Psicologia do jogo [2 ed.] 9788578272043

"Há muitos fenômenos distintos a que nos referimos com o termo 'jogo', desde as manipulações de um objeto

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Psicologia do jogo [2 ed.]
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Daniil В. Elkonin

PSICOLOGIA DO JOGO

Tradução ÁLVARO CABRAL

¡I ш ш /m a rtm s fo n te s SÃO PAULO 2009

Esta obro fo i publicada originalmente em russo com o título PSICO LOG ÍA IGRI \юг Editorial Pedagógica, Moscou. Copyright © Editorial Pedagógica, Moscou, 1978. Copyright © 1998, Editora W M F M artins Гоп tes Ltda., Sdo Paulo, para a presente edição.

If edição 1998 2f edição 2009 Tradução (a ptirtir da versão espanhola de Venancio Uribes, publicada por Visor Libros) Á L V A R O CABRAL

Revisão técnica e da tradução Claudia Berliner

Revisões gráficas Lígia Silva liiihjcio das pesquisas é a forma da atividade lúdica das crianças

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çftes recíprocas; em terceiro, o emprego lúdico dos objetos (as cadeiras, que são o trem; as bonecas, que são as filhas; os papéis recortados, que fazem as vezes de dinheiro, passagens r ii.); c, por último, as relações autênticas entre as crianças, exteriorizadas nos diálogos, perguntas e réplicas com que se orienta o transcurso do jogo. O aspecto central que agrupa todos os demais é o papel assumido pela criança. Não se pode representar sem as ações respectivas. A criança é bilheteira precisamente porque vende passagens; é chefe de estação porque anuncia a saída do trem e permite que o maquinista o ponha em marcha; é dona de canti­ na porque vende biscoitos etc. Os outros aspectos estão determinados pelo papel da criança e relacionados com as suas ações. Os papeizinhos convertem-se em dinheiro e em passagens para protagonizar os passageiros e a bilheteira. As relações entabuladas durante o jogo também estão determinadas pelos papéis que as crianças desempenham. O principal para elas, a ajuizar por sua conduta, é representar o papel adotado. Isso se vê pelo empenho e rigor com que executam as ações decorrentes de cada papel assumi­ do pelas crianças. Assim, pode-se afirmar que são justamente o papel e as Oçòcs dele decorrentes o que constitui a unidade fundamental e indi visível da evolução da forma de jogo. Nele estão represen­ tarias cm união indissolúvel a motivação afetiva e o aspecto técnico-operacional da atividade. Como evidenciam as pesqui­ sas experimentais que serão descritas e analisadas adiante, entre 0 papel e o caráter das ações respectivas há uma estreita liga­ ção funcional e uma unidade contraditória. Quanto mais abre­ viadas e sintetizadas são as ações lúdicas, tanto maior é a pro­ fundidade com que se refletem no jogo o sentido, a missão e o sistema de relações entabuladas na atividade reconstruída dos adultos; quanto mais completas e desenvolvidas são as ações lúdicas, tanto maior é a clareza com que se manifesta o conteú­ do objetivo e concreto da atividade reconstruída.

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Qual é a base em que se apoiam os papéis adotados e inter­ pretados por crianças mediante ações lúdicas? Quase todos os autores que descreveram ou pesquisaram o jogo protagonizado são unânimes em assinalar que em seus temas influi de maneira decisiva a realidade que circunda a criança. Quem melhor caracterizou essa peculiaridade do jogo foi Utchinski: “A única coisa que os adultos podem fazer no jogo, sem destruir o seu caráter lúdico, é influir, fornecendo material para as construções que a própria criança já fará por sua conta. Mas não se pense que todo esse material pode ser comprado numa loja de brinquedos. O leitor comprará à criança uma casa clara e bonita, e ela fará dela um cárcere; comprará figuras de camponeses e ela as porá em formação como soldados; comprar-lhe-á um boneco bonito e ela lhe aplicará tremendas sur­ ras; não empregará os brinquedos que se lhe compre segundo o seu significado, mas os refará segundo a incidência que nela tenham os elementos da vida circundante; é com esse material que mais terão de preocupar-se os pais e os educadores” (1950, pp. 440-441). Uma das questões principais é averiguar que fator concre­ to da realidade que circunda a criança exerce uma influência determinante no jogo protagonizado. A sua solução pode esclarecer-nos a verdadeira natureza dessa forma de jogo e o conteúdo dos papéis que as crianças assumem. Em alguns estudos de pedagogia, mesmo nos dedicados a outros temas, encontramos dados que nos permitem responder hipoteticamente à questão que nos interessa. Zhukóvskaia (1963) estudou durante aulas especiais a in­ fluência dos jogos didáticos sobre os jogos independentes das crianças. Assim, uma excursão a uma loja interessou às crian­ ças; mas, em suma, não influiu em seus jogos. Propôs-se-lhes depois, em uma aula especial, o jogo didático “na loja”, com a finalidade de ensinar-lhes a variedade de ações do balconista, precisar e consolidar nelas as regras de conduta do balconista e

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do freguês, e a devida amabilidade no trato mútuo. Durante esse Jogo, as crianças demonstraram grande interesse pelos papéis do balconista e da caixa: todos queriam ser uma coisa ou outra. Zluikóvskaia indica que, sob a influência da excursão e, principal­ mente, do jogo didático “na loja”, houve múltiplas variantes de Jogos protagonizados com a compra e venda de diversos objetos. Dessa maneira resultou que, quando as crianças observa­ ram as relações entre o balconista e a caixa, por uma parte, e os fregueses, por outra, os papéis agradaram-lhes. Essa mudança foi obtida no experimento de Zhukóvskaia com os recursos de um jogo didático especial; é provável que se possa conseguir lambém com outros meios pedagógicos. Márkova (1951) pesquisou a influência da literatura infan­ til nos jogos das crianças. Esclareceu que nem toda obra literá­ ria as induz a brincar. Unicamente as que descrevem de forma compreensível a atividade, o comportamento e as relações mú­ tuas das pessoas despertam nas crianças o desejo de reconsti­ tuir em jogos o conteúdo fundamental dessas obras. Os resultados das citadas pesquisas evidenciam que no jogo protagonizado influi, sobretudo, a esfera da atividade luiinana, do trabalho e das relações entre as pessoas e que, por conseguinte, o conteúdo fundamental do papel assumido pela criança é, precisamente, a reconstituição desse aspecto da rea­ lidade. A via possível de comprovação experimental dessa tese foi sugerida pelo trabalho de uma educadora. Durante a excur­ são ao Jardim Zoológico de um grupo de idade mediana de um jardim de infância, as crianças observaram o comportamento dos diversos animais, o que comem etc.; a educadora, certa de que as crianças começariam a brincar de “jardim zoológico”, levou para a sala do grupo brinquedos com figuras dos animais que tinham visto durante a excursão. Mas o jogo não se produ­ ziu no outro dia, nem nos dias seguintes. Então a educadora repetiu a excursão e orientou a atenção das crianças, além disso, para os visitantes e o pessoal que cui-

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dava dos animais, concentrando-se no trabalho do bilheteiro, dos porteiros que fiscalizavam a entrada, dos varredores das alamedas e das jaulas, do pessoal da cozinha que preparava a comida para os animais e a repartia, do guia que dava explica­ ções ao público, do veterinário e seus auxiliares de enfermaria. Fez com que as crianças se fixassem na solicitude do pessoal com os animais, na amabilidade e no respeito do público às normas de conduta com os animais, nas relações entre os tra­ balhadores do jardim zoológico. Algum tempo depois da segunda excursão, as crianças começaram a brincar por sua própria conta de “jardim zoológi­ co”, no qual não faltava nada: bilheteira, porteiro, mamães e papais com filhos, guia, varredores, uma “cozinha de feras” com cozinheiro, ajudantes e pessoal que dava de comer aos animais, uma enfermaria com veterinário, um diretor etc. To­ dos esses personagens iam introduzjndo-se pouco a pouco no jogo, que durou vários dias, complicando-se e enriquecendo-se cada vezmais. Essa experiência de trabalho com as crianças fez-nos pen­ sar que as distintas esferas da realidade influem de modo dife­ rente no surgimento do jogo protagonizado. A realidade que circunda a criança pode ser convencional­ mente dividida em duas esferas interdependentes mas, ao mes­ mo tempo, distintas. A primeira é a esfera dos objetos, tanto naturais quanto produzidos pela mão do homem: a segunda é a esfera de atividade das pessoas, de seu trabalho e das relações que estabelecem. Dessas duas esferas, qual influiu mais no jo­ go protagonizado? Para elucidar em definitivo o dilema, foi necessário dar a conhecer a realidade às crianças de duas maneiras específicas: a primeira, que o conteúdo fundamental fosse a esfera objetiva da realidade (os objetos e coisas); e a outra, que o conteúdo fundamental fosse o homem, sua atividade e suas relações com outras pessoas. Esse trabalho foi realizado por Korol iova (1957)\

objeto das pesquisas é aJornia da atividade lúdica das crianças

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Durante a viagem a uma casa de campo, a estrada de ferro produziu muitas impressões fortes nas crianças, que estiveram numa estação, viram o trem e as pessoas subirem nos vagões; elas mesmas subiram num deles; ouviram anunciar por altofalantes a saída dos trens, compraram com seus pais as passa­ gens no guichê etc. A educadora supôs que essas impressões seriam suficientes para que as crianças brincassem de “estrada de ferro”. Mas não foi assim, apesar da profunda impressão que lhes causou a viagem, de falarem muito sobre ela e dese­ nharem estações e trens. A educadora tentou então promover o jogo. Ofereceu às crianças brinquedos atraentes: uma locomotiva, carros, um guichê e, com a ajuda de outro educador, fez entre as crianças a distribuição dos papéis. Apesar da grande carga emocional da viagem de trem e das profundas impressões diretas que as crianças obtiveram, esse jogo protagonizado não prosperou. Fez-se então uma nova visita à estação: as crianças viram outra vez a parte material do funcionamento da estrada de ferro. Mas também não bastou esse trabalho adicional para dar impulso ao jogo, se bem que, a julgar pelos desenhos que as i rianças fizeram desses objetos, já eram mais exatas as suas ideias do trem, da locomotiva, da estação, do guichê, dos carri­ nhos para transporte de bagagens etc. Passado algum tempo, quando, depois do veraneio no i ampo, as crianças regressaram à cidade, repetiu-se com o mesmo grupo infantil a excursão à estação ferroviária. As ■rianças viram como o chefe da estação recebia cada trem, ' nmo os passageiros desciam, como se desembarcavam as ba1’agens, como o maquinista e o seu ajudante cuidavam da loco­ motiva e como os cabineiros cuidavam dos carros e atendiam ¡ios passageiros. Ao entrar na sala de espera, viram como os ' ¡ajantes compravam as passagens, os moços iam ao encontro dos passageiros para levar-lhes as bagagens até o trem, os var­ redores cuidavam da limpeza da sala etc. Depois dessa excur•jio. não tardou muito em organizar-se o jogo. E brincou-se com

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inegável entusiasmo; a “estrada dc ferro” perdurou entre os jogos infantis, conjugando-se num todo com outros temas: “a família”, “o jardim-de-infãncia”, “o correio” etc. De maneira análoga, deu-se a conhecer às crianças (duas vezes) o trabalho de uma oficina de costura, as obras dc uma casa, o trabalho de uma fábrica de jogos dc salão e o funciona­ mento dos Correios. Em todos esses casos, as crianças só co­ meçaram a brincar depois de saber o que as pessoas faziam, como trabalhavam e que relações se estabeleciam entre elas no processo de produção. É perfeitamente natural que as crianças não formassem de imediato idéias bastante exatas, e que o edu­ cador tivesse de ampliar é pormenorizar, durante o jogo e em conversas subseqiientes, durante jogos didáticos e ao ler para elas obras literárias, o que elas pensam das pessoas mais ve­ lhas, do trabalho e das relações dos adultos. A pesquisa de Koroliova convence de que no jogo prota­ gonizado influem, sobretudo, a esfera de atividade e as rela­ ções das pessoas, de que seu fundamento é precisamente essa esfera da realidade. Assim, a base do jogo protagonizado em forma evoluída não é o objeto, nem o seu uso, nem a mudança de objeto que o homem possa fazer, mas as relações que as pessoas estabele­ cem mediante as suas ações com os objetos; não é a relação ho­ mem-objeto, mas a relação homem-homem. E como a recons­ tituição e, por essa razão, a assimilação dessas relações trans­ correm mediante o papel de adulto assumido pela criança, são precisamente o papel e as ações organicamente ligadas a ele que constituem a unidade do jogo. Uma vez que a atividade concreta das pessoas e suas rela­ ções são variadíssimas na realidade, também os temas dos jo­ gos são muito diversificados e cambiáveis. Nas diferentes épo­ cas da história, segundo as condições sócio-históricas, geográ­ ficas e domésticas concretas da vida, as crianças praticaram jo­ gos de temática diversa. São diferentes os temas dos jogos das crianças de diferentes classes sociais, dos povos livres e dos po-

() objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças

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vos oprimidos, dos povos nórdicos e dos povos meridionais, dos i|iic habitam em regiões arborizadas ou desérticas, dos filhos de operários industriais, de pescadores, de criadores de gado ou de agricultores. Inclusive uma mesma criança muda os temas de seus jogos segundo as condições concretas em que se encontra temporariamente. O singular impacto que a esfera de atividade humana e das relações entre as pessoas produz no jogo evidencia que, apesar da variedade de temas, todos eles contem, por princípio, o mes­ mo conteúdo, ou seja, a atividade do homem e as relações so­ ciais entre as pessoas. A nossa análise impõe que se distingam no jogo o tema e o conteúdo. O tema do jogo é o campo da realidade reconstituí­ do pelas crianças. Como já indicamos, os temas dos jogos são extremamente variados e refletem as condições concretas da vi­ da da criança, as quais mudam conforme as condições de vida cm geral e à medida que a criança vai ingressando num meio tnais vasto a cada novo dia de sua vida, com o que se ampliam deus horizontes. O conteúdo do jogo é o aspecto característico central, reconstituído pela criança a partir da atividade dos adultos e das relações que estabelecem em sua vida social e de trabalho. () conteúdo do jogo revela a penetração mais ou menos profun­ da da criança na atividade dos adultos; pode revelar somente o aspecto externo da atividade humana, ou o objeto com o qual o homem opera ou a atitude que adota diante de sua atividade e a ilas outras pessoas ou, por último, o sentido social do trabalho humano. Claro que o caráter concreto das relações entre as pessoas representadas no jogo é muito diferente. Essas relações podem scr de cooperação, de ajuda mútua, de divisão de trabalho e de solicitude e atenção de uns com outros; mas também podem ser relações de autoritarismo, até de despotismo, hostilidade, rudeza etc. Tudo depende das condições sociais concretas em que vive a criança.

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A dependência que os temas dos jogos infantis mantêm das condições sociais de vida é um fato indubitável e reconhe­ cido por muitos. Entretanto, alguns psicólogos, sem deixar de reconhecê-lo, consideram que o jogo é um fenômeno de natu­ reza e origem biológicas. Expressou-o de forma brilhante, por exemplo, Stern, quando escreveu sobre o jogo: “As leis inter­ nas do desenvolvimento atuam com tanto vigor que, apesar das contradições existentes no meio circundante, em determinada idade despertam sempre nas crianças dos mais diferentes paí­ ses e épocas instintos lúdicos iguais. Assim, os exercícios de lançamento (hurstspiele) e os jogos com bonecas ou de guerra eliminam indiscutivelmente as fronteiras de tempo e de espa­ ço, os limites sociais, nacionais e culturais. O material especí­ fico com que se exercitam os instintos de movimento, proteção e luta pode mudar com o meio; mas as formas gerais do jogo não mudam” (1922, pp. 172-173). Na opinião de Stern, a mutabilidade dos temas dos jogos, ocasionada pelo impacto das condições de vida, é apenas uma manifestação da natureza biológica imutável e instintiva do jogo. Esse é o ponto de vista não só de Stern. Muitos pesquisa­ dores compartilham do critério da origem biológica do jogo. A diferença reside unicamente nos instintos ou pulsões profun­ das que se manifestam no jogo: instintos de poder, luta e prote­ ção (Stern e Adler); impulsos sexuais (Freud); impulsos con­ génitos de libertação, agrupamento e compulsão (Buytendijk). As teorias biológicas do jogo, que partem dos instintos e impulsos primários da criança, não podem explicar de maneira satisfatória seu conteúdo social. Em nossa opinião, o singular impacto que a atividade humana e as relações sociais produzem no jogo evidencia que os temas dos jogos não se extraem unicamente da vida das crian­ ças, porquanto possuem um fundo social, e não pqdem ser um fenômeno biológico. A base do jogo é social devido precisa­ mente a que também o são sua natureza e sua origem, ou seja, a que o jogo nasce das condições de vida da criança em socieda-

(>objeto das pesquisas é aforma da atividade lúdica das crianças

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ile. As teorias do jogo que o deduzem dos instintos e dos impul­ sos internos marginalizam, de fato, a questão de sua origem his­ tórica. Ao mesmo tempo, a história do surgimento do jogo pro­ tagonizado é justamente aquela que pode revelar-nos a sua na­ tureza.

( 'apítulo 2 Acerca da origem histórica do jogo protagonizado

I. I)a história dos brinquedos O problema central da teoria do jogo protagonizado é o de origem histórica e de sua natureza. Referindo-se à concepção materialista da origem da arte, 1’lcíkhánov menciona brevemente o problema do jogo: “É de suma Importância para explicar a génese da arte esclarecer a atitude do trabalho em face do jogo ou, se se preferir, do jogo em fa­ ce do trabalho” (1958, p. 336). Plekhánov expõe ao mesmo lempo uma série de teses que são fundamentais para esclarecer Mitibóm a incógnita da origem do jogo. ! Л tese mais importante de Plekhánov é a de que, em toda a BÉôria da sociedade, o trabalho antecede o jogo. “Em primeiít» lugar, a guerra verdadeira e a necessidade, por ela criada, de lloiis guerras; e logo depois, os jogos de guerra para satisfazer Jsnii necessidade” (ibid., p. 342). Essa tese, como indica Bekhánov, permite compreender por que o jogo precede o trahnllio na vida do indivíduo. “... Se não fôssemos mais além do Ètmto de vista do indivíduo”, escreve, “não teríamos compmetidido nem por que o jogo é anterior ao trabalho nem por agite o indivíduo se entretém precisamente com esses jogos e p io com outros” (ibid., p. 343). À luz dessas proposições de Mia

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Plekhánov, o jogo apresenta-se como uma atividade que res­ ponde à demanda da sociedade em que vivem as crianças e da qual devem chegar a ser membros ativos. Para elucidar em que condições e devido a que necessida­ des da sociedade surge o jogo protagonizado torna-se impres­ cindível uma investigação histórica. O primeiro que expôs na psicologia soviética a necessida­ de de se proceder a uma investigação histórica para elaborar uma teoria congruente do jogo foi Arkin: “Somente com fatos extraídos do passado e cotejados com o presente é possível for­ mar uma teoria científica correta do jogo e do brinquedo, e so­ mente uma teoria como essa pode produzir uma prática peda­ gógica sã, fecunda e estávêl.” “A história do jogo infantil e do brinquedo”, prossegue E. A. Arkin, “deve servir de base para construir suas teorias” (1935, p. 10). Em sua investigação, Arkin apenas fala da origem históri­ ca do jogo e, mais do que ao jogo protagonizado, refere-se aos brinquedos e sua história. Ao comparar com os brinquedos modernos os encontrados em escavações arqueológicas, escre­ ve Arkin: “Nas coleções reunidas por arqueólogos e conserva­ das nos museus não há um brinquedo que não tenha sua réplica num quarto de criança dos dias de hoje” (ibid., p. 21). Arkin não se limita ao brinquedo arqueológico e investiga também os brinquedos infantis de povos em fases inferiores de desenvol­ vimento, e chega a conclusões análogas: “Com efeito, o fato de que, apesar da heterogeneidade das fontes que nos proporcio­ naram os dados, o quadro conserve unidade, mesmo com a mu­ dança de forma e com as diferenças de detalhe, o fato de que os povos, separados uns dos outros por distâncias enormes, conti­ nuem tendo o brinquedo tão gracioso e sempre jovem, e seu conteúdo e funções continuem sendo os mesmos tanto para os esquimós quanto para os polinésios, os cafres ou os índios, os bosquímanos ou os bororos, evidencia a assombrosa estabili­ dade do brinquedo e, por conseguinte, das necessidades que satisfaz e das forças que o criam” (ibid., p. 31).

Acerca da origem histórica dojogoprotagonizado _____

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Ao descrever depois fatos da semelhança não só dos brin­ quedos e jogos de crianças contemporâneas e dos filhos de po­ vos que se encontram em níveis mais baixos de desenvolvimen­ to social, Arkin conclui a sua comparação: a estabilidade do brinquedo infantil, sua universalidade, a imutabilidade de suas formas fundamentais de estrutura e das funções que preenche são um fato evidente, e talvez a evidência desse fato seja a causa de os pesquisadores não julgarem necessário deter-se nele ou enfatizá-lo. Contudo, se a assombrosa estabilidade do brinque­ do infantil é um fato indiscutível, não se compreende por que os psicólogos, os antropólogos e os naturalistas não extraíram dis­ so nenhuma conclusão, por que não procuraram para isso uma explicação. Ou esse fato indiscutível é tão simples e claro que não requer nenhuma interpretação? Não creio que seja assim. Muito pelo contrário: o que deve parecer insólito é que a crian­ ça nascida e criada no ambiente cultural do século XX utilize, a eada passo, como fonte de alegria ou instrumento de seu desen­ volvimento e auto-educação, o mesmo brinquedo que possui a criança procriada por pessoas de um desenvolvimento mental vizinho do dos habitantes das cavernas e palafitas, e que cresce nas mais primitivas condições de existência. E esses filhos de épocas tão remotas manifestam sua profunda afinidade com os do tempo atual já que obtêm ou fazem não só brinquedos pa­ recidos mas, e isso c ainda muito mais estranho, dão-lhes a mesma aplicação” (ibid., p. 32). Citamos extensamente o trabalho de Arkin para mostrar que uma pesquisa, na aparência de caráter somente histórico, levou o autor a deduções anti-históricas. Depois de comparar os brinquedos infantis das sociedades primitivas e os testemu­ nhos arqueológicos de um passado relativamente não distante com os brinquedos das crianças contemporâneas, esse autor nada encontrou neles de específico. Tanto em uns casos como cm outros, vêem-se os mesmos brinquedos e a criança utiliza­ os de maneira igual. Por conseguinte, não existe nenhuma his­ tória do brinquedo, não há desenvolvimento do brinquedo. O

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brinquedo continua sendo o mesmo que nos alvores da cultura da humanidade. Arkin vê a causa dessa aparente imutabilidade dos brin­ quedos em que a criatura humana, tal como os seus brinque­ dos, manifesta a sua unidade na unidade das características humanas do desenvolvimento (ibid., p. 49). Arkin precisou afirmar a imutabilidade histórica do brin­ quedo para demonstrar a tese de que, com o aparecimento do homo sapiens, as crianças vieram ao mundo em todas as épo­ cas - desde as mais remotas até o presente - com as mesmas possibilidades. Sim, isso„ assim é, sem dúvida. Mas um dos paradoxos do desenvolvimento infantil assenta precisamente em que, vindo a este mundo com igual desamparo e as mesmas possibilidades, percorrem nas sociedades, que se encontram em níveis distintos de produção e cultura, um caminho evoluti­ vo totalmente diverso, alcançando por diferentes vias e em tempos diferentes sua maturidade social e psicológica. A tese de Arkin sobre a imutabilidade do brinquedo ao longo do desenvolvimento da sociedade leva-nos logicamente à conclusão de que o brinquedo responde a certas peculiarida­ des inatas c imutáveis da criança e não apresenta vinculação algu­ ma com a tradição, como afirma a acertada tese de Plekhánov de que o jogo, por seu conteúdo, tem suas origens no trabalho dos adultos. É perfeitamente natural que o brinquedo tampou­ co possa ser outra coisa senão uma reprodução simplificada, sintetizada e de alguma maneira esquematizada dos objetos da vida e da atividade da sociedade, adaptados às peculiaridades das crianças de uma ou outra idade. Arkin abandona o ponto de vista histórico e adota, expres­ sando-se com palavras de Plekhánov, o do indivíduo. Mas este ponto de vista não nos pode explicar por que as crianças se absorvem em determinados jogos e utilizam neleá determina­ dos brinquedos. Hoje em dia, todos reconhecem que o conteúdo do jogo infantil está relacionado com a vida, o trabalho e a ativi­ dade dos membros adultos da sociedade. Como se explica que o

4i irra da origem histórica do jogo protagonizado

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Conteúdo do jogo seja determinado pela vida da sociedade, e o lumquedo, acompanhante imprescindível de todo jogo, não tenli.i relação nenhuma com a vida da sociedade e responda a cerfiis peculiaridades naturais e imutáveis da criança? As deduções que E. A. Arkin extrai de sua pesquisa, no que se relaciona com a história, estão em contradição, antes de ¡fluiis nada, com os fatos. O quarto da criança contemporânea isla cheio de brinquedos que não puderam existir na sociedade pi unitiva, e o uso lúdico dos mesmos é incompreensível para a ■fiança daquela sociedade. Pode alguém imaginar entre os brinquedos da sociedade primitiva os automóveis, trens, ■viões, satélites artificiais, materiais de construção, pistolas, ■flécanos etc.? Apesar dos fatos, Arkin procura unidade onde ftiilta à vista uma diferença evidente. Nessa mudança do caráter tios jogos infantis no decorrer dos tempos reflete-se de maneira t iara a verdadeira história do brinquedo e sua dependência t misal do desenvolvimento da sociedade, da história da criança tfln sociedade. É bem verdade que Arkin não escreve acerca de todos os brinquedos, mas só dos que ele qualifica de primários, entre os quais inclui: a) os brinquedos sónicos: cega-regas, matracas, guizos, ■ompainhas, rocas etc.; b) os brinquedos dinâmicos: pião, bola, pipa; c) as armas: o arco, a flecha, os bumerangues, a atiradeira Bile.;

d) brinquedos figurativos: figuras de animais e bonecos; e) a corda, com a qual se fazem diversas figuras, por ve|cs, do padrão mais sofisticado. Cumpre assinalar, antes de mais nada, que até mesmo os Vhumados brinquedos originários têm sua origem histórica. É por demais evidente que o arco e as flechas puderam chegar a Her brinquedos somente depois de aparecerem na sociedade к uno armas de caça autênticas. Antes do aparecimento dos utensílios de trabalho que requeriam movimentos rotativos,

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não pôde haver nenhum brinquedo que fosse movido dessa ma­ neira, como os piões. Para analisar o processo de surgimento dos “brinquedos primários” teria de levar-se a cabo uma pesquisa histórica espe­ cífica e ficaria então bem claro que eles nada têm de “primá­ rios”, mas, pelo contrário, apareceram cm determinados graus de desenvolvimento da sociedade, e que seu surgimento foi precedido da invenção dos respectivos utensílios de trabalho. A história da origem de alguns brinquedos seria apresentada cm tal pesquisa como reflexo da história das ferramentas de tra­ balho dos homens e dos utensílios sagrados. Todos os brinquedos que Arkin qualifica de “primários” são realmente produto do devir da história. Não obstante, em­ bora tenham aparecido em determinada etapa histórica do de­ senvolvimento da sociedade, não desapareceram com a extin­ ção dos utensílios de que são cópia. O arco e a flecha caíram há muito em desuso como armas de caça e foram substituídos pelas armas de fogo, mas perduram no mundo dos brinquedos infantis. Os brinquedos têm vida mais longa do que os utensí­ lios de trabalho de que são imagem, e isso produz a impressão de que não mudam. Dir-se-ia que foram realmente detidos em seu desenvolvimento, conservando seu aspecto originário. Mas, só se vistos de fora carecem de história, submetidos apenas a um exame fenomenológico como objetos físicos. No entanto, se examinarmos o brinquedo em suas funções, pode-se afirmar, sem receio de cometer equívocos, que os cha­ mados primários mudaram radicalmente de função no trans­ curso da história, sendo outra a sua relação com o processo de desenvolvimento da criança. É muito difícil pesquisar a mudança histórica dos brinque­ dos: em primeiro lugar, o brinquedo arqueológico nada nos diz quanto ao uso que a criança fazia dele; em segundo, alguns brinquedos de hoje, inclusive entre os povos que se encontram em níveis mais baixos de evolução social, perderam sua rela-

/fi г м a ila origem histórica do jogo protagonizado

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Vilo direta com as ferramentas de trabalho e os utensílios do­ mésticos, assim como a função que inicialmente possuíam. Apresentaremos vários exemplos. Nos períodos iniciais de di (envolvimento da humanidade, o homem, para obter fogo, fficeionava um pedaço de madeira com outro. O atrito ininterl upto fazia-se melhor mediante a rotação com dispositivos em Innna de ftiradores de diversos tipos. Os povos do Extremo Ni irte, para reforçar seus trenós, tinham de fazer numerosos onlicios. Essa perfuração também requeria a rotação ininter­ rupta. Segundo o testemunho de Reinson-Pravdin (1949), os pequenos furadores de madeira na forma primitiva de arco feito de um pau e um cordão -, que podem ser postos em movi­ mento por crianças, existem até hoje entre os brinquedos Infantis dos povos do Extremo Norte. A aprendizagem da rotaVflo ininterrupta era imprescindível, pois a criança que adquiria hsc hábito aprendia facilmente o manejo de ferramentas cujo llmcionamento era basicamente similar. Essa aprendizagem podia fazer-se não só com um modelo ■duzido de furador, mas também com suas variantes modifica­ das Variantes modificadas de furadores são as piorras, ou seja, Pisos impelidos com os dedos e não com arco, como nos piões lie chicote. Assim, tirando-se o arco do eixo do fuso, estaremos limite de uma simples piorra cujo impulso é algo prolongado. Além do pião de chicote e da piorra, outra variante do llii iulor eram as cigarras, nas quais o movimento ininterrupto de rotação era obtido mediante uma habilidade especial para ■lesar e afrouxar uma corda enrolada em torno do fuso. Assim, os diversos tipos de fuso eram modificações do furador h le, utilizados pelas crianças, proporcionavam-lhes a habilida­ de de produzir os movimentos rotativos imprescindíveis para fazer furos. O brinquedo e a atividade da criança com o brinBticdo foram, nessa etapa, uma ferramenta de trabalho modifi­ cada e uma modificação da atividade dos adultos com essa fer■menta, e encontravam-se em relação direta com a futura ati­ vidade da criança.

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Transcorreram os séculos, modificaram-se substancial­ mente as ferramentas e os modos de fazer fogo e de fazer furos. Os fusos já não se encontram em relação direta com o trabalho dos adultos nem com a futura atividade laborai da criança. E para a criança já não se trata de fusos reduzidos nem mesmo de representações deles. Os fusos converteram-se em “brinquedos” figurativos, sónicos ou dinâmicos, segundo a terminologia de Arkin. Mas os adultos continuam fomentando as ações com esses brinquedos, que exercitam certos hábitos quase profissio­ nais, e se convertem em ações formativas de certos sistemas funcionais, dinâmicos ou dinâmico-visuais. E interessante assinalar que para promover ou apoiar a manipulação de tais brinquedos há que recorrer a artimanhas especiais, idéias de piões de chicote sónicos ou musicais etc., ou seja, dar-lhes propriedades adicionais. Pode-se supor que o mecanismo promotor e impulsionador das ações com esses brinquedos, iguais só no aspecto, mudou por completo. São sempre os adultos que introduzem os brinquedos na vida das crianças e as ensinam a manejá-los. Mas se antes, quando os brinquedos eram modelos reduzidos de ferramentas dos adul­ tos, o seu manejo mantinha-se graças à relação “brinquedoinstrumento”, agora, quando já não existe essa relação, mantém-se estimulado pela novidade. O exercício continuado é substituído pelo uso esporádico. De igual modo transcorre o processo de desenvolvimento dos jogos com corda. Na fase de desenvolvimento da socieda­ de, quando trançar e fazer nós eram elementos essenciais da atividade laboral dos adultos, esses exercícios, praticados tanto entre as crianças como entre os adultos, eram fomentados pelas necessidades da sociedade e estavam diretamente rela­ cionados com a produção de redes etc. Atualmente, degenera­ ram em exercícios puramente funcionais para desenvolver os movimentos sutis dos dedos e em exercícios de entretenimen­ to; são raramente encontrados e não mantêm nenhuma relação direta com a atividade laboral dos adultos.

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Vê-se o processo de mudança e desenvolvimento com especial clareza em brinquedos tão “primários” quanto o arco e Rn Hechas. Entre as tribos e os povos de caçadores que se encontravam em níveis relativamente baixos de desenvolvi­ mento, o arco e as flechas eram uma das armas fundamentais ilt caça. O arco e as flechas foram património da criança desde R inais tenra idade. Tornando-se gradualmente mais complica­ dos. chegaram a ser nas mãos da criança a mais autêntica das tu mas, um auxiliar para a sua atividade independente com que podia capturar pequenos animais e pássaros, conta Reinson1'iavdin (1948). O rapazinho que disparava as flechas contra Itnimais e aves tinha-se na conta de um futuro caçador, igual ao Réu pai; os adultos o consideravam como tal. Aprendia o mane­ jo do arco, e os adultos estavam interessadíssimos em que o nprcndesse à perfeição. Mas chegou o dia da arma de fogo. O arco continua nas mãos das crianças, mas agora o manejo do arco já não está iclacionado diretamente com a caça; o tiro com arco e flecha é tili lixado para desenvolver algumas qualidades, por exemplo, a pontaria, necessária também para o caçador com arma de fogo. No transcorrer do desenvolvimento da sociedade, a caça cede o piedomínio a outras formas de atividade laborai. As crianças vilo utilizando cada vez menos o arco como brinquedo. Claro que em nossa sociedade contemporânea pode-se encontrar o Bico, e algumas crianças podem até dedicar-se ao tiro com ele tomo modalidade esportiva. Mas esses exercícios do jovem ioiilcmporâneo não ocupam em sua vida o lugar que ocuparam nos tempos dos caçadores primitivos. O chamado brinquedo primário só é imutável, portanto, no aspecto geral. Na realidade, à semelhança de todos os demais brinquedos, surge e muda com o tempo; a sua história está organicamente vinculada à da mudança de lugar da criança na Noi icdade e não pode compreender-se fora dessa história. O erro de Arkin consiste precisamente no fato de que isolou a história do brinquedo da história do seu possuidor, da história

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das funções do brinquedo no desenvolvimento da criança, da história do lugar da criança na sociedade. Tendo incorrido nesse erro, chegou a conclusões anti-históricas não confirma­ das pela história do brinquedo. 2. Origem histórica da forma desenvolvida de atividade lúdica O aparecimento do jogo protagonizado na história é um dos problemas difíceis de investigar. Para levar a cabo uma pesquisa dessa índole necessita-se, por uma parte, de dados sobre o lugar que a criança ocupa na sociedade, nas diversas fases do desenvolvimento histórico; e, por outra, de dados sobre o caráter e o conteúdo dos jogos infantis nesses mesmos períodos. A natureza dos jogos infantis só pode compreenderse pela correlação existente entre eles e a vida da criança na sociedade. Os dados do desenvolvimento da criança e de seus jogos ou suas fases iniciais no desenvolvimento da sociedade são paupérrimos. De um modo geral, nenhum etnógrafo se propôs levar a efeito essa investigação. Somente na década de 1930 apareceram as pesquisas de Margaret Mead dedicadas às crian­ ças das tribos da Nova Guiné, que contêm dados do modo de vida e dos jogos infantis. Mas esses trabalhos foram direciona­ dos a algumas questões específicas (o animismo infantil, o amadurecimento sexual numa sociedade de baixo grau de desenvolvimento etc.), o que, como é natural, determinou a seleção dos dados. Os dados disseminados pelas inúmeras descrições etno­ gráficas, antropológicas e geográficas são fragmentários e de um extremo esquematismo. Alguns oferecem noções do modo de vida das crianças, mas nada de seus jogos; outros, ao contrá­ rio, tratam só de jogos. Em algumas pesquisas o critério colo­ nizador, a favor do qual os pesquisadores procuraram baixar por todos os meios o nível do desenvolvimento mental das crian­ ças dos povos oprimidos, está tão evidente que os dados não

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tncrecem a menor confiança. Também é difícil comparar os dados obtidos das crianças com a vida da sociedade, já que, ipom freqiiência, é uma tarefa árdua determinar em que grau de desenvolvimento social se encontrava tal ou tal tribo, clã ou comunidade no período da descrição. As dificuldades ainda mio maiores porque os povos podem viver em condições com­ pletamente distintas das que o seu nível de desenvolvimento uncial impõe, e essas condições, sem a menor dúvida, repercu­ te m na vida das crianças na sociedade, no lugar que ocupam entre os adultos e, por essa razão, no caráter de seus jogos. Acerca dos períodos iniciais do desenvolvimento da so­ ei cdade, Kosven escreve: “Não se pode falar de uma aproxima­ ção real do ponto de partida do desenvolvimento da humanida­ de ou, como se costuma dizer, do ponto zero da cultura da humanidade. Nesse caso, só são possíveis hipóteses mais ou menos admissíveis, aproximações mais ou menos acertadas do enigma do nosso passado, eternamente oculto para nós” (1927, p. 5). Isso se refere, num grau ainda maior, ao estudo da crian­ ça c de sua vida na sociedade primitiva. A nossa missão é responder, mesmo que seja com hipóte­ ses, a pelo menos duas interrogações. A primeira é: Existiu tempre o jogo protagonizado ou houve um período da vida da lociedade em que não se conheceu essa forma de jogo infantil? Л segunda: A que mudanças na vida da sociedade e na situação (In criança na sociedade se deve o nascimento do jogo protago­ nizado? É impossível observar diretamente como surgiu o jogo pi otagonizado. Os poucos dados de que dispomos permitem formular, em linhas gerais, a hipótese do nascimento do jogo protagonizado; esclarecer, e só aproximadamente, as condi­ ções históricas em que se fez necessária essa forma original da \ ida da criança na sociedade. Nessa pesquisa não pretendemos esgotar os dados existentes e só apresentamos os imprescindí­ veis para formular a nossa suposição, deixando de lado todos os demais.

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A origem histórica do jogo está intimamente relacionada com o tipo de educação das jovens gerações nas sociedades que se encontram em níveis baixos de desenvolvimento da pro­ dução e da cultura. Baseando-se em numerosos e extensos da­ dos, Alt (1956) alega a existência de uma unidade inicial com­ posta da atividade laborai e da educação, ou seja, a educação não é um processo isolado como função social especial. Em sua opinião, os traços típicos da educação infantil nos primeiros períodos do desenvolvimento da sociedade são os seguintes: primeiro, a educação de todas as crianças por igual e a partici­ pação de todos os membros da sociedade na educação de cada criança; segundo, a univessalidade da educação: cada criança deve saber fazer tudo o que fazem os adultos e participar em todos os aspectos da vida da sociedade a que pertence; terceiro, a brevidade do período educativo: as crianças já conhecem des­ de cedo todas as tarefas que a vida apresenta, logo se tomam independentes dos mais velhos, e seu desenvolvimento termi­ na mais cedo do que em fases posteriores do desenvolvimento social. O principal fator formativo no desenvolvimento das crian­ ças é, para R. Alt, a sua participação direta na vida dos adultos: a incorporação desde cedo ao trabalho útil, relacionado com o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas; a parti­ cipação ao lado dos mais velhos nos bailes, festejos, alguns rituais, festas solenes e no lazer. Referindo-se ao jogo como meio de educação, Alt indica que a criança participa onde pode, sem ter preparação especial nem aprendizagem prévia, no trabalho dos adultos. Onde não pode participar, “integra-se” no mundo dos adultos mediante a atividade lúdica que reflete a vida da sociedade. (Aí já temos um indício da origem histórica do jogo e de seu nexo com a mudança da situação da criança na sociedade.) Assim, a situação da criança na sociedade, nas fases de desenvolvimento mais recuadas, caracteriza-se sobretudo por sua incorporação precoce ao trabalho produtivo dos adultos.

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biinnto mais incipiente for o desenvolvimento da sociedade, Inilio mais cedo as crianças se incorporarão ao trabalho produ­ tivo e se converterão em produtores independentes. Nos alvo■rt da vida da sociedade, as crianças levaram uma vida comum Rim os mais velhos. A função educativa ainda não se separara lomo função social peculiar, e todos os membros da sociedade pi Inçavam as crianças, propondo-se a tarefa fundamental de fa­ ze las partícipes do trabalho produtivo social e de transmitirIhcs sua experiência laboral; e o meio fundamental empregado pia incluí-las gradualmente nas formas de trabalho dos adultos fluo estavam ao seu alcance. Segundo o testemunho de Volz (1925), os povos que cole­ tavam em comum - homens, mulheres e crianças - frutos e raí­ zes comestíveis iam de lugar em lugar buscando alimentos. Aos 10 anos, as meninas já eram mães e os rapazes pais, com шша vida independente. Referindo-se aos kubu (Sumatra), um dos grupos humalíos mais primitivos da Terra, Kosven mostra que o núcleo ^fundamental desse povo é a família restrita; sua ocupação pri­ mordial, coletar frutos e raízes comestíveis; sua principal fer­ ramenta, o pau, um caule de bambu aberto com a extremidade aliada de maneira que sirva para desenterrar raízes e tubércu­ los; a sua única arma, a lança de madeira com ponta de lasca de bambu afiada; servem-lhes de utensílios as cascas de coco ¡C os talos ocos de bambu. Escreve M. Kosven: “As crianças permanecem com os pais e acompanham-nos até os 10 ou 12 imos na busca de alimentos. Nessa idade, tanto os rapazes tomo as meninas já se consideram independentes e capazes de decidir sua sorte e seu futuro. A partir desse momento come­ çam a usar tangas. Quando acampam, constroem uma choça à parte, ao la-do da paterna. Mas já procuram os alimentos e comem por sua conta. Pouco a pouco, vai-se enfraquecendo o nexo entre pais e filhos, e é frequente que, pouco depois, estes se separem daqueles e comecem a viver à parte na floresta” (1927, p. 37).

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Nas descrições etnográficas e geográficas mais antigas dos exploradores russos já existem indicações de que é ensinado às crianças pequenas o cumprimento de obrigações laborais e de que já participam do trabalho produtivo dos adultos. Assim, Novitski escreveu em sua descrição de 1715 do povo ostíaco: “Eles têm em comum os trabalhos manuais, a caça (matam ani­ mais), a captura de aves e a pesca, e podem alimentar-se com o produto dessas atividades. Ensinam seus estratagemas aos fi­ lhos, acostumando-os desde tenra idade a atirar com arco, a ma­ tar animais, capturar aves e pescar” (1941, p. 43). Kratchenínnikov, ao descrever sua viagem pela península de Kamchatka (1737-1741), fez as seguintes observações a respeito dos koriakos: “O mais digno de encómio deste povo é que, embora quei­ ram muito a seus filhos, ensinam-nos a trabalhar desde peque­ nos; para tanto, os mantêm como aos servos, mandam-nos em busca de lenha e de água, apascentar os rebanhos de renas, encarregam-nos e obrigam-nos a cumprir tarefas desse gênero” (1949, p. 457). Zúev, que visitou em 1771-1772 os povos do Ob, escreveu sobre os filhos dos ostíacos e dos samoiedos: “Há muito que os filhos se acostumaram desde pouca idade a enfrentar qualquer dificuldade, como se vê, pela rudeza de sua vida, que não os leva a lamentá-lo nem pouco nem muito, nem de modo algum. Pode-se afirmar com toda a segurança que esse povo nasceu para realizar ingentes trabalhos, e se não se acostumassem à rudeza desde pequenos, os pais teriam poucas esperanças de ver seus filhos convertidos em grandes auxiliares seus e en­ frentando as tarefas que cabem a tais auxiliares. Assim que a criança começa a compreender, sua mãe ou sua ama só a con­ sola tangendo a corda do arco, e quando começa a andar, o pai já lhe prepara um arco. Passando pelas cabanas dos ostíacos ao entardecer, vi alguns garotos brincando sem o arco; costumam disparar flechas contra as árvores ou contra alguma' coisa cra­ vada no chão. Conseguem erguer paliçadas perto de suas caba­ nas; dir-se-ia que seus jogos vaticinam já sua vida futura. E, com efeito, ao observar a paliçada posta através de algum rio,

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litiiu ;i sc verão anciãos sentados com jovens; só com crianças Éi’quenas, pois os mais velhos já navegam pelos rios ou com ftili s ou com botirões e covos; aos pequenos, não se pode Iti.mdá-los onde não entendem ou fazer alguma coisa superior М n a s forças” (1947, pp. 32-33). Miklukho-Maklai fala da participação das crianças não só ■ tu irabalho doméstico, mas também em formas coletivas mais enmplexas de trabalho adulto. Por exemplo, referindo-se ao ■ ulmo da terra, escreve: “Trabalham da seguinte maneira: Mur,. três ou mais homens colocam-se em fila, cravam estacas puntiagudas, compridas e sólidas, e levantam de uma só vez hum boa porção de terra. Se o solo está duro, cravam a estaca ttu mesmo lugar duas vezes, e logo revolvem a terra. Atrás dos hui nens vão mulheres de joelhos, segurando com vigor entre as ftiáus suas enxadas para esterroar. Seguem-nas crianças de Hile rentes idades que esboroam a terra, esfregando-a entre as ItiAos. Nessa ordem trabalham todo o plantio, entre homens, mulheres e crianças” (1951, p. 231). Essa descrição revela-nos l|iu na sociedade dos papuas existia a divisão natural do trabaIIиi por idade e sexo, com a participação de todos, incluindo as 11iiinças, exceto as de tenra idade. Assinalando o gosto, muito comum entre os aborígenes, tf i iisinar a outros, gosto que se observa até entre as crianças, Miklukho-Maklai explica assim a sua origem: “Isso se vê até ¡ hii ' crianças; as de seis e sete anos ensinaram-me muitas vezes Iunto fazem esta ou aquela coisa. E isso é porque os pais adesli.nn desde muito cedo seus filhos para a vida prática; de ui.ineira que, sendo ainda muito pequenos, já percebem e apren­ dí in mais ou menos todas as artes e ações dos adultos, mesmo its não adequadas à sua idade. As crianças brincam pouco; e Им brincadeira consiste em arremessar paus como se fossem lanças e em atirar com arco, e assim que conseguem fazê-lo •t win certa destreza e êxito, passam a aplicá-lo na vida prática. Vi crianças pequenas que passam horas a fio à beira-mar, tenI.nulo acertar com uma flecha um peixe. O mesmo se observa

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com as meninas, e até cm grau ainda maior, porque começam antes as tarefas da casa e tornam-se ajudantes de suas mães” (1951, p. 136). Detivemo-nos tanto nos dados de Miklukho-Maklai porque seus testemunhos, por sua indubitável e completa objetividade, revestem-se dc singular valor. Outros autores falam também da participação precoce das crianças no trabalho dos adultos. Assim, Vaillant escreve em sua Historia de los aztecas: “A educação começava depois do desmame, ou seja, aos dois anos e pouco de idade. O objetivo da educação era introduzir a criança o antes possível no am­ biente dos costumes e obrigações que constituíam a vida dos mais velhos. Como tudo se fazia à mão, as crianças tinham a possibilidade de familiarizar-se muito cedo com a atividade dos adultos. Os pais encarregavam-se da aprendizagem dos filhos; as mães ensinavam as filhas. Até 05 seis anos, a educação dos filhos limitava-se a fábulas e conselhos, ensinava-se-lhes 0 uso dos utensílios domésticos e eles realizavam pequenas tarefas em casa.” “Essa educação”, prossegue o autor, “incorporava dirctamente a nova geração à vida do lar” (1949, p. 87). Bryant, que viveu cerca de meio século entre os zulus, fala também da incorporação precoce das crianças ao trabalho pro­ dutivo dos adultos: “Aquele que saiu da idade infantil, ou seja, que cumpriu seis anos, menino ou menina, está igualmente obri­ gado a trabalhar e a realizar sem queixas as tarefas que lhe sejam designadas; os rapazes, sob a orientação dos pais; as meninas, observadas pelas mães” (1953, p. 123). Bryant enumera uma série dc tarefas que são função dos filhos. “Os rapazinhos de seis ou sete anos são enviados pela manhã ao prado para apas­ centar as vitelas e as cabras, e os dc alguns anos mais encarregam-se de levar as vacas ao pasto” (ibid., p. 157). Quando chega a primavera, “as mulheres e os filhos percorrem os prados em busca de ervas silvestres comestíveis” (ibid., p. 184). Quando os cereais já estavam sazonados e as terras semeadas corriam

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t» perigo de ser devastadas pelos pássaros, “as mulheres e as Biwnças passavam todo o dia no campo, espantando os pássaIih de sol a sol” (ibid., p. 191). Muitos pesquisadores soviéticos das etnias do Extremo Worle falam também da incorporação precoce das crianças ao H» ha lho dos adultos c que estes lhes ensinavam especialmente и liabalhar. A. G. Bazánov e H. G. Kazânski escrevem: “As ■nangas do povo mansi saem desde tenra idade a pescar. Mal йрп-nderam a andar, os pais já levam os garotinhos no barco. E fcsaim que começam a crescer, fazem-lhes pequenos remos, íiminam-lhes a guiar o barco e os acostumam à vida no rio” 11'Ш, p. 173). Numa outra obra, Bazánov diz: “Mal cumpriu ■un o ou seis anos, o menino vogul anda perto da cabana com lido e flechas, caçando pássaros e treinando a pontaria. Quer I n caçador. Levam-no pouco a pouco aos bosques desde os в|Ч< ou oito anos. Aí lhe ensinam a procurar o esquilo e a galihIm do-mato, a cuidar do cão, onde e como colocar armadi­ lhas Se o adulto corta galhos para fazer uma armadilha, o filho inlocá a mola que a acionará quando o animal entrar nela, cspliiitc a terra, espalha pedrinhas, areia, folhas, prepara a isca...” (1 *>4 . p. 93). Até as crianças menores são caçadoras apaixoHtid.is e, quando vão à escola, já levam capturadas dezenas de nii|uilos e chinchilas. Itazánov assinalou muito bem, ao descrever a pesca, o prinllpin fundamental da educação nessas condições: “Éramos qua­ lm .idultos e outras tantas crianças pequenas... Chegamos a um m ho arenoso que adentrava a água como uma língua afiada e, instando-nos em duas filas, começamos a içar a rede para o foin o. Entre nós havia também garotinhos que se agarravam (Jum suas pequenas e rosadas mãos à extremidade da rede c nos «pulavam a içá-la.” Prossegue Bazánov: “O meu guia, um zitiuno, gritou para um dos garotos: ‘Não estorves, não te metas iu' meio.’ Um velho vogul olhou-o zangado e sacudiu a cabeça, и ' nminando-o: ‘Isso não está certo, não. Deves deixá-los fa/I г tudo o que nós fazemos’” (ibid., p. 94).

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Stártsev escreve que “aos seis ou sete anos, já ensinam as crianças a conduzir as renas e a capturá-las com o laço” (1930, p. 96). Stebnítski assim descreveu a vida das crianças koriakos: “É nos afazeres que se manifesta especialmente a independên­ cia das crianças. Algumas tarefas caseiras são executadas ape­ nas pelas crianças.” E prossegue: “Os rapazes encarregam-se também de partir lenha. Mesmo que o dia esteja frio ou desa­ gradável, o rapaz atrela os cães que tiverem ficado em casa e vai buscar lenha a mais de 10 quilómetros. [...] As meninas ini­ ciam-se, entre brincadeiras, em todas as suas tarefas. Primeiro dão-lhes um retalho de pano, uma faca cega, uma agulha que­ brada, e costuram com poiica arte, e assim vão adquirindo hábi­ tos de trabalho até verem-se imersas, sem se dar conta, no secu­ lar e cansativo trabalho feminino” (1930, pp. 44-45). Não vamos multiplicar os exemplos. Esses já são suficien­ tes para demonstrar que numa sociedade subdesenvolvida com uma organização comunitária primitiva do trabalho, as crian­ ças incorporam-se muito cedo ao labor produtivo dos adultos, participando nele na medida de suas forças. O mesmo acontece na família camponesa patriarcal, na qual, segundo palavras de Marx, “as diferenças de sexo e idade, assim como as condições naturais do trabalho, que mudam com as estações do ano, regu­ lam a distribuição dessas funções dentro da família e o tempo que hão de trabalhar os indivíduos que a integram. Mas aqui o consumo de forças individuais de trabalho, graduado por sua duração no tempo, adota a forma lógica e natural de um traba­ lho socialmente determinado, uma vez que nesse regime as forças individuais de trabalho somente atuam como órgãos da força coletiva de trabalho da família”1. A ocupação das mães e a inclusão dos filhos desde muito cedo no trabalho dos adultos dão lugar a que, primeiro, na sociedade primitiva não exista uma fronteira muito delimitada entre adultos e crianças, e, segundo, as crianças adquiram inde­ pendência, na verdade, precocemente. Nesse ponto concordam quase todos os pesquisadores.

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Stebnítski, por exemplo, escreve: “De um modo geral, Hiflipre dizer que não há entre os koriakos uma divisão marcaid entre crianças e adultos. As crianças são membros da socie­ dade iguais em direitos e iguais no respeito que se lhes tem. Na fcnnversação geral, são escutadas com a mesma atenção que os B le ltO S .”

' O célebre etnógrafo russo Tchternberg também assinala a ■unidade existente entre crianças e adultos nos povos do «Nordeste asiático: “Ao homem civilizado fica difícil imaginar d Igualdade e o respeito de que gozam aqui os jovens. Os ado■je«contes de 10 a 12 anos sentem-se membros completamente Iguais da sociedade. Os anciãos mais idosos e mais respeitados mcutam com a maior atenção e seriedade o que eles dizem e ffpspondem-lhes com a mesma seriedade e cortesia que aos (nitros velhos. Ninguém percebe a diferença de idade nem de Bosição” (1933, p. 52). Outros autores falam, em particular, da independência ■Tdcoce das crianças que vivem na sociedade primitiva. Os tra­ iuis característicos da criança que vive no ambiente dessa ■Dciedade, sua autonomia precoce e a ausência de uma frontei­ ra nítida entre as crianças e os adultos são uma conseqiiência ttiitural das condições de vida dessas crianças e de seu lugar real na sociedade. Existiu o jogo protagonizado entre as crianças numa soBlcdade com um grau de desenvolvimento em que os instru­ mentos de trabalho ainda eram muito primitivos? A divisão desBc jogo baseava-se nas diferenças naturais de idade? E de sexo? As crianças eram consideradas membros iguais na sociedade em cujo trabalho comum participavam conforme suas possibili­ dades? Não existem dados exatos sobre os jogos infantis numa nociedade com esse nível de desenvolvimento. Os etnógrafos e exploradores que se ocuparam de povos num nível de desen­ volvimento próximo do acima mencionado indicam que as crian­ ças brincam pouco, sempre do mesmo jeito, dos afazeres dos adultos, e seus jogos não são protagonizados.

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Assim, Livingston, ao descrever a vida de uma tribo ne­ gra, a dos bakalahari, diz: “Nunca vi seus filhos brincarem” (1947, p. 35). Miklukho-Maklai também afirma, sobre os filhos1 dos papuas, que “brincam pouco” (1951, p. 136). Bryant, que viveu cerca de 50 anos entre os zulus, descreve em sua já citada] obra vários jogos das crianças dessa raça, mas entre eles não há nenhum jogo protagonizado. Mead (1931), que descreveu a vida das crianças na socie- ] dade de pescadores primitivos da Melanésia, numa ilha do arquipélago do Almirantado, conta que aos filhos do povo ] manus é permitido brincarem o dia inteiro, mas seus jogos lembram os de cães e gatos pequenos. Na opinião de Mead, essas crianças não encontram na vida dos adultos modelos que as entusiasmem e as incentivem a imitá-los. A autora sublinha que as crianças não encontram na organização social dos adul­ tos modelos interessantes para seus jogos. Somente de maneira ! casual e esporádica, uma vez por mês, conseguia observar um ' jogo imitativo, no qual as crianças representavam cenas da vida dos adultos, por exemplo, o pagamento do dote ao se celebrar o matrimónio ou a repartição do fumo nos ritos fúnebres. A 1 autora observou desses jogos três ou quatro ocorrências, nada mais. E deles assinala também a falta de imaginação. Embora, na opinião de Mead, as crianças tenham todas as possibilidades para desenvolver jogos protagonizados (gozam de muito tempo livre, podem observar a vida dos adultos e dispõem de uma exuberante vegetação que lhes proporciona muitíssimo material de toda a espécie para brincar etc.), nunca representam cenas da vida dos adultos, nem imitam em seus jogos o regres­ so dos adultos de uma caçada bem-sucedida, suas cerimónias, suas danças etc. Assim, como evidenciam os autores citados, as crianças que vivem numa sociedade de nível relativamente baixo de desenvolvimento não têm jogos protagonizados. Essa tese não deve levar à dedução de que se trata de crianças de baixo nível de desenvolvimento mental, ou carentes de imaginação etc., como

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limam alguns pesquisadores. A ausência de jogos protagoni­ sts deve-se à situação especial das crianças na sociedade. As crianças que vivem no ambiente da sociedade primitiIncontram-se tão atrasadas em comparação com suas coetâ«Mda sociedade contemporânea no desenvolvimento dos jo­ lt protagonizados quanto adiantadas no sentido da indepenHua, participação na atividade laboral dos adultos e aptidão In tanto. “As condições gerais da educação primitiva e da Indomia, sob cujo signo transcorre principalmente a infânIp escreve Kosven, “devem ser consideradas a base da magpl к a aptidão para o rápido desenvolvimento e a singular cagidade das crianças das tribos e povos atrasados nas escolas Я* colónias. Resulta facílimo para elas dar o salto da sociedai pi imitiva para a civilização” (1953, p. 140). As ferramentas e as formas primitivas de trabalho ao alcanfp d;i criança permitem-lhe tornar-se independente mais depres[|n por necessidades da própria sociedade, mediante a partici■piKno direta no trabalho dos adultos. Não se trata de explora■jfo da criança: o trabalho infantil tem caráter de tarefa social ■pontânea. É certo que as crianças, quando desempenham suas ■brigações laborais, nelas introduzem características infantis específicas, talvez desfrutem, inclusive, do próprio processo e, em lodo o caso, sentem-se satisfeitas por ter atuado com os adul­ tos e como adultos. Isso é tanto mais provável porquanto, segundo o testemu­ nho da maioria dos pesquisadores, a educação na sociedade pri­ mitiva é severa no conteúdo, mas sua forma é de extraordinária linividade. Não se castigam as crianças e procura-se por todos os meios que estejam alegres, animadas e contentes. Não obs­ tante, o entusiasmo pelo próprio processo do trabalho, a ale­ gria, a satisfação e o prazer não convertem em jogo essas for­ mas de trabalho infantil, por mais primitivas e rudimentares que sejam. Nas condições da sociedade primitiva, com seus meios e formas de trabalho relativamente elementares, até as crianças

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de três ou quatro anos podiam participar nas formas simples de trabalho doméstico, na coleta de plantas, raízes, larvas, caracóis e outros comestíveis, na pesca primitiva com simples cestos ou até à mão, na caça de animais pequenos e pássaros, e nas for­ mas rudimentares de agricultura. A independência que a socie­ dade exigia das crianças encontrava sua expressão natural no trabalho comum com os adultos. A vinculação direta das crian­ ças a toda a sociedade, mediante o trabalho em comum, excluía qualquer outro vínculo entre a criança e a sociedade. Nesse grau de desenvolvimento da sociedade, e com esse status dentro dela, a criança não tinha nenhuma necessidade de reproduzir o tra­ balho nem de entabular relações especiais com os adultos, não necessitava do jogo protagonizado. Com a passagem para formas de produção mais elevadas a agricultura e a pecuária com a maior complexidade das for­ mas de pesca e de caça, tomaram-se desnecessárias a coleta de alimentos naturais e as formas primitivas de caça e pesca. Com a mudança do caráter da produção na sociedade, operou-se uma nova divisão do trabalho. “O desenvolvimento da produção”, escreve Kosven, “manifestado na passagem para a agricultura de arado, e o início da pecuária tiveram o importantíssimo re­ sultado socioeconómico que Engels denominou a primeira grande divisão social do trabalho, ou seja, a divisão entre agri­ cultores e criadores de gado com todas as suas conseqiiências, concretamente, com o desenvolvimento da indústria doméstica e do intercâmbio regular. Essas profundíssimas mudanças tive­ ram o resultado socioeconómico que se expressou na nova di­ visão de trabalho segundo o sexo, na mudança do lugar do ho­ mem e da mulher na produção social. A divisão sexual do traba­ lho existiu, como disse Engels, com ‘uma origem puramente na­ tural’, já no matriarcado. Agora adquiria um caráter incompa­ ravelmente mais profundo e uma transcendência económica e social muito maior. A criação de gado tomou-se um afazer mas­ culino. As mudanças operadas na economia geral deram lugar a

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que a economia doméstica, ‘que foi esfera principal do traba­ lho da mulher’, se separasse como ramo peculiar da produção” (1951, pp. 84-85). Com a mudança do caráter da produção ocorreu, portanto, na sociedade, outra divisão do trabalho. Ao se complicarem e redistribuírem os meios e os modos de trabalho, deu-se uma mudança natural na participação das crianças nos diversos as­ pectos do trabalho: deixaram de participar diretamente em ati­ vidades laborais a elas superiores. Às crianças pequenas foram confiados apenas alguns aspectos do trabalho doméstico e os afazeres mais simples. Embora nesse grau de desenvolvimento as crianças ainda sejam membros iguais na sociedade e partici­ pantes da atividade laboral dos adultos em algumas esferas, novas características se apresentam em sua situação. Algumas pesquisas já por nós citadas a respeito dos povos do Extremo Norte incidem precisamente sobre essa etapa do desenvolvi­ mento da sociedade. No tocante às esferas de trabalho mais importantes, ainda inacessíveis a ela, apresenta-se à criança a missão de dominar 0 mais cedo possível as complicadas ferramentas desse traba­ lho. Surgem equipamentos em tamanho reduzido, adaptados especialmente às possibilidades das crianças; esses equipa­ mentos são utilizados em condições aproximadas às reais, ou seja, não idênticas às do adulto. O tipo de ferramentas para a Criança está em consonância com o ramo de trabalho funda­ mental que predomine na sociedade em questão. Eis algumas citações de estudos relacionados com o nosso tema. Para os povos do Extremo Norte, o facão é um utensílio imprescindível. O manejo do facão é ensinado desde a primei­ ra infancia. Bogoraz-Tan escreveu: “A infância do tchuktcha é muito feliz. Não se priva de nada nem se assusta. Assim que é capaz de agarrar as coisas com firmeza, o pequeno recebe um facão e, a partir desse momento, levá-lo-á sempre consigo. Vi um menino talhando madeira com o facão, um facão quase tão grande quanto ele” (1934, p. 101).

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“Cada menino leva, como o caçador adulto”, escreve Reinson-Pravdin, “um cinturão no qual pendura um facão com uma corrente ou uma correia; não é de brinquedo, é de verda­ de, às vezes de tamanho impressionante. Se a criança se corta por acaso, aprenderá a manejar melhor e da maneira mais ade­ quada a mais útil arma da vida. A criança necessita do facão também para comer, cortar um pedaço de carne, fazer um brin­ quedo, afiar a ponta de uma flecha, esfolar um animal sacrifi­ cado etc. Para ela é igualmente imprescindível o machado. [...] Uma pequena faca, geralmente a primeira na vida do menino, costuma ser dada pela mãe; o pai entrega-lhe um facão com o cabo primorosamente lavrado. Nessas condições, entende-se por que é muito difícil encontrar entre os brinquedos das crian­ ças da bacia do Ob uma faca ou um machado de madeira, como se vê com freqiiência entre as crianças de muitos povos de outra cultura não familiarizados desde muito cedo com esse tipo de arma” (1948, p. 196). “O mesmo ocorre com os esquis. Raras vezes poder-se-ão ver entre os brinquedos esquis diminutos, de ‘mentirinha’. Necessitam deles, já que recebem os adequados à sua estatura desde que aprendem literalmente a andar.” Mais adiante escreve: “Os adultos consideram não existir, para a criança, melhor brinquedo: com os esquis, elas promovem com­ petições, realizam muitos jogos de caçadores. As mães orna­ mentam os esquis com desenhos diminutos e, sob as correias de sujeição, colocam um pano colorido; às vezes, pintam os esquis de vermelho. Com isso ressaltam as funções lúdicas dos esquis de brinquedo. Os rapazes, quando crescem, aprendem a fazer os seus próprios esquis, e quando se iniciam na caça, revestemnos de pele na frente e patas de rena na parte deslizante, como fazem os mais velhos, para percorrer grandes distâncias nas caçadas. A partir desse momento, os esquis deixam de ser um brinquedo” (1948, p. 198). Não entendemos, em absoluto, por que Reinson-Pravdin inclui os esquis e o facão infantis entre os brinquedos. O fato

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■p o facão e os esquis serem adaptados (serem menores, terem Mills adornos) às possibilidades das crianças não é motivo para ■fluiderá-los brinquedos. O fato de os jovens produzirem brin■lipdos com o facão e participarem em competições de esquis ■tmpouco é motivo para catalogar esses objetos entre os brin■tivdos. Não são, portanto, brinquedos, mas equipamentos que ■ Iriança deve saber manejar o mais cedo possível e cujo ma­ nejo aprende ao empregá-los praticamente nas mesmas tarefas B r os adultos. [ A esses equipamentos comuns a todos os povos do Extre­ mo Norte, que os jovens devem saber manejar o mais cedo pos■|\rl. somam-se, nos povos caçadores, o arco e as flechas; nos ■feciulores, o caniço; nos pastores de renas, o laço. “Os arcos, ■s flechas e as lanças do tipo das antigas armas russas estão o uno lodo nas mãos de crianças. Se quebram, os garotinhos fa■ini outros”, escreve Stebnítski. “Adquiriram grande perfeição ■111 fazê-los. Deve-se incluir entre essas armas a chamada fun■ti Ou atiradeira, isto é, uma laçada de couro para arremessar pedras a distância. Pode-se apostar que não se encontrará um ■ó garoto koriako de 5 a 15 anos que não leve pendurada ao ■Ihcoço essa funda e não a utilize venha ou não a propósito. Os torvos, as corujas, as perdizes, os arganazes, as lebres, os armiBltos, oferecem oportunidades inesgotáveis para a caça; os ga­ fólos são, sem dúvida, inimigos muito perigosos de todos esses Mlilmais. Vi um garoto disparar seu arco e abater em vôo um cor!>o, c um outro dar uma pedrada com a funda num ganso que se moncava nas ondas a uns 20 ou 30 metros da beira-mar” (1930, p 45). “Mal completou cinco ou seis anos”, escreve Bazánov, Po menino vogul já fica correndo perto de sua cabana com o Иго e as flechas, caça pássaros e treina a pontaria” (1943, p. 93). *'l >о um modo geral, faz-se o arco dos rapazes de madeira in­ teiriça. Mas à medida que ele cresce, o arco vai sendo refeito várias vezes, levando em conta as possibilidades infantis”, re­ íala Reinson-Pravdin. “Ao se tornar pouco a pouco mais com­ plicado, chega a sernas mãos do rapaz uma verdadeira arma ade-

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quada à sua atividade independente, e pode abater pequenos animais e pássaros” (1949, p. 113). “Os filhos dos nómades”, diz Stebnítski, “dispõende outra arma, além das três mencionadas: é o laço, um acompanhante tão permanente quanto a funda. O rapaz não pode passar por um pau cravado no solo e que sobressaia um pouco,ou por um arbusto que emerja um pouco da neve, sem provar neles a des­ treza do seu braço. [...] Assim se exercita essa assombrosa pon­ taria com que os pastores koriakos capturam ceneiramente alguma rês do rebanho sempre inquieto, a rena deque preci­ sam para o trenó ou para lhe comer a carne” (1931,p. 36). “A arte de manejar o laço com rapidez e habilidade nãoseadquire de um dia para o outro”, escreve Reinson-Pravdin. “Vai-seapren­ dendo aos poucos, desde a mais tenra infância. Por isso, entre os brinquedos artesanais que são dados a conhecer aosrapazes na criação de renas, o laço ocupa um Jugar impórtame. As di­ mensões dos laços infantis são as mais variadas: 0,5m, 1 m, 2 m e mais. O laço, à semelhança do arco, aumenta deiamanho à medida que o jovem cresce e vai acumulando destrezae hábito. Os laços infantis são feitos de esparto, para as crianças peque­ nas; e de couro, como os utilizados pelos adultos, paraos rapa­ zes acima de sete anos. Os jogos com laço são, paraas crian­ ças, não menos interessantes e proveitosos do que osjogos com arco e flecha. As crianças menores tratam de laçar, primeiro, tocos altos e delgados, e só mais tarde passam a mcitar-se com alvos móveis: procuram capturar no laço algún cão ou cria de rena” (1948, p. 209). As crianças das tribos que têm por atividade principal a pesca recebem também desde muito cedo o caniço ecapturam peixes pequenos, passando gradualmente à pesca industrial com outras artes mais complicadas, ao lado dos adultos. Assim, o facão, o machado, os esquis, o arco e aslkhas, os laços e os caniços são ferramentas de tamanho reduzido, adapta­ das ao crescimento dos jovens, e lhes são entregues paraque se exercitem e aprendam seu manejo, orientados pelos adultos.

li ) que asseguram o êxito na execução de toda uma série de ■t iи essos de produção, e não de um só tipo, foi um importante жни. o na educação das jovens gerações. Pode-se supor que, ■и" иndo-se nisso, destacaram-sc exercícios singulares, espe■nil mente orientados para a formação dessas qualidades. i Nao é missão nossa estudar a origem histórica dos jogos e ■pmpelições esportivas; assim como tampouco tratamos do nexo

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existente entre o conteúdo desses jogos e a atividade industrial típica deste ou daquele povo ou tribo. Importa-nos apenas assi­ nalar que vínculo existe entre a aprendizagem das crianças no manejo de algumas ferramentas e as competições de habilida­ de em seu emprego. Essas competições sobrepõem-se a essa aprendizagem como um exame original e reiterativo, na medi­ da em que os êxitos obtidos na aprendizagem e na formação de habilidades físicas e técnicas, relacionadas com ela, subme­ tem-se à avaliação e à comprovação sociais. Como já assinalamos, a incorporação precoce das crian­ ças ao trabalho dos adultos leva, nos primeiros períodos de evolução social, a impulsionar a independência das crianças e satisfaz diretamente a demanda social de independência. Na etapa seguinte de desenvolvimento e devido à crescen­ te complexidade dos meios de trabalho e das relações de pro­ dução, desenrola-se uma atividade singular encaminhada no sentido de propiciar a aprendizagem infantil no manejo dos instrumentos de trabalho dos adultos. No decorrer do desenvolvimento do regime do comunismo primitivo, os adultos não puderam dedicar muito tempo a dar a seus filhos uma educação ou uma instrução especiais. A exigên­ cia fundamental mais precoce possível que a sociedade conti­ nuou apresentando às crianças era a de independência. Assim, Bryant escreve: “As mães tinham de cumprir suas obrigações mais pesadas e não lhes sobrava tempo para cuidar dos filhos. As meninas e os rapazes, sobretudo estes últimos, estavam en­ tregues a si mesmos desde os quatro anos e às vezes antes. Os pequenos traquinavam e retouçavam-se livres no pátio e na horta contígua, e só queriam saber de si mesmos” (1953, p. 127). Indicações como essa sobre a concessão de completa indepen­ dência às crianças no recreio e inclusive no próprio sustento desde a mais tenra idade são abundantes nos livros de etnografia. Apetrechados com instrumentos de trabalho como os que os adultos empregam, mas de tamanho reduzido, as crianças, abandonadas a si mesmas, passam todo o tempo livre exercitan-

h ura da origem histórica do jogo protagonizado

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•In-sc com esses equipamentos, passando paulatinamente a malu i;i-los em condições próximas das do trabalho dos adultos. Margaret Mead conta que os rapazes por ela observados rlcavam dias inteiros entregues a si mesmos. Tinham suas próbfius canoas, seus remos, seus arcos e suas flechas. Deambu­ lavam juntos pela margem da lagoa em grupos, pequenos e grandes, c competiam no lançamento de dardos e no tiro com ■reo, na natação e no remo, engalfinhavam-se em lutas corpo­ rais etc. Os rapazes mais velhos eram mandados freqiienteItTUMite a pescar entre os juncais e canaviais, ensinando de paspgem os menores que os acompanhavam (cf. M. Mead, 1931, pl>, 77-78). Miller relata as observações que fez nas Ilhas Marquesas: "Assim que o rapaz pode se virar sem ajuda de ninguém, aban­ dona seus pais e constrói uma choupana em local escolhido a (ini gosto” (cf. N. Miller, 1928, pp. 123-124). Arkin menciona a informação relatada por Displaine de Alie “às margens do Níger viu com freqiiência crianças de seis b oito anos que, depois de abandonarem o lar paterno, viviam por conta própria, construíam elas mesmas suas palhoças, fuçavam e pescavam, e até praticavam algumas formas toscas tlc culto” (1935, p. 59). Sintetizando os dados etnográficos existentes nessa esfen , Kosven escreve: “Os jovens, sobretudo os mais novos, torЬ и т -se, em grande medida, independentes desde muito cedo. 'Plissam a maior parte do tempo, a partir dos três ou quatro Duos, com os de sua idade e começam a caçar à sua maneira, põem armadilhas para as aves, já sabem dirigir seu bote etc. Entre os seis e os oito anos vivem independentes quase por Completo, amiúde em choupanas separadas, praticam uma i uça mais complicada, pescam etc. Mostram na caça resistên­ cia c argúcia magníficas. Eis os exemplos de caça de dois pequenos negros do Congo. Estendidos de costas, um braço t .1içado, têm alguns grãos na palma da mão e esperam pacien­ temente que algum pássaro acuda a debicar e, nesse instante.

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i|i i , , a da origem histórica do jogo protagonizado

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capturam-no fechando a mão de repente. Outro exemplo: ata-se uma corda num galho que costuma ser freqüentado por macacos, em suas constantes correrias de árvore em árvore; a outra ponía da coida está segura nas mãos de um dos garotos, escondido embaixo. Eles aguardam em silêncio o momento em que um macaco se dispõe a saltar para o galho atado e, quando isso ocorre, o garoto estica rapidamente a corda, o animal erra о saho e cai no chão. onde é capturado pelos pequenos caçadores” (1953, p. 139). A independência que a sociedade exige às crianças nesse grau de desenvolvimento c alcançada vivendo elas por sua conta, separadas dos adulto^ mas igual em essência, e não par­ ticipando no trabalho produtivo ao lado dos adultos e com os adultos, essa vida independente das crianças consiste, primeiio, cm que se exercitem por conta própria com ferramentas de tamanho reduzido e. depois, em que as empreguem diretamente em condições o mais parecidas possível com aquelas em que os adultos as utilizam. A maioria dos autores afirma que essa vida independente está difundida principalmente entre os rapazes, o que eviden­ cia, de modo indireto, que se trata de sociedades que, ao que tudo leva a crer, passaram ao patriarcado, quando se atribuiu à mulher todo o trabalho doméstico, no qual as meninas podem ter uma participação e aprender assim todos os afazeres femi­ ninos. Л independência das meninas educava-se, pois, fazendoas participar diretamente no trabalho de suas mães, que é mais primitivo no emprego de ferramentas e, por isso, mais acessível. Os rapazes, por sua parte, não podiam participar diretamente no trabalho de seus pais; por isso lhes correspondia, em primei1o lugar, a exigência de independência, devendo exercitar-se no manejo das mesmas ferramentas que seus pais utilizavam. A vida independente dos rapazes nesse período baseia-se no fato de que só aprendiam a utilizar os meios de trabalho. Os adultos faziam para os pequenos ferramentas de tamanho redu­ zido e os ensinavam a usá-las. As crianças exercitavam-se por

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HM conta e aprendiam à perfeição o seu manejo. Pode-se supor (jiic ilistamente desse período da vida da sociedade datam as jlliciações, existentes até hoje em muitos povos que se enconllliim em níveis evolutivos relativamente baixos, iniciações que ||An a um só tempo escola primária, exame de independência e Ctbilidade no manejo das ferramentas e familiarização com os miembros adultos da sociedade. Os dados apresentados da carência de jogos protagoniza­ dos entre as crianças que crescem em sociedades menos desen­ volvidas também são desse período. Tampouco se encontra aí, «litre as crianças, ou só se encontra muito raramente, o jogo [protagonizado em forma evoluída. Não há necessidade alguma ib praticá-lo. As crianças entram na vida da sociedade sob a Mlrcçào dos adultos ou por sua conta: os exercícios no manejo f Нон instrumentos de trabalho dos adultos, no caso de adquirii>ui o caráter de jogos, serão de jogos esportivos ou de compe■jçito, mas não protagonizados. A reconstituição da atividade 1 tios adultos em condições lúdicas especiais carece de todo o húmido em virtude da identidade das ferramentas que utilizam IgH crianças e os mais velhos, bem como da gradual aproxima, 1,, das condições de seu emprego às situações concretas de ■Unha lho. E embora as crianças não participem nele, levam o [ mesmo gênero de vida que os adultos, em condições algo mats I bl andas, porém totalmente reais. Apesar de tudo, nessa etapa de desenvolvimento da socie,lude já se encontram, se bem que raras vezes, os jogos propria­ mente protagonizados. Assim, por exemplo, Tcharuzin diz, ao lie rever sobre a vida dos lopários, que as crianças praticam os tuesmós jogos que os adultos; além disso, têm outros dois jogos, e ambos são imitativos. Um desses jogos baseia-se na mutação da cerimónia de noivado: um rapaz toma uma menina pela mão e dá com ela uma volta ao redor da mesa ou de algum poste (se o jogo transcorre ao ar livre), e os restantes permane­ cem de pé ao lado, com a particularidade de que quem tem Ima voz canta uma letra como esta: ‘Tu a puseste, tu a colocas-

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te.” Em seguida, cobrem-lhes a cabeça com dois pauzinhos em forma de cruz, no lugar de coroas; quando deram três voltas, retiram-lhes os pauzinhos e cobrem a noiva com um lenço. O rapaz leva a menina para um lado e dá-lhe um beijo. Depois, ambos são conduzidos à mesa e sentam-se nos lugares de hon­ ra; a recém-casada continua coberta com o lenço, a cabeça inclinada; o jovem abraça-a; após permanecerem sentados por alguns momentos à mesa, ou passa-se a casar outro par ou os recém-casados deitam-se para dormir juntos. Este é um jogo de crianças de cinco a seis anos, principalmente antes da boda de alguém e sempre às escondidas dos pais, visto que estes o proibem a seus filhos (cf. N. N. Tcharuzin, 1890, p. 339). Mead apresenta no já mencionado trabalho a descrição de vários jogos que podem ser catalogados entre os protagonizados. Assim, as crianças de seis anos constroem às vezes casinhas com troncos e brincam como se se dedicassem aos afazeres do­ mésticos. Eventualmente, juntam-se para brincar de noivos, escolhendo casais, construindo casas, pagando de mentirinha o dote da noiva e até, imitando os pais, deitando-se juntos, rosto com rosto. A autora indica que as meninas pequenas não têm bonecas nem costumam brincar de “bebés”. Os bonecos de madeira oferecidos às crianças foram aceitos somente pelos rapazes, que se puseram a jogar com eles, balançando-os e cantando-lhes can­ tigas de ninar como seus pais, que são muito carinhosos com os filhos2. Ao descrever esses jogos, M. Mead sublinha em repetidas ocasiões que se vêem pouquíssimas vezes, e ela pôde contar nos dedos aqueles a que teve a oportunidade de assistir. É importante assinalar que entre os jogos descritos não há nenhum que represente a vida laboral dos adultos; predomi­ nam os que reproduzem aspectos inacessíveis ou proibidos para crianças das relações e da vida entre adultos. É lícito supor que os jogos protagonizados que surgem nesse grau de desenvolvimento são um modo peculiar de pene­ tração na esfera da vida e relações adultas interditada para as crianças.

4i vi i'u da origem histórica do jogo protagonizado

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Nas fases tardias do regime de comunismo primitivo, as fulvas produtivas continuaram evoluindo, tornando-se mais Btfmplicadas as ferramentas e aprofundando-se a divisão do Bnbalho. A complicação das ferramentas e das relações de pro­ ibição, a elas vinculadas, teve de repercutir na situação que as | | i liiuças ocupavam na sociedade. Dir-se-ia que se deslocavam I Bitulatinamente das esferas complicadas e de maior responsaI piIidade da atividade dos adultos. Restava um grupo cada vez liivnor dc esferas de atividade laborai, nas quais elas podiam IBttrticipar com os adultos e em igualdade. Ao mesmo tempo, a complicação dos instrumentos de traI bailio dava lugar a que as crianças não pudessem aprender o l Immcjo das ferramentas com modelos reduzidos. Ao ser dimi­ nuída, a ferramenta perdia suas funções fundamentais, conserEVrtndo apenas a aparência exterior das ferramentas de trabaMlio empregadas pelos adultos. Assim, por exemplo, enquanto o •иi и reduzido não perdia sua função principal, podendo dispaLfur-sc com ele uma flecha e acertar num objeto visado, um rifle ifpdu/ido não passava de uma figura de rifle, com a qual não se (Podia fazer um disparo, mas apenas simulá-lo’. Na agricultura Mr enxada, um modelo reduzido era, apesar de tudo, uma ferraIftirnla com que a criança podia desfazer torrões de terra; essa ■ixada reduzida era parecida com a de seu pai ou sua mãe, não |§ò pela forma, mas também por sua função. Ao passar para a Bpicultura de arado, o arado reduzido, por muito que se pare■êv.e com o verdadeiro em todos os detalhes, perdia as funções Btdamentais de ferramenta: não se podia jungir a ele um boi Bftn lavrar. i : possível que justamente nessa fase do desenvolvimento (In sociedade aparecesse o brinquedo no sentido próprio da nluvra, como objeto que só representava a ferramenta de traba­ lho c os equipamentos ou utensílios da vida dos adultos. Nos livros de etnografia há muitas alusões ao caráter dos Jogos protagonizados nesse período. Vamos citar apenas as dose l ições de alguns deles, usando os dados do trabalho de Miller (1928).

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As crianças da África Ocidental, escreve Miller, fazem na areia algo parecido com campos de batatas. Cavam buracos no solo e simulam plantar uma batata em cada um deles. Na África do Sul constroem casas pequenas, nas quais permane­ cem o dia inteiro. As meninas colocam pedras pequeninas e le­ ves entre dois pedregulhos duros e as trituram como se estives­ sem moendo farinha. Os meninos, armados com arcos peque­ nos e flechas, brincam de guerra, tocaiando e atacando. Os rapazes de outra aldeia constroem todo um povoado com casas de 40 a 50 centímetros de altura, acendem fogueiras diante delas, nas quais assam os peixes que pescaram. De re­ pente, um deles grita: “Já é noite!”, e todos se deitam pronta­ mente. Depois, alguns imitam o canto do galo, todos voltam a acordar, e o jogo prossegue. As meninas das aldeias da Nova Guiné constroem refú­ gios temporários com folhas velhas. Põem ao lado fogões com minúsculas panelas de barro. Uma pedra representa um bebê. Deitam-no à beira-mar, banham-no e depois colocam-no dian­ te do lume para que seque e embalam-no no seio materno para que adormeça. Não vamos multiplicar os exemplos. Os apresentados evi­ denciam tratar-se já de jogos protagonizados nos quais as crianças reconstituem não só uma esfera do trabalho dos adul­ tos inacessível para elas, mas também os afazeres domésticos em que participam diretamente. Não é possível determinar com exatidão o momento histó­ rico em que apareceu o jogo protagonizado. Pode ser diferente entre os diversos povos, segundo as condições de sua existência e as formas de passagem de uma fase inferior a outra superior. O que nos importa é deixar estabelecido que nas etapas iniciais da humanidade, quando as forças produtivas ainda se encontravam num nível primitivo, no qual a sociedade não podia enfrentar o sustento de seus filhos e as ferramentas per­ mitiam incluir diretamente as crianças, sem preparação espe­ cial alguma, no trabalho dos adultos, não existiam nem exerci-

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