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Portuguese Pages 238 Year 2024
ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR
Instituto Rondoniense de Direito Constitucional
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)
ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR
1ª Edição
Volu m e II
São Carlos / S P Editora De Castro
2024
Copyright © 2024 dos autores. Editora De Castro
Editor: Carlos Henrique C. Gonçalves Conselho Editorial: Prof. Dr Alonso Bezerra de Carvalho Universidade Estadual Paulista – Unesp Prof. Dr Antenor Antonio Gonçalves Filho Universidade Estadual Paulista – Unesp Profª Drª Bruna Pinotti Garcia Oliveira Universidade Federal de Goiás – UFG Profª Drª Célia Regina Delácio Fernandes Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD Profª Drª Cláudia Starling Bosco Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG / FaE Prof. Dr Felipe Ferreira Vander Velden Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Prof. Dr Fernando de Brito Alves Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP Prof. Dr. Flávio Leonel Abreu da Silveira Universidade Federal do Pará – UFPA Profª Drª Heloisa Helena Siqueira Correia Universidade Federal de Rondônia – UNIR Prof Dr Hugo Leonardo Pereira Rufino Instituto Federal do Triângulo Mineiro, Campus Uberaba, Campus Avançado Uberaba Parque Tecnológico Profª Drª Jáima Pinheiro de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação – UFMG / FAE Profª Drª Jucelia Linhares Granemann Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas – UFMS Profª Drª Layanna Giordana Bernardo Lima Universidade Federal do Tocantins - UFT Prof. Dr Lucas Farinelli Pantaleão Universidade Federal de Uberlândia – UFU Profª Drª Luciana Salazar Sagado Universidade Federal de São Carlos – UFSCar / LABEPPE Prof. Dr Luis Carlos Paschoarelli Universidade Estadual Paulista – Unesp / Faac Profª Drª Luzia Sigoli Fernandes Costa Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Profª Drª Marcia Machado de Lima Universidade Federal de Rondônia – UNIR Prof. Dr Marcio Augusto Tamashiro Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins – IFTO Prof. Dr Marcus Vinícius Xavier de Oliveira Universidade Federal de Rondônia – UNIR Prof. Dr Mauro Machado Vieira Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Prof. Dr Osvaldo Copertino Duarte Universidade Federal de Rondônia – UNIR Profª Drª Zulma Viviana Lenarduzzi Facultad de Ciencias de la Educación – UNER, Argentina
Projeto gráfico: Carlos Henrique C. Gonçalves Foto para capa: Marcus Vinícius Xavier de Oliveira Capa: Carlos Henrique C. Gonçalves Preparação e revisão de textos/normalizações (ABNT): Editora De Castro
DOI: 10.46383/isbn.978-65-6036-329-8 Todos os direitos desta edição estão reservados a Geraldo Magela Pereira Leão. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998). Editora De Castro [email protected] editoradecastro.com.br
SUMÁRIO CAPÍTULO 1 QUANDO A REPRESENTAÇÃO NÃO REPRESENTA: OLIGARQUIAS CONGRESSUAIS E A PEC 80/2019 Alexandre de Freitas Carpenedo 7 CAPÍTULO 2 A POLITIZAÇÃO DA PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL DIANTE DO NEGACIONISMO CIENTÍFICO Alana Maria Passos Barreto Geovanna Sotero Corcinio Clara Cardoso Machado Jaborandy 27 CAPÍTULO 3 O FEMINICÍDIO COMO VIOLAÇÃO SISTÊMICA DE DIREITOS HUMANOS NA AMAZÔNIA OCIDENTAL Taís de Souza Leite 35 CAPÍTULO 4 UNIVERSIDADE PÚBLICA E A EXPERIÊNCIA DE ESTUDANTES INDÍGENAS NO ENSINO SUPERIOR: COTAS RACIAIS COMO UMA MEDIDA PALIATIVA DAS DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO Thiago Botelho de Almeida 45 CAPÍTULO 5 MARCAS DO NEOLIBERALISMO NO DISCURSO TELEVISIVO SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER Rafael Barbosa Fialho Martins 53 CAPÍTULO 6 DEMOCRATIZAÇÃO DA LITERATURA COMO UM PRINCÍPIO DA GARANTIA DE DIREITOS DAS MINORIAS NA AMAZÔNIA Solange Henrique Chaves Ribeiro Aparecida Luzia Alzira Zuin 61 CAPÍTULO 7 OMISSÃO DE DADOS DE LGBTFOBIA EM RONDÔNIA Grieco da Costa Lidoni 69 CAPÍTULO 8 A INSTRUMENTALIDADE DO DIREITO NA PANDEMIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DA BIOPOLÍTICA EM AGAMBEN E FOUCAULT Gustavo Akio Mizuno Tamura 79 CAPÍTULO 9 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA CARCERÁRIO DE RONDÔNIA Laíla de Oliveira Cunha Nunes 85 CAPÍTULO 10 A ALIMENTAÇÃO ESCOLAR EM CONTEXTO DE COVID-19 EM PORTO VELHO/RO Melba de Souza Guimarães Aparecida Luzia Alzira Zuin 93 CAPÍTULO 11 CUMPRA-SE! PADRONIZAÇÃO DAS SENTENÇAS DE GUARDA Sírlei Felberg Thais Bernardes Mganhini 103 CAPÍTULO 12 NEM OS AQUEUS FORAM TÃO BÁRBAROS! OS DESAPARECIDOS FORÇADOS DO ARAGUAIA E A OMISSÃO DO BRASIL EM REVELAR O DESTINO DE SEUS CORPOS Marcus Vinícius Xavier de Oliveira 117
CAPÍTULO 13 A AMAZÔNIA E A “UTOPIA AUTORITÁRIA”: INTEGRAÇÃO, OCUPAÇÃO E EXPLORAÇÃO César Augusto Bubolz Queirós 141 CAPÍTULO 14 THE JUDGE’S DILEMMA: THE JUDICIALIZATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE LIMITS OF THE STATE Layde Lana Borges da Silva 155 CAPÍTULO 15 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: COMPATIBILIZAÇÃO DO MEIO AMBIENTE, ECONOMIA E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Adriana Vieira da Costa Thais Bernardes Maganhini 169 CAPÍTULO 16 FRONTEIRAS DA AMAZÔNIA E VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS: UMA VISÃO A PARTIR DE RELATÓRIOS DE ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS Patrícia Mara Cabral de Vasconcellos 181 CAPÍTULO 17 A ACTIO POPULARIS E DIREITO INTERNACIONAL Marcus Vinícius Xavier de Oliveira 199 CAPÍTULO 18 HUMAN RIGHTS AND THE PEDAGOGY OF FEAR: A READING OF “IN THE CONSTRUCTION TO THE GREAT WALL OF CHINA” FROM KAFKA Marcus Vinícius Xavier de Oliveira 221
CAPÍTULO 1 QUANDO A REPRESENTAÇÃO NÃO REPRESENTA: OLIGARQUIAS 1 CONGRESSUAIS E A PEC 80/2019 Alexandre de Freitas Carpenedo2
Introdução
Considerado o grupo de maior influência no Congresso Nacional, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), por vezes confundida com a “bancada ruralista”, até o final da última legislatura era representada por praticamente a metade do número total de deputados federais e senadores: 251 e 39 parlamentares (Brasil, 2019d), de um total de 513 e 81 membros, respectivamente. Esse número representa o ápice de um processo visível desde a reabertura democrática do país: a ascensão da representação política oligárquica. Tal super-representatividade pode conferir ao bloco ruralista um amplo domínio sobre a agenda política do Congresso, permitindo que o grupo tenha capacidade de escolha dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que possuem vastos poderes para determinar a pauta legislativa. Além disso, a bancada pode virtualmente aprovar ou rejeitar qualquer projeto de lei, e a aprovação de emendas constitucionais é impensável sem que haja uma ampla colaboração ruralista. Fruto de uma regularidade histórica, a representação congressual oligárquica, desde a promulgação da Constituição de 1988, tem conseguido obter ainda mais influência política. Representando os interesses dos produtores rurais e agroindústrias no Congresso Nacional, o seu déficit 1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Graduado e mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Público – ênfase em Direito Constitucional. Pesquisador no grupo de pesquisa (CNPq) Constitucionalismo na América Latina, também da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Procurador Federal na Advocacia-Geral da União (AGU). E-mail: [email protected]. ORCID: 0000-0002-9295-0593.
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de representatividade em relação à população em geral e, notadamente, às minorias do campo, é patente. No mais das vezes, as articulações políticas realizadas pela FPA são pautadas em interesses econômicos específicos, em detrimento de questões ambientais, sociais e de direitos humanos. No âmago desta representação política bastante específica, elitista e conservadora, ganha destaque a Proposta de Emenda à Constituição 80/2019 (PEC 80/2019). Encabeçada pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL/ RJ), mas subscrita por nada menos que 27 senadores, oriundos de 19 estados diferentes, a PEC 80/2019 visa a alterar o art. 186 do texto constitucional, que trata da função social da propriedade, condicionando, ainda, a desapropriação para fins de reforma agrária à prévia autorização do Poder Legislativo ou de decisão judicial, enfatizando a observância do valor de mercado da propriedade na indenização a ser paga pela União. De caráter marcadamente conservador, a proposta tem o nítido propósito de servir como bloqueio – mais um a ser somado aos já existentes – à reforma agrária. Desta forma, com base nos fatos narrados, a presente investigação tem como problema de pesquisa a seguinte questão: a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 80/2019 poderá dificultar o exercício do direito fundamental de acesso equitativo à terra pelas minorias camponesas que dela necessitam? O problema de pesquisa é restrito aos potenciais efeitos deletérios da proposta à questão agrária. Embora a PEC 80/2019 também trate da função social da propriedade urbana, o seu foco é, sem dúvida, a aplicação do princípio às propriedades rurais. O mesmo ocorre com a presente pesquisa, focada, até por uma questão de delimitação do objeto, nesta última questão. Divide-se o trabalho em três partes. Na primeira, abordam-se o processo de promulgação da Constituição de 1988 e os problemas de concentração fundiária que não foram resolvidos após este evento, a despeito da esperança em contrário. Trata-se da super-representação que possuem os setores oligárquicos no cenário político, que deu origem à UDR, à bancada ruralista e, após, à Frente Parlamentar da Agropecuária. Na segunda parte, trata-se, propriamente, do processo legislativo da PEC 80/2019, seus articuladores, relatoria, bem como seus objetivos em relação à desapropriação para fins de reforma agrária. Por fim, a última parte trata das consequências jurídicas que a proposta trará, caso aprovada, das questões relacionadas aos problemas fundiários no País, não levados em consideração pelos setores de representação oligárquica no Senado Federal, bem como de considerações acerca de sua possível inconstitucionalidade. Como delineamento da pesquisa, utiliza-se o estudo de caso, que tem como objetivo explicitar as variáveis causais de determinado fenômeno em situações complexas, as quais não possibilitariam a utilização de levanta8
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mentos exclusivamente bibliográficos ou experimentos (Gil, 2008, p. 58). O trabalho não prescinde, contudo, das pesquisas bibliográfica e documental (obras doutrinárias, artigos, legislação, julgados do ordenamento jurídico pátrio e processo legislativo, neste caso especificamente no Senado Federal), utilizando-as como complemento. A promessa não cumprida da constituição: concentração fundiária, miséria no campo e representação oligárquica
Considerada a mais progressista da história brasileira, a Constituição de 1988 teria a capacidade de absorver e arbitrar as crises políticas por que o País tem passado (Sarmento, 2009), reconhecendo, como nenhuma outra, direitos de cunho fundamental e garantias individuais e coletivas ao suposto titular do poder constituinte originário: o povo.3 No entanto, apesar das promessas de transformação social e de justiça que a Constituição representa, a realidade no campo brasileiro ainda é marcada pela concentração fundiária, pela miséria e pela falta de acesso a direitos básicos. O cenário de super-representação de grupos oligárquicos no cenário político configura uma continuidade histórica, que, hoje, garante a perpetuação desse cenário de desigualdade e injustiça. Nas páginas seguintes, abordaremos a questão da concentração fundiária, da miséria no campo e da representação oligárquica, a fim de entender como esses problemas se relacionam e quais os desafios para transformar essa realidade. A promessa constitucional por reforma agrária
O fim da ditadura militar, depois de longos 21 anos, trouxe consigo o processo de redemocratização e a proposta de renovação do Texto Político. Assim, após quase dois anos de muitos debates e intensas disputas, a Assembleia Nacional Constituinte finalmente promulgou, em 5 de outubro de 1988, a atual Constituição da República Federativa do Brasil. Esse processo trouxe consigo uma narrativa de esperança no futuro e superação do passado (Baggio, 2022), visão essa que se permaneceu incólume ao longo das décadas que se seguiram ao novo marco constitucional. Esse otimismo é ilustrado em artigo de Luís Roberto Barroso sobre os 10 anos da Constituição, como no seguinte trecho:
3 “Suposto” porque, embora seja formalmente considerado o titular do poder constituinte (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), na prática não é isso que se observa. Veja-se, por exemplo, como nem sequer há previsão de reformas constitucionais por iniciativa popular. O próprio déficit de representatividade do Congresso Nacional, de que trata o presente trabalho, pode ser considerado uma ilustração deste problema.
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é inegável: sem embargo das dificuldades, dos avanços e dos recuos, das tristezas e decepções do caminho, a história que se vai aqui contar é uma história de sucesso. Um grande sucesso. Sorria. Você está em uma democracia (Barroso, 1998, p. 2).
Com a questão da reforma agrária não foi diferente. Pela primeira vez na história brasileira, uma Constituição tratou de forma mais detalhada a matéria. O texto promulgado traz uma linda retórica, reiterando em pelo menos sete oportunidades a importância do cumprimento da função social da propriedade,4 da garantia de tratamento especial a propriedades produtivas e da proteção às pequenas e médias propriedades rurais. É a partir dessa ideia de otimismo que são construídos argumentos cuja função é reforçar a legitimidade constitucional, como tentativa de superar as máculas de um processo tutelado de redemocratização (Baggio, 2022). As visões do texto constitucional como garantista e promotor da justiça social permanecem, embora grande parte dessa ideia não resista a uma análise mais apurada do processo constituinte. A manutenção da concentração fundiária
De acordo com Adriano Pilatti, foi uma combinação de fatores diversos, de causas gerais e de consequências imprevistas, que produziu uma Constituição que, para defensores e críticos, seria caracterizada mais por seus discutíveis conteúdos progressistas do que pelos seus inegáveis aspectos conservadores. Ainda, para o autor, embora ela seja caracterizada (questionavelmente) como progressista, isso se deve em parte às vitórias alcançadas pelo bloco minoritário em questões sociais e de direitos, que tendem a ser mais lembradas do que as grandes vitórias conservadoras no restante do processo constituinte. A interpretação conservadora do resultado seria esperável, dado o histórico constitucional brasileiro, e qualquer inovação ou transformação que não atendesse aos interesses das elites seria considerada “aberrante”. Porém, surpreende que grupos menos privilegiados adotem interpretação semelhante, dando demasiada ênfase às conquistas sociais em detrimento de um grande sistema de continuidades aprovado pelos constituintes (Pilatti, 2020). Dentre esse sistema de continuidades, a reforma agrária não constitui exceção. Ao analisar os dados do IBGE entre os anos de 1985 e 2006, é notável que a política de reforma agrária fracassou em reduzir o elevado grau de concentração fundiária existente durante a transição democrática. O Índice de Gini para Concentração Fundiária no Brasil, utilizado para
4 Arts. 5º, XXIII; 170, III; 173, I; 182, § 2º; 184, caput; 185, parágrafo único; e 186, caput.
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mensurar a desigualdade no campo,5 permaneceu praticamente inalterado, atingindo o elevado valor de 0,857 ponto em 1985 e mantendo-se em 0,854 ponto em 2006, quase idêntico ao valor de 21 anos atrás (Delgado, 2017). Esse intervalo abrangeu os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e o primeiro mandato de Lula, considerados como os mais avançados, em toda a história nacional, em termos de política de acesso à terra.6 Nem isso foi capaz de reduzir o alto nível da concentração fundiária brasileira. Se nem mesmo nos períodos anteriores foram obtidas melhorias nessa temática, não surpreende que o censo seguinte, de 2017, tenha mostrado que a concentração de terras não apenas não foi reduzida suficientemente, como na verdade aumentou ainda mais, com o Índice de Gini alcançando um patamar de 0,867 ponto (Brasil, 2017). A evolução do Índice é representada pela tabela abaixo: Tabela 1
- Brasil - Concentração Fundiária: Índice de Gini 1920-1980 Leitura do índice de Gini (graus de concentração)
Ano
Índice
1920
0,804
1940
0,831
Nula
0,000-0,100
1950
0,843
Fraca
0,101-0,250
1960
0,841
Média
0,251-0,500
1970
0,843
Forte
0,501-0,700
1975
0,851
Muito forte
0,701-0,900
1980
0,859
Absoluta
0,901-1,000
1985
0,858
Fonte: Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) apud Linhares e Silva
(2021, p. 231-232).
Tudo isso a despeito da promulgação de uma Constituição supostamente preocupada com as injustiças sociais no campo e que enfatizava a “importância” da função social da propriedade, como visto acima, e com a efetiva implementação da reforma agrária. No entanto, mais de três décadas depois, o aumento da concentração fundiária mostra que a Constituição de 1988 foi uma promessa não cumprida. 5 O Índice de Gini, ou Coeficiente de Gini, é uma medida utilizada para calcular graus de desigualdade social (como a concentração de renda ou de terras, por exemplo). Varia de 0, que representa uma perfeita igualdade entre todas as pessoas em análise, a 1, valor que representaria a mais absoluta desigualdade. 6 Entende-se que o termo “reforma agrária” não poderia ser utilizado para as práticas políticas já realizadas por qualquer um dos governos da Nova República (dizer o mesmo dos governos a ela anteriores seria redundante). Isso porque “reforma” pressupõe a alteração da estrutura, e o Brasil nunca chegou nem perto de alterar a estrutura fundiária oligárquica existente desde a invasão do território pelo europeu. O que houve foram políticas específicas de assentamento.
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A análise detalhada do processo constituinte explica por que a concentração fundiária ainda é um problema longe de ser resolvido. Na verdade, mais do que explicar, demonstra por que esse resultado é – ou deveria ser – previsível. Embora algumas normas retoricamente favoráveis à reforma agrária tenham, de fato, sido constitucionalmente positivadas, outros fortes bloqueios à sua concretização também foram. Dentre eles, a insuscetibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária da propriedade produtiva (art. 185, II, da Constituição), considerada a maior vitória do bloco conservador em todo o processo constituinte. Outra vitória, bem menos percebida pelo bloco constituinte progressista e pela literatura, foi tratar o descumprimento da função social da propriedade como condicionante à desapropriação agrária, tal como previsto no texto constitucional em seu art. 184, caput. Esta norma, pensada na época da ditadura militar,7 limita em muito a quantidade de imóveis passíveis de expropriação e dificulta a concretização de uma reforma agrária efetiva. Representação oligárquica: União Democrática Ruralista e Frente Parlamentar da Agropecuária
Grande parte da vitória oligárquica no processo constituinte pode ser atribuída à União Democrática Ruralista (UDR). Considerada o mais radical grupo de articulação do latifúndio à época da Constituinte, a UDR conseguiu mobilizar massas para compor o quadro inquietante que transformou “a Constituinte em um palco do conservadorismo, impedindo a realização das ‘mudanças’ e colocando dúvidas sobre o desfecho do processo de redemocratização’” (Ribas, 2011, p. 07). Não bastasse a vitória da UDR no processo constituinte, o que se seguiu a ela foi uma crescente aproximação entre Congresso Nacional e representantes do agronegócio. Delgado destaca como a diferença entre este período, em relação ao dos governos militares, reside principalmente no caráter político desse pacto do grande setor rural, construído a partir da reabertura “sob as condições da ordem democrática, com sustentação parlamentar, forte adesão de todos os governos federais, ainda que à margem do princípio constitucional da função social da propriedade fundiária” (Delgado, 2017, p. 09). A super-representatividade das oligarquias do setor agrário sempre foi uma constante na história política brasileira. Mesmo na época da dita “crise oligárquica”, surgida principalmente a partir do desenvolvimento 7 O descumprimento da função social da propriedade, como situação autorizativa à desapropriação agrária pela União, foi previsto pela primeira vez no Estatuto da Terra, aprovado em 1964, poucos meses após o golpe (Brail, 1964).
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da industrialização substitutiva de importações (Cardoso; Faletto, 1977), o setor manteve uma representação política muito superior ao seu capital econômico e social (Graciarena, 1971). Especificamente no que tange ao período pós-1988, percebe-se que a representação congressual oligárquica se encontra em uma ascensão quase constante. Esse processo se tornou ainda mais intenso a partir dos anos 2000, quando o forte capital político encontrou uma igualmente forte ascensão no capital econômico destes grupos. Antes de analisar a escalada na super-representação oligárquica no Congresso Nacional, um esclarecimento se faz necessário: a bancada ruralista não se confunde com a FPA. Esta última consiste em uma frente parlamentar formalizada, enquanto a primeira atuaria informalmente, ainda que, também, buscando a concretização dos interesses oligárquicos. Somente a partir de 2005 as frentes parlamentares passaram a ser formalmente constituídas (Brasil, 2005). Assim, além da inscrição regular na FPA, a análise dos membros da representação oligárquica há de ser feita a partir de outras fontes, como autodeclarações, profissão ou propriedade de bens rurais. Se, na primeira legislatura pós-Constituição (1991-1994), a bancada ruralista não tinha “mais do que vinte parlamentares, mas que orquestrados constituíam um poder de articulação razoável” (Vigna, 2001, p. 09),8 esse número cresceu absurdamente nos anos seguintes. Em função da extraoficialidade do grupo, os números variam conforme a fonte.9 Mas, a partir da 53ª legislatura (2007-2011), com uma frente parlamentar regularmente constituída, é possível perceber mais claramente a sua evolução. Em 2008, por ocasião do primeiro registro da Frente Parlamentar da Agropecuária, ela contava com 183 deputados federais e 26 senadores (Brasil, 2019d). Os primeiros dados oficiais acerca da representação congressual oligárquica mostram que ela já dominava um terço de ambas as casas legislativas desde o seu início. Na legislatura seguinte (2011-2015), passou a contar com 192 deputados federais. Por outro lado, teve uma relevante queda no Senado Federal (ainda que seja a única observada em todo o período, consideradas ambas as casas), ficando com “apenas” 11 senadores.10 8 Ainda de acordo com o autor, especificamente nessa época, a bancada se confundiria com a própria UDR, que seria extinta em meados da década de 1990. Ainda, haveria maior representatividade do latifúndio do que esse número aparenta, uma vez que o grupo apenas não teria mais membros oficiais em decorrência do seu caráter radical e violento (Vigna, 2001). 9 Como exemplo, Edélcio Vigna (2001) afirma que a bancada ruralista teria 117 parlamentares no Congresso na legislatura de 1995-1999, ao passo que o jornal Folha de São Paulo (Integrantes, 1996) alega que seriam 159. 10 A despeito da redução no número de senadores, Vigna argumenta que a capacidade de mobilização do grupo não é afetada, pois sua influência política está em sua habilidade de atrair um grande número de deputados, mesmo aqueles que não estão diretamente alinhados com seus interesses (Vigna, 2007). Ainda que a análise tenha sido realizada para outra legislatura, o raciocínio permanece o mesmo – o que, aliás, é demonstrado pelas constantes vitórias do agronegócio no Poder Legislativo federal.
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Na 55ª legislatura (2015-2019), o número aumentou ainda mais na Câmara de Deputados: 228 parlamentares. Teve um salto, também no Senado: 27 membros passaram a compor a frente parlamentar. Por fim, a super-representação oligárquica atingiu o seu ápice na última legislatura (2019-2023), com 251 deputados federais e 39 senadores. Graficamente, a evolução da frente parlamentar no Congresso pode ser assim representada: Gráfico 1
- Número total de senadores integrantes da FPA
Fonte: elaboração própria, a partir dos dados
obtidos no Congresso Nacional. Gráfico 2
- Número total de deputados federais integrantes da FPA
Fonte: elaboração própria, a partir dos dados obtidos no Congresso Nacional.
Praticamente a metade do Congresso Nacional encontra-se nas mãos dos ruralistas. Desta forma, é fácil verificar a afirmação, feita na introdução deste trabalho, acerca do amplo domínio do poder de agenda por parte deste grupo. Sozinho, pode praticamente escolher os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, cujos poderes para a defi-
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nição do quotidiano legislativo são amplos e diversificados.11 Da mesma forma, pode virtualmente aprovar – ou rejeitar – quaisquer projetos de lei. A aprovação de emendas constitucionais é impensável sem uma ampla colaboração da bancada. Esse grupo também se destaca pela ampla vantagem recebida ao longo das eleições. Embora o capital financeiro não seja o único critério capaz de definir uma eleição, e também não constitua a única estratégia de mobilização dos atores econômicos (Mancuso, 2007, p. 88), é o que determina o índice de sucesso eleitoral, ao menos em escala de bancada, porque a média de gastos dos que são eleitos é maior do que a dos que não são (Samuels, 2000). Há diversos estudos que atestam como a média de arrecadação dos eleitos é mais alta que a dos parlamentares derrotados (Samuels, 2000; Nicolau, 2017; Lemos; Marcelino; Pederiva, 2010). Mas o que se verifica é que os valores obtidos pelos maiores articuladores das pautas do latifúndio mostram-se ainda maiores do que essa média que considera apenas os eleitos. A maior parte dos valores arrecadados por estes parlamentares adveio de setores ligados ao agronegócio ou com interesses correlatos (mineração, indústria têxtil etc.). Comparando o montante arrecadado por estes dois grupos (principais articuladores das agendas políticas da FPA x média geral de eleitos), a comparação fica da seguinte forma: Tabela 2
- Deputados federais
Ano
Média – articuladores da FPA
Média geral – eleitos
2002
R$ 1.658.443,88
R$ 768.684,99
2006
R$ 1.871.471,60
R$ 1.191.895,74
2010
R$ 5.451.270,92
R$ 2.198.633,27
2014
R$ 5.955.312,80
R$ 2.210.428,60
2018
R$ 2.534.133,58
R$ 1.744.307,31
Fonte: elaboração própria, a partir dos dados obtidos no TSE.
11 Além de estarem na linha sucessório do presidente da República, são eles quem convocam e presidem as sessões, definem a sua pauta de votação, distribuem as propostas legislativas entre as comissões, designam os membros (titulares e suplentes) destes grupos, além de distribuir, nas mesas das casas respectivas, a relatoria de matérias que dependam de parecer. Nem mesmo o processo de impeachment, como discutido à exaustão na última legislatura, tem andamento sem a iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados.
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Tabela 3
- Senadores
Ano
Média – articuladores da FPA
Média geral – eleitos
2002
R$ 5.431.322,63
R$ 2.782.628,86
2006
R$ 4.898.876,48
R$ 2.564.821,45
2010
R$ 10.332.199,80
R$ 8.463.805,21
2014
R$ 15.660.008,08
R$ 7.382.125,19
2018
R$ 3.393.833,55
R$ 2.242.392,33
Fonte: elaboração própria, a partir dos dados obtidos no TSE.
Foram objeto de análise as eleições de 2002, 2006, 2010, 2014 e 2018. A limitação a estes pleitos se justifica porque, anteriormente a 2002, não há informações disponibilizadas pelo TSE acerca das doações recebidas pelos candidatos. De qualquer forma, entende-se que tal limitação não há de prejudicar a pesquisa. Primeiro, porque a prestação de contas pelos candidatos só foi devidamente regulamentada pela Lei 9.504/1997, de modo que qualquer análise das eleições de 1990 e 1994, ainda que fosse possível, seria, no mínimo, problemática.12 Ademais, as eleições de 1998 foram as primeiras após a regulamentação, sendo razoável crer que a qualidade das informações prestadas estaria longe de qualquer grau de otimização.13 Por fim, como os parlamentares foram escolhidos a partir das principais agendas políticas do agronegócio,14 não seria possível incluir as eleições de 2022 na pesquisa. A evidente vantagem competitiva garante que os grupos oligárquicos mantenham seus privilégios históricos, e que seus representantes, fortemente beneficiados pelo poder econômico, tenham êxito nos processos eleitorais subsequentes, garantindo a manutenção da representação das oligarquias no Congresso, em um ciclo de retroalimentação – manutenção esta há muito verificável, eis que, assim como o fenômeno da concentração fundiária, a oligarquização do poder político também configura uma regularidade histórica no País. 12 Até havia previsão sobre a necessidade de prestar contas, pelos candidatos, na Lei 8.713/1993 (Brasil, 1994). Esta prestação, todavia, era enviada aos Comitês Eleitorais (arts. 50, 51, 52 c/c 33 e 55), o que poderia comprometer a qualidade das informações. Para as eleições de 1990, não havia esta obrigatoriedade de prestação de contas. 13 Um exemplo da falta de comprometimento com as declarações, mesmo após a sua regulamentação, pode ser visto na declaração de bens de um antigo parlamentar para as eleições de 2002. Mesmo sendo deputado federal desde 1987, fez uma mera declaração dizendo “não possuir bens a declarar”. Isso mostra como a declaração de bens (e, possivelmente, a prestação de contas) não era levada a sério por muitos candidatos. Ademais, à época a informatização era muito menor, o que por certo dificultava qualquer tipo de auditoria, ao contrário dos dias de hoje. Aparentemente, não houve nenhum prejuízo, afinal o deputado foi eleito naquelas eleições. 14 Agendas políticas, aqui, são vistas em sentido amplo. Não apenas leis aprovadas – embora estas tenham tido grande relevância na pesquisa, como, por exemplo, as Leis 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), 12.651/2012 (“Código Florestal”) e 13.986/2020 (“Lei do Agro”) –, mas também projetos de lei, propostas de emendas à Constituição, bloqueio a projetos contrários, CPIs etc.
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Garantindo a perpetuação dos privilégios oligárquicos: a PEC 80/2019
Pode-se citar, entre as mais representativas consequências da super-representação congressual oligárquica nos últimos anos, a PEC 80/2019. Como ementa, refere que: “Altera os artigos 182 e 186 da Constituição Federal para dispor sobre a função social da propriedade urbana e rural”. Seu resumo explicativo, por sua vez, afirma que: “Regulamenta a função social da propriedade urbana e condiciona a desapropriação da propriedade urbana e da rural à prévia autorização do poder legislativo ou de decisão judicial, observando-se em ambos os casos o valor de mercado da propriedade na indenização” (Brasil, 2019b). Eis a pretendida nova redação do dispositivo: Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e atende, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, ao menos um dos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. § 1º O descumprimento da função social de que trata o caput somente será declarado por ato do Poder Executivo, mediante autorização prévia do Poder Legislativo, ou por decisão judicial. § 2° A desapropriação por descumprimento da função social será feita pelo valor de mercado da propriedade rural.
No que diz respeito à questão agrária, a proposta tem como objetivo alterar o art. 186 da Constituição da República. Se a proposta for aprovada, o cumprimento de apenas um dos quatro requisitos ali previstos (hoje, eles são cumulativos) bastará para que se considere que o imóvel rural cumpra com sua função social. A PEC tem como signatário primevo o senador Flávio Bolsonaro (PSL/RJ), mas também foi subscrita por outros 26 senadores, oriundos de 19 estados diferentes. Todos são membros da FPA: Senador Flávio Bolsonaro (PSL/RJ) (1º signatário), Senadora Juíza Selma (PSL/MT), Senador Alvaro Dias (PODE/PR), Senadora Mailza Gomes (PP/AC), Senadora Maria do Carmo Alves (DEM/ SE), Senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), Senador Arolde de Oliveira (PSD/RJ), Senadora Simone Tebet (MDB/MS), Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS), Senador Carlos Viana (PSD/ 17
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MG), Senador Chico Rodrigues (DEM/RR), Senador Eduardo Girão (PODE/CE), Senador Elmano Férrer (PODE/PI), Senador Irajá (PSD/TO), Senador Jorge Kajuru (PSB/GO), Senador José Maranhão (MDB/PB), Senador Lasier Martins (PODE/RS), Senador Luiz do Carmo (MDB/GO), Senador Marcos do Val (CIDADANIA/ES), Senador Nelsinho Trad (PSD/MS), Senador Omar Aziz (PSD/AM), Senador Otto Alencar (PSD/BA), Senador Roberto Rocha (PSDB/MA), Senador Romário (PODE/RJ), Senador Styvenson Valentim (PODE/RN), Senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), Senador Weverton (PDT/MA) (Brasil, 2019b).
Sua tramitação iniciou no Senado Federal e, devido a questões certamente imprevistas à representação oligárquica, ainda se encontra pendente de tramitação. Encaminhada para publicação em 21/05/2019, a proposta foi remetida à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania no mesmo dia. Duas semanas depois, em 06/06/2019, foi designada como relatora a senadora ruralista “Juíza” Selma Arruda (PSL/MT), que, no intervalo de apenas um mês (09/07/2019), manifestou-se pela sua constitucionalidade. Todavia, Selma, junto com seus suplentes, foi cassada pelo TSE, por abuso de poder econômico e arrecadação ilícita de recursos (Brasil, 2019c). Assim, o processo foi devolvido em 04/05/2020 e, desde então, aguarda designação de nova relatoria. Em consulta popular realizada no sítio eletrônico do Senado (“e-Cidadania”), a PEC recebeu 93,51% de votos contrários à sua aprovação, e somente 6,49% de votos favoráveis (Brasil, 2019b). Considerações acerca da PEC 80/2019: consequências jurídicas e (in)constitucionalidade
Tida como outra proposição que pode anistiar irregularidades cometidas pelo latifúndio, a PEC 80/2019, caso aprovada, vem a avultar a especulação imobiliária e praticamente pôr por terra as (já escassas) chances de concretização de reforma agrária efetiva no território nacional. Hoje, o art. 186 da Constituição obriga a que todos os requisitos previstos em seus incisos sejam cumpridos de maneira cumulativa, como fica expresso em seu caput: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos [...]” (Brasil, 2016, grifo nosso). Se a proposta for aprovada, o cumprimento de apenas um dos quatro requisitos ali previstos (aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho, exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores) bastará para que se considere que o imóvel rural cumpra com sua função social. 18
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Assim, se houver um “aproveitamento racional e adequado” da propriedade, a completa devastação da natureza ou a condição degradante de trabalho dos empregados não seriam suficientes para que o imóvel pudesse ser desapropriado. E mesmo que seu proprietário realizasse a verdadeira façanha de violar os quatro incisos do art. 186, a declaração de violação à função social somente poderia ser feita após autorizada pelo Congresso Nacional ou mediante ação judicial específica para tanto. Os problemas sociais decorrentes da miséria no campo, a excessiva concentração de terras historicamente existente no Brasil,15 o fato de a injustiça fundiária ter se agravado ainda mais após a promulgação do texto constitucional em 1988, a violência rural: nada disso é objeto de preocupação dos senadores. Mais importante é garantir a visão civilista, defendida entre o século XIX e início do Século XX, do direito de propriedade: individualista e visto como uma garantia absoluta. Nada disso é levado em consideração na justificação da proposta, que tem como fundamentação argumentos vazios e genéricos, baseados em possíveis “arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação pelo Poder Público nos processos de desapropriação fundamentados na simples justificativa de se estar agindo em atenção ao interesse social”. Aduz-se, ainda, o cínico argumento de que as alterações viriam a contribuir “para evitar a recorrência e a perpetuação de injustiças, aprimorando o arcabouço protetivo do direito fundamental à propriedade” (Brasil, 2019b, p. 03-04). A relatora Selma Arruda, que teve como principais financiadores de campanha um personagem conhecido como “Barão do Agro” e sua esposa,16 não vê qualquer inconstitucionalidade na proposta. Aliás, sua nomeação como relatora da proposta é, no mínimo, curiosa, uma vez que foi, ela própria, uma das subscritoras do documento. Em seu parecer, ela assim fundamenta: Quanto ao mérito da proposta, comungamos com a afirmação dos seus autores de que as alterações sugeridas contribuirão para evitar a recorrência e a perpetuação de injustiças, aprimorando o arcabouço protetivo do direito fundamental à propriedade. Entendemos que o direito de propriedade é fundamental para a existência de uma sociedade aberta na qual as pessoas possam exercer, em toda a sua amplitude, a liberdade de dispor de seus bens como quiserem, desde que não prejudiquem o direito dos outros (Brasil, 2019a, p. 3).
15 De acordo com João Pedro Stédile (2011), o Brasil teria a segunda maior concentração de terras em todo o mundo, ficando atrás somente do Paraguai. 16 De acordo com sua própria declaração, a senadora cassada recebeu do casal mais de R$ 1,45 milhão a título de financiamento da campanha para as eleições de 2018 (Brasil, 2018).
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Para Giacobbo e Hermany (2020), a relatora, ao analisar a constitucionalidade do projeto, apresentou argumentação jurídica superficial e desatualizada, baseando-se em concepções antigas da doutrina constitucionalista, que remontam ao início do século XX. Da mesma forma, a justificativa de contrariedade à adoção da função social da propriedade como elemento de validade do direito de propriedade é superficial e vincula de forma equivocada a garantia da coletividade a um suposto autoritarismo estatal, sem levar em consideração a pertinência teórica do princípio da função social. A questão da simultaneidade no cumprimento dos requisitos da função social já havia sido objeto de debates na Assembleia Nacional Constituinte, tendo essa sido uma das poucas vitórias do bloco progressista em prol da reforma agrária, ao conseguir manter essa exigência, a despeito de pressões do bloco conservador (Pilatti, 2020). De fato, vai totalmente de encontro ao próprio princípio da noção de que somente um dos requisitos seria suficiente para cumpri-la. Não cabe, agora, ignorar o que decidiu o poder constituinte originário e criar um conceito absolutamente fictício de função social da propriedade. Sim, fictício, porque de função social, de fato, não se trataria. Não é o texto de uma lei, ou mesmo da constituição, que tem o condão de alterar a realidade dos fatos. E um imóvel que cumpre apenas um dos requisitos, ignorando os demais, não está, de fato, cumprindo função social nenhuma. Eventual aprovação da proposta representaria um retrocesso até mesmo em relação ao Estatuto da Terra, aprovado durante a ditadura militar, que teve como objetivo apenas a “modernização conservadora” do campo (Delgado, 2017) e não se preocupou em realizar uma reforma agrária efetiva. A alteração do texto constitucional traria um atraso ainda maior à realidade fundiária nacional. Não à toa, a proposta foi considerada inconstitucional pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Para o relator da manifestação, Joycemar Lima Tejo, a proposta não passa de uma pretensão de alteração constitucional pensada “sob a ótica dos proprietários, para preservar-lhes os interesses, em detrimento da solidariedade social”. Ademais, “o instituto da desapropriação, que pressupõe indenização e obedece ao adequado procedimento administrativo, está em consonância com o constitucionalismo contemporâneo”, o que não ocorreria com o projeto de reforma. Por fim, a PEC seria inconstitucional por violar a separação dos poderes, uma vez que a exigência de autorização do Legislativo ou de decisão judicial para edição de atos expropriatórios implicaria violação de cláusula pétrea, uma vez que “feriria o equilíbrio harmônico entre eles” (PEC, 2020).
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Considerações finais
A Constituição de 1988 é tida como a mais progressistas da história do Brasil, reconhecendo direitos fundamentais e garantias individuais e coletivas à população. No entanto, a despeito das promessas de transformação e justiça social, a realidade no campo brasileiro ainda é marcada pela concentração fundiária, pela miséria e pela falta de acesso a direitos básicos. A super-representação de grupos oligárquicos no cenário político, como uma continuidade histórica, hoje garante a perpetuação desse cenário de desigualdade e injustiça. Embora o texto constitucional tenha previsto a reforma agrária como um dos mecanismos para a promoção da justiça social e da redução da desigualdade, a realidade é que ele não apenas falhou em reduzir a concentração fundiária, como também falhou em cessá-la. Hoje, como informam os dados do IBGE (2017) nos censos realizados entre 1985 e 2017, a concentração de terras é ainda maior do que em 1988, o que mostra como, no tocante à questão agrária, a Constituição se afigura como uma promessa não cumprida. A super-representação de grupos oligárquicos na política brasileira também é um fator que contribui para a manutenção desse cenário de desigualdade e injustiça. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), considerada a mais influente no Congresso Nacional, tem atuado de forma a manter os interesses das elites rurais, em detrimento das políticas públicas que visem à promoção da justiça social no campo. Nessa atuação conservadora, ganha destaque a PEC 80/2019, subscrita por 27 senadores integrantes da frente parlamentar. Um terço do total de membros do Senado Federal, prontamente articulados para verdadeiramente extirpar a função social da propriedade do ordenamento jurídico pátrio. Parece claro que a PEC é, de fato, inconstitucional. Primeiro, porque viola o princípio da vedação ao retrocesso social, uma vez que, a pretexto de “regulamentar” a função social da propriedade, na prática acaba anulando-a, funcionando como verdadeira autorização constitucional ao seu descumprimento. Como consequência, há de gerar evidente lesão à garantia dos direitos sociais previstos na Constituição, notadamente daqueles que dependem da reforma agrária para sua concretização. Segundo, porque viola frontalmente cláusula pétrea: o direito de acesso equitativo à terra, individual e de natureza fundamental. De fato, a jusfundamentalidade do direito de acesso equitativo à terra é facilmente perceptível a partir de uma leitura minimamente sistemática da Constituição. Ainda que, de maneira expressa, ela não preveja esta modalidade de prerrogativa fundiária, há muito se sabe que isso não impede que quaisquer direitos retirem seu fundamento de existência do texto constitucional, em base axiológica, a partir de princípios e regras gerais contidos no Texto Político de 1988. 21
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Assim, se o texto constitucional determina à União a atribuição de “desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social” (art. 184), a tal obrigação corresponde, por certo, um direito respectivo. Outrossim, o inciso XXIII, do art. 5º, ao trazer o cumprimento da função social da propriedade como uma obrigação, e ambos somados às normas do Título VII, Capítulo III (“Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária”), permite concluir, para além de qualquer dúvida razoável, a declaração formal do texto constitucional de querer superar os problemas de concentração fundiária existentes no País. Fruto, ou não, de uma cínica retórica da maioria dos constituintes, o fato é que a preocupação com a justiça fundiária está posta na Constituição. Não há dúvidas de que o direito à terra está previsto no Texto Político de 1988. A busca por um acesso a ela equitativo, também. Portanto, se o dever do Estado de promover a reforma agrária é constitucionalmente estabelecido, e isso também ocorre com o direito à terra, há de se reconhecer a existência do direito fundamental de acesso equitativo à terra. Assim, por violação ao art. 60, § 4º, inciso IV (“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] os direitos e garantias individuais”), mostra-se imperativo que, caso venha a ser convertido em emenda, o seja declarado inconstitucional. Terceiro, porque viola o princípio da separação dos “poderes” (ou funções) do Estado. A desapropriação para fins de reforma agrária é ato típico do Poder Executivo, a partir do decreto expropriatório do presidente da República, e cuja efetivação encontra-se a cargo do INCRA, autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Depender do aval do Legislativo ou do Judiciário para a simples publicação de um decreto executivo é violar o princípio em questão e, portanto, a cláusula pétrea do art. 60, § 4º, inciso III. Por fim, respondendo de modo direto ao problema de pesquisa (“a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 80/2019 poderá dificultar o exercício do direito fundamental de acesso equitativo à terra pelas minorias camponesas que dela necessitam?”), é possível, para além de qualquer dúvida, afirmar que sim. A PEC 80/2019, fruto de uma articulação da representação oligárquica, visando tão somente à manutenção das estruturas fundiárias desiguais, existentes há séculos, tem o potencial de dificultar ainda mais as desapropriações para fins de reforma agrária e, com isso, a concretização do direito fundamental de acesso à terra.
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CAPÍTULO 2 A POLITIZAÇÃO DA PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL DIANTE DO 1 NEGACIONISMO CIENTÍFICO Alana Maria Passos Barreto2 Geovanna Sotero Corcinio3 Clara Cardoso Machado Jaborandy4
Introdução
O desespero causado no início da pandemia da covid-19, em razão do avanço da doença entre as internações e mortes por infecções, motivou uma corrida desenfreada e de proporções mundiais pela busca da “cura”. Em uma situação emergencial de saúde – é o caso de surtos, epidemias e pandemias –, a comunicação e a informação são essenciais para auxiliar os órgãos responsáveis a tomarem medidas mais eficazes. As mídias sociais exercem forte poder de influência e a viralização de notícias falsas provocam comportamentos contrários à segurança coletiva. Informar é uma atuação fundamental para a conscientização de uma 1 Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho A responsabilização por graves violações dos Direitos Humanos, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? Este artigo é resultado de pesquisa de iniciação científica financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), publicado em Dossiê Temático da Revista Diké do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS). 2 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS). Bolsista acadêmica pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT/ SE). Integrante dos Grupos de Pesquisa Direitos Fundamentais, Novos Direitos e Evolução Social, cadastrado no diretório do CNPq. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9736169289437141. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1395-8475. 3 Pós-graduanda em Direito Tributário pela Universidade Tiradentes (UNIT/SE). Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT/SE). Advogada OAB/SE. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid. org/0000-0002-9089-7936. 4 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Professora do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes (UNIT/SE). Coordenadora do grupo de pesquisa “Direitos Fundamentais, Novos Direitos e Evolução Social”, presente no diretório do CNPq. E-mail: [email protected]. Lattes: http:// lattes.cnpq.br/1329591654395691. ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4526-5227.
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população e, por sua vez, ter informação significa poder. Esse exercício de poder pode, no entanto, distorcer os fatos, manipular as pessoas, descredibilizar a pesquisa científica, monopolizar as informações, de modo que fortaleça a desinformação. É dessa maneira que o presente texto se propõe a analisar os desafios de combate à desinformação durante a pandemia da covid-19 no Brasil, em ciência da ausência de dispositivos legais para conter o negacionismo científico. Nota-se que a partir da distorção de fatos, acontecimentos e informações, as bases democráticas da sociedade são, pouco a pouco, deterioradas. Para realizar essa análise, o texto a seguir divide-se em dois momentos, sendo a primeira parte destinada a compreender o cenário de crise de comunicação vivida na pandemia da covid-19 no Brasil. O segundo momento dedica-se a expor o negacionismo científico como resultado da desinformação difundida pelo Governo Federal. Para fins metodológicos, utilizou-se a pesquisa qualitativa, de caráter exploratório e ex-post-facto, de modo que para a análise dos objetivos, a coleta de dados foi essencial através do levantamento bibliográfico e documental. Em vista disso, o que se constata é o crescimento do negacionismo científico em razão da difusão de desinformação. Contudo, é necessário salientar que a propagação de fake news durante a pandemia da covid-19 no Brasil está diretamente ligada ao conhecido “Gabinete Paralelo”, ao aparelhamento do Ministério da Saúde com o chefe do Executivo Federal em parceria com instituições privadas, o que politizou o suposto combate à pandemia. A politização da pandemia da covid-19
A crise na veracidade das informações exigiu que a Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeasse o problema como “infodemia”, sendo este fenômeno caracterizado pelo aumento excessivo de informações associadas a um determinado assunto, havendo a possibilidade de uma multiplicação vasta em um curto período em detrimento de um evento específico, como a atual pandemia da covid-19. Essa crise comunicativa de circulação de informações foi amplificada através de uma disputa pela produção e disseminação de informações confiáveis em um espaço público impregnado por qualquer informação. Isso porque a covid-19 monopolizou a cobertura da imprensa mundial e produziu um vasto aumento na audiência da mídia tradicional, essencialmente entre a parte da população considerada menos informada, o que poderia representar uma oportunidade de ampliar sua credibilidade e rivalizar com as mídias sociais na busca por audiência (Casero-Ripollés, 2020). A infodemia alimenta-se da ansiedade primária das pessoas. Tendo em vista que as medidas de confinamento social obrigaram milhões de 28
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pessoas a permanecerem em suas casas – devido à necessidade de políticas de isolamento social para tentativa de contenção da propagação do vírus –, as redes sociais foram reforçadas enquanto principal meio de acesso à informação. Em razão do vírus ser muito recente, a insuficiência dos conhecimentos disponíveis sobre ele revelou-se um terreno fértil para a disseminação de fake news. Por conta disso, “[...] a relação entre as plataformas e a disseminação das informações convergem de modo que a combinação de ausência de regras e algoritmos encorajam a rápida difusão de conteúdos de qualidade questionável” (Barreto; Jaborandy, 2020, p. 19). Dessa forma, surge a desinformação marcada pela manipulação de informações com intenção duvidosa, sendo o fenômeno amplificado pelas redes sociais e alastrado rapidamente, como um vírus (OMS, 2020). Durante o momento crítico da pandemia da covid-19, o Ministério da Saúde passou por quatro gestões diversas: Luiz Henrique Mandetta, médico e político de direita, que estava no cargo de 2019 até abril de 2020; Nelson Teich, médico também ligado à direita política, que o substituiu e permaneceu no cargo até maio de 2020; o general Eduardo Pazuello, sem formação em medicina, que assumiu a pasta provisoriamente, enquanto o país estava sem ministro saúde oficialmente, e marcou a politização da pandemia implantando a suposta “medicina de guerra”; sendo continuada por Marcelo Queiroga, médico e político de direita, que somente aderiu ao cargo em março de 2021. Nesse cenário, o sítio eletrônico do ministério destinado a informações sobre o covid-19 sofreu alterações de acordo com a gestão. Por conta disso, o ministério fez fact-checking até a gestão de Teich. Contudo, é necessário ressalvar que a verificação dos fatos somente foi feita dos boatos, não sendo realizado sobre notícias falsas como o uso do “kit covid” ou sobre o discurso de “o Brasil não pode parar”. A insuficiência dos conhecimentos disponíveis sobre o vírus – por ser recente – se revelou um terreno fértil para a disseminação de narrativas falsas ou enganosas. Na era da informação, a manipulação de informações com intenção duvidosa é amplificada pelas redes sociais e se alastra mais rapidamente, como um vírus (OMS, 2020). O cenário de desinformação durante a pandemia no Brasil se agravou ao ponto de ser necessária a investigação das ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento nacional da Pandemia da covid-19 através da instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal, conhecida como CPI da Pandemia. Conforme o Relatório Final da CPI da Pandemia (2021a), havia uma organização dentro do Governo Federal formada por cerca de cinco núcleos 29
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que articulavam simultaneamente entre si, sendo eles: o núcleo de comando, que interage diretamente com o núcleo formulador, o núcleo político, o núcleo de produção e disseminação das fake news, e o núcleo de financiamento. Diante disso, em janeiro de 2022, o Ministério da Saúde publicou a Nota Técnica nº 2/2022-SCTIE/MS, republicada por meio na Nota Técnica nº 3/2022-SCTIE/MS pela Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, que fundamenta a decisão de não aprovar as Diretrizes Terapêuticas para o tratamento farmacológico da covid-19 (hospitalar e ambulatorial) no âmbito do SUS. A “nota técnica” foi contrária às diretrizes da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) para tratamento ambulatorial da covid-19. A versão inicial da Nota Técnica 2/2022-SCTIE/MS recomendou o tratamento com hidroxicloroquina e colocou em dúvida a eficácia da vacinação para crianças (Brasil, 2022). O documento foi depois modificado e teve retirada uma tabela comparativa da eficácia desse tratamento medicamentoso e da vacinação. É importante salientar que no julgamento de cautelar da ADI 6.421, o plenário do STF decidiu que os atos dos agentes públicos em relação à pandemia devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias (Brasil, 2020). O Partido Rede Sustentabilidade protocolou pedido de tutela provisória incidental afirmando que a nota técnica continua sem o devido embasamento científico e contraria as teses fixadas na decisão cautelar na ADI 6.421. De tal modo, requereu que fosse expedida nova nota técnica, com a observância das normas e dos critérios científicos e técnicos sobre o tema, estabelecidos por organizações e entidades reconhecidas em nível nacional e internacional. Para a Rede Sustentabilidade, a edição da nota foi um erro grosseiro juridicamente relevante. Por fim, é importante ressaltar como as principais plataformas digitais sociais enfrentam a desinformação. A partir do estudo promovido pelo Intervozes, nota-se que o Facebook e o Instagram não possuem uma política específica nem trabalham com uma definição própria de desinformação. O Facebook recebe denúncias e utiliza sistemas automatizados para analisar as publicações, além de encaminhar conteúdos para verificação por agências de checagem parceiras e, em caso de classificação como “falso” ou “parcialmente falso”, o conteúdo recebe um rótulo específico e passa a ser acompanhado de “artigos relacionados” produzidos por checadores (Barbosa; Martins; Valente, 2020). No que tange às declarações e postagens de líderes políticos, elas são excepcionadas e não passam por processos de verificação de agências de checagem parceiras. Ademais, durante a pandemia da covid-19, passaram 30
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a oferecer ao usuário um ícone para buscar mais informações sobre a fonte da postagem referente ao tema. Diferentemente delas, o WhatsApp, que atua como um aplicativo de mensagens privadas criptografadas, não acessa, modera, julga, verifica, bloqueia ou retira qualquer conteúdo. De tal modo que o uso de grupos e listas de transmissão facilita a propagação de informações falsas. Após as eleições de 2018, foram feitas parcerias institucionais para verificação de conteúdos e realização de pesquisas, mas o alcance e a efetividade delas são questionáveis (Barbosa; Martins; Valente, 2020). Em meio a esse cenário, o Congresso Nacional iniciou a tramitação do Projeto de Lei nº 2.630/20, popularmente chamado de “PL das Fake News” para criar a Legislação Brasileira Referente à Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet; e após a aprovação no Senado Federal, o projeto de lei sofreu grandes alterações. Dentre as modificações mais substanciais, pode-se destacar a abrangência da aplicação da lei que estendeu para ferramentas de busca, não restringindo aos aplicativos de serviço de mensagens (Brasil, 2021b). Como também a guarda preventiva das mensagens encaminhadas em massa que foi excluída, e passou a vedar o encaminhamentos de mensagens ou mídias recebidas de outro usuário para múltiplos destinatários além da identificação dos remetentes e destinatários para uso de listas de transmissão, além de proibir a venda de tecnologias que disparem mensagens em massa (Brasil, 2021b). A respeito da moderação de conteúdo, o PL adota regras para que os provedores, instituam direitos e salvaguardas aos usuários, e que as plataformas disponibilizem um canal de acesso facilitado para consulta permanente das informações prestadas e denúncias sobre conteúdos ou contas, à exemplo dos populares chatbots (Brasil, 2021b). A negação da verdade
A sociedade de informação encontra-se marcada pela era da pós-verdade que é, na verdade, uma mentira. A narrativa negacionista contra a ciência, a vacina e a saúde pública interferem decisivamente na opinião pública e, consequentemente, no respeito às medidas de distanciamento e proteção à circulação do vírus. A utilização off-label – de medicamentos reposicionados contra a covid-19 –, naquela época, tornou-se bastante problemática tendo em vista que políticos proeminentes como Jair Bolsonaro (BRA) e Donald Trump (EUA) começaram a promover medicamentos não comprovados para combater a doença. De maneira mais grave, o discurso do Presidente da República foi determinante para a omissão do governo federal na implantação de políticas comunicacionais de conscientização e enfrentamento à pandemia de covid-19. 31
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No final de março de 2020, a OMS publicou que nenhum produto farmacêutico havia demonstrado ser seguro e eficaz para o tratamento da covid-19 e reconhecia que, em muitos países, médicos estavam prescrevendo medicamentos de forma off-label, recomendando que fossem prescritos caso a caso, de acordo com as legislações e que o uso emergencial desses medicamentos deveria ser monitorado, documentado e compartilhado em tempo hábil com a comunidade médica e científica em geral (Who, 2020). Até o final de maio de 2020 não havia evidências científicas contundentes sobre o tratamento de cloroquina/hidroxicloroquina para a covid-19. No entanto, a defesa pelo “kit covid”, como ficou conhecido, tomou ampla força no Brasil. Vale ressaltar que a revista The Lancet publicou retratações sobre os artigos publicados a respeito do uso desses medicamentos para tratamento, porque a empresa que forneceu os dados da pesquisa foi acusada de fraude posteriormente (Mehra et al., 2020). A defesa da cloroquina/hidroxicloroquina pelo governo brasileiro como um “tratamento milagroso” promoveu o uso generalizado de determinados medicamentos que não apresentavam nenhuma evidência científica, criando uma falsa sensação de segurança e levando à negação do isolamento social e do uso da máscara, que eram até o momento as medidas comprovadamente eficazes para prevenir a covid-19. O Relatório da CPI da Pandemia (2021a) demonstrou que posteriormente o Governo Federal ainda recusou as ofertas iniciais de vacina feitas pela empresa Pfizer, que havia demonstrado grande interesse em imunizar a população brasileira primordialmente tendo em vista o largo mercado nacional e o sucesso histórico no desempenho das campanhas de vacinação no País. Além de apenas adquirir a cota mínima de vacinas oferecida pelo consórcio internacional da OMS, o Covax Facility, na tentativa de atrasar as campanhas de vacinação (Brasil, 2021a). O mérito do “Tratamento Precoce da covid-19” com os medicamentos do “kit covid” é uma questão essencialmente científica, mas que lamentavelmente se tornou política (Furlan; Caramelli, 2021). Embora tardia, lentamente a vacinação no Brasil avançou, mas até o final de agosto de 2021 menos de 30% de toda a população estava totalmente imunizada, tendo em vista que as pessoas continuaram resistentes a tomar a vacina devido a preocupações sobre a eficácia (Furlan; Caramelli, 2021) em razão da desinformação promovida pelo chefe de Estado brasileiro. Considerações finais
À vista disso é notório os danos socioeconômicos, políticos e culturais, além do âmbito da saúde pública, no contexto da pandemia da covid-19, causados pela desinformação. A ascensão de ameaças híbridas e a gestão mal-intencionada 32
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de redes de comunicação e novas tecnologias ressaltam a urgência por comprometimento e cooperação entre os órgãos públicos e privados para ser possível garantir a defesa das instituições democráticas e o respeito aos direitos humanos. A pandemia da covid-19 levou a sociedade a um pleno estado de alerta, e no Brasil, o Presidente da República teve papel primordial ao politizar as ações do Ministério da Saúde para amplificar um estado caótico de incerteza sobre as informações passadas à população, de modo que não houve respeito ao protocolo internacional de combate à pandemia da covid-19. Por conta disso, a preocupação pela garantia do acesso à informação segura e verdadeira tornou-se mais relevante. É visível que a desinformação é um problema social em fase de estudos e procuras por solução. Considera-se que as ações de combate às redes de desinformação ainda carecem de organização, robustez, transparência e avaliação. A carência de uma matéria legislativa densa e robusta sobre o Direito Digital e a ausência de discussão judicial sobre a temática compravam por si só. A tentativa do projeto de lei nº 2.630/20 é válida, mas não é suficiente, tendo em vista que o enfrentamento à desinformação se mostra cada vez mais difícil, em ciência de que a legislação sempre estará atrasada em comparação ao desenvolvimento tecnológico. O problema da desinformação precisa ser efetivamente reconhecido, comunicado e enfrentado pelas plataformas, de modo que perpassa pela revisão da estrutura interna das empresas, sob pena de seguirem oferecendo remédios incapazes de interromper essa forma de comunicação desinformativa. Nesse sentido, a transparência algorítmica se funda como mecanismo essencial ao funcionamento da democracia, ao garantir ferramentas para que um usuário ganhe controle sobre como decisões automatizadas afetam sua percepção da realidade por meio da personalização de conteúdo. Referências
BARBOSA, B.; MARTINS, H.; VALENTE, J. Pesquisa Fake News: Como as Plataformas Enfrentam a Desinformação. InterVozes, 2020 Disponível em: https://intervozes.org.br/publicacoes/fake-news-como-as-plataformasenfrentam-a-desinformacao/. Acesso em: 19 jul. 2021. BARRETO, A. M. P.; JABORANDY, C. C. M. A Crise Jurídica da Sociedade de Informação: O Combate às Redes de Desinformação e o Cenário da Infodemia no Brasil. Revista Boletim Historiar, v. 8, p. 17-30, 2021. Disponível em: https:// seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/15945. Acesso em: 14 jan. 2022. BRASIL. Ministério da Saúde. NOTA TÉCNICA Nº 2/2022-SCTIE/MS. Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, 2022. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2022/01/Nota_ tecnica_n2_2022_SCTIE-MS-3.pdf. Acesso em: 20 jun. 2022. 33
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BRASIL. Relatório Final da CPI da Pandemia. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia – Instituída pelos Requerimentos nos 1.371 e 1.372. Senado Federal: Brasília, 2021a. Disponível em: https://senadofederalmy.sharepoint.com/personal/cpipandemia_arquivos_senado_leg_br/ Documents/Relat%C3%B3rio%20Final/Relatorio_Final_aprovado.pdf. Acesso em: 27 jan. 2022. BRASIL. Substitutivo ao Projeto de Lei nº 2.630, de 2020. Grupo de Trabalho destinado a analisar e elaborar parecer ao Projeto de Lei nº 2630, de 2020, e apensados, que visa ao aperfeiçoamento da Legislação Brasileira Referente à Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2021b. Disponível em: https://www.camara.leg.br/ proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2115425. Acesso em: 14 jan. 2022. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.421. Relator Min. Roberto Barroso. Distrito Federal, DF, 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=TP&docID=754359227. Acesso em: 25 jan. 2021. CASERO-RIPOLLÉS, A. Impact of COVID-19 on the media system: Communicative and democratic consequences of news consumption during the outbreak. Profesional de La Información, v. 29, n. 2, p. 1-11, 2020. Disponível em: https://revista.profesionaldelainformacion.com/index.php/ EPI/article/view/epi.2020.mar.23. Acesso em: 21 jan. 2021. FURLAN, Leonardo; CARAMELLI, Bruno. The regrettable story of the “Covid Kit” and the “Early Treatment of Covid-19” in Brazil. The Lancet Regional Health - Americas, v. 4, 2021. Disponível em: https://doi. org/10.1016/j.lana.2021.100089. Acesso em: 23 set. 2022. MEHRA, M. R.; DESAI, S. S.; RUSCHITZKA, F.; PATEL, A. N. Retraction – Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis. The Lancet, London, England, S0140-6736(20)31180-6. (Retraction published Lancet. 5 jun. 2020). Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31180-6. Acesso em: 23 fev. 2022. OMS. Organização Mundial da Saúde. Entenda a Infodemia e a Desinformação na Luta Contra a Covid-19. PAHO, OMS, 2020. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/FactsheetInfodemic_por.pdf?sequence=14. Acesso em: 28 jan. 2022. WHO. World Health Organization. Off-label use of medicines for COVID-19. Disponível em: WHO/2019-nCoV/Sci_Brief/Off-label_use/2020.1. 31/03/2020. Disponível em: https://www.who.int/news-room/commentaries/ detail/off-label-use-of-medicines-for-covid-19. Acesso em: 21 ago. 2020.
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CAPÍTULO 3 O FEMINICÍDIO COMO VIOLAÇÃO SISTÊMICA DE DIREITOS HUMANOS 1 NA AMAZÔNIA OCIDENTAL Taís de Souza Leite2
Introdução
A violência contra a mulher se manifesta de diversas formas, tais com: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial e podendo culminar no ápice delas todas, o feminicídio. Neste trabalho a delimitação conceitual no tocante às formas de violência contra mulheres deu-se a partir de legislações nacionais e internacionais que abordam a proteção das mulheres. Convém destacar que o Estado, como garantidor da eficácia dos direitos humanos, possui três tipos de obrigações: a) respeitar (não impondo obstáculos à utilização dos direitos humanos); b) proteger (prevenir e impedir a ocorrência de violações); e c) realizar (concretizar por meio da legislação interna, políticas administrativas e decisões judiciais para a promoção dos direitos humanos). O Manual Prático para Atuação em Direitos Humanos (OAB, 2016), ao tratar do monitoramento de violações em direitos humanos e desenvolvimento progressivo do Estado, aborda 4 metodologias: eventos; indicadores políticos e socioeconômicos; pesquisas de opinião e percepção pública; além da análise de especialistas.
1 Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos, Violências Urbana e Rural e Segurança Pública, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, Universidade Federal de Rondônia – UNIR (DHJUS/UNIR), Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (lato sensu) pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR, Bacharel em Jornalismo pela Faculdade Interamericana de Porto Velho – UNIRON, militante feminista e movimento social, na cidade de Porto Velho, Rondônia - Brasil. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5514369046515125. ORCID: 0000-0002-9396-5703.
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A premissa de que violação de direitos humanos são atos omissivos ou comissivos, por parte do Estado e parceiros (indivíduos ou grupos), que atinjam as normas de direitos humanos, os quais deveriam garantir o direito atingido. Assim, com o aporte teórico do Manual para Atuação em Direitos Humanos, buscamos identificar se o Estado estava sendo omisso ao não destinar recursos financeiros suficientes para a prevenção e a coibição da violência contra a mulher, o que culminaria numa violência sistêmica. Marcos normativos relacionados à violência contra a mulher
A evolução da sociedade e da legislação brasileira evidencia que a mulher como detentora de direitos é bastante recente, pois, como era invisibilizada socialmente, restou ser tratada da mesma forma pelo ordenamento jurídico, isto é, sem ter a tutela das suas necessidades e sendo obrigada a se submeter aos ditames da autoridade masculina. No entanto, a partir de lutas lideradas por movimentos de mulheres, as suas reivindicações começaram a ser expressas e a ganhar proporção até alcançar uma proteção jurídica. Não foi uma trajetória simples, pelo contrário, foi um longo e penoso processo para que tivessem direitos garantidos e fosse mitigada a discriminação contra a mulher, motivo pelo qual merece ser exposta. Marcos jurídicos internacionais
A partir da década de 70, principalmente entre os anos de 1975-1985, período este eleito pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a Década da Mulher, é possível observar convenções, declarações e pactos específicos no combate à violência contra a mulher. No tocante aos direitos humanos, especificamente, sobre os direitos da mulher, o “Brasil é o único país da América Latina que aderiu ou ratificou todos os 14 tratados internacionais universais e regionais, genéricos e específicos, que visam a proteção dos direitos das mulheres na esfera internacional” (Machado, 2015, p.15). Assim, identificar os compromissos jurídicos assumidos por cada país é de suma importância, tendo em vista que deles decorrem a responsabilidade em caso de descumprimento. Em 30 de abril de 1948 foi lançada em Bogotá, na Colômbia, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que na ocasião recebeu elogios por afirmar os princípios da universalidade e da indivisibilidade dos direitos humanos e a correlação entre deveres e direitos. Em que pese os elogios recebidos, a Declaração Americana não ficou isenta de críticas, tendo em vista a natureza do documento que era de “princípios morais”. Além disso, embora tivesse nos textos as expressões como “ser humano” ou “toda pessoa”, seu título dizia tratar-se de “Declaração dos Direitos dos Homens”, por isso as críticas. 36
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Ademais, pela resolução nº 217- A III, em 10 de dezembro de 1948, foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Declaração Americana dos Direitos Humanos, onde aduz sobre a dignidade, liberdade, justiça e paz. Está contido expressamente em seu preâmbulo a respeito de “um mundo em que todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade” e mais sobre “igualdade de direitos do homem e da mulher” (ONU, 1948). No bojo da declaração assevera que: “art. 2. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (ONU, 1948). No tocante, ainda à mulher, defende em seu art. 16 que os homens e mulheres têm o direito de contrair matrimônio e fundar família com iguais direitos. Bem como, em seu art. 25, protege a maternidade e à infância. Com a Declaração de Direitos Humanos, começou a desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de tratados voltados à proteção de direitos fundamentais. Decorrente disso, formou-se o sistema normativo global de proteção dos Direitos Humanos no âmbito das Nações Unidas (Mello, p. 35, 2018). O sistema normativo vem integrado por normas de alcance geral, tais quais os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, bem como por instrumentos de alcance específico, como as Convenções que buscam responder a determinadas demandas de violações de direitos humanos, tais quais as que se referem à discriminação racial, à mulher, crianças e adolescentes, dentre outras (Piovesan, 2012). O sistema geral de proteção diz respeito a toda e qualquer pessoa, ao passo que o sistema especial a trata com especificidade e concretude. Firmada, assim, a coexistência do Sistema Geral e Especial de Proteção dos Direitos Humanos como sistemas de proteção complementares. Além disso, tanto o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos como o dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, estabelecem que os Estados Partes devem assegurar igualdade no gozo dos direitos enunciados no pacto para homens e mulheres. A Declaração da Assembleia Geral sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1967 combate a discriminação e afirma que tal constitui ofensa à dignidade humana porque nega ou limita a igualdade de direitos da mulher com o homem (ONU, 1967). Já em 1969, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, ainda que de forma tímida, 37
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trouxe um elemento importante, que foi a proibição expressa no seu art. 6º do tráfico de mulheres, além de assegurar os direitos enunciados para homens e mulheres e reconhecer no art. 16 o direito ao matrimônio, determinando, em contrapartida, aos Estados-membros tomar medidas apropriadas para esse desiderato. Após 5 anos, em 1974, adveio a Declaração sobre a Proteção da Mulher e da Criança em Estados de Emergência ou em Conflito Armado, em que reconhece como grupo mais vulnerável da população as mulheres e as crianças e conclama que todos os estados em conflitos armados e operações militares empreguem esforços para evitar às mulheres e às crianças as mazelas da guerra. Embora tenha tido todos esses marcos normativos, o primeiro tratado que dispôs de forma ampla sobre direitos humanos da mulher foi a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimação contra a Mulher, em 1979, também conhecida como CEDAW (da sigla em inglês) ou Convenção da Mulher (Brasil, 1984). Nesta Convenção reconheceu-se a cultura e a tradição como forças influentes para moldar os papéis de gênero e as relações familiares. A CEDAW (Brasil, 1984) indicou duas frentes de deveres e obrigações aos Estados-Parte: a) promover a igualdade de gênero e; b) reprimir quaisquer discriminações contra as mulheres. Em termos principiológicos, a CEDAW (Brasil, 1984) é reconhecida como a Carta Magna dos Direitos das Mulheres. Trata dos Estados-Parte e o dever de eliminar a discriminação contra a mulher por meio da adoção de medidas legais, políticas e programáticas. Em 1993, a Declaração de Eliminação contra a Mulher, também conhecida como a Declaração de Direitos Humanos de Viena, foi a primeira a afirmar de forma expressa que os Direitos Humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. Nessa Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, as mulheres puderam celebrar a inserção do seguinte tópico: “Os Direitos dos homens, das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena e igual das mulheres na vida política, civil, econômica, social e cultural, em nível nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo constituem objetivos prioritários da comunidade internacional” (art. 18). Bem como, ainda recomendou a criação e implementação de mecanismos de combate a este tipo de violência, refutou os costumes, tradições ou consideração religiosas que justifiquem a violência contra a mulher recomendou a previsão no direito interno de sanções penais, civis e administrativas para prevenir e reparar os danos causados às mulheres. 38
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Assim, esta Declaração teve uma relevância ímpar, pois garantiu a universalidade dos Direitos Humanos invocada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e ao mesmo tempo conseguiu dar visibilidade aos direitos humanos das mulheres e meninas, num evidente reconhecimento de identidades próprias, destacando o direito às diferenças, o que, segundo Flávia Piovesan, propiciou a “incorporação da perspectiva de gênero, isto é, repensar, revisitar e reconceitualizar os direitos humanos a partir da relação entre os gêneros, como um tema transversal” (Mello, 2018, p. 36). Essa concepção de inalienabilidade, integralidade e indivisibilidade está reiterada na Plataforma de Ação de Pequim, em 1995. No entanto, antes disso, em 1994, outro importantíssimo documento internacional tratou da violência contra a mulher, que foi a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, normalmente chamada de Convenção de Belém do Pará, acerca da qual se falará adiante de forma pormenorizada. Esta Convenção prevê que os Estados são responsáveis por criar mecanismos para modificar os padrões culturais e sociais, ou seja, o imaginário social que reforça as relações entre homens e mulheres, criando programas educacionais para combater formas de preconceitos e costumes que levam as prática de violências de gênero, buscando, assim, formas para conter as violências contra a mulher. Marcos jurídicos nacionais
No ordenamento jurídico brasileiro, o Código Civil de 1916 regulava a capacidade com base no sexo para determinados atos da vida civil e, à época, para todos os atos da vida política. Contribuia, ainda, para a condição da mulher como ser desqualificado de direitos e passível de violência. Vigente até os dias atuais, o Código Penal de 1940 tinha em sua redação original o crime de adultério. Bem como, trazia a figura da mulher honesta para o caso da conduta criminosa expressa no art. 215: “ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”, restringindo as vítimas para apenas aquelas que fossem consideradas “honestas”. Esse termo “mulher honesta” representava um juízo de valor carregado de subjetividade que, conforme aduz Mello (2018, p. 89), “ tem origem no patriarcado, limitando os crimes de posse sexual mediante fraude e atentado violento ao pudor mediante fraude à proteção de determinadas mulheres”. Além disso, havia a possibilidade de extinção do crime de violência sexual se a mulher vítima casasse com o agressor, isto é, o agressor ficaria impune dos seus atos. Com advento da Lei nº 11.106/05, esses pontos foram revogados. Contudo, também foi com o Código Penal de 1940 que a legislação brasileira afastou expressamente a tese da “legítima defesa da honra”, ao 39
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estabelecer, originalmente em seu artigo 24, inciso I – atualmente no artigo 28, inciso I –, que a emoção e a paixão não excluem a responsabilidade penal. Quando muito, a atual legislação autoriza que essa motivação seja enquadrada como uma causa de diminuição de pena, nos termos do artigo 121, § 1º, do Código Penal. A intensa luta dos movimentos de mulheres na década de 80 provocou a inclusão de direitos ainda não acolhidos pelas Constituições Brasileiras. A Constituição Federal de 1988 foi um grande marco positivo, pois igualou formalmente os direitos de homens e mulheres em todas as esferas, inclusive na esfera do casamento. Ressalta-se, ainda, que o art. 226 trata expressamente do dever do Estado em assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Já em 1995 foi ratificada pelo Brasil a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará. Em 2003, o Brasil editou a Lei nº 10.778/03, onde determinava a notificação compulsória da violência contra a mulher que fosse atendida pelos serviços de saúde, tanto público quanto privado. O cumprimento desta lei é fundamental para um diagnóstico mais preciso da magnitude da violência contra a mulher. Em 2006 entrou em vigor a Lei 11.340/2006 (Brasil, 2006), conhecida como Maria da Penha, esta lei será tratada em subseção específica, dada a sua importância no ordenamento jurídico brasileiro. Após quase 10 anos, houve um outro avanço legislativo no combate à violência de gênero. Foi a Lei nº 13.104/2015 (Brasil, 2015), conhecida como Lei do Feminicídio, que modificou o Código Penal para inserir o feminicídio como homicídio qualificado, quando a vítima for mulher e o crime ocorrer simplesmente pelo fato da condição de “ser mulher”. Dispôs, ainda, que o feminicídio possui natureza hedionda, isto é, possui um tratamento mais rigoroso que os demais crimes no tocante ao cumprimento da pena. A lei, também, estabeleceu agravantes quando o crime ocorre em situações de vulnerabilidade, como gravidez, vítima menor de idade, na presença de filhos, entre outros (Brasil, 2015). As formas de violência contra a mulher
Como visto, a lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) (Brasil, 2015) descreve os tipos de violência contra a mulher, que podem ser física, psicológica, moral, patrimonial e sexual, sendo que o feminicídio é o ápice da violência.
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O feminicídio como violação sistemática de Direitos Humanos no Estado de Rondônia
Segundo IPEA (PESQUISA, 2013), no Brasil, entre o período de 2001 a 2011, estima-se que ocorreram mais de 50 mil feminicídios, ou seja, em média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma morte a cada 1h30m. A referida pesquisa avaliou a situação da violência contra mulheres no Brasil e contribuiu para a formulação da Lei do Feminicídio vigente no País. A lei nº 13.104/15 (Brasil, 2015) altera o art. 121 do Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e consequentemente altera o art. 1º da lei no 8.072/90 (Brasil, 1990), que inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Conforme previsão legal, o crime de feminicídio é qualificado como o homicídio de mulheres por condição do sexo, isto é, quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. No Brasil, o termo feminicídio é adotado como qualificador. Mas este termo foi tratado também em legislações penais em outros 15 países da América Latina, sendo eles: México, Equador, Chile, Costa Rica, Bolívia, Honduras, Argentina, Panamá, Colômbia, Venezuela, Guatemala, Nicarágua, Peru, El Salvador e Brasil (Portal, 2016). Contudo, é preciso ter em mente, que nem todo feminicídio é caracterizado como uma violação de Direitos Humanos. Existem alguns tipos de violações, quais sejam: individual, coletiva e sistemática. De acordo com o Manual Prático para atuação em Direitos Humanos: “As violações sistêmicas são definidas pelo conjunto de ações de transgressão que se tornam um padrão rotineiro ou sistemático em determinado local. Caracterizam-se pela repetitividade com que ocorrem; nesse caso, o Estado e seus agentes podem ser os causadores das violações, ou pode haver omissão do poder público para impedir ou minorar suas causas ao longo do tempo” (OAB, 2016). Conforme os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), os casos de feminicídio têm tido uma crescente, destacando-se nisso a região Norte do País.
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Tabela 1
- Feminicídios registrados no primeiro semestre de cada ano, por região do País
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022).
Na região Norte, o Estado de Rondônia, importante estado na Amazônia Ocidental, e em pleno desenvolvimento, tem apresentado o maior índice de crescimento desses casos, destacando-se com 225%, ficando atrás apenas de Tocantins com 233,3%. Mesmo diante de tamanha violência letal contra a mulher, uma nota técnica produzida pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), mostrou que em 2022 ocorreu a menor alocação orçamentária para o enfrentamento da desse tipo de violência, conforme gráfico abaixo: Gráfico 1 - Valores destinados pelo Governo Federal às Políticas de Enfrentamento
à Violência contra a Mulher segundo o INESC
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022).
Isso aponta para o esvaziamento total da compreensão de gênero como eixo orientador das políticas públicas, pois o Estado acaba sendo omisso ao não direcionar recursos suficientes para o adequado enfrenta42
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mento dessa violência, o que pode caracterizar como uma afronta aos direitos humanos das mulheres, sendo, portanto, uma violação sistêmica. Assim, é preciso que o Estado se veja como o principal responsável pela prevenção e coibição desse tipo de violência, para resguardar o bem mais precioso: a vida. Considerações finais
Diante do painel de reflexões aqui delineadas, podemos dizer que o feminicídio se perpetua na sociedade devido à ausência de implementação de investimento nas políticas públicas para o combate à violência contra a mulher. Com isso, a vidas das mulheres continua sendo ceifada e o Estado de Rondônia figura negativamente nisso. O manual nos direciona para os canais e mecanismos que os atores sociais responsáveis por promover e garantir os direitos humanos podem estar atuando. Diante disso, percebemos que a forma para combater o feminicídio é o investimento de recursos públicos para formulação de políticas públicas visando coibir a morte de mulheres. Referências
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CAPÍTULO 4 UNIVERSIDADE PÚBLICA E A EXPERIÊNCIA DE ESTUDANTES INDÍGENAS NO ENSINO SUPERIOR: COTAS RACIAIS COMO UMA MEDIDA PALIATIVA DAS DESIGUALDADES 1 NA EDUCAÇÃO Thiago Botelho de Almeida2
Esta pesquisa busca vislumbrar a situação de indígenas, grupo considerado minoritário em instituições de ensino superior, de modo que seja possível perceber os desafios e os problemas que essa comunidade enfrenta para o ingresso e permanência em tais instituições, mesmo com a política de cotas. A análise ocorre por meio do relato de dois estudantes indígenas, adotando-se o estudo de caso, de modo que seja possível perceber os desafios e os problemas que esses indivíduos enfrentam. Tal recorte visa expor as desigualdades dentro das universidades. Há o entendimento das situações interseccionais3, mas as estruturas pouco se modificaram para recebê-las. Explico mais adiante este aspecto, através da experiência da Universidade de São Paulo. A pergunta que vai orientar minha análise no decorrer deste artigo, que tem como recorte e base de dados duas entrevistas feitas com estudantes indígenas cotistas no segundo número do volume 31 da Revista Cadernos de Campo, é a seguinte: O que os estudantes têm a dizer sobre as condições de ingresso e permanência no ensino superior?
1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Estudante do oitavo período do curso de Ciências Sociais. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq. br/6208743258998959. 3 Cf. Crenshaw, 2002.
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As duas entrevistas serão analisadas utilizando uma técnica de análise textual chamada de análise de conteúdo. Essa técnica permitirá isolar os principais pontos tratados nas entrevistas, tornando possível a comparação entre os dois relatos. Facilitando, assim, manter a coerência no tema tratado e nas informações colhidas de ambas as entrevistas. Caregnato e Mutti (2006), definem a análise de conteúdo da seguinte forma: A técnica de AC, se compõe de três grandes etapas: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; 3) o tratamento dos resultados e interpretação.1 A mencionada autora descreve a primeira etapa como a fase de organização, que pode utilizar vários procedimentos, tais como: leitura flutuante, hipóteses, objetivos e elaboração de indicadores que fundamentam a interpretação. Na segunda etapa os dados são codificados a partir das unidades de registro. Na última etapa se faz a categorização, que consiste na classificação dos elementos segundo suas semelhanças e por diferenciação, com posterior reagrupamento, em função de características comuns. Portanto, a codificação e a categorização fazem parte da AC (Caregnato; Mutti, 2006, p. 682).
No caso de estudantes indígenas é ainda mais complexo quando se trata do acesso e permanência no ensino superior e demais níveis. Barreiras culturais, educacionais, de condições básicas para permanência e acesso, bem como organização em nível nacional de projetos adequados a esses públicos, são situações já colocados desde 2010, e que por meio dos relatos abordados aqui, poderemos ver as consequências da implementação das cotas raciais (Garlet; Guimarães; Bellini, 2010). Tendo em vista como o Estado e as universidades se posicionam frente ao desafio de inclusão dos povos indígenas na educação superior no Brasil, é possível pensar na seguinte hipótese: os estudantes indígenas ainda enfrentam as mesmas dificuldades, isto é, financeira, de aprendizagem etc., para permanecerem no ensino superior desde a implementação da política de cotas. Desde 2018 observa-se mudanças no perfil étnico-racial dos ingressantes nas universidades públicas de acordo com o IBGE4. Proporcionalmente 50,3% de pessoas pretas e pardas entraram em universidades públicas5, consequência positiva das cotas. Porém, o que se evidencia, ainda, é que suas estruturas continuam organizadas para que pessoas brancas sejam o público alvo do ensino superior no Brasil. Nesse sentido, perguntar se a universidade pública é democrática ou necessita-se democratizá-la 4 Dados disponíveis em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-porcor-ou-raca.html?edicao=35440&t=publicacoes 5 Dados organizados pela Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-11/pelaprimeira-vez-negros-sao-maioria-no-ensino-superior-publico.
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sempre vai acompanhar as discussões de enfrentamento às desigualdades na educação. O melhor exemplo de como as universidades ainda estão estruturadas para que pessoas brancas tenham acesso mais facilitado é o caso da USP, uma das mais prestigiadas universidades do País, internacionalmente reconhecida, somente em 2018 conseguiu ampliar os espaços para cotistas na pós-graduação, dentro de uma área que produz boa parte dos conhecimentos sobre essas pessoas, a Antropologia (Amparo et al., 2022). Pesquisadores do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (GEMAA) e do Núcleo de Pesquisa em Raça, Gênero e Justiça Social (AFRO) em artigo publicado no jornal eletrônico Nexo Jornal, em setembro de 2022, apontam um aspecto muito importante sobre o aumento da presença de estudantes indígenas no ensino superior que tem impacto direto sobre “o porquê” das cotas em universidades públicas. Os dados são do INEP e IBGE. O recorte do levantamento feito vai de 2010 a 2019. Aponta-se que o aumento vai de 20.000 mil estudantes em 2014 a cerca de 60.000 mil em 2019. Em vista desse cenário, ainda que tenha havido esse aumento expressivo de matrículas em instituições de ensino superior, os pesquisadores enfatizam que parte significante dessas matrículas foram em instituições de ensino superior privadas, onde os estudantes não têm acesso ao dispositivo de cotas, fazendo com que mais de 50% desses alunos não tenham apoio financeiro algum das IES privadas. A razão a que isso se deve aponta diretamente para o número, ainda baixo, de vagas reservadas para estudantes indígenas nas instituições públicas (Medaets; Arruti; Longo, 2022). As cotas raciais tornaram-se uma política de ação afirmativa em nível federal apenas em 2012, mas que já em 2001 vêm se discutindo a reserva de vagas em instituições públicas de ensino superior (Lima; Neves; Silva, 2014, p. 142), e é evidente que atualmente configura-se numa experiência comum em todas as universidades públicas no Brasil. Longe de ser possível afirmar que essas medidas extinguiram as desigualdades, pode-se, em certos casos, apontar experiências que ampliaram o alcance da política de cotas raciais, atenuando um pouco as assimetrias existentes na educação superior. Na Universidade de São Paulo, desde 2018, no programa de pós-graduação em Antropologia Social, tem-se aprimorado o dispositivo das cotas relativo principalmente às condições de permanência de alunos negros e indígenas, com impactos significativos no corpo discente e na pesquisa. Um outro aspecto relevante nas estratégias de ampliação do dispositivo de cotas foi a contemplação de vagas para pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros) (AMPARO et al., 2022). A implementação da política de ações afirmativas, como era esperado, implicou em uma série de modificações institucionais. [..] reserva de vagas para pessoas negras e para pessoas 47
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com deficiência, assim como criava três vagas adicionais para indígenas. [...] prova de proficiência em língua estrangeira foi retirada do processo seletivo, do qual fazia parte como critério eliminatório, e rearranjada como requisito para o exame de qualificação (possibilitando mais tempo para que os e as ingressantes possam se preparar, assim como tenham a oportunidade de realizar mais de uma prova de proficiência, caso necessário). [...] início da distribuição de bolsas a partir de um edital específico, que finalmente passava a considerar critérios socioeconômicos (AMPARO et al., 2022, p.2).
No contexto dos dez anos da lei de cotas nas universidades públicas brasileiras, a Revista Cadernos de Campos, organizou o dossiê Ações afirmativas e políticas de conhecimento: avaliando 10 anos da lei de cotas nas universidades públicas brasileiras (Mateus; Varjão, 2022). O intuito da edição foi chamar coletivos e grupos de estudantes não brancos organizados para refletir sobre sua trajetória e as estratégias adotadas para monitorar, promover e ampliar o ingresso e permanência de pessoas negras e indígenas em suas interseccionalidades (Mateus; Varjão, 2022, p. 1). Ambas as entrevistas que são analisadas aqui, enquanto relatos de experiências, são de estudantes indígenas de pós-graduação em instituições públicas de ensino superior. Um é mestrando e, o outro, doutorando. Respectivamente, Eric Timoteo Iwyrâkâ Kamikiawa, do povo Bakairi, cursa o mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Izaque João, do povo Kaiowá, cursa o doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo (USP). A análise das entrevistas foi facilitada por estarem estruturadas pelo mesmo conjunto de perguntas. Todas com o intuito de saber um pouco sobre a trajetória educacional e como nesse percurso as cotas raciais influíram na experiência desses sujeitos no ensino superior (João; Franco Junior, 2022; Kamikiawa; Franco Junior, 2022). Por meio das duas entrevistas é possível observar dois momentos da política de cotas. Um antes da implementação e um depois. Ainda que não seja possível caracterizar o contexto conjuntural que se apresenta hoje no ensino superior com as cotas, é minimamente viável observar o que persiste e o que se modificou depois das cotas. O relato de Izaque João simboliza o momento anterior à implementação das cotas raciais. Sua caminhada no ensino superior teve início a partir dos anos 2000, em uma universidade privada onde cursou pedagogia. Sobre esse período, ele diz o seguinte: No ano de 2001 consegui entrar via vestibular na Faculdade particular, no curso de Pedagogia. No ano de 2002 já estava cur48
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sando Pedagogia-Licenciatura. Três anos de estudo na graduação do curso de Pedagogia e não obtive bolsa de estudo. Tive que trabalhar em sala de aula para pagar a mensalidade do meu curso ou muitas vezes tive que emprestar dinheiro para pagar as mensalidades. E, portanto, durante três anos de estudos, me dediquei aos estudos e trabalhos (João; Franco Junior, 2022, p. 4).
Quando questionado sobre o “comportamento” das instituições de ensino, em que cursou a graduação e a pós-graduação, relativo à recepção e permanência de estudantes oriundos de programas afirmativos, ele diz: No período que ingressei no ensino superior, na graduação, assim como na pós-graduação, senti na pele que não existia recepção favorável para os indígenas. Tive que concorrer com todos os não indígenas. Prestei vestibular por várias vezes para ingressar na graduação e para ingressar na pós-graduação também enfrentei vários obstáculos até ingressar na pós-graduação. Também não existia Programas afirmativos específicos para acadêmicos indígenas naquele período. Só entrei na pós-graduação e permaneci na universidade por insistência minha mesmo (João; Franco Junior, 2022, p. 5).
O que as experiências de Izaque João mostram é que tais medidas eram mais do que necessárias para essas pessoas. Mostra também que receber o incentivo e a assistência adequada promove um desenvolvimento educacional equilibrado, visto que, quando não se recebe o apoio necessário, as dificuldades são ainda maiores, tanto do ponto de vista educacional como financeiro. A experiência de Eric Timoteo representa as experiências que foram beneficiadas pela política de cotas. Eric iniciou sua trajetória no ensino superior em 2012, ano da promulgação da lei de cotas no Brasil, na Universidade Federal do Mato Grosso, onde havia em funcionamento, por pelo menos dez anos, um programa de inclusão chamado PROINDI (Programa de inclusão indígena). Sobre o PROINDI, ele fala: Por meio desse Programa eu fiz a faculdade de Ciências Sociais. Em 2017-2018 eu terminei a graduação, defendendo o meu Trabalho de Conclusão de Curso sobre a Flauta Mágica, intitulado Tadâwan Kurâ Bakairi em que trago este contexto falando sobre a etnomusicologia Kurâ Bakairi, mas no viés da etnografia (Kamikiawa; Franco Junior, 2022, p. 2-3).
Quando questionado sobre o “comportamento” da instituição de ensino concernente à recepção e permanência de estudantes cotistas, ele diz: Nós tínhamos um acompanhamento muito de perto com a PROINDI. Tínhamos um bolsista que ajudava os alunos em várias 49
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áreas, em vários cursos na parte da informática, de engenharia, do português. Sempre tínhamos um bolsista não indígena e tinha um critério de escolha para esse bolsista. Ele tinha que estar no quinto semestre ou no final do semestre senão não conseguiria ajudar os estudantes indígenas a se desenvolver. Também tínhamos a semana de seminários periódicos com a nossa coordenadora do PROINDI que era a Carmen (Kamikiawa; Franco Junior, 2022, p. 4).
Não resta dúvida quanto à eficácia de políticas de ação afirmativa como as cotas raciais para a diminuição das desigualdades no ensino superior. Se num primeiro momento evidencia-se uma situação de completa falta de assistência do poder público e das universidades, como relatado por Izaque João, com Eric Timoteo observa-se como tais medidas são necessárias em todos os contextos universitários. Para testar a hipótese lançada mais acima no texto, é necessário uma base de dados mais aprofundada. Mas, ainda assim, já é possível confirmar a eficácia das cotas raciais nas universidades públicas por meio dos relatos dos dois estudantes. Em folheto informativo publicado pelo IBGE em 2022, apresentado o percentual de participantes do ENEM, nos anos 2019, 2020 e 2021 de pandemia de covid-19, pôde-se observar que entre os estudantes indígenas houve a menor taxa de comparecimento: “além de terem sido os mais afetados pela pandemia, segundo esse indicador, apresentando taxas de comparecimento de 68,0%, 37,1% e 55,3%, respectivamente” (IBGE, 2022, p. 10). Esse novo cenário aponta para a necessidade de novos estudos a fim de compreender como estão os processos de aplicação da lei, nas suas dimensões mais relevantes, isto é, garantia de acesso e permanência dos estudantes indígenas no ensino superior. Ainda que o presente estudo não tenha como finalidade atualizar esses dados, os novos cenários epidêmico e pós-epidêmico nos servem como reforço para compreender a relevância e necessidade de leis e práticas que visem o combate às desigualdades de todas as naturezas encontradas na educação, mesmo que sejam processos demorados de mudanças, como nos mostra a trajetória da Lei de Cotas nas universidades públicas de ensino superior pelo Brasil, que ainda não mudou substancialmente seus espaços para acesso de todos, como evidenciado ao longo deste estudo de caso. Referências
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ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR - V. II
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CAPÍTULO 5 MARCAS DO NEOLIBERALISMO NO DISCURSO TELEVISIVO SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 1 CONTRA A MULHER Rafael Barbosa Fialho Martins2
Os dados deveriam causar espanto, mas parecem ter virado costume na sociedade brasileira: somente em 2022, o Brasil teve um aumento de 5% nos casos de feminicídio em comparação a 2021, o que representa 1,4 mil mulheres mortas (média de uma a cada 6 horas)3. Recém cancelado, o programa de TV Casos de Família (exibido durante 19 anos no SBT) exibiu inúmeras edições temáticas sobre violência doméstica, alegando exercer um papel social relevante e de prestação de serviço ao seu público – mulheres das classes populares. O talk show ia ao ar diariamente e era apresentado por Christina Rocha. A dinâmica era a seguinte: as mulheres eram convidadas a contar suas experiências de violência de gênero – psicológica, física, moral, patrimonial etc – a uma plateia que podia opinar sobre o que via e ouvia no estúdio. A apresentadora também dava suas opiniões, acompanhada pelos pareceres de uma psicóloga, Dra. Anahy. Os perpetradores das violências – maridos, companheiros etc – também eram convidados ao palco e davam sua versão dos ocorridos, tentando “justificar” os atos criminosos cometidos. 1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do Departamento Acadêmico de Comunicação da Universidade Federal de Rondônia. Líder do PensarTV - Grupo de Pesquisa em Televisão e Articulações com Realidades e coordenador do projeto de pesquisa Observatório de Representações do Popular na TV. E-mail: [email protected]. Lattes:http://lattes.cnpq.br/8249363500710385. ORCID: https://orcid.org/00000002-5277-7909. 3 Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/08/brasil-bate-recorde-de-feminicidiosem-2022-com-uma-mulher-morta-a-cada-6-horas.ghtml. Acesso em: 1 maio 2023.
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A análise de Martins (2020) mostrou que, enquadrados como “casos de família”, os casos de violência eram abordados sob a ótica individualista, como se fossem responsabilidade primordial das mulheres. Infelizmente, eram comuns as estratégias de culpabilização das vítimas por parte da apresentadora, plateia e, pior, da psicóloga. O programa se utilizava da matriz narrativa e cultural do melodrama e posicionava os agressores como vilões, mas nem sempre conferia às mulheres o lugar de vítimas – do patriarcado, do machismo, da misoginia, da desigualdade, do racismo etc; comumente, elas eram posicionadas também como “vilãs de si mesmas”, responsáveis por aquelas agressões variadas que sofriam. À apresentadora cabia o papel melodramático de justiceira, mesmo que suas defesas pudessem ser questionáveis. A presente reflexão busca resgatar os principais achados da pesquisa realizada em Martins (2020), que já identificava como resultados finais diversas influências da racionalidade neoliberal (Dardot; Laval, 2016) no discurso do programa sobre a violência doméstica. Além disso, buscamos avançar em relação àquela análise, tendo como objetivo sintetizar os principais eixos por meio dos quais a racionalidade neoliberal se manifestava no referido objeto empírico. Como base teórica para a discussão, trazemos as contribuições de autoras/es como Dardot e Laval (2016); Binkley (2007); Castro (2017, 2016); Hamann (2012); Rose (1998); Foucault (2006a; 2006b); Freire Filho (2006); Oksala (2019). À luz dessas perspectivas teóricas, compreendemos o neoliberalismo como uma matriz de pensamento e prática – uma verdadeira racionalidade – marcada pela lógica competitiva, que posiciona os sujeitos como protagonistas e unicamente responsáveis por seu sucesso ou fracasso. Somos encaradas como gestores de todas as dimensões de nossas vidas; isto suprime a importância e o papel do Estado para suprir nossas necessidades e demandas. Pessoas são verdadeiras “empresas” em que performance, produtividade, trabalho e meritocracia são valores altamente estimulados e indispensáveis para a vivência cotidiana, dos mínimos aos máximos elementos da vida – saúde, educação, alimentação, sociabilidade. A sociedade é estruturada em uma lógica concorrencial. Na “cartilha” neoliberal, todo e qualquer segmento da experiência no mundo é passível de metrificação, quantificação, avaliação, melhoria etc. Não à toa, proliferam discursos, métodos, promessas e toda uma retórica de “peritos em qualquer coisa”, que nos ensinam a viver – e produzir – melhor: coaches, especialistas, gurus, líderes religiosos, experts, influenciadores. Segundo o neoliberalismo, para todo problema há inúmeras possibilidades não de solução, mas de gerenciamento; afinal, somos gestores de nossa vida. Cabe a nós escolhermos as melhores estratégias para viver. Escolher, aliás, é um 54
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imperativo do neoliberalismo, o que garantiria nossa felicidade. Em um mundo em que as oportunidades, em tese, são irrestritas, nosso sucesso dependerá exclusivamente das boas escolhas que fizermos ao longo das nossas trajetórias. É aí que entram os discursos “especialistas”, supostamente capazes de nos auxiliar nessa tarefa, vendida como aprazível e sinal de igualdade de condições, mas que, na verdade, escamoteia a desigualdade de acesso e nos adoece. Portanto, abundam na mídia modelos de prescrição – o que Foucault denomina de “governamentalidade”, uma maneira de governar que vai além das formas tradicionais de disciplina e governo (leis, coerção e punição) e investe na valorização da liberdade individual como ferramenta para estimular, entre as pessoas, sua vigilância e disciplina – de si mesmas e das outras. Diferentemente do que ostenta o discurso neoliberal, nem todos podem tudo. Se depende apenas de nós a gestão da própria vida, o individualismo é reinante, e tudo está concentrado em cada um – tanto a responsabilidade quanto a resolução dos problemas. A mídia hegemônica, em suas mais diversas plataformas e discursos, tem se apropriado cada vez mais da racionalidade neoliberal, já que ambos servem ao capital sem restrições. Por isso, interessa-nos perceber identificar os rastros, traços e manifestações dessa lógica de mundo nos discursos, imagens e representações especificamente televisivas. Sigamos a uma discussão sobre os principais eixos de apropriação da racionalidade neoliberal em Casos de Família. O corpus empírico a partir do qual fazemos as observações é o mesmo de Martins (2020), composto por 14 edições que foram ao ar entre 2013 e 2019. O primeiro “vestígio” do neoliberalismo em Casos de Família são as já citadas práticas de governamentalidade. O programa era totalmente centrado nas histórias de vida contadas por participantes anônimos que recebiam análises, conselhos e avaliações dos demais atores daquela interação – apresentadora, plateia e psicóloga. Ou seja, tudo ali cooperava para a construção de um discurso que dizia como agir e como não agir em sociedade. Regras sociais, éticas e morais eram constantemente reiteradas; valores eram exaltados e desvios ao status quo eram rechaçados. Tais normativas impostas aos anônimos eram próprias de uma classe média, branca, escolarizada e com acesso à segurança pública e atendimento de saúde – elementos personificados pela apresentadora e psicóloga. Na linguagem empresarial proposta no neoliberalismo, era como se os anônimos fossem os “eu-empresa” fracassados sendo ouvidos – e penalizados discursivamente – por aqueles que “deram certo” e, por isso, podiam opinar. Vítimas e agressores convidados eram posicionados como modelos de conduta negativos e, portanto, um elemento de prescrição frente à audiência. 55
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A presença de uma psicóloga, aliás, era um diferencial: o saber especializado acenava como um fator de distinção que, em tese, a dava credibilidade e mais “peso” em suas colocações, mesmo que na maioria das vezes sua atuação estivesse mais perto do senso comum do que do discurso científico. Mesmo assim, pode-se considerar a performance do saber especializado como reflexo do neoliberalismo, já que, juntamente com os personagens, Anahy também prescrevia o que a audiência devia fazer. Se os convidados o diziam por meio de sua performance desviante, a psicóloga retomava as normas e padrões do bem viver, amparada no título de distinção de “Doutora”. Ainda lendo o programa à luz de Foucault, o próprio ato de enunciação dos sujeitos frente às câmeras pode ser entendido como uma prática de “confissão”, o que, para o autor, estabelece uma relação de hierarquia e poder entre confessante e confessor (neste caso, plateia, apresentadora, psicóloga, audiência). Neste jogo desigual, têm mais força as instâncias reguladoras da vida social, como os confessores e regras sociais. A confissão é pertinente ao quadro neoliberal porque parte da concordância dos sujeitos em reconhecer e tentar se integrar a um código de conduta que lhes garanta sucesso, produtividade e, em última instância, felicidade. Outro aspecto importante do neoliberalismo que vemos em tela é a superposição do individualismo em relação ao papel do Estado. Em Casos de Família, a violência doméstica não é enquadrada como problema público, coletivo, de responsabilidade do governo, mas uma manifestação da má-gestão do autogoverno. O programa até reconhece a coletividade da questão, já que é vivida por muitas mulheres, mas individualiza tanto a entrada quanto a saída do ciclo de violência. A “culpa” é sempre da mulher: seja por ter aderido a um relacionamento com um homem violento e, principalmente, por permanecer nessa relação, mesmo ciente do potencial criminoso do parceiro. Como exemplo disso, a apresentadora reflete a racionalidade neoliberal em falas direcionadas a participantes: Tem mulher que merece [...], porque tem mulher que tem medo e não sai [...]. Eu sempre falo, o medo paralisa a gente. Qualquer… No trabalho, na relação, juro. Por mais que a gente tenha medo, você tem que agir. Então tá bom, eu caso, eu apanho, no caso a mulher, eu tenho que me separar, mas eu tenho medo dele fazer alguma coisa pra mim, então eu não vou fazer nem B.O. não sei o que, porque aí não, não quero morrer, então vou ficar com ele mesmo, porque, ah se eu me separar ele vai me achar… Se fosse assim, ninguém ia fazer nada na vida, gente (2017 E2)4. Natalia: – Ele é louco, ele é doente.
4 Disponível em: https://youtu.be/xWi7piSpv_M . Acesso em: 5 maio 2023.
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Christina: – E você mais ainda de ficar com um cara assim. Olha, houve uma vez, não sei o que eu falei aqui, aí falaram “Você falou que a mulher merece”, alguma coisa assim. Quando a gente fala que a mulher merece não é isso. Que tem mulher que parece que gosta. Eu sei que não gosta no fundo, mas a gente que tá de fora… (2019 E2)5. Christina: – A casa é de quem? Natalia: – A casa é minha, quem paga aluguel sou eu, quem trabalha sou eu. Christina [gritando]: – Pior ainda! Trouxa! Trouxa, você é trouxa! Me desculpe. Trouxa, trouxa [a plateia grita e aplaude]. Oh, e tem mais, não há apresentadora que defenda mais do que eu aqui no Casos de Família, porque você falar no videozinho pra Twitter é uma delícia, pra Instagram. Eu não, eu tô aqui batendo cara a cara, todo dia, com crápulas como esse, todo dia eu tô falando, todo dia eu tô falando. Pode estar com raiva, “Ai, você tá chamando a mulher de trouxa, a Christina tá do lado dos homens”... Não tô do lado dos homens, mas tem mulher trouxa e gosta de sofrer. Parece isso. [...] A mulher tem que ter vergonha na cara também, viu, mulherada? Você primeiro se envolveu com cara que te batia e tá no segundo que te batia e você pediu pra ele morar com você que você é sozinha [fazendo voz infantil indicando ironia e deboche]. Meteu um cara na sua casa que você não conhecia, com filho, você tinha que ter vergonha na cara também porque você tem um filho e nós mães temos que dar exemplos pros filhos da gente (2019 E2)6.
Infelizmente, a performance de Drª Anahy também acrescenta culpabilização à vítima: Christina: – Mas tem muita mulher também que volta porque quer. [...] Mas que vocês também têm culpa de sempre se envolverem com pessoas assim… Anahy: – Você não só se envolveu, você procurou, quis, você foi atrás (2017 E2)7. Agora, tem uma coisa: se você tá vivendo com um homem que você sabe que tem essa agressividade toda e você não quer sair desse relacionamento, então por que você não fica dentro de casa também? É uma coisa que eu fico me perguntando, não é verdade? Não quer separar, não quer sair fora, não quer fazer boletim de ocorrência, quer continuar com o homem que espanca cada vez que sai de casa. Então fica em casa, pô! (2017 E2)8. Quem é casada com um homem que tem o perfil violento, como é que fica provocando? Então na medida em que você faz isso, ao invés de você… Não digo que você tenha que ficar que nem um cordeiro, mas assim, se você sabe no que vai dar, por que é que você continua provocando? (2019 E1)9.
5 Disponível em https://youtu.be/lXV5KrrURYE. Acesso em: 5 maio 2023. 6 Disponível em: https://youtu.be/lXV5KrrURYE. Acesso em: 5 maio 2023. 7 Disponível em: https://youtu.be/xWi7piSpv_M. Acesso em: 5 maio 2023. 8 Disponível em: https://youtu.be/xWi7piSpv_M. Acesso em: 5 maio 2023. 9 Disponível em: https://youtu.be/6uPHeXiDLGs. Acesso em: 5 maio 2023.
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A violência, então, é vista como fruto de meras “escolhas” – como bem preconiza o neoliberalismo –, e cabe única e exclusivamente à mulher, individualmente, a prevenção e resolução do problema. Ignora-se ou diminui-se a contribuição da falta de políticas públicas, mal atendimento policial ou da Justiça aos casos de violência e todo o contexto violento vivido no País. Mais uma fala da psicóloga: Janaina: – No período que eu fiquei casada minha mãe me acolheu acho que duas, três vezes só. Anahy [em tom de voz agudo, impaciente e balançando a cabeça em sinal de desaprovação:] – Então, olha quantas vezes ela já teve que te acolher! [a plateia ri] Gente, acorda pra realidade! Acorda, não é assim, também! Porque se você fez a escolha de viver assim, a família também não tem como assumir isso não (2019 E1).
O programa, portanto e perversamente, cumpre o ritual neoliberal de celebração da escolha irrestrita, como se ela garantisse poder e não estivesse sujeita a todo um contexto (social, político, econômico, de gênero, classe e raça): O poder é cada vez mais compreendido como simplesmente outra coisa que as mulheres podem escolher. Dentro desse quadro, o fato de que muitas mulheres escolham ser donas de casa ou dispensem oportunidades de trabalho mais exigentes e bem remuneradas é entendido claramente como sua própria escolha. Os impedimentos ao sucesso político e social são pessoais ou psicológicos, e não políticos. Porque o sujeito neoliberal é um átomo livre de autointeresse, totalmente responsável por navegar pelo domínio social utilizando cálculos de custo-benefício, aqueles que fracassam podem culpar apenas a si mesmos (Oksala, 2019, p. 134).
Na TV, a violência não é enquadrada como problema público de responsabilidade de autoridades competentes, mas sim vista como um “caso de família” a ser resolvido íntima e individualmente. O Estado não é cobrado e nem responsabilizado; os homens agressores são posicionados como “casos perdidos” e eximidos de práticas restaurativas ou penais; já as mulheres são revitimizadas na frente de milhões de telespectadores como culpadas. Mais uma vez, aparece o discurso prescritivo. Segundo a psicóloga, a responsabilidade está na mulher: Não adianta o governo agir, é claro que é necessário proteger, tal, mas enquanto a mulher não entender que ela não precisa viver isso, que ela não depende de homem pra viver, é parceiro de vida, companheiro de jornada (grifos nossos) (2017 E1)10. 10 Disponível em https://youtu.be/ut2E8zHu2vY. Acesso em: 5 maio 2023.
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Na lógica da sociedade concorrencial que apregoa o neoliberalismo, é como se as vítimas de violência fossem as perdedoras por ignorarem ou não darem conta das inúmeras regras prescritivas do “como ser uma boa mulher” e, por isso, merecem ser penalizadas frente a um público que, por sua vez, aprenderia, por meio destes exemplos, a autogestão. Portanto, concluímos que a racionalidade neoliberal é prejudicial à abordagem no referido programa que, infelizmente, não está isolado. A noção de culpabilização da mulher em face do “poder de escolha” e outras implicações neoliberais não “nascem” ou são próprias de Casos de Família: tais ideais danosos e violentos estão em franca circulação na sociedade e devem ser mostrados na TV com responsabilidade e papel crítico, o que não parece ter sido o caso do objeto aqui analisado. Referências
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OKSALA, Johanna. O sujeito neoliberal do feminismo. In: RAGO, Margareth; PELEGRINI, Mauricio (Orgs.). Neoliberalismo, feminismos e contracondutas: perspectivas foucaultianas. São Paulo: Intermeios, 2019. p. 115-138. ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 30-45.
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CAPÍTULO 6 DEMOCRATIZAÇÃO DA LITERATURA COMO UM PRINCÍPIO DA GARANTIA DE DIREITOS 1 DAS MINORIAS NA AMAZÔNIA Solange Henrique Chaves Ribeiro2 Aparecida Luzia Alzira Zuin3 Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso Cora Coralina (1985)
A garantia dos efeitos da Lei 13.969/2018 (Brasil, 2018), que trata da política de livro e leitura, tem sido um desafio para as populações da Amazônia brasileira. De forma implicada e invisibilizada, tem sido aplicada no âmbito dos municípios, nos lugares tradicionais que lhe são conferidos, a sala de aula, em biblioteca (pública, escolar ou comunitária) ou em casa, em espaços alternativos, respeitando a dinâmica de cada local e dos atores que neles atuam. Este trabalho apresenta como tema central o acesso à Literatura como um princípio que aponta uma das formas de se garantir os direitos das minorias na Amazônia, tais como os povos indígenas e tradicionais da floresta, inclusive como caminho para revisão das narrativas e fabulações de si, pelas suas próprias vozes. O objetivo deste estudo seminal e urgente 1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Doutoranda em Educação na Amazônia no PGEDA/UFOPA/UNIR. É professora da Educação Básica pela SEDUC/ PA e gestora cultural pela Fundação Cultural do Pará e participa como membro dos seguintes grupos de pesquisas e estudos: GEPASEA/UFPA, CESJOR/UNIR e CEJAM/UNIR. E-mail: [email protected]. Lattes: https://lattes.cnpq. br/2109457990630009. ORCID: 0009-0004-9495-2447. 3 Docente dos Programas de Doutorado em Educação na Amazônia (PGEDA); Mestrado Acadêmico em Educação (PPGE/UNIR); Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça (DHJUS/ UNIR). É lotada no curso de Direito, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutorado e Mestrado em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). ORCID: http://orcid. org/0000-0002-5838-2123.
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é apresentar um breve panorama sobre as políticas de livro, leitura e escrita, com base na Lei 13.696/2018, na região Norte do País, em seus diferentes núcleos. As bases teóricas se constituem de autores como Candido (2011), Freire (1989) e Bourdieu (1983). Assim, quer-se confirmar a literatura como um direito legítimo aos brasileiros e brasileiras, que já fora anunciado por Antonio Candido, na década de 1980, assim como instituído pela Lei 13.696/2018 (Lei Castilho), que apresenta a Política Nacional de Leitura e Escrita, como estratégia permanente para promover o livro, a leitura, a escrita, a literatura e as bibliotecas de acesso público no Brasil; e se constitui de quatro importantes eixos: (a) democratização do acesso; (b) fomento à leitura e à formação de mediadores; (c) valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico; e (d) o desenvolvimento da economia do livro (Brasil, 2018). Essa política se configura enquanto conquista coletiva e histórica dos brasileiros, e que, portanto, deve ser fortalecida nas mais diversas ações e setores de nossa sociedade, em suas diferentes regiões territoriais. A ideia é discutir não a política cultural como nomenclatura, mas a ação política que estabelece os parâmetros legais das relações entre o fazer cultural e os direitos, o desenvolvimento e as intervenções diretas na construção de um projeto de País. A escola é um importante espaço de representatividade desse direito; no entanto, não se esgota nela. Os mais diversificados setores da sociedade (instituições públicas e privadas, sociedade civil) são convocados a atuarem em favor de educação literária para todos. Candido (2011, p. 176-177) definiu a Literatura, há mais de 30 anos, a partir de um lugar constituinte e instituinte: Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita nas grandes civilizações. Vista desse modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. (...) Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. 62
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O argumento apresentado por Candido, segundo Corsino (2021), traz algo muito caro às culturas de tradição oral – como é o caso dos povos indígenas e da floresta amazônica – e à performance da palavra falada e ouvida, bem como “do corpo que vive a linguagem e que é também instância de simbolização, relação e afeto” (p. 94-95). A autora destaca a possibilidade de interação com o leitor, especialmente porque é garantida a dimensão da fabulação, que, por sua vez, consiste na entrada do leitor em um universo necessário para a vida de todos nós, sem exceção, que é o ficcional. Candido avança em suas reflexões e escancara uma responsabilidade que envolve a todos nós: nesse ponto, as pessoas são frequentemente vítimas de uma curiosa obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde – coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia sejam privilégio de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievsky ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intenções no outro setor, talvez isto não lhes passe pela cabeça. E não por mal, mas somente porque quando arrolam os seus direitos não estendem todos eles ao semelhante. Ora, o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos está na base da reflexão sobre os direitos humanos (Candido, 2011, p. 172).
“Se não há povo e não há homem” que possam viver sem a Literatura, como postula Candido, será que a literatura realmente é observada como direito de todos? No Brasil, apesar dos avanços históricos de políticas públicas para esse campo4, ainda não tem sido suficiente. No Estado do Pará e como na maioria dos Estados que estão na Amazônia, por exemplo, não se tem implementado um plano de livro e leitura, uma realidade que custa, em especial, a garantia do direito das minorias (indígenas, comunidades tradicionais e das periferias), desse território, porque é possível relacionar tal contexto com os próprios problemas educacionais por que passa a população de grupos sociais com menor representação política na região Norte do País. Em favor de uma mobilização coletiva em diferentes cadeias vinculadas ao livro de Literatura, é necessário que sejam exigidos recursos e 4 Criação do Instituto Nacional do Livro (1937) – governo Vargas; o Instituto Nacional do Livro e a Biblioteca Nacional passaram a integrar a Fundação Nacional Pró-Leitura (1987) – Governo Sarney; Política Nacional do Livro (2003) e o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), Fome do Livro e Viva leitura (2006/2008), Programa Nacional de Biblioteca Escolar (PNBE) e o Programa Nacional de Livro Didático (PNLD) – governo Lula; Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017, unificou as ações de aquisição e distribuição de livros didáticos e literários, anteriormente contempladas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE); Lei Castilho (2018) – governo Temer; Criação da Secretaria de Formação, Leitura e Livro (2023) – governo Lula.
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políticas favoráveis à democratização desse bem incompressível5 que é a Literatura. A voz docente é fundamental nessa construção, dentre tantos outros sujeitos sociais; mas o é também daqueles/as que fazem a observância da letra jurídica, para acompanhar, fiscalizar e se fazer cumprir os processos de implementação da Lei, garantindo, assim, esse direito, para além dos centros urbanos. Vê-se ausência de implementação das políticas de livro e leitura nas cidades brasileiras, em desconformidade com o teor da Lei 13.696/2018, relativo ao direito à experiência de leitura literária. Com base nos dados da PNAD Contínua (IBGE, 2019), pesquisa Retratos da Leitura, 2019, Inaf 2018 e Censo Escolar/Inep 2020, em que foram destacados durante o lançamento do Mapeamento dos Planos de Leitura no Brasil 2020, a rede Leqt realizou uma pesquisa para observar como está a construção dos Planos de Livro e Leitura pelo (Rede, 2021), entre os anos de 2019 e 2020; mas, conforme levantamento realizado6, somente 12 Estados e 153 municípios brasileiros estão comprometidos com políticas de livro e leitura, mas apenas seis conseguiram fazer a elaboração dos planos (ver Quadro 1). Quadro 1
– Levantamento sobre os Planos de Livro e Leitura
consolidados no Brasil estadualmente em 2020 NORTE
Tocantins
NORDESTE
Ceará, Pernambuco
SUL
Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul
SUDESTE
Rio de Janeiro
Apenas o estado do CE está com a lei em tramitação
Com orçamento anual aprovado em lei
CENTRO-OESTE Fonte: elaborado pela autora com base nos dados da Rede Leqt.
Como se pode observar no Quadro 1, registrou-se apenas um Estado da Amazônia comprometido com a política de livro e leitura, mas que não tem ainda orçamento anual aprovado para alcançar os processos de democratização do acesso ao livro e à leitura, fomentar a formação de mediadores, valorizar de forma institucional a leitura e promover o seu valor simbólico, desenvolver a economia do livro, em suas cadeias econômica, criativa, pro5 Segundo Candido, um bem incompressível é aquele que assegura a sobrevivência e garante a integridade física e espiritual das pessoas, na ordem dos Direitos humanos, e por isso não pode ser suprimido. E os bens incompressíveis são assegurados a cada época em uma determinada sociedade. Destaca-se, assim, a Lei Castilho (13.696), promulgada em 2018, mas conforme levantamento realizado, entre os anos 2019 e 2020, pela Rede Leqt (2020), somente 12 Estados e 153 municípios brasileiros estão comprometidos com políticas de livro e leitura. 6 A pesquisa foi realizada pela rede Leqt em 18 Estados e 833 municípios brasileiros.
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dutiva e de difusão e/ou circulação. E mais: que sejam processos imbricados e enredados às demandas e particularidades das diversidades amazônicas. Se a Literatura é um direito, é preciso que ela seja caracterizada como eixo das pautas sócio-políticas e culturais, para que seja garantido o orçamento para a implementação dos planos. Sem o orçamento que a Lei Castilho torna compulsório, não há como potencializar transformações sociais, culturais e políticas; pois se vive em um País em que se carregam marcas do patriarcado, do racismo, da oligarquia e da desigualdade, especialmente na região Amazônica. Cabe à sociedade, junto às instituições de educação, cultura e justiça, atuar politicamente, para garantir o direito à necessidade de ficção, de fantasia e de formação humana7; que afetem nossos sentidos, sentimentos e maneiras de pensar e estar no e com o mundo e que ofereçam, ao leitor, “um conhecimento profundo do mundo, tal como faz, por outro caminho, a Ciência” (Candido, 2011, p. 183). Importa ressaltar que esse bem cultural é um direito posto na própria Constituição Federal Brasileira e em outros documentos legais, tais como a Lei nº 10.753 (Brasil, 2003), de 30 de outubro de 2003, e a Lei 13.696/2018 (Brasil, 2018), já referendados. No entanto, o exercício desse direito ainda é uma realidade para apenas uma pequena parcela da população. Deste modo, torna-se tão importante e necessário que a escola e demais espaços sociais da educação literária sejam não subservientes ao sentido único das coisas, ao valorizar interações com as artes (sendo a Literatura uma delas), fundadas não em pressupostos essencialistas, e sim na experiência estética e na produção de sentido. Outrossim, que se construam contextos fruitivos, vinculados à democratização de saberes, à (re)invenção de tradições, à criatividade, à interculturalidade, à liberdade de pensamento e à possibilidade de inaugurar novas formas de ver e fazer o mundo. Sabe-se que a leitura não se limita à decodificação de signos. Essa atividade suscita reflexões importantes e complexas, inclusive, sobre alfabetização, leitura e escrita, e escolarização. Para Paulo Freire (1989), a leitura da palavra é sempre precedida da leitura do mundo, de forma que a compreensão crítica do ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra ou da linguagem escrita, mas se alonga na compreensão do mundo. De acordo com Roger Chartier (2014), para que práticas culturais, em uma comunidade se transformem, é preciso tempo: tempo para que as relações sejam dinamizadas, para que se desenvolva a necessidade de estar juntos para/por meio da leitura do texto literário, isto é, tempo para “compartilhar o sensível” (Rancière, 2017). 7 Para Candido, a humanização se dá quando nos é possibilitado o “exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar os problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor” (2011, 249).
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Segundo Bourdieu (1983b), o habitus é: [...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (1983, p. 65).
Para o pensador francês, o individual, o pessoal e o subjetivo são, simultaneamente, sociais e coletivamente orquestrados, e que o habitus é uma subjetividade socializada que deve ser vista como “um conjunto de esquemas de percepção, apropriação e ação que é experimentado e posto em prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam” (Setton, 2002, p. 60). Ora, o habitus produz e reproduz práticas organizadas, com influência familiar, social, institucional, escolar. No entanto, nossa proposição é defender, assim como Setton, uma dimensão plástica e dinâmica do conceito que o traz como “trajetória, mediação do passado e do presente; habitus como história sendo feita; habitus como expressão de uma identidade social em construção” (Setton, 2002, p. 67). Zilberman (2009) afirma que “só se pode gostar do que se entende e compreender o que se aprecia”. E, ao mesmo tempo, lembra que tal concepção se efetiva, como processo, quando: pelo resgate e valorização da experiência estética é possível justificar a presença social e continuidade histórica da arte. Para Jauss, o desprestígio do prazer estético determina a rejeição da arte por inteiro, conduta implícita em teorias que se recusam a aceitar a validade da experiência do leitor ou que a discriminam, encarando-a tão-somente como efeito da indústria cultural e dos produtos destinados ao consumo (Zilberman, 2009, p. 53).
Para romper o desprestígio do prazer estético, tal como expõe Zilberman, é preciso reconhecer a experiência do(a) leitor(a). Assim, depreendemos que o habitus nunca está pronto, constitui-se como processo e que a obra literária deveria estar disponível para todas as pessoas. Assim, abre-se a possibilidade para que a leitura literária não seja mais entendida enquanto prática associada a uma condição social, a um modo de ser; e a compreensão de que, se é tímida a implementação das políticas nacionais e/ou locais que garantem o direito à Literatura a nossas crianças e jovens, deve-se criar fissuras nesse sistema de crenças e de habitus sócio-culturais, desdobrando os poucos programas vigentes8 e se fazendo proje8 O governo Lula, em janeiro/2023 reconstitui o Ministério da Cultura, antes extinto pelo governo Bolsonaro, e cria a Secretaria de Formação, Livro e Leitura. Um fato histórico e político importante para a valorização e implementação, em todos os níveis de governo no país, da Lei 13.696/2018.
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ção de outros, para o campo, em exercícios de democracia e de acesso das minorias na Amazônia ao direito de produzir, difundir e ler suas literaturas. Referências
BOURDIEU, P. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p.46-81. BRASIL. Lei n. 13.696, de 12 de julho de 2018. Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita. 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13696.htm. Acesso em: 16 jul. 2021. BRASIL. Lei n. 10.753, de 30 de outubro de 2003. Institui a Política Nacional do livro. 2003. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/ fed/lei/2003/lei-10753-30-outubro-2003-497306-publicacaooriginal-1-pl. html. Acesso em: 16 jul. 2021. CANDIDO, A. O direito à literatura. In: CANDIDO, A. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 2014. CORSINO, P. Infância e literatura nas urdiduras de palavras e imagens. In: MACEDO, M. A função da literatura na escola: resistência, mediação e formação leitora. São Paulo: Parábola, 2021. FREIRE. P. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados; Cortez, 1989. IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNAD Contínua - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/ populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostrade-domicilios-continuamensal.html?=&t=o-que-e. Acesso em:10 jun. 2023 INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar da Educação Básica. Brasília, DF: INEP, 2019. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/censo-escolar. Acesso em: 22 maio 2023. AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. Indicador de analfabetismo funcional: INAF Brasil, 2018. RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete et al. 2. ed. São Paulo: 34, 2017. REDE LEQT MAPEIA PLANOS DE LEITURA NOS ESTADOS E MUNICÍPIOS BRASILEIROS. Gife notícias, São Paulo, 19 de jul. de 2021. Disponível em: https://gife.org.br/rede-leqt-mapeia-planos-de-leitura-nosestados-e-municipios-brasileiros/. Acesso em: 10 dez. 2021.
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SETTON, M. da G. J. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: Uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, n. 20, p. 60-70, 2002. ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2009.
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CAPÍTULO 7 OMISSÃO DE DADOS DE LGBTFOBIA EM RONDÔNIA Grieco da Costa Lidoni1
O Brasil produz dados precários e subnotificados sobre violências LGBTfóbicas (FBSP, 2022; GGB, 2022). Apesar da subnotificação, os levantamentos realizados pela sociedade civil apontam um constante aumento destas violências (GGB, 2020), sem que haja uma política nacional de produção de dados e enfrentamento. Este trabalho compreende a ausência de dados como parte de um projeto necropolítico, baseado na exclusão, neutralização e extermínio dos corpos dissidentes do heterossexismo e da heteronormatividade. A presente pesquisa analisa o desempenho do Estado de Rondônia na produção de dados sobre violências LGBTfóbicas de 2011 a 2021 e os dados hemerográficos do período, buscando investigar limites e possibilidades da produção de dados no dimensionamento e enfrentamento da violência LGBTfóbica no Brasil. Para tanto, se baseará no método dedutivo, com técnicas de análise bibliográfica e documental. Com isso, espera-se criar suporte ao enfrentamento da escassez de dados sore violências LGBTfóbicas. Este trabalho tem origem no levantamento feito por Lidoni, 2022, que sistematizou os dados oficiais e os levantamentos hemerográficos sobre violências LGBTfóbicas entre 2011 a 2021 e observou uma sensível invisibilização e mesmo a omissão voluntária quanto ao dever de produzir estes dados. Neste ponto, a pesquisa busca investigar mais profundamente o desempenho do estado de Rondônia na produção dos dados de violência LGBTfóbica, em busca dos limites e possibilidades da produção de dados no dimensionamento e enfrentamento destas violências.
1 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Lucas de Ji-Paraná. Pós-graduado em Direitos Humanos na América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA. Atualmente é técnico na Defensoria Pública do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7367341675007859.
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As reflexões aqui propostas, na medida que tratam de processos de violência e apagamento, devem ser lidas como manifestações de um Brasil em que as taxas de violência letal são 38% superiores à média nacional (FBSP, 2022), e que ocupa o 25º lugar no ranking de qualidade estimada dos registros oficiais de mortes violentas intencionais. Rondônia não respondeu ao pedido de informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre registros de violência contra população LGBT+ em nenhum dos anos da série levantada, os únicos dados obtidos sobre assassinatos de pessoas LGBT+ no Estado foram levantados junto aos sistemas de notificação compulsória do SUS. Estas omissões e silêncios institucionais são dados fundamentais para entender a invisibilidade da violência LGBTfóbica. Buscando um lastro histórico dos processos de violência e exclusão da dissidência sexual e de gênero em Rondônia, chegamos ao trabalho de Falcão (2017), que nos fornece um importante relato sobre diversidade sexual e de gênero no “eldorado brasileiro”, com menção à “chegada” de Pintassilgo, o “primeiro Homossexual” da história de Rondônia, passando por histórias de castração e menção a crimes homofóbicos que marcaram o Estado nas décadas seguintes, marcados por brutalidade, omissão e crueldade das representações de imprensa de casos emblemáticos de suicídios e assassinatos de pessoas LGBT+, como se explicita na imagem abaixo: Figura 1
– Fotografia do Jornal Diário da Amazônia
Fonte: Falcão (2017).
“Acaba na forca o amor maldito dos Romeus sem Julieta”, “proibidos de amar, Romeus morrem” (Diário da Amazônia, 17/04/01, p. B3, apud Falcão, 2017), referindo-se ao suicídio de dois rapazes, de 19 e 15 anos, após a família descobrir a união homoafetiva entre eles. Dentro da abrangência temporal deste trabalho, cumpre mencionar alguns destaques dados ao Estado de Rondônia pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Jacarandá, 2022). Segundo o documento, Rondônia 70
ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR - V. II
é recordista histórico de desmatamento entre os Estados da Amazônia Legal, concentra taxas alarmantes de pessoas desaparecidas e de mortes decorrentes de conflitos agrários, é um dos líderes nacionais em violência contra a mulher, com 50,8 estupros e estupros de vulnerável por 100 mil habitantes e 445,6 lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica por 100 mil habitantes em 2021, ao passo que dispõe de estruturas precárias de atendimento a mulheres vítimas de violência. Além disso, ocupa lugar de destaque nos números de Mortes Violentas Intencionais e de encarceramento. Este brevíssimo panorama, somado ao penúltimo lugar no ranking de qualidade estimada dos registros oficiais de mortes violentas intencionais, inserido na região que concentra taxas de violência letal 38% superiores à média nacional (FBSP, 2022), nos revela um contexto de violências tão graves quanto invisíveis. Abaixo, o levantamento realizado por Lidoni (2022). Tabela 1
- Levantamento comparativo de cobertura dos dados oficiais de
homicídios de LGBT e dos dados hemerográficos levantados pelo GGB 2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
2021
Dados FBSP BR
**
**
**
**
**
**
99
109
97
167
179
Dados FBSP RO
**
**
**
**
**
**
**
**
**
**
**
Dados GGB BR
266
*
312
317
318
*
387
320
297
237
276
Dados GGB RO
**
*
**
9
9
*
5
6
9
2***
3***
Dados IPEA BR****
5
19
26
35
28
85
193
138
8
**
*
DADOS IPEA RO
**
**
**
1
0
**
2
3
**
**
*
RELATÓRIO MDH - BR
278
310
251
*
*
328
*
*
*
‘*
*
RELATÓRIO MDH - RO
9
6
1,1%
*
*
4
*
*
*
*
*
* neste ano não houve edição do relatório em questão ** não informado *** Nesta edição o relatório não diferenciou homicídios e suicídios ****Apenas em 2019 o IPEA passa a incluir indicadores de violências LGBTfóbicas em seus relatórios, de onde se extraiu a série histórica apresentada. Fonte: Lidoni (2022).
O Estado de Rondônia não informou os dados ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública em nenhuma das edições do Anuário Brasileiro de 71
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Segurança Pública, e os poucos dados que constam nos relatórios do Atlas da Violência (2019, 2020, 2020, 2021) foram levantados junto ao sistema de notificação compulsória SINAN. Ainda que os dados hemerográficos não tenham dado conta de cobrir todos os anos do período analisado, há uma diferença mínima do dobro entre registros captados pelo SINAN e registros hemerográficos, o que, com as devidas ressalvas metodológicas, revelam a profundidade da invisibilização das violências LGBTfóbicas no Estado. Além disso, percebe-se também um voluntarismo político contra as iniciativas por garantia de direitos à população LGBT+ no Estado. Um exemplo sensível deste voluntarismo ocorreu no final de 2017 e início de 2018, quando o governo de Rondônia enviou à Assembleia Legislativa Estadual o Projeto de Lei 845/2017, que cria o Conselho Estadual de Políticas Públicas e Direitos Humanos para a população de LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). O projeto de lei teve parecer favorável em todas as comissões, foi incluso na ordem do dia em 24 de abril de 2018 e aprovado em plenário em primeiro e segundo turno no mesmo dia (Rondônia, 2017), ao que deveria seguir para o presidente da casa para autógrafo e em seguida para sanção por parte do governador do Estado. Em 29 de maio, foi apresentado requerimento de autoria coletiva, pela anulação da votação na qual projeto havia sido aprovado e por uma nova votação, dessa vez adotando o processo de votação nominal. O requerimento de anulação, a tramitação nas comissões e a votação nominal ocorreram todos no dia 29 de maio de 2018, quando a instituição do Conselho foi rejeitada e arquivada (Rondônia, 2017). Além das manobras legislativas para barrar o tema, observa-se, com base nas declarações prestadas à época, a preocupação de alguns deputados não só em barrar a criação do Conselho mas também de questionar os representantes políticos federais por não terem se posicionado contra o decreto que criou o conselho a nível nacional, revelando não só a marginalidade do tema naquela casa como a influência das lideranças religiosas a ponto de alterarem o processo legislativo do estado para barrar a criação do Conselho. Se manifestaram favoravelmente à criação do Conselho a Universidade Federal de Rondônia, o Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual, a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, o Sindicato dos Trabalhadores em Educação no Estado de Rondônia, a Associação dos Membros da Defensoria Pública do Estado de Rondônia, a Arquidiocese de Porto Velho e muitos outros representantes de entidades e movimentos sociais. Discussões teóricas
Estas observações partem do referencial teórico da Necropolítica (Mbembe, 2018), precariedade e possibilidade de luto em Judith Butler (2017), 72
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e dinâmicas subjacentes à violência em Marcos de Jesus Oliveira (2017) e esta pesquisa é continuidade do trabalho de conclusão de curso “Necropolítica LGBT+ em Rondônia - Omissão de dados de LGBTfobia e a não possibilidade de luto pelas vidas precárias”, apresentado por este autor à Universidade Federal da Integração Latino Americana em 2022. Partindo da ausência de dados sobre violência LGBTfóbica no Brasil, acompanhada de uma omissão e mesmo um esforço institucional em ocultar este fenômeno, inferimos que as vidas LGBT+ se inserem num regime necropolítico de governabilidade, que se materializa na LGBTfobia de Estado, num regime de verdade que nega a violência intrínseca a estas mortes e, através da omissão dos dados, barra qualquer possibilidade de luto público. Se no início da série histórica abordada a luta era por mais dados, hoje, a própria divulgação destes dados e o reconhecimento destas violências são os campos de disputa (Butler, 2017, p. 33). Recorremos à Necropolítica de Mbembe como um contínuo das biopolíticas foucaultianas, apontando a brutalização dos processos violentos, de modo que a soberania passa a ser exercida como instância seletora e promotora da morte, “no poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (Mbembe, 2018, p. 5), decidindo quais vidas são importantes e quais são descartáveis, na forma de um estado de exceção e suspensão de direitos permanentes. Recorremos ao conceito de precariedade em Judith Butler (2017), que evidencia uma ética diferencial de distribuição da violência, da descartabilidade e das possibilidades de luto, acompanhada de sistemas de verdade que legitimam o extermínio dos matáveis, como normas que diferenciam humano de “menos que humano” (Butler, 2017, p. 22). Partindo deste referencial, as omissões e negativas institucionais de produzir dados sobre homicídios de pessoas LGBT+ podem ser compreendidas como a negação da ocorrência e da brutalidade destas violações e da responsabilidade por estes modos facilitados de morrer relegados a dissidentes de gênero (Butler, 2017), na medida que representam uma falha nos deveres de proteção do Estado, e também a negação de qualquer possibilidade de luto público e de controle social deste fenômeno violento. Para Oliveira (2017), a baixa qualidade dos dados é um elemento fundamental à análise, representando uma continuidade do crime de ódio e seu engendramento social e político, como consequências de um sistema moral e de uma ética de distribuição da violência que distingue as vidas que importam daquelas que não importam. Há nestas violências um deslocamento da lógica de monopólio estatal da violência física legítima, de modo que os autores destes crimes, muitas vezes, revelem um sentido de “justiçamento” e de “correção” contra os corpos abjetos e matáveis. Além disso, essa rede de micropoderes margi73
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nais e a sua intrínseca relação com as instituições de Estado são condições indispensáveis para o assujeitamento das corporalidades, para a normalização e coercitividade das normas de gênero, extermínio da alteridade e controle semiótico dos corpos, com fundamento na racionalidade dos ilegalismos em Foucault (1994, p. 716, apud Oliveira, 2017, p. 53-54). Neste sistema moral, a repetição das cenas violentas funciona como um instrumento na pedagogia da crueldade, que se realiza a partir das dimensões “marginais” e subterrâneas do poder, e se perpetua indissociavelmente em decorrência dos pactos de silêncio e cumplicidade que se estabelecem em torno da violência patriarcal nas agências de Estado, na forma de omissões institucionais e da exceção jurídica, no sentido de apagar esse tipo de violência e barrar possibilidades de luto social por estes sujeitos, reafirmando a descartabilidade dos corpos dissidentes (Butler, 2017; Mbembe, 2018; Oliveira, 2017). Considerações finais
Do observado até aqui, parece evidente a omissão do Estado em seus deveres de proteção, enfrentamento à violência e produção de dados de LGBTfobia no Brasil. Longe de um problema residual ou neutro de escolhas políticas, os processos de apagamento, impunidade e perpetuação da violência são conhecidos das agências de Estado há, pelo menos, 10 anos, como comprova o Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil (Brasil, 2012), que dá conta de processos violentos com características muito semelhantes às observadas atualmente, sem nenhuma ação concreta de enfrentamento. Ao comparar a qualidade dos dados produzidos, de acordo com suas fontes, observamos, também, uma especial deficiência nos dados oriundos da Segurança Pública, quando comparados aos casos de notificação compulsória pelo SUS. Fenômeno que vem sendo compreendido pela literatura como reminiscência da ideologia ditatorial brasileira e das relações históricas das forças de segurança pública contra dissidentes do cisheterossexismo. Se nos anos de chumbo eram os policiais que faziam operações de perseguição, vigilância e incriminação, hoje, a falta de confiança nas instituições e o medo de revitimização pelos seus agentes é um dos entraves para que muitas das vítimas de violências LGBTfóbicas procurem os sistemas de justiça (Brasil, 2022). Ainda consideradas as limitações metodológicas de se comparar dados oficiais e dados de fontes hemerográficos, a enorme diferença entre os dados fornecidos pelas Secretarias Estaduais de Segurança Pública e os dados levantados pelo Grupo Gay da Bahia é reveladora de uma grave fragilidade nos dados prestados pelo Estado brasileiro. No caso de Rondônia, um Estado especialmente violento quando comparado ao restante do Brasil, além das representações brutais encontradas 74
ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR - V. II
nos poucos registros históricos sobre dissidência sexual e de gênero, os silêncios sobre estas violências parecem ainda mais profundos, e carregados de voluntarismo político para barrar a criação de instrumentos de controle social e promoção de direitos à população LGBT+, conforme observado no caso do Conselho Estadual de Direitos LGBT+, marcado por influência de setores religiosos, manobras políticas escusas, como a anulação de uma votação válida da Assembleia Legislativa, e discurso de ódio. Quanto à qualidade dos dados, o Estado não prestou informações ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública em nenhuma das edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de modo que os poucos dados oficiais existentes foram levantados junto ao sistema de notificação compulsória SINAN, revelando a profundidade do apagamento das violências LGBTfóbicas. Em busca de chaves teóricas para a compreensão deste fenômeno, recorremos aos conceitos de: necropolítica (Mbembe, 2018); precariedade, possibilidade de luto e modos socialmente facilitados de morrer (Butler, 2017); patriarcado como pedagogia do poder e da violência e pactos de silêncio e ciclo de impunidade (Segato, 2018), sendo possível observar um modelo necropolítico de soberania, que se inicia na negação de condições materiais de inclusão e sobrevivência para dissidentes do cisheterossexismo e da heteronormatividade, passa pela falta de transparência nos dados de violência e culmina na impossibilidade até de integrar estatísticas, evidenciando modos socialmente facilitados de morrer para as vidas que não importam. Compreendidas as ações do Estado Brasileiro dentro deste modelo de governabilidade, é possível enxergar a postura brasileira no combate à LGBTfobia, principalmente a partir de 2016, não como uma política falha, mas como um bem-sucedido projeto de exercício de soberania e extermínio dos corpos dissidentes. Referências
Atlas da Violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/ artigos/6363-atlasdaviolencia2019completo.pdf. Acesso em: 22 ago. 2022. Atlas da Violência 2020. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/ artigos/3519-atlasdaviolencia2020completo.pdf. Acesso em: 22 ago. 2022. Atlas da Violência 2021. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/ artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em: 22 ago. 2022. 75
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CAPÍTULO 8 A INSTRUMENTALIDADE DO DIREITO NA PANDEMIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DA 1 BIOPOLÍTICA EM AGAMBEN E FOUCAULT Gustavo Akio Mizuno Tamura2
Introdução
O presente trabalho busca trazer uma breve exposição sobre a pandemia do coronavírus (SARS-COV-2) e sobre a situação que se colocou durante a pandemia no território brasileiro, em especial acerca das respostas jurídicas e políticas colocadas em resposta à situação pandêmica. Em seguida, será analisado o Direito e qual foi o seu papel durante a pandemia no Brasil a partir do conceito de biopolítica, utilizando-se, para isso, como marco teórico, o pensamento dos filósofos Michel Foucault e Giorgio Agamben. Por fim, buscarse-á questionar e refletir se o Direito foi utilizado de forma instrumental pelo Estado, no exercício de uma biopolítica marcada além do “fazer viver”, mas também pelo “deixar morrer”, frente ao vírus, abandonando à morte as populações negras, pardas, pobres e dos povos originários. Para o desenvolvimento do presente trabalho, utilizou-se da pesquisa bibliográfica, com o enfoque crítico-reflexivo, pela perspectiva da jusfilosofia, com o marco teórico dos supracitados autores. Para a contextualização da pandemia e as respostas jurídicas, buscou-se trazer fontes jornalísticas para narrar de forma breve o que se observou durante a pandemia acerca dos marcos teóricos da jusfilosofia e da biopolítica.
1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Acadêmico do quinto ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá. Membro do Grupo de Estudos em Filosofia do Direito – Kínesis (DDP/UEM) e do Grupo de Investigações sobre a Punição – GIP (DPP/UEM). E-mail: akio_ [email protected]. .Lattes: http://lattes.cnpq.br/0643819185529348. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-7549-8550.
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Desenvolvimento
No final do ano de 2019, surge na província de Wuhan, na China, uma patologia respiratória suspeita, a qual viria rapidamente a se espalhar. Em um primeiro momento, ocorreram medidas preventivas, mas em razão das características de alto contágio do vírus, ele rapidamente se espalhou para diversos territórios (WHO, 2021). Ao final de 2019 e no início de 2020, diversos países já encaravam fortes impactos diante do rápido contágio e as implicações diretas nos sistemas de Saúde, causando em muitos casos o colapso diante da quantidade de pessoas com a infecção do coronavírus que necessitavam de atendimento médico (Couto; Barbieri; Matos, 2021). No caso do Brasil, o primeiro caso de contágio no território foi registrado em 26 de fevereiro de 2020. Pouco tempo depois, em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde caracterizou a covid-19 como pandemia (OPAS, 2020). Em âmbito internacional, diversas medidas eram tomadas em combate à afecção do coronavírus, diversos países fecharam suas fronteiras, as autoridades tomavam medidas internas de distanciamento social, por meio de quarentenas e lockdowns, bem como a recomendação de medidas preventivas como o uso de máscaras e de higienização das mãos (Castro, 2021; Couto; Barbieri; Matos, 2021). O professor de Filosofia do Direito Eduardo C. B. Bittar (2020) escreveu em um artigo que a pandemia não seria apenas um acontecimento, mas sim um marco que viria a trazer de forma expressiva à luz as diversas patologias sociais que circundam o meio social. O que se mostra é que o autor estava correto, como passará a se mostrar, em especial sobre as patologias sociais discriminantes, visto que é possível ver um claro impacto diferenciado da pandemia entre os diversos setores populacionais que compõem a populaçao brasileira. Nos anos que o Brasil viveu a pandemia, viram-se marcadas diversas situações que demonstram um claro desdém com a população brasileira, em especial com a vida. Em um primeiro momento, encontrou-se a situação de conflitos entre o Executivo Federal, marcado pelo negacionismo do ex-presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, com os entes de federação. Os governadores dos Estados e os prefeitos agiram de forma a adotar medidas de isolamento social, enquanto o Executivo Federal primava pelas atividades econômicas e pelo negacionismo (Maia, 2020; Britto, 2020). Assim, foi o prenúncio de como a União seria durante todo o manejo da pandemia do coronavírus. Alguns episódios necessários de se apontar são: a promoção do “kit covid” e do tratamento precoce como medida de combate ao coronavírus; a defesa de uma imunização de rebanho que resultou na tragédia de Manaus; a distribuição de medicamentos ineficazes; e a oposição e a demora no processo de aquisição e aplicação das vacinas 80
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(Bertoni, 2021; Lacerda, 2021; Santos-Pinto; Miranda; Osorio-de-Castro, 2021). Apesar do contágio ser generalizado e a ineficiência e negligência do Estado em lidar com o coronavírus, em um primeiro momento, parece não ser discriminatório, ao se observar a mortalidade do vírus se vê que este afetou e causou muito mais mortes em certos setores populacionais, como as populações negras e pardas, os pobres e os povos originários (Sousa, 2021). Assim, o que se viu nesse período foi que o Direito serviu de forma a legitimar os atos da União, conferindo a legalidade dos atos que se mostravam expressamente injustos e de forma categórica, desprezíveis. Nota-se que não se entende que o Direito é apenas do Estado, mas todas as outras expressões jurídicas também não se mostraram eficientes no sentido de impedir essa instrumentalidade do Direito pelo Estado. Assim, ao se olhar para a perspectiva filosófica, o campo da biopolítica se mostra eficar para fazer essa análise sobre a pandemia, o uso do biopoder e a gestão das vidas pelo Estado. Michel Foucault foi o primeiro autor que adotou o conceito de biopolítica de forma crítica, para ele a biopolítica seria o exercício de um biopoder, que insere os processos biológicos da população dentro dos cálculos de governo do Estado, como a natalidade, a gestão de epidemias e a sexualidade. Para o autor, a biopolítica se constitui no final do séc. XVIII e desde então as vidas da população são geridas pelo ente estatal, seja no sentido de gerar e cuidar das vidas para que se desenvolvam – por meio do “fazer viver” –, seja no sentido de expor as vidas das populações indesejadas – que se entende como perigos ao corpo biológico do Estado – a dispositivos violentos de “deixar morrer” (Foucault, 2014, 2019). Neste sentido, no Brasil pôde-se observar exatamente isso, o negacionismo da União resultou na exposição de diversos setores populacionais ao vírus, “deixando morrer” as populações que o Estado entende como indesejadas, por meio dos mecanismos de Racismo de Estado. O pensamento do filósofo Giorgio Agamben também possui sua força crítica nesse sentido. O autor buscou dar continuidade, apesar de divergir em diversos pontos, ao trabalho foucaultiano sobre a biopolítica. Agamben apresenta conceitos como o “Estado de Exceção permanente” e o “campo” como paradigmas da modernidade. O Estado de Exceção para o autor seria o mecanismo de inclusão das vidas puramente biológicas, não politicamente qualificadas, dentro do ordenamento jurídico pela suspensão deste, uma inclusão que se faz por meio da exclusão, que constituiria a figura do Homo Sacer, a vida matável e insacrificável (Agamben, 2004). Na modernidade, o Estado de Exceção não mais depende de um mecanismo, uma decretação expressa, pois estaria se tornando regra, constituindo-se no corpo social o campo: 81
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A novidade é que, agora, este instituto é desligado do estado de exceção no qual se baseava e deixado em vigor na situação normal. O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que, como tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal (Agamben, 2004).
Mas o campo é constituído dentro do corpo social sem linhas rígidas, desta forma, qualquer sujeito, qualquer setor da população, estaria sujeito a se tornar homo sacer, querendo o Estado decidir desta forma, suspendendo seu estatuto jurídico e expondo a dispositivos de causar a morte. Nesse sentido, o filosofo aponta ainda sobre a oposição soberano-homo sacer, para apontar que o soberano é aquele que pode matar sem cometer crime, enquanto o homo sacer é aquele que pode ser morto por todos sem que se cometa o homicídio. Essa relação de oposição ainda se mostra na modernidade e na democracia com o conceito de povo. Agamben aponta que há uma cisão dentro do povo, há aqueles detentores da soberania e há aqueles que constituem o povo dos excluídos, que são os Homo Sacer, que têm sua vida abandonada pelo ordenamento juridico: Nessa perspectiva, o nosso tempo nada mais é que a tentativa - implacável e metódica - de preencher a fissura que divide o povo, eliminando radicalmente o povo dos excluídos. […] A obsessão do desenvolvimento é tão eficaz, em nosso tempo, porque coincide com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura (Agamben, 2004).
Desta forma, o pensamento dos referidos autores, somado às constatações sobre o Direito durante a pandemia do coronavírus no Brasil, permite levantar o questionamento sobre o papel do Direito nessa questão. O Estado brasileiro, em especial a União, agiu de forma a gerir as vidas, no exercício da biopolítica. No entanto, não foi no sentido de “fazer viver” a sua população, mas sim de abandonar à morte diversas populações, como as populações negras, pardas, pobres e indígenas, no exercício de um Racismo de Estado no pensamento de Michel Foucault, ou na eliminação dos povos dos excluídos em Giorgio Agamben, utilizando-se para isso das formas jurídicas para legitimar e conferir legalidade aos atos. O que se vê, desta forma, é um Direito submisso ao dizer do poder político, que foi sequestrado pelo Estado no exercício da biopolítica em seu “deixar morrer” durante a pandemia do coronavírus.
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Considerações finais
Durante este trabalho, mostrou-se um breve histórico sobre o surgimento da pandemia do coronavírus (SARS-COV-2), bem como foram apresentados alguns pontos importantes que marcaram o período pandêmico no Brasil, em especial aqueles que levaram a uma infecção muito maior na população brasileira. Viu-se desta forma como a União agiu para não combater de forma efetiva a pandemia, causando um grande número de óbitos, tendo diversos setores populacionais um número de óbitos mais expressivo, como as populações negras, pardas, pobres e indígenas. Ainda, levantou-se a possibilidade de que o Direito foi utilizado de forma instrumental, servindo para legitimar e legalizar os diversos atos negacionistas do Estado brasileiro. Assim, partiu-se para a análise jusfilosófica de Michel Foucault e Giorgio Agamben, em que foi possível apontar o que é a biopolítica e como ela pode se manifestar por meio dos mecanismos de “deixar morrer” do Estado. Pelo lado do filósofo Michel Foucault, observou-se o exercício da morte na biopolítica pelo Racismo de Estado, que busca a eliminação dos sujeitos vistos como perigosos e indesejados dentro do corpo social, enquanto pelo lado de Giorgio Agamben, pôde-se analisar a situação a partir do Estado de Exceção permanente, do campo e da fissura entre os dois povos – o povo soberano e o povo dos excluídos. Assim, constatou-se a instrumentalidade do Direito nesse exercício da biopolítica do Estado brasileiro durante a pandemia do coronavírus, abandonando diversos setores populacionais do Brasil à doença e, consequentemente, à morte. Referências
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CAPÍTULO 9 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA 1 CARCERÁRIO DE RONDÔNIA Laíla de Oliveira Cunha Nunes2
O presente trabalho tem como objeto de estudo o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) no sistema carcerário de Rondônia, bem como as graves e reiteradas violações de direitos fundamentais suportadas pelos encarcerados, notadamente a superlotação das unidades prisionais, principal mazela da qual decorrem todas as demais, tais como: precárias condições estruturais, de saúde, higiene, alimentação; não separação de presos pelo critério legal; ausência de local adequado para visitas; constantes fugas; e efetivo insuficiente de policiais penais. Desta forma, o escopo principal é demonstrar as várias formas de afronta aos direitos básicos as quais os reeducandos são há anos submetidos e apontar alternativas possíveis para que esse quadro seja superado através do reconhecimento do ECI em nosso sistema carcerário. Tem-se como justificativa a deficiência na implantação de políticas públicas e na concretização dos direitos fundamentais, fatos que inviabilizam a configuração do mínimo existencial às pessoas privadas de liberdade e a necessidade de serem adotadas medidas eficazes para a suplantação do ECI no sistema carcerário, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347 de 2015. A relevância do trabalho reside no fato de como a análise sobre a teoria do ECI pode contribuir para implementação de políticas públicas 1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia: Direitos Humanos entre civilização e barbárie: quais os desafios pós-2022?. 2 Mestranda do Programa de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça (DHJUS/UNIR). Especialista em Prevenção e Repressão à Corrupção. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Processual. Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Rondônia. Email: [email protected]. Lattes http://lattes.cnpq.br/4422516664393427. ORCID: 0000-0002-4928-5110.
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tendentes a garantir os direitos fundamentais dos encarcerados, que são diuturnamente violados. Conforme leciona Campos (2019, p. 102), o ECI trata-se de uma medida extrema que busca levar com que o Estado observe a dignidade das pessoas e os direitos fundamentais, uma vez constatadas graves violações a essas esferas jurídicas por omissão dos poderes públicos. A teoria do ECI surgiu em 1997 na Corte Constitucional Colombiana, quando da análise de um caso envolvendo 45 professores que tiveram seus direitos previdenciários suprimidos pelas autoridades municipais de María La Baja e Zambrano. Nessa primeira sentença, a Corte se limitou em reconhecer os direitos de todos os professores que estavam na mesma situação que os requerentes apenas para evitar a repetição de demandas judiciais. Em 1998, na Sentencia de Tutela 153 (Colômbia, 1998), a Corte reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário colombiano, porém, parte da doutrina destaca que essa decisão causou pouco impacto no cenário que pretendia superar, sobretudo porque não existiam sistemas de monitoramento posteriores para verificar sua implementação. Há, porém, aqueles que defendam que o grande mérito dessa sentença tenha sido colocar a crise do sistema penitenciário daquele país na pauta das autoridades públicas para que saíssem do estado de inércia. O uso desse instrumento foi aprimorado pela Corte Constitucional Colombiana à medida que diversas questões julgadas doravante foram analisadas sob a ótica do ECI. Assim, no julgamento mais paradigmático da América Latina para a implementação de uma sentença estrutural, a Corte da Colômbia declarou a emergência humanitária acerca do deslocamento forçado de milhares de pessoas em razão da violência. Desta forma, na Sentencia de Tutela 25 (Colômbia, 2004), o Tribunal Constitucional Colombiano elencou quatro pressupostos para a configuração do estado de coisas inconstitucional, que podem ser assim sintetizados: I) quadro de violação massiva e contínua de direitos fundamentais, que afeta um número amplo de pessoas; II) omissão reiterada e persistente das autoridades públicas no cumprimento de suas obrigações, defesa e promoção dos direitos fundamentais; III) as medidas necessárias para a superação das inconstitucionalidades devem ser dirigidas a vários atores públicos; IV) potencialidade de um número elevado de afetados transformarem a violação de direitos em demandas judiciais, o que produziria um grave congestionamento do judiciário. Este julgamento foi tido como paradigmático porque, conforme expõem Garavito e Franco (2015, p. 66), após as lições acerca da ineficácia e dificuldades em suas implementações das sentenças anteriores que reconheceram o ECI, a Corte conservou sua jurisdição e assumiu a tarefa de 86
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levar adiante o seguimento contínuo e detalhado do desempenho do país. Assim, foram emitidas inúmeras ordens específicas para que a Colômbia criasse um plano de ação para superar o estado de coisas inconstitucional e garantir os direitos básicos da população submetida ao deslocamento forçado. Desta forma, a Corte não se limitou a determinar a implementação de políticas públicas visando a superação da violação de direitos, mas supervisionou o cumprimento da decisão, em um longo processo de seguimento, por meio de audiências públicas e com o envolvimento da sociedade civil. Ao utilizar o ECI, é inegável que a Corte não se restringe a uma mera função de garantidora de direitos individuais, posto que assume um papel mais ativo, visando a formulação de políticas públicas e assegurando o seu controle e execução. Por isso, para que o Poder Judiciário legitimamente assuma essa posição mais ativa, deve observar estritamente os pressupostos necessários para a configuração do estado de coisas inconstitucional. Garavito e Franco (2015) asseveram que, a partir de uma concepção de democracia que destaca a importância da deliberação pública e do controle horizontal entre os órgãos do poder público, esse tipo de intervenção judicial fortalece a democracia ao invés de erodi-la. Ilustramos esse argumento com provas de que o Tribunal proferiu a Sentencia de Tutela 25 (Colômbia, 2004) justamente para superar o bloqueio institucional que impedia o governo de enfrentar a emergência humanitária da população deslocada em razão da violência. Assim, as evidências mostram que a intervenção judicial complementou, ao invés de substituir, o papel do governo e do Congresso colombianos. É inegável que o reconhecimento do ECI pressupõe, em alguma medida, que o Judiciário assuma uma postura ativista. No entanto, buscar uma definição objetiva para ativismo judicial é uma tarefa difícil, diante de sua indefinição conceitual e especialmente devido à complexidade que essa temática envolve. Conforme nos alerta Campos (2012), o uso indiscriminado e até mesmo pejorativo do termo torna essa tarefa ainda mais árdua. A opinião sobre a virtude normativa do ativismo judicial não é homogênea. Para a maioria dos que se debruçam sobre o tema, os juízes ativistas são sempre uma ameaça aos valores democráticos e à separação de poderes, de modo que o termo acaba servindo como substituto para excesso judicial. Para outros, porém, os juízes e as cortes devem agir de modo mais assertivo em nome dos direitos da liberdade e igualdade e diante da inércia ou do abuso de poder por parte de outros atores políticos e instituições (Campos, 2012). No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 (Brasil, 2015), deferiu parcial87
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mente as medidas cautelares pleiteadas para determinar a realização das audiências de custódia, bem como para determinar a liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. Após mais de sete anos do reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, as violações massivas de direitos fundamentais continuam a ocorrer em nosso sistema prisional, notadamente no Estado de Rondônia. Desta forma, diante da complexidade posta acerca dessa conceituação e considerando o objetivo desse estudo, podemos dizer que o ativismo judicial corresponde a uma atuação do Poder Judiciário, no exercício de suas atividades típicas que preenchem vácuos de institucionalização surgidos com a omissão e o déficit funcional dos demais poderes, muitas vezes para garantir a formulação e a execução de políticas públicas e assegurar a observância dos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição. No que tange especificamente ao cenário carcerário de Rondônia, de acordo com os dados compilados pelo Fórum de Segurança Pública (Brasil, 2022a), em 2021, o estado ocupava a quarta posição no Brasil em relação ao maior número de pessoas privadas de liberdade por 100 mil habitantes, perdendo apenas para o Distrito Federal, Acre e Mato Grosso do Sul. Importante asseverar que, entre os anos de 2014 e 2019, houve um aumento progressivo na taxa populacional encarcerada no Estado, só sendo notada uma pequena redução entre os anos de 2020 e 2021, em relação aos quais incidiu a pandemia do coronavírus. Analisando os dados de dezembro de 2022, já sistematizados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Brasil, 2022c), observa-se novamente que o número de encarcerados no Estado voltou a subir, sendo registrado 811,78 presos por cada 100 mil habitantes, tendo Rondônia assumido o terceiro lugar nesse ranking, perdendo apenas para Acre e Distrito Federal. De acordo com esses números, o Brasil possui 832.295 encarcerados, totalizando a média de 390,17 presos a cada 100 mil habitantes. Desta forma, essas informações corroboram a tendência de crescimento da população encarcerada no Estado de Rondônia, que corresponde a mais que o dobro da média nacional. Consoante os levantamentos do mês de março de 2023, sistematizados pela Secretaria de Estado de Justiça (Brasil, 2023b), Rondônia possui 13.872 presos, entre homens e mulheres, privados de liberdade nos regimes fechado, semiaberto intramuros e provisórios. Desses, 12.920 são homens e 952 são mulheres. Entretanto, conforme já exposto, em que pese Rondônia estar em terceiro lugar no Brasil em relação aos Estados com maior número de encarcerados por 100 mil habitantes, há um déficit real de vagas de 1.257 ocupações. Observa-se que, neste quantitativo, foram considerados efetivamente apenas aqueles presos que estão dentro do cárcere. É digno 88
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de nota que o Estado já utiliza de forma ampla o monitoramento eletrônico, especialmente para o regime semiaberto, o que causa um efeito positivo no que tange ao déficit de vagas especialmente no referido regime. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, através do sistema Geopresídios (Brasil, 2023a), que se propõe a fazer uma radiografia do sistema penal brasileiro tendo como base o último relatório mensal do cadastro nacional de inspeções nos estabelecimentos penais, o Brasil possui 2.288 estabelecimentos penais, com 490.649 vagas ocupadas por 664.118 presos, havendo um déficit de vagas de 173.469, o que corresponde a uma média nacional de 35%. Portanto, por mais paradoxal que possa parecer, em que pese ser o terceiro Estado que mais possui encarcerados por 100 mil habitantes, Rondônia também ocupa o terceiro lugar em relação aos Estados com menor déficit de vagas no sistema prisional, com apenas 9.86%. Após analisar os dados compilados pelo CNJ (Brasil, 2023a), percebemos que em Rondônia há estabelecimentos extremamente superlotados e aqueles que contam com muitas vagas ociosas. Certamente, essa ausência de gestão geral das vagas pela Secretaria Estadual de Justiça de Rondônia que, por sua vez, se limita a buscar permissão do juiz de cada Comarca para promover as transferências de presos, mesmo quando há vagas disponíveis, acaba contribuindo para esse cenário de flagrante desigualdade entre as unidades. Dito de outra forma, dos 43 estabelecimentos penais avaliados nas últimas inspeções mensais realizadas pelos juízes estaduais do Estado de Rondônia (Brasil, 2023a), é possível constatar um déficit de vagas de 1.617 vagas nos regimes fechado e semiaberto. Ocorre que há vagas ociosas em 15 estabelecimentos penais, totalizando 581 vagas. Apenas à guisa de exemplo, cita-se que o Centro de Ressocialização de Ariquemes (Brasil, 2023a), ostenta o maior índice de superlotação do Estado. A unidade possui capacidade projetada para 196 presos e abriga 442 reeducandos, ou seja, mais de 225% de seu limite. Por outro lado, na Comarca de Jaru, a apenas 90 quilômetros de Ariquemes, o Centro Regional de Ressocialização dispõe de 413 vagas e apenas 269 presos, o que implica em pouco mais de 65% de sua ocupação máxima. Esse absurdo contraste sugere um grave problema de gestão, que invariavelmente causa severos danos aos direitos fundamentais dos detentos. Com relação às condições das estruturas físicas dos estabelecimentos, o Conselho Nacional de Justiça elenca que podem ser classificadas como excelentes, boas, regulares, ruins ou péssimas. Assim, ainda de acordo com os dados compilados no Geopresídios (Brasil, 2023a), do total de 43 unidades prisionais avaliadas, apenas 2 foram classificadas como excelentes, 7 como boas, 15 como regulares, 5 ruins e 14 como péssimas. 89
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Diante das estatísticas expostas, depreende-se que grande parte dos nossos estabelecimentos penais não escapa ao estado de coisas inconstitucional, surgindo, portanto, a necessidade de implementação de políticas públicas eficazes para alterar de maneira significativa essa realidade, que há anos é observada quase que passivamente pelo Poder Executivo. Como primeira alternativa para mudança desse quadro, sugerimos a adoção do numerus clausus na execução penal. Essa técnica se trata de uma estratégia de gestão, à qual, a fim de garantir o mínimo existencial de cada encarcerado, impede a superlotação de unidades prisionais, uma vez que cada entrada no sistema prisional, deve corresponder uma saída. No que tange a esse tema, existe a resolução nº. 05 de novembro de 2016, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que disciplina a matéria no âmbito dos estabelecimentos penais. Ademais, através de decisão proferida no HC Coletivo 143.988/ES (Brasil, 2020), o STF adotou a referida estratégia para limitar o ingresso de adolescentes nas unidades de internação em patamar superior à capacidade de vagas projetadas. Outrossim, como segunda alternativa, propomos que a gestão de todas as vagas do sistema carcerário do Estado de Rondônia seja realizada pela Secretaria de Estado da Justiça, com supervisão do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), a fim de evitar situações como ocorrem hoje, quais sejam, a existência de estabelecimentos prisionais superlotados enquanto há vagas ociosas em outros locais. Desta feita, entendemos que a atuação do Poder Judiciário, ao reconhecer o estado de coisas inconstitucional no âmbito do sistema carcerário em Rondônia e, consequentemente superar a omissão dos demais Poderes, admitirá a grave lesão aos direitos fundamentais de determinados presos, garantindo-lhes, assim, o mínimo existencial para uma vida digna. Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Geopresídios: dados das inspeções nos estabelecimentos penais, 2023a. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/ inspecao_penal/mapa.php. Acesso em: 10 abr. 2023. BRASIL. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Resolução nº 05 de 25 de novembro de 2016. Disponível em: https://www.gov. br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2016/resolucao-no-5-de-25-novembro-de-2016. Acesso em: 26 out. 2022. BRASIL. Fórum de Segurança Pública. População Prisional. 2022a. Disponível em: http://forumseguranca.org.br:3838/. Acesso em: 18 abr. 2023. BRASIL. Secretaria de Estado de Justiça de Rondônia. Sistema Prisional em Números. 2023b. Disponível em: https://rondonia.ro.gov.br/wp-content/ uploads/2023/04/Sistema-Prisional-Abril-2023.pdf. Acesso em: 18 abr. 2023. 90
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BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Sisdepen: estatísticas penitenciárias, dezembro 2022c. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios-e-manuais/relatorios/relatorios-analiticos/ RO/ro-dez-2022.pdf. Acesso em: 8 abr. 2023. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347/DF. Arguente: Partido Socialismo e Liberdade. Arguido: União e outros. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 09 de setembro de 2015. Diário da Justiça Eletrônico, v. 181, p.40-42, 2015. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 5 set. 2021. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC Coletivo 143.988/ES. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, DF, 24 de agosto de 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=TP&docID=753732203. Acesso em: 26 out. 2022. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal, 2012. Disponível em: https://www.bdtd.uerj. br:8443/handle/1/9555. Acesso em: 8 out. 2022. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. 2. ed. Editora Jus Podivm, 2019. COLÔMBIA. Corte Constitucional da Colômbia. Sentencia de Tutela T-153/98, de 28 de abril de 1998. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1998/t-153-98.htm. Acesso em: 8 out. 2022. COLÔMBIA. Corte Constitucional da Colômbia. Sentencia de Tutela T-025/2004, de 17 de junho de 2004. Disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm. Acesso em: 8 out. 2022. GARAVITO, César Rodríguez; FRANCO, Diana Rodríguez. Juicio a la Exclusión. El Impacto de Los Tribunales sobre Los Derechos Sociales en el Sur Global. 1. ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2015.
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CAPÍTULO 10 A ALIMENTAÇÃO ESCOLAR EM CONTEXTO 1 DE COVID-19 EM PORTO VELHO/RO Melba de Souza Guimarães2 Aparecida Luzia Alzira Zuin3
O mundo foi tomado de espanto e impotência com o anúncio da pandemia ocasionada pela covid-19. A doença foi reportada pela primeira vez pelo escritório da Organização Mundial de Saúde em 31 de dezembro de 2019. O vírus fez milhares de vítimas na Ásia, local onde surgiu, e espalhou-se pelo mundo inteiro, chegando ao Brasil em fevereiro de 2020, o que provocou mudanças no comportamento das pessoas em todo o planeta. Em 31 de janeiro de 2020 o surto foi declarado como Emergência de Saúde Pública. Em 11 de março de 2020, menos de 45 dias depois, já havia se espalhado pelo mundo e a Organização Mundial de Saúde declarou a disseminação comunitária da covid-19, em todos os continentes, como pandemia. Em 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde do Brasil editou a Portaria nº 188/GM/MS, declarando Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, em razão de infecção humana por covid-19. Na recomendação para conter a doença, são propostas três ações necessárias: isolamento social e tratamento dos casos identificados, testes em massa e distanciamento social (Brasil, 2020b). O comércio fechou, as pessoas tive-
1 Resumo apresentado na 2ª Semana de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia: Direitos Humanos entre civilização e barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Mestra em Educação pela Universidade Federal de Rondônia. Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). É pós-graduada em Gestão, Orientação e Supervisão no ambiente educacional. Atualmente é supervisora educacional na EMEIEF “Senador Olavo Gomes Pires”, no Município de Porto Velho. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9528733214904416. ORCID: 0000-0002-6133-8262 3 Doutora em Comunicação e Semiótica. Pós-doutorado em Direito, pela UERJ (Linha Políticas Públicas Urbanas) e docente dos Programas de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico em Educação e Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Docente do curso de Direito (DCJ/UNIR). Líder do Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Amazônia (CEJAM) e Grupo de Estudos Semióticos em Jornalismo (GESJOR). E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/1584841068017210 ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5838-2123
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ram que se isolar dentro de suas residências, dúvidas e incertezas eram as palavras de ordem veiculadas entre as pessoas. Na esfera educacional, o fechamento das escolas foi realizado como medida de prevenção para evitar a disseminação em escala exponencial do novo Coronavírus. Considerando a gravidade da situação, a Prefeitura de Porto Velho, por meio da Secretaria Municipal de Educação (SEMED), também elaborou com máxima urgência o Plano de Contingência para prevenção à covid-19, o que previu, entre várias ações, a suspensão imediata das aulas presenciais no município. A SEMED, desde os primeiros sinais da chegada do vírus, elaborou o Plano de Contingente para prevenção ao novo Coronavírus, que contou com diversas ações, dentre elas, a suspensão das aulas presenciais. E após a primeira onda de ações emergenciais, as instituições escolares entraram em um novo momento para que fossem garantidos a continuidade na distribuição da merenda nas escolas. Houve mudanças nas rotinas escolares e, com isso, a necessidade de efetivar a distribuição da merenda escolar com novos paradigmas em como fazer a distribuição do alimento servido na escola. A pandemia de covid-19 perdurou e não houve como mensurar quais eram os efeitos a médio e longo prazo nas comunidades escolares, especialmente no que se refere à distribuição igualitária da alimentação escolar fornecida aos educandos(as). Todavia, foi possível prever alguns questionamentos: I) Com as aulas presenciais suspensas por causa do isolamento social, como conciliar as necessidades nutricionais dos educandos(as) sem as devidas refeições servidas na escola, sobretudo, aqueles em vulnerabilidade social que têm na escola, talvez, o único momento do dia em que recebem uma alimentação saudável? II) Como organizar uma distribuição de merenda para as crianças sem acesso a uma alimentação adequada? III) Como fazer uso de estratégias para uma distribuição igualitária e contínua? IV) Diante da situação em que as preocupações tomam uma dimensão ampliada, e famílias são “espremidas” entre as necessidades de alimentar seus filhos(as) e a de sobreviver em tempos pandêmicos, quais diretrizes permeiam a distribuição da merenda escolar? V) O que se oferece na merenda escolar contribui para o crescimento saudável na promoção do ensino-aprendizagem à distância?
Por isso, cabe entender como as escolas no âmbito municipal atendem aos critérios do PNAE e PMAE, como instrumento de Educação Alimentar e Nutricional, conforme proposta na legislação. A Rede Municipal de Ensino de Porto Velho conta com a oferta da merenda escolar que, em regra, deve ser proporcionada pelo município através dos Programas de Alimentação Municipal (PMAE) e Nacional (PNAE), sendo o PMAE como mantenedor e o PNAE como ajuda suplementar para a 94
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alimentação escolar no município. A oferta de merenda deve atender todas as modalidades de ensino, tais como, a creche (que compreende as crianças de até três anos de idade), a pré-escola (para as turmas de quatro e cinco anos) e o Fundamental l (que vai da faixa etária de seis a dez anos de idade). As Unidades de Ensino Municipais devem seguir os cardápios que são elaborados pela equipe de nutricionistas, que sinaliza duas refeições para a creche e pré-escola e uma refeição para alunos(as) matriculados(as) no Ensino Fundamental. Ao considerar que o aluno(a) não vai conseguir estudar se estiver com fome, ou ainda se tiver alguma deficiência nutricional por falta de uma alimentação adequada em sua casa, pode-se afirmar a importância que tais programas de alimentação para as escolas sejam efetivamente cumpridos. E como garantir esse direito ao alimento saudável a todos, sobretudo, aos que aqui recebem destaques, os alunos(as) das escolas públicas municipais, em tempos de isolamento social causado pela covid-19 de forma a promover e garantir o processo de ensino e aprendizagem com qualidade? A chegada do novo Coronavírus trouxe pânico para o País, e como não havia, no momento, nenhuma vacina ou qualquer outra forma de detê-lo, as autoridades decidiram adotar medidas de isolamento social como uma das formas de conter a proliferação do vírus. Tal medida ocasionou o fechamento das escolas, mercados, teatros, e tantos outros espaços que gerassem aglomerações de pessoas. Muitos setores tiveram suas estruturas financeiras abaladas, por conseguinte, a renda familiar de muitos também diminuiu, ocasionando a insegurança alimentar e nutricional em muitas famílias, em especial a de alunos(as) das escolas públicas: No Brasil, o coronavírus chega em um momento de estagnação econômica, desmonte do sistema de saúde, de segurança alimentar e nutricional e de proteção social, aumento acelerado da pobreza e da população em situação de rua. A interseção entre estes fatores, e em especial num contexto de esvaziamento das políticas de segurança alimentar e nutricional, contribui ainda mais para que grande parcela dos brasileiros se encontre em uma situação de profunda vulnerabilidade diante dessa pandemia (Sipioni et al., 2020)
O Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, divulgado no portal eletrônico do Conselho Federal de Nutrição pela Vigilância da Segurança Alimentar e Nutricional, no dia 08 de junho de 2022, revela que a quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, passando fome, praticamente dobrou em menos de dois anos (CFN, 2022). O contexto pandêmico escancarou a situação de insegurança alimentar, igualmente 95
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a situação de alguns alunos(as) e suas famílias passando privações de alimentos e, porque não dizer, fome. Durante esse período, a pandemia de covid-19 provocou uma crise econômica em várias vertentes e, com isso, famílias ficaram em estado constante de vulnerabilidade social, e para tentar amenizar a situação de fome das famílias, a Prefeitura de Porto Velho lançou uma campanha para arrecadar alimentos para distribuição de cestas básicas no município (EM RONDÔNIA, 2021). A chegada da pandemia de covid-19 ao município de Porto Velho suspendeu as aulas presenciais para que fosse cumprida a ordem do distanciamento físico e social na tentativa de conter a proliferação do vírus, conforme Decreto nº 16.612, de 23 de março de 2020, em seu art. 1º: “Declara Estado de Calamidade Pública em todo território do Município de Porto Velho, para fins de prevenção e enfrentamento à pandemia causada pelo novo Coronavírus” (Porto Velho, 2020). Desse modo, se para um percentual de alunos(as) a principal refeição do dia era realizada no ambiente escolar, a decisão de suspender as aulas significou privar, ou mesmo precarizar, a alimentação adequada de algumas famílias. Essa medida, em algum nível, impactou o orçamento familiar e prejudicou a qualidade e quantidade da alimentação de diversos alunos(as). No boletim sobre a covid-19, edição 875, publicado no portal eletrônico do Governo de Rondônia (2022) no dia 25 de agosto de 2022, o total de óbitos por covid-19 em Porto Velho foi de 2.713. Desde o início da pandemia, a região Norte obteve as maiores taxas, sendo o Estado de Rondônia com incidência superior às outras regiões: As maiores taxas de incidência de covid-19 no Brasil estão na região Norte, com 2.843,1 casos/100 mil habitantes e mortalidade de 72,2 óbitos/100 mil hab., sendo que o Estado de Rondônia, até a 20ª semana da epidemia, registrou incidência superior à apresentada pelo conjunto da região, 3.027,5 casos/100 mil hab., e mortalidade de 62,4 óbitos/100 mil hab., pouco abaixo da média da região. O registro do primeiro caso em Rondônia ocorreu no dia 20 de março de 2020 (ESCOBAR et al., 2021).
A pandemia por covid-19 para região Norte foi ainda mais devastadora, com número de óbitos elevado em comparação a outras regiões brasileiras. A melhor medida para conter a doença, em um primeiro momento, foi o isolamento social, por isso, através do Decreto n° 25.113, de 5 de junho de 2020, o então Governador de Rondônia (2018–2022), Marcos Rocha, decretou medidas temporárias de isolamento social restritivo, visando a contenção do avanço da pandemia do novo Coronavírus nos municípios de Porto Velho e Candeias do Jamari (Rondônia, 2020). 96
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Com o isolamento social como forma de não propagação da covid-19, programas e políticas públicas de Segurança Alimentar foram afetadas. Sipioni et al. (2020) comentam como esse isolamento prejudicou o acesso de crianças a uma alimentação de qualidade e provocou impactos nestas políticas, por conseguinte, o enfraquecimento das políticas de Segurança Alimentar e Nutriciona (SAN) repercutiu de forma aguda nas condições de vida da população, especialmente na classe mais pobre, a mais afetada pelas consequências da pandemia. Em virtude dessa situação, a Lei nº 11.947/2009, em seu art. 1º, passa a vigorar acrescida do art. 21-A, com Lei nº 13.987, de 07 de abril de 2020: Art. 21-A. Durante o período de suspensão das aulas nas escolas públicas de educação básica em razão de situação de emergência ou calamidade pública, fica autorizada, em todo o território nacional, em caráter excepcional, a distribuição imediata aos pais ou responsáveis dos estudantes nelas matriculados, com acompanhamento pelo CAE, dos gêneros alimentícios adquiridos com recursos financeiros recebidos, nos termos desta Lei, à conta do PNAE (Brasil, 2020a).
A alteração disposta pela Lei nº 13.987/2020 autoriza, em caráter excepcional, enquanto durar a suspensão das aulas presenciais, a distribuição de alimentos comprados com os recursos do PNAE para os pais ou responsáveis pelos alunos(as) da Educação básica. Também a Resolução nº 02, de 9 de abril de 2020, publicada pelo Ministério da Educação e FNDE, autoriza as Secretarias de Educação a distribuírem, durante o período de estado de calamidade pública, os alimentos oriundos do PNAE a essas famílias, de forma a garantir a alimentação aos alunos(as) enquanto as aulas estiverem suspensas (Brasil, 2020c). De acordo com essa Resolução nº 02/2020, os alimentos deveriam ser entregues em forma de “Kits de Alimentação Escolar”, definidos pela equipe de nutricionistas lotadas nas Secretarias Educacionais, obedecendo a faixa etária dos estudantes. Esses kits deveriam seguir as determinações do PNAE, isto é, respeitando os hábitos alimentares saudáveis, a cultura local, bem como o valor nutricional, valorizando sempre os alimentos in natura e priorizando os produtos da agricultura familiar. A Resolução nº 02/2020 aponta ainda para que fosse feita uma distribuição segura, de preferência a ser entregue na casa do (a) estudante, ou que fosse feito uma agenda de distribuição nas escolas e, nesse caso, somente uma pessoa fosse receber o kit de alimento (Brasil, 2020c). Desse modo, os alunos(as) tiveram que se isolar em suas residências e o recebimento da refeição servida na escola foi então amparado no art. 21-A, incluído pela Lei nº 13.987/2020, assim como na Resolução nº 02/2020 (Brasil, 2020c). Assim, em tempos tão difíceis, a escola fez, ainda de forma 97
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paliativa, sua contribuição para as famílias de alunos(as) pudessem sobreviver a fome em meio à crise causada pela covid-19 em Porto Velho. Além dos “Kits de alimentação” que foram adquiridos através dos recursos da merenda escolar, muitas escolas doaram cestas básicas para as famílias que procuravam na escola esse apoio em tempos de isolamento social. A Prefeitura de Porto Velho, através da Divisão de Alimentação Escolar da Secretaria Municipal de Educação (DIALE/SEMED), seguindo as orientações já citadas, autorizou a compra de alimentos com dispensa de licitação pelas Unidades Executoras (UEx) para a montagem e distribuição dos kits de alimentação aos alunos(as) devidamente matriculados nas escolas em seu município, onde cada um receberia um kit em cada entrega (SEMED, 2020). Após as compras dos gêneros alimentícios pela UEx, eram confeccionados os kits e distribuídos aos responsáveis pelos(as) estudantes. A entrega do Kit de Alimentação Escolar foi feita, em um primeiro momento, somente aos alunos(as) que recebiam Bolsa Família. Em seguida, os demais alunos(as) também receberam. Segundo notificou o portal eletrônico da Prefeitura de Porto Velho, no dia 09 de junho de 2021 em uma matéria denominada “Kits alimentação chegam para mais de 44 mil alunos da rede municipal de Porto Velho”: A estimativa da Semed é atender 44.791 alunos de Porto Velho e distritos, conforme censo escolar do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação exercício 2021. Os 4.528 alunos da Rede Santa Marcelina também serão beneficiados por meio de convênios com os kits alimentação. [...] Cada família recebe cinco quilos de arroz, um quilo de feijão, um litro de leite UHT, um pacote de 400 gramas de biscoito (cream cracker ou rosquinha) e aproximadamente 900 gramas de frango (coxa/sobrecoxa). Os produtos oriundos da agricultura familiar só serão incluídos no kit na segunda etapa de distribuição porque a Chamada Pública para regulamentar a compra neste setor está em andamento. A previsão é incluir abóbora, banana prata ou banana da terra, laranja, macaxeira e iogurte nas próximas aquisições (Prefeitura Porto Velho, 2021).
Ainda segundo a matéria divulgada pela Prefeitura Porto Velho (2021), até a data da nota, das 141 unidades escolares, 123 já haviam distribuído alimentos para as famílias, sendo 80 escolas urbanas e 43 rurais. Para entrega dos Kits, as escolas tiveram de fazer uma Agenda de Entrega dos Alimentos, seguindo a ordem por turmas, com horários pré-estabelecidos, de forma a evitar aglomerações. Assim, foi possível garantir, mesmo em momento de suspensão de aulas, o direito à alimentação a todos os(as) estudantes atendidos nas escolas públicas, para a correta execução do PNAE e PMAE nesse momento excepcional (SEMED, 2020). 98
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Nesse processo, a DIALE/SEMED, em auxílio informacional, elaborou, em dois momentos, uma “Cartilha de orientações para a distribuição do kit agricultura familiar executado pelo PNAE/PMAE durante a pandemia do coronavírus (COVID-19)”. A primeira foi elaborada em 2020, logo após iniciar o isolamento social. A segunda foi no ano seguinte, em 2021. Estas cartilhas traziam orientações para o gestor escolar fazer a aquisição dos gêneros alimentícios para compor os kits da agricultura familiar, e informavam, entre outros, quais itens da agricultura local deveriam ser pagos com o recurso do PNAE, e os demais itens adquiridos com dispensa de licitação (Cotação), que deveriam ser pagos com o recurso do PMAE. As cartilhas traziam também a informação de como os gêneros deveriam ser recebidos, montados, a sugestão do que deveria compor o kit e sua distribuição, assim como a prestação de contas dessas compras (SEMED, 2020, 2021). Os itens que deveriam compor o kit foram a laranja, a abóbora e a banana maçã, que foram compradas do produtor rural, os demais itens arroz, feijão, macarrão, leite, biscoito e maçã foram comprados em supermercados pelas escolas, através de cotações. No ano de 2021, perdurou a pandemia e o isolamento social, como consequência, as aulas ainda se mantiveram de forma remota, por isso a DIALE/ SEMED autorizou, via memorando, novas distribuições de Kit de Alimentação Escolar, com as mesmas orientações do ano anterior, com exceção da última entrega do ano, em que foi composto um kit somente com produtos oriundos da agricultura familiar. Para esta entrega, também, foi feito um cronograma seguindo as mesmas orientações anteriores, de que cada Unidade Escolar organizasse a entrega de forma a evitar que as famílias se aglomerassem: A Secretaria sugere que a unidade escolar elabore um aviso sobre os dias e horários da distribuição para serem entregues aos alunos em modalidade presencial em dias de aula, para que os mesmos entreguem aos seus responsáveis, com no mínimo três dias de antecedência (SEMED, 2021, p. 06).
Com o prolongamento do isolamento social, a escassez de comida também se prolongou, e os kits acabaram sendo apenas uma medida paliativa para a segurança alimentar das famílias da comunidade escolar. À medida que as famílias recebiam os kits, relatavam a necessidade de alimentos que vinham enfrentando. Algumas mães diziam que não tinham nada para comer com seus filhos e filhas. Nesse sentido, Ribeiro-Silva (2020, p. 3424) comentam que: [...] a emergência e a disseminação da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 traz mais intensidade aos problemas que já vinham se acumulando no que concerne à SAN de todos, especialmente dos mais vulneráveis em termos sociais, econômicos e sanitários, sinalizando para possível aumento de situações de fome. 99
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No contexto pandêmico, pode-se inferir que foi evidenciada a falta de políticas públicas, sobretudo as que garantam a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), que propõe que todas as pessoas têm direito, incluindo o aluno(a), mormente nos espaços escolares, enquanto direito humano para essa e as gerações futuras, a uma alimentação adequada e saudável e que esse acesso seja promovido de forma sustentável, considerando a cultura local, as condições ambientais e socioeconômicas. Embora o PNAE e PMAE sejam, sem sombra de dúvida, as mais exitosas e abrangentes políticas públicas de SAN em vigor no Brasil, tendo determinado as entregas dos Kits de Alimentação Escolar como um auxílio importante, como destacam Sipioni et al. (2020), são ainda medidas incapazes de suprir as necessidades dos que passam fome, especialmente no período pandêmico. Referências
BRASIL. Lei nº 13.987, de 07 de abril de 2020. Altera a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, para autorizar, em caráter excepcional, durante o período de suspensão das aulas em razão de situação de emergência ou calamidade pública, a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica. Diário Oficial da União 07.04.2020, Edição 67-B, Seção 1 – Extra, p. 9. Brasília, DF: 2020ba. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-13.987-de-7-de-abrilde-2020-251562793. Acesso em: 8 jul. 2022 BRASIL. Portaria nº 188, de 03 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Brasília, DF: 2020db. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/ prt0188_04_02_2020.html. Acesso em: 19 jul. 2022. BRASIL. Resolução nº 2, de 09 abril de 2020. Dispõe sobre a execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE durante o período de estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020c, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus - Covid-19. Diário Oficial da União 13.04.2020, Edição 70, Seção 1, p. 27. Brasília, DF: 2020c. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-2-de-9-de-abrilde-2020-252085843. Acesso em: 8 jul. 2022. CFN (Conselho Federal de Nutrição). Pesquisa revela que a fome avança no Brasil e atinge 33,1 milhões de pessoas. Portal CFN, 08 jun. 2022. Disponível em: https://www.cfn.org.br/index.php/noticias/pesquisa-revelaque-a-fome-avanca-no-brasil-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/. Acesso em: 8 jul. 2022. 100
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ESCOBAR, Ana Lúcia et al. Letalidade e características dos óbitos por COVID-19 em Rondônia: estudo observacional. Epidemiologia e Serviços de Saúde, [s.l.], v. 30, n. 1, e2020763, 2021. DOI: https://doi.org/10.1590/S167949742021000100019. GOVERNO DE RONDÔNIA. Edição 875 – Boletim diário sobre o coronavírus em Rondônia. Portal do Governo do Estado de Rondônia, 25 ago. 2022. Disponível em: https://rondonia.ro.gov.br/publicacao/edicao-875boletim-diario-sobre-o-coronavirus-em-rondonia/. Acesso em: 21 nov. 2022. PORTO VELHO (Município). Decreto nº 16.612, de 23 de março de 2020. Declara Estado de Calamidade Pública em todo o território do Município de Porto Velho para fins de prevenção e enfrentamento à pandemia causada pelo novo Coronavírus – COVID-19. Alterações: Dec. 16.620/2020. Diário Oficial dos Municípios do Estado de Rondônia 23.03.2020. Porto Velho, RO: 2020. Disponível em: https://sapl.portovelho.ro.leg.br/ta/1431/text#97819. Acesso em: 8 jul. 2022. PREFEITURA PORTO VELHO. Kits alimentação chegam para mais de 44 mil alunos da rede municipal de Porto Velho. Prefeitura de Porto Velho, 09 jun. 2021. Disponível em: https://www.portovelho.ro.gov.br/artigo/31326/ reforco-kits-alimentacao-chegam-para-mais-de-44-mil-alunos-da-redemunicipal-de-porto-velho. Acesso em: 21 nov. 2022. RIBEIRO-SILVA, Rita de Cássia. Implicações da pandemia COVID-19 para a segurança alimentar e nutricional no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, [s.l.], v. 25, n. 9, p. 3421-3430, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/141381232020259.22152020. RONDÔNIA. Decreto n.° 25.113, de 5 de junho de 2020. Decreta medidas temporárias de isolamento social restritivo, visando a contenção do avanço da pandemia do novo Coronavírus – COVID-19, nos municípios de Porto Velho e Candeias do Jamari. Portal do Governo de Rondônia, 06 jun. 2020. Disponível em: https://rondonia.ro.gov.br/publicacao/decreto-n-25-113-de5-de-junho-de-2020-isolamento-restritivo/. Acesso em: 22 nov. 2022. SEMED (Secretaria Municipal de Educação). Cartilha de orientações para a distribuição do kit agricultura familiar executado pelo PNAE/PMAE durante a pandemia do coronavírus (COVID-19). Porto Velho: DIALE/ DSLE/SEMED, nov. 2020. SEMED (Secretaria Municipal de Educação). Cartilha de orientações para a distribuição do kit agricultura familiar executado pelo PNAE/PMAE durante a pandemia do coronavírus (COVID-19). Porto Velho: DIALE/ DSLE/SEMED, nov. 2021. SIPIONI, Marcelo Eliseu et al. Máscaras cobrem o rosto, a fome desmascara o resto: COVID-19 e o enfrentamento à fome no Brasil. SciELO Preprints, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.660. 101
CAPÍTULO 11 CUMPRA-SE! PADRONIZAÇÃO DAS SENTENÇAS DE GUARDA Sírlei Felberg1 Thais Bernardes Mganhini2
Introdução
Recorrer ao judiciário para regularização da guarda de filhos tem sido uma prática comum na atualidade. Impasses quanto ao exercício da parentalidade tem levado pais e mães a terceirizarem as responsabilidades parentais, atribuindo cada vez mais ao judiciário a função de definir as regras para os cuidados dos filhos. Do outro lado, diante da crescente multiplicidade de demandas familiares, as varas de família acabam oferecendo respostas padronizadas de modelos de guarda que, por desconsiderarem as especificidades de cada contexto familiar, dão origem a sentenças impraticáveis e ineficientes. Nesse cenário, busca-se discutir a prática da padronização de sentenças de guarda através das ideias de razão pública, comunitarismo e teoria do reconhecimento, fomentando possibilidades de viabilidade prática desse ato jurídico. Inicialmente, apresentam-se as modalidades de guarda de filhos reconhecidas pela legislação brasileira, definidas por guarda compartilhada e guarda unilateral e de que forma essas demandas chegam às varas de família. Do mesmo modo, retrata-se a organização da convivência familiar definida nos processos para serem executadas pelos pais.
1 Psicóloga, analista judiciária do Tribunal de Justiça de Rondônia. Aluna do Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, DHJUS. 2 Doutora em Direito Difuso e Coletivo pela PUC-SP, mestre em Direito Econômico pela Universidade de MaríliaUNIMAR. Professora da Universidade Federal de Rondônia-UNIR. Professora do Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça DHJUS - Unir/Emeron (TJ-RO). Bolsista do Mestrado-DHJUS. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Constitucional, Acesso à Justiça e Sustentabilidade. DCOAJUDS-UNIR. E-mail: tbmaga2@ yahoo.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6368380758506294. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1603-2747.
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Na sequência, discutem-se possibilidades de entendimento sobre como o ordenamento jurídico tende a propor soluções a partir de uma ideia de justiça que seja aplicada a todos, indistintamente, compatível com a ideia de razão pública, o que engessa as análises do cotidiano familiar e dá origem à padronização. Acrescenta-se à discussão a necessidade de considerar as especificidades, o particular de cada arranjo familiar, utilizando-se da contribuição da ideia comunitarista e do reconhecimento, com vistas a uma leitura mais holística dessa demanda familiar e que abarque na resolução do conflito, o conjunto de valores desses pais, construídos em comunidade e que também contribuem para o entendimento do sentido da parentalidade. Na análise das sentenças, apresentam-se os dados objetivos da pesquisa acerca dos processos de guarda tramitados no núcleo psicossocial, nos anos de 2020 e 2021, com o respectivo quantitativo de sentenças similares, dado que sugere a prática de padronização das sentenças. Por fim, aponta-se para a ineficiência de sentenças que desconsideram a cultura intrínseca da comunidade, utilizando-se do conjunto de valores gerais para definição de modelos de guarda e convivência, o que parece atender mais ao interesse do judiciário em finalizar o processo, do que realmente propor uma solução praticável e justa, que atenda ao melhor interesse da criança ou adolescente. Modalidade de guarda
Numa época de judicialização dos dilemas familiares, nota-se que as varas de família têm sido acionadas, cada vez mais, para resolver questões de guarda quando os pais não conseguem encontrar soluções viáveis para o exercício da parentalidade. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), artigo 21: “O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma de que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência” (Brasil, 2018). Já o artigo 22 destaca as responsabilidades dos pais, inclusive o dever de guarda dos filhos, sendo-lhes assegurado esse direito quando não há convivência conjugal. Lê-se: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação e educar os filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 2018) prevê diferentes tipos de guarda de menores, que são:
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Guarda unilateral: é quando apenas um dos pais ou responsáveis tem a guarda da criança ou adolescente. Nesse caso, o outro genitor ou responsável possui o direito de visitas, exceto se houver decisão judicial em contrário. Guarda compartilhada: é quando ambos os pais ou responsáveis têm a guarda da criança ou adolescente, e compartilham a responsabilidade pelas decisões relacionadas à saúde, educação, lazer, entre outras. Nesse caso, a criança ou adolescente vive alternadamente com cada um dos genitores ou responsáveis. Guarda alternada: é quando a criança ou adolescente vive alternadamente com cada um dos genitores ou responsáveis, em períodos definidos. Nesse caso, cada genitor ou responsável têm a guarda da criança ou adolescente em períodos alternados. Guarda provisória: é concedida temporariamente a uma pessoa que não é o pai ou a mãe da criança ou adolescente, em casos de ausência, impossibilidade ou suspensão da guarda dos pais ou responsáveis legais. Guarda especial: é concedida a uma pessoa ou instituição que assume a guarda de crianças ou adolescentes em situações especiais, como no caso de abandono, violência, negligência ou risco à integridade física ou psicológica da criança ou adolescente.
Em todos os casos, a decisão sobre a guarda de menores deve ser baseada no interesse da criança ou adolescente, levando em consideração suas necessidades e interesses, bem como as circunstâncias individuais de cada caso. O que se observa é que nem sempre as decisões judiciais realmente levam em consideração aspectos da relação conjugal, da cultura familiar e de um determinado local e que interferem diretamente nessas sentenças de guarda e na possibilidade, ou não, desses pais cumprirem-na. Na legislação brasileira, especificamente no Código Civil (Brasil, 2022), encontram-se dois tipos de guarda dos filhos: guarda unilateral e guarda compartilhada. No Art. 1.583, § 1º, encontra-se a definição de guarda unilateral, caracterizada como uma modalidade de cuidados e responsabilidades que é atribuída a apenas um dos pais (ou ao pai ou a mãe) ou um terceiro que substitua esse lugar parental. Contudo, cabe ao não guardião a responsabilidade de fazer-se presente junto ao filho(a), sendo-lhe outorgado o direito e o dever de supervisionar os cuidados para garantir que os interesses da criança sejam atendidos pelo guardião. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação (Foureaux, 2020). A guarda unilateral, assim como a guarda compartilhada, podem ser requeridas pelos pais, em consenso ou individualmente ou decretada pelo juiz, levando em consideração as demandas e necessidades dos filhos e a semelhança de direitos e deveres atribuídos a cada um dos pais. 105
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O mesmo artigo, no § 2º, traz a conceituação da guarda compartilhada, indicando-a como a divisão equilibrada do tempo de convívio do pai e da mãe com os filhos, o que se estende ao grupo familiar. Comumente, costuma ser indicada nos casos em que os pais conseguem manter um diálogo e convivência pacífica. Caracteriza-se pelo exercício conjunto da responsabilidade parental, visando possibilitar aos filhos uma convivência equânime e equilibrada junto aos pais, uma vez não residindo mais no mesmo lar. Observa-se que em alguns casos, quando ambas as residências permanecem na mesma cidade e as relações entre os pais mantêm-se harmoniosas, há alternância também de lares, onde os filhos possuem o lar materno e o paterno como referência de moradia, concomitantemente. No entanto, na prática as sentenças tendem a se pautar no lar que apresenta mais congruência com as necessidades e interesses dos filhos, definindo-o como lar de referência. Essa ideia de alternação de lares se assemelha a uma prática que, embora não encontre regularização na legislação brasileira, tem se difundido nas questões de guarda. É a chamada guarda alternada, em que os filhos permanecem por períodos específicos com cada um dos pais, por exemplo, um ano com a mãe e outro com o pai, ou períodos de férias com um e período escolar com o outro, ou, por vezes, períodos quinzenais ou semestrais. Há casos em que a alternância é anual. Nota-se a prevalência desses arranjos em pais com maior dificuldade de dialogarem e de decidirem conjuntamente sobre as necessidades dos filhos. Em tese, a guarda compartilhada é indicada também nos casos em que os pais, estando ambos aptos a sustentarem-na, não conseguem chegar a um acordo. Nesse caso, pode o juiz decidir pela modalidade de compartilhamento, cabendo aos pais cumprirem-na, sob pena de sanção por descumprimento das cláusulas definidas em juízo. Para tal, as decisões sobre os filhos devem ser tomadas conjuntamente, enquanto o lar de referência é fixado com apenas um dos genitores. Costa e Witter (2016) descrevem que a guarda compartilhada não é uma obrigação legal, devendo ser avaliada caso a caso, de acordo com as circunstâncias específicas de cada família. Deve-se considerar a probabilidade de ineficiência desse arranjo de guarda, quando existir entre os pais, pontos de divergência, uma vez que a guarda compartilhada exige pacificação das relações e diálogo funcional para que a execução seja possível. Já nos casos em que o juiz observar que nenhum dos pais possui condições de exercer a guarda dos filhos, poderá autorizá-la em favor de terceiros, considerando preferencialmente parentesco, afinidade e afetividade (Brasil, 2022, Art. 1.584, § 5°). 106
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Uma vez levado ao conhecimento da justiça, os processos de guarda resultarão em uma sentença que regerá as responsabilidades e direitos dos pais, junto aos filhos. Nesse sentido, sentença judicial é o resultado da decisão tomada pelo juiz, acerca das alegações e solicitações apresentadas pelos pais, ou por um deles. Para essa tomada de decisão, os juízes das varas de família contam com os subsídios dos Núcleos Psicossociais (NUPS), compostos por psicólogos e assistentes sociais que avaliam os processos no intento de obter uma compreensão maior das motivações das lides e dos cenários familiares, igualmente, das vinculações afetivas e das habilidades e capacidades parentais. Tal prerrogativa encontra-se prevista no artigo 1.583 do Código Civil, § 3°: “Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe” (Brasil, 2022). Quando um processo chega à vara de família e é identificado que se trata de definição de guarda, é comumente enviado ao NUPS, onde todos os envolvidos, inclusive os filhos, têm a oportunidade de serem ouvidos com neutralidade e se posicionarem acerca da questão. Diante disso, a equipe posiciona-se acerca das relações intersubjetivas desses sistemas familiares, apresentando elementos que possam auxiliar nas decisões judiciais. Nesse sentido, o Conselho Federal de Psicologia (2010), através da Resolução Nº 8/2010, Art. 7º, orienta aos profissionais para que, em seu relatório, o psicólogo perito apresente “indicativos pertinentes à sua investigação que possam diretamente subsidiar o juiz na solicitação realizada, reconhecendo os limites legais de sua atuação profissional, sem adentrar nas decisões, que são exclusivas às atribuições dos magistrados”. Entre os pais e os filhos, as decisões judiciais: atendendo ao melhor interesse de quem?
Sabe-se que as sentenças judiciais de guarda são justificadas nos autos como sendo a conduta mais adequada para atender ao melhor interesse da criança. Igualmente, quando os pais – ou aqueles familiares que disputam a guarda de uma criança – recorrerem à justiça, esperam ter sua causa ganha, ou seja, que o arranjo proposto seja deferido em detrimento do outro genitor. Para isso, tendem a utilizar de argumentos, preferencialmente aqueles que podem servir de provas (prints de conversas, relatórios escolares, denúncias no conselho tutelar ou em delegacias, etc.) com vistas a convencer a justiça de que sua causa é justa e merece prosperar. O que não equivale a dizer que esses pais realmente estejam priorizando o que parece ser melhor para o bem-estar da criança, por vezes, 107
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questões pessoais e referentes à conjugalidade se sobrepõe ao bem-estar dos filhos. Ademais, os conflitos de guarda ocorrem por conta que os pais buscam legitimar por via da justiça, posições antagônicas; querem coisas diferentes no tocante ao exercício da parentalidade e, por essa divergência, judicializam o atrito familiar. Segundo Rawls (2000), entre indivíduos com objetivos e propósitos díspares, uma concepção partilhada de justiça estabelece os vínculos da convivência cívica; o desejo geral de justiça limita a persecução de outros fins. Nesse sentido, o reconhecimento de que há princípios de justiça que são aplicados a todos em uma sociedade, indistintamente, poderia barrar o uso indevido de um direito, no campo do poder familiar, quando o interesse na disputa da guarda estivesse a serviço de prejudicar o outro genitor. Recorrer ao judiciário pressupõe uma busca por justiça. Para Rawls (2000), em uma sociedade regulada pela concepção pública de justiça, todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça. Contudo, nota-se que é comum que mágoas e ressentimentos advindos da conjugalidade sobrepõem-se aos interesses dos filhos, levando pais e mães a enxergarem na guarda uma oportunidade de represália. Havendo o entendimento mútuo do sentido de justiça, estes acatariam as decisões judiciais e acolheriam os critérios definidos em juízo. Diante de demandas tão diversas e tão cheias de subjetividade, por representar desejos e interesses particulares desses pais, como dar sentido a essas reivindicações, recolocando-as em critérios legais? Uma possibilidade de compreender como essas demandas são tomadas pelo judiciário para julgar seus méritos e deferir uma sentença que possa se caracterizar justa, é através do conceito de razão pública. Partindo da ideia de princípio de justiça proposta por Rawls (2000), pode-se pensar a questão da guarda a partir do entendimento de que é necessário haver uma ordem pública que alcance a todos, de maneira que os conflitos levados à justiça possam receber um tratamento respaldado nos mesmos valores, tornando as decisões justas, por serem regidas pelos mesmos princípios e aplicáveis equitativamente a todos os cidadãos. Nesse sentido, é possível compreender a lógica do judiciário quando este apresenta, predominantemente, os mesmos despachos para se dividir as responsabilidades parentais entre os pais nas disputas de guarda, instituindo uma padronização de respostas a esses conflitos. Ou seja, se a demanda se refere à guarda de filhos, aplicam-se regras utilizadas para defini-las. Enquanto um dos pais fica com a guarda, ao outro é dado o direito de visitas definidas pelo judiciário. Considerando que para a organização de uma sociedade é preciso que a população reconheça uma ordem instituída e aplicada a todos e, preferencialmente, respeite-a, uma vez tendo o judiciário decidido como os pais 108
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deverão dividir as responsabilidades parentais junto aos filhos, não deveria existir dificuldade para que estes pais a cumprissem e a lide esvaziasse. Para Rawls (2000), uma sociedade é uma associação mais ou menos autossuficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de consultas como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas. No entanto, a prática no judiciário parece apontar para uma realidade diversa disso, em que mesmo após as sentenças, uma parte significativa desses pais retorna ao judiciário queixando-se de não cumprimento, por parte do guardião, do modelo de guarda proposto pela justiça ou por insatisfação deste, decorrente de sua impraticabilidade. Diante disso, depreende-se a existência de fragilidade nesse modelo de manutenção da ordem pública, possibilitando a precariedade de sua efetivação. Por outro lado, a ideia de comunitarismo de Sandel traz outra possibilidade para se pensar no alcance frágil da aplicabilidade das sentenças de guarda (Gargarella, 2008). Ao considerar somente os argumentos de razão pública, perde-se o que é característico e particular de cada família. É preciso lembrar que as famílias fazem parte de uma comunidade que é regida também por regras construídas por seus membros e que possuem características que criam a identidade desta. Gargarella (2008) cita que “segundo Sandel, em uma família, por exemplo, não é necessário nenhum princípio de justiça. Seus membros possuem os necessários entendimentos compartilhados. Sabem como resolver seus conflitos internos sem a necessidade de árbitros ou de controles externos”. Nesse sentido, não se trata de ignorar a necessidade de reconhecimento dos argumentos de razão pública, mas de não desconsiderar que uma comunidade não consegue se desvencilhar do conjunto de valores que a constitui, tornando difícil embutir a norma reconhecida da razão social, sem interligá-la ao que é da comunidade. A insistência obstinada na aplicação de certas regras de justiça pode resultar não só em uma tarefa inútil, como também em uma tarefa contraproducente em relação aos laços sociais ainda vigentes (Gargarella, 2008). Nesse sentido, Silveira (2007), ao discutir sobre o pensamento comunitarista, retrata que para o comunitarismo “a prática tem precedência sobre a teoria, e não seria plausível que pessoas que vivem em sociedades reais identifiquem princípios abstratos para sua existência” (p. 171). Pode-se pensar, então, que para que os arranjos de guarda possam atender ao melhor interesse das crianças e que haja aplicabilidade prática no cotidiano dos pais, torna-se preciso considerar a experiência de cuidado desses pais e a forma como compreendem que a parentalidade possa ocorrer. 109
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Definir padronizadamente um modelo de guarda, com dia e hora marcados, por exemplo, pode ser mais difícil de cumprir do que uma proposta de semanas alternadas entre os dois lares, que ao judiciário pode parecer trazer malefícios à criança, mas que faça sentido aos pais por retratar a realidade social e práticas já vivenciadas dentro da comunidade a qual pertencem. Torna-se importante pensar se a prática de padronizar sentenças, sem realmente se ater à análise de cada caso, ao invés de possibilitar acesso à justiça, esteja a serviço da reprodução da injustiça social. Fraser (2006) aponta para a compreensão da injustiça social em seu aspecto cultural ou simbólico, indicando que “a injustiça se radica nos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação. Seus exemplos incluem a dominação cultural, ser submetido a padrões de interpretação e comunicação associados a outra cultura, alheios e/ou hostis à sua própria (...)” (p. 233). A prática no judiciário sinaliza para uma maioria de usuários advindos de classes sociais menos favorecidas e com acesso a bens sociais e à cultura que se diferenciam da realidade sobre a qual leis são pensadas e aplicadas. Nesse sentido, impor regras dissociadas da realidade, da representação cultural e social e do alcance de cumprimento de uma sentença, serve tão somente para invalidar a capacidade familiar (por não ser capaz de obedecer à lei definida) e reproduzir a injustiça. Por outro lado, o judiciário se beneficia de espaços de fala através dos quais essa representação social construída na comunidade pode se apresentar, oferecendo elementos que podem auxiliar na compreensão dos contextos e, por seu reconhecimento pelos pais, acatados e seguidos. Tais espaços referem-se aos estudos psicossociais, às audiências de conciliação e a outros recursos de aproximação com a comunidade. Considera-se que a eficiência das soluções propostas acerca das disputas de guarda pode encontrar um caminho, se “envolver também, o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural” (Fraser, 2006). Nos estudos psicossociais, os pais têm a oportunidade de oferecer propostas de modelo de guarda que reflitam sua compreensão de mundo e sua maneira de enxergar as responsabilidades parentais e, desta forma, o judiciário também pode decidir por sentenças que se aproximarem mais da cultura de cada comunidade, possibilitando maior êxito na real resolução dos conflitos familiares. Decisões que realmente consideram a dinâmica familiar, em seu contexto social (comunidade), podem ser entendidas como pensadas em prol do melhor interesse da criança.
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Reflexos das decisões judiciais de guarda
A guarda de menores é um tema complexo e sensível que envolve uma série de questões legais, sociais e emocionais. No Brasil, a decisão judicial sobre a guarda de menores é baseada em uma série de fatores, incluindo o interesse da criança, o ambiente familiar e as condições financeiras dos pais. A padronização pode ser uma ferramenta útil na tomada de decisão judicial, mas também pode limitar a flexibilidade necessária para lidar com casos individuais. A guarda de menores é regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no Brasil, que estabelece o interesse da criança como o principal critério para a decisão judicial sobre a guarda. No entanto, a decisão judicial sobre a guarda de menores é complexa e envolve muitos fatores, incluindo as condições financeiras dos pais, o ambiente familiar e a proximidade geográfica. A padronização pode ser uma ferramenta útil na tomada de decisão judicial, uma vez que oferece diretrizes claras e consistentes para avaliar esses fatores. Entre os anos de 2020 e 2021, transitaram pelo Núcleo Psicossocial (NUPS) de uma Comarca do interior do Estado de Rondônia, 250 processos. Dentre estes, 78 (31%) relacionavam-se a questões de guarda de filhos. Tais dados foram obtidos junto ao NUPS, advindos dos registros estatísticos internos. Dos processos em que a matéria julgada era guarda de filhos, 40 (51,2%) apresentaram sentenças similares de convivência e guarda, sendo 23 processos em 2020 e 17 processos em 2021. Em 2020, dos 127 processos avaliados pelo NUPS, 44 tratavam de guarda de crianças e/ou adolescentes e 23 apresentaram modelo padrão para organização da convivência. Já em 2021, foram avaliados 123 processos e, destes, 34 tratavam-se de guardas, com 17 apresentando modelo padrão para organização da convivência. Desvela-se da análise desses autos encaminhados ao NUPS, a existência de uma padronização dos despachos concernentes às definições da guarda de crianças e adolescentes, com 52,2% em 2020 e 50,0% em 2021. O modelo apresentado aos pais, pela justiça, com vistas ao cumprimento, comumente se configura nos seguintes moldes: a um genitor é dada a guarda do(a) filho(a), tornando seu lar, o de referência de moradia da criança. Ao outro genitor, resguarda-se o direito de visitas já pré-definidas pelo juízo. A visitação – como é denominado judicialmente o direito de convivência familiar com o não guardião – é definida em visitas mensais, ou quinzenais, em finais de semanas alternados, cabendo ao não guardião a responsabilidade de buscar a criança na sexta à tarde e devolver ao guardião, no domingo à noite. Nota-se ainda que há a definição até do horário de busca e devolução da criança. Na data de aniversários dos pais é garantida a presença da criança com o aniversariante. As festas de final de ano são divididas 111
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em anos alternados e os períodos de férias escolares, divididos igualmente com ambos os genitores, comumente, 15 dias com cada um dos pais. No período pesquisado, identificaram-se três processos em que os pais apresentaram uma proposta de guarda em comum acordo, recorrendo ao judiciário somente para formalização, mesmo assim, a justiça não aceitou o acordo familiar. Em um dos processos, a objeção adveio do profissional de psicologia, sob alegação de contraindicação ao desenvolvimento emocional sadio, desconsiderando a experiência dos pais na prática de tal modelo e na argumentação destes de que se tratava de uma organização familiar a qual conseguiam manter regularmente. Em outro caso, constava ainda audiência de conciliação, com ratificação do acordo entre os pais, contudo, o Ministério Público questionou-o, encaminhando o caso para perícia (NUPS), sob alegação de que a organização dos pais não era a melhor para a criança. Tratava-se de uma criança pré-escolar, que já alternava períodos quinzenais com cada um dos pais há mais de um ano. Encontrava-se adaptada à rotina e era atendida adequadamente pelos pais. Em termos de sentenças, observou-se também um caso em que a criança já morava com o pai e a guarda foi revertida para a mãe, sem que houvesse tal solicitação materna. E outro caso que transcorreu por mais de dois anos, onde o pai, na separação, impediu o filho de conviver com a mãe, tolhendo-lhes a convivência gradualmente até a restrição total. Foi verificada a presença incontestável de alienação parental paterna. Ambos residem na mesma cidade, em sítios vizinhos e a mãe pedia visita livre. Ainda assim, a guarda foi mantida com o pai, nada feito em relação à alienação praticada e assumida claramente pelo mesmo, sendo fixada à mãe, visita quinzenal, com a responsabilidade de buscar e entregar o filho ao pai, com visita iniciando no sábado à tarde até o domingo à tarde. Através da análise dos autos, verificou-se que após a definição das sentenças, uma das partes tende a seguir movimentando o processo por discordar do arranjo definido ou para denunciar o não cumprimento pela outra parte, comumente, por parte do guardião. Nesse sentido, depreende-se a ineficiência das sentenças, quando ignoradas as propostas dos pais ou mesmo a realidade social (comunidade e seus valores) à qual pertencem. Ademais, observa-se uma padronização das sentenças (guarda para mãe, visita e pensão para o pai), desconsiderando as particularidades de cada família, as especificidades que sustentam cada conflito, as relações amistosas ou conflituosas entre os pais, etc. Esses dados são apresentados através das perícias realizadas pelas equipes dos NUPS, contudo, há elementos para considerar que as avaliações são determinadas mais como procedimento padrão, que, necessariamente, 112
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com intuito de obterem-se dados relevantes e particulares dos sistemas familiares, com vistas às sentenças que estejam de fato coerentes com seus atores. Segundo a equipe (psicólogo e assistente social) do NUPS onde se realizou a pesquisa (2022/01), a experiência tem demonstrado que a eficiência dos modelos de guarda e de convivência é alcançada quando considera os interesses dos pais e traduz algum sentido dentro do contexto familiar, social e cultural ao qual fazem parte. Quando a organização definida pelo judiciário se apresenta estranha aos valores reconhecidos pelos pais, a viabilidade de cumprimento deixa de existir e os conflitos seguem alimentados por sentenças que excluem o conhecimento parental e suas potencialidades para resolução dos próprios conflitos. No entanto, a padronização também pode limitar a flexibilidade necessária para lidar com casos individuais. Por exemplo, a padronização pode levar a decisões automáticas com base em critérios superficiais, como a renda dos pais, em vez de avaliar as necessidades individuais da criança e sua relação com cada um dos pais. Além disso, a padronização pode não levar em consideração as diferentes culturas e valores familiares que podem afetar a decisão judicial sobre a guarda de menores. Para Leite (2017), a padronização pode se tornar um problema na medida em que cria critérios rígidos que não permitem avaliar cada caso de forma individualizada, o que pode levar a decisões inadequadas. Portanto, é importante encontrar um equilíbrio entre a padronização e a avaliação individualizada de cada caso. A padronização na tomada de decisão judicial também pode ser afetada por fatores externos, como a pressão pública e a mídia. Em alguns casos, a decisão judicial sobre a guarda de menores pode ser influenciada por casos anteriores semelhantes, resultando em uma padronização injusta e desconsiderando as circunstâncias únicas de cada caso. Considerações finais
Nota-se que ao tratar as demandas levadas ao judiciário acerca da guarda de filhos, é importante que os elementos considerados para tal julgamento sejam respaldados em princípios reconhecidos e validados por uma sociedade, podendo ser aplicados a todos os cidadãos submetidos àquela ordem pública. Nesse sentido, utilizar-se das definições de guarda reconhecidas pelo Código Civil Brasileiro é imprescindível para fundamentar os acordos de convivência familiar. A guarda compartilhada e a guarda unilateral são os modelos vigentes e devem ser utilizados nas matérias dessa ordem. Contudo, ao desconsiderar os elementos que compõem a cultura e os valores mais particulares de uma comunidade que, por vezes, apresentam 113
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elementos distintos e específicos deste subgrupo (a comunidade), padronizando um único jeito de organizar a convivência familiar de pais e filhos que não dividem um mesmo lar, pode-se perpetuar numa impraticabilidade dos atos jurídicos nesse campo. Se dentro de um padrão compartilhado ou unilateral, o arranjo familiar de convivência paterna/materna/filial precisa considerar os aspectos particulares do grupo social ao qual os pais pertencem, validando suas experiências e práticas cotidianas. Há um saber de representação social da parentalidade que precisa ser observado e incluído na prática judiciária, ao qual se tem acesso, por exemplo, através das perícias psicossociais. No reconhecimento da cultura, dos valores de uma comunidade, pode-se encontrar o sentido de agir em conformidade com as regras colocadas, assim, sentenças de guarda que encontram significado e reconhecimento, podem produzir maior eficácia, por haver identificação com elas. Infere-se que a impraticabilidade de algumas sentenças pode estar relacionada a desconsideração de distâncias geográficas entre os pais, da amistosidade ou hostilidade das relações intersubjetivas, do sentido atribuído às rupturas conjugais dentro de um determinado grupo, do olhar que os pais possuem acerca do que é o cuidar de um filho, etc. Considerando que há necessidade de definir se uma guarda deve ser compartilhada ou unilateral, em termos de argumentos de razão pública, é razoável que a ideia do comunitarismo coloca-se assertiva para pensar na articulação e organização da convivência, visando atender ao princípio do melhor interesse da criança. Da constatação de que se trata de menores, esses filhos vão precisar dos pais para valer tais direitos familiares, logo, havendo uma vinculação do conjunto de valores reconhecidos na comunidade pertencente, com as normas reconhecidas da razão social, as sentenças de guarda podem alcançar maior probabilidade de cumprimento, findando as lides. A padronização de sentenças parece reproduzir noções ideais de que um único jeito de organizar determinada demanda pode ser reproduzido em realidades distintas, sem prejuízos e assim surgem sentenças impraticáveis e ineficientes. Conclui-se que a decisão judicial sobre a guarda de menores no Brasil é um tema complexo e sensível que envolve muitos fatores. A padronização pode ser uma ferramenta útil na tomada de decisão judicial, mas também pode limitar a flexibilidade necessária para lidar com casos individuais. É importante encontrar um equilíbrio entre a padronização e a flexibilidade, especialmente quando se trata de decisões que afetam diretamente a vida e o bem-estar das crianças. Além disso, é importante lembrar que a padronização não deve ser vista como uma solução única para todos os casos. Cada caso deve ser ava114
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liado individualmente, levando em consideração as necessidades e interesses da criança, bem como as circunstâncias únicas de cada família. A decisão judicial sobre a guarda de menores deve ser baseada no interesse da criança e não em padrões pré-concebidos ou em pressão externa. Referências
BRASIL. Código Civil Brasileiro. Acesso em 16 de outubro de 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ l10406compilada.htm. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n° 8.069/90. 9. ed. Divisão Gráfica. TJ/RO, 2018. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP Nº 8/2010; (Dispõe sobre a atuação do Psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário). Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/ uploads/2010/07/resolucao2010_008.pdf COSTA, G. F.; WITTER, G. P. A guarda compartilhada e o mito da sua obrigatoriedade: um estudo acerca do instituto no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, p. 107-125, 2016. FOUREAUX, Rodrigo. A guarda de filhos e as consequências do descumprimento do acordo ou decisão judicial que regula a visita. JUSBRASIL, 2020. Disponível em: https://meusitejuridico.jusbrasil.com.br/ artigos. Acesso em: 13 out. 2022. FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, São Paulo, n 14-15, p. 1-382, 2006. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/07/resolucao2010_008.pdf LEITE, M. P. C. A padronização e o princípio do melhor interesse da criança: reflexões sobre a efetivação do direito à convivência familiar e comunitária. Revista Brasileira de Direito da Criança e do Adolescente, v. 2, n. 2, 97-115, 2017. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. SILVEIRA, Denis Coutinho. Teoria da justiça de John Rawls: entre o liberalismo e o comunitarismo. Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 169-190, 2007.
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CAPÍTULO 12 NEM OS AQUEUS FORAM TÃO BÁRBAROS! OS DESAPARECIDOS FORÇADOS DO ARAGUAIA E A OMISSÃO DO BRASIL EM REVELAR O DESTINO DE SEUS CORPOS Marcus Vinícius Xavier de Oliveira DACJ-PVH/UNIR ILA-Brasil IBDIPr
Introdução
O título do presente trabalho – que amalgama aqueus (o primeiro povo a dar origem a Grécia, identificado por Homero como os dânaos) com o adjetivo bárbaro, isto é, todos os povos que não falavam o grego e, por isso, eram xenos e “naturalmente destinados à escravidão” (Aristóteles (2004), Política, Livro I, capítulos III e IV) –, compõe, assim se espera, uma ironia que permita a todos compreender a complexidade do tema tratado, vale dizer, o descumprimento, pelo Brasil, em revelar o paradeiro e/ou o destino dos corpos dos desaparecidos políticos da ditadura civil-militar de 1964-1985, com especial ênfase aos desaparecidos do Araguaia, conforme decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) (2010) no caso Gomes Lund e outros vs Brasil. O tema compõe-se, por assim dizer, num velho conhecido, posto ter sido o objeto da tese de doutoramento em Direito Penal junto perante o PPGD da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cuja finalidade foi a de comprovar a obrigação internacional da tipificação do desaparecimento forçado de pessoas pelo Direito Penal brasileiro, o que ainda não ocorreu, infelizmente (De Oliveira, 2016). A apresentação foi desenvolvida em cinco vértices que têm um campo de força comum:
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1. o do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a proscrição do desaparecimento forçado de pessoas; 2. a inércia do Brasil em revelar o paradeiro dos corpos no caso Guerrilha do Araguaia, o que tem ocasionado uma violação contínua do direito a não ser desaparecido, do direito dos familiares das vítimas em darem enterro a seus corpos e, por fim, a continuidade delitiva por parte dos agentes brasileiros que provocaram referidos fatos; 3. a literatura, em especial a obra poética de Luiza Romão em seu livro Também guardamos pedras aqui, o qual surgiu após a leitura que ela fez do livro inaugural da literatura ocidental, a Ilíada; e 4. político-constitucional, baseada na seguinte pergunta: o que tem significado, de fato, o princípio da prevalência dos Direitos Humanos no Brasil?
Mas por que tantos vértices? É que desde há muito nos convencemos de que a complexidade da vida contemporânea, suas ambiguidades e incertezas, demanda, cada vez mais, uma metodologia transdisciplinar, que abandonando o discurso da disciplinaridade, busca compreender a realidade, a vida e os fenômenos jurídico-sociais a partir de uma epistemologia que privilegia o diálogo entre os saberes e as fontes, a construção de compreensões complexas, sem abandonar, no entanto, aos princípios irrenunciáveis para a busca de respostas adequadas e legítimas à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, da dignidade da pessoa humana e do regime democrático, os pilares sobre os quais se assenta a legitimidade de qualquer pensamento contemporâneo. Assim, epistemologicamente, a transdisciplinaridade opera, com relação a um determinado problema, na formação de um campo de força ao redor do qual transitam todas as formas que a razão humana dispôs para a busca da compreensão e solução daquilo que se perquire, sem que haja, doutro giro, uma preponderância disciplinar ou doutrinária, uma vez que, pelo diálogo e pela compreensão da realidade complexa com o apoio das disciplinas atraídas ao campo gravitacional, é que se busca a resposta adequada, entendendo essa última expressão como sinônimo de resposta normativamente estribada sobre aqueles princípios irrenunciáveis, cuja formulação aqui expressada muito se deve ao pensamento de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (Ferraz Júnior, 2001, 39 e ss). Como enunciado, foram atraídos para o campo de força desta comunicação o Direito Internacional dos Direitos Humana, a literatura (a teoria Law as literature), a filosofia política e a crítica constitucional.
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O desaparecimento forçado de pessoas como violações múltiplas e contínuas dos Direitos Humanos e como crime internacional próprio
O desaparecimento forçado de pessoas constitui-se, ao mesmo tempo, em forma gravíssima de violação múltipla dos Direitos Humanos e em espécie de crime internacional próprio (criminalizado diretamente pelo Direito Internacional), conforme disposto nas Declaração para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (DPPTPCDF) e na Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado (CIPPTPCDF), bem como na Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado (CISDFP), podendo, em determinadas circunstâncias – ataque geral e sistemático contra a população civil1 –, constituir-se em espécie de crime contra a humanidade, conforme enunciado nos Preâmbulos das duas Convenções2 e da Declaração3 e pela expressa tipificação contida nos artigos 7, 1, i c/c 7, 2, i do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (ETPI)4 e no Regulamento do Crimes do ETPI (RECTPI)5. Mas em que consiste o desaparecimento forçado de pessoas? O artigo 2 da CISDFP define o desaparecimento forçado da seguinte forma:
1 Esse elemento dos crimes contra a humanidade é assim caracterizado pelo artigo 7, 2, a do ETPI: “2. Para efeitos do parágrafo 1º: a) Por ‘ataque contra uma população civil’ entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1º contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política [...]” (ONU, 1984). 2 Com efeito, a CIPPTPCDF, em seu Preâmbulo, afirma que o “[...] desaparecimento forçado [...] constitui um crime e, em certas circunstâncias definidas pelo direito internacional, crime contra a humanidade [...]”; já a CISDFP em seu Preâmbulo afirma que “[...] a prática sistemática do desaparecimento forçado de pessoas constitui um Crime de Lesa-Humanidade” (ONU, 2006). 3 “Considerando que o desaparecimento forçado mina os mais profundos valores de qualquer sociedade comprometida com o Estado de Direito, os direitos humanos e as liberdades fundamentais, e que a prática sistemática desse ato se constitui em crime contra a humanidade”. 4 “Crimes contra a Humanidade 1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘crime contra a humanidade’, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: [...] i) Desaparecimento forçado de pessoas [...] 2. Para efeitos do parágrafo 1º [...] i) Por ‘desaparecimento forçado de pessoas’ entende-se a detenção, a prisão ou o sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política ou com a autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa a reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a proteção da lei por um prolongado período de tempo.” (ONU, 1984). 5 “Artigo 7 1) i) – Crime Contra a humanidade de desaparição forçada de pessoas – Elementos: 1. Que o autor: a) tenha apreendido, detido ou sequestrado a uma ou mais pessoas; ou b) tenha-se negado a reconhecer a apreensão, a detenção ou o sequestro ou a dar informação sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas ou pessoas. 2. a) Que tal apreensão, detenção ou sequestro tenha sido seguida ou acompanhada de uma negativa em reconhecer essa privação de liberdade ou em dar informação sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas ou pessoas; ou b) Que referida negativa tenha sido precedida ou acompanhada dessa privação de liberdade. 3. Que o autor tenha sido consciente de que: a) Referida apreensão, detenção ou sequestro se seguiria no curso normal dos acontecimentos de uma negativa em reconhecer a privação de liberdade ou em dar informação sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas ou pessoas; ou b) Referida negativa fora precedida ou acompanhada dessa privação de liberdade. 4. Que tal apreensão, detenção ou sequestro tenha sido realizada por um Estado ou organização política ou com a sua autorização, apoio ou aquiescência. 5. Que tal negativa em reconhecer a privação de liberdade ou em dar informação sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas ou pessoas tenha sido realizada por um Estado ou organização política ou com sua autorização ou apoio. 6. Que o autor tenha tido a intenção de deixar a essas pessoas ou pessoas fora do amparo da lei por um período prolongado. 7. Que a conduta tenha sido cometida como parte de um ataque geral ou sistemático dirigido contra uma população civil. 8. Que o autor tenha tido conhecimento de que a conduta era parte de um ataque geral ou sistemático dirigido contra a população civil ou tenha tido a intenção de que a conduta fosse parte de um ataque desse tipo.” (TPI, 2013).
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Para os efeitos desta Convenção, entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes.
Já o artigo 2 da CIPPTPCDF conceitua o desaparecimento forçado da seguinte forma: Para os efeitos desta Convenção, entende-se por desaparecimento forçado a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei.
É importante frisar, ademais, que o desaparecimento forçado de pessoas não vitimiza somente ao sujeito passivo direito da violação ao direito irrestringível a não ser desaparecido, mas, e de forma extremamente grave, a seus familiares, na medida em que os submete a um estado permanente de incerteza quanto ao paradeiro ou sorte da vítima, dando azo ao surgimento de uma situação de indecidibilidade das mais atrozes: nem mortos, nem vivos, mas desaparecidos (Finucane, 2010). A clarificação dessa situação horrenda resta mais bem evidenciada a partir da classificação feita no Relatório da CONADEP, intitulado Nunca Más!, na qual se consignou as seguintes modalidades de desaparecimentos forçados praticados pela ditadura argentina (República Argentina, 1984, passim): A) Detidos-desaparecidos (temporários) libertados. Foram indivíduos sequestrados que sofreram um período de detenção clandestina em local desconhecido para serem libertados posteriormente, não oficialmente. A libertação destas pessoas era acompanhada de “recomendações” de não divulgar nada do que haviam sofrido, presenciado ou ouvido e, sobretudo, de não registrar denúncias. Nesta categoria, estiveram muitas vítimas que, tendo sido sequestradas, não denunciaram tal fato após sua soltura, pois essa foi a condição para a mesma e para sua sobrevivência. Da sua detenção, sabe-se porque as famílias recorreram às organizações de direitos humanos enquanto as vítimas permaneciam sequestradas, mas, em geral, não efetuaram denúncia. O temor de novos sequestros e de ciclos de tor120
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tura e a possibilidade do desaparecimento definitivo fizeram com que muitas dessas pessoas libertadas partissem o mais rápido possível para o exílio. B) Detidos-desaparecidos (temporários) “legalizados”. Foram indivíduos sequestrados cuja detenção foi legalizada com a admissão, por parte do Estado, do estatuto de preso (político), encaminhados a estabelecimentos de reclusão legais e colocados à disposição da Justiça Militar. O pouco contato disponível com advogados ou familiares impediu que as informações que dispunham sobre o período em que estiveram na condição de detidos-desaparecidos pudessem vir a público imediatamente aos acontecimentos. Dessa forma, informações preciosas que poderiam proteger ou resgatar outros detidos-desaparecidos em condições muito adversas não puderam ser utilizadas para tal fim. Em geral, somente quando concluía a pena imposta ou após o fim da ditadura, é que esse mosaico de informações atomizadas ganhava ressonância. C) Detidos-desaparecidos propriamente ditos. Foram indivíduos sequestrados que permaneceram indefinidamente nessa situação. Desde sua detenção, deixou de haver notícias sobre os mesmos, a não ser relatos e depoimentos de alguns sobreviventes de centros de detenção onde aqueles foram vistos, ouvidos ou deles se ouviu falar. O tempo de duração dessa condição foi indefinida. D) Crianças desaparecidas. Diferentemente da situação de adultos e jovens desaparecidos, pode-se inferir que, em boa parte destes casos, as vítimas sobreviveram. Particularmente expressivos na experiência Argentina, casos pontuais de sequestro e/ou prisão de crianças ocorreram nos outros países também. Em relação à metodologia aplicada na Argentina há dois tipos de situações. Uma, a de crianças de pouca idade no momento em que seus pais foram vítimas de ataque e sequestro. Neste caso, as crianças desapareceram junto com os adultos. Houve casos em que elas foram abandonadas na residência atacada, com vizinhos ou, então, devolvidas à família. A outra situação envolve crianças nascidas em cativeiro, nos centros clandestinos de detenção. São filhas de mulheres cuja gravidez era de conhecimento da família ou do círculo de colegas, amigos ou vizinhos. Considerando a regra geral do comportamento da repressão nesses casos, a suspeição do nascimento dessas crianças foi sempre quase uma certeza para os familiares e as organizações de direitos humanos. Mas há também o caso de crianças nascidas em cativeiro de mães cuja gravidez era desconhecida do entorno mais imediato. Nestas situações, fora denúncias eventuais registradas por alguns sobreviventes, a falta de informação se tornou um problema difícil de superar. 121
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Em todos esses casos, há uma forte suposição de que os bebês tenham sobrevivido. Está comprovado que essas crianças foram consideradas parte do “botim de guerra” da guerra suja. Sabe-se que, na maioria dos casos, foram dadas a famílias vinculadas, direta ou indiretamente, à repressão; por isso, aquelas que até agora não foram encontradas permanecem vítimas de sequestro e de apropriação da sua identidade.
No contexto das Cortes de Direitos Humanos, a CorteIDH contribui de forma significativa no processo histórico de proscrição do desaparecimento forçado de pessoas, especialmente a partir do primeiro caso contencioso julgado pela Corte, Velásquez Rodríguez vs Honduras. Nesse leading case, com decisão de mérito de 29 de julho de 1988, a CorteIDH (1988) fixou diversos parâmetros que orientariam não somente a sua posterior jurisprudência acerca do desaparecimento forçado, em particular, e das violações sistemáticas dos direitos humanos, em geral, como também se constituiu em uma decisão paradigmática para os demais organismos e Tribunais de direitos humanos, em especial o Tribuna Europeu dos Direitos Humanos6. Os parâmetros normativos são os seguintes (CorteIDH, 1988, passim): 1. O desaparecimento forçado constitui-se numa grave violação aos direitos humanos decorrente das cláusulas de respeitar e fazer respeitar presentes no artigo 1º da CADH; 2. Trata-se de violação pluriofensiva de direitos garantidos pela CADH, especificamente o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à inviolabilidade pessoal, o direito a não ser submetido à tortura, tratamento desumano, degradante ou cruel, direito à proteção jurisdicional e aos meios recursais de controle da ilegalidade7; 3. É ilícito permanente, cuja consumação se protrai até o momento em que se estabeleça o destino ou o paradeiro da vítima8. 6 Flávio Piovesan cita, especificamente, os seguintes casos: Kurt vs. Turkey, n. 24276/94, julgado em 25 de maio de 1998, em que a CEDH, acompanhando o argumento central da CIDH, considerou que o desaparecimento forçado, apesar de não ter, à época, um tratado internacional ou regional específico, violava a diversos dispositivos da CPDHLF; o mesmo tendo sido repetido no caso Silih vs. Slovenia, n. 71463/01, julgado em 9 de abril de 2009 e nos casos Varnara and others vs. Turkey, n. 16064, julgado em 18 de setembro de 2009, no qual a CEDH não conhece a exceção de incompetência sob o argumento já sustentado pela CIDH de que o desaparecimento forçado é, por definição, um comportamento permanente, e nos casos Ertak vs. Turkey, n. 20764/92, julgado em 9 de maio de 200 e Cicek vs. Turkey, n. 25704/94, n. 25704/94, julgado em 27 de fevereiro de 2001 (Piovesan, 2014, p. 66-67). 7 “La desaparición forzada de seres humanos constituye una violación múltiple y continuada de numerosos derechos reconocidos en la Convención y que los Estados Partes están obligados a respetar y garantizar”. 8 “El deber de investigar hechos de este género subsiste mientras se mantenga la incertidumbre sobre la suerte final de la persona desaparecida. Incluso en el supuesto de que circunstancias legítimas del orden jurídico interno no permitieran aplicar las sanciones correspondientes a quienes sean individualmente responsables de delitos de esta naturaleza, el derecho de los familiares de la víctima de conocer cuál fue el destino de ésta y, en su caso, dónde se encuentran sus restos, representa una justa expectativa que el Estado debe satisfacer con los medios a su alcance.”
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4. É inadmissível a excludente de antijuridicidade de cumprimento de ordens superiores9; 5. O Estado tem o dever convencional de apurar e, eventualmente, exercer a persecução penal contra todos os responsáveis por referida prática enquanto perdurar o desaparecimento da vítima10.
A partir da aprovação da CISDFP, a CorteIDH passou a decidir os casos sobre desaparecimento forçado tendo como parâmetro normativo o estabelecido na convenção, sendo a primeira decisão nesse sentido a tomada no caso Goiburú e outros vs Paraguai, de 22 de setembro de 2006 (CorteIDH, 2006, passim): 1. O desaparecimento forçado não poderá ser considerado um crime político, estando sujeito, neste sentido, ao regime de extradição, devendo os Estados, em atenção ao princípio aut dedere aut judicare, exercer a persecução penal dos acusados conforme o seu ordenamento jurídico caso eles se encontrem em território diverso daqueles em que o crime tenha sido praticado, ou extraditá-los para o Estado loci delicti ou outro que se julgue competente para fazê-lo; 2. Os acusados somente poderão ser julgados pelas instâncias jurisdicionais comuns do Estado, com exclusão de toda e qualquer jurisdição especial, em particular a militar. Os fatos constitutivos do desaparecimento forçado de pessoas não poderão ser considerados como exercício das funções militares. São inadmissíveis privilégios, imunidades, graças ou anistias, sem prejuízo daquelas decorrentes das relações diplomáticas; 3. Os Estados têm o dever internacional de tipificar o referido comportamento em seus ordenamentos internos, segundo os estandardes internacionais decorrentes do Direito Internacional.
Esse, pois, é o ilícito e seus contornos jurídicos que deram ensejo ao presente trabalho. A decisão da CorteIDH no caso Gomes Lunda e outros vs Brasil
O Brasil ratificou a CADH pelo Decreto 678/1992, tendo depositado a Carta de Ratificação em 25 de setembro do mesmo ano. Doutro giro, pelo
9 “No escapa a la Corte que el ordenamiento jurídico de Honduras no autorizaba semejantes acciones y que las mismas estaban tipificadas como delitos según el derecho interno. Tampoco escapa a la Corte que no todos los niveles del poder público de Honduras estaban necesariamente al tanto de tales actuaciones ni existe constancia de que las mismas hayan obedecido a órdenes impartidas por el poder civil”. 10 “El Estado está en el deber jurídico de prevenir, razonablemente, las violaciones de los derechos humanos, de investigar seriamente con los medios a su alcance las violaciones que se hayan cometido dentro del ámbito de su jurisdicción a fin de identificar a los responsables, de imponerles las sanciones pertinentes y de asegurar a la víctima una adecuada reparación”.
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Decreto 4463/2022, o Brasil reconheceu a jurisdição contenciosa e vinculativa da CorteIDH, dando, no entanto, efeito retroativo a dezembro de 1998. A primeira condenação brasileira na CorteIDH foi o famoso caso Ximenes Lopes, relacionado ao sistema manicomial, cuja sentença foi proferida em novembro de 2005 (Série C Nº 139), sendo que, desde então, o Brasil tem sido, por assim dizer, um hors-concours da Corte, com sentenças condenatórias envolvendo temas como violência policial (Favela Nova Brasília, de 2017, Sentença Série C Nº 333), demarcação de terras indígenas (Caso Povo Indígena Xucuru, de 2018, Sentença Série C Nº 346), trabalho infantil (Caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio, de 2017, Sentença Série C Nº 333), trabalho escravo (Caso Trabalhadores vs Fazenda Brasil Verde, de 2016, Sentença Série C Nº 318), desaparecimento forçado de pessoas e/ ou tortura (casos Guerrilha do Araguaia, de 2010, Sentença Série C Nº 219 e Vladimir Herzog, de 2018, Sentença Série C Nº 353) e feminicídio (caso Márcia Barbosa de Sousa vs Brasil, de 2021, Sentença Série C Nº 435). O último caso contencioso em julgamento nesse ano envolveu as Comunidades Quilombolas de Alcântara, na qual, em julgamento perante a CorteIDH na sessão de 27 de abril de 2023, o Brasil reconheceu, de forma oficial, que violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades quilombolas de Alcântara, assumindo o compromisso de reparação dos danos, existindo, ainda, oito casos em tramitação11. Se fosse possível resumir todas essas sentenças, seria: elas revelam a realidade de um Brasil que gostaríamos e fazemos tudo por esquecer: violento, escravocrata, racista e que não suporta a diversidade que lhe constitui, aprovando nos chats e mídias socais, com gosto e gozo, a violência estatal em face de minorias e grupos vulneráveis. No presente tópico intentar-se-á dilucidar o problema decorrente da condenação do Estado brasileiro pela CorteIDH (2010) no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, no qual a Corte, julgando os fatos ocorridos no início da década de 1970 no contexto identificado como Guerrilha do Araguaia, em que houve o enfrentamento entre o exército brasileiro e os membros do PCdoB que haviam se instalado na região para promover o início de um processo revolucionário de cariz comunista. Desse confronto, tendo as forças armadas logrado debelar e capturar os guerrilheiros e camponeses que lhes davam suporte material e moral, salvo exceções, foram capturados, torturados e executados, seguido da ocultação dos corpos.
11 Caso Mauricio Hernández Norambuena vs. Brasil; caso Muniz da Silva vs. Brasil; caso Collen Leite e outros vs Brasil; caso Leite de Souza e outros vs Brasil; caso Da Silva e outros vs. Brasil; caso Dos Santos Nascimento e outros vs Brasil; caso Airton Honorato e outros vs Brasil; e caso Tavares Pereira e outros vs Brasil. Disponível em: https://www. corteidh.or.cr/casos_en_tramite.cfm. Acesso em: 20 maio 2023.
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A Corte, ao apreciar a demanda, considerou que o Estado brasileiro, por intermédio de seus agentes, havia praticado desaparecimento forçado de pessoas. Em razão disso, condenou o Estado a cumprir suas obrigações convencionais decorrente da Convenção Americana, determinando, dentre outros pontos, a derrogação da Lei de Anistia de 1979 e o exercício da persecução penal em face dos agentes que, no curso da ditadura civil-militar, haviam praticado o desaparecimento forçado de pessoas, na medida em que, segundo a jurisprudência da corte, tais crimes seriam inanistiáveis e imprescritíveis, bem como informar o destino das pessoas desaparecidas ou relevar o destino de seus corpos. Por ser um ilícito permanente, segundo a CorteIDH o desaparecimento forçado de pessoas no caso Gomes Lund ainda se encontra em execução (CorteIDH, 2010, passim): Este Tribunal considera adequado reiterar o fundamento jurídico que sustenta uma perspectiva integral sobre o desaparecimento forçado de pessoas, em virtude da pluralidade de condutas que, unidas por um único fim, violam de maneira permanente, enquanto subsistam, bens jurídicos protegidos pela Convenção. [...] a Corte reiterou que o desaparecimento forçado constitui uma violação múltipla de vários direitos protegidos pela Convenção Americana, que coloca a vítima em um estado de completa desproteção e acarreta outras violações conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de um padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo Estado. A caracterização pluriofensiva, quanto aos direitos afetados, e continuada ou permanente do desaparecimento forçado se desprende da jurisprudência deste Tribunal, de maneira constante, desde seu primeiro caso contencioso há mais de vinte anos, inclusive com anterioridade à definição contida da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas. Essa caracterização resulta consistente com outras definições contidas em diferentes instrumentos internacionais, que salientam como elementos simultâneos e constitutivos do desaparecimento forçado: a) a privação da liberdade; b) a intervenção direta de agentes estatais ou sua aquiescência, e c) a negativa de reconhecer a detenção e revelar a sorte ou o paradeiro da pessoa implicada [...]. A Corte verificou a consolidação internacional na análise desse crime, o qual configura uma grave violação de direitos humanos, dada a particular relevância das transgressões que implica e a natureza dos direitos lesionados. A prática de desaparecimentos forçados implica um crasso abandono dos princípios essenciais em que se fundamenta o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e sua proibição alcançou o caráter de jus cogens. 125
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[...] Pois bem, já que um dos objetivos do desaparecimento forçado é impedir o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes quando uma pessoa tenha sido submetida a sequestro, detenção ou qualquer forma de privação da liberdade, com o objetivo de ocasionar seu desaparecimento forçado, se a própria vítima não pode ter acesso aos recursos disponíveis é fundamental que os familiares ou outras pessoas próximas possam aceder a procedimentos ou recursos judiciais rápidos e eficazes, como meio para determinar seu paradeiro ou sua condição de saúde, ou para individualizar a autoridade que ordenou a privação de liberdade ou a tornou efetiva. [...] De todo o exposto, pode-se concluir que os atos que constituem o desaparecimento forçado têm caráter permanente e que suas consequências acarretam uma pluriofensividade aos direitos das pessoas reconhecidos na Convenção Americana, enquanto não se conheça o paradeiro da vítima ou se encontrem seus restos, motivo pelo qual os Estados têm o dever correlato de investigar e, eventualmente, punir os responsáveis, conforme as obrigações decorrentes da Convenção Americana. [...] Do mesmo modo, a Corte reitera que o desaparecimento forçado de pessoas constitui uma violação múltipla que se inicia com uma privação de liberdade contrária ao artigo 7 da Convenção Americana. Como estabeleceu o Tribunal, a sujeição de pessoas detidas a órgãos oficiais de repressão, a agentes estatais ou a particulares que atuem com sua aquiescência ou tolerância, que impunemente pratiquem a tortura ou assassinato, representa, por si mesmo, uma infração ao dever de prevenção de violações dos direitos à integridade pessoal e à vida, estabelecidos nos artigos 5 e 4 da Convenção Americana, ainda na hipótese em que os atos de tortura ou de privação da vida destas pessoas não possam ser demonstrados no caso concreto. Por outro lado, desde seu primeiro caso contencioso, a Corte também afirmou que a prática de desaparecimento implicou, com frequência, na execução dos detidos, em segredo e sem fórmula de julgamento, seguida da ocultação do cadáver, com o objetivo de apagar toda pista material do crime e de procurar a impunidade dos que o cometeram, o que significa uma brutal violação do direito à vida, reconhecido no artigo 4 da Convenção. Esse fato, unido à falta de investigação do ocorrido, representa uma infração de um dever jurídico a cargo do Estado, estabelecido no artigo 1.1 da Convenção, em relação ao artigo 4.1 do mesmo instrumento, qual seja, o de 126
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garantir a toda pessoa sujeita a sua jurisdição a inviolabilidade da vida e o direito a não ser dela privado arbitrariamente. Finalmente, a Corte concluiu que o desaparecimento forçado também implica a vulneração do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, estabelecido no artigo 3 da Convenção Americana, uma vez que o desaparecimento busca não somente uma das mais graves formas de subtração de uma pessoa de todo o âmbito do ordenamento jurídico, mas também negar sua existência e deixá-la em uma espécie de limbo ou situação de indeterminação jurídica perante a sociedade e o Estado.
Sobre os familiares como vítimas do desaparecimento forçado de pessoas, decidiu (CorteIDH, 2010, passim): A Corte considerou em numerosos casos que os familiares das vítimas de violações dos direitos humanos podem ser, ao mesmo tempo, vítimas. A esse respeito, este Tribunal considerou que se pode presumir um dano à integridade psíquica e moral dos familiares diretos de vítimas de certas violações de direitos humanos, aplicando uma presunção juris tantum a respeito de mães e pais, filhas e filhos, esposos e esposas, companheiros e companheiras permanentes (doravante “familiares diretos”), sempre que corresponda às circunstâncias particulares do caso. No caso desses familiares diretos, cabe ao Estado descaracterizar essa presunção [...]. Desse modo, o Tribunal presume a violação do direito à integridade pessoal dos familiares diretos de Maria Lúcia Petit da Silva e das pessoas desaparecidas, a respeito de quem o Estado não descaracterizou essa presunção nem realizou menções específicas. [...] Com base nas declarações testemunhais, no parecer pericial e em outros documentos que constam do expediente, o Tribunal considera demonstrado que, a respeito dos familiares não diretos, ocorreu alguma ou várias das seguintes circunstâncias: a) entre eles e as vítimas desaparecidas existia um estreito vínculo, inclusive, em alguns casos, essas pessoas, juntamente com os pais e demais irmãos, constituíam um só núcleo familiar; b) engajaram-se em diversas ações, tais como a busca de justiça ou de informação sobre seu paradeiro, mediante iniciativas individuais ou formando diferentes grupos, participando em expedições de investigação aos lugares dos fatos, ou na interposição de procedimentos perante a jurisdição interna ou internacional; c) o desaparecimento de seus irmãos provocou sequelas físicas e emocionais; d) os fatos afetaram suas relações sociais, além de terem causado uma ruptura na dinâmica familiar; e) os danos experimentados foram agravados pelas 127
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omissões do Estado, diante da falta de informação e investigação sobre os fatos e a negação de acesso aos arquivos do Estado; e f) a falta de determinação do paradeiro de seus irmãos manteve latente a esperança de encontrá-los, ou ainda, a falta de identificação de seus restos mortais impediu a eles e suas famílias de sepultá-los dignamente, alterando desse modo seu processo de luto e perpetuando o sofrimento e a incerteza. No presente caso, a violação do direito à integridade pessoal dos mencionados familiares das vítimas verificou-se em virtude do impacto provocado neles e no seio familiar, em função do desaparecimento forçado de seus entes queridos, da falta de esclarecimento das circunstâncias de sua morte, do desconhecimento de seu paradeiro final e da impossibilidade de dar a seus restos o devido sepultamento. A esse respeito, o perito Endo indicou que “uma das situações que condensa grande parte do sofrimento de décadas é a ausência de sepultamento, o desaparecimento dos corpos […] e a indisposição dos governos sucessivos na busca dos restos mortais dos de seus familiares”, o que “perpetua a lembrança do desaparecido [e] dificulta o desligamento psíquico entre ele e os familiares que ainda vivem”, impedindo o encerramento de um ciclo. A esse respeito, a Corte lembra que, conforme sua jurisprudência, a privação do acesso à verdade dos fatos sobre o destino de um desaparecido constitui uma forma de tratamento cruel e desumano para os familiares próximos. Ademais, o Tribunal estabeleceu que o esclarecimento do paradeiro final da vítima desaparecida permite aos familiares aliviar a angústia e o sofrimento causados pela incerteza a respeito do destino do familiar desaparecido. Adicionalmente, a Corte considera que a violação do direito à integridade dos familiares das vítimas se deve também à falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos fatos, à falta de iniciativas para sancionar os responsáveis, à falta de informação a respeito dos fatos e, em geral, a respeito da impunidade em que permanece o caso, que neles provocou sentimentos de frustração, impotência e angústia. Em particular, em casos que envolvem o desaparecimento forçado de pessoas, é possível entender que a violação do direito à integridade psíquica e moral dos familiares da vítima é consequência direta desse fenômeno que lhes causa um grave sofrimento, o qual pode aumentar, entre outros fatores, em razão da constante negativa por parte das autoridades estatais de prestar informação acerca do paradeiro das vítimas ou de iniciar uma investigação eficaz para lograr o esclarecimento do ocorrido. A Corte considera que a incerteza e a ausência de informação por parte do Estado acerca dos acontecimentos, o que em 128
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grande medida perdura até a presente data, constituiu para os familiares uma fonte de sofrimento e angústia, além de ter provocado neles um sentimento de insegurança, frustração e impotência diante da abstenção das autoridades públicas de investigar os fatos. Igualmente, o Tribunal mencionou que, em face de atos de desaparecimento forçado de pessoas, o Estado tem a obrigação de garantir o direito à integridade pessoal dos familiares também por meio de investigações efetivas. Essas afetações, integralmente compreendidos na complexidade do desaparecimento forçado, subsistirão enquanto persistam os fatores de impunidade verificados. Por outro lado, com respeito aos 24 familiares indicados como supostas vítimas que faleceram antes de 10 de dezembro de 1998, o Tribunal não fará nenhuma declaração de responsabilidade estatal devido à regra da competência temporal. Finalmente, em relação aos 34 familiares falecidos cujas datas de óbito não tenham sido estabelecidas, o Tribunal estabeleceu que seus familiares ou seus representantes legais devem apresentar à Corte, em um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, a documentação que comprove que a data de falecimento é posterior a 10 de dezembro de 1998, para efeitos de confirmar sua condição de vítimas do presente caso.
Sobre o caráter permanente, a Corte assim se manifestou (CorteIDH, 2010, passim): Adicionalmente, no Direito Internacional, a jurisprudência deste Tribunal foi precursora da consolidação de uma perspectiva abrangente da gravidade e do caráter continuado ou permanente da figura do desaparecimento forçado de pessoas, na qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade. Em conformidade com todo o exposto, a Corte reiterou que o desaparecimento forçado constitui uma violação múltipla de vários direitos protegidos pela Convenção Americana, que coloca a vítima em um estado de completa desproteção e acarreta outras violações conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de um padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo Estado.
Logo, enquanto não se dá conta do paradeiro da pessoa ou de seus restos mortais, propiciando aos familiares o direito a enterro digno, o ato ilícito permanece em execução, ocasionando a execução contínua do desaparecimento forçado de pessoas. 129
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)
Também guardamos pedras aqui... ou como devolver o corpo é sinônimo de civilidade
A arte, em sua dimensão mais elevada, cumpre a função de gerar o espanto e provocar a suspeição de que as narrativas cridas e aprendidas podem e devem ser postas em questionamento a todo momento. De outro lado, uma ideia geral que tem seguido a formação do pensamento antropológico é a de que o progressivo desenvolvimento da cultura tem nos cerimoniais de sepultamento um de seus elementos fundamentais, sendo contemporâneos em seu surgimento com o pensamento mítico-religioso e a crença num mais-além. Assim, parece compor uma relação bastante complexa entre imanência (corpo) e transcendência (as razões para os cerimoniais de sepultamento, em particular a preservação do corpo) que gera nas comunidades humanas diversos procedimentos de inumação dos restos mortais. Agora, mesmo que a ideia de um mais-além não seja um motivo determinante na realização das cerimonias de sepultamento, é fato que o luto, entendido como situação psíquica e emocional que a morte provoca em relação ao defunto e os seus familiares e amigos, tem nas cerimonias fúnebres um elemento preponderante nas sociedades contemporâneas. Essa, de fato, é uma das razões que levaram a CorteIDH em considerar que um Estado tem uma obrigação adicional em revelar o destino ou paradeiro da pessoa ou de seu corpo no desaparecimento forçado de pessoas, uma vez que [...] uma das situações que condensa grande parte do sofrimento de décadas é a ausência de sepultamento, o desaparecimento dos corpos […] e a indisposição dos governos sucessivos na busca dos restos mortais dos de seus familiares”, o que “perpetua a lembrança do desaparecido [e] dificulta o desligamento psíquico entre ele e os familiares que ainda vivem”, impedindo o encerramento de um ciclo” (CorteIDH, 2010, passim).
Esses dois vértices – a função da arte e a das cerimônias de sepultamento – se imbricam no presente trabalho a partir da obra de Luiza Romão (2021), que com seu livro de poesia intitulado Também guardamos pedras aqui, ganhou o prêmio Jabuti de 2022, tendo sido o primeiro livro de poemas a ganhar o prêmio de melhor livro em todas as 64 edições. Esse livro, surgido após a leitura de Ilíada (2002), de Homero, liga, num diálogo belíssimo entre tradição e contemporaneidade, o sentido do cânon literário hoje, tendo nele um poema assim vazado:
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homero os gregos foram capazes de matar assassinar dizimar esquartejar liquidar esfolar decapitar arrastar enforcar cortar asfixiar trucidar retalhar arremessar destroçar aviar estuprar lacerar surrar decepar violentar incendiar pelar crucificar cegar afogar arranhar desmembrar retaliar despicar espancar saquear furar fustigar surrar escarrar maltratar aterrorizar dissipar triturar martelar açoitar sufocar arrochar e dizimar xxx xxxxxxxx xxx xxxxxxxxxx xxx xxx xxx xxx matar assassinar dizimar esquartejar liquidar esfolar decapitar arrastar enforcar cortar asfixiar trucidar retalhar arremessar destroçar aviar estuprar lacerar surrar decepar violentar incendiar pelar crucificar cegar afogar arranhar desmembrar retaliar 2002 espancar saquear furar fustigar surrar escarrar maltratar aterrorizar dissipar triturar martelar açoitar sufocar arrochar e dizimar xxx xxxxxxxx xxx xxxxxxxxxx xxx xxx xxx xxx matar assassinar dizimar esquartejar liquidar esfolar decapitar arrastar enforcar cortar asfixiar trucidar retalhar arremessar destroçar aviar estuprar laxxxcerar surrar xxxxxxxxxar laxxxcerar surrar xxxxxxxxxar laxxxcerar surrar xxxxxxxxxar laxxxcerar surrar xxxxxxxxar laxxxcerar surrar xxxxxxxxar laxxxcerar surrar xxxxxxxxar laxxxcerar surrar xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx porém no último canto da ilíada aquiles devolve a príamo o corpo de seu filho heitor hoje nesse momento aqui no sul do sul do mundo ainda não se tem notícia dos mais de duzentos desaparecidos 131
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)
na ditadura militar um corpo é um atestado de barbárie até os gregos tinham piedade
A autora, como sabemos, faz referência a uma das cenas mais marcantes da Ilíada, como seja, aquela em que Príamo, rei de Troia, ingressa de forma oculta no acampamento dos aqueus para implorar a Aquiles que lhe devolva o corpo de seu filho Heitor, morto, e após vilipendiado ao duelo impossível de ser vencido por este último, conforme registrado no Canto XXII (Campos, 2002, p. 334-346). Com efeito, a ira de Aquiles, afetado pelo luto de ter perdido em um duelo o seu amigo Pátroclo pelas mãos de Heitor, levou-o a negar sepultamento a este último, dizendo-lhe, quando este lhe rogou que restituísse seu corpo para a realização das cerimonias de sepultamento, que o corpo seria pasto para os abutres, o que somente não ocorreu porque Vênus e Apolo protegem o corpo dos cães. Eis a cena (Campos, 2002, p. 339-340): Elmo-coruscante, Héctor disse ao Peleide, indo-se-lhe de encontro, e se acercando: “Já não mais, Aquiles, como até agora, hei de temer-te. Por três vezes fugi em torno à megalópolis de Príamo, para não enfrentar-te: faltava coragem. O coração, agora, incita-me a arrostar-te, sendo morto, ou matando-te. Mas invoquemos os deuses, testemunhas, fiadores do pacto que ora faremos: ‘Caso Zeus Pai me dê forças e eu, da psiquê te prive, não ultrajarei teu corpo; teu cadáver, despojado de armas, aos teus entregarei. Faze o mesmo comigo.’” O Pés-velozes de través o mira e fala: “Deletério Héctor! Não me arengues sobre pactos. Não há juras de paz fiéis entre homem e leão, nem o lobo e o cordeiro são concordes de ânimo; coisas más, pensam uns dos outros, todo o tempo. Assim, não é possível nos amarmos nem trocar juras fiéis, antes que um de nós tombe, Ares, porta-adarga aguerrido, saciando de sangue. Lembra teu valor. Deves ser um lança-dardos e também um guerreiro de talhe leonino. Não tens escápula. Com minha lança, Atena te domará. As dores todas pagarás que me destes, matando tantos companheiros.”
A cena é belíssima, sendo assim vazado do diálogo entre Príamo e Aquiles no Canto XXIV (Campos, 2002, p. 380-381): [...] “Rememora, Aquiles, símil-divino, teu pai, tão velho como eu, no umbral da senectude. Vizinhos adversos 132
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talvez o ameacem, já que não tem quem lhe valha para afastar a ruína de Ares. Mas ouvindo que estás vivo, lhe exulta o coração, à espera de ver-te retornar a Troia. Todo-infausto, eu, ao invés, gerei meus bravos filhos na vasta Ílion, sem que nenhum me reste: cinquenta, no aproarem os Aqueus; dezenove de um único ventre; outras mulheres, no palácio, os mais geraram-me O furor de Ares afrouxou de muitos deles os joelhos. O melhor e único defensor da pólis e nosso, há pouco o mataste, em luta pela pátria, Héctor, cujo corpo, às naus aqueias, trazendo o seu resgate em dons infindos, vim pedir-te. Aquiles, tem respeito aos deuses, dó de mim. Lembra teu pai: mais piedade mereço, por fazer o que não fez outro homem nenhum: beijar, levando-a à boca, a mão que assassinou-me o filho” [...]
Aquiles, tendo a sua ira já arrefecida, responde a Príamo em pranto (Campos, 2002, p. 381-382): [...] Quando Aquiles divino saciou-se do pranto e da ânsia que afligira seus membros e entranhas, levantou-se do trono e fez erguer o ancião; condoído de suas cãs, da barba e dos cabelos brancos, estas palavras-asas proferiu-lhe: “Infeliz! Muitas coisas más no coração amargaste! Como é que ousaste vir à naus só, perante o olhar do homem que matou teus filhos valentes - tantos? Tens, certo, entranhas de ferro! Mas senta agora neste trono: aflitos ambos, deixemos que serene a dor no coração, pois do pranto glacial não deriva nenhum proveito. Assim os deuses urdem o fadário dos infaustos mortais: um viver agoniado, sendo os numes incólumes; pois há dois cântaros nos umbrais de Zeus, cheios de dons que ele nos dá, um de ruins, de bons o outro. Mescla-os Zeus fulmíneo e os versa: ora o mal, ora o bem, deparará quem os receba; quando maldosos opróbrios apenas colha, malsinado vagará pela terra divina, famélico, menosprezado por mortais e deuses. A Peleu, os deuses, com preciosos dons, lhe galardoaram desde o berço: excedia a todos mais em bens e ventura; era rei dos Mirmidões; mortal, de uma imortal se fez esposo. Um pesadume o nume lhe infligiu: uma prole de príncipes não gerou no palácio, salvo um, morituro eu -, que dele não posso cuidar na velhice, pois estou longe, em Troia, danando a ti e aos teus filhos. Sênior, ouvimos que já foste muito venturoso, excedendo em bens e prole a todos nos limites de Lesbos, do rei Mácar, mar alto e, no plaino acima, a Frígia e o Helesponto, ainda, infindo. Desde quando os Urânios te enviaram malefícios, batalhas e carnagem cercam-te a urbe. Sofre-os, paciente, e deixa de lamurias; por teu filho agoniar-te, não fará com que ele ressuscite, mas outro mal pode advir-te, antes.” 133
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)
O resultado da súplica e sua resposta é razoavelmente conhecido: Aquiles devolve o corpo de Heitor a Príamo, a quem ele também concede o direito à celebração dos rituais funerários de 10 dias, suspendendo as batalhas nesse período. No poema da Luiza Romão, ela consigna a seguinte imagem após citar todas as atrocidades produzidas pelo aqueus contra os troianos: “porém/ no último canto da ilíada/ aquiles devolve a príamo/ o corpo de seu filho heitor”, e logo após adiciona: “um corpo é um atestado de barbárie”. Um corpo insepulto, com efeito, é tema não somente de Ilíada, mas também de Antígona. Conforme a sintética narrativa de Balló i Fantonova e Peréz Tório, que amavelmente permitiram a tradução e publicação de texto seminal sobre a atualidade de Antígona, essa peça: [...] é o emotivo capítulo final de uma trágica saga familiar que tem por centro a cidade de Tebas. Versa sobre o círculo de penalidades a que foi condenada toda a família de Édipo depois de que o seu pai, Laio, cometeu um ato vergonhoso raptando o filho do rei que o acolheu no exílio. É característico das tragédias gregas que os heróis paguem pela culpa dos pais. Laio morre pela mão de seu filho Édipo, que se casa com sua mãe Jocasta sem saber que o é. Muitos anos depois, tem lugar o terrível reconhecimento dos fatos, que leva Édipo a arrancar seus olhos, e Jocasta a suicidar-se. Os filhos de seu incesto, Polinices, Etéocles, Antígona e Ismene encontram-se, por isso, condenados à desgraça. Suas desditas dão azo a diversas tragédias. N’Os sete contra Tebas, Esquilo recria os acontecimentos imediatamente anteriores à tragédia de Antígona. Depois da morte de Édipo, os dois irmãos devem compartilhar o trono de Tebas, dividindo o reinado durante anos alternativos. Etéocles, no entanto, se assenta no trono sem cedê-lo, e Polinices arma um exército estrangeiro para invadir a cidade. Num combate corpo a corpo, os dois irmãos morrem aos pés da muralha. Este clímax dramático é o final d’Os sete contra Tebas e dá passo ao início de Antígona de Sófocles. O fio condutor desta nova tragédia é a decisão do regente, Creonte, de ordenar que Etéocles seja enterrado com todas as honras, enquanto o corpo do irmão fique insepulto, algo que supõe, para a religião grega, uma tortura eterna para a alma do defunto. Por que este ato de violência contra a sobrinho morto? Por que essa inflexibilidade desapiedada do governante? Há um enigma em Antígona que cria inquietude no leitor se ele compreende o desenvolvimento integral da saga. Etéocles, o defensor da cidade, traiu a ordem de seu pai Édipo, ao impedir que Polinices compartilhasse com ele o poder. Entretanto, é o cadá134
ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR - V. II
ver de Polinices o que é castigado, é o irmão que tinha direito a governar o que é considerado, aos olhos do Estado, como culpado.... Sófocles não faz nada para explicar que pactos políticos foram estabelecidos entre Etéocles e seu tio Creonte para considerar que deveriam desatender às ordens de Édipo e fortalecer o reinado de um único irmão, o que governa a Tebas nesse momento. As razões de Polinices não são ouvidas nunca, e nem mesmo Antígona as contempla em sua defesa. Ela também aceita que o irmão rebelde invadiu à cidade, pois seu objetivo não é exculpar a ninguém, mas apelar à piedade: antepor o amor fraternal à decisão política. O que prevalece no debate, então, não é se Polinices tinha ou não razão para atacar, mas o fato de ter atentado contra a cidade, uma cidade concebida por Creonte como espaço da ordem, como arquitetura do Estado. Polinices foi contra essa ordem e, para o regente, o castigo devia ser exemplar para explicar a seus contemporâneos que ninguém podia antepor um desejo pessoal, por justo que parecesse, ao bem-estar comum dos cidadãos. Creonte, como governante, prefere, pois, a injustiça à desordem. É contra essa injustiça que Antígona se ergue portadora da defesa de todos os rebeldes desprotegidos a quem a razão do Estado esmaga com a retórica do bem-estar comum. Este pano de fundo político permite entender por que Antígona deve ser vista, em primeira instância, como um discurso ilustrado sobre dois modelos de ação política, um sustentado na aparência objetiva de uma lei do Estado, outra na precariedade subjetiva que nunca antepõe a força aos valores de seu discurso. O argumento não é o do rebelde beligerante, pois o gesto de Antígona contrasta, em dimensão pacífica, com o de Polinices. Se aquele, ante a injustiça, arma um exército e se levanta contra a cidade, Antígona se limita a desobedecer uma ordem, sem pôr em perigo a ninguém mais a não ser a si mesma (Balló i Fantonova e Peréz Tório, 2020, p. 88-90).
É por essa razão que Antígona é reconhecida como o “... O primeiro gesto histórico de um ser humano que tenha decidido plantar cara ao poder...” (Balló i Fantonova e Peréz Tório, 2020, p. 89), servindo, mais uma vez, de paradigma para reflexões e/ou de inspiração à resistência civil frente à ilegitimidade do exercício do poder. Nos dois casos, negar sepultura, negar as exéquias e o luto aos familiares e amigos era sinônimo de barbárie, pelo que Luiza Romão, saltando 10 séculos à frente, diz que: “hoje nesse momento aqui/ no sul do sul do mundo/ ainda não se tem notícia/ dos mais de duzentos desaparecidos/ na ditadura militar/ um corpo é um atestado de barbárie/ até os gregos tinham piedade”. 135
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)
O que essa passagem significa numa sociedade erigida, constitucionalmente, sobre o princípio da prevalência dos Direitos Humanos, conforme artigo 4º, II da CRFB? Direitos Humanos, entre civilização e barbárie: ou é possível a prevalência dos Direitos Humanos em face do descumprimento das decisões da CorteIDH?
Como vimos ao longo do percurso, o desaparecimento forçado de pessoas se inicia com a privação de liberdade da vítima – seja ela legal ou ilegal – e se protrai até que ela seja posta em liberdade, ou o seu destino ou paradeiro seja revelado, permitindo a tutela jurisdicional ou, no caso de execução extrajudicial, que o destino do corpo seja revelado, permitindo aos familiares dar as exéquias e sofrer plenamente o luto. Enquanto isso não ocorre, tem-se um tertio genus para a pessoa humana: nem viva, nem morta, desaparecida. A CorteIDH condenou o Brasil a adotar todas as medidas necessárias a revelar o destino dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, o que, ainda hoje, passados 13 anos da Sentença, não ocorreu. Sobre essa seríssima omissão a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez pública uma a Nota 04/2013 de 12 de janeiro com a seguinte chamada: “Brasil deve implementar políticas públicas para a busca de vítimas de desaparecimento forçado durante a ditadura”12. O conteúdo da nota é o seguinte: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) expressa preocupação pelo encerramento das atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) do Brasil e chama a restabelecer os esforços para buscar as vítimas de desaparecimento forçado durante a ditadura civil-militar no marco de uma política pública integral, centrada nas vítimas e suas famílias. No dia 30 de dezembro, o governo anterior publicou no Diário Oficial da União o “Relatório Final” de atividades da CEMDP, aprovado pelo órgão colegiado por 4 votos a 3 no dia 15 de dezembro de 2022, no qual declara-se o encerramento das atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. De acordo com as informações recebidas, a decisão foi tomada a despeito de o relatório indicar que certas atividades da CEMDP foram paralisadas nos últimos anos e que diferentes diligências estão pendentes de conclusão, incluindo a identificação dos restos mortais de pessoas falecidas que foram exumados.
12 Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2023/004.asp. Acesso em: 13 jan. 2023.
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Diversas organizações da sociedade civil, vítimas e especialistas expressaram indignação com a decisão de encerrar a Comissão Especial, apontando para a falta de informações que demonstrassem o esgotamento das atividades de busca e/ou a identificação das pessoas desaparecidas. Também lembraram que a Comissão Nacional da Verdade recomendou ao Estado prosseguir com as atividades de localização, identificação e entrega dos restos mortais das vítimas aos familiares para que um enterro digno pudesse ser realizado, e dotar os órgãos competentes dos recursos necessários. Por sua vez, o Ministério Público Federal reiterou sua recomendação, feita em julho de 2022, de que os órgãos estaduais competentes se abstenham de propor e/ou aprovar a extinção da CEMDP; e que assegurem, física e financeiramente, o seu adequado funcionamento. A CIDH relembra que os familiares das vítimas de graves violações dos direitos humanos e a sociedade como um todo têm o direito de saber a verdade sobre o que aconteceu em relação a essas violações. Em casos de desaparecimento forçado, isto implica no direito dos familiares da vítima de conhecer o seu destino e, se aplicável, de saber onde seus restos mortais estão localizados, constituindo um importante meio de reparação. No último dia 13 de dezembro, a CIDH relembrou ao Estado brasileiro que é sua obrigação realizar todas as ações necessárias para determinar o destino ou paradeiro das pessoas desaparecidas enquanto se mantenha a incerteza sobre o destino final das vítimas. No contexto da supervisão do cumprimento da sentença do caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, tanto a CIDH quanto a Corte Interamericana constataram a falta de resultados concretos e determinaram a necessidade de que o Estado adotasse esforços adicionais. Além disso, no Relatório de país sobre a situação de direitos humanos no Brasil, publicado em 2021, a Comissão Interamericana recomendou que os esforços de busca façam parte de uma política pública integral sobre desaparecimentos, realizada por entidades independentes e imparciais, de forma sistemática e rigorosa, com recursos humanos e técnicos adequados, e assegurando a comunicação e ação coordenada com os familiares das vítimas. A CIDH aprecia o compromisso recentemente anunciado pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania de restabelecer os esforços de busca, e solicita ao Estado reestruturar rapidamente suas ações de busca de vítimas de desaparecimento forçado durante o regime militar, e assegurar os recursos apropriados para elucidar o paradeiro das vítimas, sua localização, identificação e restituição digna às suas famílias, se for o caso. 137
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)
A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.
O que essa nota informa sobre a “prevalência dos Direitos Humanos” nas relações internacionais entre o Brasil e comunidade internacional? O que evidencia a grave omissão brasileira em adotar uma política pública consistente e efetiva que permita revelar o destino dos corpos dos desaparecidos políticos da ditadura de 1964? Por que até o momento os civis e militares que têm obstado, com seu comportamento e poder, a consecução dessa obrigação internacional? Qual a mensagem que o Estado brasileiro passa, interna e internacionalmente, quando seu ex-presidente e correligionários usam indumentárias com o escrito “Ustra Vive”, ou recebe ao Major Curió – o assassino dos guerrilheiros do Araguaia, quando já rendidos, como um herói? Significa que palavras de ordem e boas intenções pouco alteram a realidade em que estamos inseridos até os narizes. Que após quatro anos de “Deus acima de tudo e Brasil acima de todos”, a frase “O Brasil voltou” tanto pode significar uma efetiva vitória da civilização contra barbárie como, também, uma ameaça, pois em nossa realidade, civilização e barbárie convivem de forma desabrida e plena. Disse Luiza Romão no final do poema que foi o condutor da presente comunicação: “hoje nesse momento aqui/ no sul do sul do mundo/ ainda não se tem notícia/ dos mais de duzentos desaparecidos/ na ditadura militar/ um corpo é um atestado de barbárie/ até os gregos tinham piedade”. O Brasil da prevalência do Direitos Humanos é um país e uma sociedade que não têm piedade; é um país e uma sociedade que, em matéria de desaparecidos forçados, não logrou transitar da barbárie dos massacres para a civilização do asseguramento do sepultamento dos corpos torturados, e que enquanto perduram nessa condição, também privam familiares e amigos do direito ao luto. Referências
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ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR - V. II
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CAPÍTULO 13 A AMAZÔNIA E A“UTOPIA AUTORITÁRIA”: INTEGRAÇÃO, OCUPAÇÃO E EXPLORAÇÃO César Augusto Bubolz Queirós1
Olhando os meus olhos de verde e floresta Sentindo na pele o que disse o poeta Eu olho o futuro e pergunto pra insônia Será que o Brasil nunca viu a Amazônia E vou dormir com isso Será que é tão difícil Nilson Chaves
Boa noite a todas e todos. Primeiramente, eu gostaria de destacar a enorme satisfação em estar de volta a Porto Velho, uma cidade que sempre me recebe tão bem e que me trouxe grandes amigos e companheiros de jornada. Agradeço o convite feito pela professora Aparecida Zuin e pelo professor Marcus Vinícius Xavier de Oliveira: é sempre um prazer estar aqui, sobretudo para participar desta II Semana de Direitos Humanas, que traz um tema tão pertinente e atual: “Direitos Humanos entre a civilização e a barbárie: quais os desafios pós-2022?”. Após termos perigosamente flertado com a barbárie – sendo que alguns andaram de brações dados com ela –, conquistamos a possibilidade de retomar o processo civilizatório, no qual é necessário discutir uma política séria sobre a questão ambiental e sobre as populações tradicionais, retomar a valorização da ciência e da educação e o combate ao racismo, à homofobia e à intolerância. O populismo rea1 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); Líder do Laboratório de Estudos sobre História Política e do Trabalho na Amazônia (LABUHTA/CNPq) (https://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/317484). E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1057933239321750. Orcid: https://orcid. org/0000-0002-5752-6148.
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cionário e sua visão obscurantista de negação dos princípios básicos da ciência nos custaram inegavelmente centenas de milhares de vidas e esta é uma oportunidade de refletirmos sobre nossa história recente. Para este evento, pretendo realizar uma reflexão sobre o processo de ocupação da região amazônica, buscando compreender alguns pontos da política do governo de Jair Bolsonaro para a região. Para tanto, cabe compreender que, no processo histórico da colonização portuguesa no Brasil e da construção imagética da Amazônia, a região sempre foi objeto de um conjunto de representações que a colocava tanto na condição de um obstáculo ao progresso, região incivilizada e de uma natureza insubmissa, quanto como uma fronteira a ser alcançada a fim de integrar aquelas vastas e ricas terras ao desenvolvimento nacional. Seria, portanto, um imenso “vazio” demográfico e civilizatório que precisava ser incorporado à Nação, pela ação do Estado e de agentes privados – apoiados por sua ação. A Amazônia sempre marcou forte presença no imaginário nacional e nos projetos de poder que eram alçados à esfera nacional. Atualmente, com a escalada das áreas devastadas na região durante o governo Bolsonaro e todas as investidas que promoveram um desmonte sobre os órgãos de fiscalização, a ação de madeireiros e garimpeiros ilegais foi facilitada e as queimadas atingiram índices que alarmaram a comunidade internacional. Neste artigo pretendo analisar algumas iniciativas de utilização das riquezas da região e de colonização do vale amazônico, destacando a relação entre as investidas sobre a exploração na Amazônia e a emergência de governos autoritários. Vargas e a ocupação do vale amazônico
Segundo Djalma Batista, é necessário enxergar a região amazônica além dos estereótipos: Apesar da aparente homogeneidade geográfica, caracterizada pela presença de rios caudalosos e de uma floresta sempre verde [...], toda essa terra imensa, além de ter pouca gente, possui diversidades étnica e cultural, embora a economia não divirja muito. Cada Amazônia tem, entretanto, as suas características próprias. [...] o espaço amazônico, apesar de grande, tem uma distribuição demográfica irregular, de que resulta, apesar de tudo, no final, um mínimo da presença do homem (Batista, 2007, p. 43).
A análise de tais representações se faz de extrema importância uma vez que elas justificavam, legitimavam e orientavam um conjunto de ações que, reciprocamente, retroalimentava tais representações. Sua construção está diretamente alinhada a um bloco de interesses concretos que tem na ocupação da região e no aproveitamento – predatório – de seu potencial econômico o grande objetivo. Diante disso, a natureza e os povos origi142
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nários não poderiam ser “entraves” a esse discurso de desenvolvimento e “progresso”. Para Chartier, As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, [...] a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. [...] As lutas de representação têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio (Chartier, 1990, p. 17).
No entanto, se a implementação de tal “missão civilizatória” atinge seu ápice durante o período da ditadura militar, devemos considerar que – com diferenças e especificidades que serão analisadas em outro momento – o projeto de ocupação/integração da região amazônica está presente ao longo dos últimos séculos e perpassou diferentes governos. Camila Monção Miranda destaca que “os ideais de ‘desenvolver, integrar e ocupar’ a Amazônia surgem com força antes mesmo da ditadura, durante a Era Vargas. [...] Muitas características dos projetos da ditadura de 1964 têm grande semelhança com propostas do Estado Novo para a região amazônica” (Miranda, 2018). Para Ferreira, é a partir do processo de centralização política decorrente da implementação do Estado Novo que se renova o interesse de Vargas sobre os territórios amazônicos a fim de potencializar o aproveitamento da enorme riqueza dos recursos hídricos e naturais. Tal intervenção derivava “do regime forte e centralizador que visava integrar economicamente o Brasil estabelecendo uma unidade nacional, mas priorizando os interesses do Estado acima dos interesses dos cidadãos” (Ferreira, 1999, p. 36). A emergência de um regime ditatorial e centralizador – o Estado Novo – surgiria aqui como elemento potencializador do processo de exploração dos recursos naturais e da ocupação/integração do vale amazônico. Portanto, era tarefa do novo regime não apenas a ocupação daquelas áreas inóspitas como também o aproveitamento das riquezas naturais, possibilitando uma maior valorização do Brasil no contexto geopolítico internacional. A colonização do vale amazônico era, pois, um desafio a ser superado. Em um discurso pronunciado na cidade de Manaus, em evento realizado no Ideal Clube, em outubro de 1940, Vargas deixava claro seu projeto de civilizar e ocupar a região amazônica, deixando transparecer a premissa de uma oposição entre homem e natureza: “conquistar e dominar” essas terras seria, portanto, a “mais alta tarefa do homem civilizado”. Neste discurso, na presença do interventor Álvaro Maia, o presidente Getúlio Vargas afirmava:
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Vim para ver e observar de perto as condições de realização do plano de reerguimento da Amazônia. Todo o Brasil tem os olhos voltados para o Norte, com o desejo patriótico de auxiliar o surto do seu desenvolvimento. [...] Nada nos deterá, nesta arrancada, que é, no século vinte, a mais alta tarefa do homem civilizado: conquistar e dominar os vales das grandes torrentes equatoriais, transformando a sua força cega e a sua fertilidade extraordinária em energia disciplinada. O Amazonas, sob o impulso fecundo da nossa vontade e do nosso trabalho, deixará de ser, afinal, um simples capítulo da história da Terra, e, equiparado aos outros grandes rios, tornar-se-á um capítulo da história da civilização (Vargas apud D’Araújo, 2011, p. 77 e 81).
Neste contexto, a “grandeza territorial” da Amazônia – com sua “feracidade inigualável” – lançaria ao homem civilizado os colossais desafios de “adensar o povoamento, conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta “em toda a sua pitoresca e perigosa extensão”. Para isso, impõe-se a enorme responsabilidade de civilizar e povoar milhões de quilômetros quadrados. Aqui, na extremidade setentrional do território pátrio, sentindo essa riqueza potencial imensa, que atrai cobiças e desperta apetites de absorção, cresce a impressão dessa responsabilidade, a que não é possível fugir nem iludir (Vargas apud D’Araújo, 2011, p. 77 e 81).
As representações da Amazônia estavam mais impregnadas pelas suas possíveis ausências do que por uma visão real da multiplicidade de experiências e vivências desta região multifacetada que aguçava tantas curiosidades e ambições. Civilizar, ocupar e integrar eram as tarefas às quais as autoridades brasileiras se propunham, travando uma “cruzada desbravadora” que tinha como principal intuito “vencer o grande inimigo do progresso amazonense, que é o espaço imenso e despovoado” (Vargas apud D’Araújo, 2011, p. 77 e 81). Para Francisco Pereira Costa, o estímulo à colonização talvez esteja: muito mais associado às práticas de expropriação e rapinagem do patrimônio dos povos originários, dos pequenos e médios camponeses, dos quilombolas, enfim, daqueles que foram tangidos para outros lugares, do que a vinculação e determinismo dos fenômenos naturais (Costa, 2015, p. 38).
O “Discurso do Amazonas” representa uma “carta de intenções” dos projetos para a ocupação e integração da região amazônica. No entanto, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e com os compromissos assumidos pelo País quanto ao fornecimento do látex, o projeto acabou sendo temporariamente interrompido. Segundo Maria Verônica Secreto, 144
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no biênio 1942-1943 se fazia urgente obter borracha para fornecer aos aliados [...] Os Acordos de Washington (de março de 1942) previam o incremento da produção de borracha no velho esquema: ampliação da atividade extrativa, com base no recruta mento de mão-de-obra no Nordeste do Brasil (Secreto, 2007, p. 121). A ditadura militar e a Amazônia
Com o golpe civil-militar de 1964, o processo de ocupação da região passa a ocorrer de forma contínua e sistemática, a partir da criação de planos, programas e superintendências criados pelo governo central com a finalidade de executar planos de ocupação e desenvolvimento do espaço amazônico. Durante o governo Castelo Branco, foram implementadas as bases político-institucionais para este reordenamento: em 1966, a criação da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e a reformulação do Banco de Crédito da Amazônia S. A., dando lugar ao Banco da Amazônia S. A. (BASA), que, em conjunto com o Banco do Brasil, foram os principais financiadores deste modelo. Em 1967, foi criada a Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) e, em 1970, o Programa de Integração Nacional (PIN) e o RADAM (Franklin, 2014). A implementação dessa política de ocupação da Amazônia foi idealizada a partir da lógica da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), gestada no âmbito da Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em agosto de 1949. A partir da criação do National War College, em 1946, diversas escolas militares foram fundadas na América Latina seguindo sua inspiração: Escola Superior de Guerra (ESG), no Brasil; Academia de Guerra, no Chile; Escola Nacional de Guerra, no Paraguai; Escola Superior de Guerra, na Colômbia; Escola de Altos Estudos Militares, na Bolívia. Para Padrós, o aparelhamento dessas instituições tinha como objetivo fundamental: implicar atores locais na defesa de uma área que passou a ser compreendida como inserida na nova concepção de segurança interna dos EUA que o Pentágono, através da DSN, assumiu a qualificação das Forças Armadas da América Latina, fornecendo treinamento, doutrinação, armamento e suporte logístico (Padrós, 2005, p. 210).
Neste contexto de Guerra Fria e de bipolaridade política, a DSN seria a “manifestação de uma ideologia que repousa sobre uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e os países ocidentais” (Borges, 2014, p. 24). No Brasil, a geopolítica de Golbery do Couto e Silva e dos demais membros da ESG serviu de esteio para a elaboração dos projetos voltados para a ocupação da Amazônia, tendo como um desenvolvimento econômico 145
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aos moldes do capitalismo tradicional com base numa política de Segurança Nacional. Nessa perspectiva, a Amazônia passa ser vista do ponto de vista geopolítico como tendo uma importância estratégica para a segurança nacional, representando um “elemento essencial do próprio tamponamento inicial da fronteira” (Silva, 1967, p. 133). Nessa direção, os projetos desenvolvimentistas voltados para a “integração” da Amazônia tinham por finalidade a consolidação de um “domínio efetivo” sobre a região. A partir dessa perspectiva geopolítica e estratégica inspirada na DSN, podemos analisar os projetos destinados à ocupação/integração da Amazônia tendo como ponto de partida dois aspectos principais: a integração da região como forma de efetivar o pleno domínio do território diante da cobiça internacional (inimigo externo) e a ocupação do espaço amazônico a partir de estímulos à migração – tanto no Nordeste, quanto no Sul e Sudeste – a fim de promover o esvaziamento dos conflitos internos e focos de oposição ao “regime” (inimigo interno). No contexto da DSN, a cobiça internacional e as possíveis ameaças de internacionalização da Amazônia justificariam a necessidade premente de ocupação daquela vasta e quase inabitada região. Em seu livro A Amazônia e a Cobiça Internacional, Arthur Cezar Ferreira Reis (1973), que governou o Estado do Amazonas após a deposição de Plínio Ramos Coelho em junho de 1964, argumentava que a atenção dos países desenvolvidos estaria direcionada para a Amazônia, cuja exploração de suas potencialidades por estes países representaria a solução para uma variada gama de problemas enfrentada no Velho Continente. Assim, os países economicamente mais desenvolvidos iriam encontrar um meio, seja lícito ou ilícito, de lançar mão das potencialidades amazônicas (Reis, 1973). No final da década de 1960, eram frequentes nos periódicos notícias, artigos e editoriais explorando a temática da ameaça à soberania nacional e da internacionalização da Amazônia. O artigo intitulado A Amazônia corre perigo de internacionalização?, escrito por Arthur Cezar Ferreira Reis e publicado na revista Realidade no ano de 1967, sintetiza a visão do autor sobre as ameaças da cobiça internacional sobre os territórios amazônicos. No artigo, Arthur Reis expõe o risco que o território nacional sofria em função da cobiça internacional pelas terras amazônicas, afirmando que “aguçavam os apetites dos povos poderosos que careciam de matérias primas para seus parques industriais e de espaço para nele situarem parcelas que carecem de lar, de terra para viver” (Reis, 1967a, s/p.). Segundo Reis, para impedir a internacionalização da Amazônia, faz-se necessário que “nos armemos, não apenas para a luta armada” (Realidade. São Paulo, 02/1968). Em A Amazônia e a Integridade do Brasil, preocupado com a “gravidade do problema da Amazônia” e destacando que, pela 146
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“exiguidade populacional” a Amazônia representaria um “deserto brasileiro”, Arthur Cezar Ferreira Reis escreve que: Os espaços abertos como a Amazônia estão despertando interesses suspeitos. Há fome de espaço para as multidões que se comprimem em certas áreas do mundo. Escreve-se uma literatura que não é impressionista nem fantasiosa, mas profundamente realista, indicando a Amazônia como a área própria para resolverem-se problemas daquele tipo (Reis, 2001, p. 247).
Para Reis, era necessita a realização de um grande esforço coordenado que resultasse na ocupação do vale amazônico e na chegada da “civilização” à região. Ocupação e integração eram o binômio que sustentaria que a região pudesse se tornar “útil à civilização”: Nenhuma força, telúrica ou não, é força impeditiva para que se efetue a empresa ou a aventura, para muitos, da ocupação da Amazônia e sua integração como espaço útil à civilização universal e, no nosso caso específico, à civilização que o Brasil constrói vencendo as dúvidas e as resistências dos trópicos de que fazemos parte (Reis, 1967b, p. 14).
Em 25 de janeiro de 1968, a capa do periódico Folha do Norte trazia a seguinte manchete: “Não se trata de chauvinismo: nossa soberania está mesmo ameaçada”, contendo declarações do senador Arthur Virgílio e do ministro Albuquerque Lima denunciando uma possível invasão na Amazônia. (Folha do Norte. Belém, 25/01/1968). Em dezembro de 1967, o periódico, O Jornal, trazia uma reportagem intitulada É o plano da invasão, que também denunciava planos de tomada da Amazônia. Segundo Medeiros, A internacionalização da Amazônia se insere nas narrativas hegemônicas levadas a efeito por atores-autores que forjam o poder de decidir sobre o espaço amazônico, muitas vezes, tratado como região problema. Jornais e revistas se tornam instrumentos de divulgação, debates, prognósticos, conjunturas, repercussões e de projeções que estabelecem proposições territoriais (Medeiros, 2012, p. 123).
Nesta direção, tanto a imprensa quanto os discursos dos representantes da ditadura convergiam ao estabelecer uma narrativa que criava a premência da ocupação da região face a uma ameaça externa, o que legitimava e justificava os excessos e atropelos ocorridos durante a aplicação de projetos desenvolvimentistas que resultavam no genocídio e desterritorialização das populações indígenas e no desmatamento desenfreado. Por outro lado, para garantir a integração da Amazônia ao território nacional era necessária sua efetiva ocupação, com o deslocamento da fron147
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teira agrícola para as margens do rio Amazonas e incorporação de amplas faixas da população através da reorientação das migrações de mão de obra do Nordeste. Segundo Morais, A propaganda oficial alardeada pelo presidente Médici centrava-se em transferir “os homens sem terra do Nordeste para as terras sem homens da Amazônia”. Os “homens sem terra” do Nordeste eram resultado da concentração de terras e de políticas públicas que mais agravavam que atenuavam a situação de pobreza na região, pois não foram capazes de atacar as questões básicas de infra-estrutura que visava minimizar os problemas decorrentes da seca. Da mesma forma, a Amazônia, apesar da baixa densidade demográfica, não se constituía no “vazio demográfico” que se apregoava. As suas terras já estavam ocupadas por tribos indígenas e por pequenos agricultores e posseiros, desde pelo menos o século XVIII (Morais, 2000, p. 59).
A fim de operacionalizar tais intentos, em dezembro de 1966, foi lançada a “Operação Amazônia”, que abria “caminhos para a exploração dos recursos naturais, articulando o tripé da economia brasileira, formada pelo capital estatal, privado nacional e privado estrangeiro, representado pelos grandes monopólios multinacionais” (Stella, 2009, p. 86). Nela, a região era descrita “como um dos maiores desertos do mundo”, necessitando de um esforço conjunto para adensar o povoamento e fomentar a exploração capitalista, sob a inspiração da ideologia de “segurança nacional” e cujo lema seria “integrar para não entregar”. Segundo Antenor Silva, o Plano de Integração Nacional (PIN), lançado em 1970, surge como uma estratégia geopolítica combinava programas de exploração da infraestrutura e econômicos na Amazônia com um projeto de colonização para o assentamento de nordestinos sem-terra (Silva, 2015, p. 71). A iniciativa do governo de Médici estava baseada na construção de grandes rodovias com a finalidade de integrar a região amazônica ao território nacional. Ainda segundo Silva, o Plano de Integração Nacional “vislumbraria posteriormente a construção de outras rodovias como a Cuiabá-Porto Velho (atual BR-364) e a Perimetral Norte (atual BR-210), mas nenhuma dessas tornar-se-ia tão emblemática quanto a Transamazônica” (Silva, 2015, p. 71). Analisando as metas oficiais do Plano de Integração Nacional, Oliveira destaca três: a primeira referia-se à abertura de duas rodovias na Amazônia – a Transamazônica (ligando o Nordeste e a Belém-Brasília à Amazônia Ocidental – Rondônia-Acre) e a Cuiabá-Santarém, ligando o Mato Grosso à Transamazônica e ao próprio porto de Santarém, no rio Amazonas; a segunda medida foi a implanta148
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ção, em faixa de terra de 10 km de cada lado das novas rodovias, de um programa de “colonização e reforma agrária” e o início da primeira fase do plano de irrigação do Nordeste; e a terceira medida referia-se à transferência de 30% dos recursos financeiros dos incentivos fiscais oriundos de abatimento do imposto de renda para aplicação no programa (Oliveira, 1991, p. 63).
No entanto, devemos salientar que a implementação destes projetos desenvolvimentistas no espaço amazônico ocorreu sem que fossem levadas em consideração as reais necessidades dos habitantes da região e, principalmente, a despeito de seus interesses. A elaboração de tais projetos partiu de um profundo desconhecimento da lógica regional, caracterizando-se pela imposição de um modelo de desenvolvimento exógeno e que atendia sobretudo aos interesses do capital privado nacional e internacional com forte influência da geopolítica bipolar. A implementação de um amplo programa de construção de grandes obras rodoviárias no espaço amazônico com o intuito de integração territorial e de fixação populacional – com a construção da Rodovia Transamazônica (BR-230), Manaus-Porto Velho, (BR 319), Cuiabá-Santarém (BR-163), da Perimetral Norte (BR-210), entre outras – rasgou a floresta, provocando enormes e irreparáveis danos ambientais e a violação dos direitos dos povos tradicionais. Tal quadro permite que tracemos uma relação direta entre a imposição de um projeto desenvolvimentista da ditadura para o espaço amazônico e a utopia autoritária levada a cabo pelos militares, que consistia não apenas na “crença de que seria possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, ‘subversão’, ‘corrupção’) tendo em vista a inserção do Brasil no campo da ‘democracia ocidental e cristã’” (Fico, 2004, p. 33) como também em uma estratégia de desenvolvimento econômico verticalizada e autoritária que colocava os interesses do Estado acima dos direitos individuais e que recorria sistematicamente à violação desses direitos a fim de concretizar suas ações de governo. Nesse sentido, a “utopia autoritária” tinha por premissa a crença da superioridade militar sobre os civis, o que conferia às Forças Armadas a responsabilidade efetiva sobre os rumos do País e um certo compromisso ético e moral originado de sua condição. Para Fico, a crença nessa superioridade militar estava baseada em duas dimensões: a primeira de “viés saneador” e a segunda de “base pedagógica”. Por meio da primeira, cabia aos militares o saneamento do organismo social, “extirpando-lhe fisicamente o ‘câncer do comunismo’” (Fico, 2004, p. 38). Essa tarefa de erradicação da oposição e do dissenso representados pelo “comunismo” e pela “subversão” cabia à polícia política, ao aparato repressivo e de espionagem, de censura à imprensa e ao corpo jurídico. A segunda dimensão, de base pedagógica, buscava exercer uma prática educativa que 149
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partia do pressuposto de que a população brasileira era despreparada, não sabia votar e que, portanto, necessitava que lhes fosse dada orientação. Luis Felipe Miguel também observa a existência dessa crença na superioridade moral e técnica dos militares, que estariam cientificamente preparados para oferecer soluções a todos os problemas nacionais. Esse discurso seria um dos elementos que justificariam a intervenção direta dos militares na gestão da vida nacional uma vez que, diferentemente dos políticos profissionais, não estariam presos aos grupos que os apoiam, tornando-os incapazes de adotar medidas firmes. Para o autor, a legitimidade dos governos militares não estaria vinculada à soberania popular pois sua legitimidade se condiciona à adequação aos “objetivos nacionais permanentes”. E, de acordo com a doutrina, são as próprias “elites” que interpretam as aspirações nacionais e fixam tais objetivos (Miguel, 2002, p. 44). Com esse intuito, a partir de 1964, foi criado um aparato repressivo “fundamentado na perspectiva da ‘utopia autoritária’, segundo a qual seria possível eliminar o comunismo, a ‘subversão’, a corrupção etc. que impediriam a caminhada do Brasil rumo ao seu destino de ‘país do futuro’” (Fico, 2004, p. 36). Assim, o SNI foi criado ainda em 1964 e, gradualmente, foi se estabelecendo um aparato jurídico autoritário que conformaria as bases legais e buscaria a legitimação do regime. Para Carlos Fico, a “utopia autoritária” pode ser considerada como sendo o “cimento ideológico que agregava todas as instâncias”, sendo uma forma menos elaborada e intelectualmente diluída da Doutrina de Segurança Nacional (Fico, 2004, p. 38). Recentemente, vivenciamos a retomada desses discursos de “integração” da Amazônia e de aproveitamento de suas riquezas naturais. Sobretudo desde as jornadas de junho de 2013, verificamos o crescimento de uma onda reacionária e fortemente autoritária que canalizou um discurso fascista, marcado por fortes ataques à Constituição e aos Direitos Humanos, pela tentativa de reabilitação da ditadura militar e por ataques agressivos às instituições. Foi nessa onda reacionária que, durante a eleição de 2018, uma eleição marcada pela forte utilização de fake news e pela cada vez mais evidente interferência do Poder Judiciário no processo eleitoral, foi eleito o presidente Jair Messias Bolsonaro, um parlamentar de pouca projeção ao longo de toda a sua carreira política e que se notabilizou pela defesa da ditadura militar, pela apologia à tortura e pelo envolvimento em constantes polêmicas. Sua eleição teve como pano de fundo o reavivamento de um discurso anticomunista, a defesa de valores da “família tradicional” e a busca pela identificação com a ditadura militar – tido como um período de prosperidade e segurança e livre da corrupção. Para a Amazônia, verificou-se a retomada do discurso “integracionista” e “desenvolvimentista”, onde os 150
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órgãos de fiscalização foram sucateados e desestimulados a fim de promover a ocupação da região e o desenvolvimento do agronegócio e da mineração – com reiterados chamamentos para a exploração do nióbio da região como forma de alavancar o desenvolvimento nacional. Buscando compreender as ações e discursos do governo de Bolsonaro a partir da discussão apresentada aqui, indicaremos algumas características que remetem à ideologia de uma “utopia autoritária” e que estão presentes nas falas, posturas e atitudes dos atuais governantes. Considerando o espaço de que ainda dispomos, nos propusemos a apenas indicar alguns pontos de análise. Como destacado ao longo deste tópico, é elemento constituinte da “utopia autoritária” a crença na superioridade técnica e moral dos militares, a quem caberia certo compromisso ético e moral de efetivar o saneamento social do País. Dada a sua condição corporativa e sua formação, eles estariam preparados para oferecer melhores soluções aos problemas nacionais do que os políticos profissionais, presos a interesses políticos e suscetíveis à corrupção. A maciça presença de militares em postos chave do poder executivo, certamente, um sinal da permanência de elementos da mencionada utopia autoritária, se acentuou ao longo do último ano de governo de Bolsonaro, o que apontou para um possível agravamento da ameaça à democracia e às instituições. Esse processo de militarização da política – atípico em tempos de democracia – é facilmente perceptível ao observarmos a forte presença de militares no governo. Nove pastas ministeriais chegaram a ser ocupadas por integrantes das Forças Armada. Além disso, os pontos de comando das diretorias das principais empresas estatais brasileiras (como Petrobrás, Eletrobrás, Correios, Infraero, Casa da Moeda, Ebserh...) estiveram nas mãos de membros das Forças Armadas. Embora a militarização dos ministérios e de áreas estratégicas do governo fosse justificada pela suposta competência e pela formação técnica desses militares, o que vimos foi uma clara tentativa de utilização da “credibilidade” das Forças Armadas para trazer legitimidade ao governo Bolsonaro e, ao mesmo tempo, para sinalizar o apoio das armas ao governo diante de constantes críticas, denúncias e crises institucionais. A militarização do governo se constituiu em possível ameaça à democracia no País e motivo de aprofundamento da instabilidade na relação entre os três poderes da República. No que diz respeito às posturas do governo em relação à Amazônia, percebe-se a retomada de um discurso conspiracionista que se utiliza do argumento da cobiça internacional sobre os espaços amazônicos com o intuito de justificar uma ocupação que atenda aos interesses do agronegócio, da pecuária e da mineração. A nomeação do vice-presidente, o general 151
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Mourão, para o Conselho Nacional da Amazônia em meio a uma crise internacional motivada pelas queimadas na Amazônia, foi mais um capítulo do processo de militarização da política que veio em meio a acusações de que ONGs dedicadas a lutar pela preservação do meio ambiente estariam atendendo a interesses internacionais com o intuito de ocupar a Amazônia. Os argumentos conspiratórios de internacionalização da Amazônia serviram como pretexto para a promoção de uma ocupação desordenada e predatória dos espaços amazônicos e para o afrouxamento dos mecanismos de proteção ambiental. Às vésperas da reunião do G20, o general Augusto Heleno, Chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo, afirmou: “A estratégia de preservar o meio ambiente do Brasil para mais tarde [outros países] explorarem. Está cheio de ONG por trás deles, ONGs sabidamente a serviço de governos estrangeiros” (Wenzel, 2019). No entanto, tal nacionalismo é seletivo pois, enquanto denuncia as ameaças de internacionalização da Amazônia brasileira, por outro lado, propôs aos Estados Unidos uma parceria para a exploração da floresta. Ou seja, tal discurso conspiratório serve de escudo e alicerce para a exploração das riquezas da região pelo capital privado – nacional ou internacional. Outros elementos que consideramos parte do entulho autoritário da ditadura militar não serão aqui analisados mais detidamente. No entanto, gostaríamos de mencionar algumas dimensões para posterior análise: a) a existência de um discurso baseado na noção de “segurança nacional”, que elege grupos de oposição ao governo como inimigos internos, retomando o discurso do anticomunismo; b) utilização de narrativas que reabilitam a ditadura, que estabelecem uma disputa pela memória desse período histórico que se caracteriza pelo negacionismo relacionado às violações dos direitos humanos e atrocidades cometidas pelo e em nome do Estado e, ao mesmo tempo, constroem uma imagem de um tempo de prosperidade e segurança; c) tentativas frequentes de estabelecer mecanismos de controle do Executivo sobre o Legislativo e sobre o Judiciário e o estabelecimento de um conflito latente entre os três poderes da República cuja intenção é criar as condições para uma supremacia do Executivo e de uma relação conflituosa com a imprensa e com os meios de comunicação, que se reflete nos frequentes entraves colocados sobre o trabalho de veículos de comunicação e jornalistas que realizam uma cobertura mais “independente” e mesmo em tentativas de censura e de cerceamento à livre expressão. A Amazônia segue sendo objeto da ganância de grupos que, à revelia das questões ambientais e às custas dos direitos dos povos indígenas e ribeirinhos que têm seu modo de vida essencialmente ligado aos diferentes espaços amazônicos, seguem impondo uma exploração irresponsável e predatória que coloca em risco todo um ecossistema. Sob governos autoritários, 152
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esta sanha depredatória ganha legitimidade e, na certeza da impunidade, se torna ainda mais nociva. A Amazônia não é um espaço vazio, um inferno verde e muito menos um deserto! No entanto, parece que tem muita gente interessada em transformá-la em um oásis de seu próprio enriquecimento. Referências
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CAPÍTULO 14 THE JUDGE'S DILEMMA: THE JUDICIALIZATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE LIMITS OF THE STATE Layde Lana Borges da Silva
Introduction
The fundamental rights are the result of the historical evolution that consolidated the need for people to enjoy protection against the will of their own state. Rights that previously belonged only to the sovereign entity, have been attributed to individuals. The Federal Constitution of 1988 expanded the values derived from the human person dignity and elevated life, health, integrity to the status of superior legal assets, bringing within it a substantial range of social rights (Brazil, 1988). The concretization of these rights is a challenge faced daily, given the enormous distance between what is the norm and what is understood as a social fact. In this context, the Judiciary has been urged to take responsibility for the enforcement of such rights and guarantees - when provoked in a jurisdictional area. However, not infrequently, it’s observed a invasion committed by the judiciary, in the competences of the Legislative and Executive Powers, setting precedent jurisprudence that, in theory, go beyond the limits of the current rules, under the justification of concretizing the constitutional normative values, act that was conventionally called judicial activism. In this panorama, the present paper craves to evaluate the legitimacy of the Judiciary’s action through it’s judgements; Combining statal forces, primacy of power separation and check and balances mechanisms, as well as the possible consequences of exorbitance, exercised by typical attributions of the Judiciary Power. Initially, the analyzed cases were those submitted to judicial analysis in which activism was employed by Brazilian courts, under perspective the 155
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“juridical comprehensive” or “juridical interpretative” for complex questions investigation (Gustin; Dias, 2010, p. 28-29). Then, it addresses cases where it was understood that a power invasion was committed by the judiciary, overtaking the spheres of competence reserved to the Legislative and Executive branches, regarding the effectuation of fundamental rights, as well as the practical consequences for the public treasury. The judicial activism versus invasion of the sphere of decision and political agenda
The judiciary’s field of action is guided by the principle of power separation, sanctioned in classical antiquity which finds its most distant antecedent in Aristotle, who, in the reading of Dallari, considered unfair and dangerous to attribute the exercise of power to a single individual (Dallari, 1996, 2019). Although the nomenclature given to the principle suggests the opposite, remember that the State power is sole and indivisible, making it clear to the author that the unity of power is not interrupted only by the fact that several organs exercise sovereignty and power, this phenomenon being understood as just a function division. When examining the applicability of the principle of sovereignty today, changes in the conception of the Welfare State is occurred (Schmitt, 2008), making the principle more flexible, often reaching the point of authorize the judiciary in the exercise of its constitutional design, the exercise of atypical legislative activity under the justification of optimizing or complying with the commands of the Constitution. Emerge the “sovereignty of jurisdictional science” (Costa, 2021, p. 50). In the text "The limits of neoliberalism: Authority, sovereignty and the logic of competition" written by W Davies, the author examines and critiques the inadequacies and constraints of the neoliberal ideology. Davies asserts that neoliberalism excessively concentrates on economic factors, neglecting the crucial normative aspects of society. The author explores the influence of neoliberal thinking on the judiciary system, revealing the inherent drawbacks within neoliberalism. Such revelations form the basis of a critical analysis of neoliberalism's approach towards authority, sovereignty, and the logic of competition. The text poses a challenge to the normative structure of socio-economic systems and ask to readers to contemplate the extent to which neoliberalism fails in addressing fundamental societal issues (Davies, 2014). The Judicial Power applies the law in private litigation, oversees the Executive and Legislative branches, ensures its self-governance, protects fundamental rights, and guarantees the Democratic State of Law (Fachin, 2009). Conversely, the great question is: how social rights can be made more effective avoiding falling into the pitfalls of judicial activism. 156
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In "The Origin and Current Meanings of Judicial Activism" by Kmiec (2004, p. 1441-1477), the following five definitions of judicial activism can be found: a) The use of judicial power to invalidate or alter decisions made by the political branches of government. b) The subjective interpretation and application of constitutional provisions and statutes by judges based on their personal beliefs and preferences. c) The creation of new rights or expanding existing rights beyond what is explicitly stated in the Constitution or statutes. d) The engagement of courts in policymaking, thereby intruding into the domain traditionally reserved for the legislature. e) The prioritization of social or political goals over legal principles in judicial decision-making.
These definitions capture different aspects of judicial activism, demonstrating the different perspectives and understandings of the term in North-American law. Judicial activism can be defined through the following characteristics: “a) as a result of the exercise of the power to review (meaning, to control the constitutionality) acts of the other powers; b) as a synonym of greater interference by the Judiciary (or greater volume of judicial demands, which, in this case, would configure judicialization); c) as an openness to discretion in the decision-making act; d) as an increase in the judge procedural management capacity, among others. It should be noted that, although it is possible to identify these tendencies in the Brazilian doctrine, it’s difficult to find what could be called pure positions. In fact, what is intended to say is that, in most cases, these approaches end up mixing and becoming confuse, without it being, therefore, a theoretical commitment to define what activism is” (Tassinari, 2011, p. 22-23).
This accumulation of attributions translates into an judicial exercise, in which the magistrate creates the rules that will be interpreted and applies them to the specific case, independently and sometimes, disconnected from the popular will, manifested by the legislative action. Mancuso with Charles Evan Hughes’ lessons (then Governor of the State of New York and, later, member of the Supreme Court of the United States) assert: “At the current stage of the balance of powers in Brazil, it can be said that the legal norm, formally approved by the Parliament, sanctioned and enacted by the Executive, gains its real 157
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meaning (extension-comprehension) from the pronouncement resulting from it settled in the Courts, especially those of the Federation - STJ and STF - following the unitary theory of legal formation previously mentioned, and the well-known assertion of American Justice Charles Evans Hughes ‘we are under a Constitution, but the Constitution is what the judges say it is, and the judiciary is the safeguard of our liberty and our property under the Constitution’. In our view, this is the contemporary sense of the completeness of the legal system, encompassing (and making interact) both legislated and adjudicated norms” (Mithchell, 2018, p. 946).
The fluidity between politics and justice boundaries is not exclusive to the Brazilian system, since it was already applied in other countries by the respective Constitutional Courts: In Canada, the Supreme Court was requested to express its opi-nion on the constitutionality of the United States to execute tests with missiles on Canadian ground. In the United States, the last chapter of the 2000 presidential election was written by the Supreme Court, in the Bush v. Gore. In Israel, the Supreme Court ruled on the compatibility, according to the Constitution and international acts, by building a wall on the border of Palestinian territory. Turkey’s Constitutional Court has played a vital role in preserving a laic State, protecting it from the fundamentalism Islamic advance. In Hungary and Argentina, wide-ranging economic plans have had their legitimacy decided by the highest courts. In Korea, the Constitutional Court restored the mandate of a president who had been removed from duty by impeachment (Barroso, 2009, p. 1-2).
In this aspect, it is important to make a brief distinction between what is understood by judicial activism and what is mere judicialization, stating that the first – act of will – is a consequence of the second – social fact – but it’s not to be confused with. In the Brazilian scenario, activism arose in order to make the legal norm more flexible to meet society’s demands. The Federal Supreme Court, when considering the possibility of loss of mandate due to party infidelity, at the period of the ADI 3999/DF (2008), judgment, decided, constitutionality by the loss of the elective role when the disaffiliation was unjustified, because “em um contexto excepcional e transitório, tão somente como mecanismo para salvaguardar a observância da fidelidade partidária, enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar” and that “não faria sentido a Corte reconhecer a existência de um direito constitucional sem prever um ins158
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trumento para assegurá-lo”. The Court indicaed that the legitimate forum for discussion would be the Legislative Branch. Subsequently, in the judgment of ADI 5081/DF (2015), the Court reviewed the position previously applied and considered partial unconstitutionality, using the reference resolution only for the elective positions provided by the proportional system. Oliveira and Pontes (2021) teach that, in the majoritarian system, the candidate with the highest number of votes is elected, and its eventual revocation violates popular sovereignty. Party infidelity only applies to positions whose election is proportional. In the judgment of ADPF 347/DF (2015), the Supreme Federal Court, interfered in the executive and legislative attributions and recognized the situation of “Unconstitutional State of Affairs” (USoA) in the Brazilian prison system due to the identification of a massive and persistent violation of fundamental rights, originated by structural failures and bankruptcy of public policies, whose modification depends on comprehensive normative, administrative and budgetary measures. Therefore, besides parameters directed at the magistrates itself, such as the justification for not applying several precautionary prison measures, the fund release from the National Penitentiary Budget was determined to finance the modernization and improvement of activities and programs in the Penitentiary System, prohibiting the Union of carrying out new contingencies, although the existence of PLC nº 25, of 2014 in progress at the Congress, which already had provision in this sense and was waiting for deliberation. Some brazilian authors such as Van Der Broocke and Kozicki (2018), Streck (2015) and Campos (2015, p. 171), point to the USoA as a new modality of judicial activism. The last author mentions the activism of the Federal Supreme Court in relation to the public budget. Verbicaro highlights that there are authors who criticize activism because they: “interpret openness and judicial discretion as a litany of law anarchic and without criteria that subverts the Rule of Law in a State of subjection to discretion and the judge's mood, pointing out the risk that, with the opening, the law will be instrumentalized to legitimize unfair and unreasonable practices, which is a healthy concern” (2017, p. 20).
Analyzing the previously mentioned hypotheses, it is concluded that the active interpretation of the rule had a significant impact on the public budget – as it determines the prison fund resources application – and influences the electoral process. 159
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Another great example of judicial activism manifestation in the fundamental rights field – which will be used as the main instrument for the analysis in this study – is the growth in the number of decisions inside the state and federal Court that condemn the Union, the State itself, the Municipality – or all of them – to pay for medicines and therapies that are not included in the lists and protocols of the Health Ministry, Municipal and State Secretariats; in some cases, the required treatments are experimental or can only be exercised outside de country. Unlike the Northern American reality, the constitution that governs the Brazilian legal system is not concise, which is why it is concluded that the original constituent’s intention was not to confer on the judge the task that he often takes for himself, generte the norm that allows the exercise of fundamental rights. On the contrary, especially in the health system protection sphere, the constituent was concerned about equipping the norm in such a way that it reserved Section II, Chapter II, Title VIII, which deals with the social order, to make it explicit, obliging the allocation of a percentage of the revenue of the federated entities for application in public health actions and services. Also, shortly after the Federal Constitution came into force, the Organic Health Law (Law nº. 8.080/90) (Brazil, 1990) was approved, with the goal of establishing the structure and operational model of SUS, proposing its form of organization and functioning. As if this weren’t enough, the ordinary legislator edited a wide range of laws, providing free distribution of medicines and materials needed by people with diabetes (Law 11.347/2006); on the prevention policy and comprehensive health care for people with hepatitis (Law 11.255/2005) on the free distribution of medicines to people with HIV and AIDS (Law 9.313/1996), among many other current and valid laws (Gaspardo, 2013). For its part, the Executive Branch, while exercising its regulatory power, also issued several ordinances, standardizing medicines, instituting clinical protocols, distributing competencies through bodies that compound the Unified Health System, organizing the services provided to the system users, all in order to equip the legal framework and provide the judge conditions to assess the judicialized matters under the legal guidelines. In this perspective, although it is not unknown that there is often a gap between the popular will, or groups of interest affected by an adversity, and the political agents, therefore, a quicker way to solve the problem immediately, it's to seek solution in judicial pretension; It’s considered to be unjustified the intervention in public policies, under the pretext of an axiological gap, whereas the action concerns the legislative – the one that is legitimized by popular vote – under vilipendium penalty to the budget limits and for principle of power separation violation. 160
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At this point, it is important to emphasize that in the complex relationship to be considered, it’s observed the individual right in regarding the collective, taking into account the finitude of the available resources, that are funded by the entire population, and not the right to health versus budgetary principles and reservation of the possible as it might appear in a cursory analysis. Activism is a necessary evil that must be managed in precise doses (Verbicaro, 2017). Furthermore, what is certain is that, in practice, specifically about actions involving the search for non-standardized remedies in the SUS range, there is no firm criterion that address which state entity should be responsible for providing each type of medicine treatment, which leads to redoubled efforts and defenses involving the Union, States and Municipalities, in other words, unnecessary expenses and unpredictable budget. Finally, it cannot be ignored that, however qualified the judges may be, the judiciary does not have the knowledge or the expertise required to institute public health policies, neither it has any concrete way to evaluate whether a certain drug is or not actually necessary for health and life, or even to guarantee that the resources used to fulfill the claim in certain specific case could not be better allocated, reaching an exponentially bigger number of users, if directed to other health policies. It is worth clarifying that the inclusion of remedies in the official list, called “RENAME”, National List of Medicines, is preceded by a complex and multidisciplinary study, as it’s frequently updated by the Health Ministry through a committee, whom scientifically evaluates the thera¬peutic options available on the market and verifies the efficacy and safety of the drugs that will be added to the list, taking into consideration the best cost-effectiveness relation and greater benefit-risk, all according with the guidelines established by Law nº. 12.401/2011 (Brazil, 2011). In this sense, Barroso also assesses the need for a judicial provision that is aware of the costs and benefits of the judicial decision in the public system: In 2007, for example, in the State of Rio de Janeiro, R$ 240.621.568,00 was spent on the Pharmaceutical Assistance programs- cipher above the R$ 102,960,276.00 that was invested in basic sanitation. Such an option would not be justified, as it is known that this policy is significantly more effective than the other regarding health promotion. In fact, Brazilian jurisprudence on the granting of medicines would be based on an individualistic approach to social problems, when an efficient management of scarce public resources must be conceived as a social policy, always guided by the evaluation of costs and benefits (Barroso, s.d., p. 26).
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What can be observed, is that, although there is a large portion of meaningful interventions to ensure fundamental rights already regulated in infra constitutional law, there has been several decisions that appear to have a certain political and ideological nature, especially in terms of medi¬cines and therapies, which puts at risk the continuity of public health po¬licies, disrupting administrative activity and compromising the allocation of scarce public resources. In this context, in the health actions field, it is necessary, in order to establish parameters to rationalize and standardize the judicial performance, to make a careful evaluation of the institutional capacity itself, aiming to avoid that the judiciary invades areas that are not compelled to it system. Within the scope of STF, the RE566471/RN (Brazil, 2015) is being deliberated in the general repercussion system, where the obligation to supply high-cost medication is discussed, amongst RE 657718/MG (Brazil, 2018), that estimates the mandatory remedy supply which do not have a registration in the National Health Surveillance Agency - ANVISA. Those lawsuits were filed in 2007 and 2011, respectively, and are currently pending judgment – being included in the agenda for May 22, 2019. Regarding this last claim, it is important to clarify that the Superior Court of Justice, in the judgment of REsp 1712163/SP (Brazil, 2018), affected under the systematic of repetitive appeals, firmed the un-derstanding that health insurance institutions are not obliged to supply medicines not registered by ANVISA. One of the arguments that supported the decision is based on the fact that the importation of this supplies, without prior registration, constitutes an infraction of sanitary nature; the Minister rapporteur, Moura Ribeiro, concluded that, by logical corollary, it would be impossible for the Judiciary to impose on these institutions actions that could violate the sanitary norms; under the principle of legality violation penalty, also mentioning that the referred Court has repeatedly declared the validity of the foreseen norm stated by the Penal Code; art. 273, which criminalizes the importation of medication without proper re¬gistration in ANVISA. The Superior Court of Justice, on April 24, 2018, considered REsp 1657156/RJ (Brazil, 2018), affected under the rite of art. 1.036, of the Civil Procedure Code (Brazil, 2015), and established as premises for unpredicted re¬medies supplies through SUS de following normative acts: (I) the demons¬tration of indispensability or necessity of the medication in the treatment, through a detailed and reasoned medical report, issued by a doctor that assist the patient, as well as of the ineffectiveness, of the treatments avai¬lable in SUS; (II) proof of the hypo sufficiency of the citizen who requires the drug, impling that its acquisition would compromise his own subsis¬tence and/or of his family nucleus and, finally, (III) that the 162
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intended drug has already been used and approved by ANVISA. The Court also held the modulation effects of the binding judgment (article 927, item III, of CPC) (Brazil, 2015), in the sense that the criteria and requirements stipulated will be required only for the processes that are distributed starting from the con¬clusion of that judgment. From the thesis analysis, it can be inferred that there wasn’t a concern towards the financial possibility of supplying medicines, or even towards the impact these parameters would bring long-term-wise. The guidelines do not make any distinctions for drugs considered to be high cost, nor was the rate of response to the medication provided taken into consideration as one of the decision criterion. The substantial resources allocation to a single patient, inevitably implies that the resour-ce is not going to public health policies, which would certainly serve a greater number of users. In the Santa Catarina Court of Justice field, however, the Court’s Group of Public Law Chambers has established better parameters for the provision of non-standard drugs non-standard drugs when deciding on the IRDR Repetitive Demand Resolution Incident n. 0302355.11.2014.8.24.0054/5000 (Santa Catarina, 2016), consolidating the need to distinguish whether the deducted plea aims to guarantee the existential minimum, which, according to the judgment, are the measures related to the human-person dignity. Thus, the application of the methodology for weighting fundamental fair values was necessary, in order to measure an eventual collision of antagonistic principles and factual circumstances of the case, besides the reserve of the possible clause; parameters that demonstrate the organ’s sensitivity towards the faced reality and a greater propensity to refuse high-cost drugs and treatments, considering the factors here addressed. In this judgment, the thesis remained as follows: For the judicial provision of medicine or treatment included in the SUS list, the following requirements must be combined: (1) the need for the drug pursued and adequacy to the disease presented, attested by a doctor; (2) the demonstration, by any means, of impossibility or obstacle to obtaining it through ad-ministrative means (Theme 350 of the STF). 1.2 For the judicial granting of a drug or procedure not standardized by SUS, the following are essential requirements: (1) the effective demons-tration of financial under-sufficiency; (2) lack of public policy that treats the disease in question or its inefficiency, added to the proof of the remedy need by all means, including through medical report; (3) in the demands directed to elementary he¬alth and life care, linked to the notion of human dignity (exis¬tential minimum), other digressions are dispensed; 163
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(4) in the demands clearly aiming to achieve the maximum desirable, it is necessary to apply the methodology of weighting the fun¬damental fair values; weighing up any collision of antagonis¬tic principles (proportionality in the strict sense) and factual circumstances of the specific case (necessity and adequacy), besides to the possible reserve clause (Brazil, 2018).
From this panorama, it is noticed that the judicial activity must keep parsimony and, above all, limit its performance avoiding to overtake the legislative and administrative competences. In summary, if there is no law or governmental action implementing the fundamental right guaranteed by the Constitution, the Judiciary must intervene in a supplementary way. On the other hand, if there are already laws and administrative acts formulated, that are not being properly applied, it will also be plausible for the Judiciary to intervene. However, if there are laws and administrative acts carrying out the constitutional plan and being regularly equipped, judicial interference will configure as violation of the separation of powers. In contrast, the use of self-containment proves to be the best choice when the judge is faced with issues that directly interfere in the promotion of public policies, or when requested to analyze issues that go beyond the strict judical validity of acts and tend to mitigate the democratic power of the Legislative Branch. That is because, any argument that a certain law is outdated, that does not correspond to the social changes suffered since its conception, or even that it is “unfair”, can only be changed through its own legislative process, otherwise, in a context of increasing judicialization of fundamental rights, the regulation of all aspects of life in society, including its regency, will be relegated to the Courts. Final considerations
From all of the addressed, it is extracted that any fundamental right inscribed in the Constitution becomes enforceable, including upon filing of a judicial demand against the State. However, it is possible that a fundamental right would required to be weighed against others or even constitutional principles, a situation in which the interpreter, unlike what happens with the laws, must poise the rule taking into account the factual and legal limits, preserving its essential nucleus and carrying out a prognostic analysis of the implications of that decision to society. It is in this line the difficult mission of the magistrate lies on, which, as has been argued, must abstain from personal feelings and stick to a more utilitarian view, considering the available resources. That’s because, as it’s known, the law application is not dissociated from the political reality, the effects it produces on the social environment, the expectations of the citizens, nor from the budget limits. 164
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In this context, judicial activism expresses an energetic attitude of the interpreter, an extended way of translating the Constitution, enhancing the meaning and scope of its rules, often going beyond what the ordinary legislator wanted. In summary, it is a mechanism to deviate from the majority political process, when it has proven to be insufficient or unable to provide consensus. The risks of this system involve the swindle of the democratic process, the attribution of legislative character to justice and the institutional inability of the Judiciary to opine in certain matters, especially if they culminate in other fields, as seen. In this regard, specifically analyzing the issue that involves actions directed at the remedies provided by the State, there is an evolution in jurisprudence, that recognized the need to establish parameters for granting a better solution for these demands. However, although the thesis is fixed in the context of a repetitive appeal by the Superior Court of Justice, is moving towards a decisions standardization and, consequently, towards greater legal certainty on the subject, given that the involved parts would be able to predict the outcome of their claims, an ideal denominator has not yet been reached, where scientific and budgetary criteria are effectively used to evaluate the possibility of providing drugs and treatments, especially in the cases where the infirmity cure is considered high-cost and not foreseen by the Ministry of Health, the Secretariats State and municipal lists. Furthermore, it is warned that due to the parameters generality set in the thesis leaked by the Superior Court of Justice, an unrestricted application of the statement, disregarding the particularities of each case, can lead to teratological decisions. At this point, the Court of Justice of Santa Catarina worked better; setting standards when the analysis pointed out an incident of repetitive demands, showing that it is permeable to the reality faced today and making the distinction between the minimum and the maximum existential, guiding criterion for granting or denying the requested drugs. However, despite the aforementioned jurisprudencial evolution, analyzing all the arguments, it appears that the Judiciary Power lacks le-gitimacy to subrogate itself in the activity of the Legislative and Executive Powers, under penalty of damaging the system of checks and balances, inherent in the division of powers. In other words, the freedom of the judge when acting as an interpreter of the Constitution must be limited by a thoughtful and self-controlled analysis of what actually is stated in the norm, and not of what is intended to be extracted from it, especially when the other powers, in their respective spheres of competence, are already making efforts to implement the intended right, despite the judge’s personal vision and sense of justice. 165
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CAPÍTULO 15 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: COMPATIBILIZAÇÃO DO MEIO AMBIENTE, ECONOMIA E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Adriana Vieira da Costa Thais Bernardes Maganhini
Mandado de otimização – princípio da dignidade da pessoa humana
As transformações sociais ocorridas nas sociedades atingem diretamente o Direito, isto é, quaisquer mudanças de comportamento, de pensamento influenciam o mundo jurídico. Tratar de um assunto tão relevante, como o é os Direitos Humanos, não é tarefa fácil, tendo em vista suas inúmeras implicações no cotidiano das pessoas, além de que os Direitos Humanos se relacionam de forma direita com a dignidade da pessoa humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, protege e assegura direitos a todos os seres humanos, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, em face de que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Assim, pode-se considerar o princípio da dignidade da pessoa humana como um metaprincípio, um modal deôntico, dentro da Constituição Federal. Mudanças no âmbito da estrutura do Estado, dos modelos econômicos liberais, sociais e neoliberais contribuíram decisivamente para a busca de um desenvolvimento econômico que visasse de forma mínima à preservação do princípio da dignidade da pessoa humana. 169
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Desse modo, foram criadas ideologias de intervenção do Estado, visando a preservação dos princípios constitucionais econômicos e ambientais, em busca de efetivar-se o Estado Democrático de Direito e a República Federativa do Brasil. Tendo em vista a busca pelo crescimento econômico de modelo capitalista não intervencionista, gerou-se um desenfreado aumento da degradação ambiental, isto é, pregou-se uma economia que visava somente o lucro, mesmo que de forma canibalesca, esquecendo-se de preservar os direitos sociais dos indivíduos, bem como o meio em que os seres humanos se desenvolvem. A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece, nos Arts. 3º e 4º, os objetivos fundamentais da ordem constitucional que objetiva a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e igualitária, pois, com a igualdade conseguirá obter a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, além de conseguir a promoção do bem para todos. E, ao alcançar esses pontos, conseguirá obter uma dignidade plena para todos os indivíduos. O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se assentado em vários artigos, no decorrer de todo Texto Constitucional, demonstrando que o Poder Constituinte, voltado para os valores trazidos do seio da sociedade, já que, afinal, o legislador representa o povo, por meio do sufrágio universal, interagindo com essa sociedade, contribui para a constante manutenção do sistema jurídico, aberto e sempre pronto para receber os valores sociais, transformando-os em regras e princípios. A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca e inerente do ser humano, sendo, portanto, irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica a própria pessoa humana. Sendo assim, não há como a pessoa se desfazer dessa qualidade, em face de ser a mesma a ela intrínseca. Ingo Wolfgang Sarlet também se filia ao entendimento de que a dignidade seja inerente ao ser humano, dissociado, portanto, das ocorrências externas. Além disso, como já visto, não se deve olvidar que a dignidade independe das circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de sorte que todos – mesmo o maior dos criminosos são iguais em dignidade. Aliás, não é outro o entendimento que subjaz ao art.1º da Declaração Universal da ONU (1948), segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade (Sarlet, 1998, p. 104).
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Há, ainda, o entendimento de que a dignidade da pessoa humana não seja considerada somente como algo inerente a ela, em face da existência de um sentido cultural, por ser decorrência do trabalho de diversas gerações, sendo assim, pertencente à humanidade como um todo. A dignidade deve ser considerada em sua universalidade, pois todos são iguais em direito (como se verifica da Declaração Universal dos Direitos Humanos) não devendo deixar de levar em conta, todavia, as diferenças existentes entre os homens, pois “a pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos os mesmo, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.” (Arendt, 2002, p. 16). Para que se possa compreender, efetivamente e facilmente, o que seriam os direitos humanos, é suficiente mencionar que tais direitos correspondem a necessidades essenciais da pessoa humana. Tratam-se daquelas necessidades que são iguais para todas as pessoas e que, portanto, devem ser atendidas para que a pessoa possa viver com dignidade. Dessa maneira, tem-se como exemplo principal que a vida é um direito humano fundamental, porque sem ela a pessoa não existe. E, por tal fato, a preservação da vida é uma necessidade de todos os seres humanos. É claro, todavia, que a vida não é o único direito fundamental, podendo citar, ainda, outras necessidades essenciais (para que a pessoa viva com dignidade), como a alimentação, a saúde, a moradia, a educação, por exemplo. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, ao comentarem o referido Art. 1º, no tocante à dignidade da pessoa humana, apontam que este princípio é fundamento axiológico do próprio Direito, sendo primordial a proteção do ser humano, o qual é sujeito e, nunca objeto de Direito. Trazem, como embasamento para a análise, trechos de outros autores, como do Papa João Paulo II; tendo apontado que: Os valores fundamentais encartados na estrutura político-jurídica da Carta Magna, refletem-se em princípios gerais de direito quando informam seus elementos e privilegiam a realidade fundamental do fenômeno jurídico que é a consideração primordial e fundamental de que o homem é sujeito de direito e, nunca, objeto de direito. Esse reconhecimento principiológico se alicerça em valor fundamental para o exercício de qualquer elaboração jurídica; está no cerne daquilo que a Ciência do Direito experimentou de mais especial; está naquilo que o conhecimento jus-filosófico buscou com mais entusiasmo e vitalidade: é a mais importante consideração jus-filosófica do conhecimento científico do Direito. É o fundamento axiológico do Direito; é a razão de ser da proteção fundamental da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da respon171
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sabilidade que cada homem tem pelo outro (João Paulo II, Evangelium Vitae, Edições Paulinas, 1995, p. 22). Por isso se diz que a justiça como valor é o núcleo central da axiologia jurídica (Antonio Hernandes Gil, Conceptos Jurídicos Fundamentales, Obras Completas, v. I, Madrid, Escalpa Calpe, 1987, p. 44) e a marca desse valor fundamental de justiça o homem, princípio de razão de todo o Direito (Nery Junior; Nery, 2006, p. 118).
Referidos autores ressaltam, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio fundamental do Direito, sendo, o mais importante, o primeiro. Esse princípio é a razão de ser do próprio Direito, sendo que se bastaria para organizar de forma estruturada todo o ordenamento jurídico. Além disso, ao se comprometer com a dignidade da pessoa humana, o Estado brasileiro se compromete, também, com a vida e com a liberdade de todo ser. Isso se justifica porque os direitos humanos se desdobram na sua conceituação e magnitude, como se verifica com os direitos individuais, sociais, coletivos e difusos; e, primordialmente, se universalizam, porque “sua natureza e projeção transcendem fronteiras geográficas e sistemas de governo, ideologias e teorias econômicas. Situam-se acima de tudo.” (Garcia, 2004. p. 140). Assim é papel do Estado, como um todo, orientar-se de modo a preservar a dignidade do indivíduo, assim como dar condições para que a dignidade possa ser efetivada. A dignidade encontra-se emoldurada pelo senso de justiça, devendo, portanto, ser sempre adotada pelo operador do direito. José Afonso da Silva pondera que a dignidade da pessoa humana se encontra arraigada no seio da sociedade, sendo que, portanto, não se trata de uma criação constitucional. A Constituição busca os valores da sociedade e os eleva ao patamar constitucional, tornando-os – aqui neste caso o princípio da dignidade da pessoa humana – valores que servirão de vetor para a mesma sociedade e para o Estado, como um todo, ou seja, valores absolutos que não permitem a flexibilização dos mesmos. [...] a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a sua existência e a sua eminência, transformou-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída num Estado Democrático de Direito. [...] Em conclusão, a dignidade da pessoa humana constitui um valor que atrai a realidade dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões, e, como a democracia é o
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único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que signica dignificar o homem, é ela que se revela como o seu valor supremo, o valor que a dimensiona e a humaniza (Silva, 1998, p. 91, grifo do autor).
A constitucionalização da dignidade da pessoa humana e a elevação deste princípio a fundamento da própria República impedem a degradação do homem, na hipótese de sua conversão em mero objeto do Estado, sendo que referido princípio trouxe consequências importantes: o reconhecimento da igualdade entre os homens; a consagração da autonomia dos indivíduos; a observância e proteção de seus direitos inalienáveis e a necessidade de ação para garantia de condições mínimas de vida, a fim de que essa vida possa ser vivida de forma plena, “evitando-se abusos e lesões aos direitos, que, caso venham a ocorrer, deverão ser sanados através da intervenção do Estado.” (Coelho, 2006, p. 65). Depreende-se, portanto, que somente haverá a observância da dignidade da pessoa humana, se forem asseguradas condições mínimas para uma existência digna e um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Meio ambiente como direito fundamental
O reconhecimento do direito a um meio ambiente saudável é uma necessidade do próprio direito à sobrevivência humana, uma vez que, na inexistência de condições ambientais satisfatórias, e sem os recursos naturais produzidos pelo meio, torna-se impossível a manutenção da vida humana na Terra. Além disso, segundo os critérios substanciais de vida e liberdade, para o gozo dos direitos humanos, é necessário não apenas estar vivo, mas dispor de condições dignas de vida num ambiente saudável. A implementação do meio ambiente equilibrado faz-se, portanto, imprescindível para o gozo dos demais direitos humanos. A Declaração de Estocolmo, em 1972, que foi o marco inicial do Direito Ambiental, reconheceu o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental entre os direitos sociais do homem, com sua característica de direitos a serem realizados e não perturbados. José Afonso da Silva descreve que: O que é importante – escrevemos de outra feita – é que se tenha a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do Homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. [...] a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: qualidade de vida (Silva, 1997, p. 67). 173
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Já a Lei n.º 6.938/1981 (Brasil, 1981), que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, foi a primeira a tratar de tal matéria no ordenamento pátrio. Todavia, a referida lei ficou esquecida até o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe em seu âmago dispositivos ambientais. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu Título VIII, Capítulo VI, Art. 225, que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (Brasil, 1988, grifo nosso). Desta forma, criando a existência de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, estabeleceu-se parâmetros constitucionais, ou seja, critérios fundamentais destinados à sua aplicação como direito fundamental, e incumbindo ao Poder Público dar-lhe efetividade através da vedação às práticas que coloquem em risco a ecologia. O art. 225 da Constituição Federal traz expressamente dentro do capítulo destinado aos direitos sociais, a importância do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Mesmo que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não esteja previsto no rol dos direitos fundamentais, ele não perde sua característica fundamental, pois está relacionado com a vida humana. Além disso, ganhou maior proporção quando foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como direito de terceira geração, que abrange a todos sem distinção. O direito fundamental ao meio ambiente saudável mostra com clareza a superação dos ideais individualistas, característica da sociedade contemporânea, à qual passou a ser expressamente consagrada na Constituição Federal de inúmeros países, dando margem ao desenvolvimento do que se denomina Estados Ambientais, representados pelo modelo estatal pós-social, que toma realmente por fundamento a busca do desenvolvimento sustentável. A relação do homem com seu meio ambiente foi sempre uma termodependência, pois primeiro era a natureza quem atormentava os primeiros seres humanos, agora são os cidadãos que destroem o meio ambiente. Devido ao fato de os limites ambientais estarem sendo ultrapassados, o meio ambiente começou a dar sua resposta a esta agressão, como, por exemplo, as tempestades ácidas, terremotos e furacões como o Katrina e o Tsunami. Desta forma, muitas famílias perderam seus lares, seus pertences e até a vida de entes queridos com estas tragédias ambientais. A educação ambiental deve ser priorizada principalmente no âmbito municipal, em virtude de ser o local onde o homem nasce e adoece, ou seja, é o lugar primordial para que o ser humano busque uma melhor qualidade de vida, compatibilizando-se com o seu necessário desenvolvimento econômico. 174
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Assim, o Estado deve, juntamente com a sociedade, implementar políticas públicas que possam desenvolver o meio ambiente juntamente com a economia, de modo que ocorra a melhoria na qualidade de vida dos cidadãos, respeitando assim o fundamento contido no art. 1º, III, da Constituição Federal. Da ordem econômica ambiental
Inserido no Art. 170, inciso VI, da Constituição Federal, o princípio da defesa do meio ambiente está protegido também no Art. 225 da Constituição Federal (Brasil, 1988) e na Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente: “A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, a melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições de desenvolvimento sócio econômico, aos interessados da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida [...].” (Brasil, 1981). A defesa do meio ambiente é um dos meios mais importantes para resguardar a qualidade de vida do ser humano, garantindo o princípio da dignidade da pessoa humana. Entretanto, para que ocorra o crescimento da qualidade de vida é necessária a compatibilização do desenvolvimento econômico e o meio ambiente; desta conjunção nasceu o desenvolvimento sustentável. O legislador ao instituir o Art. 170, inciso VI, da Constituição Federal, buscou proteger o desenvolvimento econômico saudável, isto é, um desenvolvimento que não pode, a qualquer custo, degradar o meio ambiente para alcançar o lucro, mas sim encontrar um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e o meio ambiente. O princípio da defesa do meio ambiente não pode ser caracterizado como absoluto, em detrimento a outros princípios fundamentais como o da livre iniciativa e o desenvolvimento econômico. Portanto, deverá ocorrer uma harmonização de princípios, para buscar um desenvolvimento econômico equilibrado com o meio ambiente, gerando qualidade de vida para futuras gerações. Assim, a defesa do meio ambiente proporciona uma mudança de paradigma na atividade econômica. Caso contrário, não existirão mais recursos naturais para o desenvolvimento econômico acontecer. A defesa do meio ambiente impõe uma modificação do modo de desenvolvimento da atividade econômica, como esta tem ocorrido na ideologia dominante. A economia de mercado, agora a lei da oferta e da procura e cuja lucratividade está associada a mais consumo e a mais produção, oculta a inverídica pressuposição de uma inesgotabilidade dos recursos naturais
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[...]. Os recursos da natureza e a própria natureza não devem ser vistos apenas como fonte de lucro, mas sim como fonte de onde toda a vida brota (Petter, 2005, p. 244).
Desta forma, os agentes econômicos deveriam investir cada vez mais em estudos de tecnologias limpas, para fabricação do seu produto através de “mudança no estado técnico e na organização social” (Derani, 2001, p. 237) de suas empresas, para conciliarem as limitações dos recursos naturais e o crescimento econômico. Ademais, o Estado pode intervir na ordem econômica quando esta for utilizada de forma contrária aos interesses ambientais, através de repressão ou incentivos no desenvolvimento econômico-ambiental. Dessa forma, necessária se faz a intervenção do Estado para regular e normatizar os efeitos de uma economia desenfreada, utilizando-se, para tanto, da intervenção direta e indireta do Estado, através da economia, para induzir ações voltadas às políticas públicas de proteção ao meio ambiente e aos direitos sociais. Intervenção estatal na ordem econômica
Nos modelos de Estado, percebe-se que ele sempre promoverá uma intervenção, seja em grau maior ou menor. Ainda nos dias atuais, resta saber de que modo ele intervirá na economia. Assim descreve Luis S. Cabral de Moncada: “[...] desde sempre existiram formas de intervenção na economia por parte do estado, embora qualitativa e quantitativa diferentes das que são característica do estado de direito social dos nossos dias” (Moncada, 2000, p. 13). Para Eros Roberto Grau, a atuação do Estado no domínio econômico esquematiza-se da seguinte forma: “a intervenção no domínio econômico que é a presenciada, sob a forma de participação ou absorção; e a intervenção sobre o domínio econômico, cuja manifestação acontece, através das normas de direção e indução” (Grau, 2006, p. 148). A intervenção do Estado no domínio econômico realiza-se por absorção, quando a desenvolve por monopólios, retendo para si um determinado segmento da economia, em caráter exclusivo. Já a realizada por participação dá margem a que o Estado se nivele ao particular e, em nível de igualdade, possa atuar concorrentemente com o mercado. Assim, o Estado atuará na ordem econômica em igualdade de condições com o particular, conforme previsto no Art. 173 da Constituição Federal (Brasil, 1988). A intervenção do Estado sobre o domínio econômico sobrepaira o Estado como agente normativo, regulador e incentivador das condutas econômicas. Quando o Estado intervém apenas com o fulcro de normatizar as condutas econômicas, fixando sanções para violadores dos precei176
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tos, das normas de direção, típicas do Estado Liberal. Contudo, ante uma postura do Estado eminentemente incentivadora, notabilizam-se normas de indução estimuladoras de certas atividades econômicas em detrimento de outras. Assim, predomina no Estado Intervencionista a sua postura de agente normativo, portanto, agindo sobre o domínio econômico, conforme os ditames do Art.174 da Constituição Federal (Brasil, 1988). A participação do Estado como incentivador e implementador de políticas públicas para solução da compatibilização do meio ambiente com o desenvolvimento econômico é de fundamental importância para incentivar o particular a gerar em sua cadeia produtiva externalidades positivas, através de seu orçamento participativo, pois o Estado não poderá instituir instrumentos econômicos ambientais que inviabilizem totalmente a atividade econômica, o qual deverá planejar e estudar minuciosamente os efeitos negativos para não afetarem, ainda mais, o desenvolvimento econômico. O Estado possui meios mais eficazes de induzir a preservação ambiental, como, por exemplo, a extrafiscalidade, através de incentivos e benefícios fiscais, dispensando-se assim o emprego de multas e sanções punitivas para corrigir o poluidor, conscientizando o cidadão a encontrar um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e o meio ambiente, isto é, a atuação estatal na proteção ao meio ambiente se mostra mais eficaz na forma preventiva e não repressiva ou reparatória. A intervenção do Estado na economia como agente regulador, normativo da atividade econômica enfatizada pelos Arts. 170, 173 e 174 da Constituição Federal (Brasil, 1988), preconiza a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa para assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Um de seus objetivos é a defesa do meio ambiente, elencado no inciso IV do mesmo artigo. Para tanto, deverá encontrar na tributação ambiental um instrumento eficaz para alcançar os objetivos propostos, através da extrafiscalidade ambiental, que concederá incentivos, isenções e graduação das alíquotas dos tributos para orientar o comportamento do contribuinte a uma conduta ambientalmente correta. Conclui-se que a melhor forma de intervenção é por indução, quando se pretende, através de comandos que não são dotados de imperatividade, atrair os sujeitos da atividade econômica, por meio da concessão de estímulos de toda ordem, para praticarem condutas que transcendam os interesses individuais e atinjam objetivos considerados essenciais para o bem-estar social. Desenvolvimento sustentável
O Princípio do Desenvolvimento Sustentável ocupa posição de destaque dentre todos os princípios ambientais, haja vista ser a meta buscada pelos demais princípios, viabilizando o trato correto, seguro e adequado à temática ambiental. 177
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O Princípio do Desenvolvimento Sustentável objetiva compatibilizar a atuação da economia com a preservação do equilíbrio ecológico. Conforme previsto no Art. 225 caput da Constituição Federal (Brasil, 1988), todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, bem como impôs no seu Art. 170 o princípio da preservação ambiental. Desta forma, aplicam-se os princípios da prevenção, precaução e equilíbrio para a busca de um desenvolvimento sustentável para as futuras gerações. Deduz-se, portanto, que seu objetivo é equalizar, conciliar, encontrar um ponto de equilíbrio entre atividade econômica e uso adequado, racional e responsável dos recursos naturais, respeitando-os e preservando-os para as gerações atuais e futuras. A proteção do meio ambiente, assim, deve ser encarada como parte do processo econômico, pois realmente o é, uma vez que não há desenvolvimento sem utilização de elementos naturais. Em face desse entrelaçamento, o planejamento econômico de qualquer setor, seja privado ou estatal, deve ter como pano de fundo a meta do desenvolvimento sustentável, que implica não só em crescimento econômico, mas também o exercício de direitos, como o acesso à justiça e oportunidades para todos (Schwenck, 2007). Não se trata, portanto, de cercear a atividade econômica que tem como meta a satisfação das necessidades e aspirações humanas, mas encontrar um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e o meio ambiente para que os seres humanos possam ter uma melhor qualidade de vida, sem afetar inteiramente as atividades empresarias de geração de emprego e renda. Considerações finais
O princípio da dignidade da pessoa humana é inerente ao ser humano, por isso, não existe pessoa humana senão for dentro de meio ambiente. Assim, efetuar-se-á um estudo sobre como o meio ambiente constitui um direito fundamental, que deve ser prioridade de todo Estado na busca do desenvolvimento sustentável. Para a busca desse direito fundamental, importante é a análise da aplicabilidade dos princípios constitucionais ambientais, principalmente a base e o mandado de otimização que é o princípio da dignidade da pessoa humana. Devido à criação da consciência ecológica e às pressões no cenário mundial, a postura ambientalista tornou-se primordial no exercício de qualquer atividade, tendo-se que a ideia de sustentabilidade já permeia o mercado. Isso porque os agentes têm sido obrigados a adotar práticas ambientalmente corretas para que seus produtos e serviços tenham maior aceitabilidade por parte do consumidor e frente à concorrência internacional. 178
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O desenvolvimento sustentável se faz necessário, uma vez que o homem inserido no meio ambiente deve preservá-lo para sobreviver no tempo. Assim, obedecendo preceitos constitucionais, o meio ambiente deve ser preservado para as presentes e futuras gerações. A intervenção federal na forma de indução busca seduzir o agente econômico a agir em benefício do interesse coletivo, social e ambiental, proporcionando-lhe vantagens, como, por exemplo, isenções tributárias e benefícios fiscais, caso venha a assumir comportamentos previamente descritos como adequados e ambientalmente corretos Dessa forma, os instrumentos econômicos têm um papel fundamental na proteção do meio ambiente, pois, não haverá desenvolvimento econômico sem meio ambiente e vice-versa, pelo fato de ser uma simbiose indissociável, para buscar um desenvolvimento econômico equilibrado com o meio ambiente, gerando qualidade de vida para presentes e futuras gerações. Referências
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CAPÍTULO 16 FRONTEIRAS DA AMAZÔNIA E VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS: UMA VISÃO A PARTIR DE RELATÓRIOS DE ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS Patrícia Mara Cabral de Vasconcellos1
Introdução
O imaginário sobre a Amazônia ainda remete a um tempo-espaço distinto dos conflitos da modernidade. Reconhece-se, quase que imediatamente, uma imagem de selva, natureza e beleza (Bueno, 2002). Aliada à ideia de um vazio demográfico, esta imagem remete a uma expectativa de lugar sempre a ser descoberto. Contudo, outra percepção se revela ao se olhar para a Amazônia, ao menos desde a década de 1980, por uma lente próxima. Diante dos inúmeros conflitos sociais que se instalam na região amazônica, a geógrafa Bertha Becker, ao se referir sobre a Amazônia brasileira, fala de uma “floresta urbanizada” (Becker, 2005). Com isto, demonstra a nova realidade promovida pela conectividade das fronteiras com a transformação do espaço, da política e das perspectivas sociais. Diante do novo contexto, quais conflitos a região tem vivenciado nos últimos anos? Para responder à indagação, buscou-se traçar um perfil das violações de direitos humanos reportadas em relatórios internacionais sobre este tema. Assim, é possível observar os casos que tiveram repercussão para além do âmbito nacional. Ainda que não reflitam a totalidade dos conflitos que envolvem a realidade amazônica, fornecem um quadro geral de sua dinâmica político-social, permitindo fazer uso da análise comparativa.
1 Doutora em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia. Professora do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça da Universidade Federal de Rondônia (Unir/Emeron). E-mail: [email protected]
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Foram selecionados os relatórios produzidos por duas organizações não governamentais: a Anistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW). Ambas as organizações produzem relatórios anuais sobre os direitos humanos. A Anistia Internacional foi fundada em 1961 e, atualmente, está presente em mais de 150 países. Produz informes anuais desde 2010 sobre o panorama de violações de direitos humanos no mundo. Já, a Human Rights Watch foi fundada em 1978. De forma similar a Anistia Internacional, por meio de uma rede de colaboradores, produz artigos e relatórios sobre direitos humanos, expondo os casos concretos de violações. Contudo, desde 1989 produz relatórios mundiais sobre a temática. Nessa pesquisa, examinaram-se, nos respectivos relatórios, menções a casos caracterizados como pertencentes à região amazônica ou Amazônia. Restringiu-se o período de análise de 2010 a 2018. Posteriormente, os dados foram agregados e categorizados. A metodologia pautou-se em análise documental e revisão bibliográfica. Assim, o intuito foi de fornecer um panorama sobre os confrontos sociais na região Amazônica Internacional e fomentar uma imagem diversa do mito do paraíso2, da integração e cooperação pacífica. O artigo está dividido em três partes. Na primeira, realiza-se uma revisão conceitual sobre a definição de fronteira e suas consequências epistemológicas. Analisar as fronteiras é ir além do limite territorial para observar as contradições das relações humanas no momento em que o contato com o outro acontece. Na segunda parte, relatam-se os casos mencionados nos relatórios internacionais sobre direitos humanos. Três países, Brasil, Peru e Equador, concentram as principais violações na região amazônica. No caso do Brasil, estas versam sobre os assassinatos cometidos contra os defensores ambientais e contra as pessoas que lutam pelo seu direito à terra. No Peru e no Equador, a população indígena convive com as ameaças da mercantilização da natureza e, consequentemente, com a exploração de recursos naturais em seu território. No terceiro item, com base nas ocorrências citadas, aponta-se uma política governamental de desenvolvimento, em países como o Brasil, Peru, Equador e Bolívia, pautada na exploração dos recursos naturais. Isto tem acirrado a disputa de interesses na Amazônia Internacional. Complementarmente, a postura estatal não é acompanhada de mecanismos efetivos de consulta e participação da população atingida. Pelo contrário, como no Peru e no Equador, enfatiza-se a criminalização dos movimentos sociais enquanto que no Brasil permanece a sensação de impunidade nos crimes contra os defensores dos direitos humanos. 2 Remete-se ao termo paraíso no sentido de “natureza intocada”, como afirma por Bueno (2002).
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Por fim, conclui-se que a luta pela vida e pela defesa dos direitos humanos é uma atitude cotidiana na Amazônia. Os conflitos na Amazônia Internacional espelham a diversidade de pensamento e a pluralidade cultural. Enfrenta-se o imaginário da conquista e do colonizador para conferir voz aos que estão do outro lado da fronteira. Fronteiras da Amazônia
A Amazônia internacional ou floresta amazônica abrange parte do território de nove países com uma extensão territorial de 7,8 milhões de km2. A diferença territorial, populacional e de ocupação do território entre os países é marcada por diferenças importantes. O Brasil, por exemplo, possui 64,3% da floresta amazônica, seguido por Peru, 10,1%; Bolívia e Colômbia, 6,2% cada; Venezuela, 5,8%; Guiana, 2,8%; Equador, 1,5% e, por fim, Guiana Francesa com 1,1% (RAISG, 2012). A população aproximada da Amazônia é de 33 milhões de pessoas; sendo que, destas, 1,5 milhão é de população indígena: 377 povos, 70 em isolamento (RAISG, s/d). Apesar das diferenças, pode-se afirmar que, em geral, a floresta amazônica tem sido palco de um processo de ocupação pautado na construção de estradas, hidrelétricas e exploração de recursos naturais. Neste sentido, esta fronteira ainda surge como “um vazio demográfico aberto a novas formas de colonização agropecuária e extrativista” (Raisg, 2012, p. 9). A Amazônia, no século XXI, é interligada ao processo de globalização, incorporando redes e fluxos de interesses que transbordam os limites do nacional. Ao mesmo tempo centro e periferia do mundo, a Amazônia retrata a distribuição e o uso desigual de recursos presentes no planeta. Ao se fazer a explanação sobre as fronteiras da Amazônia Internacional parte-se da noção apresentada pelo sociólogo José de Souza Martins quando afirma que a fronteira é um lugar privilegiado da observação sociológica. Na fronteira não está somente o limite geográfico. Nela estão as confrontações do que é ou não humano (Martins, 2016). Nesse espaço, degrada-se o outro para, segundo o autor, viabilizar a existência de quem o domina. Na luta pelos direitos humanos na Amazônia figura o que Martins afirma ser uma combinação de tempos históricos em processos sociais que polarizam o que é cultura e o que é natureza. Neste cenário, a fronteira não é local de integração, mas de conflito, intolerância e morte. Para compreender este fato, é necessário analisar o momento em que se dá a situação de contato, ou seja, que tipo de discurso e de sociabilidade se constrói na convivência entre os atores (Martins, 2016). Por este prisma, concebe-se a fronteira como uma dinâmica de expansão econômica, política e cultural que reconfigura o espaço e as relações sociais dos atores que se veem polarizados, sejam na resistência, na 183
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integração ou na criação de um novo sentido para as vivências socializadas. Assim, a fronteira é capaz de revelar ao homem como ele se vê frente aos demais (Brenna, 2011), podendo perceber-se como seres humanos iguais ou sublinhar quais diferenças os separam. Reafirmando, esta não deve ser compreendida em seu aspecto meramente limítrofe, mas como o lugar de uma dinâmica de sobreposição de conflitos de tempo-espaço. Isto significa que se podem classificar as crenças, ideologias, interesses e modos de vida como modernas ou arcaicas, mas o indivíduo não será o tipo ideal (na concepção weberiana) nem de um, nem de outro. O mesmo indivíduo ou grupo pode ser, ao mesmo tempo, um pouco de cada categorização e transmutá-la com frequência. Complementarmente, na avaliação de Becker (2005), a região amazônica é imersa em duas lógicas em que a natureza é reavaliada. A primeira refere-se a uma lógica de preocupação ambiental na qual se inserem os movimentos ambientalistas, por exemplo. Na segunda, o fundamento é o da acumulação capitalista na qual se atribui valor econômico aos recursos naturais. Neste sentido, a Amazônia é palco de disputas de riquezas, de poder e de concepções de mundo, por vezes, incompatíveis. A Amazônia não somente se preserva do confronto. Com sua dinâmica própria, os atores, que nela vivem, reagem e tomam iniciativas para afirmar seus interesses e identidades. Um processo que não é possível olhar como se a história fosse uma foto, uma proposição estagnada no tempo. A vida das pessoas é a todo instante, em vários momentos do dia, atravessada por relações sociais de temporalidades históricas diferentes. Com isso, afirma-se que não é possível polarizar entre tradicional e moderno, mas compreender as inúmeras possibilidades que se colocam na combinação deles. De toda forma, o Estado moderno tem criado fronteiras da exclusão. Ao mesmo tempo em que proclama um discurso de um mundo unificado, age de forma a reclassificar as minorias, renovando as exclusões sociais (Brenna, 2011). Por conseguinte, nota-se que o conceito de fronteira no surgimento do Estado moderno enraíza-se e ainda se mantem como uma fonte de dominação e poder. Dessa forma, Martins (2016) não concebe a fronteira como um espaço de práticas democráticas. Para ele, trata-se de um lugar privilegiado da violência privada. A conclusão do autor é baseada em sua pesquisa, em diferentes pontos da Amazônia brasileira, durante 30 anos (entre as décadas de 1960 a 1980), presenciando e verificando em documentos a morte de indígenas, o rapto de pessoas, o trabalho escravo, a fala das crianças sobre o futuro, o conflito de terra. À vista disso, o deslocamento até a Amazônia brasileira foi um momento de destruição e de resistência, sonho e esperança, transformando a história da fronteira contemporânea no Brasil, em uma história de lutas étnicas e sociais. 184
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O discurso de um mundo globalizado semeia a ideia de que todos têm o mesmo destino (Brenna, 2011), mas, para homogeneizar o futuro, coloca à margem dos processos econômicos e sociais todos aqueles que não se enquadram no postulado dominante. Nota-se que o mito da fronteira ainda corresponde à ideologia da presença do homem branco colonizador. Assim, insere-se uma história fragmentada e falsa da democracia e do desenvolvimento nas regiões fronteiriças, como a amazônica. Um contexto de mundo globalizado e dito sem fronteiras só deixará de existir quando não houver mais o conflito. Assim, Martins afirma que: a fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece; quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna a parte antagônica do nós, quando a história passa ser a nossa história, a história da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós mesmos porque somos antropofagicamente nós e o outro que devoramos e nos devorou (Martins, 2016, p. 134).
A análise da Amazônia por meio dos relatórios de Direitos Humanos é assumir, como ponto de vista, uma preocupação sobre a forma de expansão do capital, revelando as diferentes modalidades de desenvolvimento e percepções sobre a vida. É uma das formas de refletir sobre o nós, o outro e a história. Do outro lado da suposta linha, defender a dignidade humana simboliza defender os indivíduos das violações cometidas pelo próprio Estado. Violações de Direitos Humanos na Amazônia
A análise dos relatórios anuais da Anistia Internacional e da Human Rights Watch (HRW), no período de 2010 a 2018, oferece um panorama sobre os casos de violação de Direitos Humanos na Amazônia Internacional. Assim, permite perceber, por exemplo, as temáticas e os casos que se evidenciam para o cenário mundial. Como são organizações não governamentais (ONGs), significa que não se vinculam a nenhum Estado ou governo, diferentemente das organizações internacionais que são formadas pelos Estados3. Sobre as matérias, tem-se como recorrentes violações: assassinatos e ameaças a defensores e ativistas dos direitos humanos; conflitos de terra; violação de direitos indígenas; luta contra a exploração de recursos naturais; censura e criminalização de movimentos sociais; luta contra a atuação de empresas transnacionais.
3 A escolha por relatórios de organizações não governamentais atendeu ao critério de imparcialidade quanto ao relato das violações de Direitos Humanos, já que não são vinculadas e, teoricamente, não sujeitas às pressões de qualquer natureza por parte dos Estados.
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No período analisado, sobre o tema abordado, quatro países de região amazônica são citados: Brasil, Peru, Bolívia e Equador. Com relação ao Brasil, são mencionados sete casos, conforme demonstra o quadro a seguir: Quadro 1 - Violações de Direitos Humanos na Amazônia Brasileira
Fonte: elaboração própria com base em Relatório da Anistia Internacional (20102017/2018). Relatórios HRW (2010 a 2018); Front Line Defensers; Freitas e Santos Júnior (2017).
Dos sete casos apontados, quatro são de assassinatos de ativistas, ou seja, pessoas que estavam diretamente envolvidas na defesa do meio ambiente, dos direitos da comunidade ou adotavam postura de oposição ao poder vigente, como o caso de Vanderlei Canuto. Nota-se que: José Cláudio e Maria do Espírito do Santo eram membros do grupo ambientalista Conselho Nacional das Populações Extrativistas e líderes do Projeto Agroextrativista Praialta-Piranheira em Nova Ipixuna, Pará; Adelino Ramos4 era coordenador do Movimento Camponês Corumbiara; Raimundo Santos Rodrigues era conselheiro do Instituto Chico Mendes de Conservação 4 Adelino Ramos era sobrevivente do Massacre de Corumbiara. O conflito ocorrido em 9 de agosto de 1995 entre policiais e grupo de sem-terra resultou em 12 mortes. O caso foi apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos - CASO Nº 11.556.
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da Biodiversidade, na Reserva Biológica do Gurupi e presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Rio da Onça II. Como ponto em comum, todos eram representantes de movimentos sociais ou organizações não governamentais. Vanderlei Canuto Leandro era jornalista e apresentava o programa “Sinal Verde” na Rádio Fronteira onde alertava a população sobre as supostas irregularidades do poder público local. Junto à similar motivação dos assassinatos estão as ameaças feitas à comunidade quilombola de Salgado, no Maranhão, e aos assentamentos no município de Palmeirante, no Tocantins. Atestando que a morte está presente na disputa da fronteira amazônica, o relatório da Anistia Internacional de 2014/2015 ainda destaca o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade no Brasil para apurar violações ocorridas durante a ditadura militar; dentre estas, a cometida em território amazônico contra os índios Waimiri-Atroari. Neste caso, estima-se que tenha ocorrido o genocídio de aproximadamente dois mil indígenas durante a construção da BR 174, entre 1967 a 1981. A busca pela verdade é uma releitura da história para tornar visíveis as violações reiteradamente cometidas contra a população indígena5. Por meio deste exemplo, evidencia-se um alerta quanto ao preço pago na busca pelo desenvolvimento ou na integração por meio de obras de infraestrutura. No tocante à Amazônia peruana, citam-se quatro violações. Uma delas refere-se à repressão realizada nas manifestações contrárias à exploração de petróleo, gás, madeira e mineração, por parte da população indígena de Utcubamba e Bagua. Alude-se, especificadamente, sobre a manifestação ocorrida na província de Bagua, em 2009. Houve o bloqueio de estradas e a repressão resultou em 33 mortes6, em 6 de junho do ano mencionado. Contudo, as manifestações ocorriam desde abril de 2009 e, de acordo com Silva (2010), centravam-se no questionamento da aprovação de leis, como os decretos nº 1.0907 e 1.0648. Segundo as comunidades indígenas envolvidas no conflito, tais decretos conduziriam a uma privatização da floresta e dos recursos hídricos (BBC Mundo, 2009). A legislação permitiria que empresas estrangeiras explorassem a madeira e minérios, por exemplo. 5 O Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas produziu um relatório entregue em 2012 para a Comissão Nacional da Verdade em que constam documentos que relatam o extermínio dos indíos Waimiri-Atroari. Ver: 1⁰ Relatório do Comitê Estadual da Verdade – O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari. Disponível em: http://www.dhnet. org.br/verdade/resistencia/a_pdf/r_cv_am_waimiri_atroari.pdf. Acesso em: 20 jul. 2018. 6 O Relatório da Anistia Internacional do ano 2014/2015 afirma que foram 33 mortes, das quais 23 foram de policiais. Mais de 200 pessoas teriam ficado feridas (Anistia Internacional, Informe Anual 2014/2015). 7 De acordo com Silva (2010), o decreto n.⁰ 1090 permitia ao Estado vender concessões florestais a critério de um departamento do Ministério da Agricultura Peruano. Em outras palavras, permitia a concessão de terras consoante o interesse nacional. 8 De acordo com Agurto (s/d), o decreto n.⁰ 1064: “Elimina el requisito del acuerdo previo entre las empresas y las comunidades campesinas y nativas para iniciar las actividades de exploración y explotación de los recursos del subsuelo”.
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Em relação ao mesmo conflito, o relatório da Human Right Wacth de 2011, menciona a censura promovida, pelo governo peruano, à rádio local que fez a cobertura da agitação em Bagua. A rádio La Voz de Bagua foi acusada de incitar a violência nos conflitos entre indígenas e policiais. Em outubro de 2010, a licença para transmissão da rádio foi novamente concedida, provisoriamente (HRW, 2011). Contudo, denunciam-se, tomando como arquétipo o caso de Bagua, as intimidações e as ameaças sofridas pelos jornalistas peruanos. Esta é mais uma das violações contidas nos relatórios. Os defensores dos direitos indígenas e ambientais também estariam submetidos a ameaças, a exemplo, a revogação da residência de Paul McAuley. Este, um religioso britânico, membro de organização não governamental (ONG) – Rede Ambientalista Loretana – vivia há 20 anos no Peru e não teve o visto renovado pelo governo que o acusou de infringir as leis do país ao se envolver e participar de manifestações em defesa da Amazônia contra o governo local (Reuters, 2010). Outra violação de direitos humanos condiz com o desrespeito ao meio ambiente e à população indígena. Durante o ano de 2016, relatam-se 13 vazamentos de petróleo no oleoduto no norte do país. Como consequência, houve contaminação da água e de terras pertencentes aos povos indígenas (Anistia, Informe 2016/2017). No início de 2016, entre 25 de janeiro e 3 de fevereiro, houve vazamentos no departamento do Amazonas e no Departamento de Loreto, no oleoduto da estatal Petroperú. O vazamento de aproximadamente 3.000 barris contaminou os rios Chiriaco e Morona tornando a água imprópria para o consumo. Em consequência, a qualidade de vida de comunidades indígenas como a de Mayuriaga, em Loreto, foi comprometida (Sul 21, 2016). Em junho de 2016, outro vazamento da Petroperú na região de Loreto atingiu cerca de 435 pessoas. Em torno de 600 barris de hidrocarbonetos foram derramados prejudicando o abastecimento de água e contaminando terrenos de cultivo (AFP, 2016). Demonstrando a recorrência do fato, em agosto, mais um vazamento atinge a Amazônia peruana. Dessa vez, o derramamento ocorreu no distrito de Nieva afetando dez comunidades nativas da tribo Awajún (El País, 2016). Como consta no Relatório da Anistia Internacional, em 2016, houve um total de 13 vazamentos (Anistia, Informe Anual 2016/2017). Tais vazamentos ocorreram nas tubulações do Oleoduto Nor Peruano, cuja estrutura foi construída na década de 1970 e cuja manutenção foi precária não recebendo os investimentos necessários pela empresa. Por fim, outra vulnerabilidade apontada no Relatório da Anistia Internacional condiz com as altas taxas de gravidez na adolescência das jovens mulheres da região amazônica peruana. Afirma-se que em determinadas regiões da Amazônia, a taxa de gravidez na adolescência é de 32,8%. 188
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Fato mais preocupante é que entre as meninas de 12 a 16 anos, a gravidez foi resultado de estupro para 60% delas (Anistia, Informe Anual 2016/2017). A violência e discriminação a que são submetidas as mulheres indígenas prolongam-se no tempo, a exemplo, na década de 90, no Peru, mulheres indígenas e camponesas foram submetidas a procedimento de esterilização sem seu consentimento pleno e informado. Esta constatação está no informe da Anistia Internacional, afirmando que, em 2014, o processo de 2.000 destas mulheres foi encerrado pelo Ministério Público de Lima (Anistia, Informe Anual 2014/2015). Sobre o Equador, os relatórios relembram o caso Texaco/Chevron9 e a necessidade de indenização às comunidades indígenas. A empresa que atuava na Amazônia norte do Equador foi acusada de poluir 480 mil hectares da floresta Amazônica ao despejar aproximadamente 16 bilhões de litros de água tóxica. A contaminação deu-se através da formação de piscinas de resíduos contaminantes próximos aos poços de petróleo perfurados e próximos às fontes de água. A União de Afetados pelas Operações da Texaco (UDAPT) que reúne cerca de 30 mil indígenas move uma ação de reparação de danos contra a empresa desde 1993 (Mendoza, 2017). Conforme consta no Relatório da Anistia de 2014/2015, a comunidade indígena ainda busca a indenização tentando processar os diretores da empresa no Tribunal Penal Internacional (Anistia, Informe Anual 2014/2015). Em março de 2015, o Tribunal Penal Internacional entende que não possui competência para julgar a ação. O problema da atuação das transnacionais tem sido a ausência de um tribunal internacional que possa garantir a reparação do dano, salientando uma lacuna nas normas do direito internacional e nacional sobre a temática. Adicionalmente, destaca-se na luta pelos direitos humanos no Equador, o conflito das comunidades indígenas e das organizações não governamentais (ONGs) contra posturas do governo equatoriano em reprimir, criminalizar e intervir no direito de manifestação desses indivíduos. Para ilustrar, tem-se a utilização de leis antiterroristas com a finalidade de enquadrar os protestos sociais e a emissão, em 2013, de um decreto executivo autorizando o governo a intervir em operações das ONGs. Assim, conforme relatório de Direitos Humanos da HRW, o presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e dois outros líderes indígenas foram investigados criminalmente por terrorismo e sabotagem, por protesto realizado durante uma reunião da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), em 2010. No mesmo sentido, um líder indígena Shuar e mais dez pessoas foram acusadas de terrorismo por participar de protestos 9 Anteriormente denominada Texaco, a empresa foi adquirida pela Chevron em 2001.
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em setembro de 2009, na cidade de Macas (HRW, 2011). Outros fatos revelam a pressão institucional não democrática contra as manifestações, como a dissolução, em dezembro de 2013, da Fundação Pachamama, uma ONG que atuava havia 16 anos na defesa ambiental e as acusações contra o grupo ambiental Yasunidos, classificando-os como mentirosos e incoerentes (HRW, 2015). Em geral, a crítica dos movimentos sociais dirigia-se à forma de extração de petróleo na Amazônia e suas consequências. Com relação à Amazônia boliviana, o único fato descrito nos relatórios, em específico no informe da Anistia Internacional de 2016, é uma breve menção ao direito indígena de ser consultado sobre os projetos de exploração de petróleo em seu território. Descreve-se a denúncia de líderes dos povos indígenas e do Centro para Documentação e Informação da Bolívia (CEDIB) sobre o fracasso de uma participação “prévia, livre e informada” em projetos relativos ao tema (Anistia, Informe 2016/2017). Com o panorama das violações de Direitos Humanos desvelado identifica-se por detrás da maioria dos conflitos uma política governamental de desenvolvimento pautada da exploração dos recursos naturais por grandes empresas ou grandes proprietários de terras. Em grandes linhas, é isto que tem acirrado a disputa de interesses e conduzido as violações de direitos humanos na Amazônia Internacional. Conflitos na Amazônia e a política dos Estados
Os relatórios de Direitos Humanos analisados oferecem uma visão incompleta dos conflitos, mas refletem um importante fragmento do que é evidenciado para a comunidade internacional. Uma fração que é capaz de expor a macropolítica dos Estados amazônicos. No caso do Brasil, as inúmeras mortes resultantes do conflito ambiental e de terras apontam para a marginalização desta população, inclusive por parte do Estado. Segundo o relatório Global Witness de 2018, o Brasil é o país que mais mata ativistas no mundo (207 assassinatos no mundo em 2017, sendo 57 destes no Brasil10). O relatório ainda destaca que quase 80% dos defensores mortos no Brasil estavam ligados à defesa da Amazônia (Global Witness, 2018). Uma hipótese para o esquecimento ou desconhecimento desses conflitos pode ser o que Coelho (1992) relata sobre a visão da Amazônia como um lugar distante e com personagens que carecem de importância social. Assim, afirma o autor: 10 Destaca-se que a apuração dos dados apresentados pela Global Witness (2018) abrange “apenas uma categoria de defensores: os que trabalham em questões fundiárias ou ambientais”. O próprio relatório aponta que os dados provavelmente são subestimados considerando a metodologia adotada pela pesquisa que despreza muitas mortes que não atendem a todos os critérios de revisão de documentação e informação.
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Na Amazônia, porém, ainda estamos aparentemente presos a conceitos envelhecidos. Neles, a fronteira é vista como um confim inútil, uma periferia – e, como tal, desprezível –, numa imagem simplificada onde os personagens são, como se disse, índios, garimpeiros e, de pontos em pontos, grupamentos militares, ali postados para “garantir a integridade nacional” (Coelho, 1992, p. 10-11).
A modificação da noção de fronteira sobre a Amazônia, de um ponto de referência distante para uma área-recurso com possibilidade de integração e cooperação nacional regional (Coelho, 1992), pelo que se aponta, não foi capaz de mudar a realidade e atribuir dignidade humana ao povo amazônico. Isto porque o outro, que se encontra na Amazônia, ainda é o ser que pode ser degradado e marginalizado frente aos interesses dos detentores de poder econômico, seja governo, empresas ou latifundiários. O Estado brasileiro proclama uma democracia, mas, utilizando-se da premissa do interesse nacional, busca o desenvolvimento sem promover mecanismos de participação efetivos para a discussão de seus projetos. Para além, a impunidade dos assassinatos e a criminalização de movimentos sociais formam o retrato de uma sociedade sem liberdade de expressão, em que opera a repressão e o direito privado. Com a omissão do Estado, a luta pelos direitos humanos esbarra na estrutura do poder oligárquico. Os nomes daqueles que morrem são esquecidos. Na Bolívia, Peru e Equador, em especial, nos dois últimos, ressalta-se o conflito derivado da exploração de petróleo, salientando o processo de mercantilização da natureza com a atuação de empresas transnacionais. As iniciativas econômicas governamentais dos referidos países têm foco na exportação de petróleo e extração de minérios, no quais os casos da Chveron, no Equador e de Bagua, no Peru, tornaram-se símbolos da resistência e dos enfrentamentos recorrentes. No Peru, os embates entre a comunidade indígena e o governo, em torno da temática, se acirraram desde 2009, no citado evento “Bagua”, quando se protestava contra a instalação da transnacional Minera Afrodita em área de reserva ambiental e de vivência das etnias Wampis e Awajún. Tais conflitos possuem como contexto o governo de Alan García (20062011) que promulga decretos, como o 1015 e 1073, que permitem investimentos privados em terras indígenas ou amazônicas, reconfigurando a relação do Estado com as respectivas comunidades atingidas. Romio (2013) afirma que a luta dos povos indígenas contra a transnacional Minera Afrodita11 representa uma diferente visão sobre o que signi11 A empresa Minera Afrodita é uma empresa peruana associada à empresa transnacional canadense Dorato Resources.
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fica o meio ambiente amazônico para cada uma das partes. Por um lado, a visão dos recursos que podem ser mercantilizados. De outro, uma relação material e simbólica com o território, na qual os indígenas demarcam suas relações sociais, como é o caso das etnias Awajún e Wampís. É também no governo de Alan Garcia que ocorre o boom da mineração (Santos, 2012). Na conjuntura externa de alta demanda por matérias primas, o setor de mineração promoveu um dinamismo na economia peruana. Contudo, o conflito de Bagua é exemplo; os protestos populares contra as atividades mineradoras foram concomitantes com a presença das transnacionais, ainda que os indicadores macroeconômicos demonstrassem um aumento do Produto Interno Bruto e uma elevação do consumo. Uma hipótese é que o crescimento econômico não se refletiu em distribuição de renda igualitária. Os benefícios da política governamental teriam atingidos, de forma desigual, as regiões peruanas, permanecendo as regiões da Cordilheira e a da Selva como as mais pobres (Santos, 2012). O evento de Bagua, para Romio (2013), define um antes e um depois de como as relações entre Estado e movimentos socioambientais têm se constituído. Se por um lado, o acontecimento tornou visível, inclusive internacionalmente, o conflito revigorando a luta pela defesa da Amazônia, por outro, o Estado responde utilizando-se de seu aparato racional-legal para criminalizar os movimentos sociais, acusar e processar judicialmente possíveis envolvidos. A estratégia de desenvolvimento do governo peruano durante o governo Alan Garcia é pautada em uma política econômica liberal voltada para a exportação. Por esta orientação, o Estado flexibiliza os marcos regulatórios ambientais, fortalece a segurança jurídica dos investimentos privados e trata os conflitos sociais como conflitos judiciais. Na mesma direção atua o governo do Equador. Neste sentido, as controvérsias da atuação da Chevron são emblemáticas. A Texaco operou na Amazônia equatoriana no período de 1964 a 1992. A empresa é acusada de derramar água de prospecção e rejeitos de petróleo em rios e igarapés. Além do desastre ambiental, o contato com os rejeitos, o consumo da água12 impura e o consumo de alimentos produzidos na terra contaminada teriam provocado na comunidade o aumento da incidência de câncer, de abortos e nascimentos com má-formação, além de outros problemas de saúde. O processo contra a Chevron inicia-se em 1993 e tem passado por diversas instâncias e tribunais ainda sem um encerramento definitivo. O processo inicia-se no Tribunal de Justiça dos Estados Unidos, mas depois
12 A água, segundo universidades e organizações não governamentais, está contaminada com chumbo, arsênio e hidrocarbonetos. Ver: Brenda, Tadeu. Chernobyl Amazônica. Rede Brasil atual. 28/05/2018.
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de dez anos a justiça decide que o fórum adequado não era nos Estados Unidos e remete o processo ao Equador. Em 2011, o tribunal do Equador condena a empresa a pagar aproximadamente 10 bilhões de dólares em indenizações. A sentença é encaminhada para execução nos tribunais de justiça dos países nos quais a empresa possui matriz/filial, como no caso do Brasil, da Argentina e dos Estados Unidos. Nenhum dos países homologa a decisão, seja pela ausência de uma jurisdição internacional, seja por não se comprovar o vínculo da Chevron com empresas subsidiárias13 ou ainda pela ausência de bens da empresa no respectivo país. Indo além, em setembro de 2018, o Tribunal de Arbitragem de Haia entende que a sentença no Equador foi obtida mediante fraude e recomenda que a mesma não seja reconhecida ou executada pelos tribunais de outros Estados14. Os argumentos defendidos pela empresa, em geral, são: as compensações já foram pagas ao governo do Equador quando a empresa encerrou as atividades no país; não há nexo causal entre as doenças e a exposição ao petróleo; provas fraudulentas foram incorporadas ao processo; os danos teriam sido causados pela Petroecuador15. Independentemente do desastre da Chevron, a política equatoriana permanece centrada na exploração dos hidrocarbonetos16 e gerando tensões territoriais e ambientais. Há uma sobreposição das lógicas entre a proclamada pela economia do Estado e o reivindicado pelas comunidades indígenas. Para o primeiro, o fundamento racional do desenvolvimento e do progresso. Na visão indígena, uma maneira integrada (ancestral, simbólica, econômica e autônoma) de se apropriar da natureza (Feijó, 2012). A lógica traduz-se no princípio filosófico adotado pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) denominado de “Buen Vivir”, ou seja, refere-se a uma harmonia entre homem e natureza baseada nos direitos da natureza, da sustentabilidade e solidariedade entre os homens. Como se demonstra, são racionalidades e historicidades distintas. Mesmo a Constituição do Equador tendo, em 2008, reconhecido os princípios do “Buen Vivir”, as contradições são latentes diante das violações de direitos humanos, anteriormente elencadas. 13 A Chevron Brasil, por exemplo, é de pessoa jurídica distinta da Chevron. 14 O Tribunal de Haia considera que o Equador violou o Tratado de Proteção de Investimentos entre Washington e Quito. 15 A empresa Chevron desenvolveu uma página na internet para divulgar as informações sobre o processo contra a empresa. O site denomina-se “Julgamento Bruto”. Disponível em: http://www.julgamentobruto.com/. Acesso em: 15 set. 2018. Em contraparte, alguns depoimentos de pessoas afetadas podem ser lidos na reportagem “Caso Chevron: Relato de los olvidados” realizada pela La Historia do Equador, em março de 2015. La Historia é uma iniciativa de jornalistas independentes do Equador comprometidos com a defesa dos direitos Humanos. Disponível em: https:// lahistoria.ec/2015/03/14/caso-chevron-relato-de-los-olvidados/. Acesso em: 20 jun. 2018. 16 Segundo Raisg (2012), o país com maior superfície de lotes petroleiros em exploração, em região amazônica, é o Equador.
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Da análise das violações de direitos humanos na Amazônia reforça-se o que foi dito por Becker17 (2005) sobre os ritmos diferenciados e competitivos com os quais convive a fronteira. Em outras palavras, as fronteiras dos países amazônicos são marcadas por perspectivas, comportamentos e culturas que se atravessam, mesclam-se, mas que também disputam hegemonia. A política dos Estados amazônicos tem imposto um modelo econômico extrativista, por vezes, predatório. Por outro lado, os povos amazônicos reivindicam ser inseridos socialmente com seus saberes e com a integridade do território onde vivem, sem que isso signifique negar aspectos da modernidade, como a maior conectividade entre as pessoas e os resultados da ciência. Considerações finais
Para evitar as violações de direitos humanos, a Amazônia deve ser reconhecida e valorizada no modo de ser do homem amazônico. Para isto, deve-se negar o mito do espaço vazio e admitir a existência do outro em sua fronteira. Paralelamente, faz-se necessário ampliar o conhecimento sobre a rede de interesses existentes na região de forma a permitir que vigorem somente os legítimos, ou seja, aqueles que correspondam aos princípios de sociedade democrática e de respeito à dignidade humana. Com tantas vozes caladas, como mostram os relatórios de direitos humanos analisados, a democracia nos países amazônicos perde a sua essência ao carecer de maior participação e descentralização das decisões. A opção pela presença da iniciativa privada e das grandes empresas desequilibra qualquer proposta de desenvolvimento regional, pendendo-a para a vertente econômica. Emerge, assim, a necessidade de conscientização de que as políticas de desenvolvimento devem abarcar o preceito da qualidade de vida e do bom convívio social. Não obstante, as estratégicas para implantar visões alternativas de mundo só são possíveis de florescer quando encontrarem espaços diante das pressões econômicas. Em qualquer dos casos analisados, nota-se o argumento da criminalização dos movimentos sociais e o consequente aumento na repressão sobre os mesmos. A criminalização ocorre com a promulgação de leis antiterror a serem aplicadas aos movimentos sociais. A legislação, imersa nas contradições políticas, penaliza os defensores de Direitos Humanos que se envolvem em conflito direto com a força policial nos protestos sociais. Como visto no Equador, as lideranças indígenas Marlon Santi e Delfín Tenesaca, envolvidas na manifestação ocorrida em Otavalo, em 24 de junho de 2010, 17 O estudo da autora é sobre a Amazônia brasileira, mas entende-se que sua percepção pode ser aplicada aos casos expostos sobre a Amazônia Internacional.
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foram processadas por terrorismo e sabotagem. A criminalização cria estereótipos e refunda-se no mito do mundo de destino único. Mais do que isto, ilustra a fragilidade da democracia, sem esferas de participação e sem capacidade de livre oposição. Neste caso, as mortes dos defensores dos direitos ambientais também ilustram a violência do encontro de historicidades distintas que tem marcada as fronteiras amazônicas, em especial, a brasileira. Nessas fronteiras, como visto, para que as diferenças desaparecessem, o outro, o essencialmente diferente, foi desumanizado. Como um ser sem importância, qualquer atitude de violência praticada contra essa população é válida. Dessa forma, frisa-se que, para além do conflito econômico, emergente de uma proposta de desenvolvimento focada nas atividades extrativistas e mineradoras, tem-se o conflito humano, isto é, a degradação do outro ao considerá-lo como não-humano, como alertou Martins (2016). Expulsar, expropriar, violentar e matar são pressupostos assumidos por aqueles que desqualificam a humanidade do homem amazônico. Destarte, cada uma das violações mereceria ser discutida em seus detalhes. Contudo, uma visão macro dos acontecimentos possibilita ver os padrões de uma dinâmica que atravessa os estados nacionais e configura uma região. Proporciona uma visão sobre a floresta amazônica como um palco de demandas e disputas. Notou-se que a política dos Estados se vale do discurso do desenvolvimento e do progresso como se ambos significassem valores universais e de resultado benéfico para todos. Conquanto, não há uma visão única de desenvolvimento, assim como só há valorização dos direitos humanos quando se promove o diálogo intercultural considerando os entendimentos diversos do que seja o futuro e a vida digna. Fora deste âmbito, como posto, o que se reproduz são as violações dos direitos humanos, estigmatizando e marginalizando as reivindicações advindas das fronteiras amazônicas. Referências
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CAPÍTULO 17 A ACTIO POPULARIS E DIREITO INTERNACIONAL Marcus Vinícius Xavier de Oliveira
Introdução
A discussão acerca da vigência e aplicabilidade do instituto da actio popularis no Direito Internacional contemporâneo, e que se liga diretamente à regra aut dedere aut judiciare, bem como seus significados e efeitos, cuja origem remonta, até onde pudemos aferir, aos casos Etiópia e Libéria vs África do Sul (South-West Africa Cases), julgados pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) nos anos de 1962 (primeira fase) e 1966 (segunda fase), constitui-se, conforme se procurará demonstrar nas linhas que se seguem, em um tópico privilegiado para se dilucidar as diferenças existentes entre os sistemas internacionais westfaliano1 e da Carta2, mormente no que concerne à legitimidade para os Estados atuarem na proteção daquilo que M. Sherif Bassiouni denomina de valores e interesses comuns (common-shared vallues e common-shared interests) da sociedade internacional, com especial ênfase nos campos do Direito Penal Internacional (proscrição e persecução dos autores de crimes internacionais próprios e/ou transnacionais),
1 Denomina-se Sistema Internacional Westfaliano a ordem internacional surgida no século XVI e que, pondo termo ao sistema internacional do medievo no mesmo passo em que pacificou o continente europeu com o término da Guerra dos Trinta Anos, se fundou sobre os seguintes princípios internacionais, a saber: “1. Os sujeitos do direito internacional estão vinculados às normas do direito internacional consuetudinário que lhes sejam aplicáveis e pelos princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas. 2. Podem ser impostas a um sujeito da ordem legal internacional obrigações internacionais adicionais só com o seu consentimento. 3. O exercício da jurisdição internacional é exclusivo para cada Estado, a menos que esteja limitado ou excepcionado por normas do direito internacional. 4. Em certos e especiais casos, os sujeitos do direito internacional podem pretender jurisdição sobre coisas ou pessoas fora de sua jurisdição territorial. 5. A menos que existam regras permissivas, a intervenção de um sujeito de direito internacional na esfera da exclusiva jurisdição doméstica dos outros sujeitos constitui uma ruptura da ordem jurídica internacional” (José Bremer, 2013, p. 66-67). 2 “La Charte des Nations Unies, en second lieu, qui a substitué au “modèle de Wetphalie”, caractérisé par la force comme principale source de légitimité, le “modèle de la Charte” (ou “droit des Nations Unies”) qui refuse toute légitimité au recours à la force” (Weil, 1992, p. 28).
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cuja vinculação, ademais, com o Direito Internacional dos Direitos Humanos é mais do evidente: é de essência3. O estudo do instituto é importante porque, nada obstante à defesa da tese feita pelos internacional-constitucionalistas de que a sociedade internacional contemporânea já se constitua em uma Comunidade Internacional4, parecem-nos mais acertadas as afirmações de Pastor Ridruejo, Thomas Kleinen, Prosper Weil, dentre outros autores, para os quais, de fato, isso ainda não ocorreu. Para aquele primeiro, a característica mais destacada da sociedade internacional contemporânea é a de se encontrar numa fase de transição de uma sociedade de justaposição – modelo westfaliano de Estados independentes – para uma sociedade de cooperação – modelo da Carta –, em que, ao lado dos interesses particulares dos Estados, passa-se a ter um maior compartilhamento de interesses e valores universais e/ ou comuns que devem ser protegidos não pelo Estado, mas pelos Estados a partir de um regime de cooperação que tem na juridicização (Direitos Internacionais Especiais), na institucionalização (constituição de Organizações Internacionais e/ou regimes internacionais) e na jurisdicionalização (sistemas judiciais ou quase-judiciais de soluções de controvérsias) as suas marcas mais significativas (Pastor Ridruejo, 2014, p. 48-49). Já para Kleinen, o que existe, de fato, é uma Comunidade Internacional em potência, posto que, para sua concretização na facticidade história, deveriam estar presentes os “[...] elementos centrais da dimensão dogmática da teoria da constitucionalização [...], [quais sejam], [...] a hierarquia das normas do direito internacional, o desenvolvimento de uma ordem universal que objetive a proteção dos bens comuns e a vinculação normativa do exercício das competências públicas para além do Estado” (Kleinen, 2012, p. 315). Nesse sentido, este estado paradoxal de já, mas ainda não – restando pensar-se, doutro polo, se a efetiva constitucionalização da sociedade internacional é, de fato, factível e desejável (Macedo, 2016, p. 424) –, tem causado não poucas perplexidades nos estudiosos do Direito Internacio3 “The identification, application and enforcement of commonly-shared values and commonly-shared interests by the modern international legal system presuppose the existence of a community that postulates certain universal objects and moral imperatives requiring certain actions and compelling the refraining from others. From there we identify the boundaries that limit the actions of states, impel them to cooperate for the common good and act in the common interest. To argue that this is exclusively a moralistic approach is to ignore all that which common experience teaches based on the lessons of justified pragmatic considerations, enlightened self-interest, and prudent judgment. An international community is not therefore dependent on the existence or even the desirability of a world government” (Bassiouni, 2006, p. 2). 4 “The international legal order is not the same as it was 66 years ago […] today a community […] would seem to come closer […] to really than any time before […] States live […] within a legal framework of a limited number of basic rules which determines their basic rights and obligations with or without their will […] every State receives its legal entitlement to be respected as a sovereign entity, the constitution of international society […] community being a term suitable to indicate a closer union than between members of a society […] Thus, Article 2 (1) of the UN […] Article 38 of the Statute […] Article 26 of the Vienna Convention […] good faith. All of these principles and rules may be relied upon to identify the juridical architecture of the international system […]” (Tomuschat, 1993, p. 211-212).
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nal, pelo que muitos têm apelado ao fato de que, com a queda do muro de Berlim em 1989 e os seus desdobramentos posteriores, a sociedade internacional tenha ingressado numa fase de transformações efetivas e concretas rumo à Comunidade Internacional. Importante, entretanto, repisar as lições de Prosper Weil em seu Cour Général na Haia, em 1992, que se firmando nas lições de Maurice Bourquin de 19315, afirma que a ideia de que a queda do muro de Berlim e o fim do império soviético teriam dado novo impulso ao Direito Internacional não passa de um trompe-l’oeil. Em verdade, reportando-se às lições de Gerald Fitzmaurice, o autor alude ao contínuo processo de transformações e mudanças que acompanham o Direito Internacional desde sempre, insistindo, ademais, que apesar da contínua institucionalização da sociedade internacional, os Estados continuam os sujeitos internacionais par excellence (Weil, 1992, p. 100-128), mesmo em campos tão prenhes de significados humanitários como o Direito Internacional dos Direitos Humanos. O mesmo para Malcolm Shaw, para quem, nada obstante o: [...] aumento do número de atores e participantes no sistema jurídico internacional, os Estados permanecem, de longe, como as pessoas coletivas mais importantes e, apesar do aumento da globalização e de tudo o que isso implica, os Estados mantêm a sua atração como o principal foco da atividade social humana e, portanto, do Direito Internacional (Shaw, 2008, p. 197).
Segue na mesma direção Shabtai Rosenne, quando afirma que as transformações pelas quais o Direito Internacional tem passado não lhes são nem estranhas nem lhes retira o seu caráter perene de fator regulante da sociedade internacional conformada, principalmente, mas não exclusivamente, por Estados. Muito pelo contrário, se o Direito Internacional ainda permanece como critério imperioso para as relações entre os Estados, é em razão mesmo dessa sua capacidade de adaptação às constantes mudanças pelas quais tem passado a sociedade internacional, e isso em razão do papel preponderante que o princípio da boa-fé sempre ocupou no âmbito das relações internacionais (Rosenne, 2004, p. 449-455). Assim, o tema abordado no presente trabalho parece constituir-se num dos meios pelos quais as conhecidas deficiências do Direito Internacional, sinteticamente alocadas por Pastor Ridruejo nas expressões “carências insti5 “C’est devenu une banalité de dire que le droit international est en pleine transformation. Non seulement ses emprises sur la avie des peuples se multiplient, mais le conceptions qui l’inspirent subissent um profond renouvellement... S’il n’y a point, à vrai dire, de solutions de continuité, il y a des phases d’évolution rapide, où le paysage ancien se désagrège sous les regards du spectateur, pour laisser apparaîte l’ébauche d’um paysage nouveau, dont le temps précisera les contours et qui finira par régner sans partage. Que nous soyons dans une telle période, trop de signes l’attestent pour qu’il soit permis d’em douter. C’est ce qui fai aujourd’hui l’intérêt passionnant du droit international. C’est ce qui fait em même temps la dificulte de son étude” (apud Weil, 1992, p. 26).
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tucionais” e “politização alargada”6, poderiam ser mitigadas, mormente porque pressuporiam não a informação das jurisdições nacionais (rectius: soberania), mas na exigência de atuação concreta e institucionalmente adequada dos Estados na defesa dos valores e interesses comuns da humanidade, e que tem nos Direitos Humanos e na proscrição dos crimes internacionais, em especial nos stricto sensu (Genocídio, Crimes Contra a Humanidade, Crimes de Guerra e Crimes de Agressão), o locus central de conformação. A actio popularis no Direito Romano
O instituto de que cuida o presente trabalho tem sua origem situada no Direito Romano. Para Aron X. Fellmeth e Maurice Horwitz, a actio popularis tinha por fundamento a ideia de que tanto o Estado como qualquer cidadão detinham legitimidade para pleitear judicialmente a proteção de interesses públicos, constituindo-se, nesse sentido, numa “qui tam action”, expressão que tem origem na sentença “qui tam pro domino rege quam pro se ipso in hac parte sequitur”, do que exsurge a ideia de uma corresponsabilidade e legitimidade concorrente entre cidadãos e o Estado. Esse “qui tam” constitui-se, portanto, no principal fundamento pelo qual a maior parte dos ordenamentos jurídicos da família romano-germânica, pelo menos em suas fases de regimes republicanos e/ou democráticos, têm assegurado actiones populares para que o cidadão proponha medidas judiciais que objetivam a tutela de interesses públicos (Fellmeth, Horwitz, 2009, p. 12 e 240). No mesmo sentido asseverava M. Seabra Fagundes, para quem: Ação popular é aquela por meio da qual o indivíduo provoca o pronunciamento do órgão judicante (em nosso regime político o Poder Judiciário) sobre atos ou abstenções da Administração Pública, que, não ferindo direito seu, afetem, de qualquer modo, o direito objetivo no que concerne aos serviços públicos, ao domínio do Estado, às servidões administrativas e às obrigações públicas. É instrumento posto a serviço dos membros da coletividade para o controle permanente da legitimidade extrínseca (e, às vezes, também intrínseca) do procedimento administrativo. No dizer de Gascon y Marin, completa o regime de direito a que se vincula a Administração Pública. Segundo Ranelletti, a ação popular pode ter sentido corretivo, se visa a reparar erro da Administração na realização do direi-
6 “Comparado com os Direitos internos dos Estados, o Direito Internacional Público se nos apresenta como uma disciplina especialmente problemática, caracterizada por umas denunciadas carências institucionais que causam incertezas e relativismos no plano normativo, graves insuficiências na prevenção e na sanção de [sua] violação e uma politização alargada – ainda que não absoluta – na solução de controvérsias, quando não na impossibilidade de sua resolução” (Pastor Ridruejo, 2014, p. 23).
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to, e supletivo quando procura suprir a inércia da autoridade pública fazendo executar lei, cuja aplicação se descurou (Fagundes, 1946, p. 1-2).
Para Adolf Berger, as actiones populares consistiam em: [...] ações que podiam ser propostas por “qualquer um do povo” (quivis [quilibet] ex populus). Elas tiveram origem pretoriana, [e] objetivavam proteger o interesse público (ius populi). Eram de natureza Penal e, em caso de condenação do infrator, o demandante recebia a penalidade paga [...]. Contudo, algumas foram estabelecidas em leis ou Ordenações, em que a pena era paga para o Estado ou para o tesouro municipal, ou dividido entre o aerarium e o acusador, como, por exemplo, a prevista em um decreto do Senado para o caso de danos aos aquedutos (D. 47, 23) (Berger, 1953, p. 347).
Contudo, para Egon Schwelb essa afirmação peremptória de que se constituíam essencialmente em ações de natureza penal não é certa. Com efeito, conforme Schwelb: No direito romano, a actio popularis era uma ação que era proposta por qualquer membro do público (quivis ex “populo). As duas ações populares mais importantes e mais conhecidas descritas abaixo tinham certo elemento penal e de ordem pública [policing], mas não eram tanto “instituições do direito penal romano”, mas parte do direito das obrigações. Surgiram no âmbito de ações originadas de quasi ex dellicto, [que] muitas vezes, não muito precisamente, [são] chamadas de “quase-delitos”. Os assim chamados quase-delitos eram instituições não da antiga lei penal romana, mas da lei pós-clássica e, principalmente, do código Justiniano. Um quase-delito era um fato que, sem ser um delito, criava obrigações semelhantes às decorrentes de um delito, isto é, [a] responsabilidade de pagar indenização e, em determinados casos, responsabilidade criminal. A actio de deiectis vel effuses se movia em face do proprietário do imóvel de onde coisas tinham sido jogadas ou líquidos derramados, de modo a prejudicar as pessoas na rua. O proprietário também era responsável se seu escravo, convidado ou criança tivesse sido responsável pelo lançamento ou despejo. O pretor romano concedia a actio de posito et suspenso a todos os cidadãos quando as coisas eram dispostas ou suspensas no exterior de uma casa ou numa janela de forma a pôr em perigo os transeuntes (Schwelb, 1972, p. 47).
Esse problema pertinente à natureza da actio popularis no Direito Romano, isto é, saber se se constituíam em ações de caráter civil e/ou penal, pode ser solvido em duas obras do romanista Theodor Mommsen. A primeira, contida no volume 3 de suas Gesammelte Schriften, no qual consta 203
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um artigo sobre as Ações Populares [Popularklagen], e a outra no seu Direito Penal Romano, especificamente o Capítulo II, do Livro III, que trata do procedimento penal, intitulado “[D]As partes e da Assistência Jurídica no Procedimento Acusatório”. Em seu Ações Populares (Mommsen, 1907, p. 375 e ss), o autor inicia seu trabalho contestando a opinião defendida por Brunswick segundo a qual o conceito de ação popular somente se aplicava àquelas demandas que poderiam ser propostas por qualquer do povo, mas desde que delas redundassem benefícios ou vantagens próprias, em especial a coparticipação na percepção das multas aplicadas. Mommsen aponta o equívoco dessa concepção ao sustentar que, segundo as fontes, popularis seriam aquelas ações que poderiam ser propostas por qualquer cidadão, e diversamente do que sustentado por aquele autor, por elas se tutelavam o interesse da comunidade7 e não interesses indiretos que poderiam ser aferidos pelo demandante. Confirma a hipótese mommseana o fato de o autor-popular, em caso de urgência, poder propor uma populare interdictum, que como toda medida dessa natureza8, tinha por função permitir a intervenção imediata do órgão competente (judiciário ou governamental, a depender da esfera de competência) para prevenir ou determinar a cessação de dano à coisa pública. Uma vez interposta a ação popular, uma consequência de seu acolhimento seria a determinação de restituição da res publica ao seu estado anterior, bem como a imposição de multa, de caráter civil ou penal, que poderia ou não ser atribuída ao autor popular. Já no Capítulo II do Livro III de seu Direito Penal Romano (Mommsen, 1899, p. 366 e ss), Mommsen informa que na segunda etapa histórica do processo penal romano, coincidente com a República, o antigo modelo inquisitorial fora substituído pelo sistema da actio, o que pressupôs a instituição de um sistema acusatório em que o juiz ocupava uma função equidistante das partes. Ora, se somente no período do Império surgirá a figura do procuratoris principis, a quem competia exercer a acusação? Di-lo Mommsen: A base do procedimento acusatório era a seguinte: aquele que a propunha em representação à Comunidade [Vertretung der 7 “[...] popularis bezeichnet die Handlung, die von jedem Bürger vorzunehmen ist [...]. Als Motiv dieser Anordnung bezeichnen die Rechtslehre nicht, wie Bruns will den Vorteil des Klägers, sondern das Interesse der Gemeinde“ (Mommsen, 1907, p. 376-377). 8 “An order issued by a praetor or other authorized official (proconsul in the provinces) at the request of a claimant and addressed to another person upon whom a certain attitude is imposed: either to do something or to abstain from doing something. The interdictal procedure is more administrative than judicial in nature and differs from a normal trial in that there is no division of the proceedings into two stages inasmuch as the issuance of an interdictum depends upon the magistrate as an act of his imperium, not of jurisdiction. The interdictum is a provisory remedy with the purpose of protecting existing situations by a quick decision of the official. It fulfills ts task-a speedy ending of a controversy-only when the adversary complies with the order. If he does not, the subsequent procedure which assumes the form of a normal trial, though not without certain particularities resulting from the fact that an interdict had been issued, is rather complicated and perhaps even slower than an ordinary process” (Berger, 1953, p. 507).
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Gemeinde] em razão dos danos que lhe foram impingidos, uma pessoa tomava sobre si referido encargo e assumia referida responsabilidade, [mas] não de ofício, isto é, em razão de seu cargo, mas por própria e livre resolução. Esta pessoa era o acusador ou demandante [...] O fato de não [se] exercer a ação ou demanda em razão do delito poderia dar origem a desvantagens jurídicas àquele que não a exercesse, enquanto que o seu exercício poderia produzir vantagens jurídicas aos acusados. Entretanto, não existia no direito meio coativo algum para obrigar alguém a interpor a ação, de modo que se nenhuma pessoa acusasse por sua própria vontade, o delito restava impune, salvo as hipóteses em que intervinha a cognitio [...] (Mommsen, 1899, p. 366).
Em síntese, portanto, se pode concluir que as ações populares no direito romano não eram identificadas pela natureza jurídica da causa – civil, quase-delito ou delito –, mas: a) pela legitimidade ativa atribuída a qualquer cidadão; b) pela natureza jurídica do interesse tutelado, a saber, coletivo [res publica]; e c) pela intenção que movia o autor popular, isto é, preservar o interesse coletivo ante as insuficiências institucionais do regime jurídico, uma vez que, sem a sua intervenção, ele encontrava-se sob ameaça de dano. Que o processo penal republicano se assentasse sobre a acusação popular como forma se evitar a impunidade, haja vista a inexistência de órgão público dotado de titularidade exclusiva para a ação, constitui-se em uma circunstância bastante significativa para se dilucidar a actio popularis tal como prevista no Direito Internacional contemporâneo, em especial no tema relativo aos crimes internacionais, já que, sem a atuação dos Estados no tocante ao binômio prevenção-persecução, remanesceria aquele fato que se pretendia evitar com a acusação popular, a saber, a impunidade. A inserção da actio popularis no Direito Internacional: os casos Etiópia e Libéria vs África do Sul
Conforme divisado nas linhas iniciais, até onde se pode divisar nas pesquisas efetuadas, a actio popularis ingressou nos debates do Direito Internacional a partir dos Casos Etiópia e Libéria vs África do Sul, julgados pela CIJ entre os anos de 1962 e 1964, tendo por substrato fático-jurídico as distorções promovidas pela África do Sul na execução do mandato de tutela outorgado pela Liga das Nações logo após o término da Primeira Grande Guerra Mundial. Até então, o Sudoeste Africano constituía-se em colônia alemã, cuja ocupação se dera durante o II Reich sob o reinado do Kaiser Wilhelm I e a chancelaria de Bismark, que logo após a Conferência de Berlim se lançou à ocupação dos “espaços vazios” que restavam no continente africano. Vazio, no entanto, de ocupações coloniais europeias, uma vez que referi205
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do território era habitado pelas etnias herero e ovambo, sendo que aqueles se tornaram nas primeiras vítimas do “crime dos crimes” que se daria no continente europeu durante a Primeira (com os armênios) e a Segunda Grandes Guerras (com judeus e ciganos): o genocídio. Diga-se, somente de passagem, que só recentemente se reconheceu o genocídio contra os herero como tal. Mesmo um autor tão destacado em seus estudos acerca da origem do genocídio como Schabas, reconhece-o somente desde o armênio, e não antes, muito embora faça eco à famosa frase sartriana, segundo a qual “[...] o genocídio é tão antigo como o mundo” (Schabas, 2009, p. 1 e ss). O Sudoeste Africano somente conquistou sua independência da África do Sul em 1990, quando, após a luta pela descolonização, fortemente apoiada, em nível político, pelas Nações Unidas, e militarmente pela Angola pós-desconolonização, constituindo-se hoje na República da Namíbia (Enciclopédia do Mundo Contenporâneo, 2002, p. 434-436). Como já dito, as demandas foram propostas em 04/11/1960 pela Etiópia e pela Libéria tendo por objeto o mandato outorgado à África do Sul pela Liga das Nações, e que em razão de este organismo ter sido sucedido pelas Nações Unidas, o mandato detinha a natureza de tratado internacional vigente, bem como os deveres e obrigações decorrentes do mesmo9. Em referidas reclamações, os Governos alegaram a jurisdição da CIJ com fundamento nos artigos 8º, I da Carta das Nações Unidas (CONU), artigo 7 do Mandato e 37 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (ECIJ). Tendo a África do Sul sido notificada para apresentar a sua defesa preliminar, em 30/11/1961 ela apresentou suas Objeções Preliminares, pelo que foram suspensos os procedimentos de análise do mérito. Nesse interregno, tanto os demandantes como a demandada apresentaram juízes ad hoc, nos termos do artigo 31, §3º do ECIJ. A base da reclamação tinha por objeto o fato de que a África do Sul havia modificado de forma substancial e unilateral os termos do mandato outorgado pela Liga das Nações, bem como violado os deveres de prestação de contas mediante a apresentação anual de Relatórios às Nações Unidas, deixando de dar cumprimento a seus deveres de promover o bem-estar econômico e moral da população, mormente por ter instituído em referido território a política de Apartheid já vigente no seu território, práticas com as quais ela: adotou e aplicou legislação, regulamentos administrativos e ações oficiais que suprim[iram] os direitos e as liberdades dos habitantes do Território, essenciais à sua evolução ordenada 9 É importante lembrar, ademais, que a CIJ já afirmara em outra ocasião que o mandato outorgado pela Liga das Nações à África do Sul constituía-se: a) em um tratado internacional, b) vigente e c) e que deveria ser cumprido de boa-fé por este Estado no contexto do sistema da Carta, conforme ficará as resoluções aprovadas pela AGONU por ocasião de sua Primeira Seção de 1946 (CIJ, 1950).
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para o autogoverno, cujo direito é implícito no Pacto da Sociedade das Nações, aos termos do Mandato e aos padrões internacionais [...] aceitos, consagrados na Carta das Nações Unidas e na Declaração dos Direitos do Homem [...] (CIJ, 1962a, p. 14).
O Juiz Bustamente, em seu voto em separado, destacou expressamente quais seriam esses direitos: liberdade pessoal e proibição de escravismo, liberdade de consciência e de religião, proibição de discriminação perante o Mandatário e acesso à educação, desenvolvimento econômico e independência política. Nesse ponto, é importante citar as diversas Resoluções que Assembleia Geral das Nações Unidas (AGONU) aprovou em sua Primeira Seção, no ano de 1946, acerca da absorção pela ONU de funções políticas ou não, acordos, tratados, bens etc existentes sob o regime da Liga das Nações, com especial ênfase na relação sistema de mandato (Liga das Nações) – sistema de tutela (ONU)10. Assim, esquematicamente, tem-se que: a) pela Resolução 9 (I) de 09/02/1946, a AGONU reconheceu que as sociedades sem capacidade de auto-governo constituam numa das principais causas de conflitos internacionais, pelo que assumiu a administração provisória dos regimes de mandato da Liga das Nações nos termos do artigo 79 da CONU, tendo decidido, doutro polo, pela criação da Comissão de Tutela; b) pela Resolução 24 (I), de 12/02/1946, a AGONU decidiu pela constituição de comissão interorganizacional de gestão do processo de transferência das atividades administrativas e políticas da Liga das Nações para a ONU, bem como os respectivos documentos, acordos, tratados, bens etc, dentre os quais se encontravam os acordos de relativos aos mandatos, ex vi da Resolução 51 (I), de 14/12/1946; pelas Resoluções 63, 64 e 65 (I), respectivamente, de 13 e 14/12/1946, a AGONU aprovou a criação do Conselho de Tutela (Resolução 63), e os Acordos de Tutela referentes aos territórios da Nova Guiné (Austrália), Ruanda-Urundi (Bélgica), parte do território de Camarões (França), parte do território de Togolândia (França), Samoa Oeste (Nova Zelândia), Tanganica (Reino Unido), parte do território de Camarões (Reino Unido) e parte do território de Togolândia (Reuno Unido) (Resolução 64). No que toca à Resolução 65, a AGONU indeferiu o pedido formulado pelo Governo da África do Sul de anexar o território do Sudeste da África e, reportando-se às Resoluções 63 e 64, concitou a África do Sul a apresentar à AGONU projeto de Acordo de Tutela sobre o território, bem como que ela, enquanto não provisse o projeto e ele fosse aprovado, continuasse a execer, de conformidade com o Mandato outorgado pela Liga das Nações, a administração do território. 10 Disponível em: http://research.un.org/en/docs/ga/quick/regular/1, Acesso em: 22 jan. 2016.
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A África do Sul, em sua Defesa Preliminar, alegou que os dois Estados não detinham locus standi para promover o contencioso, sendo que em suas sustentações orais reforçou referida ideia ao infirmar a existência de jurisdição da CIJ para julgar a contenda, mormente porque: a) com a dissolução da Liga das Nações, o Mandato decaira de vigência; b) que tanto a Liberia como a Etiópia, por não terem sido membros da Liga das Nações, careciam de locus standi para pleitear a jurisdição da Corte no que tange ao Mandato; e c) que a Liberia e a Etiopia careciam de interesse processual na interposição da reclamação internacional, seja porque o território do Mandato não pertencia a nenhum desses Estados nem apresentava qualquer violação a direitos de seus nacionais. Na primeira fase, portanto, a CIJ apreciou a arguição de incompetência da Corte tendo por parâmetro, de um lado, a alegação dos proponentes, que o fizeram, como visto, a partir da combinação dos artigos 8º, I da CONU, 7 do Mandato e 37 do ECIJ, e de outro lado aferir se a Etiópia e a Libéria detinham, de fato, locus standi, mormente a partir do precedente advindo do caso Mavrimmatis Palestine Concessions da Corte Permanente de Justiça Internacional (CPIJ), segundo o qual, o locus standi adviria da existência de uma desavença (disagreement) “[...] on a point of law or fact, a conflict of legal views or interests between two persons” (CIJ, 1962a, p. 22), cuja aferição deveria ser encontrada no caso concreto desde a sua facticidade histórica e da oposição jurídica que a pretensão de fato ou de direito concretiza, e não, somente, dos argumentos que as partes em litígio enunciavam. Para a CIJ, a existência da lide encontrava-se perfeitamente clara ante a desavença acerca dos cumprimento dos termos do mandato pela África do Sul, uma vez que o mandato, tendo sido conferido pela Liga das Nações, tinha por fundamento [...] o reconhecimento de determinados direitos [comum a todos os] povos [para os] povos de um território subdesenvolvido; o estabelecimento de um regime de tutela por uma nação desenvolvida como [um] mandato em nome da Liga das Nações; o reconhecimento de uma “sagrada confiança da civilização” [sacred trust of civilisation] outorgado à Liga como comunidade internacional organizada e aos Estados membros. Este [sistema de Mandato é] dedicado ao objetivo declarado de promover o bem-estar e o desenvolvimento de tais povos, reforçado por meio da criação de salvaguardas para a proteção de seus direitos (CIJ, 1962a, p. 24). Nesse sentido, os interesses e poderes que o mandatário recebia se constituiam em meros instrumentos [tools] para a fiel execução dos objetivos desse instrumento. Em outros termos, ao assumir o mandato, assumia eo ipso os deveres e obrigações inerentes ao regime, não lhe subsistindo qualquer interesse externo a seu fiel cumprimento perante a comunidade internacional e a Liga das Nações, quais sejam, a de prestar, 208
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anualmente, contas do mandato e a implementação de seus cláusulas fundamentais, e, de outro lado, a de exercê-lo de conformidade com a “sagrada confiança da civilização”. No que tange à natureza jurídica do mandato, a CIJ reconheceu, expressamente, constituir-se em tratado internacional celebrado entre a África do Sul e o Conselho da Liga das Nações, e que se distanciava dos tratados internacionais anteriores pelo fato de ter sido celebrado não entre dois Estados, mas entre um Estado e uma Organização Internacional, sendo que, em razão da absorção da Liga das Nações e da CPIJ pela ONU e a CIJ, referido mandato encontrava-se sob a autoridade daquela primeira e sob a jurisdição dessa última, e uma vez que os litigantes eram membros da ONU, bem como aceitaram a jurisdição da CIJ, ao ratificarem o seu Estatuto, a jurisdição contenciosa prevista no artigo 7º do mandato poderia ser exercida pela CIJ. No que tange ao tema do locus standi, a CIJ considerou-a presente em razão do regime jurídico do mandato pressupor não somente a tomada de contas pela então Comissão Permanente de Mandatos e a Assembleia Geral da Liga das Nações, mas também pelos Estados membros – que podiam requerer informações adicionais quanto ao seu cumprimento –, sendo que, na opinião da Corte, a única forma efetiva de proteger esse regime era a de um Membro ou Membros da Liga invocar(em) o artigo 7 e apresentar(em) uma demanda contra o Mandatário invocando a jurisdição da CPJI. Em razão de a Liga das Nações ter sido absorvida pela ONU, referidos direitos, obrigações e jurisdição continuavam em vigência em razão do princípio geral do direito da continuidade dos mandatos, e que foram direta ou indiretamente reconhecidos pelos Estados que participaram das discussões na AGONU quando do debate acerca da assunção de tais mandatos por este organismo. Nesse sentido, a afirmação de que os Estados demandantes detinham locus standi para provocarem a jurisdição contenciosa da Corte se submetia na ideia de que, ao atuarem como membros da comunidade internacional, com o objetivo de, um lado, assegurar o fiel cumprimento do mandato fundado sobre a “sagrada confiança da civilização”, e que tinha, por outro lado, o objetivo declarado de promover o bem-estar e o desenvolvimento dos povos submetidos a referido regime, o que era reforçado pela criação de salvaguardas para a proteção de seus direitos, os Estados agiam na forma de uma actio popularis; vale dizer, objetivavam não a tutela de um interesse particular, mas de interesses comuns da sociedade internacional que estavam sendo violados tanto pela ausência de prestação de contas pelo mandatário, como pelo estabelecimento de uma política de Estado, que em período posterior veio a ser considerada como genuíno crime internacional próprio – conforme previsto no International Convention on the Suppression and Punishment of the Crime of Apartheid, de 1973. 209
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Entretanto, é importante frisar que, diversamente do que se poderia esperar, a expressão actio popularis somente foi empregada pelo então Presidente M. Winiarski para negar que os Estados demandantes detinham locus standi, pois, em sua concepção, o Direito Internacional não o reconhecia como instituto vigente nem em 1919-1920, nem à época do julgamento das questões preliminares: The characteristic feature of this alleged supervision was that it could be brought into operation by any Member of the League which considered that there existed between it and the mandatory administration “a disagreement on a point of law or fact, a confict of legal views” on the way in which the Mandatory was exercising its Mandate. Reference has been made in this connection to an institution under the old Roman penal law known as “actio popularis” which, however, seems alien to the modern legal systems of 1919-1920 and to international law. 1s it possible that such can have been the common intent of the framers of the Mandate instruments? There is no evidence for it, it has been asserted without any attempt to show that it was so; on the contrary, it would seem that the circumstances in which the Mandate was established exclude such an eventuality (CIJ, 1962a).
Por fim, o último ponto alegado pela África do Sul na infirmação da jurisdição da Corte – a de que não existiria um litígio entre os demandantes, mormente porque desde 1946 ela se encontrava em processo de negociação diplomática com as Nações Unidas para estabeleber o Acordo nos termos do sistema de tutela, e que, portanto, a Etiópia e a Libéria também participavam dessas deliberação na forma de Estados membros da ONU –, a Corte o rechaçou sob o argumento de que, seja com a propositura da demanda seja nos procedimentos orais, restou clara a existência de uma lide em torno à execução do mandado, não subsumível nem abrangido pelas negociações coletivas havidas na ONU. Assim, por oito votos a sete, a CIJ, afastando as objeções formuladas pela África do Sul, declarou-se competente para julgar as demandas propostas pela Libéria e a Etiópia. Contudo, na segunda fase de julgamento do caso em 1966, a Corte, seguindo o voto proferido pelo então Juiz-Presidente M. Winiarski quando da apreciação das Objeções Preliminares, decidiu, por maioria, não conhecer das reclamações propostas pelos Estados, conforme resta evidenciado na Ementa da decisão: Alleged contraventions of League of Nations Mandate for South West Africa - Question of the legal status of the Applicants-Status governed by their position as former members of the 210
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League - Antecedent question arising on the merits of the case whether Applicants, as individual States former members of the League, have any legal right or interest in the subject-matter of their claim - Character of the mandates system within the framework of the League-Effect of Article 22 of the League Covenant instituting the system generally - Obligations of each mandatory defined its particular instruments of mandate - Structure of these instruments - Clauses conferring in respect of the mandated territory direct commercial or other special rights on League members its their capacity as separate States - Clauses providing for the carrying out of the mandate as a “sacred trust of civilization” in regard to the inhabitants of the territory-Mandatory’s obligations under latter class of clauses owed to League as an entity, not to member States individually - Lack of any legal right for member States individually to claim performance of these obligations -Additional rights not acquired by reason of dissolution of the League. Political, moral and humanitarian considerations not in themselves generative of legal rights and obligations. Jurisdictional clause of the mandates - Effect of decision given by the Court in 1962 on the question of ifs competence - Relationship between decisions on a preliminary objection and any question of merits -Inability in principle of Jurisdictional clauses to confer substantive rights - Capacity to invoke a jurisdictional clause does not imply existence of any legal right or interest relative to the merits of the claim - Interpretation of jurisdictional clause of the mandates - Jurisdictional clauses of the minorities treaties not comparable - Analysis of League practice in respect of mandates - Inconsistency with existence of rights now claimed by the Applicants. Functions of a court of law - Limits of the teleological principle of interpretation - Court not entitled by way of interpretation to revise, rectify or supplement (CIJ, 1966).
A Corte, portanto, ao afirmar que “[...] [c]onsiderações políticas, morais e humanitárias, por si só, não geram direitos e obrigações legais [...]” a se legitimar a propositura das demandas, negou a vigência e a incidência da actio popularis no contexto do Direito Internacional. Egon Schwelb e a crítica à decisão da CIJ
Parece não existir dúvida razoável no que toca à natureza da discussão acerca da vigência da actio popularis no Direito Internacional no contexto dos casos Etiópica e Libéria vs África do Sul: tratou-se de aferir, em suas duas fases, se este instituto constituía-se em um princípio geral 211
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do direito reconhecido pelas nações civilizadas, nos termos do artigo 38, 1, “c” do ECIJ, do que decorreria a legitimidade para que os dois Estados demandassem face à África do Sul objetivando a tutela jurisdicional não de seus interesses nacionais, mas a preservação da “sagrada confiança da civilização” expressa no Mandato. Verificou-se, nesse sentido, que segundo a concepção da maioria da Corte, seguindo o voto dissidente proferido pelo então Juiz-Presidente M. Winiarski na primeira fase do julgamento, que não, mormente por ter considerado que, repitamos, “[...] [c]onsiderações políticas, morais e humanitárias, por si só, não geram direitos e obrigações legais [...]” (CIJ, 1962a). Em crítica a essa decisão da CIJ, Egon Schwelb publicou em 1972 um de seus muitos trabalhos com os quais granjeou destaque na comunidade internacionalista – The Actio Popularis and International Law –, pelo qual ele comprovou que a interpretação dada pela CIJ ao instituto era equivocada, principalmente porque os muitos tratados internacionais vigentes sobre matérias como o Direito Penal Internacional e Direito Internacional dos Direitos Humanos se assentavam, como forma de prevenção/repressão às graves violações ao Direito Internacional, sobre o a corresponsabilidade e colegitimidade para a tutela jurisdicional de referidos interesses e valores comuns (Schwelb, 1972). Contudo, seguindo as trilhas lançadas por Alfred P. Rubin, parece ser exagerado afirmar-se que se possa atribuir a Schwelb a “paternidade” ou mesmo a “primazia” na inserção da actio popularis no Direito Internacional, mesmo porque, como visto, o seu texto é uma crítica ao julgamento da CIJ, na qual o problema do reconhecimento internacional do instituto já fora discutido (Rubin, 2000/2001, p. 268). Ademais, Schwelb não foi o único nem o primeiro a discutir os muitos problemas decorrentes da decisão da CIJ. Prott, por exemplo, discutiu as muitas dificuldades enfrentadas pela Corte já na primeira fase, uma vez presentes desde a própria complexidade da matéria julgada, a heterogeneidade da composição da Corte, isto é, juízes advindos de culturas jurídica distintas – common law, civil law, direito soviético, direitos islâmico e asiático –, o manifesto caráter político-jurídico das pretensões postas em juízo, pelo que considerou que referida decisão constitui-se, para o Direito Internacional, como uma sorte de “[...] Rubicon, not only because of the uncommon nature and of the importance of the issues involved, but also because the most fundamental matters of function and method were wrestled with […]” (Prott, 1967, p. 37-51), especialmente no tocante aos próprios limites da atuação da Corte e na manifesta contraposição que se estabeleceu entre os partidários de um intervenção orientada por princípios (a maioria), face à minoria que se orientou, na linha dos votos dissidentes dos Juízes Fitzmaurice e Spender Jr, por uma interpretação legalista. 212
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Já MacKean, em um trabalho cindido em duas partes, enfrentou os problemas advindos do julgamento da seguinte forma. Na primeira parte de seu trabalho, intitulado “Legal right or interest” in the South West Africa Cases (MacKean, 1966a, p. 135-141), ele criticou, de um lado, o fato de a segunda fase de julgamento do caso ter chegado a uma conclusão diametralmente oposta àquela ocorrida na fase inicial, tendo-se em vista que, para tanto, a CIJ se utilizou da máxima pas d’interêt, pas d’action, uma vez que considerou inexistente a presença de interesse jurídico da Etiópia e da Libéria para demandar face à África do Sul, e de outro lado, o fato de a própria Corte ter considerado como razão de decidir na primeira fase que a essência do regime de mandato era que os Estados Membros, e não só o Estado e a Organização Internacional, terem interesse jurídico no adimplemento das cláusulas dos mandatos, do que dessumiria, nesse sentido, o reconhecimento e aplicação do instituto da actio popularis na forma de um princípio geral do direito reconhecido pelas nações civilizadas11. Já na segunda parte de seu trabalho – An examination of Certain Criticism of The South West Africa Cases Judgment (Mackean, 1966b, p. 143-148), MacKean apresenta algumas perplexidades que a comunidade de juristas australianos – internacionalistas e constitucionalistas – sentiram com relação à segunda fase do Julgamento, em especial no tópico relativo à não aplicação da actio popularis, na medida em que, tanto no âmbito da equity como do direito constitucional australianos, ser amplamente reconhecido a legitimidade para particulares proporem ações na defesa de interesses públicos, quanto mais em razão de a “[...] International Court of Justice erred in so far as it refused to regard itself as bound by its decision in 1962, on the preliminary objection to jurisdiction, when it ruled that the applicants were entitled to invoke the Court’s jurisdiction” (Mackean, 1966b, p. 144). Seja como for, há que se reconhecer, no entanto, ser o trabalho de Egon Schwelb bastante didático e preciso na crítica à decisão proferida pela CIJ, na medida em que, conforme por ele demonstrado, o Direito Internacional reconhecia a aplicação da actio popularis já no âmbito de diversos tratados internacionais do período do entre guerras, como, por exemplo, o capítulo III do Tratado de Versalhes, que constitui a Organização Internacional do Trabalho (anterior, portanto, ao Mandato discutido na caso), segundo a qual qualquer Estado membro poderia demandar perante a CPJI face a um ter11 Of course, in the South West Africa Cases, the applicants were not strictly speaking parties to the Mandate agreement but were exercising rights under stipulations per autrui (though this is doubted by some of the minority judges). The Mandates were concluded by the League Council on behalf of its members and the Mandatories. As Judges Jessup, Tanaka, and Mbanefo show in their dissenting opinions, there are clear analogies in municipal law, where members of certain organizations have enforceable legal interests apart from those exercised by the organizations themselves. Moreover in the present circunstances, only States could be parties in contentious proceedings before the Court, the only method of obtaining a binding decision concerning the interpretation and application of the Mandate (Mackean, 1966a, p. 138).
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ceiro Estado que não estivesse a cumprir tratados internacionais ratificados sob a autoridade da Organização (artigo 411 do Tratado de Versalhes c/c artigo 26 da Constituição da OIT). O mesmo no âmbito dos Tratados Internacionais para a Proteção de Minorias, e que haviam sido pactuados pelos litigantes com o término da Primeira Guerra Mundial. Já no sistema da Carta, segundo Schwelb, a essência dos tratados internacionais em matéria de Direito Penal Internacional – Convenção sobre a Prevenção e Punição ao Genocídio, em especial na representação de reclamação perante a AGONU ou o CSONU, mas também em matéria de interpretação ou aplicação de cláusulas do Tratado mediante reclamação judicial perante a CIJ – ou de Direito Internacional dos Direitos Humanos, regionais ou universais – a Convenção Europeia e a Americana; Protocolo à Convenção Contra a Discriminação na Educação, de 1962, Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação etc, reconheceu-se aos Estados Partes a legitimidade para judicializar hipóteses de graves violações ao Direito Internacional, ou mesmo exercer a persecução penal dos autores de conformidade com o seu próprio sistema de justiça. Para tanto, Schwelb se reportou à decisão da própria CIJ na Segunda Fase do caso Barcelona Traction, no qual a Corte fixou as bases das obrigações erga omnes: […] an essential distinction should be drawn between the obligations of a State towards the international community as a whole, and those arising vis-à-vis another State in the field of diplomatic protection. By their very nature the former are the concern of al1States. In view of the importance of the rights involved, al1 States can be held to have a legal interest in their protection; they are obligations erga omnes. Such obligations derive, for example, in contemporary international law, from the outlawing of acts of aggression, and of genocide, as also from the principles and rules concerning the basic rights of the human person, including protection from slavery and racial discrimination. Some of the corresponding rights of protection have entered into the body of general international law […]; others are conferred by international instruments of a universal or quasi-universal character (CIJ, 1970, p. 33).
A mesma Corte que, ainda no ano de 1951, por ocasião do Parecer Consultivo acerca das Reservas à Convenção sobre o Genocídio anotara a distinção entre o objeto de referida Convenção em relação àqueles presentes, e.g., em matérias de interesses particulares dos Estados, uma vez que os princípios nos quais ela se fundamenta são reconhecidos pelas nações civilizadas, como obrigatórios aos Estados, independentemente de serem normas de uma Convenção Internacional; ela 214
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foi concebida como uma convenção de alcance universal; sua finalidade é puramente humana e civilizadora; os contratantes não auferem nem vantagens, nem desvantagens individuais; nem interesses próprios, mas um interesse comum. De onde é permitido concluir-se que o objeto e a finalidade da Convenção implicam, tanto no que respeita à Assembleia Geral, quanto aos Estados que a adotam, a intenção de reunir o maior número possível de participação (CIJ, 1951, p. 7).
Nesse sentido, pode-se colher como correta a crítica de Schwelb à decisão da CIJ na Segunda Fase do caso Etiópia e Lívia vs África do Sul, segundo a qual, o Direito Internacional reconhecia a actio popularis como instituto válido tanto “[...] em 1919/1920, [como] em 1962 e 1966, assim como hoje” (Schwelb, 1972, p. 55). Considerações finais
Se uma democracia consolidada exige, como condição de sua existência, que o cidadão assuma uma postura ativa e institucionalmente adequada para a proteção dos interesses coletivos, o mesmo se dá no plano internacional, uma vez que a realização histórica da rule of law impõe comportamentos políticos que transcendem a mera proteção dos interesses particulares do Estado a fim de que se processe concretamente a defesa comum e também institucionalmente adequada dos interesses e valores comuns da sociedade internacional. Em ambas as esferas, lembrando a máxima que deu origem à actio popularis – qui tam actio –, só há efetiva proteção de referidos valores e interesses – passíveis de serem sintetizados no princípio fundante e conformador da dignidade da pessoa humana –, se houver corresponsabilidade na prevenção geral e/ou especial de comportamentos institucionais e individuais que os violem, donde, por conseguinte, a colegitimidade de todos os Estados em cooperarem na persecução penal, seja por meio da persecução ativa, seja na cooperação internacional por intermédio, e.g., da extradição e da não concessão de asilo político a indivíduos que sejam acusados da prática dos crimes mais graves perante a sociedade internacional. Contudo, colegitimidade e corresponsabilidade devem ser efetuadas cum granus salis, vez que nem os Estados e seus agentes devam agir como se fossem “[...] vindici [...] della sensibilità degli uomini [...]”, isto é, como se fossem xerifes da sociedade internacionais, utilizando-se dos institutos que o Direito Internacional dispôs para a tutela daqueles valores e interesses comuns como meio à satisfação de seus interesses particulares ou para a promoção de suas geopolíticas. Em síntese, é certo que a actio popularis constitui-se em um instituto vigente e legítimo no Direito Internacional contemporâneo, dando azo 215
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àquelas corresponsabilidades e colegitimidades tão caras ao aperfeiçoamento das insuficiências institucionais da sociedade internacional. Referências
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CAPÍTULO 18 HUMAN RIGHTS AND THE PEDAGOGY OF FEAR: A READING OF“IN THE CONSTRUCTION TO THE GREAT WALL OF CHINA”FROM KAFKA Marcus Vinícius Xavier de Oliveira
About the methode, or: the importance of the transdisciplinary
We live in a time were the word “crisis” become a watchorder which legitimate those can call normalized-exception regime. Crisis is spoken of, more than explaining, justifying, and making uncontested the adoption of certain practices and/or policies that, were it not for the semantic and political structure of the concept, we would not consider submitting ourselves under any circumstances (Agamben, 2012). In other words, crisis will identify, at the same time, a judgment guided by that acronym usually attributed to Pierre Bordieu - T.I.N.A (“There Is No Alternative”) -, but which was actually initially used by the then british Prime Minister Margareth Thatcher to justify the implementation of neoliberal policies and the overthrow of social rights (Baumann, 2006, p. 217), but also a slogan identical to attributed to Frederick William II in response to the Kantian sapere aude: “Think as much as you want as long as you obey (Rovighi, 2002, p. 590). This conception is confirmed by the origin the word, originating from the Greek krisis [κρίσις], inicially used in the ars medicina: during the treatment appeared to the physican a time of krisis, of judgment, to make a decision about whether or not the patient will survive. To the ars medicina the concept passed into christian theology to identify the time of Parousia, the second come, with which human history will be consummated in its critical moment, that is, of judgment. In these two contexts, and in those that followed in various fields until we reached the present moment of absolute economicization of life and 221
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politics, crisis identifies a moment of deficium, resolution, consummation, judgment and, therefore, decision on the excpetito, that is, about what is, at the same time, inside and outside the norm. And because we live in a period of continuous crisis, its use is the normalization channel of political exceptionality (Agamben, 2004, 2012). To understand it, we must pay attention to the fact that constitutions exist to regulate the functioning of the State both in periods of political normality and in periods of exceptionality, that is, in moments of serious internal turmoil caused by calamities or serious social conflicts. (e.g., natural disasters, rebellions or civil war) or international conflicts, i.e., war. Therefore, in such exceptional periods, the Constitution itself establishes institutes of extreme political and legal gravity –state of defense and/or state of siege – in which, in order to face such events, certain constitutional norms are suspended, allowing, with this, that the State can face such disturbances and ensure, as the case may be, either its internal unity or its external defense. It happens, however, that the State of Exception is no longer a device of necessary prediction, but of ultima ratio, to become an ordinary means, if not indispensable to the functioning of current representative democracies (Agamben, 2004). In other words, what should be, as its name indicates, exceptional, that is, which should only be triggered in moments of magna trepidatio, has become a biopolitical device for the common, ordinary management of social life, giving rise to the conformation areas of maximum legal protection and others of the purest anomie, in which human life can be eliminated with impunity (Agamben, 2004). Therefore, it is necessary to try to understand this political element that maintains this paradoxical “inside-outside” relationship with the legal system. This is because, as seen, the attempt of the Constitutions to legalize this political element par excellence is, at best, devoid of any effectiveness, since it is the exteriority of the exceptio that allows the Constitution itself of legal orders; inside because, as it is the constitutive element that allows the giving of the constitution (Müller, 2004), it is included in the legal system in the form of its exteriority, and it is up to the sovereign to activate it when the political conditions prove necessary. However, what qualifies the State of Exception? According to Schmitt and Agamben, it is not so much the “what” or the “when” the legal norms are suspend under the argument of tumultus and magna trepidatio, but “who” holds the power to decide on the exceptio. It is, therefore, a theory of political decision that aims, as pointed out in the lines above, to identify the “sovereign”: “the sovereign is the one who decides on the State of Exception” (Schmitt, 2006). 222
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In order to understand this Schmittian statement, however, it is necessary to consider that he is one of the most outstanding authors of political theology, a concept as ambiguous as it is essential to modern political theory, and which, according to his own statement, can be summarized as follows: “All the decisive concepts of the modern theory of the State are secularized theological concepts” (Schmitt, 2006). Thus, when we discuss, according to this theory, about sovereignty, division of powers, general and abstract norms, State of Exception, etc., what we are, in fact, discussing are theological concepts that have been secularized, that is, transposed from the discursive sphere of theology for politics and legal science which, despite gaining new meaning, retain, at their root, the same meanings that Christian theologians attribute to explain, e.g., the essence of God, the laws that govern nature and human life, the salvific plan, the consummation of history [parousia], the miracle, etc. And in this, Schmitt’s assertion gains intelligibility according to which, if sovereign is the one who decides on the State of Exception, that is, if only “[..] God is sovereign, the one who, in earthly reality, acts in an uncontested way as his representative , emperor, the sovereign or the people, that is, the one who can undoubtedly identify with the people is also sovereign [...] The State of Exception has an analogous meaning for jurisprudence, as the miracle for theology ” (Schmitt, 2006). This statement is interesting: if the miracle constituted, theologically, in the suspension of the general laws created by God to govern life and nature to respond to a concrete need of the believer, the State of Exception, for being its political simile, has the same effect, that is, it suspends the validity of the general norm to, in its place, establish a new rule, without the general norm being, in fact, revoked, but only suspended. The chose of the subject of this work – the contemporary problem of (il)legal immigration and (in)policies of exile – that the world has been experiencing not only because of the warlike conflicts that have taken place spread across the world, but also as a result of the increase in poverty caused by economic asymmetries, the continuous and systematic violations of human rights carried out by the governments of all States and climate-environmental problems related to desertification, lack of access to water, production of food, the gentrification of cities, etc, factors that have pushed an infinite number of people to look for new places outside their countries, especially in developed countries, which, for reasons we all know, have closed, prompting the production of images and policies for protecting the border that we thought had been buried with “plus jamais çá” enunciated since Auschwitz. It is, therefore, as if the previously denied “çá” constituted, in fact, the only perennial signature of human history, given its continuous repe223
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tition, as if the only certainty we can draw from it is that, at some point, someone will be violently killed or abandoned to their fate, putting in suspension, or even revoking, any trace of civility that we understand as being the essence of our otherness in relation to other animal species. Methodologically, however, the exact understanding of the phenomenon requires much more than the usual framework that a legal worker uses, that is, theories and legal norms, built, obviously, from an interdisciplinary method that could be like this characterized: when seeking to interpret a certain phenomenon in its “context”, the legal worker leaves his box of theories and legal norms, apprehends the meaning in the boxes of other disciplines – e.g. sociology, anthropology, political philosophy, etc -, and once apprehended the meaning, abandons those little boxes, and returns to the usual framework of legal theories and norms that are interpreted with the aid of those references (Resta, 2004, p. 9-19). With this, therefore, on the one hand, the complexity of the lived reality is denied – after all, there would be an almost absolute autonomy between the boxes –, and on the other hand, the illusion of an adequate interpretation is maintained, through which the answer found it is the only possible one, or one of the possible ones, since it is allegedly contextual. Against this mistaken understanding of self-restraint of reality in autonomous disciplines that communicate only if the interpreter decides to leave their scope of work, transdisciplinary imposes a much more arduous task, of course, but also more adequate to the conjunction between text/context/interpretation: because reality is complex, as human life is complex in all its manifestations, text and context are part of a multifactorial reality in which disciplinary-methodological autonomy breaks down and assumes a status analogous to a field of force, around which all the forms and modes arranged by human reason to try to understand the lived reality gravitate, that is, one transits and not only interacts (Agamben, 2008, p. 11-34). The field of force of this essay the following is: the human person not in his individuality, but as humanity, a concept that combines all people and their environment through their inalienable rights in the following idea: things have value, that is, price; the human person has dignity, regardless of any other economic, psychic, physical or social factor that can be used to demarcate the human plurality as understood by Hannah Arendt, according to which no one was, is or will be equal to another person (Arendt, 2005, p. 31-83). In fact, the distinction operated above has its foundation in Kantian thought, according to which in:
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…the kingdom of ends everything has either a price or a dignity. When a thing has a price, any other thing can be put as its equivalent; but when a thing is above all price, and therefore allows no equivalent, then it has direction (Kant, 2013, p. 82).
This is not alterity (the difference between people and things or between things), but Otherness, that is, the existential difference that makes all person unique and irreplaceable, and for this reason we all have dignity, not a price. But despite this, or even because of this, we insist on building real or fictional walls with which we aim to separate ourselves, to atomize ourselves, to deny, from the common ground that we all walk on – the world in the Arendtian sense -, the plurality that concerns us. That it was chose this short story by Kafka, sometimes titled “The Wall of China” or “On the Construction of the Great Wall of China”, written between 1917/1918, but published posthumously only in 1934. As this is a work by Kafka that was not publish during his lifetime, we can only be grateful that his final wishes, entrusted to his friend Max Brodi, were not granted... This means, therefore, that this story has identical a philosophical status common to many other literary works – 1984, by Orwell, Bartleby, by Melville, to name a few obvious examples –, since it reveals itself, for the understanding of the theme proposed, as a paradigm in the proper sense of the word: an example (De Oliveira, 2014, p. 246). The pedagogy of the fear in the construction of the Great Wall of China
In this work Kafka tell, through a narrator who will only later identify himself as one of the many people who worked on the construction of the Great Wall of China, the various political, moral, psychological, pedagogical, technical circumstances, etc. 8,850 kilometers long and an average of 7 meters high, which took more than 2,000 years to complete. Military engineering because from the beginning it´s stated that the declared purpose was to prevent the invasion of China by the northern barbarians1. Therefore, it is a first-person narrative. But what kind of person tells us this fact? And at what time?
1 About this short story said Borges: “En el más memorable de todos sus relatos –‘la construcción de la muralla china’, 1919 –, el infinito es múltiple: para detener el curso de ejércitos infinitamente lejanos, un emperador infinitamente remoto en el tiempo y en el espacio ordena que infinitas generaciones levanten infinitamente un muro infinito que dé la vuelta a su imperio infinito”. (apud Bakia, 2017). La muralla china. Disponível em: https://emakbakea. wordpress.com/2017/03/25/la-muralla-china/. Acesso em: 20 jan. 2009.
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The narrator is a contemporary of the beginning of the works, and identifies himself, without further ado, as one of the thousands of workers who expended their workforce in favor of the project engendered by the emperor. And here we have in the tale a first theme that we could identify by the concept of “mutual desubjectivation”: insofar as the Emperor, as indicated in the tale, is not only inaccessible to his own entourage, let alone his subjects, but also unknown – the narrator even states that the power was so distant geographically, functionally and personally, that not infrequently people claimed that a dynasty was in the empire that had long since been replaced by another -, and that more often than not an imperial order or law, when it reached the most distant corners of the kingdom, its author had long since died and the order or law had been revoked by his successor. About desubjectivation as the poet’s own experience, Agamben expressed it this way: There is an exceptional document of desubjectification as a shameful and yet inevitable experience. It is the letter Keats sends to John Woodhouse on October 27, 1818. The “wretched confession” of which the letter speaks concerns the poetic subject himself, the incessant self-loss by which he consists solely in alienation and non-existence. The theses that the letter states in the form of paradoxes are well known: 1) The poetic “I ” is not an “I ”; it is not identical to itself: “As to the poetical Character (I mean that sort of which, if I am any thing, I am a Member . . . ) it is not itself—it has no self—it is every thing and nothing—It has no character” (Keats, 1935, p. 226). 2) The poet is the most unpoetical of things, since he is always other than himself; he is always the place of another body: “A Poet is the most unpoetical of any thing in existence; because he has no Identity—he is continually filling in for—and filling some other Body” (Ibid, p. 227). 3) The statement “I am a poet” is not a statement, but rather a contradiction in terms, which implies the impossibility of being a poet: “If then he has no self, and if I am a Poet, where is the Wonder that I should say I would write no more?”(Ibid). 4) The poetic experience is the shameful experience of desubjectification, of a full and unrestrained impossibility of responsibility that involves every act of speech and that situates the would-be poet in a position even lower than that of children: “It is a wretched thing to confess; but it is a very fact that not one word I ever utter can be taken for granted as an opinion growing out of my identical nature – how can it, when I have no nature? When I am in a room with People if I ever am free from speculating on creations of my own brain, then not my226
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self goes home to myself: but the identity of every one in the room begins so to press upon me that I am in a very little time annihilated – not only among Men; it would be the same in a Nursury of children” (Ibid). But the final paradox is that in the letter the confession is immediately followed not only by silence and renunciation, but also by the promise of an absolute and unfailing writing destined to destroy and renew itself day after day. It is almost as if the shame and desubjectification implicit in the act of speech contained a secret beauty that could only bring the poet incessantly to bear witness to his own alienation: “I will assay to reach to as high a summit in Poetry as the nerve bestowed upon me will suffer . . . I feel assured I should write . . . even if my night’s labours should be burnt every morning, and no eye ever shine upon them. But even now I am perhaps not speaking from myself: but from some character in whose soul I now live” (Agamben, 2017, p. 836-837).
And what is a “personal” power that, due to its conformation, distance, and impersonality, does not show its “face”? An absolute desubjectivation in which the word, the given order, is exercised and obeyed “as if”, in fact, it belonged to its enunciator, something like the democracy we live in today, in which power belongs to the people, but exercised by someone else instead. A (a)democracy, therefore, which, due to the strength that economic power plays, most be understood as a plutocracy. We know, moreover, that this power without form, face or presence is common in Kafka’s work, as demonstrated by, e.g., other of his works, the Trial in the figure of the Court, and the owners of the Castle, whom the land surveyor never comes to see. Alongside this desubjectivation of a power that is personal, we also have that of the narrator. He never names himself, or identifies his lineage, background, family, or personal ties. He is but a subject whom he touched, in his ten years of age, to be a witness to the beginning of the imperial project to build the wall, and to whom, in his adult age, he given the “opportunity” to work, always extremely far from his homeland. This narrator, who only has a voice, but no persona, can apprehended as a mere subject of the unsubjectivated power that determines the realization of the work. He has no individuality, he is not a subject who combines individual personality and reality in his narrative, but a narrator whose voice is used to describe the facts as they happened, and no matter how bizarre the rules were, to suspend thought through a instilled certainty that the “Direction of the Work” had more wisdom, knowledge and reason than anyone else, especially with regard to the discontinuous way of building the Wall: 227
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One can perhaps safely discuss it now. In those days many people, and among them the best, had a secret maxim which ran: Try with all your might to comprehend the decrees of the high command, but only up to a certain point; then avoid further meditation. A very wise maxim, which moreover was elaborated in a parable that was later often quoted: Avoid further meditation, but not because it might be harmful; it is not at all certain that it would be harmful. What is harmful or not harmful has nothing to do with the question. Consider rather the river in spring. It rises until it grows mightier and nourishes more richly the soil on the long stretch of its banks, still maintaining its own course until it reaches the sea, where it is all the more welcome because it is a worthier ally. – Thus far may you urge your meditations on the decrees of the high command. – But after that the river overflows its banks, loses outline and shape, slows down the speed of its current, tries to ignore its destiny by forming little seas in the interior of the land, damages the fields, and yet cannot maintain itself for long in its new expanse, but must run back between its banks again, must even dry up wretchedly in the hot season that presently follows. – Thus far may you not urge your meditations on the decrees of the high command (Kafka, 1993, p. 135-136).
A personalized power whose exercise desubjectives even its holder; a form of exercise of power that depersonalizes the subject and converts him into a mere cog in the functioning of the “system” as well: this is known by the name of totalitarianism. Another point I would like to highlight in relation to the work is this. In the story, as well as in the historical reality, the Wall was built discontinuously in parts, and its sole function was to protect the Chinese from foreigners, who were immediately assimilated to barbarians. On this first topic the narrator stated: The great wall of China was finished off at its northernmost corner. From the south-east and the south-west it came up in two sections that finally converged there. This principle of piecemeal construction was also applied on a smaller scale by both of the two great armies of labor, the eastern and the western. It was done in this way: gangs of some twenty workers were formed who had to accomplish a length, say, of five hundred yards of wall, while a similar gang built another stretch of the same length to meet the first. But after the junction had been made the construction of the wall was not carried on from the point, let us say, where this thousand yards ended; instead the two groups of workers were transferred to begin building again in 228
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quite different neighborhoods. Naturally in this way many great gaps were left, which were only filled in gradually and bit by bit, some, indeed, not till after the official announcement that the wall was finished. In fact it is said that there are gaps which have never been filled in at all, an assertion, however, which is probably merely one of the many legends to which the building of the wall. gave rise, and which cannot be verified, at least by any single man with his own eyes and judgment, on account of the extent of the structure (Kafka, 1993, p. 128-129).
What most calls attention in this narrative is that the great wall, having been built to prevent the invasions of peoples from the north, was made in a discontinuous way, a paradoxical closing/opening structure, and in this it is even possible to imagine the following image: if the intention was to prevent the “barbaric” invasion, whenever the emperor came out of his retreat and took a peek at the square in front of his palace, he saw the barbarians there sitting on one of his benches or exchanging friendly conversations with his subjects. It is an enterprise, physically ineffective, but not culturally, that is, an enterprise of cultural protection and subjectivation of fear. The denial of otherness by its animalization
The other point concerns, as already mentioned, the intention: to keep others at a distance. And for that it took much more than an imperial determination to build the wall. It was necessary to establish a pedagogy of fear, of terror, in which the Other is always the barbarian, the hideous, the dangerous: Against whom was the Great Wall to serve as a protection? Against the people of the north. Now, I come from the south-east of China. No northern people can menace us there. We read of them in the books of the ancients; the cruelties which they commit in accordance with their nature make us sigh beneath our peaceful trees. The faithful representations of the artist show us these faces of the damned, their gaping mouths, their jaws furnished with great pointed teeth, their half-shut eyes that already seem to be seeking out the victim which their jaws will rend and devour. When our children are unruly we show them these pictures, and at once they fly weeping into our arms. But nothing more than that do we know about these northerners. We have not seen them, and if we remain in our villages we shall never see them, even if on their wild horses they should ride as hard as they can straight towards us – the land is too vast and would not let them reach us, they would end their course in the empty air (Kafka, 1993, p. 136-137). 229
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No authoritarian or totalitarian policy is effective without a pedagogy of fear. And not the fear of a concrete, real, current or imminent fact – this concerns the unpredictability of life –, but a fear instilled, cured, politically promoted, in which the Other is feared for his exclusion from humanity. We know that the word barbarian comes from the Greek βάρβαρος (barbaros), which in its etymon refers to the onomatopoeia bar-bar, that is, the sound that the Greeks heard, but did not understand, when a xenos spoke to them in their native language. If the original place of the human person is language, denying that the Other has a language is the same as placing him in the category of animals, which, according to Aristotle, speak but do not have language (rectius: reason). But it is not enough to assimilate it to the beasts, it is necessary to represent it, imagery, as such. And only once it operates, not a desubjectivation, but a complete animalization of the Other, is the pedagogy of fear able to operate effectively and gain forums of truth and adherence of the “protected”. The territory as symbolic space
The principle of territoriality has a history, which, in modern times, originated in what historians of International Law call the Westphalian system of International Law (José Bremer, 2013, p. 66-67), a concept that refers to the various processes that gave rise to end of the Thirty Years’ War in eighteenth-century Europe (1618-1648), at the end of which, as independent international institutions, modern territorial states emerged, governed by the principles of sovereign equality and non-intervention in matters of internal jurisdiction, whose first manifestation could not fail to be, given the religious character of that war, the principle “cuius regius eius religio” (Castro, 2012, p. 36). This “religious” character of territorial states becomes even more evident when one realizes that, in the political lexicon, a “new” fundamental concept for the nascent modern state and its constant transformations up to the current liberal model emerges tolerance. But who tolerate? To Christian groups other than the one the prince confessed to (Habermas, 2003, p. 2-12). Territorial states, not national ones, because the big question at the time was not the territorial determination in favor of a nation, but in favor of a sovereign, who until then saw himself submitted in his authority either to the Roman Catholic Apostolic Church or to the Emperor of the Holy Roman Empire, a period historically shaped by the name of Republica Christiana and which lasted for the long period comprising the Middle Ages (Miranda, 2005, p. 23-26). 230
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One can only speak of a National State when, paradigmatically, in 1789 the revolutionary Assembly approves the Declaration of the Rights of Man and Citizen, a gesture with which, according to Giorgio Agamben (2013, 33 and 50), the birth of the modern biopolitical regime. Here, then, is the ‘snake’s egg’! The territory, previously seen as a geographic space of the sovereign’s domain, becomes, by a gesture of law, the symbolic space of inscription and entry of human life in the nation and in the law: it is no longer a question of domain, but of belonging. Human life symbolically “belongs” to the nation, which, like the territory, starts to be managed in its smallest expressions, like the other riches that demarcate the strength or poverty of a state (Foucault, 2007, p. 281-282). It is in the work of Michel Foucault that this transformation becomes more evident when he discusses the conversion of the territorial State, guided by the Machiavellian-inspired military diplomatic paradigm, into a state of population, guided by the political-economic thinking of the “polizeiwissenschaft” (the State of Police) German, in which men and things are managed in accordance with economic parameters, not political ones, according to an accounting-economic calculation in which fact and life are mixed in the credits and debits of state management (Foucault, 2006, p. 107-137; Foucault, 2007, p. 278 et seq). This rationality that emerged between the 17th and 18th centuries uses the term police not as an institution that is responsible for public safety and peace, such as the contemporary use of the expression, but rather “[...] a technique of government proper to the State; domains, techniques, objectives that call for State intervention”. On the other hand, the term police can designate the state itself in the works of authors who support the theory of the police, who use it as a synonym for city, republic, or state (Foucault, 2007, p. 377). The police must deal with the administration of the positive and negative aspects existing in the State, which can be summarized as follows: as positive manifestations, the State must manage people in their productive aspects, such as education, determination of tastes and their aptitudes, in addition to the management of State assets, understood as the set of activities that produce goods, among which the territory itself is included, no longer understood as a contested domain, but rather as a domain in which there is a public-private economic source of riches. In its negative aspect, the State must manage those negative aspects of life, such as the poor, widows, and orphans, the unemployed, as well as public health, establishing ways of coping with diseases, epidemics, floods, and fires (Foucault, 2006, p. 378). But if men and things are managed, it is because the northern ideas of the sacredness of human life, of inalienable rights, of formal equality 231
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and control of power are always relativized due to the economic principles that guide the reason of state in the regime. biopolitical. Michel Foucault synthesized this understanding in the famous inversion of the regime of sovereignty in History of Sexuality I: the will to know: “from making die or letting live” to “letting live or making die” (Foucault, 2005, p. 129-130). Thus, if before the sovereign held the power of life and death in defense of his sovereignty, today the power of life and death is exercised in the name and in favor of society, knowing, however, that for Michel Foucault, death does not consist not only in physical elimination, but also in abandonment, in abstaining from the actions necessary for human life to reach the minimum conditions of survival, as well as in political expulsion and exile (Foucault, 2002, p. 305-306). This biopolitical character becomes more evident if understood according to the paradigm used by Michel Foucault. If leprosy and the plague manifest themselves as the two paradigms with which he understood the passage from the territorial state to disciplinary society in the form of what he called disciplinary power, or, in other words, the power to include and/or exclude individuals from the social context, the problem of the population as a political element of the State is summarized from the paradigm of vaccination against smallpox (Foucault, 2006, p. 26-33). Being the confrontation of security problems, in a broad sense (any event, human or natural, that put at risk the economic strength of society, including diseases) and strict (crime), themes that touched the core of liberal economic thought, it was up to the government, in an attempt to provide answers to these problems, to adopt management acts guided not by certainty, but by experimentation. Topics such as ordering cities, adopting economic policies – facing, e.g., famine –, or the confronting crimes that might occur, population was governed by experimentation, by taking risks as to the (un)certainty of its success. Thus, when the State, in a bio-thanatopolitical turn, adopted a health policy to face the smallpox epidemic through the inoculation of its virus in a latent state in the vaccination process, both the government and medical science did not know, in fact, the effectiveness of the treatment (Foucault, 2006, p. 73-79). It was experimented, putting at risk the entire population that was the object of this sanitary management act, and exclusion and inclusion conform to the forms of experimentation through which the State, in the gestation of the territorial space and the population, seeks to provide economic solutions to the problems inherent to the economic system itself that corrodes it, like a cancer, from the entrails. Territory is not constituted in the geographical space delimited by latitudes and longitudes, but the locus of inscription of human life within 232
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the governmental policy of an economic-political nature, where there are no people, but the population as a demographic element characterizes modern political society. This inscription, despite all discourse in the opposite direction, is not guided by the fundamental rights and guarantees inserted in constitutional and international texts, but in the spreadsheets, budgetary laws, police and health statistics that the bureaucracy produces as a way of giving a rational order to irrationality and anarchy that constitutes the government of men and things. Reification of the person; personalization of things… Exist an exit?
At this point it becomes necessary, therefore, to close the issue and look for, who knows, an exit. A crucial point is this: people have dignity, not price. This means, on the other hand, that no attribute can qualify someone above others, or their lack of making them lose their human stature, because human dignity means this: all people, despite their differences, are individuals to whom the minimum standard for a dignified life must be ensured: life, freedom, equality, honor etc. And it is to ensure this minimum, which in our current context is the maximum of the maximum, that countless international human rights treaties have proclaimed internationally, and at the internal level declarations of fundamental rights. Now, just like in the interwar period and during the Second World War, the world has never been faced with so many people deprived of their most basic rights, and who appear on the scene in the form of what Hannah Arendt, appropriating a benjaminian concept, identified as bare life, i.e., mass immigrants, when they appear on the scene, do so as people in their purest sense, devoid, therefore, of all other attributes that the law generally uses to qualify our species: neither nationality, nor property, except for the goods they manage to carry in their luggage, nor political, social rights, fundamental freedoms... nothing: they appear as people in their purest sense. And against these people, for the most varied reasons, walls, walls, fences, containment bars, etc., are built, literally or figuratively. This is proof, on the other hand, that the pedagogy of fear has worked much more effectively in the era of globalization than in past times. And the great calamity is not only human, but ethical and moral, insofar commodities – things – have free transit across borders, things that, as said, have a price, but never dignity. People have dignity, but they run into walls; things have a price, but they circulate freely across borders. But if the person reduced to a condition 233
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analogous to that of a slave - therefore, objectified -, there is no border that prevents their insertion in the exploitation regime that transnational criminality executes. And this is what building walls means, bare life reduced to something undeserved and less valuable than a product or reified as a product. Against the walls we must, therefore, build bridges, and that in the context of political philosophy must be identified with the deconstruction of all policies and pedagogies of fear, and in the scope of protection for exiles with the execution of cooperative humanitarian policies of acceptance and concession shelter by all States with the capacity to do so, which, per se, would refute the well-known accusation that said surpluses – yet another word for objectification of the person – create economic-financial deficits. But this, on the other hand, will only be possible if, internally, that is, in our ideas, we all agree that people have dignity, not things. References
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