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Portuguese Pages [99] Year 1999
-berto DaMatta · EI a Soá ez
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Estudo ousado e inovador, Águias, burros e borboletas deixa de lado a visão moralizante e trata a centenária instituição do jogo do bicho como elemento fundamental para o entendimento do Brasil. Roberto DaMatta e Elena Soárez mostram que o jogo do bicho é um estilo de lidar com as imensas desigualdades sociais e com processos de mudança que, entre nós, sempre foram
GUIAS, BURROS E BORBOLETAS Um estudo antropológico
impostos de cima para baixo.
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Copyright © 1999 by Roberto DaMatta e Elena Soárez Direitos desta edição reservados à EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodrigo Silva, 26 - 5.° andar
Este livro é dedicado à memória de nossos avós Emílio Lourenço de Souza e Emerentina Perdigão da Matta
20011-040 - Rio de Janeiro, RJ Te!.: 507-2000 - Fax: 507-2244
Printed in Brazil I Impresso no Brasil
preparação
de originais
LENY CORDEIRO
CIP-Brasi!. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
M385a
Matta, Roberto da, 1936Soárez, Elena Águias, burros e borboletas: jogo do bicho I Roberto
DaMatta
um estudo antropológico e Elena Soárez. -
Janeiro; Rocco, 1999 Inclui bibliografia ISBN 85-325-0959-2 1. Jogo do bicho. I. Soárez, Elena. 11.Título. 98-1961
do
Rio de
CDD-795 CDU-794.9
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SUMÁRIO
( Prólogo e agradecimentos.................
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Palpite inicial e arremate: Os bichos são mais importantes do que os bicheiros............................................................................ Capítulo 1 - História e sociologia do jogo do bicho
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Capítulo 2 - O jogo do bicho como totem e rito sacrificial............. Capítulo 3 - Quem são os bichos?
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Capítulo 4 - Reflexões finais: Descrevendo o mundo dos bichos...
157
Os autores..........................
199
o povo, porém, aquele (madeiro, aquele que não sabe ler e escrever, tem uma regra muito %i~erente para interpretar os seus sonhos. Arrancar um dente é defunto na família. Nunca pude atinar com a relação que há entre uma coisa e outra; mas deve haver. Voz do povo, voz de Deus. Sonhar com excremento traz fortuna; com defunto traz saúde; carne crua é sinal de crime. Onde o povo foi descobrir essas equivalências? Não há ainda para os sonhos aplicados ao Jogo do Bicho uma teoria interpretativa e segura, mas já se esboça uma, apesar das dificuldades. LIMA BARRETO
Etelvina, acertei no milhar, Ganhei quinhentos contos Não vou mais trabalhar. .. WILSON BATISTA E GERALDO
PEREIRA
São, portanto, mais do que temas, mais do que elementos de instituições, mais do que instituições complexas, mais até do que sistemas de instituições divididas, por exemplo, em religião, direito, economia etc. São entidades totais, sistemas sociais inteiros cujo funcionamento tentamos descrever. Vimos sociedades em estado dinâmico e fisiológico. Não as estudamos como se fossem fixas, em um estado estático ou antes cadavérico, e menos ainda as decompusemos e dissecamos em regras de direito, em mitos, em valores e em preço. Foi considerando o todo em conjunto que pudemos perceber o essencial, o movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugidio em que a sociedade e os homens tomam consciência sentimental deles mesmos e de sua situação face ao outro. Há, nesta observação concreta da vida social, o meio de encontrar fatos novos que mal começamos a entrever. Em nossa opinião, nada é mais urgente nem mais frutífero do que este estudo dos fatos sociais. MARCEL
MAUSS
PRÓLOGO
E AGRADECIMENTOS
( Creio que parte deste livro começou a ser escrita na rua Nilo peçanha 31, em Niterói, quando eu era um menino de uns oito anos e minha avó materna, Emerentina, me pediu um palpite para o "jogo do bicho". Não sei por que disse "elefante", escolhendo um bicho possível e não pensei mais no assunto. I No final da tarde, recebi surpreso, de uma vovó Emerentina muito alegre, um dinheiro que me permitiu comprar um punhado de cobiçadas barras de chocolates no bar da esquina. Deu elefante na cabeça, fui informado entre afagos e sorrísosf Não me lembro do gosto dos chocolates, mas ainda tenho comigo o grato sentimento de ter feito minha avó feliz e de me sentir capacitado a "acertar no jogo do bicho" - porque palpite de criança é muito bom, conforme me ensinaram -, descobrindo, afinal, alguma coisa de que todos podiam participar livremente e em condições de igualdade. A partir daquele episódio, o jogo do bicho penetrou no meu coração e comecei, apesar dos Dumbos e dos filmes de Tarzã, a enxergar o elefante como uma eventual fonte de dinheiro, aquele dinheiro que sempre fez tanta falta na nossa família de funcionários públicos: meros "pobres envergonhados", conforme dizia, nos seus momentos mais pessimistas, essa minha avó) Vovó Emerentina Perdigão da Matta inspira uma parte das pesquisas deste livro. Pesquisas que começam com um menino nos anos 40,4 que se
I Escolher um bicho possível é essencial, pois há pessoas que, não sabendo da lista dos 25 bichos, querem jogar no pato, no rato ou no sapo, como foi o caso de uma intelectual, mestra em sociologia, que queria "vivenciar a cultura popular"! 2 Joguei muitas outras vezes no elefante sem o sucesso encontrado naquela mágica primeira vez em que palpitei para minha avó. Para o leitor aficionado do jogo do bicho, fica a sugestão de um bom palpite. Quem sabe o elefante não é bom para mim mas é "palpite certo" para os outros? 3 Éramos "pobres envergonhados" porque tínhamos de cuidar da roupa, da educação, da comida e da moradia; em suma, da nossa posição social, embora não tivéssemos receita para tanto. E, eis o paradoxo, não podíamos rasgar o véu das "aparências" ou das representações que transcendiam o terreno da mera racionalidade econômica. Veja também a nota 7. 4 Quando o jogo era, como se dizia no Brasil, "livre" - ocasião em que fui levado por essa avó a visitar o
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ampliam n Museu Nacional entre 70 e 80s e e realizam pl num nt l1H década de 1990, quando Elena Soárez, então minha aluna no Pr grama de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, interessouse pelo assunto, realizou um detalhado e competente trabalho de campo e escreveu uma tese de mestrado que é a base deste ensaio. Este livro, portanto, resulta de um processo de elaboração complexo, representa duas experiências de trabalho antropológico, espelha dois olhares: o feminino e o masculino, fala por meio de três gerações e quem sabe? - discute duas maneiras distintas de enfrentar a vida: o de minha avó Emerentina e o nosso. Emerentina teve uma existência marcada pelos reveses do destino. Casada na Manaus da virada do século e aos dezesseis anos com um comerciante do Maranhão, Carlos de Azevedo Perdigão, após um romance de duas semanas que desagradou profundamente um noivo abandonado, era mãe de dois meninos (Kronge e Marcelino) e estava grávida de uma menina, Maria de Lourdes, que viria a ser minha mãe, quando teve o marido assassinado a bala pelo ex-noivo num bar da cidade. Sem o marido rico que lhe dava tudo, vovó passou a "costurar para fora" e empenhou as jóias que eram a lembrança de um tempo feliz e de uma Manaus enriquecida pelo ciclo da borracha, a qual, nessa época, também batia as botas. Mas essa terrível reviravolta não a tomou amarga. Ela refez sua vida casando-se com um juiz de paz, Raul Augusto da Matta, igualmente viúvo com dois filhos (Amália Leopoldina e Renato, que viria a ser meu pai), reconstruiu sua vida e teve outros filhos. Foram ao todo quinze os filhos desta avó, dos quais eu só conheci quatro! Os outros eu só vi através das narrativas de mamãe, pois morriam de alguma doença inapelável e fulminante ainda meninos, moços ou jovens adultos. Ficaram todos incrustados numa Manaus ideal, bem como no terço, no livro de orações, em urnas poucas fotografias e nos espaços vazios dos bordados de um xale negro de vovó. Apesar de toda essa perturbadora intimidade com o pior tipo de
guardo dela a imagem de uma matrona alegre, enérgica, perfumada e vaidosa em seu vestido negro, a fita encarnada da congregação do Sagrado Coração de Jesus no colo nytcio e amoroso, unhas pintadas, dando ordens ao marido, aos filhos, às ef,pregadas, aos "netinhos cometas", e mandando um menino de recados jogar no bicho os seus palpites favoritos, religiosamente conferidos no final da tarde. Enquanto mamãe equacionava sofrimento e destino, vovó ia vivendo sua vida, tendo ainda força para sobreviver à viuvez e à perda do filho mais velho. Minha mãe, cuja vida aparentemente foi muito mais estável, oscilava entre um choro sem razão e a euforia salvadora de um piano sempre tocado com brilho, ao passo que Emerentina, apesar de tudo que viveu, era um modelo de segurança. Mas quero crer - e este livro me ajudou a tomar consciência disso que foi o jogo que lhe deu o alento e o modelo de que precisava para enfrentar os infortúnios. Afinal, na vida como no jogo, não se podem prever resultados. Para Emerentina, jogar não era um teste de afirmação de personalidade ou simples tentativa de enriquecimento. Era um modo de renovar a alegria de viver, um exercício de voltar a ter expectativas generosas, um remédio contra o caos e um modo de ordenar fatos banais, imprevistos e cotidianos: essas coisas que, conforme a articulação, fazem os dias iguais ou profundamente diferentes. Para ela, o pôquer, a roleta e, sobretudo, o barato, doméstico e tranqüilo jogo do bicho - que os filhos e as noras consideravam às vezes um "vício", mas do qual meu avô Raul jamais reclamou (ele se dizia um "eterno apaixonado") - era uma prática de esperança.v Foi provavelmente essa leitura da vida como algo tênue, teia e cadeia de eventos que se montavam e desfaziam com a facilidade de um jogo que, quero crer, animava a existência de minha avó, fazendo-a suportar todas as grandes tragédias e também as pequenas perdas de dinheiro semanais nas rodas de pife-pafe, a que jamais faltava e nas quais
famoso Cassino Icaraí de Niterói, hoje sede de uma triste burocracia universitária e passei, com aquiescência carinhosa do porteiro, seu Mossoró, vizinho nosso, pelas suas portas giratórias, vislumbrando o grande salão de jogos repleto de gente elegante e uma estátua de mulher nua (uma representação da deusa Fortuna?). Lembro-me de que o fim do jogo no Brasil foi recebido com tristeza por minha família e fulminou com um ataque cardíaco o triste e subitamente desempregado seu Mossoró. 5 No livro Carnavais, malandros e heróis (1979: capo lI), a "lógica totêrnica" do jogo do bicho é mencionada de passagem.
6 Um único filho, Marcelino Perdigão, de saudosíssima memória, partilhou com ela essa paixão pelo jogo, chegando mesmo a superá-Ia, fascinado que foi pelas corridas de cavalo e pelas mulheres que, para ele, constituíam o melhor jogo que a vida oferecia a uns poucos homens corajosos e plenos de caráter. Seu objetivo era sempre dar uma "cacetada no bicho" e nas mulheres que seduzia e perdia com a mesma avidez com que jogava. Tal como vovó Emerentina, jamais o vi deprimido. Para ele, a vida deveria ser englobada pelo amor, pela aventura, pela sorte e - que coragem! - jamais pelo dinheiro ou pelo "batente!". Marcelino foi o único mortal que conheci capaz de viver na Babilônia de Jorge Luis Borges (ver nota 7).
rnort , a d s filh s - v v mcrentina dizia que havia "na ido pura ntcrrar filho" -, não a vejo nem chorosa nem amarga. Bem ao contrário,
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t rr u t d s s salário atra ad s que brasilcirarn ntc t y \ o dlr no d receber depois da morte de Raul. Naquela ocasião, Emerentina foi novamente de uma personalidade admirável. Ao receber a bolada, que um tio e eu fôramos buscar no banco, vovó deu um agrado para cada um de nós e depois se devotou - apesar das objeções da família - a gastar todo o dinheiro em sua atividade favorita: o jogo, que, conforme ela gostava de verbalizar, revelava que "dinheiro e merda eram a mesma coisa". Uma atitude, diga-se de passagem, inteiramente coerente com a visão aristocrática do jogo, tal como codificada no famoso tratado Il Cortegiano, por Baldesar Castiglione (1528), empregado do duque de Urbino, o qual meditava sobre o jogo não pelo prisma da moralidade moderna quando o ato de jogar é visto como "um suicídio sem morte", como compulsão autodestrutiva inconsciente, ou como mecanismo funcional destinado ao gerenciamento de tensões sociais e frustrações pessoais -, mas como um modo de afirmação social independente do dinheiro." Um estilo de vida aristocrático, mais preocupado com a elegância da conduta do que com o mero objetivo de sair vencedor e embolsar o "vil metal".s No mundo burguês, o dinheiro se transforma em capital e em instrumento de salvação das almas e de exploração do trabalho. A dessacralização do fetiche mais importante do sistema capitalista talvez seja o fulcro da filosofia de vida dos grandes jogadores e tem sido um elemento apaziguador de minhas próprias ambições de riqueza. Sobretudo quando escrevo essas notas cercado dos meus amados netinhos, que são o nosso verA expressão "suicídio sem morte" é da personagem Clappique, do livro A condição humana, de Malraux. A idéia de que o jogo é uma compulsão autodestrutiva vem da apreciação freudiana que, como mostra Thomas Kavanagh, associa o movimento das mãos do jogador à atividade masturbatória e liga o jogo a uma regressão edipiana, na qual se acendem fantasias de parricídio que levam ao masoquismo reafirmado pela perda recorrente e deliberada (cf. Kavanagh, 1993:36-37). As explanações funcionalistas que discutem o jogo como um "mecanismo de acomodação utilizado pela sociedade como meio de canalizar protestos resultante de frustrações para com o sistema econômico e ético básicos" são apreciadas por James Frey (1984:1IOss). Somente Borges foi capaz de imaginar um sistema em que o jogo de azar atingiria também as posições e os elos sociais, trazendo fortuna e infortúnio, e produziria conseqüências sociais gerais, construindo e dissolvendo, a cada sorteio, a estrutura social. Na Babilônia de Borges, a loteria seria um instrumento revolucionário de distribuição de bens e serviços sociais e não um mecanismo compensador ou uma compulsão, como querem as teorias modernas (cf. Borges, 1972). 8 Vovó, como esse nobre Castiglione, desdenhava o dinheiro e assumia que "saber jogar nobremente significaya saber perder" (cf. Kavanagh, 1993:42). Ou, como esclareceu Norbert Elias (1995:39), falando da nobreza, pelo fato de que não é a economia (ou a receita) que dita a posição social, mas são a posição e a "representação" sociais impostas pela sociedade que ditam a despesa. Dir-se-ia que Emerentina era, no fundo, uma boêmia, pois tinha a mesma atitude de desdém pelo dinheiro dos literatos da belle époque, conforme aprendo com Isabel Lustosa (1993). Essa atitude, que situa as pessoas dentro e fora do mundo e tipifica tanto a malandragem quanto a renúncia, conforme revelei em Carnavais, malandros e her6is, parece ter profundas implicações no Brasil, como discutiremos mais adiante, no Palpite inicial e no Capítulo 1. 7
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dad iro tesouro (e a nossa principal fonte de palpite!), conforme sabia minha saudosa avó. Acredito, pois, que a fascinação de vovó pelos jogos de azar tem sua origem em um fato re\elado pela pesquisa de Elena Soárez, segund~ o qual há um laço oculto, porém direto, entre ordem e desordem." Um IlliSterioso elo que faz com que toda ordem possa se desmanchar em caos e toda a desordem possa se enquadrar em classificação e cosmos, relativizando o ideal racionalista partejado pelos valores iluministas de tudo controlar, agendar e prever. Tudo isso para dizer que a idéia de estudar esse brasileiríssimo jogo do bicho não nasceu apenas nas boas escolas que freqüentei, tampouco nas brilhantes teorias sociológicas que li, mas na ampla varanda de uma velha casa brasileira alugada, cujos quartos tinham muitas portas, faltava água, havia uma enorme e sombria clarabóia, tia Amália via fantasmas que lhe pediam rezas, não havia geladeira elétrica e o banheiro ficava, como dizia meu tio Mário, no outro quarteirão! Também não foi tema sugerido por algum professor atento à vida social do Brasil. Não! A idéia de entrar na lógica, na história e na sociologia deste jogo, colaborando com a pesquisa de Elena Soárez, chegou naquela manhã em que servi de fonte inocente de palpite e veio das esperanças e dos estilos de vida daquelas pessoas que me formaram e que vivem dentro de mim. Se o método estruturalista, hoje tão fora de moda, me deu a régua pela qual tento interpretar o mundo, o compasso me foi dado por essas Emerentinas e por essa mítica Manaus que Lulita, minha amada mãe, idealizava em seu brilhante piano nos dias em que meu entusiasmo pela música e o eloqüente silêncio do meu pai eram o mais enfático testemunho de nossa incondicional admiração por sua arte. Foram, pois, essas mulheres que despertaram meu interesse pelo Brasil. Do carnaval aos ritos autoritários; das procissões aos heróis populares e literários; da idéia de espaço às concepções de natureza; da música popular, que toma o mundo mais belo e mais leve, à retórica da violência que o encarna e o toma terrível. Por tudo isso, fiquei muito gratificado e feliz quando Elena Soárez levou a sério o projeto de estudar o jogo do bicho. Recebendo notas, artigos de jornal, livros e outros materiais que havia colecionado, ela assuPosteriormente Elena Soárez ampliou o escopo destas idéias, transformando-as agraciado com uma bolsa da Fundação Vitae.
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miu produziu a sua tese de mestrado, que é a base d st IlS I o. BI I a mostrava assim que as novas gerações eram sensíveis a uma tcmática que estava no centro de méus estudos sociológicos, ao mesmo tempo que ajudava a caracterizar aquilo que chamei de "dilema brasileiro" (cf. DaMatta, 1979), inspirado no estudo clássico de Gunnar Myrdal sobre as relações raciais nos Estados Unidos. Mas se na América o dilema se situava na intransigência típica de uma sociedade de credo igualitário que, por isso mesmo, tem alergia ao hibridismo e à mistura, no Brasil o dilema estava localizado em nossa incapacidade de fechar etapas, romper com estilos, separar motivos e sentimentos e, no limite, tomar consciência da hierarquia. No fundo, trata-se de uma questão com dois lados ou dimensões. De uma parte, deve-se fazer como todo mundo: caracterizar a emergência da modernidade no Brasil, balizando-a em relação a seus centros. Por outro lado, deve-se desfazer o que todos têm feito, refletindo mais detidamente sobre uma modernidade possível, paralela e diferenciada: uma modernidade singular, à brasileira. \ Outro motivo de alegria vinha do fato de que o trabalho de Elena abria um diálogo com a parte seguramente mais original e intrépida da obra de Claude Lévi-Strauss: aquela dedicada à compreensão do pensamento selvagem e do totemismo.tv Mas com uma novidade importante, pois se para Lévi-Strauss, que articulou a questão, os animais são bons para pensar, para classificar, para desafiar e reforçar a ordem social, para proibir, para ritualizar, para xingar e estabelecer limites, como dizem sucessivamente Mary Douglas (1976), Stanley Tambiah (1985), Edmund Leach (1983) e Robert Darnton (1986), nenhum deles falou que os bichos também são bons para jogar! Pois ninguém havia explorado essa intrigante relação entre bichos e números no contexto de uma esfera que até hoje tem escapado da boa reflexão sociológica: a dos jogos de azar) I \ 10 Lévi-Strauss amplia os estudos. mas parte das considerações fundamentais de seu antecessor Émile Durkheim ([ 1912] 1996), cujas idéias não podem ser esquecidas. II Que, como a esfera do esporte, está à espera do seu Max Weber. Ponto com o qual concordam Thomas Kavanagh quando observa, no seu estudo sobre o jogo e o ideal iluminista, que "o jogo não desperta respeito" no mundo acadêmico (cf. Kavanagh, 1993:29); James H. Frey, quando afirma: "Os sociólogos têm dado pouca atenção ao jogo como atividade autônoma, merecedora de investigação" (cf. Frey, 1984: 108); e Roger Caillois, autor de um pioneiro e ultra-ambicioso ensaio sobre o jogo, no qual, aliás, o jogo do bicho é mencionado (cf. Caillois, 1979:162). O grande Marcel Mauss tangencia essa mesma opinião no decorrer da caracterização sociológica das trocas agonísticas realizadas ritual mente pelos nativos da costa noroeste do continente americano. Referindo-se ao potlatch, que obriga a dispensa de objetos de valor tal "como são [perdidos] na guerra, na corrida e na luta", ele diz: "Seria a ocasião de estudar, a propósito, jogo, que, mesmo entre nós, não é considerado como um contrato, mas como uma situação na qual a honra é empenhada e em que se dão bens que, afinal de contas. poderiam não ser dados" (cf. Mauss, 1974:99).
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Por ter assumido ssc lado ideológico do j go do bicho - sistema de crenças que lhe dá forma e força -, a pesquisa de Elena Soárez revela que o uso dos animais como operadores simbólicos não se esgota nas sociedades tribais da Austrália, África, América do Norte ou Amazônia marcando presença também ~ntre nós que, não sem ambigüidades, adotamos o paradigma ocidental e ciclicamente renovamos nossas promessas de viver de acordo com a bússola do racionalismo, da compartimentalização, dos índices estatísticos, do progresso e da linearidade histórica. Este ensaio mostra conclusivamente que o jogo do bicho é um estilo de lidar com a incerteza e, como tal, pode surgir onde se queira romper com os quadros de um universo organizado de maneira holística. Antes de ser uma prova de debilidade moral e de inferioridade histórica e social, ele exprime um esti10 particular de lidar com a desigualdade e com processos de mudança impostos de cima para baixo. No fundo, esse "totemismo moderno" que aqui é estudado pela primeira vez, sugere uma leitura do mundo como um local repleto de encantamento, a despeito dos reveses de uma história que também tem produzido - comme ilfaut - tragédia, frustração e sofrimento. Por falar em tragédia, frustração e sofrimento, quero com toda a ênfase afirmar que este volume tem como objetivo compreender o jogo do bicho como cultura e como sistema. Nada em suas páginas visa ajustificar ou tornar a organização do jogo do bicho palatável, defensável ou simpática. A teia que junta e afasta os banqueiros do bicho, bem como sua atuação e a denúncia ou julgamento de seu estilo de vida, não é assunto deste trabalho, que está voltado para o simbolismo desta loteria. Essa advertência é importante porque a nossa simpatia, nossa curiosidade, bem como nossa aguda consciência da originalidade dessa loteria devem ser fortemente distinguidas de uma comunhão com o crime e a contravenção penal. Este livro é um estudo de um tipo particular de loteria, não um aval para o jogo, nem um alvará de legitimidade para os que tiram vantagem de sua poderosa ordem simbólica. O ensaio que o leitor está prestes a ler se divide em cinco partes. Seu ponto de partida é um "Palpite inicial e arremate", no qual procuro discernir o lugar (como sujeito e objeto) do jogo do bicho no processo de modernização brasileiro. Seguem-se quatro capítulos nos quais a história do jogo é reconstruída, sua caracterização totêmica e sua prática são explicitadas e o simbolismo dos seus bichos é estudado. O texto termina com uma descrição detalhada (uma etnografia) deste universo social. Com exceção de "Palpite inicial e arremate", que é de minha auto-
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ria, todos os outros capítulos foram originalmente escritos por ~'I na Soárez. Nessas partes do livro, minha contribuição consistiu em modificar a linguagem, ampliar o escopo de certas linhas argumentativas, explicitar idéias e editar passagens importantes numa tese acadêmica, mas supérfluas em um livro destinado a um público mais amplo. Menciono esses fatos porque, como autor mais experiente e conhecido, quero reiterar que Elena não foi uma simples auxiliar de pesquisa, mas uma imaginativa e competente co-autora, cujo projeto resultou neste texto. Uma outra coisa: alguns leitores poderão perguntar por que este livro não termina com uma "conclusão". Essa pergunta me foi feita muitas vezes em relação a meus ensaios sobre o carnaval, o futebol, a casa e a rua e o Brasil. A resposta que dava então serve bem agora: como "concluir" coisas como carnaval, futebol, saudade e "Brasil"? Se "conclusão" significa término, como vestir a camisa da arrogância e perorar conclusivamente sobre instituições que, afinal de contas, estão - mesmo quando vistas como agonizantes - mais vivas do que nós, que se transformam diante de nossos olhos, que assumem novas formas e mudam de posição mesmo quando as estudamos atentamente, que nos ajudam a ser o que somos? A despeito das questões morais que suscitam, essas instituições são fundamentais para constituir aquele Brasil com "b" maior que está encravado nos nossos corações.l?
ll2 No momento
em que escrevia essas linhas, a revista IstoÉ (1112/98) publicava uma matéria que sugeria o fim do jogo do bicho, em razão da competição, repressão e decadência. No corpo da matéria, a filha do banqueiro de bicho Raul Capitão fala da diminuição de apostas e declara: "O jogo não tem mais cinco ou seis anos de atividade." Ademais, os bicheiros foram desmoralizados pela prisão em 1993; os mais jovens não têm interesse ou não sabem jogar no bicho e a arrecadação do jogo é, de acordo com dados da Caixa Econômica Federal, de apenas R$ 500 milhões em um total de R$ 4,8 bilhões gastos no jogo em geral. Ao lado dessa morte anunciada, leio no jornal O Globo (10/2/98) que uma bem-sucedida operação policial, significativamente chamada "Operação Molinete", acabou identificando cinqüenta policiais acusados de receber propinas do jogo do' bicho, Na mesma matéria, o chefe de polícia do Rio de Janeiro se surpreende com obaixo pagamento dos policiais, que variava entre R$ 3-10 mil por mês. Convenhamos: cinqüenta policiais recebendo a média de R$ 5 mil por mês é um agregado monetário impressionante, sobretudo se pensarmos que a operação provavelmente não identificou todas as autoridades policiais que continuam recebendo regularmente do jogo do bicho. Em São Paulo há cerca de 10 mil pontos de aposta na capital e cerca de 30 mil no resto do estado. Ali são arrecadados diariamente 1,5 milhão de dólares por dia! No grande desfile das escolas de samba de 1998 - com a presença do governador do estado e do prefeito do Rio de Janeiro -, o diretor da Caprichosos de Pilares homenageou a memória do banqueiro Castor de Andrade com um respeitável minuto de silêncio. Os dias de glória podem ter passado, mas não seria um exagero condenar o jogo do bicho à sepultura? Não estariamos confundindo mudança com extinção? Por outro lado, não se pode esquecer de que o bicheiro pode até acabar, mas o sistema do jogo do bicho permanece.\
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ab agradecer, em 11 me de lena Soárez, aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, sobretudo ao professor, Afrânio Raul Garcia Júnior, que, na minha ausência, foi incansável e d~dicado como orientador-padrinho da tese, bem como ao Museu Nacional, ao CNPq, à CAPES e à Fundação Ford pelo que recebeu na forma de bolsas de estudo e de pesquisa. Quando decidimos nos associar para produzir um texto, Elena contou também com o apoio da Cátedra Reverendo Edmund Joyce, c.s.c., do Departamento de Antropologia da Universidade de Notre Dame de Indiana, Estados Unidos, que tenho a honra de ocupar e que lhe forneceu recursos para o aprofundamento da pesquisa que resultou neste livro. A par dessas pessoas e instituições, deve-se igualmente mencionar Jacqueline Muniz, Elizabeth Morais e Fábio Gavião, que fizeram tantas contribuições criativas para seu trabalho. Ademais, Elena não quer esquecer a Secretaria do PPGAS do Museu Nacional e a todos os que se dispuseram a ajudá-Ia na época da pesquisa que resultou em sua tese de mestrado. De minha parte, gostaria de agradecer à Universidade de Notre Dame, instituição que me acolheu e que tem confiado no meu trabalho, bem como a todos os colegas e amigos. Em Notre Dame, a Patrick Gaffney, Karen Richman, Frederico e Joana Xavier. No Brasil, a Ilana e Armando Strozenberg, Lívia Barbosa, Ricardo e Silvana Benzaquem de Araújo, que me deram ouvidos e encorajaram quando trabalhava neste texto. Meu irmão, Renato Augusto da Matta, preocupou-se em me enviar uma notícia importante sobre o assunto; Vaiter Sinder e Vânia Belli foram fundamentais na sua ajuda intelectual e encorajamento fraterno; Enilton de Sá Rego foi um interlocutor muito valioso; Affonso Romano de Sant' Anna fez, de passagem, como é da índole das amizades generosas, uma sugestão bibliográfica importante; Alberto Dines foi exemplar na presteza com a qual atendeu a um apelo de última hora, enviando-me textos sobre a cabala; Fernão Mesquita e Fernando Mitre, meus incentivadores de jornalismo do Jornal da Tarde, enviaram um importante dossiê sobre o estado atual do bicho. Brian Owensby, da Universidade de Virginia, enviou-me referências bibliográficas decisivas e o editor José Mário Pereira, além de compartilhar meu entusiasmo pelo projeto, pôs à minha disposição dois textos fundamentais de Jorge Luis Borges. Ao convidar-me para participar como conferencista na XV Reunião Brasileira de Antropologia, em Vitória, Espírito Santo, e do Groupe de Refléxion sur le Brésil Contemporain, da Maison des Sciences de
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L'Hommc d Pari, respectivamente em abril c mai d 1(98, Mariza Corrêa (então presidenta da ABA) e Afrânio Raul Garcia Júnior, diretor associado do groupe, me fizeram devedor de sugestões e do encorajamento dos ouvintes, dos quais destaco Marcos Lanna e Márcio Silva em Vitória e, em Paris, Ignacy Sachs, José Sérgio Leite Lopes e Lygia Sigaud. Ninguém é responsável pelo que aqui se diz, mas todos ficam com o penhor de nossa gratidão. Finalmente, devo mencionar a participação invisível, mas crucial, de minha mulher e companheira de existência, Celeste, que, com muito amor, enorme paciência e indizível generosidade tem pavimentado, em Notre Dame e em Niterói, a vida e o trabalho de um incorrigível palpiteiro. RDM Jardim Ubá,junho
de 1998
Palpite inicial e arremate: Os bichos são mais importantes do que os bicheiros Instituições capitais para o entendimento do Brasil como o carnaval, o futebol, a cachaça e o jogo do bicho têm sido praticamente banidas da reflexão intelectual. Contam-se nos dedos os estudos sobre o carnaval.i! existem pouquíssimos trabalhos sociológicos sobre o futebol.l+ nada há de histórico e de sociológico sobre a cachaçat> como dádiva (ao lado do cafezinho e do almoço dominical) e, sobre o objeto deste livro - o jogo do bicho -, ao lado de trabalhos acadêmicos esparsos.tv há um dossiê que fala menos do objeto e muito mais do modo pelo qual as "elites" encaram essa loteria. Nesse discurso, essas instituições sempre apare13 Sem dúvida, esses estudos foram descobertos e ativados como objetos de reflexão sociológica nos últimos anos a partir da publicação de Carnavais, malandros e heróis, em 1979. 14 Creio que fui dos primeiros a estimular o estudo desta área de um plano antropológico, de modo nãonormativo e não-linear, objetivando aprofundar o paradigma histórico dominante, para ler o futebol como ritual, drama e condensação de valores. Veja-se o livro Universo do futebol (Rio: Pinakotheke, 1982), que organizei e no qual publiquei ensaios de Luís Felipe Baeta Neves Flores, Simoni Lahud Guedes e Amo Vogel. Nesse contexto não se pode deixar de mencionar o inteligente ensaio de Micael Herschmann e Kátia Lerner sobre o futebol, o jogo do bicho e a rua; as contribuições de Maurício Murad, que fundou um Núcleo de Estudos do Futebol na Universidade Estadual do Rio de Janeiro; veja-se, por exemplo, o n~ 1 da revista do NEF, Pesquisa de Campo, publicado em 1995; os artigos de José Sérgio Leite Lopes e os de Luiz Henrique de Toledo sobre as torcidas organizadas; o recente livro de Simoni Lahud Guedes (1998) e o clássico de Anatol Rosenfeld. Isso para não falar dos esperados ensaios de Eduardo Archetti. 15 Apesar dos esforços de Mário Souto Maior (cf. Souto Maior, 1985). 16 Dentre os quais destaco o livro de Simone Soares Ferreira (1993), os ensaios pioneiros de Machado e Figueiredo (1978) e de Nádia M. A. Silva (1984), e o inédito de Pedro Agostinho (1979). A grande e notável exceção que confirma a regra é Gilberto Freyre, que estuda o jogo do bicho em Casa grande & senzala (discutimos o alcance de suas teorias no capo 2); a ele se refere por duas vezes, de passagem, como uma das "vogas" introduzidas pela modernidade republicana, como o "brasileiríssimo jogo do bicho", que, nos bondes, conduzia a discussões "democráticas" em torno de sonhos e palpites, em Ordem e progresso (1959: CXXIV e CXXXVI), observação que volta a fazer no seu Guia prático e sentimental da cidade do Recife (1968:104). Num estudo pioneiro, publicado em Paris em 1958, o ensaísta francês Roger Caillois usa o jogo do bicho como exemplo de indesejável retorno dos jogos de azar fundados na superstição, na indolência e no fatalismo em sociedades em trânsito para a "civilização industrial", cuja base seria o trabalho e a competição organizada, como em Camarões, no Gabão, em Cuba e no Brasil, no curso de um texto que peca pela generalidade da tese e pelo etnocentrismo da perspectiva. Como muitos outros pesquisadores, ele não compreende o papel da ambigilidade no processo de modernização (que certamente imagina como linear e evolucionário) de certas sociedades, tampouco o significado dos bichos, em suas complexas relações com números e ações sociais (cf. Caillois, 1979:152-156).
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c '!TI como pr vas de ign rãncia e expressão de no sa p rene tendência para a corrupção e o crime, como sinais de "atraso cultural" e sintomas de uma recalcitrante "falsa consciência", essas marcas indeléveis de ausência civilizatória e debilidade política e social. Tudo se passa como se uma boa parcela de nossa elite intelectual, essa parcela permanentemente fascinada com a correção do mundo e admiravelmente fiel às suas ideologias, tivesse uma irresistível fascinação pelos bicheiros e um formidável desdém pelos bichos. Comendo gato por lebre, ela tem ressaltado o mais aparente e o menos importante, deixando de lado aquilo que faculta e legitima o poder social e político da atividade: os bichos. Ou melhor: o sistema do jogo do bicho - o operador simbólico - , que , como uma dádiva, acasala I sem divórcio bichos e bicheiros.I? Deste modo, muito do que tem sido escrito sobre o carnaval, o futebol e o jogo do bicho serve mais para dificultar do que para compreender essas instituições, o que, no caso dos estudos sociais, equivale a enfrentá-Ias de peito aberto, sem palpites pré-empacotados e intenções moralizantes destinados a corrigir o sistema, pois seu objetivo maior é realizar uma tradução de um conjunto singular e localizado de instituições para a linguagem universalista da sociologia comparada, naquilo que uma ingênua confiança no modelo das ciências naturais pomposamente tem chamado de "teoria antropológica",18
II
A atitude compreensiva assumida neste ensaio respeita, mas se recusa a repetir esse exercício trivial e normativo de engavetamento, 17 Essa mesma lógica demanda que se liquide com os bicheiros mas se proteja o jogador do bicho. É o mesmo paradoxo que se acha presente no caso do consumo de drogas, quando se quer o objeto: mas se demanda a prisão dos traficantes. Como se uma coisa pudesse existir sem a outra, quando é óbvio que o único modo de conter o tráfico seria compreendendo o universo de símbolos e fantasias engendrado pelas drogas, o qual instiga consumidores e traz à tona os fornecedores. .. . 18 Diferentemente das outras "ciências sociais" que assumem com maior ou menor ingenuidade o paradigma cientificista e positivista e se pensam capazes de "explicar" os fatos que estudam, a antropologia social ou cultural sempre oscilou entre modelos reducionistas (nos quais fenômenos complexos são reduzidos a uma só causa ou fator) e modelos interpretativos, estruturais, nos quais, como sugeriu Evans-Pritchard, se traduz um modelo nativo por outro presumivelmente mais abrangente e elegante, do estudioso, o que levaria a compreender, como diz Isaiah Berlin interpretando Vico, "por que as coisas são como são e não .ap~nas o que são" (cf. Berlin, 1998:56). O fundamental nesta postura seria traduzir e interpret~r, o que srgrufica - como adverte Louis Dumont ([1978)1985: capo VI) - não esquecer que o postulado Ideal de umdade do gênero humano que é moderno e universalista, só tem sentido quando confrontado com suas diferenças ou formas de realização e expressão, que sempre são particulares.
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propondo-a a qucsti nar a r Iaçi do jogo do bicho com a sociedade brasí I ira. E sa é também uma postura problemática, pois sugere que, 1 um lado, existam coisas concretas como a cachaça, o futebol, o carnaval e o jogo do bicho' e, de outro, uma coisa ainda mais concreta chamada "sociedade brasileira". Na verdade, o que intuímos como "Brasil" ou "sociedade brasileira" não pode constituir algo relativamente acabado sem as presenças dessas instituições, ou seja, sem carnaval, cachaça, futebol e jogo do bicho, e - deixe-me acrescentar a essa lista outros hóspedes não convidados da sociologia oficial, mas igualmente básicos na nossa autovisão como sistema dinâmico, em luta consigo mesmo - sem umbanda, malandragem, música popular, espírito de porco, praia, fofoca, cantada, clientelismo, mentira e jeitinho. 19 Sem elas, dificilmente eria possível construir aquilo que trivialmente chamamos de "realidade" ou "identidade" brasileira. É preciso notar que as identidades são construídas de retalhos culturais e, no caso do Brasil, essas instituições têm servido de esteio para uma visão relativamente integrada de nós mesmos. Digo "relativamente integrada" para ressaltar que, (no Brasil, não é o conjunto de instituições e valores "modernos", instituídos e proclamados com a República, que tem servido como fonte dominante da nossa identidade. De fato, para a decepção de muitos observadores da cena nacional, hino, bandeira, território, sistema escolar, indústrias, parlamento, constituição, aparelho estatal, regime político e moeda - sobretudo estes dois últimos - desenham um conjunto problemático, de operação claudicante e em constante e radical transformação. Mas a cachaça, o carnaval, a música popular, o almoço de domingo, o futebol e o jogo do bicho têm tido enorme continuidade, constituindo, por isso mesmo, fontes de referência cruciais para o esboço ou o desenho acabado da identidade brasileira. E, sem referências relativamente fixas para a lembrança, não pode haver os esquecimentos que - como queria Ernest Renan - estão na base da constituição das identidades, sejam elas individuais, grupais, profissionais, regionais ou nacionais.w] Criativamente estudado por Lívia Barbosa (1992). Corno lembra Gellner (1987), Renan sabia disso e dizia, já em 1882, no curso do seu ensaio clássico sobre a nação: "O esquecimento e - eu até diria - o erro histórico são um fator essencial para a criação de uma nação." De acordo com uma citação que encontrei no livro de Lúcia Lipp Oliveira, essa fórmula é repetida por Karl Manheinn quando diz: "Para a sociedade continuar a existir, a recordação social é tão importante quanto o esquecimento e a ação social a partir do zero" (cf. Oliveira, 1990). Que o diga o personagem Irineu Funes, de Borges, umjovem possuidor de uma memória total e que, por isso mesmo, "não era muito capaz de pensar", pois "pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair" (cf. Borges, 1972: 19
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Á Essa loteria tem a peculiaridade de oferecer ao jogador a possibilidade de apostar simultaneamente em bichos ou números. Mais precisamente, o jogo estabelece um elo entre uma lista de 25 bichos e séries numéricas que são manipuladas de forma a compor dezenas, centenas, milhares e ainda uma série de outros objetos, fatos sociais e históricos que, como veremos com mais detalhes no decorrer deste livro, conformam e inspiram múltiplas possibilidades de aposta. J O objetivo deste capítulo é apresentar uma reconstrução histórica do jogo do bicho, buscando explicitar sua origem e o contexto sociopolítico que lhe deu forma, fama e força. Ao abordar a história dessa modalidade de jogo, vale notar, entretanto, um ponto crítico ao qual voltaremos muitas vezes no decorrer deste livro.( O jogo do bicho, como muitas outras instituições populares brasileiras, goza de uma dualidade de raiz. De um lado, ele tem uma origem claramente datada - um ponto de origem formal ou "oficial" - e um inventor reconhecido. De outro lado, porém, é um jogo baseado em um sistema de palpites que se perde no tempo, fundado que está em sonhos e outros elementos populares, relacionais e totêmicos que invocam uma simbologia onipresente, mas muito pouco discutida nas apreciações sociológicas da sociedade brasileira.) Uma releitura do que se pesquisou e escreveu sobre o "bicho" revela que a dimensão histórica foi a mais investigada, provavelmente porque
Ei-lo, de lança em riste, o cavaleiro andante, Dom Aurelino Leal, o Javert da Gamboa. Em vez de dar combate ao jogo palpitante, Dos bichos faz perus ... Conduz a "roda boa". D. Quixote (26.9.1917) (Sátira a Aurelino Leal, Chefe de Polícia na ocasião.)
6S Essa estimativa
foi fornecida por um dos "banqueiros" mais bem informados sobre o movimento das apostas, pois integra a chamada "cúpula dos sete", grupo responsável pelo comando do jogo do bicho em todo o país, em entrevista realizada em março de 1992. Numa entrevista concedida à pesquisadora Simoni Simões Ferreira Soares e publicada no livro O jogo do bicho, em maio de 1990, o Sr. José Petros (Zinho), na época porta-voz dos banqueiros de bicho cariocas, diz que, depois das facilidades dadas pelos governos Brizola e Moreira Franco, o jogo do bicho empregava "mais ou menos 60 mil indivíduos" no Rio de Janeiro (cf. Soares, 1993:77).
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revelava s asp ctos mais Iacilmcnt criüc v is du ord m s cial. utr lado do jogo do bicho, porém, sua dirnens o expressiva, simb lica u dramática, jamais foi levado a sério pela maioria dos interessado em refletir sobre essa instituição. Como nosso objetivo é desvendar os elos entre essas dimensões, este capítulo pretende esclarecer o inter-relacionamento entre a história e o significado social do jogo do bicho.
A CRIAÇÃO DE UM MODERNO ZOOLÓGICO SOLTA OS BICHOS
(o jogo
do bicho foi criado em 1892 por João Baptista Vianna Drummond (1825-1897), futuro barão de Drummond, então proprietário do primeiro Jardim Zoológico do Rio de Janeiro.)Nascido em ltabira do Mato Dentro (MG), João Baptista Vianna Drummond chegou bem moço ao Rio de Janeiro, contando três contos de réis que seu pai - um tradicional "coronel" mineiro - dera como dote a cada um de seus catorze filhos. Ao chegar à corte, atuou no comércio, dedicando-se, como mandava o figurino da época, a importar caxemira e vinhos da Europa, em um escritório montado no centro da cidade, na rua Primeiro de Março. O primeiro sucesso que obteve no mundo das finanças foi, significativamente, fruto de especulação na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, uma instituição em expansão e modernização naquele momento. 66 Concluído o rito de chegada à corte, Drummond passou a integrar a elite da cidade ao casar com a filha do banqueiro Gomes, eminente figura da época.é? Drummond ingressa então nos negócios públicos. Amigo e, por vezes, sócio do barão de Mauá,68 toma-se diretor da Companhia que funda a Estrada de Ferro D. Pedro lI. No ano de 1872, quando compra uma vasta chácara na encosta da serra do Engenho Novo, Drummond inicia o projeto que iria imortalizá10. Tal pedaço de terra havia sido desmembrado da Fazenda do Macaco, de propriedade de Sua Majestade a Imperatriz Duquesa de Bragança, que a recebera como dote ao casar-se com D. Pedro I, nessa época já falecido. os dadosbiográficosdobarãodeDrummondforamenriquecidosporentrevistasconcedidaspeloDr. SérvuloDrummond,seu bisneto,a quemagradecemos.Para uma biografiado barão, ver Renato Pacheco(1957). 67 Vero artigo,parcialmente reproduzidoadiante,publicadonoJornal da Cidade do Rio (em30 deoutubrode 1889),escritoporseudiretor,JosédoPatrocínio. 68 Nãoencontramos, porém,na importantebiografiadobarãode Mauá,recentementeescritaporJorge Caldeira(1995),nenhumareferênciaa JoãoBaptistaViannaDrummond. 66
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I uno up H I \ IlIi. i' ) da pr pri dade - ele foi um dos primeiro a inv stir na ãr a d s ncg ci imobiliários -, funda a Companhia Arquitetônica, um empre ndimento cujo objetivo era a realização da primeira área rcsidencial planejada da cidade: o bairro de Vila Isabel. Contestando e redefinindo a concepção arquitetônica portuguesa tradicional, segundo a qual as ruas deveriam ser estreitas para que os sobrados fornecessem sombra, Drummond - com a ajuda do engenheiro Bittencourt da Silva - planeja um espaço residencial baseado em princípios opostos. Com isso, o bairro de Vila Isabel seria uma zona residencial dotada de amplas avenidas, tudo obviamente inspirado nos boulevares parisienses que Drummond acabara de visitar. 69 Como a sinalizar formalmente sua modernidade, o novo bairro nasceria também marcado pela militância abolicionista da qual Drummond fazia parte, daí ser batizado com o nome de Vila Isabel e contar treze ruas, todas com nomes de personalidades empenhadas na luta pela libertação dos escravos. O projeto de Vila Isabel era indiscutivelmente moderno e ambicioso. Pretendia-se que o bairro oferecesse uma completa infra-estr,utura de comodidades urbanas e de lazer. Para fazer a ligação da nova área com o centro da cidade, Drummond idealiza a Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel. Do projeto original do bairro constam ainda a construção de uma igreja matriz, uma praça central e um amplo parque destinado ao lazer dos moradores. O primeiro leilão para venda pública dos lotes de Vila Isabel aconteceu no ano de 1874, mas a grande atração do bairro só surgiria em 1888, com a fundação do Jardim Zoológico de Vila Isabel, um empreendimento já previsto desde 1884, com a celebração de um acordo entre a Câmara Municipal do Rio de Janeiro e a empresa comandada pelo barão de Drummond.w De fato, da área total de que Drummond era proprietário,
VilaIsabelé umaantecipação dosprojetos"modernistas" dosquaisBrasíliaseriao paradigma.Tantona VilaIsabeldeDrummondquantonaBrasíliadeLúcioCostae OscarNiemeyer,asruasperdemsuafunção deespaçodeencontro,negócio,ócioe sociabilidade difusae setransformam emviade acesso, passagem ouescoamento.A grandemudançada cidadetradicionalparaa "cidademodernista"fala- entreoutras coisas- datransformação daruadeespaçosimbólico(quandoa ruaerasimultaneamente meioe fim),em espaçoracional(quandoelaé reduzidaapenasa ummeiodeescoamentodeveículose pessoas).Parauma discussãoda ruano casobrasileiro,veja-seFreyre(1961);DaMatta(1979e, especialmente,1991).Para umestudocriterioso,críticoe imaginativo dacidademodernista, leia-seJamesHolston(1993). 70 O Zoológico pareceter sidoumsucesso.Asmemóriase o diáriodocomercianteCristianoCarlosJ. Wehrs,construtordepianosemúsico,descendentedealemães,registrao seguinteparao mêsdemaiode 1888:"Quandoestávamostodosprontos,saímosdecasacoma intençãodeir a VilaIsabelparavisitaao JardimZoológico,instaladodenovo.Masosbondesparaláestavamtãocheios,quetivemosqueviajar 69
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havia uma reserva de 300 mil mctr s quadrad s destinada à instalaç d Zoológico que, de acordo com as ambiçõe do projeto inicial, além de expor animais raros e exóticos, deveria reunir estudiosos brasileiros que pesquisassem e ministrassem cursos sobre a flora e a fauna nativas. Quando o Zoológico começou a funcionar, Drummond - como um empresário tipicamente brasileiro - acionou suas estratégicas relações com a coroa na tentativa de mobilizar recursos do Estado para viabilizar financeiramente seu empreendimento, já que se deu conta dos elevados custos de manutenção de um Jardim Zoológico (cf. Pereira de Mello, 1989:56). A Câmara dos Deputados começava naquele momento (1888) a formular a lei orçamentária para o ano de 1889, e Drummond solicita uma subvenção, pois já naqueles primeiros anos o Zoológico lutava com dificuldades para manter-se. Como uma história que viria a se repetir muitas vezes no Brasil, a saga do Zoológico do barão mostra como é mais fácil fundar e inaugurar instituições ambiciosas como museus, parques, bibliotecas, casas de cultura, galerias de arte e universidades do que sustentar suas dispensiosas e exigentes rotinas. Como diz Renato Pacheco, autor de uma pioneira antologia do jogo do bicho:
o Jardim, no dizer deles, havia sido instalado um pouco antes, porém estava ameaçado de fechar as portas à falta de recursos. Solicitavam "uma subvenção, módica embora". Declaravam, para fundamentar o pedido, que a sociedade do Jardim tinha enriquecido o Museu "com exemplares de todos os animais que morrem no estabelecimento, que tencionava importar animais domésticos de raça para promover o melhoramento das respectivas espécies do país, que construiria um edifício destinado a exposições periódicas de animais domésticos, horticultura, floricultura e agricultura" (cf. Pacheco, 1957:82).71
Apenas dois meses depois, no dia 14 de agosto, um outro requerimento, desta vez assinado apenas por Drummond, tomava a liberdade de lembrar a Câmara onde obter recursos para o seu Zoológico sem ônus para os cofres públicos, sugerindo a utilização dos dinheiros gerados pedo lado de fora, como pingentes. Assim viajamos até o Mangue, quando achamos por bem desistir, já que os demais passageiros pareciam também ir ao Zôo, reduzindo as esperanças de alguém saltar no caminho, para nos dar lugar no banco" (cf. Wehrs, 1980:216). 71 Nesse requerimento assinado pelo barão e por Manuel de Segadas Vianna, co-diretor do Zoológico, percebe-se que há um esforço de estar em sintonia com propostas que priorizassem a modernização da agricultura, um tema básico e uma preocupação política fundamental na virada do século quando os escravos se tornam livres. Percebe-se também que o barão era sensível ao tom político que poderia agradar aos deputados.
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I sj R d azul' I um Ilnanciar causas ec n rnicamcntc importantes ou n bres c m ,de rest ,era (e ontinua) a ser uma prática corrente no Brasil e em outros países.72 Eis o trecho mais importante deste segundo requerimento do barão: Existem atualmente nesta cidade vários prados de corrida, nos quais o movimento de apostas sobe a milhares de contos de réis anualmente, revertendo dez por cento da renda bruta para as sociedades. Não seria possível estabelecer que, desses dez por cento, um ou dois por cento fossem destinados a estabelecimentos pios ou de reconhecida utilidade pública, como o Jardim Zoológico? Obter-se-ia assim não pequena quantia sem gravar-se o contribuinte, pois só o jogo, que convém reprimir, seria tributado (cf. Pacheco, 1957:82).
A despeito da imaginação, da "modernidade" e da sintonia política da proposta, a Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados não aceitou integralmente a sugestão, mas compensou sua negativa com uma verba de 10 contos de réis anuais sob a rubrica de gastos com a agricultura. O ano de 1888 é, pois, positivo para o empreendimento de Drummond, pois, além de ter obtido essa subvenção, ele deixa de ser o cidadão João Baptista Vianna Drummond e adentra o mundo da nobreza com o título de barão de Drummond, concedido por decreto da princesa imperial. O fato, evidentemente, atesta seu prestígio junto à coroa. Assim, no mês de outubro de 1889, o barão de Drummond é celebrado e consagrado nos jornais por José do Patrocínio, que escreve uma nota consagradora a seu respeito no periódico de sua propriedade, o famoso Jornal da Cidade do Rio. Nessa nota, de retórica inquestionavelmente poético-lauda- . tória, José do Patrocínio revela uma incondicional admiração pelo barão e também exprime a mentalidade do seu tempo, quando pinta Drummond
72 A propósito deste assunto, já dizia o missionário norte-americano Thomas Ewbank, que nos visitou em 1840: "O jogo aqui é universal. Realizam-se jogos em benefício de tudo e constantemente se anunciam novas extrações. Rapazes correm por toda parte vendendo bilhetes; entram nas lojas, visitam os mercados e chegam a deter os transeuntes nas ruas. Os negociantes enviam até mesmo mulheres como agentes para vender bilhetes. O Diário do dia 9 publica o plano da quinta extração, feita em 'Benefício da obra da nova Igreja do Senhor do Bom Jesus de Iguape' e anuncia uma outra extração em 'Benefício da Igreja Matriz do Ceará'" (cf. Ewbank, 1976:154). Em 1878, conforme dizem Mello Barreto Filho e Hermeto Lima: "A jogatina campeava na cidade." Faziam-se fortunas na roleta, nas cartas, no lasquenê, no bacará, no dado e na víspora, havendo muita roubalheira em favor dos banqueiros (Cf. Barreto Filho e Lima, 1944, vol. 3:96-97). A polícia, atendendo ao código moral dos segmentos superiores, tentava, como sempre, "ordenar", "disciplinar" e proteger o cidadão.
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{ i curto, no entanto, o período em que o barão e o Zoológico desfrutaram ubvenção oficial. Com a proclamação da República, em 1889, fi ajuda passa a ser vista como favoritismo monárquico, sendo sumariamente suspensa dentro dos esforços de consolidação do novo regime, uja agenda era transformadora e autoritária. Curiosamente, e talvez a título brasileiríssimo de compensação, no ano de 1890 a Câmara Municipal do Rio de Janeiro firma um novo acordo com a Empresa do Jardim Zoológico. Em linhas gerais, esse novo contrato era semelhante ao anterior, mas com um item crucial. Essa cláusula mudaria a história do jogo no Brasil, pois o novo contrato dava ao barão o direito de estabelecer e explorar, dentro dos limites do Jardim Zoológico, "jogos públicos lícitos", sujeitos evidentemente à fiscalização policial. 74 \ Dando seqüência à vertiginosa proliferação de loterias e jogos surgidos após a proclamação da República, em julho de 1892 o barão institui uma espécie de sorteio envolvendo seus animais - era o chamado "sorteio dos bichos", que objetivava aliviar as dificuldades financeiras atravessadas pelo Jardim Zoológico. O fato foi anunciado em vários jornais cariocas. Assim, o Jornal do Brasil, na sua edição de 4 de julho de 1892, comenta:
trancrevê-la na íntegra:
o barão
de Drummond, moço e esbelto, querido de todos e de todas, chegou um dia de Minas, viu, e venceu a praça. Tomou-a de assalto, como qualquer praça de guerra. Aliado ao rei da praça de então, o banqueiro Gomes - o barão de Drummond conquistou a Bolsa, com a mesma facilidade com que conquistava corações. Venceu. Como banqueiro, falem da sua afabilidade todos os doentes que lhe levavam receitas do Dr. Valladão. Nunca se viu farmacêutico mais amável, nem mais pronto em aviar receitas. Por fim retirou-se da praça, deixando nela uma inalterável saudade da sua honradez e da sua amabilidade. Retirou-se, disposto a descansar. Mas, o barão de Drummond não admite o descanso. Para ele tudo é possível no mundo: descansar? Nunca! E fundou a companhia de Vila Isabel. O que tem sido a companhia de Vila Isabel, sabem-no todos: uma empresa próspera e bela, cuja alma é o barão de Drummond. Mas, não bastava à sua atividade a Vila Isabel. Fundou o Jardim Zoológico. Farto de lidar com os homens, começou, ainda para prestar serviço aos homens, a lidar com os bichos. Reuniu-os, classificou-os e engaiolouos e - fez-se o Jardim Zoológico, um dos maiores serviços nestes últimos tempos prestados a cidade do Rio de Janeiro. Vive agora para aquilo. Para aquilo, e para a Avenida. A Avenida 4, o seu grande sonho. Sonho enorme, sonho admirável: abrir na monotonia e na irregularidade do Rio de Janeiro uma rua larga, aberta ao sol, saudável, uma rua a que se possam levar os estrangeiros civi1izados que nos visitarem, que ateste o nosso amor à higiene. Não admira que este seja o seu sonho predileto e o seu único objetivo de hoje. Bem pode hoje dedicar-se a abrir uma avenida na cidade, quem não tem feito outra coisa senão abrir no país a larga avenida do progresso da ci vilização.Zã
73 Artigo publicado na primeira página do Jornal da Cidade do Rio em 30 de outubro de 1889 e que bem mostra a retórica modernizante que dominava as elites republicanas e monarquistas da época. Deve-se
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( Como meio de estabelecer a concorrência pública, tomando freqüentado e conhecido aquele estabelecimento que faz honra ao seu fundador, a empresa organizou um prêmio diário que consiste em tirar à sorte dentre 25 animais do Jardim Zoológico o nome de um, que será encerrado em uma caixa de madeira às 7 horas da manhã e aberto às 5 horas da tarde, para ser exposto ao público. Cada portador de entrada com bilhete que tiver o animal figurado tem o prêmio de 20$. (... ) Realizou-se ontem o 10 sorteio, recaindo o prêmio no Avestruz, que deu uma recheada poule de
460$000.75 J notar que o barão - ao lado do visconde Nogueira da Gama, de Roberto Jorge Haddock Lobo, Leopoldo Augusto de Câmara Amoroso Lima, Joaquim Manuel Monteiro, Homem de Meio, Tomás Quartim, Fernando Mendes de Almeida e de muitos outros ricaços, altos funcionários públicos, latifundiários, comerciantes, políticos profissionais, banqueiros e investidores que constituíam a pequena e altamente concentrada elite brasileira da época - era também membro do-famoso e aristocrático Cassino Fluminense, local onde se encontravam para ler, comer, trocar informações e, claro está, jogar! (cf. Needell, 1993:89ss e também o Apêndice). 74 Existe, porém, a suspeita, levantada sobretudo por Pereira de Mello, em seu importante estudo sobre a história social dos jogos de azar no Rio de Janeiro, de que, neste momento, o barão teria estabelecido uma sociedade com Luis Galvez, um conhecido empresário carioca de jogos de azar (cf. Pereira de MeIlo, 1989:57). 75 Dados obtidos na página http://www.alternex.com.br/-solidario. que reproduz notas colhidas por João Marcos Weguelin em jornais cariocas do final do século XIX.
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O Tempo, na sua edição de 6 de julh
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Além disso, a empresa resolveu estabelecer um prêmio de 20$ por meio de um sorteio original. Cada pessoa ao entrar no jardim receberá, por 1$, um bilhete com a indicação de um animal dos 25 que existem no jardim. Em um poste de 5 metros de altura, numa caixa fechada, será colocado um quadro representando um dos animais e quem o tiver no bilhete receberá o prêmio. E, como que alardeando a modernidade plementa:
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onçalves Dias), adaptando-o sagazmente ao contexto do seu empreendimento.76 \ . (Mas em que consistia esse fracassado "jogo das flores"? Nele também se arrolavam 25 flores, dispostas em ordem alfabética, às quais correspondiam 25 números, diariamente sorteados.Z? Podia-se jogar na "aurora", no "amor-perfeito", no "alecrim", na "boa-noite", na "camélia", no "cravo", na "hortênsia", no "jasmim", no "lírio", na "magnólia", na "margarida", na "violeta", na "rosa" e na "sempre-viva", para citar as mais populares. Como ocorreria no futuro jogo do bicho, as apostas eram feitas nas flores ou nos números que lhes correspondiam. Mas o jogo das flores não teve o êxito esperado por seu criador. Manoel Ismael Zevada propõe então uma adaptação do jogo das flores para um "jogo dos bichos", a ser realizado no Jardim Zoológico como forma de atrair público e gerar recursos para a manutenção dos animais. Para o barão de Drummond, esta sugestão era o encorajamento de que precisava para pôr em curso um tipo de jogo que afetaria profundamente a vida brasileira. Isso permite dizer que o jogo do bicho é um descendente direto do jogo das flores. A novidade introduzida pelo barão foi uma mera, mas genial, transposição do reino relativamente estático e contemplativo das flores para o
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A empresa deposita, como garantia de pagamento dos prêmios, 10$000 em um banco. O serviço de bondes vai ser aumentado, proporcionando assim maior comodidade ao público. Na mesma linha, diz o Diário do Commercio em 4 de julho de 1892: Realizou-se ontem, como tínhamos anunciado, a inauguração da nova empresa do Jardim Zoológico (...) Às 5 horas desceu a caixa que continha a figura do animal que dominava o dia, de acordo com o programa. O avestruz foi o animal vencedor e que deu aos donos dos bilhetes respectivos os 20$ do prêmio. No dia 5, o mesmo jornal reafirma, mais descritivamente: '\
Foram inaugurados, anteontem, diversos divertimentos no Jardim Zoológico, entre os quais o do sorteio dos animais, que tem por fim animar a concorrência àquele estabelecimento. Esse sorteio consiste no seguinte: d' entre 25 animais escolhidos pela Empresa, é tirado um diariamente e metido numa caixa quando começa a venda de entradas. Às cinco horas da tarde, a um sinal dado, abre-se a caixa e a pessoa que tem a entrada com o nome e o desenho do animal, ganha-o como prêmio. ( Com esse sorteio, o barão obtém dois resultados básicos. Primeiro, usa li permissão oficial para estabelecer jogos no recinto do seu Zoológico, um item que o segundo acordo com o governo lhe havia facultado. Em segundo lugar, ele acata a sugestão do mexicano ManoeI IsmaeI Zevada, que bancava um certo "jogo das flores" num sobrado no centro da cidade do Rio de Janeiro (na esquina da rua do Ouvidor com
Diz. a propósito dessa participação de Zevada, o jornal O Tempo na sua edição de 3 de julho de 1892: "A empresa deste importante estabelecimento de criação do benemérito barão de Drummond vai hoje inaugurar diferentes divertimentos ao público fluminense, que ali terá diariamente um passatempo. O Sr. M. I. Zevada, é o gerente da empresa e conhecedor de vários estabelecimentos europeus e americanos idênticos ao Jardim Zoológico, dá esperanças de engrandecer aquela instituição de mérito nacional. Há um jantar de instalação, cujo convite muito agradecemos." Com algum exagero é possível levantar a hipótese de que esse "jogo das flores" tenha sido inspirado na popularidade que a "linguagem das flores", difundida a partir de Paris, deve ter gozado no Brasil, e com a qual os amantes poderiam trocar mensagens (cf. Goody, 1993). O francês Charles Expilly, que nos visitou pelos idos de 1850, fala de uma mensagem enviada por meio de um ramo de flores (um selam) pelo amante à esposa de um negreiro, que teria sido decifrada por uma escrava nos seguintes termos: "( ...) este selam está claro como o dia. O espinho e o jacinto, que exprimem a dor, têm um sentido mais preciso do lado deste galho de alecrim, que quer dizer amor fiel, e desta amêndoa amarga, que significa amor violento. É, portanto, um coração infeliz que fala, mas infeliz pela ausência, como indica essa galho de limoeiro. Isto é tão verdade - continua a escrava - que descubro aqui uma folha de ananás entre uma malva dourada e um cravo almirante. A folha de ananás lembra as horas de felicidade devidas ao amor, como o cravo o afirma, enquanto que o amante suplica à sua bela, enviando-lhe a malva, ter piedade dos seus tormentos e conceder-lhe nova entrevista. A resposta é pedida de uma maneira insistente por este botão de cravo branco. Eis, senhor, o selam decifrado." A mensagem prepara a vingança do marido enganado e o fato de ter sido decodificada por uma escrava mostra sua possível difusão (cf. Expilly, 1977:146; veja-se também Goody, 1993:237 e 239). Em suma: as flores são melhores para comunicar e presentear do que para jogar. Não posso deixar de assinalar que no seu livro enciclopédico sobre o qu~ chama de "cultura das flores", Jack Goody ignora esse uso lotérico das flores realizado .no Brasil. 77 Os dados sobre o "jogo das flores" vêm dos trabalhos de Cabral (s/d) e de Pacheco (1957). 76
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universo Iugidio e rnovimcntad d animais. mo ( li unir ds s entre outras coisas, mais dinâmicos do que as flores, cuja xist 'neia no mundo social é dócil e passiva.tf o barão relacionou duas série opostas, mas simbolicamente muito ricas em poder evocativo e simbólico: números e animais, que, conjugados, formaram a matriz do nosso jogo do bicho. A adaptação da coleção de flores à coleção de animais dá origem à lista dos 25 bichos tal como a conhecemos até hoje em todo o Brasil. Assim: 1 = Avestruz; 2 = Águia; 3 = Burro; 4 = Borboleta; 5 = Cachorro; 6 = Cabra; 7 = Carneiro; 8 = Camelo; 9 = Cobra; 10 = Coelho; 11 = Cavalo; 12 = Elefante; 13 = Galo; 14 = Gato; 15 = Jacaré; 16 = Leão; 17 = Macaco; 18 = Porco; 19 = Pavão; 20 = Peru; 21 = Touro; 22 = Tigre; 23 = Urso; 24 = Veado; 25 = Vaca. Tudo indica que esta lista reunia alguns animais do Zoológico do barão e outros que povoam a imaginação social ocidental e brasileira, como o cachorro, o gato, o cavalo, o burro, a vaca, o galo, o porco e a borboleta. Estes, embora dotados de grande capacidade relacional ou simbólica, permeando sonhos e textos sagrados, dificilmente seriam atração em qualquer Zoológico. O resultado final, fundado em um processo de seleção certamente implícito ou inconsciente, foi um riquíssimo conjunto que vai dos animais que se conhece bem e que são totalmente dependentes de nós (os domésticos) aos que, tendo autonomia da sociedade humana e sendo "ferozes" ou "selvagens", só podem ser vistos em livros ou no estrangeiro. Se os primeiros, conforme discerniu Sir Edmund Leach (1983), são próximos mas, exatamente por isso, gozam de uma exemplar ambigüidade e de um formidável poder evocativo, os segundos, pelo fato de estarem longe, são marcados pela não menos alusiva idéia de exótico e constituem os principais atores dos espaços destinados à sua apresentação, admiração e, hoje em dia, preservação= os Jardins Zoológicos. Não é possível descobrir como o barão constituiu a lista definitiva dos "seus" bichos, mas sabemos que, no Zoológico que fundou, os aniAs flores, embora tenham muitos outros traços distintivos, como a cor, o perfume, a forma e, por causa disso, um imenso poder evocativo e simbólico, servem mais como dádivas, ornamentos, objetos decorativos, figurando quase sempre como objetos de contemplação. Na tradição da nossa sociedade as flores são dádiva e objeto sacrificial- um objeto passivo, um meio de troca ou uma "natureza-morta" como diz bem um gênero de pintura em que predominam. Quando são representadas como agentes, encamam as virtudes da passividade, como a pureza, a virgindade e até mesmo a Virgem Maria, deven- . do ser protegidas nos jardins, conforme nos informa Jack Goody (1993). 78
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mais eram mantid emjaula c gaiola de diferentes tamanh . Havia a grandes jaulas dos leões, do tigre, dos leopardos e das hienas, bem como amplos viveiros com tucanos, beija-flores, araras, águias e outros pássaros. Obedecendo à paradoxal técnica moderna de fabricar "ambientes naturais" artificiais, construía-se nos arredores das jaulas e gaiolas o suposto nicho ecológico de origem dos animais. Os jacarés tinham a sua lagoa, a anta o seu lago com cana do brejo e os cisnes tinham vitóriasrégias. Havia ainda floreiras e fruteiras das mais diversas regiões para outros animais. As atrações eram muitas. O público poderia ver a distribuição de carne para leões e tigres, assistir à dança do elefante amestrado, deleitar-se com os malabarismos dos micos e macacos - com um destaque bem carioca para a então famosa macaca Sofia."? Aos domingos havia música, carrossel e barracas de doces (cf. Paraguassu, 1954:28). A todos estes atrativos veio acrescentar-se a novidade do "sorteio de bichos". Na viva descrição de Camilo Paraguassu, um dos raros memorialistas do jogo do bicho, confirmando as notícias dos jornais da época: /
Um dia, os bilhetes de ingresso no Jardim Zoológico apareceram com a figura de um bicho e os seguintes dizeres (aproximadamente): "Se a figura do bicho contida neste bilhete for igual a que se encontrar no quadro que se acha no interior do Jardim, o portador receberá vinte vezes o valor de sua entrada." Eu vi e tive em mãos, muitas vezes, esses bilhetes.ê?
79 O construtor de pianos Cristiano Carlos J. Wehrs assistiu à dança do elefante em 1891, registrando-a em seu diário: "Domingo. Às 11 horas viajamos para Vila Isabel, onde eu era convidado para, em companhia de Dreisler e de sua futura mulher e família, visitar o Jardim Zoológico. ( ... ) O Jardim não melhorou muito desde a última visita que lá fiz, mas recebeu muitos animais novos, da Europa. Por volta das 4 horas fomos até o restaurante, existente no interior do jardim, e tomamos algumas garrafas de cerveja Staten, que custaram a Dreisler (que fazia questão de pagar) a quantia de 14$900, o que é uma exorbitância. Um jantar lá custa 6$000 e, um pequeno almoço, sem vinho, 4$000. Quando percorremos novamente o Jardim, encontramos o Srs. Brück e sua jovem esposa (née Gõldner), Mussel (Diretor da Companhia de Gás) e Sauer, com quem ainda assistimos a demonstrações de um elefante amestrado. O grande animal ficava sentado junto a um prato, do qual ele comeu, tendo antes tocado uma campainha pedindo comida, depois pagou ao garçom e, em seguida, executou malabarismos, caminhando sobre troncos de cones de madeira, para diante e a ré, tocou realejo, bateu num surdo (tambor), passou por cima do seu domador etc. etc." E acrescenta. Wehrs: "Um menino 'com meio corpo', nós não quisemos ver" (Cf. Whers, 1980:262). Tais anotações indicam que o Zoológico do barão operava como um circo, apresentando figuras anômalas (um menino com meio corpo) o que revela o apelo para manter o público e levantar fundos. Por outro lado, o texto mostra que o Jardim era bem freqüentado, com um restaurante muito caro, a confirmar o tino comercial do barão. 80 Talvez esses dizeres tenham sido impressos nos bilhetes antigos. A reprodução fotográfica de um bilhete de 1895, no bem documentado livro de Jaime Larry Benchimol sobre Pereira Passos, mostra o seguinte: dominando a lateral esquerda, há o nome do bicho, no caso. em pauta um leão, impresso em letras grandes. No corpo do bilhete, lê-se, na parte superior, à direita, o seu número e, logo abaixo, o seguinte texto: "Entrada no Jardim Zoológico." Do lado direito, há a estampa de um leão e na parte inferior, está escrito: "Um rnil-réis." Finalmente, embaixo do bilhete, em letras menores, lê-se: "Esta entrada dá ao portador o
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s bichos ram 25 e o quadro qu Ilcava içado u um pOS( ti mud i· ra levantado em uma alameda, à esquerda logo a entrada do Jardim fechado a cadeado, era aberto às cinco horas da tarde. Quem colocava a figura do bicho no quadro era o próprio barão. Às seis horas chegava ele e, com o auxílio de serventes, fazia descer o quadro, colocava muito em segredo a figura do bicho do dia, fechava o quadro a cadeado e fazia soerguê-lo, retirando-se logo após. A tarde, aí por volta das cinco horas, vinha novamente, fazia descer o quadro, abria-o, aparecendo então o bicho sorteado. O quadro era novamente erguido e os circunstantes, os visitantes do Jardim, aplaudiam e comentavam calorosamente, como em geral é comum em nossa gente. Muitas pessoas examinavam os bilhetes para ver se a figura estampada nos mesmos era idêntica à que aparecia no quadro; mas havia pessoas que não ligavam a menor importância aos bilhetes (cf. Paraguassu, 1954:37). { Após certa indiferença i~icial, o jogo no Zoológico passa a atra~r verdadeiras multidões. Aparecia tanta gente que os carros da companhia de bondes criada pelo barão não eram suficientes para o transporte dos visitantes. Aos poucos, a promoção criada como um meio de atração do público tornou-se um fim em si mesma e muitos dos que afluíam às bilheterias do Jardim Zoológico pouco se interessavam em ver o espetáculo proporcionado pelos animais, pois seu objetivo era arriscar algum dinheiro no "sorteio do bicho". Pouco depois de sua criação, o jogo do bicho já era um fenomenal sucesso: Com três meses de existência o jogo já dava um lucro razoabilíssimo. O . que a Zevada não dera em ganhos à botânica, começava a dar-lhe a zoologia, que só num domingo registraram-se cerca de oitenta contos de bilhetes vendidos, como entradas! Neste momento já trabalhavam vários homens nos guichês e o número de porteiros foi elevado ao quádruplo (cf. Costa, 1938, vol, III:892-894, o grifo é nosso). A popularidade do jogo e o modo artesanal de realizar o sorteio do bicho, feito pessoalmente pelo próprio barão de Drummond, deram origem ao assédio dos visitantes na esperança de um "palpite" revelador.
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1 tlstru n 'I' nl 'u" pular qu 1 respondia aos insistente visuant N num t m zombei ir I' v lador de uma inteligência sintonizada, tanto • m "pensamento selvagem" quanto com a ambigüidade da simbologia brasileira. Quando, então, o povo questionava entre o sério e o galhofei1'0: "Que bicho vai dar hoje, senhor barão?", ele respondia provocador: IIYai dar o bicho que mais se parece com a mulher." Todos compravam os bilhetes da borboleta e dava cobra (cf. Paraguassu,1954:39). I
(DO SORTEIO À APOSTA: DO VISITANTE AO JOGADOR) A pesquisa histórica revela que a institucionalização do sorteio dos bichos no Zoológico passa por duas etapas. Inicialmente, o jogo era um imples e inocente sorteio. Os visitantes chegavam no Zoológico e não escolhiam o bicho que vinha impresso em seus bilhetes, pois a relação bicho-ingresso não dependia de uma escolha do comprador, mas da ordem de venda dos bilhetes. Por exemplo, suponhamos que estivesse à venda, diariamente, um talonário de seiscentos ingressos. Deste talonário deveriam constar os 25 bichos que totalizavam as possibilidades de prêmio. Dessa forma, cada bicho apareceria 24 vezes no talonário.si Esse ingresso dava o direito de concorrer a um prêmio no final do dia. O papel de apostador-jogador estava subordinado ao de visitante do Zoológico, pois o fato de visitá-lo levava ao sorteio, o que, conseqüentemente, fazia do visitante um jogador residual quando adquiria os ingressos. Neste estágio da evolução do jogo do bicho, não havia escolha, nem existia um ganhador-apostador. Havia apenas um visitante cujo ingresso era sorteado. Rapidamente, porém, esse espírito de sorteio se transforma, dando lugar à possibilidade de escolher o bicho no ato da compra do ingresso. Como mostra o ofício escrito em julho de 1892, que o segundo delegado dirigiu ao chefe de polícia, no qual argumenta, iniciando a longa e inútil perseguição a essa loteria: No empenho de procurar atrair concorrência de visitantes ao Jardim Zoológico, solicitou o seu diretor para certo recreio público licença, que lhe foi concedida pela polícia, em vista da feição disfarçadamente inocente que da simples primeira descrição do divertimento parecia se deduzir. Entretanto, posta em prática essa diversão, se verifica que tem ela o alcan-
direito de um prêmio vinte vezes o valor do mesmo. se lhe tocar o animal premiado. Válido por 4 dias." Por fim. há uma advertência tipicamente burocrática e muito brasileira: "Esta entrada não pode sofre~ a menor alteração." Vale observar que o leão não é chamado de "bicho", mas de "animal", o que p~rnute dizer que havia uma linguagem oficial que falava em "animal" e uma outra, popular, que se refena aos "bichos" (cf. Benchimol,
1990: Ilustrações).
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Esta informação
sobre o sistema original nos foi fomecida pelo Dr. Sérvulo Drummond.
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ce de verdadeiro jogo, manifestamente proibido. fi bilhetes xp stos li venda contêm a esperança puramente aleatória de um prêmio em dinheiro, e o portador do bilhete somente ganha o prêmio se tem a felicidade de acertar com o nome a espécie do animal que está erguido no alto de um mastro. Esta diversão - continua o Dr. Delegado - prejudicial aos interesses dos incautos, que com-a esperança enganadora de um incerto lucro se deixam ingenuamente seduzir, é precisamenrte um verdadeiro jogo de azar porque a perda e o ganho dependem exclusivamente do acaso e da sorte. Como semelhante divertimento não pode por mais tempo ser tolerado, e conquanto maior fundamento quanto é certo que muitas queixas me têm sido dirigidas pelas pessoas lesadas, assim intimarei o diretor do Jardim Zoológico para que suspenda imediatamente a continuação do aludido jogo, sob pena de ser processado na conformidade dos arts. 369 e 370 do código penal (cf. O Tempo, edição de 23 de julho de 1892). Nesta segunda fase, o papel de visitante fica subordinado ao de jogador. Em conseqüência, a visita ao Zoológico separa-se do gosto pelo sorteio, pois uma pessoa poderia ir ao Zoológico não mais para visitá-Ia como espaço educacional ou de lazer, mas para simplesmente tentar sua sorte no jogo. Essa mudança de foco permite caracterizar a atividade presidida pelo barão como umjogo de azar e não mais como um simples sorteio, pois o que, entre outras coisas, o caracteriza é a intervenção da vontade e a conseqüente ligação do apostador-jogador com um número (ou, no caso, com um bicho) de sua livre escolha. A possibilidade dessa escolha marca a atividade como "jogo": como uma instituição dominada pela "sorte" ou/e pelo "azar". Como revelam vários autores (Costa 1938; Pacheco, 1957; Cavalcante, 1940; Paraguassu,1954 e Pereira Mello, 1989), a possibilidade de escolher um bilhete (e um bicho), configura uma etapa no qual os visitantes passam a tomar parte na brincadeira de forma mais ativa. Nessa fase, portanto, os visitantes-apostadores chegam aos guichês do Zoológico e vão logo pedindo: "Me dê uma vaca, cinco jacarés, três coelhos, dois gatos etc.", numa demanda que indica a motivação do apostador alimentado pela excitação da aposta e do eventual ganho. Essa transformação pode ser ilustrada pelos inúmeros pedidos de "palpites" para o barão. Entre 1892 e 1894 o jogo do bicho passa pelo que poderíamos chamar de infância ou "fase amadora" da atividade. São traços relevantes dessa etapa o fato de o jogo estar restrito aos limites do Zoológico; o fato de o comando do jogo estar nas mãos do barão, único responsável pela escolha do "bicho do dia"; e, finalmente, o fato de essa modalidade lotérica ser legal.
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Vale novamente acentuar que nesse período há uma intensa proliferação de loterias e sorteios que passam a ser uma verdadeira mania na cidade do Rio de Janeiro.s- Entre essas múltiplas formas, apareceria uma modalidade novamente parecida com o jogo do bicho e seu ancestral, o jogo das flores. Trata-se do jogo dos alimentos (cf. Cabral, s/d). Como o nome indica, o jogo dos alimentos equacionava números a artigos de armazém. Tal loteria estava associada ao fato de que os "vendeiros" foram os primeiros a distribuir os bilhetes de bicho fora dos portões do Zoológico. Dotados de agudo tirocínio comercial e tendo observado a popularidade dessa loteria, os vendeiros trataram de tirar partido da moda e inventaram um jogo que pudessem bancar. No jogo dos alimentos, uma pessoa poderia jogar no "alpiste", no "alho", no "azeite", no "arroz", no "açúcar", na "banha", na "canela", no "café", no "feijão", no "fumo", na "farinha", no "milho", no "polvilho", no "toucinho", na "vela" e no "vinagre", para mencionar os ingredientes mais conhecidos. Como o jogo das flores, porém, o jogo dos alimentos - talvez por não ser um "jogo da comida"83 - não teve a mesma popularidade que o jogo do bicho e esvaiu-se em sua originalidade. Mas é interessante notar que essas três modalidades de jogo - o das flores, o dos alimentos e o do bicho - tinham exatamente o mesmo formato: 25 elementos dispostos em ordem alfabética, associados a 25 algarismos também dispostos num contínuo a partir do número zero. Nesse contexto, vale citar o que disse Oswaldo Cabral sobre essa modalidade pe jogo, explicando sua ausência de popularidade: \ Diversas variantes foram tentadas ou lançadas, sem maior êxito (...) o povo não as aceitou - pois "jogo do bicho" só mesmo com bichos ... É bem verdade que dentre tais "gêneros alimentícios" há alguns que, francamente, não se sabe como foram parar na relação pois não consta que
o jogo era comum até mesmo entre os escravos, que, com isso, podiam eventualmente comprar sua liberdade (cf. Karasch, 1987:359). 83 No Brasil, conforme já mencionado por um de nós (cf. DaMatta, 1991), há uma importante distinção entre "alimento" (categoria que inclui tudo o que é comestível e nutritivo) e "comida" (categoria que conota tudo o que é comido regularmente e com gosto no Brasil). A primeira categoria é universal, a segunda é local, estando referida ao "alimento" culturalmente aprovado e desejado, dotado de valor social. No Brasil, como em outras sociedades, nem tudo que é alimento é comida. Por causa disso, a comida marca sentimentos e identidades. A "feijoada" é símbolo nacional e também é "prato" revelador de um ambiente aberto, igualitário e sem cerimônia. É, pois, palpite nosso que se o jogo dos alimentos tratasse menos de ingredientes e matérias-primas e mais de comidas (peixada, rabada, feijoada, vatapá, angu, cozido etc.), essa loteria talvez tivesse sido mais popular. 82
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E Cabral, com a perspicácia de sempre, toca no ponto certamente crítico: É provável, entretanto, que, como fator de êxito, tenha falhado a tais variantes a possibilidade do "palpite" que, como veremos adiante, constituiu sempre o maior acicate ao gosto pelo jogo do bicho. Quem iria ter palpite no bogari ou no polvilho? Dificilmente se sonha com tais coisas, não é possível descobri-Ias no céu ou ligá-Ias a qualquer fator acidental. O bicho, não. Sonha-se com ele Oucom fatos a ele ligados. No céu, as nuvens tomam formas de carneiros, de leões ou de camelos - mas nunca de tapioca, amendoim ou alho, ou camélias, ou beijos-de-frade ... Seria tão difícil arranjar um palpite numa flor ou num gênero de estiva quão fácil será conseguir num mamífero ou numa ave qualquer.
Por tudo isso, o "jogo dos alimentos" pereceu nessa fase febril de jogatina carioca, quando, ao se descobrirem formalmente livres e iguais, os habitantes do Rio de Janeiro parece que utilizaram o jogo como mais uma expressão de sua nova condição política. A partir dessa primeira etapa, porém, o caráter do jogo começa a mudar. De fato, no período que vai de 1894 a 1895, o jogo do barão se torna de tal modo popular que muitas pessoas passam a visitar o Zoológico com o único objetivo de especular em torno do prêmio. Agora, o jogo começa a constituir um fim em si mesmo, pois nessa fase o povo visita as jaulas do Zoológico com o intuito ambíguo de ver os animais presos e de "acertar" neles. Paradoxalmente, os bichos começam a ser soltos na selva do imaginário urbano carioca. O fato mais importante desse período é sem dúvida o surgimento de intermediários, que, tirando partido da popularidade do jogo do barão, passam a "bancar" - isto é, a financiar - o jogo do bicho por conta própria, criando uma primeira rede organizacional de suporte ao jogo e a seus aficionados. Não se sabe se tais intermediários estavam ou não a serviço do barão. Mas pode-se afirmar que eles formavam uma pequena legião que levava o jogo do bicho a competir diretamente com o sistema de loterias federais que estava sendo transformado no sentido de se tornar uma atividade coordenada pelo Tesouro Nacional. Daí, sem dúvida, a proibição oficial do jogo do bicho já no ano de 1895, pelo decreto de n? 133 (da cobra), de 10 de abril, quando ainda estava em sua infância.
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Mas, como ocorre com tudo o que é proibido, o jogo do bicho já havia tomado conta da cidade. Realmente, nas palavras de um cronista: O jogo do bicho caiu no agrado da população, porém, o negócio de ir cotidianamente ao Jardim Zoológico era estafante. Certo dia um vendeiro de "Secos e Molhados" (ah! O bom velho tempo! ... hoje, todos os armazéns são "bars" ...) resolve bancar, bancar o jogo por sua própria conta! Houve notas de vendas assim: "Manteiga, meio quilo; sabão, um pau; vinagre, uma garrafa; vassoura de piaçava, uma; palitos, uma caixa e dez tostões no peru, quinhentos réis na cobra, e trezentos réis no macaco." Mas, não foi um vendeiro só, foram muitos! ... Do cais do Pharoux a Copacabana; da Ponte dos Marinheiros a Santa Cruz; de Santa Teresa ao Pedregulho; barbeiros, botequineiros, casas de armarinho, mantinham seus agenciadores; houve talões impressos e, à tarde, os telefones transmitiam o sorteio do Jardim Zoológico, que era noticiado nos jornais da manhã (cf. Paraguassu, 1954:40).
Mas, como o centro do sorteio ainda era o Zoológico do barão, muitos especuladores compravam grandes quantidades de bilhetes no Jardim e aguardavam do lado de fora o anúncio do "bicho que deu", intermediando a jogatina. Por outro lado, como estes bilhetes podiam ser revendidos em qualquer ponto da cidade, o jogo começa a demandar sua própria organização. Com isso, foi criada a figura do mediador ou do bookmaker,84 que comprava grandes quantidades de ingressos e bancava o jogo por conta própria, formando uma freguesia particular (cf. Cavalcante, 1940:65). A inovação promovida pelos bookmakers facilitou as apostas, permitindo que as pessoas jogassem sem deixar seus bairrÓs e residências, o que virtualmente liquidava o monopólio espacial do barão, pois agora já não era necessário ir ao Zoológico. Tal possibilidade inventa também outro traço típico do jogo do bicho, qual seja: a possibilidade de a classe média jogar a domicílio, confortavelmente, sem sair de casa ou arriscarse. Já não era preciso vestir-se ou esperar pela noite, como ocorria quando se queria ir a um cassino ou ao Jóquei Clube. Quem podia, tinha um "moleque" ou "criado" que, entre outras coisas, apanhava as compras no armazém e fazia o jogo do bicho dos seus patrões.
84 Assim, a palavra entrou no vocabulário brasileiro. Vale anotar que o "fazedor" ou "editor de livros", o bookmaker, é rigorosamente um mediador. tal como o recebedor de apostas que. com seu registro de palpites escritos, fazia os livros-caixa dos banqueiros de jogo. O bookmaker é necessário em modalidades de jogo que podem operar à distância dos apostadores, como as corridas de cavalo (que fixaram a expressão) e, naquele momento, o jogo do bicho.
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Outro dado importante dessa fase é o possfv I aluguel das d 'pendências do Zoológico a um conhecido empresário de jogos, o Sr. Luiz Galvez. Esse arrendamento teria sido feito sem o conhecimento prévio da Câmara ou da prefeitura, e teria ocorrido exatamente no período em que os jogos no Zoológico se tornam mais ostensivos, nos anos de 1894 e 1895 (cf. Pereira de Mello, 1989:62).
OS "BICHOS"
SE ORGANIZAM
Mas é preciso não esquecer que, como bom empresário, o barão permanecia ativo, bancando seus agentes que vendiam bilhetes pela cidade (cf. Cavalcante, 1940:65). Pois, percebendo o sucesso irreversível do jogo, ele inaugura escritórios em vários pontos do Rio de Janeiro e, por meio de seus agentes, espalha o jogo por vários pontos comerciais, abrindo aos negociantes a venda de grande quantidade de bilhetes. Nessa franquia, esses negociantes ganhavam em torno de 50 mil-réis por dia, o que era um bom dinheiro. Essa idéia provavelmente é original do Sr. Galvez, que teria assim contribuído para a primeira "profissionalização" do jogo do bicho. É muito provável que, entre 1894 e 1895, o jogo do bicho fosse explorado por três grupos: (a) o dos "agentes do barão", (b) o dos bookmakers autônomos (que possivelmente vendiam também outras modalidades lotéricas) e (c) o dos comerciantes em geral, que "bancavam" as apostas por conta própria, ou recebiam comissão sobre a venda de bilhetes. Com isso, criam-se vários centros de jogo do bicho, com uma conseqüente coexistência de vários sorteios. Há, obviamente, o sorteio do Zoológico do barão, mas junto com ele operam muitas outras modalidade de obtenção do "bicho do dia". Tanto isso é verdade que existem variantes do jogo do barão em outras regiões do país. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o jogo se adapta às peculiaridades locais, dando origem a uma lista de bichos gaúcha, que começa com o tigre, termina com águia e na qual o 24 não é o número do veado, mas do galo! Eis a lista dos gaúchos: 1 = Tigre; 2 = Peru; 3 = Cachorro; 4 = Avestruz; 5 = Cervo; 6 = Veado; 7 = Touro; 8 = Cavalo; 9 = Gato; 10 = Ovelha; 11 = Rato; 12 = Camelo; 13 = Porco; 14 = Burro; 15 = Coelho; 16 = Macaco; 17 = Tatu; 18 = Leão; 19 = Pombo; 20 = Elefante; 21 = Girafa; 22 = Urso; 23 = Cabra; 24 = Galo; 25 Águia.
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c rvo, a v lha, o ratc, tatu, o p mbo e a girafa não figuravam na lista de bich s que foi aceita em todo o país. Conforme demonstra swaldo Cabra], que estudou essa variante sulina do jogo, sonhar com um destes animais fazia com que o jogador fosse ver o seu correspondente na lista do barão, o que mostra que a lista de bichos do barão era tomada como referência, com foros de lista oficial e oracular. Há registro também de que, no Espírito Santo do começo do século, havia não apenas um jogo de bicho, mas também um jogo de flores, de frutas, de pássaros e de tontinas (uma forma de associação na qual os capitais dos sócios que morrem passam para os sócios sobreviventes). E em Diamantina, interior de Minas Gerais, o jogo do bicho já havia penetrado em 1895, conforme atestam as agudas observações de Helena Morley, antecipando contradições entre o papel do jogo e dos bicheiros, um vespeiro moral e político que até hoje não conseguimos assentar: Ontem Bibiana deu um baile de piano de despedida para nós. Estavam lá, além dos primos, os dois bicheiros. João Antônio nos disse que não devemos lhes dar tanta confiança, pois que bicheiro no Rio de Janeiro é muito desclassificado. Mas eu lhe disse: "Que importa isso? Eles são desclassificados lá, mas aqui são muito bem classificados e por isso não podemos tratá-los mal, sendo eles uns rapazes tão simpáticos." Além disso, só depois que eles chegaram a Diamantina é que a gente vê um movimentozinho de dinheiro. Antes do bicho era só pindaíba. Que boa invenção esse / jogo!" (cf. Morley, 1971:262).
Encontramos também registro de um jogo do bicho no estado do Pará no ano de 1924 (cf. Pacheco, 1957). Outro exemplo dessa rápida penetração é uma lista profética e de resto esperada no ambiente de poder do Brasil, surgida em Santa Catarina, já em 1898, que equacionava os 25 bichos a políticos e personalidades públicas. Cronistas da época indicam que em Santa Catarina, local bem cortado por estradas, se encontravam bicheiros que iam de casa em casa, em longa caminhada desde as primeiras horas da manhã até as primeiras horas da tarde, tomando o jogo dos fregueses. Muitas vezes, para agilizar o processo, iam de bicicleta. Como é típico do jogo do bicho, o resultado chegava prontamente até as dezessete horas, pelo telégrafo, talvez vindo diretamente do Rio de Janeiro, onde estaria sediada uma espécie de cúpula do jogo, que dava os resultados junto com alguma loteria legal. O fato notável de todas essas variantes é, sem dúvida, a questão da confiança no "comando" do jogo. Essa credibilidade faz com que as pes-
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soa apostem sem alimentar de c nfiança d qu .cas zunh rn, ro possa vir a não honrar o compromisso. De certo modo, essa intrigante "equação de credibilidade" deve ter alguma relação com a figura do fundador do jogo, o empresário João Baptista Vianna Drummond, que era um nobre, um barão do Império. Mas como se explica a sua permanência quando o barão é substituído por uma rede de financiadores clandestinos? Depois da proibição, a argúcia das novas lideranças consistia em atrelar o resultado do bicho a números legais - fossem eles os resultados das loterias permitidas, das rendas da alfândega, que também eram publicadas diariamente, ou de quaisquer outros números confiáveis e de domínio público. Isso estava em flagrante oposição ao sistema elementar do chamado "jogo da caixinha", que mantinha algumas características comuns com o praticado pelo barão. Em ambos os casos, uma única pessoa determinava "o bicho do dia" e o resultado era guardado em um lugar fechado a sete chaves e à vista dos apostadores. Tal lugar muitas vezes era um compartimento atrás de um quadro do barão, o que garantia a honestidade pela proximidade com o fundador sagrado do jogo; ou a caixinha do vendeiro. Em geral, o resultado era posto em um quadro situado no alto de um mastro ou no telhado. Com isso, o resultado estava à vista, porém fora do alcance de todos, podendo ser vigiado e protegido. Em que pesem, porém, essas precauções, havia sempre suspeita de "ladroeira" no "jogo da caixinha". Retomaremos este ponto na próxima seção, na qual estudaremos a sociologia do jogo. Agora vale a pena mais uma vez assinalar a plasticidade demonstrada pelo jogo do bicho, pois nem sua interdição oficial, nem as campanhas repressivas que se seguiriam, ou tampouco qualquer restrição de ordem técnica, foram suficientes para impedir seu alastramento pelas mais recônditas regiões do país. Outro exemplo curioso de adaptação inventiva ocorre no município de Nova Trento, em Santa Catarina. Ali, conforme revela novamente Oswaldo Cabral, o bicho da caixinha era substituído por uma pedra tirada ao azar de uma coleção de víspora (loto). Todos esses dados, sobretudo as variantes locais, atestam a formidável penetração vertical e horizontal do jogo do bicho na sociedade brasileira e também ajudam a compreender como ele vai se incorporando aos hábitos locais, sofrendo reapropriações, mas sempre encontrando um espaço na alma da população. Um modo freqüente de obter um resultado confiável e satisfatório
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r sultad d bich s I t rias fi 'iai. ,num x mpl viv d u imaginativo das instituições oficiai pel p v . A essa altura, entretanto, o imenso sucesso do jogo do bicho começava a predispor as autoridades contra ele. De fato, desde 1894, a proliferação dos jogos de azar começou a surgir como um "problema" para as autoridades republicanas, que também tinham projetos de utilizar a tendência às apostas como canal de financiamento através da institucionalização de uma loteria federal. A jogatina sempre esteve presente na sociedade, mas quando, com a proclamação da República, se adota formalmente o credo igualitário e o ideal de liberdade individual como base da cidadania, a atividade se amplia de modo considerável, chegando à consciência das elites como um problema social que cabia discutir, regular e controlar. De todos os fenômenos associados ao alastramento da jogatina na capital federal, as casas de bookmakers, provavelmente por sua visibilidade, foram os principais alvos da repressão policial. Assim, em meados de 1894, o primeiro delegado auxiliar do Distrito Federal investiga as atividades dessas casas com o intuito de separar os estabelecimentos que tinham autorização para vender poules de corridas a pé e a cavalo - que eram classificadas como "jogos de lazer" - e as que operavam com todo tipo de rifas e loterias, inclusive com o jogo do bicho, ampliando seu campo de ação, sem se colocarem fora da lei. Essa malandragem irá originar uma atitude tipicamente elitista, conforme foi observado em nosso "Palpite inicial" (na nota 40), fazendo com que os chefes de polícia se sentissem moralmente obrigados a "proteger o povo" contra sua própria vontade, na figura do que chamavam "os efeitos danosos dos jogos de azar". No caso do jogo do bicho, cuja popularidade era avassaladora, a perseguição foi sem dúvida determinada, conforme sugere Pereira de Mello, pelo acordo secreto entre os órgãos de repressão e a Loteria Federal, que queria encontrar campo livre para suas futuras apostas quando fosse lançado seu sistema. Outro fator que legitimava a ação policial eram os tumultos provocados pela multidão que diariamente forçava a entrada no Jardim Zoológico para obter o resultado do bicho (cf. Cavalcanti, 1949:53). Resulta de tudo isso a primeira legislação com o objetivo de desarticular a estrutura dos jogos de azar da cidade. Deste modo, em janeiro de 1895, o poder executivo municipal sanciona o decreto de n? 126 (do carS,.
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neir ) que proibia a 1 t ria e rifas praticada p 1 s bookmakers limitava as operações dos jogos e corrida dos frontõe e boliches a um s dia na semana (cf. Pereira de Mello, 1989). Os jogos realizados no Zoológico não escapam à ação policial. Mas o jogo do bicho estava de tal modo estabelecido junto ao povo que, já no ano de 1895, existia o recurso malandro de vender o bicho sob a aparência de seguro de vida e de pecúlios. Tudo isso revela que em pouco tempo o "Jogo de bichos do Jardim Zoológico" havia se estabelecido e disputava com outras formas lotéricas a preferência dos apostadores. Os agentes lotéricos clandestinos, preocupados com a força inesperada do jogo do barão, tentam combatê-Io à brasileira, por meio de uma ação legal. Para tanto, enviam uma carta anônima ao prefeito pedindo providências legais contra o jogo do bicho. Ou seja, o jogo dos outros ... (cf. Pereira de Mello, 1989:59).
JOGO
E REPRESSÃO:
A REAÇÃO
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resultado de tudo isso foi o aparecimento do Decreto de n? 133 (da cobra), de 10 de abril de 1895, que autorizava o prefeito Cesário Alvim a rescindir o contrato com a empresa de João Baptista Vianna Drummond, responsável pelo Zoológico. Tal decreto é um dos melhores exemplos daquilo que Weber chamava de conseqüências não previstas das ações sociais, pois, em vez de liquidar o jogo, como pretendia, situando-o como atividade clandestina e igualando-o a outros jogos de azar, acaba legitimando e reconhecendo a sua força. ~ O trabalho de Pereira de Mello (1989) sugere que as campanhas contra o jogo do bicho foram marcadas pelo desencontro das medidas e, por vezes, dos interesses do poder Legislativo municipal, do Executivo e da própria instituição policial. Mas o fato é que elas, como vimos, produziram alguns efeitos palpáveis,85 como a relação de oposição complementar entre o policial e o bicheiro. À medida que a repressão se toma nacional e fica mais sofisticada, o bicheiro vai se organizando para obter o efeito oposto. O resultado é Em 1900, João Ferreira da Costa teve sua casa vistoriada pelo delegado da 10' Circunscrição porque o titular entendia que Costa era um "vendedor do jogo dos bichos". Com isso ele perseguia o suspeito e, para não deixar de seguir a regra não escrita de uma sociedade hierárquica (na qual se uma farrulia produz um criminoso todos os membros do grupo são corporativamente vistos como delinqüentes), não deixava em paz a farrulia de João Ferreira da Costa, que, por causa disso, protesta ao Jornal do Brasil, como nos informa o original estudo de Eduardo Silva (cf. Silva, 1988:110). 85
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S5' ,c m já ugerirnos, é a principal responsável pela orgado j go, unindo os bicheiros e provocando uma conseqüente xpul ão dos "amadores" ou banqueiros eventuais, porque uma atividade r( ra da lei se toma coisa séria, configura riscos e pode conduzir a severas rdas sociais. Talvez por ter um desprezo ideológico pelo capital, valorizando em S LI lugar terras e títulos, a monarquia sempre tenha tratado o jogo com displicência e até mesmo certa dose de condescendência. Afinal, do seu p nto de vista, o dinheiro não aristocratizava e não comprava o sangue azul. Até a virada republicana, portanto, os jogos de azar tinham sido tratados com negligência e certa dose de descaso. O chamado combate ao jogo sempre foi esporádico e, mais que isso, pasmódico e local, movido inteiramente pela polícia. Já no ano de 1899, o chefe de polícia do Distrito Federal encaminha ao prefeito Cesário Alvim um ofício no qual pede que cessem as concessões para xploração dos jogos de azar, constantemente emitidas pelo Executivo municipal. Argumenta o titular do posto que estas concessões vão de encontro ao esforço da polícia no combate ao jogo. O chefe de polícia aproveita a ocasião para comunicar ao prefeito que dentro de alguns dias encetará uma campanha contra o jogo em geral e, em especial, contra o "jogo de bichos". A campanha não chegou a realizar-se, mas este ofício dará o tom da atitude assumida pela polícia na década seguinte, em espe-. cial a grande ofensiva policial de 1917 contra o bicho. Um pouco antes, porém, no ano de 1913, ocorre uma polêmica de sabor muito atual que ganha espaço na imprensa. Nela, o chefe de polícia da época, Sr. Belisário Távora, é acusado de conspirar com os empresários do jogo. Essas acusações, conforme informa o jornal A Noite, de Irineu Marinho, provocam escândalo e lhe custam o cargo. Em seu lugar entra o Sr. Manoel Edwiges que prontamente se lança ao recenseamento dos estabelecimentos de jogos de azar no Rio de Janeiro. O levantamento registra 648 pontos de apostas em todas as regiões da cidade. No entanto, o Sr. Edwiges só ficaria no cargo por cinco meses, sendo nomeado para o seu lugar, em dezembro de 1913, o Sr. Francisco Valadares. Toda essa instabilidade da chefatura de polícia exprime o início de um relacionamento permeado de ambigüidades entre bicheiros e policiais. Mas será preciso esperar até o ano de 1917 para que se observe uma ação mais ambiciosa no combate ao jogo. Para entender esse movimento repressivo, porém, não se pode esquecer a atuação de um importante fator, já mencionado. Queremos nos referir à pressão exerci da pela I
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ompanhia da Loterias Nacionais, n scntid d xtcrminar as I l rias clandestinas - e o bicho era a maior delas - e de fazer ce ar a emiss de novas concessões pará a exploração de loterias por particulares, que a prefeitura se negava a interromper. Criada em 1896 e por certo parte do projeto modernizador liberalrepublicano que visava a tornar positivas as ambições, tirando partido financeiro e fiscal de sua presença, a Companhia das Loterias Nacionais acompanha com interesse e inveja o sucesso e o alastramento do jogo do bicho em todo o país. A partir de 1898, ela começa a atuar de modo mais ativo, divergindo primeiramente da postura leniente do poder municipal, que tinha do assunto uma visão local. Com isso, passa a ser uma força atuante a favor das medidas repressivas contra os jogos de azar a partir de 1917. Assim, em agosto de daquele ano, tem início uma campanha pública sem precedentes contra o jogo do bicho, que logo ficaria conhecida pelo significativo nome de "Mata-Bicho". À frente do movimento, estaria o próprio chefe de polícia, Sr. Aurelino Leal, e o delegado do terceiro distrito, Sr. Armando Vidal. Durante três meses, toda a polícia da cidade ficou mobilizada na campanha, que efetuou centenas de prisões e fechou 868 casas de apostas do jogo do bicho. Apesar de seu furor, porém, o "Mata-Bicho" seria alvo de inúmeras críticas que, brasileirissimamente, punham em questão sua legalidade, dividindo a opinião pública e colocando parte do povo em oposição aos juristas. A divergência se transforma em uma acalorada polêmica, transborda em eruditos e sofisticados debates na imprensa e chega à Câmara dos Deputados na figura de Maurício Lacerda. Segundo o deputado, a feroz campanha de repressão ao jogo do bicho teria sua origem na pressão política que os diretores da Companhia das Loterias Nacionais realizam junto ao chefe de polícia. Essa pressão chega ao ponto de esses diretores financiarem a operação policial de repressão. Tal desmascaramento estabelece dúvida quanto à legalidade da campanha, conduz a população a protestar contra a truculência da ação policial e, finalmente, leva à suspeita de conchavo entre a polícia e a direção da Companhia das Loterias Nacionais. O resultado, como seria de esperar, é o fim da campanha do "Mata-Bicho", em dezembro de 1917 (cf. Pereira de Mello, 1989: capo3). Assim, somente no ano de 1946, no governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, é que o jogo do bicho sofre seu mais profundo golpe legal, quando é definitivamente criminalizado junto com outros jogos de azar. É, pois, a repressão que, paradoxalmente, dá vida ao jogo do bicho como
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Estado. Abre-se nesse momento uma porta igualmente importante. A repress o organizada, agindo sistematicamente, valorizou a atividade e nela .riou uma autoconsciência valorativa e defensiva, forçando-a a também se rganizar. Se o jogo era um passatempo inconseqüente e esperançoso, agora que os decretos oficialmente o pintavam como um descaminho moral para a classe média, ele ser transformava em atividade tentadora e interessante - precisamente porque era proibida. A repressão, portanto, inaugura uma nova fase na existência do jogo do bicho: a de consciência institucional de si mesmo. Há também a estruturação de uma rede confiável de agentes para captar apostas e suportar o peso dos palpites volumosos que ampliava os lucros dos banqueiros e produzia uma unificação dos resultados, tornando-os claros, de fácil acesso e confiáveis, um dado crítico em qualquer jogo de azar.
DA REPRESSÃO À PROFISSIONALIZAÇÃO Num plano mais concreto, o primeiro efeito da proibição foi desvincular o sorteio do bicho do Zoológico. Com isso, o jogo se desdobrou em uma multidão de variantes. Nas pálavras de um observador da época: Nessa altura, o jogo tem-se desdobrado de tal forma que dentro de umjogo só há quase seiscentos! Há o Antigo, o Moderno, o Rio, o Salteado, o Agave Americano ... E quantos mais? Popular, Companhia Elegante, Moderno, Loto, Industrial Brasileira, Museu das Flores, Grêmio Fluminense, Nascente, Ocidente, Carioca, Garantia, Luz do Céu, Esperança, Estrela do Destino, Segurança, Ajuda de Nossa Senhora, Talismã da Sorte e muitos outros (cf. Costa, 1939:904).
S HÁBITOS: O JOGO E ~PUBLICA "Que bicho deu?" "Deu Deodoro!" (in Carvalho, 1990:146)
Vale a pena, nesta parte, consolidar alguns aspectos históricosociais que ampliam nossa compreensão do jogo do bicho como fato social total e não apenas como um dado da história da contravenção e do crime na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil. O contexto sócio-histórico que engendra o jogo do bicho é marcado pelos seguintes eventos: 1888 1889 1890 1890 -
Abolição da Escravatura Proclamação da República Separação entre Estado e Igreja Invenção do jogo do bicho
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Por mais prudente que eja a prática de desc nfiar das "mudanças oficiais" que se processam na sociedade brasileira, não parece men prudente reconhecer-Ihes significado social e, acima de tudo, suas implicações jurídicas. A gradual liquidação de uma economia escravocrata e o conseqüente desenvolvimento dos centros urbanos, bem como a mudança do sistema de governo e da ordem legal, fundam uma ordem institucional e uma economia baseada no mercado, nos direitos individuais e no trabalho livre. Em suma, um sistema de desenho burguês, liberal- individualista e moderno. É significativa a transformação por que passa o jogo do bicho. Em vez do sorteio realizado por um "nobre" - personagem emblemático de uma sociedade personalista e patriarcalista -, o jogo agora adquire certa impessoalidade e pode ser posto ao lado dos seguros e loterias em geral, instituições que igualmente proliferam quando da implantação de uma ética social moderna, em que as chamadas "leis do mercado" ditam as normas, fazendo com que a sociedade se "naturalize" e se impessoalize. Agora, os responsáveis por sua dinâmica não são mais os nobres, mas um conjunto de processos e motivações universais e, por isso mesmo, impessoais e anônimas. Nesse sentido, o "sistema do jogo do bicho" pode ser visto como um código que exprime tanto os valores recém-instituídos pela vitória do movimento republicano - como a igualdade e a mobilidade social- quanto os elementos interiores da sociedade, que valorizavam o imobilismo, a hierarquia e o relacionamento de tudo com tudo. O jogo do bicho foi inventado na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1890. Àquela época, 29% da população eram compostos de estrangeiros; indivíduos originários de outras regiões formavam 26% e apenas 45% eram constituídos de nascidos na cidade. Nessa primeira década de regime republicano, porém, deu-se uma profunda reviravolta demográfica. A libertação dos escravos e o acentuado fluxo migratório excedem as possibilidades de emprego e moradia. O resultado desse quadro de crescimento e de rápida diversificação populacional foi uma crescente impessoalização nas relações sociais. De comunidade onde todos se conheciam, dado o afunilamento imposto pela hierarquia, o Rio de Janeiro passa a ser uma cidade onde os fluxos de população e as novas regras de governo tornam as pessoas iguais perante a lei e, conseqüentemente, instituem a impessoalidade como atitude ideal (ainda que formal) de conduta. Acrescente-se a esse quadro a especificidade do desfecho triunfal do movimento republicano, chamado paradoxalmente de "Proclamação". A reduzida participação popular no processo de transição republicana lhe
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conf r um sp ct d hanc e de urprcsa - daquilo que, entre n6s, se c nvencionou chamar significativamente de "golpe", termo .que acentua componentes de um evento inusitado e inesperado. Dessa forma, a República teria sido realmente mais "proclamada" do que instaurada. A massa da população, como ressaltam os historiadores da época, foi tomada de assalto pela "parada militar de Deodoro". Não havia uma tradição republicana que legitimasse o novo regime e o situasse como o caudatário decisivo dos anseios populares. O povo, como sabemos, ficou alheio ao processo, assistindo "bestializado" às manobras das elites. Mas mesmo a elite militar e política diretamente envolvida no evento estava longe de ter um consenso em torno do novo ideário nacional (cf. Carvalho, 1991). De fato, vários modelos de República disputavam legitimidade e reconhecimento oficial. Havia o modelo liberal norte-americano, havia o modelo de participação popular direta inspirado no jacobinismo francês e existiam ainda as concepções positivistas mais abstratas e evolucionistas, que não se preocupavam diretamente com as formas de governo. Buscava-se um modelo de República que se adequasse ao caso brasileiro ou, mais precisamente, aos interesses específicos dos grupos envolvidos. Essa disputa de correntes e modelos ideológicos transborda numa verdadeira batalha em tomo dos símbolos que expressariam o novo governo e exprimiriam sinteticamente o novo credo nacional. Como bem interpreta José Muplo de Carvalho, procura-se formar uma "imagem do novo regime, ÇJJjá' finalidade era atingir o ideário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos" (1991: 10). Há, pois, nesta primeira fase republicana, um debate simbólico importante em torno de heróis e símbolos nacionais que terá repercussões na nascente cosmologia específica do jogo do bicho, um sistema que surge nesta mesma época. Mas, apesar dos símbolos e da ideologia democrática, o fato é que a transição republicana se dava numa sociedade profundamente hierarquizada e desigual. Nesse contexto, a idéia de um mercado regulador de interesses de agentes formalmente iguais era algo difícil de se configurar como prática. Poderia (como foi) ser instituída na letra da lei, mas o que de fato ocorria era a sanção da lei do mais forte, o que era aceito nessa sociedade caracterizada pela desigualdade. Nos instantes iniciais da República, o igualitarismo jurídico-político só poderia favorecer os socialmente superiores, as pessoas que podiam usar as novas regras do jogo, inclusive um livre mercado, em seu próprio benefício. Ademais, para agravar essa sensação de insegurança cultural
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e/ou m ral, fmb 10 bem estabelecidos d vclh p der, c m a imo. CI11 de um imperador distante, justo e paternal, como era Pedro 11, foram igualmente varridos de cena e tornados subitamente inoperantes. Essas modificações começam no ano anterior à Proclamação, pois, como conseqüência da Abolição (realizada em 1888), o governo imperial lança mão da emissão de moeda como expediente compensador para as perdas sofridas pelos cafeicultores, que agora deveriam pagar salários. Este expediente foi mantido com entusiasmo pelo Governo Provisório em sua luta para angariar simpatias. Como explica José Murilo: Concedido o direito de emitir a vários bancos, a praça do Rio de Janeiro foi inundada de dinheiro sem nenhum lastro, seguindo-se a conhecida febre especulativa, bem descrita no romance de Taunay, o encilhamento. Segundo um jornal da época, "todos jogavam, o negociante, o médico, o jurisconsulto, o funcionário público, o corretor, o zangão; com pouco pecúlio próprio, com muito pecúlio alheio, com as diferenças do ágio, e quase todos com a caução dos próprios instrumentos do jogo" (cf. Carvalho,1991: 19-20).
Nesse ambiente social, em que a especulação era fortalecida e nascia associada a um novo ideário social e político, nada mais razoável do que ter também o jogo do bicho e as loterias como mais uma opção para enriquecer e mudar de posição social, ficando mais igual do que o povo mestiço e ex-escravo, marcado pelos séculos de subserviência e pela desigualdade como um valor moral. A magnitude dessa adesão aparece em relatos de época, como o de Luís Edmundo Costa em O Rio de Janeiro do meu tempo, que fala de um "frenesi despertado pelo jogo do bicho jamais visto em nenhuma outra modalidade de jogo" (1938:888). Esse mesmo Luís Edmundo observa que, até o advento do jogo do bicho, jogava-se moderadamente no Rio de Janeiro. Havia as corridas de cavalo, a pelota e poucos clubes fechados nos quais se jogava roleta. Os outros jogos da época eram familiares e aconteciam nos lares como entretenimento social. Era o caso do jaburu, do bacará, da campista, da víspora, da bisca de sete e do burro-em-pé. Desde o início do século as loterias já existiam no Brasil, mas não pareciam muito populares. Por volta de 1840, as rifas eram comuns e em 1847 a Loteria Federal já fazia suas extrações. Havia ainda um grande número de casas de tavolagem, mas o tipo de jogo então em voga era o de cassino ou de cabaré, em torno do qual se reuniam as figuras públicas da época. Mas esse tipo de convivência social estava restrito à elite.
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'111 nurn I li j s d cassio jogo do bicho se ala trava p Ias ruas do 1 i ntin ia t da a população. Era umjogo de rua, era um j g que se p dia realizar em casa, era um jogo que não obrigava o jogador a vestir um fraque e freqüentar um clube social ou uma roda grã-fina u exclusiva. Por isso, o jogo do bicho é descrito como o "vício do povo" em oposição ao "vício dos ricos" que se realizava a portas fechadas, nos cassinos e clubes (cf. Pereira de Mello, 1989). t
(Há, portanto, uma profunda ligação entre as mudanças sociais ocorridas na virada do século e o alastramento da jogatina. Se o novo ideário do Estado nacional era a liberdade e a igualdade, não se pode esquecer que isso era introduzido legalmente no seio de uma sociedade aristocrática e dominada por barões. Nesse ambiente institucionalmente híbrido, a jogatina e sobretudo o jogo do bicho surgem como um mecanismo que vai sinalizar a possibilidade de ascensão social das massas. Dito de outro modo: a institucionalização do ideal de igualdade política e o desmantelamento formal da ordem imperial, em uma sociedade na qual o trabalho era a marca da escravaria, trouxe à tona a feb:e)especulativa e, nesse movimento, consolidou um jogo barato, fácil~spretensioso. Um jogo marcado por um apelo mitológico e totêmico familiar que mapeava e relacionava animais, números e dinheiro e com isso ligava simbolicamente os pobres aos ricos e os inferiores aos poderosos. I' Tudo isso ajuda a entender a associação tantas vezes notada, na transição republicana brasileira, entre o novo regime político e um surto especulativo, em que a sorte e não o mercado (ou o trabalho) foi o árbitro. A nova ordem capitalista, precariamente assimilada, convidava à especulação, fazendo surgir e desaparecer grandes fortunas da noite para o dia. A estável ordem imperial e aristocrática (na qual a hierarquia das práticas sociais não contradizia aquela vigente no plano político e jurídico, pois todos sabem dos seus respectivos lugares) foi substituída por uma organização liberal e formalmente igualitária. O cálculo tranqüilo que tipificava o código de gentilezas aristocráticas foi substituído pelo jogo frenético das disputas pelo poder e pelo desejo de ficar rico especulando na bolsa. Aliás, e bem a propósito, a especulação na bolsa de valores era francamente incentivada pelo Governo Provisório pois, como assinalavam os jornais da época, exprimindo um clima de otimismo generalizado: "A República é a riqueza!" (cf. Carvalho, 1990:26). Se a maioria da população estava longe da "mão invisível" que
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governava o mercado, proporcionando riqueza aos mais fie s e uansf 1'mando os barões em capitalistas e os capitalistas em "barõe " liberai ,ela estava perto da mão invisível da sorte. Essa sorte, concebida de modo pessoalizado, era como uma "mão visível" que atuava por meio de sonhos, palpites e simpatias com os "bichos". Por tudo isso, é nossa tese que, num plano fundamentalmente sociopolítico, o jogo do bicho configura um retomo ao velho e bom universo da pessoalidade em um contexto marcado pela brutal impessoalidade oficial, quando o governo desmantela sem piedade o sistema de símbolos vigente na sociedade. Mantidas as hierarquias e os grupos de interesse, ao mesmo tempo em que havia a multiplicação do contingente populacional à margem da lei e do mercado de trabalho, inchava-se o submundo do jogo e da marginália. No entanto, os expedientes marginais não estavam circunscritos ao submundo do crime. A representação municipal ficava solta, já que não havia um eleitorado autêntico a quem prestar contas, e a conseqüência imediata desse fato no campo político foi a vigência dos arranjos particularistas, das barganhas pessoais, com o surgimento do conchavo e da corrupção. Fechou-se, então, o círculo: a preocupação em limitar a participação e em controlar o mundo da desordem aberto pela era republicana acabou por levar à absorção perversa desse mundo na política. Com isso, o Rio de Janeiro viu surgir um funcionalismo público corrupto, presenciou eleições sistematicamente fraudulentas, dominadas por bandos de criminosos e contraventores do estilo de Totonho e Lucrécio Barba de Bode (descritos por Lima Barreto), que eram donos das casas de prostituição e de jogo. Eram esses malandros os empresários da política, os fazedores de eleições e os promotores de manifestações, até mesmo no nível da política federal. A ordem formal igualitária se misturava às hierarquias sociais vigentes, fazendo - como diz Carvalho - com que o marginal virasse cidad~o e o cidadão fosse marginalizado (cf. Carvalho, 1991:37ss). E este, em linhas gerais, o ambiente social em que surge o jogo do bicho. Enquanto as elites golpeiam a sociedade brasileira com a Proclamação da República, o povo interpreta o desfecho à sua maneira, com uma piada: "Que bicho deu?", pergunta alguém. Outro responde malandramente: "Deu Deodoro!" Cívica e politicamente impotentes, as massas populares tratam a nova República da única forma que podiam: como o resultado do jogo do
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bicho. e S' o imp tentes do ponto de vista jurfdico, intelectual e político, rcv Iam uma notável capacidade imaginativa ao reagir com ironia a esse evento aleatório e exterior ao curso normal do seu cotidiano. De certo modo, portanto, põem de lado sua notória "bestialização" para propor uma forma interpretativa extremamente sagaz daquilo que ocorria à sua volta. Sob a capa da passividade, então, o povo lê o que vem de cima como um teatro de "bichos". Nessa tragicomédia, sai um rei (representado pelo leão) e entra em seu lugar uma ávida, autoritária e facciosa elite militar, cujo totem e comandante só poderia ser, como o presidente Figueiredo vai confirmar anos depois, o cavalo. Antecipando sumariamente o que constitui o centro do presente estudo - uma interpretação do sistema classificatório que ativa o jogo do bicho e ajuda a caracterizar a modernidade brasileira -, vemos que, já no início do século, eventos e personagens se associam aos "bichos", sendo alvo de uma ativa e inteligente reinterpretaçãópopular, Assim, Rui Barbosa é associado à águia, ao que está por cima ~ o único que efetivamente voa e enxerga tudo à sua volta e que, por força intelectual, colocase acima dos demais. Rui Barbosa é, pois, a "águia de Haia". A águia, como dizem nossos informantes, identifica "quem vence pelo bico" ou quem "é bom de lábia", usando seus dotes para convencer ou seduzir. E o próprio palácio do governo, o do Catete, então residência presidencial, passa a ser conhecido como o "Palácio das Águias" porque em seu topo existem cinco águias esculpidas, cada qual olhando numa direção como que se procurassem - e procurando caoticamente, como dizia o povo - os caminhos para a República. Do mesmo modo e pela mesma lógica, os banqueiros do jogo do bicho são chamados de águias, por oposição à massa de jogadores designados burros. Nesse sentido o velho barão de Drummond, criador e primeiro banqueiro do jogo do bicho, dá origem a um código interpretativo original, sempre usado pelo povo como instrumento de participação dos eventos que ocorriam à sua volta, e também a uma linhagem de águias (ou de urubus) que, passado todo um século, ainda "estão por cima", sobrevoando altaneira e avidamente a selva urbana brasileira.
CAPÍTULO
o jogo
2
do bicho como totem e rito sacrificial
(É surpreendente
constatar que o jOg~O bicho não aparece como objeto de investigação em nenhuma das interpretações clássicas do Brasil, o que confirma o cisma ideológico que, entre nós, separa as instituições construídas e nutridas pelo povo e os fatos e idéias que as elites assumem como sérias e dignas de reflexão intelectual. Certamente por ser uma instituição marginal, o jogo do bicho ficou fora da maioria dos estudos devotados a um entendimentototalizado do Brasil. Mas não escapou ao olhar abrangente de Gilberto Freyre, nem às argutas considerações comparativas de Viana Moog\Desse modo, tanto em Casa grande & senzala como em Bandeirantes & pioneiros, o jogo do bicho aparece como instituição que adiciona lenha às fogueiras interpretativas que esses autores desenvolvem nessas obras. Para um Viana Moog inspirado em Max Weber, o jogo do bicho surge no seio de uma pergunta recorrente: "Não será o brasileiríssimo jogo do bicho autêntica expressão do terror subconsciente, como da aspiração muito brasileira de riqueza rápida?" (cf. Moog, 1955:337). Tal questão remete à tese de Moog, segundo a qual nosso processo de formação teria sido motivado pela idéia de obter o máximo de riquezas com o mínimo de esforço, seja pela exploração predatória da natureza (por meio de um "bandeirantismo" sem limites), seja pela aristocratização do colonizador, que transformou nossos primeiros habitantes em meros repetidores de um estilo de vida social hierarquizado de Portugal. A tese de Moog faz sentido. Não cabe aqui discutir as idéias de Moog, mas chamar atenção para um ponto básico: o fato de que, para ele, o jogo do bicho nada mais é do que um ator secundário - uma prova marginal de uma tendência maior e mais inclusiva: o "bandeirantismo" como um valor social encarnado na motivação do enriquecimento rápido. Gilberto Freyre deu maior atenção ao jogo do bicho. Dentro de um quadro interpretativo culturalista e romântico, Freyre viu o jogo do bicho como a marca de um sistema de crenças primitivo, no caso, uma das con-
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tribuiç cs mais bvias do "indígena" ao nosso hil rídísrno cultural, p 'lu primeira vez lido positivamente. Em suas próprias palavras:
, Da tradição indígena ficou no brasileiro o gosto pelos jogos e brinquedos infantis de arremedo de animais: o próprio jogo de azar chamado do bicho, tão popular no Brasil, encontra base para tamanha popularidade no resíduo animista e totêmico de cultura ameríndia reforçada depois pela africana (cf. Freyre, 1984:135).
É claro que para o Gilberto Freyre de Casa grande & senzala o complexo do jogo do bicho se localiza em um "inconsciente cultural", área na qual encontraria "sobrevivências" ou "resíduos" das três etnias - "portuguesa", "indígena" e "negra" - que estariam na raiz de nossa identidade. 86 Para Gilberto, esse "resíduo animista e totêmico" seria um testemunho de nosso lado indígena, uma dimensão arcaica e mágica, caracterizada pela identificação entre homens e animais, típica, aliás, das culturas mais atrasadas, cuja lógica estaria baseada numa enganadora contigüidade entre natureza e sociedade. Provam isso os brinquedos de imitar bichos, a própria idéia de "bicho" como uma categoria de entendimento ampla e geral no Brasil e, ainda, o hábito dos jogadores do bicho de terem simpatias por certos animais do mesmo modo que, em certas sociedades ameríndias, os neófitos tomam certos animais como seus protetores ou entidades tutelares, numa associação que a antropologia chama de "totêmica". 87 A tese de Gilberto Freyre tem a virtude de chamar atenção para um aspecto profundo do jogo do bicho, adiantando como essa instituição atrai as massas justamente porque com ela se pode postular um elo de Deve-se assinalar, todavia, conforme já chamei atenção no Palpite inicial, que, em Ordem e progresso, Gilberto Freyre apresenta, de passagem, uma leitura mais sociológica e teoricamente mais produtiva do jogo do bicho, leitura, entretanto, que jamais ampliou. Nesta obra, Gilberto menciona essa loteria como mais um código capaz de promover a integração e a intimidade entre pessoas de diferentes níveis sociais em um veículo moderno, o bonde, quando falavam dos seus sonhos e palpites. Nesse sentido, o jogo do bicho seria um mecanismo tipicamente brasileiro de abrir espaço entre segmentos sociais diferenciados. 87 Diga-se de passagem, esse não é o caso das sociedades indígenas das quais temos informações detalhadas no Brasil. Entre as sociedades de língua Gê, por exemplo, existem elaborados rituais de iniciação, mas não há essa relação totêmica entre iniciados e animais epônimos, como afirma Gilberto Freyre (veja-se DaMatta, 1976). Para um estudo muito mais preciso e elaborado desses sistemas, consulte-se Melatti (1978). O mesmo ocorre no caso dos grupos Tupi-Guarani, como mostra a monografia de Viveiros de Castro (1986). A julgar pelas referências bibliográficas, é possível que, ao mencionar "ameríndios", Gilberto estivesse projetando no Brasil atitudes relativas aos animais presentes entre os indígenas da América do Norte. 86
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crfticos. ( Gilberto usa uma concepção tradicional do totemismo, tomando-o pelo seu lado mais explícito como um mero mecanismo de identificação entre um elemento da cultura (um indivíduo ou um grupo social) e um elemento da natureza (uma planta, um fenômeno meteorológico ou um animal). Com isso, ele perde de vist~ os aspectos diferenciadores do pensamento totêmico, pois, de acordo co~ clássica demonstração de LéviStrauss (1970, 1989), o que o totemismo efetivamente postula é uma identidade entre sistemas de diferenças, uma operando no nível da natureza e outra no nível da cultura ou da sociedade. Assim interpretado, o totemismo é muito mais um modo de separar e de discriminar do que uma prova de confusão e de indigência lógica dos chamados "selvagens'U O segundo aspecto é ainda mais contundente e importante, pois revela como Gilberto Freyre toma a idéia de "cultura" como uma entidade situada fora da história.êf Por assim proceder, ele não percebe que, no caso do jogo do bicho, os animais a que o jogador eventualmente se associa são aqueles arbitrariamente "escolhidos" pelo barão de Drummond, a partir de um conjunto situado em um Jardim Zoológico, num ambiente urbano e num contexto em franca transformação, formalmente moderno. Dito de outro modo: a lista de "animais tutelares" à disposição de quem joga no bicho tem uma clara determinação histórica, sendo, como se isso não fosse suficiente, marcada pela fundação de um "Jardim Zoológico". Tal contexto histórico obriga a caracterizar melhor esse totemismo do jogo do bicho. Realmente, se o jogo tem relação com um complexo totêmico, isso não acontece porque ele é um representante deslocado de algum traço indígena que milagrosamente sobreviveu, como diria um antropólogo vitoriano e evolucionista da linhagem de Sir James Frazer ou de E. B. Tylor, naquela linha interpretativa acionada por Freyre. Isso se dá porque ele reinventa, em um contexto de acelerada "modernização", uma lógica de identidades e diferenças entre seres naturais e sociais que singulariza esses sistemas de classificação implícitos e não-domesticados. Em outras palavras, o totemismo exibido pelo jogo do bicho nada tem a ver com a atitude anti-histórica embutida no culturalismo românti88 Tanto mais porque, em Casa grande & senzala, Gilberto Freyre dialoga intensamente com os conceitos de "raça" e, como aprendo com Ricardo Benzaquen de Araújo (1994:38ss) em sua importante e equilibrada leitura de Freyre, de "meio físico". Hoje, sabe-se que não há "meio físico" distinto da ideologia, valor ou cultura que o classifica, define e permite sua operacionalização em práticas sociais dis-
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c de Franz Boa , tão e plendidam nt articulado p r r yr , mas S li a a uma busca de sentido da engenhosa e originalíssima capacidade de ligar séries de objetos que a' cultura burguesa situa como descontínuos: animais e pessoas, natureza e cultura, fatos sociais e séries numéricas. Tal síntese foi realizada no Brasil e cabe fazer sua reconstituição, um esforço analítico que remete simultaneamente aos elementos ideológicos e aos valores sociais dinamizados pelo jogo do bicho, mas sem esquecer que o processo se dá num contexto histórico específico. Mas, em se tratando do jogo do bicho, não se pode esquecer um dado crítico. Nesse caso, não se trata somente de fazer uma ponte entre "natureza" e "cultura", como ocorre nos totemismos clássicos, mas também relacionar números a animais e pessoas, o que permite ligar o totemismo dessa loteria à idéia de jogo e de aposta, provocando e prometendo novas associações. É, de fato, nessa ligação entre animais e algarismos - essas entidades que desde os pitagóricos gozam de uma posição especial na nossa cosmologia, sendo tratados como seres puros, regidos por dinâmica própria - que jaz a originalidade do jogo do bicho. Essa originalidade permite incluí-Io no quadro dos fenômenos totêmicos mas, ao mesmo tempo, o qualifica como um totemismo historicamente marcado e, por isso mesmo, "modernista" ou especial. Um totemismo que, ligando animais, seres humanos e eventos sociais aos números, permite interpretá-los dentro de uma tríplice perspectiva: de um ângulo probabilístico, estocástico, em que conta a força aleatória do acidente e do azar (ou da sorte); de uma posição singular e de uma hermenêutica pessoal e biográfica (na qual números e bichos são vistos em função das peculiaridades dos jogadores vistos em suas singularidades); e, finalmente, de uma perspectiva cosmológica e estrutural, quando se faz um apelo às linhas mestras de um sistema de crença coletivo capaz de coordenar uma visão conjunta dos homens e dos animais, da natureza e da cultura, deste e do outro mundo. A partir desse ângulo, o jogo do bicho não seria um mero "resíduo primitivo" de um sistema indígena que milagrosamente teria sobrevivido entre nós, mas uma instituição peculiar e uma expressão acabada, curiosa e intrigante de "modernidade" (ou, se quiserem, de "transmodernidade"), tal como ela se realiza e constitui no caso do Brasil. Nesse sentido, o totemismo do jogo do bicho não rejeita o quadro das "grandes narrativas" do universo capitalista, esses mitos impressos na promessa maior de ganhar muito dinheiro e mudar de posição social,
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naquilo u s chama de "sue s o", tarnpouco perde de vista a 16gic~ b~asileira, "selvagem" e inculta, das alianças com a natureza. Essa lógica reintroduz no drama histórico moderno a sua dissolução, revelando que tudo pode igualmente se passar dentro de um quadro de sincronias ent~e animais, números e homens. Ademais, e como se tudo isso não fosse SUfIciente, o jogo do bicho captura ~r:n co~junt? numérico que remete à dimensão cientificista do cálculo e ~clOnalIdade. Diferentemente, portanto, dos totemismos clássicos, que postulam a associação a um animal para que o grupo que o adota possa diferenciarse perpetuamente de outro, o totemismo brasileiro do jogo do bicho se realiza para facilitar um cálculo probabilístico dentro dos quadros de um jogo de azar com a intenção explícita de .promover d~s!o~amentos em um quadro de diferenciações sociais percebidas como difíceis de ~ltrapassar pelo esforço individual e, conseqüentemente, pelo trabalho livre. Com isso, ele permite que uma série animal seja alvo de cálculo, o que "culturaliza" números, humanizando-os e situando-os ao alcance de fatos sociais. Mais além, ele estende a possibilidade de quantificar e transformar uma série animal em alvo de probabilidade, "numeralizando" um conjunto limitado de bichos e uma série infinita de eventos sociais. Para que se possa entender o elo entre totemismoe jogo do bicho,.é preciso explicitar os eixos lógicos pelos quais os 25 bi~hos ~a ~é:le inventada pelo barão se combinam de modo a gerar um numero infinito de mensagens que serão utilizadas em hermenêuticas populares sob o nome de "palpites". , , . Mas deve-se qualificar essa relação. De Salda, e preCISO ter em mente que o "totemismo do bicho" não se destina a construir identi~ades sociais relativamente inequívocas, sendo antes de tudo parte de um Jogo. Para ele, não se trata de equacionar um clã a um animal, digamos, um urso, de modo a separá-lo sem equívocos do clã vizinho, digamos da águia, pelas oposições entre um animal terrestre (o urso) e um que voa (a águia). Pois o que importa no jog? é usar ani~ais para pe,netrar mel~or na sociedade e, mais além, humamzar um conjunto de nu meros a fim de tomá-los fáceis (e bons) para jogar. Pois um número animalizado é um algarismo dotado de uma nova realidade: de uma co?cret~de capaz de despertar emoção, tomando-o bom para ser sonhado, imaginado, encontrado nos reveses da vida e transformado em aposta. Diferentemente dos totemismos tribais que impedem o sacrifício dos animais epônimos, o do jogo do bicho postula o seu sacrifício permanen-
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