Computadores de Papel - máquinas abstratas para o ensino concreto [2 ed.]
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s computadores de papel são máquinas abstratas, virtuais, equivalentes do ponto de vista lógico a qualquer computador eletrônico digital. São ao mesmo tempo simples e poderosos, constituindo-se em importante instrumento de trabalho na contemporânea pesquisa em teoria dos algoritmos. Contudo, não são muito velozes - mas isto acaba se tornando uma grande qualidade em termos pedagógicos. Com seu uso, o estudante pode aprender, desde mesmo a pré-escola, como funciona o computador, passo a passo, compreendendo suas possibilidades e limitações. Neste livro discutem-se a Importância histórica, epistemológica e pedagógica dos computadores de papel.

ISBN 85-249-0338-4

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~EDITORA

Robinson Tenório

COMPUTADORES

DE PAPEL Máquinas abstratas para um ensino concreto 2ªedição

QUESTÕES DA NOSSA ÉPOCA

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~EDITORA

Computadores de Papel: máquinas abstratas para um ensino concreto Robinson Tenório

Capa: DAC Revisão: Maria de Lourdes de Almeida Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor e do editor © 2001 by Autor

Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 - Perdizes 05009-000 - São Paulo-SP Te!.: ( 11) 3864-0111 Fax: ( 11) 3864-4290 E-mai 1: [email protected]. br www.cortezeditora.com.br 1mpresso no Brasil - fevereiro de 200 I

SUMÁRIO Prefácio à 2ª edição..................................................

9

Apresentação ....................... .....................................

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I.

INTRODUÇÃO .. ... ... ... .. .... .. ... .. .. .... ... .. ...... .. .. .... . . . . . . .. .

II.

COMPUTADOR, MODO DE PRODUÇÃO E CONHECIMENTO MODERNO...............................................................

1. Questões produtivas ................ ..... ........................ 2. Questões teóricas .................................................. 3. O cerne da questão ...............................................

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25 25 29 41

1. Máquina de Post ............. ...................................... 2. Máquina de Turing ......... ...................................... 3. Possibilidades e limitações...................................

51 51 57 63

IV. IMPLJCAÇÕES ••••• ..... ., .. ••••• ••••••• .. •••••• ........... ••••••••.,•• 1. Questão epistemológica .... ... .. ... ... ... .. .. ... .. .. ... .. .. .. .. 2. Questão histórica.................................................. 3. Questão pedagógica..............................................

75 75 88 91

III. As

V.

MÁQUINAS ABSTRATAS.......................................

CONCLUSÃO . .... .. ............ ... . .. ... .. ... ... .. ... . . ... .. . . .. . . . . . . . .

105

Referências bibliográficas........................................ 109 Bibliografia complementar....................................... 113

Para minhas musas Lara, Laysa, Camila e Záyda Inspiração garantida qualquer que seja a estação.

RESPOSTA Dwar Ev soldou solenemente a junção final com ouro. A objetiva de uma dúzia de câmaras de televisão se concentrava nele, transmitindo a todo o universo doze enquadramentos diferentes do que estava fazendo. Endireitou o corpo e acenou com a cabeça para Dwar Reyn, indo depois ocupar a posição prevista, ao lado da chave que completaria o contato quando fosse ligada. E que acionaria, simultaneamente, todos os gigantescos computadores da totalidade dos planetas habitados do universo inteiro - noventa e seis bilhões de planetas - ao supercircuito que, por sua vez, ligaria todos eles a uma supercalculadora, máquina cibernética capaz de combinar o conhecimento integral de todas as galáxias. Dwar Reyn dirigiu palavras aos trilhões de telespectadores. Depois de um momento de silêncio, deu a ordem: - Agora, Dwar Ev. Dwar Ev ligou a chave. Ouviu-se um zumbido fortíssimo, o surto de energia proveniente de noventa e seis bilhões de planetas. As luzes se acenderam e apagaram por todo o painel de quilômetros de extensão. Dwar Ev recuou um passo e respirou fundo. -A honra de formular a primeira pergunta é sua, Dwar Reyn. - Obrigado - disse Dwar Reyn. - Será uma pergunta que nenhuma máquina cibernética foi capaz de responder até hoje. Virou-se para o computador. 7

- Deus existe? A voz tonitruante respondeu sem hesitação, sem se ouvir o estalo de um único relé: - Sim, agora Deus existe. O rosto de Dwar Ev ficou tomado de súbito pavor. Saltou para desligar a chave de novo. Um raio fulminante, caído de um céu sem nuvens, o acertou em cheio e deixou a chave ligada para sempre. (Brown, 1985, pp. 364-65)

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PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO Quase dez anos após a publicação da primeira edição de Computadores de Papel, muitas coisas mudaram no que concerne à tecnologia, à economia, à organização do trabalho e às suas articulações com a educação. Internet, globalização, "nova economia", realidade virtual, qualidade total ... a lista dos novos elementos pode parecer inesgotável. A economia mundial se torna a cada ano mais dependente, em múltiplos aspectos, dos computadores, os quais, por sua vez, passada uma década, estão muito mais rápidos, com maior capacidade de armazenamento, e superintegrados em redes mundiais através da internet. Quase tudo parece ter mudado, mas a estrutura lógica de funcionamento dos moderníssimos computadores digitais permanece a mesma: as máquinas abstratas de que trata este pequeno ensaio. Os dispositivos virtuais de Turing e Post, ambos criados em 1936, são ao mesmo tempo simples e poderosos - o que lhes permite bem servir, até hoje, a dois senhores exigentes e idiossincráticos: a ciência e a educação. Por um lado, as máquinas abstratas continuam tendo uma grande importância na solução de problemas da matemática e da informática, constituindo-se em instrumentos profícuos para a produção científica. Por outro, a chocante simplicidade arquitetural de tais máquinas possibilita usos pedagógicos com diferentes graus de aprofundamento, que podem contemplar da educação na pré-escola à educação na pós-graduação, fazendo com que tais dispositivos abstratos catalisem, efeti9

vamente, a produção de significados concretos pelo educando. Assim, as máquinas abstratas continuam importantes dos pontos de vista epistemológico (particularmente no que se refere a decidibilidade e a complexidade), científico, pedagógico, e, obviamente, histórico. O computador mudou materialmente, mas seu espírito, máquina abstrata, continua o mesmo. E as articulações entre o concreto e o abstrato, fundamentais na ciência e na educação, continuam sendo questões de nossa época. Antes de finalizar este prefácio, contudo, um outro ponto merece ser abordado. É notório que as máquinas abstratas constituem-se em um objeto que pode, e deve, ser abordado de forma interdisciplinar: matemática, história, informática, filosofia, didática e epistemologia são alguns campos de saber que concorrem para a construção da rede de significados imbricados em tal objeto. Porém, a cisão na sociedade moderna entre as culturas tecno-científica e humanista é uma das pedras no caminho da interdisciplinaridade. Diversos depoimentos de leitores foram colhidos, após o aparecimento deste trabalho em 1991, indicando ora uma valorização dos aspectos históricos e filosóficos apresentados, acompanhada de um certo estranhamento dos aspectos lógicos e matemáticos, ora o inverso, conforme a filiação do leitor informante a uma das duas culturas acima descritas. Depoimentos de tal tipo, felizmente, têm se tornado mais raros ultimamente, o que poderia indicar um maior grau de impregnação mútua das culturas tecno-científica e humanista, fruto talvez, entre outros fatores, de uma crescente atenção à intercomunicação de múltiplos campos do saber. 10

Espero que este pequeno texto ainda contribua, mesmo que minimamente, nos esforços de aproximação das culturas tecno-científica e humanista, em particular como veículo de educação científica onde se associam à divulgação científica elementos de filosofia e história da ciência, essenciais para a compreensão crítica do conhecimento científico. Salvador, dezembro de 2000. Robinson Tenório

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APRESENTAÇÃO

A rapidez, a agilidade, o movimento desencadeando a imaginação parecem elementos determinantes para que a imagem do cavalo representando a velocidade da mente fosse muito apreciada por Galileu, para quem "o discorrer é como o correr". Parafraseando a metáfora galileana, podemos afirmar que, em nosso meio, o incipiente debate sobre a utilização de computadores com finalidades educacionais assemelha-se a um burro que empacou. Ressalvando-se algumas experiências isoladas ou com parcas articulações, em número que, se cresce, é bem aquém das expectativas, o empacamento parece decorrer de uma falta de perspectivas, de um beco sem saída a que conduziram pelo menos três desvios fundamentais. Em primeiro lugar, a utilização de computadores no ensino quase sempre foi identificada com a presença de equipamentos nas salas de aula, com a exploração, ainda que com finalidades motivacionais, do fascínio exercido pela máquina sobre a maioria das pessoas, com um mínimo de consciência do significado histórico ou epistemológico de sua utilização. Por essa via, passada a euforia inicial, dois tipos de desinteresse soem acontecer: pela máquina, se o centro das atenções permanece em questões de natureza pedagógica, ou pelo ensino, com o deslocamento do interesse para as possibilidades técnicas de utilização do computador. No primeito caso, as aulas permanecem as mesmas, apesar da presença do equipa13

mento; no segundo, o computador passa a ser um fim em si mesmo, provocando nos alunos um interesse de natureza técnica, muito distante do que se pretende como feixe de valores básicos na formação geral dos indivíduos. Nos dois casos, as questões relevantes sobre a pertinência ou a adequação da utilização de computadores como instrumentos de ensino resultam elididas ou tornam-se secundárias. Um segundo desvio no debate, diretamente associado ao primeiro, está relacionado com o custo do equipamento. É um lugar-comum afirmar-se que a crônica carência de recursos para o ensino torna a questão da utilização de computadores na escola básica um sonho delirante. Com o argumento "realístico" de que, em nosso meio, outras seriam as prioridades, empaca-se o burro do debate, partindo-se para discussões supostamente mais conseqüentes. Tal renúncia, no entanto, freqüentemente está associada a uma relativa ignorância quanto ao papel a ser desempenhado pelos computadores na sala de aula. Por paradoxal que pareça, somente um aprofundamento no debate, com o esclarecimento de tal papel, pode revelar a absoluta desnecessidade da multiplicação do número de computadores nas escolas, ou ainda o fato de que, mesmo na ausência de equipamentos, não estamos condenados à ignorância sobre o tema. Uma terceira via de empacamento é a consideração da utilização de computadores no cerne das questões pedagógicas, o que pode ser caracterizado como uma exorbitância, uma superestimação das possibilidades de tais instrumentos. Chega-se, muitas vezes, a pressupor que essa utilização continuada conduziria a uma mudança significativa no próprio modo de pensar do ser humano. Quando se observam os resultados obtidos nos projetos desen14

volvidos, aqui como em outros lugares, tal hipertrofia nas possibilidades educacionais parece cada vez mais evidente. E um justo desencantamento conduz a uma quase imobilidade, a uma aparente falta de perspectivas. Naturalmente, a própria caracterização das três situações citadas como desvios subentende outras concepções, outras perspectivas sobre o tema em debate. Neste sentido, a leitura do presente trabalho é bastante promissora. Desde a Introdução, é possível perceber-se que a análise desenvolvida não privilegia apenas a dimensão técnica da utilização de computadores no ensino, com ênfase no equipamento, mas valoriza e procura elaborar gradativamente o que poderia ser caracterizado como uma "cultura informática". Busca-se o conhecimento sobre computadores através da investigação do processo histórico que os engendra. Trata-se, segundo o autor, muito mais de um ensino sobre computadores do que um ensino com computadores, visando-se, assim, a uma maior compreensão por parte de professores e alunos do significado, da importância e dos limites de tais instrumentos. Um ponto que merece especial destaque é o recurso aos trabalhos de Post e Turing, dois matemáticos que, ao tratarem de computadores, fizeram-no de forma suficientemente genérica - e simplificada - , de modo a tornálos inteligíveis até mesmo por uma criança. Para isso, ambos "construíram" máquinas virtuais extremamente simples, que simulam perfeitamente o funcionamento dos computadores já existentes ou que ainda venham a existir, estabelecendo, em 1936, um resultado matemático verdadeiramente impressionante: tudo o que pode ser calculado em um computador, pode ser calculado na máquina de Post (ou de Turing). Assim, numa época em 15

que os computadores ostentavam dimensões nada desprezíveis, ocupando salas ou prédios inteiros, Post e Turing puderam estudar certos aspectos teóricos bastante significativos de sua utilização, trazendo para o centro das discussões, por exemplo, a questão que nos parece mais fecunda, mais decisiva, sobre o tema: o que pode ser calculado com um computador e o que não pode sê-lo? Ou, em outras palavras, como se podem distinguir as tarefas algoritimizáveis das que não o são? No caso específico da utilização dos computadores no ensino, essa é precisamente a questão que é necessário responder. Sobre as tarefas não algoritimizáveis, que constituem, a nosso ver, a parte mais suculenta do processo educativo, parece que pouco ou nada se pode esperar dos computadores. Através de análises como as citadas, o presente trabalho contribui significativamente para evitar a dispersão por dois dos três desvios anteriormente citados. É, no entanto, na questão do custo do equipamento, que aparentemente inviabilizaria a priori a utilização em grande escala de computadores no ensino público, que as perspectivas apresentadas são mais concretas e inovadoras. De fato, o recurso à máquina de Post para a apresentação de noções fundamentais sobre Informática - linguagens, algoritmos, programas etc. - revela-se um verdadeiro ovo de Colombo. A máquina virtual descrita por Post, simples e de custo zero, pode servir de base para uma introdução aos computadores em todos os níveis de ensino, inclusive nas séries iniciais do primeiro grau, como sugere Uspensky em trabalho citado pelo autor. Sem dúvida, novas perspectivas sobre a utilização de computadores no ensino decorrem naturalmente da leitura do presente trabalho. Algumas delas, com certeza, con16

tribuirão para reacender o ânimo de um debate que parece empacado, sufocado pela mesmice de um repertório de respostas estereotipadas. Sem mais delongas, acompanhemos o professor Robinson em seu interessante percurso, na expectativa de que suas idéias, como faíscas, atinjam matérias inflamáveis sobre o tema, eventualmente presentes em cada um de nós. São Paulo, fevereiro de 1991. Nílson José Machado

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I INTRODUÇÃO Em um espaço de tempo de apenas uma geração o homem passou a compartilhar um novo mundo repleto de computadores e máquinas afins. Rápidas transformações estão ocorrendo em decorrência do advento e presença cada vez mais acentuada dessas máquinas. Em vez de lidarem com materiais ou energia, como as máquinas da Revolução Industrial faziam, os computadores tratam informação. Esses dispositivos aumentam rapidamente a sua capacidade de processamento e armazenamento de informações, e tudo indica que o seu papel na sociedade futura será cada vez maior. Algumas poucas pessoas lidam diariamente com computadores hoje em dia, mas com o crescimento da sua esfera de influência parece ser imprescindível que todos entendam as suas capacidades e limitações. A automatização da vida social, econômica, política e mesmo cultural cresce rapidamente no mundo todo. O computador, elemento tecnológico central desse processo, também faz a sua entrada na esfera educacional, não só na sua administração, mas também no processo ensino-aprendizagem. Neste último o computador tem sido tanto matéria de estudo, enquanto teoria da computação - ao menos nos graus superiores e especializados de ensino - quanto recurso instrucional, sendo utilizado em todos os graus escolares, da pré-escola ao ensino superior. Toma-se cada vez mais necessário que o educador procure o domínio técnico, pedagógico e político desse instrumento, de forma crítica. 19

Para se compreender o computador a partir de tais aspectos, é preciso conhecer o próprio processo que o engendra. Em outras palavras, é necessário conhecer sua história. Assim, no entendimento da articulação entre computadores e ensino, é preciso analisar o surgimento e uso desse instrumento, o computador, no contexto histórico-social concreto. Segundo Almeida (1987): A origem do pensamento e dos aparelhos computacionais está ligada visceralmente ao desenvolvimento de um modo de produção voltado para o rendimento industrial e bélico de modelo concentrador. De modo algum pode-se imaginar que a origem do computador tenha vinculação com as necessidades de camadas carentes ou com a solução dos problemas de distribuição de renda. No entanto, crer na impossibilidade de que esta conquista tecnológica possa ir recebendo um sinal que lhe imprima sentido oposto é crer numa história mecânica e fatalista (p. 27).

É na escola, para a maioria, que se dá a única chance de aquisição do conhecimento acumulado, da ciência e da tecnologia. Isto se reveste da maior importância se considerarmos que a tecnologia informática é o mais poderoso instrumento tecnológico já desenvolvido pelo homem, com alto poder de transformação, produção e dominação; além disso, tal tecnologia pode constituir-se em poderosa ferramenta para veicular o conhecimento significativo e ainda propiciar novos e eficientes métodos e técnicas pedagógicas. A partir dessa constatação podemos entender o nosso objeto de estudo: 1) como instrumento técnico que pode servir como ferramenta de trabalho prático na produção ou no ensino; 2) como veículo didático para a transmissão

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de conteúdos; e 3) como conteúdo de ensino enquanto corpo teórico elaborado no processo de produção moderna. As duas primeiras formas de uso do computador no ensino, veículo didático e ferramenta de trabalho, geralmente são tratadas na literatura como "ensino por computadores", em contraste com o uso do computador enquanto conteúdo, chamado "ensino sobre computadores" (Castro, 1985). A literatura sobre computadores no ensino é muito mais rica em considerar o ensino com computadores do que o ensino sobre computadores; talvez seja muito mais relevante, para orientar a ação de uma efetiva prática social e pedagógica, inclusive para a utilização crítica do computador no "ensino com computadores", a introdução de elementos da teoria da computação como conteúdo de ensino. É importante se enfatizar este enfoque, já que a compreensão sintética, sistematizada e crítica do computador depende não só do seu uso técnico, mas principalmente da sua concepção e estrutura teórica, o que é necessário para a correta compreensão de suas limitações e potencialidades, hoje tão mistificadas. As limitações estão estreitamente relacionadas com as limitações da própria lógica formal e da matemática (Nagel e Newman, 1973), e constituem questão que pretendemos tratar, pois sustentam, segundo cremos, um conhecimento que deve ser dominado para se desmistificar as noções ideológicas que acompanham o desenvolvimento de tal tecnologia, como, por exemplo, de que o computador vai dominar o homem ou de que vai desumanizar as relações sociais. O que pode e o que não pode o computador fazer por si só enquanto potencialidade lógica pode ser visto nas "máquinas" abstratas de Post ou de Turing, modelos estruturais do moderno computador eletrônico (Uspensky,

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1985), e o que pode ou não ser feito dele na prática social depende, em última análise, dos objetivos que definirmos para tanto. Apesar disso, a literatura sobre computadores e ensino não trata absolutamente das possibilidades e limites do computador, privilegiando as tecnicidades em detrimento dos aspectos conceituais, sociais e históricos. São estas as questões que abordaremos neste trabalho. Para tanto, utilizaremos os resultados de dois artigos 1 importantes para o posterior desenvolvimento dos computadores em seus aspectos lógicos, artigos esses surgidos de forma independente em 1936. Ambos tratam do conceito de computabilidade. Os processos chamados computáveis são aqueles passíveis de mecanização. Tais processos podem ser descritos algoritmicamente, ou seja, passo a passo, de forma seqüencial e precisa. Para atacar tal questão, cada um dos artigos descreve um dispositivo único, passível de construção apenas com lápis e papel, de estrutura lógico-operacional similar à dos computadores atuais. As regras de funcionamento dos dispositivos estruturalmente semelhantes são equivalentes do ponto de vista lógico, apesar de não serem coincidentes. O desenho global do dispositivo de Turing é mais complexo, como mostraremos no corpo deste trabalho. Chamaremos ambas as estruturas lógicas de máquinas abstratas, por analogia ao nome usado por Turing em seu 1. Em The Journal of Symbolic Logic, número 3, de setembro de 1936, foi publicado o artigo "Finite Combinatory Processes Formulation 1", de Emil L. Post; nos Proceedings of the London Mathematical Society, vol. 42, naquele mesmo ano, Alan M. Turing publicou o artigo "On Computable Numbers, With an Application to lhe Entscheidungsproblem".

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artigo. Assim, as máquinas de Turing e de Post, como qualquer outro dispositivo equivalente a esses do ponto de vista lógico e estrutural, serão aqui genericamente designadas por máquinas abstratas. Queremos lembrar, contudo, que tal nomenclatura não foi usada por Post em seu artigo, mas usada por Uspensky (1985) numa brochura elaborada para difundir e esclarecer o funcionamento do mecanismo de Post. O excepcional nestes artigos aqui considerados é que ambos, independentemente, antecipam, através desses arquétipos (as máquinas abstratas), o funcionamento dos modernos computadores digitais eletrônicos, antes mesmo do aparecimento destes. Por se constituírem em arquétipos, podemos encontrar nessas máquinas abstratas os elementos representativos da capacidade e dos limites dos computadores reais. Assim, esses dispositivos se constituem em privilegiados instrumentos para a avaliação pedagógica crítica do computador. Mesmo porque representam de forma significativa um momento histórico, contendo as características desse momento histórico. Como afirma Rosmorduc (1983): ( ... ) a ciência e a teoria científica são produtos históricos. Uma interpretação surge em dado momento, e não em outro qualquer, porque estão reunidas as diferentes condições para a sua elaboração. Esta afirmação é ilustrada pela multiplicidade de casos em que as descobertas têm datas muito próximas, feitas por dois sábios que, segundo todas as probabilidades, ignoram os trabalhos respectivos (p. 14 ).

Desta forma, nossa pesquisa se constitui na investigação das implicações epistemológicas, pedagógicas e históricas do uso das máquinas abstratas no ensino sobre o computador.

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II COMPUTADOR, MODO DE PRODUÇÃO E CONHECIMENTO MODERNO 1. Questões produtivas Um dos fundamentos do modo de produção capitalista é o conhecimento científico. A tecnologia é desenvolvida como forma de aumentar a produtividade e reduzir o tempo de trabalho incorporado nos produtos, de forma a haver apropriação de uma maior quantidade de trabalho excedente. Nas palavras de Marx (1968), o emprego da máquina na indústria moderna, como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele dá gratuitamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais-valia (p. 424).

Ora, o desenvolvimento da técnica e da ciência conduz a uma socialização crescente do processo produtivo, o que entra em contradição com as relações de produção de caráter privado. Essa contradição fundamental (a contradição: apropriação privada/alienação versus produção social/ humanização) é, portanto, impulsionada pelo conhecimento humano sistemático, que no capitalismo está associado intimamente ao desenvolvimento do sistema produtivo. 25

E a concretização dessa síntese entre ciência moderna e produção começa historicamente com o desenvolvimento da indústria. A divisão do trabalho, que já começa na manufatura, possibilita a especialização de cada tarefa, de tal forma que os movimentos de cada trabalhador se transformam em rotina, aproximando-os de movimentos puramente mecânicos: assim, passa a ser possível substituir parte da atividade do trabalhador por um objeto mecânico- a ferramenta de trabalho. Os movimentos se tornam a tal ponto planejados que, no lugar da energia humana que move a ferramenta, pode-se já usar outro tipo de energia para alimentar a máquina. Com o uso crescente da energia do vapor ampliam-se as possibilidades de implementação da máquina-ferramenta e da tecnologia em geral: várias máquinas-ferramenta são integradas em um sistema produtivo mais amplo. A máquina-ferramenta revoluciona, pois, a produção. As possibilidades da máquina permitiram a homens da técnica e da matemática, como Babbage ( 1792-1871 ), projetar processos mais amplos, sistemas de máquinas associadas na produção. Babbage, notem bem, é o mesmo que projetou inteiramente, e tentou construir a máquina analítica ou "computador analítico" - dispositivo mecânico em muitos aspectos semelhante ao moderno computador eletrônico. Baseado nos trabalhos de Babbage e Ure, Marx (1968) vislumbra, ainda no século XIX, a possibilidade, hoje concretizada, da combinação de máquinas em um processo de cooperação na produção, ou seja, a automatização da produção:

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A produção mecanizada encontra sua forma mais desenvolvida no sistema orgânico de máquinas-ferramenta combinadas que recebem todos os seus movimentos de um autômato central e que lhes são transmitidos por meio do mecanismo de transmissão (p. 435).

Assim, usando o seu instrumento característico de produção - a máquina - , a divisão objetiva do trabalho passa a produzir máquinas com máquinas, mecanizando e automatizando cada vez mais a produção. Desta forma, o processo de produção vai adquirindo um caráter cada vez mais científico e técnico, associando, de forma cada vez mais direta e profunda, a atividade produtiva e a elaboração de conhecimentos científicos e técnicos: "O instrumental de trabalho, ao converter-se em maquinaria, exige a substituição da força humana por forças naturais e da rotina empírica pela aplicação consciente da ciência" (Marx, 1968, p. 439). O caráter científico que se apodera da produção atinge a própria estrutura da empresa, da indústria, da organização do trabalho dividido. Entre o final do século passado e início deste século, surge o conceito de administração científica, inspirado na teoria de organização da produção de Frederich W. Taylor (1856-1915). O taylorismo sebaseia na clara distinção entre tarefas organizacionais e tarefas executivas, e também na prescrição de uma função bem definida para cada trabalhador, de forma a se ter tempos calculáveis e precisos de execução, obtendo-se a máxima energia de cada trabalhador. O aumento de produtividade é conseguido, então, pela medição, controle e disciplinamento da produção. Assim, a divisão do trabalho visando o aumento da produtividade, para maior acumulação, tem como conseqüên27

eia uma mecanização e controle crescentes de todo o processo produtivo, ou seja, a combinação de máquinas, cada uma das quais automática, através de um processo automático de transporte das peças entre as máquinas, e com o maior controle possível do processo global; isto é tornado perfeitamente viável, hoje, com o moderno computador eletrônico. Em síntese, o objetivo sempre perseguido de racionalização e controle do processo produtivo, no modo de produção capitalista, conduz, a partir do parcelamento do trabalho em tarefas cada vez mais simples, à introdução da ferramenta, da máquina-ferramenta, de conjuntos associados de máquinas e, no momento atual, ao uso "das máquinas-computadores que controlam o conjunto do sistema produtivo e que inclusive planejam este sistema e o vigiam" (Santos, 1983, p. 24). Como dissemos, ao nos referirmos a Babbage, sempre houve a preocupação de desenvolver aparatos tecnológicos que pudessem resolver certos problemas de cálculo e controle de dados e informações; obviamente que esses problemas de cálculo e controle de informações ou eram exigências diretas da produção, como no caso das máquinas de tecelagem controladas por cartões perfurados, ou eram exigências do desenvolvimento da ciência (astronomia, física, matemática) que, por sua vez, se constituíam em exigências da produção moderna, calcada na substituição da "rotina empírica pela ciência". Não podemos deixar de lembrar também que essa necessidade do uso do computador torna-se uma urgência inadiável com o advento de uma nova indústria no século XX: a indústria da guerra. O primeiro computador eletrônico foi construído nos Estados Unidos para elaborar cálculos de balística na Segunda Guerra Mundial.

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Concluindo o nosso argumento, é a necessidade de controlar toda a produção, não só para automatizar a linha de produção, mas também para as atividades de gestão e controle na empresa, além do tratamento de dados e informações para o desenvolvimento da própria ciência, que faz surgir o computador eletrônico moderno. Este é justamente o ponto crucial para se compreender o seu surgimento e constante aprimoramento. Evidentemente, esse movimento de determinação não é mecânico. Ao mesmo tempo que as necessidades geradas pela produção material impulsionam a produção científica, esta cria teorias e técnicas que transcendem as exigências iniciais de forma a interferir na própria produção material. Na invenção do computador, tais elementos se encontram tão enovelados que só efetuando inevitáveis e, muitas vezes, inadvertidos cortes poderíamos separá-los. Vejamos, então, que forma aquelas questões produtivas tomam na ciência teórica, em especial na matemática, onde surgiram os conceitos fundamentais da estrutura lógica do moderno computador eletrônico digital.

2. Questões teóricas No fim do século XIX e início do século XX, estávamos passando por um período bastante fértil no desenvolvimento da lógica simbólica e esta era considerada, muito além de qualquer base física ou moral, a sólida sustentação das "leis do pensamento". David Hilbert (1862-1943), um dos maiores matemáticos de seu tempo, representa muito bem essa crença na lógica quando, em 1900, afirma que: 29

Todo problema matemático definido é necessariamente susceptível de uma resolução exata, ou na forma de sua resposta verdadeira, ou pela prova da impossibilidade de sua solução, e com isso a necessária falha de todas as tentativas neste sentido. Por mais inacessíveis que estes problemas possam parecer, e por mais impotentes que permaneçamos frente a eles, temos, não obstante, a firme convicção que suas soluções devem surgir de um número finito de processos puramente lógicos (... ) Ouvimos dentro de nós a chamada perpétua: Este é o problema. Procure sua solução. Você pode encontrá-la pela razão pura( ... ) (apud Chaitin, 1988, p. 54). Esta questão de o pensamento ser redutível a métodos lógicos, o que, em última instância, está imbricado na questão da apreensão do conhecimento da realidade ser possível apenas através da razão clássica, é bastante antiga, remontando aos gregos na filosofia ocidental (Dreyfus, 1975, p. 17). Contudo, a crença na formalização do conhecimento passa a dominar o pensamento ocidental, a partir da revolução burguesa, com os seus ideais de universalização e a sua base de produção mecanizada e mecanizável, tornada possível com a divisão social do trabalho. Por outro lado, porém, só no fim do século XIX, precisamente em 1900, esse problema da obtenção de um método único e geral de decidibilidade, baseado na lógica, ganha formulação explícita e clara do próprio Hilbert, como veremos logo mais; mais importante talvez que a própria formulação do problema, estavam colocadas as condições históricas da sua solução. Assim, a questão é resolvida de forma completamente inesperada por Gódel (1906-1978) em 1931, e por Alan Turing (1912-1954) e Emil Post (1897-1954), trabalhando independentemente, de maneira simples e prática, em 1936. 30

Esses trabalhos não só definem os limites da mecanização, mas também estabelecem as bases necessárias para a exploração cada vez mais fantástica dos processos algorítmicos através do computador eletrônico moderno, então ainda inexistente. Investigaremos, agora, os antecedentes históricos dos conceitos que culminaram com os trabalhos citados de Post e Turing a partir do período iniciado em torno do ano de 1600. Evidentemente tal escolha não é arbitrária. Não podemos deixar de notar, contudo, que certamente outros acontecimentos anteriores a esse período possibilitaram a gestação do que vamos considerar. Todavia, é nesse momento da história que se dá a mudança do caráter da produção material (feudal para capitalista); de forma articulada ocorre também a mudança do caráter da produção de conhecimento - aspecto que queremos destacar neste capítulo. Needham (1956) traduz muito bem esse momento divisor de águas na produção do conhecimento. Esse autor faz um estudo comparativo da produção científica medieval no Ocidente e na China. Mostra, então, que os conhecimentos científicos chineses não se diferenciavam dos conhecimentos científicos ocidentais naquele momento histórico. Assim, explicar o surgimento da ciência moderna no Ocidente só pode ser feito a partir da única coisa que diferenciava essas duas civilizações, que é o fato de a civilização ocidental estar iniciando um processo de expansão mercantilista (navegação e comércio), contrariamente à civilização agrária e burocrática chinesa. O desenvolvimento particular da astronomia e da balística é apenas conseqüência de uma razão mais poderosa: as estruturas econômico-sociais do Ocidente possibilitaram uma articulação ímpar entre o conhecimento mate31

mático e o empírico, como necessidade do processo que se estava instalando. As ciências naturais, na Idade Moderna, caracterizadas inicialmente pelo modo de produção mercantil, se desenvolvem no século XVII como nunca antes. Os problemas concretos básicos eram colocados à ciência principalmente pelo desenvolvimento dos transportes - em especial marítimo - e pelo desenvolvimento da indústria. Todos estes problemas, no entanto, como assinala Hessen (1985, p. 28) eram de "natureza puramente mecânica". Hessen investiga as exigências históricas impostas pela emergência e desenvolvimento do capital mercantil, analisa os problemas técnicos oriundos dessa economia, avaliando em que grupo de problemas físicos eles se situam. Concentra a sua análise nos meios de comunicação, indústria e problemas militares. Mostra que uma sistematização dos problemas físicos de então, quase todos de mecânica, equivalia à criação de uma estrutura harmônica para a mecânica teórica, tarefa da qual Newton se incumbiu. Quanto à matemática, é no século XVI que podemos observar os primeiros indícios significativos da transição do seu caráter e, acrescente-se, de forma semelhante à mudança de caráter na física. Isto não deve causar nenhuma surpresa, pois a mutação no processo civilizatório que então transcorria tinha como indicador a mudança de caráter da matemática, como nas demais ciências, aquela também produto dos homens. Devido a essa multiinteração podemos arriscar inclusive que, se um dos elementos fundamentais para a construção da nova ciência foi a sua matematização, ocorrida em primeiro lugar na física, há nesse período uma fisicalização da matemática: as leis

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científicas passam a ser descritas matematicamente, mas, reciprocamente, a matemática vai adquirindo o caráter dinâmico (dinâmica é a parte da mecânica que estuda os movimentos dos corpos e suas causas) da física; este processo culmina com o cálculo diferencial e integral e a análise do século XVIII. É nesse contexto que a crença na possibilidade de formalização do pensamento passa a dominar a ciência e o pensamento ocidental. Tomemos algumas expressões e desdobramentos significativos desse pensamento. Hobbes (1588-1679) talvez tenha sido o primeiro a expressar claramente tal concepção do pensamento como cálculo: Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra (... ) Em suma, seja em que matéria for que houver lugar para a adição e para a subtração, há também lugar para a razão, e, onde aquelas não tiverem o seu lugar, também a razão nada tem a fazer (Hobbes, 1979, p. 27).

O processo do raciocínio, ainda segundo Hobbes ( 1979, p. 28), é um "método bom e ordenado" que permite passar das unidades mais simples - os nomes para asserções e silogismos, os quais constituem todas as conseqüências de um assunto em estudo - a ciência. Descartes (1596-1650) pretendeu pela dúvida sistemática chegar às idéias simples, precisas e claras, a partir das quais se deduziriam quaisquer conclusões válidas. Notem bem que o seu trabalho objetivava formular um "método para raciocinar bem" (Descartes, 1975). Outro pensador a se ocupar da questão foi Locke ( 16231704 ). Afirmou que as idéias podem ser divididas em duas 33

categorias: simples e complexas. As simples formam as complexas. A mente pode operar sobre as idéias simples apenas de três maneiras: através de combinações de várias para formar as complexas; através da reunião de duas para estabelecer relação entre elas; através da separação completa de outras idéias para estabelecer idéias gerais (Locke, 1978, p. 183). Na obra de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), filósofo e matemático que divide com Isaac Newton ( 16421727) a invenção do cálculo diferencü..J e integral, vamos encontrar de maneira inequívoca a materialização da concepção mecanicista e determinista do conhecimento e do pensamento. Evidentemente, as demandas sócio-econômicas e a própria produção tecnocientífica constituem um contexto propício para as formulações de Leibniz. Hessen, tratando de Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, obra magna da ciência moderna produzida nesse período, que exerceu e exerce notável influência na produção científica posterior em todas as áreas, afirma que há uma total correspondência entre as necessidades econômicas e técnicas e o conteúdo fundamental da obra que é, em todos os sentidos, uma solução sistematizada do conjunto básico de problemas físicos então postos. Além disso: "Como todos estes problemas eram, por seu caráter, mecânicos, resulta evidente que a obra principal de Newton foi uma fundamentação da mecânica terrestre e celeste" (Hessen, 1985, p. 41). Os fundamentos filosóficos da ciência moderna devem ser buscados no seu primeiro produto de polimento impecável - a mecânica newtoniana. A crítica aos fundamentos filosóficos de mecânica newtoniana tem encontrado bastante resistência. A principal causa talvez seja o suces34

soda teoria até mesmo em domínios inicialmente não articulados por ela. Seu triunfo, em especial no domínio da astronomia, gerou uma crença fantástica no seu esquema de conhecimento, particularmente nos seus pressupostos básicos, ofuscando as suas insuficiências e limitações. Leibniz (apud Boyer, 1974, p. 298), nesse panorama, pensou ter encontrado uma notação exata e universal, formando uma lógica simbólica pela qual se poderia atribuir a todos os objetos seu número característico determinado. Assim, a partir de um pequeno número de idéias, poderse-ia expressar, dedutivamente, todo o conhecimento. Dessa forma, apenas com tais números e as regras para combiná-los, todos os problemas poderiam ser resol\'idos. dirimindo-se qualquer controvérsia. Leibniz (apud Dreyfus, 1975) chega a afirmar que: "Se alguém duvidasse de meus resultados ( ... ) eu lhe diria: Vamos calcular, meu caro, e assim, com a pena e a tinta. liquidaríamos a questão" (p. 19). E, ainda, confirmando a sua fé na possibilidade e força do seu programa: Uma vez que se estabeleçam números característicos para a maioria dos conceitos, a humanidade passará a possuir um novo instrumento, que ampliará a capacidade da mente a um grau muito maior do que o conseguido pelos instrumentos óticos no fortalecimento dos olhos e superará o microscópio e o telescópio na mesma extensão em que a razão é superior à visão (apud Dreyfus, 1975, p. 20). Como todos podem supor, tal projeto ainda não foi concretizado. Apesar disso, o programa de Leibniz, assim como a suposição de Hobbes de que pensar é calcular, encontraram eco nos trabalhos do matemático e lógico George Boole (1815-1864). 35

Boole deu um passo adiante nas formulações precedentes: algebrizou a lógica, empregando efetivamente letras ou variáveis para representar classes de objetos de um certo universo de discurso. 2 Tal trabalho não só exemplifica o processo moderno de matematização do conhecimento, algebrizando as "regras" do pensamento, como tem significado histórico na medida em que inicia o processo de manipulação simbólica da lógica. A complexidade, cada vez maior, da mani2. Queremos mostrar como essa algebrização foi feita, de maneira sucinta. O que segue abaixo tem significado muito importante para a matematização da lógica, pois é o primeiro passo concreto nessa direção. Por exemplo, denotando por x a classe de todos os homens, e por y a classe dos brasileiros, então x - y e a classe dos homens não-brasileiros, além disso, considerando que o uni verso do discurso é representado pelo número 1, então 1 - x é a classe de todos os objetos do universo que não fazem parte da classe x. O número Orepresenta a classe sem objetos, ou seja, vazia. De forma muito "natural" pode-se, conseqüentemente, escrever: x - x = O; ou ainda: x +O= x. Note-se que o emprego do sinal de soma tem a seguinte interpretação: se z é a classe dos homens argentinos, então y + z é a classe dos homens brasileiros ou homens argentinos - a união ou soma da classe y com a classe z. Boole empregou também o símbolo de multiplicação para o produto de classes. Assim x . y denota a classe dos elementos que pertencem à classe x e à classe y, ou seja, dos elementos que são comuns a ambas as classes. No caso do nosso exemplo, x. y = O. Nessa álgebra da lógica vale sempre a lei x. x = x,já que a classe dos objetos comuns às classes xexé a própria classe x. A equação x2 =x tem apenas duas soluções, x = Oou x = 1. Considerando este fato, o pensador inglês concluiu que, na álgebra da lógica, são válidas as leis da álgebra matemática quando os valores estão restritos a Oe 1. Sua álgebra é, portanto, binária, e tem grande aplicação nos modernos computadores eletrônicos de base também binária. Assim, com a sua álgebra os raciocínios silogísticos podiam ser operados algoritmicamente de forma simples (Boyer, 1974, p. 429).

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pulação simbólica, possibilitada inicialmente por Boole, culmina, com os trabalhos de Gõdel, contraditoriamente, na negação do princípio implícito na própria obra de Boole, assim como nos trabalhos de Leibniz, frustrando a tentativa de identificar a estrutura matemática da realidade com a lógica- em outras palavras, a tentativa de fundamentar a matemática na lógica. Essa manipulação simbólica da lógica permite posteriormente, como dissemos, a obtenção de resultados matemáticos que iluminam as suas contradições internas. A contribuição de Boole à lógica formal se encontra primeiro, na cronologia, no livro The Mathematical Analysis of Logic, de 1848, prelúdio da obra considerada maior e mais conhecida, datada de 1854, significativamente nomeada An lnvestigation of the Laws of Thought. O que pretendia Boole com essa obra de título tão pretensioso, ele mesmo responde no seu primeiro capítulo: O intento do seguinte tratado é investigar as leis fundamentais daquelas operações da mente pelas quais o raciocínio é desenvolvido: para lhes dar expressão na linguagem simbólica do cálculo, e sobre sua base estabelecer a ciência da lógica e ensinar seus métodos; (... ) e finalmente coletar dos vários elementos de verdade trazidos à tona no curso destes exames algumas prováveis indicações concernentes à natureza e constituição da mente humana (apud Goldstine, 1972, p. 36).

E, como que se se adiantasse às nossas dúvidas quanto ao grau de associação que se poderia permitir entre a globalidade do pensamento e as leis da lógica algébrica, Boole continua mais à frente, no mesmo capítulo: Há não somente uma analogia íntima entre as operações da mente no raciocínio geral e as operações da mente na parti-

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cular ciência da Álgebra, mas há em considerável extensão uma concordância exata entre as leis pelas quais as duas classes de operações são conduzidas (... ) (apud Goldstine, 1970, p. 36).

Tais afirmações não deixam dúvida quanto à crença na identificação da lógica com a globalidade do pensamento e, por extensão, na crença da ordem lógica estrita da realidade. Acreditamos ter conseguido pintar com cores suficientemente claras esse pano de fundo, esse contexto, para que se perceba com destaque a implicação pretendida entre lógica formal e realidade. Todo o percurso é no sentido de fundamentar o conhecimento na lógica:

n

lógica

matemática - - ciências - +

conhecimento realidade

Tal percurso esbarra, contudo, em dificuldades intrínsecas insuperáveis. De uma perspectiva global, assim como a independência política das colônias européias e as duas guerras mundiais do século XX modificaram a estrutura internacional do poder, a crise do conhecimento científico modificou as

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bases epistemológicas do conhecimento, particularmente da física, no fim do século XIX e, da matemática, no início do século XX. Não abordaremos as questões intrínsecas à própria física, mas queremos destacar aquelas que extrapolam o âmbito particular da teoria, pois se referem a pressupostos adotados até por outras ciências. A primeira é a formulação metafísica de tempo e espaço absolutos. A segunda se refere à dinâmica do espaço, o qual não tem história no mecanicismo newtoniano. A terceira se refere à universalização de conceitos como: a) pontos materiais (corpos sem dimensão que não afetariam com a sua presença o sistema em estudo); b) abstração do observador (ente com existência apenas matemática, que toma medidas sem interferir ou alterar as relações que definem o objeto); c) relação de causa e efeito determinista. A transposição dos esquemas da mecânica newtoniana para outras ciências, objetivando-se até mesmo a sua universalização, é uma generalização eminentemente filosófica. Mesclando formulações físicas e matemáticas com a generalização filosófica de princípios nem sempre generalizáveis, a mecânica clássica se constitui num modelo básico de sustentação de uma forma de produção de conhecimento amplamente dominante nos séculos XVII e XVIII, e ainda bastante saliente nos dias atuais, apesar dos abalos sofridos nos seus fundamentos a partir do início do século XX. A teoria quântica, elaborada nos meados da década de 20, substitui a descrição absolutamente determinista da

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natureza, tal como formulada por Laplace (1749-1827), 3 por uma descrição probabilística. Pela primeira vez, na história da física, um novo tipo de determinismo, estatístico, passa a ser considerado uma categoria necessária à descrição da natureza. Na física newtoniana o observador é um ente não-material, matemático, que faz medidas e observações sem interação com o objeto da medição. A teoria quântica materializa o ato da observação evidenciando vínculos e nexos que nem sempre podem ser dP,sprezados entre o objeto a ser observado (e medido) e os meios de observação. É dessa interação, expressa pelas relações de incerteza de Heisenberg (1901-1976) e Bohr (1885-1962), que decorre a natureza da descrição probabilística própria desta teoria. Já na matemática, o processo de redefinição epistemológica de suas bases começa justamente a partir da clara formulação do problema de fundamentar o conhecimento na lógica formal. Esta proposta é colocada por Hilbert da seguinte forma: a descoberta de um método para estabelecer a verdade ou falsidade de qualquer sentença na linguagem da lógica formal chamada cálculo de predicado (apud Hopcroft, 1984, p. 70). 4 Este problema marca um momento culminante da tentativa de afirmar a identificação entre lógica e realidade, mas, ao mesmo tempo, significa o marco inicial da sua própria negação, como será visto à frente. Para mostrar a inviabilidade dessa redução, usaremos o seguinte argumento: Se a matemática ( o conhecimento 3. Tal formulação se encontra citada na p. 79. 4. Convidamos o leitor, antes de seguir em frente, a reler as primeiras palavras de Hilbert sobre tal programa, no início deste tópico, p. 29-30.

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matemático) não puder ser reduzido à lógica, então o pensamento (ou a razão) também não pode ser reduzido a ela.

Em outras palavras, nossa tarefa se resume em mostrar a inviabilidade do projeto (hilbertiano) de redução da matemática à lógica. Nossa tarefa é simples. A história já se incumbiu dela.

3. O cerne da questão

No período de que estamos nos ocupando agora, final do século XIX e início do século XX, o conhecimento matemático se organizava em três grandes escolas: o logicismo, o formalismo e o intuicionismo (Costa, 1977). O logicismo abraçou-se ao princípio da possibilidade de redução de proposições verdadeiras não óbvias a outras "obviamente" verdadeiras: a matemática é redutível à lógica (normal, ou formal, ou aristotélica). A obra fundamental desse projeto logicista foi o Principia Mathematica de Russell (1872-1970) e Whitehead (1861-1947). Estes autores pretendiam mostrar que é possível expressar em termos lógicos todas as proposições matemáticas, e que todas as proposições matemáticas \ erdadeiras são verdades lógicas. Machado (1987) expressa as dificuldades de tal empreendimento: A Lógica elementar contém regras de quantificação que provêem a Matemática de instrumental eficiente quando se trata de frases onde esteja bem estabelecida a caracterização do indivíduo e do atributo, distinção essa que sabemos de raízes aristotélicas. Entretanto, ela não admite, sem enfrentar difi-

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culdades, regras de quantificação para expressões bem formadas onde atributos são tratados como indivíduos. Assim, frases como "todos os indivíduos i têm o atributo A" ou "existe um indivíduo i que tem o atributo A" não oferecem problemas; mas frases como "todos os atributos A têm o atributo B" ou "existe um atributo A que tem o atributo B" conduziriam a dificuldades lógicas. E não adianta pensar em toda a pluralidade determinada por um atributo como um novo indivíduo: aí justamente residem os motivos das contradições (p. 27).

O paradoxo de Russell pode ilustrar melhor a citação acima: Suponha-se que queiramos organizar um catálogo dos livros de uma biblioteca. Chamaremos de ordinário qualquer catálogo que não se inclua entre os livros indicados por ele mesmo. Caso contrário, ou seja, se nos livros catalogados se incluir o próprio catálogo, então este será chamado extraordinário. Ora, o nosso suposto catálogo é simples de se definir, ordinário se não se incluir, extraordinário se se incluir. Mas, se organizarmos o catálogo de todos os catálogos ordinários, este será ordinário ou extraordinário? Observem o paradoxo: se ele for ordinário, não pode se incluir pela definição deste atributo, mas deve se incluir porque é ordinário (e, lembre-se, nós dissemos que queríamos organizar o catálogo de todos os catálogos ordinários); por outro lado, se ele for extraordinário, deverá se incluir e, desta forma, incluindo-se, deve ser ordinário porque ele só inclui os ordinários! Eis a paradoxal surpresa. Não é demais lembrar que os paradoxos lógicos não são apenas truques bobos ou inocentes: a lógica aristotélica permeia a linguagem natural, e vice-versa (o que pode ser 42

visto nas origens históricas da lógica formal); desta maneira, pela via da linguagem, toda construção matemática, científica e filosófica está entremeada por conceitos paradoxais oriundos do pensamento lógico. Esses paradoxos abalaram o projeto logicista que, ad hoc, acrescentou novos axiomas salvadores que, como foi por muitos matemáticos evidenciado, não representavam necessidades lógicas estritas (por exemplo, a distribuição das entidades da teoria dos conjuntos em tipos hierarquizados: assim, sentenças que propugnem a pertinência entre entidades hierarquizadas que não sejam uma imediatamente superior à outra são, aqui está a hipótese ad hoc, mal construídas e não fazem sentido, tal como o paradoxo de Russell). O projeto logicista se configura, portanto, inviável: a matemática (e, por extensão, a realidade) não se reduz à lógica formal, porque esta postula o princípio da não-contradição.5 5. O princípio lógico fundamental é o princípio da identidade: tudo é idêntico a si mesmo. Em fórmula, A é A. Por exemplo, podemos dizer a árvore é árvore. Este princípio é por demais evidente por sua elementaridade tautológica e assusta que tenha que ser formulado. Contudo é dele que se derivam dois outros princípios tidos como a base da lógica e conseqüentemente de "bom raciocínio": o princípio da não-contradição e o princípio do terceiro exduído. O primeiro deles, como o nome indica, afirma que não deve existir contradição no raciocínio: A não é não-A, e a án-ore não é não-árvore. O princípio da não-contradição é, na verdade, a forma negativa do princípio da identidade, ou seja, afirma que algo não pode ser e não ser ele mesmo. O segundo deles o princípio do terceiro excluído. é a forma disjuntiva do princípio da identidade: uma coisa é ou não é. Entre estas duas possibilidades contraditórias não há possibilidade de uma terceira que, assim, fica excluída. Formalmente é assim expresso: A é B ou A não é B; como exemplo podemos, alimentados deste princípio, dizer que: ou aquilo é árvore, ou não é árvore.

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Falemos agora um pouco sobre o formalismo enraizado em Kant ( 1724-1804). A despeito dos muitos a priori kantianos, as evidências matemáticas foram buscadas pelo filósofo germânico na percepção (Kant, 1987, pp. 29-32). Nessa concepção, a lógica, tanto na matemática quanto em qualquer outra área do conhecimento, desempenha o mesmo papel de descrição das estruturas dos dados da percepção: assim, os axiomas matemáticos não são, como queriam os logicistas, princípios lógicos. A proposta formalista, como se observa, não é reduzir a matemática à lógica, mas erigir a lógica como o método (a-histórico) de obter todas as conclusões legítimas em qualquer argumentação e sobre qualquer conteúdo. O matemático Hilbert propôs um programa formalista a partir das idéias de Kant: 1) a matemática é descritiva dos objetos e elabora construções, sendo extralógica; 2) a lógica é o instrumento articulador das teorias formais construídas com os objetos matemáticos; 3) o trabalho matemático deve ser o de elaborar teorias formais consistentes, sempre mais abrangentes, até se conseguir a sua formalização completa. Para a melhor compreensão desse programa formalista, é necessário esclarecer o significado de teoria formal, consistência e completude. Uma teoria formal é construída a partir de termos primitivos (que, pelas propostas iniciais, deveriam ser objetos empíricos) e regras de formação de fórmulas (os axiomas), além das regras de inferência (lógica), necessárias para a formação dos teoremas. Neste ponto é relevante ressaltar que, com o grande sucesso das geometrias não-euclidianas que aparentemente não tinham suporte no mundo empírico, houve uma supervalorização dos sistemas formais abstratos ou nãointerpretados. Desta forma, enfatizou-se muito mais a con44

sistência das teorias formais que um possível isomorfismo entre os mundos matemático e empírico. No que, então, essa tal consistência consiste? Uma teoria formal é dita consistente se dentro dela é impossível demonstrar uma proposição e, ao mesmo tempo, a negação da proposição. Em outras palavras, se, numa teoria formal não pudermos ter uma proposição verdadeira e falsa ao mesmo tempo, então ela é consistente. Note-se que a consistência se refere ao princípio da não-contradição. Os formalistas, imbuídos do propósito de verificar a consistência dos sistemas formais, lançaram mão de dois procedimentos: o primeiro foi procurar uma interpretação dos termos primitivos, na qual todos os axiomas se reYelassem evidentemente verdadeiros e, em conseqüência. também seriam verdadeiros todos os teoremas (logicamente deduzidos dos axiomas); o segundo foi a verificação da consistência relativa, ou seja, interpretar um sistema formal em outro sistema formal e, se o segundo for verdadeiro, o primeiro também o será. A dificuldade do primeiro procedimento é a verificação da veracidade dos axiomas interpretados; a limitação do segundo procedimento é que o mesmo só demonstra a consistência relativa a outro sistema formal: se se quer a consistência absoluta, deve-se provar absolutamente a consistência de algum deles. Os matemáticos formalistas provaram a consistência, por exemplo, das geometrias não-euclidianas em relação à geometria euclidiana; é possível também mostrar-se a consistência destas em relação à teoria dos números, a qual os logicistas tentaram, sem sucesso, e com os resultados já discutidos aqui, reduzir às leis da lógica, resultando em contradições.

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Resta-nos, agora, esclarecer a questão da completude: uma teoria formal é completa se toda fórmula construída de acordo com as regras de formação da teoria é decidível, ou seja, verdadeira ou falsa, a partir dos axiomas dessa teoria. Compare-se com o princípio do terceiro excluído. Como vimos, os formalistas desejavam que os sistemas formais, assim como toda a matemática, fossem consistentes e completos. Mas, em 1931, Kurt Gõdel, em um pequeno artigo, "Über formal unentscheidbare Sãtze der Principia Mathematica und verwandter Systeme", estabeleceu dois resultados fulminantes para a proposta hilbertiana: 1) uma prova absoluta de consistência para sistemas abrangentes (por exemplo, que contenham a aritmética) é altamente improvável e, seguro, dentro do próprio sistema impossível; 2) é sempre possível construir enunciados, a partir das regras de uma teoria formal, que não são dedutíveis do conjunto de axiomas de tal teoria e, mais ainda, com qualquer conjunto aumentado finito de axiomas, é sempre possível construir, dentro dessa teoria formal, uma nova proposição indecidível. O segundo resultado, sempre considerado mais importante por matemáticos,joga por terra, em última instância, o princípio do terceiro excluído; o primeiro deles põe em xeque o princípio da não-contradição. Gõdel usa os recursos da lógica para demonstrar a impossibilidade do programa formalista: é das entranhas da lógica formal que nasce a contradição que a nega, filha rebelde que promete novos passos na dança do conhecimento. Finalmente, tratemos do intuicionismo. Também com raízes kantianas, foi fundado por Brouwer (1881-1966). 46

Para os intuicionistas, a matemática consiste na construção de entidades abstratas, através da intuição dos matemáticos, e prescinde da redução à lógica (que, todavia, permeia a sua linguagem). Para os intuicionistas, os entes matemáticos não têm preexistência "ideal" (no sentido platônico), nem surgem do empírico: são construídos intuitivamente passo a passo, em um mundo à parte, matemático. Os matemáticos aparecem, assim, como seres mágicos. dotados de poderoso anel da intuição que os torna os únicos homens ou mulheres capazes de criar um mundo diferente, matemático, apartado da realidade concreta, que não se relaciona com o (reles) mundo exterior. Esta constatação é a crítica fundamental ao intuicionismo. Contudo, há de se destacar uma contribuição positiYa dessa corrente, entre outras que possivelmente existam, para o entendimento do dialético processo de produção da ciência matemática - o princípio intuitivista de construtibilidade dos objetos matemáticos, que leva, nas palavras do próprio Brouwer, à rejeição da lei do terceiro excluído: A justificação lógica da matemática formalista, mediante uma prova de sua coerência, contém um circulus vitios11s porque esta própria justificação pressupõe já a correção lógica do enunciado de que a correção de uma proposição segue de sua coerência, isto é, pressupõe a correção lógica da lei do terceiro excluído (apud Machado, 1987, p. 40). Para os intuicionistas é possível a construção de proposições com sentido, mas ... nem verdadeiras ... nem falsas. Brouwer, antes de Gõdel, intuitivamente mostrou a inviabilidade de formalização da matemática, apontando exatamente o que é considerado nevrálgico na prova do

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segundo: a lei do terceiro excluído - a nosso ver, inextrincavelmente ligada à lei da não-contradição, no mínimo por constituírem, ambas, o princípio da identidade. Nas tentativas de buscar os fundamentos da matemática, os logicistas tropeçaram nos paradoxos, os formalistas demonstraram que é impossível não tropeçar neles, e os intuicionistas excluíram o terceiro excluído, apesar de, infelizmente, terem-se distanciado da realidade. Portanto, essas três crises da matemática, evidenciadas no logicismo, formalismo e intuicionismo, são na verdade uma e só uma crise: a da lógica formal. O grande significado dos teoremas de Gõdel, em nossa opinião, é de caráter epistemológico: não podemos identificar os raciocínios rigorosos, matemáticos, com o raciocínio formal. A natureza, que inclui o homem, tem a contradição como qualidade, a contradição que origina o seu movimento e produz a história. Por conseguinte, os apropriados recursos do pensamento do homem, que é natureza e história, não se limitam aos recursos formais. Aprisionada, mutilada e morta em cárceres formais, qual Fênix, ressurge, em meio às cinzas da lógica, a própria contradição. Renasce afirmando o seu caráter negado, afirmando o movimento que está no ventre da natureza e do homem e, indissociável destes, da matemática. Podemos dizer que os resultados de Gõdel constituem mais um indicador da intimidade entre matemática e realidade. É a realidade da contradição na matemática que permite perceber a natureza matemática da realidade contraditória. As relações na natureza são matemáticas, e viceversa, porque ambas constituem uma só totalidade, na qual está mergulhada a contradição. A matemática se aproxima da realidade e não se reduz à lógica formal.

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Mas o que estes resultados têm a ver com os computadores, centro de nossa atenção neste trabalho? Vejamos. Se a matemática fosse redutível à lógica e se se pudesse encontrar o tal método para determinar a verdade ou falsidade de qualquer sentença da lógica formal, então qualquer sentença matemática, ou, mais forte ainda, qualquer afirmação de conteúdo sobre a realidade formulada em linguagem matemática, poderia ser provada verdadeira ou falsa. Assim uma resposta afirmativa para o programa e o problema de Hilbert reduziria todas as afirmações sobre a realidade, que pudessem ser transcritas em linguagem matemática, a mera computação mecânica (segundo regras bem determinadas). Ora, as formulações de Gõdel destruíram tais pretensões. Mas as atenções se deslocaram, então, do conceito de

verdade para o conceito de demonstrabilidade (provabilidade). O problema que ainda restava solucionar era: haveria um método único com o qual todas as sentenças matemáticas demonstráveis poderiam ser demonstradas de um conjunto de axiomas lógicos? Nos anos imediatamente seguintes à prova de Godel (1931), Alonzo Church, Stephen Kleene e Barkley Rosser desenvolveram uma linguagem formal consistente, à qual deram o nome de cálculo lambda; e a letra grega lambda, correspondente ao L latino, insinua linguagem. Foi demonstrado (Kleene) que uma extensa classe de funções, inclusive as empregadas por Gõdel na sua famosa prova, era expressável no cálculo lambda (apud Hopcroft, 1984). 49

A seguir, Church argumentou que, se uma função matemática pode ser totalmente computável, então ela pode ser definida no cálculo lambda. Seu trabalho consistiu, então, em mostrar que, se existir uma função matemática expressável no cálculo lambda que não é computável, então não existirá método para decidir se uma sentença matemática é demonstrável ou não. Como, em 1936, o mesmo Church publicou uma fórmula lógica não-computável no cálculo lambda, a última esperança hilbertiana - encontrar um método único para demonstrar, a partir de um certo conjunto de axiomas, todas as sentenças matemáticas - pereceu. É exatamente neste ponto, lógica, cronológica e historicamente falando, que entram os trabalhos de Turing e Post.

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III AS MÁQUINAS ABSTRATAS Neste capítulo, daremos a descrição dos dispositivos lógicos criados por Post e Turing em 1936. Cabe notar que, a despeito da grande semelhança dos dispositivos e sua equivalência lógica - esses dois matemáticos trabalharam de forma completamente independente, um desconhecendo o trabalho do outro. Emil L. Post, matemático americano, publicou seu trabalho chamado "Finite Combinatory Processes Formulation 1" em The Journal of Symbolic Logic número 3, de setembro de 1936. Este artigo havia sido entregue para publicação nesse jornal em 7 de outubro de 1935. Já Alan M. Turing, matemático inglês, publicou, também naquele mesmo ano, o seu famoso artigo ··on Computable Numbers, With an Application to the Entscheidungsproblem", apresentado à London Mathematical Society em 28 de maio de 1936, e publicado no número 42 de seus Proceedings nesse mesmo ano.

1. Máquina de Post A máquina de Post - e também a máquina de Turing - são estruturas conceituais e, por isso, chamadas máquinas computadoras abstratas. Poderiam ser construídas com algum material apropriado mas, não o sendo necessariamente, são máquinas virtuais e não reais; ressalte-se, contudo, que as suas existências, enquanto estruturas 51

conceituais, asseguram a sua concretude, ou seja, a possibilidade de serem conceitualmente operadas. A descrição abaixo, do dispositivo de Post, é parcialmente baseada em Uspensky (1985), 6 autor que lhe dá o nome de "Máquina de Post", não usualmente empregado, por analogia com o dispositivo de Turing. A máquina de Post consta de uma fita e um carro ou cursor. A fita é infinita e dividida em células ou casas de igual dimensão; o cursor também é chamado "cabeça móvel de leitura e registro". Veja a figura abaixo:

Figura 1

::::=1=1=Il=I=Il=lx=lxl=xl=I

ü Cada casa da fita pode estar vazia ou conter inscrita uma marca (X). A disposição total das marcas constitui o estado da fita. O cursor pode mover-se uma casa de cada vez, para a esquerda ou para a direita. Em cada momento ele aponta ou observa uma única casa. Pode identificar se a casa, em frente à qual ele se encontra, está marcada ou não. O carro ou cursor também pode imprimir ou apagar uma marca em uma casa a cada passo. 6. O leitor interessado numa descrição completa e minuciosa desse dispositivo pode reportar-se a esta referência.

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O funcionamento da máquina consiste no movimento do carro e na impressão ou eliminação de marcas nas casas. Este funcionamento ocorre de acordo com um conjunto de instruções que constituem o programa da máquina de Post. É possível elaborar programas para diferentes funcionamentos pretendidos para a máquina; contudo, as ações elementares ou instruções são somente seis:

>

a)

b)

c)

< C>