Direitos Humanos 9789899118683

Todos os seres humanos têm direitos inalienáveis. Esta ideia foi reconhecida pelos países fundadores das Nações Unidas a

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ENSAIOS DA FUNDAÇÃO

Direitos Humanos Francisco Bethencourt

FUNDAÇÃO FRANCISCO MANUEL DOS SANTOS

Direitos Humanos Francisco Bethencourt

FUNDAÇÃO

Introdução

13

Debate

21

Cidadania e direitos civis

33

Colonização

4i

Escravidão

49

Barbárie

55

Racialização

63

Género

71

Descolonização

87

Migrações internacionais

97

Direitos económicos e sociais

107

Direitos ambientais

H3

Conclusão

Design e paginação: Guidesign

117

Posfácio

Impressão e acabamento: Guide — Artes Gráficas, Lda.

121

Bibliografia

FUNDAÇÃO FRANCISCO MANUEL dos SANTOS

Largo Monterroio Mascarenhas, n.° 1, 7.° piso 1099-081 Lisboa Telf: 21 001 58 03 [email protected] Diretor de publicações: António Araújo Título: Direitos Humanos

Autor: Francisco Bethencourt

Revisão de texto: CoodSpelI

© Fundação Francisco Manuel dos Santos, Francisco Bethencourt Maio de 2023 Depósito Legal n.° 513573/23

As opiniões expressas nesta edição são da exclusiva responsabilidade

do autor e não vinculam a Fundação Francisco Manuel dos Santos. A autorização para reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra deve ser solicitada ao autor e ao editor.

Introdução A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em

1948 pelas Nações Unidas, transformou-se na pedra angular

do novo edifício normativo internacional criado no seguimento da Segunda Guerra Mundial. A Declaração define-se como um padrão comum de realização para todos os povos e nações.

Os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos; este é o conteúdo do primeiro artigo, que reproduz a Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 1789, por sua vez tributária de uma primeira formulação de Jean-Jacques Rousseau no preâmbulo de O Contrato Social (1762), que denun­

ciava a opressão geral na sociedade de privilégios.

Outros artigos da Declaração Universal consagram o direito à vida, à liberdade e à segurança; o direito ao reconhe­

cimento individual perante a lei; o direito à proteção igual contra qualquer discriminação; o direito à reparação pela violação dos direitos ali consagrados; o direito à liberdade de movimentos

dentro de cada Estado, bem como de saída e entrada; o direito

de asilo noutros países contra a perseguição; o direito à nacio­

nalidade. As garantias de proteção do indivíduo perante o Estado estão na base destes artigos, que rejeitam políticas dos

séculos xix e xx de exclusão de minorias com base em projetos

nacionalistas (o lado sombrio da democracia, como bem definiu

7

Michael Mann). Está subjacente a estes direitos a repulsa pela

retirada dos direitos de nacionalidade a minorias, que ocorreu

dar de religião; o direito à liberdade de opinião, de expresH111 H associação; o direito a um acesso igual a serviços públi-

na Alemanha nazi e noutros Estados europeus. O direito de

a escolher representantes e a fazer parte do governo do

asilo, ainda hoje alvo de um vivo debate, está aqui consagrado,

— todos estes direitos refletem a rejeição do genocíseu pal5 d o contra judeus perpetrados pela Alemanha nazi, bem como

bem como a livre circulação de indivíduos (a saída e a entrada nos respetivos países).

rejeição de discriminação baseada em preconceitos de raça

A proibição da escravatura e da servidão; a rejeição da

ou religião. A liberdade de mudar de religião justificou a abs­

tortura, do tratamento desumano ou degradante, da prisão

tenção da Arábia Saudita no âmbito da votação da Declaração.

arbitrária ou do exílio; o direito à presunção de inocência até a

O direito à propriedade remete para a Declaração francesa de

condenação pública por um tribunal independente e imparcial;

1789, embora neste caso responda a expropriações realizadas

a proteção contra ataques arbitrários à privacidade, à honra,

pelos Estados totalitários. O consentimento dos futuros côn­

à reputação, à família e à correspondência — estes são outros

juges coloca no centro da família a liberdade de escolha indi­

artigos fundamentais da Declaração. Encontramos aqui uma

vidual, embora ainda predominem casamentos arranjados em

profundidade de sedimentos históricos: em primeiro lugar, a luta

pela abolição da escravatura, iniciada no século xvn, concre­

certas regiões do mundo. Inscreveram-se nesta Declaração os direitos sociais e eco­

tizada em boa parte durante o século xix, que não estava con­

nómicos, como o direito à segurança social; 0 acesso aos direitos

cluída em 1948 e ainda existe; em segundo lugar, a luta por um

económicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade e ao

Estado de direito baseado na rejeição da tortura como método

desenvolvimento da pessoa; o direito ao trabalho, à livre escolha

de inquérito judiciário, problema particularmente sensível em

de emprego e a um salário igual para trabalho igual; o direito de

países onde funcionaram tribunais da Inquisição, mas cuja utili­

formar e participar em sindicatos para a proteção de interesses

zação em países totalitários do século xx assumira outra escala.

comuns; o direito ao descanso e ao lazer, incluindo férias pagas;

A presunção de inocência e a proteção da privacidade e do bom

o direito a padrões de vida mínimos respeitantes a alimentação,

nome estão na mesma linha de recusa de arbitrariedade.

residência, vestuário e cuidados médicos, incluindo a segurança

O direito a casar e a fundar uma família sem limitações

em caso de desemprego, doença, incapacidade, viuvez ou idade

de raça, nacionalidade ou religião; o respeito pela livre von­

avançada; a proteção e a assistência na maternidade e na vida

tade e pelo consentimento dos futuros cônjuges; o direito à

infantil. São aqui consagradas as férias pagas, uma inovação

propriedade própria ou em associação; o direito à liberdade de

do governo da Frente Popular em França em 1936, bem como

pensamento, de consciência e de religião, bem como o direito

a liberdade sindical e o princípio de salário igual para trabalho

9

igual, que ainda hoje não se pratica em muitos países, nomea­

racial. Os países comunistas contribuíram para a introdu­

damente no que diz respeito ao trabalho feminino.

ção dos direitos económicos e sociais, mas a base liberal da

A Declaração consagra igualmente o direito à educação

Declaração era vista como uma limitação às suas conceções

para todos, gratuita pelo menos nas etapas elementares, bem

políticas. Em todo o caso, o facto de não ter havido votos con­

como o direito a participar na vida cultural da comunidade, com

tra mostra um extraordinário consenso face ao traumatismo

respeito pelos direitos de autor de qualquer produção científica,

da Segunda Guerra Mundial.

literária ou artística. É interessante observar como os direitos

A Declaração das Nações Unidas estabeleceu uma viragem

educativos, culturais e de autor estão integrados nos últimos

no sistema normativo internacional, face ao nacionalismo dis­

artigos. A referência final reafirma a lógica geral da Declaração:

criminatório da segunda metade do século xix e a violação de

o exercício destes direitos e destas liberdades só está limitado

princípios básicos de respeito pela nacionalidade, propriedade

pelo respeito e pelas liberdades dos outros, pela ordem pública e

e integridade pessoal de minorias durante as décadas de 1930 e

pelo bem-estar de uma sociedade democrática. Trata-se do prin­

1940. Ao genocídio dos judeus temos de acrescentar o massacre

cípio estabelecido na Declaração francesa de 1789, segundo o

dos roma e dos sinti, bem como o extenso cativeiro e o trabalho

qual a liberdade individual deve respeitar a liberdade dos outros.

forçado de eslavos, enquanto na Ásia se verificou o impacto da

Esta breve apresentação da Declaração Universal dos

ocupação japonesa da Coreia, da Manchúria, de parte da China

Direitos Humanos não aborda os conflitos internos da comis­

e do Sudeste Asiático em sucessivas vagas de 1905 a 1945, tudo

são que a preparou, nomeadamente sobre o papel das mulheres

isto acompanhado de enormes deslocações forçadas de popu­

ou sobre os direitos económicos e sociais. O que parece hoje

lações que afetaram milhões de pessoas. A rejeição da violência

evidente não o era em 1948. Veremos os desenvolvimentos pos­

colonial está implícita em diversos artigos, num momento em

teriores. Decidi começar pela Declaração para lembrar os prin­

que se iniciara a descolonização, visível na presença de novos

cípios básicos do direito internacional e dos direitos civis que

países independentes como a índia e o Paquistão.

todos os membros das Nações Unidas aceitaram, embora com

A Declaração Universal dos Direitos Humanos funciona

oito abstenções no início, da África do Sul, da Arábia Saudita e

como o eixo da face de Janus que norteia este ensaio, atento aos

de países de regime comunista como a União Soviética. Só em

antecedentes históricos e aos desenvolvimentos dos últimos

1960 a Arábia Saudita aboliu a escravatura, enquanto conside­

50 anos. Falaremos do debate atual em torno dos direitos huma­

rava a liberdade de mudar de religião uma apostasia. A África

nos para passarmos a uma revisão histórica das noções e das

do Sul tinha lançado nesse mesmo ano de 1948 os fundamen­

práticas respeitantes à dignidade do ser humano, à cidadania

tos da formalização institucional do apartheid, ou segregação

e à soberania, confrontadas pela persistência de escravatura,

10

11

de exclusão de minorias e de atitudes dualistas face à migração internacional. Incluiremos os direitos económicos e sociais e os

direitos ambientais, que conheceram uma nova dimensão nas

últimas décadas. Refletiremos sobre a extensão dos direitos humanos no sistema normativo internacional, violado mui­

Debate

tas vezes pelas práticas das nações, que ainda hoje recorrem à guerra para projetos de expansão ou recolonização. A posição

O debate sobre os direitos humanos e a sua história pode ser

de Portugal neste vasto contexto internacional será brevemente

abordado em torno de quatro perguntas: existia uma base ante­

referida em diversos pontos.

rior universal de respeito pelos direitos humanos? Que con­ texto histórico permitiu a emergência do conceito de direitos

humanos? Como têm sido estes direitos contestados ou utiliza­ dos pelos diversos poderes mundiais? Como têm sido os direitos

humanos apropriados, defendidos e alargados? Paul Gordon Lauren põe a tónica no sentido universal de

dignidade da vida humana, de dever de assistência e de compor­ tamento responsável para com seres humanos, partilhado por todas as religiões universais (hinduísmo, judaísmo, budismo, cristianismo e islão), incluindo sistemas morais e normativos

como o confucionismo. Estas religiões e estes sistemas normati­ vos — definidores das civilizações axiais, criadas entre 600 a.C.

e 700 d.C. em diferentes partes do mundo — foram valorizados nos debates sobre o racismo (responsável pelo extermínio de

milhões de seres humanos durante a Segunda Guerra Mundial)

lançados pela Organização das Nações Unidas para a Educação,

a Ciência e a Cultura (UNESCO). A abordagem de Gordon Lauren baseia-se na análise de uma série de lutas sociais por direitos, nomeadamente a abo­

lição do tráfico de escravos e da escravatura, a proteção de

12

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prisioneiros de guerra ou o movimento das sufragistas pelo

reSidentes nos seus próprios territórios. Será legítimo fechar

direito de voto. Embora Lauren reconheça a tensão entre prin­

os olhos a essa violação ou existe um dever internacional de

cípios e realidades, definida pela opressão e pela ausência de

solidariedade que se sobrepõe ao dever de respeito pela sobera­

direitos, a visão evolucionista implícita não identifica suficien­

nia do Estado? Já em 1851 Giuseppe Mazzini considerava que a

temente regressões e percursos alternativos. A retórica huma­

distância da violação não absolve os Estados indiferentes. Este

nitária que escondia projetos colonialistas, como foi a proteção

debate ocorreu desde o início do século xix com as guerras de

do bem-estar dos indígenas alegada pela Conferência de Berlim

libertação nacional nos Balcãs, assumindo uma nova intensi­

em 1884-1885, usada para a partilha de África entre os poderes

dade com o genocídio dos tutsis por hutus no Ruanda em 1994

europeus, devia ser mais bem criticada. Gordon Lauren postula

e o massacre de muçulmanos bósnios por sérvios em Srebrenica

uma relação implícita entre visão humanitária e direitos huma­

em 1995- O declínio do intervencionismo humanitário ocorreu

nos que é discutível mas útil como matéria de reflexão.

como resposta às invasões do Afeganistão e do Iraque, segui­

Na minha perspetiva, o humanitarismo, materializado na

das da intervenção na Líbia liderada pelos Estados Unidos, que

criação da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho na década

deixaram numerosos mortos e sequelas de guerras civis. Muitos

de 1860, não pode ser confundido com a definição de direitos,

autores apontam o abuso político da retórica humanitária em

mas está ligado à Convenção de Genebra contra os crimes de

muitas intervenções, citando a partilha europeia de África em

guerra de 1864, revista e alargada em 1907,1929 e 1949, que

1884-1885 ou a invasão da Checoslováquia pela Alemanha nazi

estipula regras para o tratamento de prisioneiros e, finalmente,

em 1939, sob pretexto de proteção da minoria alemã. Fabian

estabelece normas de tratamento da população civil em tempo

Klose argumenta que a consideração humanitária é um motivo

de guerra. Existe uma relação entre humanitarismo e direitos

entre outros: económicos, geoestratégicos ou de segurança.

humanos, contribuindo o primeiro para a criação de um con­

Lynn Hunt envereda por um percurso distinto, concen-

texto favorável à emergência do segundo, embora deva reco­

trando-se no século xvm europeu como um ponto de viragem no

nhecer-se a especificidade do caráter normativo dos direitos.

processo de invenção dos direitos humanos. A novidade reside

Contudo, o humanitarismo vai para além deste quadro dos direi­

na análise da literatura do período, que transformou criadas,

tos de civis e militares em situação de guerra, pois levanta o

mulheres, marinheiros ou empregados, ou seja, tipos sociais

problema do dever de solidariedade internacional.

tradicionalmente considerados inferiores, em personagens de

O respeito pela soberania dos Estados, que está consagrado

romance, com os seus sentimentos e direitos. A descrição emo­

na Carta das Nações Unidas, pode suscitar dúvidas quando

cional de abuso sexual e de sofrimento imposto a dependentes

um governo viola sistematicamente os direitos humanos dos

estimulou a empatia dos leitores, abrindo caminho para uma

14

15

nova visão dos direitos dos humilhados e oprimidos, incluindo

por Rousseau, para quem a propriedade privada resultara de

mulheres. Richardson e Rousseau, entre outros autores, trans­

espoliação e apropriação da propriedade comunitária. Lynn

puseram os valores cristãos sobre a dignidade humana para um

Hunt toca neste debate, mas é preciso ir mais longe. Proudhon

contexto secularizado, onde prevalece a consciência do trata­

(1809-1865) declara que a propriedade é o roubo e propõe o

mento injusto.

uso coletivo dos bens de produção, opondo-se à coletivização da

A autonomia do indivíduo faz parte da atmosfera do Ilumi-

propriedade advogada por Marx (1818-1883), pois conteria as

nismo, o que desencadeia a evolução dos direitos, de Rousseau

sementes da opressão pelo Estado. Em todo o caso, o problema

à Revolução Americana e desta à Revolução Francesa, com as

do direito de propriedade inscrito nas primeiras declarações de

primeiras declarações de direitos do Homem (usando o mas­

direitos, tanto a americana como a francesa, que visava evitar a

culino universal que prevalece até ao final do século xx) que

expropriação monárquica de opositores, suscita uma polémica

influenciaram a primeira revolução bem-sucedida de escravos e

que chega aos dias de hoje.

libertos no Haiti. A discussão contemporânea acerca da tortura

Samuel Moyn critica Lynn Hunt por supor uma rela­

e da pena de morte, práticas condenadas por diversos autores

ção direta entre a emergência da noção de direitos durante

como Pietro Verri (1728-1797) e Cesare Beccaria (1738-1794),

o Iluminismo europeu e a Declaração Universal das Nações

reforça os direitos dos indivíduos face ao Estado, enquanto o

Unidas. Embora Lynn Hunt aceite o fracasso inicial da difusão

movimento abolicionista se concentra na dignidade humana

dos direitos humanos, postula que estes acabam por triunfar.

dos escravos e o debate em torno dos direitos cívicos dos judeus

Mas o seu raciocínio é dedutivo: não discute suficientemente

levanta o problema do respeito pelas minorias. Deve ser inte­

os diversos momentos históricos do final do século xvm a mea­

grada neste processo a luta anterior dos cristãos novos portu­

dos do século xx. Moyn considera, pelo contrário, que a noção

gueses de origem judaica contra a discriminação jurídica a que

de direitos humanos não tem um valor universal anterior à

estavam sujeitos, luta que teve impacto em Roma.

Declaração de 1948; mais, esses valores não teriam sido real­

O fundo individualista da noção de direitos é temperado

mente difundidos antes da década de 1970. Moyn relaciona

pelos direitos coletivos dos escravos e das minorias. A liberta­

essa difusão com a crise do Estado-nação, o colapso do mar­

ção da sociedade de privilégios, baseada nos valores de sangue e

xismo e a queda do imperialismo formal. A desagregação da

de estatuto, transmitidos de geração em geração, estimulara os

União Soviética e do Pacto de Varsóvia viria somar-se a esta

grandes movimentos políticos do século xvm, mas os socialistas

viragem, com o fracasso das ideologias baseadas nas utopias

do final do século xvm e do século seguinte desenvolvem uma

socialistas e com os direitos humanos a emergir como a última

visão coletiva de superação das desigualdades sociais, inspirada

utopia possível.

16

17

Os últimos dez anos encarregaram-se de questionar esta

A tentativa de renovação do marxismo como resposta à

visão. Embora Moyn tenha razão no problema das continui­

crise da década de 1970 passou pela crítica dos direitos humanos

dades assumidas e não demonstradas, na datação retrospe­

como retórica do imperialismo. Immanuel Wallerstein destacou-

tiva dos direitos humanos e na necessidade de analisar melhor

_se nessa abordagem, baseada na rejeição, por parte de Marx,

a interseção entre anticolonialismo e direitos humanos (não

dos direitos humanos, que classificava como uma ideologia bur­

concordo com a rejeição de Moyn), a ideia de uma nova utopia

guesa, pois não questionariam os fundamentos económicos da

dos direitos humanos como ideologia alternativa no âmbito

sociedade de classes e erigiriam a propriedade privada como

da sociedade global tem pouco fundamento. Aliás, no seu livro

base de qualquer sistema. Os direitos humanos como padrão de

mais recente, Samuel Moyn aborda a desigualdade social e reco­

avaliação dos países em desenvolvimento é a principal crítica de

nhece que a arquitetura dos direitos humanos não responde a

Wallerstein, que destaca os dois pesos e as duas medidas neste

esse problema. A meu ver, será necessário escapar à armadilha

tipo de projeção dos valores do Ocidente, destinados a absor­

de considerar os direitos humanos como uma ideologia utópica

ver as periferias na lógica de expansão do sistema capitalista,

universal para desenvolver o potencial desses mesmos direitos

enquanto as democracias ocidentais estão longe de correspon­

na procura de uma sociedade mais justa.

der a esses mesmos valores.

A minha crítica vai mais longe: a narrativa de Moyn con­

Este tipo de críticas tem fundamento, sobretudo no que

centra-se no período de 1940 a 1970, enquanto o período ante­

diz respeito aos dois pesos e às duas medidas, embora a exten­

rior é baseado em bibliografia secundária; na sua narrativa,

são dos direitos humanos tenha sido feita em grande medida

cosmopolitismo e universalismo são intercambiáveis, quando

contra os Estados Unidos. Aliás, os sucessivos golpes ditatoriais

têm conteúdos diferentes (relativos e horizontais no primeiro

patrocinados pelos Estados Unidos na Ásia, na América Latina

caso, absolutos e verticais no segundo); as contribuições da

e em África invalidam este tipo de argumento. A esquerda radi­

esquerda para os direitos humanos são rejeitadas por Moyn,

cal mantém a crítica aos direitos humanos, mas quando está

quando a meu ver não se pode subestimar o papel dos movi­

a ser perseguida sob ditaduras, em qualquer parte do mundo,

mentos sociais na inscrição dos direitos económicos e sociais;

usa-os de forma sistemática para denunciar os horrores a que

a crise do Estado-nação foi claramente sobrestimada por Moyn,

os diferentes regimes submetem as populações. Também aqui

como os desenvolvimentos recentes do nacionalismo bem o

há dois pesos e duas medidas.

demonstram; finalmente, a sua visão inicial estava concentrada

A minha crítica principal é que os direitos humanos não

nos direitos do indivíduo perante o Estado, certamente funda­

podem ser vistos de uma forma estática ou essencializada, pois

mentais, mas que devem ser relacionados com os outros direitos.

têm sido apropriados, moldados e alargados por pressão dos

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19

movimentos sociais em diversas partes do mundo. O processo

de descolonização, como veremos, colocou os direitos huma­ nos no centro da luta de emancipação, enquanto os direitos ambientais, que incluem os direitos das comunidades indígenas,

tão importantes, por exemplo, na América Latina, passaram a

Cidadania e direitos civis

assumir um papel de relevo. O retorno da guerra e dos horrores da desumanização trouxe os direitos humanos de novo para o

A noção de cidadania está geralmente ligada ao reconheci-

primeiro plano. Por último, impõe-se descolonizar a visão de

mento de pertença a uma comunidade urbana. Esta noção foi

túnel centrada nos Estados Unidos. E verdade que a experiência

desenvolvida na Europa pré-moderna, onde as comunidades

ocidental desempenhou um papel importante tanto na violação

urbanas tinham a sua própria estrutura política, reconhecida

como na afirmação dos direitos humanos, mas interessa mobi­

pelas monarquias (ou repúblicas) em que se inseriam. Contudo,

lizar experiências históricas de outros continentes e estudar os

o direito de intervenção nas políticas locais era controlado por

processos de negociação do mundo pós-colonial atual.

oligarquias, enquanto o processo de construção do Estado nos séculos xvi a xvm criou formas hierárquicas de poder, cujo ritmo de centralização se intensificou nos séculos xix e xx.

Estrangeiro era aquele que chegava de fora, mesmo que fosse do mesmo país. Em várias cidades, as corporações de arte­

sãos, como em Londres, ou as associações de mercadores, como em Sevilha, funcionavam como veículos de naturalização de estrangeiros após um período de residência, de trabalho e, fre­

quentemente, de casamento local. Governantes e autoridades

locais intervinham nos processos de naturalização para atrair

estrangeiros com capacidade financeira ou competência técnica, como aconteceu com os judeus de origem ibérica no Império Otomano, em certas cidades de Itália e do Norte da Europa ao

longo dos séculos xvi e xvii, ou com os huguenotes (protestan­

tes expulsos de França por Luís XIV em 1685) em Inglaterra, nos Países Baixos e na Prússia.

A noção de cidadão era assim predominantemente local,

tendo o seu estatuto sido alargado aos habitantes, masculinos

de direitos civis da população de origem africana nos estados do Sul que só foi levantada na década de 1960.

e livres, de um país, com as revoluções Americana, Francesa e

Entretanto, o sistema político europeu do século xix funcio­

Haitiana, seguidas pelas Revoluções Liberais do século xix. Este

nava com um critério censitário, que definia um nível mínimo de

alargamento acompanhou a transição da noção de vassalo e súb­

rendimento como marca de independência que permitia votar

dito, ou seja, dependente do rei, para a noção de cidadão livre e

e> num nível de rendimentos mais elevado, ser eleito. Criados e

independente. Podemos contrastar a noção de sujeição ou subor­

assalariados com rendimentos baixos eram considerados depen­

dinação com a noção de cidadania, que pressupõe a autonomia

dentes. As mulheres estavam excluídas das eleições políticas e,

do indivíduo. O que está em jogo aqui são conceitos diferentes

em geral, das universidades, eram dependentes dos maridos ou

de soberania; no primeiro caso, focalizada no rei ou no gover­

dos pais e votadas a um estatuto de menoridade. A integração das

nante, que se assume como vértice do domínio sobre territórios

mulheres no sistema de voto só ocorreu a partir das primeiras

e populações; no segundo, focalizada na soberania do povo que

décadas do século xx; o voto universal nalguns países europeus

elege os seus representantes. Este segundo conceito pressupõe

só foi implementado nas décadas de 1960 e 1970. A diminuição

uma translação da perceção de poder da majestade monopoli­

da idade de voto tem vindo a ser decidida nas últimas décadas.

zadora para o conjunto da sociedade anteriormente despojada.

Este resumo esquemático sugere uma progressão que não

Os escravos estavam excluídos da noção de cidadania,

é linear: os direitos de cidadania foram violados diversas vezes,

embora a sua presença na Europa Ocidental tenha declinado ao

verificando-se retrocessos. No século xix, na Europa Central e

longo do século xvm com o alargamento do direito de solo livre.

Oriental, o desenvolvimento de nacionalidades trouxe consigo

Na Europa Oriental, pelo contrário, a servidão do campesinato

a exclusão de minorias. A partir da década de 1890, no Império

manteve-se e foi alargada no século xvii com a refeudalização de

Otomano, a minoria arménia foi visada por um processo de

algumas regiões. O processo de abolição da servidão foi longo e

exclusão com sucessivos massacres que levaram ao genocídio

complicado, dados os interesses instalados: na Rússia só ocorreu

de 1915-1916. Na década de 1930 e durante a Segunda Guerra

em 1861. Na América Latina, agregada ao mundo ocidental pela

Mundial, a minoria judaica foi despojada da nacionalidade alemã

colonização ibérica, pelo declínio demográfico da população

pelo regime nazi, com perda de empregos e propriedades, tendo

indígena e pelo processo de independência dirigido pelas elites

sido finalmente detida e enviada para o extermínio nos cam­

de origem europeia, a abolição da escravatura só foi concluída

pos de concentração. O genocídio dos judeus foi alargado à

no final da década de 1880, enquanto o período de reconstrução

maior parte da Europa pelos nazis: seis milhões de assassinados.

pós-guerra civil nos Estados Unidos levou a uma nova exclusão

Nesse período e no pós-guerra na Europa Central e Oriental,

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desencadeado por africanos livres e escravi­

sucederam-se detenções de milhões de pessoas sujeitas ao tra-

q abolicionismo,

balho forçado, deportações de minorias étnicas e massacres

zados em Angola e no Brasil no século xvn, foi desenvolvido

maciços de populações a coberto da guerra. A guerra civil na

em Inglaterra devido ao debate interno protestante, à perda

Jugoslávia na década de 1990 levou a práticas de limpeza étnica.

de boa parte dos territórios norte-americanos e às sucessivas

A recente invasão russa da Ucrânia alveja bairros residenciais,

revoltas de escravos nas colónias, mas a concentração de escra­

hospitais, teatros e escolas, enquanto o recrutamento compul­

vos emancipados na metrópole fruto do direito de solo livre

sivo de jovens nos territórios controlados reproduz a prática dos

desempenhou um papel significativo. A implementação do abo­

exércitos coloniais; a destruição sistemática de infra-estrutu-

licionismo no mundo colonial levou o seu tempo pelas razões

ras visa inviabilizar o país e obliterar uma nação; a violação de

óbvias de divisão internacional do trabalho e investimento.

mulheres, o assassinato seletivo de homens adultos, a deporta­

A fraqueza e a quase total ausência de movimentos abolicio­

ção de crianças e a pilhagem de propriedade não deixaram de

nistas em Portugal, em Espanha e nos Países Baixos mostram

ser prática corrente na guerra do século xxi.

bem os interesses instalados, sendo o caso francês misto, com

A história da colonização europeia levanta problemas cru­

a resistência dos interesses ligados ao mundo colonial a par de

ciais de direitos humanos, dada a escala de uma expansão que pas­

para 80 °/o em 1930, com o correspondente aumento da popula­

certo movimento abolicionista. A revolução do Haiti mostra bem como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (como foi então designada),

ção subjugada (ver Eterna e Belich). Os processos de conquista

produzida no âmbito da Revolução Francesa e dirigida aos

são sempre violentos, mas a sua perpetuação envolve o governo

homens brancos, foi imediatamente apropriada e utilizada por

direto ou indireto controlado por estrangeiros, a expropriação,

escravos para a sua emancipação. Este processo de apropriação

o acesso privilegiado a mercados, processos de cooptação ou

define a geometria variável dos direitos humanos, concebidos

exclusão de elites locais, a segregação de minorias, as migrações

no contexto da luta contra os direitos feudais, os privilégios de

forçadas. As populações indígenas ficam sempre numa situação

sangue e a sujeição ao rei, em favor da dignidade do cidadão,

subordinada, recorrendo necessariamente a protestos.

consagrada como o princípio político de uma sociedade eman­

sou do controlo de 5 % da superfície terrestre do planeta em 1400

As autobiografias de escravos emancipados, como Olaudah

cipada. A Declaração francesa ignorava os escravos e a existên­

Equiano, na segunda metade do século xvm, convergiram

cia de colónias baseadas no trabalho escravo. Não é por acaso

com a novela sentimental analisada por Lynn Hunt. A nova

que, no mesmo período, temos em França Olympe de Gouges a

sensibilidade à opressão de empregados subordinados e de

promover os direitos da mulher e a pagar com a vida por pro­

mulheres dependentes alargou-se ao sofrimento dos escravos.

testar contra a tirania dos jacobinos, enquanto em Inglaterra

24

25

Mary Wollstonecraft desenvolvia a crítica à subordinação das

mercadores no fundo da hierarquia social de prestígio, promo­

mulheres, contribuindo para a fundação do movimento femi­

via um forte poder negociai dos produtores. Mas há diferenças

nista. São dois momentos capitais de apropriação e desenvol­

a salientar. Enquanto na China as exações fiscais podiam atingir

vimento dos direitos humanos.

limites intoleráveis, no Japão essas exações eram mais limitadas

A Europa tem sido vista como o continente onde se afirma­

e a distância de rendimento face às elites, menos aguda. Existiam

ram os direitos humanos, dada a tradição enraizada do direito

direitos informais das comunidades, motivando protestos e revol­

romano e a prática de formalização jurídica de normatividades

tas quando eram infringidos. O uso privado da terra era reconhe­

emergentes. Contudo, tem-se questionado esta visão. A compara­

cido e protegido, embora a hierarquia de direitos feudais, cruzada

ção com a China é enriquecedora. Roy Bin Wong considera que a

com a centralização política do xogum, pudesse alterar a compo­

cidadania, baseada em direitos e no pensamento jurídico contra­

sição das diferentes estruturas envolvidas em caso de conflito.

tual, não existia na China pré-moderna. A população seria defi­

No Império Otomano, a propriedade da terra pertencia

nida como o conjunto dos súbditos do imperador, sem liberdade

teoricamente ao sultão, que reconhecia o direito de uso dos

ou autonomia. Hilde de Werdt contradiz tal visão. Considera

agricultores individuais e das comunidades rurais envolvidas.

que o processo de privatização da terra e de centralização do

O caso do Império Mogol era semelhante, embora com uma

poder na Idade Média implicou a criação de elites locais que

maior complexidade de formas de propriedade. O impacto do

funcionaram como mediadores das decisões políticas. O modelo

colonialismo britânico no Sul da Ásia favoreceu a transição para

de governo hierárquico previa o recurso contra os abusos dos

regimes de propriedade privada. No caso otomano, a atribuição

governantes regionais e locais, enquanto a legislação procurava

de terras de forma temporária a governadores amovíveis em

proteger os menores, as mulheres, os servos, os pobres e os via­

caso de conflito impedia a acumulação de riqueza e a transmis­

jantes. A eclosão regular de protestos, muitos deles violentos,

são por herança de geração em geração. A criação de fundações

funcionava como um regulador social, em paralelo com petições

com intuitos caritativos era uma maneira de contornar estas

e ações em tribunal. O exercício do poder como permanente

limitações, pois os descendentes podiam ser indicados como

negociação, baseada em direitos informais, permite argumen­

gestores do património investido. A transição para o período

tar em favor da existência de cidadania na prática quotidiana.

moderno contribuiu para a implantação do modelo de proprie­

O caso japonês é igualmente interessante devido à enraizada

dade privada e de integração na economia de mercado.

ética de respeito pelas comunidades rurais como fonte primor­

Em África, a propriedade da terra era predominantemente

dial de abastecimento da sociedade. Este respeito pelo mundo

comunitária, embora existissem formas de exploração privada

rural, de certa forma partilhado com a China, que colocava os

de minérios e da produção de arroz, óleo de palma ou nozes de

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cola. As potências coloniais criaram em diversas áreas do conti­

etn geração,com uma larga percentagem de excluídos, os dalit,

nente regimes de plantação de café, de chá e de cacau, enquanto

representando mais de 15 % da população, foi repudiada pela

as populações indígenas eram deslocadas dos seus habitats tra­

constituição aprovada em 1949, embora continue a existir discri­

dicionais. A forma máxima de violência foi atingida na Namíbia

minação informal. O direito a casar e a fundar uma família sem

com o genocídio dos herero e dos nama em 1904-1908 para

limitações de etnia, de nacionalidade ou de religião não está sufi­

impor o acesso dos colonos alemães às terras férteis, enquanto

cientemente enraizado, tal como noutros países da Ásia. O mesmo

a deslocação forçada de indígenas atingiu dimensões maciças

se pode dizér do respeito pela livre vontade e pelo consentimento

na África do Sul, com a criação de bantustões (ou reservas para

dos futuros cônjuges; o casamento arranjado pelas famílias é

as populações indígenas), cujas consequências se fazem sentir

uma prática corrente. Contudo, o sistema de voto universal está

até aos dias de hoje.

implementado na índia e envolve todas as castas.

O triunfo da propriedade privada a longo prazo significa a

Problemas semelhantes, ainda que a uma escala diferente

integração no sistema capitalista global. Do ponto de vista indi­

e envolvendo percentagens mais reduzidas da população, ocor­

vidual, há sempre vencedores e vencidos nestes processos, com

rem na Coreia ou no Japão com os burakumin, descendentes de

a afirmação do direito de acesso por uma minoria, enquanto os

excluídos por lidarem com lixo, animais e produção de couro

direitos das populações que previamente viviam em estrutu­

— discriminação repudiada desde o século xix, mas ainda pre­

ras comunitárias não foram acautelados, tendo migrado para

sente de maneira informal. O quadro legal, em todos estes casos,

outras zonas, sobretudo para as cidades. O que está consagrado na

tende a reconhecer os direitos civis de todos os cidadãos, embora

Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas é o direito

a prática quotidiana varie. Mais complicada é a aplicação do

à propriedade própria ou em associação, que deveria proteger as

direito de mudar de religião, que é ainda considerado um aná­

formas cooperativas ou comunitárias de propriedade. A fraqueza

tema nalguns países de religião muçulmana.

dos sistemas jurídicos em diversos países com práticas abusivas

As minorias continuam expostas a situações de discrimi­

de poder (o que ocorre em todos os continentes) acaba por cons­

nação e abuso em diversos países. Lembro a expropriação dos

tituir um peso na atividade económica. A existência de Estados

palestinianos ausentes, por via da guerra civil, pelo Estado de

que privilegiam a segurança (externa e interna) implica a rea-

Israel em 1950, seguida da política de colonatos até aos nossos

locação de recursos e impede a estabilização de um quadro nor­

dias; a conflitualidade interétnica na Nigéria, que conduziu à

mativo contrário à corrupção e aos interesses da elite no poder.

Guerra do Biafra no final da década de 1960; a campanha de

A existência de um sistema de castas na índia baseado nas

longa duração contra os uigures, de origem turca, na região

noções de pureza e impureza ancestral, transmitidas de geração

de Xinjiang, China. No Iraque, o Estado Islâmico escravizou e

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vendeu no mercado pessoas da etnia iazidi, enquanto outras

q problema hoje em dia é mais de criação e manutenção de

minorias não árabes e não sunitas foram igualmente persegui.,

erviços públicos, sobretudo de proximidade desses serviços ao

das. Tratou-se do caso recente mais extraordinário de desu-

jdadão, quando os serviços médicos tendem a ser concentrados

manização e perseguição de minorias étnicas e religiosas.

naS grandes cidades, deixando os habitantes das periferias com

Infelizmente, estas práticas ainda persistem ou estão a amea­

custos acrescidos pelas deslocações regulares. A distorção social

çar outros países, onde as minorias são suspeitas de falta de

da medicina de mercado, baseada nos seguros, é evidente nos

lealdade para com os respetivos regimes ditatoriais.

Estados Unidos, com as populações mais desfavorecidas, sobre­

O direito à liberdade de opinião, de expressão e de associa­

tudo os afro-americanos, com um acesso limitado a serviços

ção está longe de ser implementado em muitos países. Verifica-se

uiédicos até à década de 2010. Os serviços públicos dependem

uma regressão generalizada nos últimos 20 anos. Emergiram

do nível de impostos em cada país; em vários casos estamos a

novas ditaduras, enquanto as democracias ditas iliberais perpe­

falar de menos de 10 % da população que paga impostos, o que

tuam elites políticas e económicas; cedo ou tarde, essas demo­

naturalmente limita a criação de infraestruturas.

cracias transformam-se em ditaduras. A qualidade de vida sob

Os direitos dos indivíduos face ao Estado manifestam-

ditadura é sempre inferior, pois predomina a segurança interna,

_se concretamente na área da justiça. O processo penal ainda

baseada na lealdade face ao regime, o que reduz radicalmente

hoje é um fator de contenção. A rejeição da tortura, trata­

a capacidade de iniciativa a todos os níveis. O investimento

mento desumano ou degradante, da prisão arbitrária ou do

em atividades económicas não atinge o potencial oferecido

exílio por motivos políticos não é respeitada em muitos países.

por democracias com um quadro legal sólido que proteja os

Ditaduras formais ou informais recusam quaisquer garantias

diversos tipos de propriedade de particulares, cooperativas

aos cidadãos neste domínio. O enraizamento de sistemas jurí­

e associações, bem como uma competição transparente nos

dicos desempenha um papel decisivo, como se viu na América

mercados. A capacidade de desenvolver uma atitude crítica é

Latina, onde a especificidade do Brasil limitou, apesar de tudo,

fundamental não só em política, para que a sociedade civil se

o impacto da ditadura, ao contrário do que aconteceu no Chile

sinta representada, mas também na atividade económica e no

e na Argentina (ver Anthony Pereira). A pena de morte, cuja

desenvolvimento tecnológico, onde a inovação depende de novas

lógica foi fortemente criticada nos séculos xvm e xix, tem sido

formas de pensar e questionar modelos recebidos.

abolida de maneira formal e na prática pela vasta maioria dos

A aplicação do direito à igualdade de acesso a serviços

países, embora uma minoria mantenha o princípio. A pena de

públicos, a escolher representantes e a fazer parte do governo

morte ainda hoje é praticada nos Estados Unidos em processos

do seu país reflete a maior ou menor integração de minorias.

civis; a China regista anualmente mais execuções do que todos

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os outros países do mundo; o Irão e a Arábia Saudita registam

igualmente um número elevado de execuções. Portugal aboliu a pena de morte em 1867, no mesmo ano da publicação do Código Civil; a prática tinha sido abandonada em 1846, com sucessivas

Colonização

comutações de sentenças pelos monarcas.

Neste domínio da proteção do indivíduo face ao Estado, estão em causa o direito à presunção de inocência até à condena­

0 problema da colonização relaciona-se com os direitos huma­

ção pública por um tribunal independente e imparcial, bem como

nos em três dimensões: política, económica e social. A expan­

a proteção contra ataques arbitrários à privacidade, à honra, à

são territorial é geralmente feita à custa da subjugação ou da

reputação, à família e à correspondência. A verdade é que se

exclusão de povos que viviam nas áreas atingidas. Esses povos

tem agravado a intrusão dos meios de comunicação e de pessoas

perdem o direito tradicional de autogoverno. Os que sobrevi­

movidas por inimizade; o problema em muitos países é a capaci­

vem ao processo de conquista passam a ocupar uma posição

dade do Estado de proteger os direitos dos cidadãos face a uma

subordinada, devendo negociar a sua presença política e social

crescente conflitualidade. O direito à privacidade e à imagem

em função do modo de governo praticado pelos conquista­

de cada indivíduo é uma das questões mais importantes numa

dores, direto ou indireto. Os vencidos perdem total ou par­

sociedade exposta às redes sociais, onde a linguagem do ódio se

cialmente o tradicional direito de propriedade, individual ou

difúnde. Voltaremos a este problema, que motiva um dos maiores

coletivo, embora existam formas de compromisso mediante

esforços de legislação e de implementação das últimas décadas

0 pagamento de um tributo ou a transferência de contribui­

relativamente aos direitos humanos.

ções preexistentes. Em geral, os vencedores apropriam-se das melhores terras e/ou impõem novas condições laborais e fis­

cais. Do ponto de vista social, uma conquista pode conduzir à escravização da população indígena, parcial ou total. Existem

paralelos entre pilhagem de conquista e pilhagem de guerra, com a redução dos vencidos à servidão. A definição de novas

hierarquias sociais resulta de um processo complexo, no qual

os direitos dos vencidos são, na melhor das hipóteses, precá­

rios, embora haja a possibilidade de cooptação pelas novas elites em certos casos.

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Há diversas formas de colonização, com a criação de comu­

divergentes. A expansão chinesa processou-se ao longo de mais de

nidades autónomas face à cidade original, como no caso grego,

mil anos até ser estabilizada pela dinastia Han (206 a.C.-22o d.C.),

ou a inclusão de novos territórios no império, como nos casos do

embora as dinastias seguintes tenham registado constantes perdas

Império Persa Aqueménida ou do Império Romano. Este caso tal­

e ganhos de territórios em resultado de guerras com os poderes

vez seja o mais inclusivo, pois o estatuto de cidadão romano foi

circundantes, sobretudo os mongóis, mas também com os poderes

estendido a todas as pessoas livres do império, exceto escravos

da Ásia Central, como os dzungar. O pico da expansão territorial

libertos e povos subjugados por guerra, em 212 d.C. Como veremos,

ocorreu com a dinastia Qing, de origem manchu (1644-1911),

a centralidade dos grandes impérios da Antiguidade, com proble­

mas são justamente as conquistas do final do século xvn e do

mas próprios de controlo de extensos territórios, foi confrontada

século xvm na Ásia Central que ainda hoje suscitam problemas

mais tarde pelos impérios marítimos de origem europeia, que

de integração e reivindicação de autodeterminação. A conti­

resultaram em formas de colonização híbridas face aos modelos

nuidade territorial e a precoce centralização política chinesa

atrás expostos. As condições locais foram determinantes, pois

deram origem a uma cultura de integração de origem han, que

a complexidade das sociedades asiáticas conduziu, no caso por­

absorveu os conquistadores, como a dinastia Yuan (mongol,

tuguês e holandês, a formas de governo direto em portos usados

1271-1368) ou a já referida dinastia Qing. A vasta maioria da

para o comércio internacional, embora se verificassem formas

população define-se como han, ainda que se reconheçam ofi­

de governo indireto, delegado em elites locais subordinadas, nas

cialmente 55 minorias étnicas.

regiões circundantes. No período contemporâneo, o governo indi­ reto foi desenvolvido pelo Império Britânico na Ásia e em África.

zação grega resultou da transferência de população, com a cria­

As condições do Novo Mundo favoreceram o governo direto por

ção de comunidades envolvidas no comércio marítimo e com o

parte de castelhanos e portugueses nas áreas colonizadas, se bem

controlo de portos em boa parte do Mediterrâneo oriental e do

que o governo indígena local, no México, fosse reconhecido no qua­

mar Negro, embora a expansão de Alexandre (336-323 a.C.),

dro da «república de índios». Em África, os portugueses estabe­

com a conquista dos Balcãs, do Império Aqueménida e para

leceram enclaves na costa com prolongamento para certas zonas

além deste, até ao Indo, com a absorção do Médio Oriente e

do interior em Angola e em Moçambique, mas só a modernização

com a ocupação do Egito, tenha surgido como um contraponto

do armamento e a difusão do quinino no final do século xix per­

temporário. A integração de costumes locais esteve na origem

mitiram a expansão europeia no continente.

de dissensões entre os conquistadores, tendo o império sofrido

No período da Antiguidade Clássica na Europa, a coloni­

Interessa agora abordar diferentes processos concretos

uma fragmentação imediata com a morte de Alexandre. O caso

de colonização com resultados simultaneamente paralelos e

da dinastia ptolemaica no Egito (305 a.C.-3o d.C.) é interessante

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pela dualidade de línguas, costumes e normatividades gregas e

Neste processo é importante considerar a criação do

egípcias adotadas. A expansão romana caracterizou-se por um

Império Russo a partir do século xvi, que se desenvolveu com

extenso domínio territorial que envolveu a Europa Ocidental,

a dependência da Ucrânia na segunda metade de Seiscentos,

a região do Mediterrâneo e parte do Médio Oriente, com uma

as sucessivas partições da Polónia (com a Prússia e o Império

atribuição seletiva de cidadania a populações dominadas e uma

Austro-Húngaro) e a conquista do Canato tártaro e dos domí­

expansão do direito romano como quadro normativo de domínio.

nios do Império Otomano do noroeste ao leste do mar Negro ao

A fragmentação medieval fez a Europa virar-se para dentro, com

longo do século xvm. A expansão para a Sibéria ocorreu desde

formas de colonização interna, nomeadamente na Escandinávia,

o final do século xvi, tendo atingido o oceano Pacífico ainda em

na Irlanda e no Leste, enquanto formas de servidão com liga­

meados do século xvn. A escassa população local neste vasto

ção à terra sucederam à escravatura como propriedade pessoal.

território favoreceu a emigração russa e o estabelecimento do

As cruzadas definiram um primeiro momento falhado de expan­

controlo político. A expansão do Império Russo colidiu com a

são europeia, reativada com a expansão marítima de Portugal e

expansão do Império Chinês durante a dinastia Qing, que con­

de Castela nos séculos xv e xvi, seguida pela expansão de França,

quistou Taiwan, dominou a Mongólia e transformou o Tibete

de Inglaterra e dos Países Baixos. A colonização interna euro­

num protetorado em 1720, antes da conquista de Xinjiang na

peia prolongou-se até aos nossos dias: a Irlanda só se tornou

década de 1750, com o extenso massacre dos dzungar, que con­

independente em 1922, enquanto a independência da Ucrânia,

trolavam a região. A expansão japonesa é mais tardia, tendo

declarada em 1991 no quadro da desagregação da União Soviética,

ocorrido entre 1905 e 1945 com a ocupação da Coreia, de parte

é confrontada pelo projeto russo de recolonização com a ocupa­

da China e do Sudeste Asiático.

ção da Crimeia em 2014 e a tentativa de invasão geral de 2022.

A diferença entre impérios territoriais contínuos e des­

O Novo Mundo acabou por ser inteiramente coloni­

contínuos ou distantes do centro, como era o caso das potên­

zado pelos europeus, num processo longo que se estendeu do

cias marítimas europeias, com domínios no Novo Mundo, na

século xv a Oitocentos, enquanto o controlo de boa parte da Ásia

Ásia e na África, significou diferentes possibilidades de migra­

só ocorreu a partir da segunda metade do século xvm e o con­

ções forçadas de populações locais substituídas por populações

trolo de África só se tornou efetivo a partir de final do século xix.

transferidas dos centros colonizadores. A exceção ocorreu com

Este processo de globalização foi reforçado pelo imperialismo

a América, onde a população local perdeu cerca de 90 % dos

financeiro das décadas de 1870 a 1930, período durante o qual

seus efetivos com a guerra de ocupação e, sobretudo, a ausência

a hegemonia da Europa no mundo se afirmou com o controlo

de imunidade às doenças europeias, sendo em parte substituída

da maior parte da superfície terrestre.

pela migração europeia e pelo tráfico de africanos escravizados.

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A viagem para a Ásia implicava tempos prolongados e unia

internacional mas que eram compreendidos e praticados. A vio­

mortalidade significativa, enquanto a colonização extensiva

lência da conquista ou da subordinação prolongou-se no tempo

de África era impossibilitada, até ao final do século xix, pela

corn a imposição de novas hierarquias. Exacerbaram-se divisões

falta de imunidade europeia às doenças locais, como a malária.

sociais preexistentes, particularmente entre escravos e livres,

O domínio europeu assumiu diversas formas e afirmou o seu

ou entre bárbaros e civilizados, enquanto os preconceitos étni­

controlo de territórios de forma extensiva ao longo da primeira

cos e a discriminação racial foram alargados à escala do globo,

metade do século xx.

afetando a posição de mulheres e de minorias. A crescente mer-

Estes diferentes processos de colonização trouxeram con­

cantilização do ser humano, enquanto objeto do sistema de

sigo enormes transferências de população, o desaparecimento de

plantação criado no Atlântico, é um dos resultados da coloni­

inúmeras etnias, a morte de milhões de pessoas como resultado

zação. As consequências da expansão europeia são visíveis nas

direto e indireto, a transformação de configurações políticas,

teorias das raças e na divisão internacional do trabalho, que

económicas e sociais locais. As consequências dos processos de

deixaram traços até aos dias de hoje, com um enorme impacto

colonização situam-se de forma mais imediata no direito à vida,

nos direitos civis. São essas divisões sociais que devemos abor­

no direito à propriedade e no direito ao autogoverno. Contudo,

dar em seguida.

é necessário esclarecer que prevaleceu a pluralidade de siste­ mas normativos, tendo o direito de origem europeia assumido um papel importante apenas nos séculos xix e xx. Os direitos locais, reproduzidos de forma oral ou escrita, mantiveram a sua

função normativa, inscrevendo-se na pluralidade de normatividades que caracteriza a fase colonial, como tem defendido

Thomas Duve. Os traços do direito europeu estão visíveis nas

constituições de numerosos países, enquanto o direito civil de origem inglesa, francesa ou alemã estrutura parte dos sistemas de justiça em África e na Ásia. No caso dos antigos territórios coloniais portugueses, a região de Goa, por exemplo, ainda tem

como referência o Código Civil português de 1867. Em resumo, o colonialismo teve um enorme impacto

em direitos básicos que não estavam formalizados ao nível

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Escravidão A separação entre pessoas escravas e pessoas livres talvez seja uma das divisões sociais mais antigas da humanidade. A sepa­

ração não dizia respeito apenas aos «outros»; poderia acontecer no seio da mesma comunidade em diversas partes do mundo. O poema épico Mahabharata, transmitido oralmente ao longo

de séculos e fixado por volta do século iv a.C. no Sul da Ásia,

tem o seu momento decisivo num jogo de dados, no qual o rei Yudhistira perde o seu reino, as suas propriedades, a sua liber­

dade, a liberdade dos irmãos e a da mulher que partilhavam, Draupadi, para os primos Kaurava. O jogo é uma ofensa con­ tra o Dharma (ou conjunto de deveres morais e religiosos).

A escravização de toda a família Pandava representa a queda mais profunda, a perda de todo o poder, de toda a riqueza e

independência. E o persistente comportamento traiçoeiro e

ganancioso dos Kaurava que acaba por reverter a situação: ten­ tam imediatamente expor a nudez da rainha Draupadi, que protesta contra a tentativa de violação e obtém a libertação dos

Pandava, obrigados a passar 13 anos nas margens da sociedade, sem que ninguém os reconheça. A sequência desta extraordinária história não nos interessa

aqui. Apenas o horror pela possível destituição social dos mais poderosos, que reflete a permanente instabilidade das condições

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de vida, a ameaça de cair no abismo de servir, receber ordens

sistema: «Os poderosos estão cheios de ganância; aqueles que

esperar, obedecer, viver em função dos caprichos do senhor.

nã0 têm protetores são desprezados. Posses trazem preocu­

A dependência é assimilada à ausência de vida própria, exposta

pações; da pobreza nasce tristeza. Aquele que pede a ajuda de

a todo o tipo de abusos. O desespero da rainha Draupadi não

Outro acaba sendo seu escravo; aquele que alimenta os outros

dizia respeito apenas a ela e aos seus maridos: a escravidão seria

fica rodeado de afeição.» Três séculos mais tarde, o chinês Wang

transmitida aos filhos, que passariam de membros da família

Chiu-ssu conclui com um lamento a balada da venda de uma

real a servos, condição transmitida de geração em geração.

criança por uma aldeã para pagar impostos e dívidas acumula­

Curiosamente, foi uma mulher a encontrar uma forma de sal­

das: «Os ricos tornam-se cada vez mais cruéis enquanto os seus

var a situação, enquanto os homens se encontravam paralisados

campos aumentam, / e compram servos e escravos com a sua

pela falta que tinha sido cometida.

fortuna. / Um dia maldizem-nos com raiva, / chicoteando-os

Existiram diversas causas de escravidão no mundo até ao

insensivelmente até que o sangue corra! / Não sabem que toda

século xx, a começar pela servidão temporária por dívidas, que

a carne e todos os ossos vêm do mesmo útero, / que o filho de

muitas vezes resultava em servidão permanente, passando pela

outro e o meu próprio filho são de uma mesma forma?»

escravidão por jogo, como no caso apontado, ou pela escravidão

A humildade entre os poderosos, o respeito pelos fracos e

como resultado de guerra, com o cativeiro das tropas vencidas e,

humildes, o socorro à pobreza, a distribuição da terra e a con­

por vezes, das populações dos territórios conquistados. A estas

três causas principais de escravidão devemos juntar o nascimento

tenção nos impostos foram valores predicados entre os sécu­ los v e ui a.C. por Kong Qiu (Confúcio) e Meng Ke (Mêncio),

em cativeiro. Havia igualmente diversas formas de dependência,

que procuravam evitar conflito social e desigualdade extrema.

da servidão ligada à terra, como no caso europeu depois da implo-

Estes preceitos podem ser igualmente encontrados nas Leis de

são do Império Romano, que se prolongou no Leste até ao século

Manu e no Arthashastra, códigos da tradição hindu escritos nos

xix (a servidão só foi abolida na Rússia em 1861), à escravatura

séculos iv-iii a.C. Contudo, a condição de servidão não é posta

de trabalho intensivo em engenhos de açúcar no Brasil e nas

em causa, apenas a sua gestão regulada, sendo a emancipação

Caraíbas, com o mais elevado índice de mortalidade. O regime de

permitida no caso de a escrava dar à luz um filho do senhor,

trabalho escravo variava profundamente entre o serviço domés­

enquanto as famílias arianas tinham condições mais fáceis de

tico, predominantemente feminino no mundo islâmico, e o

resgatar a liberdade. O problema da servidão arrastou-se até às

regime de trabalho masculino em plantações do mundo atlântico.

primeiras décadas do século xx em partes da Ásia.

O texto «Um relato da minha cabana», escrito pelo japonês

Em África, a escravização resultava das mesmas causas,

Kamo no Chõmei em 1212, permite-nos vislumbrar a lógica do

às quais se pode somar o rapto para venda, dada a estrutura

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enraizada do tráfico, primeiro para o Mediterrâneo e o Médio

inças, mas, na vasta maioria das populações nómadas e seminó-

Oriente, depois para o Novo Mundo. Só o tráfico para a América,

madas, não existia o estatuto de dependência regulado por lei

no qual os portugueses estiveram fortemente envolvidos, impli­

que caracterizava boa parte das relações de servidão nos outros

cou mais de 12,5 milhões de pessoas; a estimativa global de extra­

continentes. A introdução da escravatura como propriedade

ção entre os séculos iv e xix, com todos os destinos incluídos,

pessoal resultou da expansão europeia, tendo acompanhado o

atinge os 20 milhões. O tráfico de escravos implicou a estagnação

estabelecimento do sistema de plantações. Em meados do século

da população em África entre os séculos xvi e xix. Resultaram

xvi verificou-se um debate entre Juan Ginés de Sepúlveda e

deste processo uma pobreza persistente e sistemas informais

gartolomé de las Casas: o primeiro defendia que os índios eram

de linhagens dependentes, enquanto as áreas do litoral afetadas

escravos naturais, sem capacidade de autogoverno, enquanto

pelo tráfico transatlântico se viram sujeitas à instabilidade polí­

0 segundo denunciava as atrocidades da expansão castelhana

tica. Joseph Inikori indicou a ausência de Estados fortes como

e defendia a liberdade intrínseca, a dignidade e a capacidade

um dos factores de vulnerabilidade das populações afetadas.

humana dos índios, posição partilhada por Francisco de Vitória

Na Europa, a filosofia grega refletiu sobre a condição do

e pela Escola de Salamanca.

escravo, equiparada a uma propriedade animada, mas com

O declínio demográfico radical dos indígenas americanos

uma capacidade de raciocínio e afeição, bem como sobre a sua

devido à guerra e à difusão de doenças europeias para as quais

exclusão da cidadania, da tomada de decisões e do uso de voz

não tinham imunidade foi em parte compensado pela intro­

na comunidade. No século vi, essa reflexão foi integrada pelo

dução maciça de escravos de origem africana. O resultado foi

Corpus Iuris Civilis de Justiniano, que definiu o quadro jurídico

a criação de sociedades baseadas na escravatura, cujas conse­

das condições de escravatura, colocada no âmbito da lei das

quências sociais, políticas e culturais se podem observar até à

nações, e não do direito natural, já que a posse de outra pessoa

atualidade. Não houve uma diferença fundamental de trata­

era considerada contranatura. Também aqui surgem restri­

mento de escravos nas sociedades coloniais inglesa ou holan­

ções ao mau tratamento dos escravos, enquanto os escravos

desa e nas sociedades coloniais ibéricas, embora nestas últimas

emancipados não chegam a ter o mesmo estatuto dos homens

a política de emancipação fosse mais aberta, sobretudo no caso

livres. A servidão da gleba substituiu a escravatura no período

do Brasil, onde os escravos constituíam a maioria da população

medieval, tendo-se perpetuado no Leste, enquanto no Ocidente

nos séculos xvn e xviii. Foi justamente nas colónias portuguesas

se afirmou o princípio do solo livre ao longo do século xviii.

do Atlântico Sul, no século xvii, que surgiu o primeiro movi­

Na América verificava-se o trabalho coletivo forçado e o

mento abolicionista, liderado por Lourenço da Silva Mendonça,

tributo imposto a populações conquistadas pelos nahua e pelos

membro da família real do Ndongo, Angola, o qual suscitou um

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profundo debate jurídico em Roma estudado por José Lingna

década do século xix, mas a abolição da escravatura pelas potên­

Nafafé. Na segunda metade de Setecentos, o debate entre confis­

cias coloniais europeias e pelos novos países independentes da

sões protestantes, particularmente os Quakers, sobre a rejeição

América foi muito mais lenta por causa dos interesses envol­

da escravatura como prática contrária aos princípios religio­

vidos, decorrendo da década de 1820 à de 1870, enquanto no

sos, a perda da maior parte das colónias norte-americanas por

Brasil e em Cuba se prolongou até ao final da década de 1880.

parte dos britânicos, a reflexão económica sobre as vantagens

A extensão da abolição ao resto do mundo foi consagrada pela

do trabalho livre e a resistência crescente dos escravos, expressa

Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas

por numerosas fugas e revoltas, provocaram o nascimento do

em 1948, citada no início deste ensaio, mas ainda existem for­

movimento abolicionista em Inglaterra. A ideia de capital moral

mas de escravatura e de dependência em diversos continentes,

face à perda colonial foi sublinhada por Christopher Leslie

nomeadamente ligadas ao tráfico ilegal em redes de prostituição

Brown, bem como o propósito de impor a abolição da escrava­

e de exploração de menores.

tura como forma de obter um campo nivelado de exploração

O abolicionismo colocou a noção de dignidade humana no

colonial. Contudo, não podemos ignorar os princípios religiosos

centro do debate político. É verdade que a supremacia branca

que guiaram o abolicionismo britânico desde a primeira hora.

não foi questionada no Ocidente até à Segunda Guerra Mundial,

A importante participação ativa de escravos emancipados deve

enquanto o trabalho forçado ou dependente substituiu em parte

ser igualmente equacionada. Por fim, a Revolução Haitiana, que

a escravatura nos impérios coloniais. Na Europa, o regime nazi

se apropriou do princípio de igualdade previamente reclamado

estabeleceu um regime de trabalho forçado em larga escala,

pelas revoluções Americana e Francesa para os homens brancos

envolvendo 12 milhões de pessoas detidas durante o período

e o alargou aos escravos, deu um enorme impulso ao movimento.

da Segunda Guerra Mundial, regime equivalente aos campos de

A abolição da escravatura pode ser considerada o primeiro

concentração soviéticos destinados à suposta oposição interna.

grande desafio de construção de direitos humanos ao nível do

Entretanto, a noção de dignidade humana permitiu dar voz

globo. O movimento nasceu no quadro atlântico, devido, por

ao descontentamento de camadas sociais oprimidas em todo

um lado, à natureza extrema das condições de trabalho escravo

o mundo, tendo alimentado poderosas revoltas na China e no

sob o regime das plantações no Novo Mundo e, por outro, às

Sudeste Asiático, bem como os movimentos anticoloniais que

condições políticas particulares das potências colonias euro­

se sucederam na Ásia e em África ao longo dos séculos xix e xx.

peias, sobretudo a britânica. O movimento levou dezenas de

anos até obter a abolição do tráfico de escravos na Dinamarca, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América na primeira

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Barbárie A palavra «bárbaro» teve a sua origem no grego barbaros (que

designava os povos não helénicos), tomado do sânscrito barbara (usado no plural e referente a povos estrangeiros). Trata-se de uma palavra onomatopaica, que imita os sons balbuciados por

alguém incapaz de falar a língua de referência. O seu significado cultural era claro: designava o estrangeiro rude, sem maneiras,

estranho à sociedade urbana. Os gregos usavam a palavra para

denegrir as sociedades com as quais estavam em conflito, sobre­ tudo o Primeiro Império Persa (c. 550-330 a.C.). O despotismo político, a submissão dos povos, a ausência de participação polí­

tica ou de noção de cidadania, a aceitação da tirania, considerada

como um comportamento de escravo eram atributos dos persas, segundo a visão veiculada pelos gregos. Seguia-se a acusação de violência, crueldade, luxo, sensualidade, ociosidade e cobardia. Estes tópicos encontraram uma enorme ressonância histó­

rica entre os povos da Europa, tendo os romanos usado alguns

destes atributos contra os gregos, enquanto a noção de despo­ tismo oriental fez o seu caminho no pensamento ocidental até aos nossos dias. Aristóteles justificou a conquista predatória

pela suposta ausência de cidadania entre os bárbaros, consi­ derados escravos naturais. Esta ideia, como vimos, teve resso­

nância em Juan Ginés de Sepúlveda, implicando uma escala de

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superioridade e inferioridade que tem sido usada historicamente

para justificar a ocupação e a submissão.

btidos em determinadas conjunturas históricas, sendo ainda

objeto de movimentos sociais para os garantir e alargar.

A persistência do tópico do despotismo oriental encon­

A palavra «bárbaro» foi usada pelos gregos não só contra

tra-se em numerosos tratados políticos e relatos de viagem,

os persas mas também contra os citas, os egípcios e os fenícios,

embora por vezes se tenha a sensação de que o autor estava a

para refletir sobre a própria identidade. A divisão entre gregos

fazer uma crítica velada a regimes políticos na Europa, parti­

e bárbaros significava a asserção de formas próprias de regime

cularmente ao regime de Luís XIV, como é o caso provável de

político, enquanto as noções de cidadania e democracia se refe­

François Bernier na sua descrição do Império Mogol. Nas artes

riam a membros adultos, masculinos e livres da própria comu­

visuais, o tema do despotismo oriental encontra uma enorme

nidade, excluindo-se estrangeiros e escravos. Esta divisão era

representação, sobretudo na pintura. Em meados do século

visível nos tratados políticos e filosóficos, nos poemas, nas cróni­

xvm, Giambattista Tiepolo representa um escravo a colocar

cas e peças de teatro, embora diversos autores, como Heródoto,

algemas nos seus próprios pulsos, na secção da Ásia do seu

Esquilo, Tucídides e Eurípides, tenham dissolvido estereótipos

enorme fresco dos quatro continentes, no teto da escadaria

pelo uso da ironia, apagando diferenças entre personagens gre­

da entrada da Residenz de Wiirzburg.

gas e bárbaras. É esta capacidade de autoironia e de autocrítica

A ideia de autoescravidão foi utilizada de forma inteli­

que acaba por definir uma das características fundamentais da

gente por Etienne de la Boétie no século xvi para denunciar a

cultura ocidental, mesmo que os resultados do ponto de vista

sujeição a tiranos como servidão voluntária, uma ideia desen­

prático, da alteração de comportamentos, sejam limitados.

volvida na época contemporânea por Tolstói, Gandhi e Martin

Os preconceitos em relação a supostos bárbaros manti­

Luther King nas suas campanhas de desobediência civil contra

veram-se ao longo do tempo, projetados contra estrangeiros

a opressão, respetivamente, do campesinato russo, dos povos colonizados no Sul da Ásia e dos afro-americanos nos Estados

na oekumene romana, dirigidos contra gentios e pagãos pelo

Unidos. A ideia de base é que a tirania é sustentada por um

conhecimento era considerada uma manifestação de inferio­

consentimento indevido. A desobediência civil não violenta,

ridade ou de ignorância. Nesta tradição, atestada e discutida

no contexto da índia e dos Estados Unidos, teve um enorme

criticamente por Montaigne a propósito do caso extremo do

impacto, expondo os duplos critérios da sociedade dominante e

canibalismo, que ele observou na Europa durante as guerras

tornando inviável a perpetuação da exclusão de populações dos

de religião, o bárbaro não tinha apenas defeitos: podia ser um

direitos de cidadania. Estas campanhas são excelentes exem­

guerreiro corajoso, qualidade supostamente em risco pelo refi­

plos da maneira como os direitos humanos foram reclamados e

namento da Europa. Contudo, apesar destes matizes, «bárbaro»

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mundo cristão. A falta de partilha da mesma religião e do mesmo

é uma palavra claramente relacionada com o etnocentrismo,

janeiro). Deixou uma extraordinária relação dos costumes dos

pois pressupõe a superioridade da própria cultura, um senti­

indígenas, marcada por empatia pelas relações humanas obser­

mento partilhado pela civilização chinesa.

vadas e pela perceção do significado ritual do canibalismo. Léry

A noção de selvagem é um caso extremo na hierarquia dos

levou ainda mais longe a sua reflexão antropológica ao estabe­

seres humanos e resulta dos preconceitos de populações seden­

lecer a equivalência entre práticas europeias e não europeias,

tárias contra os nómadas, considerados alheios à civilização

estabelecendo a ligação (provocatória) entre comunhão católica

por não possuírem escrita, formas regulares de agricultura ou

e canibalismo. Montaigne, como já sugerimos, seguiu a mesma

experiência de construção urbana, sendo equiparados a bestas

linha de raciocínio ao ridicularizar a noção de selvagem apli­

e canibais. A palavra já existia, mas recebeu um conteúdo alar­

cada a não europeus, quando o século xvi tinha sido marcado

gado na hierarquia de seres humanos estabelecida pelo missio­

por guerras de religião atrozes que tinham incluído conhecidos

nário jesuíta José de Acosta no final da década de 1580 como

casos de canibalismo. Expôs o duplo critério dos europeus e per­

resultado da sua experiência no Peru e no México. Tornou-se um

guntou quem eram, ao fim e ao cabo, os selvagens ou canibais.

estereótipo usado pelos europeus nas suas viagens de explora­

Nos Analetos atribuídos a Confúcio está registada uma

ção para definir povos tribais que viviam na natureza, ou seja,

conversa segundo a qual o mestre pretendia habitar entre as

que não se distinguiam da natureza, um tópico característico

nove tribos selvagens do Leste. Alguém perguntou: «Eles não

da maneira de pensar ocidental definida pela separação entre

são civilizados, como vai resolver esse problema?» E o mestre

cultura e natureza desde o século xvii.

respondeu: «Se um cavalheiro habitar entre eles, que falta de

O termo «selvagem» surge diversas vezes na relação da via­

civilização podem eles mostrar?» A possibilidade de melhoria

gem do Beagle publicada por Charles Darwin em 1839.0 cientista

partilhada por todos os seres humanos estava no centro deste

ficou horrorizado com a partilha comunitária de todos os bens

raciocínio. Exatamente o oposto do horror da cafrealização

que observou na Terra do Fogo, o que, na sua opinião, conduzia

partilhado pela civilização árabe e pela civilização ocidental na

à destruição de todos os haveres. A ausência de propriedade

expansão pelo continente africano. A assimilação de populações

privada, na sua perspetiva, era um obstáculo ao progresso, defi­

exteriores, incluindo os invasores mongóis e manchus, define

nido pela acumulação de riqueza, na esteira de Thomas Malthus.

a civilização chinesa, embora o caso da Ásia Central, particu­

Contudo, a noção de selvagem já tinha sido questionada

larmente a província de Xinjiang, conquistada no século xviii,

em meados do século xvi por Jean de Léry, futuro pastor pro­

esteja longe da integração, dada a resistência cultural da popu­

testante que participou na fundação da efémera colónia fran­

lação local e a campanha violenta de assimilação e de alteração

cesa na baía de Guanabara (local onde se desenvolveu o Rio de

da composição étnica.

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No Japão, um território bastante menos extenso, a vasta

maioria da população reclama a descendência Yamato, embora exista uma divisão tradicional respeitante à população Ainu, nativa da ilha de Hokkaido, no norte, e das ilhas Curilas.

A visão de populações tribais como «primitivas» ainda exis­

Racialização

tia no século xx em diversos continentes: nos Estados Unidos,

os nativos americanos foram considerados nações estrangei­

A transformação do etnocentrismo em racismo constitui um dos

ras até 1871, quando foram definidos como nações domésticas

maiores flagelos da humanidade. Enquanto o etnocentrismo vê

dependentes sob custódia do governo, tendo apenas recebido

os «outros» com medo ou desprezo mas integra indivíduos exte­

cidadania em 1924; na América do Sul, a pressão sobre popu­

riores à comunidade, o racismo combina preconceitos relativos

lações nativas não foi resolvida, notando-se um conflito cres­

à descendência étnica com uma ação discriminatória sistemá­

cente contra as reservas de índios definidas ao longo do século

tica. A Península Ibérica fornece um exemplo histórico impor­

xx devido à exploração da Amazónia.

tante de discriminação contra judeus e muçulmanos forçados

A classificação de bárbaro e selvagem, muitas vezes sobre­

à conversão por meios violentos nos séculos xiv e xv, violando

posta, foi utilizada historicamente para definir hierarquias e

a tradição universalista da Igreja cristã. Estas minorias herda­

justificar a exclusão de estrangeiros e tribos de direitos, muitas

ram os preconceitos contra os antepassados, sendo designados

vezes de acesso ou utilização das próprias terras, objeto de expro­

como conversos, cristãos novos e mouriscos. Os chamados cris­

priação contra direitos anteriormente reconhecidos, como nos

tãos velhos publicaram estatutos de limpeza de sangue contra

casos de reservas de índios. Hoje, como no século xvi, as palavras

estas minorias, que se viram excluídas da administração régia,

«bárbaro» ou «selvagem» são devolvidas contra as elites que vio­

dos concelhos municipais, dos colégios, das ordens religiosas

lam os tratados que assinaram e o reconhecimento de territórios

e militares, das confrarias e corporações.

com direitos indígenas. A gentileza dos povos da floresta, por

A noção de sangue e genealogia, que definira o nasci­

exemplo, é contraposta à rudeza dos garimpeiros e exploradores

mento privilegiado na Idade Média europeia, foi racializada

que usurpam os seus territórios e destroem o meio ambiente de

entre os séculos xiv e xvi com a noção de sangue manchado,

forma, essa sim, selvagem. As maiores devastações dos séculos

atribuída a cristãos novos e mouriscos, em seguida a escravos

xix e xx foram perpetradas na Europa e no Extremo Oriente,

africanos, finalmente a habitantes de outros continentes orga­

enquanto as guerras do século xxi continuam a violar a carta das

nizados numa hierarquia de raças. Os preconceitos contra afri­

Nações Unidas que proíbe a invasão de países independentes.

canos foram projetados em povos do Novo Mundo e da Ásia,

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designados como «pretos da terra». Tratava-se de os inferiorizar

Camper deixou um legado nefasto: a tentativa de medir a

e justificar a expansão europeia. A variedade de seres humanos

diferença das raças humanas através da avaliação (incorreta)

passou a ser racionalizada, na perspetiva europeia, de acordo

do crânio conduziu a desastrosas aproximações dos africanos

com uma hierarquia de raças.

aos macacos, tendo sido utilizada nos Estados Unidos para

A página de título do atlas de Abraham Ortelius, publicado

justificar a perpetuação da escravatura. A transferência do

em 1570, usa figuras alegóricas femininas para personificar os

método de mensuração do crânio para os testes de inteligência

quatro continentes, que tipificavam diferentes raças. A Europa

como forma de avaliar a diferença de raças foi ensaiada igual­

era representada como poder regulado, trabalho, justiça e artes

mente nos Estados Unidos por Herrnstein e Murray em 1994,

liberais; a suposta sensualidade e ligeireza da Ásia era visuali­

tendo Stephen Jay Gould exposto a falta de critério científico

zada através de roupas transparentes; a rudeza da África era

nos métodos utilizados.

veiculada pelo sol e pela roupa diminuta; a selvajaria do Novo

Entretanto, a rigidez da noção de raças humanas imu­

Mundo era sublinhada por uma figura nua com um cacete e uma

táveis desde a Criação tinha feito o seu caminho na Europa

cabeça decepada, prova de canibalismo. A difusão desta matriz

com Cuvier, apesar do desafio da noção de adaptação ao meio

de classificação das raças humanas foi garantida por mais de

ambiente e de transformação veiculada por Lamarck. James

500 imagens (pintura, escultura, gravura) até ao século xix.

Prichard e Alexander von Humboldt rejeitaram a ideia de raças

Nos séculos xvn e xvm a divisão de raças por continentes foi

imutáveis e consideraram impossível definir fronteiras entre

matizada, enquanto os supostos atributos culturais das raças foram

raças. Mais radical foi Charles Darwin, que promoveu a ideia

desenvolvidos por Cari Linnaeus em 1735, com os estereótipos do

de seleção natural, rompendo com a ideia de Criação única e

africano despreocupado e brincalhão, regulado pelo capricho; o

imutável das raças. Chamou a atenção para os milhões de anos

asiático ganancioso e autoritário, regulado pela opinião; o índio

necessários à adaptação, à sobrevivência e ao extermínio maciço

americano regulado pelo costume; o europeu inventivo e perspi­

de espécies. Finalmente, transferiu os resultados da sua pesquisa

caz, regulado pela lei. Linnaeus acrescentou nesta classificação o

científica para os seres humanos, considerados em permanente

tipo imaginário medieval de homem selvagem, entre o homem e o

evolução, tal como outras espécies, em função da adaptação

macaco. Buffon, Kant, Camper e Blumenbach complicaram esta

ao meio ambiente. Contudo, a ideia de sobrevivência dos mais

visão simplista, acrescentando variedades de seres humanos no

aptos, ou mais adaptáveis, teve um enorme impacto nas ciências

Sudeste Asiático e na Oceânia. Todos eles apoiaram o movimento

sociais emergentes, e foi interpretada por Benjamin Kidd, num

abolicionista, Blumenbach valorizou a inteligência dos africa­

livro sobre evolução social publicado em 1894, como o declínio

nos, mas nenhum duvidou da superioridade do homem branco.

inevitável das raças menos competitivas.

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Neste contexto, é surpreendente como as ideias de Cuvier moldaram o racialismo científico de meados do século xix

de exclusão de minorias, assumindo uma superioridade simbó­ lica que facilita a sua mobilização.

contra a corrente darwinista. E um caso exemplar da forma

A importância do fenómeno da racialização como instru­

como a ciência se divide e responde de forma divergente a

mento de exclusão de minorias competitivas tem evidentes

problemas políticos e sociais. Samuel Morton, Robert Knox,

equivalências históricas: da perseguição de cristãos novos e

Arthur Gobineau, Josiah Nott e Louis Agassiz promoveram

mouriscos na Península Ibérica ao genocídio de arménios pelo

uma visão imutável das raças, oposta aos benefícios da mis­

regime otomano durante a Primeira Guerra Mundial, da exclu­

tura e melhoria de todos os seres humanos. Foi esta corrente

são dos afro-americanos dos direitos civis nos Estados Unidos ao

que influenciou Houston Chamberlain e, mais tarde, Hitler.

apartheid na África da Sul, do genocídio dos herero e dos nama

A noção de declínio das supostas raças superiores com uma

na Namíbia no princípio do século xx ao genocídio de judeus

origem ariana imaginada, resultante de miscigenação com as

pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um

supostas raças inferiores, conduziu a uma amálgama explosiva

processo radical de negação de direitos a minorias (ou mesmo

entre racismo e nacionalismo.

maiorias, como aconteceu na África do Sul).

A racialização de minorias foi sempre utilizada com fina­

O extermínio de seis milhões de judeus pelos nazis provocou

lidades políticas de justificação de hierarquias sociais, de mar-

um enorme movimento de repulsa humanitária que convergiu

ginalização de grupos competitivos e de monopolização de

com a recusa da mobilização nacionalista para invadir outros

recursos económicos, mas no caso da Alemanha nazi este pro­

países e da consequente anulação dos respetivos direitos de auto­

cesso foi levado a extremos, com a extirpação da cidadania,

governo e de propriedade. O direito à integridade de países reco­

do emprego e da propriedade da minoria judaica, cujo extermí­

nhecidos pelo direito internacional passou a fazer parte da Carta

nio (ou genocídio) foi implementado durante a Segunda Guerra

das Nações Unidas, correspondendo ao direito à integridade das

Mundial. A lógica do conflito de raças foi então contraposta à

pessoas. Reconheceu-se que qualquer guerra conduz a numero­

lógica da luta de classes, suprimida e absorvida pela primeira.

sas mortes civis, definindo-se qualquer invasão como ilegítima e

Em várias partes do mundo esta lógica do conflito de raças,

criminosa. Estes princípios estão hoje de novo em causa.

com os seus efeitos devastadores, está de regresso. Trata-se de

Se o problema da fusão entre racismo e nacionalismo

agregar uma suposta unidade social dominante de cariz étnico

deixou um rasto de devastação de enormes proporções,

à custa da marginalização, da perseguição e, em certas circuns­

o problema do racismo interno em diversas sociedades está

tâncias, do extermínio de minorias racializadas. Os pobres da

longe de resolvido, infringindo diariamente direitos civis. E

etnia ou da nação dominante sentem-se promovidos nesta luta

sabido que os afro-americanos continuam a encher as prisões

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norte-americanas de forma desproporcionada, a obter níveis

No Japão existe igualmente uma casta de impuros,

de educação inferiores à média e a ter o pior acesso ao sistema

os burakumin, designados como cidadãos de comunidades espe­

de saúde. As oportunidades de vida são claramente desfavo­

ciais, herdeiros dos eta, aqueles que matavam animais, curtiam

ráveis e o acesso aos direitos civis, como resultado da campa­

peles, removiam corpos e lidavam com o lixo, e dos hinin, ou seja,

nha cívica da década de 1960, tem tido uma tradução lenta na

pedintes, prostitutas, artistas ambulantes, fugitivos da justiça.

qualidade de vida. Estes indicadores têm o seu paralelo noutras

Embora as designações de eta e hinin tenham sido abolidas em

sociedades marcadas por um passado de escravatura, nomea­

1870, com o reconhecimento destes grupos como Yamato, e os

damente o Brasil, onde existe uma retórica de miscigenação,

burakumin se tenham tornado elegíveis para o parlamento,

modelada por Gilberto Freyre, mas na prática a pele mais

ainda existe discriminação contra este grupo, identificado, em

escura está relacionada com a pobreza e com um difícil acesso

parte, por código postal. Ao contrário da índia, não se trata de

a oportunidades sociais. O lançamento de ações afirmativas,

uma sociedade de castas, ainda que existam informalmente

sobretudo no acesso à universidade, na esteira de experiências

estes excluídos, cuja expressão demográfica é bastante limitada.

norte-americanas, está já a dar alguns resultados, mas ainda é

No Tibete e na Coreia há igualmente grupos de excluídos com

cedo para avaliar o impacto na saída da espiral de pobreza por

características semelhantes.

parte dos grupos mais desfavorecidos. O racismo interno na índia, definido pela sociedade de castas com o eixo puro/impuro a reger uma hierarquia com­

plexa, tornou-se mais rígido com a codificação colonial inglesa. Os investigadores indianos assinalam a mobilidade ascendente

e descendente das castas, a diversidade regional e as formas de escapar aos estatutos sociais atribuídos. A segregação dos considerados intocáveis, designados como dalit, foi tornada ile­

gal com a constituição de 1949, mas a discriminação informal

persiste. Babasaheb Ambedkar, um dos arquitetos da consti­ tuição, ele próprio dalit, acabou por se converter ao budismo

para escapar à lógica de um sistema que, na sua opinião, deveria

ser abolido. As oportunidades económicas e sociais continuam

a ser, em boa medida, filtradas pelo sistema.

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Género Há outras divisões sociais de longa duração com incidência no acesso a direitos formais e informais. A exclusão de menores é

uma dessas divisões, embora a definição da idade de passagem ao estatuto de adulto, no caso europeu, tenha descido dos tradi­

cionais 25 anos para os 18 e mesmo para os 16 em certos casos. O estatuto jurídico de menores é tutelado em diversas partes do mundo. A população mais idosa gozava de um enorme respeito

e precedência na Ásia Oriental, enquanto no mundo europeu 0 ideal de eterna juventude tem tido um impacto no escrutínio

de formas de demência que podem levar à exclusão do con­ trolo da propriedade e da decisão sobre o destino da herança.

Igualmente estrutural é a divisão entre homens e mulheres no

acesso a certos direitos, enquanto a sexualidade alternativa

pode ainda hoje levar à exclusão dos direitos sociais em diver­ sas sociedades. Integraremos os desenvolvimentos recentes dos

direitos LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros, Queer e mais), que reclamam igualdade de estatuto jurídico

e acesso aos mesmos direitos, nomeadamente de casamento e

de adoção. Vamos concentrar-nos na divisão homem/mulher, pois a subordinação da mulher foi imposta na vasta maioria das culturas, assim como a normalização do comportamento sexual binário.

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Na China, os cinco preceitos de Confúcio dedicados às

Havia preceitos semelhantes nas codificações hindus.

mulheres traduzem-se nas cinco virtudes de amor filial, lealdade,

As Leis de Manu estipulavam que uma mulher nunca devia ser

fidelidade marital, obediência e sinceridade. Era defendida uma

independente. Na infância, a criança devia estar sujeita ao pai,

hierarquia supostamente natural de submissão das crianças

enquanto jovem ao marido, enquanto viúva aos filhos. O aban­

aos pais, das mulheres aos maridos, das viúvas aos seus filhos,

dono do pai, do marido ou dos filhos pela mulher tornaria a famí­

dos jovens aos irmãos mais velhos. No seio da família, a relação

lia desprezível. O infanticídio feminino tradicional, sobretudo no

mais importante era entre pai e filho; as mulheres contavam

Norte da índia, tem paralelo na China, dado o peso do dote pago

para a reprodução e a aliança matrimonial. Estes preceitos éti­

pelos pais da noiva, situação aliviada no período contemporâneo.

cos procuravam regular o domínio masculino, sendo elogiado

A política do filho único na China veio renovar o desequilíbrio

o governo moderado e benevolente da casa, em contraste com

demográfico, com um excesso de homens. A tradição de castas

casos de abuso público e doméstico.

na índia modelou uma sociedade com menos mobilidade social

A manutenção de mulheres solteiras era garantida por uma

do que na China. A constituição indiana introduziu os direitos

participação limitada na herança, enquanto a regra da sucessão

das mulheres consagrados por outras constituições, rejeitou as

patrilinear foi reforçada no início da dinastia Ming. A viúva casta

castas e condenou o casamento mediado pela família, mas este

teve então o seu estatuto reconhecido, particularmente no que diz

persiste, bem como os preconceitos de castas.

respeito à gestão da herança em caso de ausência de filhos, mas

Apesar destes constrangimentos, discute-se hoje o papel

deveria escolher o sobrinho mais próximo como herdeiro. O pro­

das deusas no panteão hindu para aliviar a pressão sobre as

blema do acesso da mulher à propriedade era complicado pelo

mulheres, enquanto se verifica uma tradição de rutura com

vasto número de concubinas e dependentes, embora estas esti­

as normas, como foi o célebre caso da poetisa e compositora

vessem formalmente excluídas da herança. A prática da deforma­

Mirabai (1498-1557), que se recusou a fazer sati (morrer

ção dos pés, que dificultava o ato de andar, é agora interpretada (cf. Dorothy Ko) como reveladora do estatuto frágil das mulhe­

queimada na fogueira com o marido falecido) e optou por uma vida na estrada, misturando-se com o povo e tornando-se uma

social. A contestação destas tradições favoráveis aos homens no

heroína da tradição igualitária bakhti. A tradição de mulheres rainhas e governantes é igualmente importante no Sul da Ásia,

período contemporâneo foi facilitada pela revolução republi­

de Ahilyabai Holkar (1725-1795) a Indira Gandhi (1917-1984).

cana de 1911 e em seguida pela revolução comunista concluída

O trabalho na agricultura, na construção e na indústria têxtil era

em 1949. Contudo, é ainda limitada a presença das mulheres na

importante, mas hoje verifica-se um acesso diversificado ao mer­

esfera pública e em lugares de direção de empresas privadas.

cado laborai. Finalmente, a tradição patriarcal era partilhada

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res numa sociedade volátil com um elevado grau de mobilidade

por minorias religiosas alheias à tradição de castas, como os

chefias femininas na costa ocidental de África, de Casamansa à

muçulmanos, os quais garantiam por lei o acesso da mulher

Serra Leoa, mas também nos Camarões. As mulheres produziam

a um terço da herança, se bem que se verificassem diferenças

para o mercado, particularmente cestos, cerâmica, roupas de

regionais na idade para o casamento e na taxa de fertilidade.

algodão, óleo de palma e nozes de cola, o que equivalia a um certo

O Sudeste Asiático era uma das regiões do mundo mais

grau de autonomia. A rainha Njinga (1583-1663), no Ndongo e

favoráveis às mulheres no período pré-moderno, embora a ser­

Matamba, atual Angola, estudada por Linda Heywood, foi um

vidão fosse difusa. A riqueza era definida por controlo do traba­

caso extremo de resistência e inversão de papéis masculinos e

lho, não tanto pela posse da terra. As mulheres tradicionalmente

femininos. A relativa autonomia das mulheres da África Ocidental

plantavam e colhiam arroz, cultivavam vegetais, dedicavam-se

facilitou a sua posição como mediadoras e parceiras de homens

à tecelagem e produziam cerâmica. O casamento não implicava

europeus. A elevada mortalidade dos europeus na região refor­

a submissão ao marido, a herança era bilateral e as mulheres

çou a posição feminina como gestoras de ativos importantes de

podiam iniciar um divórcio tão frequentemente como os homens.

famílias mistas, situação estudada por Philip Havik e Mariana

A ausência de primogenitura era responsável pela reduzida acu­

P. Cândido. O declínio desta elite foi acelerado pelo colonia­

mulação de capital. As mulheres controlavam o dinheiro da casa

lismo tardio e pela transição pós-colonial, embora as mulheres,

e tinham uma boa reputação no comércio, enquanto os homens

em geral, tenham beneficiado de um maior acesso a profissões.

desenvolviam relações de poder e estatuto. As mulheres funcio­

O impacto do cristianismo na Europa foi provavelmente

navam como mediadoras de comunidades estrangeiras e prati­

mais importante do que o impacto do budismo na Ásia do Leste e

cavam casamentos temporários com divórcio fácil. Há também

do Sudeste, dada a exclusão do concubinato, a difusão da mono­

casos de mulheres guerreiras e rainhas influentes. Também aqui

gamia e a promoção do celibato dos padres. O modelo patriarcal

as transformações contemporâneas foram significativas.

afirmou-se neste contexto mais estrito com o controlo do espaço

A multiplicidade de sistemas de linhagem e de família em

público, das corporações e das associações de mercadores por

África impede uma visão de conjunto. Na África Ocidental, pre­

homens, assim como com a regra da primogenitura masculina no

dominavam os sistemas familiares matrilíneos, mas isso não

seio da aristocracia e das elites urbanas. Existia, contudo, algum

significava poder feminino. Entre os yoruba, as rainhas mães e

espaço para a participação de viúvas, enquanto as mulheres em

as idosas eram responsáveis pela transmissão de textos histó­

geral tinham uma presença no mercado como vendedeiras, na

ricos e literários, enquanto no Daomé as mulheres mantinham

atividade agrícola e na indústria têxtil. A partilha da herança

a memória coletiva, tradição partilhada pelas mulheres erudi­

por mulheres existia no Sul da Europa e em França em diver­

tas ndenye na região da atual Costa do Marfim. Verificavam-se

sas modalidades. Portugal conheceu desde a Idade Média um

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acesso equitativo à herança, com compensação para mulheres ou

A grande transformação contemporânea resulta do novo

homens que decidissem entrar na vida eclesiástica ou monacal.

estatuto da mulher em diversas partes do mundo, ainda em

Como em todos os outros casos, a diferença de estatuto social

busca da realização do princípio «salário igual para trabalho

assumia um papel crucial na condição feminina. Na Rússia,

igual», consagrado pela Declaração Universal dos Direitos

as mulheres aristocratas viram a sua condição favorecida no

Humanos de 1948, mas com acesso a praticamente todos os

século xvm com o acesso à propriedade e à herança como forma

setores das atividades económicas. O acesso das mulheres às

de proteger os ativos patrimoniais das famílias ricas. Se existe

universidades é outro dos grandes fatores de transformação.

algum comportamento distintivo na Europa face às mulhe­

Contudo, verificam-se extraordinárias regressões, como no caso

res, ele tem a ver com a tradição, do final da Idade Média à

do Afeganistão. No Irão, o movimento das mulheres contra a

Revolução Francesa, de um debate em torno das qualidades das

opressão quotidiana focalizou a resistência contra a ditadura,

mulheres, designado em França como «Querelle des Femmes».

tendo sido assassinadas mulheres por não seguirem as nor­

De Christine de Pizan a Olympe de Gouges, numerosos autores

mas vestimentárias ou condenadas a prisão por dançarem em

e autoras defenderam a igual capacidade intelectual da mulher

público. As minorias étnicas e as camadas sociais mais baixas

e, em muitos aspetos, a sua superioridade sobre o homem.

têm ainda um peso enorme entre os excluídos do desenvolvi­

O direito de voto feminino resultou de um processo tar­

mento económico. A função da escola de promover a ascensão

dio, equivalente ao bloqueio de todos os homens considerados

social ficou relativamente estagnada nos últimos 30 anos. O pro­

dependentes, sem meios financeiros próprios, que definiu o sis­

blema do mérito está enleado nos processos de reprodução social

tema político censitário europeu do século xix. O movimento

das elites. O direito à educação, um dos grandes princípios dos

das sufragistas adquiriu uma nova dinâmica na passagem do

direitos humanos, está ainda por realizar plenamente, enquanto

século xx, tendo a Primeira Guerra Mundial desempenhado um

a ação afirmativa em favor das minorias demora o seu tempo a

papel importante no acesso das mulheres ao voto em diversos

dar frutos. O direito ao controlo sobre o próprio corpo tem sido

países europeus, embora caiba ao grão-ducado da Finlândia a

afirmado, mas encontra-se agora ameaçado nos Estados Unidos.

primazia, em 1907. Foi notado o trabalho feminino de assistên­

As minorias de comportamento sexual alternativo, desig­

cia aos militares em combate e na retaguarda em substituição

nadas como LGBT, que sempre existiram no passado sob cons­

dos recrutas. A luta pelo direito de voto feminino no Brasil já

tante perseguição, conseguiram nos últimos 40 anos afirmar os

tinha sido lançada na década de 1880 e acabou por ser obtido

seus direitos e romper com o estigma a que estavam em geral

em 1931. Em Portugal a espera foi ainda maior: esse direito só

reduzidas. A dignidade humana foi alargada à escolha de género

se concretizou em 1968.

e ao direito de assumir formas não convencionais e não binárias

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de comportamento sexual. O casamento homossexual foi aceite

em diversos países e o acesso à adoção de crianças começa a expandir-se. Ainda há um longo caminho a percorrer na maior parte do mundo, mas a situação é francamente mais aberta,

embora com fortes ameaças de retrocesso.

Descolonização O processo de descolonização, entendido aqui como a aquisi­ ção de independência política pelas colónias, foi um processo

violento, tal como tinha sido o processo de colonização e de manutenção das colónias por períodos longos pelas entida­

des imperiais. Esse processo decorreu em diversas etapas: a) o ciclo de independências do Novo Mundo, da Revolução Americana (1775-1783) às guerras de independência na América espanhola nas décadas de 1810 e 1820, fenómeno

prolongado nos Balcãs pelo declínio do Império Otomano;

b) o ciclo de independências na Europa durante e a seguir à Primeira Guerra Mundial; c) o colapso dos impérios europeus e japonês na sequência da Segunda Guerra Mundial, que se

prolongou da década de 1940 à de 1970; d) a desagregação do

Império Soviético, que ainda tem sequelas. Este processo é aqui considerado à luz dos direitos humanos, já que o direito

à autodeterminação dos povos foi inscrito na carta funda­ dora das Nações Unidas em 1945. Devemos dar crédito a Paul Gordon Lauren por ter chamado a atenção para a importância

dos direitos humanos no processo de independência das coló­

nias. Fabian Klose aprofundou esta dimensão quando estudou

as guerras de independência no Quénia e na Argélia, expondo as atrocidades cometidas pelos poderes coloniais e o discurso

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internacional sobre os direitos humanos que sustentou as lutas

nacionalidade. Esta constituição, assim como a americana, ser­

de libertação.

viram de guia para as futuras constituições da Península Ibérica

As independências do Novo Mundo definiram-se pelo pro-

e dos Estados independentes da América Latina, embora com a

tagonismo das elites de origem europeia, que não queriam con­

introdução de adaptações e restrições. O protesto de populações

tinuar a ser subjugadas por pactos coloniais que favoreciam as

indígenas, que se sentiram arredadas do processo de indepen­

metrópoles, nomeadamente através de impostos e do monopó­

dência, fez-se sentir desde o início, sobretudo com a revolução

lio de comércio. Na Declaração da Independência dos Estados

de Hidalgo é Morelos no México na década de 1810. Os direitos

Unidos, aprovada pelo Congresso em 1776, lemos no primeiro

dessas populações levaram tempo a ser reconhecidos e prote­

parágrafo que todos os homens são criados iguais, com um

gidos, e são ainda hoje objeto de conflito.

direito inalienável à vida, à liberdade e à procura da felicidade.

O único caso de revolução levada a cabo por escravos e

A influência de Rousseau é manifesta. Contudo, esta declaração

emancipados contra o controlo da elite branca foi a de Saint-

dirigia-se aos homens brancos. A população de escravos conhe­

Domingue, ou Haiti, entre 1791-1804. Obtiveram a indepen­

ceu uma emancipação limitada nos estados do Norte, tendo

dência, mas com enormes custos económicos e sociais, não só

sido o seu estatuto mantido nos estados do Sul; a emancipação

pela devastação provocada pela revolta e pela guerra contra o

proclamada no final da Guerra Civil (1861-1865) deu lugar a

poder colonial francês, mas também pela indemnização esma­

uma reconstrução falhada e à segregação dos afro-americanos

gadora imposta pelo governo francês em 1825, que só terminou

até ao movimento cívico da década de 1960. Os índios, entre­

de ser paga em 1947. A indemnização tinha como contrapartida

tanto, eram considerados estrangeiros, sem acesso a direitos

o reconhecimento da independência e o fim do isolamento do

civis, situação só superada de forma parcial em 1924 com o

Haiti, mas teve um enorme impacto na capacidade económica

reconhecimento da cidadania.

e financeira do país, que continua a conhecer instabilidade

A Constituição de Cádis de 1812 foi redigida por liberais

política e uma fraca institucionalização.

protegidos pela armada britânica numa Espanha ocupada pelas

As independências no Novo Mundo, embora dirigidas em

tropas napoleónicas. A constituinte congregava representantes

quase todos os casos pelas elites brancas, registaram um enorme

das colónias. O texto daí resultante foi o mais inclusivo da época:

número de mortos dada a reação dos poderes coloniais, que

a nacionalidade foi reconhecida a todos os espanhóis e indíge­

enviaram tropas e procuraram recuperar o domínio político.

nas do Império Espanhol; a população escrava ficou excluída da

Participaram escravos nos dois lados da guerra, procurando

nacionalidade, enquanto a população livre de origem africana

afirmar os seus direitos e obter a emancipação, o que ocorreu em

tinha de postular processos individuais de reconhecimento da

diversas ocasiões. Na América Latina, a abolição da escravatura

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foi alcançada durante as guerras de independência em diversos

nações subjugadas. Resultou deste processo de sucessiva des-

países, mas em Cuba e no Brasil a abolição da escravatura só

colonização a concentração das atenções políticas nos territó­

ocorreu no final da década de 1880.

rios da Anatólia e da Trácia por parte dos nacionalistas turcos.

O declínio do Império Otomano ao longo dos séculos xvm

A Primeira Guerra Mundial completou a desagregação do

e xix decorreu não só da expansão russa, mas também dos pro­

Império Otomano e precipitou a implosão do Império Austro-

cessos de emancipação dos sérvios, dos gregos, dos búlgaros e

Húngaro. A derrota da Alemanha conduziu à partilha das suas

dos albaneses, que implicaram sucessivas revoltas anuladas

colónias em África e na Ásia por Inglaterra (ou pelos países da

por uma repressão sangrenta. A independência grega foi reco­

Commonwealth, como a Austrália e a África do Sul) e por França,

nhecida em 1830, após dez anos de uma guerra que acabou por

não tendo havido uma alteração significativa do estatuto desses

envolver os poderes europeus; os sérvios, que tinham criado uma

territórios. A derrota do Império Austro-Húngaro foi decisiva

situação de independência de facto em 1803-1813, precisaram

para o nascimento de novos países, cujas nacionalidades recla­

de sucessivas revoltas e de períodos de autonomia até obterem

mavam a autonomização política há muito tempo: a Hungria,

a independência em 1878. Os búlgaros obtiveram a institucio­

a Roménia, a Checoslováquia e a Jugoslávia, união dos eslavos do

nalização da autonomia em 1878, até declararem a independên­

Sul, criada em 1918 e recriada em 1946 com a Sérvia, a Croácia,

cia formal em 1908, aproveitando um momento de fraqueza do

a Eslovénia, a Bósnia, a Macedónia e Montenegro. Os territórios

Império Otomano. A independência da Albânia foi declarada

do Tirol do Sul, de Trieste e da ístria foram igualmente perdi­

em 1912, no âmbito das Guerras dos Balcãs, mas boa parte do

dos, e a Áustria ficou reduzida às dimensões atuais. A Europa

território reclamado não foi aceite pelas potências europeias;

Ocidental foi igualmente tocada pelo processo de descoloniza-

por pressão da Rússia, o Kosovo foi entregue à Sérvia.

ção, com a independência da Irlanda em 1922, após séculos de

Importa salientar que esta guerra permanente, resultante

luta pela libertação. Os seis condados do Norte, então dominados

da expansão russa e da libertação nacional nos Balcãs, implicou

pelos descendentes dos colonos protestantes, ainda permanecem

vastos movimentos de população: o Império Otomano foi redu­

no Reino Unido, mas conheceram um período de guerra civil; 0

zido de três milhões de quilómetros quadrados em 1800 para

estatuto político da região ainda não está resolvido.

1,3 milhões em 1913, tendo recebido entre seis e sete milhões de

O Império Otomano, que já fora reduzido ao longo do

refugiados muçulmanos durante esse período, oriundos sobre­

século xix, perdeu todos os territórios a sul e a leste da Anatólia

tudo do mar Negro e do Cáucaso. Entretanto, a repressão oto­

durante e após a Primeira Guerra Mundial, e correu o risco de

mana produziu dezenas de milhares de mortos e centenas de

ver a própria Anatólia dividida, não fosse a reação nacionalista

milhares de refugiados nos territórios reclamados pelas diversas

dirigida por Kemal Ataturk em 1919-1922. A dinastia AI Saud,

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que iniciara um processo de conquista e agregação de territórios

a Ásia Central. A política anterior de relativa autonomia para

na Península Arábica nas primeiras décadas do século xx, rom­

as repúblicas federadas foi retomada por Krutchov, mas as ten­

peu a relação de dependência com o Império Otomano em 1918.

sões políticas não deixaram de se fazer sentir.

A Liga das Nações legitimou o mandato de França no Líbano e

Nesta conjuntura, embora a violência da descolonização

na Síria (desenhados nesse período), que só se tornaram inde­

se tenha imposto por via da resistência das potências coloniais,

pendentes depois da Segunda Guerra Mundial, enquanto o Reino

verificou-se uma interessante alternativa. A estratégia de deso­

Unido ficou com mandato sobre o Iraque, que se tornou inde­

bediência civil não violenta, concretizada pelo não-pagamento

pendente em 1932.

de impostos, pelo incumprimento da lei e pela recusa de qual­

O final da Segunda Guerra Mundial, que envolveu tropas

quer serviço ao governo, fora promovida pelo anarquista cristão

recrutadas nas colónias europeias, descontentes com a sua con­

Tolstói (1828-1910). A base do raciocínio encontra-se no ensaio

dição subordinada, criou finalmente um ambiente conducente

de Étienne de la Boétie (1530-1563) sobre a servidão voluntá­

ao princípio da autodeterminação dos povos. Este princípio

ria, onde o autor considera que todos os regimes despóticos

fora formalmente apoiado por Woodrow Wilson em 1917, mas

necessitam da colaboração das populações dominadas. Se essas

o presidente americano não considerava que os africanos, por

populações recusassem qualquer forma de serviço ou de cumpri­

exemplo, estivessem em condições de o exercer. A adoção do

mento da lei, o despotismo acabaria por cair. A aplicação desta

mesmo princípio por Lenine levou a diferentes consequências

estratégia no caso da Rússia revelou-se inadequada, mas a sua

na União Soviética, pois adaptava-se bem à rejeição do pas­

transmissão a Gandhi, que se correspondeu com Tolstói, acabou

sado imperial czarista baseado na russificação. A estratégia

por se revelar frutífera. A prática da desobediência não violenta

de reconstituição do império no quadro soviético passou pela

no Sul da Ásia não trouxe resultados imediatos, mas a partici­

valorização e pelo apoio das nacionalidades na década de 1920

pação de tropas coloniais na Segunda Guerra Mundial e a onda

e em parte da década seguinte, em troca de lealdade para com

de emancipação dos povos coloniais que se seguiu tornaram a

o centro político. A partir de 1936 a política das nacionalidades

posição britânica insustentável. A utilização da mesma estra­

de Estaline tornou-se mais rígida, agravada pelo Pacto Molotov-

tégia da desobediência civil não violenta advogada por Martin

Ribbentrop de 1939, que justificou a invasão russa das repúblicas

Luther King nos Estados Unidos na luta pelos direitos civis da

bálticas, de parte da Polónia e das regiões ocidentais da Ucrânia

população afro-americana acabou igualmente por dar os seus

pertencentes à Polónia e à Roménia em 1939-1940. Durante a

frutos na década de 1960, face ao agravamento da Guerra Fria

guerra, certas etnias passaram a estar sob suspeita; em 1944,

e ao incontornável argumento de os líderes do chamado mundo

os tártaros da Crimeia foram objeto de emigração forçada para

livre oprimirem a sua própria população.

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Esta estratégia tinha dois pressupostos: a firmeza da ação

Mundial. Seria só na década de 1950, particularmente com a

coletiva de desobediência e a sensibilidade de parte da maio­

conferência de Bandung, que o Movimento dos Não Alinhados,

ria opressora ou do poder colonial. Tratava-se de envergonhar

dirigido pela índia, pela Indonésia e pela Jugoslávia, se desen­

a parte dominante com um comportamento que não podia ser

volveu como terceira via face aos dois blocos (comunista e capi­

acusado de violento e que expunha as contradições do sistema

talista) da Guerra Fria. Esse movimento reforçou o direito de

de valores dos próprios opressores. Nos dois casos aqui men­

autodeterminação dos povos e criou condições para o seu apoio

cionados, tanto a população norte-americana como o poder

político e financeiro.

britânico tinham saído de uma guerra contra o imperialismo

nazifascista, virando-se em seguida contra a emergência de

A resistência do poder colonial britânico, que aceitara a derrota na Ásia do Sul mas tentara manter posições em África,

regimes comunistas. Os valores de democracia e tolerância da

conduziu a conflitos armados, sobretudo no caso do Quénia,

suposta sociedade livre eram incompatíveis com a perpetuação

onde a chamada Revolta dos Mau-Mau (1952-1956) suscitou

de racismo e colonialismo, ou seja, com a opressão e a gestão

uma feroz repressão. A situação na Indonésia foi igualmente

de sociedades contra a vontade indígena. O próprio conceito

grave do ponto de vista humanitário. À declaração de indepen­

de sociedade colonial governada por colonizadores alheios às

dência, em 1945, seguiu-se a guerra de recuperação dos holan­

populações locais tornara-se obsoleto.

deses, em 1946-1949, apoiada pelos britânicos. O número de

O direito dos povos à autodeterminação e à emancipação

mortos aumentou exponencialmente, mas a determinação dos

fora imposto pela Revolução Haitiana e difundido em diversos

indonésios acabou por se impor. A posição de França foi igual­

contextos da luta dos afro-americanos. Os congressos pan-afri-

mente violenta na resistência ao processo de independência do

canos organizados desde o final do século xix, onde William Du

Vietname. A derrota final dos franceses em 1954 em Dien Bien

Bois e outros ativistas afro-americanos participaram com os

Phu selou a retirada francesa do Vietname, embora tivessem

seus colegas africanos, reiteraram o mesmo princípio, no que

deixado um Estado suportado pelo Ocidente no Sul.

foram acompanhados pelos congressos pan-asiáticos e pan-

A história colonial de França conheceu outro desastre ime­

-árabes. Estes congressos criaram um quadro de discussão e de

diatamente a seguir com a Guerra da Argélia, em 1954-1962.

difusão de ideias que favoreceram a criação de partidos antico-

Ali viviam cerca de 1,5 milhões de europeus. A recusa de nego­

lonialistas, embora o caso da Ásia fosse mais complexo, dada a

ciação conduziu a uma escalada do conflito contra o movi­

desconfiança face ao Japão, cujos projetos imperiais próprios

mento de libertação argelino que assumiu proporções de uma

começaram a projetar-se na Coreia e em seguida na China, para

guerra não declarada com a população civil. Foi nesse conflito

se alargarem ao Sudeste Asiático durante a Segunda Guerra

que os direitos humanos assumiram uma feição decisiva, pois

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os nacionalistas denunciaram todos os atentados franceses

vietnamita. A opinião pública americana rejeitou a Guerra do

contra a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal

Vietname, contribuindo para acabar com o conflito em 1973.

dos Direitos Humanos. As execuções de presos, a detenção de

Dois anos mais tarde, o país seria unificado.

cidadãos sem culpa formada, a tortura infligida aos detidos e

A primeira e última potência colonial europeia, Portugal,

o assassínio arbitrário de homens e mulheres passaram a fazer

vivia sob ditadura, o que tornava inviável o conflito entre valores

parte das denúncias contra as práticas das autoridades coloniais.

democráticos na metrópole e práticas violentas nas colónias que

Não podia deixar de se fazer o paralelo com as práticas

atormentava a opinião pública em Inglaterra, em França, nos

nazis na Segunda Guerra Mundial, ampliado pelos escritos sobre

Países Baixos ou na Bélgica. A censura estava instalada e a crí­

a psicopatologia colonial de Frantz Fanon, um psiquiatra origi­

tica da política colonial não tinha condições para se manifestar

nário da Martinica que viveu na Argélia como médico e apoiou

em público. O primeiro aviso veio da União Indiana, que deci­

a Revolução Argelina. Neste conflito de valores, os ideais huma­

diu ocupar as colónias portuguesas de Goa, Damão e Diu, face

nitários e de defesa de direitos foram usados de forma extensiva

à recusa de negociação do regime de Salazar. A ação dos movi­

pelos argelinos. Foi o general De Gaule quem pôs um ponto final

mentos de libertação em Angola, na Guiné e em Moçambique

nas atrocidades coloniais, dada a impossibilidade de sustentar

teve como resposta uma guerra colonial prolongada, de 1961 a

um conflito destituído de uma base de valores e com uma lógica

1974, que se saldou em dez mil militares portugueses mortos,

política contrária aos ideais democráticos da república.

em nove mil desertores, em 45 mil guerrilheiros e indígenas

Entretanto, no Vietname, a república democrática criada

mortos, e em mais de meio milhão de refugiados. A guerra con­

no Norte procurava a unificação do país, tendo a guerrilha Viet

duziu à Revolução do 25 de Abril de 1974 em Portugal e à inde­

Minh estendido a sua ação para o Sul, o que motivou a inter­

pendência das colónias.

venção dos Estados Unidos em 1965. Tratou-se do maior con­

Estes processos de descolonização permitiram a criação

fronto entre os dois blocos (comunista e capitalista) a seguir à

de mais de cem novos países, que passaram a fazer parte das

Guerra da Coreia. A cobertura jornalística do conflito acabou

Nações Unidas, respondendo ao princípio de autodeterminação

por expor a prática de crimes de guerra por parte dos america­

dos povos. Os custos foram pesados, com o sacrifício de muitas

nos, com a utilização de napalm e desfolhantes para arrasar a

vidas indígenas, a migração de populações, a perda de vidas

floresta e prevenir a guerrilha, além das detenções e execuções

das tropas coloniais e o regresso da esmagadora maioria das

arbitrárias. O bombardeamento regular das cidades do Norte

populações colonizadoras às metrópoles. Nalguns casos essas

pelos navios de guerra americanos completava o quadro neo­

populações não tinham já qualquer relação familiar no país

colonial de intervenção que não conseguiu subjugar a vontade

de origem, como os europeus de terceira geração na Argélia,

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enquanto noutros, como no caso português, tratava-se em boa

enorme diversidade de populações locais integradas pela cen-

parte da primeira geração, encorajada pelo regime salazarista a

tralidade de Moscovo e o controlo indireto dos países da Europa

emigrar para as colónias quando o processo de descolonização

Oriental que tinham sido ocupados pelas tropas russas no final da

de outros poderes europeus estava na fase final.

Segunda Guerra Mundial. Esse controlo indireto esteve patente

A aceitação da independência das colónias não foi linear.

na repressão das revoltas populares na República Democrática

O imperialismo económico que sucedeu ao imperialismo polí­

da Alemanha em 1953, na Hungria em 1956 e na Checoslováquia

tico motivou uma série de intervenções nos novos países inde­

em 1968. A tentativa de alargamento do Império Soviético nas

pendentes, como foi o caso do golpe militar no Irão em 1953,

décadas de 1970 e 1980, que levou à intervenção militar no

inspirado pelos serviços secretos norte-americanos e ingleses,

Afeganistão em 1979-1989, provou ser fatal. Os recursos do

destinado a reverter a nacionalização da indústria do petróleo.

regime revelaram-se diminutos para o esforço financeiro e

A mesma lógica ocorreu em 1956 com a ocupação do Canal de

humano imposto. O regime comunista colapsou, o que condu­

Suez por ingleses, franceses e israelitas, que procuravam rever­

ziu à desintegração do império.

ter a nacionalização da companhia exploradora do canal e afas­

Foi fulminante a recuperação da independência dos países

tar o presidente egípcio Nasser. A pressão internacional levou

da Europa de Leste após a Queda do Muro de Berlim em 1989,

desta vez a uma retirada humilhante. A invasão do Afeganistão

começando com as repúblicas bálticas da Lituânia, da Letónia

pelos Estados Unidos em 2001 teve o propósito de afastar do

e da Estónia. Os restantes países libertaram-se rapidamente da

poder os Talibãs, acusados de envolvimento nos ataques a Nova

dependência da União Soviética, registando-se a unificação da

Iorque e Washington. A retirada em 2021 expôs a inutilidade

Alemanha com o desaparecimento da República Democrática

do projeto, com enormes perdas humanas e meios financeiros.

Alemã, enquanto a Polónia, a Checoslováquia, a Hungria,

Em 2003, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, de novo

a Roménia, a Bulgária e a Jugoslávia romperam com o regime

em coligação, sob pretexto da ameaça de armas de destruição

comunista e encetaram a transformação institucional por via

maciça (nunca encontradas) resultou no descrédito de inter­

representativa. A Albânia, que passara a ser dependente da

venções humanitárias, ensaiadas anteriormente no Kosovo em

China, aproveitou a situação internacional favorável para rom­

1999 e na Líbia em 2011.

per igualmente com o regime comunista. A Jugoslávia (ou a con­

A implosão da União Soviética trouxe consigo uma nova

federação dos eslavos do Sul) acabou por implodir, com uma

vaga de descolonização. Neste caso tratava-se de um vasto

pesada guerra civil, marcada por sucessivos massacres de popu­

império territorial contínuo, envolvendo a Europa Oriental e

lações que levaram à discutível intervenção militar da NATO.

o Norte da Ásia até ao Pacífico, com o controlo direto de uma

Os países emergentes, a Eslovénia, a Croácia, a Bósnia, a Sérvia,

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Montenegro e Macedónia do Norte, encetaram alterações ins-

A Ucrânia escapou progressivamente ao controlo da

titucionais profundas. Todos estes países aderiram à NATO,

Rússia, dada a proximidade da Europa Ocidental e à prática

com a exceção da Sérvia, tendo obtido igualmente a integração

de eleições num quadro institucional relativamente repre­

na União Europeia ou encontrando-se em processo de adesão.

sentativo. A crescente perceção da Rússia como um país hos­

A desintegração da União Soviética em 1991 revelou-se

til levou a uma campanha interna favorável à adesão à União

complicada. A Bielorrússia, a Ucrânia, a Geórgia, a Arménia,

Europeia e à NATO. A rejeição de um tratado negociado com a

o Azerbaijão, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão,

União Europeia em 2013 por pressão da Rússia levou à Revolta

o Turquemenistão e o Uzbequistão declararam independên­

de Maidan, que provocou novas eleições. A invasão da Crimeia

cia, que foi reconhecida pela Rússia por tratados. Contudo,

pela Rússia em 2014 foi seguida pelo separatismo no Donbass.

a transformação institucional não foi imediata na maioria des­

A invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, em vio­

tes países. Emergiram conflitos internos, assim como guerras

lação de todos os tratados internacionais assinados pela própria

por territórios em disputa, como aconteceu entre a Arménia e

Rússia, é a última sequela de um processo de descolonização

o Azerbaijão. Ambos os países recorreram à Rússia para dirimir

que não foi aceite pelo atual regime russo. De novo encontra­

o conflito, criando uma nova relação de dependência. Noutros

mos o ciclo de guerra imposta a populações civis, com enormes

casos, conflitos internos provocados por revoltas favoráveis

perdas de vidas humanas, crimes de guerra (cidades arrasadas,

à democratização levaram ao apelo para a intervenção direta

assassínio de civis, violação de mulheres, corredores humani­

militar russa, como aconteceu na Bielorrússia e no Cazaquistão.

tários atacados, rapto e deportação de dezenas de milhares de

A tentativa russa de criar uma união económica com estes paí­

pessoas, torturadas e detidas em campos de concentração) e a

ses não foi completamente bem-sucedida, dada a emergência de

destruição sistemática das infraestruturas do país. As conse­

uma opinião pública maioritariamente favorável a uma aproxi­

quências climáticas da guerra fazem parte de um longo processo

mação à União Europeia na Bielorrússia e na Ucrânia. A tenta­

de contaminação do meio ambiente desde os tempos soviéti­

tiva de independência da Chechénia sofreu uma repressão brutal

cos, agora agravado pela ameaça de recurso ao arsenal nuclear.

em 1994-1996 e novamente em 1999-2009, com o assassinato

Completamos esta secção com uma referência à China, um

de sucessivos presidentes eleitos. A situação na Geórgia não

vasto território cujas populações foram integradas ao longo de

chegou ao mesmo ponto de invasão total e prolongada, mas as

milénios, embora um terço do atual território tenha resultado

regiões separatistas da Abecásia e da Ossétia do Sul, apoiadas

da expansão no século xviii. O caso da província de Xinjiang,

pela intervenção militar russa em 2008, expulsaram centenas

conquistada nesse período, ainda está longe de ser resolvido,

de milhares de georgianos num processo de limpeza étnica.

com a colocação de parte da população uigure em campos de

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trabalho e a migração de chineses de outras regiões para alterar

a sua composição étnica. A Mongólia reclamou a independên­

cia em 1911, no período da revolta republicana na China, tendo

reafirmado essa independência em 1924, sob proteção da União Soviética, estatuto que mantém até agora. Sorte diferente teve

Migrações internacionais

o Tibete, que igualmente proclamou a independência em 1911

mas acabou por ser anexado em 1950, no seguimento da con­

Portugal é um país com uma emigração estrutural desde o

solidação do poder pelo regime comunista na China.

século xvi, estimando-se 1,6 milhões de emigrantes de 1415 a

1822 (data da independência do Brasil), número notável por a população total ter variado de um a três milhões de pessoas, a maior emigração em termos absolutos e relativos do continente

europeu nesse período. A emigração continuou para o Brasil, registando um pico no período de 1880 a 1910, tendo surgido no século xix uma emigração significativa para os Estados Unidos, originária das ilhas atlânticas. A emigração para a Europa, sobre­

tudo França e Alemanha, ocorreu na década de 1960 e envolveu mais de um milhão de pessoas. A emigração para as colónias

de África, diminuta ao longo do século xix, só teve significado a partir da década de 1950 e, sobretudo, de 1960, justamente

durante a Guerra Colonial. A emigração não deixou de existir

nos últimos 50 anos, embora o caudal tenha diminuído. Neste

mesmo período verificou-se pela primeira vez o fenómeno da imigração, primeiro dos novos países independentes de África, em seguida do Brasil e de países da Europa de Leste, e mais recentemente do Reino Unido. Com a exceção dos anos de 2011 a 2016, os saldos migratórios são, de forma significativa, a favor da imigração. Registam-se agora mais de 700 mil residentes estran­

geiros numa população de 10,3 milhões. O caráter inclusivo

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da legislação é discutido, pois ainda há pessoas de ascendên­

1961. Os desequilíbrios económicos herdados do período colonial

cia africana nascidas em Portugal sem acesso à nacionalidade.

foram, nalguns casos, agravados pela apropriação de recursos

Os números globais da Organização Internacional das

por grupos de poder, enquanto ruturas políticas e económicas,

Migrações das Nações Unidas mostram a dimensão do fenó­

expressas por guerras civis, levaram a um fluxo de migração

meno: em 2020 verificavam-se 281 milhões de migrantes inter­

para as antigas metrópoles. O período pós-colonial é marcado

nacionais (excluindo as migrações internas de cada país), que

pela memória de um passado visto com lentes distintas pelos

representavam 3,6 % da população mundial. A diferença face a

antigos colonizadores e pelos colonizados, pela interiorização

1990 era significativa, pois havia então 153 milhões de migrantes,

da dominação ocidental, que marca a distância social entre eli­

que representavam 2,8 % da população mundial, enquanto em

tes políticas e populações locais, e pelos obstáculos à inserção

1970 se registavam 84 milhões de migrantes, 2,3 % da popula­

de minorias nas antigas metrópoles, minorias essas resultantes

ção total. As remessas dos emigrantes multiplicaram-se neste

de emigração fomentada por problemas políticos, económicos

período, atingindo agora 702 mil milhões de dólares, sendo

e ambientais nos novos países independentes.

os dois maiores destinatários a índia e a China. A índia foi o

As políticas de imigração dos países recetores não podem

maior país emissor de emigrantes, seguida do México, da Rússia,

deixar de ser relacionadas com o passado colonial e com as

da Síria e da China. Os maiores destinos migratórios foram os

sequelas do período pós-colonial em que vivemos. Tanto o

Estados Unidos, a Alemanha, a Rússia, a Arábia Saudita e o

direito de asilo como a livre circulação de pessoas (limitada à

Reino Unido. A Europa concentrava 87 milhões de migrantes

entrada e à saída dos respetivos países) estão consagrados na

internacionais, a par da Ásia, com 86 milhões.

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O prin­

A divisão internacional do trabalho definida no período

cípio de asilo é replicado nas declarações de direitos produzi­

colonial tardio — com a produção de matérias-primas concen­

das em diversas regiões do mundo, nomeadamente na Carta

trada nas zonas periféricas do sistema capitalista, para onde

dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), que

foi transferida grande parte da produção industrial dos países

remete para a Convenção de Genebra de 28 de julho de 1951

desenvolvidos, dada a mão de obra barata — continua a pesar nas

e o Protocolo de 31 de Janeiro de 1967 da Comissão Europeia.

relações económicas internacionais. A independência das coló­

A livre circulação de pessoas, mesmo sob a forma limitada de

nias foi afetada pela batalha política de perpetuação dos inte­

1948 (então dirigida à prática de controlo de movimentos em

resses económicos das empresas ocidentais, que fomentaram

regimes ditatoriais), desaparece.

golpes de Estado e o assassinato de dirigentes, como foi o caso

A abertura europeia à imigração, em bom rigor do Sul para

de Patrice Lumumba na República Democrática do Congo em

o Norte do continente, existiu no pós-guerra como consequência

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do desenvolvimento económico e da necessidade de mão de obra,

A nova ameaça do nacional-imperialismo russo tem contribuído

tendo surgido a inflexão com a Crise do Petróleo de 1973-1975.

para colocar a extrema-direita numa posição defensiva, dados

O alargamento da União Europeia nas décadas seguintes pri­

os laços de solidariedade nacionalista recentemente criados.

vilegiou a livre circulação de pessoas entre os países-mem­

As políticas de inserção dos imigrantes têm sido objeto de

bros. Se existe alguma racionalidade nesta escolha, é evidente

debate entre sociólogos, antropólogos, demógrafos e cientistas

a herança de preconceitos na restrição ao fluxo de imigrantes

políticos. As barreiras estabelecidas à entrada continuam a ser

de áreas não cristãs, sobretudo do Norte de África e da Ásia

discutidas, mas dá-se um maior relevo às políticas de integra­

Ocidental. Como é normal em fluxos de migração, os obstáculos

ção. A palavra integração, privilegiada nas últimas décadas

são pouco eficazes e há sempre forma de os superar; a população

em vez das antigas noções de assimilação (ou redução a igual,

imigrante em França é, em grande parte, argelina. Na Alemanha,

no que diz respeito a crenças e valores) e de multiculturalismo

a grande crise surgiu com a aceitação de um milhão de refu­

(de aceitação de diferentes credos e culturas), usadas na década

giados sírios em 2015, uma atitude corajosa do governo de

de 1980, suscita de imediato alguma rejeição, pela sua conota­

Angela Merkel que lhe valeu pesadas críticas e a subida eleito­

ção com o passado colonial.

ral do partido de extrema-direita Alternative fiir Deutchsland.

A própria definição de imigração levanta problemas de polí­

A manipulação do sentimento xenófobo, supostamente

tica demográfica, pois daí decorre um potencial percurso de

mais virulento contra culturas não cristãs, pelos movimen­

naturalização e cidadania, ou seja, de integração plena do ponto

tos de extrema-direita na Europa teve um impacto inegável.

de vista jurídico. O caso britânico, estudado por Adrian Favell,

O regresso da ameaça de regimes fascizantes levou a uma maior

é fascinante. O que lá se define como imigrante corresponde a

retórica dos partidos liberais contra a imigração «desregulada»,

uma pequena fração do enorme contínuo do movimento de pes­

embora a capacidade efetiva de a conter seja diminuta, como

soas. Existem 66 milhões de residentes, dos quais 6,2 milhões não

atestam os números de imigrantes nos países mais desenvol­

britânicos (dados de 2020), enquanto a população irregular, não

vidos. A ideia de um patamar aceitável de 5 % da população

documentada, é estimada entre 150 mil e um milhão de pessoas.

imigrante acima do qual a xenofobia se faria sentir não tem

Os que pretendem asilo não passam de 35 mil por ano. Apenas

fundamento, variando de país para país. A política de memó­

10 °/o da população não é britânica, dos quais mais de metade são

ria do passado nazi na Alemanha tem dado os seus frutos na

europeus. Contudo, verifica-se uma população flutuante muito

contenção da extrema-direita. O problema está na ausência

maior, classificada como visitante — turistas, negociantes, estu­

ou na fraqueza de políticas de memória noutros países, como

dantes, trabalhadores especializados com vistos de longa dura­

é o caso de Portugal face ao passado ditatorial e colonialista.

ção. Esta população varia entre 35 e 40 milhões, ou seja, mais

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de metade da população nacional. Mas é invisível na política de imigração. Na verdade, a população definida como irregular corresponde a uma percentagem diminuta, mas é sobre ela que recai

toda a polémica. Trata-se de uma operação de classificação qUe torna a migração internacional visível e gerível, pois os números de entradas são sempre substancialmente superiores às metas

definidas pelo governo, que desistiu de as produzir.

Dada a corrente onda nacionalista, ocorre em diversos países a retração dessas políticas, chamemos-lhes de inserção.

O Brexit no Reino Unido foi dirigido contra os europeus, um caso típico de exclusão de imigrantes demasiado competitivos

a vários níveis, dos canalizadores aos diretores executivos de grandes empresas. Um dos traços explorados pelos apoiantes do Brexit foi o difuso receio de competição por benefícios sociais

entre as camadas inglesas mais desfavorecidas. A divisão face à

União Europeia percorreu todas as classes sociais, mas a explo­ ração da recusa de imigrantes por uma parte da população, especialmente fora dos grandes centros urbanos, não deixa de ter consequências devido ao envelhecimento em curso. A forma

como imigrantes das antigas colónias das Caraíbas foram dis­

criminados no Reino Unido continua a ser debatida nos dias de

hoje, pois muitos não acederam à naturalização e à cidadania. A recusa de imigrantes oriundos de África e da Ásia confronta

um dos eixos das políticas de integração, a reunião de famílias,

enquanto a atribuição de vistos para trabalhadores especializa­ dos vem complexificar essa política. A política anti-humanista de transferência dos imigrantes considerados irregulares para o Ruanda resulta de escolhas políticas da direita nacionalista.

A forma de lidar com as minorias faz sempre parte de qual­ quer dinâmica política de construção do Estado. Já vimos como

essa construção foi feita, em grande medida, contra as minorias, excluindo-as ou subordinando-as. A crise do Estado-nação face ao processo de globalização, que se acelerou nas últimas déca­

das, talvez tenha sido anunciada cedo demais. Em situações de precariedade, como se tem vivido nos últimos anos, o Estadoprovidência regressa como a única forma de subsidiar empre­

sas e desemprego. A crise económica de 2008-2014 criou, com efeito, muito desemprego e provocou a diminuição do nível de vida de boa parte da população mundial. A recuperação dos anos seguintes esbarrou com a crise provocada pela pandemia de COVID-19, da qual ainda não estamos completamente livres,

agravada pela crise energética resultante da guerra na Ucrânia.

O problema é que, desde a década de 1980, se verifica uma dimi­ nuição do crescimento económico médio, discutindo-se o pro­

vável planalto de alguma estagnação a que chegou o sistema capitalista, não obstante o crescimento da China e da índia.

As crises recentes, sobretudo o bloqueio do movimento

de pessoas e bens criado pela pandemia em 2020, redundam

num aumento do nível de pobreza em todo 0 mundo, no cresci­ mento da desigualdade (com 1 %> dos mais ricos a apropriar-se

de boa parte do rendimento disponível) e na deterioração das condições de vida da classe média. A precariedade de emprego

agora abrange praticamente todas as classes sociais, embora

as classes média e alta estejam mais preparadas para lhe fazer frente, dada a acumulação de ativos. E verdade que as décadas anteriores tinham visto uma redução significativa da pobreza

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e um aumento geral da riqueza, ainda que sem a correspon­

novos países independentes para as antigas metrópoles há tam­

dente distribuição. A desigualdade social no mundo diminui,

bém o fator da língua e do conhecimento cultural. A inserção na

mas aumenta dentro de cada país.

estratificação social dos países de destino relaciona-se com a

Nesta equação não tem sido contemplado o aumento expo­

capacidade de negociação face a preconceitos locais, com o acesso

nencial das aspirações da população do mundo. O confronto

à educação e com a promoção efetiva das gerações seguintes.

entre aspirações e realidades convida populações insatisfeitas a

Em resumo, a livre circulação de pessoas no mundo é um

partirem, pois não encontram forma de melhorar a sua situação.

ideal que está longe de ser partilhado por um grande número

As populações que partem são aquelas que têm, apesar de tudo,

de pessoas dos países desenvolvidos e conhece restrições legais

alguns meios para enfrentar viagens, extorsões de redes ilegais

em todas as nações. Contudo, o bloqueio à imigração conhece

de migração e dificuldades no país de acolhimento. Não são os

limites, pois, se existe necessidade económica, o movimento

mais pobres. E são geralmente jovens. A má imagem que os imi­

de pessoas não tende a diminuir. O respeito pelos direitos

grantes têm na imprensa não contempla o seu impacto positivo

humanos é confrontado pelo tráfico de migrantes, pelas máfias

em qualquer economia, como comprovam inúmeros estudos,

locais de exploração de trabalho clandestino e pelas políticas

enquanto o envelhecimento de populações na Europa põe em

de Estado que se tornam cada vez mais perversas, nomeada­

risco o pagamento de reformas em sistemas de segurança social

mente com a deportação de imigrantes para o Ruanda por

sobrecarregados no futuro. A imprensa ignora igualmente o

parte do Reino Unido.

papel das redes ilegais e das máfias locais na exploração do

trabalho imigrante. A difamação dos imigrantes facilita a reti­ rada de direitos, nomeadamente o acesso à saúde, à habitação, à educação, à naturalização e à cidadania.

Em todos os processos de migração existe o estímulo de saída e a atração de entrada. Os fatores que levam as pessoas a

abandonar o seu país de origem têm a ver com más condições

de trabalho, o reduzido acesso ao mercado fundiário, situações

de guerra, conflitos étnicos ou sociais que põem em risco a sua

segurança, e as alterações climáticas (este é um dos fatores em crescimento). Os fatores de atração consistem em melhores

oportunidades de trabalho e promoção social. Na migração dos

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Direitos económicos e sociais A inserção destes direitos na Declaração Universal de 1948

pressupôs a assunção de responsabilidades do Estado numa área extremamente ampla de intervenção económica que não era óbvia para todos. E verdade que a Crise de 1929 tinha acelerado a intervenção do Estado de forma radical nos Estados Unidos com o New Deal, que reformou o sistema financeiro, garantiu o mínimo de segurança social, incentivou a sindicalização dos

trabalhadores, apoiou os desempregados, os trabalhadores imi­

grantes e os agricultores, lançou programas de obras públicas,

e aumentou os impostos dos ricos e das grandes empresas. Não se tratou de um programa socialista, longe disso, mas contribuiu

para limitar o desequilíbrio entre capital e trabalho na partilha

do rendimento nacional, criando condições para o relançamento económico. Na Escandinávia, a experiência social-democrata

estava em pleno na década de 1930, tendo recebido uma con­ siderável atenção no pós-guerra, dado o maior equilíbrio entre

capital e trabalho, os dispositivos fiscais destinados à redistribuição de riqueza, as fortes associações sindicais, a economia mista de mercado e a mobilidade social estimulada por um sis­

tema de educação eficaz, tudo isto regulado por um Estado social

interveniente. Nos anos 30, em França, a Frente Popular tinha

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criado as férias pagas perante os grandes protestos patronais,

O que é interessante na Declaração de 1948 é justamente a

sendo este princípio integrado na Declaração Universal de 1948.

inscrição do direito ao trabalho, à livre escolha de emprego e ao

Entretanto, estava em marcha a criação de democra­

salário igual para trabalho igual. Estes direitos eram alargados

cias populares nos territórios ocupados pela União Soviética.

aos padrões mínimos de condições de vida, especificando-se o

A recusa da economia de mercado e a opção por uma eco­

direito à alimentação, à habitação, ao vestuário e aos cuidados

nomia planificada pelo Estado faziam parte do programa.

médicos. Consagrou-se igualmente o direito à segurança social,

Rejeitava-se a ideia de alguma medida de autorregulação do

ao descanso, ao lazer com férias pagas e à proteção em casos de

mercado, enquanto o modelo de intervenção social-demo­

doença ou desemprego, de viuvez, de incapacidade ou de idade

crata, que teria tanto sucesso na Escandinávia, era rejeitado

avançada. O direito à sindicalização — que produzira enormes

como uma variante do capitalismo. O modelo soviético impli­

batalhas políticas e confrontos com a polícia, mobilizada pelo

cava a assunção de todo o poder por partidos comunistas que,

patronato em diversos países — estava consignado. Finalmente,

na maior parte dos casos, tinham pouca expressão social.

o direito à educação para todos, gratuita nas etapas elementares,

Tratou-se de construir regimes comunistas com uma fraca

bem como o direito à participação na vida cultural da comuni­

base social de apoio, processo garantido pela presença mili­

dade e o respeito pelos direitos de autor, completam este vasto

tar soviética. O caso da Jugoslávia, com um passado recente

conjunto de direitos económicos e sociais. A propriedade inte­

de guerrilha antinazi, veio a revelar-se particular, com o país

lectual, que envolve o reconhecimento das patentes industriais,

a integrar o Movimento dos Não Alinhados. Em contraste, na

transformou-se no pilar das relações comerciais internacionais.

zona de influência ocidental, verificou-se um forte movimento

A Declaração Universal representou um ganho extraordi­

comunista na Grécia, também com um passado de resistência

nário para os trabalhadores no que diz respeito ao quadro legal

antinazi, que levou à guerra civil de 1944-1949, e que acabou

em que se movem. A maior parte destes direitos, 20 anos antes,

subjugado com intervenção da NATO. Nos países do Leste

não estavam reconhecidos, muito menos implementados, na

europeu, o Estado passou a regular toda a economia e a ativi­

maioria dos países. A lição da crise económica de 1929 parece

dade social, com base na garantia de trabalho para todos, na

ter sido assimilada, mas não há dúvida que a ameaça comunista

reduzida iniciativa privada e no baixo regime de produtivi­

desempenhou um importante papel no reconhecimento de boa

dade. O sistema passou a ser conhecido por uma frase irónica:

parte dos direitos. A Declaração foi cuidadosamente formu­

«O trabalhador finge que trabalha e o Estado finge que paga.»

lada para acentuar a livre escolha de emprego, a livre atividade

Em todo o caso, a garantia de emprego teve impacto, dadas

cultural e o respeito pelos direitos de autor, elementos decisi­

as circunstâncias de desemprego geradas pela Crise de 1929.

vos de uma economia de mercado e de uma democracia liberal

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baseada na iniciativa privada. Contudo, a contrapartida de todos

minoria da população sem acesso ao seguro privado, situação

estes direitos é o aumento exponencial do dever do Estado de

apenas minorada com o Obamacare, quase 70 anos depois da

velar pela sua implementação. A Declaração de 1948 das Nações

Declaração Universal.

Unidas afirmava-se, em grande medida, como um projeto ou

O crescimento da precariedade do emprego e a con­

um guia de realização social que previa uma maior intervenção

sequente crise do Estado-providência nos últimos 40 anos

do Estado na regulação do mercado e da atividade empresarial.

geraram novos conflitos sociais, enquanto o declínio da sindi-

Essa intervenção, no quadro de uma economia de mercado,

calização tem vindo a erodir as bases do sistema, que depen­

implicava a recolha de impostos que pudesse abranger a maioria

dia da capacidade de negociação do trabalho face ao capital.

da população — coisa que ainda hoje está por implementar em

Verificaram-se, contudo, alguns desenvolvimentos, sobretudo

grande parte dos países —, de modo a obter uma base financeira

do princípio de salário igual para trabalho igual. A presença

para a segurança social e a redistribuição de rendimento com

crescente das mulheres no mercado de trabalho formal (pois

benefícios sociais para os mais desfavorecidos. O debate em

o trabalho doméstico tradicional não deixa de ser trabalho e

torno do tipo de impostos, únicos ou proporcionais à riqueza,

deveria ser remunerado) tem vindo a impor o reajustamento

ainda hoje está em cima da mesa, com opiniões favoráveis ou

dos salários. Têm vindo a ser lançadas em diversos países ini­

contrárias aos interesses dos segmentos mais ricos da popula­

ciativas de reavaliação da estrutura salarial, a fim de corrigir

ção. A reação ideológica patronal baseia-se na ideia segundo a

os preconceitos subjacentes que favorecem os trabalhadores

qual o excesso de impostos sobre o rendimento do capital redu­

masculinos. A percentagem de mulheres entre os gestores de

ziria a possibilidade de investimento. Os estudos das últimas

empresas e entre a classe política tem sido igualmente escruti­

décadas desmentem esse pressuposto, pois na maior parte dos

nada, surgindo iniciativas de imposição de quotas para corrigir

casos a redução dos impostos dos ricos não resulta em investi­

desequilíbrios profundos e persistentes.

mento produtivo (cf. os economistas Anthony Atkinson, Joseph

Não são só as mulheres as sacrificadas por um sistema

Stiglitz, Paul Krugman ou Thomas Piketty). O declínio radical

controlado por homens. Em países com uma forte presença

dos níveis máximos de impostos, que nos Estados Unidos atin­

de minorias, está em causa o acesso dessas minorias à educa­

giram os 80 °/o dos rendimentos dos indivíduos mais ricos, mos­

ção para se libertarem da espiral de pobreza, como sucede nos

tram como a luta ideológica foi ganha por grupos de interesse

Estados Unidos com a minoria afro-americana que sucedeu à

naquele país. São visíveis as consequências na deterioração de

escravatura e à emancipação falhada a seguir à Guerra Civil de

infraestruturas de transporte e de educação. Mais grave tem

1861-1865. Embora a situação tenha conhecido avanços desde 0

sido a ausência de proteção em caso de doença para uma franca

reconhecimento dos direitos civis desta minoria na década de

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1960, ainda hoje os afro-americanos representam a vasta maioria

2010, por exemplo, enquanto a Ucrânia tinha mais de 20 asso­

da população prisional, apresentando os indicadores mais baixos

ciações LGBTQI+, a Rússia não tinha nenhuma. O debate em

de esperança média de vida e de acesso a tratamento médico.

torno do regime de maternidade e do direito dos homossexuais

O lançamento de iniciativas de discriminação positiva, isto é,

à adoção, por exemplo, tem sido uma das últimas batalhas do

de criação de quotas de acesso privilegiado ao ensino superior,

movimento.

visa atenuar a desigualdade herdada; este programa tem sido

A criação de uma sociedade digital, em que os dados indivi­

implementado com bons resultados noutros países, particular­

duais conhecem uma enorme expansão com o registo de todo o

mente no Brasil. As minorias de imigração recente padecem de

tipo de atividades — educativas, fiscais, profissionais, de saúde,

problemas semelhantes no acesso à educação e ao emprego. Em

de consumo ou de laços sociais —, levanta novos problemas de

França, por exemplo, a minoria de origem argelina tem melho­

proteção da integridade de cada indivíduo. O desenvolvimento

res resultados no sistema educativo do que outras minorias de

das redes sociais agrava este problema, dada a exposição das pes­

imigrantes, embora com um pior acesso ao emprego, do que

soas que os frequentam a insultos e a ofensas diários. A questão

resulta uma tensão social permanente.

da integridade pessoal coloca-se agora com uma enorme acui­

A emancipação da comunidade homossexual quanto ao

dade e dá origem a um novo tipo de processo judicial. O Estado

preconceito e a afirmação não binária de género passa por um

encontra-se novamente em causa, como detentor da vasta maio­

processo longo que não estava contemplado na Declaração de

ria dos dados pessoais, mas as escolas, as empresas e os hospitais

1948. Trata-se de um acesso a direitos que tem resultado de for­

privados, enormes recetores de dados, precisam de estabelecer

tes movimentos sociais, sobretudo nos países ocidentais, mas

parâmetros de controlo do acesso. Portugal teve já vários casos

que se espalha a países de África e da Ásia. A difusão do vírus

de transferência ilegal de dados: na Câmara Municipal de Lisboa,

VIH na década de 1980, inicialmente atribuído à comunidade

a identidade dos organizadores de manifestações contra regimes

gay, expôs os preconceitos então predominantes, tendo resul­

e ações de vários países era transmitida às embaixadas desses

tado num momento de viragem. A rejeição da exclusão social

mesmos países; o Instituto Nacional de Estatística contratou

por comportamentos sexuais alternativos está hoje em dia ins­

uma empresa norte-americana para o censo de 2021 que tem sido

crita nas normas internacionais, nomeadamente na Carta dos

acusada noutros países de fazer transferências maciças de dados

Direitos da União Europeia, embora o caminho de afirmação

pessoais. Estes casos foram penalizados pela Comissão Nacional

dos direitos, nomeadamente ao nível do acesso à educação e ao

de Proteção de Dados. O problema fundamental diz respeito

emprego, ainda esteja por garantir formal e informalmente em

ao conhecimento da lei e à implementação de parâmetros de

muitos países, incluindo no continente europeu. Na década de

confidencialidade no registo e na proteção dos dados pessoais.

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Este problema de conhecimento da norma é igualmente

exposição, que envolve competitividade a vários níveis, resul­

importante para prevenir os comportamentos e as atitudes

tam ou agravam-se psicopatologias. O respeito pelo direito de

racistas, condenados por lei. Portugal é um dos países europeus

decisão individual e de controlo do próprio corpo está em causa

com pior desempenho nas sondagens de opinião que se orga­

nestes e noutros casos. O alargamento da integridade individual

nizam neste domínio. Trata-se de uma falha grave do sistema

e a discussão das formas de a proteger vão continuar a estar na

de educação, que não divulga suficientemente a norma inscrita

ordem do dia, dada a complexidade crescente da sociedade.

na Carta Europeia dos Direitos Humanos, norma, aliás, aco­ lhida há mais de 40 anos pela legislação portuguesa. Os precon­ ceitos raciais produzem discriminação no acesso à educação,

ao emprego e à habitação, sendo inaceitáveis em quaisquer

circunstâncias. Criam divisões no seio da sociedade, geram um permanente mal-estar, têm incidência na estigmatização de indivíduos e bairros inteiros, bloqueiam a desejada mobili­ dade social e contribuem para a reprodução de desigualdades. Pior, o ódio racista mata, como já aconteceu diversas vezes em

Portugal, para não falar dos casos históricos extremos do geno­

cídio judaico perpetrado pelos nazis na Segunda Guerra Mundial

ou do linchamento de milhares de negros nos Estados Unidos

até meados do século xx. A integridade pessoal está também em causa no assédio

sexual, que perturba o desenvolvimento de jovens, intimida mulheres e envenena o ambiente de trabalho. A violência domés­

tica é outra dimensão que tem vindo a ser cada vez mais denun­

ciada, com um aumento dos casos de morte. A timidez judiciária na resolução dos numerosos casos denunciados, mas com pou­

quíssimos punidos, revela uma cultura de proteção da violência que não pode ter lugar na sociedade do século xxi. Vários estudos

mostram o poder das redes sociais entre os mais novos. Dessa

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Direitos ambientais A passagem ao Antropoceno em meados do século xx — ou

seja, a uma fase geológica definida pela intervenção humana,

que deixa marcas irremediáveis na natureza e a transforma de forma decisiva — trouxe o meio ambiente para a primeira linha dos direitos humanos. Os estudos sobre o impacto ambiental da atividade humana têm vindo a crescer exponencialmente

no último meio século, mostrando a poluição do ar, das águas,

do solo e do subsolo; a contaminação da comida a todos os níveis, com a transformação química da produção animal, que inclui

o uso de arsénico, metionina e antibióticos; a utilização siste­

mática de combustíveis fósseis altamente poluentes, que trans­ formam o regime sociometabólico; a produção de fertilizantes com gás natural; a utilização maciça de pesticidas, inseticidas,

rodenticidas e herbicidas; a difusão dos plásticos desagregados

em microplásticos, que contaminam os oceanos e as espécies

marinhas; o uso de chumbo na caça e na pesca; a chuva ácida como resultado da poluição. Numa palavra, as alterações cli­

máticas e a contaminação da natureza põem em causa a sobre­ vivência da espécie humana.

A perceção de uma natureza em alto risco, com danos já irreparáveis, é agora aceite pela maior parte da população depois de uma guerra ideológica suscitada pelos interesses

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económicos estabelecidos, baseados num modelo de desen­

como a poluição pelos plásticos (cuja proibição como embalagem

volvimento de exaustão e contaminação dos recursos. A sepa­

seria fácil de implementar em muitos casos) que envolve todo o

ração entre cultura e natureza, promovida na Europa desde o

planeta. O problema é transformar um modelo de crescimento

século xvii, é agora posta em causa. Noutras culturas ancestrais

extrativista, baseado na produção agrícola e pecuária barata,

de diversos continentes, a natureza é vista como algo que não

com uma elevada manipulação química voltada para o consumo

se distingue dos seres humanos, da qual se depende de forma

de massas, num modelo de desenvolvimento sustentável.

quotidiana e que precisa de ser utilizada com todo o cuidado a

Nestes direitos do ambiente estão inseridos os direitos de

fim de se evitar danos e garantir a renovação. A relação com os

comunidades que sempre viveram em harmonia com a natureza.

animais e com as plantas não é vista na perspetiva de extração e

Os direitos das comunidades indígenas da América Latina, por

produção, mas na de proteção e regeneração. A realidade hoje é

exemplo, têm vindo a ser reconhecidos e legislados, embora a

de destruição de numerosos ecossistemas; de desaparecimento

proteção desses direitos esteja ainda por ser implementada em

de numerosas espécies animais e vegetais; de redução radical das

muitos casos. A eclosão de movimentos sociais indígenas em

grandes florestas (como a Amazónia), que garantiam a captação

diversos países desta região teve um impacto político inegável,

do dióxido de carbono, a libertação do oxigénio, a estabilização

contribuindo para uma redefinição das dinâmicas de poder.

dos solos e a proteção da vida selvagem.

O movimento indígena veio reequilibrar essas dinâmicas, até

O direito do ambiente foi desenvolvido e estudado desde a

recentemente localizadas nas cidades, como se pode ver na

década de 1970, embora tenha conhecido um enorme impulso

Bolívia. Contudo, as conquistas obtidas estão ameaçadas e veri-

nos últimos decénios. A relação entre a sociedade e os ecossis­

ficam-se numerosos casos de retrocesso. A exploração ilegal da

temas está finalmente na ordem do dia, enquanto a redução dos

Amazónia, por exemplo, que se faz contra as reservas de índios

combustíveis fósseis está consagrada por legislação internacio­

e contra a legislação dos parques naturais, encontrou apoio

nal. A regulamentação das substâncias usadas na alimentação

político por parte das autoridades, sobretudo durante a presi­

dos animais desenvolve-se todos os dias, se bem que os atrasos

dência de Bolsonaro. Trata-se de uma verdadeira calamidade

acumulados sejam espantosos. Apenas um exemplo: a utilização

ecológica, que se processa impunemente com o assassinato de

de arsénico na comida da comida, ou seja, na alimentação dos

dirigentes indígenas, jornalistas e ativistas.

animais, só foi proibida nos Estados Unidos em 2015. A dissemi­

A criminologia verde (ver Michael J. Lynch) é uma área

nação de cereais transgénicos está sob escrutínio, enquanto se

distinta dos direitos da natureza, que estuda os atentados eco­

procura obter o controlo de pesticidas e fertilizantes. Igualmente

lógicos, nomeadamente de poluição, a extração desordenada,

grave é a contaminação pelo chumbo e por nanometais, bem

a contaminação da água, as cidades tóxicas e o tráfico da vida

108

109

selvagem. É verdade que o processo de desflorestação começou

para quem denunciar a guerra como uma atrocidade. Os terri­

há séculos com a exploração da madeira, a criação de plantações

tórios ocupados estão em processo de russificação, com depor­

de cana-de-açúcar ou de tabaco, em seguida com a produção

tações, nomeadamente de crianças, a separação de famílias e

da borracha e finalmente com a produção de soja. A mineração

a transformação da educação com manuais vindos da Rússia.

de prata utilizava o mercúrio, outro poluente. A contaminação

A Convenção de Genebra relativa à proteção de militares e civis

das águas tem igualmente uma longa história, nomeadamente

não é minimamente respeitada, e os corredores humanitários

com o tratamento dos couros. A caça para a obtenção de peles

são alvejados pelas tropas russas. Como se vê neste exemplo

de animais eliminou espécies e reduziu a vida selvagem. A pesca

concreto, há uma série de direitos que estão a ser sistematica­

extensiva começou a ter impacto no declínio das espécies mari­

mente violados.

nhas antes do século xx. O extrativismo dos impérios europeus,

que transcenderam fronteiras e criaram espaços interconectados, reduzindo a natureza a recursos para serem produzidos

e consumidos no mercado, foi estudado por Richard Grove. A recente invasão da Ucrânia pela Rússia criou novos

desafios ao direito do ambiente. A guerra dissemina metais e micrometais, aumentando de forma exponencial a poluição e a contaminação dos solos e das águas. A poluição gerada pela

indústria militar nunca foi quantificada pelas diversas agên­

cias, em parte devido à oposição dos Estados Unidos. É altura de atacar este problema, dado o impacto imediato da guerra.

A ausência de sensibilidade à poluição nuclear é outro dos escân­ dalos desta guerra; Chernobil foi ocupada temporariamente

por tropas russas que foram expostas à poluição envolvente e

ameaçaram criar um novo acidente nuclear pelo seu compor­ tamento descontrolado. A Carta das Nações Unidas, que proíbe a invasão de países, foi violada. O direito à vida é espezinhado

todos os dias. A Rússia proíbe no seu próprio país a classificação da invasão como tal e prevê a pena de prisão para quem o fizer e

110

m

Conclusão Os direitos humanos resultaram de movimentos sociais contra

práticas de privilégio, a exploração dos trabalhadores, expro­

priações arbitrárias, a crueldade de guerra, o colonialismo e o imperialismo, a opressão de minorias, massacres e migrações

forçadas. O repúdio pelo genocídio de seis milhões de judeus pela Alemanha nazi exprimiu os sentimentos humanitários da

larga maioria das populações do mundo. O reconhecimento da integridade de todos os cidadãos, incluindo as minorias,

desenvolveu-se em paralelo com o reconhecimento da invio­ labilidade dos Estados, inscrita na Carta da Nações Unidas.

O princípio da autodeterminação dos povos afirmou-se como a

grande alavanca da segunda metade do século xx para a redução da desigualdade política internacional. A justiça social, visada pelos direitos económicos e sociais, é outro grande princípio

que resulta do sistema normativo internacional promovido

pelas Nações Unidas. Estes princípios acolhidos pelos direitos humanos estão

longe de ser implementados e respeitados. A proteção do cida­ dão face ao Estado, que suscitou os primeiros enunciados dos

direitos humanos, está ainda hoje sob ataque em Estados opres­ sivos e terroristas, que não respeitam os direitos dos seus pró­

prios cidadãos, submetidos à censura, à detenção arbitrária e ao

113

I

assassinato político, excluídos de eleições livres, desempregados

mais retrógrados e opressivos favorecidos pela extrema-direita

por motivos políticos, privados de iniciativa, sem meios para

em todo o mundo. O efeito desta negação é o aumento da vul­

realizar o seu próprio desenvolvimento. As minorias vítimas

nerabilidade dos mais fracos face à prepotência e ao terror

de espirais de pobreza em diversos países, resultantes de pro­

praticado pelos mais fortes.

cessos históricos de tráfico de escravos, escravatura e trabalho

O desenvolvimento dos direitos ambientais nas últimas

forçado, de colonialismo e pós-colonialismo, ainda hoje aspiram

décadas resulta de uma nova sensibilidade face à destruição da

à justiça social. A tranquilidade de vida e de trabalho é violenta­

natureza que coloca em risco a espécie humana. O modelo de

mente destruída com invasões brutais e práticas de guerra que

desenvolvimento extrativista — que transforma a natureza num

ignoram todas as convenções internacionais de respeito pela

mero recurso para a produção e o consumo maciço, com uma

população civil e de tratamento digno dos militares envolvidos.

manipulação química que altera o metabolismo dos animais —

Neste quadro, considerar os direitos humanos como uma

reduz de forma radical a diversidade biológica, destrói os ecos-

retórica do imperialismo ocidental para obter um domínio inter­

sistemas e torna o planeta inabitável. Estes direitos visam criar

nacional ignora a luta de libertação das colónias, a denúncia das

um novo modelo de desenvolvimento sustentado, que recuse a

atrocidades cometidas pelos poderes coloniais, os direitos eco­

energia dos combustíveis fósseis, bem como a contaminação dos

nómicos e sociais obtidos por milhares de lutas de trabalhado­

mares e das águas, do solo e do subsolo, ou seja, de toda a cadeia

res em todo o mundo, a tentativa de garantir o futuro de novos

alimentar. As comunidades indígenas que sempre souberam

Estados contra as ambições territoriais de Estados imperiais ou

respeitar a natureza e proteger os ecossistemas estão justa­

imperialistas. Estes direitos foram, em grande medida, impos­

mente incluídas nestes direitos ambientais, que procuram evi­

tos contra os Estados Unidos e contra os poderes coloniais.

tar que as suas escassas conquistas sejam violadas pela intrusão

Existem certamente contradições entre ideais e realidades,

de garimpeiros, madeireiros ou agricultores nas suas reservas.

conflitos de interesses e interpretações divergentes dos direi­

A proteção dos dados pessoais é o último domínio de

tos humanos. Sempre existiram e existirão abusos políticos de

expansão dos direitos humanos face ao aumento exponencial

direitos humanos pelos poderes constituídos, que os invocam

das bases de dados de instituições públicas e empresas privadas,

de forma maliciosa e manipulativa. Mas esses direitos têm sido

nomeadamente as redes sociais, com informações detalhadas

apropriados, moldados e desenvolvidos pelos explorados e opri­

sobre as opções de vida, as preferências políticas, o historial

midos. A negação desta realidade histórica tem como objetivo

médico, a trajetória educativa, o perfil profissional, as informa­

nivelar os diferentes regimes políticos e as diferentes formas

ções bancárias e a identidade pessoal de praticamente todos os

de relações internacionais, produzindo a lavagem dos regimes

cidadãos. Estes dados podem ser utilizados fraudulentamente,

114

115

como instrumento de chantagem ou como forma de exclusão

no acesso à educação, ao emprego ou à promoção profissional.

Na sociedade de hoje, é crucial a criação de mecanismos segu­ ros e confidenciais de gestão destas bases de dados.

Posfácio

Norbert Elias sugeriu muito cedo, na década de 1980, a importância dos direitos humanos num mundo globalizado

como fator de proteção do indivíduo, das minorias, das comu­

Este livro resulta de um processo de aquisição de conhecimentos

nidades em permanente movimento, das aspirações do grande

que começou com a pesquisa histórica sobre o racismo. Nessa

número. Na luta pela redução da desigualdade, os direitos huma­

altura optei por uma abordagem de longa duração, das cruzadas

nos desempenham um papel importante e com consequências

ao século xx, que me permitiu observar as diversas conjuntu­

económicas, como temos vindo a sublinhar. A migração inter­

ras de interseção entre preconceitos relativos a descendência

nacional, na interseção da intervenção do Estado e dos meca­

étnica e ação discriminatória.

nismos de exclusão locais e regionais, revela os problemas de

O contexto histórico da Península Ibérica revelou a con­

desenvolvimento. As diversas formas de lidar com este assunto

versão forçada das minorias judaica e muçulmana, que foram

sensível poderão fornecer indicações sobre a maior ou menor extensão de direitos. É o caráter interligado e aberto dos dife­

em seguida discriminadas através da publicação de estatutos

rentes direitos que vai certamente prevalecer no futuro, como

cos e religiosos para estas novas minorias negava a integração

suporte das mudanças necessárias para a redução das desigual­

pelo batismo, sendo-lhes vedado o acesso a cargos munici­

dades e a afirmação da justiça social no seio de cada sociedade

pais, ordens religiosas e militares, universidades, confrarias

e entre sociedades.

e corporações.

de limpeza de sangue. A transferência de preconceitos étni­

O acesso à propriedade, à educação, a estruturas de tra­

balho e de representação constituíram critérios de aferição da

integração ou exclusão de minorias nos diversos continentes. Foi na parte sobre sociedades coloniais, capítulo sobre discri­

minação e segregação, que eu incluí uma secção sobre direi­

tos civis. Nessas páginas refleti sobre as formas complexas de inclusão e exclusão de maiorias colonizadas e transformadas em minorias no que dizia respeito a direitos. Tomei consciência de

116

117

que o acesso (ou não) a direitos formais ou informais estava na

foi justamente o protesto judiciário em Roma contra o proce­

base da minha pesquisa.

dimento das Inquisições ibéricas (sobretudo da portuguesa).

Em 2015, Fabian Klose convidou-me a fazer a keynote

Tornou-se evidente que os cristãos novos tinham desempenhado

lecture de um colóquio que ele organizou no Leibniz Institut

um papel importante na denúncia de formas de discriminação

fiir Europãische Geschichte, em Mainz, sobre «Humanity —

racial como base do procedimento penal inquisitorial.

a History of European Concepts in Practice from the ióth to

Entretanto, o fio de pesquisa sobre a produção da desi­

the 2oth Century». Aceitei, pois isso permitia-me desenvolver

gualdade foi reativado por Cátia Antunes, que me convidou a

aspetos não diretamente relacionados com o racismo que na

escrever um texto sobre o império português para o ejournal of

altura me interessavam, particularmente os fundamentos da

Portuguese History. Desenvolvi esse texto para uma comunica­

desigualdade social, que motivavam o meu projeto de pesquisa

ção no seminário do Max Planck Institut fur Rechtsgeschichte

de longa duração.

und Rechtstheorie, convidado por Thomas Duve e Luisa Stela

Aproveitei boa parte dessa pesquisa para elaborar um texto sobre as divisões da humanidade baseadas no preconceito de

Coutinho. Cruzei-me ali de novo com a cultura jurídica que

tanto me tem ajudado na minha pesquisa.

raça, na oposição entre escravo e livre, bárbaro e civilizado,

Passei o ano de 2021-2022 no Wissenschaftskolleg zu

e na construção de género. Esse texto, com autorização da edi­

Berlin, onde troquei ideias com outros juristas e com o sociólogo

tora original, inspirou três capítulos deste livro sobre direitos humanos.

Adrian Favell, especialista das migrações. As nossas conversas

Alarguei a minha investigação ao período contemporâneo

pesquisa sobre a história da desigualdade social no mundo,

quando Teresa Pizarro Beleza me convidou a apresentar uma

tendo escrito um texto inédito sobre a construção de género

comunicação ao colóquio que organizou sobre migrações; outros

que me ajudou a preparar o capítulo que escrevi para este livro.

compromissos impediram-me de publicar o texto no excelente volume que dali saiu.

Quando António Araújo me desafiou a publicar um livro na coleção «Ensaios» da Fundação Francisco Manuel dos Santos,

Entretanto, desenvolvi um projeto de investigação sobre os

com a qual já tinha colaborado na série de entrevistas sobre o

cristãos novos de origem judaica, pois obtive financiamento da

tema da liberdade, propus os direitos humanos, o que foi bem

Leverhulme para o período de 2017—2019, felizmente antes

recebido. A presente conjuntura internacional de violação sis­

da epidemia. Pude trabalhar em numerosos arquivos e reconsti­

temática de direitos e de acordos humanitários em situações de

tuir a resistência dos descendentes de convertidos à discrimina-

guerra justifica a escolha. Revisitei e reelaborei textos anterior-

ção diária a que estavam sujeitos. Um dos ângulos de abordagem

mente publicados, escrevi textos de raiz para a grande maioria

118

estimularam numerosas leituras nessa área. Desenvolvi a minha

119

dos capítulos. Espero beneficiar das reações a este livro para desenvolver os conhecimentos adquiridos na interseção da his­

tória, do direito, da ciência politica e da sociologia. Uma pala­

vra final de agradecimento pelo apoio entusiástico do diretor

editorial, pelo trabalho de revisão do texto e pelo suporte admi­

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