conquista dos centros de poder indígena, mesmo que contassem com eventos traiçoeiros como cercar e trucidar governantes e sacerdotes. Contudo, aliados aos espanhóis, milhares de guerreiros que levavam serviçais e muitas vezes suas famílias consigo pelos diversos “reinos e províncias” geralmente encontravam a morte, o mesmo destino para muitas elites e comuns que resistiam às investidas. O abandono de terras, as fugas para regiões remotas, as migrações forçadas abalam a produção de alimentos causando a carestia. Em algumas décadas se acelera a desestruturação e começa a reorganização agrária e urbana. Ocorrem graves desequilíbrios ambientais pelo influxo de plantas com os lavradores espanhóis. Há um crescimento exponencial dos rebanhos de animais de corte europeus. O intensivo trabalho sazonal dos índios fora das comunidades na construção dos edifícios e das vias, na extração mineira, nas fazendas; as precárias condições de moradia e transumância; mais fugas, migrações e 19  Garcilaso chegou a traduzir do italiano para o espanhol uma obra do filósofo neoplatônico Leão Hebreu. Já a publicação em Lisboa do tratado Comentarios reales de los incas tornou Garcilaso a referência da imagem de benevolência e perfeição do Tahuantinsuyo. Vai influenciar não apenas a literatura e filosofia europeia, como os movimentos nativistas que extrapolam nas poderosas rebeliões armadas lideradas por caciques do centro-sul andino em meados do século XVIII.

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fomes são alguns dos fatores concatenados para o retrato de um quadro desalentador. Mas se é para escolher os maiores vilões da depressão, então, seria o caso de culpar os micróbios do outro mundo. Vários tipos de gripe e de males exantemáticos afetaram as populações de todo o continente desde os primeiros contatos. Os indígenas de regiões de clima tropical sofreram muito mais que os habitantes das terras frias. O litoral do Peru, no final do século XVI, se via quase sem os requintados yungas, povos bem distintos dos índios serranos. Os africanos começam a chegar em maior número, não só como serviçais de luxo, mas como escravos de grandes empresas. Na mesma época, nas costas do Brasil, eles substituem os gentios ou “negros da terra”, que sumiam nos sertões ou se acabavam pelas doenças. O “apresamento” dos índios para viver em aldeias dos jesuítas e nos engenhos de açúcar concentra muita gente. Proliferam as doenças contagiosas. Já as alterações climáticas que inibem as plantações matam as populações mais sedentárias. Também a reunião dos camponeses em vilarejos coopera para os surtos epidêmicos no Peru e no México. Se as cifras são debatíveis e as áreas e circunstâncias únicas, é factível uma narrativa geral para Mesoamérica e Andes Centrais: a maior mortandade deve ter ocorrido nos primeiros cinquenta anos de invasão das virulências estrangeiras. Em meados do século XVII essas áreas devem ter presenciado o extremo da baixa populacional. O centro do México pôde ter menos de noventa por cento da população dos tempos pré-hispânicos. Mas até o século XVIII, o estoque nativo é maior que os demais coletivos somados. Nas serras peruanas houve preservação e recuperação maior, bem como menos povoamento estrangeiro e miscigenação. Mas enfim, não dá para desconsiderar o fenômeno da alta mortalidade ao lidar com qualquer assunto relativo aos indígenas após a chegada dos estrangeiros. Inclusive para qualificar as análises em torno aos discursos e práticas da Coroa espanhola e seus representantes ou coadjuvantes civis e religiosos, que a todo o momento elaboravam causas para explicar a terrível situação. É claro que a decadência vai impregnar emoções, entendimentos e posturas dos indígenas. Antes da conquista hispânica houve o casamento entre epidemias e carestias, bem como as execuções sumárias, guerras e massacres, templos e palácios arrasados, povos submetidos ou expulsos, como consta nos anais e outros relatos indígenas de tempos coloniais sobre o que sempre acontecia. No enAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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tanto, a concentração e a qualidade desses eventos parecem outras nos idos da invasão e povoação espanhola. As epidemias trouxeram, afinal, a degradação social e um sentido literal de desculturação. A progressiva perda de peculiares práticas pode ser bem notada nos registros anuais do Códice Telleriano-Remense.20 Um verdadeiro cataclismo está no entorno de importantes representações do encontro dos indígenas com os estrangeiros. Não é fortuito imaginar que as grandes mudanças ambientais, as rupturas do status quo e as “pragas” inerentes a esse novo contexto tenham-se relacionado a antigas concepções da alteração de tempos/espaços, às profecias e aos embates de entidades cósmicas e personagens deificados. Entre as histórias ameríndias de maior destaque está o Popol Vuh. Ele relata as “quatro criações” e “humilhações” que geraram distintas formas de animais, de gentes, de coisas, de outras personas que antecederam e culminam na parcela responsável pelas memórias – as casas senhoriais maia-quichés, representadas como gente superior em conexão com as divindades. O conquistador surge só no final da obra e nem aí é protagonista da história.21 Essa “bíblia” indígena não parece ter influências, mas paralelos com os mitos cristãos. Já os livros de Chilam Balam produzidos no Yucatán contam com profecias propostas para um momento anterior à conquista e que preveem a nova era.22 20  O libro de pintura foi encomendado ou emprestado por autoridades coloniais na Nova Espanha. Entre outros dessa classe – como os códices Mendoza e Borbônico – o Telleriano-Remense expõe padrões de comunicação escrita de antes da conquista e contém glosas explicativas em espanhol. Ícones identificam uma sequência de anos a partir da antiga peregrinação dos mexicas e um apontamento evoca a grande mortandade para os anos Treze-Pedernal (1544) e Um-Casa (1545), cujos signos são ligados a vários corpos em envoltório mortuário. Os últimos registros retratam, antes de tudo, o empobrecimento da arte pictórica, até chegar ao simples rascunho. Depois só há texto em espanhol e o produto termina de forma abrupta, denunciando a grande depressão dos atos de escritura e memória tradicionais com a depopulação. 21  Há apenas rápida menção a Tonatiuh – como era conhecido o capitão Pedro de Alvarado. Tonatiuh significa “o sol, o resplandecente”. Foi assim chamado devido ao cabelo loiro, ou melhor, como alguém muito poderoso como a excelsa entidade do sol nas cosmologias mesoamericanas. Outra menção aos espanhóis infere a responsabilidade na morte de seus líderes, cujos sucessores já aparecem com nomes do batismo cristão. 22  Os “malditos barbudos” chegam no katun “Onze Ahau” e os sacerdotes do “Deus encarnado” espalham sua adoração por todos os cantos do mundo. Tempo nefasto em que (sem dúvida não por acaso) começa a contagem do tempo cíclico de mais treze katuns com vinte anos solares cada. Os diversos livros têm desenhos e textos alfabéticos sobre variados temas, alguns nitidamente da cultura europeia, como astrologia e medicina humoral. Foram produzidos e aumentados desde os tempos da conquista por custódios de povoados como Chumayel e Ixil.

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Semelhantes ao Popol Vuh, as leyendas de los soles astecas descrevem várias destruições e recriações do mundo e assim familiarizam os mexicas e outros com os momentos de crise do século XVI. O “quinto sol”, cuja permanência exigia ser alimentado do coração de guerreiros aprisionados, não fora substituído pela luz e o calor do Cristo representado e muitas vezes identificado com o grande astro? As passagens sobrenaturais da mitologia cristã, ao mesmo tempo destruidoras e criadoras, como a Queda, o Advento, o Dilúvio e o Apocalipse, foram apropriadas para a inteligibilidade indígena dos fatos e processos inusitados. É debatível que posições mais radicais do Milênio tiveram guarida na mente de alguns franciscanos, mas o certo é que a Nova Jerusalém se projeta na América. Convém que as vinganças de Deus contra a idolatria fossem contornadas com a promessa de uma geração nova de índios criados na retitude para a salvação eterna. Concepções andinas de mudança de era nos tempos antigos podem ser obtidas no relato indígena de Huarochirí – depoimento extraído pelo perseguidor das “sobrevivências idolátricas” doutor Francisco de Ávila. Mas a expressão pacha puchukay (fim do mundo) aí usada, já havia estado antes no “catecismo breve” do III Concílio limenho, para tratar com os índios sobre a redenção em Jesus. A visão de grande calamidade também é obtida nas expressões pacha kuti e pacha tikra que se encontram no dicionário do jesuíta Diego Gonzalez Holguín e que são utilizadas também pelo cronista “dom” Felipe Guaman Poma de Ayala. No início do século XVII, ele avalia que sua terra parecia cada vez mais distante da ordem natural das coisas. Está tudo ao revés, um mundo fora da autoridade dos incas ou de Cristo e muito próximo dos bárbaros espanhóis. Sua escrita de protesto recorre à memória dos mundos da gente andina propondo um passado autóctone paralelo às idades da história judaico-cristã. O décimo-segundo livro do Códice Florentino, constituído em meados do século XVI, fora dedicado à conquista do México com relatos de velhos que haviam presenciado, ainda púberes, o grande trauma. Contempla imagens plenas de significado religioso, como o arco-íris da mensagem do anjo do Apocalipse. Sua iconologia é estruturada por motivos importados e as visões dos conventuais são compartilhadas com os indígenas pintores. O fogo e a fumaça dos arcabuzes e canhões parecem condizer com as pragas do fim do mundo que saem da boca dos cavalos na narrativa de São João. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Segundo o cronista mestiço de Tlaxcala, Diego Muñoz Camargo, por todo Anáhuac os indígenas consideravam os espanhóis como entidades do céu que haviam descido para protagonizar o fim do mundo. O que parece realizar o encerramento do atual “sol de movimento” das lendas astecas. Uma crônica recuperada pela pena do nobre mexica, dom Fernando de Alvarado Tezozómoc, teve a informação do tlacuilo (pintor/escritor) despachado por Moctezuma descrevendo estranhas criaturas vindas do mar. As aparições teriam base em mitos locais com algumas indicações do que só depois seria percebido como seres humanos e cavalos. Em variadas fontes indígenas os conquistadores do México teriam sido teules – da palavra téotl identificada rapidamente com a ideia de “deuses”. Mas a partir dos primeiros contatos com a nova gente, a qual também comia milho e apodrecia ao morrer, uma possível semântica é que apesar de extraordinários, os invasores eram pouco mais respeitáveis e sagrados do que os grandes senhores e sacerdotes da sua terra. Estes também tinham poderes excepcionais e faziam contatos com outros mundos. Os espanhóis podiam também ser bem diferentes ou muito iguais para os indígenas do Peru. Um documento singular, pleito de descendentes de Francisco Pizarro para obter indenizações sobre um dos grandes feitos do conquistador, contará com o depoimento de quase vinte indígenas de extração dos comuns, como pastores e soldados sobreviventes de quarenta anos de morticínio. De acordo com um deles que morava distante da costa, as primeiras notícias dos espanhóis é de que eram “filhos do mar” que comiam ouro e prata. Mas nos depoimentos, bem como nas crônicas que se nutriam das falas da nobreza incaica – como a obra de Juan de Betanzos – logo os estrangeiros seriam vistos como outro grupo de poder nas alianças e guerras dos senhorios andinos. O encontro entre o inaudito e o familiar suscita novas equações. Mas o que a imagem e o texto indígena de tempos depois selecionam, parece ser a memória lúgubre das pestilências, dos saques e dos massacres cometidos pelos encarnados “cristãos”. Já desencantados estrangeiros, ainda que trouxessem consigo poderosas divindades, como o Cristo, a Ave Maria, Santiago e o Arcanjo Miguel, entre outras imagens e significados que são apropriados na nova era do mundo indígena.

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Naturais no serviço e no governo A anterior organização do trabalho mantenedora das elites que impunham e justificavam prestígio, riqueza e poder, foi bem aproveitada depois. Tanto pelos espanhóis como por líderes locais, os que sobreviveram às guerras e rearranjos políticos como aliados ou subalternos dos invasores. Muitos “senhores naturais”, “nobres” e “principais” conseguiram preservar a autoridade como entidades de origem divina, aplicavam sentidos de reciprocidade como protetores e beneficiadores dos comuns, cultivavam antigos sentidos de casta superior ao adquirir direitos de portar o título de “dom”, de ser fidalgo e ter postos jurídico-administrativos na nova ordem. Mas só uma porção da elite indígena tradicional continuaria aceita pelos antigos subalternos comuns e dependentes. Porque houve muitos que se alçaram deixando de respeitar seus mandantes no relativo caos que se instalou na época da conquista espanhola, a qual também teve sentidos de libertação do jugo de antigos opressores. A riqueza e o mando, as benesses, as isenções tributárias da maioria das linhagens vai minguando com o tempo. Embora não foram poucos os que conseguiram tornar-se empresários bem-sucedidos e preservar vantagens de antigas hierarquias. Por fim, a despeito da queda populacional e crescimento da presença e poder dos estrangeiros, bem como devido à miscigenação, que em parte conduz à desestruturação da malha social indígena, certa autonomia ou liberdade econômica, política e cultural fora mantida. O poder decisório até que cresceu em algumas “repúblicas” dos índios, que se compunham também de mestiços, mulatos e espanhóis, como mascates e desocupados que podiam parasitar, mas também cooperar para o fortalecimento dessas estruturas. Por outro lado, a carga de serviços deve ter aumentado para os índios comuns após a conquista espanhola. Na ilha de Santo Domingo foram concebidas as primeiras encomiendas aos povoadores espanhóis e assim começa o repartimiento de índios – eles eram contados e distribuídos para servir nas empresas e casas dos novos senhores como se todos por igual fossem as naborías dos caciques.23 23  As naborías eram propriamente os serviçais dos caciques e compreendiam uma pequena parcela da população dos tainos e outros aruaques, pois a grande maioria vivia em suas comunidades e entregavam tributos aos caciques. O termo naboría é usado depois na Nova Espanha para identificar ou promover categorias similares de trabalhadores praticamente escravizados.

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A encomienda tornou-se uma forma de domínio indireto do rei na conquista dos particulares sobre os “reinos e províncias” do continente. O encomendero teria de estabelecer a policia (urbanidade) cristã, em troca dos serviços dos naturais para o crescimento de suas empresas – e para proveitos como a ostentação. O favorecido devia cobrar o tributo dos índios vassalos do rei e às vezes ficava legalmente com parte dos bens ou valores arrecadados. Muitos indígenas dependentes como os mayeques no México e yanas no Peru foram tomados pelos espanhóis aos senhores naturais em desgraça. Outros indígenas, “plebeus” que tributavam ou se viam empregados em serviço sazonal, pois vinculados a seus calpulli e ayllu, eram por sua vez frequentemente sequestrados. Os carregadores a pé tameme seguiram como categoria serviçal importante, apesar dos impedimentos legais na Nova Espanha do século XVI. Os tlacolli – como indivíduos ou famílias que se vendiam, por exemplo, devido a dívidas ou por não ter como sustentar-se – eram sabidos como “escravos”, mesmo que distantes do sentido jurídico dessa condição pelo direito castelhano. Povos não-sedentários eram os mais passíveis do “resgate” nas “guerras justas” e vítimas normais de punições capitais, de venda a ferro e fogo nos mercados. Apesar dessas situações, as entidades senhoriais e suas bases sociais foram mais ou menos preservadas antes de algumas transformações mais sérias que vão ocorrendo após os primeiros decênios da invasão europeia. Ainda que durante muito tempo segue importante um certo “pacto colonial” entre as elites estrangeiras e os caciques, mesmo que estes ficassem cada vez mais deprimidos em seu poder. Mas ao lado da coerção é imprescindível a colaboração. Aliás, havia de se dar a intermediação e a tradução dos interesses espanhóis para aqueles indígenas acostumados ao serviço.

A nobreza de sangue índio As circunstâncias da conquista espanhola que modificaram a simbologia e os trâmites do poder indígena, todavia tiveram de se aliar aos “usos e costumes” locais. Circunscrições e entendimentos do governo 64 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

e do ranque pré-hispânico se encaixariam rapidamente. De outro lado, o antigo aos poucos se acomoda, adapta-se às disposições encabeçadas pelo governo estrangeiro nas audiências, bispados e cortes vice-reais. Logo nos primeiros tempos, quando as grandes regiões estavam sob o controle dos adelantados gobernadores como Hernán Cortés ou Francisco Pizarro, houve grandes comoções nas altas esferas do poder indígena, a subdivisão dos grandes senhorios em várias encomiendas para satisfazer os sócios e a clientela de conquistadores e funcionários reais. Centros cerimoniais da Mesoamérica que eram subalternos a outros se tornam independentes. A antiga ordem dos altépetl sofre alterações com novas configurações de municípios cabeceras e sujetos. Alguns curacas urin – denominados pelos espanhóis como segundas personas – se arvoram mais poderosos que os líderes principais chegando a tomar os trabalhadores mitimaes reservados a estes. Se os senhores naturais tiveram de se contentar com menos terras e servidores que antigamente, não deixariam de reclamar por restituições perante as instâncias de justiça, chegando até as autoridades máximas, incluindo o rei da Espanha. Não obstante, alguns homens e mulheres obtiveram encomiendas de índios, principalmente das famílias de Moctezuma Xoyocotzin e do inca Huayna Cápac. Outros poderosos tlahtoani mesoamericanos e curacas do Peru, que em geral manifestavam a figura de imbatíveis guerreiros e entes sagrados relacionados a forças extraordinárias, continuaram sendo influentes personagens. Até mesmo um guerreiro inimigo dos incas, do povo cañari chamado Chilche e batizado Francisco, aliado dos espanhóis no cerco de Cusco contra Manco Cápac, conseguira uma encomienda.24 Os quatro senhorios da “província” de Tlaxcala, tão importantes na campanha espanhola contra México, apesar das vicissitudes, preservaram por séculos considerável território obtendo títulos de nobreza. Inclusive os índios tributários mantiveram status diferenciado.25 24  Nada menos que o vale de Yucay (atual Vale Sagrado dos Incas). Teve muitos servidores diretos que antes pertenciam a uma das panacas do senhorio incaico. Chegou a controlar comunidades que tinham raízes no vale, até que após várias queixas, um grande cacique local recupera em 1550 o poder sobre esses lotes de terras, que também tinham seus chefes menores. Em 1558, o inca Sayri Tupac que havia sucedido o movimento rebelde (era filho de Manco), depois de reconciliar-se com o governo espanhol, sai do refúgio de Vilcabamba e é logo agraciado com a encomienda do vale de Yucay. Assim, o curaca dos cañaris, senhorio desafeto dos incas, é destronado de vez e acusado, pelos cronistas Inca Garcilaso e Guaman Poma, de envenenar Sayri Tupac. 25  Centenas de famílias tlaxcaltecas colonizaram a chamada Gran Chichimeca colaborando para as ambições espanholas da mineração de prata em áreas inóspitas.

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Muitos caciques conseguiam algum prestígio e vantagens nas rivalidades entre as casas senhoriais, ao obter cargos como o de alcalde mayor de indios, atribuição de juiz para causas menores, concedida pelo vice-rei Francisco de Toledo e bem utilizada por certas “dinastias” de Quito e Charcas. As cacicas líderes de poderosos “reinos” andinos, no início da conquista preservaram a proeminência, mesmo se convertidas em consortes dos que oficialmente deviam portar-se como caciques, de acordo com as regras do patriarcado espanhol. Houve muitos matrimônios entre espanhóis e “princesas” indígenas, assim como várias mulheres espanholas esposaram líderes da terra. Para ambos os lados, de imediato isto podia significar prestígio, maiores riquezas, mais oportunidades e um espaço na governança. Contudo, esses arranjos foram interditados quando cobra importância a “pureza de sangue” na crescente organização do poder voltado para concentrar-se entre os criollos (menos como mesclados e mais como espanhóis). Afora a ambiguidade e certo limbo que acompanhava a vida de tantos mestiços “nobres” ricos ou pobres, a oficialização de status especial teve de assumir a quebra de padrões tradicionais de promoção e reprodução. A escolha de novos líderes teve de seguir o estranho costume europeu da primogenitura. O que significava fazer nova leitura (que se diga política) das antecedências e heranças.26 Muitas vezes os lienzos e outros suportes que retratavam os clãs e as sucessões das elites remontam aos estilos e mensagens pictográficos, mas as expressões mais tardias da época colonial assumem plenamente a forma das árvores genealógicas europeias. Houve rápida interdição pelos religiosos e seus tribunais de práticas que sugeriam o incesto. Tampouco pôde ser mantida a poliginia, tão comum entre os incas e os mais diversos grupos de elites da Mesoamérica e Andes Centrais. De toda forma, havia como justificar o 26  Difícil que os líderes pré-hispânicos em suas casas senhoriais definissem sentidos claros ou qualquer supremacia à norma da primogenitura, tão importante no direito castelhano. Como se observa nas sucessões do tlatoani mexica que ocorriam muitas vezes de “tio” para “sobrinho”. Os conselhos de anciãos e guerreiros (também nos Andes) escolhiam, entre vários candidatos, aqueles para ocupar as vacâncias da liderança política. Por exemplo, entre “irmãos” de várias esposas, entre os guerreiros mais aptos e dominantes (líderes chamados sinchi no Peru) e outros códigos de parentela e status das “linhagens”.

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casamento de incas com irmãs e tornar a prática um valor importante, ao mesmo tempo em que se insinua a sucessão pela primogenitura.27 Por longo tempo mesclou-se à acusação de “idolatria”, a da promiscuidade sexual em noções como amancebamentos, bacanais e outras ofensas. Isto se relaciona, por sinal, a diferenças perante a organização nuclear da família cristã e as normas endogâmicas da nobreza europeia. Mas os indígenas de castas superiores quiseram imitar os espanhóis para conservar uma posição privilegiada, e muitas vezes abraçavam as regras de parentesco com o mesmo ímpeto em que pediam autorização para portar espadas e montar a cavalo, entre outras aproximações à aparência dos fidalgos e nobres espanhóis. Qualquer liderança buscava usar chapéu e camisa, distinguindo-se dos comuns da mesma forma que antes, quando usavam mantas, joias e penachos de especial confecção. As investiduras tiveram grande importância para autoridades mexicas, tlaxcaltecas, texcocanas, incas, huancas, entre outras, que à imitação dos conquistadores espanhóis em suas probanzas de méritos y servicios, empenharam-se pelo reconhecimento de suas façanhas e compromissos com a Coroa e a Igreja da Espanha na conquista. Houve muitas visitas à Corte não apenas para jurar vassalagem, como para adquirir brasões de nobreza que dariam dignidade e poder para o contemplado e seus descendentes.28 27  Como se pode notar em um quadro a óleo sobre tela, de 1725, comissionado pela nobreza nativa de Copacabana intitulado “Efigies de los incas o reyes del Peru...”. Hoje no museu da Catedral de Lima, a pintura aponta, pelas inscrições nos retratos, uma linhagem de pai para filho. O que começa como prerrogativa do primeiro inca, Manco Cápac, casado com sua mãe, “ignorante o sabedor del parentesco”, mas que “para mayor seguridad de la Real Estirpe” impõe que seus “Descendientes se cassasen con la hermana mayor”. 28  Pouco antes que um dos filhos de Moctezuma conseguisse seu escudo de armas, outro “principal” que o acompanhara numa embaixada em 1532 já estava com seu emblema: dom Hernando de Tapia. Ele foi filho de um aliado mexica de Cortés no cerco de Tenochtitlán. Chegou a ser intérprete na Audiência de México, quando colaborou para a compra de terras indígenas por espanhóis. Em visita à península, estudou no convento de San Francisco em Madrí, tendo contraído núpcias com dona Isabel de Cáceres, da nobreza castelhana. O brasão que lhe fora outorgado passou pelo escrutínio da rigorosa vista dos homens da Corte. Diferente do escudo de don Martín Cortés Moctezuma, que emprestou uma águia da heráldica espanhola, tinha claros elementos indígenas na representação de onça e águia conjuminadas. A pictografia da “águia-onça” refere-se aos membros das ordens guerreiras dos mexicas e também podia integrar o chimalli (escudo de guerra) com a identidade do portador. Denotaria, aliás, um privilégio adquirido pelo pai de Hernando de Tapia, que nunca tinha sido pilli de descendência numa casa nobre. Por mérito guerreiro é que chegou então ao posto de “nobre-águia” (cuauhpilli).

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Já nos séculos XVII e XVIII, houve muitos indivíduos que buscaram manter ou retomar isenções tributárias pela estatura nobiliárquica em processos de limpieza de sangre e de passado sem idolatrias. Mas geralmente não conseguiram sustentar a riqueza e o poder que haviam conseguido manter ou então conquistar, nas décadas após a chegada dos espanhóis. Todavia, desde esses tempos uma parcela de privilegiados conseguiu associar a nobreza, o cargo ou o ofício, a muita riqueza. O cronista mestiço tlaxcalteca Diego Muñoz Camargo, por exemplo, manteve a herança do pai num obraje, fábrica de confecção de roupas. Há registros de vários curacas andinos bem-sucedidos no comércio e como donos de empreendimentos apropriando-se do trabalho dos mitayos. Como na plantação de coca e na mineração, rivalizando, assim, com encomenderos, fazendeiros e comerciantes espanhóis. Muitas lideranças indígenas, ao que tudo indica, igualavam-se ou até mesmo podiam superar os estrangeiros na superexploração do trabalho dos comuns.

Cargos e encargos nas repúblicas dos índios Em meados do século XVI, com a decadência do poder e do número das encomiendas, nas áreas rurais e regiões mineiras sobrepõe-se uma espécie de municipalidade – são os corregimientos de indios e alcaldias mayores de minas. Aí a Coroa espanhola opera melhor sua postura de suserania sobre os novos vassalos. A princípio, os corregidores e seus auxiliares tiveram a incumbência principal de administrar a justiça. Mas terminaram como unidades plenas de administração e de extração do fisco no contato direto com as lideranças dos pueblos de indios que ficavam sob sua jurisdição. Os corregidores coordenavam o repartimiento para o emprego das quadrilhas de trabalhadores em diversas empresas e serviços para os encomenderos, os hacendados, os mineiros, para a construção e manutenção das obras públicas ou dos templos. O repartimiento (neste uso da palavra) em parte representava formas pré-existentes de emprego do trabalho e os próprios espanhóis reconheciam o mecanismo com termos locais como coatéquil no centro do México e mita nos Andes. Os recrutados deviam 68 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

ser pagos em dinheiro, havendo outras obrigações dos empregadores, como oferecer alojamento e alimentação, ainda que na prática a situação pudesse ser muito precária e diferente do que idealizava a legislação. Junto à formação das jurisdições dos corregimientos, as entidades políticas indígenas são institucionalizadas como pueblos de indios pelas concessões reais de usufruto das terras demarcadas com base em “lienzos” com desenhos, mapas, e por depoimentos dos velhos. Os líderes e funcionários dos pueblos, normalmente isentos das obrigações dos serviços, coordenavam, afinal, o emprego da mão-de-obra e a coleta do tributo dos comuns. Durante algumas décadas a partir de meados do século XVI, pode ter ocorrido o auge dessas corporações indígenas na Nova Espanha. A burocracia municipal fora constituída como espelho dos ayuntamientos espanhóis. Os gobernadores ou alcaldes tiveram maior poder e prestígio, com autoridade de juízes locais. Os conselhos desses cabildos de índios eram compostos também por regidores. Podiam representar os bairros que, por sua vez, tinham relação com os antigos calpulli. Os mandoncillos, como os chamados calpixques em alusão a um tipo pré-hispânico, cobravam o tributo dos residentes. O título de alguacil era relacionado à manutenção da ordem policial e o mayordomo cuidava dos bens da comunidade. Havia rebanhos, reservas florestais e a cadeia do pueblo. Era muito importante a posição de notário para a confecção das atas dos cabildos e como representante em disputas e demandas nos juzgados (tribunais). No Peru demorou o estabelecimento das instituições e instâncias que haviam surgido na Nova Espanha, entre as quais as propostas para a governança indígena, que se desenvolvem de outras maneiras. Em geral, os encomenderos e os caciques conseguiram preservar mais poder, apesar de que os corregidores e as cofradías tenham-se empoderado bastante a partir do século XVII. O curacazgo seguiria muito importante e sobreposto à estrutura municipal indígena desde a sua instalação nos tempos do vice-rei Toledo. Cargos como o do alcalde e dos regidores índios parecem abafados na sua dimensão política. Já na Nova Espanha, os chamados gobernadores caciques cada vez mais seriam suplantados pelos alcaldes, que muitas vezes nem eram indios principales (eram maceguales). Mestiços fora de uma linhagem nobre também chegavam ao posto. Tampouco se seguia à risca a rígida regra das eleições e da rotatividade do poder anual nos cabildos, que As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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tendiam ser ocupados, sem dúvida, pelas famílias mais poderosas, muitas vezes recuperando a complexa estratificação social de antigamente.

Indígenas dentro e fora dos pueblos Em fins do século XVI, teria acabado a fase áurea da governança indígena na Nova Espanha. Para isso contribuiu bastante os seguidos surtos de doença contagiosa, o que redunda na extinção de muitos pueblos vizinhos e a reunião das pouquíssimas unidades sobreviventes, no início do século XVII, em novos aglomerados conhecidos como congregaciones. Outro fator importante é o fortalecimento das haciendas, que vão ocupando terras despovoadas e negociando (geralmente de forma ilegal) parcelas dos pueblos empobrecidos. Ser índio gañon, ou seja, como empregado pago por jornada na hacienda, foi um caminho buscado para escapar dos tributos que recaíam sobre os pueblos com poucos adultos. Eram cargas insuportáveis. Aliás, chegou um momento, na terceira década do século XVII, em que os lavradores criollos foram impedidos de usufruir dos repartimientos nos pueblos comandados pelos corregidores. Mas antes disso, os hacendados já buscavam índios desgarrados ou fugidos para viverem em suas propriedades e faziam ocupações nos territórios que eram dos pueblos, sem pedir permissão. Também os espanhóis, mestiços e mulatos que viviam nas vilas e aldeias dos índios sem licença, eram sujeitos apenas eventuais de cobranças e sanções dos funcionários chamados justicias. Nada disso significou o ocaso da estrutura municipal e de instâncias como o mercado, com regras e autoridades de costume mesoamericano – que a legislação espanhola reconhecia pela expressão tiangue de origem indígena. O interesse pela coesão ou o fato do poder comunitário se percebe pelo que se costuma denominar de títulos primordiales, documentos ecléticos escritos em alfabeto latino, muitas vezes no náuatle que se transforma pelo contato com a língua espanhola. Os primeiros são de meados do século XVII, época em que volta a crescer a população dos naturais e quando seus representantes procuram recuperar terras perdidas e proporcionam muitas visões das histórias e hábitos 70 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

locais. Há práticas que apesar de parecerem muito distantes, ao mesmo tempo reforçam trâmites antigos. Requisições de títulos de propriedade e testamentos apontam, por exemplo, para a relevância do tecpan, lugar tradicional de reuniões da comunidade e que não era o mesmo que a sala do cabildo. Os documentos trazem a questão da autoridade dos anciãos que não compunham o corpo de funcionários dos pueblos. Os fiscais, os cantores e outros teopantlaca (gente do templo), ou seja, com funções nas capelas, imiscuem-se no governo civil. Isto vem de antes e também é paralelo à constituição das cofradías, irmandades religiosas que significaram, a partir do século XVII, outra fonte importante da identidade e poder dos indígenas. Dependiam das doações dos membros e beneficiadores. Também as cajas de comunidad dos cabildos serviam para pagar os gastos com as inúmeras festas religiosas do peculiar “cristianismo pagão” dos índios. Mesmo que muitas vezes fosse usado indevidamente por “principais” que controlavam a municipalidade, esses recursos foram fundamentais para as inaugurações e reformas de conventos e igrejas. Aliás, o santo patrono de cada pueblo, de cada barrio, fazia a função, apresentava paralelos com as entidades divinas anteriores – que eram os “corações” dos altépetl, dos calpulli. Nos Andes, os viracochas e as pacarinas (respectivamente entidades e locais de origem) galvanizavam a identidade das comunidades, que também usavam os santos e as huacas.29 Essas diversas forças geravam não apenas um sentido de coesão cultural e comunal, como de afirmação política e rivalidade entre as unidades de poder e território indígena. As etnias que conviviam num mesmo senhorio às vezes conservaram-se distintas. Notável a diversidade de línguas separando num mesmo pueblo, por exemplo, otomis de popolucas de matlatzincas. Porém, firma-se cada vez mais a pertença ao pueblo. Os que falavam dialetos da lengua mexicana (o náuatle) se diferenciam pela comunidade onde viviam e na devoção ao santo patrono. Muito já foi escrito sobre a grande transformação causada pelas reducciones no vice-reino do Peru, a partir do ambicioso plano de Francisco de Toledo de meados do século XVI. Em visitações pelo centro-sul andino, orquestrou a concentração das complexas ocupações ru29  Após a destruição como “ídolos ou santuários”, muitas vezes as entidades são rematerializadas em relíquias, são escondidas, ou também substituídas pelas entidades das montanhas e outros acidentes geográficos.

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rais em cerca de quatrocentos pueblos para facilitar a inserção do estado. Como apontado, o cabildo indígena andino não funciona como planejado. No século XVII, os pueblos viejos – anteriores à mudança forçada de assentamento – seguiam visitados ou mesmo habitados. À revelia das autoridades espanholas, às vezes com apoio de uma cofradía ou de um ayllu, e sendo peça das rivalidades entre encomenderos, doctrineros, corregidores, e caciques e cabildantes índios. Considere-se a forte relação dos índios com as pacarinas que forjavam a relação da comunidade com um determinado lugar. Os ayllus, apesar de transformados, seguiram como estruturas importantes. A economia de “arquipélago”, ou seja, baseada na circulação das famílias em diferentes regiões para a produção de bens diversificados, manteve certa vigência apesar das novas explorações fundiárias dos espanhóis. Enfim, a distribuição esparsa das moradias reiterava a prévia ordenação. Um sintoma disso são os anejos, pequenas aldeias que ficavam longe de suas respectivas reducciones. Entretanto, novos padrões haviam surgido. Paralelo à decadência populacional dos ayllus cresce bastante o número de índios forasteiros nos pueblos. Eles não tinham obrigações de mita e tributo. E assim como na Nova Espanha, as corporações indígenas andinas se viam invadidas por elementos da outra “república”. Havia muitos hacendados (nas chamadas chacras) e donos de obrajes que usavam grandes contingentes de índios em regime de yanaconaje, ou seja, como dependentes desses criollos. Eram mantidos e tratados como cativos. Sem dúvida, aos indígenas foi imposta uma carga de trabalhos e obrigações quase sem limites. Muitos abandonavam suas ligações ancestrais com os pueblos cabeceras e sujetos, ayllus e barrios. Mas as cofradías de índios vão aumentando seu alcance social e poder financeiro a partir do século XVII e os laços de compadrazgo acabam sendo muito importantes numa sociedade em crise que contava com tantos órfãos e viúvas. Por sua vez, o peonaje nas fazendas, o recebimento em dinheiro pelas jornadas de trabalho em diversos serviços, assim como o refúgio e a vagabundagem nos recônditos e também nas cidades, são alguns dos grandes sintomas de desestruturação social, ou melhor, da integração dos indígenas na típica sociedade que toma corpo na moderna América. Mas a acossada estrutura dos pueblos de indios persiste apesar de todo o avanço de uma sociedade ao mesmo tempo “senhorial” e “capitalista”. De toda forma, essas unidades sempre estiveram em interação 72 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

com os outros lugares da vida econômica dos vice-reinos, mesmo com as grandes transformações da época borbônica, que ajudaram ainda mais o latifúndio e o trabalho assalariado sem liberdade.

Devotados às artes e escritura Noções da medieval “doutrina dos temperamentos” indicarão que os índios fossem melancólicos ou fleumáticos, o que reforçava visões de que seriam lerdos, frouxos, afeminados, covardes. Por outro lado, a preponderância de fleuma ou melancolia na “compleição” do corpo podia significar que os índios eram pacientes e engenhosos, que aprendiam rápido qualquer coisa.30 Também autoridades e particulares alheios às apreciações médicas e filosóficas, muitas vezes consideravam uma propensão dos índios para o artesanato, a construção, a música, a encenação. Independente disso, os naturais sempre foram incentivados (ou obrigados) à excelência em diversos ofícios e talentos do mundo secular dos cristãos. Se preciosidades como as sementes de cacau no México e os tecidos de cumbi andinos (elaborados de fina lã de alpaca e lhama) foram usados nas transações comerciais, logo a economia indígena adota as moedas espanholas. Muitíssimos pequenos negócios retomam velhas práticas ou imitam e aprimoram técnicas estrangeiras, como a destilação para fazer aguardentes.31 Além de devotados às “artes mecânicas”, desde os primórdios da evangelização os índios se afeiçoaram às “artes sacras”. Entre os principais profissionais que se incorporaram ao meio religioso estavam os desenhistas e pintores, que anteriormente se achegavam à estrutura sa30  Cronistas religiosos como o franciscano Gerónimo de Mendieta e o jesuíta Bernabé Cobo enfatizavam aspectos positivos do suposto temperamento e caráter dos índios, mas os cronistas depreciadores também viam um lado utilitário na caracterização psicofisiológica. 31  Mas não havia permissão para qualquer tipo de negócio. É o caso da confecção de bebidas fortes, ilegal para os índios, que podiam conseguir licença para produzir os fermentados tradicionais como o pulque, quando pouco alcoólico e considerado medicinal. Também se acostumaram a uma gama de ofícios novos, muitos pela demanda dos espanhóis. Por exemplo, em 1591 na cidade do México, houve interessados na produção de “pan de castilla”, requisitando autorização para o empreendimento.

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cerdotal da chamada idolatria. Entre suas realizações estão os murais de conventos e igrejas.32 As danças da conquista, espetáculos de “mouros versus cristãos” e a tragédia de Atahuallpa frente a Pizarro, os autos sacramentais, as procissões no Corpus Christi, os diabos em carnavais, são algumas das atividades que retomavam os bailes que anteriormente serviam aos cultos dos deuses e à memória dos senhores naturais. Mas não houve apenas a substituição ou a justaposição de práticas, houve o redimensionamento do haylli andino, do mitote mesoamericano, e que as autoridades clericais e civis muitas vezes consideravam inocentes ou desimportantes de coibir, ainda que vissem “mesclas de idolatria” depois de muitas décadas da propalada evangelização. Se a instrução religiosa foi o epicentro da ação clerical, também foi o refúgio mais seguro e o melhor caminho de promoção dos índios nobres e comuns. O Novo Mundo foi balão de ensaio para sonhos de grupos muito distintos que viram no indígena ou quiseram fazer dele um genus angelicum. Destaca-se a empresa “hospitalária” do jurista Vasco de Quiroga, que se baseia na ordem ideal instituída na Utopia de Tomas Morus para forjar duas comunidades com rígidas regras de trabalho e refeição, de instrução e performance do sagrado cristão.33 Os mendicantes franciscanos, dominicanos e agostinhos, por sua vez, criam muitos mancebos das elites indígenas em seus monastérios no centro do México e nas “províncias” do Peru para desagarrá-los dos “maus costumes” dos parentes mais velhos. Desse meio, nada se compara à experiência do colégio instalado no convento de Santiago 32  Podem confundir-se as árvores bíblicas da vida e do conhecimento com as árvores dos quatro cantos do cosmo mesoamericano. Ilustrativo das mesclas e da justaposição de signos é a impressionante pintura do claustro do mosteiro agostiniano do pueblo de Malinalco, no centro do México, de meados do século XVI. As paredes e tetos do quadrilátero com pátio interno estão preenchidos pelo jardim do paraíso cristão. Mas o cenário se compõe de diversas plantas e animais nativos de climas relacionados aos quatro rumos, em estilos e maneiras de conceber seres e detalhes ou assinaturas que informam identidades de um pueblo conhecido por albergar especialistas em cura ritual com plantas. A representação do jardim faz pensar nos murais descobertos numa residência nobre das antiquíssimas ruínas de Teotihuacán, cujas pinturas remetem ao mito de Tlalocan, segundo relatos nauas na época da conquista. Morada fértil de águas e plantas do deus Tláloc, ponto de chegada para mortos em enchentes e enfermidades provocadas pela entidade. 33  Um dos pueblos ficava perto da cidade do México e outro em Michoacán. Como membro da Segunda Audiência do México e logo depois como bispo de Michoacán, Vasco de Quiroga conseguira os recursos da real fazenda para que seus “pueblos-hospitales” ficassem o mais longe possível da iniquidade que via grassar na Nova Espanha dos conquistadores.

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Tlatelolco. O espaço implantado pelo arcebispo Juan de Zumárraga e com a presença do frade Sahagún entre outros franciscanos, formava jovens da “nobreza” indígena já na década de 1530, tendo oferecido gramática, retórica, teologia, bem como algo de filosofia e das artes mecânicas espanholas. Em meados do século XVI, teve forte apoio das autoridades vice-reais, mas uma série de vicissitudes políticas, ideológicas e sociais arruinou o projeto. Ainda assim, o Colégio de Tlatelolco formou muitos índios “latinos”, ou seja, alfabetizados em náuatle, espanhol e latim. Como Antonio Valeriano, considerado grande sábio e que foi rector da instituição. Depois tomou o assento de gobernador da parte indígena da cidade do México, exercendo o cargo por cerca de duas décadas. Homens como ele se tornam entusiastas e propagadores da religião, embora impedidos de exercer o sacerdócio. Surgiram muitos espaços para a instrução dos índios também no vice-reino do Peru. Escolas episcopais e seminários em La Paz, Huamanga, Quito, etc. A forte presença dos jesuítas na evangelização, desde os tempos de Toledo, propiciou a fundação de dois colégios de patrocínio real, um em Cusco, outro em Lima. Alcançaram relativa prosperidade no século XVII e seguiram importantes no século seguinte. Formavam os filhos dos caciques de diversas províncias. Almejava-se sua reinserção nos pueblos como baluartes do cristianismo em regiões acusadas de manterem maestros da idolatria e de terem poucos e maus sacerdotes A instrução religiosa, ao propiciar o conhecimento da escrita, podia gerar resultados inesperados. Como os papeletes encontrados por ajudantes índios do clérigo Hernando Ruiz de Alarcón, perseguidor das idolatrias dos camponeses de pueblos do centro do México. Essas anotações serviram para evitar o esquecimento ou não ter de decorar as invocações e súplicas às antigas forças do imaginário indígena que se misturavam às visões de santos e anjos. Desde a chegada dos primeiros religiosos, oficiais de justiça e escrivães, os nativos interam-se da importância da escrita alfabética e começam a utilizá-la de forma direta ou indiretamente. Nos templos e palácios mesoamericanos existiram verdadeiras bibliotecas daqueles libros de pinturas. Logo os cabildos dos pueblos se familiarizam com a ferramenta. O memorial dos índios de Tepetlaoztoc, conhecido como Códice Kingsborough, é ilustrativo da convivência entre os códigos anAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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tigos e novos de texto, bem como exemplar da relevância política do documento escrito.34 Já foi trazido um motivo forte, a depopulação, para que as “pinturas” perdessem espaço para as letras do alfabeto, que iriam dominar os trâmites nas corporações e nas instâncias governamentais e judiciais, quer estas esferas estivessem nas “repúblicas” dos índios ou dos espanhóis. A apropriação dessa escrita representou a grande arma disponível após a pacificação espanhola (também no Peru dos peculiares quipos). Enfim, a complexa estrutura judicial do estado castelhano foi um terreno de conquistas e derrotas dos índios que teriam gosto de pleitear. É difícil considerar que houve qualquer propensão às disputas judiciais, mas é compreensível que uma profusão de dispustas ocorra também devido à condição especial dos índios como “miseráveis”, conceito incorporado pelo direito indiano na segunda parte do século XVI. Isto é, deviam ter a mesma proteção jurídica de viúvas, órfãos e paupérrimos. O que implicava medidas de facilitação das demandas e queixas. Os processos são desburocratizados e desonerados. No final do século XVI, os índios não precisarão sair dos pueblos e viajar até as sedes dos fóruns para as audiências, os processos podiam ter os custos eliminados, e torna-se obrigatório que um intérprete ficasse à disposição nesses juízos. Talvez não exista obra tão emblemática de protestos e demandas que a segunda parte do tratado do andino Felipe Guaman Poma de Ayala para o rei da Espanha, intitulado Buen gobierno. Mas não apenas esse autor como muitos outros estiveram imbuídos de interesses de restituição de bens e direitos ou reforma social, quer em âmbitos locais ou para todas as nações de índios. Seja por meio da crônica ou outros produtos sempre híbridos – não só por trazer formas e sentidos pré-hispânicos de memória, pois também recombinam tradições da es34  Produzido em 1554, retrata o auge dos encomenderos no México central, assim como o fim do seu reinado nessa região. Glosado com a escrita cortesã, o documento traz pinturas praticamente sem influência europeia, com mapas, personagens, tributos e quantidades, construções e outras características do pueblo. É impactante a imagem de quatro índios principais queimando numa fogueira acesa pelo encomendero, isso porque não tinham entregado rapidamente as riquezas exigidas. Os abusos na extração de tributos e nas execuções da elite indígena, bem como usurpações de terras comunais e sua reversão para usos empresariais, entre outros desmandos, viram rotina. Mas os índios conseguiram levar a causa para a Audiência de México e o Consejo de Indias da corte espanhola. O códice fez parte da documentação de um processo em que o pueblo de Tepetlaoztoc sai vitorioso, conseguindo diminuir a carga tributária, enquanto o recrutamento da mão-de-obra foi retirado da encomienda e passou para o corregimiento.

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critura europeia, como o gênero problemata de tempos medievais. É, por exemplo, numa forma híbrida de anais de eventos que Chimalpahín da nobreza chalca escreve suas probanzas de méritos. Em suma, as esferas religiosas e civis dos espanhóis ofereceram a instrução e a escrita no programa oficial de constituir a “civilidade cristã” dos naturais. Inclusive estabelecendo a identificação social dos aptos à fala espanhola e à escrita alfabética pelo termo “ladino”. O que implicava uma vantagem, particularmente pela inteligibilidade dos procedimentos jurídicos. Na Nova Espanha pulularam os escriventes dos pueblos existindo uma massa documental de atas de cabildos e de processos litígio de terras, como nas demarcações perante invasões das haciendas ou nas disputas entre pueblos ou indivíduos indígenas. Enquanto que no Peru não são poucos os resquícios de testemunhos de caciques e comuns em pendências com clérigos ou corregidores, assim como há boas disputas entre as autoridades indígenas. Por tudo isso, os ladinos representam um grupo social de dúbio valor. Bom status se presume da capacidade de mediação cultural, contudo, muitos se tornaram líderes políticos e gente rica em detrimento de outras pessoas do meio indígena. Também as autoridades espanholas se queixavam deles, malvistos como espertos e maliciosos. Ou seja, a imagem do ladino transitava entre figuras opostas. Vai do piedoso e caridoso cristão até chegar a do grande oportunista que abusava dos outros índios, considerados rudes e inocentes com inteligência pueril.

Regalos ou vícios nos dois mundos Até aqui quase nada foi comentado sobre reconfigurações e trânsitos na cultura material do início da modernidade. Também nesse ponto há como observar vários aspectos do protagonismo dos naturais. O que pode ser notado na apropriação de bens do estrangeiro e inclusive pela influência do ambiente americano noutras partes. Coisas com símbolos e técnicas indígenas vão impregnar a Europa e todo o globo. Contudo, igual de notória é a força oposta. Diferenças entre as culturas locais e forâneas mostram impasses e dificuldades de comunicação entre As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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os dois mundos. A temática é extremamente vasta e a opção aqui é lidar com certos problemas relacionados aos alimentos, bebidas e drogas, substâncias que interagem, compartilham valores e mudam de sentido na dimensão da dieta. A identidade cultural a partir da cozinha ou a própria tradição de uma cozinha pode situar-se conservadora apesar da aparente mestiçagem pela mescla de produtos de várias origens. A cozinha representa propriamente o conjunto de relações sociais e simbólicas desde o aspecto dos critérios ecológicos aos tabus na seleção dos alimentos, tendo em conta as formas de preparo, como os princípios de condimentação, que parecem sempre resistir às transformações. Como o uso do alho e cebola pelos espanhóis ao empregar as comidas indígenas, como o gosto pelos chiles ou ajís entre os índios, ao usarem as carnes europeias. Entretanto, junto às carnes espanholas também o alho e a cebola são apropriados rapidamente pelos índios do México para fazer seus tradicionais tamales, enquanto as pimientas de las Indias são incorporadas pelos criollos na mesma velocidade para compor suas receitas de guisados e assados de tradições andaluzas e castelhanas. Até porque os condimentos são tidos como medicinais em praticamente todas as culturas. Assim, as misturas foram mais frequentes nas coisas consumidas do que nos núcleos das cozinhas. Porém, as reticências sobre os gêneros alimentícios do “outro” podem ocorrer, por exemplo, na história do milho indígena com o trigo espanhol. Tornam-se emblemas da diferença entre as duas “repúblicas”, demarcando, aliás, a distância entre campo e cidade na Nova Espanha. Assim como o trigo, outro caro elemento da alimentação das elites da Espanha e que invade a América são as carnes de animais domésticos, desconhecidos dos indígenas, ainda que houvesse alguns equivalentes, como as lhamas e veados. Os índios se adaptam e buscam com sofreguidão a carne de vaca em compras nas carnicerías dentro e fora dos pueblos. O suíno, grande símbolo da cristandade na Reconquista contra os mouros, também conquista a América. Aliás, a banha de porco substitui, por necessidade, outro elemento da identidade cristã: o óleo de oliva, cuja planta se desenvolve mal na nova terra. Tanto o porco como os galináceos da pequena granja são logo tomados e povoam os quintais das famílias aldeãs. Os ovos e os frangos são itens que não escapavam da tributação indígena no início da conquista. Destarte, em várias or78 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

denanças e disposições dos vice-reis, os pueblos são obrigados a produzir os alimentos europeus e alguns produtos indígenas para vender aos colonizadores. Muitos dos novos alimentos erodem a agricultura nativa e o constante crescimento dos rebanhos europeus coincide com a exponencial depopulação indígena.35 Muitas plantas europeias invadem a América como os apreciados cítricos e as verduras da alface e do espinafre. A cana doce, as bananas, o arroz, o cravo, o gengibre e outras especiarias de apropriações dos espanhóis de produtos da Ásia e África também se espalham. O açúcar foi das coisas mais valorizadas na Europa e logo começou a ser produzido na América tropical para o comércio interoceânico. Mas vale lembrar que o produto também era essencial no abastecimento interno. Um dos mais populares alimentos e medicinas em regiões como o litoral do Brasil e do Peru, todos consomem demasiado açúcar em compotas de frutas, em rapaduras, e na Nova Espanha, dentro da bebida do chocolate. Até por razão de ser extremamente calórico, o açúcar torna-se fundamental para os indígenas lidarem com a perda de nutrientes devido à relativa desestruturação de sistemas alimentares tradicionais. Diversidade de vegetais, frutas e drogas estrangeiras teve ampla entrada na América pelo argumento de que eram coisas extremamente medicinais. Se o açúcar é logo adotado e muitas vezes empurrado para os índios, por outro lado, não significa que eles gostassem de tudo o que vinha de fora em detrimento de hábitos ancestrais. Frutas como o abacate e o mamão, inúmeras verduras chamadas de quelites no México e yuyos no Peru, sementes como o amaranto e a quinua, entre outras espécies, são consumidas não só pelos índios como pelo povo em geral. Apesar de criticadas por historiadores naturais e outros cronistas espanhóis por serem produtos “selvagens”, alimentos “frios”, sem poderes nutritivos e enfermiços. Quanto aos insetos tão apreciados pelos nativos, 35  Talvez mais impactante que a entrada da galinha e do suíno, tenha sido a invasão dos rebanhos de cabras, ovelhas e bois para a comida, bem como do cavalo e do jumento para o transporte. Estes vão competir com as lhamas andinas, as quais serviam para alimento dos nativos e vão desaparecendo de várias regiões com a convulsão gerada pela entrada dos outros rebanhos nas composiciones (distribuição de títulos de terras) para espanhóis, e por causa dos períodos de fome devido às intempéries e outras questões. Mas se os andinos logo se veem imersos na criação de bovídeos devido ao paralelo com a ciência de cuidar dos camélidos, na Mesoamérica demora mais para ocorrer essa interação. Aí a falta de adaptação ajudou na colonização espanhola mais invasiva. Os únicos animais de grande porte antes da conquista da Nova Espanha eram os cervídeos, muitas vezes consumidos em festas nas matanças rituais.

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comida considerada bárbara pelos espanhóis, espécies “baixas” na cadeia da vida, mesmo assim, havia trânsitos. Um tipo de formiga era bem apreciada pelos criollos (muitos deles biologicamente mestiços). Devido às adesões alimentares, enfim, ao nascimento ou criação na terra americana, os españoles naturales são rebaixados ao patamar dos índios. Pode ser que nos locais de grande interação entre indígenas e estrangeiros tenha havido rara bonança alimentar, contrapondo-se à escassez geral na Europa camponesa e urbana do século XVI para o XVII. Sem dúvida ocorreu, em algumas situações, alto consumo de carne bovina, caprina e de porco nos vice-reinos. Por exemplo, em rações estipuladas para os índios nos repartimientos nas minas, como em Potosí no Alto Peru e em Tasco no centro do México.36 Essa comida era produzida por lavradores nativos e colonos das regiões e circulava na malha de tratantes também de vária origem. Havia o comércio de produtos da Espanha para as instituições subvencionadas, como os caritativos hospitales de indios. Consta em raros libros de cuentas do hospital Santa Ana de Lima, início do século XVII, especiarias como a canela e o açafrão, itens na botica e no refeitório. Também a canja de galinha, a carne de carneiro, as marmeladas, entre outras coisas como os “panes de azucar”, tudo serve para os resguardos e tratamentos de cura, ou então, para o simples alívio dos moribundos. Não é possível averiguar se realmente (ou em geral) havia melhor alimentação na América que na Europa, mas, sem dúvida, existia a preocupação governamental e de religiosos, bem como de empresários, para uma alimentação de “sustança” para os índios sãos. A melhor dieta é aquela do costume espanhol ou criollo. Podia ser voltada também para os índios desvalidos e enfermos, como apontado. Mas, segundo o jesuíta Bernabé Cobo, apesar de tanto “regalo” de doces e outras coisas substanciosas e gostosas, os indígenas nos hospitais muitas vezes preferiam suas “comidas desabrosas”.37 Por outro lado, instâncias governamentais e cronistas às vezes avaliavam que podia dar em enfermidade e morte quando os índios comiam ou se refestelavam com as coisas do costume e da terra dos espanhóis. 36  Os corregidores apontavam, em suas relações com os empresários, as faltas de atendimento. Fiscalizam o provimento da comida aos índios, o que era obrigatório em vários tipos de recrutamento. Enfim, a precariedade alimentar podia ser advertida como causa da mortandade. 37  Ou seja, as diversas verduras, tubérculos, sementes que faziam parte do núcleo da alimentação dos americanos.

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Mas assim como é mito a dieta canibal dos astecas em supostos exageros dos sacrifícios humanos, está errada a percepção de uma alimentação genericamente “vegetariana” dos indígenas. Diversas carnes estavam disponíveis na Mesoamérica e nos Andes, como serpentes, aves, anfíbios, cervos, vicunhas, cães, cuyes (os porquinhos da Índia). Mas talvez os saberes indígenas se acertassem melhor com os ideais de hoje sobre a dieta equilibrada em fibras e vitaminas, menos carne vermelha, menos gordura. Enquanto que o rechaço europeu à entomofagia desprezaria excelentes nutrientes, sobretudo proteicos. Técnicas como colocar a cal no milho evitaria enfermidades por falta de certas proteínas, aproveitando-se melhor esse alimento. As técnicas para consumir batatas desidratadas (como o chuñu) não são postos em relevo. Muitas coisas passam despercebidas ou não podiam se enquadrar na ciência dietética dos doutos espanhóis. Se insetos, cobras e cães parecem sofrer resistência de consumo porque relacionados ao mundo bárbaro, muitos índios se mantiveram fiéis às velhas iguarias. Até mesmo as “coisas idolátricas” ou das “feitiçarias’, como os cuyes e a folha de coca, acabam mantendo-se como alimentos ou drogas seculares nos Andes até hoje – bem como seguem usados pelos curandeiros e nas preces, em oferendas colocadas em frente à cruz e ao lado das velas.38 Vale frisar que poucas técnicas e significados indígenas alcançam a Europa. Nem sempre havia bom entendimento entre as culturas, pois é comum a neofobia alimentar. Contudo, em âmbito comercial havia que criar os interesses. Por exemplo, as “raízes” (como os diversos tubérculos) são apenas outras novas entre as muitíssimas coisas do Novo Mundo que são tidas como medicinais para queimar as chagas, melhorar a digestão, evitar a gota, quebrar os cálculos renais, aumentar o sêmen, etc. Os alimentos dos índios são transformados em medicinas. Ademais, a crença comum de indígenas e europeus no poder das drogas torna-se importante canal de adaptação cultural.39 38  Vale lembrar que a cera foi um dos produtos espanhóis mais cobiçados pelos indígenas para iluminar de noite os espaços sagrados e suas moradias. 39  Grande campanha de extração de fármacos é promovida pela Coroa espanhola, particularmente quando Felipe II destaca o protomédico Francisco Hernández para pesquisar as plantas da Nova Espanha. Ou quando no mesmo contexto são requisitadas informações (desde questionários produzidos pelo Consejo de Indias) sobre as qualidades medicinais das coisas que há em cada um dos corregimientos, nas chamadas Relaciones Geográficas. Essas investidas contaram com o apoio ou depoimento dos expertos indígenas.

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Mas os significados míticos, alusivos, algumas práticas indígenas se perdem. Ao menos no ambiente das instituições cuidadas pelos religiosos e pelos práticos da medicina galênica. Muitas vezes os conhecimentos indígenas são identificados como fábulas, feitiçarias, idolatrias, coisas negativas. Alguns alucinógenos são usados pelos médicos espanhóis, mas os perseguidores das idolatrias induzem que os usos “cerimoniais” dos índios são práticas malignas e enganosas (como adivinhação). Em todo o caso, havia interações. A medicina indígena é separada entre uma legítima de conhecimentos de ervas e de cirurgias e sangrias, enquanto algumas técnicas psicoterápicas ou bem peculiares, como os transes e profecias, são excluídas como pactos demoníacos e erros de conhecimento. Mas tudo era questão de ponto de vista, pois a medicina erudita e popular europeia usava relíquias e confissões, ensalmos e influências astrais, e uma farmácia exótica de substâncias excrementícias, ossos, xaropes milagrosos. Também houve coincidências e empréstimos mútuos a respeito dos valores depositados às plantas e alimentos, sobre suas relações com as doenças e o restabelecimento da saúde. Afinal, a oposição quente/frio é fundamental nas cosmovisões locais e na medicina doutrinária que se reza nos hospitais, nos conventos populares, e também nas câmaras privadas dos vice-reis. Costumes, ideias, coisas bem suspeitas deste lugar atravessavam até mesmo o Mar del Sur, chegando às Ilhas Filipinas. Como o peiote, que se sabia do uso em hechicerías nas denúncias de alguns jesuítas no início do século XVII. Lá entre os chinos se estabelece um foco a ocidente da América da expansão do piciete (tabaco). E pelo oriente, a Espanha se torna um dos primeiros lugares a lidar com o arbusto, que tinha usos milenares entre os indígenas de todas as partes. As variadas receitas são consideradas medicinais, inclusive o fumo que era aromatizado com infinidade de substâncias nos charutos dos nobres astecas. O tabaco se torna “erva santa” e o estranho hábito hábito de fumar será descrito como ato de beber o fumo. Várias sociedades cortesãs europeias são apresentadas à planta e as discussões médicas eram infindáveis a respeito das propriedades curadoras e os riscos da intemperança. Obviamente, mais pioneiro foi o uso entre os espanhóis da América que aprenderam diretamente com os índigenas como fumar, aplicar emplastros, cheirar rapés. Outra iguaria que apaixonou os criollos e também os europeus do império Habsburgo na Europa, foram as be82 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

bidas de cacau mesoamericanas. As diversas fórmulas de chocolate com flores e ervas de aromas e efeitos foram transmitidas sem grandes alterações de receita para a aristocracia e os fidalgos e clérigos da Espanha e da península itálica. As especiarias dos astecas como o mecasuchil e o achiote entram no vocabulário de médicos da Nova Espanha como Juan de Cárdenas ao elogiar o chocolate. Essas plantas aos poucos são substituídas por equivalentes asiáticos ou europeus, porém, a baunilha é mantida. Se de um lado houve a tradução ao discurso médico dessas drogas em usos medicinais e prazerosos, também imitaram sentidos nativos de poderes afrodisíacos e valores aristocráticos. Apesar da perda dos mais profundos conhecimentos e sentidos míticos e simbólicos, que se apagam como coisas da idolatria e da feitiçaria. Um processo de secularização dos consumos também é fato na interação dos indígenas com missionários, administradores e médicos. O que era parte do desencanto do mundo tal como conhecido antes da conquista. Hábitos como fumar e beber ou mascar a coca se transformam em práticas do cotidiano e às vezes se tornam coisas profanas. As relações com as divindades, os conjuros às plantas como o tabaco e às bebidas como o pulque, às comidas como o milho, isso tudo já não se observa na esfera pública, contudo, se intensifica e aprimora nos esconderijos. De qualquer forma, tanto os usos rituais como os corriqueiros das elites pré-hispânicas são apropriados pelos espanhóis, africanos e outros. São clientes nos rituais e consumidores das medicinas de mulheres e homens indígenas considerados supersticiosos e embaucadores pelo discurso oficial acusatório. As maneiras e coisas das elites mesoamericanas e andinas são assumidas também com afã pelos índios comuns. Talvez a grande mudança no mundo ameríndio tenha ocorrido na esfera do consumo. Barreiras se quebram, pode-se pensar em verdadeira sublevação social contra os velhos códigos de distinção das elites. Iguarias como as carnes de aves, cervídeos, camélidos, certos insetos e aracnídeos, eram praticamente ausentes da dieta dos pobres e dos camponeses antes da conquista espanhola. A possibilidade de uma alimentação bastante carnívora, que é de alguma forma oferecida pelos conquistadores, funcionários civis e religiosos (à exceção dos missionários mendicantes), estabelece outra dimensão para o cotidiano dos indígenas. O que era privilégio das elites e de uso restrito entre os comuns para certas celebrações acaba As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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sendo plantado ou comprado facilmente, sem controle das esferas aristocráticas e dos rituais. É o caso do chocolate, do pulque, do fumo, dos cogumelos alucinógenos, da mastigação da folha de coca. Neste caso, há incentivo governamental para o uso entre os mitayos na mineração, pois se notava que melhorava a disposição ao trabalho, apesar da incompreensão do efeito da cocaína no corpo. As bebidas tradicionais logo foram usadas de forma relaxada entre os senhores, isto é, fora dos rituais em que eram permitidas. Em seguida são consumidas pelos subalternos. Pode tornar-se uma das formas de desrespeito às autoridades que sustentavam seu poder por qualidades e privilégios de cunho carismático ou divino com base nos mitos locais. De fato, ocorre a quebra de “leis suntuárias” com a chegada dos usurpadores espanhóis, também profanadores dos símbolos do poder indígena. Já a comercialização de bebidas pode passar para o controle das mesmas ou de novas elites indígenas, através de empresas como as pulquerías e chicherías. Os gastos perdulários dos caciques e gobernadores eram na verdade importantes para o controle e a coesão nos pueblos em festas e no cotidiano do trabalho (como comentado antes a respeito das das reciprocidades assimétricas). O que se relaciona aos antigos cultos e rituais, inclusive depois de um bom tempo da adoção da religião católica. Havia funerais que duravam dias nos tragos, que também eram oferecidos aos mortos. As velhas bebedeiras rituais, especialmente nas cerimônias e sacrifícios dos “meses” mesoamericanos e andinos, são ajustadas ao calendário e às festas católicas. Os religiosos, médicos e funcionários reais afirmavam que os índios eram exagerados na bebida. Apontavam as borracheras como o combustível das cerimônias idolátricas e o lubrificante das mesclas de paganismo nas celebrações católicas. A bebida parecia um veículo do diabo e de comportamentos aviltantes. Mas as brigas e o intercurso sexual eram aceitos na algazarra, o que sugeria aos clérigos (de certa forma por antonomásia) que haveria incesto, sodomia, assassinatos, e tudo sem controle. Também a bebida sem temperança era acusada de graves males para o corpo. Contudo, para os indígenas, a forte embriaguez era o mais desejado dentro dos rituais, quer sejam vistos na época colonial como idolátricos ou cristãos. Houve de fato um choque cultural. A bebida deveria ter uma função em refeições e sem grande embriaguez para os espanhóis amantes do vinho, quando observavam os hábitos dos índios 84 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

como “perda do juízo”, na ideia de que eles fossem iguais aos flamengos do império Habsburgo, que se acabavam na cerveja. Entrementes, um vetor de uso desregrado da bebida se acelera. Mas não apenas os índios, todos os setores populares da sociedade colonial foram-se consumindo nas bebidas destiladas. Assim como pela jogatina, prostituição, violência, entre outras práticas consideradas da “gente vil” ou do “vulgo”, inclusive segundo aqueles indígenas que foram educados no discurso de convicção dos males morais e afrontas.a Deus. Mas descontando os exageros desse discurso, pode-se concluir que as práticas de consumo alimentar e de drogas sem controle foram consequência das ambíguas mudanças sociais, materiais e simbólicas geradas a partir da conquista espanhola, que revirou regras e hábitos dos naturais e dos forâneos. As complexas dinâmicas modernas casavam visões de usos medicinais, de abastecimento na “economia moral”. Conduziram à reorganização das práticas rituais e profanas. Tudo isso se regou de cobiça pelo lucro, pela suntuosidade, o que incluía indivíduos da nata indígena, os quais também empregavam mão de obra, colhiam impostos, faziam o comércio.

Uma conclusão com os rebeldes cristãos e idólatras Vários assuntos das relações “interculturais” na primeira modernidade em ambientes de forte presença indígena foram tocados, porém, falta acentuar o ponto específico da evangelização contra a religiosidade e outras práticas locais. O que é fundamental, pois essa oposição é base das grandes discussões sobre aculturação, resistência e hibridismo, entre outras ideias que parecem rivais e anular-se mutuamente, mas que podem dar luz para aspectos parciais do movimento da história. Se essas expressões competem para se encontrar um equilíbrio qualquer do que tenha ocorrido com os indígenas no âmbito da religiosidade e fenômenos afins, atualmente, o mais consensual é que tenham existido vários resultados. Nada pode ser visto de forma acabada, em processos históricos e sociais sempre multifacetados. Nas poderosas redes de sociabilidade ligadas à religião e outros aspectos da cultura simbólica dos espanhóis, em tudo concorrem As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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peculiares heranças e invenções dos naturais da terra, que por sua vez se apropriam de aspectos do catolicismo popular, das astrologias, de cultos e magias dos africanos. Os índios inclusive podem abraçar como seu o discurso clerical contra as coisas diabólicas ou vãs imputadas a eles. Quer dizer, tomam as acusações sobre práticas notadas então pelos clérigos como erros ancestrais ou novas forças do mal e usam essas ideias para se contrapor a outros índios marcados pejorativamente, mostrando-se, em contrapartida, devotos cristãos e próceres da evangelização. Deve-se acentuar que a aproximação analógica entre expressões católicas e outras manifestações europeias com a diversidade de práticas locais foi importante para as políticas evangelizadoras e para as políticas indígenas.40 Em última instância, as traduções em geral estereotipadas e que desvalorizam as matérias dos índios, mesmo assim contribuíram para uma comunicação entre bagagens culturais muito distintas. Independente da natureza específica das práticas, algo como o mochar à huaca é tornado equivalente à oferenda ao santo, apesar de invertido o valor – o que impregna o discurso inquisitorial das visitas da extirpación de idolatrías no Peru do século XVII. Pôde ser natural entre os índios considerar plenamente as duas alternativas de culto, quer seja numa só ritualidade ou em círculos diferentes. Isso inclusive no ambiente público dos povoados, pela condescendência ou alheamento dos sacerdotes de extração espanhola.41 De muitas maneiras, as precedentes atividades e crenças transformam-se na modernidade do cadinho de culturas. Às vezes, em tempos do grande cataclismo, os motivos indígenas foram positivados como 40  A base teológica dos missionários e sacerdotes perseguidores favorece o entendimento de que as atuações do “outro” pendulem entre dois pólos. Se há hábitos ingênuos do costume antigo, vistos como “sobrevivências idolátricas”, também há influências diabólicas na intenção de enganar e prejudicar, especialmente por parte dos chamados feiticeiros, bruxos e mestres da idolatria, expostos como antagonistas dos religiosos, na verdade, como rivais na condução do rebanho. 41  O culto à Virgem de Guadalupe se espalha de um santuário na gruta de Tepeyac que era dedicada à entidade Tonantzin (nossa mãe). A Guadalupana será parte indissociável da identidade dos índios da Nova Espanha a partir do século XVII, e também da identidade criolla. Muitos historiadores atualmente destacam que o culto, nos inícios, fora malquisto por homens atentos ao que viam como sobrevivências idolátricas – como no caso de Bernardino de Sahagún. Mas esse mesmo frade provoca algumas mesclas no intuito da evangelização. O ubíquo Tezcatlipoca (o espelho que esfumaça) faz a vez de Deus para Sahagún. Num dos discursos poéticos morigerantes de velhos índios (huehuetlatolli) anotados no Códice Florentino, há exortação à Tezcatlipoca, o principal “ídolo” dos mexicanos. Na sua tradução, o franciscano converte essa entidade no deus dos cristãos, aproveitando-se de uma fala anciã contra os maus comportamentos.

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se fossem práticas e paralelas ao catolicismo ortodoxo. Aliás, com a queda da estrutura sacerdotal na conquista, tudo indica que formas de “xamanismo” e “messianismo” tenham aflorado profusamente. Sujeitos carismáticos e seus receptores estabelecem práticas como a comunicação com forças do além, há propostas de guiar (muitas vezes pela insurgência) a restauração ou criação de ordens sociais em pensamento utópico. Doravante, a distinção entre cristianismos legítimos e idolatrias dissidentes não reflete a variedade das transformações e recomposições de hábitos e crenças indígenas. A oposição formal nem mesmo esclarece a maleabilidade política e as diferentes construções de si. Às vezes as lealdades ou afinidades do “campo mágico-religioso” são fugidias, isto é, não só as adesões, talvez inconscientes ou de acomodação habitual, como também os interesses envolvidos, podem ser flutuantes ou sofrer rearranjos circunstanciais. Para concluir este capítulo a partir de um bojo de matérias que mereceriam outro trabalho, remexendo a enorme bagagem de fontes e historiografia, optou-se por indicar uma ou outra história de um motivo provocativo: a força da rebelião. Ela se imiscui às esferas de “cultos” e “magias” na história dos índios. Porém, se há boas expectativas de batalhas sem trégua entre supostas religiões e povos em antítese categórica, talvez o que mais possa ser encontrado são os episódios de índios representando cristãos versus idólatras, ou atuando como rebeldes cristãos e idólatras num só evento. O início da evangelização pelos mendicantes na Nova Espanha é povoado de notícias entusiasmadas sobre os batismos ou conversões em massa, como na crônica do franciscano Toribio de Benavente, apelidado Motolinia (pobre em náuatle). A metodologia que ele representa logo seria criticada pela ineficácia já em meados do século XVI, e inclusive por religiosos das ordens conventuais. Sem dúvida, a formal adesão ao cristianismo não poderia significar uma conquista dos corações.42 Essa questão foi acentuada pelos clérigos e bispos no Terceiro Concílio mexicano e de Lima. Essas longas reuniões reforçaram as diretrizes da Reforma Católica e contaram com o protagonismo dos jesuítas. 42  Há relatos do início da colonização da Nova Espanha, como do pueblo de Ajusco, que mostram o apreço pela divindade Tezcatlipoca e ao mesmo tempo a necessidade de rezar para Deus para que os conquistadores não matassem todo mundo. Enquanto que os incas rebelados em Vilcabamba mantinham Punchao (uma imagem da entidade solar) como forma de contrapor-se politicamente ao governo de Lima. Mas quando o inca Titu Cusi Yupanqui negocia sua rendição, torna-se mais um entre os homens da cruz.

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De outro lado, grandes expectativas emocionais (como obter proteção e alívio) foram geradas entre os indígenas a respeito do poder das entidades extraordinárias cristãs e nas pessoas dos clérigos. Muitos maceguales, mas particularmente os jovens da nobreza criados nos conventos, intercederam em prol dos religiosos e se rebelaram contra sacerdotes da velha ordem, ficaram inimigos até dos parentes e dos próprios pais, partindo para extremos como nos atos de linchamento. Mas os “homens-deuses”, isto é, líderes carismáticos e em alguma medida divinizados, foram bem respeitados e temidos. Antigos sacerdotes e outras lideranças da região mexicana representavam entidades a partir de posturas, rituais e magias no intuito, por exemplo, de trazer chuva para o bem ou granizo para o mal. Benevolentes ou ruins por caprichos ou para punir o rompimento de tabus, conseguiam a submissão das gentes, obtendo alimentos e outros bens em oferendas sacralizadas.43 Junto ao respeito também vinha o enfrentamento e podiam ser desacreditados. Até porque havia diferenças irreconciliáveis entre grupos e famílias. Nos primeiros processos contra a idolatria, figuras que controlassem as intempéries, como Martín Ocelotl (Onça), ou mesmo líderes mais seculares como Carlos Ometochtzin (senhor Dois-Coelho), este da casta senhorial de Texcoco, viravam vítimas de intrigas. Ou seja, os depoentes nos tribunais, algumas vezes com nítidas intenções de prejudicar um desafeto, falam ou deixam entender aquilo que está nas expectativas criadas pelos inquiridores. Pode ocorrer a invenção de um mundo clandestino. Haveria ídolos oferendas no oco das imagens dos santos e nos sacrários, incrustados no cimento das paredes e debaixo do chão das capelas? Essa mesma dinâmica de índios “cristãos” contra outros “idólatras” permeia os processos em visitas eclesiásticas que se fizeram crer ou queriam ser a imagem do Santo Ofício. Bispos, clérigos, até mesmo funcionários civis zelosos da religião lideravam campanhas de combate às “heresias” dos índios, o que levava (sublinhe-se) à desapropriação de bens e valores dos culpados. 43  Independente da particularidade mesoamericana, a força do carisma religioso é evidente em toda a América indígena e nas relações interculturais. Pois, também muitos clérigos, como os jesuítas no Québec dos iroqueses e no Guairá dos guaranis, seriam tratados como entidades especiais. E se os clérigos achavam que os especialistas do sagrado indígena eram seres endemoniados, a qualificação podia ser revertida pela massa indígena acusando os próprios sacerdotes católicos de malfeitores.

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Portanto, não é fácil discernir, nos documentos, o que são palavras impregnadas de inverdades pelas disputas entre os índios, entre parcelas de índios contra ou a favor de clérigos, e outras refregas de grupos e personalidades, daquilo que possa de fato indicar práticas, crenças, rituais indígenas da época colonial. Esse é o grande problema para o historiador que quiser estudar as dimensões de movimentos que parecem combater praticamente tudo o que vinha do mundo espanhol. Como o taki onqoy (baile/canto da enfermidade). A principal fonte histórica desse movimento contestatório são os processos levados a cabo por Cristóbal de Albornoz, que serviram para sua promoção na carreira eclesiástica.44 De todo jeito, os argumentos são fortes: fomentar ressurgência e aliança das grandes huacas de várias regiões andinas, como Pachacámac do litoral yunga e Titicaca do altiplano colla; postular o total abandono e rechaço das divindades cristãs e até dos alimentos estrangeiros; esperar a subsequente destruição dos espanhóis nos Andes de tantos cataclismos. A segunda metade do século XVI é o contexto (também na Nova Espanha) de desilusão com a promessa de salvação dos missionários frente às desgraças da conquista espanhola. Muitos indígenas especialistas do sagrado buscavam alternativas mais ou menos contemporizadoras ou contrárias ao cristianismo para encontrar-se com um mundo melhor. Contudo, a ideia de grande conspiração bem organizada que pudesse ligar o taki onqoy aos incas de Vilcabamba numa guerra contra o vice-rei Toledo; ou a noção de possessão das huacas dos ares no corpo humano em êxtases, tal como se inscreve nos manuais da bruxaria, podem não contemplar muito bem sentidos de veracidade. Por outro lado, práticas como jejuns e abstenção sexual, ou as visões de temeridade e a necessidade de aplacar as huacas para o retorno à boa ordem das coisas, realçam a potência antagonista e nativa do movimento. Mas inclusive no taki onqoy e em fenômenos comparáveis, como na “santidade do gentio” com seus maracás nas matas e nos engenhos de açúcar da Bahia, vivos estão os signos do cristianismo. Até são adotados os nomes de santas católicas para certas moças devotadas a essas duas causas. 44  É possível que ele e outros testemunhos tenham exagerado na dimensão da rebeldia, inventado mais sentidos do que por ventura foi pregado pelo ladino Juan Chocne e outros participantes do movimento.

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Muito tempo depois, nos Altos de Chiapas de início do século XVIII, uma menina de menos de quinze anos de idade dá o estopim para mais uma das aparições e representações de entidades divinas no mundo dos índios. Dessa vez, trata-se da Virgem do Rosário, a qual encanta vários pueblos para o confronto à opressão, exploração e exclusão que representavam as figuras dos religiosos, dos hacendados, dos mestiços da região. O evento tomou proporções de desafio à ordem instituída pela grande sublevação armada, contando com assassinatos, sequestros, expulsão dos não índios. Houve a constituição de uma Igreja com suas hierarquias, mas sem qualquer respeito aos poderes do Vaticano e seus representantes. A expedição de guerra contra o movimento nativista causou grandes perdas para a governança e as condições materiais das comunidades envolvidas. Mas nos poucos meses de glória desse culto, o que de fato fora reverenciado e invocado na capela erguida em Cancuc? Para além das aparências cristãs está o mistério. O que havia detrás da cortina que mantinha os índios separados do objeto de devoção? Entre a imagem singela de uma santa relacionada a entidades indígenas femininas e o ídolo felídeo ou coisa disforme, tudo se pode especular.45 A narrativa termina aqui aludindo às pioneiras atenções de Marcel Mauss sobre a noção de “pessoa”. Porque os índios da primeira modernidade são as máscaras do teatro da vida e os corpos atribuídos de presenças e por onde seriam feitas as conexões com outras energias, seres volitivos, outras esferas do cosmo. Sendo assim, não se encaixam, sem algumas adaptações, como seres da humanidade única do projeto da Igreja, que, porém, podia localizá-los como filhos do demônio ou até dava espaço para que fossem espíritos da Renascença. Sem dúvida, não atuaram como o indivíduo da razão ilustrada ou da era vitoriana, nem poderiam ser exatamente os indígenas das etnias e identidades contemporâneas. Há muito que pensar sobre os sujeitos que na primeira modernidade se viram como índios.

45  Isso levando em conta os informes dos religiosos e os depoimentos dos que se renderam e estiveram próximos de quem morreu ou conseguiu fugir do cerco à manifestação do poder indígena.

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Roteiro bibliográfico Abaixo algumas referências de apoio ao estudo da América indígena dos longos séculos XVI e XVII em regiões centrais mesoamericanas e andinas na crescente interação com os invasores e imigrantes espanhóis e povos de outras partes. A lista de trabalhos sobre os tempos pré-hispânicos é grande, contando com a linguagem da arqueologia, mas aqui basta indicar um manual sobre Mesoamérica: El pasado indígena (México, 1996) de Alfredo López Austin e Leonardo López Luján; um trabalho sobre o estado incaico, Historia del Tahuantinsuyu (Lima, 1999) de María Rostworowski; e outro sobre o mundo simbólico pré-hispânico, Mitologías amerindias (Madrí, 2006), editado por Alejandro Ortiz Rescaniere. O livro The Inca and Aztec states 1400-1800, anthropology and history (Nova York, 1982), editado por George Collier, Renato Rosaldo e John Wirth, já acentuava a continuidade estrutural da Mesoamérica e Andes apesar da conquista espanhola. Enquanto Para una historia de América I (México, 1999), organizado por Marcello Carmagnani, Alicia Hernández Chávez e Ruggiero Romano, aponta para a grande ruptura no evento. A coleção The Cambridge History of the Native Peoples of the Americas (Nova York, 1996, 1999, 2000) proporciona estudos arqueológicos e etno-históricos das diversas regiões do continente desde o tempo paleo-índio. Alguns dos seus artigos orientaram a escolha de certos tópicos e conteúdos deste trabalho. Com relação à época colonial, no volume III (South America) editado por Frank Salomon e Stuart Schwartz, as principais referências são Stuart Schwartz e Frank Salomon “New peoples and new kinds of people”; Karin Spalding “The crisis and transformations of invaded societies”; e Thierry Saignes “The Colonial condition in the quechua-aymara heartland”. De outra lista no volume II (Mesoamérica) editado por Richard Adams e Murdo MacLeod estão, por exemplo, Murdo MacLeod “Mesoamerica since the Spanish invasion” e Sarah Cline “Native peoples of Colonial Central Mexico”. Os dois primeiros volumes da História da América Latina (São Paulo, 1999) também compreendem artigos importantes, como “As sociedades indígenas sob o domínio espanhol” de Charles Gibson. Enciclopédias como estas, de certa forma, são herdeiras das colossais edições Handbook of North As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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American Indians, Middle American Indians e South American Indians, organizadas por Julian Steward e outros em meados do século XX, as quais seguem bem úteis pelo conteúdo enciclopédico na descrição das fontes documentais. A respeito da depopulação indígena: The native population of the Americas in 1492 (Madison, 1992) editado por William Denevan; Secret judments of God (Norman, 1992) editado por Noble David Cook e George Lovell; Ensayos sobre la historia de las epidemias en México (México, 1982) compilado por Enrique Florescano e Elsa Malvido; Plaga de ovejas (México, 1999) de Elinor Melville. Imensa quantidade de periódicos traz ensaios sobre os indígenas no início da modernidade e muitos artigos foram consultados, mas aqui somente se indica algumas fontes, como Hispanic American Historical Review, Revista de Indias e Nuevo Mundo, Mundos Nuevos. Na especialidade etno-histórica mesoamericana pode-se destacar Estudios de Cultura Náhuatl, Estudios de Cultura Maya e Tlalocan. Sobre a região andina, periódicos como a Allpanchis e o Boletín del Instituto Francés de Estudios Andinos. Para toda América, por exemplo, Ethnohistory e América indígena. Também existe um rol de textos “clássicos” de etno-história imprescindíveis para posterior aprofundamento em temas específicos. Para o centro da Nova Espanha, sobressaem Los aztecas bajo el dominio español (México, 1981) de Charles Gibson e The Nahuas after the conquest (Stanford, 1992) de James Lockhart, obras que em vários sentidos são complementares. Uma coleção de textos de Lockhart intitulado Of things of the Indies (Stanford, 2000) pode recuperar mais desse autor sobre mais lugares. Para a região andina destacam-se obras como Los pueblos indígenas del Perú y el desafío de la conquista española (Madrí, 1986) de Steve Stern e Huarochirí: an Andean society under Inca and Spanish rule (Stanford, 1988) de Karen Spalding. Uma seleção póstuma de estudos de Franklin Pease traz vários temas andinos que foram tocados aqui: Los incas en la Colonia (Lima, 2012). Coletâneas que não tratam somente do ambiente (ou protagonismo) indígena são muito indicadas para observá-lo nas relações interculturais, como Entre dos mundos, fronteras culturales y agentes mediadores (Madrí, 1997) coordenado por Berta Ares Queija e Serge Gruzinski; Passeurs, mediadores culturales y agentes de la primera globalización (Lima, 92 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

2005) coordenado por Scarlett O’Phelan Godoy e Carmen SalazarSoler. Obras de Serge Gruzinski como História do Novo Mundo volume 2 (São Paulo, 2006) e Las quatro partes del mundo (México, 2010) exploram as mestiçagens culturais. Sobre a categoria ou casta dos índios e outros na América hispânica há títulos como The limits of racial domination (Madison, 1994) de Douglas Cope, The imperial subjects (Durham, 2009), editado por Andrew Fisher e Matthew O’Hara, Genealogical fictions (Stanford, 2008) de María Elena Martínez, Bound lives (Pittsburg, 2012) de Rachel O’Toole. Na análise das representações pode-se reter importantes formações discursivas da construção do índio. Ver La imagen del indio en la Europa moderna (Sevilha, 1990) com artigos em espanhol e inglês, A conquista da América (São Paulo, 1988) de Tzvetan Todorov, e os três volumes De palabra y obra en el Nuevo Mundo (Madrí, 1992,1993), coordenados por Gary Gossen, Jorge Klor de Alva, Manuel Gutiérrez Estevez e Miguel León-Portilla. The fall of natural man (Cambridge, 1982) de Anthony Pagden expõe o surgimento de uma antropologia relacionada aos interesses da Coroa espanhola, enquanto De la idolatría (México, 1992) de Carmen Bernand e Serge Gruzinski, remete à constituição de um campo religioso nas visões do índio. Sobre os cronistas espanhóis “etnógrafos”, contrastar Humanismo y vision del otro (Madrí, 1992) de Berta Ares, Jesus Bustamante, Francisco Castilla e Fermín del Pino, com Narrativas problemáticas (Lima, 2006) de Lydia Fossa. Para o discurso sobre o “outro” estrangeiro nos textos indígenas nauas, Historias de la conquista (México, 2004) de Miguel Pastrana Flores, e sobre os Andes, Versión inca de la conquista (Lima, 1974) de Edmundo Guillén Guillén. Consultar Miradas comparadas en los virreinatos de América (México, 2012) editado por Ilona Katzew, para estudos da arte visual indígena sobre o cataclismo da conquista e a produção sacra das elites nativas e os brasões de nobreza. Também sobre isto, Los escudos de armas indígenas de la Colonia al México independiente (México, 2013) editado por María Castañeda de la Paz e Hans Roskamp. Para uma primeira aproximação às escritas mesoamericanas, Códices. Os antigos livros do Novo Mundo (Florianópolis, 2012) de Miguel LeónPortilla, e sobre o peculiar instrumento de registro andino, ver El quipu colonial. Estudios y materiales (Lima, 2013), editado por Marco Curatola Petrocchi e José Carlos de la Puente Luna. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Quanto aos cronistas andinos, Guaman Poma: writing and resistance (Austin, 2000) de Rolena Adorno, bem como Em busca del orden perdido (Lima, 2008) de Juan Ossio, também sobre Guaman Poma de Ayala. Indica-se ainda La apropiación del signo, tres cronistas indígenas del Perú (Tempe, 1988) de Raquel Chang-Rodríguez. Ver Un Inca platonicien, Garcilaso de la Vega (Paris, 2006) de Carmen Bernand. Vale a coletânea Indios, mestizos y españoles (México, 2007) coordenado por Danna Levin e Federico Navarrete para uma aproximação à escrita indígena intercultural na Nova Espanha. Também Visiones de anáhuac, reconstrucciones historiográficas y etnicidades emergentes (Guadalajara, 2003) de Salvador Velazco. Entre os títulos sobre a governança indígena no centro do México, Un gobierno de indios: Tlaxcala (México, 2008) de Andrea Martínez Baracs e After Moctezuma (Norman, 2011) de William Connell. Ver a coleção Los indios y las ciudades de Nueva España (México, 2010), coordenada por Felipe Castro Gutiérrez, para tratar dos índios fora de suas “repúblicas”. Já a respeito dos indígenas em Lima, Espacios de exclusión, espacios de poder (Lima, 2006) de Alexandre Coello de la Rosa. Para uma revisão do tema das reducciones na serra andina, Vertical empire (Durham, 2012) de Jeremy Mumford. Sobre as comunidades utópicas na Nova Espanha, Vasco de Quiroga y sus hospitales-pueblo de Santa Fe (Morelia, 1977) de Benedict Warren. Sobre a educação em Tlatelolco, La conversión de los indios de Nueva España (México, 1993) de Christian Duverger; e sobre os colégios de caciques, La educación de las elites indígenas en el Perú colonial (Lima, 2007) de Monique AlaperrineBouyer. Destaque-se vários trabalhos sobre os caciques andinos, como: Incas e indios cristianos. Elites indígenas e identidades cristianas (Cusco, 2002) editado por Jean-Jacques Decoster; Élites indígenas en los Andes (Quito, 2003) editado por David Cahill e Blanca Tovías; Los curacas hechiceros de Jauja (Lima, 2007) de José Carlos de la Puente Luna; Sin malicia ninguna (Lima, 2010) de Luis Arana Bustamante. Sobre a condição jurídica e espaços para os índios na justiça civil, El Juzgado General de Indios en la Nueva España (México, 1985) de Woodrow Borah, e na eclesiástica, Los indios ante los foros de justicia religiosa (México, 2010) coordenado por Jorge Traslosheros e Ana de Zaballa. Para o assunto da alimentação, bebidas e drogas na vida dos índios e no intercâmbio mundial, títulos como The Colombian Exchange 94 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

(Westport, 2003) de Alfred Crosby e Conquista y comida, consecuencias del encuentro de dos mundos (México, 2003), coordenado por Janet Long. A tese da abundância alimentar nos vice-reinos está em Food, conquest, and colonization (Albuquerque, 1988) de John Super. Sacred gifts, profane pleasures (Ithaca, 2008) de Marcy Norton observa os trânsitos do tabaco e do chocolate. Quanto ao tema da embriaguez indígena, entre outros, El fraile, el indio y el pulque (México, 1991) de Sonia Corcuera de Mancera, Embriaguez, homicidio y rebelión (México, 1987) de William Taylor, bem como a coleção sobre a região andina Embriaguez y memoria (Lima, 1993), editada por Thierry Sagnes. Sobre o choque de religiões ou religiosidades, diversas abordagens podem ser obtidas nas seguintes coleções: Catolicismo y extirpación de idolatrías (Cusco, 1993) da compilação de Gabriela Ramos e Henrique Urbano; Spiritual encounters, interactions between Christianity and native religions (Birmingham, 1999) editado por Nicholas Griffiths e Fernando Cervantes; Religion in New Spain (Albuquerque, 2007) editado por Susan Schroeder e Stafford Poole. Ainda é importante retomar La conquista espiritual de México (México, 1986) de Robert Ricard, La vision des vaincus (Paris, 1970) de Nathan Wachtel, La lutte contre les religions autochtones dans le Pérou colonial (Lima, 1971) de Pierre Duviols. Comparar La colonización del imaginario (México, 1991) de Serge Gruzinski com Del paganismo a la santidad (Lima, 2003) de Juan Carlos Estenssoro; Man-gods in the Mexican highlands (Stanford, 1989) de Serge Gruzinski e Religion in the Andes (Princeton, 1991) de Sabine MacCormack. Sobre as campanhas de extirpação das idolatrias: Las guerras invisibles (Oaxaca, 2012) de David Tavárez Bermúdez sobre Nova Espanha, Idolatry and its enemies (Princeton, 1997) de Kenneth Mills e The cross and the serpent (Norman, 1996) de Nicholas Griffiths para o Peru.

Extratos de documentos 1- Disputa de terras entre índios do pueblo de Cuauhtitlan, 1554. En el pueblo de Coautitlan,…antel señor bachiller Martínez, juez de comisión por su Magestad, paresçió presente don Hernando As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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de Estrada…e presentó esta demanda.46 …en nombre y como curador de don Pedro Ythzcouathzin y de doña Ysabel su madre y legítima administradora, hijo y muger que fue primero de don Juan Saltemoctzin, nieto de Motecuçuma, digo que el dicho don Juan, padre de mi menor, eredó de su padre Aztathzunthzin muchos y muy buenos pueblos, tierras y estançias en diversos lugares y provinçias de esta Nueva España, las quales sus antepassados por fuerça de armas avían adquirido y poseydo de tiempo inmemorial a esta parte, así en la provinçia de Chalco y Valle de Matlathzinco como en otras provincias desta Nueva España, las quales el Marqués del Valle [Hernán Cortés], governador de su Magestad, por estar tan derramadas y porque muchas dellas cayan en su señorío y las quiso él más para sí, le quitó y le dio en este pueblo de Quauhtitlan, donde él era caçique y governador, las tierras…que en este dicho pueblo tenía y posseya Motecuçuma su avuelo…y el dicho don Juan las tuvo y posseyó quieta y paçíficamente, hasta que avrá treze o catorze años poco más o menos tiempo que los yndios de Quauhtitlan se le alçaron con las dichas tierras forçiblemente y contra su voluntad del dicho don Juan, apremiando con cárçeles y çepos a los calpisques [fiscais] que eran para que les mostrassen las tierras que a su cargo tenían hasta quitarlos y poner otros…hasta que el dicho don Juan fallesçió avrá quatro años…del qual agravio y sinrazón nunca pudo pedir justiçia…por andar de contino mal dispuesto y enfermo. E agora los dichos calpisques…puestos y los yndios que de su propia autoridad repartieron entre sí todas las dichas tierras…en daño y perjuyzio del dicho menor, a cuya causa, siyendo como es señor natural deste pueblo y bisnieto del que fue señor desta tierra y por todas partes de sangre y casta más principal que en ella ovo, padece grandíssima neçessidad, y él y su madre viven más aviltados que si fuesen maçeuales [índios comuns], sujetos a aquellos que lo fueron de sus passados, hasta tanto que las pocas tierras que les quedaron y de que se sostentan, otros maçeuales se les quieren entrar en ellas forçiblemente, como más largamente conocerá vuestra merçed por una pintura [prov. um mapa] que presentará la dicha doña Ysabel, madre del dicho 46  Trechos de um pleito a partir da demanda de uma senhora descendente de Moctezuma no intuito de recuperar terras perdidas aos índios do pueblo. Transcrição do original em espanhol. O manuscrito se encontra no México, Archivo General de la Nación, Tierras, vol. 13, exp. 4. Apud Pérez-Rocha, Emma y Tena, Rafael (comps.). La nobleza indígena del centro de México después de la conquista. México: Instituto Nacional de Antropología e Historia, 2000, p. 179-186.

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mi menor… Los que forçiblemente y de su propia authoridad tomaron y repartieron todas las tierras de don Juan…fueron: don Luys de la Vega, Alonso Tlacuchtecutli, Miguel Quauhnochtli [etc], éstos fueron los más principales que hizieron junta para tomar las dichas tierras y repartirlas, los que mandaron que no acudiessen a don Juan con las rentas y alcabalas de los tiyánguez deste pueblo... Los demás que se hallaron presentes y en ello consintieron fueron: Juan Garçía, Thomás Damián, Pedro Valentino [etc], y otros muchos criados del monasterio… Después,… fueron los cantores de la yglesia, que los susodichos principales se las hizieron dar. Yten a los oficiales, como canteros y carpinteros, fueles hecho repartimiento de muchas tierras de don Juan, excepto los pintores, que mandaron desterrar porque andavan muy allegados y muy obedientes al dicho don Juan… Yten, otros muchos viejos tienen usurpadas muchas tierras de don Juan…y otros muchos yndios que sus nonbres no se saben por ser tantos, todos los quales forçiblemente y con tyranía tienen tomadas y usurpadas todas las tierras de don Juan... Yten, Toribio Xuárez y Pedro Valentino, del varrio de Santa Ana, de nuevo quieren desposseer al dicho menor de la possessión de una sementera…la qual de contino ha labrado y cultivado doña Ysabel, como legítima administradora del dicho menor… E ansy presentada la dicha petición…47 el dicho señor juez aviendo visto estas ynformaçiones e autos…dixo que absolvió a los dichos Toribio Xuárez e Pedro Valentino, e les dava e dio por libres e quitos de lo pedido por el dicho don Hernando de Estrada en el dicho nombre, al qual ponía e puso perpetuo silençio para que daquí adelante no pida a los susodichos cosa alguna en razón de las dichas tierras, y por este auto juzgado ansí lo mandó… 2- Causa criminal contra um índio idólatra e feiticeiro de Oteque, 1665-1669. En el pueblo de la advocasion de señor San Francisco de Iguari…el señor licenciado don Juan Sarmiento de Vivero visitador general y de las idolatrias de este arçobispado de Lima del Consejo de su 47  Seguem os despachos e vários depoimentos de ambas as partes do litígio, de um lado, por dom Hernando de Estrada e dona Isabel sua esposa, de outro, por Toribio Xuárez e Pedro Valentino, os principais acusados. O trecho a seguir traz a sentença final.

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magestad etc.48 Aviendo visto las denunciaciones secretas que algunas personas an hecho y declarasiones que asimismo an hecho algunos delinquentes en el pecado de la idolatria y asi mismo las diligensias que don Pedro Chupica fiscal eclesiastico hiso en orden a prender a Thomas Acauchanca yndio natural del pueblo de Oteque del ayllo de Chauca mando pareser ante su merced al susodicho para efeto de resivir su confession la qual mando se reciva con asistencia de Diego de Molina defensor de los naturales en causas de vissita por su ynterpretasion y de mi el presente notario publico lenguaras aprovado y aviendo paresido el susodicho ante su merced lo exorto poniendole por delante el temor de Dios Nuestro Señor y el bien de su alma en confirmar…ser ydolatra hechisero y que sin temor del castigo diga y confiese…Y preguntandole…dixo que no es guacamocha [adorador de huacas] ni hechisero…el dicho señor visitador viendo la negativa…mando que se le resiva juramento…a la señal de una crus segun forma de derecho…y aviendole dado a entender la gravedad del juramento se le bolvio a preguntar…que por que le disen hechisero e idolatra = dixo que por que anda de casa en casa pidiendo limosna le disen que es hechisero = y preguntandole que si ha mochado en las guacas [feito libações às huacas] que estaba[n] debajo de la peaña de la crus en medio de la plasa del dicho pueblo de Oteque = Dixo que no…sino la santa crus y preguntandole que si ha mochado en las dichas guacas que estan en el campanario = Dixo que no…[ademais] quando se hiso el campanario estubo en los trajines trabajando por mitayo [recrutado]…Y disiendole que como dixo que no a sido ni idolatra ni hechizero si Magdalena Quillay madre de don Francisco Gamarra lo mingo [pagou-o] para que hisiera hechizos por la salud de su hijo y la llebo el a que mochase en los idolos que estaba en la peana de la dicha crus…porque eran guacas [huacas] de sus antepasados…Dixo que no ha hecho cosa de lo que se le a preguntado con lo cual el dicho señor visitador mando llamar a la dicha Magdalena Quillay para carearlo con el dicho Thomas Acauchanca…Y dixiendole que di48  Trechos dos autos contra um índio da reducción de Oteque, anexo de Iguari e ayllu Chinca. O processo eclesiástico é perante um velho cego das serras peruanas, acusado e condenado à prisão por idólatra e feiticeiro, o qual é denunciado reincidindo no erro, quando esteve internado no hospital Santa Ana de Lima. Transcrições do original em espanhol. O manuscrito pertence ao Archivo Arzobispal de Lima, Visita de las idolatrias, I, exp. 7. Apud Sánchez, Ana (comp.). Amancebados, hechiceros y rebeldes. Cusco: Centro de Estudios Regionales Andinos ‘Bartolomé de Las Casas’, 1991, p. 133-150.

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xese la verdad que ya se savian todas sus maldades y bellaquerias = Dixo que no savia mas y que eso se havia olvidado = Y preguntandole que si llebo a la dicha Magdalena Quillay a mochar a las guacas que estan en el dicho campanario y la hiso yncar de rodillas junto a la peaña de la dicha crus vuelto el rostro las manos puestas asia las dichas guacas del dicho campanario y este confesante andubo dando bueltas por la dicha peaña hechando chicha [bebida] y mais [milho] blanco molido…disiendole a la dicha Magdalena Quillay que desde alli resivirian lo que le ofresian a las dichas guacas y luego le sobo la cabesa con una piedra y la hecho asia las dichas guacas = Dixo que es verdad todo lo que se le ha preguntado…Y disiendole que como a negado que es ydolatra hechisero si ha mochado en las dichas guacas…Dixo que solamente eso se le olvido y que no save mas y bolviendose a requerir que dixese la verdad y descubriese las guacas e ydolos que avia en el pueblo de Oteque…porque de no desirlo le a de mandar dar tormento [torturar]…dixo que no save mas…con lo qual el dicho señor visitador mando llamar a Christobal Jurado…le mando que pusiese a question de tormento al dicho Thomas Acauchanca y poniendolo con los brasos lebantados y atados del techo y en cada molledo de los brasos y entre la carne y los cordeles dos palillos en cada uno para torserlos el dicho señor visitador mando a mi el presente notario publico requiriese y exortase de parte de la justicia y de su merced al dicho Thomas Acauchanca a que dixese la verdade…Dixo que no savia mas de lo que tenia dicho misericordia Dios y el dicho señor visitador viendo su reveldia mando al dicho Christobal Jurado que diese otras dos bueltas a los dichos cordeles y aviendolas dado de que doy fee grito el dicho Thomas Acauchanca dixiendo misericordia dejenme que yo dire la verdad…y dixo que doña Graciana la gobernadora lo mingo para que la curara de una ynchason que tenia en la garganta y le saco una cosa como pepitas de algarroba…= Y preguntandole que quienes mas le han mingado [pagado por seus serviços] = Dixo que el fiscal de Oteque Juan Julca lo mingo para que le curara de una enfermedad en las partes bajas y que lo curo con unas yerbas…Dixo que tambien lo mingo la dicha doña Graciana para que mochase en una peña…porque era el malqui [múmia] de sus antepasados de la dicha doña Graciana y que le dixo que le pidiera que le diera chacaras y que tambien le pidio que pidiera para que respetaran los yndios = Y preguntandole que ofresio a la dicha peña = Dixo que llebo coca y chicha y que la coca le tenia este confesanAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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te y la chicha la embio la dicha doña Graciana con una criada y que ensima de la dicha guaca derramo la dicha chicha y coca…Y preguntandole que que palabras habia dicho quando hiso el ofresimiento de coca y chicha a la dicha peña = Dixo que le dixo a la dicha peña Padre [prece do Pai Nosso] desde el tiempo de los antiguos aveis remediado a los que son tus hijos de casiques, remediad a este tambien que corre por vuestra quenta y hase que le respeten todos los parientes y los que son de buena sangre y que tenga buenas chacaras y tenga con que vivir = Y preguntandole que adonde tienen el mochadero [local de culto às huacas] del serro Villcacoto = Dixo que el es de otro ayllo Chaupis y que no save del mochadero = Y preguntandole que quien es el doctor [curandeiro] de el otro ayllo = Dixo que Francisco Llasac es el doctor del otro ayllo = Y preguntandole que qual es el mochadero de los yndios de Oteque = Dixo que las piedras que estan en el campanario es el mochadero de todos los yndios del dicho pueblo de Oteque con lo qual el dicho señor visitador mando suspender el tormento y no preguntarle por ahora otra cosa...49 En la ciudad de los Reyes de el Peru [Lima]…el señor licenciado don Juan Sarmiento de Vivero visitador general y de las ydolatrias de esta dicha ciudad... Dixo que por cuanto aviendo imbiado al Hospital de mi señora Sancta Ana a Thomas Acauchanca indio ciego y natural del pueblo de Yguari por orden de su merced don Joseph de Tores fiscal eclesiastico con otros indios e indias que estaban enfermos en la carcel particular de dichas visitas y volviendo el dicho don Joseph a visitar a los dichos enfermos para saber en que estado estaban sus enfermedades. Uno de los hermanos que asisten a la curasion…escandalizado le avia dicho como avia hallado al dicho Thomas Aucachanca afeitandose con unos polvos… que esto avia sido de parte de noche porque yendo visitando los enfermos el dicho hermano avia reparado llegando a la cama en que estaba el dicho Thomas que estaba sentado en ella y que corriendo la cortina lo hallo en la manera dicha... [el] hermano Domingo Martines de Ulloa que reside en el Hospital…yendo este testigo…visitando los enfermos llego a la cama quarenta uno adonde estava un indio siego…con unos trapos y emboltorios con polbos blancos vermejos y amarillos y el dicho indio siego…afeitandose con los polbos blancos y 49  Seguem outras ações e despachos. Depois de quatro anos, aparecem mais denúncias e inquirições em torno a Tomas, que então estava internado no hospital de Santa Ana dos naturais, transferido da prisão eclesiástica para dogmatistas da idolatria, também em Lima.

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con la otra mano peinandose y este testigo le riño disiendole que para que hacia aquello y quiso esconder los trapos que tenia…y este testigo se los quito y los quemo delante del hermano Juan Ramires y de una negra nombrada Cathalina y que no save mas… el señor licenciado… mando pareser ante su merced a Juan Ramires… [que viu] quemar al dicho hermano Ulloa el dicho peine y el dicho emboltorio...y que lo oyo reñir al dicho indio disiendole perro brujo y que no save mas... y para efecto de recibir confession a Thomas Aucachanga…Y preguntandole… que que polbos eran los que se estaba untando la cara…Dixo...que niega el que fuesen polbos los que tenia puestos…y que lo que estava untando en la cara eran unas ojas de arbol machucadas para quitarse la comeson de la cara de la cabesa y los ojos y que se estava peinando con un peine para la comesson de la cabessa y esto dio por respuesta... 3- Despachos entre pueblos na rebelião da Virgem do Rosário, Altos de Chiapas, 1712. [Convocatória de Cancuc] Jesús, María, Joseph.50 Yo, Santo Padre Confesor San Jacinto, aquí estoy con Nuestra Madre para ayudar a los pecadores mis hijos de Ocosingo. Allá va mi santa palabra y la cruz del alcalde, porque ya no hay rey, sino es sólo Dios y la Virgen Nuestra Madre. Aquí estoy yo en el mundo para ayudaros en vuestras culpas. Vengan dos varas para los alcaldes. El pecador que no obedeciera esta palabra de Nuestra Madre lo maldeciré para siempre. Y no más. Cancuc. ...traigan el ornamento, la cruz de plata, trompetas, chirimías, tambores. Y vengan alcaldes y regidores con el ornamento y varas. Y no más. Cancuc. Amén. Jesús, María y Joseph. [Resposta de Ocosingo] Bendito y alabado sea el Santísimo Sacramento del Altar. Nuestra Señora Santísima María, Madre de Dios y Madre de la Gloria y Madre Nuestra, nosotros pecadores, luego que vimos esta santa palabra que nos enviasteis a noso50  Cartas trocadas entre cabildantes de diferentes pueblos. Desde Cancuc são despachadas convocatórias para adesão à revolta contra os espanhóis na região que pertencia à Audiência da Guatemala. Os originais foram escritos na língua maiense tzeltal, mas na juntada do processo das condenações, logo após a derrota do movimento, foram anexadas somente traduções em espanhol. Estes manuscritos se encontram em Sevilha, Archivo General de Indias, Audiencia de Guatemala, leg. 294, testimonio guatemalteco III. Apud De Vos, Jan (ed.). La guerra de las dos vírgenes. Mérida: Universidad Nacional Autónoma de México; Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social; Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas, 2011, p. 157-160.

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tros alcaldes y regidores, fiscales, maestro y cantores, nos perdonaréis por tu hijo Jesucristo. Aquí estamos en el pueblo del Confesor San Jacinto Ocosingo. Allá vamos con todo el ornamento,…banderas, candeleros. Y no más... [Convocatória de Cancuc] Jesús, María, Joseph. Este va en secreto en el nombre de la Virgen, este mandamiento…Que vengan todos los hijos [de San Gerónimo Bachajón] para que nos ayudemos. Que así lo manda Nuestra Madre y señora, porque hay mucho pleito contra nosotros. Así lo manda la Señora. Vengan aquí, aquí nos juntaremos todos. Que por nosotros vino la Virgen al mundo, no a ayudar a los padres ni a los españoles, sino a nosotros los indios... [Resposta de San Gerónimo Bachajón]…Ya están todos los hijos sabedores y obedientes. Y no más… [Convocatória de Cancuc] Jesús, María, Joseph. Esta va en secreto en el pueblo de Santiago Yajalón. Señores míos… Ni el padre, ni español, mestizo ni mulato lo vea, solos los indios nomás. Que vengan sus hijos por esta palabra grande y porque tiene mucho pleito esta Señora mía en la ciudad. No es de nuestro corazón esta palabra, es de Nuestra Madre. Y así hagan caso de ella luego. Y no más. Cancuc. Y así hagan toda diligencia, que no es palabra de ninguno del mundo. [Resposta de Santiago Yajalón]…A la gran Señora Santa María del Rosario, Virgen, y al carísimo Señor San Pedro y Santiago, su carísimo cuerpo en el Cielo, en la Gloria para siempre... Allá vamos todos nosotros los alcaldes y regidores. Y no más. Para lo que mandares, allá vamos.

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Capítulo 2 A Conquista da América como uma História emaranhada: o intercâmbio de significados de uma palavra controversa51 Luiz Estevam de O. Fernades Eliane Cristina Deckmann Fleck

Conquistar: verbo transitivo Em 1611, Sebastián de Covarrubias, clérigo que foi capelão de Felipe II e membro do Conselho de Índias, filho de cristão novo, viu publicado o primeiro léxico de espanhol produzido até então. Seu Tesoro de la lengua castellana, o española havia sido iniciado 6 anos antes, quando Covarrubias já tinha a avançada idade de 66 anos. Baseado em Isidoro de Sevilha, mas também em bibliografia recente, como dicionários franceses contemporâneos, o religioso pretendia tanto difundir a língua castelhana como idioma oficial da Espanha em outros países e em sua própria terra, quanto estudar a etimologia das palavras, tentando, em especial, traçá-las de volta a uma suposta origem hebraica, fonte que seria mais pura que todas as outras. As mais de 11 mil entradas da monumental obra não registram apenas o significado das palavras, mas buscam relacioná-las a seus usos, a ditos populares, a passagens literárias e a outros vocábulos comuns associados ao significado do original estudado. As palavras de “A” a “C” são descritas, em geral, com textos mais longos e explicativos, mas, com temor de morrer antes de ver sua obra concluída, passou a escrever menos a partir da letra “D”. 51  Os autores gostariam de agradecer os apontamentos e sugestões de Marcelo Abreu, Leila Mezan Algranti, Rui A. Fernandes e Aldair Rodrigues, todas fundamentais para desenvolver nosso argumento. Luiz Estevam agradece eo apoio institucional da bolsa de pesquisa Fapemig.

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Justamente nesse momento, Covarrubias registrou o vocábulo “Conquistar: pretender por armas algum Reino, ou estado, a conquirendo. Conquista, conquistadores”. (Covarrubias, 1611, p. 231). Não devemos, no entanto, ler o verbete de forma canônica. Devemos nos lembrar que dicionários estabilizam significados que são, em essência, mutantes e intercambiantes. Mas, ao mesmo tempo, é interessante destacar como, no começo do século XVII, as palavras “conquista” e “conquistadores” se encontravam submetidas ao verbo “conquistar”, no sentido de tomar por armas, através da guerra um reino ou estado. A Espanha, vale ressaltar, formara-se por meio de acordos entre as famílias dirigentes dos estados anteriores ou de “conquistas”, justamente com o sentido dado pelo texto de 1611: um reino submetendo a outro por meio da força. A palavra Conquista, registram outros dicionários mais atuais, entra para os idiomas ibéricos, como o castelhano e o português, ainda em sua formação, por volta do século XIII. Inequivocamente, ela está ligada aos seus usos no medievo tardio, aos conflitos com os mouros52 ou entre reinos cristãos rivais. O termo extrapolou as fronteiras europeias junto com os próprios ibéricos, seguindo-os em suas desventuras em direção ao Mar Oceano e ao Norte da África, atrás de novas rotas comerciais e da expansão da fé no Cristo, consolidadas, acreditavam eles, com a efetiva conquista de Reinos e de estados que antes pertenciam a pagãos ou a seus inimigos. Se a Conquista da Guiné ou a de Ceuta foram registradas por Eanes Gómes de Zurara (1453 e 1450), a Conquista das Canárias teve entre seus cronistas Juan de Betancurt53. Mas podemos ir mais além e pensar como Robert Bartlett que propôs que Conquista é um termo que predata as navegações em pelo menos 500 anos, pois se liga a um cadinho cultural comum da expansão pela Europa da Cristandade latina. Essa Europa que, segundo o historiador, partilhou certo senso de Conquista, não o fez meramente porque compartilhava uma “mentalidade expansionista”. Mais do que isso, os europeus criaram toda uma terminologia e retórica de violência 52  Um exemplo de muitos pode ser visto na crônica quatrocentista atribuída a Fernão Lopes: «& [Afonso VI] lhe assinou certa terra de Mouros que conquistasse e que tomandoa que acrecentasse em seu condado a qual cousa elle fez mui bem e trabalhou muito em ello como vos adiante diremos » IN: BASTO, Artur de Magalhães. Crónica de Cinco Reis de Portugal. Porto: Livraria Civilização, 1945, p. 45. 53  Cf. MORALES PADRÓN, Francisco. Canarias: crónicas de su conquista. Ayuntamiento de Las Palmas de Gran Canaria. El Museo Canario, 1978.

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expansionista, que celebrava o heroísmo dos conquistadores e mitificava a brutalidade da conquista.  Logo, fossem conquistadores ibéricos nas guerras contra os mouros, fossem conquistadores normandos da Sicília ou Cruzados no Mediterrâneo oriental, todos acreditavam que sua autoridade e seus direitos políticos sobre territórios e corpos conquistados derivavam justa e explicitamente do fato de serem conquistadores. A Conquista, como categoria de guerra, era uma forma semântica de legitimar a si mesma (Bartlett, 1994, pp.89-96). Tal tradição europeia pode ser lida em Maquiavel, quando ele nos esclarece que Conquista era uma das formas de que um Príncipe poderia se valer para adquirir novos territórios e governá-los. Anos mais tarde, Hobbes, Locke e tantos outros também discutiriam se Conquista era uma forma legítima de adquirir e manter o poder. Nesse sentido, a conquista da América é um acontecimento com passado muito extenso. Poder-se-ia dizer que começou com a chegada das naus de Colombo e só se efetivou por completo no século XIX, uma vez que os Estados-nação independentes continuaram a usar a expressão em suas “campanhas do deserto”, na “conquista dos sertões” ou nas “conquistas do oeste”54. Mas podemos também advogar, e pelas mesmas razões, que a Conquista da América não começou com Colombo e que, estrito senso, terminou no século XVII, à época em que o dicionário de Covarrubias registrou o termo. O fato é que, se Conquista era um termo medieval e de largo uso no vocabulário político-religioso da Europa e da península ibérica, em particular, a Conquista da América foi um divisor de águas conceitual, pois inaugurou uma revisão do sentido da palavra Conquista e veremos isso ao longo do texto. Não podemos reduzir a Conquista da América a um único evento ou período. Não houve uma Conquista, mas várias. Assim como Ortega y Gasset argumentou que é impossível pensar em uma Reconquista de oito séculos, também acreditamos ser inviável pensar em uma Conquista da América que tenha durado cinco séculos. Primeiro, houve uma expansão europeia pela África e Ásia, capitaneada por portugueses e sob a égide da ideia de Conquista medieval. Em um segundo 54  É importante separar Conquista de Colonização. Por Conquista, no caso americano, entende-se o período de combate e guerra por meio do qual se tentava subjugar povos indígenas, trazendo-os ao mundo europeu como trabalhadores e tributários. Também é possível falar em Conquista espiritual, mas não abordaremos isso neste capítulo.

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momento, os espanhóis espalharam-se pelo mundo caribenho e antilhano, atingindo com sucesso muito menor a região da Venezuela, Guianas, América Central, Península de Iucatán (atual México) e Flórida. Depois, houve um ciclo de conquistas militares na região asteca, que se expandiu até Honduras (ao Sul) e, ao Norte, atingiu várias regiões do que hoje são os Estados Unidos. Um terceiro ciclo na América do Sul, com a lenta e, de certa forma, inconclusa Conquista do Peru. Depois disso, as regiões de fronteira continuaram a ser alvos de conquistas e “pacificações” (conceito ao qual voltaremos). Nesse último momento, outras potências europeias, retardatárias nas navegações, entraram em cena. Por fim, uma última e importante ressalva. As conquistas, por mais que tenham debelado resistências militares e bélicas dos nativos, dando lugar a novas sociedades tributárias de metrópoles europeias onde antes havia configurações políticas inteiramente indígenas, nunca minaram outros processos de resistências locais. Mestiçagens, hibridações e resistências passivas e ativas conviveram das mais variadas formas nas áreas conquistadas.

A descoberta como empresa de Conquista Em 1492, o domínio mouro na Europa se restringia apenas ao sul da península ibérica. Quando Córdoba caiu diante dos exércitos cristãos da Espanha, com a expulsão da última dinastia muçulmana da Ibéria, consumava-se uma longa tradição de Conquistas: missões militares e religiosas, com enorme componente cruzadístico. Nesse mesmo ano, o navegador provavelmente genovês Cristóvão Colombo concretizava uma ideia que um cartógrafo italiano, Toscanelli, pelo menos 20 anos antes, havia proposto ao rei de Portugal: chegar ao Oriente navegando pelo “Mar Oceano” (termo que designava o Atlântico naquela época) em direção ao Ocidente. Era comum que navegantes italianos, experientes em rotas comerciais no Mediterrâneo, encontrassem nas navegações atlânticas uma possibilidade de projeção profissional e, por isso, ofereciam seus serviços às Coroas que pudessem financiá-los. Em um primeiro momento, Colombo propôs à monarquia portuguesa que financiasse sua viagem, mas o acordo não foi aceito. Ele,

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então, procurou os espanhóis Isabel de Castela e Fernando de Aragão, que, após alguns anos protelando a decisão, concordaram em autorizar a viagem. Os monarcas financiaram parte da pequena aventura, que contava com apenas três embarcações. Os demais custos do empreendimento foram cobertos por banqueiros e comerciantes, que acreditavam, assim como o navegante, que era possível atingir as Índias navegando rumo ao ocidente, e por uma cidade (Palos), que devia à Coroa. Se Colombo conseguisse o que dizia ser capaz de fazer, a Espanha rivalizaria com Portugal nas cobiçadas rotas para as Índias, sem ter que se indispor com o reino vizinho, já que não estaria usando as rotas que contornavam a África para isso. Se a viagem não fosse exitosa, a Coroa não perderia muito, posto que o investimento não havia sido elevado. Além do aspecto econômico, Colombo teve também que convencer os acadêmicos e a Igreja de que a terra era uma esfera com um tamanho diferente do que diziam os cálculos de então, e que, portanto, sua viagem era possível de ser feita. Para fazer os novos cálculos, Colombo se baseou em geógrafos da Antiguidade, em sua experiência náutica e em suas leituras de Marco Polo. Com todas as autorizações, ele lançou-se ao Atlântico em agosto de 1492, procurando dar a volta ao mundo para alcançar o Oriente. Era um plano arriscado: os europeus não conheciam o real tamanho do planeta, tampouco sabiam da existência de outros territórios além da Europa, Ásia e África. Em outubro, algum tempo depois do previsto pelo comandante, quando os mantimentos começavam a faltar e um motim ameaçava estourar a bordo, a expedição avistou terra. A expedição de Colombo encontrou um vasto arquipélago e acreditou ter chegado ao Oriente, as Índias como era conhecido à época. Por isso, chamou seus habitantes de índios. Pôs-se, imediatamente, a procurar ouro e provas de que havia chegado ao seu destino. Vasculhou ilhas atrás disso. Encontrou muito pouco. Antes de zarpar de volta, com a boa nova de que chegara a seu destino (ao menos era o que ele e seus companheiros pensavam), um dos navios naufragou. Era Natal, e Colombo deu ordem para que, com a madeira do naufrágio, se construísse a primeira edificação europeia em solo americano em séculos (os vikings haviam estado na América do Norte no século XI, mas a notícia se perdera com o tempo): a fortaleza “La Navidad”, na parte norte da Ilha de Santo Domingo. Deixou alguns de seus homens ali e partiu. A volta foi atribulada e uma tempestade separou as duas embarcações restantes. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Uma delas chegou avariada à Espanha e a outra, a de Colombo, parou em Portugal antes de voltar ao Porto de Palos, de onde havia partido. Foi recebido com glórias, mas também com certa insatisfação devido à inexpressividade das riquezas recolhidas. Já os indígenas, aves e plantas que trouxe da América fizeram enorme sucesso na corte e logo a notícia se espalhou por toda a Europa. Colombo ainda voltaria à América outras três vezes, nos anos de 1493, 1498 e 1502. Na viagem realizada no ano seguinte ao do descobrimento, ele continuava sem saber que havia chegado a um novo mundo. Ele e seus homens seguiam procurando por Catai (a China de Marco Polo) e por Cipango ( Japão), terras asiáticas repletas de riquezas descritas por viajantes europeus séculos antes daquele 1493. E como era preciso garantir os novos assentamentos, o navegador zarpou no comando de uma impressionante frota formada por 3 naus e 14 caravelas. O Almirante do Mar Oceano, um dos títulos que ganhou com suas viagens, além de Vice-rei das terras descobertas, acumulava títulos e afazeres. Sabia de sua responsabilidade com os investidores e com os reis de Espanha. Tinha ciência de que a expansão da fé católica para além das fronteiras do mundo cristão poderia render tributos para os cofres que o financiavam, afinal novos vassalos seriam integrados à monarquia católica. Se uma porcentagem dos lucros da empresa era sua; a glória do eventual êxito poderia ser inteiramente sua. Para que isso se efetivasse, tinha ideias muito concretas para o estabelecimento de um assentamento espanhol nas terras ocupadas. Algumas delas implicavam na necessidade de conhecer bem os grupos humanos que viviam naquelas ilhas, conquistar aliados, combater rebelados e arrebanhar almas para a fé católica. Desta compreensão resultou a decisão de que um religioso deveria morar com os índios para que os conhecesse melhor e “os instruísse na fé”. Além disso, Colombo partilhava de um conceito típico da filosofia moral do Renascimento: a ideia de que a nobreza advinha mais da virtude pessoal do que da linhagem antiga de uma pessoa. Devido a sua origem humilde, não podia gabar-se de sua linhagem, mas podia considerar-se nobre, por ter realizado feitos meritórios, que haviam lhe dado prestígio e fama. No fim da vida, Colombo escreveu sobre si mesmo, apresentando-se como um grande nobre e como um “Capitão de conquistas” (Fernandez-Armesto, 1992, pp. 32 e 33). Ainda assim, nunca encontrou as desejadas riquezas. O mundo fundado pelos espanhóis no 108 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Caribe teve como sedes La Hispaniola (Santo Domingo) e Cuba. Lá, Colombo e outros espanhóis depois dele fundaram colônias e instauraram a escravidão indígena. O Almirante tocou o continente nas outras duas viagens que realizou, chegando a suspeitar disso. Mas morreu com a certeza de que havia estado nas Índias. Entre o planejamento de sua quarta viagem e seu retorno, Colombo escreveu “Livro das profecias”, uma compilação de citações escatológicas da Bíblia (extraídas, em sua maioria, do Antigo Testamento) glosadas por ele e, provavelmente, por algum religioso seu amigo. Terminado em 1505, o livro prevê a segunda vinda de Cristo como iminente e reafirma os princípios de que a Cristandade precisava se expandir pelo mundo todo, de que o paraíso terrenal deveria ser encontrado (Colombo chegou a especular se ele não estaria no que hoje é a Venezuela, quando navegou por ali); de que uma Cruzada final deveria ser feita para reconquistar as Terras Santas e prepará-las para o reinado de Cristo e, por fim, de que tudo isso deveria ser guiado por um último imperador (que, para o navegador, seriam os Reis Católicos). Pensando tratar-se do Oriente, Colombo deixa claro que via sua empresa como uma Conquista. Logo no início do texto, ele escreveu: “Comienza el Lib[ro o colección de au]ctoridades, dichos, sentencias y p[rofecías] acerca de la recuperación de la sancta ciudad y del monte de Dios, Sión, y acerca de la invención y conversión de las islas de la India y de todas las gentes y naciones, a nuestros reyes hispanos, Fernando e Isabel” (Fol.1).

Mais adiante, em uma leitura tipológica de Isaías 18:1-7, ele prossegue afirmando que a chegada dos espanhóis ao Oriente estava anunciada na passagem que referia a retomada das terras de Sião por gente forte e conquistadora: “¡Ay de la tierra de zumbido de alas, que está más allá de los ríos de Etiopía; que envía mensajeros por el mar, y en naves de papiro sobre las aguas! Andad, mensajeros veloces, a una nación de elevada estatura y tez brillante, a un pueblo temible desde su principio y después, gente fuerte y conquistadora, cuya tierra es surcada por ríos. (Al monte del nombre de Jehová de As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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los ejércitos, al monte de Sión.) Vosotros todos, los moradores del mundo y habitantes de la tierra, cuando se levante bandera en los montes, mirad; y cuando se toque trompeta, escuchad. Porque Jehová me dijo así: Me estaré quieto, y los miraré desde mi morada, como sol claro después de la lluvia, como nube de rocío en el calor de la siega. Porque antes de la siega, cuando, pasada la floración, comience a madurar el fruto en cierne, entonces podará con podaderas las ramitas, y cortará y quitará las ramas inútiles. Y serán dejados todos para las aves de presa de los montes y para las bestias de la tierra; pasarán allí el verano las aves e invernarán todas las bestias de la tierra. En aquel tiempo será traída ofrenda a Jehová de los ejércitos, del pueblo de elevada estatura y tez brillante, del pueblo temible desde su principio y después, gente fuerte y conquistadora, cuya tierra es surcada por ríos, al lugar del nombre de Jehová de los ejércitos, al monte de Sión” (Fol. 55).

Ao associar a Conquista das Índias55 à Conquista de Jerusalém, o navegador procurava chamar a atenção de seus interlocutores para o que acreditava ser o maior objetivo da Conquista das novas terras: resgatar as terras bíblicas dos infiéis. Ou seja, ao vincular a expansão marítima às Cruzadas, Colombo nos mostra que seu paradigma ainda era o velho conceito de Conquista medieval. Convicção que o leva a se autodeclarar cada vez mais como Capitão, um termo militar, e menos como navegador ou cartógrafo. Relaciona claramente seus feitos a uma Conquista numa carta ao Conselho de Castela, provavelmente em 1500, quando foi preso em sua terceira viagem: “En siete años hice yo esta conquista por voluntad Divina. […] Yo he perdido en esto mi juventud, y la parte que me pertenece de estas cosas y la honra dello; mas non fuera de Castilla adonde se juzgarán mis fechos, y seré juzgado como á capitán que fué á conquistar de España fasta las indias, y non á gobernar cibdad ni villa ni pueblo, puesto en regimiento, salvo á poner so el señorío de S. A. gente salvaje, belicosa y que viven por sierras y montes”. (1892, pp. 324-5).

55  “Señores, que de la renta que de sus Altezas cle las Indias hobiese que se determinase de la gastar en la conquista de Jerusalén”, diz o Almirante na “Institución de Mayorazgo”, de 22 de fevereiro de 1498, por exemplo. (p. 254)

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A Conquista das Índias acabou criando tensões entre Portugal e Espanha, pois o governo português temia que os espanhóis se tornassem seus concorrentes nas rotas de comércio na região que pensavam se tratar do Oriente, e à qual procuravam chegar contornando o continente africano. A iminência de um conflito levou os dois reinos a assinarem um acordo: os portugueses ficariam com as terras a Leste, e os espanhóis com as terras descobertas a Oeste. O papa Alexandre VI foi escolhido para intermediar esse acordo. Em uma bula papal, de 1493, chamada Inter Coetera, foi traçada uma linha imaginária a 100 léguas a Oeste do arquipélago de Cabo Verde, dividindo o mundo conhecido à época entre Portugal e Espanha. O conteúdo da bula, contudo, não agradou o monarca português, que, além de se sentir prejudicado, suspeitou das motivações da proposição do papa, uma vez que era parente próximo de Fernando da Espanha. No ano seguinte, 1494, na cidade espanhola de Tordesilhas, os dois países dividiram o mundo mais uma vez, num novo acordo, denominado de Tratado de Tordesilhas. Dessa vez, a proposição era que a linha imaginária passaria a 370 léguas a Oeste das ilhas de Cabo Verde, aumentando significativamente a área que, na partilha, caberia aos portugueses. O texto, no entanto, não definia qual a medida de légua deveria ser usada (a portuguesa era diferente da espanhola), tampouco de qual ilha do arquipélago de Cabo Verde deveria partir a linha. Ou seja, na prática era impossível traçar a linha de Tordesilhas. Apesar dessas dificuldades, o Tratado procurou definir as áreas que, por direito, deveriam pertencer a Portugal e Espanha, reafirmando seu poder e influência no contexto das Grandes Navegações.

Portugal e as noções de achamento, descobrimento e conquista no contexto das Navegações. O texto do Tratado de Tordesilhas apresenta muitas referências à religião cristã e não poderia ser diferente. Em determinado momento se celebra o acordo “em nome de Deus Todo-Poderoso, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas realmente distintas e separadas, e uma só As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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essência divina”. O documento define, assim, a nova divisão do mundo entre os reis espanhóis e o rei português: “que se trace e assinale pelo dito mar Oceano uma raia ou linha direta de polo a polo; (...) do polo Ártico ao polo Antártico, que é de norte a sul, (...) a trezentas e setenta léguas das ilhas de Cabo Verde”. Em todo o documento, há quatro menções ao que havia sido feito como “conquista”, em duas aparecem associadas ao termo “senhorio” e nas outras duas como processo que se distinguia de “descobrir”, “contratar” e “resgatar” entre outros indicativos de posse sobre um território, pessoas e mercadorias56. Tal vocabulário era partilhado pelas nações ibéricas, mas o termo descobrir (que a Espanha também usaria) tem genealogia lusitana. Portugal, que iniciara pioneiramente a grande aventura marítima, ainda no começo do século XV, é responsável por pelo menos uma ideia central desses textos: a noção de descobrir. Os significados atribuídos e a cronologia do emprego dos termos achamento e descobrimento refletem, em si, uma mudança de sentido em Portugal. No século XIV, o verbo achar foi empregado para definir a chegada dos lusos às misteriosas ilhas que eles encontraram (ou reencontraram) em meio ao Mar Tenebroso (o Atlântico). Tais ilhas já haviam sido avistadas por navegadores da Antiguidade e por exploradores italianos do século XIII. Assim, o termo achamento referia-se ao fato de que os lusos estavam “reencontrando o que fora perdido”, como explicou o historiador Jaime Cortesão. Com efeito, os Açores e as Canárias – bem como outras porções insulares de origem lendária, que coalhavam o Mar Tenebroso de então – eram então chamados de “ilhas perdidas”. Em fins do século XIV, tais ilhas já tinham sido novamente achadas. Naquela época, o verbo descobrir – com significado de achar – era eventualmente utilizado, mas o substantivo descobrimento nem sequer existia associado às navegações. Quando, em meio à expansão marítima, os portugueses se depararam com novas terras – entre as quais, a América portuguesa –, tiveram que encontrar uma palavra que pudesse definir seus grandes feitos náuticos. Descobrir passou a ter, então, o significado de revelar o que estava oculto, destapar e desvendar o que se mantinha escondido. Surgiu assim o substantivo-síntese descobrimento. No início do século XVI, a palavra achamento caiu em desuso e raríssimos são os documentos 56  (http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/tratado_tordesilhas.html, acesso em 14/10/2014).

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que a empregarão a partir de então. Um destes textos será justamente a Carta de Caminha, na qual o escrivão Pero Vaz, mais do que sugerir que os portugueses estavam chegando ao Brasil, parece ter querido dizer que Cabral pudesse ter achado mais uma das ilhas perdidas do Atlântico. O pioneirismo marítimo português, bem como a modernidade que dele adveio, são muitas vezes esquecidos pela historiografia não lusófona, mas bastante ressaltados no mundo de língua portuguesa. Isso em função de uma série de fatores, dentre os quais se destaca sua particular condição de reino unificado e, consequentemente, menos sujeito a convulsões políticas e sociais, diferentemente de outras nações europeias, como a Inglaterra e a Espanha, todas envolvidas em guerras e disputas dinásticas. Ao pioneirismo de sua organização política e centralização monárquica se somam a experiência no comércio de longa distância que os navegadores portugueses acumularam ao longo dos séculos XIII e XIV, tributário, em grande medida, de sua localização e do regime de ventos e correntes do Atlântico e a convergência de interesses dos vários segmentos sociais em torno da expansão marítima e dos lucros e benefícios que dela resultariam, aos quais se associavam as motivações próprias do processo da Reconquista e de propagação da fé cristã.57 Em outras palavras, os portugueses lançam-se ao mar procurando, ao mesmo tempo, mercadorias orientais e o cumprimento do mandato evangelizador do qual se sentiam imbuídos. Um exemplo: D. Manuel, o venturoso, ao incorporar aos seus títulos os novos territórios das Índias, os quais ele acreditava estar subjugando, passou a ser chamado de “Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”. Nesse contexto, conquistar, para os portugueses, podia significar “colonizar, mas também podia significar assaltar, saquear e seguir adiante”. No primeiro sentido, dava primazia à ocupação e exploração da terra e parece ter fincado sólidos alicerces na memória histórica do Brasil. Por aqui, segundo o sendo comum, fomos colonizados e não conquistados pelos portugueses, pois eles plantaram, organizaram cidades e 57  Leslie Bethell ressalta que, “à medida que foram alcançados os limites da expansão interna, as forças dinâmicas da sociedade ibérica medieval começaram a buscar novas fronteiras no além-mar – os catalães e os aragoneses principalmente na Sicília, na Sardenha, no norte da África e no leste do Mediterrâneo, os castelhanos, como os portugueses, na África e nas ilhas do Atlântico. (...) O movimento expansionista dos ibéricos no século XV foi um reflexo ao mesmo tempo de aspirações especificamente ibérica e de aspirações europeias mais gerais no final da Idade Média.”. BETHELL, Leslie. América Colonial, v. 1, São Paulo: EDUSP, 1988, pp. 138-142.

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permaneceram no solo. No segundo sentido, conquistar tem a ver com a “aquisição de poder e a riqueza de uma forma muito menos estática”. Ou seja, conquistar vira sinônimo de pilhar, de tomar para si (ainda que via comércio feito em condições adversas ao vendedor) objetos transportáveis, como ouro, especiarias e gado. É mais ligado ao “domínio sobre vassalos do que de propriedade de terra” (Bethell, 1988, p. 138-142). Nessa acepção, a memória histórica está mais associada às ações portuguesas nas costas africanas o no Oriente (Crowley, 2016). Mas, é importante lembrar que a “crueldade e o barbarismo da vida no mundo quinhentista” faziam com que a vida fosse “desesperadamente insignificante, a morte desesperadamente real, a pobreza do mundo tão grande que a luxúria e a riqueza inebriavam a imaginação e enlouqueciam os homens com o desejo da posse” (Plumb apud Boxer, 1981) Logo, as formulações lusitanas acerca da mitologia da conquista não foram tão vigorosas quanto as prósperas e fantásticas elucubrações castelhanas, tema brilhantemente desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso,58 e reiterado por Iglesias: “O português aparece bem menos seduzido pelo maravilhoso. Os mitos do Eldorado, o paraíso terreal, o Éden, as terras fantásticas são mais espanhóis do que portugueses” desempenhando fraco papel na conquista e construção social da América portuguesa, embora a procura pelo reino de Preste João tenha sido uma motivação para as navegações portuguesas ao Oriente de finais do século XV e início do XVI (Iglesias, 2009, p. 149). Inserida no contexto do expansionismo ibérico, a conquista de Ceuta, em 1415, por exemplo se deu sob uma dupla motivação: o acesso às riquezas do continente africano, em especial, do ouro do Sudão, e o fervor em defesa da fé mediante expedições bélicas feitas em nome de Deus e do Reino. À de Ceuta se sucederiam outras conquistas africanas, em que pilotos experimentados e marinheiros pouco familiarizados com as longas travessias superaram os medos do Mar Tenebroso e transpuseram cabos como o Bojador, em 1434, e o das Tormentas, em 1488. Em todas elas encontramos homens que traziam em si a expectativa de alcançar 58  Os espanhóis, segundo Sérgio Buarque de Holanda, deixaram-se levar pelas “frondosidades” da mitologia edênica, face às “extraordinárias cidades encontradas na Mesoamérica e no altiplano andino, bem como a riqueza imediata das minas de Potosi, descobertas – o que não ocorreria com os portugueses – logo no início da ocupação”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso – os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo, Cia das Letras, [1958], 2010, p. 545.

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os confins imaginários e desfrutar de paraísos fantásticos, a esperança de enriquecimento rápido e a presunção de superioridade religiosa e moral.59 E para que tais expedições pudessem ser realizadas foram necessários investimentos na construção de navios e na modernização de técnicas e instrumentos de navegação, que logo se mostraram decisivos para os empreendimentos ultramarinos na costa oeste da África e nas ilhas do Atlântico, orientados para a exploração de mão de obra e de recursos que viessem a encontrar. Ao contatar estas novas regiões do Mundus Christianus, os portugueses e, também, os castelhanos, puderam optar pelo estabelecimento de laços comerciais, pela invasão, pela ocupação efetiva ou pelo desinteresse. No caso da costa da África, a opção dos portugueses foi pela instalação de feitorias, postos fortificados de comércio, o que tornou possível prescindir da conquista e da colonização em larga escala, bem como da penetração no interior do continente africano, estratégia, posteriormente, adotada no Oriente e na América portuguesa, e que, no entanto, esteve condicionada à facilidade de ocupação e à capacidade de estabelecer alianças com os grupos locais. Para o historiador e jurista português António Manuel Hespanha, o Império português deve ser compreendido como “um império oceânico”, cuja “arquitetura (...) fundava-se mais no domínio e seguranças das rotas marítimas (...) do que no controle, mais familiar à tradição política europeia, do espaço terrestre. (...) Ganhar o mar era o principal: manter a terra era um acessório desse ganho.” Disto resultou a não adoção de “um modelo único de administração” e a coexistência de formas de domínio e de organização dos espaços imperiais (Hespanha, 1996, pp. 57-78). Em suma, nesses primeiros movimentos das conquistas oceânicas, os con­quistadores ibéricos enveredam por diversos caminhos que, nem sempre, faziam coincidir os interesses da rede mercantil com os do aparelho institucional reinol e com os objetivos missionários da Igreja. Por isso, antes mesmo do término do século dos Descobrimentos (1450-1550), como o chamam os historiadores de língua portuguesa, uma Conquista, mesmo que implicasse, no caso português, no domínio 59  Ver mais em: GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso, o Novo Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 e SEVCENKO, Nicolau. Pindorama Revisitada. Cultura e sociedade em tempos de virada. São Paulo: Peirópolis, 2000.

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ultramarino, nem sempre desembocou numa subsequente exploração colonial em sentido estrito60.

A conquista de México-Tenochtitlán Hernán Cortés nasceu em Extremadura, no ano de 1485. Teve algum estudo de direito e latim junto à Universidade de Salamanca, e foi escrivão em Valladolid. Contava com 19 anos de idade quando chegou ao Novo Mundo. Lutou contra indígenas, achou ouro a mando do governador da ilha de Cuba, Diego Velázquez, e recebeu terras e índios para que nela trabalhassem. Algo notável para um homem de família nobre, mas empobrecida, que havia cruzado o Mar Oceano atrás das oportunidades de fama, fortuna e glória que tais empresas prometiam. Mas cedo tais oportunidades se descortinaram para ele. Entre os anos de 1517 e 1518, duas expedições acabaram se perdendo ao buscar comprovar as notícias que os indígenas traziam sobre uma terra a Oeste, muito próxima e pródiga, governada por um poderoso senhor. No ano seguinte, já tendo se desentendido algumas vezes com Velázquez, Cortés recebeu ordens de organizar uma terceira expedição rumo ao Oeste, desta feita com o objetivo de encontrar náufragos das expedições anteriores e explorar a costa do que poderia ser uma grande ilha ou o continente. Mas, em 1519, contrariando as ordens do governador, o capitão Cortés partiu atrás de ouro e de fama, a fim de tornar-se, ele próprio, um conquistador. Desembarcou na ilha de Cozumel em fevereiro de 1519 com 600 soldados, 10 canhões e 16 cavalos. A região era ocupada por povos maia. Na ilha, soube da existência de homens barbados entre os índios da vizinhança e supôs serem os náufragos que procurava. Conseguiu entrar em contato com dois deles: Gonzalo Guerrero e Gerónimo de Aguilar. De acordo com Bernal Diáz del Castillo, um dos homens de 60  Não se “instaura de imediato a obediência do colonato e dos negociantes ao poder metropolitano. (...) Mesmo nos lugares onde a relação de forças se afigurava favorável aos invasores europeus, não adiantava cair matando: a escravidão e outras formas de trabalho compulsório facilitaram o domínio dos nativos, mas podiam não resultar na exploração das conquistas.” (Alencastro, 2000, pp. 11-12)

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Cortés, que escreveu suas memórias muitas décadas depois, o segundo homem era um franciscano que naufragara vindo do Panamá em 1511, com mais 15 homens e 2 mulheres. Todos haviam sido feitos prisioneiros dos índios maias da região. Alguns foram sacrificados, as mulheres escravizadas e os demais morreram de doenças. Aguilar, segundo relato feito a Cortés e a seus homens, havia permanecido fiel aos seus votos de religioso, manifestando desejo de voltar ao convívio dos seus. Tornou-se intérprete de Cortés, por saber maia e castelhano. Já Guerrero havia sido adquirido por um cacicado próximo e desposado a filha do Nachan can, senhor de Chactemal, com quem teve três filhos. Teve seu corpo tatuado e as orelhas perfuradas, tornando-se um guerreiro indígena. De acordo com del Castillo, Guerrero teria respondido da seguinte maneira, quando, a mando de Cortés, Aguilar o inquiriu sobre seu desejo de juntar-se aos espanhóis: “Hermano Aguilar, yo soy casado y tengo tres hijos. Tienenme por cacique y capitán, cuando hay guerras, la cara tengo labrada, y horadadas las orejas. ¿Que dirán de mi esos españoles, si me ven ir de este modo? Idos vos con la bendición de Dios, que ya veis que estos mis hijitos son bonitos, y dadme por vida vuestra de esas cuentas verdes que traeis, para darles, y diré, que mis hermanos me las envían de mi tierra.” Se acreditamos ou não na fama que Guerrero conquistou como soldado, que, em inúmeras ocasiões (não somente contra Cortés e seus homens, mas contra várias expedições posteriores), lutou ao lado dos indígenas, o fato é que sua trajetória constitui-se em exemplo de um dos mais interessantes fenômenos resultantes das conquistas do Novo Mundo: a opção de um europeu pelas práticas culturais nativas e, consequentemente, pelo abandono das regras da sociedade cristã europeia. Pelos idos de março de 1519, a expedição cortesina chegou às margens da cidade de Potonchán. Ao vencer uma das batalhas contra seus habitantes, Cortés recebeu uma oferta de trégua, que incluía víveres, tecidos, algumas joias e mulheres. Entre as mulheres que foram distribuídas entre seus capitães, estava Malinalli, Malintzin ou, também, Malinche, que era filha de um cacique e havia nascido na região fronteiriça entre as regiões ocupadas por indígenas maia e náuatle. Sabe-se que Malinche foi repassada várias vezes, como presente e na condição de escrava, até que passou a viver entre os índios de Tabasco. Malinche, que falava maia e náuatle, logo percebeu a dificuldade que Aguilar tiAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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nha de se comunicar com emissários de língua náuatle, passando a fazer parte da rede de tradutores criada pelos espanhóis. Após ter aprendido espanhol, assumiu a função de intérprete, tornando a função de Aguilar obsoleta. Batizada como Dona Marina, tornou-se também conselheira e amante de Cortés. Com base nas informações fornecidas por Malinche, Cortés viu-se favorecido nas negociações que mantinha com os indígenas, uma vez que teve mais acesso a seus hábitos e estratégias, bem como a dados sobre a região que habitavam. Os espanhóis perceberam que muitos povos que viviam submetidos pelos astecas (nome moderno para a confederação mexica que governava o centro do mundo náuatle) estavam descontentes e gostariam de lutar contra esse domínio. Explorando essa situação, Cortés fez alianças com grupos militarmente importantes e atacou com muita violência aqueles que permaneciam fiéis à confederação asteca ou mexica. Sabe-se que, apesar de os agentes informarem Montezuma, soberano asteca, de tudo o que acontecia, Cortés também recorria aos seus intérpretes e informantes. Malinche deu à luz ao primeiro filho do conquistador, Martín Cortés, que foi educado na Espanha, onde se tornou pajem do futuro imperador Felipe II. Cortés nunca se casou com Malinche (que teve dois maridos vindos das hostes cortesinas), mas escreveu ao papa Clemente VIII, que, por meio de bula, em 1529, reconheceu a legitimidade de Martín, de sua irmã mais velha, Catalina Pizarro, e de seu irmão mais novo, Luís (todos de mães diferentes e nascidos de relações extraconjugais de Cortés) (Lamar Prieto, 2013, p. 131). Para seus contemporâneos, Malinche foi mais do que uma intérprete. Bernal Díaz, por exemplo, destacou inúmeras vezes que “doña Marina” era ativa nas guerras de conquista, fosse “na Nova Espanha, em Tlaxcala ou no México”, atuando como “excelente mulher e boa intérprete”. Essa descrição era uma forma não apenas de justificar sua atuação como conselheira, um papel normalmente masculino (“la traía siempre Cortés consigo”), mas, também, como líder efetiva de homens: “doña Marina tenía mucho ser y mandaba absolutamente entre los indios en toda la Nueva España” (Del Castillo, 1796, p. 157, T.I). Rodríguez de Ocaña, outro soldado de Cortés, que escreveu uma probanza sobre Malinche, escreveu que “gracias al trabajo de Doña Marina, muchos indios se volvieron cris118 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

tianos y se sometieron al mandato de Vuestra Majestad”61. Ou seja, se a Conquista foi, como afirmamos, a sujeição de corpos e territórios à fé cristã e ao jugo católico, Malinche atuou como conquistadora, pois foi responsável direta pela conversão de povos à nova fé e, por meio disso, numa lógica derivada do Requerimiento, responsável pelo aumento do número de vassalos do rei de Espanha. Entre os próprios indígenas, há evidências suficientes que corroboram seu protagonismo como conquistadora. No Códice conhecido como Lienzo de Tlaxcala, por exemplo, Cortés é quase sempre retratado com Malinche ao seu lado. O contrário, entretanto, ocorre mais de uma vez: Malinche aparece sozinha, comandando ações, com autoridade não submetida à de ninguém. Para Matthew Restall, se concordamos com del Castillo e consideramos “D. Marina” como uma “princesa” treinada para “a vida na corte”, sua relação com Cortés pode ter seguido um padrão esperado para mulheres indígenas da elite náuatle: desde que adquiridas por meio de alianças entre povos, a mulher deveria assistir seu marido em seus objetivos militares e diplomáticos (Restall, 2012). Entre abril e julho de 1519, Cortés e seus seguidores fundam a cidade portuária de Veracruz, na região dos totonacas, povo tributário dos astecas, e a declaram cidade vassala de Carlos V. Esse momento é importante por pelo menos duas razões. A primeira delas se deve à inversão de jurisdição que ali se dá: Cortés deixa claro que a cidade está sob o domínio direto de suas ordens e se põe, no mesmo instante, como vassalo direto do rei espanhol Carlos I (também conhecido como Carlos V do Sacro Império), sem intermediação do governador de Cuba. Essa ruptura na ordem institucional espanhola deu a Cortés o comando direto das tropas. Para evitar traições ou deserções, o capitão mandou afundar seus próprios navios e enforcar, mutilar ou chicotear aqueles que se recusassem a obedecê-lo. Para ele, só havia um caminho possível, mas dois destinos excludentes: a Conquista de México-Tenochtitlán ou a morte tentando atingi-la. A segunda razão, talvez ainda mais importante que a primeira, é uma ruptura institucional que se dá entre os indígenas. Os totonacas 61  “Probanza de buenos servicios y fidelidad con que sirvió en la conquista de Nueva España la famosa Doña Marina”, Patronato 56, núm. 3, ramo 4. Archivo General de Indias, Sevilla, España. Citado en Jean Franco, “La Malinche: del don al contrato sexual”, Debate Feminista: Sexualidad, Teoría y Práctica Año 6, Vol. 11, 2005, p. 258.

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negociam com Cortés os termos de uma aliança: os espanhóis os ajudariam a se livrar dos astecas, que lhes cobravam impostos; em troca, os índios prometiam cerca de 10 mil soldados. O parco contingente de Cortés, cerca de 600 ou 700 homens, 15 cavaleiros e canhões, e algumas centenas de aliados indígenas, ganhava um significativo incremento de soldados. Com as alianças, a Conquista do México começava a ganhar tintas as mais diferentes. Se, por um lado, era uma empresa com lastro ibérico, europeu, com raízes que remontavam a tantas outras conquistas, por outro, era também uma conquista mais indígena do que espanhola: uma espécie de golpe de estado com o objetivo de destronar uma confederação poderosa, mas inconveniente a muitos grupos e nações indígenas sob seu jugo. O novo grupo, composto pelos espanhóis liderados por Cortés e outros milhares de guerreiros e chefes totonacas, chegou, em setembro, à confederação Tlaxcalteca, arquirrival dos astecas, composta por cerca de 200 aglomerações populacionais, desde grandes cidades, como a capital Tlaxcala, a pequenas tribos. Há mais de um século, Tlaxcala praticava a “guerra florida62” com México-Tenochtitlán e sofria um embargo que lhe privava de suprimentos de sal e tecidos. Ao chegar à segunda maior confederação da Mesoamérica, a expedição ibero-indígena foi recebida com guerra. Os otomís, etnia que compunha a confederação tlaxcalteca, atacavam brutalmente pela manhã. De noite, outros indígenas da confederação ajudavam Cortés e suas hostes de dois continentes. A estratégia, que chegou a cercar os forasteiros mais de uma vez e quase os exterminou, mas que, paradoxalmente, auxiliava-os à noite, era resultado de um impasse entre a elite tlaxcalteca: dois de seus maiores 62  Esse era o nome dado pelos espanhóis à prática ritual-bélica de guerrear com a data e local marcados, número igual de soldados de ambos os lados (recrutados entre a mais fina flor da nobreza guerreira dos dois lados envolvidos) e seguindo uma série de protocolos e regras, como o uso apenas de armas de curto alcance, para um combate corpo a corpo. Não se sabe com clareza o porquê dessa prática, que se diferenciava tanto de uma guerra convencional de conquista territorial (também praticada pelos astecas). A maior parte dos especialistas, contudo, acredita que a guerra servia para capturar prisioneiros para o sacrifício ritual dos astecas, bem como para treinar seus soldados de elite e mostrar aos inimigos e subjugados sua imensa capacidade e destreza em combates. Essa interpretação advém de uma pergunta que um dos homens mais próximos de Cortés, Andres de Tapia (autor de uma pequena crônica da conquista), teria feito a Montezuma, sobre o porquê de um tão poderoso “império” não ter sido capaz de conquistar um senhorio menos poderoso e tão próximo. O tlatoani astesca teria respondido que esse nunca fora seu objetivo.

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senhores, Xicotencatl, o velho (soberano de Tizatlan, mas quase incapacitado de agir por sua avançada idade), e Maxixcatzin (de Ocotelolco), acreditavam que seria melhor aliar-se ao grupo que chegava e marchar contra Tenochtitlán. Xicotencatl, o jovem (filho homônimo do tlatoani de Tizatlan, e seu lugar tenente), por sua vez, desconfiava de Cortés e de suas intenções e, por isso, liderou os mais efetivos ataques contra eles. Em outras palavras, os tlaxcaltecas estavam testando as forças espanholas-otomís e analisando os prós e os contras de aliarem-se com elas. Por fim, o partido pró-aliança teve êxito e selou-se uma importante e longeva parceira entre Tlaxcala e os demais. Para simbolizar tal aliança, princesas foram dadas como esposas aos espanhóis. Cortés, por sua vez, respeitou os templos da cidade, apesar de afirmar que tentaria convertê-los ao cristianismo. Nos anos pós-Conquista, os tlaxcaltecas ainda participariam da conquista da Guatemala. A região foi dividida em senhorios indígenas, que criaram linhagens fictícias que datavam de séculos, ficando isentos de impostos e da concessão de índios à encomienda. Tlaxcala foi refundada pelos espanhóis e gozou do título de “Muy Leal Ciudad” e de um escudo de armas, além de sediar um bispado, mas foi-se esvaziando de população nativa com o tempo, principalmente, devido às epidemias que sobre ela se abateram e pela migração. Em 1625, contava com 300 vecinos: mil vezes menos pessoas do que as que haviam sido encontradas em 1519. A aliança, agora composta por algumas centenas de espanhóis e totonacas, e cerca de mil soldados tlaxcaltecas, rumava para Cholula, segunda maior cidade da região e um de seus principais centros religiosos, senão o mais grandioso deles. Esse era um triunfo dos embaixadores de Montezuma, que encontraram Cortés pouco antes e o convenceram a seguir por aquela rota, controlada pelos astecas, diferentemente do sugerido pelos tlaxcaltecas. O intuito maior dos astecas ainda era dissuadir os intrusos de chegar a Tenochtitlán, mas, na impossibilidade de fazê-lo, que seguissem uma rota sob seus mandos. O que aconteceu em Cholula é, ao mesmo tempo, um dos episódios mais importantes e mais incertos da empresa de Conquista. Em um primeiro momento, as tropas foram recebidas sem resistência e acomodadas no interior da cidade, onde receberam mantimentos por dois dias. No terceiro, o auxílio cessou. Cortés e seus homens confrontam os nobres de Cholula. A discussão acalorou-se e a nobreza local e parte da As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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população civil (incluindo mulheres, velhos e crianças) foi assassinada e os templos incendiados. Como esses fatos se enredam é um mistério que varia de acordo com a fonte que consultamos63. Um historiador tlaxcalteca, Diego Muñoz Camargo, escreveu, 30 anos depois do episódio, que Cortés agiu dessa maneira porque estava reafirmando sua aliança com Tlaxcala, que, pouco antes, tivera embaixadores maltratados pelos cholutecas, seus rivais. Fontes espanholas também posteriores ao evento, como a crônica de Bernal Diaz del Castillo, contam que o massacre ocorreu em função de um boato, confirmado por Malinche (que extraíra a informação de uma esposa de um líder local), de que os locais planejavam matar os espanhóis enquanto estivessem dormindo, por ordem de Montezuma. Muitos anos depois, os anciãos astecas deram sua versão a religiosos espanhóis, como Bernardino de Sahagún, e disseram que a culpa havia sido dos tlaxcalteca, que envenenaram a cabeça dos espanhóis com falsos boatos, magoados que estavam porque os ibéricos haviam decidido rumar pela rota sugerida por Montezuma e não pela deles. Nos relatos indígenas sobre a Conquista de Cholula encontramos duas leituras. Em uma delas, os espanhóis obedeciam a seus aliados índios, demonstrando-lhes lealdade e se colocando em pé de igualdade com os tlaxcaltecas, enquanto que na outra, os espanhóis lhes eram subservientes, não passando de soldados manipuláveis. Já nos relatos europeus, os espanhóis teriam se vingado de uma potencial traição dos astecas, mostrando, assim, a todos os indígenas que estavam dispostos a ir até a última das consequências para obter uma audiência com o todo-poderoso Montezuma. Talvez se possa considerar e combinar as diferentes versões da história. Os espanhóis, de fato, acreditavam estar liderando as ações, ainda que percebessem a importância crucial de seus aliados indígenas. Os tlaxcaltecas, por sua vez, teriam se aproveitado do ímpeto guerreiro daqueles recém-chegados e de suas armas de aço. 63  Os números do massacre variam de 3 mil – como assevera Cortés, nas suas cartas ao imperador Carlos V – a 30 mil (se acreditarmos em Bernardino Vázquez de Tapia, um dos soldados espanhóis) em 3 horas de carnificina. Não é improvável que os números de Cortés sejam inflacionados, pois del Castillo nos conta que muitos habitantes da cidade haviam fugido desde a chegada das tropas índio-espanholas. Ademais, esse parece ser o número de todos os soldados de Cholula. As cifras de Tapia são seguramente um exagero colocado de propósito no texto de sua Probanza de mérito, ou, mais prosaicamente, um simples, porém altissonante, erro do copista que escreveu a versão conhecida e armazenada do texto do soldado espanhol conhecida do texto do soldado espanhol, armazenada no Palácio de El Escorial: no lugar de copiar a estimativa cortesina, o funcionário distraiu-se e acrescentou um zero a mais.

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O fato é que o Massacre de Cholula foi um duro golpe no ânimo da resistência asteca. A cidade de Quetzalcóatl, a “Serpente emplumada”, uma das principais deidades do complexo panteão mexica, havia caído. E a fama de violento e sanguinário de Cortés se espalhava. De Cholula em diante, sua marcha até a capital asteca não teve outros grandes desafios, a não ser a neve e a altitude, que maltratava seus aliados do litoral. Ao chegar a Tenochtitlán, em 08 de novembro de 1519, Cortés foi bem recebido pelos astecas. Se as fontes indígenas coletadas por Sahagún décadas depois dos eventos estiverem corretas, Montezuma e outros soberanos de cidades confederadas vizinhas receberam uma pequena comitiva liderada por Cortés e vestiram os visitantes com flores e adereços especiais, reconhecendo sua autoridade. Cortés tenta abraçar o líder asteca, mas um cortesão impede o gesto, interpretando-o como uma potencial agressão. A estratégia de Montezuma era a de fazer um pacto com os estrangeiros e tirar vantagens de suas riquezas e força militar. Cortés, por sua vez, sabia que, caso não se mostrasse disposto a negociar, os milhares de guerreiros astecas ofereceriam grande resistência, e concordou em firmar uma aliança. O espanhol e seus principais companheiros ficaram hospedados no faustoso palácio do pai de Montezuma e suas tropas foram recebidas na cidade. Em um segundo encontro entre os dois, segundo Bernal Diaz, Montezuma teria jurado vassalagem ao rei de Espanha e reconhecido Cortés como seu representante, tendo revelado que acreditava serem os espanhóis a confirmação de uma lenda asteca antiga, que previa o retorno do ocidente de homens brancos e barbados que tomariam o controle da cidade. Essa versão da história é corroborada por fontes indígenas, mas todas bem posteriores à Conquista. Mas sob a alegação de que Montezuma havia ordenado a morte de espanhóis e totonacas em Veracruz, Cortés o aprisiona. O soberano asteca fica sob custódia dos espanhóis até maio de 1520. Tecnicamente, continuava tlatoani, e Cortés o tratava de forma respeitosa e justa. Del Castillo menciona que os dois jogavam juntos, andavam pela cidade, mostrando sua amizade, e como o líder indígena permitiu a instalação de cruzes nos templos. Diante da (falta de) atitude de Montezuma, a elite guerreira e sacerdotal da poderosa cidade (Tenochtitlán era maior em extensão e As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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tinha mais habitantes do que qualquer cidade europeia do período, excetuando Constantinopla) começou a se amotinar. Os sacerdotes diziam que os deuses ordenavam a imediata expulsão ou morte dos espanhóis, ameaçando retirarem-se para sempre, caso não fossem obedecidos. Os soldados estavam prontos para atacar, mas dependiam da ordem de Montezuma, que parecia pouco disposto a dá-la. Muito provavelmente, Montezuma estivesse aceitando os termos espanhóis por não os compreender inteiramente ou por imaginar que poderia negociar sem provocar uma guerra com os espanhóis de Cortés e com seus milhares de aliados. Até hoje, os historiadores divergem em relação à atuação de Montezuma: para uns, ele foi um governante fraco, que perdeu a chance de esmagar uma revolta, para outros, foi um estadista sábio que tentou, através da via diplomática, evitar um potencial banho de sangue sobre seus súditos. Seja como for, os muitos descontentes reuniram-se ao lado de Cuitláhuac, irmão do tlatoani e seu provável sucessor. Enquanto isso, Cortés autorizara o confisco do tesouro encontrado no palácio onde se encontrava hospedado, sua distribuição entre seus homens e o envio do quinto ao rei de Espanha. Ademais, Cortés enviou homens para buscar a fonte do ouro asteca. A fim de evitar que a situação fugisse do controle, proibiu que os homens sob seu comando pegassem tesouros sem sua expressa autorização. Ainda assim, as acusações de soldados que derretiam ouro e amarravam as barras sob suas vestes eram constantes, e para tentar contornar o tenso momento, o capitão mandou cortar as mãos ou matar todos os espanhóis que fossem pegos roubando ouro asteca. A situação complicou-se de fato quando Velázquez, o governador de Cuba, tomou conhecimento do poder que Cortés acumulava. Ele mandou prendê-lo ou matá-lo, alegando que estava descumprindo suas ordens iniciais. Em abril de 1520, depois que emissários indígenas o informaram que um contingente de espanhóis havia desembarcado em Veracruz e que seguia para Cempoala com ordens de aprisioná-lo, Cortés partiu de Tenochtitlán para enfrentar seus oponentes. Em seu lugar, deixou o oficial Pedro de Alvarado e alguns soldados encarregados de vigiar Montezuma. Cortés surpreendeu os recém-chegados em uma emboscada, e, mediante promessas de fama, fortuna e glória, convenceu-os a se aliarem a ele. Os 1200 espanhóis que agora compunham o seu exército, somados aos 2000 tlaxcaltecas, tiveram, no entanto, uma surpresa ao retornarem a Tenochtitlán em fim de maio. 124 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Descobriram que durante uma cerimônia religiosa, Alvarado havia ordenado o massacre de indígenas no Templo Maior de Tenochtitlán, provocando a revolta dos astecas. Alvarado explicou a Cortés que agiu desta forma por ter sido informado de um complô que se consumaria tão logo terminasse a festividade e os atacou para evitar que acontecesse. Mesmo entre os espanhóis houve quem contasse versões diferentes, dizendo que o ataque foi movido por medo ou ganância. Seja como for, a aliança entre astecas e espanhóis se viu comprometida com o massacre. O irmão de Montezuma havia sido aclamado o novo tlatoani e os espanhóis e seus aliados estavam sitiados em seu palácio com um soberano deposto em suas mãos. Diante a agitação dos revoltosos, Montezuma é instado a falar com a multidão para acalmá-la. O que se sucede é outro mistério. Ou Montezuma foi apedrejado pela multidão e morreu em decorrência dos ferimentos ou foi morto pelos próprios espanhóis em outra demonstração de amadorismo diante de uma situação que lhes fugia do controle. Em desvantagem, os espanhóis e seus aliados decidiram fugir da cidade na noite chuvosa de 10 de julho de 1521. Tão logo a fuga foi descoberta, um imenso ataque aos invasores teve início. Cercados por água e por terra, os fugitivos sofreram pesadas baixas e perderam grande parte do butim que haviam adquirido ao longo dos meses anteriores. Esta foi a “Noite Triste” dos espanhóis: Cortés, ferido, teria chorado ao chegar à terra firme. Guiado pelos tlaxcaltecas, o grupo ainda sofreria outro pesado ataque até chegar a Tlaxcala: 860 espanhóis, 75 de seus acompanhantes, incluindo mulheres, e mais outro milhar de aliados indígenas haviam perecido. Nobres astecas, entre eles filhos de Montezuma, antigos aliados de Cortés, foram mortos. Todos os 440 espanhóis sobreviventes estavam feridos. Nos meses que se seguiram, ambos os lados envolvidos na guerra se reorganizaram. A confederação asteca, de um lado, reagrupou-se sob nova liderança e preparou seus exércitos e defesas para um ataque que parecia iminente. A aliança entre espanhóis, totonacas e a confederação tlaxcalteca, por sua vez, recompôs-se com novas estratégias de ataque, que incluíam a construção de bergantins (barco leve, a remo, com velas latinas, capaz de navegar com facilidade pelos canais de Tenochtitlán), o recebimento de reforços e mantimentos vindos da Espanha e de Cuba e o reforço de milhares de soldados indígenas. Ao mesmo tempo, Cortés As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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despachou homens de sua confiança para tentar uma audiência com o rei, na qual deveria ficar claro que agia em seu nome e não em benefício próprio como continuava alegando Velázquez. A elite tlaxcalteca demovera Xicotencatl, o jovem, das negociações com os astecas, optando por um ataque frontal ao lado dos espanhóis. Chichimecatecle, um de seus principais generais, chegou a liderar uma incrível força de 10 mil guerreiros. O inesperado, no entanto, ocorreria quando, em setembro, a varíola atacou severamente Tenochtitlán antes que a guerra chegasse, matando boa parte da população, incluindo Cuitláhuac, o tlatoani. As tropas lideradas por Cortés e Chichimecatecle partiram no Natal daquele ano para uma formidável campanha que foi tomando, via combate ou negociação, as cidades da confederação asteca, de sorte que, em janeiro de 1521, apenas a capital e sua vizinha, Tlatelolco, permaneciam resistentes. Cortés comandou um longo sítio de 8 meses, durante o qual impediu que comida e água chegassem às cidades no centro do lago, cortando os canais de comunicação entre elas e seu entorno. Quando finalmente os espanhóis e seus aliados indígenas atacaram Tenochtitlán, um pesado sistema de defesa esperava por eles. Os astecas, ainda que malnutridos e doentes, ofereceram uma notável resistência e sacrificaram muitos espanhóis a seus deuses, arrancando-lhes o coração enquanto ainda viviam. Essa atitude enfurecia e amedrontava os europeus, que eram instados a não se renderem diante dos astecas ou teriam esse fim pagão. Cortés, embora quisesse preservar a cidade para mostrar a seu rei, não conseguiu dobrar o novo soberano asteca, o jovem comandante da elite guerreira, primo de Montezuma, Cuauhtemoc, que rejeitou todas as tentativas de negociação e tratados de paz. A conquista da cidade se deu, assim, prédio a prédio, canal a canal, até o fim. Os astecas foram derrotados pelo exército invasor em 13 de agosto de 1521, quando Cuauhtemoc foi preso. A cidade estava em ruínas, consumida por incêndios e tiros de canhão. Sua ocupação e destruição eram uma vitória espanhola e da Confederação tlaxcalteca. Apesar de central, esse episódio não representou e determinou o controle dos espanhóis sobre a Mesoamérica inteira. Muito pelo contrário, as guerras contra os indígenas demorariam outras décadas (em algumas regiões demorariam mais de século) para se efetivar. Ao norte, na região chichimeca, escaramuças entre espanhóis e nativos recrudesceram com a descoberta de prata na região de Zacatecas. Foi a guerra 126 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

mais longa e custosa que os espanhóis travaram na Nova Espanha, e que só teve fim quando o vice-rei Villmanrique, no fim do século XVI, fez um acordo com os chichimecas, passando a lhes fornecer suprimentos e terra, além de outras benesses, como compensação pelos territórios que lhes haviam sido tomados. Ao sul, em direção à América central, as campanhas espanholas e de seus aliados tampouco obtiveram sucesso rápido. Mas para o conceito de Conquista, os avanços sobre o território do Novo Mundo implicaram uma mudança de natureza semântica. A vitória de Cortés sobre um grande império (ao menos era assim que se noticiava), repleto de ouro e riquezas, correu a Europa e foi lida e debatida com muita curiosidade. Cortés, aliás, morreu na Espanha tentando convencer Felipe II de que tinha direitos como conquistador e de que era um bom vassalo. Quando isso ocorreu, em 1547, ele já havia gasto boa parte de sua fortuna e prestígio buscando outra conquista, que nunca ocorreu. Ainda que tenha encontrado esse fim quase inglório, Cortés estabeleceu um novo paradigma de conquistador. Inspirados na fama que adveio de seus atos, outros tantos aventureiros lançaram-se ao Mar Oceano para empreender uma Conquista como a sua (ou maior do que a sua) no Novo Mundo. A imensa maioria acabou morrendo vitimada pelos ataques dos indígenas que foram por eles subestimados, pelas doenças e pela fome e sede. As dificuldades, no entanto, não conseguiram demover aqueles que almejaram ser o novo Cortés, o novo conquistador.

A Conquista do Peru: solidificando um novo entendimento do ideal de Conquista Em 1510, depois de muitas tentativas frustradas, os espanhóis conseguiram fundar seu primeiro estabelecimento razoavelmente perene em terras continentais americanas: Santa María la Antigua del Darién, no que hoje é a costa atlântica do Panamá. La Antigua, que dependia de Santo Domingo para sobreviver, mantinha-se como posto para a busca de riquezas no interior do continente. De lá, em 1513, os espanhóis liderados por Vasco Núñez de Balboa, partiram rumo ao interior, numa rota ao sul indicada por aliados indígenas. Foi o primeiro As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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europeu a vislumbrar o que hoje chamamos de oceano Pacífico. Balboa o batizou de Mar do Sul, nome largamente utilizado por décadas a fio. Nas fileiras de Balboa estava um jovem soldado, já com alguma experiência em tentativas frustradas de conquista daquela região, chamado Francisco Pizarro González. Por conta de intrigas de poder entre os próprios espanhóis, Balboa foi deposto, preso e decapitado no mesmo ano em que Cortés começou sua campanha no México, arregimentando aliados entre os indígenas. Antes de sua morte, já corriam notícias de um rico e poderoso reino mais ao sul. Os novos governadores da região de Darién decidiram fundar a cidade do Panamá e estabelecer um porto, Nombre de Dios, que deveria servir de ponte entre o Mar Oceano (Atlântico) e o Mar do Sul (Pacífico) e de base de expedições navais que buscariam, em vão, por décadas, localizar o tal rico reino do qual os índios falavam. Em 1523, Pizarro, a essa altura já estabelecido como vecino do Panamá, cidade da qual tinha sido prefeito por um breve momento no ano anterior, associou-se a seu bom amigo, o capitão Diego de Almagro, e o capelão do Panamá, Hernando de Luque, para, juntos, liderarem uma expedição que partiria em busca de riquezas mais ao sul. Cada um dos sócios deveria se encarregar de tarefas próprias da jornada e teria igual parte em tudo o que se viesse a conquistar. No ano seguinte, Pizarro e Almagro lideraram dois bergantins rumo ao sul, que contavam com 140 soldados. A expedição foi um fracasso, muitos homens morreram em conflitos com indígenas. Pizarro foi ferido sete vezes e Almagro perdeu um dos olhos em batalha. A essa época, as notícias da Conquista da poderosa confederação asteca empolgaram muitos outros europeus a tentar a sorte, na busca de mais riquezas. Mesmo sofrendo esse revés inicial, Pizarro e Almagro testariam a fortuna uma vez mais. Organizaram uma segunda expedição em 1526 e buscaram o rumo sul, pelo mar. Após um ano e meio de fracasso, doenças, ataques indígenas e fome, muitos homens estavam descontentes. Uma denúncia de maus tratos chegou ao governador da região, Pedro de los Ríos, que mandou recolher as tropas de Pizarro e Almagro e trazê-las de volta. Ao saber disso, Pizarro teria dito aos seus homens que escolhessem entre a fama e a glória que os esperava ou a vergonha de voltarem de mãos abanando: 13 homens optaram por ficar ao seu lado. Contando com os reforços de Almagro, suas hostes seguiram pelo Pacífico e um grupo avançado, capitaneado por um experiente 128 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

soldado e astrólogo grego, Pedro de Candía, encontrou a primeira cidade inca com que tiveram contato. Tumbes, rebatizada de Nova Andaluzia, era uma cidade fortificada, de pedra, com ourivesaria e outros indícios de civilização reconhecidos como tal pelos europeus, conforme relato de Candía. Pizarro prosseguiu, navegando rumo ao sul e encontrou mais do que procurava: provas de que o poderoso segundo império do Novo Mundo havia sido descoberto. Ao regressar ao Panamá, os sócios Pizarro, Almagro e de Luque pediram a De los Ríos permissão para realizar uma expedição de conquista da nova região. Diante da negativa, decidiram enviar Pizarro, homem iletrado, mas com “muita presença” (ou seja, com eloquência e boa postura, se tentássemos traduzir a expressão do século XVI para os dias de hoje), à Espanha, para que ele apresentasse o caso às Cortes do rei. Em sua companhia, partiram dois de seus soldados, o grego Pedro de Candía e o vasco Domingo de Soraluce, alguns indígenas tallanes de Tumbes, recentemente incaizados, mas dispostos a colaborar com os espanhóis, e artigos que poderiam provar a existência do império: ouro, tecidos, lhamas etc. Após uma breve audiência diante do imperador Carlos V, o Conselho de Índias ficou encarregado da decisão. O documento assinado pela Rainha Isabel, em 17 de agosto de 1529, conhecido como capitulação de Toledo, estabelecia que Pizarro seria vitaliciamente governador, capitão geral e tantos outros cargos de todas as áreas a serem conquistadas, reservando-lhe título de nobreza e soldo anual vultoso. Aos seus sócios, bem menos benefícios foram concedidos. Os 13 soldados fieis a ele foram transformados em fidalgos. A expedição partiria em 6 meses, levando 150 soldados espanhóis por ele recrutados e outras dezenas de escravos africanos. No Novo Mundo, ele poderia arregimentar outros 100 soldados e, em seis meses, empreender sua conquista. Se nos determos no texto da Capitulação, veremos que o vocábulo Conquista (ou o verbo Conquistar) aparece 7 vezes, 8 se contarmos a menção feita na carta-obrigação que decorre dele e deveria ser lida junto do documento. Em quase todas elas, o termo vem junto de outros, em especial, de descobrir, pacificar e povoar. Podemos perceber como, depois da Conquista do Caribe e do México, a ideia de Conquista definitivamente cruzou o Mar Oceano e voltou para casa modificada pela viagem. Não indicava tão somente a tomada de territórios ou a derrota de iniAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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migos da fé. Ela revelava agora, por um lado, um projeto de escopo potencialmente infinito e, por outro, uma dimensão imperial da Espanha. Conquistar ainda significava tomar uma terra, mas a esta tomada se associava a ideia de descobrir essa nova terra. Não era um projeto de conquista de algo conhecido, mas de algo quase desconhecido, mas que se acreditava estar lá. O mundo se expandia e suas fronteiras pareciam não ter fim: era época de conquistar e de descobrir, de tomar o novo para si com base na crença inabalável de que esse novo estava lá; e, para isso, era preciso povoá-lo, ocupá-lo. Apesar de povoados, os territórios não estavam pacificados, uma vez que se encontravam afastados do cristianismo e do Império. A Conquista, portanto, deveria trazer ordem a um lugar que se encontrava distante da policía de costumes que se esperava de um mundo cristão. Mais do que a conquista pela espada, era preciso pacificar, garantir a ordem e a paz. Antes de partir rumo à América, com um número menor de soldados do que o exigido, Pizarro esteve em sua cidade natal de Trujillo, na região da Extremadura, onde também nasceu Cortés, e convenceu seus irmãos a seguirem com ele. De volta ao Panamá, a sociedade com Almagro quase se rompeu quando este soube que as negociações na Corte pouco haviam lhe favorecido. Apaziguados os ânimos, a terceira empresa de conquista rumo ao império do Sul zarpou do Panamá, em 20 de janeiro de 1531, com 217 membros, 37 dos quais eram cavaleiros, se levarmos em consideração os dados trazidos por Francisco de Jerez, secretário pessoal de Pizarro e autor de uma crônica de muito sucesso sobre esta Conquista. Durante o ano de 1531, Pizarro e seus homens ganharam o reforço de outros conquistadores que tentavam a sorte na região, como Sebastián de Benalcázar (com outros 30 homens) e Hernando de Soto (com outra centena de soldados). A expedição contava com intérpretes, como Felipillo, indígena recolhido nas expedições anteriores e que havia aprendido o espanhol. Faltava, no entanto, o reforço de aliados indígenas. Os espanhóis foram originalmente bem recebidos em Puná, ilha inimiga de Tumbes. Pizarro ofereceu aliança e os locais, aparentemente, aceitaram. Nos meses em que permaneceram na ilha, Felipillo descobriu por emissários tumbenses que o cacique de Puná, Tumbalá, seguia ordens do Inca, soberano dos povos quíchua, e planejava aniquilar os espanhóis, pois a procura por ouro começava a incomodar os ilhéus. Numa revira130 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

volta, os espanhóis atacam os habitantes de Puná em uma longa guerra, libertando mais de 600 prisioneiros tumbenses que ali estavam. Em abril de 1532, depois de pensar ter conseguido uma sólida aliança com Tumbes, Pizarro e seus homens começam uma viagem de barco de três dias de Puná até a terra que conheceram na expedição anterior. Parte do traslado fora providenciada por Chilimasa, cacique de Tumbes, em 4 embarcações indígenas. Pizarro ordenou que essas naus fossem na frente do resto da expedição, levando em cada uma delas três espanhóis e outros guerreiros índios, além de suprimentos para todo o grupo. Segundo os relatos espanhóis, o ataque às embarcações fazia parte do plano de Chilimasa para exterminar os espanhóis, sendo que 5 espanhóis foram mortos e esquartejados, e suas partes foram cozidas com ervas. Os demais só não conheceram o mesmo destino porque os gritos despertaram a atenção de Hernando Pizarro (irmão do conquistador), que se apressou em socorrer o grupo atacado, matando muitos indígenas. Os europeus rumaram às pressas para Tumbes para vingar a suposta traição. Qual não foi a surpresa que tiveram ao chegar: o pequeno povoado de Tumbes estava devastado. Esse episódio parece demonstrar algumas coisas importantes sobre os europeus do período pós-Conquista do México. Em primeiro lugar, eles estavam imbuídos da crença de que se a América contava com um império como o do México, deveria haver outro (senão mais de um) tão ou mais rico que aquele. Qualquer indício ou relato de que este outro império se encontrava em tal lugar era seguido com inabalável fé. Nesse sentido, a busca quimérica por fama, fortuna e glória mais vitimou europeus no século XVI do que produziu Corteses ou Pizarros. Esse não era um sentimento absoluto, claro. Cronistas como Pedro Pizarro, primo do conquistador e seu soldado na terceira expedição, nos relata que seus companheiros não acreditavam nos índios que relatavam riquezas ou a existência de grandes reinos no interior do continente. Pelo contrário, atribuíam tais relatos a fabulações de Pizarro que visavam animar seus soldados. Décadas depois, o cronista oficial de Índias, Antonio de Herrera, nos fala que Pizarro não conseguiu os 150 homens exigidos na Capitulação de Toledo porque a população não acreditava no que ele dizia. Ainda assim, como veremos, muitos se deixaram seduzir pelo que ele disse e prometeu e pagaram com suas vidas por acreditar . Um segundo ponto é que os espanhóis (e também outros europeus, como veremos mais adiante) desconheciam as situações políticas As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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das regiões que conquistavam e ocupavam. Esse foi o caso de Tumbes, que se encontrava sob o fogo cruzado de uma guerra civil resultante da disputa pelo trono inca. A cidade foi destruída por um dos lados da disputa e obrigada a atrair a atenção dos espanhóis, para, depois, matá-los. Vamos entender melhor essa situação. O império inca, ou Tahuantinsuyo na língua quíchua, estava em franca expansão quando os europeus ali chegaram. Em 1527, Huayna Capac, seu soberano, conhecido como Sapa inca (título que significa algo como “o único”), faleceu de uma misteriosa doença (alguns estudiosos afirmam que se tratava de varíola; jamais saberemos ao certo), que também vitimou seu provável sucessor, Ninan Cuyuchi, seu filho favorito. Huayna Capac tinha muitas esposas e concubinas, e, com elas, muitos filhos. Com a morte do herdeiro mais provável, dois deles foram catapultados à condição de postulantes a inca. Atahualpa era filho de uma concubina e, a época da morte do pai, comandava exércitos que tinham acabado de conquistar a região de Quito. Era respeitado pelas mais experientes lideranças militares e tinha imenso poder no norte do império, região de incaização mais recente. Seu rival era Huáscar, filho legítimo e governador de Cuzco, capital simbólica do império. A elite local, tradicional, o apoiava e o nomeou Sapa inca e a seu irmão, Atahualpa, como governador de Quito, obrigando-o a jurar fidelidade. Atahualpa recusou os termos cuzquenhos e declarou guerra. Tumbes foi uma fatalidade no meio da guerra: a cidade havia jurado fidelidade a Huáscar, mas foi devastada pelas tropas de Atahualpa em represália. Para provarem seu apoio a Atahualpa, deveriam exterminar os espanhóis, de cuja existência o líder inca já sabia há tempos, mas que não lhe pareciam ser uma real ameaça diante da guerra civil que se desenrolava. Pizarro e seus 200 homens deram mostra de que desistiriam da empreitada, mas um indígena “vindo do interior”, segundo relato de Pedro Pizarro, teria dito aos espanhóis que havia um grande e rico reino em Quito. A notícia voltou a motivar os líderes da expedição, mas não os soldados, conforme o mesmo cronista. Seguiram em direção à região de Poechos, também povoada por índios tallanes. Pizarro e seus homens foram bem recebidos e incorporaram o sobrinho do curaca local como intérprete. À medida que avançavam, tiveram as primeiras notícias da guerra civil que se desenrolava. Cautelosamente, os espanhóis diziam ser aliados de Huáscar ou de Atahualpa, conforme lhes parecesse mais con132 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

veniente. Nesse ínterim, as tropas pouco experientes de Huáscar haviam sido derrotadas, e Atahualpa, de acordo com a maioria dos cronistas espanhóis, manda perseguir e matar toda a linhagem de Huáscar, seus principais apoiadores e seguidores. As notícias sobre gente estranha que se deslocava em casas flutuantes e montava em enormes animais levam Atahualpa a convidar os integrantes da expedição para um encontro em Cajamarca, cidade onde haveria um triunfo pela vitória sobre seu meio-irmão. Pizarro aceitou o convite, mas, tendo sido informado de que o novo inca dispunha de cerca de 40 mil soldados, criou um estratagema para reforçar sua retaguarda, salvaguardando posições já conquistadas. Durante os 53 dias da viagem entre San Miguel de Piura (primeira cidade fundada pelos espanhóis na região) e Cajamarca, eles receberam algumas embaixadas de Atahualpa, que lhes davam boas vindas e traziam mantimentos. Finalmente, Pizarro, uma centena de solados, alguns aliados indígenas e algumas dezenas de cavaleiros chegam a seu destino em 15 de novembro de 1532. O que a expedição encontrou é motivo de divergência nas fontes. Alguns cronistas, como o soldado Miguel de Estete, asseguram que ali estavam indígenas e soldados. Outros, como Jerez, atestam que não havia viva alma no povoado de Cajamarca. Todos, porém, concordam com a visão que tiveram meia légua depois, quando se depararam com a comitiva do inca, acampada em tendas brancas perfiladas, com dezenas de milhares de pessoa, encheu-os de terror e espanto: era muita gente, muita ordem. Uma pequena embaixada liderada por seus capitães Hernando de Soto e Hernando Pizarro, contando com dois intérpretes indígenas, Felipillo e Martinillo, consegue ter acesso ao Inca, que tomava banhos termais cercado de seu exército. Há, então, o anúncio de que os dois lados deveriam se encontrar. Ambos os lados se prepararam solenemente. Pizarro dividiu suas hostes, colocando-as em pontos estratégicos. Mandou que os cavalos carregassem guizos para que fizessem mais barulho. Atahualpa, menosprezando os invasores, entrou na cidade com poucos milhares de soldados (3 ou 6 mil), em uma liteira, cercado de músicos, dançarinos e outros símbolos de seu poder. Na cidade de Cajamarca, diante de uma arena vazia, Atahualpa foi recepcionado por um padre, que, com um breviário em mãos, passou a ler o Requerimiento, explicando os fundamentos de sua fé e os domínios de seus reis. Tudo traduzido por Felipillo ou Martinillo. O Inca neAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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gou-se a se converter, e, dizendo ser filho do Sol, atirou longe o breviário do frade. Afirmou, ainda, que jamais seria fiel ao rei de Espanha e este, sim, deveria pagar por estar ali. Pizarro e seus soldados atacaram a comitiva real, prendendo, de surpresa, o imperador, sob a alegação de blasfêmia e profanação. Milhares de indígenas (incluindo nobres e gente comum de Cajamarca) morreram na emboscada. Com a prisão de Atahualpa, a comitiva indígena viu-se sem ação: uma reação errada, um movimento em falso e o soberano poderia ser morto. Pizarro manteve Atahualpa como seu prisioneiro e, para libertá-lo, exigiu uma quantidade muito grande de ouro64. Ao perceber o interesse dos espanhóis por metais preciosos, Atahualpa prometeu um cômodo cheio de ouro e dois de prata caso o libertassem. O resgate seria providenciado dentro de dois meses e os espanhóis poderiam ajudar mandando homens a Cuzco e Pachacámac, locais em que encontrariam muito metal precioso. O inca era bem tratado e muito bem vigiado, com cavaleiros de plantão para sua guarda (até 150 homens no período noturno). Pizarro jantava com ele todas as noites, quando conversavam por meio de um intérprete. De Soto e Hernando Pizarro passaram a tratar o Inca como um amigo pessoal. Ria e conversava com seus captores, sem nunca perder o ar real, e aprendeu a jogar dados e xadrez, segundo os cronistas. Numa dessas conversas, soube que Huáscar havia sido preso e que estava sendo finalmente trazido para Cajamarca. Pizarro pediu que não o matassem. Por meio de seus espiões (Atahualpa continuava a receber nobres e esposas em seu aposento-prisão), soube que Huáscar oferecera o dobro da quantidade de ouro e prata para os espanhóis, caso estes matassem o Inca em seu cárcere. Diante disso, Atahualpa mandou matá-lo: Huáscar foi enforcado na Serra de Áncash. Era fevereiro de 1533. Mesmo encarcerado, o Inca exercia seu poder de forma quase irrestrita. De março a junho, diante da inércia dos comandantes incas, que provavelmente não atacavam com receio de perder seu Inca ou até mesmo por ordem do próprio Atahualpa (que acreditavam seria libertado com o pagamento do resgate), os espanhóis fundiram milhares de quilos de ouro e prata e dividiram o butim entre soldados, ginetes, cava64  A jovem esposa do Inca, Cuxirimay Ocllo foi tomada, anos depois, como concubina de Pizarro, que teve com ela 2 filhos. Depois de batizada Doña Angelina, e quando da morte de Pizarro, casou-se com um dos principais cronistas da guerra que aqui narramos: Juan de Betanzos.

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leiros, capitães, religiosos e outros espanhóis. A quinta parte, devida ao Erário real, seria levada a Sevilha por Hernando Pizarro. Mas um grupo cada vez maior de espanhóis, encabeçado por Diego de Almagro, que havia chegado a Cajamarca meses antes desses fatos, desejava continuar a Conquista, rumando ao sul e, por isso, queriam a morte do Inca. Atahualpa se viu, então, vítima de um ardil. Foi sumariamente julgado e condenado em julho de 1533, em tribunal militar presidido pelo próprio Pizarro. Não há documentação confiável sobre esse julgamento, mas é possível imaginar a dificuldade que o Inca deve ter tido para entender do que era acusado e compreender o próprio funcionamento de um tribunal espanhol. Defendendo-se por intermédio de um intérprete, Atahualpa se viu condenado à fogueira por incesto, poligamia, traição, idolatria, heresia e fratricídio (qual o sentido destes termos para o réu?). Na última hora, depois de ter se convertido ao cristianismo e de ter sido batizado (provavelmente para que seu corpo fosse mantido inteiro para que pudesse ser mumificado, como mandava a tradição quíchua), teve sua pena comutada para o garrote. Pizarro nomeou outro filho de Huayna Cápac, Túpac Hualpa (o Toparpa das fontes espanholas) como novo Inca e ordenou que este reconhecesse vassalagem ao rei de Espanha. Isso garantiu às tropas espanholas o domínio de quase toda a região norte do Tahuantinsuyo, além do apoio de muitos curacas partidários de Huáscar e de muitas outras etnias que esperavam se ver livres dos incas. Mas restava todo o sul do império, ainda em mãos de tropas ligadas aos curacas de Quito e ao Inca recém assassinado. Em agosto, um grupo bastante diverso de conquistadores, com cerca de 400 espanhóis e o imenso séquito de Toparpa, partiu em direção a Cuzco; atrás deles, milhares de guerreiros aliados de diversas etnias, carregadores de Cajamarca, vigiados de perto por escravos negros especialmente designados a esta função, além de um bom número de indígenas provenientes da Nicarágua. Fechando a gigantesca caravana multiétnica, ginetes espanhóis. No longo trajeto, alternavam paradas em cidades que os recebiam como libertadores (em especial, aquelas que Atahualpa havia profanado ou atacado no passado recente, durante a guerra civil) ou encontravam localidades inteiras desertas ou que lhes opunham pouca resistência. Apenas em outubro, a rotina foi quebrada. Ao chegar na região As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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do vale de Jauja, os espanhóis e sua numerosa e plural comitiva foram muito bem recebidos. Um pouco mais adiante, contudo, encontraram destacamentos de incas hostis e travaram feroz combate. As tropas contrárias a Cuzco e os habitantes de Jauja fizeram a diferença: os indígenas partidários de Atahualpa foram vítimas de uma chacina. Ainda comemorando essa vitória, Pizarro encontrou o grosso das tropas às quais o pequeno destacamento que havia derrotado em Jauja pertencia. Estavam a apenas 6 léguas de distância e impingiram derrota ao exército conquistador, obrigando-o a retroceder. Derrotados, retornaram a Jauja para reagrupar suas forças. Lá, Pizarro viu o Inca Toparpa, que se encontrava doente, falecer. Depois de muita discussão, um novo Inca foi escolhido: um irmão de Atahualpa, nascido em Cuzco, a quem Pizarro mandou que os nobres indígenas encontrassem. Preocupado com a segurança e a continuidade da expedição, ele determinou a construção de portos no litoral, por onde esperava receber eventuais reforços, e que a reconstrução das pontes com a capital. Nos meses seguintes, marchando em direção a Cuzco, o grosso das tropas de Pizarro era precedido por um destacamento, encabeçado por De Soto e Almagro e composto por indígenas huancas e jaujas. Os espanhóis enfrentaram uma guerra encarniçada, lutando contra as tropas cuzquenhas e quitenhas, lideradas por Quízquiz, que queimavam as plantações e armazéns que encontravam para privar seus inimigos de comida. Próximo da capital, o jovem Manco Inca Yupanqui, outro meio-irmão de Atahualpa, partidário de Huáscar que havia sobrevivido ao expurgo do ano anterior, juntou-se aos espanhóis e suas tropas se integraram ao exército comandado por Pizarro. Às portas de Cuzco, em novembro de 1533, as tropas de Pizarro enfrentaram forte resistência e perderam cavalos e muitos homens. Mas fatigadas por meses de batalha e desejosas de voltar a Quito, diante do que parecia ser uma campanha interminável para defender a cidade, as tropas lideradas por Quízquiz retiraram-se mais para o sul. Assim, sem encontrar resistência, Pizarro entrou em Cuzco no dia 15, acompanhado de Manco Inca e de seus muitos aliados. Caía em poder dos espanhóis a principal cidade inca, o “umbigo do mundo”, que nos dias seguintes seria alvo de saques e pilhagem. No dia seguinte, Pizarro nomeou Manco como o novo Inca, que prestou vassalagem ao rei de Espanha depois de ouvir missa, o 136 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Requerimiento e jurar amizade aos conquistadores. A resistência liderada por Quízquiz foi debelada a partir de Cuzco e, meses depois, suas tropas se retiraram para o norte, queimando pontes e plantações que se encontravam no caminho. Em março de 1534, Cuzco foi refundada como cidade espanhola, ganhando cabildo e instituições ibéricas. Índios foram repartidos e encomendados entre os principais aliados de Pizarro, causando ressentimentos e cizânia entre os espanhóis que não foram agraciados com títulos ou benesses. Na mesma época, Pizarro recebeu a notícia de que Pedro de Alvarado, o capitão que havia autorizado o massacre do Templo Maior de Tenochtitlán e conquistador da Guatemala, preparava uma incursão ao Peru, com o intuito de reclamar aquelas terras. Sabendo disso, Pizarro dividiu suas tropas. Um primeiro contingente, liderado por Almagro, foi mandado para o litoral a fim de tomar posse daquele território, encarregando-se da fundação da cidade de Trujillo. Uma segunda expedição, capitaneada por De Soto, foi mandada ao encalço de Quízquiz, que foi derrotado em maio daquele ano, em Maracaylla. Finalmente, Pizarro e Manco Inca seguiram para Jauja, onde o espanhol queria fundar uma nova capital. Do destacamento de Almagro, um grupo de 200 espanhóis, liderados por Sebastián de Benalcázar, firmou aliança com os cañaris, antigos aliados dos quitenhos, e partiu para a conquista de Quitu, capital mais setentrional do império inca. Juntos, atacaram ferozmente as imediações da cidade inca, protegidas por Rumiñahui, partidário de Atahualpa. Derrotados, os quitenhos retiraram-se para a selva, não sem antes queimar a própria cidade a fim de torná-la imprópria para os espanhóis e aliados. Reencontrando-se com o grupo de Almagro, Benalcázar fundou Santiago de Quito e estabeleceu vecinos em agosto de 1534 (a cidade, nos meses seguintes, teria seu nome alterado para San Francisco de Quito e se mudaria para a antiga cidade inca de Quitu), mas a conquista da região ainda não havia se consolidado. Neste ínterim, Alvarado aportou em Puerto Viejo, atual Equador, com grande exército, vindo da Guatemala: eram 500 soldados – dos quais 150 a cavalo – cerca de dois milhares de soldados indígenas de vários lugares da América central, e uma razoável quantidade de escravos negros. Na viagem rumo a Quito, doenças, neve nas cordilheiras, uma erupção vulcânica e outros tantos revezes custaram a vida de 85 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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espanhóis e uma quantidade grande, mas não registrada, de aliados indígenas e negros. Almagro partiu ao encontro desse grupo tão logo soube de sua chegada, levando consigo indígenas, negros e espanhóis. Encontraramse em Riobamba. Vendo a inferioridade numérica em que se encontravam, alguns curacas e Felipillo ofereceram seus serviços a Alvarado. Mas os capitães espanhóis preferiram dialogar a guerrear entre si. Alvarado deixou claro seu interesse sobre Cuzco e os territórios mais ao sul, insistindo que não pertenciam à jurisdição de Pizarro. Almagro tentou, então, convencê-lo a, juntos, partirem para cumprir este objetivo. O experiente conquistador do México e da Guatemala desconfiou da oferta e passou a exigir um imenso pagamento, cerca de 100 mil pesos de ouro, para retirar-se, deixando tropas e barcos com Alvarado e Pizarro. Almagro, por sua vez, já tratava de convencer os homens de Alvarado a passarem para seu lado. Ao fim de 3 dias, celebrou-se um acordo proposto por Alvarado. No início de 1535, quando encontrou pessoalmente Pizarro em Pachacámac, ele recebeu seu vultoso pagamento e cumpriu com sua palavra. Ganhou, ali, o dobro do butim de Pizarro em Cajamarca, mais do que havia obtido nas empresas do México e da Guatemala, apenas por participar de algumas batalhas no Peru e por atrapalhar os planos dos que se encontravam na região há mais tempo. Já Pizarro e seus aliados ganharam imensos reforços para consolidarem a Conquista. Pizarro fundou a cidade de Lima em janeiro de 1535, para ficar mais próximo do Panamá, ponto de apoio militar espanhol. Até meados do mesmo ano, resistências atahualpistas, ligadas aos indígenas quitenhos, chefiados por Quízquiz, Rumiñahui e Huayna Palcón, tentaram retomar Quito, atacando a aliança espanhola-indígenas Huáscaritas, cuzquenhos e cañari. Até junho, todos os capitães indígenas foram presos e mortos (ou mataram-se entre si, como no caso de Quízquiz, morto por Palcón, por desentenderem-se sobre qual a melhor estratégia contra seus inimigos). Nos anos que se seguiram, Manco iniciou uma revolta contra os espanhóis, que seus descendentes continuariam até a morte de Tupac Amaru I, em 1571. Ainda assim, a região do Peru nunca foi plenamente pacificada e revoltas indígenas se mantiveram durante séculos. Em 1538, Pizarro e Diego de Almagro, que havia retornado de uma incursão ao Chile, se desentenderam. Pizarro mandou executar Almagro. O conquistador, que havia acumulado muitos inimigos desde 138 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

a morte de Atahualpa, acabou ele próprio assassinado por pelo menos 20 partidários de Almagro, em 1541. Seu irmão, Gonzalo Pizarro, El Mozo, tentou manter o poder, mas também foi executado, em 1548, por Pedro de La Gasca, o vice-rei recém-chegado à América com ordens de por fim ao período de Conquistas.

O espalhar das conquistas pelo Novo Mundo Em 1534, logo depois de os espanhóis terem fundado San Francisco de Quito, surgiu uma lenda (espalhada por indígenas) de que, próximo dali, haveria muito ouro e esmeraldas. O relato (com muitas variações) descrevia uma cerimônia em que um cacique ou sacerdote desse povo mítico se cobria com pó de ouro e mergulhava em um lago dos Andes apenas para demonstrar sua magnífica riqueza. A lenda se espalhou rapidamente, provocando uma verdadeira febre entre os conquistadores, que partiram em busca do rico reino do cacique dourado, “El Dorado”, em espanhol. Espanhóis, ingleses, alemães e portugueses, rompendo, muitas vezes, os tratados entre as nações sobre a posse de territórios na América, partiram em busca do terceiro grande reino indígena. Ao longo do século XVI, as inúmeras expedições que penetraram no interior da América do Sul fizeram com que a localização do suposto Eldorado se alterasse: ora, estava na região da atual Venezuela, ora no atual estado brasileiro de Roraima ou nas Guianas. Outras lendas de cidades míticas, muito ricas, também surgiram na América do Norte (onde, por décadas, se procurou Cíbola, uma cidade maior que Tenochtitlán, ou as lendárias “sete cidades de ouro”) e na América Portuguesa (onde se buscou Manoa, uma cidade inteira de ouro). O fato é que essas cidades nunca foram encontradas, mas muitas vidas perderam-se em suas buscas. Uma interpretação possível para essa busca por estes muitos Eldorados está no sonho que os conquistadores tinham de enriquecer rapidamente. As conquistas do México e do Peru alimentaram esses sonhos. Longe de se esvanecerem com o tempo, os reinos de Eldorado renAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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deram buscas até o século XX, como se constata nas escavações feitas, ao longo de oito anos partir de 1898, pela Company for the Exploitation of the Lagoon of Guatavitá, junto ao lago colombiano Guatavita, convicta de que nele se banhava o cacique Eldorado. Encontraram apenas lodo. O enriquecimento propiciado pelo ouro era, sem dúvida, uma meta para muitos dos conquistadores, mas o reconhecimento da façanha e a fama e a glória que dela resultavam seguiam sendo o que alimentava as tentativas, mais ou menos fracassadas, de encontrar o novo próximo reino. A América do Norte foi explorada a partir do paradigma estabelecido pelas conquistas do México e do Peru. Pánfilo de Narváez passou todo o ano de 1528 em uma catastrófica expedição procurando cidades de ouro na Flórida. Hernando de Soto partiu da mesma Flórida em 1539, desceu o rio Mississipi até o Golfo do México, sem sucesso, procurando o próximo reino dourado. Francisco de Coronado vasculhou o norte da Nova Espanha até o interior do atual Estados Unidos, atrás das Sete Cidades, numa longa e infrutífera expedição entre os anos de 1540 e 1542. Todos tentavam emular os feitos de Cortés e Pizarro. O Inca Garcilaso de la Vega, cronista e letrado mestiço que escreveu no início do século XVII, ao relatar a expedição de De Soto, deixa isso claro: “Esto hizo Hernando de Soto, movido de generosa embidia, y celo magnanimo de las haçañas nuevamente hechas em Mexico, por el Marqués del Valle Don Hernando Cortés, y en el Perú, por el Marqués Don Francisco Piçarro, y el adelantado Don Diego de Almagro, las quales él vió, y ayudó á hacer” (Garcilaso de la Vega, 1605, p. 2). Também a conquista da região do Rio da Prata se inscreveu no contexto da expansão das empresas de conquista. Igualmente envolta em lendas e descrições fantásticas e fantasiosas quanto ao seu potencial de riquezas, a região despertou a atenção de representantes da média e pequena nobreza europeia, bem como de aventureiros que, com base em um imaginário bastante peculiar, descreveram-na em seus relatos. A exploração efetiva das regiões meridionais da América do Sul e do Rio da Prata ocorreu entre 1518 e 1520 e se deveu à necessidade de a Espanha encontrar um novo caminho marítimo que conduzisse às Índias. O início das explorações, contudo, data de 1500, com a expedição de Diego de Lepe, cujas informações seriam de grande valia mais tarde. O espanhol Juan de Solís é tido como o primeiro navegante a atingir as regiões do Rio da Prata em 1516, tendo sido esta a razão de 140 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

sua denominação inicial, rio de Solís. Os náufragos desta expedição se tornaram elementos fundamentais para a propagação da lenda da Serra de Prata e de um rei branco, o que viria a despertar ainda mais a cobiça dos espanhóis. A expedição de Caboto, que se seguiu a esta, apesar de não ter descoberto qualquer riqueza, reforçou ainda mais os mitos lendários, em função de alguns objetos de prata que obteve com indígenas guaranis. A preocupação em assegurar a posse do território com riquezas inexploradas e insuspeitas e a avidez por prestígio e poder levariam a Coroa espanhola e representantes da nobreza a organizarem a expedição de Pedro de Mendoza. O cenário forjado sob o signo da aventura e do sonho de “ir a valer más” cedo esbarraria na hostilidade do território e na falta de alimentos, que, associadas à resistência dos indígenas, reduziram consideravelmente o exército de Mendoza. Houve, no entanto, alguns fatores que facilitaram e, até mesmo, determinaram o êxito dos futuros contatos entre os espanhóis e os guaranis. Também entre os indígenas “corria la voz y la novedad del Candiré (...) un Rey Blanco (...) dueño del metal” (Susnik, 1979-80, p. 47), razão pela qual intensificavam suas incursões rumo ao Império Incaico, “que no era outro el Reino de la Sierra de la Plata que buscaban” (Cardozo, 1989, p. 40). A esta identificação circunstancial, se somariam, posteriormente, outras razões que viriam a favorecer a formação de uma aliança entre os guaranis e os espanhóis. Dentre elas, estava “el poder ‘caraí’ del arcabuz y del caballo”, que contribuiria decisivamente para o domínio que viriam a exercer sobre os Agaces, Payaguaés e Guaycurúes (Susnik, 1979-80, p. 48). A consciência em relação à superioridade bélica dos espanhóis logo determinaria outra categoria de alianças, as decorrentes do parentesco – o cuñadazgo –, ritualizadas nas ofertas de mantimentos e de mulheres. Ulrich Schmidl, alemão que acompanhou a expedição de Juan de Ayolas e participou do cerco às terras do cacique Lambaré, informa que a rendição consistiu num pedido de clemência e na oferta de “seis mujeres, la mayor de dieciocho años, seis venados y otras piezas e pidieron que nos quedásemos con ellos, y asignaron dos mujeres a cada soldado para que lavasen ropa y cuidasen de nosotros. También nos dieron comida y lo que era menester para sustentarnos. Así nos quedamos en paz.” (Schmidl; Federmann , 1985, p. 47). Selada a aliança com os guaranis, o domínio da fértil margem esquerda do vale irrigado pelo rio Paraguai garantiria a fixação dos espanhóis na região As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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recém-conquistada e a continuidade da busca pela Serra de Prata e das minas do Rei branco. As primeiras notícias etnográficas sobre os guaranis decorrem justamente destas observações feitas por exploradores que integraram as expedições no Rio da Prata, e estando, portanto, inseridas num contexto de conquista e de exploração de um caminho que poderia levar às riquezas lendárias do Eldorado ou da Serra de Prata. A primeira referência explícita aos guaranis foi feita por Luís Ramírez, em carta de 1528, e remete à belicosidade, ao acesso a metais e à antropofagia: “éstos andan dellamados por esta tierra y por otras muchas, como corsarios a causa de ser enemigos de todas estotras naciones (...). Estos traen mucho metal de oro y plata em muchas planchas y orejeras y em hachas com que cortan la montaña para sembrar. Éstos comen carne humana.” (Ramírez apud Madero, 1939, p. 384). Diego García, dois anos depois, reforçaria esta mesma visão, ao descrevê-los da seguinte maneira: “estos comen carne humana (...) tienen y matan mucho pescado e abatís e siembran e cogen abatís e calabazas.” (Diego García apud Melià, 1987, p. 21). Dentre os relatos que se seguiram a estes, destacamos os feitos por Ulrich Schmidl e Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, que determinaram uma visão que se generalizou, a ponto de serem fontes fundamentais para conhecermos os guaranis ao tempo da conquista. Se o primeiro, ao descrever os guaranis, ressaltará aspectos de sua aparência, informando-nos que “Son gentes bajas y gordas, y aguentan más que los otros índios. Los hombres tienen un pequeño agujero en los labios, y en el colocan un cristal amarillo (...) de dos palmos de largo y del grueso de un cañon de pluma. Este pueblo, hombres y mugeres, jóvenes e viejos, andan desnudos como su madre los trajo al mundo”, (Schmidl, 1986, pp. 44-45) Cabeza de Vaca destacará a rusticidade de suas habitações, feitas de palha e madeira (Cabeza de Vaca, 1984, p. 177), condição que seria retomada no Informe do jesuíta anônimo, de 1620, em que o missionário observa que são “hombres y mujeres [que] andan conmumente desnudos (...) [e] habitan en casas bien hechas armadas en cima de buenos horcones cubiertas de pajas. (...) no tienen plata ni oro ni cosa de valor. Su hacienda es el arco y flechas.”65 Estes guaranis, descritos como guer65  Informe de um jesuíta anônimo sobre as cidades do Paraguay e do Guairá, dezembro de 1620. In: CORTESÃO, Jaime. Manuscritos da Coleção de Angelis. (MCA I – 1549-1640) Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951, pp. 166-168.

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reiros, agricultores66 e antropófagos, seriam a partir de então percebidos como aliados por sua colaboração nas batalhas contra outros grupos indígenas e em função da oferta de alimentos e de mulheres, que, como já referido, implicaria no estabelecimento também de laços de parentesco. Cabeza de Vaca, que, a 18 de março de 1540, havia recebido dos Reis da Espanha a Governação do Rio da Prata, decidiu não utilizar a rota marítima e fluvial costumeira para chegar àquela região, optando por uma longa jornada por terra, durante a qual foi providencialmente auxiliado pelos indígenas com os quais contatou. O núcleo espanhol que Cabeza de Vaca encontraria em “la ciudad de la Ascensión”, em 1542, se encontrava perfeitamente integrado às condições de vida locais e às pautas culturais indígenas, evidência do êxito das alianças firmadas, a despeito de serem “gente muy amiga de guerra y siempre las tienen y procuran así de índios sus enemigos (...) como de cristianos” (Cabeza de Vaca, 1984, p. 162). A posição aparentemente protetora que adotou em relação aos indígenas inimigos aprisionados e a proibição de comer carne humana que impôs aos guaranis aliados provocariam contestações a sua administração, implicando na sua prisão e retorno à Espanha. Em 1548, após ter pacificado os grupos indígenas que ainda resistiam, Domingo de Irala refez com êxito a jornada de Cabeza de Vaca, empreendendo nova expedição ao Peru. Sua entrada, no entanto, foi proibida pelo Vice-Rei Pedro de La Gasca. Em 1549, após seu regresso a Assunção, Irala deu início à expansão sobre o território do Guairá, situado ao sul do rio Paranapanema, constantemente ameaçado pelos portugueses. A ocupação do território se deu em dois momentos. O primeiro, com a fundação de San Juan, na desembocadura do rio da Prata, e o segundo, com a da vila de Ontiveiros, conseguida após aliança com os caciques guaranis da região. Oito anos depois, Rui Diaz de Melgarejo fundava Ciudad Real del Guairá, na região em que anos depois seriam instaladas as reduções jesuíticas. Nas primeiras décadas posteriores à fundação destas cidades, a catequese dos indígenas foi bastante limitada, devido à dispersão dos indígenas, à escassez de missionários, ao desconhecimento da língua e à falta de um catecismo traduzido para o guarani. 66  Schmidl e Cabeza de Vaca enfatizam não apenas a abundância de trigo, milho e mandioca e a criação de animais domésticos e para consumo alimentar, mas também demonstrações que ambos descreveram como de hospitalidade, já que “ellos salían a recebir al camino com sus mujeres e hijos y traían muchos bastimientos.” (Cabeza de Vaca, 1984, p. 168).

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Se em 1549 os primeiros jesuítas lançaram as bases de sua ação missionária na América portuguesa, somente em 1555 os espanhóis instalados no Paraguai solicitariam a presença deles presença para o atendimento espiritual dos colonos e conversão dos indígenas já pacificados. Apesar de a Ordem ter sido incluída entre as autorizadas a atuar nos domínios coloniais pelo Conselho das Índias em 1566, os jesuítas tiveram que aguardar pela autorização de Felipe II. Em 1568, oito missionários foram enviados ao Peru, onde passaram a atuar exclusivamente no ensino, sendo que o trabalho de missão junto aos índios se deu somente após a instalação da Congregação Provincial de Cuzco, em 1576. A ideia de fundar missões no Paraguai, esboçada ainda em 1552 pelo Padre Leonardo Nunes, se concretizou somente três décadas depois, mediante o deferimento do pedido do Bispo de Tucumán ao Provincial do Brasil, Padre Cristóvão Gouveia. Em 1588, três padres jesuítas passaram a pregar para brancos e índios em Assunção e no Guairá, em Villarica e Ciudad Real e, também, em Xerez, na Província do Itatim. Os primeiros tempos foram difíceis, pois as missões eram itinerantes e os batismos, embora numerosos, não revertiam numa conversão definitiva e no abandono das condutas tidas como inaceitáveis. Somavam-se a extensão da província – desmembrada da Província do Peru em 1593 – e as dificuldades encontradas para o sustento dos quatro padres e dois irmãos que dependiam das esmolas que recebiam dos espanhóis e dos alimentos que os indígenas lhes ofertavam. Em 1601, o Padre Geral Aquaviva, após ouvir o padre Diego de Torres Bollo, decidiu reunir as regiões do Rio da Prata, Tucumán e Chile numa província independente, com o nome de Província Jesuítica do Paraguay. Em 1607, o padre Diego Torres, acompanhado de doze missionários, regressou da Europa com a missão de assumir o Provincialato. Para discutir as diretrizes básicas da ação a ser adotada pela Companhia de Jesus na nova província, Diego de Torres organizou, no ano seguinte, a 1ª congregação Provincial. Nela, a despeito da consciência em relação aos desafios e os obstáculos postos para a conversão, seriam reafirmados como principais objetivos a conquista do território da província e a catequese dos indígenas, através de um projeto de caráter humanístico, político e civilizador: a redução.

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Conquista e Pacificação: mudança de paradigmas Junto com as glórias das conquistas espanholas, veio a infâmia. Durante todo o século XVI, muito se debateu sobre a violência que caracterizou as expedições de conquista levadas a efeito pelos espanhóis. Era o início do que se convencionou chamar de Leyenda Negra, que procurou mostrar as conquistas (e também os modelos de colonização) ibéricas como mais violentas e brutais do que as inglesas ou francesas, por exemplo. Um dos homens que, indiretamente, ajudou a difundir a ideia de que a Conquista ibérica foi marcada por uma violência desnecessária e desumana ao outro lado do Mar Oceano (e não mais na Europa ou na Ásia, em guerras justas contra os muçulmanos) foi o dominicano Bartolomé de Las Casas. Nas páginas iniciais da obra Brevíssima relação da destruição das Índias (1542), a panfletária denúncia das violências que os espanhóis cometeram contra indígenas indefesos, encontramos um exemplo da reconfiguração que as expedições da primeira metade do século XVI trouxeram ao termo Conquista. Nesse livro, Las Casas, que acompanhou pessoalmente o conquistador Diego Velázquez, futuro governador de Cuba e desafeto de Cortés, descreve os massacres ocorridos na conquista da ilha, no México e no Peru (estas últimas não presenciadas pelo frade). Em suas descrições repletas de mortes e violência, os indígenas não participam das ações: são meras vítimas das torturas e da cobiça espanholas, descritas como sem limites e desumanas. Os espanhóis banalizavam a violência e, dela, tiravam prazer. O curioso é que, conscientemente, Las Casas, no prólogo da obra, se recusa a utilizar o termo Conquista, já empregado por seus contemporâneos, alertando o rei que aquilo que assim se dominava era, em verdade, “empresa desumana”. O termo seria “abusivo, impróprio e infernal”. O que se chamava de Conquista não passava de meras “invasiones violentas de crueles tiranos, condenadas no sólo por la ley de Dios, pero por todas las leyes humanas, como lo son e muy peores que las que hace el turco para destruir la iglesia cristiana” (Las Casas, sobre a Nova Espanha, p. 104).  Em outras palavras, o dominicano atesta conhecer a aplicação do termo Conquista, antes mesmo das expedições realizadas na América, e aponta o que, segundo ele, era um mau uso do termo pelos As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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novos conquistadores. Na verdade, Las Casas está apontando para uma mudança no uso do conceito que, agora, atravessava o Mar Oceano e passava a denominar o que ocorria no Novo Mundo. Para assegurar sua posição, faz uma inversão de valores muito perturbadora para um leitor católico da época: o que os cristãos aqui faziam era pior do que os turcos faziam no Velho Mundo. Denominar como uma ação demoníaca, pagã e marcada pela violência gratuita de Conquista era consentir com um jogo infernal e dele participar. Uma década depois, Las Casas estava envolvido no célebre debate de Valladolid. Diante de uma Junta de estudiosos, o frade defendeu a injustiça da conquista, a luz natural dos indígenas e a catequese não violenta. Do outro lado, se encontrava Juan Ginés de Sepúlveda, teólogo defensor da inferioridade indígena e da Guerra Justa. A Junta, diante dos argumentos apresentados pelos debatedores, não foi capaz de chegar a uma resolução, reconhecendo os méritos de ambas as posições. Mas, se na teoria não foi possível definir a Conquista como intrinsecamente justa ou injusta, a legislação sofreu sensíveis mudanças em virtude do que foi exposto no debate e dos efeitos da difusão da Leyenda Negra. Na prática, houve um freio às novas conquistas a partir da segunda metade do século XVI, e o vocábulo Conquista deu lugar ao termo Pacificação nos documentos espanhóis. Em um decreto de 1573, Felipe II nominalmente proibia “los descubridores por mar o tierra” de fazer “guerra” ou “conquista”, tampouco poderiam “ayudar a vnos indios contra otros” (reconhecendo o valor dos aliados nativos para o sucesso das empresas). O próprio vocábulo passou a ser proibido: “Los descubrimientos no se den con título y nombre de conquistas pues hauiendose de hazer con tanta paz y caridad como deseamos no queremos que el nombre dé ocasión ni color para que se pueda hazer fuerça ni agrauio a los Indios”. O termo Conquista havia se descolado de seu original europeu e, além disso, havia desvirtuado a relação de vassalagem com os índios. A pacificação – o que o documento ordenava que fosse feito dali em diante – se dava de forma totalmente diferente das expedições de conquista: ao lugar que deveria ser pacificado, seriam enviados religiosos que, acompanhados de poucos soldados que os defenderiam (e não deviam atacar os índios ou se aliar com eles), deveriam converter e civilizar os indígenas, preparando, assim, o terreno para a chegada de colonos, nem que isso tomasse anos. Apenas depois dessa lenta conquista espiritual, que assumia a denominação de pacificação, é que os territórios podiam ser colonizados. 146 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Nos tempos de Cortés e Pizarro, a palavra Conquista esteve intimamente ligada à derrota pelas armas e à sujeição de reinos indígenas, designando, ainda, uma pretensão legal e moral que determinava uma espécie de direito de governar: o conquistador queria títulos, o direito de explorar a área hereditariamente, queria enobrecer. Pretensões que foram barradas pela legislação espanhola, que procurou limitar seus poderes. No Novo Mundo, essas leis foram recebidas com resistência e revoltas, e implicaram, também, na escrita de obras como as de Bernal Diaz del Castillo, autores que se esforçaram para provar seus méritos, para, assim, pleitear títulos e mercês a que julgavam ter direito. Yves Winter nos lembra como essa definição de Conquista e conquistador invade o direito das nações, quando refere o holandês Hugo Grotius e seu influente De jure belli ac pacis (1625). A lei das nações, afirmava o eminente jurista, provia o conquistador de direitos absolutos e ilimitados sobre os conquistados, incluindo o direito a matá-los ou escravizá-los, desde que em guerra pelos seus territórios, bem como a sequestrar ou destruir quaisquer propriedades, públicas ou privadas, durante suas empresas. Las Casas, por sua vez, recusava moralmente essa nova acepção do termo. Sua recusa influenciou a Leyenda Negra, que, por sua vez, reforçou o uso dos termos Conquista e conquistadores, associados à violência cometida pelos espanhóis no Novo Mundo. Felipe II estava ciente disso: a Espanha deixava de ser exemplo a ser seguido e tornava-se a nêmese preferida dos protestantes, que tanto ameaçavam seus territórios além-mar e o incomodavam no Velho Mundo. O monarca decidiu, pois, controlar a memória produzida sobre a expansão de seu extenso império. Ao proibir o termo Conquista e ao propor o uso do termo Pacificação (que, como vimos, já vinha sendo usado conjuntamente ao de Conquista desde os tempos de Colombo), Felipe II pretendeu mudar a forma como a Espanha era vista e determinou como seus súditos indígenas deveriam ser tratados. Nisto, o monarca foi parcialmente bem-sucedido, uma vez que muitas guerras continuaram a ser travadas sem que pudessem ser enquadradas na categoria de “Guerras justas”, mas o termo Pacificação passou a ser cada vez mais usado no século XVII e depois disso. A palavra Conquista passou a definir o processo ocorrido no Quinhentos e foi associada à lógica da conquista espiritual. No caso da expansão portuguesa, não observamos a difusão de uma leyenda negra que possa ser equiparada ao processo de difamação As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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de que a Espanha foi alvo. Nem a Coroa e nem mesmo os juristas lusos demonstraram a preocupação de distinguir juridicamente os temos Conquista e Pacificação ou de conferir a eles um sentido esvaziado da violência que caracterizou a ação na África, no Oriente e na América67. Os estudos de Paulo Knauss de Mendonça mostram-nos como, no Novo Mundo, o termo Pacificação esteve inextricavelmente associado às expedições da conquista portuguesa desde seu início. Mas, num aparente paradoxo, pois a conquista foi um empreendimento estatal, que não prescindiu da guerra e da violência, as imagens construídas sobre a presença lusa na América giraram em tono da ideia de Pacificação, “justificada pelas autoridades portuguesas por um discurso embasado na religiosidade e legitimado pela participação jesuíta” (Mendonça, 1991, p. 15). Tal discurso estava assentado em dois elementos centrais: a idealização dos índios como “alevantados” e que, por isso, deveriam ser pacificados, pois eram gente de “pouco entendimento”, e a igualmente idealizada presença e atuação de corsários franceses no litoral da capitania do Rio de Janeiro, que implicaram que a terra tivesse que ser pacificada para que a presença indesejada desses intrusos fosse evitada ou eliminada.

Conquistadores de outras nações: espalhando a ideia de Conquista Além de Portugal e Espanha, outras monarquias buscaram o caminho para o Novo mundo e para as Índias. Em 1497, o navegador Giovanni Caboto, viajando a mando da Inglaterra, tentou em vão achar uma passagem para o Oriente, navegando para o Ocidente, buscando contornar a recém-descoberta América. Nessa viagem, Caboto explorou alguns territórios da América do Norte, mas não fixou colônias. Em 1543, foi o francês Jacques Cartier que, tentando achar a mesma passagem, tomou posse, em nome do rei da França, de terras nos atuais Canadá e Estados Unidos. 67  Ana Barradas analisa textos de cronistas e de historiadores portugueses dos séculos XV ao XX, que evidenciam tanto a violência intrínseca à conquista e à mentalidade ibérica medieval, quanto o que denominou de sua “sistemática dissimulação”, presente e perpetuada ao longo de cinco séculos de colonialismo português.

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O paradigma estabelecido por Cortés e Pizarro deixara de ser espanhol. A fama que ambos alcançaram cruzou fronteiras e as nações que demoraram mais para reunirem condições de armarem-se para a conquista do Novo Mundo passaram a ficar mais atentas aos feitos espanhóis. Tanto para emular sua glória, quanto para tentar superar seus defeitos e vícios, tão propalados pela Leyenda Negra. Vale, contudo, ressaltar que esse paradigma estabelecido com a Conquista do México e do Peru pode falsamente nos enganar também. A maior parte das tentativas de Conquista do Novo Mundo redundou em fracasso, em decorrência da morte por doenças, frio, fome e dos ataques indígenas. Quando lemos os documentos do século XVI, fica evidente a vontade de imitar Cortés e Pizarro. Na prática, no entanto, a muitos era reservada uma cova rasa ou o corpo insepulto no Novo Mundo. Vejamos um exemplo dentre tantos que poderíamos apontar. Os Welser, poderosa família de banqueiros alemães, conseguiram, via Conselho de Indias, uma enorme concessão de terras na chamada “Pequena Veneza”, em 1528. A partir de um enclave comercial no centro nevrálgico do Novo Mundo, Santo Domingo, os Welser ganharam o direito de explorar minas de ouro e prata, comerciar escravos e povoar e fortificar terras e ilhas. O empreendimento na Venezuela e em Santo Domingo foi, finaceiramente, um fracasso, seguido de outros. Para a “Pequena Veneza”, os alemães enviaram governadores autorizados pelos espanhois, alguns mineiros e uns poucos soldados de origem germânica. A imensa maioria encontrou a morte deste lado do Atlântico, perseguindo quimeras, terras da Canela e Eldorados. Desde a chegada do primeiro governador, Ambrosius Ehringer, em 1529, houve contínua oposição aos planos de sua empresa por parte do governo espanhol em Santo Domingo, em grande medida, devido à nacionalidade distinta. Para castelhanos, que já viam com certo desdém outros ibéricos, a determinação de que teriam que receber bem e trabalhar lado a lado, em pé de igualdade de direitos, com súditos não espanhóis de Carlos V foi intolerável. Em meio ao aumento da concorrência e dos riscos, os custos do empreendimento tornaram-se exorbitantes e as possiblidades de lucro cada vez menores, selando o duplo destino de muitos dos europeus no Novo Mundo nessa primeira metade do XVI: a morte ou a bancarrota, situações muito distantes do sucesso (ainda que relativo e a longo prazo) de um Cortés ou de um Pizarro. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Até 1556, ano em que os Welser perderam todos os seus direitos sobre a Venezuela (que passou à Coroa), os emissários dos alemães se envolveram em diatribes e problemas com todas as instâncias de poder espanholas e sempre foram acusados de serem maus governantes, de descumprirem as determinações que lhes eram dadas, de tratarem mal os índios e os vecinos, e até de venderem escravos “muito negros”. Mas uma decisão de 1556 isentou-os, em conjunto, de todas as acusações. Um de seus mais conhecidos capitães de conquista foi Nicolas Federman, que empreendeu duas expedições em busca de riquezas inauditas, uma delas se propunha a encontrar uma saída para o Mar do Sul e a outra, um terceito reino. Federman morreu na prisão no Velho Mundo, mas perdeu muitos conterrâneos e aliados no Novo Mundo. Antes de morrer, escreveu um relato sobre suas intenções: “Menester es que haya intervenido la omnipotencia divina para que semejantes multitudes hayan sido derrotadas, no diré que por mí y los míos, porque no escribo para glorificarme, sino por Hernán Cortés en el Yucatán, por Pedrarias Dávila en Nicaragua y por Fernando Colón que fué el primero que descubrió los indios de Santo Domingo y varios otros gobernadores y Capitanes de S. M. en las Indias, cosas apenas creíbles ni imaginables. Los que quieran saberlas no tienen más que leer lo que Jerónimo Seitz y otros han traducido de la lengua española; se encontrarán allí las relaciones enviadas por cada Capitán, dando cuenta de su conducta y no solamente se verá confirmado lo que he dicho sino también cosas más extraordinarias” (Federmann, 1916, pp. 78-79)

Como o relato feito por este alemão nos deixa ver, tornara-se imperioso seguir os feitos incríveis de homens daquele tempo e não mais os da Antiguidade. A Modernidade havia trazido o pináculo dos tempos, expressão de um cronista chamado Pedro Martir de Anglería, italiano na corte dos Trastâmaras. O exemplo era a Espanha. Seus prepostos, homens como Cortés e Pizarro. As traduções dos relatos sobre o Novo Mundo tornavam-se best sellers quase imediatos e a fama daqueles homens estabelecia o modelo a ser seguido. Philipp von Hutten, um dos poderosos alemães a pisar na Venezuela, na década no final da década de 1530, nos relata – em tempo real –, em cartas dirigidas a seus parentes, como se deu a Conquista do Peru, os desenlaces entre Pizarro

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e Almagro e a descoberta das Sete Cidades por Cortés, “o primeiro conquistador e descobridor do país, a quem sua majestade, o rei, distinguiu com o título de Marquês com mais de 50 mil súditos” (1988, p. 443). Já um jovem soldado alemão, que veio à Venezuela por mando dos Welser, Tito Neukomm, em carta dirigida a seu irmão, em 6 de setembro de 1535, desde Coro, escreveu: “Creemos todos en la buena suerte - del viaje - y en las muchas riquezas y oro. Pues aquí ya sabíamos muy bien que la tierra adentro está llena de oro y solamente hay que arriesgarse a soportar las dificultades y los trabajos en cogerlo y buscarlo y en hacer guerra a los indios” (1988, p. 405). Ou seja, a crença na Conquista do Novo Mundo trazia consigo a certeza de enriquecimento, pois assim havia sido com os espanhóis que haviam tentado localizar suas riquezas. Meio século depois desses acontecimentos e a Conquista do Novo Mundo como feito ibérico (narrado como um punhado de homens excepcionais triunfando sobre povos inferiores e tomando-lhes inauditas riquezas) havia se tornado uma narrativa estabelecida. A palavra Conquista não mais designava tão somente a conquista de um reino, como no texto do Príncipe de Maquiavel, ou estava ligada à Reconquista. Associadas ao louvor dos feitos de Cortés e Pizarro (e poucos outros) ou à detração da violência espanhola a partir de uma suposta maior racionalidade protestante (bem ao gosto da Leyenda Negra), as Conquistas americanas haviam definido um novo paradigma. Em tempos modernos, os primeiros registros de viagens ao norte do continente mostram uma série de expedições em busca da tão desejada passagem norte para as Índias. John Cabot (Giovanni Caboto, 1497, navegando sob a permissão de Henrique VII Tudor), Giovanni de Verrazano (1524, a serviço da coroa francesa), Jacques Cartier (1534, também pela França): todos exploraram parte da costa norte-americana esperando encontrar uma passagem para o Oriente. Apesar de não terem achado o que procuravam, suas explorações no norte do continente despertaram o interesse pela região. Nenhuma dessas expedições encontrou cidades míticas, tampouco grandes civilizações como as da Mesoamérica ou as que se encontravam mais ao sul do continente. Logo, sem encontrar os interesses imediatos que motivaram as incursões de conquista, e debatendo-se com resistências indígenas, os minúsculos assentamentos que delas surgiram foram temporários e tiveram pouco impacto do ponto de vista da ocupação efetiva do território. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Mais ao norte, na costa leste, franceses e holandeses exploraram ilhas e contornaram golfos, buscando saídas para o Oriente ou riquezas fáceis. Acabaram fundando ricas colônias de pesca na região chamada de Newfoundland. Essas primeiras comunidades de pescadores e comerciantes mantiveram uma relação bastante intensa de trocas com os indígenas da área. Forneciam roupas e utensílios de metal, como panelas e facas, em troca de peles de castor. Entre os entrepostos que mais obtiveram sucesso com esse modelo de trocas estava Quebec (fundada em 1608) e Montreal (1642), controlados por franceses, Fort Christina (1638), colônia sueca no rio Delaware, e as fortificações holandesas de Fort Orange e Nova Amsterdã (ambas de 1642) ao longo do rio Hudson. Em resumo, essas primeiras viagens europeias para o norte da Nova Espanha não resultaram em uma presença significativa de europeus fixados no Novo Mundo. Tampouco, acharam tesouros sonhados no meio do continente. Na costa leste, houve apenas a fixação de pequenas colônias que funcionavam como entrepostos comerciais. Na Inglaterra da rainha Elizabeth, o escritor Richard Hakluyt, muito influente na corte e secretário de Estado de dois Monarcas (a última Tudor e o primeiro Stuart), escreveu um panfleto que ganhou enorme repercussão: “As ‘razões’ para um inglês conquistar a América” (An Englishman ‘Reasons’ for the Conquest of America), em 1582. Nele, ancorando-se na experiência quase centenária de conquistas ibéricas no Novo Mundo, Hakluyt mostrava-se um entusiasta do modelo espanhol. Ao longo de sua vida, traduziu para o inglês e publicou muitos textos sobre as Conquistas ibéricas, sempre alertando seus leitores que deveriam emular seus predecessores, corrigindo seus erros. Em carta/ proêmio ao seu benfeitor, Philip Sidney, a quem dedicou seu primeiro livro, ele deixa claro que: “I marvel not a little (Right Worshipful) that since the first discovery of America which is now full fourscore-and-ten years, after so great conquest and plantings of the Spaniards and Portugals there, that we of England could never have the grace to set fast footing in such fertile and temperate places as are left as yet unpossessed by them. But, again, when I consider that there is a time for all men, and see the Portugals’ time to be out of date, and that the nakedness of the Spaniards and their long-hidden secrets are now at length espied, whereby

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they went about to delude the world, I conceive great hope that the time approacheth and now is that we of England may share and part stakes (if we will ourselves) both with the Spaniard and the Portugal in part of America and other regions as yet undiscovered” (Hakluyt, 1850 [1582], p. 8)

A Inglaterra tinha, pois, na Espanha não apenas uma rival, mas também um modelo: rival no comércio marítimo; modelo para a conquista (conquest) e ocupação (plantings) do território americano. Pesando no estabelecimento de uma base que servisse tanto para a fundação de um assentamento inglês, quanto para armar um ponto de apoio para ataques à Nova Espanha, a rainha Elizabeth I autorizou as viagens de Humphrey Gilbert e de seu meio-irmão mais novo, Walther Raleigh, para o Novo Mundo. O primeiro faleceu na tentativa de fundar uma colônia em Newfoundland, em 1583. O segundo acabou financiando a ida de colonos ingleses ao território que ele nomeou como Virgínia, em homenagem a sua soberana, conhecida como a “Rainha Virgem”. Mas Raleigh nunca pisou na América do Norte, no entanto, cruzou o Atlântico duas vezes em busca de El Dorado, em viagens para a região do Orinoco, nos anos de 1595 e 1617. Em 1584, uma expedição composta apenas por homens, em sua maioria, veteranos da guerra na Irlanda, rumou para uma ilha, na costa da atual Carolina do Norte, local em que ocorreram intensos combates entre os homens de Raleigh e os nativos. Raleigh, por exemplo, em seu livro sobre as Guianas, escreveu, reforçando a ideia de emular os ibéricos na Conquista: “I shall willingly spend my life therein. And if any else shall be enabled thereunto, and conquer the same, I assure him thus much; he shall perform more than ever was done in Mexico by Cortes, or in Peru by Pizarro, whereof the one conquered the empire of Mutezuma, the other of Guascar and Atabalipa. And whatsoever prince shall possess it, that prince shall be lord of more gold, and of a more beautiful empire, and of more cities and people, than either the king of Spain or the Great Turk” (Raleigh, 2005 [1596], p. 32)

Levando em conta essas primeiras e malfadadas expedições inglesas, mas também sobre as mais bem aventuradas expedições de corsários, como Francis Drake, Hakluyt, em 1585, estabeleceu os objetivos As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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da colonização da Virginia: “to plant Christian religion, to traffic, to conqueror” (Apud Pagden, 1995, p. 36.) A esta altura ele era diretor da Virginia Company e conselheiro da East India Company, e como se pode constatar, ele e outros colonialistas ingleses do fim do XVI conciliavam a missão evangelizadora com comércio e trocas ao explicitarem seu conceito de Conquista. Para eles, a conquista promoveria a ordem em um cenário de caos pré-existente no Novo Mundo, agregando uma Nova Jerusalém à tópica originalmente ibérica, força organizadora e geradora, através da qual gerações inteiras de puritanos iriam definir suas relações com o Novo Mundo (Winter, 2011, p. 2). Embora os ingleses recém-chegados à região tenham passado fome, os relatórios enviados a Sir Walther e aos membros da Companhia da Virgínia descreveram o local como ideal para o estabelecimento de uma colônia. Em razão disso, em 1587, foram recrutados e enviados cerca de 120 colonos, entre homens e mulheres, para o local. A nova expedição, chefiada por John White, artista, amigo pessoal de Raleigh e veterano da primeira tentativa de colonização, não encontrou, à exceção de um esqueleto, nenhum dos homens que ali deveriam estar. Ainda assim, as 114 pessoas que sobreviveram à travessia do oceano fixaram-se em Roanoke. Logo, se tornaram 115, com o nascimento da neta de White, Virgínia Dare, o primeiro bebê inglês nascido na América de que se tem notícia. White voltou para a Inglaterra, com a promessa de retornar com mais suprimentos e colonos, enquanto os habitantes de Roanoke tentavam estabelecer parcerias com os índios da região e das ilhas vizinhas. Mas com a deflagração da guerra entre Espanha e Inglaterra, White só conseguiu voltar três anos depois. Quando seu navio com suprimentos atracou no porto de Roanoke, não havia mais ninguém na ilha. Nem sinal das casas, todas retiradas de seu local de origem. Também não havia sinal de luta ou guerra. Não se encontraram túmulos ou corpos. Os colonos desapareceram, deixando apenas o nome de uma ilha vizinha escrito em uma árvore: Croatoan. Há várias hipóteses para esse desaparecimento; algumas falam em uma possível integração do grupo de colonos a outros grupos indígenas da região (Kupperman, 1993). O fracasso da empresa de Raleigh na Virgínia refreou outras iniciativas inglesas nas duas décadas seguintes. A pirataria rendia mais lucros e requeria menos investimento. Foi apenas em 1606 que se re154 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

novou a tentativa de estabelecer colônias britânicas no Novo Mundo, mais uma vez tendo a experiência espanhola como modelo. Autoridades e empresários ingleses tinham a sua frente um século de tentativas, erros e acertos coloniais ibéricos para examinar, o que os levou a modificar o modelo original de forma substantiva. Diferentemente do que a Espanha e Portugal (e também França e Holanda) haviam feito até aquele momento, a Inglaterra passou a enviar homens e mulheres para que fundassem colônias (to plant colonies, como aparece nos textos de língua inglesa) que deveriam se basear em modelos agrários. Apenas no século XVII, cerca de 200 mil colonos chegaram à América seguindo esse novo modelo, que buscava, finalmente, se afastar do modelo ibérico de Conquista.

Roteiro bibliográfico Algo da extensa produção bibliográfica sobre as Conquistas foi abordada ao longo do texto. Ainda assim, consideramos importante retomar e discutir alguns aspectos sobre as conquistas ibéricas. Do ponto de vista da historiografia mais contemporânea, a primeira grande referência é o norte-americano William H. Prescott, autor de dois livros centrais sobre o assunto: History of the Conquest of Mexico (1843) e History of the Conquest of Peru (1847). O sucesso dos livros de Prescott sobre a Conquista do México e do Peru foi enorme. Seus livros se tornaram best-sellers dos dois lados do Atlântico, sendo traduzidos para várias línguas. Seu trabalho acabou por estabelecer o que Richard Kagan chamou de “o Paradigma Prescott”: por um lado, há a figura do bom selvagem, dócil, repleto de qualidades, que é, ao mesmo tempo, estranho e inferior ao europeu; por outro, existe o discurso da razão, da civilização e da urbanização como elementos julgadores e hierarquizadores. Nesse sentido, Prescott valoriza o pensamento espanhol, que seria mais racional e superior ao dos astecas e incas, crentes em uma superstição mágica. Baseando-se majoritariamente em relatos feitos por Cortés para falar da Conquista do México, por exemplo, ele relatou como um pequeno grupo de homens (superiores) conquistou um sem número de indígenas (inferiores) porque não havia outra forma de ser: a civilização As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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sempre triunfa sobre formas menos evoluídas. A mesma fórmula (mas sem a valorização de Cortés) foi aplicada à narrativa sobre a Conquista do Peru. O historiador argentino Tulio A. Donghi, com propriedade, sintetizou este tipo de pensamento historiográfico: “Esboça-se, assim, um modo de abordar o passado hispano-americano que tem muito em comum com aquele que, paralelamente, domina a historiografia do antigo oriente mediterrâneo: a etnia vencida e conquistada perde interesse a partir do próprio momento de sua derrota e conquista; se a história do passado anterior a 1492 é dominada pelas enigmáticas civilizações pelas quais foi plasmada, o que veio depois tem como protagonistas os conquistadores” (1997, p. 165) Em 1959, um livro lançado no México tornou-se um ponto de virada na abordagem historiográfica: A Visão dos Vencidos. Resgatando fontes astecas pós-Conquista, o antropólogo e historiador Miguel León-Portilla apresenta uma “História vista de baixo”, na qual se narra a Conquista do México, não mais a partir de documentos espanhóis, mas de, alguma forma, sem romper com o paradigma de vencedores e vencidos. A grande inovação da “História dos Vencidos” é por em relevo a violência da Conquista e o desmonte do mundo indígena, dando voz a quem anteriormente não falava: os indígenas. Nathan Wachtel (1977) e John Hemming (1972) são destaques dessa tendência historiográfica, abordando de forma similar as conquistas de outras regiões da América. Embora partissem de pressupostos diferentes, os autores chegaram a conclusões similares, na medida em que destacavam o “choque de culturas” entre europeus e indígenas e como isso teria levado à perda da “condição original” dos nativos. Outra visão muito inovadora foi dada por Tzvetan Todorov, em seu livro La Conquetê de L’Amerique: La Question de L’Autre, de 1982. O linguista, que não é um especialista no assunto, afirma que seu propósito era o de fazer da Conquista uma “história exemplar” do encontro de culturas em todas as épocas. A partir dessa premissa, analisa textos de Colombo, Cortés e Bernal Diaz del Castillo, Las Casas e Diego Durán. Ao discorrer sobre a conquista do México, Todorov pensa os signos e sua relação hermenêutica com as personagens tratadas. Para ele, os astecas davam muita importância aos seus calendários cíclicos, bem como ao fatalismo presente nas mensagens de seus deuses, que acessavam por meio de presságios. Ao tratar de Cortés, Todorov o apresenta como muito 156 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

hábil em sua leitura do mundo indígena, valendo-se, para demonstrá-lo, de intérpretes como Jerónimo de Aguilar e Malinche. Logo, a vitória dos espanhóis foi, antes de tudo, uma vitória que resultou da capacidade de leitura dos signos do outro. Sua visão influenciou muita gente, com destaque para o livro que Stephen Greenblatt escreveu sobre a América, Possessões maravilhosas: o deslumbramento do Novo Mundo (1996). Nos anos 1980 em diante, surgiram várias correntes que, questionando o “Paradigma Prescott”, puseram em xeque a “História dos vencidos”. Nos Estados Unidos, toda uma escola de pensamento surgiu a partir dos textos de James Lockhart, que buscou analisar fontes indígenas e espanholas para entender o mundo dos indígenas antes e pós-Conquista. Lockhart (e seus alunos depois dele), conciliando História, Linguística e Antropologia, sugeriu que ambos os lados da experiência colonial, o indígena e o europeu, acreditaram que a comunicação entre eles poderia existir a partir de experiências e sentidos comuns. Para exemplificar: ambos os lados conheciam a morte e supuseram que falar dela era a mesma coisa para espanhóis e indígenas. Mas não: os astecas não lidavam de forma negativa com a morte como os cristãos espanhóis o faziam. Isso produziu uma série de equívocos de ambos os lados, sem que tenha sido possível haver verdadeiramente qualquer compreensão das culturas postas em contato. Mais recentemente, historiadores, como o mexicano Federico Navarrete Liñares, têm defendido que ver os indígenas como vencidos é um reducionismo imenso. Para atestar sua visão, Navarrete argumenta que se o exército que destruiu México-Tenochtitlán tinha apenas mil guerreiros europeus (e alguns africanos), contava com dezenas de milhares de indígenas de cidades inimigas dos astecas. Sob esta perspectiva, os únicos índios derrotados foram os astecas e seus vizinhos. Cem anos depois, indígenas nobres, como Chimalpain e Alva Ixtlilxochitl, escreveram a história de seus povos (dos tempos pré-hispânicos até seu presente) sem dar grande atenção à destruição dos astecas. Isto por que não se sentiam derrotados ou vencidos; estavam do lado dos vencedores, reclamando direitos à Coroa espanhola como bons vassalos que eram. Em todas as empresas de conquista, a fórmula que aliava conquistadores europeus a indígenas e a utilização estratégica das alianças nas guerras locais sempre foi seguida. Europeus que romperam com essa lógica encontraram morte certa. Os que seguiram a estratégia da reciAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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procidade e do apoio mútuo tiveram alguma chance de triunfo, mesmo que, é importante lembrar, para cada conquista bem-sucedida do ponto de vista militar, dezenas delas falharam. A chamada Nova Escola da Conquista é hoje representada por historiadores (que foram alunos ou dialogam estreitamente com a Nova Filologia de Lockhart) como Laura E. Matthew, Michel R. Oudijk e Matthew Restall. Este último escreveu um best-seller, fruto de suas aulas na Pensilvânia: Seven Myths of the Spanish Conquest. Dentre os mitos que este historiador pretende desmontar está, justamente, um dos pilares do paradigma Prescott: o da excepcionalidade de gênios militares como Cortés e Pizarro, que, com um “punhado de homens”, conquistaram a América. Ele, assim como muitos historiadores hoje em dia (e desde os anos 1970, pelo menos), dá enorme importância para as alianças com os indígenas e mostra os conquistadores como um grupo, em si, heterogêneo. Também resgata a importância das fontes espanholas, especialmente as probanzas de méritos, textos escritos como demonstrações de valor para o rei em esperança de benesses à altura do mérito que se procurava estabelecer. Outro dos mitos que Restall ataca tem a ver com a linha de pensamento inaugurada por Todorov, a da falha de comunicação entre índios e espanhóis. O historiador argumenta que as falhas não eram assim tão frequentes. Montezuma e Cortés, Pizarro e Atahualpa, podiam se entender muito bem por meio de seus intérpretes, assim como podiam cometer, reciprocamente, erros colossais de hermenêutica. Por fim, destacamos o trabalho Indian Conquistadors (2007), organizado por Matthew e Oudijk, que reúne diversos estudos de caso que evidenciam tanto o protagonismo indígena, quanto apontam para sua importância na Conquista, enterrando, de vez, o cerne do “Paradigma Prescott”. No caso do mundo português, em obra de 1992, o historiador da literatura brasileira Alfredo Bosi nos alertou para a etimologia do termo colonizar, tão mais presente em textos lusófonos sobre o século XVI, observando que as palavras “cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo [que] significou, na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo. (...) Colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar. (...) A colonização é um projeto totali158 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

zante cujas forças motrizes poderão sempre buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter os seus naturais”. De acordo com Bosi, “não por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de colonização, distinguem-se dois processos: o que se atém ao simples povoamento, o que o conduz à exploração do solo. Colo está em ambos: eu moro; eu cultivo”. Questionando-se sobre o que “a rigor (...) diferencia o habitar e o cultivar do colonizar”, ele ressalta que “nem sempre, é verdade, o colonizador se verá a si mesmo como a um simples conquistador; então buscará passar aos descendentes a imagem do descobridor e do povoador, títulos a que, enquanto pioneiro, faria jus” (Bosi, 1992, pp. 11-15). Dez anos antes, no texto da Introdução de uma das obras clássicas sobre a temática, A expansão do Império Português (1415-1825),68 do historiador inglês Charles Boxer, o também historiador inglês J. B. Plumb escreveu: “O Império Português é um dos maiores enigmas da história. (...) os pioneiros portugueses arrancavam os negros nus de suas canoas, trocavam cavalos por jovens núbias e traziam-nos para o mercado de escravos de Lisboa, onde encontravam compradores ávidos. Esta combinação de cobiça e devoção tem sido sempre considerada a força motora principal não apenas dos Portugueses, mas também dos Espanhóis – e, mesmo, em menor escala, dos Ingleses, Franceses e Holandeses; de fato, a sua repetição domesticou de tal forma o conceito que se tornou fácil subestimar a ferocidade, a selvajaria, a força compulsiva que arrastaram estes homens impiedosos.” E acrescenta que, mais do que evidências de heroísmo e superação, a expansão produziu “um assalto selvagem (...) aos deslumbrantes e ricos impérios orientais” sem que tenha conseguido perturbar a “consciência de nenhum capitão português”, pois, afinal, não se sentiam “envergonhados por contar histórias das suas pilhagens.” (Plumb apud Boxer, 1981). Plumb arriscou afirmar que poucos historiadores europeus seriam “capazes de enfrentar as consequências do bárbaro ataque ocidental à Índia e ao Oriente, ataque esse que destruiu as redes comerciais 68  BOXER, Charles. A expansão do Império Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981. Recomenda-se ler o texto da Introdução da edição da obra de 2011, escrita por Diogo Ramada Curto, no qual ele procura relacionar a obra de Boxer com o correspondente contexto político de sua 1ª edição, “procurando perceber de que forma a sua erudição e análises históricas foram influenciadas por escolhas políticas, num quadro fortemente marcado pela guerra colonial”. CURTO In: BOXER, Charles. A expansão do Império Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 2011.

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e culturais, que dividiu reinos, desfez políticas e arrastou a China e o Japão para um isolamento hostil”. À consciência quanto às implicações de uma abordagem mais crítica em relação à expansão marítima portuguesa se soma a constatação de que alguns “apologistas pensaram ter descoberto [no colonialismo português] características mais liberais do que as dos outros grandes impérios mais florescentes”, uma vez que “não alimentava preconceitos raciais”, como atestavam a “mistura de raças no Brasil, os seminaristas de cor em Goa, a felicidade doméstica dos oficiais portugueses em cio, em zonas do interior de Moçambique e de Angola” (Plumb apud Boxer, 1981). Esta questão em torno das especificidades da expansão portuguesa assumiu outros contornos no clássico ensaio Raízes do Brasil, escrito por Sérgio Buarque de Holanda, em 1936. Nele, o historiador paulista, no capítulo “O Semeador e o Ladrilhador”, buscava explicar as relações dicotômicas entre os modelos de colonização português e castelhano, vendo aquele com desacerto e improviso, e este com planejamento e razão; antagonismo e especificidade que não apenas se consagraram e se mantiveram inquestionáveis na produção historiográfica ao longo de várias décadas, como acabaram por reforçar a ideia de que não houve conquista na América portuguesa. Independentemente da aceitação dessa tese da “sistemática dissimulação” da violência intrínseca à expansão marítima pela historiografia, e a da postura crítica em relação à apologia de um colonialismo mais liberal, especificamente para o caso da América portuguesa impõe-se conhecer melhor o próprio vocabulário. No texto da introdução de Brasil: uma biografia, Heloísa Starling e Lilia Schwarcz afirmam que nossa breve história apresenta algumas “características persistentes (...) ao menos quando datada a partir da descoberta do Brasil –­ para alguns; para outros, o termo correto seria ‘invasão’ ­–, na data redonda de 1500. No primeiro capítulo da obra, constatamos o emprego do termo achamento na menção feita à necessidade que os portugueses sentiram de “garantir o achado e impedir os ataques estrangeiros”, mas também a manutenção de uma tradição historiográfica que atribui a designação de colonização – e não de conquista – ao período que se seguiu ao achamento: “Tinha-se que povoar e colonizar a terra, mas também encontrar algum tipo de estímulo econômico. (...) E é em 1502 que tem início a exploração mais sistemática do pau-brasil por colonizadores portugueses.” (Schwarcz; Starling, 2015, p. 31-32). 160 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Também a análise do chamado Antigo Regime português passou por grandes transformações, incidindo, consequentemente, sobre as percepções acerca do Império português e do assim denominado “Brasil colonial”. De acordo com Silvia H. Lara, “a ideia da existência de um poder ‘centralizado’ e ‘absoluto’ foi sendo substituída por uma abordagem que enfatizava as redes de poder existentes na Monarquia portuguesa do Antigo Regime”, aprofundando a perspectiva proposta inicialmente por António M. Hespanha sobre as relações de poder no mundo colonial. Além de Hespanha, historiadores como o já citado Charles R. Boxer, A.J. Russell-Wood e Francisco Bethencourt também questionaram o complexo colonial lusitano e as estruturas do Antigo Regime e relativizaram sua estrutura política absolutista, procurando demonstrar que “Portugal não devia mais ser visto isoladamente e, sim, inserido em um complexo ultramarino, marcado por uma teia de relações sociais que o dotavam de amplos tentáculos imperiais que precisavam ser harmonizados”. Nas décadas seguintes, as reflexões propostas por estes historiadores na década de 1970 seriam aprofundadas nos trabalhos de Stuart Schwartz, João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Júnia Furtado e Maria de Fátima Gouvêa, que “descortinaram uma nova América portuguesa: com uma economia multifacetada, uma base política marcada pela negociação, com uma sociedade ampla, complexa e desenhada por características lusitanas adaptadas” (Caetano, 2009, pp. 77-79). Se, em 1936 e em 1958, o historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda investiu na explicitação de uma distinção entre os modelos de expansão adotados por portugueses e espanhóis, recorrendo às metáforas do semeador e do ladrilhador e às especificidades das leituras e aplicações que fizeram dos mitos edênicos, em 1969 o historiador inglês Charles Boxer desencadeou uma reflexão sobre as propaladas características mais liberais do colonialismo português em relação às de outros grandes impérios, que se ampliou significativamente nas décadas seguintes, como atestam os trabalhos de historiadores como António Manuel Hespanha, A.J. Russell-Wood, Stuart Schwartz, João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. Seus trabalhos deixam evidente que, mais do que discutir [e eventualmente encerrar] a questão – é possível falar em conquista na América portuguesa? –, impõe-se descortinar uma nova América portuguesa, à luz de uma nova forma de ler a dinâmica imperial portuguesa. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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O termo descobrimento foi amplamente aceito e utilizado indistintamente por historiadores brasileiros e portugueses até os anos 1990, quando, em função das discussões sobre o 5º Centenário da Descoberta da América por Cristóvão Colombo, passou-se a questionar “frontalmente a ideia do descobrimento, seja o espanhol de 1492, seja o português de 1500, expressão considerada, no mínimo demasiado eurocêntrica”. De acordo com o historiador Ronaldo Vainfas, “este constrangimento em usar a palavra descobrimento” pode ser observado até mesmo “entre os historiadores portugueses – apesar da tradição laudatória dos lusitanos em relação à sua epopeia marítima –, sendo comum falar-se em reconhecimento ou achamento do Brasil”. Já entre os historiadores brasileiros “de cariz nacionalista ou indianófilo, palavras como conquista ou genocídio contribuem para derrubar a ideia de descobrimento, independentemente da intenção ou do pioneirismo portugueses na viagem de 1500.” (Vainfas, 2000, pp. 182-184).

Extratos de documentos Bernal Diaz del Castillo, Historia verdadeira de la conquista de Nueva España. Cap. LVIII. Pues me he olvidado de escribir el contento que recibimos de ver viva a nuestra doña Marina, y a doña Luisa, la hija de Xicotenga, que las escaparon en los puentes unos tlascaltecas, y también una mujer que se decía María de Estrada, que no teníamos otra mujer de Castilla en Méjico sino aquélla. Quedaron muertas las más de nuestras naborías que nos habían dado en Tlascala y en la misma ciudad de Méjico. Llegamos aquel día a unas estancias y caserías de un pueblo grande que se dice Gualtitán. Desde allí fuimos por unas caserías y poblezuelos, y siempre los mejicanos siguién donos. Otro día muy de mañana comenzamos a caminar con el concierto que de antes íbamos, y aun mejor, y siempre la mitad de los de a caballo adelante. Poco más de una legua de allí, en un llano, ya que creíamos ir en salvo, vuelven nuestros corredores del campo que iban descubriendo y dicen que están los campos llenos de guerreros mejicanos aguardándonos. Allí reparamos un poco, y se dio orden cómo se había de entrar y salir los de a caballo a media rienda, y que no se parasen a alancearlos, 162 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

sino las lanzas por los rostros hasta romper sus escuadrones, y que todos los soldados, las estocadas que diésemos les pasásemos las entrañas, y que hiciésemos de manera que vengásemos muy bien nuestras muertes y heridas. Después de encomendarnos a Dios y a Santa María muy de corazón, invocando el nombre del señor Santiago, desde que vimos que nos comenzaban a cercar, de cinco en cinco de caballo rompieron por ellos, y todos nosotros juntamente. ¡Oh, qué cosa era de ver esta tan temerosa y rompida batalla, cómo andábamos tan revueltos con ellos, pie con pie, y qué cuchilladas y estocadas les dábamos, y con qué furia los perros peleaban, y qué herir y matar hacían en nosotros con sus lanzas y macanas y espadas de dos manos, y los de caballo, no dejaban de batallar muy como varones esforzados! Pues todos nosotros lo que no teníamos caballos, parece ser que a todos se nos ponía doblado esfuerzo, que aunque estábamos heridos y de refresco teníamos otras heridas, no curábamos de apretarlas por no pararnos a ello, que no había lugar, sino con grandes ánimos apechugábamos con ellos a darles de estocadas. Pues quiero decir cómo Cortés y los otros capitanes, cuáles andaban a una parte y a otra, aunque bien heridos, rompiendo escuadrones; y las palabras que Cortés decía a los que andábamos envueltos con ellos, que la estocada o cuchillada que diésemos fuese en señores señalados, porque todos traían grandes penachos de oro y ricas armas y divisas. Pues ver cómo nos esforzaba el valiente y animoso Sandoval, y decía:¡Ea, señores que hoy es el día que hemos de vencer! ¡Tened esperanza en Dios que saldremos de aquí vivos para algún buen fin!. Y quiso Dios que allegó Cortés, con los capitanes que andaban en su compañía, a una parte donde andaba con su gran escuadrón el capitán general de los mejicanos, con su bandera tendida, con ricas armas de oro y grandes penachos de argentería. Cuando le vio Cortés, con otros muchos mejicanos que eran principales, que todos traían grandes penachos, dijo a los demás capitanes:¡Ea, señores, rompamos por ello s y no quede ninguno de ellos sin herida!. Y encomendándose a Dios, arremetió Cortés con otros caballeros. Cortés dio un encuentro con el caballo al capitán mejicano, que le hizo abatir su bandera, y los demás capitanes acabaron de romper el escuadrón, que eran muchos indios, y quien siguió al capitán que traía la bandera, que aun no había caído del encuentro que Cortés le dio, fue As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Juan de Salamanca, que andaba con Cortés con una buena yegua overa, que le dio una lanzada, le quitó el rico penacho que traía, y se lo dio a Cortés, mas de allí a cosa de tres años Su Majestad se lo dio por armas a Salamanca, y lo tienen sus descendientes en sus reposteros. Hernando Ojea (O.P.). Historia del glorioso apostol Santiago, patron de España, de su venida a ella y de las grandezas de su Yglesia y Orden militar; por Luis Sanchez, 1615. Pp.6-8. El año mil y quinientos y diez y nueve, aviendo llegado con una pequeña flota a la tierra firme desta Nueva España, aquel prodigio de fortaleza y prudencia militar Fernando Cortes, flor de los Capitanes del mundo, y singular gloria de nuestra España, y saltando en tierra con quinientos Españoles en el río de Tabasco junto al pueblo de Titla; topose con quarenta mil Indios que salieron al encuentro. Y llamando en su favor al glorioso Apostol Santigao, peleando con ellos en rigurosa batalla, los venció y mató a muchos dellos. Porque el Apostol se mostró visiblemente en un grande y poderoso cavallo blanco, armado de todas armas, como otras vezes solia hazar, en favor de los Españoles, y contra los Indios. De la misma manera se les mostró otras muchas vezes en la conquista de México, y de otros lugares desta Nueva España, en los mayores conflictos, de que siempre salieron vencedores.

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Capítulo 3 Fama, Fé e Fortuna: o tripé da conquista Maria Cristina Bohn Martins Leandro Karnal

I Um leitor contemporâneo costuma entender que toda ação é plausível dentro de um quadro de interesse material-financeiro. Do desvendamento das lógicas de projetos políticos, sempre indicamos quanto cada envolvido espera obter. A pergunta clássica com a qual historiadores romanos perguntavam o que cada um via de útil em cada facção (Cui bono? A quem beneficia?) é lida hoje, em geral, como um inventário de lucro material. A transição do período medieval para o chamado mundo moderno sobrepôs, em camadas complexas, valores diversos. Conquistar o Novo mundo é feito, por exemplo, porque há fome de ouro. Porém, ter o nome associado a grandes feitos e inscrever sua biografia em forma épica era, também, um impulso forte. Por fim, estes contraditórios e metalistas, violentos e genocidas: os conquistadores também acreditavam numa vida após esta, num Deus que presidia a tudo e no impulso evangelizador. Quando usamos a expressão Fama, Fé e Fortuna (God, Gold and Glory na tradição anglo-saxã) queremos trazer o fato importante da sobreposição , imbricamento e caráter complementar deste tripé. Buscar Deus e o ouro não eram inimigos nesta chave de leitura. Colombo pensou, pelo menos retoricamente, que o ouro do Novo Mundo poderia libertar Jerusalém. Cortés enviou ouro que Carlos V utilizou contra os protestantes no Sacro Império. Este é o amálgama o que o século XXI apresenta mais dificuldade em entender. Buscar a Deus, construir seu Reino neste mundo, catequizar, matar inimigos, estabelecer Inquisição, ganhar fama e obter uma encomienda e salvar sua alma: a maioria dos espanhóis não viu, nestes atos, fatos excludentes. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Este texto trata do esforço institucional de organizar a Igreja e o tecido complexo das suas relações com o Estado Ibérico no período colonial. O campo é vasto, mas é fundamental. Papado, ordens religiosas, Estado Ibérico, conquistadores , colonos e indígenas: atores variados de uma trama fascinante, violenta e fundamental para entender a América.

II Uma série de bulas papais69 subsequentes à primeira viagem de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo ajudou a delinear o interesse de Roma quanto aos problemas de cunho humano e religioso das populações conquistadas pelos reinos ibéricos. E, paralelamente, definiram um conjunto de temas que seriam muito caros para várias gerações de historiadores. Em boa medida estas questões giram em torno do esforço da igreja e da monarquia em organizar a vida religiosa nos seus territórios ultramarinos, particularmente no que dizia respeito a cristianização dos indígenas. Os estudos sobre tais questões costumam iniciar considerando a especial conjuntura vivenciada por Portugal e, especialmente, pela Espanha70, na chamada “Guerra de Reconquista”, que se conclui em 1492. Desde então, a relativa tolerância que havia sido estendida anteriormente aos súditos não cristãos vai ser substituída por agressivas práticas de assimilação71. O triunfo militar dos reis católicos foi acompanhado do despertar de energias que, segundo David Brading, atingiram virtualmente todos os aspectos da vida cristã da Península. Assim, um poderoso movimento de renovação religiosa iniciado ainda antes da Reforma, lançou as bases de uma “época heroica” da igreja espanhola que mostrou igual “tenacidad de propósito que sus análogos secu69  Entre as mais importantes estiveram: Inter coetera [1493] e Eximae devotionis [1493 e 1501] de responsabilidade de Alexandre VI, Universalis ecclesiae [1508] de Júlio II, e Exponi Nobis [1523] de Adriano VI. 70  Não devemos pensar nos reinos de Castela e Aragão sob as coroas de Isabel e Fernando, ou mesmo no “Império” de Carlos V e Felipe II, à luz de nossos atuais conceitos de “estado-nação”. Portanto, a utilização do termo “Espanha” é feita aqui ressalvando os problemas nele contidos. 71  Em 1492 os judeus espanhóis foram forçados a optar entre o batismo ou a expulsão dos domínios dos Reis Católicos; aos mouros coube, depois, a mesma sorte em Castela (1520) e Aragão (1526).

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lares mostraban ante los muros de Granada y las calzadas de México” (Brading, 1991, p. 35). Não apenas a religião era o código de inclusão por excelência do período, como “a fé era o único denominador comum dos súditos de Carlos V, que incluíam tanto os flamengos de Gand, como os bascos de Bilbao” (Gruzinski, 2001, p. 98) Tais circunstâncias tiveram efeitos muito evidentes sobre as sociedades ibéricas e singularizaram as práticas coloniais na Idade Moderna. O compromisso de expandir o cristianismo logo assumido pelos soberanos contribuiu para tornar a igreja a principal instituição das colônias espanholas na América, com uma autoridade que se estendia por vários campos, e que só encontrava equivalência na própria coroa. Com efeito, a conversão dos pagãos não era apenas uma questão de salvação de suas almas, e cristianismo era “mais um modo de vida do que um conjunto bem definido de crenças e rituais: englobava a educação, a moral, a arte, a sexualidade, as práticas alimentares, as relações de casamentos, ritmava a passagem do tempo e os momentos fundamentais da vida” (Gruzinski, 2001, p.98). Todavia, a cooperação estabelecida entre a monarquia e o papado “não constituiu um impulso único ou uniforme” (Karnal, 1997, p. 223) e coexistiu com contradições e conflitos que se manifestaram em mais de uma circunstância. Além disto, embora se costume pensar na igreja como uma instituição monolítica e homogênea, as diferenças entre seus membros foram evidentes em diversos aspectos ao longo do período colonial. Muitas vezes o clero regular e o diocesano defenderam posicionamentos diferentes, e mesmo entre as ordens havia rivalidade e disputa. Refletir sobre os campos de tensão que se apresentaram como parte da história da igreja e da evangelização das Índias de Castela é o objetivo central deste capítulo.

III O ano de 1492 marcou o triunfo na multicentenária luta peninsular contra os muçulmanos, e abriu uma nova fronteira ao projeto As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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expansão do cristianismo. Apesar disto, a igreja teve um papel secundário nas iniciativas de “descobrimento e conquista” do Novo Mundo, cabendo-lhe o papel de legitimadora dos direitos reivindicados por Portugal e Espanha em troca do compromisso com a evangelização nas terras descobertas, e do amparo e proteção à igreja sob o “Patronato real”. Em boa medida esta solução deve ser creditada a falta de meios dos quais dispunha Roma, ocupada, também, com o combate ao protestantismo, para organizar e propagar a fé nos territórios ultramarinos. A partir disto, a Santa Sé colocou-se amplamente sob a dependência do estado. De acordo com o “Patronato”, os monarcas podiam receber os dízimos, bem como indicar nomes para o preenchimento dos cargos eclesiásticos, nomeação esta que ficava sujeita a uma confirmação pelo papa. Cabia à coroa, entre outras coisas, pagar salários, determinar os limites das dioceses e paróquias, construir e dotar igrejas e mosteiros. Além da autoridade sobre a convocação de sínodos e aprovação de seus cânones por parte do estado, desde 1538 toda comunicação entre Roma e as Índias devia ser submetida ao “pase regio” , de forma que os decretos pontifícios referentes a igreja americana estavam sujeitos a um exame prévio de conteúdo. Para fundamentar esta autoridade, teólogos e juristas desenvolveram a teoria de que, pelas bulas de 1493, Alexandre VI convertera os Reis Católicos e seus sucessores em “delegados” do Papa, encarregados da evangelização e do bem estar espiritual dos domínios ultramarinos (Konetzke, 1993, p. 209). Sob tais circunstâncias, a subordinação da igreja ao poder estatal nas colônias americanas foi mais acentuada do que no reino. De acordo com Josep Barnadas, a política eclesiástica “tornou-se mais um aspecto da política colonial, coordenada desde 1524 pelo Conselho das Índias” (1997, p. 522). Este arranjo contudo, não foi isento de tensões e desacordos. Assim, enquanto Felipe II buscou, sem sucesso, em 1560, criar dois patriarcados com poderes soberanos na América (um no Peru e outro na Nova Espanha), a tentativa de Pio V de enviar núncios papais para as Índias (1568) também fracassou. Ao longo de todo o período colonial, com efeito, os esforços papais para obter uma intervenção maior ou mais direta sobre os problemas eclesiásticos do Novo Mundo, foram obstaculizados por ações da coroa. De outra parte, se os membros da igreja estavam 174 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

submetidos à autoridade pública72, eles desfrutavam de um elevado grau de influência, sendo ouvidos em várias instâncias de decisão do governo. A contenda entre as tendências chamadas “regalista” e “galicanista” percorreu os séculos da colonização espanhola, alcançando seu momento mais expressivo no XVIII, quando as reformas imperiais então levadas a efeito, pretenderam redefinir as relações entre igreja e estado. Os defensores do regalismo encontraram então, ao lado da alegada competência emanada das bulas, um novo fundamento teórico para justificar que o poder dos monarcas não estivesse submetido ao do papa: a doutrina da origem divina do poder dos reis. Assim sendo, como a missão de evangelizar os povos do Novo Mundo teria sido conferida por Deus aos reis espanhóis, “el patronazgo y el vicariato se convertien [...] en una regalia de la corona y ya no son derechos derivados de las concesiones pontifícias. El reino sacro se eleva por encima de la Iglesia”, e apenas em questões dogmáticas se reconhecia a competência do papado (KonetzkeE, 1993, p. 210). Para os Habsburgo espanhóis, os compromissos com a evangelização haviam sido parte essencial da construção do aparato simbólico de uma monarquia que se se definia como “católica”. Já o novo imaginário político do Setecentos buscava legitimação muito mais em ações terrenas e pragmáticas em prol da prosperidade do reino, do que em uma missão de tons transcendentais. Entretanto, muito antes que se abrisse esta frente de clivagem que atingiu especialmente a Companhia de Jesus, manifestações de dissenso entre as esferas temporal e espiritual já se manifestavam. Com efeito, foi de parte de religiosos que ecoaram as primeiras críticas ao colonialismo espanhol.

72  A monarquia velava, inclusive, pela disciplina de seus membros, compreendendo que um clero instruído e idôneo atendia melhor aos seus interesses. Por isto, disposições reais proibiam os curas de se dedicarem a atividades econômicas, estimulavam suas tarefas pastorais e a que dessem bons exemplos. A repressão, porém, era débil e as infrações constantes (Baudot, 1980, p. 169). Além de desenvolverem atividades econômicas diversas [comércio, criação de gado, administração de propriedades, posse minas ou oficinas têxteis], eram frequentes os “pecados públicos” dos padres, como manterem mulheres e filhos.

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IV Embora haja quem ressalte os objetivos eminentemente econômicos do empreendimento colonial na América (Konetzke, 1993), a compreensão das ações espanholas não pode prescindir da sua dimensão religiosa e espiritual (Baudot, 1992; Karnal, 1997). A manifestação de Cristóvão Colombo logo depois de seu primeiro encontro com aqueles que seriam, a partir de agora, “índios”, deixa clara uma sobreposição de interesses que acompanhou a história da igreja no Novo Mundo: “Ellos deven ser buenos servidores y de buen ingenio, que veo que muy presto dizen todo lo que les dezía. Y creo que ligeramente se harían cristianos, que me pareció que ninguna secta tenían”. (In: Varela, 1993, p. 63). Esta realidade foi colocada a nu muito precocemente, na mesma medida em que se definia o rol que seria ocupado pelas populações ameríndias na colônia. Celebrando um ofício religioso no quarto domingo do Advento, o último antes do natal de 1511, Antonio de Montesinos, membro do primeiro grupo da ordem de São Domingos a desembarcar na Hispaniola, acusou os “encomenderos” da mais importante colônia espanhola do Novo Mundo de estarem em “pecado mortal” pela crueldade e tirania do tratamento que dispensavam aos índios. Iniciava aí um movimento de censura que ganhou grande reverberação e contribuiu para firmar a “leyenda negra” do colonialismo espanhol. Esta crítica foi alimentada de forma especial pela atuação do também dominicano Bartolomeu de las Casas, que denunciou a brutalidade dos colonos espanhóis e os prejuízos daí decorrentes para o projeto de evangelização dos índios. No debate travado com o jurista Juan Ginés de Sepúlveda que, ao contrário, defendia ser lícito subjugar os índios pelas armas, Las Casas afirmou: “é pecado que merece a danação eterna ferir e matar inocentes para punir os culpados, pois isto é contrário à justiça” (Apud: Walerstein, 2007, p. 18).73 73  A célebre “Junta de Valladolid” (1550-1551) foi organizada pelo Conselho das Índias e promoveu um debate que é parte da extensa polêmica sobre os “justos títulos” de que dispunham os reis cristãos para submeterem os nativos americanos. Uma vez que a Conquista espanhola carecia das justificações tradicionais que haviam legitimado, por exemplo, a Guerra de Reconquista, seus apologistas buscaram fundamentá-la por meio doutrina da “inferioridade natural dos bárbaros”. Las Casas e os escolásticos da Universidade de Salamanca contrapuseram a isto o princípio do universalismo cristão. O dominicano se opôs tenazmente à escravização dos nati-

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Os escritos de Las Casas conheceram grande sucesso editorial ainda em seu tempo, especialmente a “Brevíssima Relação sobre a Destruição das Índias” (c. de 1542). Embora relativamente curta - provavelmente seu texto foi elaborado para ser lido aos membros da corte -, a Brevíssima efetua uma poderosa denúncia das agressões feitas aos nativos, inaugurando, de certa forma, não apenas a corrente crítica ao colonialismo hispânico que chega aos nossos dias, mas uma versão canônica do que se chama de “conquista da América”74. O frade acusava especialmente as arbitrariedades advindas do sistema de “encomiendas” e tentou influenciar a política espanhola e a igreja para a proteção dos índios contra esta forma de serviço compulsório. Na qualidade de bispo de Chiapas, Las Casas instruía que os confessores impusessem, como penitência aos “encomenderos”, a compensação aos índios pelo seu trabalho. Assim como as Leyes de Burgos (1512) estão ligadas às denúncias de dominicanos quanto aos abusos e maus tratos desferidos aos nativos da Hispaniola, a repercussão das denúncias de Las Casas contribuiu para que o imperador Carlos V decretasse, pelas Leyes Nuevas (1543), o fim de novas concessões. O instrumento jurídico logo sofreu fortíssimas restrições por parte dos beneficiários das “encomiendas”, e foi sendo redimensionado em elaborações posteriores. Em meio a este debate, pela Bula Sublimis Deis de 1537, Paulo III reconhecera a humanidade dos índios “porque capazes da fé cristã”, desautorizando assim as posições que negavam esta condição. No envos que era sustentada pela ideia de sua “barbárie”. Em uma postura absolutamente original na época, ele defendia que os índios eram portadores de humanidade, eram bons e racionais. Seus costumes condenáveis (como o canibalismo e os sacrifícios humanos, por exemplo) deveriam ser interpretados “culturalmente” e sua evangelização deveria ser levada a efeito por meio do convencimento, e nunca pela força. 74  Ao mesmo tempo em que fundamentou a “leyenda negra” do colonialismo espanhol, Las Casas de certa forma inaugurou um imaginário acerca da inocência e debilidade dos índios que repercutiu fortemente na própria escrita da história da América. O trabalho de Nathan Wachtel, particularmente a tese que apresentou em 1971 sob o título “Os vencidos. Os índios do Peru frente a conquista espanhola”, constitui-se em um dos títulos mais importantes da corrente que esposou esta noção sobre a fragilidade das sociedades nativas americanas, transferindo-a para as análises historiográficas. Aos autores identificados com ela, podemos conferir o mérito de introduzir uma perspectiva “ao revés” da conquista e colonização. Esta postura, ao discutir as reações e os efeitos do colonialismo sobre as sociedades nativas, buscava romper com o eurocentrismo da historiografia, bem como introduzir uma reflexão sobre o devir em sociedades tradicionalmente pensadas como “sem história”. Ao fazê-lo, contudo, reservou aos nativos o papel de vítimas inermes e desprovidas de protagonismo sobre este devir, o que viria a ser matéria de novas reflexões no final do século passado.

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tanto, no século seguinte o debate ético e jurídico em torno do serviço pessoal dos índios continuava em curso. O Padre Diego de Torres Bollo, primeiro provincial da Companhia de Jesus no Paraguai, por exemplo, também refletiu sobre o problema moral do trabalho servil. Nas “Instrucciones para la conciência de los encomenderos” ele sugeriu que as injustiças e danos cometidos aos índios prejudicavam que os colonos recebessem os benefícios espirituais do Ano Jubilar decretado pelo Papa Paulo V para o vice-reino do Peru (Coronado Aguillar, 2002, p. 231). A manifestação do provincial encontrou apoio nas Ordenanzas promulgadas em 1612 pelo ouvidor da Audiência de Charcas, D. Francisco de Alfaro. Depois de uma visita de 15 meses, Alfaro elaborou o texto a que os jesuítas se reportaram várias vezes para fundamentar suas restrições ao serviço pessoal dos índios. Além disto, sendo transformadas em lei por cédula real de 1618, estas ordenanças serviram de base para que os padres da Companhia restringissem o acesso de espanhóis, mestiços, negros e mulatos aos “pueblos” de índios que administravam na Província do Paraguai. Outra voz que denunciou a incongruência entre os interesses sobre o trabalho dos índios e as condições requeridas para conduzir sua catequese, foi a de Antonio Ruiz de Montoya. Sobre a faina dos nativos nos ervais de Maracaju, ele testemunhou que isto consumia “milhares de índios”, cujos corpos passavam a formar “montes de ossários bem grandes”. Muitos morriam “recostados nas suas cargas”; outros “despencavam com o peso por horríveis barrancos” para serem descobertos “lançando o fel pela boca”. Outros ainda se arriscavam em busca de comida, para serem “devorados naqueles bosques pelos tigres” (Montoya, 1985, p.41). Portanto, se a “conquista espiritual” era elemento da própria política colonial hispânica, e igreja e estado tinham necessidade do apoio que se prestavam mutuamente, também é certo que não deixaram de existir pontos de atrito entre os agentes responsáveis por elas. Uma das mais contundentes zonas de tensão como vimos, disse respeito ao dever de consciência assumido por alguns setores da organização eclesiástica em censurar os objetivos econômicos do empreendimento colonial quando eles colocavam em cheque seu compromisso pastoral. Contudo, as dissensões não marcaram apenas a relação entre os campos religioso e material, estando presentes mesmo na esfera da própria igreja e entre seus membros americanos. 178 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Realmente, ainda que se costume pensar na Igreja Católica como uma instituição homogênea e monolítica, a dualidade e, por vezes, a divisão entre o clero secular e o regular que a constituíam, expressou-se na América Colonial Espanhola com bastante clareza75. Mais ainda, por vezes estalaram rivalidades e confrontações entre as próprias ordens religiosas.

V Em 1493 um grupo de frades jerônimos chegou com Colombo à Hispaniola, onde se assentaram antes mesmo que se institucionalizasse uma organização eclesiástica no Novo Mundo. Os franciscanos também se estabeleceram cedo nas ilhas, cinco deles já em 1500; outros 12 embarcaram na frota do governador Nicolás de Ovando. Em 1505 foi criada a primeira província franciscana no Novo Mundo e, pouco depois, em 1524 chegaram ao México os doze primeiros missionários seráficos, dando início a um trabalho evangelizador que, apesar da existência prévia de religiosos na área, ganharia agora sistematicidade76. Conforme Robert Ricard, os irmãos menores puderam mover-se com grande liberdade. Não havendo quem lhes disputasse terreno, “el país se les abría a su paso” (1994, p. 146). Os dominicanos chegaram dois 75  O clero secular ou diocesano era composto pelos sacerdotes diretamente submetidos a autoridade dos bispos e que tinham as paróquias sob sua responsabilidade. Seu nome provém do fato de que não viviam no isolamento dos claustros, mas no “mundo exterior” (em latim, saeculom). Já na qualidade de “regulares” estão compreendidos os membros das Ordens religiosas e que, portanto, obedeciam a regras especiais (em latim, regula), bem como estavam sob a direta autoridade dos superiores de sua congregação. 76  A relevância do trabalho desenvolvido pelos franciscanos no México ajuda a compreender o grande número de obras dedicadas a estudá-lo. Embora seja impossível por isto mesmo, realizar aqui uma retrospectiva historiográfica sobre o tema, não há como deixar de citar dois autores cujas investigações tiveram influência decisiva sobre produções posteriores. A primeira delas, de Robert Ricard, publicada em 1947, analisa o trabalho dos mendicantes na “conquista espiritual” dos indígenas ao longo do primeiro século de colonização. Embora não estude exclusivamente os seráficos, seu tom é especialmente simpático quanto a eles. Por sua vez, Georges Baudot sugeriu, em uma obra de 1977, que os irmãos menores que encabeçaram as missões na Nova Espanha estavam profundamente imbuídos de uma perspectiva milenarista e da necessidade do retorno a um franciscanismo mais “puro”. Isto teria conferido à sua missão no México características particulares, orientadas pela pretensão de erigir uma igreja mais despojada e próxima do cristianismo primitivo, “mais cristã e menos católica” (Karnal, 1998).

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anos depois, diferença de tempo que permitiu aos primeiros a supremacia inicial de ações (Reis, 2012, p. 124). A atividade dos irmãos predicadores está menos documentada e abarcou regiões menos dilatadas que a dos seráficos. Os agostinianos por sua vez, chegados à Nova Espanha em 1533, encontraram seus antecessores estabelecidos nas áreas principais. Partindo do altiplano central os religiosos buscaram uma disseminação pelo território que permitisse pregar o Evangelho nos grandes centros urbanos tanto quanto nas aldeias mais remotas. Mas a rede assim estabelecida não era densa, e o número sempre insuficiente de religiosos, a falta de recursos e as diferentes reações dos indígenas, estabeleceram variações no tecido da presença missionária. De acordo com Pedro Borges Morán, até bem avançado o século XVI, as áreas de ação de cada grupo não estavam assinaladas com muita clareza, e elas não foram designadas como “missões”, conceito que surgiu posteriormente. A territorialização das missões teria ocorrido a partir de 1573, desde quando cada congregação passou a se dedicar à zonas com limites mais definidos, em relação aos quais as demais ordens estavam excluídas (Borges, 1992, p. 431-435)77. Este fato gerou desacordos e acusações mútuas. Os grupos indígenas e seus territórios foram muitas vezes alvo de disputa entre as corporações religiosas, num embate que envolvia prestígio e, em alguns casos, acesso a recursos econômicos. Mas as divergências podiam envolver campos ainda mais sensíveis. A compreensão dos freis sobre os métodos de evangelização, por exemplo, apresentavam diferenças que levavam a censuras mútuas. Os franciscanos, ainda que tenham manifestado um sentido de urgência em eliminar as evidências materiais das religiões pré-hispânicas e em substituí-las por “adereços cênicos” cristãos (Karnal, 1998), foram acusados de serem condescendentes em relação aos índios. Além disto, as práticas batismais, que conduziam em cerimônias muitas vezes coleti77  Segundo este autor, é a partir desta etapa que devemos empregar o conceito de “missões” com o sentido de áreas geográficas em vias de evangelização. Robert Ricard, em seu estudo clássico sobre a evangelização no México, identifica três tipos de missão que se diferenciam mais por sua configuração do que pela época em que ocorreram. Ele fala assim, de “missões de ocupação”, em que conventos formavam um rede planejada e organizada em torno de um centro como ocorreu no Vale do México e de Puebla; “missões de penetração”, que se dirigiam para lugares inóspitos e não de todo “pacificados” acompanhando ou precedendo a conquista militar, e “missões de enlace”, em que os conventos estavam dispostos em linhas que ligavam a região atingida aos principais centros do Vale do México (Ricard, 1994, p. 157-158).

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vas, eram condenadas pelos dominicanos (assim como, posteriormente, pelos jesuítas), que julgavam ser necessária uma instrução catequética prévia como preparação para o sacramento. De outra parte, o desenvolvimento do culto à Nossa Senhora de Guadalupe, assumido e estimulado pelo episcopado da Nova Espanha, em especial pelo arcebispo dominicano Alonso de Montúfar, encontrou a oposição dos franciscanos que apontavam os riscos envolvidos nesta devoção78. Bernardino de Sahagún chegou a relacioná-la a uma perigosa sobrevivência pagã: “y vienen ahora a visitar a esta Tonantzin de muy lejos, tan lejos como de antes, la cual devoción también es sospechosa, porque en todas partes hay muchas iglesias de Nuestra Señora, y no van a ellas, y vienen de lejas tierras a esta Tonantzin como antiguamente” (Apud: Karnal, 1998, p. 32). Houve também discordâncias envolvendo questões igualmente delicadas como o próprio sentido da colonização e evangelização do Novo Mundo. É o que expressa, por exemplo, a crítica feita pelo frei Toríbio de Benavente, o Motolinía, a algumas considerações de Las Casas. O dominicano efetivamente, construíra uma imagem de inocência e pureza dos indígenas como contraponto da perfídia dos espanhóis, e defendera que sua evangelização só poderia transcorrer por meios pacíficos e pelo convencimento. Disto discordava Motolinía,79 argumentando que “abominações”, “pecados” e “ofensas a Deus” deveriam ser contidos80. Em vista disto, ele escreveu ao imperador Carlos V rebatendo as denúncias de Las Casas e apresentando sua versão para os acontecimentos em curso nas Índias: “Dice el de Las Casas que todo lo que acá tienen los españoles, todo es mal ganado, aunque lo hayan habido por granjerías: y acá hay muchos labradores y oficiales y otros 78  Este caso exemplifica, ainda, alguns dos atritos estabelecidos entre as ordens e o episcopado. 79  Motolinía não foi um caso isolado nesta forma de ver o tema, e outros religiosos entenderam que a coação era um meio legítimo de conduzir os nativos à fé e fazê-los perseverar. Diego de Landa e Francisco de Ávila, por exemplo, não deixaram se valer da violência para perseguir e erradicar as “idolatrias”. Por sua vez, a trajetória de Juan de Zumárraga nos obriga a ponderar sobre a dificuldade de estabelecermos assertivas fechadas sobre esta questão. O bispo, encarregado de ser “Protetor dos índios” atuou como inquisidor no processo de 1539 movido contra don Carlos Ometochtzin, filho do senhor de Texcoco, Nezahualpilli, acusado de apóstata e instigador da idolatria. Don Carlos foi executado e o bispo acabou sendo duramente repreendido pelo imperador por este fato. 80  Merecem especial condenação de Motolinía sacrifícios humanos e idolatria. A análise da “crônica franciscana” no México pode ser acompanhada em: Reis, 2012.

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mucho que por su industria y sudor tienen que comer” (Apud: Freitas Neto, 2003, p. 195)81. Assim como entre as ordens, disputas também se armaram entre os dois corpos da igreja. Um elemento sensível no que toca às relações entre regulares e seculares dizia respeito à provisão dos bispados. No primeiro século de colonização, os membros das ordens tiveram uma presença superior na nomeação de bispos: das 171 feitas, apenas 63 consagraram seculares. Ao longo dos seguintes esta tendência foi invertida; no século XVIII, inclusive pela desconfiança dos Bourbons quanto ao internacionalismo das ordens, predominaram os bispos que não pertenciam a nenhuma delas. Outro foco de tensão esteve na provisão de paróquias, e envolveu soluções mais erráticas e dilatórias. Diante do pouco resultado de uma evangelização que estivesse sob a reponsabilidade dos “encomenderos”, os freis tomaram para si o papel de evangelizadores82, bem como de críticos dos “maus exemplos” que recebiam os índios daqueles que deveriam zelar por sua instrução cristã83. Eles apresentavam condições tidas como favoráveis, não apenas por sua educação superior, como por sua melhor disciplina e organização. Além disto de forma geral evidenciavam menor apego a privi81  A capacidade de perceber e expressar as dissintonias entre franciscanos, dominicanos e agostinianos foi uma das questões que colocou dom Carlos Ometochtzin sob o alvo da Inquisição, em um processo que culminou com sua execução em 1539. O cacique argumentava que os religiosos manifestavam diferenças de posturas (formas de vestir e educar, por exemplo) que justificavam que as indígenas também fossem aceitas. 82  Esta proposição teve início com a licença concedida em 1503 à Nicolás de Ovando, govenador de Santo Domingo. Depois, as Leyes de Burgos (1512) irão definir melhor as obrigações dos encomendeiros, estabelecendo que eles tivessem, entre outros, o compromisso de levantar igrejas onde, após a jornada de trabalho, os indígenas deveriam ser reunidos e doutrinados. Assim como a maior parte dos “conquistadores”, todavia, eles não se mostraram comprometidos com a sua cristianização, nem manifestavam condições de fazê-lo, inclusive pelo seu desconhecimento das línguas. Hernán Cortés, conquistador e encomendeiro, teve quanto a isto uma posição singular. Ele entendeu ser necessário combater as “falsas religiões” indígenas, instruiu para a derrubada de templos e efígies e reclamou junto à Coroa, a presença de intérpretes e religiosos. Alguns outros conquistadores, embora não tenham levado a efeito ações sistemáticas deste molde, informaram sobre conversões massivas, como Alonso de Ojeda, Gil González Dávila (que se atribuía ter convertido 32.264 índios na atual Nicarágua) e Pedrarias Dávila que afirmou ter batizado aproximadamente 400.000 nativos (Konetzke, 1993, p. 228). 83  Bartolomeu de Las Casas, por exemplo, em sua “Historia de las Indias”, questiona: ”Como poderiam, colonos embrutecidos e imorais, agir como mensageiros da fé entre os indígenas? Seria suficiente ensinar aos nativos a Ave Maria, o Pai Nosso e o Credo em latim, como se ensina a papagaios e pegas?” (Apud Hoffner, 1977, p. 184).

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légios e comodidades mundanas. Foram, inclusive, críticos contumazes dos diocesanos, a quem censuravam por sua pouca consideração pelas massas indígenas, desconhecimento de suas línguas e culturas84, e sua inclinação a viver na comodidade dos centros urbanos. Estes últimos, por seu lado, levantavam suspeição sobre as relações estabelecidas entre os regulares e os grupos com os quais se relacionavam missionariamente, acusando-os (como também faziam os colonos), de buscarem explorar o trabalho dos índios de forma exclusiva, criarem entre eles uma dependência indevida e uma lealdade perigosa, uma vez que dirigida mais aos padres que à autoridade monárquica. Os primeiros missionários “moviam-se de vila em vila e de região em região, mas, à medida que seus efetivos cresceram, foi se desenvolvendo um sistema episcopal e paroquial regular, pelo qual o clero devia residir nas comunidades índias maiores. Os índios das regiões afastadas eram alcançados por visitação regular ou irregular” (Gibson, 1997, p. 285). As unidades evangélicas estabelecidas pelas ordens, eram chamadas “doutrinas”, assentadas especialmente em áreas rurais, enquanto as fundadas pelos seculares em áreas urbanas para atender a comunidade de espanhóis, constituíam-se como “paróquias”. A expansão das paróquias trouxe consigo o problema do subsídio aos gastos que isto envolvia, e abriu um novo campo de tensões e ásperos debates na medida em que os freis, desde sua chegada ao México, manifestaram-se sobre a inconveniência da cobrança de dízimo aos indígenas. Embora a Coroa fosse favorável a que isto ocorresse, até mesmo para atender financeiramente as necessidades da organização eclesiástica americana, a colocação em prática de medidas neste sentido esbarrava no perigo de sugerir aos nativos que seu ingresso na igreja envolvesse interesses materiais. Em duas oportunidades (1544 e 1550), dominicanos e franciscanos pronunciaram-se frente ao Conselho de Índias sobre a impropriedade desta cobrança. Argumentaram que seu desinteresse em recompensas mundanas havia servido para aproximá-los de seus catecúmenos, 84  Christian Duverger, por exemplo, assevera que os franciscanos estudavam as culturas indígenas e faziam deste estudo a base de sua ação (1987, p. 153). Com relação aos jesuítas, Bartomeu Meliá realiza uma análise neste mesmo sentido. Segundo ele, os padres da Companhia construíram uma obra etnográfica que se apresenta em cartas e crônicas como resultado de sua própria verificação. Este conhecimento teria permitido um método apostólico que passava pela “adaptação” (linguística e ecológica) e, em alguns casos, à “inculturaçao” (Meliá, 1988, p. 130-159).

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e que “la gratuidad de su acción había sido parte importante de la eficácia de su palabra” (Baudot, 1992, 295). Além disto, insistiam no caráter de “neófitos” dos índios como outro argumento em seu favor85. Segundo Georges Baudot, entre 1555 e 1560 o Conselho de Índias foi inundado e memoriais e relações de quem representava posições favoráveis ou contrárias a cobrança de dízimos dos nativos. Praticamente todos que tinham alguma posição de destaque (“virrey, arzobispo, obispo, ouvidores, universitarios, provinciales de las órdenes etc”) foram chamados a tomar partido: “La violencia era lo normal y el arzobispo llegó incluso a las medidas más inquietantes, negándo-se a ordenar religiosos por haberse opuesto a sus opiniões (...). El áspero conflicto sólo debía resolverse con el tiempo [...] (Baudot, 1992, 296). No caso das missões paraguaias dos jesuítas, cujas primeiras fundações datam de 1610 e 1611, a questão do tributo foi alvo de uma polêmica parecida. O tema foi examinado e reexaminado pela lenta burocracia espanhola durante anos, durante os quais os jesuítas se valeram dos instrumentos de pressão a seu dispor para obter várias contemporizações. Em 1647 uma cédula real liberou os índios assentados do “serviço pessoal”, tornando-os tributários diretos da coroa com uma isenção inicial de 10 anos, depois prorrogada para 20. O tributo tinha um caráter pessoal e estavam sujeitos a ele os homens adultos, ficando isentos os caciques, seus filhos mais velhos e aqueles que desempenhassem o cargo de alcaides nos “pueblos”. Em dinheiro ou espécie, ele era pago diretamente ao Tesouro Real86. Esta contenda sobre os tributos se ligava a outra, claramente expressa pelo segundo arcebispo do México, Frei Alonso de Montúfar, que defendeu, em 1555, que a igreja americana já era madura o suficiente para que as missões fossem transformadas em paróquias e os missioná85  Os jesuítas em suas missões do Paraguai, conseguiram postergar por várias vezes as ordens de cobrança de tributo dos índios. Quando ele foi finalmente instituído, obtiveram a particular concessão de que fosse devido “em cabeça do Rei”, isto é, pago diretamente à Coroa. 86  Foi apenas em 1679 que a questão foi colocada em termos definitivos incorporando muitas das reivindicações dos jesuítas. A arrecadação dos tributos (obtidos pela exportação de erva-mate) ficou a cargo da Procuradoria e Ofício das Missões em Buenos Aires (Kern, 1982, p. 29-36). Os índios das missões paraguaias também pagavam tributo através de suas milícias, tendo sido recrutados pelas autoridades para investidas militares contra a colônia de Sacramento ou em expedições contra outros grupos indígenas. Interviram também no conflito estalado em 1642 entre o governador de Asunción e o bispo Bernardino de Cárdenas, ele próprio favorável ao pagamento de tributos pelos índios reduzidos.

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rios substituídos por curas (Baudot, 1992, 295). De fato, embora tradicionalmente a administração dos sacramentos correspondesse, na igreja católica, aos clérigos, os freis receberam, na qualidade de missionários, autorização para erigir igrejas e exercer o papel de curas de almas nas doutrinas que fundaram. O Concílio de Trento, contudo, determinou que os curatos fossem entregues, na medida do possível, ao clero secular. Os clérigos argumentavam sobre isto, que manter os frades à frente das doutrinas conferia a eles autoridade e influência demasiada sobre os indígenas, e que, tendo cumprido seu papel de evangelizar grupos pagãos, eles poderiam voltar para suas comunidades monásticas. Por seu lado, os missionários sustentavam que os privilégios pontifícios que autorizavam sua ação haviam sido concedidos sem limite de tempo, denunciavam a injustiça de serem afastados no momento de colher o fruto da missão entre os infiéis, e lançavam suspeitas sobre os reais interesses dos seculares para com as comunidades de neófitos. Ao final do século XVI e ao longo do seguinte, produziu-se um relativo equilíbrio de forças entre os partidos rivais no tocante ao cuidado pastoral das comunidades indígenas, e foi permitido aos regulares administrarem as doutrinas que haviam fundado. Mas mesmo a política dos “déspotas ilustrados” que tendeu a estabelecer medidas de controle sobre as ordens religiosas na América no XVIII, não resolveu definitivamente as rixas que pareciam transformar as almas dos nativos em “reféns” de diferenças corporativas87. Para além da disputa em torno de temas concretos como a escolha de bispos, a adjudicação de paróquias e a cobrança de dízimos, as vezes estava em pauta a própria face da igreja americana e do império que ela ajudava a sustentar. Para os bispos e para o clero secular, a influência dos missionários junto aos índios era demasiada e colocava em segundo plano a obediência ao próprio poder civil. Esta conjuntura havia sido criada pelas condições iniciais da presença da igreja no Novo Mundo em que a atividade missionária sustentou a tarefa de evangelizar as populações pagãs. Embora ela fosse 87  Uma cédula real de fevereiro de 1753 determinou ao arcebispo de Lima que as doutrinas servidas por membros das ordens que ficassem vacantes fossem adjudicadas para clérigos. Contudo, em 1757, nova determinação concederá aos regulares permanecer com um ou dois curatos em cada província onde eles mantivessem um convento com certo número de sacerdotes permanentes. Uma exposição mais detalhada deste tema pode ser encontrada em Konetzke, 1993, p. 216 e ss.

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sendo transformada pela expansão dos canais tradicionais de ligação da igreja com seu rebanho nas áreas centrais do império, a “missão” persistiu sendo um expediente incontornável nos territórios mais afastados dos centros econômicos e urbanos e nas zonas de fronteira. Apenas já bem avançado o século XVIII, os reformadores ilustrados farão valer suas propostas de que o comércio era um expediente melhor que as missões para a “civilização dos selvagens”. Embora os Bourbon não tenham recusado definitivamente esta estratégia de ocupação e controle do território, eles destinaram aos missionários uma posição menos privilegiada do que aquela que eles tinham gozado ao tempo dos Áustrias.

VI O termo missão em sua acepção mais estrita se referia aos território em vias de evangelização (Borges, 1992), os quais foram atendidos na maior parte das vezes, pelos membros das ordens religiosas88. Para os espanhóis, a “civitas” era o núcleo da civilização, e os índios deveriam ser conduzidos a povoar comunidades estáveis (chamadas “reducciones”) para viver ordenadamente (em “policia”). Por isto, o esforço por congregar os índios a fim de administrá-los e favorecer a sua catequese surgiu bastante cedo. Já em 1537 Francisco de Marroquín informava a Carlos V sobre as dificuldades de alcançar grupos que habitavam em “terras agrestes” e concluía ser “imposible adoctrinar a los índios si no les congrega; además, para es servicio ordinário que prestan a sus amos será mucho más fácil” (apud: Benassar, 1987, p. 177). As palavras do bispo da Guatemala estabeleciam um dos fundamentos da missão entre os índios (a intervenção em seus padrões de assentamento e territorialidade), mas também, uma das mais insistentes contradições nela presentes, uma vez que associa a pregação do cristianismo à disponibilização do trabalho dos índios. 88  As ordens femininas presentes na América eram compostas em sua esmagadora maioria por crioulas e, em menor quantidade, por mestiças. Seus conventos foram centros de obras de caridade, mas não tiveram protagonismo no trabalho missionário. Algumas mulheres indígenas chegavam a ser recebidas em tais espaços, mas ocupavam o papel de “serviçais”. Podemos encontrar uma presença mais significativa de mestiças e indígenas entre as “beatas”, cujo trabalho religioso se dirigia à evangelização de mulheres e seu preparo para trabalhar em obras sociais.

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As atividades missionárias no México foram desenvolvidas pioneiramente pelos franciscanos. Desde a “missão dos doze”89, chegada em 1524, os seráficos disseminaram-se pelo território, partindo do altiplano central em direção às demais regiões. Eles percorreram amplos territórios levando o batismo para regiões afastadas e procurando combater o que viam como os principais “vícios” dos indígenas, em especial os sacrifícios humanos, a antropofagia, a idolatria e a sodomia. Os frades logo colocaram o aprendizado das línguas locais entre seus primeiros desafios. Georges Baudot (1987, p. 172) afirma que eles se mostraram reticentes em atender as instruções da Coroa que, desde 1550, ordenavam o ensino do castelhano, tendo concentrado esforços em difundir o “nahuatl” e traduzir os textos sagrados do cristianismo. Este tema também não era, como tantos outros, matéria de consenso: havia quem considerasse que o ensino do castelhano potencializava certa emancipação dos índios, enquanto outros compreendiam que a utilização das línguas locais poderia implicar no isolamento dos mesmos. Segundo Anderson Roberti dos Reis, as duas fórmulas coexistiram “mas não sem muita discussão” (2007, p. 151). Outro campo em que os franciscanos se destacaram foi na criação de escolas primárias, sendo as primeiras delas erigidas em Texcoco e na Cidade do México em 1523 e 1525, respectivamente90. Foi contudo a criação de um centro de ensino de alto nível, que formasse eruditos e preparasse lideranças nativas, que envolveu os freis em mais uma polêmica. De fato, o Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco, fundado em 1536 sob os auspícios do vice-rei Antonio de Mendoza e do bispo Juan de Zumárraga, acabou sendo proibido em 1568. Problemas econômicos para a manutenção do Colégio sem dúvida contribuíram para o encerramento de suas atividades, mas isto também deve ser debitado ao fato de que a instituição enfrentava severa oposição daqueles que duvidavam 89  Este número de componentes da missão franciscana é explicado por Baudot (1983; 1985) e Ricard (1986), como uma referência simbólica aos apóstolos e à igreja primitiva. Por sua vez, Duverger lembrou que ele também pode querer homenagear os doze discípulos de são Francisco que fundaram, em 1209, o primeiro convento da ordem (1993, p. 28). 90  Os religiosos dispensavam uma atenção toda especial para as crianças, não apenas porque elas iriam compor futuras gerações de cristãos, como porque compreendiam que elas eram um veículo para atingir seus progenitores, dando-lhes bons e virtuosos exemplos. Também jesuítas irão aceitar a teoria de que os pequenos eram mais facilmente moldáveis e se ocupar deles com bastante empenho.

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das aptidões intelectuais dos nativos, ou mesmo consideravam perigosa a promoção de sua capacidade de crítica sobre a realidade. Os jesuítas, que tiveram destacado papel como educadores na sociedade colonial, não erigiram nenhuma escola nos moldes do “Imperial Colégio”, nem pretenderam ajudar a constituir um clero ou uma elite nativa91. A forma privilegiada de intervenção junto aos indígenas que desenvolveram foi a chamada “missão por redução”, levada a efeito especialmente nas fronteiras e em áreas afastadas dos principais centros urbanos e econômicos92. Assim como os franciscanos, os jesuítas optaram preferencialmente por evangelizar nas línguas nativas. No caso das reduções do Paraguai, o guarani foi gramaticalizado e passou ele próprio por um processo de redução. De acordo com Bartomeu Meliá, este processo implicou na incorporação de “espanholismos” e neologismos, assim como em “uma reorientação semântica de alguns campos do léxico”. O guarani continuava sendo falado pelos índios, mas não era mais a língua dos índios (Meliá, 1988, p. 243). Esta avaliação a respeito do guarani pode ser estendida para as outras línguas nativas que foram tomadas como veículo de comunicação na colônia. Elas perderam: [...] la autonomia que le daba el modo de ser tradicional, con sus discursos políticos, religiosos y hasta coloquiales, sustentados en otra cultura que ahora estava siendo reducida a formas coloniales. La escritura a que fue reducida (...), las gramáticas, los diccionarios, los catecismos y sermonarios, así como la práctica epistolar, foran instrumento para una standarización [...] (Meliá, 1988, p. 243-244).

De fato, catequizar em guarani, por exemplo, trazia o desafio de encontrar equiparações ali onde elas não existiam, expediente que fica 91  Entretanto, uma série de trabalhos têm analisado como isto de fato ocorreu. Os jesuítas não apenas deram condições para que surgisse um grupo letrado em suas missões, como estimularam o desenvolvimento de um conjunto de artífices e músicos que também se destacavam no conjunto das populações de suas missões. Além disto, a permanência dos “caciques” e o reconhecimento de seu prestígio, além da introdução de uma “burocracia indígena” por meio do cabildo, acrescentou novos elementos à formação desta “elite”. Os filhos dos “principais” recebiam uma educação mais elaborada que as demais crianças. Sobre os dois temas ver, respectivamente, Neumann, 2015 e Wilde, 2009. 92  Nos centros urbanos eles se dedicaram destacadamente à atividade educativa desenvolvida junto aos colonos.

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muito claro no uso de vários vocábulos. Diante da decisão do Concílio de Trento sobre a impropriedade contida na tradução dos textos sagrados para línguas vulgares, que por óbvio incluía as línguas indígenas, os jesuítas se colocaram no alvo do Conselho Supremo da Inquisição, assim como havia ocorrido com os franciscanos. Havia quem ponderasse sobre isto que os padres transitavam perigosamente perto da heresia ao realizarem tais equiparações.93 As primeiras experiências dos jesuítas com o sistema de reduções ocorreu no Peru a convite do vice rei Francisco de Toledo, solicitação que eles atenderam reticentes por entender que ela colocava em risco a mobilidade que era uma das características da sua congregação. Logo porém, perceberam que o trabalho em “pueblos” era uma alternativa às missões itinerantes de resultados muito fugazes. Antonio Ruiz de Montoya definiu a estratégia de “missão por redução” ao narrar o trabalho que estava sendo feito por ele e seus companheiros94. índios que viviam “à sua antiga usança em selvas, (...) separados uns dos outros, reduziu-os a diligência dos padres a povoações não pequenas e a vida política e humana...” (1985, p. 34). Diz ainda, que os grupos que viviam dispersos sem “policia”, foram “reduzidos por nosso esforço ou indústria a povoações grandes e transformados de gente rústica em cristãos civilizados com a contínua pregação do evangelho” (1985, p. 20). A definição de Montoya aponta para algumas diretrizes do trabalho dos padres nesta forma especial de “missão”. De fato, ao contrário dos batismos em massa conduzidos pelos franciscanos no século anterior95, 93  Ao mesmo tempo em que os evangelizadores multiplicavam seus estudos linguísticos, eles igualmente investiam em outras formas de comunicação. Por isto, Bernard e Gruzinski (1997) lembram que a conquista das almas envolveu, além da palavra, gestos, sons e imagens. Também Leandro Karnal (1998) destacou a importância do uso de “adereços cênicos” nas práticas evangelizadoras, compreendendo aí uma rica variedade deles, como as procissões e a pregação catequética, além do teatro. Segundo ele, a igreja “inundou” os espaços de sua atuação com elementos do sagrado, ao mesmo tempo em que se mostrou mais atenta aos aspectos exteriores da fé do que ao seu sentido íntimo. 94  Ele escreveu a “Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañía de Jesus en las Provincias del Paraguay, Parana, Uruguay, y Tape” quando se encontrava em Madrid, em 1639, para pedir proteção aos povoados que vinham sendo atacados pelos “paulistas”. 95  Os batismos coletivos foram utilizados especialmente nas primeiras décadas de colonização. Leandro Karnal informa que “a todos os índios que se batizavam num dia os frades colocavam o nome de Juan, e, às mulheres, Maria; a todos os do dia seguinte chamavam Pedro e Catarina (1998, p. 195)”. Entretanto, mesmo entre os religiosos esta forma de ministrar o sacramento era matéria controversa, pois prescindia de instrução religiosa anterior. E foi justamente esta a restrição feita pelos padres da ordem de Santo Domingo aos batismos massivos realizados pelos

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os jesuítas entendiam que a evangelização tinha que ser precedida pela “civilização dos índios.” Eles tinham que ser integrados a um modelo de “vida política” e às regras sociais e morais adequadas ao ocidente europeu. Era preciso, entre outras coisas, que abandonassem a poligamia, as festas de “borracheira”, usassem roupas adequadas, aprendessem ofícios manuais, o cuidado com as ferramentas e com os bens privados (Martins, p. 131 e ss). Isto é, o projeto de conversão religiosa envolvia, também, uma profunda transformação social e cultural “que se constituye a sí mismo en norma política, orden institucional, religión verdadera y humanismo”. Fora da redução “no hay en el índio, ni organización social, ni derecho, ni verdade religiosa, ni humanismo. No hay cultura, sino barbárie [...]” (Meliá, 1988, p. 251)96. Todavia, os religiosos também sustentaram que isto teria que ocorrer em uma esfera separada (ainda que complementar) daquela dos brancos espanhóis97. Neste aspecto, as missões jesuíticas se distinguem das conduzidas por outras ordens. Os franciscanos, por exemplo, que erigiram os primeiros povoados destinados aos guaranis, fizeram-nos nas proximidades de Asunción, e sem retirar os índios da alçada dos franciscanos na Nova Espanha. Paulo III manifestou-se sobre isto expedindo, em 1537, a bula Altitudo Divini Consilii. O documento papal reconhecia as condições especiais em que operavam os evangelizadores e não os condenava, mas recomendava, a não serem casos extremos, a prévia instrução religiosa. 96  A imposição da nova religião implicou em novos ritos e cultos, mas também em uma nova cosmogonia. Envolveu, onde eles existiam, a destruição de antigos santuários e imagens, assim como a constituição de uma “infra-estrutura” eclesiástica adequada. Além disto, foi preciso aprender as línguas, valer-se de imagens e técnicas ocidentais para tentar “enraizar” o cristianismo e, ademais, “introjetá-lo na trama social” (Bernard & Gruzinski, 1997, p. 427). Assim sendo, além de se valerem da educação das crianças (tidas como mais facilmente “moldáveis”), os religiosos introduziram o casamento e a família cristã, “saindo do domínio dos ritos e das crenças” de forma a desfazer e recriar “o tecido social” dos grupos nativos. Para ainda interferir nos espaços mais íntimos do sujeitos, impôs as normas de confissão, sacramento que destilavam “outro fermento desestabilizador, o do individualismo que as noções de responsabilidade pessoal veiculavam” Bernard & Gruzinski, 1997, p. 429). A introjeção de concepções como estas, explicitam que a cristianização não envolvia apenas a ensinar ritos ou crenças, mas também novos modos de ser. 97  Isto não implica considerar que as missões se desenvolvessem de forma apartada e autônoma em relação à sociedade colonial, situação que uma consistente produção atual tem podido identificar. Para o caso das missões jesuíticas, a noção de que elas teriam constituído um “império teocrático” ou uma “ república” autônoma, vem sendo desautorizada desde o trabalho pioneiro de Arno Kern (1982). As críticas desta natureza imputada aos padres devem ser compreendidas dentro do quadro de disputas pela mão de obra dos índios e das acusações trocadas entre missionários, colonos e partidários de uns e outros em torno deste tema.

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“encomenderos”. Já Montoya expressou a convicção de que não era possível haver conciliação com os interesses destes últimos: “Esta é a peste que segue o Evangelho”, escreveu, “pois, atrás da liberdade que os índios alcançam pelo batismo, logo entra a servidão e o cativeiro, que já não é uma invenção diabólica, mas humana ...” (1985, p. 39). Realmente, os jesuítas assumiram uma posição abertamente contrária a este tipo de servidão, e se valeram da própria legislação espanhola para as Índias98 para apontar sua incongruência com as responsabilidades da coroa e da igreja quanto aos índios. Sob este aspecto, a missão que desenvolviam -e que era instrumento do estado colonial-, entrava em contradição com uma necessidade fundamental do colonialismo: o controle sobre a mão de obra indígena. Daí que os conflitos com os interessados no trabalho dos nativos tenha sido uma constante na história das missões.

VII Os objetivos a que se propuseram os missionários eram imensamente ambiciosos. Eles ultrapassavam os limites da cristianização para envolver o esforço de construir “homens novos”, orientados por valores e modelos tidos como universais. Sendo assim, além de operar na destruição dos aspectos visíveis de suas “falsas religiões” como “templos” e “ídolos”, ou no descrédito dos “feiticeiros”, era preciso penetrar no universo do intangível. 98  Especialmente as Ordenanças do Ouvidor Francisco de Alfaro que concebiam as reduções não só como meio de civilização e controle dos indígenas, mas ainda de proteção contra os maus tratos dos “encomenderos”. Alfaro, atendendo à determinação de Felipe II para que ele inspecionasse as regiões da jurisdição de Charcas e produzisse um informe sobre o tratamento dado aos indígenas, percorreu as áreas de Tucumán, Cuyo, Buenos Aires e Paraguai. Na cidade de Asunción, em 1611, redigiu as “Ordenanzas” que levam seu nome. Nelas ele sintetiza boa parte da legislação referente aos índios: entre outras coisas, declara nulas as operações de compra e venda de índios, reitera a proibição do trabalho servil, estabelece que eles não podiam ser transladados a distâncias maiores de uma légua de suas aldeias, regulamenta a formação de pueblos indígenas e a prática da mita. Estas determinações, aprovadas com algumas modificações, fomentaram desconformidade por parte dos segmentos da sociedade interessados no trabalho servil indígena. Ver: Rouillon Arrospide, 1997.

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Por isto mesmo, o trabalho dos religiosos envolveu, também, uma dimensão de “tradução cultural” das sociedades nativas. Neste sentido, a prática missionária proporcionou formas de aproximação física e convivência que eram muito particulares, constituindo-se em meios de conhecer os códigos culturais das sociedades a serem civilizadas e convertidas (Montero, 2006)99. É neste sentido que os missionários são muitas vezes qualificados como os verdadeiros fundadores da etnografia (Estenssoro, 1999; Duverger, 1993100). Com efeito, eles perscrutaram o passado dos grupos nativos a fim de encontrar estratégias de comunicação, bem como de avaliar aparentes pontos de contato entre as religiões pagãs e o cristianismo (Bernanrd & Gruzinski, 1997, p. 430-432). Este exercício os levou a elaborar um conjunto formidável de estudos que podemos chamar genericamente de “crônicas coloniais” em que narram suas observações sobre o que viam e o que ouviam dizer acerca de costumes, rituais, histórias de tempos passados, entre outras coisas101. Embora não seja possível apresentar aqui as contribuições dos vários “cronistas”, as palavras de Sahagún no Prólogo da sua “Historia general de las cosas de la Nueva España” são bastante esclarecedoras do que estava envolvido neste esforço de “tradução cultural”: Para predicar contra estas cosas, y aun para saber si las hay, menester es de saber cómo las usaban en tiempo de su idolatría, que por falta de no saber esto, en nuestra presencia hacen muchas cosas idolátricas sin que lo entendamos; y dicen algunos, excusándolos, que son boberías o niñerías, por ignorar la raíz de donde salen -que es mera idolatría, y los confesores ni se las preguntan ni piensan que hay tal cosa, ni saben lengua99  Em “Deus na Aldeia” (2006), Paula Montero afirma que a missionação serviu assim para produzir diferenças na chave da etnia e religião. De certa forma isto é o que pensa também Juan Carlos Estenssoro. De acordo com ele, a categoria “índio” tem, embora implícita, uma conotação que é religiosa, haja vista que a Igreja colonial nunca deu por concluída a tarefa de evangelização, nem lhes concedeu o acesso ao sacerdócio (1999, p. 182). 100  Este último avalia sobre os franciscanos, que eles teriam sido, também, “memorialistas do passado indígena” (1993, p. 170). A qualificação de relatos etnográficos ou memorialistas para os textos produzidos pelos missionários merece reflexões que não encontram aqui espaço para seu desenvolvimento. Sobre o tema ver: Bruit, 2004; Cañizares-Esguerra, 2007; Fernandes, 2006, 2011; Karnal, 2004; Montero, 2006. 101  Usado com bastante frequência, o termo “crônicas coloniais” não costuma ser problematizado pelos vários autores que o empregam, via de regra no sentido bastante amplo de “relatos sobre o período colonial”. É certo porém, que as grandes variações observáveis entre elas (autores, épocas, objetivos, forma e conteúdo), exigem cautela no seu emprego como fonte.

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je para se los preguntar, ni aun lo entenderían aunque se los digan-. Pues porque los ministros de los Evangelios que sucederán a los que primero vinieron, en la cultura de esta nueva viña del Señor, no tengan ocasión de quejarse de los primeros, por haber dejado a oscuras las cosas de estos naturales de esta Nueva España, yo [...] escribí doce libros de las cosas divinas, o por mejor decir idolátricas, y humanas y naturales de esta Nueva España. (Sahagún, 1954, p. 27-28)102.

Um esforço no mesmo sentido mobilizou o dominicano Diego de Landa Calderón. Como bispo do Iucatã, e preocupado com o que considerava ser a vitalidade das “crenças demoníacas” presentes entre os maias, Landa ordenou que se incendiassem códices que via como o suporte material para este tipo de práticas abomináveis103. Na “Relación de las cosas del Yucatán” (c. de 1566) ele escreveu: Usavan tambien esta gente de ciertos caracteres o letras con las quales escrivian en sus libros sus cosas antiguas y sus sciencias, y con ellas, y figuras, y algunas señales en las figuras entendian sus cosas, y les davan a entender y enseñavan. Hallamosles grande número de libros de estas sus letras, y porq no tenían cosa, en que no oviesse superstiçion y falsedades del demonio se los quemamos todos, lo qual a maravilla sentían y les dava pena”. (Landa, [1566] 1985, XLI]

Christian Duverger encontra, neste tipo de exercício, o paradoxo de que muitos missionários tenham se tornado “cronistas de las idolatrias que tenían la misión de destruir” (1993, p.10). Isto é, paralelamente à sua repulsa quanto as “falsas religiões” e “ritos idolátricos”, eles não deixaram contribuir para a memória das sociedades de que se aproximaram apostolicamente. Os estudos linguísticos foram um elemento ímpar deste trabalho, envolvendo a elaboração de gramáticas, dicionários, catecismos, sermonários, etc. Em alguns casos, a língua mereceu o elogio e a admira102  Escrito ao longo de trinta anos, entre 1547-1577, em náhuatl, espanhol e latim, o texto apresenta ainda um grande número de ilustrações produzidas por tlacuilos indígenas com técnicas europeias. 103  Não se sabe o número de códices destruídos por Landa, e as estimativas variam enormemente, aludindo a dezenas ou a milhares. Ao lado dos códices, foram também destruídas imagens, vasilhas, estelas entre outros artefatos.

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ção dos padres, elevando os nativos a patamares que desafiavam as visões negativas dos colonos espanhóis. Montoya, não só expressou seu desacordo para com aqueles que entendiam que o guarani não tinha riqueza suficiente para expressar a fé cristã, como disse de um de seus trabalhos: “lo intitulé Tesoro, porque procuré vestirle con algo de su riqueza, que mi corto caudal ha podido sacar de su mineral rico” (Apud: Chamorro, 2015, p. 20 o e 23 respectivamente). De sua obra destacam-se o “Tesoro de la lengua guaraní” e o “Catecismo de la lengua guaraní” (1639), “El Arte de la lengua guaraní” e “Vocabulario de la lengua guaraní” (1640). Segundo Graciela Chamorro Arguello, o “Vocabulário” é composto por cerca de 10.000 palavras em castelhano com seus correspondentes em guarani, enquanto o “Tesouro” tem em torno de 5.500 artigos com suas etimologias e derivações das palavras mais importantes do repertório guarani relativamente à sua vida cotidiana (Chamorro, 2015, 21-22). Apoiado em seus interlocutores guaranis e em sua experiência e observação, Montoya contextualiza as palavras por meio de exemplos e constrói uma verdadeira “suma etnológica” em que as palavras estão “vestidas de sua história e cultura” (Meliá, 1992, p. 90). O próprio Montoya explicou sua metodologia de trabalho: En este Vocabulario se ponen los vocablos simplemente. Para saber sus usos y modo de frases, se ha de ocurrir a la segunda parte [al Tesoro]; por ejemplo, busco aquí hombre, hallo que es ava, buscaré ava en la segunda parte y allí hallaré lo que se dice del hombre. [...] Cada particular que se hallar en esta primera parte se puede buscar en la segunda, donde se diz lo que he alcanzado que se puede decir (Apud: Chamorro, 2015, 21).

Ainda na América do Sul podemos citar dois religiosos cujo trabalho se destaca pela riqueza de suas observações sobre a vida dos indígenas peruanos. O primeiro deles, o franciscano Luis Jerónimo Oré, produziu um manual geral de liturgia católica para sacerdotes (Manuale Peruanun, 1607) com seções em aimará, puquina e quéchua, assim como em outras línguas como o mochica e o guarani. O outro, Francisco de Ávila, lutou tenazmente contra a apostasia dos indígenas de Huarichirí e contra as cerimônias e crenças tradicionais dos incas. Sua atuação como “visitador” nas campanhas de “extirpação das idolatrias” no Peru 194 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

no século XVII é reportada por Guaman Poma de Ayala que reproduz as queixas de indígenas por ele acuados. Ávila compilou uma enorme quantidade de dados sobre as crenças e práticas dos andinos, e defendeu, no Sínodo Limenho de 1613, a necessidade de que os curas conhecessem a língua de seus paroquianos. Mais tarde, publicou dois volumes de sermões (em quéchua e espanhol) no “Tratado de los Evangelios”, impresso em 1648 Mesmo que o motivo mais imediato das obras linguísticas como estas fosse prover os religiosos de instrumentos para a catequese, elas acabaram se revestindo de outros significados ao repertoriarem conteúdos da história e cultura destas sociedades de forma às vezes única. Isto não deve fazer crer, contudo, que crônicas ou trabalhos linguísticos sejam uma via de acesso imediato para o conhecimento sobre elas. Como lembrou Paula Monteiro, os missionários foram os primeiros antropólogos do Ocidente, mas atuaram investidos pelo “poder de sentido” que a religião tem no interior da modernidade nascente: “eles são certamente expressão de uma instituição poderosa, mas, mais ainda, de uma cultura geral que reconhece sua autoridade simbólica e legitima o exercício desta” (2006, p. 82).

Roteiro bibliográfico A tentativa de realizar qualquer balanço historiográfico sobre a presença da igreja e de seus agentes no Novo Mundo parece conduzir o a um vórtice. Mesmo que se recortem balizas de espaço e tempo, a tarefa parece ser impraticável. Não apenas o número de autores e obras envolvidos é incomensurável, como os temas que mereceriam atenção também o são e se renovam rapidamente. Por exemplo, não tratamos aqui neste texto, entre outras ausências, da questão fundamental que envolve a recepção do catolicismo entre as populações nativas americanas. Em trabalho sob muitos aspectos pioneiros, Nathan Wachtel (1976, 1987) analisou de que forma a debacle demográfica, o deslocamento das lideranças, a imposição de ideias e normas alheias àquelas que haviam organizado a realidade ecoAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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nômica, social e espiritual dos povos andinos, havia “desestruturado” a vida dos nativos. Entretanto, o autor também trabalhou com a ideia de “reestruturação”, complexificando a noção de “aculturação” e discutindo as formas pelas quais a conversão foi percebida e interpretada. Concluiu, então, que ela não se confundia com simples abandono das “tradições ancestrais” em favor do cristianismo. Entre as comunidades camponesas Wachtel verificou que enquanto o culto oficial desapareceu, os cultos populares dirigidos por um clero clandestino, muitas vezes ajustados aos elementos externos do cristianismo, persistiram. Ainda segundo ele, embora os indígenas admitissem a existência de um Deus cristão, eles o interpretavam à sua maneira, inclusive entendendo que sua esfera de ação se dirigia aos setores espanhóis da sociedade. Podemos dizer assim, que o autor adiantava neste trabalho algumas das linhas de força atuais sobre o tratamento desta questão, uma vez que chamava a atenção para os processos de adaptação e empréstimos culturais que vêm sendo hoje estudados a partir da perspectiva da “ressignificação” e “agency” nativa. Estas análises buscam refletir sobre este tema a partir de outras questões que não as da propagação da fé e cristianização forçada, discutindo os “sentidos” que os nativos puderam conferir a ela, inclusive avaliando como as etnias indígenas “metaforizavam a ordem dominante” e “faziam-na funcionar em outro registro”. Com isto, propõem que eles “permaneciam outros no interior do sistema que assimilavam e que os assimilava exteriormente. Modificam-no sem deixá-lo” (Certeau, 1994, p. 94-95). Realmente, a imagem tradicional de um mundo indígena aculturado pela imposição de valores ocidentais por meio dos evangelizadores, vem sendo desconstruída pela historiografia recente. Ao invés de partir de esquemas binários que posicionavam nativos e ocidentais em esferas opostas e irredutíveis (dominador e dominado, vencedor e vencido, por exemplo ), vários trabalhos atuais estão analisando as diversas formas de mediação cultural entre eles. Alguns autores se propõe a compreender a novidade que emerge das relações assim travadas a partir das noções de “middle ground” (White, 2001), pensamento ou lógica mestiça (Gruzinski, 2001; Boccara, 2000) De outra parte, também merece uma nota a perspectiva discutida por Stuart Schwartz em “Cada um na sua lei” (2009), segundo quem os historiadores subestimaram os indícios de tolerância popular em matéria de religiosa na época moderna na Península Ibérica e no 196 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Novo Mundo. Ele procura assim, demonstrar que, apesar das políticas oficiais de inflexibilidade, atitudes opostas eram encontradas entre setores da população ibérica e colonial. Segundo Schwartz, ao deixar-se de prestar atenção apenas ao que teólogos e pensadores discutiam a respeito do tolerantismo, e atentar para as compreensões e práticas populares, conclui-se que ele era relativamente bastante estendido, inclusive nas Américas em que a monarquia e a igreja, como sustentamos aqui, empenharam-se em defender a posição exclusiva do catolicismo e em obstruir qualquer forma de diversidade religiosa. Assim, a convicção de que “cada um podia se salvar na sua lei”, teria atravessado o Atlântico em textos que eram lidos a partir de chaves de compreensão diferentes das que gostariam os oficialistas (ou mesmo à sua revelia), tanto quanto na mente e no coração de muitos que migraram para o novo mundo. Desta forma, as realidades americanas “criaram um campo peculiar” (Schwartz, 2009, p. 193) onde as crenças e práticas europeias sofreram adaptações e redefinições que se apresentam como novos campos a desafiar as tentativas de compreensão dos historiadores.

Extratos de documentos CARTA DE DEZ CACIQUES DA NOVA ESPANHA A FILIPE II PEDINDO O ENVIO DE FRANCISCANOS104 Yucatan, 11 de fevereiro de 1567 S.C.R.M. Porque todos os vassalos de S.M. conhecemos o desejo que tem de que todos nos salvemos, e para V.M. prover sempre seus reinos de ministros suficientes para que iluminem e ensinem aos que não sabem, e embora estejamos longe desses reinos, sabemos que V.M. tem o mesmo cuidado como se estivéssemos perto, e que gosta de ser avisado do que mais nos convém conforme a nossa baixeza de engenho e pobreza de bens temporais; por isso, fazemos saber a V.M. que, desde o princípio de nossa conversão à fé de Cristo, fomos doutrinados e ensinados por 104  Cartas de Indias, v.1, p. 367 e ss. Apud: SUESS, Paulo (coord). A conquista espiritual da América Espanhola. São Paulo: Vozes, 1992, pp. 88-89.

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frades franciscanos, [...] e os amamos como verdadeiros pais e eles a nós nos têm como filhos; e como pelas enfermidades e perseguições do demônio e de seus sequazes restaram muito poucos e também por não vir da Espanha a esta terra por ser distante, [...] suplicamos a V. M. que se compadeça de nossas almas e nos envie frades franciscanos que nos ensinem e guiem no caminho de Deus, especialmente alguns que foram destas partes para a Espanha, que sabem já muito bem a língua desta terra com a qual pregavam a nós, que se chamam Frei Diego de Landa, frei Pedro Gumiel, da Província de Toledo, e frei Miguel de Puebla, e os demais com que V. R. for servido. E por entender que nisto prestamos serviço a V.M. , que com coração tão cristão nos deseja todo o bem, permanecemos confiantes de sermos brevemente favorecidos por V.M., [...]. De Yucatán, aos 11 de fevereiro de 1567. Humildemente vassalos e servos de V. M: dom Gonçalo Che, cacique de Calkini; dom Lorenço Canil, cacique de Kalahcum; dom Juan Canul, cacique de Numkini; dom Diego Canul, cacique de Kinlacam; dom Pedro Canul, cacique de Balalcho; don Francisco Vicab, cacique de Giha; dom Francisco Ci, cacique de Kucab; dom Francisco Canul, cacique de Panbilchen; dom Francisco Chim, cacique de Pakam; dom Miguel Caniul, cacique de Mopilla. CARTA DE ÍDNIOS GOVERNADORES DE YUCATAN A FILIPE II QUEIXANDO-SE DE MAUS-TRATOS QUE SOFRERAM POR ALGUNS FRANCISCANOS105 Yucatan, 11 de abril de 1567 Sacra Católica Majestade, Depois de nos ter vindo o bem, que foi conhecer a Deus Nosso Senhor por único verdadeiro Deus, deixando de lado nossa cegueira e idolatrias e a V. M. por senhor temporal, antes de abrirmos bem os olhos ao conhecimento de um e do outro, nos veio uma perseguição, a maior que se pode imaginar, e foi no ano de sessenta e dois por parte dos religiosos de São Francisco, que havíamos trazido para que nos doutrinassem, mas, em vez de o fazer, começaram a nos atormentar, [...] de cujos tormentos morreram e ficaram aleijados muitos de nós. 105  Cartas de Indias, v.1, pp. 407-410. Apud: SUESS, Paulo (coord). A conquista espiritual da América Espanhola. São Paulo: Vozes, 1992, pp. 89-90.

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Estando nesta tribulação e trabalhos, confiando que a justiça de V. M. nos ouvisse e fizesse justiça, veio o doutor Diego Quixada, que então era justiça, ajudar aos atormentadores, dizendo que éramos idólatras e sacrificadores de homens e outras coisas alheias a toda verdade, que em nossa infidelidade não cometemos. [...] E, não contentes com isto, os religiosos e a justiça de V. M. fizeram um auto solene de inquisição em Mani, povoado de V. M., em que tiraram muitas estátuas, desenterraram muitos mortos, queimaram ali publicamente e condenaram muitos como escravos para servir aos espanhóis por oito e dez anos e impuseram sambenitos. Tanto uma coisa como outra nos causaram grande admiração e espanto, porque não sabíamos o que era, por sermos recém-batizados e não catequizados; e porque nos dirigimos a nossos vassalos, dizendo que os ouvissem e guardassem justiça, nos prenderam e aprisionaram e levaram acorrentados, como a escravos, ao mosteiro de Merida, onde morreram muitos dos nossos, e ali nos diziam que nos haviam de queimar sem nós sabermos por quê. Chegou então o bispo, que V. M. nos enviou, o qual, embora nos tirasse do cárcere e nos livrasse da morte e abolisse os sambenitos, não nos desagravou das infâmias e testemunhos que levantaram contra nós, dizendo que somos idólatras, sacrificadores de homens e que tínhamos matado muitos índios; pois afinal, é do hábito dos religiosos de São Francisco e os defende: consolou-nos com palavras, dizendo que V. M. fará justiça. Veio um escrivão do México para investigar isto e pensamos que realizasse a Audiência mas não fez nada. Veio depois dom Luís de Céspedes, governador, e em vez de nos desagravar, aumentou nossas tribulações, levando nossas filhas e mulheres para servir aos espanhóis contra a sua vontade e a nossa, o que sentimos tanto que a gente simples chega a dizer que em nossa infidelidade não éramos tão vexados nem acossados, porque nossos antepassados não tiravam de ninguém sues filhos, nem dos maridos suas mulheres, para se servirem deles como o faz agora a justiça de V. M. [...]. Apesar de todas as nossas aflições e trabalhos, amamos os padres e lhes damos o necessário e lhes temos feito muitos mosteiros e provido de paramentos e sinos, tudo à nossa custa e de nossos vassalos e naturais, embora em pagamento destes serviços nos mantenham tão avassalados ao ponto de tirar-nos o senhorio que herdamos de nossos antepassados [...]. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Uma coisa nos desanimou muito e nos inquietou: são as cartas que frei Diego de Landa, principal autor de todos estes males [...] escreve, dizendo que V. M. aprovou as mortes, roubos, tormentos e escravizações e outras crueldades que fizeram conosco; do que estamos admirados que tal coisa se diga de tão católico e reto Rei, como é V. M. [...] Embora queiramos bem a frei Diego de Landa e aos demais padres que nos atormentam, somente de ouvir falar o nome deles, se nos revolvem as entranhas. Portanto, V. M., envie outros ministros que nos doutrinem e preguem a lei de Deus, pois desejamos muito nossa salvação. Os religiosos de [...] São Francisco, desta província, escreveram certas cartas a S.M., e ao geral de sua ordem, em defesa de frei Diego de Landa e de outros companheiros seus, que foram os que torturaram, mataram e escandalizaram, e deram certas cartas escritas na língua de Castela a certos índios seus familiares para que as assinassem, [...]. Saiba V.M. que não são nossas: senhores desta terra, não escrevemos mentiras, nem falsidades, [...]. Nosso Senhor Deus guarde a V.M. por muito tempo para seu santo serviço e nosso bem e proteção. De Yucatán, aos doze de abril de 1567. Humildes vassalos de V.M., que suas Reais mãos e pés beijamos: dom Francisco de Montejoxio, governador da província de Mani; Jorge Xin, governador de Panaboren; Juan Pacab, governador de Mona; Francisco Pacab, governador de Texul.

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Capítulo 4 “O lapso do rei Henrique VII”: Inveja imperial e a formação da América Britânica Jorge Cañizares-Esguerra Bradley J. Dixon Em 1648, o ex-jesuíta Thomas Gage provocou os leitores ingleses com usa descrição das Índias Ocidentais. Ao relatar suas viagens através da América espanhola, Gage esperava inflamar seus companheiros ingleses para reivindicarem a herança que deveria ter sido deles – isso se ao menos Cristóvão Colombo tivesse navegado sob a Cruz de São Jorge. “Para meus conterrâneos, portanto, eu ofereço um Novo Mundo”, Gage declarou, “para ser o objeto de suas futuras Dores, Valor e Piedade”. Em seu livro, a “nação inglesa pode ver o tamanho da riqueza e da honra que ela perdeu pelo lapso do rei Henrique VII”.106 A monarquia Tudor impingira à Inglaterra a perda do maior de todos os prêmios – um vasto império americano, com milhões de vassalos indígenas civilizados, além de rios de ouro e prata que poderiam ter fluido para Bristol ao invés de Sevilha. Gage não foi o primeiro nem o último a lamentar o início tardio da ocupação inglesa no Novo Mundo. Os ingleses conheciam muito bem o império que seus antepassados haviam perdido. Eles passaram boa parte do século XVII tentando, tardiamente, como escreveu John Archdale, quacre da Carolina, “conseguir algum quinhão deste continente americano”.107 O sucesso espanhol na América inflamou as paixões da Inglaterra pela expansão ultramarina – na mesma medida em que a presença física, em si, na América do Norte definiu melhor os contornos dessas paixões e, ao mesmo tempo, as dificultou. 106  Thomas Gage, The English-American his Travaill by Sea and Land… (London: 1648). 107  John Archdale, “A New Description of that Pleasant and Fertile Province of Carolina, 1707,” Narratives of Early Carolina, 1650-1708 ed. Alexander S. Salley, Jr. (New York: Charles Scribner’s Sons, 1911), 287.

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A inveja imperial tomou muitas formas. Ingleses cobiçaram as riquezas espanholas não apenas na forma de metais preciosos, mas também em valiosas commodities e medicamentos que o “Casa do tesouro das Índias” 108 podia comprar. Além disso, desejavam emular o sucesso missionário espanhol entre os índios, ao mesmo tempo em que lamentavam a perda de tantas almas para o “papado”. Mas a presença espanhola também impactou mais diretamente a empresa colonial inglesa de maneiras mais concretas. O alcance geográfico do império espanhol contribuiu para o estabelecimento das primeiras colônias inglesas em locais que a Espanha considerava serem seus refugos territoriais no Novo Mundo. Os ingleses estabeleceram postos avançados na esperança de que estivessem fora do alcance efetivo dos espanhóis, promovendo – especialmente nos primeiros anos de colonização da Virgínia – fantasias coloniais nas quais repetiriam os sucessos de Cortés e Pizarro e construiriam um governo anglo-indígena, dessa vez protestante. Para os espanhóis, a Virgínia, primeira colônia permanente da Inglaterra na América, certamente parecia pequena, apesar de perigosa. A América espanhola definiu os primeiros limites geográficos da América inglesa. As primeiras colônias inglesas se fixaram nas bordas mais setentrionais da vasta periferia espanhola, e a política madrilenha estava determinada a mantê-las dessa maneira. Desde 1513, entradas espanholas tinham penetrado o interior da América do Norte. De fato, uma presença espanhola semipermanente não deixara intocado sequer lugares remotos como aquele. Jesuítas fundaram uma missão perto de Chesapeake na década de 1560, levando com eles um homem indígena que foi batizado como Don Luis, em homenagem ao Vice-rei da Nova Espanha, a quem o índio conheceu em sua viagem ao México.109 Uma década depois, os missionários retornaram com Don Luis a reboque, mas ele logo fugiu de volta ao seu povo e ajudou a destruir a missão. Embora os colonos ingleses parecessem possuir pouco conhecimento acerca da missão jesuíta, eles estavam bem cientes da iminente presença dos espanhóis – a um só tempo ameaçadora e sedutora. A Virgínia, então, era fundamentalmente um espaço indígena, mas também era uma área espanhola na qual, de início, os ingleses seguiriam regras espanholas. 108  NT: Treasure House of indies era a maneira pela qual se chamava Port Royal em meados do século XVII, por conta de suas riquezas comerciais e de navegação. 109  Ver Anna Brickhouse, The Unsettlement of America: Translation, Interpretation, and the Story of Don Luis de Velasco, 1560-1945 (New York: Oxford University Press, 2015).

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Cosmografia e reivindicações espanholas sobre a América britânica A Espanha já havia reivindicado as terras nas quais os ingleses iriam se estabelecer mais tarde. Independentemente dos espanhóis terem de fato explorado aquelas terras e promovido cerimônias de transferência de vassalagem com as populações locais, eles também reivindicaram terras através da cosmografia. O padron real – mapa secreto espanhol que englobava todo o mundo - era o meio usado pela coroa para incorporar vastas quantidades de novas terras ao patrimônio da monarquia. O padron era constantemente atualizado por cosmógrafos treinados na Casa de Contratação que utilizavam relatórios, questionários e consultas a pilotos, oficiais e conquistadores ou que simplesmente viajavam para o Novo Mundo para coletar materiais empíricos.110 Assim, na década de 1530, o contorno de um hemisfério inteiro, que anteriormente fora considerado como um conjunto de ilhas ao largo da costa da Ásia, foi esboçado e transformado em mappae mundi para a coroa presentear o Papa, financistas e outros monarcas. Estes mappae mundi procuraram estabelecer reivindicações de soberania sobre terras mal exploradas.111 Essas eram as terras que os ingleses acabariam por exigir como suas. O planisfério de Diego Ribero de 1529, por exemplo, delineou cuidadosamente as terras que acabariam por se tornar as Carolinas, Virgínia, Pensilvânia e Nova Inglaterra. Diego Ribero, para se assegurar, deu aquelas terras nomes diferentes dos dados pelos ingleses: Tierra de Garay, Tierra de Ayllon, Tierra de Estevan Gomez e Tierra Nova de Corte Real.

110  Para maiores informações, ver Maria Portuondo, Secret Science: Spanish Cosmography and the New World (Chicago: University of Chicago Press, 2009). 111  Sobre os primeiros mappae mundi espanhóis como instrumento de posse, ver Antonio Sánchez La Espada, la Cruz y el Padrón: soberanía, fe y representación cartográfica en el mundo ibérico bajo la Monarquía Hispánica, 1503-1598 (Madrid: CSIC, 2013).

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Fig. 1. Detalhe da Carta Universal en que se contiene todo lo que del mondo Se ha descubierto fasta agora, de Diego Ribero. 1529 (Biblioteca Apostólica Vaticana)

O mapeamento, a cartografia e a cosmografia permitiram a Espanha e Portugal reivindicar enormes extensões de terra nas Américas, na África e na Ásia antes de qualquer outro governo europeu fazer o mesmo. A posse através do mapeamento envolvia tecnologias e instituições que iam muito além de viagens e expedições. Os ibéricos criaram a Casa da Guiné (Portugal) e a Casa de Contratação (Espanha) para reunir cosmógrafos e pilotos, para que os eruditos pudessem ajustar os mapas às emaranhadas e conflituosas evidências empíricas oferecidas por aqueles voltavam das Índias. Os ibéricos também estavam na vanguarda de outras tecnologias que complementavam o mapeamento através da compilação de informações geográficas e etnográficas – as compilações de viagens. Na década de 1530 já havia dezenas de relatos de expedições circulando como manuscritos. Mercenários, pilotos, colonos e aventureiros descreveram suas viagens ao mesmo tempo em que pediam mercedes (recompensas) ao rei. Os eruditos, tanto na Espanha como nas Índias, consultariam conquistadores, pilotos e curiosos para organizar crônicas, relatos e compilações, produzindo relatos manuscritos e impressos de novas terras e novas conquistas. No início da década de 1550, já havia compilações impressas dessas façanhas escritas 208 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

por Pedro Martir de Anglería, Hernán Cortés, Gonzalo Fernández de Oviedo, Giovanni Ramusio, Pedro Cieza de León e muitos outros. Mapas e compilações de viagem ofereceram aos ibéricos a posse virtual, narrativa e espacial de territórios. Os ingleses invejavam o registro impresso, as compilações e as instituições cartográficas estabelecidas pelos ibéricos. Os grupos que mais fortemente pressionaram os Tudor e os Stuart pela criação de um império inglês nas Índias foram os que mais contribuíram para a criação de um registro escrito das narrativas de viagem para verificar e para documentar a posse. Richard Hakluyt e Samuel Purchas são casos exemplares. Hakluyt e Purchas procuraram apresentar os ingleses como uma nação propensa à viagem e à expansão, remontando no tempo até as monarquias dos tempos de Noé.112 O argumento da posse através de narrativas arquivadas de peregrinação nacional também foi acompanhado por convocações explícitas para emular instituições espanholas de cosmografia e mapeamento. Hakluyt queria que os ingleses emulassem os espanhóis e tivessem sua própria “Casa”, ou seja, um centro coordenador (como as “Casas” ibéricas) para que os relatórios dos pilotos fossem transformados em mapas por cosmógrafos instruídos para assegurar a posse.113 Foi o resultado acidental da batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos, que permitiria aos ingleses ganhar acesso a um conhecimento cartográfico mais preciso das Américas. Quando o rei de Portugal, D. Sebastião, morreu em batalha em 1578, se desencadeou uma disputa pela sucessão do trono que foi finalmente vencida por Filipe II, que estabeleceu acordos com a nobreza portuguesa para respeitar a autonomia do reino. Filipe I de Portugal também derrotou militarmente o seu principal rival, Dom António, Prior do Crato, em batalhas em Lisboa e nos Açores. Em 1581, Dom António e sua comitiva, que incluía cosmógrafos, acabaram em Paris, de onde mais tarde se mudariam para Londres.114 Se os ingleses não dispunham das instituições que permi112  Peter C. Mancall, Hakluyt’s Promise: An Elizabethan’s Obsession for an English America (New Haven, CT: Yale University Press, 2010). 113  Richard Hakluyt, Principal Navigations of the English Nation, 2 vols (London: 1599, original first edition 1589), 1:3r and 4 v. 114  Sobre o processo de sucessão português iniciado pela morte de Sebastião, ver Fernando Bouza, Felipe II y el Portugal “dos povos.” Imagenes de esperanza y revuelta (Universidad de Valladolid, 2001); Pedro Cardim, Portugal unido y separado : Felipe II, la unión de territorios y el debate sobre condición política del reino de Portugal (Universidad de Valladolid, 2014); Sobre a chegada do conhecimento cosmográfico português na Inglaterra através do exílio de Dom António, ver Karen Ordahl Kupperman, The Jamestown Project (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2007), 31.

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tiram aos ibéricos possuir cartograficamente as Américas, as batalhas geopolíticas de então acabaram por tornar possível aos ingleses contrabandear parte daquele precioso conhecimento. Uma vez que os ingleses chegaram atrasados ao jogo do mapeamento e da colonização, eles procuraram tornar suas aspirações territoriais explícitas e inquestionáveis, estampando mapas do Caribe, Virgínia e Nova Inglaterra com brasões reais.115

Fig 2. Mapa da Virgínia do Capitão John Smith, 1612.

Como os ibéricos, os ingleses aprenderam que a posse vinha através do mapeamento e da nomeação. Os primeiros mapas ingleses fizeram o que os espanhóis e portugueses faziam há muito tempo, ou seja, trataram a América como um palimpsesto dando à terra novos nomes ao seu bel prazer. Tal qual os ibéricos, os ingleses interpretaram erroneamente os nomes nativos e os colocaram em mapas como nomes de ilhas, rios, cabos e em muitos outros atributos geográficos. Os ingleses também batizaram novas aldeias com nomes dos lugares de onde originalmente provinham. Assim, Plymouth e Boston tornaram-se mais tarde os equivalentes ingleses de Cuenca, Cartagena e Guadalajara da América ibérica. Por fim, os ingleses também procuraram honrar seus monarcas 115  Sobre os primeiros usos ingleses de brasões de armas em mapas do Novo Mundo para assegurar posse, ver Ken MacMillan, “Centre and Periphery in English Maps of America, 15901685,” in Martin Bruckner, ed., Early American Cartographies (Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2011), 67-92.

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e assim batizaram Jamestown e Henrico em homenagem ao primeiro rei Stuart e seu herdeiro (que faleceria pouco depois). E, no entanto, os ingleses muitas vezes se renderam à nomenclatura que os ibéricos tinham estabelecido inicialmente. Durante a década de 1580 em Roanoke, o pintor John White acabou por reproduzir nomes espanhóis e portugueses da fauna e flora que encontrou.116 A relação dos ingleses com o mapeamento e nomeação ibéricos foi tortuosa e irônica. A “Virgínia” de Raleigh seria um lugar limpo de toda a impureza espanhola, um “solo virgem ainda não poluído com a luxúria espanhola”.117 Os ingleses conseguiram transformar sua fraqueza geopolítica em virtude: a posse da periferia do norte era, em si, boa porque os espanhóis haviam considerado esses territórios tão marginais que não valiam a pena serem colonizados.

Sobre os limites de La Florida Em setembro de 1608, Dom Pedro de Zuñiga, o embaixador espanhol na Inglaterra, despachou um mapa secreto da Virgínia ao rei Filipe III. Entre o labirinto de rios largos e navegáveis e as dezenas de populosas cidades indígenas, apenas um dos elementos do mapa realmente importava: o pequeno e triangular forte Jamestown. O forte deixava claras as intenções da Inglaterra de estabelecer uma colônia nos limites de la Florida. Zuñiga ou qualquer um na Espanha pouco sabiam a que ponto os ingleses na “Virgínia” iriam igualar as conquistas espanholas do último século. Na vila de Werowocomoco, os ingleses coroaram Wahunsonacock, mamanatowick (chefe supremo) dos Powhatans, numa tentativa farsesca de torná-lo vassalo do rei Jaime I. Com esse mapa contrabandeado, representando um incipiente assentamento cujos habitantes estavam, na verdade, próximos da ruína, a disputa secular entre Espanha e Inglaterra pela América do Norte finalmente começava de verdade. Mas as reivindicações espanholas na América do Norte estavam longe de se resolver. 116  Jorge Cañizares-Esguerra and Ben Breen, “Hybrid Atlantics: Future Directions for the History of the Atlantic World,” History Compass 11/8 (2013): 597–609. 117  Samuel Purchas in 1614, citado em Kupperman, Jamestown Project, 150.

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Naquele mesmo fatídico ano, 1608, muito ao sul, naquela parte da Flórida que propriamente se tornaria a província de Apalachee, um franciscano descalço, Frei Martín Prieto, pregou à população e negociou uma paz entre eles e seus vizinhos da província de Timucua.118 Em uma missiva ao governador de Santo Agostinho, forte espanhol na região desde 1565, Prieto conjeturou que metade da população Apalachee desejava receber o batismo católico.119 Quando Frei Prieto adentrou a região Apalachee e forjou a paz com os Timucua, ele o fez com a permissão dos caciques de ambos os povos. Para estas primeiras missões, os frades foram desacompanhados de soldados e somente com as bênçãos dos líderes indígenas. A cautela dos caciques apalaches ou sua incapacidade de proteger os frades de outros grupos hostis à missão obrigou os franciscanos a deixar, de tempos em tempos, a nova província entre 1608 e 1612.120 Eles recusaram o martírio - um destino para os abençoados - não por medo, mas em respeito ao que se tornara a doutrina estabelecida da posse colonial espanhola. Os frades tiveram que ser pacientes pois precisavam obter o consentimento dos señores naturales (senhores naturais) da região. Como legítimos governantes da região, o consentimento dos caciques era necessário para que os espanhóis entrassem e eventualmente tomassem posse de um território em nome do rei. Em comparação, as cerimônias inglesas de posse parecem mundanas. Ao invés de cruzes, cercas de madeira com formato em ziguezague declaravam a posse; o golpe de uma enxada na terra era a maneira inglesa de tomar posse, não o arranhar da pena de um notário em um pedaço papel ou o grito de aprovação de um cacique local.121 Mas os ditames do direito romano também eram importantes para os colonizadores ingleses. Quando Christopher Newport, em 1607, liderou um grupo rio James acima até suas Cataratas, o clímax da aventura deu-se com a ordem do capitão para que se “montasse uma Cruz com esta inscri118  John Hann, Apalachee: The Land Between the Rivers (Gainesville, FL: University of Florida Press, 1988), 10. 119  Hann, Apalachee, 11. 120  Hann, Apalachee, 100-101. 121  Patricia Seed, Ceremonies of Possession in Europe’s Conquest of the New World, 1492-1640 (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1995).

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ção Jacobus Rex. 1607. e seu próprio nome abaixo.”122 Reunindo-se em torno da cruz, os homens de Newport rezaram para o rei Jaime e com pomposos gritos “o proclamaram rei” da Virgínia. O significado dessa cerimônia de posse era grande o bastante a ponto de Newport esperar até que todos os índios tivessem ido embora, com receio de que eles pudessem indagar sobre a real intenção da cena. Só um índio, “Navirans”, estava lá para “admirar” o espetáculo. E, para ele, o líder inglês criou uma mentira astuciosa, dizendo que “os dois braços da Cruz significavam rei Powatah e ele próprio, e a amarra no meio representava a união de ambos, e o grito era a reverência dele a Pawatah.”123 Erguendo uma cruz, orando diante dela, e proclamando sob sua sombra a soberania de um rei distante foi o modo pelo qual os representantes da Companhia da Virgínia reivindicaram a posse. Tampouco uma “atividade ordinária de construção de casas” precedeu a elevação da cruz.124 Na verdade, o primeiro ato dos colonos da Virgínia, de acordo com John Smith, foi construir um forte para a sua planejada “grande cidade”, e edificá-lo “o mais rápido possível”.125 Os temores de índios hostis e de invasores espanhóis incitou a rapidez com que os ingleses construíram seu forte. Mas a paliçada possuía também um significado legal. O forte em Jamestown logo apareceu em mapas como o de Zuñiga circulando na Europa, sinalizando que os ingleses reivindicavam a posse da terra e estavam prontos para defender seus direitos sob a lei romana. Os advogados ingleses recorriam ao direito romano das nações, ou jus commune, quando desejavam produzir argumentos para a posse do Novo Mundo que satisfizessem outros príncipes europeus.126 Em termos de direito romano, a posse válida exigia uma combinação de animus e cor­pus - uma reivindicação apoiada pelo conhecimento do território e ocupação física, defensável pela força, se necessário. Os fortes eram, portanto, essenciais para estabelecer uma respeitável afirmação tanto do imperium como do dominium no Novo Mundo. 122  Gabriel Archer, “A Relatyon of the Discovery of Our River,” in Captain John Smith: Writings with Other Narratives of Roanoke, Jamestown, and the First English Settlement of America (New York: Literary Classics of the United States, Inc., 2007), 940. 123  Archer, “Relatyon,” in Captain Smith, 941. 124  Seed, Ceremonies, 17. 125  John Smith, “A True Relation,” in Captain Smith, 5. 126  Ken MacMillan, Sovereignty and Possession in the English New World: The Legal Foundations of Empire, 1576-1640 (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2006).

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Fazer tratados com governantes indígenas locais era outra maneira importante pela qual os colonizadores ingleses afirmavam suas reivindicações sobre a América do Norte.127 Os tratados fizeram mais do que transferir terra ou estabelecer regras para as interações entre nações indígenas e colônias inglesas. No direito romano, os tratados eram o resultado de um “consenso ad idem, de um ‘encontro das mentes’ ou de um acordo voluntário entre as partes, [que] servia de prova de que uma reivindicação estava pacificada ou sob controle.”128 O consentimento de governantes locais era um sinal de posse que outros poderes europeus reconheceriam sob o direito das nações. E tanto Las Casas como Francisco de Vitória afirmaram que os tratados ofereciam uma forma legítima de reivindicar a posse legalmente. A “Companhia” da Virgínia tinha diante de si um conjunto diverso de precedentes, políticas e propostas das quais podia se escolher como melhor colonizar as terras dos senhores naturais da América. Como o grande império transatlântico por mais de um século, o exemplo da Espanha se elevou na imaginação inglesa, assim como na França e na Holanda. E os trabalhos espanhóis forneceram a melhor informação sobre o Novo Mundo, salvo o que eles próprios conseguiram coletar de primeira mão. O desenvolvimento das colônias ultramarinas da Inglaterra foi dramaticamente influenciado pelas ideias ibéricas e pelas reviravoltas da geopolítica anglo-ibérica.

Geopolítica anglo-ibérica e a formação de colônias. Até meados do século XVII, os projetos ingleses imperiais (ou a falta deles) estavam atados às ações e experiências ibéricas. A expansão elisabetana estava totalmente subordinada à rivalidade geopolítica com a Espanha. A colonização de Munster na Irlanda e do Caribe e Virgínia nas Américas fazia parte de uma estratégia global que também incluía alianças comerciais e militares com os otomanos no Mediterrâneo e com 127  Jeffrey Glover, Paper Sovereigns: Anglo-Native Treaties and the Law of Nations, 1604-1664 (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2014). 128  Glover, Paper Sovereigns, 3.

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os holandeses nos Países Baixos, América, África e Ásia.129 A colonização de Munster se tornou uma prioridade depois que as rebeliões na Irlanda expuseram o apoio profundo dos Habsburgos espanhóis aos rebeldes irlandeses católicos romanos como Shane O’Neil (década de 1560) e Gerald Fitzgerald, conde de Desmond (década de 1570). Muitos dos elisabetanos envolvidos na colonização inglesa das Américas estavam profundamente envolvidos na colonização de Munster, um projeto que para muitos observadores ingleses se assemelhava ao da Reconquista espanhola: a expulsão de comunidades heréticas locais e sua substituição por coreligionistas famintos por terras. Após o fracasso dos Tudor em transformar os camponeses irlandeses e seus substitutos escoceses e ingleses em Munster em anglicanos civilizados, os Stuarts iniciaram o século com um novo projeto colonial em Ulster com o mesmo modelo: realocação de rebeldes irlandeses católicos e sua substituição por colonos escoceses e ingleses. Em 1606, Sir John Davies afirmou que o projeto colonial inglês na Irlanda tinha um claro precedente na remoção espanhola “dos mouros de Granada para Berbéria.”130 A colonização elisabetana da América foi inteiramente reativa e parte de uma estratégia maior de cortar as linhas de abastecimento espanholas. As colônias em Roanoke, na Flórida, e nas Antilhas deveriam ser postos avançados para corsários como Hawkins ou Drake, cujas missões eram saquear vassalos e portos espanhóis no Atlântico e no Mar do Sul. A localização das colônias estava inteiramente subordinada à pirataria, mas, por vezes, a colonização Tudor procurou ir além de oferecer apoio logístico para a flibustaria. A obsessão de Raleigh com a Guiana tinha pouco a ver com a simples interrupção das rotas transoceânicas espanholas. Ainda assim, a Guiana de Raleigh não conseguiu escapar da sombra da Espanha. Como muitos elisabetanos, Raleigh estava obcecado com a descoberta de uma sociedade de grandes Incas com seu próprio tesouro dourado enterrado, disponível para saquear, sobre a qual poderiam governar e comandar grandes quantidades de trabalho dócil, disponível para trabalhar nas minas. Em suma, Raleigh empenhou sua 129  Kupperman, Jamestown Project, cap. 1-2. 130  Davies citado em Kupperman, Jamestown Project, 208-207. Sobre a colonização inglesa de Munster e Ulster, see Nicholas Canny, Making Ireland British, 1580-1650 (New York: Oxford University Press, 2001). Sobre o projeto colonial ingles na Irlanda em relação à geopolítica espanhola, ver John J. Silke, Kinsale: The Spanish Intervention in Ireland and the End of the Elizabethan Wars (New York: Fordham University Press, 1970).

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vida e a de seu filho na busca do equivalente ao Peru espanhol em algum lugar do Orinoco e da Amazônia.131 A transição da dinastia Tudor para Stuart veio com grandes mudanças geopolíticas. Jaime I pôs um fim à estratégia elisabetana de pirataria global destinada a enfraquecer o beemote ibérico. Colônias como Roanoke, portanto, não faziam mais sentido. Os tipos de postos avançados coloniais que Jaime I encorajava se assemelhavam às feitorias portuguesas, que se estendiam desde o Mediterrâneo Oriental até a África, do sul da Ásia à América.132 A própria fraqueza da monarquia inglesa explica a passagem para o modelo quinhentista português de colonização, por meio através de cartas régias de monopólios mercantis privados, destinados a estabelecer vastas redes comerciais. Jamestown foi originalmente concebida para ser um posto fortificado de comércio, não uma colônia em estrito senso, com colonos permanetes vivendo ali. As companhias da Virgínia e das Índias Orientais foram criadas logo após Jaime I assinar um tratado de paz com a Espanha; essas companhias não procuraram incorporar terras e governantes indígenas à monarquia compósita que Escócia e Inglaterra haviam se tinha tornado. A história de Jamestown entre 1607 e 1614 não é outra que não de repetidos esforços frustrados feitos por uma companhia com carta régia visando extrair um produto local rentável através do comércio, enquanto mantinha a qualquer custa um conjunto de enclaves fortificados. E, desde 1611, ela fora governada como um posto avançado militar-comercial através de lei marcial. Ao chegar, o novo governador militar, Sir Thomas Dale, imaginou Jamestown como uma colônia penal portuguesa de degradados: aqueles condenados à morte deveriam ser enviados para a Virgínia “assim como fazem os espanhóis em suas Índias”.133 A Companhia enviou artesãos para desenvolver o trabalho com ferro e vidro para fornecer a Powhatan machados e contas de conchas, conhecidas como wampum, em troca de peles ou qualquer outro produto potencialmente valioso. Jamestown também foi encarada como posto avançado intermediário no caminho para a Ásia. Os ingleses lançaram 131  Christopher Heaney, “The Ingas of Inglatierra: English Grave-Opening in the Peruvian Atlantic and the Extirpation of Indigenous History, 1554-1622,” sob análise na American Historical Review. 132  Kupperman, Jamestown Project, cap. 6. 133  Dale citado em Kupperman, Jamestown Project, 258.

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expedições fluviais cartográficas em direção ao interior do continente, convencidos de que uma passagem para o Mar do Sul estava próxima de ser alcançada. Como qualquer feitoria portuguesa bem-sucedida, o modelo incluiu a incorporação de aliados indígenas através de alianças matrimoniais e o intercâmbio de criados, isto é, crianças que cresceriam aculturadas e totalmente familiarizadas com ambos os modos de vida.134 Um dos pioneiros do modelo inglês de feitoria nas Américas, Martin Frobisher, foi deixado para trás por uma tripulação inglesa na África Ocidental portuguesa, onde se tornou um tradutor fluente.135 Como nem as feitorias nem os atalhos para a Ásia se concretizaram, a Companhia inaugurou, em 1614, uma nova abordagem. A nova diretriz visava a diversificação agrícola através de plantações locais. Originalmente se procurou trazer a Ásia para a América desenvolvendo plantações de seda (amoreiras). Também se incentivou o plantio de produtos agrícolas, como o tabaco bermudense, para as exportações.136 A nova estratégia foi uma tentativa deliberada de imitar os sucessos do colonialismo espanhol nas Américas: cidades auto-replicantes de tipo europeu, com seus ameríndios convertidos nos arredores e no interior que dela dependia, ambos, ciadade e interior, produzindo receitas para monarcas e financiadores. A prata da Inglaterra era o bacalhau da Nova Inglaterra e Nova Escócia, além do tabaco da Virgínia. Para o capitão John Smith, a pesca da Nova Inglaterra “pode ser tão lucrativa quanto a melhor Mina que o Rei de Espanha tem nas Índias Ocidentais”.137 A Companhia também deliberadamente importou modelos espanhóis de assentamentos urbanos, incluindo o planejamento citadino em forma de tabuleiros e ao redor de praças.138 O novo modelo envolveu a criação de colônias autônomas, que se auto-governavam por seus próprios habitantes (creoles) e, em 1619, a Assembleia da Virgínia se 134  Kupperman, Jamestown Project, cap. 7. 135  James McDermott, Martin Frobisher: Elizabethan Privateer (New Haven, CT: Yale University Press, 2001). 136  Kupperman, Jamestown Project, cap. 8-9. 137  John Smith, Advertisements for the unexperienced Planters of New England, or any-where (London: 1631), cap. 8, p. 36. 138  Sobre as instruções para a criação de um traçado urbano de modelo espanhol na Virginia, ver Virginia Company, “Instructions to Gates,” in David B. Quinn, ed. New American World: A Documentary History of North America to 1612. 5 vols (New York: Arno Press, 1979), 5:214-215 e Virginia Company to Governor and Council of Virginia, August 1, 1622, in Susan Myra Kingsbury, ed. Records of the Virginia Company of London, 4 vols (Washington DC, 1906-1935), 3:666-673.

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reuniu pela primeira vez. O novo modelo também procurou ativamente a incorporação dos Powhatan como vassalos cristãos, que deveriam ser convertidos e educados em colégios para indígenas, como no México e no Peru. A Companhia investiu ideológica e financeiramente na tentativa de converter os nativos ao cristianismo, implantando discursos escatológicos milenaristas semelhantes ao espanhol.139 Jamestown, finalmente, começou a mostrar sinais de prosperidade. O sucesso com o tabaco levou à expansão desse novo tipo de colonialismo, de povoadores, sobre terras indígenas, o que, por sua vez, levou a um levante nativo em 1622. Os Powhatans tentaram lançar um golpe decisivo sobre os ingleses na Virgínia, matando um terço da população de colonos. Na esteira do assalto de 1622, o Espanhol que tinha como padrão a Leyenda Negra tornou-se o modelo a se abraçar. A Companhia continuou a defender a conversão e o trabalho missionário, mas também o uso de violência propedêutica contra os ameríndios durante a década seguinte. A rebelião também levou a coroa a uma reavaliação de suas políticas de governo através de procuradores comerciais. A Companhia da Virgínia foi eliminada em 1624 e os Stuarts recorreram a órgãos governativos semelhantes aos espanhóis para governar a colônia diretamente, instituições que se assemelhavam ao Conselho das Índias, audiencias e vice-reis, entre eles o Conselho da Virgínia e o governador real. Mais importante ainda, os Stuarts começariam a verdadeiramente considerar os nativos como vassalos a serem protegidos de colonos predadores, bem como as organizações políticas indígenas como partes genuínas da monarquia composta.140 Historiadores como Karen Kupperman têm argumentado que a história da colonização da Virgínia foi resultado do acaso e da descoberta através de tentativa e erro. Durante décadas, os ingleses tentaram e falharam em erguer Roanoke e, mais tarde, Jamestown, do chão, até que, finalmente, descobriram que as colônias compostas apenas de jovens homens governados por lei marcial estavam fadadas a acabar em fracasso. Foi somente depois que a Companhia permitiu o autogoverno colonial, um generoso acesso à terras para produção agrícola aos recém-chegados 139  Sobre missões indígenas na Virgínia e o colégio para nativos americanos, ver Kupperman, Jamestown Project, 244-245, 295-299. 140  Sobre o sucesso do colonialismo de povoamento como causa da rebelião Powhatan de 1622 e as reformas que ela desencadeou, ver Kupperman, Jamestown Project, cap. 9.

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e o desenvolvimento de instituições “normais” (incluindo a vinda de mulheres e famílias) que a Virgínia finalmente começou a prosperar e gerar lucros para os acionistas. Mas a história da Virgínia também pode ser lida através do prisma da “inveja” que os ingleses tinham da Espanha. Roanoke foi inicialmente considerado como um posto avançado de pirataria contra a Espanha. Jamestown foi então concebida como uma feitoria de modelo português que incluía até mesmo o potencial uso de degradados. Por fim, Jamestown só começou a parecer viável para os ingleses depois de 1614, quando a Companhia usou modelos espanhóis de colonialismo e a incorporou plenamente os ameríndios como vassalos convertidos. O processo talvez tenha a aparência de tentativa e erro por causa dos muitos modos diferentes pelos quais os ingleses usaram a experiência e o pensamento espanhóis. As lições que os ingleses tiraram de Espanha foram amplamente variadas. Alguns ingleses tinham a esperança de libertar os índios que sofriam sob o jugo espanhol, enquanto outros se esforçavam para seguir os passos dos conquistadores espanhóis e subjugar um novo Peru. Para outros ainda, a Espanha era anti-cristã, e o tratamento que ela dispensava aos índios, bárbaro; e sua existência deveria apenas inspirar pavor no coração de protestantes decentes. A Espanha, portanto, era um modelo a ser evitado. E havia outros ingleses que promoviam a “Leyenda Negra”, mas que honravam os reformadores espanhóis como Las Casas (quem de fato a havia criado), extraindo lições de seus escritos sobre os melhores e mais justos meios de proceder com os índios no novo Mundo. Havia “sonhos de libertação” e sonhos de emulação. Ambos tiveram um impacto duradouro.

Sonhos de libertação e sonhos de emulação Em sua coroação em Werowocomoco em 1608, Powhatan recusara a se ajoelhar. Os ingleses presentes na cerimôia se inclinaram com força sobre os ombros de Wahunsonacock como se, fisicamente, o forçassem a se sujeitar à Coroa da Inglaterra. Os europeus já estavam resmungando que a cerimônia estava acontecendo nos domínios de Powhatan e não em Jamestown. Essa proposta de Christopher As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Newport fora recusada pelo mamanatowick. John Smith relatou que Wahunsonacock declarara: “Se o seu rei me enviou presentes, eu também sou um rei, e esta é a minha terra.”141 O mamanatowick tinha mantido seus direitos como senhor natural da região, recusando o consentimento que os ingleses queriam. Depois da resposta astuta de Powhatan, teria sido coincidência que no ano seguinte, em 1609, Richard Hakluyt, o jovem, trouxesse à luz uma tradução do relato do Cavalheiro de Elvas sobre a brutal entrada de Hernando de Soto? A história da expedição de Soto na obra Virginia Richly Valued, escreveu Hakluyt em sua epístola dedicatória à Companhia da Virgínia, “traz muita luz para nossa empresa que ora se edifica”, incluindo “as qualidades e características dos habitantes, ou qual é o melhor caminho a ser tomado com eles.”142 Para os líderes da colônia da Virgínia, desgostosos do fiasco da coroação e da resposta majestática de Powhatan, Hakluyt afirmou que, na história de Elvas, encontrar-se-iam índios “muito eloquentes e bem versados. “Mas para além de seus discursos justos e astutos, eles não são de todo confiáveis: porque eles são os maiores traidores do mundo, com suas mais variadas, engenhosas, elaboradas e sangrentas traições, aqui fartamente demonstradas, como evidentemente se prova.” Os caciques nas páginas que se seguiram eram “inconstantes como uma veleta ... grandes mentirosos e dissimuladores.” Se os meios justos falham com eles, então os soldados ingleses, “treinados nos Países Baixos”, servirão para subjugarem os índios rebeldes. Richard Hakluyt, cujas coleções de jornadas e viagens acabaram por formar o fundamento intelectual do império marítimo e comercial britânico, terminou o racionínio com um floreio digno do capelão de um conquistador. Hakluyt rezou “para que os dolorosos Pastores fossem reverenciados e queridos, o valente e corajoso soldado respeitado, o diligente recompensado, o covarde encorajado, o debilitado e o doente aliviados, o amotinado reprimido, a reputação dos Cristãos entre os selvagens ​​preservada, a nosso mais santa fé exaltada, todo paganismo e idolatria, pouco a pouco, completamente extintos.”143 Este não era nem de longe o seu conselho usual para a promoção do comércio. A novidade das circunstâncias na Virgínia, um lugar nos limites da Flórida, levou os ingleses a se voltarem 141  John Smith, “The Proceedings of the English Colonie in Virginia,” in Captain Smith, 73. 142  Richard Hakluyt, Virginia richly valued, by the description of… Florida (London: 1609), i. 143  Hakluyt, Virginia, v-vi.

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para outros precedentes para orientação; afinal, trava-sede uma situação inteiramente nova para eles. A América espanhola forneceu uma importante fonte desses precedentes nos primeiros anos. Mas o relacionamento era ambivalente. Como Eric Griffin afirmou, “podemos ver a hispanofilia e a hispanofobia andando de mãos dadas” em grande parte do “corpus da escrita colonial da Inglaterra”.144 Mas o que os ingleses fizeram dos relatos espanhóis no Novo Mundo variou dependendo do autor, do tempo, do lugar e das exigências da situação. De todos esses usos concorrentes do saber da Espanha, estudiosos identificaram duas grandes correntes de pensamento. Em seu clássico relato sobre a Virgínia colonial, Edmund S. Morgan caracterizou as aspirações inglesas no Novo Mundo como “sonhos de libertação”.145 Os ingleses imaginavam libertar os índios do que Richard Hakluyt havia chamado, em 1585, de “crueldades maiores do que as dos turcos” feitas pelos espanhóis. Os “pobres indígenas”, que eles imaginavam sofrendo sob o jugo espanhol, ofereciam aos ingleses um caminho tanto para as riquezas como para a redenção. Os relatórios das missões de reconhecimento e as volumosas obras de propaganda anti-espanhola convenceram muitos ingleses de que os índios, em lugares como o México e o Peru, estavam prontos para a rebelião, e que, de bom grado, substituiriam seus senhores espanhóis em favor do “governo ameno” dos ingleses. Com a ajuda indígena, os ingleses poderiam derrubar os espanhóis e tomar seu império bem embaixo de seus narizes. A riqueza adquirida não seria nada em comparação com os frutos espirituais de tal vitória. A salvação das almas americanas redimiria a Inglaterra e a impulsionaria para o primeiro posto das nações protestantes em sua cruzada contra o papado. A Espanha como antítipo, como o antimodelo, sem dúvida contribuiu muito para a gênese da expansão inglesa. Libertar o Novo Mundo da dominação espanhola era um tema persistente no pensamento inglês e teve uma vida muito longa, apesar das atrocidades que os índios sofreriam em suas mãos a partir do século XVII. Visões de índios oprimidos e comunidades de amigáveis negros quilom144  Eric Griffin, “The Specter of Spain in John Smith’s Colonial Writing,” in Envisioning an English Empire: Jamestown and the Making of a North Atlantic World eds. Robert Appelbaum and John Sweet (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2005), 132. 145  Edmund S. Morgan, American Slavery, American Freedom: The Ordeal of Colonial Virginia (1975; repr., New York: History Book Club, 2005), cap. 1.

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bolas ​​que haviam escapado à escravidão inspiraram ingleses, como Sir Francis Drake e o jovem Hakluyt, a acreditar que a América espanhola se renderia facilmente a eles. Mesmo na Virgínia, eles imaginaram seu trabalho como o de libertação dos pobres índios da idolatria, da ignorância e da ameaça do domínio espanhol. Se o paradoxo de como a liberdade surgiu no meio da escravidão está no coração da obra clássica de Edmund Morgan, então o outro paradoxo é como, depois de professar essas boas intenções, os ingleses conseguiram suprimir os índios tão brutalmente como imaginaram que os espanhóis haviam feito. A partir das primeiras percepções idealizadas de índios inocentes - que o obstinado materialista Morgan admite assumir com alguma ressalva –, a experiência na Virgínia levou os ingleses a conclusões muito diferentes. Como Morgan observa, ao longo do século XVII os índios perderam sua humanidade aos olhos dos colonos ingleses. “Havia algo diferente sobre os índios”, explica Morgan, “qualquer que seja a nação ou tribo ou grupo a que pertençam, não eram policiados, nem cristãos, talvez nem tão humanos como o eram os brancos cristãos europeus. Não era bom tentar lhes dar participação na sociedade - eles ficaram de fora da sociedade.”146 Sociedade, então, significava o mundo que ricos plantadores de tabaco estavam forjando em Chesapeake, com terra indígena e trabalho africano - não exatamente aquela que tanto libertadores quanto emuladores tinha em mente. Mas tão poderosos quanto esses “sonhos de libertação” eram os “sonhos de emulação”. Até mesmo o próprio Henrique VII tentou compensar seu famoso engano, empregando John Cabot na década de 1490 para navegar para a América do Norte sob bandeira da Inglaterra. Uma voga para imitar os espanhóis atingiu nova estatura em meados do século XVI, quando a rainha Maria da Inglaterra se casou com o príncipe Filipe da Espanha. Uma série de tradutores “inglesaram” obras espanholas durante este período, alimentando renovado entusiasmo sobre o Novo Mundo. Essas obras - e inúmeras outras que foram impressas ao longo dos anos seiscentos - forneceram a forragem para os pretendentes a conquistadores, de Sir Walter Ralegh ao Capitão John Smith. Eles esperavam encontrar um novo Peru com sociedades indígenas tão sofisticadas e tão ricas como as que haviam lido sobre os Andes. As obras de pensadores espanhóis influenciaram fortemente as primeiras 146  Morgan, American Slavery, American Freedom, 233.

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políticas da Companhia da Virginia, que estabeleceu a primeira colônia permanente da Inglaterra na América do Norte. Os “sonhos de emulação” tomaram muitas formas e acompanharam as correntes de pensamento que fluíram da Espanha para a Inglaterra, muitas vezes sob a forma de livros. Aventureiros ingleses mergulharam em uma mistura inebriante de narrativas de conquista espanholas, farmacopeias do Novo Mundo, tratados legais e filosóficos. O heroísmo espanhol no Novo Mundo encorajou tanto os humanistas ingleses quanto os aspirantes a conquistadores.147 Em 1550, após as núpcias de Mary Tudor e Filipe II, Richard Eden escreveu versos como “curve-se, Inglaterra curve-se, e aprenda a conhecer vosso senhor e mestre”, exortando seus compatriotas a aprender com os espanhóis. Eden esperava alimentar nos corações ingleses o fogo da ambição por glória no Novo Mundo. Os espanhois na América foram comparados a “deuses feitos de homens.”148 Sir Walter Ralegh, em sua History of the World, fez uma pausa para “elogiar a paciente virtude do espanhol”. “Nós raramente ou nunca encontramos uma nação que tenha suportado tantas desventuras e angústias como tiveram os espanhóis em suas descobertas nas Índias”, escreveu Ralegh. “No entanto, persistindo em suas empresas, com invencível constância, eles anexaram ao seu reino tantas boas províncias, como enterraram a lembrança de todos os perigos passados.”149 A tenacidade espanhola, ao menos essa devia ser sua esperança, soergueria os espíritos dos colonizadores ingleses que tinham, até então, provado apenas do desapontamento e fracasso. Com o tempo, grandes reinos e tesouros seriam deles. O Capitão John Smith também elogiou os homens que haviam navegado ou lutado sob as bandeiras dos espanhóis pelos vastos domínios conquistados. Aqueles como “Colombo, Cortés, Pizarro, Soto, Magalhães” tinham, “eles próprios, passado de pobres soldados a grandes capitães, sua posteridade a grandes senhores, seu rei a ser um dos maiores potentados da Terra, e os frutos de seus trabalhos, sua maior glória, poder e renome”.150 147  Andrew Fitzmaurice, Humanism and America: An Intellectual History of English Colonisation, 1500-1625 (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003). 148  Discutido e citado em Fitzmaurice, Humanism and America, 34-35. 149  Citado em Irving Albert Leonard, Books of the Brave: Being an Account of Books and of Men in the Spanish Conquest and Settlement of the Sixteenth-Century New World (1949, repr.; Berkeley, CA: University of California Press, 1992), 10. 150  John Smith, “A Description of New England,” in Captain Smith, 136-137.

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Livros também ofereciam vislumbres da riqueza e felicidade que os ingleses poderiam ganhar. Os espanhóis tinham provado que as Índias eram uma “casa do tesouro”. A emulação surgiu da inveja imperial - a cobiça das riquezas espanholas. Estudos recentes, como os de Peter Mancall, nos lembraram que, para pessoas como Richard Hakluyt, a Inglaterra era uma triste ilha de pragas, ociosidade e terremotos, que vários intérpretes tentaram explicar, geralmente em referência aos pecados da nação. Para Hakluyt, as Índias eram ao mesmo tempo um armário de remédios para curar os doentes da Inglaterra e um lugar onde a população inglesa poderia crescer livre da doença europeia.151 Mancall também aponta que a percepção de Hakluyt sobre as raízes do poder espanhol era mais sofisticada do que os estudiosos anteriormente imaginaram. Enquanto o ouro tinha sido o clamor do conquistador, observadores ingleses como Hakluyt notaram que talvez a verdadeira riqueza da Espanha estivesse na agricultura, especialmente os rebanhos de gado e ovelhas que pastavam nas haciendas americanas. E uma vez que o assentamento inglês começou, a visão de plantações espanholas durante escalas no Caribe forneceu as primeiras impressões da colonização americana.152 Prata e ouro, naturalmente, mereciam a admiração inglesa. Os ingleses procuravam minas em todos os lugares a que iam, até mesmo em Tânger.153 Mas nessas primeiras imaginações, os sonhos de riqueza dependiam do sucesso inglês na conversão e domínio dos índios. O exemplo da Espanha encorajou as aspirações dos ingleses. Os viajantes ingleses também produziam notícias sobre a natureza do governo espanhol das Índias desde meados do século XVI. Algumas dessas “etnografias jurídicas” se tornaram parte das grandes compilações de Richard Hakluyt, o jovem, e Samuel Purchas. Principall Navigations, de Hakluyt, em 1589, incluiu o relato do México feito por um comerciante anglo-sevilhano chamado Henry Hawkes. “E se qualquer espanhol”, relatou Hawkes, “acabar por fazer algum mal a eles, ou lhes engana ao tomar qualquer coisa dele, como muitas vezes o fazem, ou ataca a qualquer um deles, estando em qualquer cidade, onde a justiça 151  Mancall, Hakluyt’s Promise, 46-47. 152  April Lee Hatfield, Atlantic Virginia: Intercolonial Relations in the Seventeenth Century (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press,2004), 7. 153  Alison Games, The Web of Empire: English Cosmopolitans in an Age of Expansion, 15601660 (New York: Oxford University Press, 2008), 11.

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está, eles são também punidos como se o tivessem feito um espanhol a outro.” Por mais elevada que fosse a posição do espanhol, por mais humilde que fosse o índio de quem abusara, por mais distante da cidade do México que tivesse ocorrido a ofensa, Hawkes via a justiça sendo feita. No México, “os índios são muito favorecidos pelos Justiça de lá e chamam-lhes seus órfãos.”154

Peru Protestante Quando o plano de tornar Powhatan um dócil vassalo desabou em 1608, a Companhia da Virgínia perseguiu outra estratégia: transformaria seu povo em tributários que, por sua vez, poderiam esperar a proteção da Coroa inglesa. O precedente espanhol no México e no Peru teve a ver com essa decisão tanto quanto o fato do cacicado dos Powhatan ser organizado em uma base tributária. Na verdade, a literatura da colonização espanhola incentivou os primeiros aventureiros da Virgínia a conceberem a terra que estavam invadindo em termos indígenas. Os ingleses observaram cuidadosamente os contornos políticos e os limites de Tsenacommacah e esperaram impor sua própria autoridade sobre esse reino indígena, tal como imaginavam que os espanhóis haviam feito em suas grandes conquistas.155 O efeito cumulativo de tais políticas levou Eliga Gould a afirmar sem qualquer ironia que “os ingleses passaram os primeiros quinze anos na Virgínia tentando transformar a colônia em uma espécie de México protestante”.156 154  Henry Hawks, “A relation of the commodities of Nova Hispania, and the maners of the inhabitants, written by Henry Hawks merchant, which lived five yeeres in the sayd country, and drew the same at the request of M. Richard Hakluyt Esquire of Eiton in the county of Hereford, 1572,” in Richard Hakluyt, The Principal Navigations, Voyages, Traffiques & Discoveries of the English Nation Made by Sea or Over-land to the Remote and Farthest Distant Quarters of the Earth at any time within the compasse of these 1600 Yeeres, vol. IX (Glasgow, Scotland: James MacLehose and Sons, 1903), 394. 155  Ver April Lee Hatfield, “Spanish Colonization Literature, Powhatan Geographies, and English Perceptions of Tsenacommacah/Virginia,” The Journal of Southern History 69, no. 2 (May, 2003), 245-282. 156  Eliga H. Gould, “Entangled Histories, Entangled Worlds: The English-Speaking Atlantic as a Spanish Periphery,” American Historical Review 112, no. 3 ( Jun., 2007), 769.

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Talvez falar “Peru Protestante” seja igualmente possível. Típico das visões de inspiração espanhola que deslumbraram a imaginação dos primeiros impulsionadores da Virgínia foi a Historie of Travell into Virginia Britania, de William Strachey, em 1612. Ao encontrar Powhatan pouco disposto a se submeter como vassalo, Strachey e a Companhia da Virginia o estigmatizaram como tirano cujo povo viveria melhor sob o domínio inglês. Eles “manteriam suas terras como burgos livres e cidadãos, com os ingleses e súditos do rei Jaime, que lhes dará justiça e os defenderá contra todos os seus inimigos”.157 E as obrigações tributárias encorajariam os “naturais” a desenvolverem a capacidade agrícola do lugar. Tendo lido as descrições feitas em 1590 por John Ellis sobre os nobres indígenas que viviam ao redor de Potosí, Strachey argumentou que, como eles, os Powhatans se beneficiariam de viver sob o domínio de um monarca europeu. Como os andinos tinham sob o Rei da Espanha, os Powhatans, afirmou Strachey, “encontram-se num estado muito melhor do que o atual destes: os caciques ou comandantes de vilas de índios no Peru, às quais os Virginianos chamam Weroances,embora paguem grande tribute ao rei de Espanha, pelo fato de realizarem trocas com os espanhóis com o que lhes sobra, eles não só mantêm uma grande hospitalidade e tem rico mobiliário, cavalos e gado, como, segundo assegura o Cap. Ellis, que entre eles viveu alguns anos, a dieta deles lhes é servida em travessas de prata e muitos deles tem espanhóis que atendem a suas casas.”158 Sem dúvida, o Império Britânico no século XVIII foi, na postulação clássica de David Armitage, “protestante, comercial, marítimo e livre”.159 Mas, por algum tempo, muitos ingleses imaginaram um império que era evangelizador, territorial, tributário e justo. Mas a justiça não era uma questão simples. O Tahuantinsuyo de Tidewater imaginado por William Strachey, com “Caciques” Powhatan pagando leves tributos como “burgos e cidadãos livres” do rei Jaime, era um padrão de justiça - de bom governo - ao qual os ingleses aspiravam. E a conquista poderia tornar tudo isso possível. Afinal, a subjugação do Peru era um caso longo e violento como bem sabia Strachey. A felicidade e riqueza que naquela época desfrutavam os nobres andinos 157  William Strachey, “The Historie of Travell into Virginia Britania,” in Captain Smith, 1074. 158  Strachey, “Historie,” in Captain Smith, 1074. 159  David Armitage, The Ideological Origins of the British Empire (New York: Cambridge University Press, 2000), 173.

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só haviam chegado através da lei, depois que as armas os trouxeram à obediência. Os libertadores haviam repudiado a conquista espanhola caracterizando-a como uma bagunça sangrenta que havia despovoado continentes. Qual foi a alternativa e a partir de quais fontes procuraram moldá-la? Não houve nenhuma consideração profunda ou receio entre os ingleses enquanto eles próprios procuravam despojar os senhores naturais do local que queriam colonizar?

As dimensões morais lascasianas do plantio Quando Samuel Purchas apresentou trechos dos escritos de Bartolomé de Las Casas aos seus leitores ingleses, ele elogiou o frade dominicano por sua coragem e sua devoção à honra de seu monarca. “De minha parte”, afirmou Purchas, “eu honro a virtude em um espanhol, em um frade, em um jesuíta.”160 O tópico em “questão era a alteração do governo nas Índias fruto da gentileza dos reis da Espanha,” Purchas explicou, “que os [os índios] libertaram da escravidão, e melhor ordenaram tanto seus estados corporal quanto espiritual, como antes lemos em Herera”.161 Honrar um espanhol virtuoso era talvez a parte mais difícil. Mas o que, na verdade, um inglês poderia ter aprendido com ele? Por que publicar o relato senão para apresentar os crimes da Espanha para o mundo? Os escritos de Las Casas circularam na Inglaterra muito antes de Purchas publicar sua compilação. Em 1583, a Brevísima relación de la destrucción de las Indias de Las Casas apareceu em um tradução inglesa como The Spanish Colonie. Junto com as denúncias de Las Casas sobre os conquistadores, o tradutor incluiu excertos do debate do dominicano em Valladolid com Juan Ginés de Sepúlveda. É certo que o interesse da pessoa que “inglesou” a compilação resisida na rejeição de Las Casas às bulas papais que haviam servido como base original das reivindicações de posse espanhola sobre o Novo Mundo. Na obra havia também as 160  Samuel Purchas, Hakluytus Posthumus or Purchas His Pilgrimes: Contayning a History of the World in Sea Voyages and Lande Travells by Englishmen and others by Samuel Purchas, B. D., vol. XVII (Glasgow, Scotland: James MacLehose and Sons, 1906), 81. 161  Purchas, Purchas His Pilgrimes XVII, 81.

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opiniões do frade sobre a capacidade dos nativos que dava a eles o direito a receber atenção cristã e direitos como vassalos. O pensamento Lascasiano e da Escola de Salamanca sobre a capacidade e os direitos dos nativos foi suscetível a diferentes interpretações. Os colonizadores ingleses do século XVII - especialmente na Virgínia - começaram no ponto onde os pensadores espanhóis mais avançados como Las Casas tinham deixado o debate sobre os direitos indígenas. Os primeiros colonizadores ingleses começaram com a humanidade básica e a natureza social dos índios como premissas ideológicas. Os Powhatans atendiam a diversos critérios-chave para a civilidade. “Esses testes incluíam ter uma linguagem complexa, governo constituído por uma hierarquia hereditária, organização da sociedade em cidades e agricultura, que implicava cuidado em prover para o dia seguinte. A religião também era necessária para as verdadeiras sociedades.” Para os ingleses, como para os espanhóis, “a vida citadina era superior a qualquer tipo de vida dispersa”.162 Para colocar nos termos dos teólogos e filósofos que debateram a questão na Espanha, os índios viviam politicamente. Eles tinham suas próprias religiões, leis e governantes. Eles não eram, na formulação de José de Acosta, behetrias, ou homens sem senhores - embora alguns ingleses, em outras ocasiões, tenham escolhido nomeá-los como tal.163 Na Nova Inglaterra, a influência Lascasiana era, talvez, a mais forte. Os feitos de Cortés e Pizarro foram pouco invejados em Plymouth ou Boston - embora eles compartilhassem semelhanças estruturais com o colonialismo espanhol, incluindo a crença de que a colonização envolvia uma missão sagrada para expulsar o Diabo.164 Os Peregrinos separatistas e os puritanos da Colônia da Baía de Massachusetts, nas décadas de 1620 e 1630, abominavam a coleta de tributos dos índios pois esta era uma prática dos espanhóis em todo o Novo Mundo.165 O colonialismo na Nova Inglaterra valorizava terra indígena terra - despojada de índios 162  Karen Ordahl Kupperman, Indians and English: Facing Off in Early America (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2000), 78. 163  Andrew Fitzmaurice, “Moral Uncertainty in the Dispossession of Native Americans,” in The Atlantic World and Virginia, 1500-1624 ed. Peter C. Mancall (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2007), 403. 164  Ver Jorge Cañizares-Esguerra, Puritan Conquistadors: Iberianizing the Atlantic, 1550-1700 (Stanford, CA: Stanford University Press, 2006). 165  Jenny Hale Pulsipher, Subjects unto the Same King: Indians, English, and the Contest for Authority in Colonial New England (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2005), 17.

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- acima de todos os outros produtos. Mas o famoso lamento de Roger Williams, de 1664, de que “o Deus terra será um Deus tão grandioso entre nós ingleses como o Deus ouro foi para os espanhóis” tinha um tom distintamente Lascasiano.166 Os pensadores coloniais ingleses beberam da história dos espanhóis no Novo Mundo para elaborar seu próprio modo “benevolente” de colonização, a “plantação” [plantation]. Poblar, em espanhol, denota uma ação semelhante, mas não transmite exatamente as mesmas conotações morais que “to plant” assume em inglês.167 A plantação funcionou melhorando a terra “não utilizada”. Assim, os índios não seriam afetados - apenas teoricamente. Francis Bacon, por exemplo, preferia “uma plantação em solo puro; isto é, onde as pessoas não são desplantadas, para que se as plante em outros. De outro modo é mais uma extirpação do que uma plantação”.168 Quer os “plantadores” ingleses soubessem ou não, isso era semelhante ao que Las Casas propôs, na década de 1510, para povoar a Tierra Firme, na atual Venezuela, com agricultores castelhanos que viveriam pacificamente ao lado dos índios.169 Os poderes protestantes leram a literatura Lascasiana não apenas pelo valor da propaganda da Leyenda Negra, mas em busca de um guia de como colonizar justamente. A preocupação com a justiça não impediu os ingleses de escravizar índios, por vezes em larga escala. Os primeiros colonos justificaram a escravidão como redentora, convertendo e civilizando os escravizados.170 Mas a colônia inglesa da Carolina, fundada em 1670, logo transformou os escravos índios em sua principal exportação no mesmo momento em que a monarquia espanhola renovou a campanha para abolir a escravidão indígena em todo seu império.171 Das cerca de 166  Citado em Wesley Frank Craven, The Colonies in Transition, 1660-1713 (New York: Harper & Row, 1968), 21. 167  John Elliott menciona que o “poblador” em espanhol compartilha um significado semelhante ao “planter” em inglês, mas não explora as diferentes dimensões morais. J. H. Elliott, Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America, 1492-1830 (New Haven, CT: Yale University Press, 2006), 9. 168  Citado em Fitzmaurice, Humanism and America, 166. 169  See Lewis Hanke, The Spanish Struggle for Justice in the Conquest of America (1949, repr.; Boston: Little, Brown and Company, 1965), 54-71. 170  Michael Guasco, Slaves and Englishmen: Human Bondage in the Early Modern Atlantic World (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2014), 180-192. 171  Tatiana Seijas, Asian Slaves in Colonial Mexico: From Chinos to Indians (New York: Cambridge University Press, 2014), 248.

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30.000 a 51.000 vítimas do comércio de escravos indígenas da Carolina, a maioria veio da Flórida espanhola.172 Alguns “índios espanhóis” vieram para a Carolina como pessoas “livres”. Sua situação levou o comerciante, Thomas Nairne, a exortar os habitamtes da Carolina a imitarem os espanhóis. “Agora, se não tomarmos sua Salvação como os espanhóis sempre o fizeram”, declarou Nairne, “que boa luta estamos lutando para trazer tantas pessoas desde um certo Cristianismo para a pura Barbaridade e Paganismo”.173 Mesmo naquele contexto, a Espanha foi um estímulo para a emulação e uma censura à inação. Isso mudou à medida em que o século XVIII avançava, pois os anglo-americanos tornaram-se menos propensos a imaginar a Espanha como um modelo a ser emulado. Ainda assim, o pensamento espanhol justificava atitudes dos ingleses em relação aos índios. O caminho para a escravidão também passava por terreno ibérico.

O caminho ibérico para a escravidão africana Os ingleses da primeira modernidade gostavam de se imaginar como um povo singularmente livre em um mundo ameaçador, criando narrativas que tornaram difícil para os historiadores enxergarem a infiltração da escravidão desde o início do encontro inglês com a África e as Américas. A historiografia diz que os escravos africanos chegaram pela primeira vez à Virgínia em 1619. Mas escravos africanos estavam em navios ingleses, como carga, desde as origens do tráfico de escravos atlântico em meados do século XV.174 Muitos dos chamados comerciantes “ibéricos” que deslocavam escravos das feitorias da África Ocidental para as Canárias, Lisboa e Sevilha eram, de fato, comerciantes ingleses, expatriados que se sentiam em casa tanto na Península quanto nas Ilhas Britânicas e cujos nomes nos arquivos aparecem, portanto, hispanizados. À medida que se aprofundou a divisão confessional entre a Espanha ca172  Alan Gallay, The Indian Slave Trade: The Rise of the English Empire in the South, 1670-1717 (New Haven, CT: Yale University Press, 2002), 295-296 and 299. 173  Frank J. Klingberg, “Early Attempts at Indian Education in South Carolina, a Documentary,” The South Carolina Historical Magazine 61, no. 1 ( Jan., 1960), 2. 174  Guasco, Slaves and Englishmen.

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tólica e a Inglaterra protestante na esteira da Reforma no século XVI, estes comerciantes foram forçados a tomar partido. Muitos retornaram permanentemente à Inglaterra onde alimentaram os tipos como Hakluyt com imensas quantidades de informações orais e impressas sobre como as colônias portuguesas e espanholas realmente funcionavam, incluindo muitas traduções de textos ibéricos para o inglês, bem como um detalhado conhecimento do comércio de escravos no Atlântico.175 Foi esse conhecimento que permitiu àqueles como John Hawkins (ele próprio uma figura anglo-ibérica camaleônica)176 obterem uma base de operações nas colônias espanholas já em 1562 contrabandeando africano escravizados.177 O modo como Hawkins operou é emblemático dos primórdios do comércio inglês de escravos nas Américas e de como ele funcionou por pelo menos um século, a saber, através de intrusão e contrabando, até que a Company of Royal Adventurers na África ganhou legitimidade em 1660 e estabeleceu um monopólio comercial no continente africano. Os ingleses capturariam os escravizadores ibéricos na costa da África para então contrabandear centenas de escravos capturados para o Caribe espanhol e Tierra Firme.178 Tanto a pirataria como o contrabando familiarizaram os ingleses com formas africanas e ibéricas de compreender a escravidão: o direito dos escravos de comprar sua liberdade e manterem propriedades, a conversão religiosa como forma de garantir algumas proteções para a integridade das famílias através da instituição do casamento, o sistema de ganho (escravos de aluguel que viveriam independentemente dos senhores) e a miscigenação racial.179 A escra175  Mark Sheaves, “The Anglo-Iberian Atlantic as a hemispheric system? English merchants navigating the Iberian Atlantic, 1550-1588” in Jorge Canizares-Esguerra ed., Entangled Histories of the Early Modern British and Iberian Empires and their Successor Republics (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, no prelo); Heather Dalton, ”Into Speyne to selle for Slavys”: Slave trading in English and Genoese merchant networks prior to 1530,” in Toby Green and José Lingna Nafafé, eds., Brokers Of Change: Atlantic Commerce And Cultures In Pre-Colonial Western Africa (Oxford: Oxford University Press, 2012), 91–123 . 176  Sobre Hawkins como agente duplo hispano-inglês, incluindo suas promessas de ajudar uma revolta católica contra Elizabeth, oferecendo uma frota para libertar Maria da Escócia, ver Geoffrey Parker, “The Place of Tudor England in the Messianic Vision of Philip II of Spain,” Transactions of the Royal Historical Society, 12 (2002), 198-206. 177  Nick Hazlewood. The Queen’s Slave Trader: John Hawkyns, Elizabeth I, and the Trafficking in Human Souls (New York: William Morrow, 2004); e Harry Kelsey, Sir John Hawkins: Queen Elizabeth´s Slave Trader (New Haven, CT: Yale University Press, 2003). 178  Gregory E. O’Malley, Final Passages: The Intercolonial Slave Trade of British America, 16191807 (Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2015), cap. 2. 179  Christopher Schmidt-Nowara, Slavery, Freedom, and Abolition in Latin America and the Atlantic World. (Albuquerque: University of New Mexico Press, 2011).

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vidão que os ingleses introduziram pela primeira vez na Virgínia até o terceiro quarto do século XVII não era diferente dos regimes de escravidão que floresceram no mundo ibérico, tanto na Península quanto nas Américas. Isto incluía consideráveis populações ​​de sangue misto, escravos de ganho vivendo por conta e com direito de possuir propriedades, e crescentes comunidades de negros livres.180 Aquilo que Ira Berlin chamou de Geração de escravos “crioulos” é apenas uma maneira indireta de descrever as primeiras formas ibéricas de escravidão estabelecidas pela primeira vez na África Central Ocidental pelos portugueses. Essas formas chegaram em Chesapeake através do contrabando holandês e inglês de cativos apreendidos dos portugueses através de incursões de apreamento. O próprio Berlin descreveu esses escravos como indivíduos com nomes hispânicos e familiarizados com o catolicismo e outras formas de cultura européia.181 Paradoxalmente, os corsários ingleses que contrabandeavam escravos para as Américas e capturavam navios negreiros portugueses ao largo da costa da África se viam como libertadores. O ponto central das ideias inglesas de como limitar o poder crescente de Espanha-Portugal era a noção de que escravos e comunidades de escravos fugidos nas Américas se uniriam a eles em suas investidas para derrubar o império católico idólatra, a vasta monarquia do Anti-Cristo.182

Da inveja à inimizade A influência de Espanha foi imensa sobre o pensamento inglês na questão da expansão ultramarina durante os séculos XVI e XVII. Mas, no século XVIII, os espanhóis buscaram cada vez mais nos ingleses um modelo de desenvolvimento colonial. Em meados do século, assim como as autoridades imperiais em Whitehall se esforçavam para 180  Guasco, Slaves and Englishmen, 8. 181  Ira Berlin. Many Thousands Gone: The History of the First Two Centuries of Slavery in North America (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1998), part I; See also Linda M. Heywood and John K. Thornton. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660 (New York: Cambridge University Press, 2007). 182  Cañizares-Esguerra, Puritan Conquistadors: Iberianizing the Atlantic.

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centralizar os assuntos americanos após a Guerra dos Sete Anos, funcionários da Espanha afrouxavam seu controle para promover políticas de estilo inglês, incluindo o gerenciamento de assuntos indígenas através de um modelo comercial.183 A monarquia espanhola também procurou imitar os modelos extrativistas britânicos e franceses no Caribe, e assim proporcionou aos fazendeiros cubanos maior liberdade comercial para importar escravos.184 Esta reviravolta histórica revela que o mais antigo império americano da Europa não era nem monolítico nem imutável – que os espanhóis haviam sido a vanguarda do “moderno” no século XVI e ainda estavam se adaptando às mudanças no século XVIII. Os dois impérios tiveram uma relação entrelaçada e, portanto, muito mais dinâmica do que os estudiosos anteriormente supuseram. O papel espanhol na fundação da América britânica sumiu gradualmente da vista. O exemplo histórico da Espanha continuou a figurar no imaginário anglo-americano, mas principalmente como um conto cautelar. No final do século, Henry Knox, secretário da guerra de Washington e arquiteto da política indígena federal, tendo a Espanha como um parâmetro de crueldade, afirmou que os Estados Unidos haviam sido na verdade “mais destrutivos”.185 Dada a opinião que a maioria das pessoas tinha da conquista espanhola, a de Knox foi uma dura acusação. Na década de 1820, enquanto o país contemplava a remoção de tribos indígenas do Sul, ainda se mantinham as associações entre espanhóis e a crueldade que supostamente deveriam distingui-los do mundo de língua inglesa. Quando James Pierce, viajante da Filadélfia, visitou a Flórida e conheceu um chefe Seminole, ele se certificou de anotar uma passagem que deve ter divertido – e mortificado – seus leitores, na qual resumiu a mudança de atitudes em relação ao legado da Espanha. “O chefe tinha ouvido falar de nosso Salvador e Seus sofrimentos”, relatou Pierce sobre a resposta a suas perguntas sobre o conhecimento que os Seminole tinham do cristianismo, “mas supôs que ele tinha sido levado à morte pelos espanhóis”.186 183  David J. Weber, Barbaros: Spaniards and Their Savages in the Age of Enlightenment (New Haven, CT: Yale University Press, 2005), 1. 184  Jeremy Adelman Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic (Princeton: Princeton University Press, 2007); and Elena Schneider, “African Slavery and Spanish Empire: Imperial Imaginings and Bourbon Reform in Eighteenth-century Cuba and Beyond,” Journal of Early American History, 5:1 (2015): 3-29; and Gabriel Paquette, Enlightenment, Governance, and Reform in Spain and Its Empire, 1759–1808 (New York: Palgrave Macmillan, 2008). 185  Weber, Barbaros, cap. 5. 186  James Pierce, “Notices of the Floridas, &c.,” in Benjamin Silliman, ed., The American Journal of Science and Arts IX ( Jun., 1825), 135.

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Roteiro Bibliográfico Historiografia geral sobre os entrelaçamentos anglo-ibéricos nas Américas John Elliot escreveu profusamente sobre história anglo-ibérica nas Américas. Seu livro Empires of the Atlantic World: Spain and England in the Americas (1492-1830) funCiona como uma síntese de suas interpretações. Elliot desenvolveu suas teorias em dois ensaios anteriores, elaborados a partir de seus cursos e publicados no volume editado por ele intitulado Spain, Europe & the Wider World, 1500-1800 (New Haven, CT: Yale University Press, 2009), especialmente os capítulos 2 e 8. Trabalhos mais antigos sobre a competição entre Espanha e Inglaterra nas Américas incluem a obra de J. Leitch Wright, AngloSpanish Rivalry in North America (Athens, GA: University of Georgia Press, 1971), que discute, dentre outros tópicos, as implicações transimperiais de Jamestown. Esses trabalhos são apenas uma parte de uma longa historiografia de ideias inicias sobre a relação entre Espanha, Inglaterra e as Américas. A abordagem clássica sobre a herança espanhola na América do Norte é a de Herbert Eugene Bolton, The Spanish Borderlands: A Chronicle of old Florida and the Spanish Southwest (New Haven, CT: Yale University Press, 1921). Críticas recentes desafiaram a formulação de Bolton sobre “fronteiras espanholas” a partir de ideias como “hibridação” e “entrelaçamento” para explicar a relação entre as colonizações ibérica e inglesa na América do Norte. Para mais informações sobre esse debate, ver o Fórum da AHR sobre entrelaçamento em The American Historical Review 112, no. 3 ( Jun., 2007). Cosmografia e reivindicações espanholas sobre a América britânica Sobre a elaboração de reivindicações pelas várias potências européias, a introdução padrão é Patricia Seed, Ceremonies of Possession in Europe’s Conquest of the New World, 1492-1640 (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1995). Esse trabalho de Seed enfatiza as diferenças entre as várias potências europeias e suas abordagens para assegurar reivindicações territoriais e explorar os recursos do Novo Mundo. A autora deu sequência com American Pentimento: The Invention of

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Indians and the Pursuit of Riches (Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2001), livro que lançava novas distinções entre a prática colonial ibérica e inglesa. Novamente, Seed explorou as consequências de longo prazo de um enfoque ibérico na exploração do trabalho indígena e uma propensão inglesa para a expropriação de terras indígenas. Novas abordagens sobre a elaboração de reivindicações de posse enfatizaram como os ingleses extraíram, assim como os espanhóis, do arcabouço do direito das nações, ou ius gentium, para embasar suas reivindicações no Novo Mundo. Ken MacMillan, em Sovereignty and Possession in the English New World: The Legal Foundations of Empire, 1576-1640. (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2006), argumentou que construir um forte e colocá-lo em um mapa era tão importante para comprovar a ocupação territorial como as cercas e “melhorias” agrícolas de Seed. Continuando a tendência de pensar os efeitos do direito romano sobre os ingleses, temos a obra de Jeffrey Glover chamada Paper Sovereigns: Anglo-Native Treaties and the Law of Nations, 1604-1664 (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2014). Glover argumenta que os colonizadores ingleses procuraram o consentimento nativo para justificar suas reivindicações territoriais. Os tratados com os nativos provavam que uma terra estava pacificada e sob controle. Para um interessante complemento ibérico a essas idéias, ver Amy Turner Bushnell, “Spain’s Conquest by Contract: Pacification and the Mission System in Eastern North America,” in: Michael V. Kennedy and William G. Shade, eds., The World Turned Upside-Down: The State of EighteenthCentury American Studies at the Beginning of the Twenty-First Century (Bethlehem, PA: Lehigh University Press, 2001), que explora as colonizações negociadas que a Espanha fez com os índios americanos. Sobre os limites da La Florida A Espanha considerava grande parte do leste da América do Norte, do arquipélago das Keys ao Maine, como La Florida. Os ingleses que promoveram os primeiros assentamentos na região se voltaram para textos espanhóis como orientação sobre a melhor maneira de explorar aquele vasto território. A obra de Peter Mancall, Hakluyt’s Promise: An Elizabethan’s Obsession for an English America (New Haven, CT: Yale University Press, 2007), narra o trabalho de promoção colonial de Richard As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Hakluyt incluindo suas idéias sobre a verdadeira riqueza econômica do império espanhol. Karen Ordahl Kupperman, no livro The Jamestown Project (Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2008), explora os planos ingleses para extrair riquezas de sua porção da La Florida, demonstrando como as fontes de informação portuguesas eram essenciais para os primeiros planos da Companhia da Virginia. Sonhos de Libertação, Sonhos de Emulação A clássica formulação sobre as ambições da Inglaterra em “libertar” os domínios do Império Espanhol na América é a obra de Edmund S. Morgan, American Slavery, American Freedom: The Ordeal of Colonial Virginia (New York: Norton, 1975), capítulo 1. Karen Kupperman, no livro Indians and English: Facing Off in Early America (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2000), mostra como as idéias inglesas sobre as capacidades indígenas e as esperanças para sua incorporação ao mundo inglês gradualmente diminuíram ao longo do tempo. Nos últimos anos, os estudiosos começaram a enfatizar as tendências dos colonizadores ingleses para emular as realizações espanholas nas Américas. O artigo seminal de April Lee Hatfield, “Spanish Colonization Literature, Powhatan Geographies, and English Perceptions of Tsenacommacah/Virginia,” The Journal of Southern History 69, no. 2 (May, 2003): 245-282, argumentou que os primeiros promotores da Virgínia empregaram etnografia espanhola e os relatos da Conquista para imaginar os Powhatans como um império que poderia ser tomado e governado da mesma maneira que os espanhóis haviam feito com os mexicas e os incas. Camilla Townsend, em Pocahontas and the Powhatan Dilemma: An American Portrait (New York: Hill and Wang, 2004), enfatizou a influência precoce de idéias espanholas sobre os colonizadores da Virgínia, especialmente as lições ibéricas sobre a necessidade de mediadores indígenas e fiéis tradutores que pudessem comunicar suas benevolentes intenções aos índios. Jorge CañizaresEsguerra foi ainda mais longe em Puritan Conquistadors: Iberianizing the Atlantic, 1500-1700 (Stanford, CA: Stanford University Press, 2006), demonstrando as impressionantes semelhanças estruturais que sustentaram a expansão inglesa mesmo naquele que é o bastião de uma narrativa da excepcionalidade anglo-americana, a Nova Inglaterra. 236 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Da inveja à inimizade No século XVIII, a relação entre Espanha e Inglaterra nas Américas passou por uma virada decisiva. Várias histórias recentes relatam como os ingleses se expandiram para o sul e para o oeste na América do Norte às custas dos espanhóis. Em The Indian Slave Trade: The Rise of the English Empire in the South, 1670-1717 (New Haven, CT: Yale University Press, 2002), Alan Gallay narra a expansão inglesa para a Flórida espanhola e o papel central do comércio de escravos nesse processo, especialmente das missões católicas do local. Embora a inimizade muitas vezes substituísse a inveja como o sentimento predominante entre as duas potências, a emulação não desapareceu por completo. Em meados do século XVIII, os monarcas Bourbon da Espanha e os Hanover na Grã-Bretanha embarcaram em reformas de imagem espelhada para seus respectivos impérios. Os Bourbon, por exemplo, como David Weber mostrou em seu Barbaros: Spaniards and Their Savages in the Age of Enlightenment (New Haven, CT: Yale University Press, 2005), perseguiram uma política para as Índias mais parecida com a inglesa, isto é, baseada no comércio. Para outra abordagem sobre a reforma imperial espanhola naquele período, conferir Gabriel B. Paquette, Enlightenment, Governance, and Reform in Spain and its Empire, 17591808 (New York: Palgrave Macmillan, 2008). Enquanto isso, a GrãBretanha seguiu uma política mais centralizada para as Índias, que em última análise não teve êxito, mas é explorada em profundidade por Daniel K. Richter em “Native Americans, the Plan of 1764, and a British Empire That Never Was,” in: Robert Olwell and Alan Tully, eds., Cultures and Identities in Colonial British America (Baltimore, MD: The Johns Hopkins University Press, 2006): 269-292.

Extratos de documentos Abaixo, apresentamos trechos de documentação no inglês de época e em “traduções” para o inglês moderno. Nelas, basicamente convertemos arcaísmos em vocabulário mais contemporâneo, buscando facilitar a compreensão dos mesmos. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Henry Hawks, 1572: Sobre tributação “The Indians pay tribute, being of the age of 20. yeeres, 4.shillings of money, and an hanege of Maiz, which is worth 4.shillings more vnto the King euery yeere. This is payd in all Noua Hispania, of as many as be of the age 20.yeeres, sauing the Citie of Tlascalla, which was made free, because the citizens thereof were the occasion that Cortes tooke Mexico inso little a time. And although at the first they were freed from paiment of tribute, yet the Spaniards now being to vsurpe upon them, and make them to till a great field of Maiz, at their owne costes euery yeere for the King, which is as beneficial vnto him, and as great cost vnto them, as though they paid their tribute, as the others doe.” Versão moderna: The Indians pay tribute, being of the age of 20 years, 4 shillings of money, and an hanege of Maize, which is worth 4 shillings more unto the King every year. This paid in all New Spain, by everyone at least 20 years of age, except the City of Tlaxcala, which was made free, because the citizens thereof were the reason that Cortes took Mexico so quickly. And although at first they were freed from the payment of tribute, yet the Spaniards now begin to usurp upon them, and make them to cultivate a large field of Maize, at their own costs every year for the King, which is as beneficial unto him, and as great a cost to them, as though they paid their tribute, as the others do. “Wrongs done to the Indians punished.” “The Indians are much fauoured by the Iustices of the Countrey, and they call them their orphanes. And if any Spaniard should happen to doe any of them harme, or to wrong him in taking any thing from him, as many times they doe, or to strike any of them, being in any towne, whereas iustice is, they are aswell punished for the same, as if they had done it one Spaniard to another. When a Spaniard is farre from Mexico, or any place of iustice, thinking to doe with the poore Indian what he list, considering he is so farre from any place of remedy, he maketh the Indian do what he commaundeth him, and if he will not doe it, hee beateth and misuseth him, according to his owne appetite. The Indian holdeth his peace, vntill hee finde an opportunitie, and then taketh a neighbour with him, and goeth to Mexico, although it be 20. leagues off, and maketh his complaint. This his complaint is immedia238 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

tely heard, & although it be a knight, or a right good gentleman, he is forthwith sent for, and punished both by his goods, and also his person is imprisoned, at the pleasure of the Iustice.” Versão moderna: The Indians are much favored by the Justices of the Country, who call them their orphans. And if any Spaniard should happen to do any of them harm, or to wrong him in taking anything from him, as many times they do, or to strike any of them, being in any town where justice is [meted out], they are punished for the same, as if they had done it one Spaniard to another. When a Spaniard is far from Mexico, or any place of justice, thinking to do with the poor Indian whatever he likes, considering that he is so far from any place of remedy, he makes the Indian do what he commands him, and he [the Indian] will not do it, he beats and abuses him, according to his own appetite. The Indian holds his peace, until he finds an opportunity, and then takes a neighbor with him, and goes to Mexico City, even though it is 20 leagues away, and makes his complaint. His complaint is immediately heard, and although he [the Spaniard who abused the Indian] be a knight, or a proper gentleman, he is immediately sent for, and punished both by his goods, and also his person is imprisoned, at the pleasure of the Justice. Richard Hakluyt, 1609 “To come to the second generall head, which in the beginning I proposed, concerning the manners and dispositions of the Inhabitants: among other things, I finde them here noted to be very eloquent and well spoken, as the short Orations, interpreted by Iohn Ortiz, which liued twelue yeeres among them, make sufficient proofe. And the author, which was a gentleman of Eluas in Portugall, emploied in all the action, whose name is not set downe, speaking of the Cacique of Tulla, saith, that aswell this Cacique, as the others, and all those which came to the Gouernour on their behalfe, deliuered their message or speech in so good order, that no Oratour could vtter the same more eloquently. But for all their faire and cunning speeches, they are not ouermuch to be trusted: for they be the greatest traitors of the world, as their manifold most craftie contriued and bloody treasons, here set down at large, doe euidently proue.” Versão moderna: To come to the second general heading, which in the beginning I proposed, concerning the manners and dispositions of the Inhabitants: among other things, I finde them here noted to be As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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very eloquent and well spoken, as the short Speeches, interpreted by Juan Ortiz, who lived among them for twelve years, make sufficient proof. And the author, who was a gentleman of Elvas in Portugal, employed in all the action, whose name is not set down, speaking of the Cacique of Tulla, says, that this Cacique, as well as the others, and all those who came to the Governor on their behalf, delivered their message or speech in such good order, that no Speaker could utter the same more eloquently. But for all their fair and cunning speeches, they are not to be trusted too much: for they are the greatest traitors of the world, as their many most crafty contrived and bloody treasons, here written down at large, do evidently prove. […] To conclude, I trust by your Honours and Worships wise instructions to the noble Gouernour, the worthy experimented Lieutenant and Admirall, and other cheife managers of the businesse, that all things shall be so prudently carried, that the painfull Preachers shall be reuerenced and cherished, the valiant and forward soldiour respected, the diligent rewarded, the coward emboldened, the weake and sick relieued, the mutinous suppressed, the reputation of the Christians among the Saluagees preserued, our most holy faith exalted, all Paganisme and Idolatrie by little and little vtterly extinguished. And here reposing and resting my selfe vpon this sweete hope, I cease, beseeching the Almightie to blesse this good work in your hands to the honour and glorie of his most holy name, to the inlargement of the dominions of his sacred Maiestie, and to the generall good of all the worthie Aduenturers and vndertakers. Versão moderna: To conclude, I trusty by Your Honors’ and Worships’ wise instructions to the noble Governor, the worthy, experienced Lieutenant and Admiral, and other chief managers of the business, that all things shall be so prudently carried, that the conscientious Preachers shall be reverenced and cherished, the valiant and forward soldier respected, the diligent rewarded, the coward emboldened, the weak and sick relieved, the mutinous suppressed, the reputation of the Christians among the Savages preserved, our most holy faith exalted, all Paganism and Idolatry little by little utterly extinguished. And here reposing and resting myself upon this sweet hope, I cease, beseeching the Almighty [God] to bless 240 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

this good work in your hands to the honor and glory of his most holy name, to the enlargement of the dominions of his sacred Majesty, and to the general good of all the worthy Adventurers and undertakers. William Strachey, 1612: Peru Protestante “... for the cussiques or comaunders of Indian townes in Peru, whom the Virginians call weroances, although they paye unto the king of Spaine great tribute, yet because they make exchaunge with the Spaniard for that remaynes, they do not only keepe greate hospitality and are riche in their furniture, horses, and cattell, but as Captain Ellis avowes, who lyved amongst them some few yeares, their dyett is served to them in silver vessells, and many of them have naturall Spaniards that attend them in their howses, when, on the other side, the Spaniards were not able to make the twentieth part of profitt which they now doe but by the help of those cussiques, for they furnish out of their severall territories not so few as fifty thousand people to worke in the mynes of Potosi, who after so many monthes’ travaile are returned to the countryes, and fifty thousand others by an other company of cussiques provided to supply them.” Versão moderna: “… for the caciques or commanders of Indian towns in Peru, whom the Virginia Indians call weroances , although they pay unto the king of Spain great tribute, yet because they make exchange with the Spaniards for what remains, they do not only keep great hospitality and are rich in their furniture, horses, and cattle, but as Captain Ellis avows, who lived among them some few years, their diet is served to them in silver vessels, and many of them have natural-born Spaniards who attend them in their houses, when, on the other side, the Spaniards were not able to make the twentieth part of profit which they now do but by the help of those caciques, for they furnish out of their various territories as many as fifty thousand people to work in the mines of Potosi, who after so many months’ work are returned to the countries, and fifty thousand others by another group of caciques provided to supply them.”

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Tradutor inglês anônino de Las Casas, 1699: sobre o caráter do religioso “This Bishop writes with such an Air of Honesty, Sincerity, and Charity, as would very well have become one of a better Religion than that in which he had the unhappiness to be educated. It may well surprize the Reader to hear a Spanish Prelat declaim so loudly against Persecution, and plead so freely for Liberty of Consicence in a Country subjugated to the Inquisition. To hear him in his dispute against Doctor Sepulueda, decry all methods of Violence for the propagation of the Truth, as more sutable to the Maxims of Mahometism than the Principles of Christianity: To hear him assert the Natural Right of all Mankind to Liberty and Property, and inveigh against all Vsurpation and Tyranny in the smartest Terms, is enough to move any one’s Wonder, and Pity too, when on the other hand ‘tis observ’d how much he magnifies the Power and Authority of the Pope in some of his Propositions contain’d in the following Treatise. Versão moderna: This Bishop writes with such an air of honesty, sincerity, and charity, as would very well have suited one of a better religion than that in which he had the unhappiness to be educated. It may well surprise the reader to hear a Spanish prelate declaim so loudly against Persecution, and plead so freely for liberty of conscience in a country subjugated by the Inquisition. To hear of the truth, as more suitable to the maxims of Mohammedanism than the principles of Christianity: To hear him assert the natural right of all mankind to liberty and property, and inveigh against all usurpation and tyranny in the sharpest terms, is enough to move anyone’s wonder, and pity too, when on the other hand it is observed how much he magnifies the power and authority of the Pope in some of his Propositions contained in the following treatise. […] “I’m sure the above-mention’d Principles of the Bishop of Chiapa concerning Property and Liberty both Civil and Religious, are more agreeable to the Genius and Constitution of this Island, than to the present temper of that part of the Continent which lies nearest to it; and so this Book may expect at least as favorable a reception in this Nation as in that where it has been lately publish’d. [That is, France.]” 242 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Versão moderna: I am sure the aforementioned principles of the Bishop of Chiapas concerning property and liberty both civil and religious, are more agreeable to the inclinations and makeup of this island, than to the present temper of that part of the Continent which lies nearest to it; and so this book may expect at least as favorable a reception in this nation as in that where it has been lately published.

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Capítulo 5 Meio ambiente e trocas atlânticas Benjamin Breen

Introdução O surgimento de viagens transatlânticas contínuas nas décadas após 1492 rompeu fronteiras ecológicas que haviam dividido a vida na Terra por milênios. Com exceção de breves encontros com marinheiros nórdicos e, possivelmente, com navegantes polinésios, as sociedades americanas se desenvolveram em isolamento relativamente àquelas do Velho Mundo desde o Neolítico.187 Também isoladas se desenvolveram a vida microbiana, a flora e a fauna do Novo Mundo.188 O intercâmbio colombiano resultante, como Alfred Cosby celebremente o denominou, impactou não apenas o Homo sapiens mas virtualmente todos os seres vivos no planeta, da baleia branca ao bacilo da varíola.189 Quando consideradas a partir do ponto de vista privilegiado do século XXI, as trocas 187  Existem evidências emergentes mas cada vez mais sólidas a respeito dos contatos entre os marinheiros pré-colombianos oriundos do Pacífico e o litoral Oeste da América do Sul, assim como um bem-atestado (ainda que curto) período de contato entre os nórdicos e os povos do atual Canadá. Ver Andrew Lawler, “Epic pre-Columbian voyage suggested by genes”, in Science 346.6208 (2014) e Antonio Arnaiz-Villena et al., “Pacific Islanders and Amerindian relatedness according to HLA autosomal genes”, in International Journal of Modern Anthropology 1.7 (2015), pp. 44-67; Annete Kolodny, In Search of the First Contact: The Vikings of Vinland, the Peoples of the Dawnland, and the Anglo-American Anxiety of Discovery. Durham, NC: Duke University Press, 2012. Entretanto, talvez por causa de suas durações relativamente curtas, nenhum destes contatos pré-colombianos entre o Novo e o Velho Mundos parece ter levado à pandemia global e ao trânsito de longa distância de flora e fauna que caracterizou a era pós-columbiana. 188  Com a notável exceção da galinha e do inhame, que parecem ter sido carregados em direção ao Leste por navegadores pré-colombianos através do Pacífico. Cf. Terry Jones, Polynesians in America: Pre-Columbian Contacts with the New World. London: AltaMira Press, 2011. Existe alguma evidência de uma transmissão do coco das Filipinas ao Panamá no século XVI, porém não se sabe se isso resultou de contatos pré-colombianos pelo Pacífico ou das primeiras navegações ibéricas; ver Charles R. Clement et. Al, “Coconuts in the Americas”, in The Botanical Review 79.3 (2013), pp. 342-370. 189  Alfred Crosby, The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Santa Barbara: Greenwood Press, 1972.

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interoceânicas dos séculos XVI, XVII e XVIII emergem como o princípio de uma extensa – e contínua – globalização de plantas, animais, germes e pessoas. Não é coincidência que quando os cientistas contemporâneos debatem o alvorecer do antropoceno – uma nova era geológica de mudança ecológica induzida pelos humanos – eles apontam para um conjunto de transformações que se originaram nos três séculos que se seguiram às viagens de Cristóvão Colombo e Vasco da Gama.190 Esta, ao menos, é a perspectiva épica que ganhou crédito nas histórias ambientais recentes do mundo da primeira modernidade. Os trabalhos que fundaram este campo são The Columbian Exchange (1972) e Ecological Imperialism (1986), de Alfred Crosby, nos quais o historiador da Universidade do Texas retratou a narrativa familiar da expansão europeia sobre o pano de fundo mais amplo da transformação ecológica, da transmissão epidêmica de doenças e das mudanças nas relações homem-animal.191 The Columbian Exchange, publicado pela pequena Greenwood Press após um prolongado período de dificuldade em encontrar um editor, necessitou de muitos anos para emergir como o texto fundador pelo qual nós o conhecemos hoje.192 As primeiras recensões foram escassas, indo de avaliações positivas até qualificações que não eram tão amistosas.193 Nas últimas duas décadas, contudo, a tese de Crosby se inseriu fortemente tanto na produção historiográfica quanto na imaginação pública, especialmente via popularizações como a de Jared Diamond, Guns, Germs and Steel (1999), e ambiciosos panoramas como o de John F. Richard, The Unending Frontier (2006).194 190  Simon L. Lewis; Mark A. Maslin, “Defining the Anthropocene”, in Nature, 519 (March, 2015), pp. 171-180. 191  Alfred Crosby, Columbian Exchange e Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 1986 (edição brasileira em Imperalismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, reedição pela Companhia de Bolsa em 2011). Para uma visão ampla de trabalhos mais recentes acerca do intercâmbio colombiano, ver Nicole Boivin et al., “Old World globalization and the Columbian exchange: comparison and constrast”, in World Archaeology, vol. 44, nº 3, setembro de 2012, pp. 452-469. 192  William McNeil, “Forward”, in Alfred Crosby, The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport, CT: Praeger, 2003, p. IX. 193  Por exemplo, a resenha por Richard S. Dunn em The Journal of American History, vol. 60, nº 2, setembro de 1973, pp. 420-422 notou que Crosby “não fez nenhuma pesquisa original” e tinha uma preferência por “simplificações” onde “um tratamento mais preciso e detalhado” era necessário. A resenha de Edward E. Berry em The American Historical Review, vol. 80, nº 1, fevereiro de 1975, p. 67 também notou que “uma certa quantidade de generalizações ingênuas são questionáveis”. 194  Jared M. Diamond, Guns, Germsn, and Steel: The Fates of Human Societies. New York: W. W. Norton, 1999 (edição brasileira Armas, germes e aço. Rio de Janeiro: Record, 2001); Charles C.

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A fascinação popular e científica com essas trocas na primeira modernidade deriva em parte do interesse intelectual inerente das questões que elas provocam. Como os tomates, a pimenta, o milho ou o tabaco, todos provenientes do Novo Mundo, se adaptaram às culinárias e ao modo de vida do Velho Mundo?195 A sífilis realmente foi transmitida da Mesoamérica à Europa na época de Carlos V?196 O que os nativos americanos pensavam a respeito dos animais afro-eurasianos domesticados?197 Mas, além disso, a história ambiental do mundo atlântico também ajuda a compreender duas das mais colossais catástrofes da história humana recente. A primeira é a impenetrável tragédia ocasionada pelas mortes de dezenas de milhões de nativos americanos devido a doenças infeciosas como a gripe, o sarampo e a varíola, contra as quais os indígenas não possuíam resistência.198 A segunda é a contínua diminuição da biodiversidade global, a qual muitos ecologias identificam agora como a maior extinção em massa desde o desaparecimento dos dinossauros há 65 milhões de anos.199 Ao conectar os estudos acerca da história do período colonial a preocupações contemporâneas a respeito tanto da sobrevivência de culturas não-ocidentais quanto da preservação da biodiversidade restante no planeta, o estudo do intercâmbio colombiano emergiu como uma das mais dinâmicas subáreas da historiografia. O objetivo deste capítulo é destacar a ampla gama de interesses e métodos Mann, 1491: New Revelations of the Americas Before Columbus. New York: Knopf, 2005; John F. Richards, The Unending Frontier: An Environmental History of the Early Modern World. Berkeley/ Los Angeles: University of California Press, 2006. 195  Rachel Laudan, Cuisine and Empire: Cooking in World History. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2013. 196  Kristin N. Harper et. Al, “The origin and antiquity of syphilis revisited: an appraisal of Old World pre-Columbian evidence for treponemal infection”, in American Journal of Physical Anthropology 146.S53, 2011, pp. 99-133. 197  Virginia DeJohn Anderson, “King Philip’s Herds: Indians, Colonists, and the Problema of Livestock in Early New England”, in The William and Mary Quarterly, Third Series, vol. 51, nº 4, outubro de 1994, e, da mesma autora, Creatures of Empire: How Domestic Animals Transformed Early America. Oxford: Oxford University Press, 2004. 198  O autor usa a expressão “’virgin-soil’ epidemic diseases”, conceito cunhado por Alfred Crosby em seu The Columbian Exchange para se referir justamente a epidemias de doenças com as quais a população afetada não teve nenhum contato prévio e, portanto, estão indefesas em termos imunológicos. A opção pela paráfrase adotada aqui não altera o sentido da frase, mas torna-se interesse ao leitor saber que Benjamin Breen está se referindo a um conceito específico originado do livro que inicia sua área de estudos [N.T.]. 199  Anthony D. Barnosky et al., “Has the Earth’s sixth mass extinction already arrived?”, in Nature 471.7336, 2011, pp. 51-57.

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que convergem atualmente na história ambiental do mundo atlântico. A primeira seção examinará novas abordagens que “descentralizam” a formulação inicial de Crosby, enquanto a segunda e a terceira seções considerarão o papel complementar de animais e doenças, assim como a interpenetração entre as histórias da religião, da ciência e da medicina. Na conclusão, exporei algumas observações a respeito de para onde o campo pode estar indo no futuro.

Descentralizando o intercâmbio colombiano Para Crosby, a força dominante atuando na transformação ambiental da bacia Atlântica foi a troca forçada de plantas, animais e germes do Velho Mundo para as Américas – a criação do que ele chamou “Novas Europas” por meio dos colonizadores ibéricos, franceses, holandeses e ingleses que carregavam vinhas, trigo, vacas, porcos, cavalos e outros cultivos agrícolas europeus para o Oeste através do Atlântico. Crosby identificou a viagem marítima de longa distância como o motor destas mudanças e ele situou a agência histórica no lado dos marinheiros, artesãos e colonizadores europeus da primeira modernidade que haviam dominado o uso de “armas e velas”: As costuras da Pangeia estavam se fechando, cosidas pela agulha dos marinheiros. Galinhas encontravam kiwis, gado encontrava cangurus, irlandeses conheciam as batatas, comanches se deparavam com cavalos, incas defrontavam-se com a varíola – tudo isso pela primeira vez.200

Implícita no subtítulo de Ecological Imperialism (“The Biological Expansion of Europe”) estava uma visão da globalização e da mudança ecológica na primeira modernidade que privilegiava os atores e as 200  Alfred W. Crosby, Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 131. A importância da tecnologia das “armas e velas” foi explorada em grande detalhe pelo economista italiano Carlo M. Cipolla em seu Guns, Sails, and Empires: Technological Innovation and the Early Phases of European Expansion, 1400-1700. New York: Pantheon Books, 1966.

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perspectivas europeias. Em geral, as primeiras histórias ambientais do mundo atlântico, como os trabalhos de Crosby e o influente livro de William Cronon, Changes in the Land, procuravam colocar uma nova pátina, ecologicamente centrada, na narrativa familiar da imigração britânica na América. Mais recentemente, Judith Carney contestou a ênfase de Crosby em atores europeus ao destacar a importância de cultivos e do conhecimento natural africano.201 A ênfase de Carney nas histórias profundas da agricultura africana subsaariana coloca o intercâmbio colombiano sob uma nova luz: ao invés de conceber o encontro pós-colombiano entre cultivos europeus, ameríndios e africanos como uma imposição feita por sujeitos europeus móveis sobre populações indígenas estáticas, “tradicionais”, Carney demonstra como os agricultores e curandeiros africanos moldaram ativamente a construção de uma esfera ecológica híbrida na bacia Atlântica. Este não era um novo processo iniciado pelos europeus, mas uma elaboração e uma expansão de um padrão de deslocamento de longa distância de biota202 e conhecimento natural que já ocorria dentro da África há milhares de anos. Há até mesmo “quatro mil anos atrás”, Carney e Rosamoff afirmam, “plantas alimentícias africanas estavam em movimento”.203 Enquanto o primeiro livro de Carney, Black Rice, traçou o caminho da transmissão de um único cultivo (Oryzo glaberrima) da África Ocidental às depressões da Carolina do Sul, In the Shadow of Slavery oferece um panorama muito mais extenso da globalização de um jardim repleto de cultivos africanos.204 Estes incluem tudo indo do painço (Brachiaria deflexa), melancia (Citrullus lanatus), sésamo (Sesamum alatum), sorgo (Sorghum bicolor), pimenta malagueta (Afromomum melegueta), café (Coffea robusta), inhame (Dioscorea rotundata), quiabo (Hibiscus esculentus) até o todo-poderoso algodão (Gossypium herbaceum). Historiadores da ciência e da medicina também reformularam o modelo de Crosby. Como notou Paula de Vos, a busca por novos temperos e plantas curativas americanas trouxe “um tipo muito particular 201  Judith Carney com Richard Nicholas Rosamoff, In The Shadow of Slavery: Africa’s Botanical Legacy in the Atlantic World. Berkeley: University of California Press, 2010. 202  Biota se refere ao conjunto de todos os seres vivos de um determinado local ou período [N.T.]. 203  Carney; Rosamoff, Shadow of Slavery, 2010, p. 1. 204  Judith Carney, Black Rice: The African Origins of Rice Cultivation in the Americas. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001.

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de agência humana e padrão de intenções ao intercâmbio colombiano” que os trabalhos de Crosby em larga medida ignoraram. Ainda que a compreensão dos deslocamentos ecológicos exija pensar numa escala global, também é necessário atenção a contextos altamente específicos: um bando de agentes imperiais procurando novas fontes de riqueza para dar conta dos hábitos de gastança de seus monarcas, por exemplo, ou um curandeiro africano trazendo um requisitado medicamento através da Passagem do Meio,205 ou os ecléticos hábitos de coleção de um filósofo natural ávido por coletar curiosidades exóticas.206 O intercâmbio colombiano, em suma, foi uma processo multilocal e que envolveu uma gama de sujeitos agindo a partir de propósitos cruzados e motivos altamente individuais. Estudos recentes têm abordado desde xamãs indígenas americanos e guias para escravos africanos até curandeiros como Domingos Álvares, o feiticeiro207 cujas estadas em Brasil e em Portugal foram narradas por James Sweet.208 Estes trabalhos enfatizam as maneiras através das quais sociedades hibridizadas como aquelas das lavouras brasileiras ou os portos da costa africana repensaram o papel de novos cultivos agrícolas, do conhecimento natural e de seu consumo para se enquadrar em padrões culturais, climáticos e sociais locais.209 Recentralizar a hipótese do intercâmbio colombiano implica em se afastar da América britânica enquanto modelo normativo,210 mas isso também significa prestar maior atenção a contextos culturais e epistemológicos específicos que moldaram as relações das pessoas na primeira modernidade com relação à natureza. Ao abordar as cosmologias dos africanos escravizados e das populações indígenas ca205  Passagem do Meio traduz a expressão inglesa Middle Passage, que se refere à parte mais dificultosa do trajeto que levava os escravos da África à América [N.T.]. 206  Paula de Vos, “The Science of Spices: Empiricism and Economic Botany in the Early Spanish Empire”, in Journal of World History, 17, nº 4, dezembro de 2006. 207  Em itálico no original [N.T.]. 208  James H. Sweet, Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2011; Alida C. Metcalf, Go-Betweens and the Colonization of Brazil 1500-1600. Austin: University of Texas Press, 2005. 209  Elinor G. K. Melville, “Land Use and the Transformation of the Environment”, in Victor Bulmer-Thomas et al (eds.), The Cambridge Economic History of Latin America, vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 125. Sobre as “neo-Áfricas” ver também James Belich, Replenishing the Earth: the Settler revolution and the Rise of the Anglo-World, 1783-1939. Oxford: Oxford University Press, 2009, pp. 25-27 e Carney e Rosamoff, In The Shadow of Slavery. 210  Jorge Cañizares-Esguerra; Benjamin Breen, “Hybrid Atlantics: Future Directions for the History of the Atlantic World”, in History Compass, 11.8, 2013, pp. 597-609.

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ribenhas em seus próprios termos, por exemplo, Susan Scott Parish, em seu American Curiosity: Cultures of Natural History in the Colonial British Atlantic World (2006), questionou como epistemologias não-cristãs influenciaram a transmissão do conhecimento natural no mundo atlântico.211 Se estudarmos as relações mais amplas entre homens e a natureza nos locais de contestação dos impérios europeus, sugere Parish, o que encontraremos não será a imposição de uma “racionalidade” europeia sobre a “espiritualidade” indígena, mas uma complexa hibridização entre cosmologias e conhecimento natural.212 Nature, Empire and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra, explorou temas similares colocando a ênfase em como tipologias religiosas influenciaram as concepções criollas da natureza no Novo Mundo.213 Outros estudiosos têm explorado o papel da violência na história ambiental, chamando a atenção para a terminologia relativamente abstrata empregada frequentemente para descrever as mudanças ambientais do mundo atlântico – “encontros”, “intercâmbios, “trocas” e “hibridização” – tendem a “diminuir os aspectos muitas vezes atrozes da violência no intercâmbio colombiano”.214 Além de historiadores que enfatizam as particularidades e as agências locais, outros pesquisadores têm sublinhado que a bacia atlântica é um âmbito demasiadamente reduzido para compreender a mudança ecológica: seria necessária uma visão global. Estudiosos como 211  Susan Scott Parish, American Curiosity: Cultures of Natural History in the Colonial British Atlantic World. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2006. Em seu ensaio “Diasporic African Sources of Enlightenment Knowledge”, in James Delbourgo; Nicholas Dew (eds.), Science and Empire in the Atlantic World. London: Routledge, 2007, a autora situa as crenças a respeito das “potências máginas do mundo natural” no contexto de um contínuo “embate epistemológico” entre as diferentes tradições de conhecimento – europeia, africana e indígena – nas Américas, uma perspectiva que eu considero proveitosa para minha própria pesquisa. 212  Outros trabalhos que seguem por linhas parecidas observaram a relação entre os curandeiros escravos e a natureza. Muitos destes trabalhos se centraram no caribe francês e britânico; ver Karol K. Weaver, Medical Revolutionaries: The Enslaved Healers of Eighteenth Century Saint Domingue. Champaign: University of Illinois Press, 2006; Juanita de Barros, “’Setting Things Right’: Medicine and Magic in British Guiana, 1803-1838”, in Slavery and Abolition, 25:1, April 2004; Christiane Bougerol, “Medical Practices in the French West Indies: Master and Slave in the 17th and 18th centuries” in History and Anthropology, 2, 1985. Para uma fonte primária escriva por um escravo que descreve rituais de cura, ver a tradução feita por Miguel Bartnet das memórias do escravo cubano Esteban Montejo, Biography of a Runaway Slave. Evanston, CT: Curbstone Press, 1997. 213  Jorge Cañizares-Esguerra, Nature, Empire and Nation. Explorations of the History of Science in the Iberian World. Stanford: Stanford University Press, 2006, p. 24 [N.T.]. 214  Brian Sandberg, “Beyond Encounters: Religion, Ethnicity, and Violence in the Early Modern Atlantic World, 1492-1700”, in Journal of World History, vol. 17, nº 1, março de 2006, p. 2.

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Kris Lane, J. R. McNeil, Molly Warsh, Sanjay Subrahmanyam e Jan de Vries e outros têm traçado as redes de intercâmbios comerciais, materiais e econômicos de certas mercadorias-chave do período como o açúcar, o chocolate, o tabaco, a cochonilha e o café (assim como para doenças como a malária e a febre amarela) que se afastam da esfera atlântica em direção a locais como o Sudeste asiático, a Índia e o Pacífico.215 Entretanto, para obter uma perspectiva realmente global, estas histórias precisam se restringir ao estudo da circulação de uma única mercadoria ou apenas um objeto.216 Rachel Herrmann apontou que a tendência de muitos destes estudos em escolher apenas um alimento ou mercadoria pode ter o efeito de obscurecer os contextos culturais, políticos e materiais em que eles estavam inseridos.217 O trabalho recente de David Hancock a respeito do comércio de vinho Madeira pode indicar um caminho produtivo para futuros desenvolvimentos na área. Seu Oceans of Wine aprimora os estudos acerca dos padrões de produção, distribuição e consumo de uma única substância – o vinho – mas ainda assim mapeia como a circulação de uma mercadoria específica afetou as formações sociais e materiais mais amplas, como o design dos artigos em vidro e a performance masculinidade nos banquetes setecentistas. Hancock também conecta fatores ambientais a mudanças culturais, mostrando como a cambiante ecologia das ilhas atlântica portuguesas influenciou 215  Kris Lane, Color of Paradise: the Emerald in the Age of Gunpowder Empires. New Haven: Yale University Press, 2010; Molly Warsh, American Baroque: Pearls and the Nature of Empire, 1492-1700 (no prelo); Sanjay Subrahmanyam, Courtly Encounters: Translating Courtliness and Violence in Early Modern Eurasia. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2010; J.R. McNeill, Mosquito Empires: Ecology and War in the Greater Caribbean, 1620-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 2010; Jan de Vries, “The Limits of Globalization in the Early Modern World”, in Economic History Review, 63 (3), 2010, pp. 710-733; Matthew Sargent, The birth of globalization: cross-cultural knowledge transfers along European-Asian trade routes and the rise of the multinational corporation (1250-1750). Berkeley: University of California, Berkeley, 2013, PhD Dissertation. Ver também Stuart B. Schwartz (ed.), Tropical Babylons: Sugar and the Making of the Atlantic World, 1450-1680. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004; Marcy Norton, Sacred Gifts, Profane Pleasures: A History of Tobacco and Chocolate in the Atlantic World. Ithaca: Cornell University Press, 2008; Amy Butler Greenfield, A Perfect Red: Empire, Espionage, and the Quest for the Color of Desire. New York: Harper Perennial, 2006; Michelle Craig McDonald, “The Chance of the Moment: Coffe and the New West Indies Commodities Trade”, in William and Mary Quarterly, 3rd series, 62:3, July 2005, pp. 441-472; Mark Kurlansky, Cod: A Biography of the Fish that Changed the World. New York, 1997. 216  Ver, por exemplo, a crítica de Bruce Robbins a estes trabalhos como uma variação do “fetiche da mercadoria” em “Commodity Histories”, PMLA, vol. 120, nº 2, março de 2005, pp. 454-463. 217  Rachel B. Herrmann, “’The tragical historie’: Cannibalism and Abundance in Colonial Jamestown”, in The William and Mary Quarterly, vol. 68, nº 1, janeiro de 2014, pp. 47-74.

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na politização do hábito social de beber em ambos os lados do atlântico britânico antes da revolução.218 Ainda que muitos dos novos trabalhos sobre a circulação pós-colombiana de produtos naturais se ocupe apenas do Império britânico, os mundos comerciais do Atlântico Sul têm recebido uma atração renovada. Mariana Candido, por exemplo, descobriu novas fontes de arquivo relacionadas com o movimento dos pombeiros, mercadores itinerantes no interior da África centro-ocidental – intermediários frequentemente mestiços que difundiram os cultivos ameríndios, europeus e asiáticos para muito além das regiões costeiras da África com as quais os historiadores do mundo atlântico tradicionalmente têm se ocupado.219 Da mesma maneira, as pesquisas dos historiadores brasileiros Rafael Chambouleyron e Júnia Furtado, além do geógrafo norte-americano Richard A. Voeks, exploraram como as interações entre o conhecimento médico americano, africano e europeu não apenas influenciaram os contornos do colonialismo no Brasil e na Amazônia mas alteraram também a própria paisagem.220 Também vale a pena notar que as mercadorias atlânticas não eram substâncias necessariamente estáveis, imutáveis e inertes. Algumas delas, como os peixes atlânticos estudados por W. Jeffrey Bolster, estavam vivas e se movimentavam.221 Os primeiros colonizadores da região ao Norte da América que depois seria chamada de Cape Cod222 diziam 218  David Hancock, Oceans of Wine: Madeira and the Emergence of American Trade and Taste. New Haven, CT: Yale University Press, 2009. 219  Mariana Candido, An African Slaving Port in the Atlantic World: Benguela and its Hinterland. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. 220  Rafael Chambouleyron, Povoamento, ocupação e agricultura na Amazônia colonial (16401706). Pará: Editora Açaí, 2011; do mesmo autor, “Portuguese Colonization of the Amazon Region, 1640-1706). Cambridge: University of Cambridge, UK, tese de doutoramento, 2005; Júnia Ferreira Furtado, “Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial”, in Revista do Arquivo Público Mineiro, 2005, pp. 88-105; “Tropical Empiricism: Making Medicinal Knowledge in Colonial Brazil”, James Delbourgo; Nicholas Dew, Science and Empire in the Atlantic World. London: Routledge, 2008, e “The eighteenth-century Luso-Brazilian journey to Dahomey: West Africa through a scientific lens”, in Atlantic Studies, 11:2, 2014, pp. 256-276; Robert A. Voeks, “Disturbance Pharmacopeias”, in Annals of the Association of America Geographers, 2004, pp. 870-871. 221  Jeffrey Bolsters, The Mortal Sea Fishing in the Atlantic in the Age of Sail. Harvard: Harvard University Press, 2012. 222  Península no estado norte-americano de Massachussetts, conhecida atualmente como um destino de verão para a alta sociedade da Nova Inglaterra, foi um dos primeiros locais de colonização britânica na América do Norte. Como a sequência da frase indica, cod indica bacalhau, então se poderia traduzir o toponímico como “Cabo do Bacalhau” [N.T.].

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que o bacalhau era tão numeroso que às vezes pulavam, por vontade própria, para os barcos dos pescadores. Os holandeses não tardaram em ganhar dinheiro em cima das riquezas marítimas do Atlântico, e muitas fortunas de Amsterdã foram feitas com base em seu sofisticado sistema para conservar bacalhau e arenque e transportá-los através de vastas distâncias utilizando fluytschips de grande calado. Na Pensínsula Ibérica da primeira modernidade, assim como nos impérios coloniais ibéricos, peixe salgado do Atlântico Norte se tornou um prato típico da culinária nacional.223 Em seu Fish into Wine, Peter E. Pope enfatizou a importância do conhecimento local compartilhado oralmente pelos pescadores na criação dos mercados de pesca atlânticos e outras redes de mercadorias.224 O estudo de Pope a respeito dos contornos da economia baseada na pescaria da Terra Nova, no atual Canadá, também empregou evidências arqueológicas. Umas perspectiva oceânica também altera o modo como pensamos acerca do comércio de longa distância de plantas e animais vendidos como alimento ou remédio. Uma análise recente da documentação hispânica relacionada com os carregamentos de bacalhau seco e salgado indicou que o custo de transportá-lo mil milhas por mar era cerca de 25 vezes menor que o de levá-lo por terra. De fato, o transporte no interior da Espanha – por exemplo, de Bilbao a Toledo – custava significativamente mais que o transporte de longa distância por mar, como entre Bilbao e Boston.225 Porém, o que dizer a respeito de intercâmbios ecológicos que não foram ativamente liderados por mercadores ou marinheiros? Como a segunda seção explorará, ainda que os humanos tenham alterado a paisagem do comércio atlântico, às vezes a paisagem alterava eles.

223  Mário Moutinho, História da Pesca do Bacalhau. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. 224  Peter E. Pope, Fish into Wine: The Newfoundland Plantation in the Seventeenth Century. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2004. 225  Regina Grafe, “Turning maritime history into global history. Some conclusions from the impact of globalization in early modern Spain”, in Research in Maritime History, 2011, p. 258 e, da mesma autora, Distant Tyranny: Markets, Power, and Backwardness in Spain, 1650-1800. Princeton: Princeton University Press, 2011.

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A transmissão de animais e epidemias Num dia de primavera em 1580, a primeira frota a realizar com sucesso a travessia do Estreito de Magalhães a partir do Leste aportou numa ilha deserta. O comandante da expedição, Pedro Sarmiento de Gamboa, ordenou que seus homens tirassem a medida com o astrolábio. Usando os dados sobre a latitude, Gamboa consultou seu baú com cartas portolanas226 e adivinhou corretamente que sua frota havia chegado na Ilha de Ascensão. Seus pilotos utilizaram outras ferramentas para mapear a ilha e traçar a profundidade do leito do oceano. Antes de ir embora, Gamboa ergueu um memorial para marcar a passagem bem-sucedida da frota do Pacífico ao Oceano Atlântico – a primeira travessia feita seguindo esta direção de que se tem registro na história.227 O feito alcançado pela frota só foi possível pela combinação de uma ampla quantidade de tecnologias, como instrumentos de navegação e telescópios, canhões e as próprias naus. Gamboa e seus marinheiros, entretanto, adotaram outra prática tecnológica quinhentista que recebeu menor atenção. Antes de abandonarem a ilha, os marinheiros deixaram animais em terra, nomeadamente, leitões e cágados. Os marinheiros deixaram pares aptos a se reproduzirem de animais comestíveis na esperança de que os filhotes destes animais se provassem capazes de sustentar futuros marinheiros que visitassem a ilha. A prática de “semear” ilhas desertas com animais domésticos foi um dos aspectos da expansão marítima ibérica de maior importância ambiental no século XVI. Ainda que os marinheiros envolvidos nela trabalhassem de forma inteiramente improvisada e acidental, o resultado acumulado foi o de transformar ilhas sem grandes quadrúpedes em fontes de alimento que se renovavam automaticamente. Como Brian Jones notou em dissertação recente, suas atividades estabeleceram “escalas” escondidas cuja localização era conhecida apenas a grupos seletos 226  Cartas portolanas são mapas de navegação construídos a partir das direções do compasso e do astrolábio. Eles surgiram no século XIII, na Itália, e foram depois melhor desenvolvidos no contexto da expansão ibérica dos séculos XV e XVI [N.T.]. 227  Esta descrição é adaptada de Brian Jones, “Inventing the Ocean: Early Spanish Mariners and the Creation of Oceanic Space”. Austin: University of Texas, 2014; PhD dissertation.

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de navegadores espanhóis e portugueses.228 Estas formas improvisadas de manipulação ecológica foram frequentemente negligenciadas pelos historiadores (e até mesmo pelos próprios observadores da época) porque o conhecimento de informações geográficas e ambientais potencialmente valiosas era muitas vezes guardado com zelo. Como Maria Portuondo observou, o conhecimento marítimo ibérico era uma “ciência secreta”.229 Os porcos e cágados deixados por Gamboa eram uma informação com dono, não menos que os contornos das ilhas que navegara ou as profundezas que sondara. O papel mais amplo dos animais como uma força de mudança ecológica tem recebido, no geral, menos atenção que outros componentes do intercâmbio colombiano.230 Da tríade composta por “germes, plantas e animais” frequentemente utilizada por historiadores ambientais, nós tendemos a enfatizar mais os dois primeiros que o último. Motivos para esta ênfase não são difíceis de encontrar: a enorme taxa de mortalidade de doenças contagiosas na primeira modernidade como a varíola, a gripe, a febre amarela e a malária, e a importância econômica de mercadorias oriundas de plantas como a cinchona (fonte de quinino),231 anil e açúcar. Com a notável exceção do que Elinor Melville denominou “a erupção dos ungulados”,232 de animais domesticados da Eurásia para o Novo Mundo, as histórias ambientais de animais na primeira modernidade não deram origem a narrativas igualmente estimulantes. Um olhar mais atento, porém, aos registros textuais e visuais das trocas marítimas entre os séculos XVI e XVIII – como os relatos acobertados de Gamboa e outros navegadores ibéricos – revela a proeminência dos intercâmbios animais. Estes incluíam não apenas o gado domesticado estudado por 228  Jones, 2014 e também Richard H. Grove, Green Imperialism: Colonial Expansion, Tropical Island Edens and the Origins of Environmentalism, 1600-1860. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, o qual mostra como esta forma primitiva de manipulação ambiental de ilhas levou ao pensamento ecológico no século XVIII. 229  Maria M. Portuondo, Secret Science: Spanish Cosmography and the New World. Chicago: University of Chicago Press, 2009. 230  Ver, porém, Virginia DeJohn Anderson, Creatures of Empire: How Domesticated Animals Transformed Early America. Oxford: Oxford University Press, 2004; Elinor Melville, A Plague of Sheep: Environmental Consequences of the Conquest of Mexico. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 231  O autor utiliza a expressão Jesuit’s bark, que era um nome popular em inglês para os remédios contra a malária [N.T.]. 232  No original, “ungulate eruption”. Ungulados são os grandes mamíferos terrestres, como o gado, o porco e o cavalo [N.T.].

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Melville e Crosby mas também criaturas exóticas alimentadas durante longas viagens para servir de presentes dignos de serem dados a monarcas. Animais usados como presentes exóticos no período iam do coitado do rinoceronte que o rei D. Manuel de Portugal famosamente forçou a lutar com um elefante até o peru norte-americano presentado pelo vice-rei da Índia portuguesa ao imperador mogol233 Jahangir em 1612.234

Figura 1

A imagem na figura 1 é um detalhe de uma pintura feita possivelmente pelo artista japonês Kano Domi que utiliza o vocabulário visual do nanban, estilo artístico japonês da primeira modernidade. Ainda 233 Mughal ou Mogol designa o império que resultou da dominação turco-mongol do Norte da Índia no século XVI [N.T.]. 234 Felipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck (Texas A&M Press, 2005); Benjamin Breen, “The Emperor’s Turkey”, in The Appendix, November 28, 2013 [http://theappendix.net/ blog/2013/11/the-emperors-turkey].

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que todas as oito figuras estejam vestidas à maneira do Portugal quinhentista, o artista claramente se esforçou para diferenciá-las ao nível étnico ou fenotípico: os dois carregadores de pele escura são, provavelmente, ou africanos ou escravos do Sudeste Asiático. O artista também estava claramente fascinado pelas mercadorias que estes exóticos estrangeiros carregavam: um macaco, um pequeno animal que lembrava um cervo com manchas no couro, uma ave-do-paraíso e um galo branco. As figuras representadas aqui, como Gamboa e outros navegadores engajados em implantar e transportar animais, praticavam uma espécie de ciência vernácula, não-elitista. Essa ciência dependia de improvisos e acasos: encontrar um par compatível de papagaios,235 por exemplo, e decidir mantê-los presos juntos para ver se eles cruzavam. Mas ela também dependia de uma capacidade de previsão, do empirismo e de uma espécie de nascente consciência ecológica – o tipo de pensamento que Richard Grove descreveu em seu livro Green Imperialism.236 Um missionário em Angola em 1678, por exemplo, registrou seus experimentos privados com cavalos e o clima local. Ele notou que “cavalos trazidos do Brasil e terras estrangeiras (...) [tendiam a] morrer, ou se tornavam incapacitados, devido à mudança de clima, sobretudo no interior” e ele descreveu “testes” (experimenta) envolvendo tentativas de adaptar cavalos não-nativos à paisagem local.237 O missionário concluiu, porém, que “cavalos nativos do clima local são mais fortes e com menor tendência a ficarem doentes, como foi testado com três ou quatro [cavalos] nativos da terra”. Aqui, e talvez também nos casos de marinheiros “semeando” ilhas com porcos e cabras, o animal se transforma efetivamente num substituto do colonizador, uma cobaia destinada não apenas 235  O autor usa a palavra puffin, que indica papagaio-do-mar [N.T.]. 236  Richard Grove, Green Imperialism: Colonial Expansion, Tropical Island Edens and the Origino f Environmentalism, 1600-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. 237  Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Conselho Ultramarino, Angola, Caixa 11, doc. 100, Março 26, 1678. Maria Portuondo argumenta que os experimenta ibéricos deste tipo realizados nos séculos XVI e XVII podem ser decididamente traduzidos de modo viável como “experimentos”, Maria Portuondo, Secret Science, op. cit., p. 95. Seguindo a definição de Peter Dear de um experimento científico como “envolvendo uma questão específica acerca da natureza que o resultado experimental é projetado para resolver”, nós podemos, por exemplo, classificar este relato de 1678 de um experimenta com cavalos dentro desta categoria. O experimenta, que eu tendo a traduzir como um “teste” ou “prova”, de fato procurava responder uma questão específica sobre a natureza tropical, qual seja, animais e humanos europeus sucumbem mais facilmente a doenças tropicais? Ver Peter Dear, Discipline and Experiment – The Mathematical Way in the Scientific Revolution. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.

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a testar os perigos do clima tropical mas os efeitos biológicos da residência permanente nestas latitudes – os efeitos que surgem na transição entre ser um invasor ecológico e um nativo. Relatos desse tipo revelam uma rede em grande medida escondida de trocas a longa distância de animais que ajudaram a moldar a globalização da primeira modernidade. Essas redes de troca permanecem difíceis de traçar, contudo, dada a fluidez tanto dos animais quanto dos termos utilizados para descrevê-los. Um testemunho disso são as confusões geográficas ocasionadas pelo nome “peru”, que é conhecido como dinde – “da Índia”, em francês, mas em português é chamado peru, por causa do país. Nós viajamos da Turquia à Índia ao Peru simplesmente acompanhando o nome de um pássaro que, na verdade, não provém de nenhum destes lugares.238 Uma forma de responder a esta fluidez é prestar mais atenção a uma espécie de texto escondido – o DNA mitocondrial – escondido no interior de cada animal. Há quinze anos atrás, o uso do sequenciamento genético como uma fonte histórica pareceria ficção científica, mas hoje ele já foi colocado em prática. O artigo pioneiro de Sam White intitulado “Capitalist Pigs”, de 2011, por exemplo, usou um sequenciamento recente do DNA suíno para provar que os porcos que achamos que conhecemos são, na verdade, uma espécie de impostores, passando da China à Europa na época da Rota da Seda e deslocando uma outra subespécie, agora extinta, que era então comum na Europa.239 Da mesma forma, muitas doenças epidêmicas eram parasitárias de animais domésticos que viviam em grande proximidade dos humanos, abrindo a possibilidade de uma análise dos padrões históricos de doenças por meio de traços deixados no DNA animal. Ainda que os estudos animais sejam frequentemente classificados como história ambiental, vale a pena refletir sobre o que distingue os animais de seu entorno. Animais também são indivíduos, eles possuem uma espécie de subjetividade e de agência histórica, no sentido de que podem atuar de maneiras que são autodirigidas e independentes do controle humano. Escrever história animal é perfazer um delicado equi238  A confusão mencionada pelo autor faz sentido em inglês, onde Turkey diz respeito tanto ao país – Turquia – quanto ao animal, o peru. Não deixa de ser curioso – e existem motivos históricos para que isso tenha sido assim – que o nome de dois países diferentes em duas línguas diferentes se refira ao mesmo animal [N.T.]. 239  Sam White, “From Globalized Pig Breeds to Capitalist Pigs: A Study in Animal Cultures and Evolutionary History”, in Environmental History, vol. 16, nº 1, January 2011, pp. 94-120.

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líbrio: embora seja necessário considerá-los como seres independentes e sentientes ao invés de dados inertes do ambiente, em termos práticos muitas vezes é impossível fazer isso. Animais deixam poucos traços de arquivo, e, como Amy Kohout já apontou, mesmo esses poucos traços colocam desafios únicos. Os historiadores sabem exatamente o que fazer com um baú cheio de cartas – mas nós temos menos segurança para lidar com uma águia empalhada numa gaveta.240 Creatures of Empire, de Virginia DeJohn Anderson, por exemplo, demonstra brilhantemente como animais domésticos se tornaram locais de contestação dos indígenas americanos aos regimes europeus de propriedade e civilidade.241 Para Anderson, um algonquin matando a vaca de um inglês era mais do que a destruição de propriedade: era a afirmação de uma oposição a uma ordem social que reforçava limites rígidos entre a selvageria e a domesticidade, entre o espaço aberto e os terrenos fechados, entre um regime de propriedade e uma forma de vida que o desconhecia. Mas estes animais também não eram nada constantes, passando de instrumentos da domesticação europeia a bandos selvagens, se transformando em foragidos dos sistemas coloniais cuja trajetória histórica falhou em se conformar às necessidades de qualquer grupo humano singular.

Ciência, espiritualidade e natureza no mundo atlântico Em seu recente panorama sobre a história ambiental da América colonial, Cameron Strang e Chris Parsons argumentaram que compreender o papel do ambiente no mundo atlântico significa reconhecer que “praticamente todos os observadores viam a natureza como plena de espiritualidade”.242 De fato, não pode haver uma história da mudança ecológica no Atlântico sem que se preste atenção à transfor240  Amy Kohout, “From the Aviary: Haliaeetus leucocephalus”, in The Appendix 1:2, April 2013, pp. 64-66. 241  Virginia DeJohn Anderson, Creatures of Empire: How Domestic Animals Transformed Early America. Oxford: Oxford University Press, 2004. 242  Christopher Parsons; Cameron Strang, “Old Roots, New Shoots: Early American Environmental History”, in Early American Studies: An Interdisciplinary Journal, volume 13, nº 2, Spring 2015, p. 281.

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mação das crenças religiosas e epistemologias da natureza. Go-Betweens in the Colonization of Brazil, de Alida Metcalf, desenvolve as conexões entre a mudança ambiental, a identidade cultural e o conhecimento natural no contexto do Brasil.243 Mas nem tudo era transformação. Recreating Africa, de James Sweet, se baseou em arquivos portugueses pouco consultados para defender que as religiões e práticas culturais da África Central e Ocidental foram recriadas integralmente nas comunidades escravas do Brasil colonial.244 Levando o argumento mais além, ele sustentou que “recriar a África” nos novos espaços da escravidão americana oferecia aos africanos um certo grau de resistência, um que estava centrado em torno ao poder espiritual – especialmente a divinação e as práticas curandeiras, muitas vezes usando drogas nativas e africanas – mais do que a violência física. A compreensão mais matizada dos papeis exercidos pelas práticas ameríndias e africanas de produção do conhecimento que ajudaram a moldar a ciência global da primeira modernidade que esta abordagem enfatiza tem o potencial de desestabilizar alguns pressupostos acerca da expansão imperial e do comércio seiscentistas. Pode se tornar difícil, por exemplo, continuar a considerar as trocas de mercadorias como existindo numa esfera separada das práticas religiosas quando prestamos maior atenção às concepções indígenas de mercadorias enquanto imbuídas de propriedades “sobrenaturais”, ou as práticas equivalentes em torno dos feitiços centro-africanos, para não mencionar nada das muitas crenças “mágicas” a respeito de drogas medicinais como bezoares245 no contexto cultural europeu). O potencial de uma história trans-imperial das trocas de mercadorias que integre a compreensão espiritual e religiosa em torno aos bens materiais é sugerida no recente livro de Kris Lanes, The Colour of Paradise, que mostra como o comércio global de esmeraldas – uma das gemas mais valorizadas na primeira modernidade – se desenvolveu a partir de crenças dos Andes pré-colombianos e da dominação 243  Alida C. Metcalf, Go-Betweens and the Colonization of Brazil 1500-1600. Austin: University of Texas Press, 2005. 244  James Sweet, Recreating Africa: Culture, Knowledge and Religion in the African-Portuguese World. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003. 245  Bezoar é uma pedra formada no trato gastrointestinal que resulta de uma incapacidade de digestão pelo organismo. No período medieval e na Idade Moderna, acreditava-se que os bezoares eram capazes de desfazer a ação nociva de diferentes venenos, constituindo-se, assim, em um procurado remédio [N.T.].

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mughal da Índia que apreciavam as esmeraldas por causa de sua conexão ao divino.246 Este trabalho, que transita com delicadeza entre a Nova Granada e o Oceano Índico, também aponta para as maneiras que uma demasiada dependência aos limites do paradigma atlântico podem nos cegar às circulações de conhecimento e objetos que rapidamente cruzavam estas fronteiras. O volume Searching for the Secrets of Nature: the Life and Works of Dr. Francisco Hernández (2000) explora a fascinação que a “caçada” por fenômenos sobrenaturais no Novo Mundo exerceu sobre filósofos e médicos na primeira modernidade. Um ensaio no volume, ao apresentar uma lista dos remédios passíveis de serem encontrados na Cidade do México em 1706, fornece uma impressão vívida da variedade de materiais que estas investigações haviam tornado disponíveis já por aquela época: O estoque de uma farmácia na Cidade do México continha (...) chifres de narval, (...) cochinilhas, lagostins, besouros, cágados e sapos (...). Lagostins, víboras, serpentes, galhadas, crânios humanos, patas de anta e sangue de mula (...) Farelos de olhos de lagostim aliviavam dores causadas por pedras nos rins, feridas na bexiga, hemorroidas e dores renais. Intestinos secos de sapo eram considerados como capazes de dissolver pedras nos runs. Fígado seco de lobo, assim como seus intestinos, era bom para cólica. Asas pulverizadas de andorinha com sangue combinadas com sal e certas farinhas ajudavam a curar infecções renais.247

Ecoando o elogio feito por Alexis de Piedmont às “fezes de bestas e pássaros”, outras drogas à venda incluíam “urina e excrementos de animais como ganso, jumento, porcos selvagens, bois, vacas, cabras, cegonhas, serpentes, cavalos, galinhas, pessoas, ovelhas, pardais, galos, cachorros, águias, filhotes de pombo e raposa”. Em 1690, John Jacob Berlu, um negociante de fármacos sediado em Londres, mostrou que a situação era essencialmente a mesma no contexto britânico: seu Treasury 246  Kris Lane, The Colour of Paradise: The Emerald in the Age of Gunpowder Empires. New Haven: Yale University Press, 2010. 247  Jon Jay Tepaske, “Regulation of Medical Practioners in the Age of Francisco Hernández”, in Simon Varey (ed.), Searching for the Secrets of Nature: the Life and Works of Dr. Francisco Hernández. Stanford: Stanford University Press, 2000, p. 61, citando remédios de Félix Palacios, Palestra Farmacéutica chimica-galénica (Madri, 1706, 1723, 1730 etc.).

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of Drugs Unlock’d incluía um catálogo de drogas exóticas que provinham de 36 regiões específicas fora da Europa, incluindo 46 drogas das Índias Orientais, 23 das Índias Ocidentais e cinco da “Guiné”, ou seja, da costa da África ocidental.248 As funções destas substâncias eram muitas vezes tanto físicas quanto espirituais: curar uma alma possuída pelo demônio era muitas vezes equivalente a aplicar uma erva em pó ou cataplasma no corpo do paciente. Além disso, a eficácia medicinal dessas drogas não derivava das crenças a respeito de seus constituintes farmacêuticos ou químicos, mas sim de um entendimento holístico do funcionamento das forças humanas e divinas. O papel das configurações astrológicas sobre a saúde humana explorado por Cañizares-Esguerra em “New World, New Stars” se aplica igualmente aos produtos vegetais e animais que os pacientes da época consumiam para se curarem. Em outras palavras, se considerava que os remédios naturais eram influenciados pelas mesmas forças misteriosas – as poderosas conjunções de planetas e estrelas, “miasmas” de vapores nocivos, maldições demoníacas ou mesmo do próprio Satã – que se considerava ter causado a doença em primeiro lugar.249 Estes “portentos” sobrenaturais nos circuitos comerciais atlânticos, explorados por Joyce Chaplin e, mais recentemente, por Benjamin Schmidt, também apontam para a integração deste emergente comércio de drogas medicinais com correntes espirituais mais amplas que integravam teorias da natureza de origem ameríndia, africana e europeia.250 A crença de que os sábios europeus deviam conhecer toda a variedade da criação divina para entender a ordem estabelecida por Deus – notoriamente descrita por Francis Bacon em sua Nova Atlântida – era central 248  John Jacob Berlu, The Treasury of Drugs Unlock’d or a Full and True Description of all sorts of Drugs and Chemical Preparations, sold by Drugists, Whebery yoy may know the place of their growth, and from whence they come, etc. London: John Harris and Tho. Hawkins, 1690. Vasos de remédios preservados no Museu da História da Ciência, em Oxford, atestam para o amplo uso de farinha de pulmão de raposa, bezoares e “cranium humanum” (bem literalmente, a “caveira de um humano”) de forma muito parecida com os dos boticários da Nova Espanha. Ver também Pierre Pomet, Histoire générale des drogues, traitant des plants, des animaux et des minéraux, etc. (Paris, 1694). 249  Jorge Cañizares-Esguerra, “New World, New Stars: Patriotic Astrology and the Invention of Indian and Creole Bodies in Colonial Spanish America, 1600-1650”, in American Historical Review, 104:1 (1999). 250  Benjamin Schmidt, Inventing Exorcism: Geography, Globalism, and Europe’s Early Modern World. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2015; Joyce Chaplin, Subject Matter: Technology, the Body, and Science on the Anglo-American Frontier, 1500-1676. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001.

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à empresa colonial europeia.251 Porém obter acesso aos novos fenômenos naturais que a expansão atlântica tornava disponível era um negócio difícil que dependia de uma longa cadeia de informantes indígenas, mestiços e criollos, assim como de uma complexa rede de transportadores, mercadores, marinheiros e outros intermediários. Como a complicada história editoral dos esforços do próprio Hernández para decifrar o mundo natural da Nova Espanha deixou claro, as vastas distâncias, as incongruências culturais e as divisões políticas do mundo atlântico seguidamente mais atrapalhavam a venatio dos segredos da natureza do que contribuíam para ela.

Direções futuras para a história ambiental do mundo atlântico Em artigo recente publicado na Early American Studies, Joyce Chaplin chamou atenção para o significado da Revolução Industrial e o conceito de “pré-industrial” em nossa reflexão acerca da história ambiental do Atlântico.252 Como ela aponta no artigo, a ascensão dos regimes industrial de trabalho e uso da terra e as correspondentes mudanças tecnológicas na passagem do século XVIII ao XIX tiveram maior relevância em termos históricos do que as revoluções políticas no mesmo período. Enquanto historiadores do mundo atlântico têm costumado delimitar seu período com referência a eventos políticos como as revoluções Francesa, Americana ou Haitiana, Chaplin argumenta que as histórias futuras devem abordar mais as mudanças tecnológicas e ambientais associadas com a industrialização.253 Estudar os padrões de mudança do uso da terra, trabalho, clima e a relação homem-animal na era pré-industrial não apenas abre novas questões e tópicos para pesquisas históricas futuras mas também leva os historiadores a realizar um diálogo mais 251  Ver a discussão em James Delbourgo e Nicolas Dew, The Far Side of the Ocean”, in Delbourgo e Dew (eds.), Science and Empire in the Atlantic World. New York: Routledge, 2008. 252  Joyce Chaplin, “The Other Revolution”, in Early American Studies, vol. 13, nº 2 (Spring 2015), pp. 284-308. 253  Idem, p. 286.

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próximo com climatologistas e ecologistas cujas pesquisas tendem a ser delimitadas pela ausência de dados confiáveis para o período antes de 1800. Colaborações entre historiadores, geógrafos, etnobotânicos, ecologistas históricos e cientistas do clima oferecem a possibilidade de uma compreensão holística e interdisciplinar da transição entre tecnologias pré-industriais e industriais. Pesquisas futuras conseguirão, desse modo, iluminar as origens humanas do antropoceno, a nova era geológica na qual a mudança climática induzida pelos humanos e a perda de espécies se tornaram os fatores ambientais dominantes numa escala planetária. Um artigo recente e que teve muita repercussão afirma que as origens do antropoceno se encontram por volta de 1650, o que demonstra o papel que os historiadores podem ter no desenvolvimento dos debates e descobertas futuras a respeito da trajetória histórica do papel ambiental da humanidade.254 Ainda que o artigo, intitulado “Defining the Anthropocene”, tenha lidado com fontes secundárias relacionadas à crise do século XVII e a história ambiental da era colonial, nenhum historiador esteve diretamente envolvido em sua criação, e, por conseguinte, o artigo sofre de uma falta de contextualização histórica e de uma compreensão demasiadamente determinista de como a expansão colonial influenciou a mudança ambiental. Outra abordagem que vem ganhando espaço no que toca à história ambiental do Atlântico busca compreender por que certos produtos falharam em se movimentar através de culturas e oceanos.255 Um clássico exemplo destes fracassos é a planta de coca: ainda que missionários nos Andes reportassem as propriedades miraculosas deste estimulante natural já no século XVI, as folhas de coca não se globalizaram. Num olhar rápido, isso é surpreendente, afinal outros estimulantes, como o chá, o café e o chocolate, ganharam enorme popularidade no século XVII e emergiram, no século seguinte, como algumas das mais importantes mercadorias e cultivos no comércio global. Dados os óbvios benefícios de introduzir uma nova planta estimulante aos mercados globais, por que os espanhóis falharam em explorar a coca andina da 254  Simon L. Lewis; Mark A. Maslin, “Defining the Anthropocene”, in Nature, 519, March, 2015, pp. 171-180. Para uma replica, ver Clive Hamilton, “Getting the Anthropocene so wrong”, in The Anthropocene Review, vol. 2, nº 2, August 2015, pp. 102-107. 255  Londa Schiebinger, “Agnotology and Exotic Abortifacients: The Cultural Production of Ignorance in the Eighteenth-Century Atlantic World”, in Proceedings of the American Philosophical Society, vol. 149, nº 3, September 2005, pp. 316-343.

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mesma maneira? Responder a esta questão necessita do tipo de expertise transdisciplinar discutida acima: a planta de coca é notoriamente difícil de ser cultivada fora de seu espaço nativo de grande altitude, e os estudos farmacológicos modernos têm demonstrado que o alcaloide da cocaína (que é responsável pelas propriedades estimulantes da planta não-processada) se quebra rapidamente, tornando o transporte de longa distância inviável. Apenas com a invenção da química moderna no começo e em meados do século XIX é que surgiu uma rota alternativa para a transmissão da coca.256 Ao invés de tentar transportar as folhas ou tentar crescer esta difícil planta em novos climas, se tornou possível isolar e transportar o princípio ativo dentro das folhas: a cocaína. Porém entender o fracasso de transferências ecológicas no mundo atlântico envolve mais do que um conhecimento de farmacologia ou botânica. É necessário considerar os fatores contextuais que determinavam como os indivíduos na primeira modernidade consumiam, cultivavam e pensavam a respeito de produtos natural pouco familiares. Por exemplo, os temores de que os escravos envenenassem seus senhores tinham um papel altamente significativo na recepção europeia de cultivos medicinais africanos. James Sweet identificou a dificuldade de se saber se estes remédios não podiam também ser venenos como “uma tensão central no entendimento brasileiro das práticas africanas”.257 Além disso, Sweet aponta que muitos produtos se moviam não apenas entre as categorias conceituais de remédio ou veneno mas também navegavam o que o autor chama de uma “confusa fronteira entre ‘ciência’ e o ‘sobrenatural’”. O trabalho de Londa Schiebinger sobre o ocultamento intencional do conhecimento indígena sobre plantar abortivas nas Índias Ocidentais forneceu um influente modelo para compreender estas falhas na transmissão ecológica.258 Mas são necessários mais trabalhos para entender como as teorias da espiritualidade e do sobrenatural – como a crença ao mesmo tempo generalizada mas amplamente diversificada na possessão espiritual no mundo atlântico – moldou a recepção e a transmissão de produtos naturais. Outro rico campo para pesquisa futura envolve as conexões ambientais entre os mundos do Atlântico e do Pacífico. Ainda que mui256  Paul Gootenburg, Andean Cocaine: the Making of a Global Drug. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2009. 257  Sweet, Domingos Álvares, op. cit., 2011. 258  Schiebinger, “Agnotology and Exotic Abortificients”, op. cit., 2005.

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tos trabalhos sobre o “mundo ibérico atlântico” tenham aparecido em anos recentes, a ênfase até agora tem sido sobre a América hispânica. Um modelo para pensar nestes intercâmbios ecológicos numa forma transcultural é dada em The Monkey and the Inkpot, de Carla Nappi, que estuda um manual boticário chinês e as mudanças no conhecimento e materiais que acompanharam traduções entre diferentes idiomas, fossem eles o português, o tupi, o mandarim ou o manchu.259 Assim como no contexto atlântico, esta maior abertura da esfera chinesa de influência possibilitou novas maneiras de pensar a respeito (e pensar com) espécimes botânicos ou animais pouco usuais que a expansão imperial tinha encontrado. Uma pergunta que não foi respondida, contudo, no trabalho de Nappi é até que ponto o entendimento chinês da função das drogas e remédios “exóticos” foram comunicadas através das fronteiras culturais e linguísticas das tradições médicas do Sul da Ásia e da Europa. Que esta é uma fronteira de investigação que vale a pena ser explorada é dado nos primeiros capítulos de Golden-Silk Smoke: A History of Tobacco in China, de Carol Benedict, onde se sugere que uma ampla gama de conexões – particularmente o pouco explorado caminho do comércio de plantas entre a China quinhentista com o México via Manila – ainda aguardam maiores estudos.260 Outras pesquisas importantes têm vindo de historiadores da medicina no Império português, tais como Timothy Walker e Júnia Ferreira Furtado.261 Ao esclarecer o papel do que se pode chamar de “informantes indígenas” e “curandeiros nativos” na compreensão científica da natureza tropical na primeira modernidade, estes trabalhos buscam ir além da distinção “metrópole/periferia” de muitos dos estudos anteriores sobre a ciência e a medicina coloniais prestando uma atenção mais detida nos modos que o conhecimento natural surgiu de conexões transimperiais entre diferentes zonas de contato “periféricas”. Exemplos representativos incluem o médico João Curvo de Semedo, que popularizou uma tintura feita de cinchona amazônica (a Água da Inglaterra) que se tornou popular na Grã-Bretanha e no Brasil, ou o pirata e naturalista amador William 259  Carla Nappi, The Monkey and the Inkpot: Natural History and its Transformation in Early Modern China. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2009. 260  Carol Benedict, Golden-Silk Smoke: A History of Tobacco in China, 1550-2010. Berkeley: University of California Press, 2011. 261  Ver Sidney Chalhoub et al (eds.), Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

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Dampier, cujos diários de suas circum-navegações estão repletos de referencias portuguesas a mestiços e criollos que lhe ofereciam amostras de plantas e informação que ele, então, levava através do globo.262 Como Parsons e Strang notam, a história ambiental do Atlântico é uma história de perpétua mudança.263 Compreender a história ambiental do espaço atlântico significa reconstruir mundos perdidos, naturais ou humanos, dos quais hoje existem apenas os obscuros contornos. É quanto a este aspecto – o enorme grau de mudança ao longo do tempo, a quase total obliteração da flora, da fauna e das sociedades humanas – que as histórias ambientais da bacia atlântica mais diferem daquelas de outros tempos e lugares. Enquanto Fernand Braudel podia abrir sua famosa história do Mediterrâneo com um elogio das montanhas Atlas, no Marrocos, meditando sobre a longue durée do relacionamento da humanidade com a natureza mediterrânica, como os movimentos dos pastores ou a enchente dos rios, a história ambiental do Atlântico sustenta pouco panoramas estáticos no que toca à geografia ou à história.264 É uma história de contínuo improviso, adaptação e mudança, caracterizada mais pela destruição do que pela persistência de padrões de longa duração, como no caso da Mata Atlântica, hoje virtualmente extinta quando comparada a seu alcance original. Também é uma história desequilibrada, lidando tanto com momentos aparentemente triviais como o peru do imperador Jahangir e com alguns dos mais trágicos episódios da história comum da humanidade. Ambos, as peregrinações do cultivo do tomate e as mortes de milhões, caem sob o manto da história ambiental. O desafio colocado ao campo e àqueles que trabalham nele é dançar entre os diferentes assuntos que o compõe sem perder o equilíbrio.

262  Benjamin Breen, “Tropical Transplantations; Drugs, Nature, and the Globalization in the Portuguese and British Empires, 1640-1755”. Austin: The University of Texas at Austin, 2015, PhD dissertation. 263  Parsons; Strang, “Old Roots, New Shoots”, op. cit., 2015. 264  Fernand Braudel, La Méditerranée et le monde Méditerranéen à l’Epoque de Philippe II (1949).

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Roteiro bibliográfico Panoramas e novas perspectivas sobre o intercâmbio colombiano Enquanto o livro Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900-1900 (Cambridge University Press, 1986) continua sendo central e frequentemente citado, ele foi corrigido em anos recentes por novas interpretações e novos dados. Para um levantamento de fácil acesso e destinado a um público amplo dos desenvolvimentos recentes da arqueologia pré-colombiana, ver Charles C. Mann, 1491: New Revelations of the Americas Before Columbus (New York: Knopf, 2005). Os trabalhos da geógrafa Judith Carney também acentuam o papel da África nestas trocas ecológicas, uma faceta do mundo atlântico que Crosby amplamente deixou de lado. Ver Judith Carney, Black Rice: The African Origins of Rice Cultivation in the Americas (Harvard University Press, 2001) e, com Richard Nicholas Rosomoff, In the Shadow of Slavery: Africa’s Botanical Legacy in the Atlantic World (Berkeley: University of California Press, 2010). Entretanto, o trabalho de Carney também teve seus detratores: vários historiadores de projeção questionaram o uso feito por Carney das evidências históricas a respeito da transferência do assim chamado “arroz vermelho” (uma subespécie distinta daquele cultivo) da África ocidental para as Carolinas, nos Estados Unidos, que constitui um dos aspectos centrais de seu argumento. Ver David Eltis, Philip Morgan, e David Richardson, “Black, Brown, or White? Color-Coding American Commercial Rice Cultivation with Slave Labor”, in The American Historical Review, vol. 115, nº 1 (February 2010), pp. 164-171. Outros trabalhos recentes de vulto incluem Alida Metcalf, Go-Betweens and the Colonization of Brazil, 1500-1600. Austin: University of Texas Press, 2005; Daniela Bleichmar, “Books, Bodies, and Fields: Sixteenth-Century Transatlantic Encounters with New World Materia Medica”, in Londa Schiebinger & Claudia Swan (eds.), Colonial Botany: Science, Commercy, and Politics in the Early Modern World. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005; e Geoffrey Parker, Global Crisis: War, Climate Change, and Catastrophe in the Seventeenth Century (New Haven, 2013). As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Coleções e curiosidades nas trocas ecológicas A história das maravilhas, milagres e coleções de espécimes naturais (motivada, talvez, pelo influente trabalho de Lorraine Daston & Katherine Park, Wonders and the Order of Nature [Zone Books, 2001)]) tem interagido recentemente de forma bastante estimulante com a história ambiental. Ver, por exemplo, David Philip Miller & Peter Hanns Reill (eds.), Visions of Empire: Voyages, Botany, and Representations of Nature (Cambridge: Cambridge University Press, 2011); Londa Schiebinger, Plants and Empire: Colonial Bioprospecting in the Atlantic World (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004); Londa Schiebinger & Claudia Swan (eds.), Colonial Botany: Science, Commercy, and Politics in the Early Modern World (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005); e Paula de Vos, “The Science of Spices: Empiricism and Economic Botany in the Early Spanish Empire”, in Journal of World History, 17:4 (Dec., 2006). Materialidade e cultura visual no mundo atlântico O estudo das culturas visual e material constitui uma tendência relacionada de trabalho acerca das trocas ambientais atlânticas. O abrangente panorama de Arnold J. Bauer, Goods, Power, History: Latin America’s Material Culture (Cambridge, 2001) armou a cena para os estudos que consideram questões como as diferentes representações visuais de espécies naturais, o papel da espiritualidade e da arte religiosa nas trocas de conhecimento e a relação entre as culturas impressa e manuscrita. Trabalhos recentes notáveis incluem Daniela Bleichmar, Visible Empire: Botanical Expeditions and Visual Culture in the Hispanic World. University of Chicago Press, 2012, e Daniela Bleichmar & Peter Mancall (eds.), Collecting Across Cultures: Material Exchanges in the Early Modern Atlantic World (University of Pennsylvania Press, 2012). Para uma perspectiva inovadora sobre a circulação da cultura visual na África do período, ver Cecile Fromont, Nature, Culture, and Faith in Translation: Capuchin Images and Cross-Cultural Knowledge of Kongo and Angola, 1650-1750 (University of North Carolina Press, 2014). Tomando uma perspectiva mais europeia, o livro de Benjamin Schmidt, Inventing Exoticism: Geography, Globalism, and Europe’s Early Modern World (University of Pennsylvania Press, 2015), destaca a confusão visual e material que resultou da circulação global de formas diferentes de produtos “exóticos”, de drogas e remédios à iconografia religiosa e mapas. 270 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Trocas médico-botânicas e o desfazer das fronteiras imperiais Ainda que os historiadores tenham há muito tempo reconhecido a importância dos impérios ibéricos como locais de circulação de novos remédios e drogas, um florescimento de trabalhos sobre o assunto nas últimas duas décadas abriu novas perspectivas de pesquisa. Pesquisadores brasileiros como Marcia Moisés Ribeiro, A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII (São Paulo: Hucitec, 1997); Sidney Chalhoub et al, Artes e ofícios de curar no brasil (Campinas: UNICAMP, 2003); e Vera Regina Beltrão Marques, Natureza em boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista (FAPESP, Editora da UNICAMP/Centro de Memória, UNICAMP, 1999) exploraram como o Brasil e o mundo lusitano em geral se tornou um foco de intercâmbios transculturais e transimperiais. O trabalho de Rafael Chambouleyron acerca da província do Maranhão, como sua dissertação Portuguese Colonization of the Amazon Region, 1640-1706) (PhD Dissertation, Faculty of History, University of Cambridge, UK, 2005), revela o quão porosas e, muitas vezes, inexistentes eram as fronteiras entre as economias e culturas médicas imperais. Da mesma forma, Júnia Ferreira Furtado, “Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial”, in Revista do Arquivo Público Mineiro (2005) sublinha o fracasso das fronteiras disciplinares que separavam médicos licenciados de outros praticantes da medicina nas colônias modernas, como faz James Sweet, Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World (University of North Carolina Press, 2011). Assumindo uma visão mais ampla, Richard Grove, Green Imperialism: Colonial Expansion, Tropical Island Edens and the Origins of Environmentalism, 1600-1800 (Cambridge: Cambridge University Press, 1995); Richard Drayton, Nature’s Government: Science, British Imperialism and the Improvement of the World (New Haven: Yale University Press, 2000); John Robert McNeill, Mosquito Empires: Ecology and War in the Greater Caribbean, 1620-1914 (Cambridge: Cambridge University Press, 2010) e outros historiadores do imperialismo britânico e do ambiente têm destacado o papel exercido pelas amostrar botânicas em atravessar as fronteiras imperiais no mundo atlântico e além. Ver também o ensaio de David Hancock, “The Triumphs of Mercury: Connection and Control in the Emerging Atlantic Economy”, in Soundings in Atlantic History, op. cit., que coloca a ênfase na “descentralização, nas redes e na As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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auto-organização” como os elementos definidores do mundo comercial do Atlântico na primeira modernidade. Conhecimento natural e sobrenatural A substancial bibliografia dedicada à ciência, medicina e o “conhecimento natural” do mundo atlântico possui a tendência de negligenciar os trabalhos sobre o conhecimento sobrenatural. Mas, como Jorge Cañizares-Esguerra apontou em seu influente artigo, “New World, New Stars: Patriotic Astrology and the Invention of Indian and Creole Bodies in Colonial Spanish America, 1600-1650”, in American Historical Review, 104 (February 1999), os colonos nas Américas e na África eram guiados tanto por temores de contágio miasmático, possessão demoníaca e influências astrológicas malignas quanto pela curiosidade científica ou necessidade médica. O brilhante ensaio de Pauline Watts, “Prophecy and Discovery: On the Spiritual Origins of Christopher Columbus ‘Enterprise of the Indies’”, in American Historical Review 90 (1985), permanence uma das fundações a este respeito; trabalhos mais recentes sobre o papel do sobrenatural nas trocas ambientes do mundo atlântico incluem a dissertação de Pablo Gomez, “Bodies of Encounter: Health, Illness and Death in the Early Modern African-Spanish Caribbean”, (PhD dissertation, Vanderbilt University, 2010), e James Sweet, Domingos Álvares, op. cit. Enquanto isso, até os mais ardentemente empiristas dos cientistas iluministas encontravam obstáculos impostos pelo ambiente e pela epistemologia: Neil Safer, em Measuring the New World: Enlightenment Science and South America (Chicago: University of Chicago Press, 2008), demonstra adequadamente a interrelação entre os objetivos da filosofia natural europeia e as exigências imprevisíveis de tempo, lugar e tradução intercultural do conhecimento natural.

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Extratos de documentos Padre Giovanni Antonio Cavazzi sobre os venenos da África centro-ocidental, década de 1660:265 Este relatório feito por um monge capuchinho sobre Angola e Congo foi traduzido para o francês e reimpresso muitas vezes no compêndio em sete volumes dos relatos de missionários africanos conhecidos como Relation historique de l’Ethiopie occidentale. O estilo narrativo de Cavazzi oscila entre relatos detalhados das práticas médicas e espirituais africanas e severas condenações de sua suposta origem demoníaca. Aqui, Cavazzi lamenta o destino de seus companheiros europeus que, ao procurar a ajuda de curandeiros congoleses, “procuravam conservar suas vidas perdendo suas almas”. O relato de Cavazzi destas formas de cura demonstra a preocupação característica com modo pelo qual o ambiente, numa escala macro, e a configuração interna dos ânimos – os chamados “humores” da alma – interagem. Em seu informe sobre a picada do “pequeno animal chamado Ban-zo”, por exemplo, Cavazzi descreve a interrelação entre ameaças ambientais externas (um inseto nocivo), o estado mental das vítimas, que são “atiradas num intenso frenesi” e as práticas espirituais dos curandeiros. “Estes povos estão sujeitos a muitos males que são particulares a este clima e, sobretudo, à dolorosa retração dos nervos, que eles chamam Chiongo. Esta começa com uma violenta dor na cabeça, acompanhada por vertigem, convulsões, tremor nos membros e outros sintomas, os quais todos num curto período de tempo reduzem o paciente a pele e ossos. Acredita-se que este mal é o resultado da pouca constância de seus costumes. As folhas de uma planta chamada Luqui, não muito diferentes do nosso hissopo, servem de cura. Eles fervem estas folhas e as reduzem a pó, com o qual eles fazem uma infusão e a bebem. O óleo que eles tiram das mesmas folhas é utilizado para untar as têmporas do doente, junto com os piolhos, artérias, pústulas e úlceras de seus corpos; este é um poderoso remédio. Os europeus e outros que não nasceram nestas terras, para preservarem a si mesmos destas doenças, que ele pegam bastante facilmente, tomam esta farinha junto com a comida e a 265  Giovanni Antonio Cavazzi (traduzido por Jean-Baptiste Labat), Relation historique de l’Ethiopie occidentale. Paris, 1732, I, pp. 79-82.

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bebida. Estes povos também estão sujeitos a um horrível inflamação da boca, que se espalha para o pescoço, se tornando maior que a cabeça, e acompanhado de grandes dores e muito risco de sufocamento. Eles chamam isso de garamma. Encontra-se neste país um pequeno animal chamado Ban-zo. É de coloração cinza, grande como as moscas que atormentam os cavalos. Seu estômago é inteiramente contornado por seus pés. Sua mordida ou picada é fatal, se o atingido não é sangrado adequadamente. Isso causa dor excessiva e uma febre que tira toda a razão da vítima e a lança num intenso frenesi. Diz-se que aqueles que sobreviveram a ela podem ficar doentes uma segunda vez sem terem sido picados, como uma lembrança da doença que eles passaram: eles então entram num segundo frenesi que é tão horrível que eles mesmos se matam. Os padres de seus ídolos fingem ter o segredo de curar este mal com seus encantos e pelo remédio que eu descreverei. Não há dúvida que estas pessoas entram num pacto com o diabo. Eles procuram um dos animais [o Ban-zo] e o matam; eles então colocam o corpo do animal numa cova que cavaram na terra, com fumigações, cerimônias e invocações que são familiares a eles. Eles jogam uma grande quantidade de terra na cova; diluem e diluem de novo a terra desta cova e, quando a água está mais ou menos clara, eles a dão de beber para a pessoa doente; ainda que escura e espessa, de péssimo gosto e odor, o doente não deixa sobrar nem um pingo. Eles induzem o doente a vomitar, rejeitando o veneno, ao menos em parte; frequentemente isso mata vários doentes, e aqueles que não são mortos ficam paralisados, ficando aleijados das pernas e dos pés e seus nervos se tornam para sempre sensíveis a este pernicioso veneno. Esta doença é tão forte que os europeus não são capazes de suportá-la sozinhos, eles têm tentado, infelizmente, conservar suas vidas perdendo suas almas e tomando este remédio, após terem concordado com os Sacerdotes do demônio a recompensa que estes irão receber, e são curados com este remédio detestável, apesar da proibição expressa da Igreja e dos perigos e efeitos adversos que acabaram de ser relatados”.

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Fonte primária 2: Duarte Madeira Arrais sobre a transmissão transatlântica da sífilis, 1683:266 Por volta do século XVII, médicos e outros comentadores começaram a especular a respeito do impacto do comércio transoceânico sobre as doenças epidêmicas. Duarte Madeira Arrais, um médico baseado em Lisboa, com seu Methodo de conhecer e curar o morbo gallico, foi uma das primeiras autoridades médicas a argumentar que a sífilis se originou no Novo Mundo. Seu relato mostra como a transferência por longa distância da flora, fauna e germes estava começando a impactar o conhecimento da ciência, da medicina e da natureza na metrópole. “(...) o morbo gálico foi novamente aparecido (...) no ano de 1493 em Nápoles naqueles dois grandes exércitos dos Reis Católicos de Espanha, & Carlos VIII de França, & deles se comunicou o mal ao mundo todo, levando-o cada um consigo para à sua pátria. É também coisa certa entre os mesmos autores, & outros históricos, que daquela ocasião chegara o famoso Cristóvão Colombo do descobrimento das Índias ocidentais, & que indo a Nápoles dar conta de sua viagem, aos Reis Católicos, em testemunho das terras que descobrira, levaram consigo muitos Índios, & Índias, & como todos iam infectos do morbo gálico, assim eles, como os mais soldados, & gente da armada, pela comunicação, que das Índias tinha precedido, & como também os soldados tivessem conversação com as Índias de novo chegadas, & outros de Colombo com as mulheres públicas da terra, foi cousa facílima comunicar-se o contágio a grão parte do exército Espanhol, & logo também ao Francês por terem já feito entre si pazes. Conta além disto evidentemente que era este mal tão antigo nas Índias ocidentais, que não havia já memória de seu princípio. E como a causa de se comunicar, & disseminar por toda Europa, & depois por África, & Ásia foi evidente; não há para que recorrer a influxos celestes, nem a vapores corruptos das inundações, nem ao impuro ajuntamento dos dois leprosos, nem ao imódico uso venéreo, nem a semente, 266  Duarte Madeira Arraiz, Methodo de conhecer e curar o morbo gallico; primeira [e] segunda parte: propoemse definitivamente a essencia, species, causas...et cura do morbo gallico. Lisboa, 1683, pp. 72-73 [como se trata de texto cujo original é em língua portuguesa, consultei a edição citada, apenas atualizando a ortografia (N.T.)]

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ou menstruo corruptos, nem à impureza dos alimentos, nem a comer carne humana, nem finalmente a outras causas particulares, que os autores antes de lhes constar desta verdade dando tratos ao entendimento quiseram esquadrinhar”.

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Capítulo 6 Saberes e livros no mundo atlântico: o intercâmbio cultural na Carrera de Indias Carlos Alberto González Sánchez Pedro Rueda Ramírez

1. Norte da Contratação Esta história começa em Sevilha, uma cidade que durante a Modernidade esteve condicionada por um fenômeno que afetou quase todas as facetas de seu devir cotidiano: a Carrera de Indias. Concedido pela Coroa em 1503, o monopólio da navegação e tráfico com o Novo Mundo foi uma circunstância excepcional que lhe imprimiu uma marca duradoura e visível, resultado, em parte, de sua estratégica posição geográfica e de uma dilatada experiência e tradição no comércio em longa distância. Se levarmos em consideração apenas o tema que é objeto de nosso interesse, destaca-se a primazia de seu porto entre os peninsulares no negócio de códices internacionais desde a baixa Idade Média267. A transformação da cidade em todas as ordens foi radical, chegando ela a ser uma das maiores urbes do Ocidente. Foi resultado dos efeitos da “contratação”, das linhagens de uma antiga aristocracia e de uma heterogênea burguesia de origem forânea (castelhana, cantábrica, basca, francesa, portuguesa, flamenga, italiana); também, do fato de Sevilha ser o eixo de confluência de uma complexa humanidade flutuante (delinquentes, pobres, pícaros e aventureiros de toda laia) em busca de fortuna em ambos os lados do Oceano. A arrancada aludida teve como ponto de partida o estabelecimento da Casa de Contratação (1503), instituição a quem foi destinada 267  Gil, Juan: “La enseñanza del latín en Sevilla en la época del Descubrimiento”. Excerpta Philologica. I, 1 (1991), pp. 259-280. Pardo Rodríguez, M. L., Rodríguez Díaz, E.E.: “Producción libraría en Sevilla: artesanos y manuscritos”, em E. Condello e G. di Gregorio (ed.), Scribi e colofoni. La sottoscrizioni di copisti dalle origini all’avvento della stampa, CISAM, Spoleto, 1995, pp. 187-222.

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a responsabilidade de garantir o monopólio colonial, e a qual foi encomendada a administração e organização da Carrera de Indias. Talvez por isto, o trânsito de navios, homens e mercadorias entre Sevilha e América venha monopolizando as preferências da investigação historiográfica a respeito. Realmente, na cidade se conformavam a via e os meios oficiais por onde fluíam os benefícios derivados da exploração dos domínios atlânticos, tesouros indispensáveis para a sobrevivência da política internacional da monarquia dos Áustrias268. A arrecadação destas riquezas foi certamente um dos fatores que determinaram a estrita regulamentação dos negócios ultramarinos espanhóis do Antigo Regime. Esta rede que a Coroa ativou em princípios do século XVI apresenta uma diversa gama de matizes e grandes possibilidades de estudo: o tema náutico, a emigração, o intercâmbio científico-tecnológico e cultural, o comércio, etc.; no entanto, até agora, ocorre a primazia do impacto de sua vertente econômica e humana, em particular no que se refere à quantificação do trânsito de homens, barcos, mercadoria e rendimentos. Em troca, e salvo raras exceções, tem-se deixado de lado âmbitos tão decisivos na gênese e desenvolvimento da sociedade das Índias como o dos produtos culturais encontráveis entre os pertences que os passageiros e tripulantes transportavam e entre os gêneros carregados nos galeões e naus da Carrera. Nos navios foram enviadas criações artísticas (pinturas e esculturas) e, fundamentalmente, abundante material gráfico e icônico-visual, fosse manuscrito ou impresso (livros, folhas soltas, estampas, cartas e jogos impressos), isto é, certos mediadores intelectuais que, junto aos homens, exerceram um protagonismo de primeira ordem na ocidentalização do Novo Continente e na simbiose cultural que ativará o contato dos universos espirituais colocados em cena desde 1492269. Com efeito, o livro foi um objeto peculiar que acompanhou o homem do Renascimento na exploração dos mares e na conquista dos novos mundos em uma época que assistiu a gênese da tipografia, arte que começaria a multiplicar os impressos de uma forma extraordinária 268  Um estado da questão em García-Baquero, Antonio: La Carrera de Indias: suma de la contratación y océano de negocios, Sevilla, Algaida, 1992. 269  Tomo o conceito “ocidentalização” de Gruzinski, Serge: La colonización de lo imaginario. Sociedades indígenas y occidentalización en el México colonial. Siglos XVI-XVIII, México, Fondo de Cultura Económica, 1991. Para boa parte dos temas que abordamos neste livro é fundamental sua excelente obra: Les quatre parties du monde. Histoire d´une mondialisation, Paris, Éditions de La Martinière, 2004.

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e, ainda mais, a colocar em destaque sua força expansiva e potencial ideológico-social dos textos. Os livros, pois, estiveram à altura do desafio que significou a ruptura das fronteiras do universo conhecido em finais do século XV270. Ainda que não seja este o momento de esclarecer a influência que exerceram sobre os artífices da expansão marítima, resulta muito difícil dissociar imprensa e descobrimentos na empresa que possibilitou a conquista dos extremos da esfera terrestre e, em definitivo, na origem e desenvolvimento da Europa moderna. Descoberto o continente americano, a cultura escrita, pelas mãos e ao ritmo da chegada e assentamento dos povoadores espanhóis, responsabilizou-se pela assimilação cultural daqueles confins, convertendo-se em um instrumento essencial de mediação entre as civilizações em contato e, particularmente, em um dos suportes primordiais da cristianização dos indígenas. Desde então, enviar ou levar livros às Índias se tornou algo rotineiro, porque em virtude de um teórico “pacto colonial” e das interessadas prerrogativas dos mercadores espanhóis, as imprensas tipográficas foram poucas e sua produção bastante limitada no Novo Mundo. O vice-rei do México, Martín Enríquez, informava ao Rei sobre este controle das imprensas, já que “lo que toca a las imprentas hay aquí dos y fuera de cosas que importan muy poco se les tiene bien cerrada la puerta”271. Qualquer pessoa, mercador ou não, que quisesse levar ou fazer chegar mercadoria ou outro produto às Índias, sob pena de confisco do carregamento e de uma soma pecuniária, devia apresentar aos oficiais da Contratação uma declaração escrita, jurada e assinada (um registro), das coisas a serem embarcadas, bem como de seu valor. Este era um procedimento de controle que a Coroa colocou em marcha para garantir o cumprimento do monopólio e, prioritariamente, a arrecadação dos tributos correspondentes. Ditos documentos deveriam ser custodiados pelo contador da Casa para formar com eles um inventário, o Registro, de tudo que transportavam, homens e coisas, cada um dos navios da frota e dos galeões que haveriam de cruzar o Oceano. Portanto, como 270  Para isso contamos com os magníficos estudos de Gil, Juan: “Libros, descubridores y sabios en la Sevilla del Quinientos”, a introdução de sua edição do Libro de Marco Polo anotado por Cristóbal Colón, Madrid, Alianza, 1987; e Pérez-Mallaína, Pablo E.: “Los libros de náutica españoles del siglo XVI y su influencia en el descubrimiento y conquista de los océanos”, em Ciencia, vida y espacio en Iberoamérica, J.L. Peset coord., Madrid, CSIC, 1991, vol. III, pp. 457-484. 271  Arquivo Geral das Índias (AGI). México, 19, n. 159, f. 1r. Carta do Vice-rei Martín Enríquez a Sua Majestade. 23-9-1575.

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advertiu Veitia Linaje em meados do século XVII, o registro finalizado, referia-se ao expediente completo do barco, bem como às folhas dos carregadores e passageiros. Disse ela: se llama registro el instrumento particular, y también el proceso que de todos los de una nao se forma 272; e especifica que diesen los cargadores las memorias de sus cargazones al Contador de la Casa, a tiempo que puedan ir en las flotas, pena de perder las mercaderías.273. Uma cópia destes registros, em mãos do escrivão de cada embarcação, era a prova legal das operações realizadas e servia de apólice a ser entregue aos encarregados reais, nos portos de chegada. O sistema ficou regularizado através de um documento emitido por Felipe II em 1557, em que se ordenou que todos os navios que fossem de qualquer parte das Índias, ou Ilhas, não pudessem ir sem levar registro de onde saíssem, em que se pusesse individualmente tudo o que levassem, sob pena de perdido, e aplicado a nossa Câmara e Fisco274. Pois bem, o apego social do livro e sua extraordinária expansão geográfica na alta Idade Moderna, sobretudo em sua vertente econômica como produto de intercâmbio cultural e como peça chave de relações culturais, gerou a pretensão nos governantes de controlá-lo de maneira eficaz; porque eles rapidamente perceberam o perigo envolvido em deixar controle a circulação do impresso e seus imprevisíveis riscos ideológicos. Desde cedo os livros gozaram de uma peculiar isenção de tributos comerciais, privilégio econômico de que seu negócio vinha se beneficiando em Castela, de forma irregular, desde a baixa Idade Média275. Assim, nos primeiros anos da Carrera de Indias os mercadores que transportavam impressos seguiram desfrutando deste privilégio. Contudo, à raiz das contínuas contendas surgidas com os oficiais da Casa, que frequentemente reclamavam o pagamento dos direitos alfandegários estipulados (as leis não faziam explícita referência aos negócios ultramarinos), Carlos V, para colocar a tipografia a serviço da cristianização das Índias e evitar discussões administrativas, referendou tal privilégio em 272  Veitia Linaje, José de: Norte de la Contratación de las Indias Occidentales (Sevilla, 1672), ed. de F. de Solano, Madrid, Instituto de Estudios Fiscales, 1981, liv. II, cap. XVII. 273  Ibid. 274  Recopilación de las Leyes de los Reinos de Indias, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1998, liv. IX, tít. 33, lei 19. 275  Reyes Gómez, Fermín de los: “Publicar en el Antiguo Régimen”. Em Historia de la literatura jurídica en la España del Antiguo Régimen, ed. Javier Alvarado, Madrid, Marcial Pons, 2000, v. I, pp. 287-330.

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Valladolid, em 4 de novembro de 1548, confirmando que a respeito dos livros que destes Reinos se levarem às Índias y se trouxerem delas, e que nossos Oficiais não peçam nem levem nenhum direito de almoxarifado pelos livros, sob pena de nossa mercê, e cem mil maravedis276 para nossa Câmara277. Este ditame fiscal do Imperador foi consequência das queixas que o mercador de Sevilha, Cebrián de Caritate, dirigiu às autoridades estatais. Em 1547, Caritate pretendeu enviar à Castela do Ouro (em Terra Firme) livros de missas, outros de Igreja, Teologia e outras faculdades, operação pela qual a Contratação lhe exigiu os tributos previstos no comércio atlântico. O mercador fez a reclamação amparando-se em um documento oficial de 1480, no qual os Reis Católicos declararam os livros livres de impostos. Graças aos documentos reais enviados às autoridades em 1548, Caritate conseguiu a devolução do montante que lhe foi cobrado e a validação da norma citada278. Desde então, o único custo com que deviam contribuir os carregadores de livros à Real Fazenda seria o imposto de armada, o qual o cronista Ortiz de Zuñiga definiu como “cierto derecho que para ellos [os do Consulado de mercadores sevilhanos] se cobra con más o menos repartimiento [a respeito da despesa] de las mercadurías que se cargan” com a finalidade de cobrir os gastos de defesa do sistema de frotas279. Em virtude do controle ideológico à que foram submetidas a imprensa e a colonização, os impressos se tornaram objeto de uma especial atenção e vigilância, devido à delimitação e colocação em marcha de um procedimento particular exigido aos que pretendiam enviá-los às Índias. Deste modo, e seguindo a norma, os implicados, depois de depositar na alfândega os caixotes ou baús de livros que queriam enviar às Índias, tinham que se dirigir à sede do tribunal da Inquisição de Sevilha, localizada no Castelo de Triana, com uma relação escrita e detalhada dos títulos que queriam embarcar, no registro obrigatório ou numa lista aparte adjunta a anterior. Neste local, o Secretário do Santo Ofício anotava o trâmite de recepção em audiência frente aos inquisidores e in276  N.T.: “Maravedís”: Moedas antigas da Espanha, segundo a Real Academia Espanhola (RAE). 277  Toda legislação, para a Espanha e para a América, relativa aos livros, transcreve-a Reyes Gómez, Fermín de los: El libro en España y América. Legislación y censura (siglos XV-XVIII), 2 vols., Madrid, Arco/Libros, 2000. 278  AGI. Panamá, 235, L. 8, f. 210v-211v. 279  Ortiz de Zuñiga, Diego. Anales eclesiásticos y seculares [1796]. Sevilla: Guadalquivir, 1988, t. IV, p. 108.

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dicava o seguinte passo, já que se costumava encarregar que os livros fossem revisados por um qualificador autorizado, depois do que, poderiam passar às Índias. Estes qualificadores eram censores que pertenciam às ordens religiosas, muitos deles dominicanos ou jesuítas, ou membros do cabildo catedralesco sevilhano. O qualificador de turno, no convento ou na casa religiosa, examinava a memória com os títulos e, ao não achar inconvenientes, outorgava a autorização necessária. Em seguida, devia ir à alfândega para comprovar se a relação apresentada coincidia com os livros incluídos nos caixotes que se encontravam a espera de serem embarcados. Feitas as verificações, e sendo positivas, estampava-se um selo de cera do Santo Oficio sobre os caixotes ou baús com os livros, de tal modo que não podiam ser abertos até a chegada ao seu destino. No registro ou memorial, o qualificador anotava a permissão de saída. Por conseguinte, e para o cálculo da avería280, ou o carregador realizava uma declaração do valor ou, o que era mais comum, um livreiro conhecido dos oficiais reais avaliava os livros em conjunto e fazia constar no registro a taxação resultante. Desde 1563, de acordo com o real documento de 26 de fevereiro, os mercadores tinham a obrigação de indicar o valor das mercadorias para que se pudesse efetuar melhor a cobrança dos direitos alfandegários, mas era muito comum, no caso dos livros, não declarar o valor título a título, indicando apenas o montante total do valor dos livros embarcados. Em Sevilha, o controle institucional do livro, civil e religioso, requereu uma atenção especial. Pelo fato de ela ser o centro de redistribuição das manufaturas europeias rumo às Índias, os governantes empregaram alguns mecanismos de vigilância capazes de impedir a chegada ao Novo Continente de textos que pudessem alterar a ortodoxia e pureza moral daquelas latitudes, sobretudo as do credo reformado, desde datas precoces, dispostos a ultrapassar os limites europeus do mundo católico. Assim, Carlos V, em 1550, uma vez fracassada sua política de concordância com os luteranos e frente ao avanço de sua religião e da revitalização que a Reforma experimentou com o calvinismo, obrigou aos oficiais da Contratação que, quando tivessem que levar às Índias alguns livros dos permitidos, que os façam registrar cada um, declarando a matéria do que se trata, e não se registrem por grupo. Dois anos mais tarde, nas 280  N.T.: Imposto cobrado sobre o valor das mercadorias levadas ou trazidas das Índias.

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Ordenanzas da Casa de 1552, voltou-se a considerar esta questão e se delimitaram os assuntos sobre livros que se deviam impedir que chegassem às Índias: Outrossim mandamos aos oficiais de Sevilha que não consintam, nem deem lugar a pessoa alguma, passar às Índias os livros e histórias fingidas, profanas, nem livros de assuntos desonestos, salvo livros tocantes à religião cristã e de virtude, em que se ocupem e exercitem os Índios e os outros povoadores das ditas Índias.281

Nesse sentindo, seguindo as decisões e conselhos do Imperador, Felipe II, herdeiro de uma monarquia assediada em todos seus flancos pelos protestantes e pela maior parte de uma Europa contrária a sua hegemonia e ao seu domínio exclusivo do Atlântico, também prestou uma esmerada dedicação ao tema. Através do Santo Oficio, ele ativou uma série de medidas para fazer mais eficaz a censura de livros e a vigilância das fronteiras, portos, imprensas e livrarias. Em Sevilha, estas diretrizes alcançaram algumas cotas difíceis de serem igualadas. As infrações descobertas evidenciaram os temores governamentais, como os livros protestantes encontrados, editados em Genebra e introduzidos por Julián Hernández (Julianillo), os eventos do monastério jerônimo de São Isidoro do Campo, que se concluíram com a fuga a Genebra de 12 de seus frades, e perto de um milhar de processados em auto de fé, entre eles os cônegos Juan Gil (Egidio) e Constantino Ponce de la Fuente, o tipógrafo Gaspar Zapata e o escritor de livros de igreja, Luis de Abrego282. Apesar desta depuração ortodoxa, o porto de Guadalquivir permaneceu no centro da atenção dos empenhados em burlar os controles governamentais e fazer chegar à península impressos proibidos. É o que se depreende dos avisos que a Suprema dirigiu, a seus delegados sevilhanos, desde 1580 a 1620, anunciando-lhes chegadas iminentes de carregamentos procedentes de Amberes, Amsterdam, Londres e La Rochelle283. 281  Torre Revello, José: El libro, la imprenta y el periodismo en América durante la dominación española, Buenos Aires, Jacobo Peuser, 1940, p. 38. 282  Wagner, Klaus: “Erasmistas y reformistas en la Sevilla de la primera mitad del siglo XVI”. Em El precio de la invención de América. Reyes Mate y Friedrich Niewöhner, eds. Barcelona: Antrophos, 1992, pp. 125‑140. Moll, Jaime: “Gaspar Zapata, impresor sevillano condenado por la Inquisición en 1562”. Pliegos de Bibliofilia. 7 (1999), pp. 5-10. 283  Peña Díaz, Manuel: “El espejo de los libros: lecturas y lectores en la España del Siglo de Oro”, em La cultura del libro en la edad moderna: Andalucía y América, M. Peña, P. Ruiz e J. Solana coords., Córdoba, Universidad de Córdoba, 2001, pp. 145-158.

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Em 5 de setembro de 1550, o Imperador, empenhado novamente em evitar a circulação das mentirosas histórias cavalheirescas e das crenças protestantes, ordenou aos funcionários da Casa: vos mando que ...ponhais no Registro que se faça deles especificadamente cada livro por si. Este mandato real queria obter uma fiscalização mais certeira e eficaz dos livros e, como veremos, a supressão do tráfico de determinados gêneros literários de entretenimento. Tudo isso faria o trâmite burocrático exigido aos carregadores mais complexo, lento e difícil. O documento também determinou que a Inquisição se envolvesse no exame dos textos, de sorte que tribunal que começou a atuar e a impor seus critérios censores à Carrera. Insistentemente, denunciava-se aos visitadores dos navios, aos do Tribunal e aos do Rei, e aos viajantes e tripulantes, a presença a bordo de imagens religiosas desonestas e livros proibidos, fora de registro e sem licença do Santo Oficio. Porque o estilo ordinário dos hereges é colocar os livros escondidos entre roupas e mercadorias284. A Inquisição já havia tomado o pleno controle do tráfico tipográfico. Na Carta Acordada do Conselho Real de 1576, delimitou-se o protocolo das visitas aos barcos chegados aos portos espanhóis. A resolução, no entanto, deixou de estabelecer quem tinha preferências no exercício de suas funções, se eram os oficiais reais ou os ministros inquisitoriais. Este vazio da norma provocou sérios conflitos entre ambos, ainda que a diatribe pareça ter se resolvido, conforme o acordo do Conselho das Índias com o Conselho Real de 1579 a favor dos inquisidores e seu monopólio da censura. Mas, apesar de que o Inquisidor Valdés tenha publicado o primeiro Índice de livros proibidos em 1559, não teremos registros contínuos com impressos detalhados, senão a partir do aparecimento dos Índices de Quiroga de 1583 (o proibitório) e de 1584 (o expurgatório). Antes de 1583, portanto, os registros com livros identificados são escassos e excepcionais, deixando de ser, de novo e progressivamente, correntes até 1660, tempo em que se suprimiu a avería e, em consequência, deixou de ser obrigatória a anotação unitária de qualquer produto nos registros. Desde então, os livros, por motivos fiscais, voltaram a ser 284  Instrução para a visita dos navios nos portos da Nova Espanha e distrito da Inquisição do México, 1572; em Fernández del Castillo, Francisco: Libros y libreros en el siglo XVI, México, Fondo de Cultura Económica, 1914, pp. 351-359.

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registrados por caixas, sem outro esclarecimento285. As trocas acontecidas no sistema de arrecadação dos tributos da Carrera fizeram com que a declaração dos gêneros já não fosse ad valorem, circunstância que subjaz nas novidades burocráticas em estudo. Mas as listas detalhadas de impressos seguiram sendo um requisito do Santo Oficio, tribunal em que deviam ser apresentadas para seu correspondente exame. Por isso, a Contratação terminou centrando suas atribuições na administração, no controle e na organização da navegação e do tráfico mercantil. Em qualquer caso só encontraremos os impressos permitidos e tramitados nos circuitos legais da Carrera de Indias. Mas não devemos menosprezar o substancial contrabando nem os estratagemas que os infratores da lei empregavam para levar às Índias textos proibidos; estes últimos, como se detecta nos registros, com frequência se beneficiavam da ineficaz atenção de funcionários e inquisidores286. O sistema de vigilância assim colocado em ação, tendo como matriz o registro, abriu a primeira porta à fraude. Em primeiro lugar porque os qualificadores nunca foram tão escrupulosos no cumprimento de suas obrigações, como pode fazer crer a legislação, nem, em geral, tinham a formação intelectual adequada ou os meios para o exercício de suas funções. Norma comum foi a de que se contentassem em revisar as declarações escritas (com frequência pouco precisas) dos carregadores, obviando sua verificação nas caixas e fardos depositados na alfândega ou nos navios. Veitia Linaje, em tom punitivo e reclamando soluções, atribuiu este fato ao caráter pesado e tedioso de dita obrigação287. Um dos inconvenientes de maior incidência na ineficácia da política de controle ideológico em estudo, deve ser buscado na dependência espanhola da indústria tipográfica estrangeira (especialmente quanto ao livro culto e em latim). Este era um problema do setor secundário em 285  Rueda Ramírez, Pedro: Negocio e intercambio cultural: el comercio de libros con América en la Carrera de Indias (siglo XVII), Sevilla, Universidad de Sevilla, 2005, pp. 31-60. Também trabalharam o tema: Torre Revello, José: El libro, la imprenta y el periodismo... Op. cit.; e Leonard, Irving A.: Los libros del conquistador, México, Fondo de Cultura Económica, 1979. 286  Os Registros de Ida de Naus se encontram em três séries da seção de Contratação do AGI. Uma, a dos navios que navegaram em frotas, armadas e galeões desde o ano de 1583 ao de 1776, incluem os maços de papel 1080 a 1450; a segunda, das naus soltas que foram a distintos portos das Índias durante o monopólio, cobre os maços 1451 a 1785. A terceira é uma série de registros de ida e vinda das frotas dos últimos anos do século XVII (1682-1698), correspondente aos maços 2835 ao 2839. 287  Veitia Linaje, José de, op. cit.

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geral, que, no limite, impedia a consecução dos fins perseguidos e sobre o que se vinha chamando a atenção desde tempos atrás. Pouco antes de começar a reinar Felipe II (1558), um contador de Castela, Luis Ortiz, apresentou um famoso memorial em que, ao estilo de utopistas e projetistas do século XVII, propunha uma série de soluções econômicas que considerava urgentes para quisesse evitar um declínio de consequências imprevisíveis do Reino. Uma dos problemas importantes que indicados no memorial estava na soma de metais preciosos das Índias que foram parar no exterior, assunto que, segundo Ortiz e qualquer mercantilista, corrigir-se-ia proibindo as importações de manufaturas, entre elas os livros, setor que expulsava uns 200.000 ducados288 anuais. Outra fonte historiográfica emanada da Contratação e estreitamente conectada à anterior, de indubitável valor para a história da cultura escrita e pouco conhecida apesar das diversas possibilidades investigativas que apresenta, são as chamadas licenças de embarque, ou seja, as permissões que a Casa concedia às pessoas desejosas, ou com a necessidade ou obrigação, de entrar nas Índias e que demonstravam cumprir os requisitos necessários previstos na lei (não ter sangue cigano, mouro ou judeu, nem causas pendentes em tribunais...)289. Pois bem, aqueles potenciais passageiros, quando era o caso, deviam declarar os livros que pretendiam introduzir no navio, diferenciando os destinados a fazer, lúdica e religiosamente, mais leve a travessia do Atlântico, ou que ia, ao auxílio de seus deveres e profissões, da mercadoria, que, indistintamente, ficava recolhida na licença pertinente290. Muito frequentes foram as cartas que os passageiros levavam com o intuito de fazê-las chegar às pessoas do outro lado do oceano. 288  N.T.: “Ducado”: Moeda da Espanha que vigeu até o final do século XVI, de valor variável – segundo a Real Academia Espanhola (RAE). 289  Afortunadamente contamos com o trabalho realizado com três bibliotecas de passageiros, encontradas em suas licenças de embarque, de Márquez Macías, Rosario: El trasvase cultural a América. Las bibliotecas privadas de los emigrantes españoles en el siglo XVIII, Huelva, Universidad de Huelva, 2002. 290  A documentação sobre os passageiros que obtiveram licença para entrar nas Índias conformam três blocos distintos na seção de Contratação do AGI: o primeiro, o dos livros de consentimento de passageiros (1509-1701), nos maços 5.536-5.540; o segundo (1534-1790), o ideal para nossos interesses, com as informações que acreditavam a idoneidade das pessoas com intenção de marchar às Índias, entre os maços 5.217-5.535; e o último, dos chamados Providos às Índias (1564-1723) ou indivíduos que partiam com algum cargo ou dignidade, correspondente aos maços 5.788-5.796. Há que buscar os anos finais do século XVIII na Seção de Chegadas: maços 439-441; 421 e 498; e 515-520.

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Estas são referidas com frequência nos inventários de bens realizados nos pertences dos que faleciam durante a viagem oceânica. Mas de maior interesse, porque podemos manejá-las fisicamente e ler, são as de amigos e familiares residentes nas Índias que reclamavam sua partida, que os solicitantes da permissão de embarque apresentavam na Contratação como provas para, de acordo com as ordens reais, obterem com menos problemas a permissão de saída291. Com elas podemos abarcar o estudo de muitas e heterogêneas facetas do devir vital de nossos antepassados do Antigo Regime. É possível, por exemplo, vislumbrar o aumento do letramento em um mundo e em uma sociedade cada vez mais necessitados da escrita, da obrigação de uma prática que foi fazendo cotidiana a burocratização crescente da vida por causa do desenvolvimento do “Estado” e do “capitalismo”, e, como consequência da maior mobilidade espacial dos homens, das exigências da comunicação no de imensos territórios ou, simplesmente, com aqueles que estavam distantes292.

2. Histórias mentirosas A Coroa jamais deixou de velar para que a Casa da Contratação cuidasse da integridade moral e ideológica de seus domínios americanos, com o fim de preservá-los de discursos nocivos que os pudessem perverter ou, o que seria ainda pior, entorpecer a correta evangelização dos índios. Daí que demandou uma especial vigilância dos emigrantes e dos livros e escritos por embarcar, a fim de impedir o traslado a ultramar de mouros, judeus, conversos, convictos e hereges, ou dos textos que pudessem difundir suas ideias ou não fizessem jus aos ideais de retidão 291  Este tipo de cartas, uma preciosa documentação para o historiador, publicaram-nas, entre outros, Otte, Enrique e Lockhart, James: Letters and people of the spanish Indies, Cambridge, Cambridge University Press, 1976; Márquez Macías, Rosario: Historias de América: la emigración española en tinta y papel, Huelva, Diputación de Huelva, 1994; e Sánchez, Rocío e Testón, Isabel: El hilo que une. Las relaciones epistolares en el Viejo y el Nuevo Mundo (siglos XVI-XVIII), Cáceres, Editora Regional, 1999. 292  Sobre a escrita epistolar são muito sugestivas as conclusões de Castillo Gómez, Antonio: “Del tratado a la práctica. La escritura epistolar en los siglos XVI y XVII”, em La correspondencia en la historia. Modelos y prácticas de escritura epistolar, A. Castillo e C. Sáez eds., Madrid, Calambur, 2002, pp. 79-108.

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ética e honestidade exigidos daqueles que partiam. Nesta tessitura, os Reis Católicos, desde o princípio e apesar da promoção que, em benefício da propaganda e do prestígio de seu governo, fizeram da imprensa, suspeitaram do efeito multiplicador da tipografia. Mostraram, inclusive, uma peculiar inquietude quanto aos então muito exitosos livros de cavalaria, um tipo de literatura de ficção que compreenderam ser nociva para sua incipiente empresa das Índias. Assim, a Coroa elaborou algumas leis com o intuito de livrar os índios de semelhantes inclinações, proibindo levar ao Novo Continente livros profanos, frívolos ou imorais. Como muitos teólogos, moralistas, humanistas e intelectuais coetâneos, os monarcas entenderam que tais textos colocariam em perigo a autoridade suprema da Bíblia. Seus efeitos poderiam ainda atingir a incipiente cristianização dos aborígenes, indivíduos considerados débeis em consciência, e incapazes de distinguir entre fábula e revelação, ou seja, dispostos a outorgar idêntica credibilidade a qualquer texto impresso. Estando imersos em uma vivência espiritual e material que interpretavam através de mitos e ritos mágicos, de igual forma acreditariam plenamente nas não menos fantásticas passagens bíblicas e dogmas religiosos cristãos, assim como no conteúdo “maravillhoso” dos relatos de aventuras, atitude que poderia levá-los a seguir as condutas dos heróis imaginários. A invenção literária se convertia, assim, em um poderoso rival dos portentos sobrenaturais das Sagradas Escrituras. Por conseguinte, a certeza da crescente amplitude do gosto e difusão das chamadas histórias mentirosas impulsionou uma série de medidas legais para impedir seu trânsito em direção às Índias, onde naturais e europeus sentiam uma especial inclinação para com elas. Deste modo, em 4 de abril de 1531, em Ocaña, a mãe de Carlos V, por ter sido informada da quantidade de livros que são passados às Índias, muitos de Romance, de histórias vãs e de profanidade, como o Amadís, porque era mal exercício para os índios e coisa em que não é bom que se ocupem nem leiam, determinou que os oficiais da Contratação não consentissem a pessoa alguma entrar às Índias com livros de história e coisas profanas, salvo os tocantes à religião cristã e de virtude, em que se exercitem e ocupem os ditos índios e os outros povoadores das ditas Índias, porque a outra coisa não se dará lugar.

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No entanto, e dadas as subsequentes reiterações destas prescrições, os efeitos das leis não foram os esperados. A norma, salvo o pouco frequente confisco dos livros, não previa castigo exemplar para os infratores; ninguém foi açoitado, desterrado, encarcerado, enviado às galés ou multado severamente por ter ou vender obras de ficção cavalheiresca, nem estas, a exceção de alguma de notável imoralidade, foram parar no índice de livros proibidos. É necessário apenas rever os negócios dos Cromberger, os maiores exportadores tipográficos entre a Espanha e as Índias, de 1525 a 1540, para comprovar a existência de milhares de impressos cavalheirescos e de outras ficções em suas variedades; ou seja, um custoso investimento de dinheiro que estava destinado à demanda americana, bem calculada e conhecida. Maiores foram, portanto, os benefícios econômicos e o prazer da leitura ou audição das aventuras imaginárias, do que o prejuízo consequente da omissão da normativa. É revelador que, novamente, em 13 de setembro de 1543, o Príncipe Felipe exigisse aos oficiais da Casa maior atenção e zelo na resolução do problema. É assim emitido mais um documento, no qual se justificou, da seguinte maneira, o cuidado exigido pois: os índios que souberem ler, dando-lhes livros, deixarão os livros de boa e sã doutrina, e lendo os de mentirosas histórias aprenderão com elas maus costumes e vícios: e ademais disto, de que saibam que aqueles livros de histórias vãs tem sido compostos sem haver passado assim, poderia ser que perdessem a autoridade e o crédito da Sagrada Escritura, e outros livros de Doutores, acreditando como gente não arraigada na fé que todos nossos livros eram de uma autoridade, e maneira. ... mando-os que não consintam nem deem lugar que nesta terra se vendam nem tenham livros alguns dos mencionados, nem que se tragam de novo a ela, e proverás que nenhum espanhol os tenha em sua casa, nem que Índio algum os leia...

O fracasso deste mandato e dos anteriores, que não conseguiam reduzir a extensa circulação dos oníricos livros de ficção, é mais apreciada, todavia, em uma ordem emitida em 21 de fevereiro de 1575, em Madrid, em que se recordou à Contratação sua obrigação de colocar todo o zelo possível em fazer cumprir o Real Documento de 4 de abril de 1531. Não obstante, e como disse, este desacato das leis tão generalizado, ademais das próprias falhas da rudimentar administração da época, deve ser atriAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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buído à extremada atenção que a Coroa pôs – relegando a um segundo plano a emprestada à literatura fantástica – em outros gêneros literários verdadeiramente prejudiciais para sua política, preferentemente os escritos dos protestantes e aqueles que facilitaram sua expansão293. Muito reveladoras da persistente omissão dos decretos reais comentados e, salvo o ditado das leis, da lassitude e passividade das autoridades a respeito, são as atas das inspeções ou visitas que foram feitas na Casa de Contratação durante a primeira metade do século XVI. Afortunadamente contamos com alguns testemunhos muito sugestivos de várias delas; assim, na que efetuaram o conselheiro das Índias e o eminentíssimo jurista Gregorio López, em 1543, a pergunta número 86 do interrogatório geral a que foram submetidos os oficiais indaga se tem deixado passar às Índias livros de histórias profanas assim como Amadís ou outros desta qualidade, contra o documento que sobre isto se deu. Por suposto, refere-se ao Real Documento que o príncipe Felipe ditou em 1543. Pois bem, as respostas dos testemunhos foram como seguem. O tesoureiro Francisco Tello afirmou que sempre se colocava denodado empenho em impedir o embarque de ditos livros; idêntico teor teve a declaração do contador e visitante de naus Diego de Zárate, quem pontuou que e se os mercadores ou passageiros os trazem postos nos memoriais dos registros, listem-nos como coisas que não se podem passar294. Por sua parte, Juan de Almansa, que ocupava o cargo de teniente de factor, tampouco os viu registrar, mas o escrivão Juan Gutiérrez Calderón expressou em sua resposta que tem visto resolver que quando se registrarem livros profanos não se consintam com registro. Em troca, o visitante de naus Gonzalo Gómez de Espinosa reconheceu ter visto levar livros de Amadís e de Esplandián pa[ra] ler pelo mar, mas que não tem visto os carregarem como mercadoria pa[ra] lá vender. Sua observação, de início, confirma serem os livros de cavalaria um divertimento e passatempo ideal nas longas jornadas da travessia do Atlântico, algo que se enfatiza examinando as memórias das visitas de naus e galés chegadas aos portos americanos. De igual forma, o mestre de nau, vizinho de Triana, Diego Pérez, viu que alguns que vão 293  À parte de Leonard e Torre Revello, bons ensaios sobre a polêmica moralizante em torno dos relatos de ficção são os de Ife, Barry: Lectura y ficción en el Siglo de Oro, Barcelona, Crítica, 1991. Também o de Adorno, Rolena: “Literary production and suppression: reading and writing about Amerindians in colonial Spanish America”, Dispositio, 11, 1986, pp. 1-25, e López, François: “Las malas lecturas. Apuntes para una historia de lo novelesco”, Bulletin Hispanique, 100-2, 1998, 475-514. 294  Esta visita se encontra no AGI, Justiça, 944.

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nas naus levam livros assim de Amadís como de outras cavalarias, mas que não sabe se os deixam lá ou se voltam com eles. Anos depois, na visita de 1549, realizada pelo conselheiro das Índias, Hernán Pérez Lafuente, nas declarações das pessoas selecionadas como testemunhas, um mercador vizinho de Sevilha chamado Cebrián de Caritate reconheceu que alguns passavam os livros em questão: em uma carga de livros que enviou, enviou três ou quatro livros de Amadís e um livro novo de cavalarias que se havia impresso para ler no dito navio, mas que nunca soube que estivesse proibido295. Como antes apontei, o desconhecimento dos documentos reais também foi causa de sua desobediência, ainda que a ignorância da lei não eximisse seu cumprimento; além disto, a teologia moral não estimou que fosse pecado ler um livro vedado se se desconhecesse sua proibição, que foi o ditame de uns dos mais autorizados moralistas da Contrarreforma, Francisco Ortiz Lucio, teólogo que sentenciou que os que provavelmente ignoram a proibição de um livro não pecam, nem incorrem nas penas de excomunhão se os leem e os têm, mas sim se o sabem296.

3. As coisas das Índias A Coroa empenhou-se especialmente na fiscalização dos escritos de temas relacionados às Índias, textos que o assédio, proveniente de várias frentes, a que as grandes potências europeias submeteram o império colonial espanhol, converteu em segredos de estado. Razões de segurança da política desenvolvida em torno dos territórios ultramarinos – para a preservação de sua integridade e ortodoxia ideológica, e para anular as críticas contra a justificativa de seu domínio – foram as que impulsionaram a criação do Documento Real de Valladolid de 21 de setembro de 1556. Nele, com critérios científicos, econômicos e políticos, proibiu-se a edição e a venda dos livros cujo argumento tivesse algo a ver com o Novo Mundo, se antes não houvessem obtido a aprovação, e a licença correspondente, do Conselho das Índias. Com este objetivo Felipe 295  AGI, Justiça, 945. 296  Ortiz Lucio, Francisco: Summa de summas, Alcalá de Henares, 1595, p. 225.

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II atribui a seus oficiais que não consintam, nem permitam que se imprima nem venda nenhum livro que trate de matérias das Índia, não tendo licença despachada por nosso Conselho Real das Índias. Em seguida, prescrevia-se a apreensão, para proceder o seu exame, dos que até aquela data estivessem em circulação sobre estas temáticas, e a proibição daqueles impressos à margem da normativa. Esta ação governamental foi ampliada e reiterada no Documento de agosto de 1560, ano em que se voltava a recordar que ditos textos necessitavam de uma autorização especial do Conselho. Veitia Linaje, na década de setenta do século XVII, ao comentar a respeito dos livros proibidos, aludiu com precisão a alguns que tratavam de matérias sobre as Índias, mencionando em particular aos que compôs Juan Ginés de Sepúlveda (discípulo de Pomponazzi e cronista de Carlos V), o volume undécimo dos Anais do Cardeal César Baronio e a História de Diego Hernández. Na opinião de Álvarez Santaló, conforme o Índice de 1640, as obras assinaladas de Sepúlveda podiam ser o Demócrates Segundo ou das justas causas da guerra contra os índios (inédita até 1892), sua História do Novo Mundo, seu Anti-apologia em defesa de Alberto Pío frente a Erasmo de Rotterdam ou alguns de seus comentários sobre Aristóteles, que podiam ser considerados suspeitos. A respeito de Baronio, ocorre que o mencionado tomo de seus Anais (proibido em 1604), título que se encontrava com certa regularidade nos registros de navios, negou a autenticidade da bula de Urbano II (1098) que, contra a Monarquia espanhola, concedeu à Sicilia o status de legação apostólica. Por sua parte, a História de Diego Hernández tem que ser sua História do Peru (1572), censurada acremente pelo cronista oficial Juan López de Velasco297. Paralela, no entanto, foi a promoção que as autoridades fizeram do discurso que consideravam conveniente difundir sobre a América298. Nesta disjuntiva, os Reis Católicos impulsionaram a publicação de no297  Álvarez Santaló, L. Carlos: “El filtro ideológico: libros y pasajeros”, em España y América. Un océano de negocios. Quinto Centenario de la Casa de la Contratación 1503-2003, Madrid, Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2003, pp. 161-174. Estudo excepcional do caso do cronista Jerónimo Román é o de Adorno, Rolena: “Sobre la censura y su evasión: un caso transatlántico del siglo XVI”, em Grafías del imaginario. Representaciones culturales en España y América (siglos XVI-XVIII), C. A. González e E. Vila comps., México, Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 13-52. 298  Para a política literária da Coroa espanhola é fundamental García Oro, José: Los Reyes y los libros. La política libraria de la Corona en el Siglo de Oro, Madrid, Cisneros,1995; e junto com García Oro, José, Portela Silva, Mª J.: La monarquía y los libros en el Siglo de Oro, Alcalá de Henares, Centro Internacional de Estudios Históricos “Cisneros”. Universidad de Alcalá, 1999.

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tícias do descobrimento e primeiros contatos com a nova geografia e sua população, querendo, assim, enaltecer a política oficial, anunciar com orgulho a boa notícia à Cristandade e deixar constância do mérito e do título de propriedade. Estes argumentos foram oferecidos nas primeiras crônicas de Pedro Mártir e Gonzalo Fernández de Oviedo299. Uma linha de atuação similar se aprecia em Carlos V, quem, com a nomeação em 1526 dos primeiros cosmógrafos e cronistas reais, estimulou uma série de títulos, apologéticos e entusiastas, sobre a empresa colonizadora que o público acolheu com agrado, como a História do Peru, de Agustín de Zárate. Inclusive chegou-se a encomendar à Casa a publicação de livros considerados de benefício e interesse prioritários ao outro lado do Atlântico, caso da Santa Doutrina, do dominicano Juan Ramírez e de um manual para evangelizadores, em língua espanhola e mexicana. O Rei, em um documento promulgado em 1537 em Valladolid, mandou que a Casa da Contratação se encarregasse da impressão (500 exemplares) e encadernação deste último, depois de examinado convenientemente, em pergaminho à custa da Real Fazenda300. Outros muitos, em troca, ficavam inéditos se seu argumento atentasse contra os ideais civis ou religiosos do governo (especialmente os de missões, “encomiendas”, pirataria ou guerras) ou não conviesse que sua informação geoestratégica caísse em mãos estrangeiras ou inimigas. Estes receios deixaram fora da imprensa algum dos melhores tratados de navegação da época; sirva de ilustração a este respeito, do último terço do século XVI, o Itinerário de navegação dos mares e terras ocidentais do almirante Juan Escalante de Mendoza, em muitos aspectos superior aos de Pedro de Medina y Cortés301. Seguindo com a interdição da escrita dos segredos americanos, é de se ressaltar que uma das funções essenciais do Cosmógrafo da Casa consistiu em reunir e custodiar a informação náutica, geográfica e contável exigida aos exploradores, conquistadores, pilotos, armadores e escrivães que rumavam para os novos confins. Os pilotos da Carrera tinham, necessariamente, a obrigação de levar um livro de memórias ou diário de bordo para anotar todos os acontecimentos de suas viagens e a descrição dos lugares que visitavam, além de qualquer observação náutica, geográfica e etnológica de interesse. Aqui estamos frente ao protago299  A respeito, segue sendo muito útil Friede, Juan: op. cit. 300  Este documento também o transcreveu F. de los Reyes Gómez, El libro..., op. cit., vol. 2, p. 784. 301  Da obra de Escalante, manejo a edição de R. Barreiro Meiro, Madrid, 1985.

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nismo que exerceu a escrita na expansão europeia e frente a um episódio transcendental da história da cultura gráfica, pois a Casa de Contratação foi o mais importante depósito de seu tempo das novidades cosmográficas, geoestratégicas, cartográficas e hidrológicas. Os governantes rapidamente entenderam que um informe escrito, uma relação, era a única maneira de certificar o encontrado e o descoberto em empresas demasiado distantes e cheias de dúvidas, sombras e receios, e de apetites por dinheiro e poder de seus executores. Portanto, a escrita se converteu em um valor inigualável como veículo de informação, controle e governo dos monarcas. A partir da segunda viagem de Colombo se atribuiu aos navegantes a responsabilidade pela elaboração de uma detalhada relação de tudo o que fosse observado, na medida em que a Coroa desejou ter uma noção precisa da marcha dos descobrimentos e do assentamento de seus súditos no Novo Continente. Quiseram superar, desta maneira, as dificuldades de comunicações demasiado lentas e, em consequência, conseguir o exercício de um poder autoritário e eficaz. Algumas premissas semelhantes determinaram que os escrivães, tesoureiros e contadores dos navios, também devessem anotar os acontecimentos vividos, os gastos, ingressos, resgates, entradas e saídas de coisas ou pessoas302. Em 1508, à raiz da criação na Casa do Oficio do Piloto Maior, e frente à progressiva amplitude dos descobrimentos, os governantes subordinaram a utilidade de sua gestão à confecção de um mapa modelo da América, em que se foram incorporando as novidades encontradas303. O traçado deste chamado Padrão Real requeria um meticuloso conhecimento das costas e territórios das Índias progressivamente anexados, e que haveriam de abastecer os responsáveis das expedições e os pilotos dos barcos, mediante relações pontuais e rigorosas, em escritos que, necessariamente, deviam fazer alusão às características geográficas do mar e da terra (dimensões, limites, orografia, etc.) e que, posteriormente, incluiriam a descrição das populações autóctones e seus costumes. As 302  Oferece importantes ideas sobre estes lugares de difícil trânsito Mignolo, Walter: “Cartas, crónicas y relaciones del descubrimiento y la conquista”, em Historia de la literatura hispanoamericana, Madrid, Cátedra, 1982, vol. I, pp. 57-116. González Sánchez, C.A.: “Ver para escribir. El Rey y el relato de las maravillas del Nuevo Mundo”, em Historia y perspectivas de investigación. Estudios en memoria del profesor Ángel Rodríguez Sánchez, Badajoz, Junta de Extremadura, 2002, pp. 329-335. 303  Antonio Acosta Rodríguez, Adolfo González Rodríguez, Enrique Vila Vilar (coords.), La Casa de Contratación y navegación entre España y las Indias, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas; Sevilla, Universidad de Sevilla, 2004.

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Ordenanças do descobrimento, novo povoamento e pacificação das Índias emitidas por Felipe II em 13 de julho de 1573 embasaram as notícias que os descobridores deviam entregar ao Conselho das Índias, memórias por dias de tudo o que verem, encontrarem e lhes aconteça nas terras que descobrirem304. Na visita de Juan de Ovando ao Conselho das Índias (1569), se unificaram os critérios da informação que as autoridades cobraram das Índias. Em virtude dos novos postulados, a nomeação de Juan López de Velasco como Cosmógrafo e Cronista Maior das Índias (1570) trouxe consigo a elaboração do questionário a partir do qual se projetariam algumas Relações Geográficas oficiais da América. Tão importante empresa, formava parte de um plano desenvolvido ao longo do reinado de Felipe II, cuja meta foi dispor de um “inventário geral” da América. Tomando os bispos da América como eixos diretores e distribuidores, entregou-se aos padres das paróquias rurais e urbanas, um extenso e detalhado compêndio de perguntas que, com maior ou menor fortuna e precisão, serviriam para satisfazer os objetivos da Coroa305. Novamente assistimos a emergência do controle do relato escrito do mundo, novo ou velho. Por detrás de tudo isto estava o desejo de governar um império universal em uma época em que não existiam condições ideias para semelhante racionalização da ação política. Em definitivo, tantos entraves e exigências administrativas podem nos ajudar a entender a quantidade de memórias, relações e demais escritos que diziam respeito às Índias que circularam com dificuldade, ou não se imprimiram até nossos dias.

4. Purga inquisitorial nas Índias O controle do livro nas rotas do Atlântico não ficaria garantido se não contemplasse algum requisito de precaução nos portos das Índias (La Habana, Veracruz, Nombre de Dios, Cartagena, etc.) onde atracavam as frotas da Carrera; tais cuidados eram imprescindíveis à própria 304  AGI, Geral Indiferente, 427, liv. XXIX, 63-93. 305  Todas estas iniciativas ficaram plasmadas nos trabalhos de Jiménez de la Espada, Marcos: Relaciones Geográficas de Indias, 4 vols., Madrid, Biblioteca de Autores Españoles, 1965.

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consciência que se adquiriu a respeito de numerosas fraudes e do contrabando. As viagens com várias escalas possibilitaram as milhares de artimanhas e peripécias que seus protagonistas empregavam para burlar a lei. Daí que, desde os inícios da Casa da Contratação, se estipulou uma nova visita aos navios que chegavam às Índias e que saíam dela. Esta tarefa, segundo o documento de 28 de setembro de 1534, recaía sobre os oficiais reais das Audiências nomeados para este efeito, que dariam detalhada relação escrita de quando ela acontecesse. Em seguida, ditos agentes também teriam que inspecionar os barcos que chegassem de outros lugares do Novo Continente e os que desde a Nova Espanha partiam para as Filipinas, ilhas em que outros funcionários repetiriam a operação. No tocante aos livros, em 9 de outubro de 1556, ainda que em tempos atrás isto já estivesse advertido, Felipe II ordenou às autoridades das Índias que admoestassem os visitadores para que reconheçam nas visitas aos navios se levam alguns livros proibidos, conforme os expurgatórios da Santa Inquisição306. Mas o Rei, não contente com a atuação de seus agentes estatais, funcionários que careciam da formação e perícia necessárias, e ante os escândalos e frequentes achados de livros proibidos e a escassa efetividade dos métodos missionais para erradicar os rituais indígenas, decidiu estabelecer tribunais inquisitoriais nas cidades mais importantes da América-hispânica: em 1570 em Lima e, em 1571, no México. Antes da chegada do Santo Ofício, os bispos foram os encarregados de controlar os livros que vinham da Europa, além de perseguir os proibidos que circulavam em seus distritos. Não obstante frente sua ausência, os oficiais reais eram os examinadores dos que chegavam por mar, com a ordem de entregar os proibidos e suspeitos aos prelados para que os submetessem ao processo de depuração previsto na normativa metropolitana. Assim, em 1559, o arcebispo do México, Alonso de Montúfar, recebeu ordens da Suprema com a intenção de que todas as pessoas que tivessem livros os exibissem ante nós, para ver se entre eles havia algum dos vedados no catálogo e memoriais que nos foram enviados307. Em território americano, os delegados do Santo Ofício nos distritos do México e do Peru, ou ainda os vigários designados pelo bis306  Como na epígrafe anterior, e para não repetir citações, para toda a legislação remetemo-nos a Reyes Gómez, Fermín de los, op. cit. 307  Fernández del Castillo, Francisco: Libros y libreros en el siglo XVI, México, Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 5.

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po no resto dos territórios, assumiram a vigilância dos impressos transportados nos barcos que entravam nos portos das Índias. San Juan de Ulúa (Veracruz) e Nombre de Dios (Panamá) foram os destinos das chegadas das frotas e galés no Atlântico, e Acapulco e El Callao no Pacífico. As instruções de visita nos portos americanos dependiam dos inquisidores ou dos bispos, sendo o caso da Venezuela revelador. Nas constituições sinodais do bispo Diego de Baños se indicava que sempre que chegar qualquer embarcação, dos portos da Espanha, ou de outros destas Índias, de onde podem trazer-se livros para o porto da Guayra, ou outro qualquer dos termos de nossa diocese, nosso Provisor, e Vigário Geral, e nossos vigários, cada um em sua jurisdição, encontrem-se para a visita que tem de fazer os oficiais reais de ditas embarcações, para ver e reconhecer se trazem livros proibidos308. Os tribunais americanos, desde seu estabelecimento, ditaram instruções aos comissários sobre o modo de realizar a visita aos navios, para que, tomando o Índice como guia, fossem averiguados os impressos censurados. Nas que se deram, em 1572, aos visitantes dos portos da Nova Espanha, o que se prescreveu, em primeiro lugar, foi uma maior eficácia e disciplina dos ministros, atributos que, segundo o documento, não estavam de acordo com sua ação; assim, lemos que façam a dita visita com maior cuidado que até aqui, devido à continua invasão dos hereges e de muitos livros de suas seitas, que derramam por todas as partes309. Concluído este preâmbulo, detalhava-se o protocolo da visita, que em linhas gerais era como se segue. Um navio chegado ao porto das Índias correspondente, e antes de sair qualquer coisa ou pessoa de seu interior, devia ser visitado por um comissário do Santo Ofício do lugar, acompanhado de um governador310, ou um familiar, e um tabelião. A bordo, o delegado inquisitorial demandava a presença do mestre e do piloto, mais dois passageiros ou dois marinheiros, os que parecessem de melhor razão, a quem, sob juramento, submetia a um interrogatório sobre as circunstâncias da viagem (lugar de carregamento das merca308  Constituciones synodales, del Obispado de Veneçuela, y Santiago de Leon de Caracas. Hechas en la santa iglesia cathedral de dicha ciudad de Caracas, en el año del señor de 1687. Impressas en Madrid, En la Imprenta del Reyno, de don Lucas Antonio de Bedmar, y Narvaez, [1698], fol. 37r. 309  Instrução para a visita aos navios nos portos da Nova Espanha e no distrito da Inquisição do México, em Fernández del Castillo, Francisco: op. cit., pp. 351-359. 310  N.T: “Alguacil”: Antigamente, governador de uma cidade ou de uma comarca, com jurisdição civil e criminal; segundo a Real Academia Espanhola (RAE).

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dorias – Sevilha, Cádiz, Sanlúcar, Canárias –, as escalas e os eventos acontecidos na viagem) e as pessoas embarcadas. Sobre estas últimas, e de acordo com a legislação sobre migração vigente, perguntava-lhes sobre sua origem geográfica, raça e religião. O objetivo não era outro senão o de averiguar possíveis práticas hereges ou atitudes contrárias à ortodoxia católica detectadas durante a travessia: jejuns, banhos, iconoclastia, blasfêmias, insultos ao Papa ou ao Rei, incumprimento de preceitos religiosos, dúvidas sobre a autoridade da Igreja, etecetera. À continuação, as testemunhas deviam responder se tinham visto no barco, imagens religiosas desonestas ou livros proibidos, fora de registro ou sem licença do Santo Ofício. Também, que livros haviam vindo na nau para rezar, ler ou passar o tempo, e em que língua estavam; sobre isto as instruções pontuavam: aqui é de se advertir que se são estrangeiros luteranos, normalmente costumam trazer salmos de David em sua língua que vêm cantando pelo mar. Dos impressos registrados, empacotados ou não, perguntava-se quantos e quem eram seus donos e destinatários. Cumprido o interrogatório, e conforme o estipulado, os visitantes tinham a obrigação de procurar nas câmaras do barco e entre os carregamentos, especialmente nos que despertaram suspeitas. A Instrução afirmava que o estilo ordinário dos hereges é colocar escondidos os livros entre roupas e mercadorias e, os embarcando em navios de católicos que vêm a estas partes, espalhá-los e fazer o dano que pretendem com eles. Os comissários, no caso de encontrar infrações da lei, procediam ao recolhimento dos objetos proibidos, à detenção do culpado e ao embargo de seus bens, com o fim de levá-los ao conhecimento das autoridades e à disposição da Inquisição para iniciar a causa correspondente. Uma vez concluídas as pesquisas, o escrivão redigia uma memória pormenorizada do sucedido na visita, que era remetida ao chefe do distrito inquisitorial311. Como pudemos apreciar, e já esclarecemos anteriormente, os mecanismos de controle e vigilância nos portos peninsulares não evitaram a circulação e a leitura nas Índias dos livros vetados na normativa. Fundamentalmente porque aquela burocracia primitiva carecia dos meios oportunos para divulgar as leis entre a população; foram muitos os leitores que seguiram usando, sem perceber nisto dano algum, os li311  Castañeda Delgado, Paulino; Hernández Aparicio, Pilar: La Inquisición de Lima: (15701635), Madrid, Deimos, 1989, pp. 475-488: “Libros y lectores ante el Tribunal” e, dos mesmos autores, La Inquisición de Lima: (1635-1696), Madrid, Deimos, 1995, pp. 503-539: “La censura”.

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vros reprovados. Indícios dessa desinformação, do mesmo modo, observam-se nas visitas às naus. Na da “Santa Catalina” (1585), por exemplo, anotou-se que dois passageiros traziam dois oratórios espirituais, mas quando lhes disseram que estavam proibidos, jogaram-nos ao mar. De alimento aos peixes também serviram dois pares de livro de orações que o comissário mandou jogar na água durante a inspeção do navio “São Rafael” (1595). A atitude dos visitantes, segundo observamos, foi com frequência sumamente resolutiva e não implicou medidas drásticas nem a detenção do responsável ou outras das diligências processuais exigidas. Ao final, o anátema nunca foi mais além do que alguns decretos que, no dia a dia, como as diatribes dos eclesiásticos, só fizeram admoestações morais. Sem a conivência dos encarregados da vigilância dos barcos e das transações oceânicas não se daria tão gigantesca fraude nem um generalizado incumprimento das leis. Tal situação se complicou com os tratados de paz que a Espanha firmou com nações inimigas, tendo que se submeter aos reveses de sua política internacional e, cada vez mais, a certos acordos diplomáticos desfavoráveis, nos quais seus rivais fizeram valer interesses tarifários e econômicos, deixando, assim, inermes as acabadas alfândegas e fronteiras hispânicas frente à mercadoria estrangeira, inclusive calvinista e protestante312. A corrupção e os mecanismos cotidianos de negociação com os alfandegários, agentes inquisitoriais e mercadores, como os mantimentos com que os visitantes nos barcos eram acolhidos, diminuíram consideravelmente a eficácia da política de controle em ação. Por outro lado, temos que ressaltar a consciência que Felipe II tinha destas alterações e, como nos evidencia a legislação, a certeza de sua incapacidade para as impedir. Assim, não por acaso, a reiteração dos mandatos citados tendeu a se concentrar nas duas décadas finais do século XVI, ou seja, no período de tempo em que o monarca foi abatido pelo desengano, desilusão e pelo cerco de seus inimigos, consciente de seu fracasso e da impotência que sua administração tinha para impor semelhante empreendimento ideológico em tão imensos domínios. 312  Rueda Ramírez, Pedro: “El contrabando de libros en la Carrera de Indias: una faceta poco conocida del comercio del libro”, em Testigo del tiempo, memoria del universo. Cultura escrita y sociedad en el mundo ibérico (siglos XV-XVIII), comp. por Manuel F. Fernández, C. A. González Sánchez, N. Maillard, Barcelona, Ediciones Rubeo, 2009, pp. 153-174.

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5. Livrarias europeias e circulação do livro atlântico A correlação entre o descobrimento e a conquista, a evangelização e a impressão de livros para formar padres e párocos, constituiu parte de um enfoque da presença do livro na América que contaminou, deliberadamente, o discurso da época; além disto, também tem gerado uma percepção do livro na historiografia sobre este continente, como um objeto exclusivo da evangelização ou do domínio colonial representado pelos letrados. A situação, sem dúvida, foi mais complexa. Um exemplo servirá para ilustrar a diversidade do caudal de leituras desde datas precoces. Em 1525, na ilha de Santo Domingo, vendeu-se em leilão público um lote de livros que incluíam títulos muito diversos, provavelmente levados para venda por um mercador, ainda que este tivesse a má fortuna de morrer antes de dar continuidade a seus negócios. No lote se encontravam 144 cartilhas, uma mostra diversa de obras de entretenimento (incluindo livros de cavalaria como um Primaleón) e obras de conteúdo devocional, entre as que cabe mencionar a Perla preciosa, um livro que foi incluído no índice de livros proibidos de 1559313. O tráfico de livros começou a despontar desde cedo nos novos territórios e foi reforçado quando as instituições culturais geraram necessidades concretas, sobretudo no âmbito educativo. A demanda de livros facilitou o aparecimento de um negócio administrado desde as livrarias espanholas, ao menos até que as próprias livrarias mexicanas e de Lima iniciassem suas atividades. É chave o papel destes impressores e dos livreiros com loja aberta para entendermos a consolidação e a regularização do tráfico de livros. Devido a falta da correspondência ou dos livros de contabilidade dos livreiros, não podemos mais que propor algumas hipóteses ao rastrear a documentação dos envios e dos processos que, como o de Pedro Ocharte, proporcionam uma valiosa informação das atividades desenvolvidas em um e outro lado do Atlântico por estes livreiros que atuaram como correspondentes da gente de Medina del Campo, Alcalá de Henares ou Sevilha. Na realidade, são muitos os mercadores de livros europeus que puseram seus olhares no negócio em 313  Wagner, Klaus. “Descubrimientos e imprentas”, em Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista. Lisboa, 1996, pp. 233-242.

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Sevilha e na América314. Os livreiros encontraram oportunidades para o tráfico legal e o contrabando, utilizando todas as vias e caminhos possíveis para enviar os livros em condição vantajosa. Uma parte dos livros editados nas imprensas europeias circulou em terras americanas através da Carrera. As distâncias complicaram o tráfico e as técnicas comerciais pouco depuradas supunham um acúmulo de importantes limitações, como revelam os numerosos documentos que reúnem um sem-fim de intermediários da cadeia comercial. Nos documentos podemos apreciar a narrativa de tropeiros, “encomenderos”, livreiros, comerciantes, mestres de navio e banqueiros, que davam conta das dívidas pendentes, cartas de pagamento e mil outros detalhes dos negócios estabelecidos a partir de laços de confiança em toda esta longuíssima cadeia de agentes e intermediários. Um só elo que se quebrasse prejudicava a corrente como um todo, e tornava inviável o retorno da prata americana que iria fechar o ciclo da venda em terras americanas, para os livreiros europeus. De certo modo, como tentaremos demonstrar agora, o rápido colocar em circulação dos livros recém editados foi, sem dúvida, um requisito imprescindível para a boa marcha do negócio. A intenção dos livreiros sevilhanos foi encontrar, com vantagem, mercado para os livros saídos das imprensas. Com a hábil manobra de aproveitar a primeira embarcação ou a primeira frota que saísse para a América, tentavam garantir o abastecimento dos mercados americanos, saturando-os, se possível, com novos produtos. Este foi um mecanismo defensivo, que lhes permitiu jogar com vantagem ao levar rapidamente as publicações a um território em que não tinham que competir, em princípio, com edições semelhantes em imprensas americanas. O risco existia e é altamente provável que numerosas edições publicadas em outros territórios da Monarquia, e que não contavam com autorização em Castela para sua venda, por não terem solicitado a correspondente taxa, entrassem rapidamente em concorrência com os livros legalmente produzidos e distribuídos. A chegada imediata das novidades tem, por314  Maillard Álvarez, Natalia, “Entre Sevilla y América: una perspectiva del comercio del libro”, em Mezclado y sospechoso: movilidad e identidades, España y América (siglos XVI-XVIII): coloquio internacional (29-31 de mayo de 2000), coord. por Gregorio Salinero, Madrid: Casa de Velázquez, 2005, pp. 209-228; “El mercado del libro en Sevilla durante el reinado de Felipe II”, em La memoria de los libros: estudios sobre la historia del escrito y de la lectura en Europa y América, dirs. Pedro M. Cátedra & María Luisa López-Vidriero, Salamanca: Instituto de Historia del Libro y de la Lectura, 2004, v. 2, pp. 547-566.

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tanto, um componente comercial que não deveria ser esquecido; além do próprio dinamismo do mercado americano e dos interesses dos leitores, que têm seu peso, convém que fique ressaltado este outro aspecto. É provável, e tentaremos apontar algum resultado a respeito, que caiba considerar o mercado americano como um dos objetivos dos livreiros-editores. Inclusive pode-se pensar que parte das tiragens dos livros espanhóis (e também de alguns livros de autores espanhóis publicados no estrangeiro) tiveram no mercado americano clientes potenciais, suficientes como para que se tivesse presente este segmento de mercado na edição de determinadas obras315. Com a ideia de fundamentar este argumento, resulta útil comentar alguns dados sobre envios de lotes importantes. Vejamos alguns casos. O “oratório” do Fr. Luis de Granada foi um dos livros correntes no comércio de livraria, com entradas como as “Dezesseis dezenas de livros de orações do fr. Luis Ilanos”316, que declarou o impressor sevilhano Matías Clavijo, em 1604, ou os “Doçientos deboçion de fr. Luis in 16 dorados” de 1608, declarados por Diego de Veaños, originário de Alcalá de Henares317. Este era um caso previsível, pois, a variedade de edições e apresentações do livro, o converteu em um dos objetos culturais mais acessíveis (disponível em todos os formatos e encadernações possíveis). Nos interessa mais, ressaltar outros impressos, de presença mais fugaz nos negócios de livros, sem tantas edições na época, mas que conseguiram entrar no mercado americano depois de serem editados em território peninsular. É o caso do jesuíta Juan Rebello, do qual se publicou postumamente a Vida e Coroa de Cristo nosso salvador (Lisboa, 1610). O carregador Juan de Reinoso preparou, a pedido do madrileno Agustín de Horozco, o envio, em 1610, de “Trezentos livrinhos da coroa de Jesus Cristo a quatro moedas cada um 40.800 maravedís”318. O caso das edições sevilhanas é, se cabe, mais evidente, pois o mercado americano foi uma saída habitual para a produção das imprensas sevilhanas, as vezes com a intervenção do autor. Este foi o caso dos “Discursos morais para as festas principais da quaresma”, sobre os quais o autor Francisco 315  Moll, Jaime. “El libro español en Europa”, em Historia ilustrada del libro Español. De los incunables al siglo XVIII. Dir. Hipólito Escolar. Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 1994, pp. 499-521. 316  AGI. Contratação (Cont.) 144A. N. S. do Rosário, f. 34. 317  AGI. Cont. 1151A. Jesus, Maria, São Estevão, f. 94. 318  AGI. Cont. 1160. N. S. dos Remédios, f. 56.

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Silvestre (O. S. B.) afirmou: “necessito submeter às Índias trezentos corpos de dito livro em um dos navios da frota”; de fato foi ele quem os registrou em 1683319. O livro havia saído da imprensa de Juan Cabezas, em 1681. Igual situação havia se sucedido com o envio de 500 exemplares de O peregrino em sua pátria (Sevilha, 1604), enviados no mesmo ano de sua publicação à Nova Espanha320. O mesmo fenômeno se deu com as imprensas madrilenas que tinham no mercado americano um de seus habituais espaços de venda, sobretudo para determinados textos devotos em línguas vernáculas que constituíam uma parte da produção no século XVII, como é o caso da Filosofia do verdadeiro cristão, intitulada Pense-o bem (Em Madrid, por Bernardo de Villa-Diego: à custa de Florian Anisson... mercador de livros, 1681), o livro era um manejável 16º, um dos formatos prediletos para o envio de importantes lotes. Em 1684, o mercador Domingo Díaz de Cancio enviou no comboio de Terra Firme “200 Pense-o bem”321. Um caso distinto foi o da intermediação dos mercadores sevilhanos entre dois particulares que desejavam se comunicar através da Carrera de las Indias. Foi uma fórmula usual para se conseguir atravessar a confusão burocrática e a complicada rede tecida em torno da circulação de mercadorias no porto. Juana de Alfaro recorreu a mercadores para enviar um lote de livros jurídicos a um familiar residente em Lima. Estes textos, à morte de seu marido, um regedor322, deviam resultar-lhe de utilidade nula. Isso sim, têm um considerável valor (1. 229 moedas)323. Em certas ocasiões, o grupo de carregadores efetuou o registro para um conjunto de particulares, satisfazendo, assim, vários peticionários através de um registro comum. Este foi o caso de Mateo Carrasco, em 1649, que carregou cinco caixotes de livros na nau N. S. da Conceição e São José para entregar a Frei Pedro de Cáceres, Diego de Orozco, do doutor Baltasar Carrasco e do jesuíta Juan de Vitória, em Cuzco324. Esta variedade nos destinatários também foi habitual em outros casos. Francisco Galiano registrou livros em 13 ocasiões em 1608, 1612 e 1615. Em cada um destes anos remeteu numerosas mercadorias, já que era encarrega319  320  321  322  323  324 

AGI. Cont. 1238. O Santo Cristo de Santo Agostinho, f. 25. AGI. Cont. 1144A. N. S. do Rosário, f. 46. AGI. Cont. 1240. [NT]: cargo semelhante ao de secretário municipal no mundo luso. AGI. Cont., 1137. São Pedro, ff. 62r-64r. AGI. Cont., 1195. N. S. da Conceição e São José, f. 68r.

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do por mercadores de Lima. Um destes investidores foi o tesoureiro Francisco Cano. Por sua conta e risco, em 1608 Galiano remeteu um total de 6 títulos de livros jurídicos e de Igreja (breviário e diurno). Em outras três ocasiões ele mesmo apareceu como a pessoa em cujo barco iam as mercadorias, talvez por participar nos negócios. Também remeteu dois envios à Cuzco para o presbítero Juan Nuñez de Illescas, e 27 títulos ao ouvidor Juan de Solórzano, 63 títulos ao frade mercedário325 Juan de Elías e 13 títulos ao Alcaide da Corte, Juan de Canseco. Este é um excelente exemplo de envio de livros selecionados e pedidos aos mercadores de Lima, que atuavam na cadeia de comunicação com os responsáveis por realizar as compras e satisfazer as petições de particulares.

6. O livro à venda nos territórios americanos Os livros podiam sofrer danos irreparáveis com a chuva, com a entrada da água do mar, com os insetos ou os naufrágios. A este respeito, Isabel Cornejo, viúva do livreiro Vicente Portonaris, escreveu de Salamanca uma carta dirigida ao livreiro mexicano Juan Treviño. Em 1585, Cornejo recebeu a confirmação do recebimento “de doze caixas, exceto uma que Vossa mercê disse que afundou: seja Deus bendito por tudo”326. O livro era um bem que tinha por finalidade abastecer rapidamente o mercado americano, e, se resultava possível, um texto impresso devia ser colocado ali para, deste modo, despertar o interesse pela novidade e vender no mercado com a maior rapidez que se conseguisse. Sobre isto sabia muito Benito Boyer, um livreiro esperto e audaz que viu boas oportunidades no negócio americano e arriscou enviando lotes importantes, como as quarenta caixas que remeteu a Diego Navarro Maldonado a quem pediu, e é de notar, “uma boa memória... de todos os livros que nessa terra são bons, aceitos e muito vedáveis, e como têm que ir encadernados, porque tenho oportunidade, que trato em todas as partes de fazê-los vir”. Cada caixote tinha um lote de livros que Navarro Maldonado devia vender: cada caixa 325  N.T.: “Mercedário”: Integrante da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, fundada na Espanha em 1218; segundo a Real Academia Espanhola (RAE). 326  Libros y libreros, op cit., p. 300.

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com os livros inteiramente, sem colocar nem tirar dela nenhum livro, como vão na dita memória327. Este é um bom exemplo de como funcionava a venda de “sortidos”, ou seja, os lotes de venda que eram distribuídos aos potenciais livreiros por Navarro Maldonado. Um estudo de caso poderá ilustrar os mecanismos de abastecimento. Puebla de los Ángeles era uma cidade “abundante, que requeria um gasto pequeno para se viver, extremamente barata e de muito comércio”. Esta atividade comercial, as fábricas e a produção de trigo, outorgavam à cidade um status muito especial, já que era uma “das melhores e maiores cidades da Nova Espanha, terá 3.000 vizinhos espanhóis.”328. A clientela potencial dos livreiros se encontrava, de maneira muito direta, nessa população de espanhóis e criollos que vivia um ritmo de vida ligado aos acordos e contratos, mas também na abundante maquinaria burocrática da Coroa e nas instituições eclesiásticas que requeriam livros para suas atividades. As descrições do México, de Lima ou de Puebla mostram a abundância de instituições e de fundações religiosas, e a exibição de sabedoria de seus indivíduos. Miguel de Torres se referiu ao Cabildo catedralesco de Puebla como “um tributário da virtude e das letras” e aos colegiais, togados e outros homens de letras, conjuntamente, como “uma opulenta Atenas.”329. Esta nova Atenas, nascida na colônia, contou com um nutrido e variado enxame de potenciais leitores. O caso da biblioteca particular de um eclesiástico como Andrés de Arze y Miranda que, de cura de índios, passou a candidato para o bispado de Porto Rico, resulta interessante. Ao final de sua vida doou seus livros, mais de dois mil, ao convento de San Francisco de Puebla; a partir deles Salazar Ibargüen pôde localizar 610 títulos nos fundos atualmente conservados na Biblioteca Lafragua330. A doação a uma instituição eclesiástica, tal como fizeram vários bispos poblanos ao fundar e incrementar a Biblioteca Palafoxiana, reforçava a rede de educação ao proporcionar novos materiais para o estudo e para a preparação dos futuros teólogos. 327  Libros y libreros, op cit., p. 300. 328  Vázquez de Espinosa, Antonio, Compendio y descripción de las Indias Occidentales, ed. de Balbino Velasco Bayón, Madrid, Historia16, 1992, p. 219. 329  Torres, Miguel de, Dechado de principes eclesiasticos, que dibujò con su exemplar, virtuosa, y ajustada vida el Illust. y Exc. señor don Manuel Fernandez de Santa Cruz y Sahagun, En Madrid, Por Manuel Román, á costa de don Ignacio Assenjo y Crespo, [1722], p. 66. 330  Salazar Ibargüen, Columba, Una biblioteca virreinal de Puebla (siglo XVIII): fondo Andrés de Arze y Miranda, Puebla, Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades, 2001.

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Agora bem, estas bibliotecas conventuais e colegiais, em conjunto, oferecem um panorama parcial, já que foram numerosos os advogados, médicos, boticários, comerciantes e artesãos que puderam comprar livros e formar suas bibliotecas particulares. Sobre estes leitores (e compradores usuais de livros nas tiendas) temos apenas alguns dados. De certo modo, a consolidação nas cidades destes setores contribuiu para formar uma sólida base para o negócio do livro, especialmente nas capitais vice-reinais em que livrarias foram estabelecidas331. Os livros podiam chegar à cidade através de diferentes redes comerciais, que usavam os mesmos caminhos e mecanismos de distribuição que o resto das mercadorias. Na cidade confluíram diversas circunstâncias que favoreceram o florescimento da vida cultural e da crescente oferta de livros chegados desde os principais centros de venda e distribuição. Ao mesmo tempo, México, Lima e, em menor medida, Puebla, converteram-se em centros de distribuição de livros a outros pontos do vice-reinado, sobretudo em suas áreas de mais direta influência, precisamente por causa da rede de caminhos que foram sendo construídos e que consolidaram o papel da cidade. Este escalonamento, desde os centros produtores até os pontos de venda, não corresponde a um mercado consolidado, mas sim de um mercado em formação, com distribuição através de redes formais e informais, com negócios ocasionais em forma de companhias comerciais e acordos de compra e venda pontuais. Há de se considerar, ainda, a entrada dos livros nos circuitos de intercâmbio de mercadorias já existentes. O mercador de Puebla Jerónimo Pérez de Salazar vendia em sua loja todo tipo de mercadorias e se aventurou em variados negócios. Em 15 de abril de 1580 Miguel de San Román, vizinho de Tepeaca, comprou de suas mãos um lote de tecidos, caixas de pentes de marfim, colares de cor coral e “8 livros, que valeram cinco pesos e quatro moedas.”332. Esta rede podia distribuir alguns livrinhos e vender alguns lotes, mas não é comparável com a presença de uma loja de livros ou uma imprensa, com toda riqueza de um acervo a venda, e com os contratos para conseguir satisfazer a clientela de Puebla. 331  Garone Gravier, Marina (ed.). Miradas a la cultura del libro en Puebla: bibliotecas, tipógrafos, grabadores, libreros y ediciones en la época colonial. México: Ediciones de Educación y Cultura. Instituto de Investigaciones Bibliotecológicas, UNAM, 2012. 332  Pérez de Salazar Verea, Francisco; Córdova Durana, Arturo, Sino Novohispano de un Peninsular, Puebla, 2004, p. 24.

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Os livros europeus entraram, ao menos oficialmente, através do porto de Veracruz, dos portos habilitados no istmo do Panamá, na zona do Caribe, ou Cartagena. Villaseñor assinalou que a vila veracruzana tinha “um cais para a descarga dos navios e pagamento do porto, com capacidade suficiente, e perto da Real Contadoria, onde diariamente despachavam os oficiais reais e, em sua espaçosa praça, formavam-se barracas para as descargas de frotas e mercúrio333; e entrega de suas cargas depois de cotejadas com os registros.”334. Estes “efeitos” eram os caixotes de livros, baús e fardos em que chegavam os livros remetidos desde Sevilha ou Cádiz. Os mercadores atuaram como intermediários em todo este tráfico, conseguindo uma notável posição econômica com a participação no tráfico comercial da Carrera de las Indias. Entre os intermediários habituais que esperavam a chegada da frota, encontramos o capitão Diego Álvarez Montero, morador de Puebla de los Ángeles, que, em 1692, recebeu em Veracruz 3 fardos e “um caixotinho de livros.”335. Estes encomenderos foram uma peça chave de toda a infraestrutura que facilitou o trânsito de mercadorias. A eles acudiram particulares e livreiros para conseguir lotes de livros, obras de arte e instrumentos musicais. Os livreiros que desembarcavam em Veracruz com destino à capital do Vice-reinado podiam fazer escala para negócios em Puebla. Em 1680, o livreiro sevilhano Diego Crance chegou a Puebla com um importante carregamento de livros e entrou em contato com o comissário inquisitorial Francisco Flores de Valdés. Ao chegar, entregou uma cópia do Catalogus librorum, ou Memória dos Livros de todo gênero de Faculdades ([Sevilha]: Por Diego Crance, 1680) que incluía 409 títulos em latim e 197 em espanhol para vendê-los na Nova Espanha. Ademais, o livreiro entregou ao comissário a licença de entrada que obteve em Sevilha e este comprou dele algum livro, reteve outros que lhe pareceram suspeitos, e permitiu que “abrisse os caixotes de livros e vendesse nessa cidade e, por ter sido sua ocupação, dei-lhe uma das classes desocupadas destes colégios.”336. Um local para a ocasião foi mais que suficiente para que Crance pudesse vender aos indivíduos de Puebla uma excelente coleção de textos acadêmicos provenientes das melhores imprensas europeias. 333  N.T.: Barco que se destinava ao transporte de azougue. 334  Villaseñor y Sánchez, Joseph Antonio de, Theatro americano. Descripción general de los Reynos y Provincias de la Nueva España y sus jurisdicciones [México, 1746], pr. de María del Carmen Velázquez, México, Editorial Trillas, 1992, p. 224. 335  AGI. Cont., 1251. O Santo Cristo de Maracaibo, f. 184. 336  Arquivo Geral da Nación (AGN). Inquisição, vol. 667, exp. 23, f. 344r.

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O assunto, de todo modo, não acabou demasiado bem, já que entre os livros que chegaram havia numerosos em que não se havia expurgado os parágrafos proibidos nos índices inquisitoriais, e outros que vários particulares denunciaram como suspeitos. O comissário advertiu aos inquisidores mexicanos sobre este livreiro que, segundo tinha entendido, “é estrangeiro”; além de um cunhado seu que também é livreiro em Sevilha, o que o convertia em suspeito, ante o qual avisou que ia ao México “vender os livros que lhe tinham ficado e vai enchendo este reino de livros proibidos.”337. A experiência de Crance não pôde ser mais agridoce. Em Puebla conseguiu uma boa clientela e a colaboração inicial do comissário, mas foi cuidadosamente vigiado em seus movimentos e seus livros esquadrinhados pelos olhos pesquisadores dos leitores. O estudante de segundo grau Carlos García Durango comprou dele um livro em que encontrou citados Lutero e Calvino e o denunciou, pedindo, ademais, que Diego Crance, livreiro, devolva-me a quantidade de pesos que lhe dei338. Os livreiros podiam desempenhar variadas funções. Estes agentes culturais, ativos e inquietos, podiam vender livros usados e novos, encadernados e em rama, favorecendo tanto a circulação dos textos produzidos no México, em Lima e, mais tarde, em Puebla, bem como os importados da Europa. A estas casas de livraria podiam acudir os leitores, tanto para comprar como para vender livros. O dominicano inglês Thomas Gage viajou de Jerez ao México em busca de uma aventura espiritual que esperava que o levasse até às Filipinas. Com essa ideia na cabeça, ele e alguns companheiros decidiram confiar na providência divina e nos aventurarmos ...com os poucos meios que tínhamos e vender nossos livros e bugigangas para conseguir todo dinheiro que pudéssemos para comprarmos um cavalo para cada um339. A facilidade com que alguns leitores se desprendiam de seus livros não deve nos surpreender. Nos testamentos, em numerosas ocasiões, os livros foram bens que, junto a muitos outros das casas, eram vendidos para que os testamenteiros pudessem cumprir com os mandos testamentários. Isto proporcionava uma constante circulação de textos que se integravam novamente nos circuitos de compra e venda. Os livreiros aproveitavam as oportunidades que lhe eram oferecidas 337  AGN. Inquisição, vol. 667, exp. 23, f. 344r-345r. 338  AGN. Inquisição, vol. 667, exp. 23, f. 344r-346r. 339  Gage, Thomas, Viajes por la Nueva España y Guatemala, ed. de Dionisia Tejera, Madrid, Historia16, 1987, p. 220.

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e compareciam, como os de outras cidades novo-hispanas, aos leilões públicos para conseguir lotes de livros a bons preços. A estes leilões também podiam comparecer os particulares interessados na compra de alguns volumes. Frente a multidão de livros em circulação, levantaram-se numerosas vozes que advertiam que já que aumentam os livros, aumente também o juízo e a discrição em os ler e aproveitar-se de cada um deles340. Estas vozes, como podemos imaginar, eram interessadas e intentavam guiar o leitor na selva de textos disponíveis na época. As aventuras comerciais apontam para mecanismos de abastecimento que buscavam tirar o máximo de partido das comunicações atlânticas. Algumas das compras de livros na Europa indicam que os livreiros mexicanos, limenhos ou de Puebla tiveram capacidade e iniciativa para participar no tráfico comercial de livros341. A circulação de livros ofereceu, deste modo, um circuito de intercâmbio com numerosos traços contraditórios. Os textos nem sempre estiveram disponíveis, nem resultou fácil para os leitores os conseguir. Às dificuldades de assentamento dos livreiros se somou a política de controle ideológico que o governo espanhol, através do Conselho das Índias e da Casa de Contratação, interpôs na Carrera. Estes meios de vigilância não impediram que milhares de obras de arte, livros e impressos vários cruzassem o Atlântico e contribuíssem na elaboração de uma cultura original e sincrética, muitas vezes conflitiva e apaixonada em excesso, nos extremos do mundo que descobriu Cristóvão Colombo em 1492, data a partir da qual, desde as primeiras viagens, o livro, o impresso e o manuscrito; e em geral a cultura gráfica ocidental, irrompeu no Novo Continente342.

340  Lisboa, Marcos de. Primera parte de las chronicas de la orden de los frayles menores, En Barcelona, por Pedro Lacavalleria, [1634], assinatura ¶4r. 341  Rueda Ramírez, Pedro. “Las redes comerciales del libro en la colonia: «peruleros» y libreros en la Carrera de Indias (1590-1620)”, Anuario de Estudios Americanos, 71, 2, 2014, 447-478. 342  Alguns dos primeiros envios de livros às Índias em Gil, Juan: “El libro greco-latino y su influjo en Indias”, em Homenaje a: Enrique Segura Covarsi, Bernardo Muñoz Sánchez y Ricardo Puente Broncano, Badajoz, Diputación de Badajoz, 1986, pp. 61-111.

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Roteiro bibliográfico Alguns trabalhos sobre o mundo atlântico e o livro foram publicados por Irving A. Leonard em seu Books of the Brave, reeditado em Berkeley no ano de 1992 com uma excelente introdução de Rodela Adorno. Este livro foi publicado em espanhol como Los libros del conquistador (México, 1979). Leonard tinha publicado um excelente estudo prévio oferecendo informação inédita sobre a circulação de obras literárias em Romances of chivalry in the Spanish indies with some “Registros” of shipments of books to the Spanish colonies (Berkeley, 1933). O erudito José Torre Revello publicou um estudo pioneiro intitulado El libro, la imprenta y el periodismo en América durante la dominación española, Buenos Aires, Jacobo Peuser, 1940, ademais de alguns trabalhos adicionais sobre livros e leitura. Um estudo sobre uma frota analisada de maneira sistemática foi publicado por Helga Kropfinger: “Exportación de libros europeos de Sevilla a la Nueva España en el año de 1586” em Libros europeos en la Nueva España a fines del siglo XVI, Wiesbaden, F. Steiner, 1973, pp. 101-105. A síntese de conjunto mais completa pode ser encontrada em Carlos Alberto González Sánchez: New world literacy. Writing and culture across the Atlantic, 1500-1700, Lewisburg, Bucknell University Press, 2011. Aspectos do mundo católico e da distribuição de livros, com algum capítulo sobre o mundo americano estão presentes em Natalia Maillard Álvarez (ed.): Books in the Catholic World during the Early Modern Period, Leiden, Brill, 2014. O contexto europeu do livro (com vários trabalhos sobre o mundo hispânico) encontram-se em Benito Rial Costas (ed.): Print culture and peripheries in early modern Europe: a contribution to the history of printing and the book trade in small European and Spanish cities, Leiden, Brill, 2013. Os códices americanos também têm sido analisados com distintos enfoques. Ver Elizabeth Hill Boone, Relatos en rojo y negro: historias pictóricas de aztecas y mixtecos, México, 2010. A circulação de livros em Sevilha e o tráfico até os territórios americanos têm sido analisado por Clive Griffin em Los Cromberger: la historia de una imprenta en el siglo XVI en Sevilla y México (Madrid, Cultura Hispánica, 1991), e em vários trabalhos de Juan Gil: “El libro greco-latino y su influjo en Indias”, em Homenaje a: Enrique Segura Covarsi, Bernardo Muñoz Sánchez y Ricardo Puente Broncano, Badajoz,

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Diputación de Badajoz, 1986, pp. 61-111. E de maneira precisa no excelente “Libros, descubridores y sabios en la Sevilla del Quinientos”, na introdução de sua edição do Libro de Marco Polo anotado por Cristóbal Colón, Madrid, Alianza, 1987. Uma visão do conjunto de autores e problemas do humanismo hispânico em Luis Gil: Panorama social del humanismo español (1500-1800), Madrid, Tecnos, 1997. O contexto de Andaluzia tem sido analisado por Manuel Peña: “La cultura del libro en Andalucía en tiempos de Felipe II”, em Felipe II y su tiempo, J. L. Pereira e J. M. González eds., Cádiz, Universidad de Cádiz, 1999, pp. 529-540. No caso dos negócios dos livreiros e impressores sevilhanos nas Índias é imprescindível a localização de novos documentos notariais de María del Carmen Álvarez Márquez: Impresores, libreros y mercaderes de libros en la Sevilla del Quinientos, Zaragoza, Pórtico, 2009, 3 v. E o comparativo com o caso da expansão de Portugal na África e da de Castela nas ilhas do Caribe em relação ao livro e à imprensa, em Klaus Wagner: “Descubrimientos e imprentas”, em Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista. Lisboa, 1996, pp. 233-242. Entre os estudos sobre rotas específicas, o caso de Honduras é analisado por Pedro Rueda Ramírez, “Las rutas del libro atlántico: libros enviados en el navío de Honduras (1557-1700)”, Anuario de Estudios Americanos, 64, 2 (2007), pp. 61-85. Ou estudos sobre leitores e a compra de livros como o de Nora Jiménez: «‘Príncipe’ indigena y latino: una compra de libros de Antonio Huitzimengari (1559)» Relaciones: Estudios de Historia y Sociedad, 23, 91 (2002), pp. 135-160. O contexto da segunda metade do século XVI tem sido analisado por Natalia Maillard Álvarez: “El mercado del libro en Sevilla durante el reinado de Felipe II”, em La memoria de los libros: estudios sobre la historia del escrito y de la lectura en Europa y América, dirs. Pedro M. Cátedra & María Luisa López-Vidriero, Salamanca: Instituto de História do Livro e da Leitura, 2004, v. 2, pp. 547-566. E no caso das relações com a América em Natalia Maillard Álvarez: “Entre Sevilla y América: una perspectiva del comercio del libro”, em Mezclado y sospechoso: movilidad e identidades, España y América (siglos XVI-XVIII): coloquio internacional (29-31 de mayo de 2000), coord. por Gregorio Salinero, Madrid: Casa de Velázquez, 2005, pp. 209-228. O estudo do tráfico de livros no século XVII conta com vários trabalhos de Pedro Rueda Ramírez: Negocio e intercambio cultural: el comercio de libros con América en As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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la Carrera de Indias (siglo XVII), Sevilla, Universidade de Sevilla, 2005. Também se ocupa das redes de livreiros sevilhanos da segunda metade do XVII e começos do XVIII um dos capítulos de Ana Crespo Solana (coord.): Comunidades transnacionales: Colonias de mercaderes extranjeros en el mundo Atlántico (1500-1830), Aranjuez, Doce Calles, 2010. E sobre o século XVIII os estudos de Cristina Gómez Álvarez: Navegar con libros: el comercio de libros entre España y Nueva España: una visión cultural de la Independencia (1750-1820), Madrid, Trama, 2011. Os estudos sobre as normas em torno da produção, distribuição e venda de livros, tanto em Castela como nos territórios americanos da Coroa espanhola, são analisados e transcritos no estudo de Fermín de los Reyes Gómez: El libro en España y América. Legislación y censura (siglos XV-XVIII), 2 vols., Madrid, Arco/Libros, 2000. Uma síntese reveladora em Fermín de los Reyes Gómez: “Publicar en el Antiguo Régimen”. Em: Historia de la literatura jurídica en la España del Antiguo Régimen, ed. Javier Alvarado, Madrid: Marcial Pons, 2000, v. I, p. 287330. Os estudos sobre o comercio de livros no território americano são mais limitados, mas se podem rastrear as origens do comércio do livro em Lima em Teodoro Hampe Martínez. Biblioteca privadas en el mundo colonial: la difusión de libros e ideas en el virreinato del Perú (siglos XVIXVII). Frankfurt: Vervuert; Madrid: Iberoamericana; 1996. No caso mexicano, uma revisão exaustiva do mercado do livro e seus agentes em Kenneth C. Ward: ‘Mexico, where they coin money and print books’: the Calderón dynasty and the Mexican book trade, 1630-1730, Austin, The University of Texas at Austin, 2013. http://hdl.handle.net/2152/26062 A venda no México também pode ser rastreada em alguns catálogos impressos em Sevilha, como o fac-símile do catálogo de 1680 publicado por Pedro Rueda Ramírez (ed.): Catalogus librorum, o memoria de libros de todo genero de facultades, que se venden en casa de Diego Cranze, México, Coalición de Libreros, 2014. As teorias em torno do discurso do livro em teólogos, moralistas e escritores em Barry Ife: Lectura y ficción en el Siglo de Oro, Barcelona, Crítica, 1991. O controle das leituras nos territórios da Coroa tem sido analisado por Rolena Adorno: “Literary production and suppression: reading and writing about Amerindians in colonial Spanish America”, Dispositio, 11, 1986, pp. 1-25. E em Rolena Adorno: “Sobre la censura y su evasión: un caso transatlántico del siglo XVI”, em Grafías del 312 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

imaginario. Representaciones culturales en España y América (siglos XVIXVIII), C. A. González e E. Vila comps., México, Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 13-52. No caso dos livros de história Juan Friede reuniu alguns dados chave em “La censura española del siglo XVI y los libros de Historia de América”, Revista de Historia de América, 47, 1959, p. 64. E uma visão do conjunto de notável interesse em François López: “Las malas lecturas. Apuntes para una historia de lo novelesco”, Bulletin Hispanique, 100-2, 1998, 475-514. No caso da censura é recomendável a excelente revisão de Manuel Peña Díaz, Escribir y prohibir. Inquisición y censura en los Siglos de Oro (Madrid: Cátedra, 2015). Também oferece informação de interesse sobre denúncias de circulação dos livros proibidos Mercedes Agulló Cobo: “La Inquisición y los libreros españoles en el siglo XVII”, Cuadernos Bibliográficos, 28, 1972, pp. 143-151. E, brevemente, L. Carlos Álvarez Santaló, “El filtro ideológico: libros y pasajeros”, em España y América. Un océano de negocios. Quinto Centenario de la Casa de la Contratación 15032003, Madrid, Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2003, pp. 161-174. Continua resultando útil, apesar de alguns erros de transcrição, a recopilação de documentos de arquivos mexicanos de Francisco Fernández del Castillo: Libros y libreros en el siglo XVI, México, Fondo de Cultura Económica, 1982. E é recomendável a revisão de Martin Austin Nesvig em Ideology and Inquisition. The World of the Censors in Early Mexico (Yale University Press, 2009), assim como Los delincuentes de papel. Inquisición y libros en la Nueva España (1571-1820) (México, 2011) de José Abel Ramos Soriano, que pode ser contrastado com o estudo de Cristina Gómez Alvarez, Guillermo Tovar de Teresa, Censura y revolución. Libros prohibidos por la Inquisición de México, Madrid, Trama editorial, 2009. Em torno da viagem Atlântica e da Corrida às Índias é imprescindível Antonio García-Baquero: La Carrera de Indias: suma de la contratación y océano de negocios, Sevilla, Algaida, 1992. E o testemunho de José de Veitia Linaje: Norte de la Contratación de las Indias Occidentales (Sevilha,1672), edic. de F. de Solano, Madrid, Instituto de Estudos Fiscais, 1981. As viagens foram abordadas no clássico de José L. Martínez: Pasajeros de Indias. Viajes transatlánticos en el siglo XVI, México, Fondo de Cultura Económica, 1999. Os conflitos nos navios e na vida a bordo são abordados de maneira magistral no livro de Pablo E. Pérez-Mallaína. Los hombres del Océano. Vida cotidiana de los tripulantes de las flotas de Indias. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Siglo XVI. Sevilla, 1992. A vida a bordo é detalhada em alguns estudos de caso, como o de Gabriela Sánchez Reyes: “Zarpar bajo cobijo divino. Prácticas religiosas en los viajes de la Carrera de Indias”, em La flota de la Nueva España 1630-1631, F. Trejo coord., México, Instituto Nacional de Antropología e Historia, 2003, pp. 145-208. A correspondência atlântica conta com numerosa bibliografia, incluindo numerosos documentos transcritos por Enrique Otte: Cartas privadas de emigrantes a Indias, Sevilla, Junta de Andalucía, 1988. Ou bem o trabalho de Isabelo Macías y Francisco Morales Padrón: Cartas desde América 1700-1800, Sevilla, Junta de Andaluzia, 1991. E uma visão do conjunto em González Sánchez, Carlos Alberto. “Ver para escribir. El Rey y el relato de las maravillas del Nuevo Mundo”, em Historia y perspectivas de investigación. Estudios en memoria del profesor Ángel Rodríguez Sánchez, Badajoz, Junta de Extremadura, 2002, pp. 329335; e, igualmente, Antonio Castillo Gómez: “Del tratado a la práctica. La escritura epistolar en los siglos XVI y XVII”, em La correspondencia en la historia. Modelos y prácticas de escritura epistolar, A. Castillo e C. Sáez eds., Madrid, Calambur, 2002, pp. 79-108. É muito recomendável o estudo de Rosario Márquez Macías: Historias de América: la emigración española en tinta y papel, Huelva, Diputación de Huelva, 1994; e o excelente Rocío Sánchez e Isabel Testón: El hilo que une. Las relaciones epistolares en el Viejo y el Nuevo Mundo (siglos XVI-XVIII), Junta de Extremadura, Cáceres-Mérida, 1999. Alguns aspectos citados foram recompilados e sintetizados em Rueda Ramírez, Pedro: “La cultura escrita en el mundo atlántico colonial: claves historiográficas, retos y perspectivas”, Erebea. Revista de Humanidades y Ciencias Sociales, 2, Huelva, 2012, 53-76. http://www.uhu.es/publicaciones/ojs/index.php/erebea/article/ view/1330/1796

Extratos de documentos No consientan, ni den lugar a persona alguna pasar a las Indias los libros e historias fingidas, profanas ni libros de materias deshonestas, salvo los libros tocantes a la Religión Cristiana, y de virtud, en que se ocupen y ejerciten los Indios y los otros pobladores de las dichas Indias.

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Ordenanzas de la Casa de la Contratación de las Indias, dadas en Monzón, el 4 de noviembre de 1552, en las que se incluye la obligación de vigilar el pase de libros. Y viendo el fruto que se conseguía, proseguí con la predicación, como lo hice todo el viaje, los miércoles y los viernes, y como yo no tenía allí libros, y a esta falta se seguía mi insuficiencia, esperé de Nuestro Señor, que puesto en el lugar a explicar su doctrina, me daría espíritu y afluencia. Y bien se conoció que era el espíritu suyo, y que allí andaba el dedo de Dios, pues lo que Su Majestad obró en aquella gente, que serían 350 hombres, y las penitencias que hicieron fueron tales, que parece que en toda era el navío otra Nínive convertida. Portichuelo de Rivadeneira, Diego: Relación del viaje y sucesos que tuvo desde que salió de la ciudad de Lima hasta que llegó a estos reinos de España, Buenos Aires, Biblioteca Ibero-Americana, 1905, p. 67. Y las justicias Eclesiásticas, y seglares, pueden, y deben visitar las tiendas, y librerías de libros, de libreros, mercaderes y otras personas que los tuvieren, para saber si hay alguno prohibido, según otra ley de la Recopilación. Hevia Bolaños, Juan de: Segunda parte de la Curia filipica, donde se trata breue, y compendiosamente de la mercancia, y contratacion de tierra, y mar, vtil, y prouechoso para mercaderes, negociadores, nauegantes, y sus consulados. En Valladolid, por Iuan Lasso de las Peñas. A Costa de Antonio Lopez Calderon, [1629], p. 114. Si se alentaran los libreros españoles y se diera cumplido favor a las emprentas, en ninguna parte de Europa se hicieron impresiones de menos erratas ni más lúcidas. Así se excusaran las venidas de extranjeros, que, codiciosos sobremanera, introducen cuantos libros les piden, sean o no prohibidos; con que se seguiría también el ahorro de mucho dinero que se saca de España para jamás volver a ella. Suárez de Figueroa, Cristóbal: El pasajero, edic. de Mª I. López Bascuñana, Barcelona, PPU, 1988, vol. I, p. 212. El hombre. Divina señora, tengo por gran bien haber ayuntado muy hermosa y adornada librería, donde he puesto gran copia de libros de todas sciencias tengolos con linda orden. Leo cuando me place y huelgo de saber lo que en ellos esta scripto. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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La verdad. Dices hombre tener gran contento por tener hermosa y adornada librería, y por tener en ella gran copia de libros de todas sciencias. Mira lo que digo has de saber que los libros no sirven a todos los hombres igualmente, antes unos los buscan para saber por ellos sciencia, y otros para su deleite y vanagloria. Que ya sabes que aunque los libros fueron hallados para el atavío de los ánimos, no falta quien usa dellos para atavío de las cámaras como de cosas pintadas. También quiero que sepas que los muchos libros a unos hicieron sabios, y a otros locos. Medina, Pedro de. Libro de la verdad, donde se contienen dozientos Dialogos, que entre la Verdad, y el Hombre se tratan, sobre la conuersion del peccador. En Medina del Campo, en casa de Francisco del Canto: A costa de Iuan Boyer, mercader de libros, 1584, fol. 16r-v.

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Capítulo 7 Entre textos, contextos e epistemologias: apontamentos sobre a “Polêmica do Novo Mundo” Beatriz Helena Domingues Breno Machado dos Santos A partir de meados do século XVIII, a natureza da América e seus habitantes tornaram-se objetos de um célebre debate intelectual de amplas proporções que envolveu, por algumas décadas, ilustres letrados de ambos os lados do Atlântico. Trata-se da “Disputa ou Polêmica do Novo Mundo”,343 conforme denominada por Antonello Gerbi, suscitada principalmente pelas teses sobre a inferioridade do continente americano em relação ao Velho Mundo então formuladas pelo naturalista francês Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, e pelo filósofo prussiano Cornelius de Pauw. De uma maneira geral, em sua vasta Histoire naturelle composta por vários volumes publicados entre 1749 e 1789, Buffon comparava a América ao Velho Mundo, apresentando-a como um continente jovem, recém-emergido das águas do mar, portanto imaturo. Ainda segundo o naturalista, em razão desse suposto estado geofísico, o Novo Mundo se caracterizava, entre outros aspectos, por um clima mais frio e excessivamente úmido; pela inexistência de grandes mamíferos (tais como elefantes, rinocerontes, hipopótamos e girafas); pela menor variedade e pela debilidade das espécies naturais de quadrúpedes (Buffon dizia, por exemplo, que o leão da América, ou puma, além de não possuir juba, “também é muito menor, mais fraco e mais covarde que o verdadeiro leão”); por ser um ambiente no qual os animais domésticos introduzidos pelos europeus (cavalos, bois, carneiros, cães etc.) se degeneravam; enfim, 343  Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996. Cumpre ressaltar aqui que, considerada uma obra de referência dentro da historiografia sobre a América, sua primeira edição, intitulada La Disputa del Nuovo Mondo: Storia di una Polemica, foi publicada na Itália em 1955.

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pela abundância e pelas dimensões avantajadas de répteis, anfíbios e insetos, seres geralmente considerados nocivos e pestilentos, tidos como formas inferiores de vida germinadas da umidade e da podridão. Em suma, Buffon julgava toda a natureza americana hostil ao desenvolvimento dos animais.344 E, apesar de a fauna do Novo Mundo constituir o núcleo de suas investigações, dessa concepção não escaparam os ameríndios: [...] ainda que o selvagem do Novo Mundo possua aproximadamente a mesma estatura do homem de nosso mundo, isso não é suficiente para que ele constitua uma exceção ao fato geral do apequenamento da natureza viva em todo este continente. O selvagem é débil e pequeno nos órgãos da reprodução; não tem pêlos nem barba, nem qualquer ardor por sua fêmea [...] é muito menos forte de corpo; é igualmente bem menos sensível e, no entanto, mais crédulo e covarde; não demonstra qualquer vivacidade, qualquer atividade d’alma; quanto à do corpo, é menos um exercício, um movimento voluntário, que uma necessidade de ação imposta pela necessidade: prive-o da fome e da sede e terá destruído simultaneamente o princípio ativo de todos os seus movimentos; ele permanecerá num estúpido repouso sobre suas pernas ou deitado durante dias inteiros.345

Por sua vez, desenvolvendo os argumentos buffonianos, Cornelius de Pauw, em suas Recherches philosophiques sur les Américains, publicadas em Berlim em 1768-1769, concebeu uma teoria muito mais radical que a do naturalista francês acerca da inferioridade do Novo Mundo. Em linhas gerais, ao passo que Buffon sustentava a tese da debilidade ou imaturidade da América em função do continente ser supostamente ainda muito jovem em termos geológicos, De Pauw alegava que toda a natureza do Novo Mundo era, na realidade, decadente e degenerada, sobretudo por efeito de um hipotético dilúvio americano que “transformara um continente de grandes animais e civilizações milenares em uma terra recoberta por miasmas”;346 enquanto Buffon apenas estendeu aos indígenas, pelo fio do raciocínio, o juízo negativo proferido 344  Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996, pp. 19 et seq. 345  BUFFON, Oeuvres Complètes, XV, 443-446 Apud GERBI, Antonello. op. cit., p. 21. 346  CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 67.

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sobre as espécies nativas de quadrúpedes, De Pauw situou no centro de suas reflexões inúmeras observações depreciativas e escandalizantes a propósito dos ameríndios, incluindo algumas atinentes aos próprios descendentes de europeus nascidos particularmente na América espanhola (criollos).347 Para se ter uma ideia dessa dimensão das Recherches, basta apontar que, ecoando com variações e em tom pungente a maioria daquelas opiniões sumárias desfiladas por Buffon, De Pauw também qualificava substancialmente os indígenas como “selvagens” de fraca constituição física, estúpidos, glabros (a ausência de pelos era associada à ideia de menor virilidade), insensíveis, preguiçosos e covardes. Porém, avançando em sua análise, o filósofo prussiano julgava que todos os nativos possuíam “menos humanidade”, eram incapazes de progresso civilizatório e tinham vícios morais (gula, embriaguez, ingratidão e pederastia) e costumes abomináveis, como a antropofagia. Entre tantas outras características negativas atribuídas aos ameríndios, De Pauw afirmava ainda, de maneira extremada, que todas as mulheres eram feias, que os homens haviam se tornado emasculados e muitas vezes tinham leite nos peitos e que ambos apresentavam menor estatura se comparados aos europeus.348 E como suas teorias sobre a inferioridade e degenerescência dos habitantes da América não poupavam nem mesmo os filhos de europeus nascidos no continente, De Pauw asseverava, por exemplo, que os criollos depois da adolescência caíam na indolência e no vício influenciados pelos efeitos perniciosos do clima local ou que entre os mesmos não havia sequer um único homem douto.349 Ora, ao reconstituir a trajetória da chamada “Polêmica do Novo Mundo”, Antonello Gerbi demonstra particularmente como as escandalosas teses de De Pauw provocaram, de imediato, reações gerais e parciais, diretas e indiretas, por parte de autores e cientistas europeus. Dentre elas, destacam-se a do ex-beneditino Antoine-Joseph Pernety, que em 1770 publicou sua Dissertation sur l’Amérique et les Américains reunindo diversas evidências e argumentos contra as teorias antiamericanistas de De Pauw e, por seu intermédio, de Buffon, assim como a do 347  Cf. GERBI, Antonello. op. cit., passim. 348  Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996, passim. 349  Cf. BRANDING, David. Orbe Indiano: De la monarquía católica a la República criolla (1492-1867). México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1991, p. 466.

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próprio Buffon, o qual, diante das deduções exageradas de De Pauw, em 1777 emendou sua opinião sobre os indígenas americanos afirmando que eles, salvo algumas poucas exceções, em vez de impotentes e débeis, eram tão robustos quanto os europeus, ainda que menos ativos.350 Contudo, apesar de as Recherches de De Pauw terem logo desencadeado um “pequeno vespeiro” de réplicas e contrarréplicas, forçoso é reconhecer que a “Polêmica do Novo Mundo” só alcançou seu nível mais elevado e profícuo no início dos anos 1780.351 Nessa altura, havia se passado pouco mais de uma década desde a chegada à Europa dos primeiros jesuítas expulsos da América espanhola (1767) e as colônias inglesas da América do Norte tinham recentemente se declarado independentes (1776). Além desses acontecimentos, as teses buffon-depauwnianas acabaram sendo difundidas, se não vulgarizadas em toda a Europa, graças ao enorme sucesso editorial das obras de dois de seus principais seguidores, a saber, a Histoire philosophique des deux Indies do abade francês Guillaume-Thomas Raynal, um best-seller do fim do Setecentos na França publicado em três edições sucessivas (1770, 1774 e 1781) em Amsterdã e Genebra, e a popularíssima History of America (1777) do ministro presbiteriano escocês William Robertson, livro logo traduzido para vários idiomas e reeditado continuamente até meados do século XIX.352 Assim, ao tomarem conhecimento de tais visões negativas do Novo Mundo em um contexto no qual um sentimento pátrio se afirmava paralelamente na Ibero e na Anglo-América, especialmente jesuítas criollos exilados na Europa a partir de 1767, bem como quase todos os “pais fundadores” dos recém-constituídos Estados Unidos da América reagiram às referidas teses denegridoras da natureza americana e de seus habitantes, gerando o que Antonello Gerbi chamou de segunda fase da “Polêmica do Novo Mundo”.353 Em sua análise, Gerbi apresenta com riqueza de detalhes como, travando um debate aberto com os detratores do continente americano, 350  Cf. GERBI, Antonello. “As primeiras polêmicas europeias em torno de De Pauw”. In:_____. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996, pp. 77-131. 351  Cf. Id. Ibid., p. 77. 352  A propósito das referidas obras de Raynal e William Robertson, ver: GERBI, Antonello. Op. cit., pp. 51-54; 133-134; BRADING, David. Orbe Indiano: De la monarquía católica a la República criolla (1492-1867). México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1991, pp. 466-482; CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, pp. 54 et seq. 353  Cf. GERBI, Antonello. op. cit.

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tanto jesuítas deportados de várias regiões da América hispânica – como Clavijero (México), Molina (Chile), Juan de Velasco (Quito) e Perramás (Rio da Prata) –, quanto destacados “pais da pátria” norte-americana – como Franklin, Jefferson e Thomas Paine – empenharam-se em mobilizar, cada qual à sua maneira, diversos argumentos para rebater ou, às vezes, até mesmo inverter o diagnóstico de inferioridade do Novo Mundo em relação ao Velho Mundo então em voga na Europa Ilustrada. Porém, a partir da abordagem proposta por Jorge Cañizares-Esguerra não restam dúvidas de que, no caso dos escritores hispano-americanos, em particular dos jesuítas exilados, as reações a tais teorias derrogatórias não se limitaram a levantar um conjunto de alegações em defesa da natureza e dos habitantes das Américas, mas “articularam também uma crítica poderosa e criativa das epistemologias eurocêntricas”.354 Como bem adverte o historiador equatoriano: Desde que Antonello Gerbi descreveu a reação jesuítica como parte de uma ampla “disputa sobre o Novo Mundo”, os estudiosos têm-se concentrado no modo como os exilados jesuítas responderam às caracterizações europeias da natureza e dos povos do Novo Mundo. Mas [...] as obras de Buffon, De Pauw, Raynal e Robertson não eram apenas diatribes contra a América tropical; eram, também, propostas metodológicas e epistemológicas. Além de escrever histórias naturais e civis que negavam que a América fosse úmida e castradora, os jesuítas também se dirigiam às metodologias dos europeus, tecendo críticas vigorosas e persuasivas do conhecimento europeu sobre o Novo Mundo.355

Assim, dando continuidade ao que foi exposto até aqui e, de certo modo, fazendo eco às observações de Antonello Gerbi e de Jorge Cañizares-Esguerra, pretendemos nas páginas que se seguem lançar luzes sobre a participação de notáveis jesuítas desterrados das colônias hispano-americanas e de alguns dos mais conhecidos “pais fundado354  CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 20. 355  Id. Ibid., pp. 287-288. A propósito, para um balanço historiográfico acerca da “Polêmica do Novo Mundo”, ver: OLIVEIRA, Flávia Preto de Godoy. “Epistemologia, Crônicas e Natureza: uma reflexão sobre a chamada Polêmica do Novo Mundo”. In: Simpósio Nacional de História – ANPUH, XXVI, 2011, São Paulo, SP. Anais... São Paulo, SP: ANPUH-SP, 2011, pp. 1-14.

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res” dos Estados Unidos da América na “Polêmica do Novo Mundo”. Rompendo, porém, com um silêncio presente em boa parte da produção historiográfica sobre o tema, inclusive nas obras de referência de Gerbi e de Cañizares-Esguerra, buscamos também, a exemplo de outros estudos realizados por nós, chamar a atenção para a inserção de membros da Companhia de Jesus ligados à América portuguesa no debate em questão.356 Em termos mais precisos, a ideia central consiste em averiguar a maneira como representantes de ambos os grupos envolvidos na “Disputa” reagiram às teses ilustradas denegrindo a natureza e os habitantes das Américas, relacionando suas defesas com os contextos que as condicionaram.357 Mas, para tanto, posto que tal debate não ficou restrito a detrações ou exaltações do Novo Mundo, é preciso tratar preliminarmente dos pressupostos epistemológicos e metodológicos que Buffon, De Pauw, Raynal e Robertson fizeram valer em suas obras.

A Europa Ilustrada e o emergir das obras detratoras do Novo Mundo A rigor, conforme bem demonstrado posteriormente por Antonello Gerbi em outro livro publicado na Itália em 1975 sob o título de La natura delle Indie Nuove, teorias sobre a inferioridade do continente americano em relação ao Velho Mundo datam de sua descoberta, e não do período da Ilustração.358 Ao se debruçar sobre os primeiros 356  Dentre eles, destacamos: DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada. Rio de Janeiro: Museu da República, 2007; _____; SANTOS, Breno Machado dos. “Sob o signo das Luzes: o pensamento jesuítico e a Ilustração nas cartas do padre David Fáy”. História Unisinos, São Leopoldo, RS, v. 13, n. 3, pp. 233-240, set./dez. 2009; _____. “A inserção dos jesuítas João Daniel e David Fáy no clima de opinião da Ilustração ibérica e europeia”. Revista de Estudos de Cultura da UFS, São Cristóvão, SE, n. 5, pp. 49-64, maio/ago. 2016. 357  Embora nosso foco seja nas reações às teses buffon-depauwnianas por jesuítas exilados da América ibérica e pelos “pais fundadores” dos Estados Unidos, é importante esclarecer que a “Polêmica” não se restringiu a eles. Pensadores espanhóis e ingleses, laicos ou religiosos, também se posicionaram quanto à temática. No exaustivo levantamento feito por Antonello Gerbi são citados e comentados muitos. Em geral, Gerbi acentua que, se na Inglaterra De Pauw praticamente não tinha inimigos, na Espanha a rejeição chegava a unir pensadores que discordavam em quase tudo mais. 358  Cf. GERBI, Antonello. La naturaleza de las Indias Nuevas: de Cristóbal Colón a Gonzalo Fernández de Oviedo. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1978.

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descritores da natureza do Novo Mundo, Gerbi chegou à conclusão de que a tese buffoniana era “menos original de lo que él [propio Buffon] creía”,359 e de que, em todo caso, ela representava um corolário de muito do que havia sido escrito por cronistas e viajantes nos séculos XVI e XVII. Forçoso, contudo, é reconhecer que “a filosofia da Ilustração inverteu a visão paradisíaca da América”360 e que, no “Século das Luzes”, antigas e novas teses depreciativas do Novo Mundo assumiram feições específicas: elas foram envolvidas por uma aura de ciência e de pensamento racional, com proporções até então desconhecidas. Mas afinal, retomando aqui questões centrais levantadas por Cañizares-Esguerra em Como escrever a História do Novo Mundo, a partir de que fontes e autoridade Buffon, De Pauw e seus principais seguidores formaram esse novo discurso sobre a natureza e o homem americanos, marcado pela negatividade? Quais os pressupostos epistemológicos e metodológicos utilizados por esses autores em suas referidas obras detratoras do Novo Mundo? No caso em questão, é importante notar que, a partir do início do século XVIII, houve um interesse renovado da parte dos europeus pelo continente americano, manifesto especialmente entre os letrados franceses. Alicerçados pelo arsenal epistemológico estabelecido pelo pensamento científico e filosófico do século XVII – como a dúvida cartesiana, a física de Newton, o empirismo lockeano e o ceticismo de Bayle –, os círculos intelectuais da Europa setecentista voltaram suas atenções para o Novo Mundo, propondo abordagens inovadoras a respeito da história, da natureza e dos habitantes da América. Assim, nessa época em que o discurso científico assumia voz de autoridade para explicar a natureza e a sociedade e quando a filosofia experimental amadurecia nos salões e academias em toda a Europa, assiste-se a um estímulo crescente para que especialistas se deslocassem ao Novo Mundo a fim de, supostamente, produzir um saber aperfeiçoado 359  Id. Ibid., p. 15. 360  VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 22. A propósito, cumpre lembrar aqui que em Visão do Paraíso (1959), ao abordar as narrativas sobre o descobrimento e a colonização da América, Sérgio Buarque de Holanda mostra como a imagem do Éden se projetou sobre o Novo Mundo, constituindo um dos fatores que presidiram a sua ocupação pelo europeu, em particular no caso das Índias de Castela. Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.

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sobre a realidade americana. “Concentrando-se nas limitações de percepção dos que tradicionalmente escreviam narrativas de viagem – missionários, comerciantes, soldados e navegantes –, os críticos propunham que os mais esclarecidos visitassem pessoalmente as terras estrangeiras para descobrir a verdade”.361 Decorre daí que nas primeiras décadas do Setecentos, quando passaram a ser comparados com os textos dos novos “viajantes filósofos” – como Amédée Frézier, Charles-Marie de La Condamine e Antonio de Ulloa, que expressavam, por exemplo, um profundo ceticismo em relação às descrições anteriores sobre o passado inca –, os relatos do Novo Mundo feitos nos séculos XVI e XVII por testemunhas então consideradas ignorantes, tendenciosas e crédulas começaram a perder credibilidade.362 As asserções contrárias ao senso comum ou às leis da natureza e os elementos maravilhosos, extraordinários, que não condiziam com a nova atitude intelectual europeia daquele momento, imputavam inverossimilhança aos primeiros escritos sobre a América, fazendo com que eles fossem tomados cada vez mais como fontes não confiáveis sobre o continente. Enquanto as informações fornecidas pelos “viajantes filósofos” tornavam-se preferidas pelas plateias cultas da Europa, a publicação de novas formas de compilações de narrativas de viagem durante a primeira metade do século XVIII, associada talvez às preocupações dos representantes da “história erudita” do final do Seiscentos e início do Setecentos, também contribuiu para minar a confiabilidade dos primeiros cronistas do Novo Mundo. Inicialmente, surgiram aquelas que trataram de coligir e agrupar em ordem cronológica e geográfica as fontes tidas como mais respeitadas, o que necessariamente implicava um processo de seleção que valorizava, por exemplo, os relatos feitos por pessoas que viveram mais tempo em terras estrangeiras em detrimento daqueles concebidos por viajantes que apenas as conheceram de passagem.363 Em seguida, nas palavras de Cañizares-Esguerra, “as coisas ficaram um pouco mais complicadas quando os editores foram além das meras compilações para 361  CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 31. 362  Cf. Id., Ibid., pp. 30 et seq. Sobre os referidos “viajantes filósofos”, ver também: Brading, David. Orbe Indiano: De la monarquía católica a la República criolla (1492-1867). México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1991, pp. 456-462. 363  Cf. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. op. cit., p. 41.

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escrever narrativas que eram textos completamente novos e sínteses de diversos relatos”.364 De uma maneira geral, o ideário dessa inovadora estratégia editorial consistia em reunir e cotejar todas as descrições disponíveis referentes a um mesmo lugar, de modo a proporcionar ao público letrado europeu uma única narrativa depurada de repetições e que identificasse contradições entre os escritos confrontados.365 Enfim, à medida que os primeiros relatos europeus sobre a América passavam a ser vistos de uma maneira sem precedentes como fontes desprovidas de autoridade, controvertidas e duvidosas, floresceram formas alternativas de dados e evidências extraídos particularmente da natureza em suas distintas manifestações. Não é demais lembrar que, no “Século das Luzes”, a história natural assumiu um dos lugares de destaque dentro dos ramos do conhecimento da época.366 De acordo com Roberto Ventura, nessa altura “a história encerrava toda uma coleção de objetos, que podia conter a descrição da flora, da fauna e recursos naturais de uma região, dos costumes de seus habitantes, do modo de vida e governo”.367 Assim, o amplo repertório de informações disponibilizado pelos estudos naturalísticos sobre o Novo Mundo e outras “terras exóticas” então em voga na Europa revelava-se um elemento relevante de reflexão para os intelectuais do período. Diante do que foi brevemente exposto acima, tomando por base as ideias de Jorge Cañizares-Esguerra, pode-se dizer, portanto, que o emergir das teorias polêmicas de Buffon, De Pauw, Raynal e Robertson sobre a América teve como lastro esse conjunto de transformações nas formas de conceber e validar o conhecimento sobre o continente americano, ocorrido na Europa durante a primeira metade do século XVIII. Em suma, conforme sustenta o historiador equatoriano, a “crítica às fontes tradicionais levou à busca de novas formas de evidências e, em última análise, à escrita de histórias conjeturais, ‘filosóficas’, da terra e 364  CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 42. 365  Cf. Id., Ibid. 366  Cf. DARNTON, Robert. “Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie”. In: _____. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, pp. 247-275. 367  VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 28.

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dos povos da América, em que as evidências da linguística, da história natural, da etologia e da geologia tinham precedência”.368 Mas, para que se tenha uma noção mais clara dessa linha argumentativa desenvolvida por Cañizares-Esguerra, vale notar o seguinte excerto de uma entrevista concedida por ele a pesquisadores de universidades brasileiras, por ocasião da publicação em português de seu livro How to Write the History of the New World (2001), no qual oferece um panorama elucidativo sobre as alterações epistemológicas que alicerçaram a elaboração de uma nova concepção da história do Novo Mundo: Se llega a la conclusión [en el caso de la ilustración europea] que las fuentes tradicionales (crónicas españolas, las fuentes indígenas y los testimonios locales de sociedades hispanoamericanas) no sirven para reconstruir el pasado americano. No tienen autoridad, carecen de autoridad por las múltiples razones típicas de la Ilustración, como el anticlericalismo, el desprecio de los saberes populares y por otras razones como, por ejemplo, la historización de la historia de la escritura, que lleva a pensar que fuentes no escritas, o formas de escrituras no alfabéticas son primitivas y por lo tanto no creíbles. También se descarta todo un movimiento de hacer historia a partir de fuentes escritas, particularmente la Biblia, al paso en que hay la creación de nuevas ciencias en la ilustración que no dependen más de documentos escritos. Hay nuevas ciencias como la geología por ejemplo, en donde la tierra misma, fósiles, montañas se convierten en fuentes documentales. O la biodistribución, una ciencia que se vale de la utilización de plantas y animales. O la lingüística histórica, que determina migraciones y genealogías de pueblos a partir del estudio de parentesco de estructuras gramaticales. O sea, están creando nuevas ciencias que son conjeturales por excelencia. En la historia se pasa el mismo: es el nacimiento de la historia conjetural en la Ilustración. Es una ciencia que florece alrededor del discurso político, la filosofía política, como la idea del estado de la naturaleza y del origen de la desigualdad, del origen de la propiedad, como lo hace Rousseau, cuyo estudio de la transici368  CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 22.

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ón del estado natural al político se basa en el estudio de monos y primates, no fuentes bíblicas.369

Para fins deste artigo, resta enfatizar o fato de ter sido à luz desse novo clima intelectual em vigor na Europa ilustrada que Buffon, De Pauw, Raynal e Robertson se debruçaram sobre a história do Novo Mundo, constituindo um discurso ousado que ratificava uma pretensa inferioridade da natureza e dos habitantes da América, quando comparados com o Velho Mundo. E, para tanto, embora suas obras figurassem gêneros textuais distintos e apresentassem motivações, propósitos e enfoques bem diferenciados entre si, salta aos olhos que tais detratores do continente americano compartilharam uma atitude em comum: ainda que com nuances variadas, ao conceberem suas interpretações generalizantes num tom conjetural e filosófico, todos eles, pelas razões já elencadas, colocaram em xeque a credibilidade do testemunho ocular dos tradicionais descritores do Novo Mundo – navegantes, conquistadores e missionários – e privilegiaram, então, as observações “mais confiáveis” dos “viajantes filósofos” contemporâneos, assim como os dados provenientes da história natural. Para a República das Letras da Europa Ilustrada eram esses os elementos que conferiam autoridade e ares de cientificidade às referidas teses derrogatórias da América. Porém, ao tomarem parte na “Polêmica do Novo Mundo”, os jesuítas hispano-americanos exilados acabariam articulando uma crítica poderosa a tal epistemologia europeia, tornando-se os principais responsáveis por expor suas deficiências e limitações.370

369  KALIL, Luis Guilherme Assis; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. “Historia atlántica y intelectualidad: una entrevista con Jorge Cañizares-Esguerra”. História da Historiografia, Ouro Preto, MG, n. 7, p. 16, nov./dez. 2011. 370  Cf. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. “A construção de uma ‘epistemologia patriótica’”. In: _____. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, pp. 253-320.

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O papel dos jesuítas ibero-americanos na defesa do Novo Mundo Ao discutirmos o papel dos jesuítas exiliados da América ibérica, o leitor familiarizado com o tema talvez automaticamente pense na América hispânica, uma vez que o estudo de Gerbi e de muitos outros não encontraram sinais de reações às teses de Buffon e De Pauw entre os jesuítas expulsos da América portuguesa, ou seja, do Brasil colônia. Mas, embora tenham sido poucas, como já nos foi possível localizar textos que abordam diretamente as referidas teses, consideramos fundamental incluí-las aqui.371

América espanhola Os escritos dos jesuítas expulsos da América espanhola – majoritariamente histórias das regiões das quais tinham sido expulsos – atuaram, ao mesmo tempo, como instrumentos de divulgação de regiões americanas para um público europeu ávido por histórias e descrições exóticas, e para a constituição de um sentimento “patriótico”, que uniu teologia, história natural e história política em defesa do Novo Mundo. Foi a primeira literatura sobre o continente americano produzida por hispano-americanos para audiências europeias.372 Na literatura sobre a América hispânica salta aos olhos a insatisfação com as Reformas Bourbônicas, especialmente por parte da elite criolla, contribuindo para que a divulgação dessas teorias denegrindo o 371  Cf. DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada. Rio de Janeiro: Museu da República, 2007. 372  Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996; CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011; DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada. Rio de Janeiro: Museu da República, 2007; BRUIT, Héctor H. “A historiografia jesuítica americana do século XVIII”. Revista de História da UPIS, Brasília, DF, v. 1, pp. 61-78, 2005.

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continente americano fossem muitas vezes associadas ao surgimento de formas embrionárias de patriotismo, ou a uma busca por identidade cultural nessas colônias.373 As obras escritas por jesuítas exilados do México na Itália defendendo a pátria americana que foram forçados a abandonar dos ataques dos filósofos ilustrados são consideradas fundamentais para a constituição de uma identidade que, de certa forma, modelou o sentimento patriótico por ocasião da independência.374 Dentre eles, destaca-se o padre Clavijero. Francisco Xavier Clavijero nasceu em Vera Cruz, Nova Espanha, em 1731, e morreu em Bolonha, nos Estados Pontifícios, em 1787. Segundo seu biógrafo, Juan Maneiro, desde criança Clavijero teve a oportunidade de ter contato íntimo com os indígenas, conhecer a fundo seus costumes e sua natureza, e de investigar em detalhes os mundos vegetal, animal e mineral da Nova Espanha. Fez seus primeiros estudos em Puebla e, em 1748, ingressou no seminário local para tornar-se jesuíta. Em Tepotzotlán, aperfeiçoou seus conhecimentos em latim e aprendeu grego, francês, português, italiano, alemão e inglês.375 Seus conhecimentos permitiram-lhe aproximar-se de distintas culturas. Em 1751, foi enviado de volta a Puebla, onde se dedicou a aprofundar seus estudos de filosofia. Entre suas leituras daquela época estavam Descartes, Newton e Leibniz. Em 1767, devido ao decreto de expulsão dos jesuítas da Espanha e de suas colônias americanas, Clavijero partiu para o exílio nos Estados Pontifícios juntamente com outros importantes jesuítas, como José Rafael Campoy, Andrés Cavo, Francisco Javier Alegre, Juan Luis Maneiro e Pedro José Márquez. Do exílio escreveu a Historia antigua de México, considerada como a mais influente história do México desde a Historia natural y mo373  A respeito disso, ver, por exemplo: GERBI, Antonello. op. cit.; BRANDING, David. “Patriotas jesuitas”. In: _____. Orbe Indiano: De la monarquía católica a la República criolla (14921867). México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1991, pp. 483-500; CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. op. cit. 374  Cf. GERBI, Antonello. op. cit.; PAGDEN, Anthony. The Uncertainties of Empire: Essays in Iberian and Ibero-American Intellectual History. Aldershot, Hampshire: Variorum, 1994; RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985; _____. “Autonomía literaria americana”. In: La crítica de la cultura en America Latina. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985, pp. 66-81; ARREGUI, Frederico Álvarez. “El debate del Nuevo Mundo”. In: PIZZARO, Ana (Org.). América Latina: Palavra, literatura e cultura. São Paulo/Campinas: Memorial/Editora da Unicamp, 1994, pp. 35-66. v. 2. 375  Cf. MANEIRO, Juan Luis; GÓMEZ FREGOSO, José Jesús. Francisco Xavier Clavijero. Puebla: Universidad Iberoamericana, 2004.

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ral de las Indias (1590), de José de Acosta. Era, de acordo com Clavijero, a história do México escrita por um mexicano, na qual predominava um tom nostálgico, quase romântico. Como é sabido, lembra ele, os chamados “hispano-americanos” eram criollos: nem “puros” espanhóis, nem “puros” americanos. A experiência do exílio, ao ter sido obrigado a deixar a Nova Espanha para sempre, exacerbou ainda mais em Clavijero o sentimento de identificação com a comunidade dos criollos mexicanos. Para muitos deles – inclusive Clavijero –, especialmente quando em confronto com estrangeiros hostis, a Espanha ainda era a sua nação, um mundo que os unia em uma herança étnica comum. Mas a cultura ou pátria – que indicava uma sensação muito mais forte de pertencimento para eles – era “mexicana”, “peruana” ou “chilena”.376 Concebida no exílio, sem acesso a dados históricos precisos sobre a história do México – que havia colecionado antes de deixar a Nova Espanha –, a decisão de redigi-la parece associada, segundo seu biógrafo, Juan Maneiro, ao aparecimento das Recherches philosophiques sur les Américains, de De Pauw.377 Concordando com o biografado, Maneiro considera Clavijero o verdadeiro criador de uma História do México, uma vez que, embora outros antes dele já tivessem escrito peças de sumo valor, como Bernardino de Sahagún, Motolinía, Mendieta, Moñoz, Chimalpáin e Tezozomoc, não existia ainda uma obra com método, limpa de textos cansativos, erudita e em estilo elegante.378 A volumosa Historia antigua de México foi publicada em quatro grandes volumes: os três primeiros em 1780 e o último, que contém as Disertaciones Históricas, dedicadas à “Polêmica do Novo Mundo”, em 1781. Foi imediatamente traduzida para várias línguas nos dois lados do Atlântico e adquiriu grande popularidade no México. Os escritos de Clavijero – e de outros hispano-americanos escrevendo na Europa sobre a América – contribuíram para romper com o espírito regionalis376  Cf. PAGDEN, Anthony. Spanish Imperialism and the Political Imagination. New Haven and London: Yale University Press, 1990. 377  Esta informação foi fornecida por seu biógrafo, Maneiro. A obra de Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), foi traduzida para o espanhol com o título Historia natural general y particular (Madri, 1783-1791). Foi depois republicada em suas Obras Completas (Madri,1848). Parece, portanto, que Clavijero a leu em francês, pois a primeira edição da sua Historia antigua de México data de 1780. 378  MANEIRO, Juan Luis; FABRI, Manuel. Vidas de mexicanos ilustres del siglo XVIII. México: UNAM, Coordinación de Humanidades, 1989.

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ta e “provincial” dos criollos, capacitando-os para recuperar o passado, a natureza, a cultura e a vida intelectual de suas pátrias. Clavijero foi um dos mais engajados, tornando-se um dos principais interlocutores de De Pauw e Buffon na “Polêmica do Novo Mundo”. Conforme visto, Buffon havia postulado que a natureza do Novo Mundo era inferior àquela da Europa porque imatura ou débil, o que explicaria sua umidade excessiva. De Pauw, por seu turno, atribuiu a inferioridade do clima à ocorrência de várias catástrofes geológicas, em especial à de um segundo dilúvio, exclusivamente “americano”. A emenda de De Pauw à tese de Buffon parecia a Clavijero pior que o soneto. Daí ter escrito o volume das Disertaciones dirigido expressamente a ele, embora as críticas a Buffon e Raynal também abundem no texto. Isso porque, como outros jesuítas exilados da América espanhola, embora Clavijero estivesse profundamente incomodado com as teses sobre a inferioridade do clima, da fauna e da flora do México, irritava-o ainda mais a extensão dos argumentos de Buffon por De Pauw aos americanos. Como já dito, Clavijero era profundamente comprometimento com os criollos mexicanos e com a tradição asteca. Da leitura das Disertaciones fica evidente que a controvérsia de Clavijero com De Pauw e Buffon, muito mais que uma disputa, é uma contenda contra uma forma de interpretar o mundo e a história então em voga entre muitos europeus. Já foi exaustivamente enfatizado, por extensa bibliografia, que a réplica de Clavijero contra o clima intelectual europeu que inspirava as teses buffon-depauwnianas muitas vezes invertia os argumentos contra o Novo Mundo para o Velho Mundo, sem conseguir desvencilhar-se da carga valorativa inerente a eles: ou seja, da premissa de que aspectos da natureza pudessem efetivamente influir no caráter dos povos. De fato, existem bons exemplos desse posicionamento reativo. Porém, também nos deparamos com momentos de reflexões filosóficas e metodológicas que questionam a fundo não somente as teses depreciativas, mas as premissas que as sustentam. Talvez um exemplo possa ser esclarecedor. De uma maneira geral, nas Disertaciones Clavijero oferece exemplos do clima, povo, religião ou cultura do México para se opor às teses generalizantes e universalistas de seus inimigos. Na dissertação sobre o clima e o povoamento do México Clavijero questiona a afirmação, por De Pauw, de um segundo dilúvio estritamente americano. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Inicialmente seu argumento é o conhecimento do local: ele conhece o México e sua história e pode garantir que o planalto mexicano foi e é uma região extremamente seca por séculos. Porém, sendo coerente com seu próprio método, diz não ser possível afirmar isso com o mesmo grau de certeza sobre o restante do continente. Daí resulta, claro, uma conclusão um tanto patriótica, semelhante à que encontraremos entre os “pais fundadores” dos Estados Unidos. Mas há um diferencial. Clavijero claramente não aceita a tese do segundo dilúvio regional e quer afirmar como verdade a existência de um único dilúvio universal. Quer defender o continente baseado em parte nas Escrituras, mas também através de estudos geológicos e de antigos relatos indígenas sobre sua história e costumes desde tempos imemoriais.379 Como, porém, fazer isso sem apelar para o critério universal que, como visto, era o de seus inimigos? Clavijero inicia sua resposta a Buffon adotando uma atitude relativista quando declara não concordar com a premissa de que um continente possa se considerar (e ser considerado) como padrão para os demais. Cada um, insiste ele, tem certas características e peculiaridades próprias: a posição mais sensata é estar consciente de que os juízos que se fazem sobre eles são relativos. Ao prosseguir no desenvolvimento de seu argumento, contudo, fica mais difícil manter tal equilíbrio. Clavijero começa listando os diferentes climas encontrados no México (para não mencionar o continente inteiro) a fim de mostrar que eles podem ser bons para diferentes propósitos. Mas sua conclusão é que o melhor clima é aquele que mais se aproxima da “primavera eterna” ou “paraíso terrestre”.380 Ou seja, por um lado, Clavijero certamente ataca o universalismo presente na “racionalidade iluminista”, que parte para generalizações abstratas sem levar em consideração os casos particulares – no caso, os diversos climas. Por outro, não escapa da tendência classificatória, hierárquica e valorativa, característica de seu tempo: não só existem climas melhores que outros, como existiria, ainda que como referência (como o Bem platônico), um “clima perfeito”, critério para o julgamento dos de379  Alguns trechos de seu argumento, contido nas Disertaciones sobre a questão da inundação da América, estão reproduzidos nos Documentos incluídos ao final deste texto. 380  Cf. CLAVIJERO, Francisco Javier. Historia antigua de México. Edición y prólogo de R. P. Mariano Cuevas. México: Editorial Porrúa, 1964, pp. 98-130.

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mais. A diferença é que a base de seu universalismo provém da religião, aliada à história, e não da razão.381 Ainda assim, entendemos que o relativismo do autor demonstra uma atitude crítica – filosófica, histórica e política – ao questionar profundamente o pressuposto de que outras partes do mundo devam ser entendidas e avaliadas segundo os critérios do Velho Mundo. É importante notar, contudo, que os argumentos nos quais embasa uma postura tão moderna (antropologicamente falando), que critica a Ilustração num sentido que antecipa a atitude romântica característica do século XIX, parece, em muitos momentos, não possuir outra alternativa, senão recorrer a lógicas e racionalidades tradicionais. Gloria Ramos parece ter razão ao afirmar que a crítica histórica que Clavijero faz dos acontecimentos e dos historiadores, que adotam pontos de vista diferentes dos seus – Boturini, Torquemada, padre Acosta, o intérprete da Coleção Mendoza, Betancourt, Buffon, De Pauw –, parece bem fundamentada. Pois além de se afiançar nas leis naturais, Clavijero sabe fazer uso, enquanto fontes, de historiadores com reconhecido valor histórico.382 Também consideramos interessante a atribuição, pela autora, da modernidade da história de Clavijero à forma sociológica como estuda o desenvolvimento histórico dos povos indígenas do México, visto como um fenômeno social de raízes eminentemente pré-hispânicas.383 Essas considerações nos levam a concluir que a capacidade de articulação e de crítica epistemológica pelos jesuítas hispano-americanos das teses ilustradas revelam um conhecimento por eles do que se discutia e se tinha como o mais avançado ou científico no momento. Além de moldar sentimentos patrióticos de diferentes repúblicas latino-americanas, a produção decorrente da “Polêmica do Novo Mundo” contribuiu para que possamos vislumbrar não só as divergências sobre história natural e a história dos povos, como também do próprio fazer 381  Cf. DOMINGUES, Beatriz Helena. “La percepción de Clavigero sobre América y los americanos desde la perspectiva del exilio”. In: ALFARO, Alfonso; IBARRA GONZÁLEZ, Ana Carolina; REYNOSO, Arturo; ESCAMILLA GONZÁLEZ, Francisco Iván. Francisco Xavier Clavigero. Un humanista entre dos mundos: entorno, pensamiento y presencia. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, UNAM, Instituto de Investigaciones Históricas, 2015, pp. 277-297. 382  Cf. GRAJALES RAMOS, Gloria. Nacionalismo incipiente en los historiadores coloniales, estudio historiográfico. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1961, pp. 101-102. 383  Cf. Id., Ibid, p. 104.

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história: de discutir pressupostos do local e do universal, do verdadeiro e do falso, de qualidade dos testemunhos; em suma, talvez eles tivessem a vantagem de conhecer melhor o inimigo do que o inimigo a eles, sem que isso tenha significado uma vitória na querela naquele contexto.384 Uma dificuldade extraordinária era a de adaptar a escolástica a outros tempos tão avessos a ela.385

América portuguesa Se nos ampararmos na bibliografia sobre a “Polêmica do Novo Mundo”, somos induzidos a pensar que na América portuguesa ela não teve qualquer impacto nem gerou quaisquer reações por parte dos jesuítas daqui expatriados. Antonello Gerbi fez referência à região apenas em apêndice no qual conjectura sobre a possibilidade de não ter existido um simples escritor que tenha defendido o Brasil colônia das acusações de Buffon e De Pauw. Gerbi reconhece, contudo, que essa constatação pode ser fruto de seu desconhecimento sobre autores ainda não localizados.386 Apesar de termos encontrado alguns, isso certamente não altera significativamente o quadro: a América espanhola chamou muito mais a atenção da Ilustração europeia em geral, e da francesa em particular, do que a portuguesa. Ou seja, o envolvimento de jesuítas exilados do Brasil contra as teses derrogatórias do Novo Mundo foi bem menos significativo naquele contexto. Não há tampouco indicações de que jesuítas 384  Isso reforça a constatação de Mario Góngora, Richard Morse, J. A. Hansen e de Angel Rama para aquele hispano-americano: o papel decisivo, e não necessariamente obscurantista, dos jesuítas na cidade letrada. Cf. GÓNGORA, Mario. Studies in the Colonial History of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 1975; MORSE, Richard M. O espelho de Próspero. Cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1982; RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985; HANSEN, João Adolfo. “Ilustração católica, pastoral árcade & civilização”. Oficina do Inconfidência, Ouro Preto, MG, ano 4, v. 3, pp. 13-47, 2005. 385  Sobre este tema, ver: DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada. Rio de Janeiro: Museu da República, 2007. 386  Em estudo sobre o Brasil nas luzes francesas, François Moureau afirma que, embora o Brasil tenha gerado certas ambiguidades na reflexão filosófica, científica e política da Europa ilustrada, é forçoso reconhecer que foi a América espanhola que concentrou o interesse dos intelectuais franceses durante as décadas que antecederam a Revolução francesa. Cf. MOUREAU, François. “O Brasil das Luzes francesas”. Estudos Avançados. São Paulo, v. 13, n. 36, pp.165-181, maio/agosto de 1999.

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expulsos do Brasil colônia tenham difundido ideias revolucionárias (anticoloniais) que contribuíssem para a constituição de uma mentalidade antimetropolitana como na América espanhola.387 Porém, isso não nos autoriza a concluir pela inexistência de preocupações semelhantes entre nós, levando-se em conta semelhanças e diferenças em relação com o caso hispano-americano e, em menor medida, com o norte-americano. Um fato que nos parecia particularmente inusitado era que, sendo a Companhia de Jesus uma instituição tão centralizada, os missionários expulsos do Brasil colônia não tivessem expressado sua indignação sobre as teses denegridoras do continente americano como fizeram seus companheiros desterrados da América hispânica.388 É certamente intrigante que a implementação das Reformas Pombalinas, combinada com as referidas teorias dos filósofos ilustrados, não tenha gerado, entre os jesuítas expulsos dos domínios portugueses na América, obras em defesa da “pátria” dirigidas a audiências europeias, conforme aconteceu com os jesuítas exilados da América espanhola. Nossa tese/explicação é de que um sentimento semelhante deve ter acometido os jesuítas expatriados do Brasil colônia, mas não pôde vir à tona – nem mesmo nas reduzidas proporções em que ocorreu na América espanhola –, devido à maior intensidade da repressão a eles em Portugal.389 O maior sucesso das Reformas Pombalinas comparado com as Reformas Bourbônicas e a maior força do antijesuitismo em Portugal do que na Espanha também podem ter contribuído para que a expulsão da Companhia de Jesus causasse menos comoção na América portuguesa do que na Nova Espanha.390 O Despotismo Ilustrado em Portugal empreendeu a expulsão precoce dos jesuítas da metrópole e da colônia, em 1759, e Pombal foi o agente ativo para que a Espanha e a França seguissem o mesmo caminho em 1767. Ao invés de enviar os missionários atuantes na colônia para o exílio em alguma outra parte da Europa, como fez Carlos III da Espanha, o marquês os encarcerou nas masmorras portuguesas. Um cenário certamente nada propício para que 387  Ver, por exemplo, o caso do ex-jesuíta Juan Pablo Viscardo y Guzman, expulso do Peru. 388  Cf. DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada. Rio de Janeiro: Editora do Museu da República, 2007. 389  Esse é o pressuposto de: DOMINGUES, Beatriz Helena. op. cit.. 390  Sobre as comoções verificadas no México, ver o excelente LAFAYE, Jacques. Quetzalcóatl y Guadalupe: La formación de la consciencia nacional en México (1531–1813). México: Fondo de Cultura Económica, 1977.

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os prisioneiros tivessem o mesmo tipo de contato com as ideias então debatidas na Europa que os exilados da América espanhola, e ainda menos para publicarem suas opiniões.391 Ainda assim, da pena de um desses prisioneiros, o padre jesuíta João Daniel (1722-1776), saiu o tratado enciclopédico, no melhor estilo do “Século das Luzes”, intitulado Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas.392 A história da elaboração, sobrevivência e publicação posterior da obra é detetivesca: a singularidade dela começa pelo simples fato de seu texto ter chegado até nós.393 Estabelecido no Estado do Maranhão e Grão-Pará entre 1741 e 1757, João Daniel andou por inúmeras aldeias e fazendas no vale do Amazonas na época de maior opulência da Companhia de Jesus. Segundo Vicente Salles, é possível que a atividade de João Daniel enquanto escritor tenha começado no Colégio do Pará (Belém), que possuía magnífica biblioteca, anotando fatos, tal qual Clavijero no México. Foi expulso da região em 1757 e passou dezoito anos em prisões em Portugal: acredita-se que uma parte da obra foi escrita no forte de Almeida, entre 1758 a 1762, e outra parte na torre de São Julião, onde cumpriu quatorze anos de reclusão e faleceu em 19 de janeiro de 1776.394 De forma que, se comparado com o destino dos jesuítas exilados da América espanhola, o seu e de outros expulsos do Brasil foi ainda mais duro. Ainda que a situação de exílio seja sempre terrível, há uma enorme diferença entre Bolonha e as masmorras portuguesas.395 Uma vez que o objetivo aqui é demostrar seu conhecimento e repúdio às teses sobre a inferiordade do continente americano, dentre as 391  A interpretação do porquê da publicação, ou não, de certos textos, em determinados contextos, pode ser uma perspectiva interessante e rica a se considerar. Essa metodologia é sugerida por LACAPRA, Dominick. Rethinking intellectual history: texts, contexts, language. 2. ed. Ithaca: Cornell University Press, 1985. 392  DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 2 v. 393  Para começar, vale a leitura do prefácio de Vicente Salles à obra: SALLES, Vicente. “Rapsódia Amazônica de João Daniel”. In: DANIEL, João. op. cit., pp. 11-35. v. 1. 394  Cf. SALLES, Vicente. op. cit. Uma resenha mais recente do longo tratado de João Daniel pode ser encontrada em: ALMEIDA E VAL, Vera Maria Fonseca de; FERREIRA, Nazaré. “Máximo rio Amazonas: as joias do tesouro”. Ambiente & Sociedade, Campinas, SP, v. 8, n. 1, pp. 167-174, jan./jun. 2005. 395  Outros jesuítas exilados do Brasil colônia que já perseguimos o itinerário, embora não tenham feito referências explícitas à “Polêmica”, mostram sintonias com o clima de opinião da época. São eles: Anselmo Eckart, autor de Memórias de um Jesuíta prisioneiro de Pombal e David Fáy, ambos também expulsos, como João Daniel, em 1757.

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inúmeras possibilidades oferecidas pelo tratado enciclopédico de João Daniel, optamos por destacar sua defesa do clima, da flora e da fauna da Amazônia, que busca provar – como faziam os jesuítas hispânicos e os “pais fundadores” norte-americanos em relação às suas respectivas regiões –, a inveracidade ou mesmo absurdidade das teses dos ilustrados europeus, meramente especulativas e pretensamente universalistas. Em seu entender, como no de Clavijero, isso se devia ao desconhecimento dos lugares (ele ficara na Amazônia dezessete anos) aliado à incapacidade de discernir entre fontes confiáveis ou não. Além de criticar a forma como Buffon e outros faziam história natural, regional ou de populações, sua singularidade reside no entrelaçamento entre argumentos naturais, teológico-morais e ecológicos. Há trechos nos quais o autor recorre ao mesmo tempo à história natural, à teologia e à moralísitca católica, lado a lado a sugestões concretas para o desenvolvimento da Amazônia. Seu método consiste em interagir o procedimento observacional (empírico, indutivista) com o escolástico (dedutivista, que classifica e observa partindo do pressuposto de uma complementaridade entre os mundos lunar e sublunar, natural, humano e divino). Merece ser levada em conta a preocupação do autor (historiador), como a de outros jesuítas, com a utilização de fontes primárias: observações pessoais, relatos de outros missionários (quase sempre jesuítas), testemunhos e/ou histórias narradas por índios, embora ele também frequentemente recorresse ao procedimento enciclopédico universalizante, típico de seu tempo.396 O próprio título – Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas – sugere riquezas escondidas ou já descobertas, de toda forma insuficientemente exploradas, pelos portugueses ou por outros que delas tivessem notícias. Na exposição da geografia, da fauna e da flora da região transparece certa familiaridade com os relatos de certos viajantes europeus, como La Condamine, citado literalmente. Daniel faz também referências explícitas e implícitas a filósofos ilustrados europeus – Buffon, De Pauw, Raynal e Montesquieu – que formularam teses derrogatórias sobre o Novo Mundo e seus habitantes. Podemos conjecturar sobre três possíveis motivações ou alvos, não excludentes, de seu texto: informar à Europa, “advertir”/“ameaçar” as autoridades portuguesas e enaltecer a pátria. 396  Isso era quase inevitável em um homem que era, ao mesmo tempo, missionário, cientista natural, médico, administrador, político e educador, católico e ilustrado: uma mistura de renascentista e enciclopedista, João Daniel detinha informações, mais ou menos detalhadas, sobre uma ampla gama de objetos.

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Em reação às teses que postulavam a inferioridade da natureza e da população americana, o missionário evocou argumentos naturalistas, religiosos e “patriotas” para defender a fauna, a flora e as riquezas da Amazônia, mas também as do Brasil colônia, semelhantes àqueles produzidos na Europa sobre regiões da América espanhola. O profundo conhecimento de detalhes sobre o reino mineral, o vegetal e o animal, bem como do elemento humano do Amazonas – sempre enfatizando a interação entre eles – fornecem-lhe o material com o qual se propõe a chamar atenção das autoridades portuguesas sobre o tesouro que estariam perdendo caso não explorassem melhor a região – um aspecto não encontrado em Clavijero –, e ao mesmo tempo saciar uma Europa sedenta de notícias sobre o “exótico” Novo Mundo. Aqui é possível perceber também, além da nostalgia pela terra que foi forçado a abandonar e da intenção propagandística, o início de uma consciência sobre a singularidade, a individualidade da Amazônia e da colônia portuguesa. Ao tratar da temática da fauna, vem especialmente à tona o diálogo empreendido entre história natural, racionalismo ilustrado e filosofia escolástica. Ao descrevê-la, saltam aos olhos referências às teses dos pássaros não canoros da América: “não só cantam como são muito mais afinados que os europeus”. Quando descreve o clima e as possibilidades econômicas e humanas da Amazônia, busca mostrar como os trópicos não só oferecem amplas e fáceis possibilidade de um desenvolvimento – contrapondo-se à teoria climática de Montesquieu (partes 1, 2 e 3 do tratado) –, como também uma lição de moralidade: “as árvores da Amazônia são mais recatadas que as Europa, pois nem mesmo no inverno ficam nuas de suas folhas, como ocorre nas zonas temperadas”. Já no que diz respeito aos índios, algumas vezes discorda, mas outras concorda com a teoria depawniana sobre a inferioridade dos habitantes do Novo Mundo em relação à Europa. Nisso se afasta de Clavijero, para quem De Pauw é o principal inimigo, talvez porque esteja mais perto dos índios aos quais se refere. Ainda que as críticas de João Daniel às teses de Buffon e De Pauw não tenham vindo à tona na segunda metade do século XVIII, como ocorreu com os jesuítas espanhóis, devido à forte repressão empreendida 338 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

pelo Marquês de Pombal, o teor delas parece estar em sintonia com seus colegas de sotaina, levando-se em conta as peculiaridades assinaladas.397 Como na América espanhola, o estudo do pensamento jesuítico na América portuguesa coloca em xeque a interpretação relativamente difundida dos jesuítas enquanto obstáculos à Ilustração: pelo contrário, diagnostica em seus escritos uma assimilação – seletiva e católica – de ideias ilustradas, que em seus escritos coexistem com uma tentativa de adaptação da visão escolástica de mundo.398 Isso sem dúvida os capacitou a elaborar uma epistemologia alternativa à dos filósofos ilustrados, tal qual assinalada por Cañizares-Esguerra. No caso da América espanhola, isso talvez ajude a explicar a capacidade de articulação do pensamento de Clavijero e de outros ao se contraporem aos filósofos ilustrados. Os jesuítas conheciam os textos históricos sobre o continente americano, tendo sido inclusive os redatores de muitos deles. E estavam também afinados em outros campos, devido ao ecletismo de suas formações. No caso português, vimos que a crítica de João Daniel não assume a forma militante de Clavijero e de outros hispano-americanos. Seu tratado questiona Buffon e De Pauw, mas seu objetivo principal parece ser a denúncia do que estava se perdendo na Amazônia desde a expulsão dos jesuítas, tanto em termos de trabalho missionário quanto de ocupação/civilização da região. Talvez por não saber sequer se seria lido, e se o fosse, teria que passar antes disso pela censura pombalina, não perde oportunidade de, ao criticar os filósofos europeus, fazer sua 397  No texto de João Daniel nos parece possível perceber uma perspectiva brasileira em diálogo, ainda que silencioso, com a ferrenha disputa. O texto só veio a ser publicado em fins do século XIX, quando os debates em voga envolviam o escravismo, o racismo e o evolucionismo. Diferentes considerações e recomendações do autor referentes às pragas/tesouros do Amazonas talvez nos permitam sugerir que ele estava não apenas afinado com seu tempo, mas em vários aspectos – como a concepção de evolução entre espécies animais chegando até o homem, a preocupação com o uso moderado da natureza etc. – à frente dele. Em uma espécie de “darwinismo avant la lettre”, ele assinala uma ligação evolutiva entre répteis e aves, entre macacos e homens. Indiscutivelmente, contudo, ele parecia almejar muito não só o retorno da Companhia de Jesus, mas o seu próprio às terras amazônicas. Além do livro de Gerbi, algumas repercussões tardias da “Disputa do Novo Mundo” nesses debates literários podem ser verificadas no excelente Estilo Tropical, de Roberto Ventura. 398  Sobre este ponto, ver: GÓNGORA, Mario. Studies in the Colonial History of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 1975; MORSE, Richard M. O espelho de Próspero. Cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1982; RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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propaganda dos progressos passados e futuros que a presença jesuítica na Amazônia proporcionou e poderia vir a proporcionar.

As reações dos “pais fundadores” às teses ilustradas derrogatórias do Novo Mundo Conforme visto, entre os jesuítas expulsos da América espanhola os argumentos históricos e políticos tenderam a superar os naturais, apesar do mencionado patriotismo criollo ter se amparado, em grande medida, precisamente na defesa da geografia, da natureza. No caso da América portuguesa, mais precisamente João Daniel, nos foi possível detectar um certo equilíbrio entre argumentos históricos (populacionais e missionários) e os naturais, talvez pelas peculiaridades de sua biografia e das condições de sua escrita. Nos recém-constituídos Estados Unidos da América do Norte os argumentos da história natural em reação a Buffon parecem ter dado o tom da construção de um sentimento patriótico, que nesse caso poderíamos já chamar de nacional. Mais uma vez, isso não implica a inexistência de reações a De Pauw, e especialmente a Raynal, principalmente por parte de Benjamin Franklin e de Thomas Jefferson.399 Nos anos 1770, os “pais fundadores” estavam extremamente envolvidos com a elaboração da primeira Constituição, que decidiria se o país seria uma confederação ou uma federação, bem como com o reconhecimento internacional da nova nação na Europa, com destaque para a França.400 Segundo o his399  Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996. Ver também os interessantes comentários sobre a polêmica dos “pais fundadores”, especialmente com Raynal, em SCHLESINGER, Jr., Arthur. Os Ciclos da História Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. Na introdução à Revolução da América, de Raynal, os prefaciadores da tradução da obra para o português apontam algumas limitações da interpretação de Schlesinger. Cf. RAYNAL, Guillaume-Thomas François. A Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993; PRADO, Maria Lígia. “Natureza e identidade nacional nas Américas”. In: _____. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. 2. ed. São Paulo: Editora da USP, 2004, pp.179-216. 400  Nos meses que precederam a primeira Constituição dos Estados Unidos, houve um acirrado debate entre duas possibilidades de estruturação da jovem república: confederação ou federação. O primeiro modelo, defendido por Jefferson, previa uma autonomia quase integral dos estados e a unificação apenas em aspectos relacionados com política externa, guerra, moeda e

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toriador norte-americano Arthur Schlesinger, as estimativas europeias negativas sobre o presente e o futuro americano alimentaram um sentimento de insegurança e de precariedade sobre a sobrevivência nacional entre os “pais fundadores”. As teorias em vigor na Europa mostravam que, ao invés da visão da idílica felicidade lockeana – “no começo o mundo inteiro era como a América” –, o que predominava era “a visão de um cenário de repulsiva degenerescência”.401 Embora os pais fundadores fossem vigorosos no revide, a natureza do ataque dificilmente poderia ter aumentado sua confiança no futuro da aventura em que estavam empenhados. O ceticismo europeu combinado com o raciocínio calvinista e com a ocasione maquiavélica fazia-os agudamente cônscios da imprevisibilidade de seu extraordinário empreendimento. O triste fim das cidades-Estado gregas e a queda do império romano lançavam uma sombra de dúvida sobre o futuro da república americana.402

Os fundadores dos Estados Unidos lidavam concretamente com dúvidas e inseguranças sobre a viabilidade de seu empreendimento, ou seja, sobre a possiblidade de que a América pudesse ter sido um erro.403 Talvez por isso as formulações de Raynal – que explicava como a inocência europeia era ameaçada pela depravação da América, e que escrevera que “a América derrama todo tipo de corrupção na Europa” – os tenham irritado mais do que as demais. Pouco depois da independência dos Estados Unidos, Raynal instituiu, na Academia de Lyon, um prêmio para o melhor ensaio sobre a questão: “a descoberta da América foi uma benção ou uma maldição para a humanidade? Se foi uma benção, como conservar e intensificar seus benefícios? Se foi uma maldição, como reparar o prejuízo?”404 Isso atingia em cheio a crença dos norcorreios. Já o modelo federativo, defendido por Hamilton, previa a criação de um Estado central, da União, que embora concedesse grande autonomia aos estados membros, teria sua esfera de poder centralizado bastante ampliado em relação à confederação. Venceu a federação em 1787. 401  SCHLESINGER, Jr., Arthur. Os Ciclos da História Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 8. 402  Id. Ibid., pp. 10-11. 403  Cf. Id. Ibid., p. 9. 404  LUBELL, Samuel. The Future of the American Politics, 1952, pp. 200; 203 Apud SCHLESINGER, Jr., Arthur. op. cit., p. 10.

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te-americanos de então na suposta “inocência americana”.405 Segundo Jefferson, nem sequer Buffon jamais dissera que os europeus degeneravam na América. Só Raynal fora tão longe, talvez seguindo o mestre De Pauw. Embora concordemos com Schlesinger que os “pais fundadores” não se tinham “como um bando de santos ungidos pela Providência” e que “eram imperturbáveis realistas, empenhados, em desafio à história e à teologia, numa jogada de riscos monumentais”, apesar disso, ou precisamente por isso, eles algumas vezes acenavam para argumentos perigosamente nacionalistas. Poderíamos caracterizar algumas reações norte-americanas como infantis, mas também nos parecem conter uma boa dose de humor. Vejamos dois exemplos. Em um encontro em Paris para negociar o reconhecimento francês à independência dos Estados Unidos, Franklin e Jefferson ofereceram um jantar para o “diminuto abade Raynal” e vários outros convidados. Franklin teria pedido a todos que se colocassem de pé a fim de tirar a limpo a tese de De Pauw e Raynal sobre a baixa estatura dos americanos em relação aos europeus: “Vamos decidir essa questão pelo fato de que temos diante de nós”.406 Claro, os americanos eram mais altos. Em 1787, durante uma estadia na Inglaterra, a esposa de Franklin observou que os pássaros de lá não cantavam como os da América. No mesmo ano, Freneau e Barlow publicavam The anarchiad (O anarquista), “uma sátira política em que De Pauw era apresentado todo contente por ter inventado um telescópio que diminuía o tamanho dos objetos à medida que estes se distanciavam”.407 Thomas Jefferson, o mais expressivo representante dos Estados Unidos no debate sobre o Novo Mundo, tentava nada menos que uma refutação em regra das teses de Buffon e De Pauw em Notes on Virginia (1781-1782), obra reconhecida enquanto excelente história natural, não só da Virgínia, mas da América do Norte. 408 Destinada ao público fran405  Cf. SCHLESINGER, Jr., Arthur. Os Ciclos da História Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 11. Segundo o autor, a crença na suposta inocência da América é uma ilusão perniciosa. Não é possível falar em perda de inocência para um país ou povo onde isso nunca existiu. 406  Esse caso é relatado por Gerbi, Schlesinger Jr. e Branding, entre outros. 407  Eles grandes apreciadores da obra de Thomas Jefferson. Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996, p. 195. 408  Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996, p. 197.

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cês, nela a América é apresentada enquanto obra-prima da criação: a Europa seria uma primeira ideia, uma produção tosca, antes que o fazedor conhecesse o seu negócio, ou soubesse o que realmente queria fazer.409 Às absurdas teses de Buffon, Jefferson contra-argumenta que as diferenças de clima, de terra, de alimentação e de cuidados podem sim influir sobre as dimensões dos indivíduos, mas sempre dentro dos limites fixos da espécie (que têm suas dimensões determinadas ab aeterno). Questiona particularmente a suposta não existência de grandes animais na América, bem como a presumida umidade de todo o continente. O mamute, ou grande búfalo (habitante das zonas temperadas da América do Norte), seria cinco vezes maior que o elefante (que tampouco é europeu), e não encontraria contrapartida em outras partes do continente. Sobre a suposta umidade do Novo Mundo, sugere que “Buffon pode ter se amparado apenas nas principais descrições da América, que foram escritas por espanhóis e portugueses, habitantes de países que se encontram entre os mais áridos do globo”. Segundo ele, tais relatos foram influenciados por sua origem; “um irlandês, um sueco ou um finlandês provavelmente teriam considerado a América do Sul uma terra seca e árida”.410 Ao enveredar pela defesa dos homens americanos, o alvo muda para Raynal e De Pauw. No que concerne à tese do abade sobre a degeneração dos homens na América, que estava implícita, mas não explicitada em Buffon, nada mais direto que um exemplo: “apesar de sua juventude, a América já dera ao mundo um Washington, um Franklin” etc. Já no Velho Mundo “foram necessários dezesseis séculos para formar um Newton”.411 Ou seja, por um lado encontramos aqui uma crítica ao que considera fontes apropriadas ou não para descrever a Virgínia ou os Estados Unidos. A nosso ver, esse tipo de raciocínio aproxima seu argumento das críticas epistemológicas feitas pelos jesuítas expulsos da América ibérica aos pressupostos históricos dos ilustrados europeus: o questiona409  Conforme Gerbi, Jefferson chegou a enviar um exemplar assinado para Buffon. 410  JEFFERSON, Thomas. Notes on Virginia, pp. 461-462 Apud GERBI, Antonello. op. cit., p. 199. Franklin, por exemplo, achara a Inglaterra muito úmida, comparada com Filadélfia. 411  Em um encontro com Buffon, Jefferson apresentou as “provas” do tamanho das espécies americanas, algumas delas expostas no saguão de sua casa. Em 1789, exortou o reitor de Harvard a promover o estudo da história natural americana “para fazer justiça ao nosso país, suas produções e seus gênios”. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996, pp. 203-205. De acordo com Schlesinger, tal encontro teria sido com De Pauw.

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mento da crença em fontes de segunda mão, ou de viajantes que apenas passavam pelas regiões que visitavam, acreditando em testemunhas não gabaritadas e ainda expressando visões de mundo desprovidas de qualquer relativismo cultural ou histórico. Jefferson atribuía os erros sobre o clima, fauna e flora da América à precipitação dos filósofos europeus, que os levava a fazer afirmações generalizantes a partir de bases muito frágeis. Como os jesuítas ibéricos, Jefferson se negava a valer-se de “relatos de outros” (que certamente não pesaram nem mediram os animais que supostamente viram), afirmando sua competência por sua experiência como nativo e morador da América do Norte, e por descobertas arqueológicas recentes. Por outro lado, seu argumento em defesa dos animais de grande porte dos Estados Unidos, de forma consciente ou não, acaba por refletir uma preocupação em demonstrar a singularidade da América do Norte em relação ao restante do continente que traz em seu bojo a ideia de um excepcionalismo americano, ainda incipiente, mas que tomaria a forma da doutrina do “Destino Manifesto” em algumas décadas.412 Isso talvez ilumine o teor de suas críticas a De Pauw, cujo pior erro foi estender a tese de Buffon sobre a inferioridade da natureza ao homem americano: pois os peles-vermelhas, garante, não são inferiores aos europeus nem em seus atributos físicos nem em suas qualidades mentais. Daí considerar que o único autor respeitável a defender a tese da inferioridade da América teria sido o explorador espanhol Francisco de Ulloa.413 Mas, como seu contato foi apenas com os índios da América meridional, e após dezesseis gerações de escravidão avultante, não ousou estender seus comentários “aos índios pr­é-colombianos e/ou aos pele-vermelha, que não podem ser considerados inferiores aos brancos, como o podem os negros”.414 Jefferson chegou a expressar um desejo de que o referido autor 412  Nas décadas que se seguiram à independência, em que se criava um novo país, esse aparecia aos participantes do empreendimento como uma nova experiência republicana, inédita desde os romanos. Porém, o sucesso do experimento conduziu os norte-americanos a explicá-lo não pela história, ou por suas qualidades enquanto povo, mas por sua condição de escolhidos da Providência, de ungidos por um Destino Manifesto, que atribuía os ganhos do passado a uma condição a-histórica: a eleição divina. 413  Francisco de Ulloa (morto em 1540) foi um explorador espanhol que viajou pela costa ocidental do México como comissário de Hernán Cortés. Seus relatos tiveram grande influência na cartografia do século XVII. 414  Segundo Gerbi, Jefferson temia que suas expressões contrárias à escravidão fossem impopulares na Virgínia e por isso limitou a distribuição das Notes a poucos amigos como James

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pudesse ler suas Notes e visitar os EUA a fim de comprovar as diferenças: “uma pessoa que conhece tão bem a parte meridional do nosso mundo e que deu informações tão excelentes sobre ele, estaria talvez disposta a conhecer algo sobre a parte meridional”.415 Segundo Madison, o próprio Buffon, polemizando com De Pauw, já havia limitado sua difamação ao continente à América meridional.416 A limitação do argumento, uma vez mais, deve-se à assunção de que algumas teses sobre a inferioridade do continente excluíam a América do Norte. Em suma, Jefferson, enquanto expressivo da atitude dos fundadores dos EUA no combate às teses ilustradas sobre a inferioridade da América, utilizou-se a rodo de um mero rebate, mas foi também crítico da procedência das fontes e da suposta universalidade das premissas dos filósofos ilustrados. Aqui o empirismo e o recurso a exemplos locais, também encontrados nos jesuítas de diferentes procedências, parecia ser uma forma de, – para conter a insegurança e o complexo de inferioridade assinalados por Schlesinger –, enfatizar grandezas não apenas territoriais e naturais, mas especialmente a do povo, ao qual se prometia um destino grandioso.

Considerações finais As reações dos jesuítas exilados e as dos “pais fundadores” podem ser melhor compreendidas se levarmos em consideração os contextos de onde falavam e os possíveis interesses em jogo. De uma maneira geral, a oposição a Buffon e De Pauw proveniente de ibero-americanos exilados na Europa, ou de norte-americanos empenhados na construção de seu país, alimentou um sentimento patriótico: mas se tratavam de patriotismos bem diferentes. No caso dos jesuítas expulsos da Madison e James Monroe. Seu argumento parece quase uma antecipação do utilizado viajante francês Alexis de Tocqueville por seu país 30 anos mais tarde, ao comparar a raça indígena com a negra. 415  JEFFERSON, Thomas. Carta a William Carmichael, 15/12/1787, Works Apud GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996, p. 202. 416  Cf. GERBI, Antonello. op. cit., p. 572, nota 459.

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América espanhola, que escreviam do exílio nos Estados Pontifícios, havia uma mistura entre o sentimento nostálgico das pátrias que foram forçados a abandonar em 1767 e a convivência com o clima intelectual europeu onde circulavam as teses dos detratores da América. Tanto que suas obras foram endereçadas ao público europeu. Quanto aos jesuítas desterrados do Brasil colônia, redigindo das masmorras portuguesas, o Tesouro de João Daniel leva-nos à conclusão de que o sentimento nostálgico se misturava com a esperança de retorno da Companhia de Jesus à Amazônia, mas também a outras partes da América. Talvez por isso o público alvo fosse ambíguo: podia ser o europeu, mas mais provavelmente endereçava-se às autoridades portuguesas. Os “pais fundadores”, como a própria nomenclatura indica, estavam atuando na criação de um novo país, que ficara independente da Inglaterra em 1776. Não coincidentemente, o público almejado foi o francês, em parte por ter sido o primeiro país europeu a reconhecer a independência dos Estados Unidos, mas também por ser a pátria de Buffon e Raynal. Os primeiros escreviam de fora, e sobre o passado, os segundos de dentro, no calor dos acontecimentos. Não é estranho, portanto, que em ambos os casos as teses buffon-depauwnianas fossem consideradas inaceitáveis, ainda que o tipo de revide tenha tido semelhanças e diferenças, que tentamos arrolar e discutir.

Roteiro bibliográfico As fontes primárias sobre a “Polêmica do Novo Mundo” incluem: 1) As teses publicadas na Europa pelos filósofos ilustrados, dentre as quais destacamos: BUFFON, Georges-Louis Leclerc. De l’homme (1747-1777). Editado por Michèle Duchet. Paris: Maspero, 1971; DE PAUW, Cornelius. Recherches philosophiques sur les Américains [...]. Berlin: G. J. Decker, 1770; RAYNAL, Guillaume-Thomas François. Histoire philosophique et politique, des établissemens et du commerce des Européens dans les deux Indies. Geneve: Jean Leonard Pellet, 1781. 10 v.; _____. A Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993; ROBERTSON, William. The History of America. London: [s.n.], 1772. 2 v. 2) As reações 346 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

americanas às referidas teses no fim do século XVIII foram muitas. Aqui destacamos as que consideramos as mais representativas dos casos hispano, luso e norte-americano, respectivamente: CLAVIJERO, Francisco Javier. Historia antigua de México. Edición y prólogo de R. P. Mariano Cuevas. México: Editorial Porrúa, 1964; DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 2 v.; JEFERSSON, Thomas. Notes on the State of Virginia. Chapel Hill, N. C.: University of North Caroline Press, 1955. Sem dúvida, para o estudo do tema é indispensável a leitura do clássico: GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). Companhia das Letras: São Paulo, 1996. Nele, os leitores encontrarão referências completas das obras de muitos outros jesuítas exilados de diferentes partes da América espanhola sobre as histórias de suas respectivas pátrias. Desde então, foram publicados vários trabalhos abordando a temática, seja aprofundando pontos específicos, seja localizando contextos não incluídos no livro de Gerbi. Eis algumas sugestões: BRANDING, David. Orbe Indiano: De la monarquía católica a la República criolla (1492-1867). México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1991; CAÑIZARESESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, epistemologias e identidades no mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011; CHACHAM, Vera. “O lugar da América na história: História natura, estado de natureza, objeto da cobiça dos homens”. Varia Historia, Belo Horizonte, MG, n. 30, pp. 95-111, jul. 2003; DOMINGUES, Beatriz Helena. Tão longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada. Rio de Janeiro: Museu da República, 2007; KALIL, Luis Guilherme Assis; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. “Historia atlántica e intelectualidad: una entrevista con Jorge Cañizares-Esguerra”. História da Historiografia, Ouro Preto, MG, n. 7, pp. 14-28, nov./dez. 2011; OLIVEIRA, Flávia Preto de Godoy. “Epistemologia, Crônicas e Natureza: uma reflexão sobre a chamada Polêmica do Novo Mundo”. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, XXVI, 2011, São Paulo, SP. Anais... São Paulo, SP: ANPUH-SP, 2011, pp. 1-14; VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; _____. “Leituras de Raynal e a Ilustração na América Latina”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n. 3, pp. 40-51, set./dez. 1988. As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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Para um panorama do clima de opinião na Europa e na América no século XVIII, destacamos: BRUIT, Héctor H. “A historiografia jesuítica americana do século XVIII”. Revista de História da UPIS, Brasília, DF, v. 1, pp. 61-78, 2005; CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992; DARNTON, Robert. “Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie”. In: _____. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, pp. 247-275; GÓNGORA, Mario. Studies in the Colonial History of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 1975; GRAJALES RAMOS, Gloria. Nacionalismo incipiente en los historiadores coloniales, estudio historiográfico. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1961; MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: Cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1982; PAGDEN, Anthony. Spanish Imperialism and the Political Imagination. New Haven and London: Yale University Press, 1990; _____. The Uncertainties of Empire: Essays in Iberian and Ibero-American Intellectual History. Aldershot, Hampshire: Variorum, 1994; RAMA, Angel. “Autonomía literaria americana”. In: La crítica de la cultura en America Latina. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985, pp. 66-81; _____. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. A propósito das visões sobre o homem e a natureza americana anteriores ao século XVIII, vale a pena a leitura dos seguintes clássicos: GERBI, Antonello. La naturaleza de las Indias Nuevas: de Cristóbal Colón a Gonzalo Fernández de Oviedo. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1978; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. Uma excelente obra literária que ilumina alguns encontros e desencontros entre o Novo Mundo e a Europa é: CARPENTIER, Alejo. O concerto barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. A novela de Carpentier foi abordada em referência à “Polêmica do Novo Mundo” por: RUIZ, Rafael. O espelho da América: de Thomas More a Jorge Luis Borges. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. Dentre os inúmeros estudos sobre a participação da América espanhola na “Polêmica do Novo Mundo”, destacamos alguns que lidam com o caso mexicano, mais especificamente Clavijero, que foi 348 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

o nosso foco neste ensaio: ARAÚJO, Amanda Brandão. A Historia Antigua de México de Clavijero e a Disputa do Novo Mundo: configuração de identidades e fundação da consciência de nacionalidade mexicana. 2014. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura)–UFPE, Recife, 2014; ARMELLA, Virginia Aspe. “Las disertaciones de Clavijero y su supuesta disputa en contra de los ilustrados europeos”. Metafísica y Persona, Málaga, a. 6, n. 12, pp. 185-209, jul./dec. 2014; ARREGUI, Frederico Álvarez. “El debate del Nuevo Mundo”. In: PIZZARO, Ana (Org.). América Latina: Palavra, literatura e cultura. São Paulo/ Campinas: Memorial/Editora da Unicamp, 1994, pp. 35-66. v. 2; DECORME, Gerard. La obra de los jesuitas mexicanos durante la epoca colonial, 1527-1767. México: Antigua Librería Robredo de José Porrúa e Hijos, 1941. t. 1; DOMINGUES, Beatriz Helena. “La percepción de Clavigero sobre América y los americanos desde la perspectiva del exilio”. In: ALFARO, Alfonso; IBARRA GONZÁLEZ, Ana Carolina; REYNOSO, Arturo; ESCAMILLA GONZÁLEZ, Francisco Iván. Francisco Xavier Clavigero. Un humanista entre dos mundos: entorno, pensamiento y presencia. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, UNAM, Instituto de Investigaciones Históricas, 2015, pp. 277-297; LAFAYE, Jacques. Quetzalcóatl y Guadalupe: La formación de la consciencia nacional en México (1531–1813). México: Fondo de Cultura Económica, 1977; MANEIRO, Juan Luis, FABRI, Manuel. Vidas de mexicanos ilustres del siglo XVIII. México: UNAM, Coordinación de Humanidades, 1989; _____; GÓMEZ FREGOSO, José Jesús. Francisco Xavier Clavijero. Puebla: Universidad Iberoamericana, 2004. RONAN, Charles E. Francisco Javier Clavijero, S.J. (1731-1787), Figure of the Mexican Enlightenment; his Life and Works. Roma/Chicago: Institutum Historicum S.I./Loyola University Press, 1977. As reações às teses ilustradas denegrindo o Novo Mundo na América portuguesa foram pouco estudadas até então. O destaque aqui é para o Tratado sobre a Amazônia do jesuíta João Daniel. Sobre a temática e o autor, ver: ALMEIDA E VAL, Vera Maria Fonseca de; FERREIRA, Nazaré. “Máximo rio Amazonas: as joias do tesouro”. Ambiente & Sociedade, Campinas, SP, v. 8, n. 1, pp. 167-174, jan./jun. 2005; DOMINGUES, Beatriz H. “The Amazon and the Uraguay in the ‘Dispute of the New World’. Mediterranean Studies: The Journal of the Mediterranean Studies Association Manchester, v. 15, 2006, pp. 127-150; As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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_____. “Tão Longe, tão perto: a Amazônia e a Ilustração”. In: BORGES, Célia Maia (Coord.). Narrativas e imagens. Juiz de Fora, MG: Editora da UFJF, 2008, pp. 185-214; _____; SANTOS, Breno Machado dos. “Sob o signo das Luzes: o pensamento jesuítico e a Ilustração nas cartas do padre David Fáy”. História Unisinos, São Leopoldo, RS, v. 13, n. 3, pp. 233-240, set./dez. 2009; SALLES, Vicente. “Rapsódia Amazônica de João Daniel”. In: DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, pp. 11-35. v. 1. No que concerne à participação de representantes dos então recém-constituídos Estados Unidos da América do Norte na “Polêmica do Novo Mundo”, sugerimos: LIMA, Lílian Martins de. “O mundo americano na produção escrita inglesa: séculos XVI, XVII e XVIII”. História, São Paulo, v. 31, n. 1, pp. 185-209, jan./jun. 2012; PRADO, Maria Lígia. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. 2. ed. São Paulo: Editora da USP, 2004; SCHLESINGER, Jr., Arthur. Os Ciclos da História Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

Extratos de documentos CLAVIJERO, Francisco Javier. Historia antigua de México. México: Departamento Editorial de Las Bellas Artes, 1917, pp. 212-214. DISERTACIONES SOBRE LA TIERRA, LOS ANIMALES Y LOS HABITANTES DE MÉXICO: EN QUE SE CONFIRMA EN PARTE LA HISTORIA ANTIGUA DE AQUEL PAÍS, SE ILUSTRAN MUCHOS ARTÍCULOS DE HISTORIA NATURAL, Y SE CONFUTAN MUCHOS ERRORES PUBLICADOS SOBRE AMERICA POR ALGUNOS CELEBRES ESCRITORES MODERNOS AL LECTOR Las disertaciones que ofrezco al público son necesarias, no solamente útiles, para ilustrar la historia antigua de México, y para confirmar la verdad de muchas especies contenidas en ella. La primera tiene por objeto suplir la falta de noticias sobre la primera población del 350 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Nuevo Mundo. La segunda, aunque parecerá fastidiosa, no deja de ser útil, para conocer los fundamentos de nuestra cronología, y ayudar a los que emprendan escribir la historia de los países de Anáhuac. Todas las otras podrán servir a disipar en los lectores incautos, los errores a que los habrán inducido los escritores modernos, que desprovistos de conocimientos sólidos, se han puesto a escribir sobre la tierra, los animales y los hombres de América. ¡Cuántos, al leer, por ejemplo, las investigaciones de Mr. de Paw, no se llenarán la cabeza de ideas disparatadas y contrarias a lo que yo digo en mi Historia! Aquel escritor es un filósofo a la moda; hombre erudito en ciertas materias en que más le convendría ser ignorante, o callar a lo menos; realza sus discursos con bufonadas y maledicencias, ridiculizando todo lo más sagrado que se venera en la Iglesia de Dios, y mordiendo a cuantos se le presentan, sin ningún respeto a la inocencia y a la verdad; decide francamente, y en tono magistral, citando a cada passo a los escritores americanos, y protestando que su obra es fruto de diez años de sudores. Todo esto hace muy recomendable a un escritor, para con cierta clase de lectores, en el siglo filosófico en que vivimos. Su mordacidad, el desprecio con que habla de los más respetables padres de la Iglesia, la mofa que hace de los sumos pontífices, de los soberanos y de las órdenes religiosas, y la poca estima en que tiene a los libros santos, en vez de disminuir su autoridad, podrá aumentarla, en esta edad en que se han publicado más errores que en todas las precedentes, y en que tantos literatos tienen a honra escribir con desenfreno y mentir con descaro; en que no se aprecia al que no es filósofo, y en que no es filósofo quien no se burla de la religión, y quien no adopta el lenguaje de la impiedad. El objeto de la obra de Mr. de Paw es persuadir al mundo que en América la naturaleza ha degenerado enteramente en los elementos, en las plantas, en los animales y en los hombres. La tierra, cubierta de ásperos montes y peñascos, y en las llanuras, bañada de aguas muertas y podridas, o sombreada por bosques tan espesos que no pueden penetrar en ellos los rayos solares, es, según aquel autor, sumamente estéril, y más abundante en plantas venenosas que todo el resto del mundo; el aire mal sano, y mucho más frío que el del otro continente; el clima contrario a la generación de los animales. Todos los propios de aquellos países eran más pequeños, más disformes, más débiles, más cobardes, más estúpidos que los del mundo antiguo, y los que se han transportado allí de otras As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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partes, inmediatamente han degerado, como ha sucedido con los vegetales trasplantados de Europa. Los hombres apenas se diferenciaban de las bestias sino en la figura, y aun en ésta se echaban de ver muchas trazas de degeneración: el color aceitunado, la cabeza dura, y con pocos gruesos cabellos, y todo el cuerpo privado enteramente de pelo. Son feos, débiles, y sujetos a muchas enfermedades extravagantes, ocasionadas por la insalubridad del clima. Pero por imperfectos que sean sus cuerpos, aun lo son mucho más sus almas. Son tan faltos de memoria, que no se acuerdan hoy de lo que hicieron ayer. No reflexionan ni coordinan sus ideas, ni son capaces de mejorarlas, ni de pensar, porque los humores de sus cerebros son gruesos y viscosos. Su voluntad es insensible a los estímulos del amor y a los de las demás pasiones. Su pereza los tiene sumergidos en la imbecilidad de la vida salvaje. Su cobardía se hizo ver claramente en la época de la Conquista. Sus vicios Morales corresponden a sus defectos físicos. La embriaguez, la mentira y la sodomía eran comunes en las islas, en México, en el Perú y en todas las regiones del nuevo continente. Vivían sin leyes, y las pocas artes que conocían eran groserísimas. La agricultura estaba en el mayor abandono; su arquitectura era mezquinísima, y más imperfectos aún sus instrumentos y utensilios. En todo el Nuevo Mundo no había más que dos ciudades: Cuzco en la América Meridional, y México en la Septentrional, y éstas no eran más que miserables aldeas. He aquí un ligero bosquejo del monstruoso retrato que Mr. de Paw hace de la América. No lo copio enteramente, ni cito lo que sobre el mismo asunto han dicho otros autores mal informados o mal prevenidos, porque me falta la paciencia para repetir tantos despropósitos. No es mi intento escribir la apología de América y de los americanos, porque este asunto exigiría una obra voluminosa. Para escribir un error o una falsedad, basta un renglón: para impugnarlo no basta un pliego, y ni aun suele bastar un tomo. ¿Qué no se necesitaría, pues, para refutar tantos centenares de falsedades y de errores? Sólo atacaré los que se oponen a la verdad de mi Historia. He escogido la obra de Mr. de Paw, porque en ella, como en un muladar, se han recogido las inmundicias, esto es, los errores de los otros. Si parecen flertes mis expresiones, ha sido porque no he creído conveniente emplear la dulzura con un hombre que se pone de hecho pensado a injuriar al Nuevo Mundo, y a las personas más respetables del Antiguo. 352 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

Pero aunque la obra de Mr. de Paw será el principal baluarte a que dirigiré mis tiros, tendré que habérmelas con otros autores, y entre ellos con el conde de Buffon. Tengo en gran estima a este ilustre francés, y lo creo el más diligente, el más elocuente, y el más exacto de todos los naturalistas de nuestro siglo : no pienso que ningún otro le haya excedido en el arte difícil de describir los animales ; pero siendo tan vasto el argumento de su obra, no es extraño que a veces se engañase o pusiese en olvido lo que había dicho antes, especialmente sobre América, donde es tan varia la naturaleza: por lo que ni sus descuidos, ni las razones con que los ataco, podrán de ningún modo prejudicar a la gran reputación de que goza en el mundo literario. En la comparación que hago entre un continente y otro, no es mi designio elogiar la América a expensas de las otras partes del mundo, sino indicar las consecuencias que se deducen naturalmente de los principios establecidos por los autores que impugno. Estos paralelos son demasiado odiosos, y el que pondera apasionadamente su país, colocándolo sobre todos los otros, se parece más a un muchacho que pelea, que a un literato que disputa. En las citas de la Historia de los Cuadrúpedos del conde de Buffon, me he valido de la edición hecha en París en la Imprenta Real, en treinta y un tomos, y concluida el año de 1768. En las de las Investigaciones de Mr. de Paw, me he servido de la edición de Londres de 1771, en tres tomos, con las impugnaciones de Pernetty y la respuesta del autor. DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. v. 1. Do clima e saudáveis ares do Amazonas [p.77] Grande objeção têm contra si os filósofos no clima do Amazonas, porque mostra, com a experiência, que nem todos os discursos são evidências na praxe, e que nem toda a especulação é infalível nos experimentos. Vê-se claramente esta verdade no Amazonas; porque estando debaixo perpendicularmente da zona tórrida, que os discursos, e especulação provam inabitável, mostra a experiência, e praxe, que não só é habitável, mas muito sadia. As zonas em que se divide todo o mundo são cinco. As duas últimas, dizem os filósofos serem muito frígidas, e desabridas pela distância do sol, e seus calores. As médias são temperadas, por não terem excessivos calores, nem frios insuportáveis. A central, corAs Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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tada pelo meio pela equinocial, diziam os antigos que era totalmente deserta, e inabitada pelos ardores do sol – Quae prima est, nan est habitabilis ostu. Por estas contas, e discursos todo o grande distrito do Amazonas seria insuportável, por muito queimado, ou ao menos tisnado do sol; porque não só está debaixo da zona tórrida, mas bem perpendicular ao sol, como dissemos, mas a verdade é que nela habitam os seus naturais muito contentes, e não desgostam dela, nem a rejeitam os europeus. De sorte que mais quentes são os calores da Índia, como afirmam os que já experimentaram uns, e outros, do que são os da zona tórrida do Amazonas, com estar este no centro, e aquela em 10 graus e ainda mais; a mesma experiência falha em outras muitas partes da mesma América, por não falarmos, nem discorrermos pelo mais mundo. Porque nas cordilheiras de Quito são insofríveis os frios, não obstante o estarem quase na linha; e é mais quente o Maranhão com estar já mais apartado. É pois o Amazonas muito temperado nos seus climas por quase todo seu distrito; e muito mais temperado, e saudável, que a mesma Europa; porque lhe temperou Deus os seus calores com uma tão benigna atmosfera, como a das mais temperadas regiões [...]. Da caça altília do rio Amazonas [pp.151; 181-182] É o pássaro a que os naturais chama[m] ema o maior volátil que cria nas suas campinas o Amazonas; e talvez que também seja o mais gigante do mundo. É do tamanho de uma vitela, assim na grandeza, digo, altura, como na grossura, e comprimento [...]. Quero já acabar com a descrição das aves do Amazonas, e para a coroar descrevo por último o pássaro tem-tem, que é um enlevo dos sentidos, e um dos mais dignos daquele rio; e se pode aclamar por mestre da solfa em toda esta república. [...] Esta pequenina ave toda é voz, porque em matéria de canto, não há pássaro que o exceda, na solfa, nem o iguale nos seus falsetes, requebros, e sustenidos. Parece viver de cantar [...]. A terceira espécie [de tem-tem] é como e em tudo semelhante aos da Europa, menos nos assobios, e canto, em que são mais excelentes [...]. Divertimento da caça no rio Amazonas [p.183] Depois de descrevermos a caça altília do Amazonas segue-se o divertirmo-nos também um pouco na sua caça terrestre, porque não só é rico no seu pescado, delicioso nas suas penates; mas farto, e divertido na 354 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

sua montaria, não só pela multidão, mas também pela variedade de feras que cria nos seus matos. E assim, ou seja pelo rio pescando, ou pelos areais passarinhando, ou pelos bosques caçando, em tudo pretende o grande Amazonas ostentar-se o mais rico, e famoso dos rios. É verdade que não tem os elefantes, e abadas da África, os leões, e ursos da Ásia, nem os búfalos, camelos, e dromedários que criam várias regiões do mundo; mas produz, e tem abundância de muitas outras, em que se não excede, também não cede às ditas regiões o Amazonas, como escrevem já os seus historiadores [...]. Das pragas mais especiais do Amazonas [pp. 211; 215] Se no Paraíso Terreal, com ser um jardim de deleites, criado, e formado para regalo dos homens, houve uma venenosa serpente, que com o seu mais que pestífero veneno infeccionou a todo o gênero humano, não é muito que também o paraíso do Amazonas sendo um tesouro de riquezas seja infeccionado de serpentes, e outras pragas em tanto maior cópia, quanto é mais copiosa que o mais mundo a sua fertilidade; que não estão isento[s] os jardins de serem habitados de dragões, nem as mesmas folhas livres de serem abocanhadas por sevandijas! São estas a maior praga do Amazonas, para que também nos insetos se mostre a grande fertilidade do seu terreno; à maneira do Egito, que, sendo uma das mais férteis regiões, é a mais abundante de veneno: muita venena in Egipto. Descreverei algumas das pragas do Amazonas, para que também não fiquem sem algum lugar nas histórias as que o tem nos mais viçosos jardins. [...] Sendo porém o Amazonas sujeito a esta [i.e., bicheiras], e outras muitas pragas, pela sua grande umidade, e calores, causará admiração aos leitores o saber que não consente o seu clima as pragas mais usuais, e comuns na Europa, como são pulgas, e percevejos. Notícia geral dos índios e seus naturais [pp. 263-265] Os habitantes e naturais índios do grande Amazonas são gente também disposta, e proporcionada, como as mais da Europa, menos nas cores, em que muito se distinguem. Nem pareça supérflua esta advertência, de que são gente, porque não obstante a sua boa disposição, e fisionomia, houve europeus que chegaram a proferir que os índios não eram verdadeiros homens, mas só um arremedo de gente, e uma semelhança de racionais; ou uma espécie de monstros, e na realidade geração de macacos com visos de natureza humana. [...] As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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São os índios de estatura ordinária, bem como os europeus, menos algumas nações, que por mais altos parece têm seu parentesco com os gigantes; e outras que por curtas fazem lembrar os pigmeus. A disposição e membratura é muito proporcionada, as feições bastantemente finas e pálidas. [...] O cabelo da cabeça é corridio, e ordinariamente preto. São de cara lavada, ou deslavada, porque não têm cabelo algum na barba, e neste particular não há diferença entre os homens, e mulheres; e só quando velhos se distingue em alguns um pequeno pêlo, mas sempre são fracas barbas, que tesas não as ficou deles a natureza. As feições e delineamento do rosto são bastantemente miúdos, especialmente enquanto meninos são lindos, e só na maioridade algum tanto degeneram os homens. E têm observado alguns curiosos que quanto mais lindos são em pequenos, tanto mais feios se fazem em grandes, ou seja pelos trabalhos, ou pelos ardores do sol, ou por tudo junto; e pelo contrário, os que em pequenos parecem mais feios, em adultos são os mais bem parecidos. No sexo feminino porém é mais permanente a sua contextura, praecipue enquanto não têm filhos. Acham-se porém ainda no comum dos índios alguns tão gentis e bizarros varões como mulheres, e tão lindos e bem parecidos, que podem competir ainda com as mais formosas senhoras da Europa. E algumas fêmeas há que, além de suas feições finíssimas, têm os olhos verdes, e outras azuis, com uma esperteza e viveza tão engraçada, que pode ombrear com as mais escolhidas brancas. Do que bem se infere que não é infalível ser quanto mais branco, mais lindo, e que a formosura não consiste nas cores, mas na miudeza e fino das feições, e boa e bem regulada proporção dos membros. Isto é no comum e mais ordinário dos índios vermelhos, e baços, que em algumas nações é a gente totalmente branca, e todos também parecidos, como os mais brancos ingleses e mais bem talhados europeus: e em tudo tão bem proporcionados como os mais homens, exceto nas cores, e ainda estas passariam por brancas, se os trajes e libré dos brancos os cobrisse [...]. Notes On The State Of Virginia by Thomas Jefferson, pp. 66-68. [Disponível em: www.thefederalistpapers.org] Before we condemn the Indians of this continent as wanting genius, we must consider that letters have not yet been introduced among them. Were we to compare them in their present state with 356 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

the Europeans North of the Alps, when the Roman arms and arts first crossed those mountains, the comparison would be unequal, because, at that time, those parts of Europe were swarming with numbers; because numbers produce emulation and multiply the chances of improvement, and one improvement begets another. Yet I may safely ask, how many good poets, how many able mathematicians, how many great inventors in arts or sciences, had Europe, North of the Alps, then produced? And it was sixteen centuries after this before a Newton could be formed. I do not mean to deny that there are varieties in the race of man, distinguished by their powers both of body and mind. I believe there are, as I see to be the case in the races of other animals. I only mean to suggest a doubt, whether the bulk and faculties of animals depend on the side of the Atlantic on which their food happens to grow, or which furnishes the elements of which they are compounded? Whether nature has enlisted herself as a Cis- or Trans-Atlantic partisan? I am induced to suspect there has been more eloquence than sound reasoning displayed in support of this theory; that it is one of those cases where the judgment has been seduced by a glowing pen; and whilst I render every tribute of honor and esteem to the celebrated Zoologist, who has added, and is still adding, so many precious things to the treasures of science, I must doubt whether in this instance he has not cherished error also by lending her for a moment his vivid imagination and bewitching language. So far the Count de Buffon has carried this new theory of the tendency of nature to belittle her productions on this side the Atlantic. Its application to the race of whites transplanted from Europe, remained for the Abbé Raynal. “On doit etre etonné (he says) que l’Amerique n’ait pas encore produit un bon poëte, un habile mathematicien, un homme de genie dans un seul art, ou seule science.” “America has not yet produced one good poet.” When we shall have existed as a people as long as the Greeks did before they produced a Homer, the Romans a Virgil, the French a Racine and Voltaire, the English a Shakespeare and Milton, should this reproach be still true, we will inquire from what unfriendly causes it has proceeded, that the other countries of Europe and quarters of the Earth shall not have inscribed any name in the roll of poets. But neither has America produced “one able mathematician, one man of genius in a single art or a single science.” In war we have produced a Washington, whose memory will be adored while liberty shall As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

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have votaries, whose name will triumph over time, and will in future ages assume its just station among the most celebrated worthies of the world, when that wretched philosophy shall be forgotten which would have arranged him among the degeneracies of nature. In Physics we have produced a Franklin, than whom no one of the present age has made more important discoveries, nor has enriched philosophy with more, or more ingenious solutions of the phænomena of nature. We have supposed Mr. Rittenhouse second to no astronomer living; that in genius he must be the first, because he is self taught. As an artist he has exhibited as great a proof of mechanical genius as the world has ever produced. He has not indeed made a world; but he has by imitation approached nearer its Maker than any man who has lived from the creation to this day. As in philosophy and war, so in government, in oratory, in painting, in the plastic art, we might show that America, though but a child of yesterday, has already given hopeful proofs of genius, as well as of the nobler kinds, which arouse the best feelings of man, which call him into action, which substantiate his freedom, and conduct him to happiness, as of the subordinate, which serve to amuse him only. We therefore suppose, that this reproach is as unjust as it is unkind; and that, of the geniuses which adorn the present age, America contributes its full share. For comparing it with those countries where genius is most cultivated, where are the most excellent models for art, and scaffoldings for the attainment of science, as France and England for instance, we calculate thus. The United States contains three millions of inhabitants; France twenty millions; and the British islands ten. We produce a Washington, a Franklin, a Rittenhouse. France then should have half a dozen in each of these lines, and Great Britain half that number, equally eminent. It may be true that France has: we are but just becoming acquainted with her, and our acquaintance so far gives us high ideas of the genius of her inhabitants. It would be injuring too many of them to name particularly a Voltaire, a Buffon, the constellation of Encyclopedists, the Abbé Raynal himself, &c. &c. We therefore have reason to believe she can produce her full quota of genius. The present war having so long cut off all communication with Great Britain, we are not able to make a fair estimate of the state of science in that country. The spirit in which she wages war, is the only sample before our eyes, and that does not seem the legitimate offspring either of science or of civilization. The sun of 358 As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)

her glory is fast descending to the horizon. Her Philosophy has crossed the channel, her freedom the Atlantic, and herself seems passing to that awful dissolution whose issue is not given human foresight to scan. Having given a sketch of our minerals, vegetables, and quadrupeds, and being led by a proud theory to make a comparison of the latter with those of Europe, and to extend it to the Man of America, both aboriginal and emigrant, I will proceed to the remaining articles comprehended under the present query.

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