Anais da 2ª Semana de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia, Vol 1 [1/2, 1 ed.] 6560360778

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Anais da 2ª Semana de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia, Vol 1 [1/2, 1 ed.]
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ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR

Instituto Rondoniense de Direito Constitucional

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)

ANAIS DA SEGUNDA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR

1ª Edição

Volu m e I

São Carlos / S P Editora De Castro

2023

Copyright © 2023 dos autores. Editora De Castro

Editor: Carlos Henrique C. Gonçalves Conselho Editorial: Prof. Dr Alonso Bezerra de Carvalho Universidade Estadual Paulista – Unesp Prof. Dr Antenor Antonio Gonçalves Filho Universidade Estadual Paulista – Unesp Profª Drª Bruna Pinotti Garcia Oliveira Universidade Federal de Goiás – UFG Profª Drª Célia Regina Delácio Fernandes Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD Profª Drª Cláudia Starling Bosco Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG / FaE Prof. Dr Felipe Ferreira Vander Velden Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Prof. Dr Fernando de Brito Alves Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP Prof. Dr. Flávio Leonel Abreu da Silveira Universidade Federal do Pará – UFPA Profª Drª Heloisa Helena Siqueira Correia Universidade Federal de Rondônia – UNIR Prof Dr Hugo Leonardo Pereira Rufino Instituto Federal do Triângulo Mineiro, Campus Uberaba, Campus Avançado Uberaba Parque Tecnológico Profª Drª Jáima Pinheiro de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação – UFMG / FAE Profª Drª Jucelia Linhares Granemann Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas – UFMS Profª Drª Layanna Giordana Bernardo Lima Universidade Federal do Tocantins - UFT Prof. Dr Lucas Farinelli Pantaleão Universidade Federal de Uberlândia – UFU Profª Drª Luciana Salazar Sagado Universidade Federal de São Carlos – UFSCar / LABEPPE Prof. Dr Luis Carlos Paschoarelli Universidade Estadual Paulista – Unesp / Faac Profª Drª Luzia Sigoli Fernandes Costa Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Profª Drª Marcia Machado de Lima Universidade Federal de Rondônia – UNIR Prof. Dr Marcio Augusto Tamashiro Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins – IFTO Prof. Dr Marcus Vinícius Xavier de Oliveira Universidade Federal de Rondônia – UNIR Prof. Dr Mauro Machado Vieira Universidade Federal de Uberlândia – UFU

Prof. Dr Osvaldo Copertino Duarte Universidade Federal de Rondônia – UNIR Profª Drª Zulma Viviana Lenarduzzi Facultad de Ciencias de la Educación – UNER, Argentina

Projeto gráfico: Carlos Henrique C. Gonçalves Foto para capa: Marcus Vinícius. Capa: Carlos Henrique C. Gonçalves Preparação e revisão de textos/normalizações (ABNT): Editora De Castro.

DOI: 10.46383/isbn.978-65-6036-077-8 Todos os direitos desta edição estão reservados a Geraldo Magela Pereira Leão. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998). Editora De Castro [email protected] editoradecastro.com.br

SUMÁRIO II SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DIREITOS HUMANOS ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: QUAIS OS DESAFIOS PÓS-2022? PALESTRA: DESAPARECIMENTOS NA AMAZÔNIA Palestrante: Edinaldo Rodrigues de Oliveira (PF/RO) Mediação: Marcus Vinícius Xavier (UNIR) e Patrícia de Vasconcellos (UNIR) Síntese: Solange Henrique Chaves Ribeiro 7 CONFERÊNCIA: GENTE INVISÍVEL: A CEGUEIRA DELIBERADA DIANTE DAS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS Palestrante: Lucas Barbosa Brum (MPT – 14ª Região RO/AC) Síntese: Francisco Magalhães de Lima 10 CONFERÊNCIA: DESAFIOS AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA Palestrantes: César Augusto Queirós (UFAM), Ricardo Gilson Silva (DHJUS/UNIR) Síntese: Francisco Magalhães de Lima 12 CAPÍTULO 1 O RECONHECIMENTO DA OCUPAÇÃO TRADICIONAL DE TERRAS INDÍGENAS: O CASO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL Melquesedeque Bandeira de Oliveira Aparecida Luzia Alzira Zuin 15 CAPÍTULO 2 ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO: PERPETUAÇÃO DE ABUSOS Paulo Adaias Carvalho Afonso José Renato Hojas Lofrano Priscila Guimarães Marciano João Gustavo Tabarelli Batista 25 CAPÍTULO 3 DISCUSSÕES CONCEITUAIS E HISTÓRICAS: DIREITOS HUMANOS, GARANTIAS PROCESSUAIS E ACESSO À JUSTIÇA Delson Fernando Barcellos Xavier Sâmara Rohers Penha Jéferson Araújo Sodré 35 CAPÍTULO 4 DIREITO À EDUCAÇÃO E AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: UMA ANÁLISE HISTÓRICA E SISTEMÁTICA André Luiz Pestana Carneiro Aparecida Luzia Alzira Zuin 49 CAPÍTULO 5 CONTRA A MORAL E OS BONS COSTUMES: UMA ANÁLISE DO JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA E DO BOLETIM CHANACOMCHANA DURANTE A DITADURA MILITAR NO BRASIL Júlia Fernanda Vargas da Costa 65 CAPÍTULO 6 O MITO DA RACIONALIDADE NO DIREITO PENAL Tiago Lopes Nunes Laíla de Oliveira Cunha Nunes 77 CAPÍTULO 7 AMEAÇAS À DEMOCRACIA: CONQUISTAS HUMANAS EM RISCO! Maria Cristina Marques 85 CAPÍTULO 8 OS IMPACTOS DA PANDEMIA DE COVID-19 NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Ana Paula dos Santos Oliveira 101

CAPÍTULO 9 AVANÇO DA ECONOMIA NEOLIBERAL E RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA NOS DESASTRES AMBIENTAIS CAUSADOS PELOS INUNDAMENTOS ADVINDOS DAS BARRAGENS DE RISCO NO BRASIL Francisca Cecília de Carvalho Moura Fé 109 CAPÍTULO 10 “SOMOS ATLÂNTICAS”: PROBLEMATIZANDO O PAPEL DAS MULHERES NEGRAS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Erica Paula de Vasconcelos dos Santos 121 CAPÍTULO 11 IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DA PÓS-VERDADE NA DEMOCRACIA BRASILEIRA Ádamo Gabriel Lopes de Souza 135 CAPÍTULO 12 A HISTÓRIA DA EUGENIA NA EUROPA E SEU IMPACTO NA BIOÉTICA MODERNA Diego Marques Gonçalves Ezequiel Mariano Teixeira da Costa 153 CAPÍTULO 13 MONITORAMENTO ELETRÔNICO: A UTOPIA DA LIBERDADE VIGIADA E AS REGRAS MÍNIMAS DE TÓQUIO PADRÃO DAS NAÇÕES UNIDAS Lavinia Rico Wichinheski 165 CAPÍTULO 14 A CIDADANIA MULTICULTURAL E OS IMIGRANTES LATINO-AMERICANOS NO BRASIL Daniela Nicolai de Oliveira Lima Ivanildo de Oliveira 179 CAPÍTULO 15 INFANTICÍDIO E O ESTADO PUERPERAL Jéssica Paola da Costa Alves 195 CAPÍTULO 16 A APREENSÃO DOS SENTIDOS DO TRABALHO REMOTO Hugo Luís Zuim Lavoyer João Carlos Caselli Messias 215 CAPÍTULO 17 ESTRANGEIROS NO PRÓPRIO PAÍS: A DIFICULDADE DE INCLUSÃO DE PESSOAS SURDAS NA SOCIEDADE, CAUSADA PELA FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS EFICAZES Ronaldo Amorim de Carvalho Junior Bruna Guimarães Setúbal Pedro Henrique Sales Lanes Sthevão da Silva Carvalho 225 CAPÍTULO 18 O ENSINO MÉDIO COM MEDIAÇÃO TECNOLÓGICA – EMMTEC - PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO VALE DO JAMARI-RO DE 2016 A 2022: DO CINISMO QUALITATIVO À TRÁGICA PRECARIZAÇÃO Francisco Magalhães de Lima Aparecida Luzia Alzira Zuin 245 CAPÍTULO 19 POLÍTICA DE INCLUSÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA NA ESCOLA RURAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL “03 DE DEZEMBRO” EM PORTO VELHO Geane Rocha Gomes Lima Aparecida Luzia Alzira Zuin 251

II SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DIREITOS HUMANOS ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: QUAIS OS DESAFIOS PÓS-2022? PALESTRA: DESAPARECIMENTOS NA AMAZÔNIA Palestrante: Edinaldo Rodrigues de Oliveira (PF/RO) Mediação: Marcus Vinícius Xavier (UNIR) e Patrícia de Vasconcellos (UNIR) Síntese: Solange Henrique Chaves Ribeiro1

A palestra intitulada Desaparecimentos na Amazônia, realizada no dia 18/05/2023, e mediada pela professora Patrícia de Vasconcellos (UNIR) e pelo professor Marcus Vinícius Xavier (UNIR), por ocasião da II Semana de Direitos Humanos de Rondônia, foi proferida pelo policial federal Edinaldo Rodrigues de Oliveira, graduado em Enfermagem Obstetrícia e em Direito, com especialização em Identificação Humana pela Academia Nacional de Polícia e UNB, e mestrando no Programa de Pós-graduação da UNIR. Oliveira inaugura sua fala trazendo um importante dado em relação ao campo de sua pesquisa: “Se você é jovem, negro, mulher, mora na periferia e reside em Rondônia, tem grande chance de fazer parte dos dados estatísticos de desaparecimento no Brasil”. Destaca, ainda, que Rondônia ocupa uma das maiores posições sobre casos de violência entre os Estados. E relembra que nos últimos três dias, por exemplo, em Rondônia, ocorreram três casos de desaparecimento que se circunscreveram como casos de violência. Diante dessa realidade, convida à reflexão sobre os tipos de sociedade às quais entendemos como referências para os conceitos de certo/ errado, justo/injusto, civilizado/bárbaro, mais humano/menos humano. Os gregos se apresentavam como relevantes e valorados (certo, justo, mais humano, civilizado), e, nessa dicotomia, criaram uma polarização e a ideia de que tudo que estivesse fora do eixo em relação à sociedade grega seria denominado bárbaro. Isso leva à percepção, desde tempos remotos, de que o que somos está ligado a essa diferenciação construída historicamente, que coloca povos indígenas, pessoas negras e outros grupos socialmente desprestigiados, ridicularizados, negados, invisibilizados, em uma relação de submissão e, muitas vezes, à margem da participação política e do acesso 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação na Amazônia (PGEDA/Rede Educa Norte), sob a orientação da Profª Drª Aparecida Luzia Alzira Zuin.

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)

aos direitos humanos. Tal realidade chama o sistema de justiça brasileira a reverter esse terreno de hipocrisia ao real embate dos problemas que o Brasil enfrenta, pois o que se tem no País é um contexto de intolerância, racismo e desigualdade estruturante. Essa forma de subjugação de determinados seres humanos, como mortes de pessoas negras, de mulheres e pobres, cria uma vinculação muito forte entre os crimes letais e o desaparecimento de pessoas, estabelecendo-se, portanto, uma fronteira muito nítida entre civilização e barbárie. O Brasil é um País em que a cada sete horas uma pessoa desaparece, diante de um quadro cujo número de desaparecidos chega a 858 mil pessoas, sendo que apenas 250 mil são encontradas (e nem sempre com vida); e, entre as que desaparecem, em geral, estão aquelas que constituem as minorias sociais das quais já se falou inicialmente. No caso de desaparecimentos, as causas polissêmicas envolvem vários fatores e/ou situações que indiciam discrepâncias em relação aos dados oficiais apresentados e o que realmente acontece em casos de desaparecimento com populações periféricas. Aponta que nos últimos 20 anos, a polícia federal participou de vários processos de identificação de diferentes eventos, como foi o caso do deslizamento de terra no Rio de Janeiro, região serrana, em 2011: 1000 vítimas. Foi o que os dados oficiais mostraram, no entanto, a contagem das famílias feitas pelos registros de energia e pelas matrículas de crianças em escolas daquela região não coincidiu com o número apresentado oficialmente. Demonstrou-se, nessa situação, como havia um contexto de vulnerabilidade, de negação, em relação àqueles corpos que não foram reclamados e nem contabilizados. É importante destacar que essa vulnerabilidade traz alguns marcadores reconhecidamente oriundos de natureza econômica e social, tais como desastres naturais normalmente relativos a graves condições de habitação, alcoolismo, conflitos familiares, problemas de saúde, violência urbana e rural, afastando, de certa forma, a obrigação do poder público em atuar com políticas que garantam o bem-estar de todas as pessoas. Esse processo histórico nos traz a ideia de como a gestão dos corpos é seletiva e, muitas vezes, discriminatória. A relação entre o Estado e o desaparecimento de pessoas se dá em três níveis: (a) a pessoa é colocada sob a custódia do Estado; (b) sepultamento indigente de pessoa não identificada ou não reclamada; (c) desaparecimento forçado, sequestro, execução sumária com ocultação de cadáver. Em relação ao primeiro nível, foram relembrados fatos que ocorreram no mesmo dia em Porto Velho: uma mulher foi acidentada e foi a óbito no pronto-socorro da cidade e uma mulher também estava desaparecida – ambas as situações na periferia, cujos registros não foram cruzados, não havendo uma intencionalidade do poder público 8

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para se chegar à conclusão de que se tratava da mesma pessoa. Já em relação ao segundo nível, podemos trazer à tona os casos de sepultamentos de pessoas mortas com suspeita de covid, sob a prerrogativa de risco de contaminação e das condições sanitárias vigentes, com expedição de uma portaria interministerial que suspendia vários procedimentos de identificação, cujos corpos eram incinerados ou enterrados. A desconsideração dos registros levava à burocratização dos desaparecimentos, não se registrando, em vários casos, as causas da morte de inúmeras pessoas, como ocorrera com duas crianças yanomamis, em que a mãe ficou impedida de fazer as ritualísticas, pois não se tinha informações nem mesmo onde foram parar esses corpos. No desaparecimento forçado, terceiro nível, enquadram-se: o desaparecimento político (ditadura militar), o desaparecimento forçado (agente estatal ou com sua anuência) e o desaparecimento interno (narcotráfico, milícias) que aponta para outro problema, que é a busca da territorialidade por grupos de poder paralelo, principalmente nas periferias das cidades. A questão da violência na Amazônia é uma faceta desse contexto da busca de territorialidade por grupos criminosos, que saíram dos centros do País em direção às regiões que têm menos atuação do poder público em favor de uma segurança pública efetiva, cujo estabelecimento se dá nas periferias. Algo que chama a atenção é o que ocorre no sistema carcerário: os desaparecimentos de pessoas privadas de liberdade se dão por fugas ou mortes? À gestão de corpos, há mais dados de desaparecimentos do que de mortes. Pergunta-se, então, “por que fazer desaparecer e não matar?”. A resposta está no que se chama “gestão dos corpos”. Se mata-se (carbonizado, arma de fogo ou branca, entre outras formas), o registro institucional, que se dá por meio da identificação especializada e de protocolos oficiais, é acionado. E o mais grave é que nos casos apresentados, como o de Amarildo, amplamente divulgado em nosso País, é que se utiliza o processo da negação dos corpos e a negação dos fatos; e os autores de crimes por assassinatos são inocentados e as pessoas são dadas apenas como desaparecidas. Isso mostra o quanto essa realidade precisa ser melhor estuda na região amazônica, especialmente quando esses desaparecimentos se dão com pessoas que se incluem em marcadores sociais já mencionados (ser da periferia, ser negro, ser mulher, por causa da cultura). No entanto, essa percepção não nega outras possibilidades, como situações de violência doméstica e/ou outros problemas familiares, ou de outras ordens. A agenda política para que essas pessoas apareçam, suas visibilidades devem ser consideradas, pois uma sociedade democrática não permite uma desigualdade de corpos. Ela não se encerra em dispositivos legais, mas requer a participação coletiva e uma postura de compreensão do quanto a luta é necessária (e que deve ser de todos nós). 9

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)

CONFERÊNCIA: GENTE INVISÍVEL: A CEGUEIRA DELIBERADA DIANTE DAS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS Palestrante: Lucas Barbosa Brum (MPT – 14ª Região RO/AC) Síntese: Francisco Magalhães de Lima2

Vivemos um tempo de tantas transformações e modernidades, mas hoje falaremos de Direitos Humanos. Coisas que foram formadas a partir de 1700? Questões que datam da Grécia antiga? É sobre Direitos Humanos que iremos falar, pois é necessário falar e precisamos conversar. Civilização e Barbárie não são postos que se ocupam apenas uma vez. São postos que convivem desde quando o ser humano resolveu viver em civilização. A própria Civilização tem o contraste da barbárie, porque são antagonismos de um mesmo meio. Onde existe caos, falta de respeito, violência, impera a barbárie. Porém, onde se vive com dignidade, com respeito, com harmonia e fraternidade, aí temos civilização. Há 10 mil anos decidimos viver em civilização. Há 10 mil anos enfrentamos problemas. Portanto, é necessário reafirmar o valor do ser humano. Três perguntas importantes: “Qual o seu nome?”, “De onde você vem?”, “O que você faz?”. Esta terceira pergunta, quando respondida, determina você como cidadão. Pois, trabalho é essencial para a formação de um ser humano. Por isso, vamos conversar sobre trabalho e dignidade. Esse complexo que é viver entre civilização e barbárie, entre a luz e a escuridão. Vivemos tempos tenebrosos, por causa de um vírus? Por causa de uma pandemia? Não! Porque não estávamos preparados e evoluídos para nos comportar como humanos verdadeiramente. Gosto de trabalhar com a terminologia de gente invisível. É um paradoxo. Como alguém pode ser invisível? Não se trata da pessoa que não pode ser vista pelos olhos humanos. Trata-se do ser humano que é invisibilizado, é marginalizado, é excluído. Como alguém que eu conheço como meu próximo, irmão, pode ter sua humanidade negada? Eu, simplesmente, retiro dela a própria existência e aceito que direitos humanos podem ser violados paulatinamente, efetivamente, com toda a força que um poder econômico subjacente possui em nosso País, e eu simplesmente ignoro. Eu, ser humano, tenho essa capacidade de invisibilizar outros seres humanos. Qual o valor do ser humano? É possível valorar o ser humano? Valor é um princípio axiológico muito maior que um valor monetário. Nosso 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação na Amazônia (PGEDA/Rede Educa Norte), sob a orientação da Profª Drª Aparecida Luzia Alzira Zuin.

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valor é expresso pela nossa dignidade. Porém, a sociedade é treinada para discordar disso. A sociedade está acostumada a dar preço, não valor ao ser humano. Nunca podemos esquecer: ser humano tem valor, jamais preço. Esta ideia do valor do ser humano não é de hoje. Encontra-se na filosofia cristã com a máxima de “amar a Deus sobre todas coisas e ao próximo como a ti mesmo”. Emmanuel Kant trabalha com a máxima de que o ser humano é um fim em si mesmo, nunca um meio. Trabalhador e trabalhadora não são mais um custo para o negócio. Minha vó usava a seguinte frase comigo: “Lucas, gente, a gente trata como gente”. Gente não é bicho. Parece simples. Mas, infelizmente, não é. Na minha experiência no MPT tenho visto as mais diferentes formas de desumanização. Quem nunca presenciou o racismo recreativo perverso contra os venezuelanos? Em 2023, gente é tratada pior que bicho! O problema dos Direitos Humanos é interpretativo. Não existe visibilidade sem linguística, pois somos seres linguísticos. Não existem seres humanos menos humanos. Os Direitos Humanos possuem três dimensões: a primeira é a liberdade, que significa que eu ser humano tenho direito à vida. Eu sou livre. Que ser humano eu sou se não consigo expressar minhas vivências? Liberdade é para a dignidade. A segunda é a igualdade, que possui três princípios: formal, material e de reconhecimento de si e do outro. A cor da pele não deve ser critério para se exercer uma função na sociedade. A terceira dimensão é a fraternidade que é o nível mais elevado da dignidade humana. Queremos que todos tenham os mesmos direitos? Ou queremos certos privilégios? Temos os mesmos direitos? Não! Uma sociedade justa tem a ver com superação de privilégios. É necessário entender as diferenças que existem entre as pessoas. Existe uma relação entre pobreza e abandono de paternidade. A Escravidão atual é a objetificação do ser humano. Ser humano descartável. O processo de normalização da prostituição de meninas. De onde vem a tapioca ou a farinha que eu como? Menino branco é menos invisibilizado que o menino negro. Trabalho infantil é um estigma social e difere de profissionalização legalizada. Quais as condições de produção dos alimentos que consumimos? Qual a origem dos produtos que consumimos? É necessário olhar um trabalhador nos olhos e enxergar um ser humano. Não enxergar isso, significa que estamos num processo de desumanização. Proteção ao direito de reprodução não se trata de dar mais direitos às mulheres, mas de retirar privilégios masculinos. Problemas complexos exigem medidas complexas. Receitas fáceis normalmente não resolvem. 11

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)

Estamos vivendo um genocídio silencioso no Cone Sul e Zona da Mata do nosso Estado por conta do uso indiscriminado de agrotóxicos que, entre outras coisas, com base em pesquisas científicas, estão causando casos de câncer nos trabalhadores e autismo em crianças. Por que invisibilizamos pessoas? Vivemos um processo de Cegueira deliberada. Só enxergamos o que queremos. Ignoramos como são transportados os produtos que compramos. Ser empreendedor significa não ter proteção social. Você paga a conta pela tua atividade econômica. A sociedade paga a conta dos acidentes de trabalho de trabalhadores e trabalhadoras informais. A visão não é suficiente para enxergar o mundo. É necessário ter consciência. É necessário combater privilégios. Rever hábitos de consumo é o primeiro passo para tornar as pessoas visíveis. Vale a pena refletir nossos hábitos de consumo e seus impactos.

CONFERÊNCIA: DESAFIOS AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA Palestrantes: César Augusto Queirós (UFAM) e Ricardo Gilson Silva (DHJUS/UNIR) Síntese: Francisco Magalhães de Lima3

Pensar sobre a Amazônia é pensar o passado, o presente e o futuro. Processo de integração, ocupação e exploração da Amazônia pensado a partir do conceito de Utopia Autoritária. Cultura política autoritária. A política brasileira é marcada pela dinâmica autoritária. Nós vencemos a floresta (Revista Manchete, 1970). A Amazônia era inimiga, um adversário a ser vencido. “Para unir os brasileiros, nós rasgamos o inferno verde”. A Amazônia era um obstáculo ao desenvolvimento. Um vazio demográfico. Governos autoritários procuraram integrar, ocupar e explorar. Retomada de um discurso autoritário. Ação estatal mais ostensiva a partir de Vargas e o Estado Novo. Aumento da mineração clandestina. Vargas via a Amazônia como uma missão civilizatória: desenvolvimento, ocupação e integração. Ocupação e valorização das riquezas da Amazônia. A ideia do vazio demográfico. 3 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação na Amazônia (PGEDA/Rede Educa Norte), sob a orientação da Profª Drª Aparecida Luzia Alzira Zuin.

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Vargas e a visão da domesticação da Amazônia. Uma região feroz. Esforços de guerra e renúncia de Vargas frearam o ímpeto autoritário. As representações da Amazônia estavam impregnadas por visões negativas sobre o território. No período da Ditadura militar, governo de Castelo Branco, é criada a SUDAM em 1966. A Amazônia passa de inimiga a lugar de obtenção de lucro. A Amazônia para a ser enxergada como lugar de conspiração. É preciso integrar antes que outros o façam. Cobiça internacional e combate ao Comunismo. A integração se dará com base na Doutrina de Segurança Nacional. A integração da região é organizada contra o inimigo interno e o externo. A ocupação é organizada via imigração para esvaziar, aliviar a pressão política sobre o regime. A cobiça internacional em vista do interesse em ocupar o território e usufruir das riquezas naturais e minerais. A ameaça da cobiça internacional sobre a Amazônia nos escritos de Artur César Ferreira Reis. A Amazônia só seria espaço útil uma vez ocupada para gerar desenvolvimento para o País. O processo de integração e ocupação não considerou a diversidade étnica e ambiental. A Operação Amazônia e o Plano de Integração Nacional – PIN surgem como estratégia geopolítica, criação de estradas e povoamentos das bordas. Grandes rodovias BR-364. As metas oficias do PIN: abertura da rodovia Transamazônica, faixa de 10 km para colonização e investimentos. Incentivo do Estado à migração das pessoas. O projeto da ditadura era acabar com a floresta e todos os seus habitantes: as etnias indígenas. Assim como a floresta era vista como inimigo a ser vencido, tudo e todos que habitavam a mesma deveriam ser vencidos e integrados ao território nacional, com todas as consequências que isso pudesse gerar. O genocídio de etnias indígenas fazia parte do projeto da Ditadura Militar. A Utopia autoritária se constrói pela crença na possibilidade de eliminar o dissenso, a superioridade dos militares – moral elevada. Superioridade ética. Eliminação do dissenso visava diminuir os conflitos no Nordeste e Sudeste sobre o regime. A superioridade militar se dá por um viés saneador e por uma pedagogia via propaganda e prática educativa. Revela uma crença autoritária e elitista. Eleição de 2018 manifestou a volta de um discurso integracionista para a Amazônia: mineração ostensiva e exploração do agronegócio. Ocorre um processo de militarização da política. Utilização das forças armadas como mecanismo para justificar atos autoritários. Desta forma destaca-se uma relação da gestão de Jair Bolsonaro e a política da Ditadura militar nas 13

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seguintes características: crença na superioridade técnica e moral dos militares; discurso conspiracionista; discurso baseado na noção de segurança nacional; utilização de narrativas que reabilitam a ditadura; tentativa de estabelecer mecanismos de controle do executivo sobre o legislativo e o judiciário; relação conflituosa com a imprensa e com os meios de imprensa. Tentativa de frear com a transparência. Populismo reacionário como mobilização da base popular como forma de coerção. A Amazônia não é um espaço vazio. Não é um inferno verde e muito menos um deserto. Ela continua sendo objeto de ganância de grupos que, à revelia de questões ambientais e às custas dos direitos dos povos indígenas e ribeirinhos que têm seu modo de vida essencialmente ligado aos espaços amazônicos, seguem impondo uma exploração irresponsável e predatória, que coloca em risco todo um ecossistema. Sob os governos autoritários, esta sanha predatória, nociva, ganha legitimidade e, na certeza da impunidade, se torna ainda mais grave. Contradição: combate à internacionalização se deu a partir do uso de capital externo. No entanto, parece que tem muita gente ainda interessada em transformar a Amazônia em um oásis do seu próprio enriquecimento.

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CAPÍTULO 1 O RECONHECIMENTO DA OCUPAÇÃO TRADICIONAL DE TERRAS INDÍGENAS: O CASO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA 1 SERRA DO SOL Melquesedeque Bandeira de Oliveira2 Aparecida Luzia Alzira Zuin3

Tema

O tema se insere dentro da temática sobre Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, em especial, a relação dos povos indígenas com as suas terras tradicionalmente ocupadas. Objetivo principal

Observar se a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso “Terra Indígena Raposa Serra do Sol” ao estabelecer a observância do marco temporal para o reconhecimento da ocupação tradicional de terras indígenas está em sintonia com a Constituição Federal de 1988. Base teórica

A base teórica se dá a partir da exposição do caráter originário das terras indígenas fundadas no indigenato de João Mendes Junior, bem como os estudos sobre ocupação tradicional das terras indígenas.

1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Rondônia. Pós-graduando em Direitos Humanos pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0341171947631900. 3 Docente da Universidade Federal de Rondônia e do Programa de Mestrado Profissional em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça. Mestrado em Educação. Doutora e Mestra em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1584841068017210. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5838-2123.

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)

Justificativa

Este resumo se justifica na medida que as razões apresentadas pelo STF podem ser utilizadas para decisões análogas ao caso objeto deste trabalho, de modo que é relevante observar a constitucionalidade ou não das razões da decisão, tendo em vista possíveis ameaças aos direitos indigenistas constitucionalmente reconhecidos. Introdução

Em 2008, o STF iniciou o julgamento da Petição 3388 ou “Caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, na qual se discutiu a constitucionalidade e legalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujo conflito judicial espelhava as disputas entre fazendeiros e as comunidades indígenas. Ao término do julgamento, o STF reconheceu a constitucionalidade e a legalidade da demarcação da terra indígena, representando a conquista dos direitos territoriais dos povos indígenas locais. Entretanto, o STF fixou entendimento para o qual o reconhecimento e a demarcação de terras indígenas dependem da demonstração da ocupação indígena na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, 05 de outubro. Diante disso, é de relevo observar o marco temporal à luz da Constituição Federal de 1988, na medida que esse entendimento implica no reconhecimento apenas das terras indígenas que estavam ocupadas à data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Direito originário sobre as terras indígenas

A Constituição Federal de 1988 de forma inovadora reconhece aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las e protegê-las, bem como apresenta as características das terras indígenas (Brasil, 1988). O reconhecimento da terra indígena como direito originário – cujo reconhecimento pelo Estado é ato declaratório, e não constitutivo – decorre da tese do indigenato desenvolvida por João Mendes Junior à luz da interpretação do Alvará Régio de 1680 e a Lei de Terras (Lei nº 601/1850) (Souza Filho, 1998). O Alvará Régio de 1680 dispõe que, sendo os indígenas os primários e naturais senhores das terras que habitavam, se assegurava os direitos destes às terras que ocupavam, não sendo legítimo qualquer ato que visasse desconstituir esse direito (Souza Filho, 1998). Com o advento da Lei de Terras, estabeleceu-se que as terras devolutas seriam destinadas à colonização dos indígenas. Entretanto, não seria 16

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qualquer terra destinada à colonização, mas apenas as terras onde já existiam os indígenas, tendo em vista que o Alvará Régio de 1680 impedia que os direitos territoriais indígenas fossem desconstituídos, na medida que reconhecia os indígenas como os senhores naturais e primários de suas terras (Mendes Junior, 1912). Portanto, as terras ocupadas pelos indígenas não poderiam ser consideradas como devolutas nem poderiam ser concedidas aos colonos, pois elas se destinariam à civilização dos indígenas (Mendes Junior, 1912). Além disso, o Decreto nº 1.318/1854 que regulamentou a Lei de Terra prescreveu: Art. 75. As terras reservadas para colonisação de indigenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu usofructo, e não poderão ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo dellas, por assim o permitir o seu estado de civilisação (sic) (Brasil, 1854, on-line).

O Decreto reforçou a proteção desses direitos territoriais ao instituir a vedação da celebração de negócios jurídicos que tivessem por objeto o domínio das terras indígenas, bem ainda reforçou o compromisso jurídico de ser concedido aos indígenas a propriedade das terras que ocupavam. Assim, o indigenato é fruto da construção legislativa do período colonial e imperial do Brasil, em que se reconheceu aos indígenas os direitos sobre as terras que ocupavam, em razão delas se originaram antes da presença do Estado. A Constituição de 1891 não dispôs sobre as terras indígenas, seja porque ela tenha sido omissa ou porque ela não revogou as disposições do Alvará Régio nem a Lei de Terras. Assim, os direitos dos indígenas às terras que ocupam foram recepcionados por esta constituição (Souza Filho, 1998). Os direitos territoriais indígenas somente vieram a receber a posição de norma constitucional a partir da Constituição de 1934, a qual dispôs que “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las” (Brasil, 1934, on-line). Apesar do avanço da Constituição de 1934, esta marca o retrocesso por condicionar a proteção da terra à demonstração da posse permanente, não se alcançando as terras indígenas que foram invadidas e os seus membros expulsos – não obstante as implicações do indigenato (Souza Filho, 1998). Assim, era necessário reconhecer na constituição que as terras indígenas consistem em direitos originários. O que somente veio a ocorrer com a Constituição Federal de 1988. Destaca-se que os direitos territoriais dos indígenas não foram interrompidos entre a Constituição de 1934 e a Constituição de 1988, pois todas as constituições neste lapso temporal dispuseram que as terras indígenas eram objetos de proteção (Brasil, 1946, 1967). 17

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Ocupação tradicional

A busca dos direitos à terra assume pauta fundamental nas reivindicações dos povos indígenas, pois a terra representa o local em que as comunidades indígenas mantêm o seu referencial cultural, ou seja, é o local onde manifestam as suas crenças, histórias, costumes e cultura (Souza Filho, 1998). Com isso, a Constituição Federal de 1988 – de forma inovadora – vinculou o reconhecimento da terra indígena à ocupação tradicional, para que os indígenas possam se reproduzir física e culturalmente (Brasil, 1988). Em termos: § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (Brasil, 1988, on-line).

As disposições mencionadas visam garantir o exercício da identidade cultural diferenciada dos indígenas através das suas terras tradicionalmente ocupadas a partir da originariedade e da ocupação tradicional. Carreira (2005) anota que a palavra “terra” pode possuir significados plúrimos para as sociedades indígenas e não-indígenas, de modo que a sua compreensão deve ser feita a partir da visão do grupo indígena, porquanto a terra indígena se destina à reprodução física e cultural desse grupo. De nada adiantaria o reconhecimento de uma identidade cultural, se os direitos que interessam a esses grupos culturalmente diferenciados fossem interpretados a partir do olhar externo. A fim de apontar os elementos caracterizadores da terra indígena tradicionalmente ocupada, o texto constitucional elencou: habitação permanente; utilização para atividades produtivas da comunidade indígena; preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e a reprodução física e cultural. Assim, a terra indígena de ocupação tradicional é aquela utilizada para reprodução física e cultural da comunidade indígena cuja compreensão deve vir por meio da visão da comunidade indígena (Silva, 2008). Para Gallois (2004), a discussão sobre a ocupação tradicional de terras indígenas reside na incompreensão da terra como lugar de territorialidade, isto é, a terra não apenas se reveste do seu aspecto físico, mas também o imaterial: a manifestação cultural. Assim, erroneamente, confere-se à terra indígena o mesmo tratamento dado ao instituto civilista da posse ou o entendimento da terra indígena tradicionalmente ocupada como aquela decorrente da posse imemorial de tempos remotos, exigindo-se laudos arqueológicos que atestam a ocupação indígena em tempos remotos (Lisboa, 2008). 18

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Pelo exposto, a terra indígena tradicionalmente ocupada consiste no lugar em que a comunidade indígena manifesta a sua identidade cultural diferenciada conforme a sua cosmovisão, não sendo confundido com posse imemorial, em que grupo indígena habitava em tempos imemoriais, o qual, ante as guerras assimétricas com os colonizadores, passarem a exercer a sua tradicionalidade em outros lugares. A decisão do caso Raposa Serra do Sol

A partir do “Caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol” assentou-se entendimento para o qual o processo de demarcação de terra indígena consiste em ato vinculado para o Estado, isto é, reconhecida a existência da terra indígena, nasce para o Estado o dever de demarcá-la e protegê-la (Supremo Tribunal Federal, 2009). O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o direito dos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam é revestido pelo caráter originário, de modo que o processo administrativo de demarcação de terras indígenas não possui natureza constitutiva, e sim declaratória. Isto é, apenas se reconhece uma situação já existente, cuja formação independe de qualquer ato do Estado de legitimação (Supremo Tribunal Federal, 2009). Para o STF, a demarcação de terras indígenas se destina a garantir a posse permanente da comunidade indígena e ainda preservar os recursos naturais na área indígena, permitindo que os indígenas possam se reproduzir física e culturalmente (Supremo Tribunal Federal, 2009). Contudo, o STF dispôs o entendimento para o qual o reconhecimento da área como terra indígena demanda observância do marco temporal e da tradicionalidade da ocupação indígena. A Constituição Federal de 1988, para o STF, ao utilizar os verbos “ocupam” no presente, e não no passado (ocupadas), sinalizou ter adotado o instituto do “fato indígena” no lugar do indigenato como critério para o reconhecimento da terra indígena. Assim, o reconhecimento da terra indígena somente se faz a partir da data da promulgação da CF/88, 05/10/1988 (Supremo Tribunal Federal, 2009). Já para a tradicionalidade da ocupação, a demonstração da presença indígena não consiste apenas na presença física na área objeto de demarcação, representa também o desejo da comunidade em manter a sua relação cultural diferenciada com a terra (Supremo Tribunal Federal, 2009). No caso em discussão, o STF entendeu que as fazendas ali localizadas não conseguiram desfazer a relação dos indígenas com a terra, tendo em vista a resistência e a reafirmação dos grupos indígenas em permanecer na área da Raposa Serra do Sol (Supremo Tribunal Federal, 2009). 19

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O voto do ministro Gilmar Mendes destacou que a decisão dada ao caso da Raposa Serra do Sol deveria ser observada para os futuros casos que envolvessem a demarcação de terra indígena (Supremo Tribunal Federal, 2009). Ao fim, o STF julgou parcialmente procedente o caso no sentido de ser reconhecida a constitucionalidade e a legalidade do processo administrativo da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Supremo Tribunal Federal, 2009). Contudo, a decisão representou desafios para os futuros casos, tendo em vista que restringiu o reconhecimento das terras indígenas à observação do marco temporal. Análise da decisão

O STF manifestou entendimento para o qual o reconhecimento das terras indígenas depende da demonstração da presença indígena na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, tendo em vista ser esse o recorte temporal para o reconhecimento dos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam. Todavia, as terras indígenas consistem em direitos originários, os quais independem de legitimação, pois são fundados no indigenato para o qual os indígenas são os primeiros ocupantes e senhores das terras que ocupam. Além disso, as terras indígenas são caracterizadas a partir da demonstração da ocupação tradicional, a qual consiste no uso da terra conforme a identidade cultural da comunidade indígena, não se confundindo com aspectos de temporalidade. Portanto, o marco temporal se mostra incompatível com a Constituição Federal de 1988, que se vincula aos aspectos de tradicionalidade, e não de temporalidade. E ainda que se quisesse sustentar o marco temporal, este seria o da Constituição de 1934 (16 de julho), pois ela foi a primeira constituição a dispor sobre a proteção das terras indígenas, sendo certo que as constituições posteriores reproduziram o mesmo conteúdo normativo. Em outra perspectiva, o marco temporal conflita diretamente com a disposição da Constituição que assegura a imprescritibilidade dos direitos territoriais sobre as terras indígenas. Assim, se eles são imprescritíveis, não é cabível a estipulação de um marco temporal para a sua reivindicação. Além disso, a Constituição Federal de 1988 dispôs que os negócios jurídicos que tenham por objeto a ocupação, domínio e a posse sobre terras indígenas são nulos e extintos. Ou seja, a Constituição Federal de 1988 já reconhecia a existência de terras indígenas anteriormente à data da sua promulgação (Silva, 2016). É verdade que o STF assinalou que o marco temporal não seria aplicado aos casos em que houvesse o renitente esbulho sobre as terras indí20

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genas, dificultando ou impedindo a demonstração da ocupação indígena em 05/10/1988. Explica Silva (2016) que a disposição do “renitente esbulho” impôs aos indígenas a necessidade de demonstrar a constante ameaça de perder a sua ocupação pelos não indígenas, a qual deveria perdurar até o marco temporal. Ocorre que tal ônus de provar essa situação não se compatibiliza com a Constituição Federal de 1988, na medida que o texto constitucional reconheceu a existência de uma minoria que deve ser protegida. Assim, a interpretação constitucional envolvendo a temática indigenista deve conferir tratamento protetivo a essas minorias. Diante disso, o ônus deve recair sobre os membros da sociedade não-indígena (Silva, 2016). Além disso, anteriormente à Constituição Federal de 1988, os indígenas eram submetidos ao regime tutelar, de modo que não poderiam, por si só, recorrer ao judiciário para efetivação de seus direitos, dependendo sempre do seu órgão assistencial (Brasil, 1973). Assim, não é forçoso imaginar que o interesse político do órgão assistencial em recorrer ao judiciário pudesse dificultar a proteção das terras indígenas. Com efeito, o marco temporal conflita com as prerrogativas constitucionais sobre as terras indígenas, em especial, a imprescritibilidade. Por outra, as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, ou seja, não podem ser vendidas, transferidas nem os seus direitos relegados. Pelo exposto, o marco temporal se mostra incompatível com a Constituição Federal de 1988, pois: (a) cria restrição temporal de direitos não prevista no texto constitucional; (b) ofende originariedade dos direitos territoriais; (c) não se compatibiliza com a tradicionalidade da ocupação; (d) estabelece limites temporais para direitos imprescritíveis. Referências

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sol. Inexistência de vícios no processo administrativo demarcatório. Observância dos arts. 231 e 232 da constituição federal, bem como da lei nº 6.001/73 e seus decretos regulamentares. Constitucionalidade e legalidade da portaria nº 534/2005, do Ministro da Justiça, assim como do decreto presidencial homologatório […]. Autor: Augusto Affonso Botelho Neto […]. Réu: União […]. Relator: Min. Carlos Ayres Britto, 19 de março de 2009. Diário da Justiça, BrasíliaDF, 24 de setembro de 2009. Disponível em: http:// redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133. Acesso em: 21 abr. 2023.

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CAPÍTULO 2 ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO: 1 PERPETUAÇÃO DE ABUSOS Paulo Adaias Carvalho Afonso2 José Renato Hojas Lofrano3 Priscila Guimarães Marciano4 João Gustavo Tabarelli Batista5

Objeto de estudo

O presente estudo tem por objeto a compreensão da modificação (ou não) que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sistema carcerário brasileiro trouxe para a realidade carcerária do Brasil. Justificativa

Em agosto de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o ECI do sistema carcerário brasileiro, afirmando que o quadro notório de superlotação carcerária, condições desumanas de custódia e falhas estru-

1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho A Responsabilização por Graves Violações dos Direitos Humanos, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Pesquisador do grupo “Direitos Humanos, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável Global” (UFMS) e do grupo “Vulnerabilidades no Novo Direito Privado” (UFF). E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4852611529301313. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0678-4988. 3 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Pesquisador do grupo “Direitos Humanos, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável Global” (UFMS). E-mail: [email protected]. Lattes: http:// lattes.cnpq.br/1386381126744080. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1970-2649. 4 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]. Lattes: https://lattes.cnpq.br/1182670375271543. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2664-4870. 5 Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Unigran Capital (MS). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7068227527282167. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-4358-8594.

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turais demonstram violação massiva e persistente de direitos fundamentais e falência de políticas públicas. Por conta disso, a Corte deferiu a Medida Cautelar na ADPF 347, determinando diversas providências. Passados quase 8 anos da decisão, convém examinar quais foram as alterações concretas alcançadas. Objetivo principal

Examinar quais foram as providências determinadas pelo STF ao reconhecer o ECI do sistema carcerário brasileiro e, com base nelas, buscar dados para compreender quais foram as modificações concretas para a melhoria do sistema. Base teórica da reflexão

Desde tempos remotos, com a organização da sociedade, o ser humano busca estabelecer formas de punição para transgressões, seja como orientação de condutas desejadas ou como proibição daquelas mal vistas. Neste sentido, são exemplos os Dez mandamentos, o Código de Hamurabi até a Lei das doze tábuas (Bobbio, 2004). Sem a organização de um Estado moderno, a vingança privada teve papel predominante por algum tempo, fatalmente desencadeando exageros. Neste ponto, assumindo a concepção de que mediava os conflitos em nome de Deus, a intervenção da Igreja surge de forma a moderar punições exageradas (Carrara, 1985). Somente a partir da organização do Estado moderno, partindo das ideias de Montesquieu (1996) de separação de Estado e Igreja, começa a concepção atual da punição de condutas indesejadas pelo Estado, que teria autocontenção regulada por lei, as conhecidas liberdades negativas. Passaram a se criar os denominados crimes ou delitos a fim de que as pessoas pudessem saber com antecedência quais as condutas indesejadas e quais as consequências de sua prática (Beccaria, 2002). O estabelecimento de crimes e penas serve de sustentação inicial da superação do conceito de vingança privada, que prestigiava unicamente os mais fortes, física ou economicamente. A partir de Beccaria (1738-1794) e sua obra “Dos delitos e das penas” (original de 1764), foram lançadas as bases do Direito Penal moderno, em que se busca a igualdade de todos perante a lei, a abolição da pena de morte, a erradicação da tortura como meio de obtenção de prova ou como sanção penal, a publicidade dos julgamentos e a proporcionalidade das penas. Tais conceitos são revisitados também por Norberto Bobbio (19092004), especialmente em seu clássico “A era dos direitos” (2004), em que o autor faz uma defesa primorosa da abolição da pena de morte e, ao analisar 26

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os direitos fundamentais, compreende a relatividade da maioria das garantias, à exceção de 2 que são absolutas: a) o direito de não ser escravizado; e b) o direito de não ser torturado. Exclusividade estatal para punição

Com a organização humana moderna dos Estados, as bases do Direito Penal somente foram adequadamente compreendidas a partir das ideias do Iluminismo, em que o Estado se organiza a partir de um contrato social (Rousseau, 2002) por meio do qual as pessoas delegam ao Estado parte das próprias prerrogativas. No caso do sistema penal, passa-se a compreender que o Estado é o único legitimado tanto para estabelecer penas quanto para executá-las. Há que se reconhecer, entretanto, que a caminhada de reconhecimento dos direitos humanos não é linear e nem igualitária entre os Estados (Bobbio, 2004), sendo ainda contemporâneos os países que admitem a pena de morte ou o uso de tortura como meio de extração de informações ou punição (De Sá e Silva, 2020). Sistema internacional de proteção de Direitos Humanos

Após as atrocidades de duas grandes guerras mundiais, o cuidado com os Direitos Humanos passa a conflitar com a ideia fechada e absoluta de soberania até então vigente. Não mais se admitia que, em nome da soberania, países desrespeitassem direitos inerentes aos seres humanos. Com base nesta ideia, em 1945 criou-se a Organização das Nações Unidas (ONU) e, na sequência, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) (ONU, 1948), estabelecendo um sistema global de proteção aos direitos humanos. No plano regional, a Organização dos Estados Americanos (OEA) surge somente em 1948, mas a assinatura da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) ocorreu somente em 1969. Nesta época, entretanto, o Brasil vivia um de seus períodos ditatoriais e não havia grande disposição dos governantes por chancelar qualquer limitação ao poder do Estado frente ao indivíduo. Por conta disso, somente após a redemocratização e a Constituição de 1988, o Brasil ratificou a CADH, por meio do Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Natureza jurídica da norma internacional sobre Direitos Humanos

A relação hierárquica entre a legislação interna e os tratados internacionais incorporados sempre foi problemática no Brasil. Com papel pouco significativo na diplomacia internacional e ensinamentos fervorosamente 27

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ligados à ideia de soberania nacional, a questão não encontrou muito espaço para debates no Supremo Tribunal Federal até 1977. Na época, o STF (RE 80.004/SE) definiu que – após sua ratificação pelo Congresso Nacional – o tratado internacional era recepcionado com o status de lei ordinária (Ceia, 2016). A Constituição de 1988 (Brasil, 1988) foi tímida em seu texto original sobre a recepção dos tratados no âmbito interno. Embora tenha entre seus princípios fundamentais “a prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II), dispôs tangencialmente que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º). Por conta dessa timidez, mesmo após a Constituição de 1988, o STF seguiu decidindo que tratado internacional ratificado pelo Brasil era incorporado ao direito interno como lei ordinária (ADI 1480 MC, Tribunal Pleno, rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 04/09/1997, DJ 18/05/2001). Somente a partir da EC 45/04, com a inclusão do § 3º6 ao art. 5º, da Constituição de 1988, é que passou a ser admitida a possibilidade de incorporação de tratado internacional com status equivalente ao de emenda constitucional. Problema se instalou quando se discutiu o status de tratados de direitos humanos ratificados antes da EC 45/04, como é o caso da CADH. Em 2008, apreciando a hipótese de prisão civil do depositário infiel, o STF – RE 349.703/RS (rel. Min. Carlos Britto), RE 466.343/SP (rel. Min. Cezar Peluso) e HC 87.585/TO (rel. Min. Marco Aurélio) – concluiu que tais normas possuem caráter supralegal. Sistema carcerário brasileiro

O sistema carcerário brasileiro é objeto de notícias sobre superlotação e violências de todo tipo há muitas décadas. Trata-se de percepção generalizada de que, no Brasil, a prisão ultrapassa a pena imposta pelo Estado, chancelando situações de tortura e perda da dignidade da pessoa humana. Tal situação degradante também representa forte empecilho à possibilidade de ressocialização do preso, bem como afasta o indivíduo do conceito de acesso à justiça na esfera criminal. O Poder Legislativo brasileiro já apurou a situação caótica do sistema carcerário brasileiro por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito que reconheceu “uma realidade cruel, desumana, animalesca, ilegal, em que presos são tratados como lixo humano” (Brasil, 2009, p. 193). 6 Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

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Apesar disso, em absoluto descompasso com a apuração sobre o sistema carcerário brasileiro, o Congresso Nacional tem produzido cada vez mais o que se apelidou de “legislação simbólica”, criando mais delitos e aumentando as penas existentes. Como consequência, aumenta-se a população carcerária (já em situação de superlotação) e potencializam-se os efeitos deletérios do poder de facções criminosas sobre a massa de presos. O enfrentamento do problema tem tido iniciativas ainda tímidas como a propositura de Ação Civil Pública para obrigar o Estado a reformar a cadeia pública ou a construir uma nova unidade (REsp 1.389.952/MT7, RE 1.026.698/MT8 e RE 592.581/RS9). Outro caminho foi o ajuizamento de ações indenizatórias individuais contra o Estado, alegando a ocorrência de danos pessoais aos detentos. A celeuma também chegou até o STF, que definiu em repercussão geral (RE 580.252/MS): Tema 365: “Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.”

Por conta deste cenário, o PSOL manejou a ADPF 347 buscando o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, numa importação do entendimento firmado pela Corte Constitucional da Colômbia que a doutrina chamou de “transconstitucionalismo latino-americano” (Wermuth; Castro, 2021). Estado de Coisas Inconstitucional

Para reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), a doutrina pressupõe três requisitos: a) situação de violação generalizada de direitos fundamentais; b) inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a situação; e c) que a superação das transgressões exija a atuação não apenas de um órgão, e sim de uma pluralidade de autoridades. O reconhecimento do ECI traz como consequências que a Corte Constitucional exerça seu papel contramajoritário de proteção da digni7 Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201301926710&dt_publicacao=07/11/2016. Acesso em: 17 abr. 2023. 8 Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13320178. Acesso em: 17 abr. 2023. 9 Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10166964. Acesso em: 18 abr. 2023.

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dade de grupos vulneráveis, impondo aos Poderes Públicos a tomada de ações urgentes e necessárias ao afastamento de violações massivas de direitos fundamentais, bem como supervisione sua efetiva implementação. A ADPF 347 só teve sua Medida Cautelar apreciada até o momento, ocasião em que reconheceu a deplorável situação da população carcerária no Brasil, com ofensa a vários direitos fundamentais expressamente previstos na Constituição Federal, como: a) Princípio da dignidade da pessoa humana; b) Proibição de tortura e tratamento desumano ou degradante de seres humanos; c) Vedação da aplicação de penas cruéis; d) Dever estatal de viabilizar o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado; e) Segurança dos presos à integridade física e moral; e f) Direitos à saúde, educação, alimentação, trabalho, previdência, assistência social e à assistência judiciária. Por conta disso, em 09/09/2015, o STF deferiu parcialmente a Medida Cautelar para determinar: a) aos juízes e tribunais – que motivem expressamente por que não aplicaram medidas cautelares alternativas à privação de liberdade; b) aos juízes e tribunais – que implementem, em até 90 dias, a realização das audiências de custódia; c) aos juízes e tribunais – que considerem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema carcerário brasileiro no momento de concessão de cautelares penais, na aplicação da pena e durante a execução penal; d) aos juízes – que estabeleçam, quando possível, penas alternativas à prisão; e) à União – que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar contingenciamentos.

Em cumprimento ao item b), a Resolução CNJ n.º 213/15 regulamentou a audiência de custódia em todo o território nacional, inserindo este procedimento no cotidiano forense. Desde a fase de implantação, já foram identificados dois grandes desafios para a Audiência de Custódia, que seguem válidos: 1) conduzir a evolução do instituto a fim de assegurar sua utilização em relação a todo e qualquer preso; e 2) impedir sua extinção ou sua inutilização (com adoção disseminada da videoconferência, por exemplo) (Afonso, 2023). À exceção da determinação sobre o fundo penitenciário, todas as demais implicavam uma conclamação aos magistrados brasileiros a fim de utilizar a prisão preventiva como último recurso. Constatação desanimadora é que o STF reconheceu o ECI em 2015, quando a população carcerária brasileira beirava 600 mil pessoas, e atualmente o número chega a mais de 900 mil. Neste sentido, merece transcrição a crítica de Breno Baía Magalhães: Do ponto de vista dogmático, não é tarefa simples explicar a inserção do ECI no direito constitucional brasileiro. A decisão 30

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do STF na ADPF 347 é inconsistente na caracterização dos pressupostos que justificariam a declaração de um ECI no Brasil, as cautelares deferidas são inócuas, há uma injustificada demora no julgamento do mérito, os poderes apresentaram respostas tacanhas e que seguem a mesma natureza das políticas tradicionalmente desenvolvidas no Brasil e a capacidade de uma corte suprema mudar um estado fático de coisas por meio do direito é posta em dúvida (2019, p. 31-32).

Embora sujeito a críticas que permeiam o ativismo judicial e a afronta à separação dos poderes, o instituto ECI revela-se como mais um instrumento do poder público a ser utilizado na concretização de direitos fundamentais. Considerações finais

Os direitos humanos foram construídos ao longo dos anos, em um processo que experimentou avanços e retrocessos, porém, algumas situações demonstram alto grau de violação da dignidade humana, não mais se admitindo que sejam aceitas e consideradas normais. Uma dessas situações é a vivenciada pelo sistema carcerário brasileiro, que experimenta por décadas uma degradação que atinge não apenas os detentos que cumprem pena nos estabelecimentos prisionais, mas toda a sociedade que fecha os olhos para as violações cometidas ou que se compraz com o sofrimento alheio. Assim, a decisão proferida pelo STF na ADPF 347 merece ser comemorada, ao inovar nos argumentos e fundamentações, mas deve também ser aperfeiçoada para que o instituto do ECI se torne mais efetivo nos casos em que for reconhecido. Espera-se que o presente trabalho, em que pese sua singeleza, consiga atingir um maior número de pessoas a tomar conhecimento do instituto estudado e que contribua para a renovação da esperança de um sistema carcerário mais eficiente e justo. Referências

AFONSO, Paulo Adaias Carvalho. Audiência de custódia: Convenção, implantação e desafios no Brasil. In: GUEDES, Renan (org.). Ciência Brasileira: Múltiplos olhares - Direito, Sociologia, Política, Antropologia e Serviço Social. Recife: Even3 Publicações, 2023. DOI: 10.29327/cb-direitosociologia-politica-antropologia-servico-social-1.599497. Disponível em: https://www.even3.com.br/ebook/cb-direito-sociologia-politicaantropologia-servico-social-1/599497. Acesso em: 17 abr. 2023. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieti Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002. 31

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CAPÍTULO 3 DISCUSSÕES CONCEITUAIS E HISTÓRICAS: DIREITOS HUMANOS, GARANTIAS PROCESSUAIS E 1 ACESSO À JUSTIÇA Delson Fernando Barcellos Xavier2 Sâmara Rohers Penha3 Jéferson Araújo Sodré4

Introdução

Os Direitos Humanos são uma das principais preocupações do mundo contemporâneo, e a proteção desses direitos é um desafio constante para toda humanidade. Posto isto, o acesso à justiça e às garantias processuais são fundamentais para a efetividade dos Direitos Humanos, pois sem esses mecanismos, muitos direitos podem ficar apenas no papel. Nesse sentido, é essencial entender o embasamento conceitual e histórico sobre Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça, a fim de promover uma análise crítica sobre sua aplicação prática e identificar seus desafios e limitações. Assim, a proposta deste estudo levanta a seguinte questão norteadora: quais são os principais elementos do embasamento conceitual e histórico referentes aos Direitos Humanos, 1 Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Docente na Universidade Federal de Rondônia. Pesquisador dos grupos Centro de Estudos Jurídicos da Amazônia (CEJAM/UNIR) e Grupo de Pesquisa de Direito da Cidade (GPDC/UERJ). E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8131231817266876. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6868-4221. 3 Mestranda do Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos. Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq. br/3465828600409825. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5710-1687. 4 Mestre em Administração Pública (UNIR). Graduado em Direito (UNIR). Ocupa o cargo de Assistente em Administração (UNIR). E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7234790904881396. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8652-7134.

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garantias processuais e acesso à justiça e como eles se relacionam na efetividade dos Direitos Humanos? O estudo demarca como objetivo geral analisar de forma crítica o embasamento conceitual e histórico relacionado aos Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça, para tanto, dispõe os seguintes objetivos específicos: analisar de forma crítica o embasamento conceitual e histórico sobre os Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça; identificar as principais inter-relações entre esses temas e como eles se complementam na garantia da proteção dos Direitos Humanos; apontar as limitações e desafios para a efetividade dos Direitos Humanos por meio do ao acesso à justiça e às garantias processuais. A metodologia utilizada neste estudo foi a pesquisa bibliográfica, que se efetiva pela análise crítica de livros, artigos, teses e dissertações que tratam sobre Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça. A pesquisa foi baseada em uma abordagem qualitativa, que permitirá uma análise crítica e aprofundada dos conceitos envolvidos. O estudo se apresenta dividido em cinco partes: a primeira refere-se à introdução, na qual apresentamos o tema, a pergunta norteadora e os objetivos do estudo. Na segunda parte, discutimos os fundamentos teóricos sobre Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça. A terceira parte foi dedicada à análise crítica das inter-relações entre esses temas. Na quarta parte, foram discutidos os desafios e limitações para a efetividade dos Direitos Humanos por meio do acesso à justiça e das garantias processuais. Finalmente, na quinta parte, apresentamos as conclusões e recomendações com base nas análises realizadas ao longo do estudo. Fundamentos teóricos dos Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça

Os Direitos Humanos, entendidos como princípios universais que garantem a dignidade, a liberdade e a igualdade de todos os seres humanos, têm suas raízes em várias tradições culturais, filosóficas e religiosas ao longo da história, nessa medida, pode-se afirmar que “a constatação da multiplicidade de tradições culturais serve de base para a crítica relativista da impossibilidade de uma formulação universal de direito” (Lucas, 2008, p. 180). Essas percepções defendem a teoria da inexistência de um direito universal devido à diversidade de tradições, para tal, enfatiza o respeito às diferenças culturais e a necessidade de considerá-las ao lidar com questões legais, promovendo uma abordagem mais inclusiva e adaptável às complexidades inerentes às diversas sociedades e suas práticas culturais (Lucas, 2008). As tradições religiosas e filosóficas desempenharam um papel crucial no desenvolvimento dos Direitos Humanos, com base nas noções de 36

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dignidade humana e igualdade que podem ser encontradas em várias religiões antigas, como o judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo e confucionismo. Zuber (2019) nesta intencionalidade de contextualizar essa integração da religião e cultura com a inserção das primeiras compreensões sobre a legalidade dos Direitos Humanos exemplifica através dos atos da Igreja ortodoxa russa, ao afirmar que “assim propôs sua própria compreensão dos Direitos Humanos em documento datado de 2008, que vincula o necessário respeito da dignidade humana aos direitos e às responsabilidades morais das pessoas” (Zuber, 2019, p. 23). Essas e outras tradições forneceram as bases morais e éticas para o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais do ser humano, além disso, os filósofos gregos e romanos como Sócrates, Platão e Cícero abordaram temas relacionados à justiça, igualdade e direitos individuais, enriquecendo o debate sobre os Direitos Humanos e estabelecendo as bases para o seu desenvolvimento posterior (Miranda Filho, 2013). É possível afirmar que a relação entre os Direitos Humanos, as garantias processuais e o acesso à justiça se reportem ao período medieval, mas seu fortalecimento deriva no período do Iluminismo e das revoluções liberais do século XVIII, para tal, existem marcos históricos que se tornaram fundamentais para estabelecer essa relação e garantir o respeito aos Direitos Humanos por meio de processos judiciais justos e do acesso à justiça. Dentre os eventos e períodos históricos importantes que contribuíram significativamente para a evolução dos Direitos Humanos, em especial os aspectos destinados às tradições religiosas e filosóficas, está o direito romano, a Magna Carta de 1215, da Inglaterra, o Iluminismo, as revoluções liberais. Na perspectiva relacionada ao marco da Magna Carta de 1215 essa se estabelece através do desenvolvimento dos Direitos Humanos, por parte da limitação referente ao poder do monarca, por meio do estabelecimento de proteções para certos direitos fundamentais, como o direito a um julgamento justo. Embora a Magna Carta de 1215 não abordasse explicitamente os Direitos Humanos, ela estabeleceu o princípio de que o poder político deve ser limitado e que os governantes devem ser submetidos à lei, firmando as bases para a evolução dos direitos constitucionais e das garantias dos Direitos Humanos em futuras democracias (Vieira, 2001). O Iluminismo, um movimento intelectual dos séculos XVII e XVIII, enfatizou a razão, a liberdade e os direitos individuais, para tal, filósofos iluministas, como John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant, influenciaram profundamente o pensamento sobre Direitos Humanos, desenvolvendo teorias sobre direitos naturais e inalienáveis que pertencem a 37

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todos os seres humanos, independentemente de sua origem ou status social (Comparato, 2003). Suas ideias contribuíram para a crença de que os Direitos Humanos são inerentes à condição humana e devem ser protegidos pelo Estado e pela sociedade, assim, essas ideias iluministas desafiaram as estruturas de poder existentes e enfatizaram a importância da soberania popular e da limitação do poder político. Immanuel Kant, [...] viveu para escutar o tumulto que assustou a Europa e abalou a vizinha monarquia francesa, cuja expressão humanista revelou-se com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão formulada por seus coetâneos iluministas [...] A sua argumentação, sólida e racional, nos campos da epistemologia e da filosofia prática, contribuiu para fornecer subsídios importantes, na defesa de direitos fundamentais, compartilhados por todos os homens (Santos, 2018, p. 9).

No Iluminismo, filósofos como Kant, John Locke, Montesquieu e Cesare Beccaria desenvolveram teorias políticas e jurídicas que enfatizavam a importância das garantias processuais e do acesso à justiça para proteger os Direitos Humanos. Essas teorias influenciaram a criação de sistemas legais e constitucionais que garantem um processo judicial justo e imparcial, a presunção de inocência e a proteção contra punições cruéis e desumanas (Santos, 2018). As revoluções liberais do final do século XVIII, como a Revolução Americana (1775-1783) e a Revolução Francesa (1789-1799), foram fundamentais para a consolidação dos Direitos Humanos. A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França (1789) estabeleceram princípios fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade que influenciaram o desenvolvimento dos Direitos Humanos. Esses documentos revolucionários reconheceram explicitamente a universalidade dos Direitos Humanos e a necessidade de protegê-los através de sistemas legais e políticos (Barros, 2003). Foi no fim do século XVIII, bem no início da era contemporânea, que se começou a falar em “direitos fundamentais do homem e do cidadão”. Eles então surgiram de forma absoluta para combater a monarquia absoluta. Eram direitos absolutos opondo-se aos reis absolutos: um absoluto contra outro absoluto. Foi com esse sentido que as revoluções liberais os proclamaram como sendo direitos universais, imprescritíveis e inalienáveis do ser humano, em suma: direitos assim abstratos e básicos, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à fraternidade, à felicidade, à segurança e outros igualmente genéricos (Barros, 2003, p. 2). 38

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As revoluções liberais do século XVIII, como a Revolução Americana e a Revolução Francesa, deram origem a documentos fundamentais, como a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Esses documentos estabeleceram direitos fundamentais, incluindo garantias processuais e o acesso à justiça, como parte integrante dos Direitos Humanos (Barros, 2003). Em síntese, as raízes dos Direitos Humanos podem ser rastreadas através de várias tradições culturais, filosóficas e religiosas, bem como marcos históricos, como o direito romano, a Magna Carta, o Iluminismo e as revoluções liberais. Estas influências moldaram a concepção moderna dos Direitos Humanos como princípios universais inalienáveis que garantem a dignidade, a liberdade e a igualdade de todos os seres humanos. Essas ideias continuam a evoluir e se expandir universalmente, resultando no desenvolvimento de tratados e convenções internacionais para proteger os direitos de diferentes grupos vulneráveis e abordar questões emergentes nos Direitos Humanos. A partir do século XX, a comunidade internacional começou a formalizar os Direitos Humanos em tratados e convenções, estabelecendo um arcabouço legal e institucional global. A Carta das Nações Unidas, assinada em 1945, estabeleceu a Organização das Nações Unidas (ONU) e enfatizou a importância dos Direitos Humanos, reconhecendo a necessidade de promover a paz e a justiça globalmente. Com base nesses apontamentos, Alencar (2015, p. 259) afirma que a Carta das Nações Unidas foi o “pilar necessário para o surgimento da Organização das Nações Unidas e, consequentemente, de suma importância para reafirmação dos Direitos Humanos, evidenciando as liberdades fundamentais sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. No século XX, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e os pactos internacionais de Direitos Humanos, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), consolidaram ainda mais a relação entre Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça, deste modo, esses documentos estabelecem que todos têm direito a um julgamento justo e imparcial, a recursos efetivos e à proteção contra prisões e detenções arbitrárias (Alencar, 2015). Em síntese, a relação entre Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça se desenvolveu ao longo da história, desde os primeiros esforços para limitar o poder dos governantes e proteger os direitos individuais até a evolução dos sistemas legais e constitucionais modernos que garantem um processo judicial justo e o acesso à justiça como um direito humano. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, também se apresenta como um marco fun39

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damental na história dos Direitos Humanos. Este documento estabeleceu um conjunto abrangente de Direitos Humanos universais, refletindo valores comuns e princípios compartilhados por diversas culturas e tradições, para tanto, a Declaração promoveu a proteção e o respeito aos Direitos Humanos como um imperativo moral e legal, incentivando os Estados a adotarem medidas concretas para garantir a realização desses direitos (Borges, 2016). Em 1966, a ONU adotou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), expandindo o alcance dos Direitos Humanos e estabelecendo mecanismos de monitoramento e implementação. Esses pactos complementaram a Declaração Universal, fornecendo um quadro jurídico mais detalhado para a proteção e promoção dos Direitos Humanos (Borges, 2016). Entre 1979 e 2006, várias convenções internacionais de Direitos Humanos foram adotadas, abordando questões específicas e protegendo grupos vulneráveis, tais como: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, 1979), a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CAT, 1984) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD, 2006). Essas convenções têm desempenhado um papel crucial na promoção dos Direitos Humanos, abordando lacunas e desafios específicos e garantindo a inclusão e proteção de grupos historicamente marginalizados (Dantas, 2012). Em conclusão, a relação histórica entre Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça revela uma evolução significativa na concepção e proteção dos direitos fundamentais. Desde os primeiros esforços para limitar o poder arbitrário dos governantes, como na Magna Carta, até a consolidação dos princípios iluministas e as revoluções liberais, a proteção dos Direitos Humanos tem sido intimamente ligada à garantia de processos judiciais justos e ao acesso à justiça. Documentos e tratados internacionais do século XX, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, reforçam essa relação, estabelecendo padrões globais, assim como mecanismos de supervisão. A relevância histórica dessa interconexão reside na compreensão de que a realização efetiva dos Direitos Humanos requer sistemas legais e políticos que garantam a proteção desses direitos por meio de processos judiciais justos e acessíveis, contribuindo para a construção de sociedades mais democráticas, igualitárias e justas.

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Inter-relações frente aos Direitos Humanos em relação ao acesso à justiça e às garantias processuais

Ao abordar as inter-relações entre Direitos Humanos, acesso à justiça e garantias processuais, é fundamental destacar a importância desses elementos para a proteção efetiva dos direitos fundamentais e a promoção da justiça social. Essas inter-relações estão profundamente enraizadas na evolução histórica e filosófica dos Direitos Humanos, demonstrando como o acesso à justiça e as garantias processuais são componentes indispensáveis para a realização dos Direitos Humanos em uma sociedade democrática e igualitária (Spengler; Spengler Neto, 2011). Primeiramente, o acesso à justiça é essencial para a proteção dos Direitos Humanos, já que, sem a possibilidade de buscar reparação por violações de direitos ou garantir a efetivação dos direitos fundamentais através do sistema judicial, os indivíduos ficam vulneráveis a abusos e discriminação. O acesso à justiça, portanto, é um direito em si e também um meio de proteger e promover outros Direitos Humanos (Belo, 2010). A ideia que determina sobre os aspectos que interligam o acesso à justiça como uma ferramenta indispensável na proteção dos Direitos Humanos reflete a primordialidade deste elemento no contexto do arcabouço jurídico e social que sustenta a garantia dos direitos fundamentais. O acesso à justiça, como componente indispensável no âmbito da salvaguarda dos Direitos Humanos, concebe uma série de prerrogativas inerentes ao pleno exercício da cidadania e à preservação da dignidade humana (Belo, 2010). O acesso à justiça confere aos indivíduos a possibilidade de buscar reparação e responsabilização perante violações aos seus direitos fundamentais, como expressam Teixeira e Santos (2011, p. 15) ao afirmarem que: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta da OEA e a Convenção Americana de Direitos Humanos constituíram importantes documentos na luta da formalização dos direitos que outrora foram violados logo, a manutenção dos Direitos Humanos em âmbito nacional – os direitos fundamentais – deve ser assegurada por todos os governos estatais, posto que a principal finalidade de um governo humanista, tal como o brasileiro, refere-se ao bem comum. Deve-se contrapor, então, a ideia de que os Direitos Humanos representam um empecilho à boa administração governamental, enquanto, ao contrário, seja a defesa deles um dos meios a que se chega ao objetivo principal do governo estatal: o bem comum entre seus cidadãos.

Nesse sentido, assegurar que os cidadãos possam recorrer a instâncias judiciais e extrajudiciais para pleitear a tutela de seus direitos é imperativo para a concretização de uma sociedade justa e equânime. 41

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Ademais, o acesso à justiça promove a efetividade dos Direitos Humanos, na medida em que propicia a implementação e o cumprimento de normas jurídicas e políticas pertinentes. A possibilidade de recurso às instituições judiciais, bem como a proteção e a garantia dos direitos, estimula o Estado a respeitar, proteger e cumprir suas obrigações em relação aos Direitos Humanos, evitando a perpetuação de práticas discriminatórias e arbitrárias. Outrossim, se constitui em um mecanismo de empoderamento para grupos vulneráveis e marginalizados, permitindo que estes reivindiquem seus direitos e busquem soluções para situações de injustiça e desigualdade, dessa forma, pode-se considerar que “o tema do acesso à justiça é um tema central para a Defensoria Pública, uma vez que essa Instituição possui como missão essencial, a prestação de assistência jurídica integral (às) aos mais vulneráveis (art. 5º, LXXIV, Constituição Federal)” (Reinert, 2018, p. 13), desse modo, contribui para a promoção da inclusão social e a consolidação de uma ordem democrática baseada no respeito aos Direitos Humanos. É importante salientar que o acesso à justiça também possui um caráter preventivo, na medida em que a garantia de mecanismos eficazes de reparação e responsabilização pode desestimular a ocorrência de violações aos Direitos Humanos. Logo, a afirmação de que o acesso à justiça é crucial para a proteção dos Direitos Humanos revela a intrínseca conexão entre a capacidade dos indivíduos de buscar justiça e a efetivação dos direitos fundamentais em uma sociedade regida pelo Estado de Direito e pela promoção da dignidade humana. Outro aspecto define que as garantias processuais desempenham um papel fundamental na salvaguarda dos Direitos Humanos, posto que, princípios como o direito a um julgamento justo e imparcial, a presunção de inocência, o direito à defesa e a proteção contra prisões e detenções arbitrárias são essenciais para garantir que os indivíduos não sejam privados injustamente de sua liberdade, dignidade e outros direitos fundamentais. As garantias processuais asseguram que o sistema judicial opere de maneira transparente e justa, protegendo os direitos dos indivíduos e promovendo a confiança no Estado de Direito (Belo, 2010). A assertiva de que as garantias processuais desempenham um papel fundamental na salvaguarda dos Direitos Humanos ressalta a imprescindibilidade desses mecanismos no contexto da tutela e promoção dos direitos fundamentais. Essas garantias, ao assegurar o devido processo legal e a observância dos princípios basilares da justiça, atuam como pilares para a efetivação dos Direitos Humanos. É possível afirmar que as garantias processuais estabelecem os parâmetros essenciais para a condução de processos judiciais e administrativos que envolvam direitos e interesses individuais. Nesse sen42

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tido, a observância de princípios como o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência e a publicidade dos atos processuais visa assegurar que os direitos das partes sejam devidamente respeitados e protegidos (Ramos Neto, 2021). O Princípio da Presunção de inocência, em resumo, pode ser conceituado como o direito de não ser declarado culpado senão após o término do devido processo legal, momento qual o acusado deve usar todos os meios de provas, admitidos no direito, para a sua defesa (ampla defesa) e para descredibilizar as provas apresentadas pela acusação (contraditório) (Ramos Neto, 2021, p. 13).

Ademais, as garantias processuais contribuem para a promoção da confiança no sistema de justiça e no Estado de Direito. A garantia de um processo justo e imparcial, no qual as partes possam exercer plenamente seus direitos e expectativas legítimas, fomenta a percepção de que o sistema jurídico é equitativo e eficiente na proteção dos Direitos Humanos. Tal percepção é fundamental para a consolidação de uma sociedade democrática e a manutenção da ordem pública (Ramos Neto, 2021). Outrossim, as garantias processuais atuam como salvaguardas contra o exercício arbitrário do poder estatal e a violação dos Direitos Humanos. A observância de tais garantias impede que os indivíduos sejam submetidos a tratamentos injustos ou degradantes, restringe o uso excessivo da força pelo Estado e coíbe práticas discriminatórias no âmbito do sistema de justiça. Pagliarini e Carvalho (2021, p. 30) afirmam que “a CF, no art. 93, IX, exige que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas, o que representa uma garantia contra o exercício arbitrário do poder pelo Judiciário”. Por fim, a efetivação das garantias processuais tem repercussões diretas e indiretas na proteção dos Direitos Humanos. De maneira direta, essas garantias asseguram que os direitos e interesses das partes sejam devidamente tutelados em processos judiciais e administrativos. De maneira indireta, a observância das garantias processuais contribui para a construção de uma cultura de respeito aos Direitos Humanos e ao Estado de Direito, na qual os cidadãos e as autoridades públicas reconhecem a importância da justiça e do devido processo legal para a manutenção da ordem democrática e a promoção da dignidade humana (Pagliarini, Carvalho, 2021). Além disso, as inter-relações entre Direitos Humanos, acesso à justiça e garantias processuais também são evidentes no desenvolvimento e implementação de instrumentos internacionais de Direitos Humanos. Convenções e tratados estabelecem mecanismos de supervisão e responsabilização para garantir o cumprimento pelos Estados das suas obrigações em relação aos Direitos Humanos, incluindo o acesso à justiça e a observância das garantias processuais. 43

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Em resumo, as inter-relações entre Direitos Humanos, acesso à justiça e garantias processuais enfatizam a importância desses elementos para a proteção e promoção dos direitos fundamentais. Essas conexões reforçam a necessidade de garantir que os sistemas legais e políticos sejam projetados e implementados de forma a salvaguardar os Direitos Humanos e promover a justiça social. Desafios e limitações

A relação entre Direitos Humanos, acesso à justiça e garantias processuais é intrinsecamente complexa e enfrenta diversos desafios e limitações em sua efetivação. Algumas das principais questões incluem: desigualdade socioeconômica, ausência de informações e conscientização, morosidade do sistema judicial, discriminação e preconceito, corrupção e impunidade, insuficiência de instrumentos e mecanismos internacionais, entre outros. Acerca da desigualdade socioeconômica, torna-se relevante afirmar que esta se configura como um dos principais obstáculos ao acesso à justiça e à efetivação das garantias processuais, posto que muitas vezes, indivíduos em situação de vulnerabilidade econômica e social enfrentam dificuldades para arcar com custos judiciais, contratar advogados ou obter informações e orientações jurídicas adequadas (Silva, 2018). O Poder Judiciário enfrenta obstáculos como: altas taxas/custas judiciárias, a falta de recursos para constituir uma defesa digna para assim pleitear seus direitos, dentre outros. É de suma relevância social, em um país marcado pela desigualdade e difícil acesso ao Poder Judiciário, questões como essas, que tem sido tema de diversas discussões (Silva, 2018, p. 14).

No aspecto da falta de conhecimento sobre Direitos Humanos, garantias processuais e recursos legais disponíveis, tal ação dificulta o acesso à justiça e a efetivação das garantias processuais, essa condição reforça o cenário de que indivíduos desconhecem seus direitos ou os mecanismos pelos quais podem buscá-los (Silva, 2018). Outro aspecto evidente nesse conceito de limitações e dificuldades, dispõe acerca da morosidade dos sistemas judiciais em muitos países, que comprometem o acesso à justiça e a efetivação das garantias processuais. A demora excessiva na tramitação dos processos e a falta de recursos humanos e materiais para lidar com a demanda judicial impactam negativamente a proteção dos Direitos Humanos (Castro; Gomes, 2021). A discriminação e o preconceito por parte de atores do sistema de justiça, apresentam-se como fatores de dificuldade nesse processo de garantia, ações que podem afetar o acesso à justiça e a garantia de processos 44

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justos e imparciais, especialmente para grupos vulneráveis e marginalizados (Castro; Gomes, 2021). A corrupção e a impunidade também se apresentam como limitações no acesso aos Direitos Humanos, de modo que são problemas sistêmicos que minam a confiança no sistema de justiça e prejudicam a efetivação das garantias processuais. Quando os agentes públicos envolvidos na proteção e promoção dos Direitos Humanos atuam de maneira corrupta ou não são responsabilizados por suas ações, a efetividade das garantias processuais e o acesso à justiça são comprometidos (Castro; Gomes, 2021). Para enfrentar esses desafios e limitações, é necessário um compromisso contínuo por parte dos Estados, organizações internacionais, sociedade civil e outros atores relevantes para fortalecer os sistemas judiciais, promover a educação em Direitos Humanos, combater a corrupção e a impunidade e garantir a inclusão e a equidade no acesso à justiça e na efetivação das garantias processuais. Considerações finais

Em suma, a presente análise explorou as intrincadas inter-relações entre Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça, bem como os desafios e limitações inerentes a esse contexto. A evolução histórica e filosófica desses temas revela o papel fundamental que desempenham na construção de uma sociedade democrática e igualitária, na qual os direitos fundamentais são respeitados e promovidos. Os fundamentos históricos dos Direitos Humanos, garantias processuais e acesso à justiça demonstram como esses elementos estão intrinsecamente entrelaçados e evoluíram em conjunto ao longo do tempo, para tanto, a análise das inter-relações entre esses temas evidenciou a importância do acesso à justiça e das garantias processuais na proteção e promoção dos Direitos Humanos. Os desafios e limitações apresentados, como a desigualdade socioeconômica, falta de informação e conscientização, morosidade do sistema judicial, discriminação e preconceito, corrupção e impunidade, e insuficiência de instrumentos e mecanismos internacionais, destacam a necessidade de esforços contínuos para aprimorar o acesso à justiça e as garantias processuais na promoção dos Direitos Humanos. Este trabalho alcançou seu objetivo ao investigar a relação entre os três temas e identificar os principais desafios e limitações que os permeiam, no entanto, é imperativo considerar que novas pesquisas e abordagens são necessárias para aprofundar o conhecimento e propor soluções efetivas no enfrentamento dos desafios e limitações identificados. Futuras pesquisas podem perpassar pelo cenário no intuito de explorar estratégias inovadoras para melhorar o acesso à justiça e a efetivação 45

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das garantias processuais, especialmente para grupos vulneráveis e marginalizados. Além disso, seria pertinente investigar as melhores práticas e experiências bem-sucedidas em diferentes contextos nacionais e internacionais, visando identificar políticas e iniciativas eficazes para superar os obstáculos que impedem o pleno exercício dos Direitos Humanos. Em última análise, o estudo desses temas e a busca por soluções para os desafios enfrentados são essenciais para garantir que os Direitos Humanos, o acesso à justiça e as garantias processuais sejam protegidos e promovidos de maneira efetiva, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática. Referências

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PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Violações brasileiras às “garantias judiciais”: uma visão a partir da corte interamericana de direitos humanos. Revista Pensamento Jurídico, v. 15, n. 1, 2021. RAMOS NETO, Newton Pereira. Poderes do juiz no processo civil e sua conformação constitucional. Salvador: JusPodivm, 2021. REINERT, Lúcia Thomé. A Educação em Direitos como instrumento concretizador do acesso à justiça das mulheres. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, v. 3, n. 9, p. 12-18, 2018. SANTOS, Romulo Rodrigues. Influência do pensamento kantiano na construção dos direitos humanos. 2018. 86 f. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018. SILVA, Pedro Henrique Rodrigues. Acesso à justiça pelo hipossuficiente econômico: advocacia pro bono no município de itapuranga-go, 2016-2018. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade Evangélica de Rubiataba, Rubiataba, 2018. SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETO, Theobaldo. O acesso à justiça como “direito humano básico” e a crise da jurisdição no Brasil. Scientia Iuris, [S.l.], v. 15, n. 2, p. 53–74, 2011. TEIXEIRA, Larissa Xavier; SANTOS, Fátima Terezinha Silva. O acesso à justiça: uma análise do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Revista Amicus Curiae, v. 8, p. 1-17, 2011. VIEIRA, Oscar Vilhena. Para conhecer os direitos humanos. Revista USP, n. 51, p. 210-217, 2001. ZUBER, Valentine. Os direitos humanos têm uma origem religiosa. SUR Revista Internacional de Direitos humanos, v. 16, n. 29, p. 19-33, 2019.

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CAPÍTULO 4 DIREITO À EDUCAÇÃO E AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: 1 UMA ANÁLISE HISTÓRICA E SISTEMÁTICA André Luiz Pestana Carneiro2 Aparecida Luzia Alzira Zuin3

Introdução

O presente artigo tem por objetivo apresentar o panorama brasileiro em relação às políticas públicas de educação superior, em especial as ações afirmativas nas universidades, trazendo os conceitos e finalidades de forma aprofundada, de modo que seja evidenciada a necessidade de se garantir o acesso dos nossos povos originários e tradicionais (população indígena e quilombola) na educação superior como requisito necessário para a permanência de sua existência, identidade e cultura. Ao longo das últimas décadas, as ações afirmativas no Brasil se tornaram uma realidade na política, no serviço público, na educação básica e superior, assim como tem partido também de ações de entidades privadas, com ou sem fins lucrativos. Essas ações conferem efetividade às diversas normativas internacionais e nacionais ratificadas no Brasil que formam um vasto arcabouço normativo e legislativo que orienta diretrizes, define 1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP (2022/2), Mestre em Educação pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR (2018), graduado em Direito pela UNIR. É integrante voluntário do grupo de pesquisa no Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Amazônia CEJAM, com ênfase em Políticas Públicas Educacionais. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq. br/1763039209533940. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6862-9487 3 Docente do Programa de Mestrado Profissional Interdisciplinar Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça (DHJUS/UNIR/EmeronTJRO/MPERO/DPERO). Docente do Mestrado Acadêmico em Educação (PPGE/UNIR disciplina: Educação, Comunicação e Mediação). É Professora visitante no Programa de Pós-graduação Estudos em Direitos Humanos, do Ius Gentium Conimbrigae/Centro Universitário de ensino e investigação na área de Direitos Humanos, da Faculdade de Direito - Universidade de Coimbra (Portugal). E-mail: [email protected] . Lattes: http:// lattes.cnpq.br/1584841068017210. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5838-2123.

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conceitos e até mesmo garante o exercício pleno de direitos fundamentais do cidadão, como é o caso do direito à educação, que é individual, subjetivo, mas também social, coletivo. Nesta esteira, pretende-se evidenciar o direito à educação, à educação superior com as ações afirmativas destinadas às minorias e grupos vulneráveis e/ou marginalizados como condição essencial para sua coexistência na sociedade contemporânea, enquanto coletividades livres e esclarecidas que não sejam apenas beneficiários de políticas, mas também formuladores, estudiosos, líderes e cidadãos participativos numa democracia que cada vez mais enfrenta o desafio de assegurar o convívio livre e sadio com a diversidade e com a diferença. A democratização do acesso ao ensino superior ocorrida nas últimas décadas passou a diversificar os diferentes grupos sociais que ingressam na universidade pública brasileira: alunos oriundos de escola pública, pessoas com deficiência, indígenas, negros – deselitizando-a, não pode ficar de costas para outros grupos vulneráveis como quilombolas e outros povos tradicionais que possuem formas próprias de organização, identidade própria, que ocupam o território como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, se utilizando de conhecimentos, inovações tecnológicas e práticas transmitidas por sua tradição (Brasil, 2007). Trata de uma pesquisa com abordagem qualitativa; com procedimento bibliográfico e documental. Inicia com a discussão sobre o conceito de educação em diferença com o conceito de ensino. Em seguida, apresenta os conceitos de cidadania e cidadania plena, com o intuito de trazer à tona a necessidade de conscientização do que venha a ser cidadania voltada aos direitos humanos. Educação e direito à educação para a cidadania

Conceituar “educação” não se constitui tarefa fácil e precisa. No entanto, o emprego do termo com as mais diversas expressões relacionadas e/ou associadas no sentido de ensino, instrução, doutrinação, formação de inteligência, transmissão (de cultura e modo de vida de um povo), desenvolvimento de capacidades físicas, intelectuais e morais no indivíduo (desde o nascimento e por toda a vida), vão ao encontro do significado concreto que é a transmissão de comportamentos, técnicas, em geral, da moral de uma sociedade de forma a garantir sua sobrevivência (Ranieri, 2009; Abbagnano, 2007). É pela educação que se faz a transmissão. Nessa perspectiva que Durkheim compreendia e conceituava a educação como: [...] a ação é exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objeto suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados 50

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físicos, intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio ao qual se destina particularmente (Durkheim, 2007, p. 53).

Logo, a educação se constitui fato social, uma vez que quando nascemos, já estamos inseridos no contexto social (generalidade), com suas regras determinadas (coercitividade), que acontece independente da vontade dos sujeitos (exterioridade), por isso temos a classificação em educação formal (através da escola estruturalmente criada para essa finalidade) e educação informal (ação exercida pela família, ambiente social). Para Durkheim, a sociedade só subsiste se, entre seus membros houver um mínimo de homogeneidade, que caracteriza a coesão social, alcançada através da educação (Durkheim, 2007). Dessa forma, o processo educacional dos indivíduos da nossa sociedade acontece a partir do nascimento, de modo que os adultos impõem/ transferem aos mais jovens sua história e legado. Mas, como um processo contínuo, não devemos apenas enxergar a educação de forma restrita, como passagem, imposição ou transferência de saberes, crenças, história e legado. Temos como ponto principal de análise pensar no que estamos passando/ transferindo/impondo à nossa jovem geração a partir da Teoria Crítica da Sociedade, desenvolvida na Escola de Frankfurt (1924)4, tendo como principais pensadores Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. A partir da ótica de Adorno (2020), através da teoria crítica, a educação se constitui esclarecimento, de modo que esse esclarecimento é a reflexão crítica da sociedade, passada ou projetada para o futuro, permeada pela racionalidade, na busca por uma sociedade racional, livre e menos desigual. Ou seja, a teoria crítica busca compreender aquilo que é, que não é, que poderia ser, mas não é (dialética negativa), nesse primado de contradição e dialeticidade que transpassa a sociedade contemporânea capitalista. Para ele, a educação só terá sentido pleno para a própria educação se ela se voltar para a reflexão crítica dos indivíduos (Adorno, 2020). Desta forma, o objetivo da educação está diretamente associado ao direito à educação na atualidade, uma vez que pode ser entendido, de modo geral, como o direito de todos os indivíduos a uma escolarização mínima que os permita compreender a realidade no processo do seu desenvolvimento, de modo a refletir acerca da sua própria vivência saudável no mundo (em tese), da mesma forma que também se refere aos cuidados 4 A Escola de Frankfurt se refere a um grupo de filósofos e pensadores que fundaram em meados da década de 1920 o Instituto de Pesquisa Social na Alemanha que tinha por objetivo o estudo da Teoria Crítica da Sociedade, de caráter interdisciplinar, que envolvia elementos da filosofia, da sociologia, da ciência política, da psicologia e outras áreas do conhecimento numa perspectiva que negava a simplificação excessiva das ideias, com a finalidade de compreender com profundidade as contradições inerentes ao mundo moderno.

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mínimos necessários que possibilitem aos indivíduos usufruir de oportunidades disponíveis na vida em sociedade de forma autônoma e racional (Ferreira; Gomes; Henning, 2022). Durkheim também compartilhava do entendimento de que hoje se busca construir uma personalidade autônoma através da educação, e assim como Adorno, reconhece os erros totais ou parciais de observação e lógica dos nossos antepassados. Isso não significa que devemos abandonar o conhecimento adquirido ao longo da evolução humana, advindos das épocas em que ocorreram ou foram produzidos, mas podemos e devemos nos apropriar também dos problemas, das soluções dadas e nos interrogar sobre o que poderia ou deveria ter sido, sendo que os registros e ensinamentos da História podem muito servir para que não haja reincidência nos erros já cometidos (Durkhein, 2007). Em relação à solidez do direito à educação, para Cury (2002), não há hoje, praticamente, nenhuma nação no mundo que não garanta a seus cidadãos, em suas normas internas, o acesso, pelo menos, à educação básica (obrigatória) – que no Brasil inclui a educação infantil, ensino fundamental e médio (este último incluído na educação básica a partir de 2009); tendo em vista que a educação é pressuposto fundamental ao exercício da cidadania, e, consequentemente, à participação de todos nos espaços sociais e políticos, como exercício e gozo da vida em uma democracia. Mas nem sempre foi assim, pois, apesar de reconhecido, faz-se necessário que esse direito essencial seja garantido pelo Estado, para que seja efetivamente exercido pelos indivíduos que compõem cada nação (Cury, 2002). E, por se falar em cidadania, temos que o termo (ou direito), assim como outros direitos básicos, se encontra em constante evolução social, pois que não se resume apenas ao atendimento de necessidades mínimas, as mais básicas, ou ainda, não podemos mais restringi-lo às capacidades políticas ativas e passivas de votar e ser votado (ou eleito). Para que realmente sejamos cidadãos se faz necessário que além de existirem direitos que nos assegurem essas necessidades básicas – que são muitas, possamos gozá-los, ou seja, que o direito se assegure, se reverbere de forma material e não meramente formal, sob pena de se tornar “letra morta” ou papéis históricos sem relevância. A cidadania não necessariamente deveria exigir um complemento, mas, hoje, temos que subdividi-la (ou fragmentá-la) com cidadania plena, sendo esta a capacidade de reivindicar/exigir e gozar esses direitos básicos, ou mesmo pleitear a sua ampliação (Geisler, 2006). A universalização do direito à educação, apesar de muito debatido na era contemporânea, face à sua complexidade, foi privilégio de poucos na história brasileira. Como direito declarado em lei de forma expressa, é recente, e remete ao final do século XIX e início do século XX. O direito 52

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à educação ganhou também muita evidência a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), com a finalidade de possibilitar a plena expansão da personalidade humana, também a fim de reforçar o conhecimento e reconhecimento dos direitos do Homem e de suas liberdades fundamentais, assim como deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como fomentar e consolidar o desenvolvimento da atividades da Organização das Nações Unidas para a manutenção da paz como princípio orientador de relações internacionais entre as nações que a compõem (ONU, 1948). Não obstante a sua importância, a Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU, 1948), embora ratificada pelos países membros, não possui força vinculante, pelo menos no Brasil, assim como em outros países, de modo que possa exigir (através dos meios e do aparelhamento estatal) a sua plena exequibilidade. Todavia, na perspectiva humanista e contemporânea, essa característica não diminui sua relevância, tendo em vista que serviu e ainda serve de parâmetro e inspiração não só para a elaboração de outros instrumentos internacionais, mas também para a edição de Constituições, como Lei Maior, de muitos países no mundo contemporâneo. O direito à educação na Constituição brasileira de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996

Na legislação constitucional brasileira, a educação (básica, compreendida a infantil, ensino fundamental e ensino médio) se constitui direito público subjetivo, isto é, aquele direito ou faculdade de exigir do Estado a sua fruição, como o direito de colocar uma criança na creche ou na escola pública. Constitui direito fundamental individual, coletivo e também social, haja vista que qualquer um de seus beneficiários, ou sujeitos passivos, são titulares para exigir do Estado a educação formal (em estabelecimentos oficiais de ensino), isso como direito positivado, o que não o torna simples, mas exageradamente complexo num país com dimensões continentais, histórico de colonização europeia, de bases econômicas agrícolas e de mão-de-obra escravocrata (Ranieri, 2009). O direito à educação obrigatória e gratuita foi declarado expressamente no texto constitucional brasileiro em 1988 (art. 208, §1º). Seguindo as diretrizes e princípios dos Direitos Humanos estabelecidos em tratados e acordos internacionais, e, principalmente, com a ampla participação da sociedade civil e dos movimentos sociais após o processo de redemocratização na década de 80 do século XX – época em que se viveu o sombrio período da Ditadura Militar, foi elaborada a Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, na qual o direito à educação encontra-se insculpido no artigo 6º, capítulo II, que 53

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trata dos Direitos Sociais, também inserido no título referente aos Direitos e Garantias Fundamentais, direitos esses que jamais podem ser revogados do ordenamento jurídico vigente, conhecidos como cláusulas pétreas, ou cláusulas de pedra. Inicialmente, foi previsto o exercício do direito à educação apenas o ensino fundamental como obrigatório e gratuito (educação iniciada aos seis anos de idade, com duração de nove anos, que compreendia a educação básica até 2009). Somente a partir da Emenda Constitucional nº. 59/2009 é que o ensino médio foi incluído também na educação básica – ou seja, apenas no século XXI, no final da década dos anos 2000 é que a educação básica e obrigatória no Brasil compreendeu os estudos em escola pública e gratuita dos quatro aos 17 anos, também assegurada a oportunidade àqueles que não puderam cursar na idade própria estabelecida em Lei (Brasil, 2009), o que comprova a evolução tardia a passos lentos que os direitos sociais e individuais se mostram no Brasil. Ademais, a Reforma Constitucional de 2009 também previu e ampliou itens acessórios que contribuem consideravelmente para a permanência dos estudantes e para a qualidade do ensino na educação básica como: material didático, transporte escolar, merenda e programas de promoção e assistência à saúde, que anteriormente eram restritos ao ensino fundamental. Outra inovação importante que resultou da reforma foi a inclusão da União e Distrito Federal no regime de colaboração entre os Estados e Municípios, e também com a sociedade, considerando a permissão dada à iniciativa privada e o dever da família, todos na missão de garantir a universalização do ensino obrigatório (art. 211, § 4º). Vê-se que a legislação constitucional aborda os termos educação e ensino como sinônimos, de modo que os mesmos possuem o significado de educação formal, aquela oferecida em estabelecimentos oficiais de ensino, ou seja, aqueles que se adequam à legislação federal regulamentadora da educação, assim como se submetem à autorização e avaliação pelo poder público (art. 209). Direito à educação superior no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996

Não obstante à previsão expressa de “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais (art. 206, IV)”, a mesma se encontra mitigada logo após, na expressão “acesso aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (art. 208, V)”, o que pressupõe a característica de seletividade na educação superior, de forma sutil, porém, excludente, uma vez que ainda perduram os aspectos de desigualdade na educação básica e pública brasileira, tanto em contex54

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tos econômicos (privada e pública) quanto em aspectos regionais e políticos (distorção entre os entes federativos). Na educação básica, cerca de 81% das matrículas existentes são de alunos oriundos da rede pública, isto é, das creches ao ensino médio (Inep, 2023). Desse percentual de matrículas na rede pública de educação básica, cerca de 56,94% (média) desses estudantes, são autodeclarados pretos/pardos. - Percentual de matrículas na educação básica segundo a rede de oferta em 2022

Gráfico 1

Fonte: Inep (2023).

Segundo o Censo Escolar da Educação Básica (Inep, 2023), registraram-se cerca de 47 milhões de matrículas, sendo que houve elevação das taxas de matrícula na rede privada de ensino, cerca de 10% comparada ao ano de 2021, retornando, portanto, aos parâmetros anteriores à pandemia da covid-19 (Inep, 2023). Ou seja, os alunos que saíram da rede privada durante o período da pandemia e foram para a rede pública, em virtude de vários fatores socioeconômicos, como a diminuição da renda da maior parte da população brasileira, retornaram para a educação privada após a estabilização sanitária e recuperação da economia. Observa-se que, aqueles que podem pagar, preferem a educação privada. Mas a universalização da educação básica ainda se encontra em andamento no Brasil, o que repercute, consequentemente, pela demanda de mais vagas para o acesso ao ensino superior, àqueles que assim desejarem. A regulamentação da restrição à universalização do ensino superior, consta no art. 208, V, em relação ao acesso dos cidadãos aos níveis mais elevados do ensino (direito à educação superior), veio posteriormente disciplinada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), a qual no art. 44 dispõe: 55

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Art. 44. A educação superior abrangerá os seguintes cursos e programas: [...] II - de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo;

A previsão de processo seletivo, no entendimento de Cezne (2006), se aplica indistintamente às instituições públicas e privadas, o que consolida o critério de seleção/exclusão, tendo em vista a restrita existência de vagas na educação superior pública, se comparada à rede privada. A gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais, deve, pois, ser interpretada como a existência de ensino superior gratuito (universidades públicas), o que não se denota direito universal, subjetivo portanto, à educação superior. A educação superior se torna, então, uma faculdade do cidadão brasileiro, ou estrangeiro que aqui estiver, mas não disponível a todos que assim desejarem, mas apenas àqueles que lograrem êxito nos vestibulares e processos seletivos das concorridas universidades públicas. Isso não quer dizer que o Estado não possa assegurar meios igualitários de acesso aos níveis elevados de ensino, como uma educação básica de qualidade, com o mínimo de distorções possíveis, ainda que existentes em razão dos vários contextos locais e regionais no País, mas que possibilite ao estudante sonhar em ingressar na universidade pública. Logo, circunstâncias que se afastem da missão de ampliar o direito à educação ou que reduzam as desigualdades existentes quanto à sua oferta no âmbito do País, são critérios importantes para a avaliação de políticas públicas educacionais, sendo as que ampliam esse direito subjetivo e fundamental as mais adequadas, tanto em relação ao acesso, quanto em relação aos resultados e efeitos (Oliveira, 2012). As ações afirmativas na educação superior brasileira

As ações afirmativas são espécies do gênero políticas públicas, cuja expressão denota, de modo geral, a atuação estatal de modo formal e material no atingimento dos seus objetivos, fundamentos e missões. Vejam-se alguns dos objetivos fundamentais da República Federal do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988). Esses dispositivos, por si só, não se constituem em políticas públicas, mas orientam, de forma cogente, a formulação de toda a legislação brasileira, assim como preconiza o exercício das atividades estatais através de suas instituições diretas e indiretas. 56

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Daí, portanto, as ações afirmativas na educação superior fazerem parte das políticas públicas estatais, compatíveis com os objetivos da Nação, como uma importante frente de combate não só ao racismo, como também da desigualdade existente entre a representatividade de minorias nas universidades. A adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil se acentuou a partir da participação do estado brasileiro na III Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, em 2001, na África do Sul, o que mudou sensivelmente o olhar e a atuação estatal voltada ao enfrentamento do problema da questão racial no País. Passados mais de dez anos após a assunção dos compromissos pelo Estado Brasileiro em Durban, em 2012 foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei nº. 12.711/2012 (Lei de Cotas), que tornou obrigatória a reserva de 50% das vagas em universidades e institutos federais para estudantes oriundos de escolas públicas, considerando critérios como origem escolar (exclusivamente escola pública), renda familiar, etnia ou raça, e deficiência física (incluído pela Lei nº. 13.409/2016), o que constitui uma política de ação afirmativa na educação superior. Lobo (2013, p. 103) assevera que “a intenção das ações afirmativas não é fomentar o ódio contra o branco (ou contra o negro [...]), mas ressaltar a importância da diversidade racial, inserindo os indivíduos excluídos no grupo dominante”, conforme afirma as ações afirmativas: [...] objetivam realizar o pluralismo, a diversidade, respeitando as diferenças em prol da igualdade, possibilitando-se assim que parcela excluída da população tenha acesso ao Ensino Superior de qualidade. Tal realização não implicará a desobrigação do Governo de melhorar o Ensino Fundamental e Médio a todos, mas se apresenta como mais uma alternativa para tentar se alcançar o avanço da população no que tange à educação como um todo (Lobo, 2013, p 113).

As ações afirmativas, nessa perspectiva podem vir a ser impregnadas de valores e ideologias, e a ideologia que se defende é de que a política em questão vem contribui ao acesso dos sujeitos excluídos aos Direitos Humanos de forma justa, efetivando a inclusão social, contribuindo, ainda, para tomada de consciência quanto à igualdade e democracia plena que se pretende: De todo modo, não se pode negar a necessidade urgente de políticas de inclusão social no Brasil como forma de combate às desigualdades no nosso País. O que não pode haver é o descarte das ações afirmativas, tendo em vista o objetivo a que as mesmas se propõem, qual seja, promoção da diversidade ra57

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cial, de um convívio mais harmonioso entre pessoas que, hoje, dificilmente interagem, e de realização da igualdade substancial (Lobo, 2013, p. 116).

As políticas públicas afirmativas no Brasil ainda permanecem necessárias, uma vez que os dados oficiais de pesquisas por amostragem ainda apontam a grave discrepância de representatividade na política, de ocupação em cargos e profissões de alto prestígio e a outros indicadores que constam negros, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, quilombolas. O direito das minorias nas normas internacionais

O conceito de minorias na atualidade vai muito além da semântica, uma vez que foram incorporados ao termo vários “construídos” de caráter político, social, filosófico, jurídico, histórico e até mesmo econômico. Jubilut (2013) entende que esse construído é histórico-social, pois trata de sua contextualização ao longo da evolução humana, adquirindo, portanto, transversalidade que depende muito da estrutura jurídico-político-social (estrutura e superestrutura) que o envolve (Jubilut, 2013). No Brasil, segundo dados oficiais do IBGE da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua publicada (IBGE, 2022), a população negra autodeclarada5 (que inclui pretos e pardos) é a maioria da população brasileira, o que se repetiu em comparação com o censo anterior (IBGE, 2012), mas nem por isso este grupo possui representação compatível com sua expressividade nos amplos espaços sociais como na política, na universidade, na ciência, na liderança de empresas, dentre outros campos. Ao contrário, a população negra lidera outros índices/campos sociais: são maioria da população carcerária, possuem a média mais baixa de escolaridade, os salários mais baixos, a menor expectativa de vida, são o maior grupo de pessoas que são assassinadas. Esses dados são conhecidos como marcadores sociais da população negra brasileiro. Pele-alvo. Apesar da maioria da população ser autodeclarada negra no Brasil, a mesma possui diferenciação acentuada (em indicadores sociais, econômicos, educacionais) com o outro grupo expressivo, que é a população branca. Outras características da população negra é a diversidade, que se constitui no direito de ser diferente, singular, tanto em relação a determinados grupos (quilombolas por exemplo) ou em âmbito individual (negro de cultura africana, indígena, ocidental, por exemplo). Mas a característica que mais reverbera na condição de minoria, é a subjugação, que é a exclusão

5 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística se utiliza do método de autodeclaração para ‘identificar’ a população brasileira segundo a cor ou raça.

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da população considerada minoria nas relações de poder6 se comparada à população majoritária (brancos, no caso brasileiro), que se sobressai de forma contínua em detrimento daqueles (Jubilut, 2013). Desta forma, as minorias abarcam não somente a população negra, mas, por envolver também características de vulnerabilidade, não-dominância incluem-se outros grupos vulneráveis como os povos quilombolas, indígenas, mulheres, idosos, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência. Em âmbito internacional o termo "minorias" constou no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, que no seu art. 27 trata sobre o direito à própria vida cultural, de usar sua própria língua. Dez anos mais tarde, na Declaração Universal dos Direitos dos Povos de 1976, que trata acerca da autodeterminação, igualdade e existência, cultura e tradição histórica, dentre outras diretrizes e princípios norteadores relacionadas aos direitos de coexistência dos mais diversos povos do Planeta. No contexto mais recente, na mesma diretriz de proteção e reconhecimento da necessidade de evidenciar políticas e direitos para grupos vulneráveis foi aprovada a Declaração sobre os Direitos Das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou Linguísticas em 1992 como um novo marco de promoção, conscientização e consolidação mais efetiva dos instrumentos internacionais de direitos humanos relacionados a grupos de minorias nacionais ou étnicas, religiosas ou linguísticas (ONU, 1992). Assim como a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, ratificada pelo Brasil, além de outros tratados, convenções e declarações, a legislação brasileira constitucional e infraconstitucional, possui estreita simetria com as normas internacionais, apesar do avanço ainda lento ao longo dos anos, principalmente em relação às políticas públicas em educação, que vão sendo consertadas/remendadas (como foi o caso das Leis nº. 10.639/2003 e nº. 11.645/2008 que alteram a LDB), face à latência das discussões sobre os direitos, reivindicações, reconhecimento e pela igualdade e representação das minorias e grupos vulneráveis brasileiros nos mais amplos espaços nacionais e internacionais. Preservação da cultura, diversidade e expressões culturais

Na mesma onda de discussões que nortearam a participação do Estado Brasileiro na Conferência de Durban em outubro de 2001, logo após, em novembro do mesmo ano, foi aprovada a Declaração Universal da Diversidade Cultural, na 31ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), organismo multila6 A propósito, Jubilut (2013) entende que essa exclusão se dá apenas nas relações ativas de poder, que podem ser entendidas como relações de controle e subordinação.

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teral do qual o Brasil faz parte7, cujo objetivo principal é o de estabelecer uma solidariedade intelectual e moral da humanidade, com vistas a evitar novas guerras em âmbito global. A Declaração citada trouxe diretrizes comuns aos Estados-Membro relacionadas à definição do que vem a ser a diversidade cultural, caracterizada como as diversas manifestações originais e plurais da identidade dos povos que compõem a humanidade que constituem patrimônio cultural que devem não só ser reconhecidos, mas também preservados para as atuais e futuras gerações (art. 1º). A ratificação das declarações e convenções para a proteção das expressões culturais, confirmam a previsão constitucional do direito à cultura no Brasil, assim como enfatiza o deve estatal de proteger o patrimônio cultural brasileiro, discriminados de forma exemplificativa no art. 216: formas de expressão, modos de criar, fazer e viver; as criações artísticas, científicas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Brasil, 1988). A legislação brasileira, constitucional e infraconstitucional, evoluiu paulatinamente acompanhando as discussões e debates em âmbito internacional relacionados à cultura, preservação cultural, diversidade cultural, fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais, como foi o caso da inclusão do art. 216-A na Constituição Federal, pela Emenda Constitucional nº. 71/2012. No entanto, mesmo com o ganho de relevância como política de estado, a área da cultura passa por momento de desmonte e baixa evidência nas pautas estatais iniciada a partir da extinção do Ministério da Cultura em 2016, no governo de transição de Michel Temer pela Medida Provisória (MP) nº. 726/2016, posteriormente recriado pela MP nº. 728/2016, em virtude do impacto na imprensa que provocaria, além das críticas, baixa popularidade do governo da época. Não obstante à recriação da pasta específica, o desmonte se acentuou com a redução dos recursos orçamentários ao longo dos anos, o que inviabilizou não só o desenvolvimento, mas também a execução de políticas públicas já existentes para a área da cultura. Os desmonte seguiu latente a partir de 2019 a 2022, quando foi extinta a pasta da cultura, rebaixada à Secretaria Especial vinculada ao então Ministério da Cidadania, posteriormente transferida para o Ministério do Turismo, o que demonstrou o seu afastamento da agenda pública do governo federal.

7 O Brasil colaborou na sua fundação em 1946, após a ratificação de 20 países signatários da Organização das Nações Unidas.

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Desta forma, diante da desarticulação e esfriamento das ações voltadas à preservação e fomento das diversas expressões culturais existentes no Brasil, as ações afirmativas na educação superior se constituem uma importante ferramenta destinada a assegurar as diversas representações dos diferentes povos que compõem a nação brasileira na universidade, que é espaço privilegiado destinado ao debate, à liberdade de expressão, que também produz conhecimento, e consequentemente, colabora na formulação de políticas públicas. Considerações finais

O estudo e análise das políticas públicas educacionais apresentam complexidade singular, tendo em vista o histórico da educação brasileira, principalmente a básica, elementar, que se iniciou de forma frágil, desarticulada e tardia, principalmente no que se refere à sua universalização, a partir da previsão constitucional de 1988, e, posteriormente, com a reforma ocorrida em 2009, que ampliou os anos da escolaridade mínima obrigatória, passando a incluir a educação infantil e o ensino médio. Ou seja, a universalização da educação básica, gratuita, universal, com escolarização mínima de 14 anos apenas se deu no século XXI, há menos de 20 anos atrás. Ressalta-se que a matrícula é obrigatória apenas para o ensino fundamental que compreende nove anos, iniciando-se aos seis anos de idade. Não obstante aos consertos e avanços, é evidente que a educação brasileira continua em evolução para a universalização do atendimento (educação básica), reconhecido como direito público subjetivo, de responsabilidade do Estado e da família, que materializa as possibilidades de uma sociedade menos desigual, com menos injustiça, que assegure e instrumentalize as condições necessárias para os direitos elementares do homem, como é o caso do direito à educação. Em meio à crise econômico-política que o País enfrenta, a universidade, como um instrumento e um espaço privilegiado de mudança, tem que estar voltada a atender todos os segmentos populacionais para atuar em conjunto com o poder público, reivindicando seu espaço e seus direitos, a fim de colaborar para a redução das desigualdades sociais e econômicas entre os mais diversos grupos de minorias e vulneráveis. Portanto, as ações afirmativas como políticas educacionais da educação superior voltadas para a diversidade na universidade, consistem em medidas especiais, que no caso das cotas são extraordinárias, embora já passados dez anos de sua implementação obrigatória nas instituições federais, que asseguram o ingresso de negros, indígenas, ex-alunos de escolas públicas e pessoas com deficiência, mas que podem ser ajustadas, a cada contexto regional, de modo a garantir a presença também de quilombolas, 61

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LGBTQIA+, ribeirinhos e outras populações tradicionais, de modo a preservar sua cultura, modo de vida e outras características que os fazem diferentes da sociedade majoritária. Referências

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CAPÍTULO 5 CONTRA A MORAL E OS BONS COSTUMES: UMA ANÁLISE DO JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA E DO BOLETIM CHANACOMCHANA 1 DURANTE A DITADURA MILITAR NO BRASIL Júlia Fernanda Vargas da Costa2

Introdução

Segundo Bourdieu (1984), há uma tendência natural de se valorizar o que é necessário em detrimento da estética. Esse gosto pela necessidade é associado à função e é considerado “inferior, curso, vulgar, venal, servil” (p. 7 e 372). Por outro lado, o gosto pelo luxo está relacionado ao estilo, representação e refinamento; é um prazer desinteressado e gratuito, que só pode ser apreciado por aqueles que são capazes de apreciar a beleza sublimada e distinta. Os movimentos sociais que se baseiam na identidade surgem, muitas vezes, da necessidade de suprir a falta de segurança física, de ameaças à sobrevivência coletiva e da carência econômica dos indivíduos (Della Porta; Diani, 1999). Contudo, esses movimentos também possuem um caráter simbólico inerente, com objetivos relacionados à visibilidade, representação e assimilação (Gamson, 1992). Por isso, a tensão entre a forma e a função, a representação externa e a sobrevivência interna, é uma experiência constante para os próprios movimentos sociais. A história da comunidade LGBT+ não se afasta desta lógica. Nos Estados Unidos, em 1969, a Rebelião de Stonewall foi um marco importante nessa trajetória de resistência e luta por direitos. Após uma ação arbitrária 1 Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Graduada em Relações Internacionais (UNISINOS) e mestranda em Estudos Sociais Latino-Americanos (UBA). E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9942558623102804. ORCID: https://orcid.org/00000001-9242-5046.

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da polícia, a comunidade se uniu em protesto e deu origem a grupos de defesa que se espalharam pelo mundo. Esse movimento de resistência é um exemplo inspirador de como a união e a luta por direitos humanos podem mudar a história. No caso do Brasil, foco desta pesquisa, esse movimento também floresceu em um contexto de grande repressão e injustiça social: a ditadura militar. O período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), por sua vez, foi marcado por muitas diversidades: na política, no comando do país, na população e também em sua diversidade sexual. A LGBTfobia estava há muito presente, mas foi agravada após o decreto do AI-5, que restringia direitos e expandia preconceitos e julgamentos – e prezava pela “moral” e os “bons costumes”. Assim, certa liberdade sexual, que se desenvolvia em alguns países, especialmente nos Estados Unidos, era extremamente rechaçada no Brasil. É neste contexto de forte repressão política e de censura cultural que surgiu, nas décadas de 1960 e 1970, a chamada “imprensa alternativa”. Sua outra nomenclatura, a de “imprensa nanica”, foi dada principalmente pelo pequeno formato dos jornais, cujos objetivos eram a denúncia de violação aos direitos humanos e a crítica às ações políticas e econômicas dos militares. Dessa forma, produzida também como meio de expressar a oposição ao sistema vigente e à indústria cultural, a “imprensa alternativa” caracterizou-se por ser mais regional, ter uma produção manual e poucas edições anuais. Mostrou-se insubordinada à imprensa tradicional, seja pelo conteúdo ou pelo público ao qual era destinado, e ainda possuía a irreverência em relação às regras tradicionais e ao mercado editorial. O movimento LGBT+, assim, utilizou-se da imprensa alternativa para criticar a estigmatização recorrente do público queer na grande imprensa, que se referia a eles como “seres que viveriam apenas nas sombras, experimentando sua sexualidade como maldição e como desgraça” (Quinalha, 2011, p. 171). Pelos motivos anteriormente mencionados, surgem, neste período, publicações radicais, antifascistas e LGBT+, como foi o caso do jornal Lampião da Esquina e do boletim ChanaComChana (Artiaga; Borges, 2019). Tendo isso em mente, este artigo pretende analisar como a imprensa alternativa, representada pelo Lampião da Esquina e pelo ChanaComChana, resistiu à ditadura militar brasileira ao mesmo tempo em que lutava pela defesa dos direitos humanos. Para isso, se dividirá em duas breves seções, responsáveis por identificar os objetivos e a contribuição de ambos os periódicos em termos de revolução cultural e mudança social.

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Lampião da Esquina: o jornal pioneiro da imprensa alternativa LGBT+

O Lampião da Esquina surge durante o conturbado período da ditadura militar, em que a imprensa era dominada pela censura, e as minorias sociais não possuíam liberdade e espaço de expressão. Apesar de não ter sido o pioneiro da imprensa alternativa destinado aos homossexuais, se destaca pela visibilidade atingida com uma distribuição nacional e que veio a alcançar grande destaque na mídia. Antes dele, existiam outros periódicos, mas estes eram mimeografados e com distribuição pulverizada. Mais especificamente, de acordo com Edward Macrae (1990), após uma visita de Winston Leyland, editor da revista homossexual estadunidense Gay Sunshine, 11 pessoas se reuniram na casa do pintor Darcy Penteado e criaram a ideia do veículo. Participaram da reunião o próprio Darcy Penteado, Adão Costa, Agnaldo Silva, Antonio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata, Jean Claude Bernardet, João Antônio Mascarenhas, João Silvério Trevisan e Peter Fry, os quais posteriormente constituíram o Conselho Editorial do jornal. Criada no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, a publicação tinha a intenção de desmistificar a imagem folclórica de que os homossexuais eram seres marginalizados e movidos por impulsos meramente sexuais, ademais de quebrar os preconceitos vigentes e delimitar a construção da identidade homossexual para a sociedade. No total, a publicação teve 38 edições, mais três edições extras, entre abril de 1978 e junho de 1981, e se apresentava como um jornal de formato tabloide. De sua edição experimental, a de número zero, foram impressas cinco mil cópias e distribuídas a um público selecionado, porém, “sem distinção de credo, raça ou preferência sexual” (Lampião, 1978b, p. 9).

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Figura 1

- Lampião da Esquina, capa da edição 28

Fonte: GRUPO DIGNIDADE (2023).

Assim, o jornal se apresentava ao público: Mostrando que o homossexual recusa para si e para as demais minorias a pecha de casta, acima ou abaixo das camadas sociais; que ele não quer viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigmatizem; [...] Lampião deixa bem claro o que vai orientar a sua luta: nós nos empenharemos em desmoralizar esse conceito que alguns nos querem impor – que a nossa preferência [orientação] sexual possa interferir negativamente em nossa atuação dentro do mundo em que vivemos (Lampião, 1978a, p. 2).

Havia uma preocupação evidente com o texto, em subverter e transgredir o discurso do sistema. Em sua leitura, era possível encontrar reportagens sobre temas polêmicos (igreja e homossexualidade), eróticos (locais de “pegação” [sic]), matérias sobre literatura, informações culturais e outros assuntos ainda em voga (como moda LGBT e casamento gay), além de uma contínua chamada ao ativismo e à ação popular.

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Figura 2 – Seção “Bixórdia”, Lampião da Esquina, edição 24

Fonte: GRUPO DIGNIDADE (2023).

Nas palavras de Simões Jr. (2004), Não se trata de um jornal para leitura de lazer. Tem-se a impressão de um periódico que busca criar/estruturar uma comunidade consciente de seus direitos e com argumentos convincentes e plausíveis que possibilitassem a aparição da comunidade homossexual enquanto algo positivo, e não pejorativo como era visto até então (ou até hoje).

O Lampião da Esquina, portanto, atendeu às necessidades surgidas em fins da década de 1970 de enfatizar a questão sobre a homossexualidade, dando espaço para esse público, que, em sua maioria, era relegado à invisibilidade. Apesar de visibilizarem e publicarem conteúdos lésbicos e trans, é evidente que o grande destaque de suas reportagens se destinou aos homossexuais masculinos. Nesse sentido, é possível afirmar que o jornal marcou significativamente a história da imprensa nacional e dos movimentos sociais brasileiros, obtendo êxito dentro dos ideais a que se propôs. ChanaComChana: a representatividade lésbica na imprensa alternativa

O boletim ChanaComChana surge anos após a criação do Lampião da Esquina e de outros jornais da imprensa alternativa de cunho homos69

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sexual ou feminista. Apesar da imprensa lésbica conversar com ambas (a imprensa homossexual e a feminista), há um diferencial marcado pela afirmação da lesbianidade que é negligenciada em outras mídias. A discussão a respeito da lesbianidade, portanto, não era o ponto central de nenhuma dessas publicações anteriores ao ChanaComChana. Ademais, foi somente através de pequenas publicações feitas por lésbicas nessas mídias que algumas reconheceram a necessidade de se organizarem politicamente para reivindicar suas especificidades (Silva; Cordão, 2021). Iniciado pelo subgrupo Lésbico-Feminista (LF) (formado somente por lésbicas, em fevereiro de 1979, dentro do grupo SOMOS/SP) e continuado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista, o boletim ChanaComChana, entre a imprensa lésbica, foi o periódico que mais teve publicações durante a década de 1980, circulando entre 1981 e 1987 (Silva; Cordão, 2021). Demarca, no decorrer de suas publicações, que é um boletim feito por e destinado para lésbicas, pautando questões ligadas ao movimento homossexual e ao movimento feminista. Ademais, além de ser um veículo de informação sobre vivências lésbicas e feminismos, visava quebrar com o preconceito que isola as mulheres lésbicas e proporcionar uma rede de contatos tanto no Brasil quanto no exterior (Cardoso, 2004). Segundo Miriam Martinho (2012, p. 1), o periódico foi o primeiro com temática exclusivamente lesbiana que circulou no Brasil durante o regime militar. Publicado em janeiro de 1981, o primeiro volume do ChanaComChana possuiu edição única, teve uma estrutura de quatro folhas e contou com um conselho editorial composto por Fanny, Maria Serrath e Teca, com a colaboração de Maria Carneiro da Cunha, Nair Benedito e Cristina (que não compartilhou seu sobrenome). Em entrevista concedida a Cardoso (2004), Martinho explica como era feita a produção dos boletins: O ChanaComChana tinha uma cara de fanzine, uma coisa anarquista, dentro da proposta punk da década de 80 e dentro da proposta do feminismo radical. As edições variavam entre 11 e 36 páginas de conteúdo, dependia muito de verba dos temas a serem abordados ou do tempo de publicação entre as edições. Uma equipe muito enxuta, cerca de quatro pessoas, se responsabilizava pela publicação. Tinha uma reunião de pauta, improvisada. Nos sentávamos, discutíamos, pedíamos sugestão e voluntários; à medida que os textos iam chegando, a gente ia fechando o jornal.

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Figura 3 – ChanaComChana, capa da edição 5

Fonte: CISGES (2023).

Contando com aproximadamente 200 exemplares por edição, os boletins eram publicados com uma periodicidade entre trimestral e quadrimestral, mantendo-se por meio de vendas informais, assinaturas, doações e pequenos anúncios. A circulação ocorria predominantemente na cidade de São Paulo, onde o título era editado, mas também há registros de compartilhamento de material com outras organizações de diferentes estados e também do exterior (Martins, 2019). O boletim foi sendo moldado com o passar dos anos, sem tantas seções fixas em suas edições, porém não fugindo de uma organização contendo entrevistas, debates abordando a lesbianidade, preconceito contra lésbicas, gays, transexuais, travestis; política; dicas de leitura; poesia; depoimentos; informes e telefones para contatos; cartas; eventos que aconteciam envolvendo lésbicas e feministas no Brasil e em outros países, dentre outras discussões (Silveira-Barbosa; Coutinho, 2019).

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Figura 4

– Seção “Poesia”, ChanaComChana, edição 5

Fonte: CISGES (2023).

É possível afirmar, nesse sentido, que os boletins ChanaComChana colaboraram para tirar as lésbicas da clandestinidade, abordando temas específicos de suas vivências, ademais de confrontar o imaginário popular baseado em estereótipos e tentar normalizar a homossexualidade como uma das tantas sexualidades existentes (Martins, 2019). Dessa forma, as vivências lésbicas difundidas pelo ChanaComChana, além de assumirem um sentido político – discutindo sobre a maternidade lésbica, desnaturalizando a heterossexualidade como norma, debatendo sobre outras identidades para além da dicotomia mulher/homem, expondo questões envolvendo a saúde lesbiana – criavam zonas de obscuridade e tensão ao passo em que falavam sobre como a identidade lesbiana não é somente sexo, mas, acima de tudo, resistência. Considerações finais

Como mencionado anteriormente, durante o regime militar, o Estado brasileiro utilizou-se do discurso moralizante para desumanizar e estigmatizar a comunidade LGBT+, assim como outros segmentos considerados subversivos. Em outras palavras, tudo que era fora da norma da família mononuclear e heterossexual e de ideias do campo da extrema-direita, era passível de sofrer discriminação e perseguição moral e política (Cabral, 2015). Aqui, a homossexualidade era considerada um perigo social e moral, tanto quanto o comunismo (Macrae, 1990). 72

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Durante grande parte do período ditatorial brasileiro, a imprensa e outras mídias ligadas à esquerda, ou que não apoiassem o governo, passaram a ser impedidas e/ou profundamente censuradas de circular. A censura imposta pelos militares obteve mais força com o decreto do Ato Institucional nº5 (AI-5). Assim, tanto a imprensa quanto outros veículos de comunicação formais foram obrigados a passar por censores a fim de garantir que nada fosse publicado sem a autorização do governo. Como resposta, a esquerda, que já vivia na clandestinidade, definiu táticas criando jornais e boletins que analisavam a política e difundiam informações que não poderiam ser encontradas nas grandes mídias. Por meio de tais publicações, a imprensa alternativa LGBT+ cumpriu um papel fundamental de oposição à ditadura e de promoção dos direitos humanos no Brasil (Woitowicz, 2014). Nesse sentido, evidentemente, a questão política teve grande protagonismo, diante do contexto de transição democrática no qual os periódicos Lampião da Esquina e ChanaComChana surgiram (Silveira-Barbosa; Coutinho, 2019). Além disso, a efervescência política do período fez com que diversos movimentos sociais, inclusive o LGBT+, enxergassem a nova constituição como um instrumento de combate às desigualdades e discriminações. Ademais, ambas as publicações se posicionaram inúmeras vezes contra o regime ditatorial de então, contra o sexismo e a homofobia. Lê-se a amplitude dessas discussões como o entendimento destes periódicos de que a defesa da comunidade LGBT+ era uma luta por direitos humanos, tal como a de outros movimentos. Para Silveira-Barbosa e Coutinho (2019), a produção alternativa LGBT+ era uma forma de retratar a comunidade por si mesma, já que parte da imprensa tradicional propagava discursos discriminatórios e os profissionais interessados em promover um debate sério sobre o tema sofriam com as pressões da censura federal. Neste sentido, destaca-se o trabalho exercido por Rosely Roth. Com a proximidade das eleições para a Assembleia Constituinte, a ativista se empenhou em produzir textos para o ChanaComChana que estimulassem o engajamento político das lésbicas. Nas palavras de Roth: A participação se efetua de qualquer maneira, seja através da passividade que implica numa aceitação cúmplice do que aí está ou, de uma forma mais ativa, dinâmica, tentando transformar, modificar a organização social de forma que todos tenham acesso aos bens produzidos (ChanaComChana, 1985, p. 16).

Conclui-se, portanto, que ambos os periódicos destacam-se como instrumentos de visibilidade, identidade e resistência. Ademais, expõem a movimentação realizada pelas lésbicas ao não se enxergarem como representadas dentro de um espaço formado por homens, ainda que fossem homens homossexuais que sofriam preconceitos devido a sua sexualidade 73

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e sistema político vigente. Assim, Lampião da Esquina e ChanaComChana revelam os caminhos percorridos, durante o final da década de 1970 e meados de 1980, para que os direitos humanos fundamentais fossem assegurados à parcela da população que era negligenciada e lançada à margem da sociedade, sobretudo dentro de um regime que tinha como lema a defesa da moral e dos bons costumes. Referências

ARTIAGA, L.; BORGES, R. A imprensa LGBT brasileira sob a ótica da folkcomunicação: uma análise dos jornais Lampião da Esquina e Chana com Chana. In: Seminário de Mídia, Cultura e Cidadania, XIII, 2019, Goiânia. Anais Eletrônicos... Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019.  BOURDIEU, Pierre. Distinction: A Social Critique of the Judgement of Taste. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1984. CABRAL, Jacqueline Ribeiro. Imorais e subversivos: censura a LGBTs durante a ditadura militar no Brasil. Periódicus, v. 1, n. 4, p.127-150, 2015. CARDOSO, E. da P. Imprensa feminista brasileira pós-1974. São Paulo: USP, 2004. CHANACOMCHANA. Número 9. São Paulo: Grupo de Ação LésbicaFeminista, n. 9, 1985. CISGES. Arquivos. ChanaComChana. Santo Amaro, 2023. Disponível em: https://cisges.files.wordpress.com/2018/09/chana-com-chana.pdf. Acesso em: 5 abr. 2023. DELLA PORTA, Donatella; DIANI, Mario Diani. Social Movements: an Introduction. Oxford: Blackwell, 1999. GAMSON, William. Talking Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. GRUPO DIGNIDADE. Projetos. Lampião da Esquina. Curitiba, 2023. Disponível em: https://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-daesquina/. Acesso em: 3 abr. 2023. QUINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. LAMPIÃO DA ESQUINA. Número 0. Rio de Janeiro, ano 1, n. 0, abr. 1978a. LAMPIÃO DA ESQUINA. Número 1. Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, maio/jun. 1978b. MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: Editora Unicamp, 1990. MARTINHO, Míriam. Agosto com orgulho: os primórdios da organização lesbiana no Brasil. São Paulo: Um outro lugar, 2012. 74

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CAPÍTULO 6 O MITO DA RACIONALIDADE NO DIREITO PENAL 1

Tiago Lopes Nunes2 Laíla de Oliveira Cunha Nunes3

A pretensa correlação existente entre ampliação do encarceramento e redução da criminalidade, fartamente difundida na cultura popular, nunca foi, de fato, comprovada. Nesse sentido, Joffily e Braga (2017, p. 3-4) ressaltam que, ao contrário do que supõe o senso comum, as mais recentes e abrangentes pesquisas empíricas realizadas sobre o tema apontam para a inexistência de qualquer correlação direta entre esses dois fenômenos. Inclusive, em um dos trabalhos mais importantes sobre o tema, apresentado no 12º Congresso da ONU sobre prevenção ao crime e justiça criminal, o criminólogo finlandês Lappi-Seppälä combinou dados de 44 diferentes países e concluiu que, ao passo que existem casos de altas taxas de criminalidade e taxas igualmente altas de encarceramento (por exemplo, Inglaterra e País de Gales), há casos de baixas taxas de criminalidade e taxas igualmente baixas de encarceramento (por exemplo, Canadá). Não bastasse, ainda foi possível verificar situações como a dos Estados Unidos, de baixas taxas de criminalidade e altas taxas de encarceramento (Joffily; Braga, 2017). Ademais, é praticamente consenso na doutrina criminológica atual que, além de não contribuir para a redução dos índices de criminalidade, o aumento aleatório do encarceramento tem como efeito uma série de gra1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos, Solidariedade e Sociabilidade, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça (DHJUS/UNIR). Especialista em Direito Público. Especialista em Prevenção e Repressão à Corrupção. Promotor de Justiça e Coordenador de Planejamento e Gestão do Ministério Público do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq. br/5752660423812003. 3 Mestranda do Programa de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça (DHJUS/UNIR). Especialista em Prevenção e Repressão à Corrupção. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Processual. Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Rondônia. Email: [email protected]. Lattes http://lattes.cnpq.br/4422516664393427.

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ves violações aos direitos humanos, especialmente em relação aos socialmente mais vulneráveis, que historicamente são os alvos prioritários do sistema penal4. Analisando a realidade brasileira através dos dados que compõem os Anuários Brasileiros de Segurança Pública (FBSP) (2021) e o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN) (2021), verifica-se tendência de queda na prática de infrações penais nos anos de 2020 e 2021 e, ao mesmo tempo, diminuição no número de prisões, de modo que, conforme já sedimentado pelos mais diversos trabalhos científicos, não parece existir qualquer relação entre aumento do número de encarceramento e diminuição da taxa de criminalidade. Esse foi, inclusive, o diagnóstico que fez a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ao analisar a situação do Brasil em 2021 (CIDH, 2021, p. 66): A CIDH observa que o aumento da população carcerária e os altos níveis de superlotação decorrem principalmente de uma política criminal que tenta solucionar problemas de segurança privilegiando o encarceramento. A CIDH reitera que não há evidências empíricas que demonstram que políticas baseadas em maiores restrições ao direito à liberdade pessoal tenham um impacto real na redução do crime e na violência ou que resolvam, num sentido mais amplo, os problemas da insegurança cidadã.

Sob a perspectiva racional, portanto, é absolutamente inexplicável o fato de que a adoção de medidas penais mais rigorosas tenha ampla ressonância, sobretudo por parte da parcela da população que, como dito, é tradicionalmente vítima preferencial desse tipo de política5. Destarte, não sendo o indumentário da razão suficiente para o esclarecimento dessa questão, faz-se necessária a utilização de instrumentos filosóficos mais sofisticados, os quais repousam precisamente na obra daqueles que Bogéa (2023) chama de pensadores do desejo. A visão de mundo inaugurada por Schopenhauer, Nietzsche e Freud descortina toda uma dinâmica mental inconsciente, que é, de fato, responsável pela condução do comportamento humano. Para melhor compreensão dessa paradigmática descoberta, faz-se necessária uma breve digressão histórica. 4 À guisa de exemplo, gize-se que, em 13 estados norte-americanos, um homem negro tem seis vezes mais chances de ser preso do que um homem branco (Nellis, 2021). 5 Exemplificativamente, conforme Datafolha (2015), 87% dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal. O apoio à matéria é maior entre os moradores das regiões Centro-Oeste e Norte, respectivamente, 93% e 91%. Já, a rejeição à mudança de idade da maioridade penal é mais alta entre os mais escolarizados (23%) e entre os mais ricos (25%).

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Desde a Antiguidade, restou estabelecida no ocidente a premissa segundo a qual os humanos são criaturas conscientes e racionais, que têm como diferencial em relação aos outros seres vivos o fato de suas condutas serem motivadas pela razão. Para Vernant (1990), o primeiro esboço dessa teoria surgiu no século VI a.C., na Escola de Mileto, onde os jônicos procuravam explicações para os fenômenos da existência através de um pensamento racional empírico que tinha como ponto de partida a observação da natureza. Para o antropólogo francês, nessa oportunidade o logos teria se libertado da visão essencialmente mitológica vigente à época (Vernant, 1990). Esse processo intelectual foi sendo robustecido através dos anos pelo trabalho de diversos pensadores e ganhou especial relevo com o advento do Renascimento6, que, edificando a base teórica iluminista, tornou-se responsável pela refundação dos valores da sociedade ocidental que se deu a partir do século XVIII. Fulcrados nesses pressupostos, Cesare Beccaria e Jeremy Bentham tornaram-se referenciais teóricos de um novo Direito Penal que começava a surgir. Com eles, o processo de delimitação do poder estatal através de regras racionais foi solidificado. Inclusive, Anitua (2008) afirma que, no modelo defendido pelos autores iluministas, a razão deve levar o homem a calcular as vantagens e desvantagens da imposição de penas, que só devem ser erigidas após um complexo e ponderado juízo cartesiano de custo-benefício. Ocorre que, em que pese os valores pretensamente racionais que passaram a vigorar no Direito Penal do ocidente, especialmente no pós-guerra, os fundamentos teóricos do sistema punitivo começaram a entrar em colapso no último quarto do século XX. Segundo Garland (2008), na contramão de um movimento secular de racionalização da custódia penal, que só vinha sendo utilizada como ultima ratio até a década de 1970, os Estados Unidos inauguraram políticas que inverteram essa lógica e, consequentemente, provocaram o maior aumento das taxas de encarceramento observado desde o surgimento da prisão. Importante ressaltar, conforme destaca Wacquant (2007), que o surgimento de um estado de emergência penal nos Estados Unidos não corresponde a nenhuma ruptura na evolução doutrinária do crime ou da delinquência, tampouco traduz maior necessidade apontada pela ciência ou pelas estatísticas, decorrendo, portanto, de fatores emocionais inconscientes. Dessa maneira, o autor francês conclui aduzindo que não foi a criminalidade que ensejou o recrudescimento da legislação penal, mas sim o olhar que a sociedade passou a dar a esse fenômeno. 6 O Renascimento foi um movimento cultural, econômico e político que surgiu na Itália do século XIV, e posteriormente se espalhou por todo o continente europeu. O projeto renascentista criticava o dogmatismo religioso, valorizando o racionalismo, o cientificismo e o antropocentrismo, atribuindo dignidade ao ser humano e, consequentemente, alçando-o à condição de protagonista.

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Assim, ignorando evidências sociológicas há muito sedimentadas, alastrou-se a ideia de que apenas um maior rigor penal seria, de fato, capaz de neutralizar o infrator e atenuar a reprodução de delinquência. Em que pese essa política nunca ter alcançado o resultado prático pretendido7, parece que o clamor por sua aplicação nunca foi tão significativo. Mas, voltando à indagação inicial, quais seriam então as razões lógicas que conduzem a sociedade, cuja composição majoritária é formada justamente pela classe mais prejudicada com a adoção de políticas penais inflexíveis, não apenas a aceitar, mas a tornar-se grande entusiasta de medidas invasivas que, a despeito de não se revelarem estatisticamente eficazes na redução da criminalidade, provocam grave violações aos direitos humanos? A resposta é bem simples: as razões não são lógicas. No primeiro quarto do século XIX, ao escrever o livro “O mundo como vontade e representação”, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer promove uma ruptura com o modelo científico vigente. Em apertada síntese, pode-se dizer que Schopenhauer (2001) defende que a essência do homem não repousa na consciência ou na razão, mas sim no que ele chamou de vontade, que pode ser definida como um desejo inconsciente, irracional e sem sentido lógico, que é responsável pelas condutas humanas. Com isso, as pessoas não teriam acesso à realidade em si, mas tão somente à projeção que o seu aparelho psíquico faz dela. Importante destacar, neste passo, que essa representação da realidade seria moldada à luz da premente e contínua necessidade da satisfação dos instintos inconscientes (Schopenhauer, 2001). Já no final do século XIX, o pensador alemão Friedrich Nietzsche parte das lições schopenhauerianas para posicionar-se contra todo tipo de razão lógica e científica, tecendo uma crítica mordaz à racionalidade especulativa e à cultura ocidental a ela subjacente. Em linhas gerais, Nietzsche (2015) defende que todo pensamento consciente é intrincadamente influenciado pelos instintos, de maneira que nada que parte dele pode ser considerado puramente racional. Nessa medida, revela-se ilusória a ideia segundo a qual a conduta humana é motivada por juízos de valor estáticos. Vale dizer, mentira, verdade, mal, bem, feio e belo são conceitos possuidores de uma roupagem lógica, mas que, no fundo, são talhados unicamente para satisfazer a vontade de poder inata ao homem. Por seu turno, na virada do século XIX para o século XX, o médico austríaco Sigmund Freud se dedicou a estabelecer bases clínicas para definir estrutura psíquica do ser humano, com destaque para o seu nível mais 7 Aliás, ao invés de prevenir a prática de delitos, o recrudescimento da repressão penal pode, paradoxalmente, contribuir para o aumento da criminalidade (Foucault, 2015). Um dado que corrobora essa conclusão é a taxa de reincidência no Brasil. Segundo estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (Brasil, 2019), 42,5% das pessoas adultas com processos criminais registrados retornaram ao Poder Judiciário na condição de acusados.

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elementar e menos conhecido: o inconsciente. De forma muito resumida, é possível dizer que, achegando-se às conclusões de Schopenhauer e Nietzsche, Freud (2010, p. 225) defende que “o Eu não é senhor em sua própria casa”, no sentido de que a consciência não se faz presente nos processos psíquicos fundamentais, constituindo apenas uma função particular e periférica da mente. Nesse sentido, o pai da psicanálise alerta que, apesar de grande parte das dinâmicas mentais serem invisíveis aos olhos da consciência e da razão, o ser humano é gerido por um sistema substancialmente organizado, o qual tem por único objetivo a satisfação das pulsões, por ele conceituada como força constante, que promove perturbação no aparelho psíquico em busca de sua plena satisfação (Freud, 2010). Pertinente ressaltar, no entanto, que a repressão da excitação pulsional tem como consequência o recalque, isto é, um mecanismo que remete para o inconsciente o instinto cuja materialização foi censurada. Em geral, esse processo evolui e causa um sintoma, que é justamente uma representação simbólica externada pelo Eu em resposta à repressão (Freud, 2014). Dito isso, como sintetiza Bogéa (2023), pode-se afirmar que não há um centro de comando racional e consciente que dirige as ações humanas. O homem é atravessado e constituído por desejos, afetos, instintos e pulsões que disputam protagonismo, se hierarquizam e fazem concessões condicionais. Esse processo, no entanto, é inconsciente, passando ao largo da capacidade de compreensão, que muitas vezes forja explicações racionais para permanecer imersa na poderosa ilusão de controle absoluto. Com esteio nessa premissa, percebe-se que o encarceramento penal teve uma revolucionária mudança de rumo em sua justificação teórica. Vale dizer, como a prisão falhou em cumprir a missão racional para a qual ela foi forjada, o cárcere passaria a ter outro propósito, isto é, a retribuição pura e simples pelo fato delituoso praticado, trazendo à tona um misto dos sentimentos de vingança privada, que permeava parte do discurso penal da Antiguidade, e de medo social neurótico, que causavam a necessidade medieval da eliminação do “outro”8. Assim, flertando com a ultrapassada doutrina lombrosiana do positivismo criminológico, essa corrente ideológica obscureceu a ideia de que a criminalidade é provocada por uma gama complexa de circunstâncias sociais, fazendo grassar a rasteira assertiva segundo a qual o delito é fruto das características biológicas individuais de seu autor, cuja natural incivilidade seria a única causa ensejadora do ilícito. Nesse cenário, portanto, a única hipótese socialmente plausível seria a eliminação desse inimigo. 8 Na linha do que defende Honneth (2018), o “outro” é aquele cujo reconhecimento foi anulado, havendo, por isso, uma relação reificada, na qual o sujeito é utilizado como mero objeto em uma dinâmica fetichista.

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A hipótese aventada é que, como a perspectiva utópica do Direito Penal iluminista não foi atingida, gerando um compreensível ambiente de frustração, as ideias sobre segurança e punição passaram a ser constituídas por grandes doses de misticismo, animadas pelo processo emocional inconsciente inerente ao ser humano. Nesse sentido, para atenuar o medo do crime e satisfazer o desejo de vingança gerado pela prática do delito, se fez necessária a instituição de uma figura contra a qual uma guerra simbólica perene foi instaurada. A vontade irrefletida de vencer a batalha contra o inimigo – e, assim, apaziguar a sensação de insegurança e ansiedade por ela provocada –, acaba por conduzir as pessoas a fetichizar a repressão criminal contra um grupo específico como solução mágica para problemas complexos, que possuem viés nitidamente social. Para instrumentalizar esse processo, desumaniza-se o sujeito passivo de determinadas relações penais, que é usado como mero instrumento em uma dinâmica de satisfação instintual, a qual, em uma simplificação mitológica e maniqueísta da realidade, leva o corpo social a considerar o direito sancionador como única solução eficaz para o combate à criminalidade. É importante ressaltar que a eficaz amplificação desse processo, de modo a atingir a grande massa populacional, só é possível através do emprego de um grande catalisador, consistente no discurso penal publicitário9. Dessa forma, em que pese sua justificação racional apontar em sentido diverso, o sistema repressivo foi alçado simbolicamente à condição de responsável por satisfazer a necessidade de segurança das pessoas, de modo que sua utilização cada vez mais vigorosa conduz uma mensagem de que algo está sendo feito para garantir o bem-estar geral. Em outras palavras, ignorando os dados científicos sobre a efetividade da pena de prisão no combate à criminalidade e obscurecendo a própria razão de ser do instituto, torna-se senso comum o mito segundo o qual o endurecimento repressivo constitui o único aparato eficaz para garantir a segurança dos cidadãos. Conclui-se, dessa forma, que a visão mitológica que vigorou fortemente até a idade média não foi, de fato, superada. Nesse sentido, o sistema racional que virtualmente está em vigor traduz tão somente uma estratégia constituída pela psique humana com a finalidade de escamotear o verdadeiro propósito da existência, que consiste na irracional satisfação de desejos inconscientes.

9 Esse fenômeno favorece a proliferação descontrolada de informações através da formação de uma massa, isto é, um ente constituído por pessoas heterogêneas que, ao se ligarem entre si, perdem suas características individuais e forjam uma homogeneidade autônoma de pensamento, que é legitimada por elementos instintuais inconscientes (Freud, 2017).

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Referências

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CAPÍTULO 7 AMEAÇAS À DEMOCRACIA: CONQUISTAS HUMANAS EM RISCO! Maria Cristina Marques1

Introdução

Os questionamentos quanto aos fatores que ameaçam as democracias e, por conseguinte, os Direitos Humanos no mundo, vêm ganhado destaque na literatura científica mundial. Bermeo (2016) aponta que, após uma reflexão sobre o retrocesso democrático em países como Hungria, Turquia, Venezuela, fica evidenciado que um dos principais pontos é o engrandecimento do executivo como uma característica em comum nesses processos. Haggard e Kaufnan (2021) argumentam que os próprios governantes eleitos enfraquecem o controle do poder executivo, restringem liberdades civis e políticas e miram contra a integridade do processo eleitoral. Apontam que essas situações são encontradas em países da américa latina, Europa Oriental e África, e até mesmo na democracia mais forte do mundo, os Estados Unidos, e que dentro dos mecanismos causais que enfraquecem as democracias estão: os efeitos perniciosos da polarização; o controle dos governantes sobre a legislatura; e a natureza incremental dos abusos de poder – que dividem e desorientam oposições. Outro ponto que tem sido abordado nas pesquisas é quanto à importância de um judiciário independente na prevenção de retrocesso democrático, ou reversão de regimes para o autoritarismo. Em estudo realizado em 163 países (no período de 1960 a 2000), identificou-se que judiciários independentes estabelecidos impedem mudanças de regime em direção ao autoritarismo em todos os tipos de estados; e que também são capazes de impedir o colapso do regime em não democracias. Isso confirma a ca1 Mestrado em andamento em Administração pela Universidade Federal de Rondônia (PPGA/UNIR); graduanda do Curso de Direito pela Universidade Federal de Rondônia (DCJ/UNIR); especialista em Planejamento Estratégico na Gestão Pública (IFRO, 2019); MBA em Gestão de Instituições Públicas (IFRO, 2020). E_mail: marquesmariacristina38@ gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0481532457112315 .ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6267-1796

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pacidade do judiciário de manter a estabilidade do regime, todavia, infelizmente, os efeitos benéficos dos sistemas judiciais parecem levar tempo para se desenvolver, sendo que as evidências indicam que tribunais recém-formados estão positivamente associados a colapsos de regimes tanto em democracias quanto em não-democracias (Gibler, Randazzo, 2011). Mechkova, Lührmann, Lindberg (2017) argumentam que há evidências de um retrocesso global: uma recessão democrática no mundo. Apontam que o nível médio de democracia caiu para onde estava antes dos anos 2000 e que, apesar de moderado o declínio, a maioria das mudanças ocorreram dentro das categorias de regime – as democracias se tornando menos liberais e as autocracias menos competitivas – acrescido de um estágio mais repressivo. São várias as instituições políticas que sustentam uma democracia – incluindo todas as instituições que permitem às pessoas formular e significar preferências e, em seguida, ponderá-las por seus representantes eleitos –, e de outro lado também são vários os atores e processos que podem desestabilizá-la, sendo ainda esparso e pouco objetivo a maior parte dos estudos sobre retrocesso democrático (Bermeo, 2016). Uma primeira análise do livro Como as democracias morrem (Levitsky; Ziblatt, 2018) avalia que as democracias começam a ser ameaçadas internamente, pelas mãos dos próprios líderes com tendência autoritária, e que, com o domínio das instituições e poderes, culminam em um regime distinto e autocrático, não necessariamente utilizando de mecanismos como um golpe de Estado ou forças armadas. As democracias começam a morrer com o encapsulamento em motivos por vezes nobres, como combate à corrupção e segurança nacional, de modo a criar um fundo falso para a concentração de poder e domínio. Há passos que podem ser enumerados, como polarização, construção de uma imagem de ilegitimação de opositores, neutralização das instituições de controle, levando a um processo de aniquilação da democracia. Há um enraizamento de ações de líderes eleitos, que através de um processo de subversão institucional buscam a concentração de poder (Albrecht, 2019). As ameaças aos regimes democráticos podem ter graves consequências para os direitos humanos. Quando os governos autoritários ou ditatoriais assumem o poder, as liberdades individuais e os direitos fundamentais podem ser suprimidos, levando à perda da democracia, da transparência e da prestação de contas. De forma geral, verifica-se que as pesquisas estão bastante dispersas, demandando uma consolidação dos trabalhos existentes, portanto, como problema de pesquisa levanta-se: quais as características da produção científica sobre as ameaças à democracia nos artigos revisados? 86

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Método

Este trabalho busca responder o problema de pesquisa por meio de revisão narrativa, o que parece ser um adequado caminho para elucidar a questão de pesquisa, além de permitir uma visão mais abrangente dos estudos do período de pesquisa, uma vez que busca compreender procedimentos explícitos e com rigor (Cooper, 2010), e permitir a replicação (Tranfield; Denyer; Smart, 2003). A revisão narrativa é o método mais tradicional, que busca a revisão alicerçada na busca quanto a um assunto específico, sobre o estado da arte de um tema, que permite levantar um sumário de pesquisas passadas, que combina as descobertas de múltiplos estudos qualitativos, podendo ser limitada ou ampla em relação ao número de artigos selecionados, bem como podendo ser estipulado um caminho que permita a replicação (Botelho; Cunha; Macedo, 2011), o que se adequa perfeitamente ao objeto desta pesquisa. Para estruturar este estudo foi utilizado como parâmetro os 7 passos orientados pelo modelo PRISMA, conforme descrito por Mendes-da-Silva (2019), do rol de 27 itens, que são: formulação da pergunta de pesquisa; localização dos estudos; avaliação crítica dos estudos; coleta dos dados; análise e interpretação dos dados; aprimoramento; e atualização da revisão. Foi utilizado como base científica para levantamento dos artigos a serem explorados o Google Scholar, sendo que após uma leitura preliminar de artigos sobre a temática, foram estipulados alguns termos de busca que traziam resultados mais adequados, sendo em língua portuguesa: “ameaças à democracia” e “retrocesso democrático”; e em língua inglesa “democratic backsliding” e “threats to democracy”. Da exploração, foram selecionados 11 artigos para leitura completa, considerando como critérios de inclusão: pertinência ao tema, sendo dois em língua portuguesa e nove em língua inglesa, conforme Quadro 1.

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Quadro 1

- Relação dos artigos que compõem o corpus de pesquisa

Artigo

Autores/Ano

Impeachment or backsliding? Threats to democracy in the twenty-first century

Pérez-Liñán (2018)

A BNCC no contexto de ameaças ao Estado Democrático de Direito

Micarello (2016)

A democracia não está morrendo: Foi o neoliberalismo que fracassou

Bresser-Pereira (2021)

Língua

Periódico ou Evento

Número de Citações no Google Scholar

Revista Brasileira de Ciências Sociais

21

Português

EccoS

35

Português

Lua nova: Revista de Cultura e Política

09

Bauer; Becker (2020)

Inglês

Perspectives on public management and governance

77

Sitter; Bakke (2019)

Inglês

Oxford Research Encyclopedia of Politics

21

Playing the blame game on Brussels: The domesSchlipphak; tic political effects of Treib (2017) EU interventions against democratic backsliding

Inglês

Journal of European Public Policy

139

Rethinking “democratic backsliding” in Central Cianetti; and Eastern Europe– Dawson, Hanley looking beyond Hungary (2018) and Poland.

Inglês

East European Politics

216

Corrales (2020)

Inglês

European Review of Latin American and Caribbean Studies

40

Hou (2015)

Inglês

Journal of Affective Disorders

56

Democratic backsliding, populism, and public administration. Democratic backsliding in the European Union

Democratic backsliding through electoral irregularities

Threat to democracy: Physical and mental health impact of democracy movement in Hong Kong

Inglês

Continua

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Quadro 1

- Relação dos artigos que compõem o corpus de pesquisa Conclusão

Transformations through polarizations and global Somer; threats to democracy. Mccoy (2019) Digital threats to democracy: comparative lessons and possible remedies

Miller; Vaccari (2020)

Inglês

The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science

75

Inglês

The International Journal of Press/Politics

53

Fonte: Organizado pelos autores.

A última coluna do Quadro 1, “Número de Citações no Google Scholar”, foi utilizada como um critério de qualidade dos artigos, já que a replicação deles em outras pesquisas é vista pela comunidade científica como valorativa da referida produção. Verificação dos resultados

Para análise dos resultados será utilizado parcialmente o modelo proposto por Peters et al. (2015) como sugestão de campos de extração, sendo: autor(es), ano de publicação, país de origem, objetivo/propósito, população do estudo e tamanho da amostra (se aplicável), metodologia, tipo de intervenção e comparação (se aplicável), conceito, duração da intervenção (se aplicável), como os resultados são medidos, principais descobertas relacionadas à questão da revisão. A categorização foi proposta a partir da leitura dos dados, seguindo os procedimentos descritos por Bardin (2016), especialmente: pré-análise, exploração do material e categorização. Importante ressaltar que os autores buscaram desde o início, das escolhas das bases e termos de busca, seguindo pela leitura dos artigos até a finalização dos elegíveis, ir ao encontro das regras de representatividade, pertinência, preparação do material; seguindo para interpretação dos resultados através de inferência lógica e interpretação, a fim de propor categorias representativas, que guardassem pertinência ao tema, buscando sempre a compreensão de sentido que é vista pela autora como capital na análise qualitativa. Importante ressaltar que aqui os pesquisados interpretam inferência ou inferência lógica como predisposições causais, como atitudes, valores, proposições (Bardin, 2016), sem obrigação estatística ou matemática.

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Resultados e discussões

Para análise dos resultados, esta seção considerará 11 artigos elegidos no corpus de pesquisa e iniciará com uma caracterização geral da produção científica no período proposto e, em seguida, discutirá os artigos dentro de cada categoria proposta: as categorias que emergiram da leitura dos artigos: populismo e subversão das instituições democráticas – trazendo os argumentos e resultados de alguns estudos científicos pelo mundo –; impeachment como ameaça à democracia; a questão da revisão do BNCC no brasil e uma crítica do bresser-pereira; e, a visão de que a democracia está morrendo; a influência na saúde das pessoas das ameaças à democracia; ameaças digitais à democracia. Características da produção científica sobre ameaças à democracia

Inicialmente esta pesquisa buscou artigos científicos de pesquisadores brasileiros e internacionais para ter uma visão mais amplificada das discussões que vêm ocorrendo sobre o tema ameaça à democracia no Brasil e no Mundo. É evidente nas pesquisas que a maioria dos trabalhos apresentou o populismo e a subversão das instituições democráticas como um dos pontos principais da ameaça à democracia, que será discutido no item 3.2. Dos artigos nacionais, duas categorias que emergiram foram quanto à abordagem no sistema educacional (item 3.3) e uma crítica de um renomado cientista político e economista quanto ao tema, que foi considerado nesta pesquisa no item 3.5. Populismo e subversão das instituições democráticas

Para Bauer e Becker (2020), os últimos anos testemunharam uma onda global de retrocesso democrático e, em muitos casos, isso foi intensificado por políticos populistas, que utilizaram o governo para implementar amplas reformas institucionais. No artigo, Democratic backsliding, populism, and public administration, de Bauer e Becker (2020), foi proposto a exploração da temática do populismo em duas frentes: objetivos e estratégias de políticas populistas da administração pública, e apresenta que o retrocesso democrático significa a redução do pluralismo político. Os autores argumentam que o populismo traz a máxima de proteção ao povo puro, contra o estabelecimento do mal intencionado, sendo um subtipo brando da política autoritária. O artigo Democratic backsliding in the European Union (Sitter; Bakke, 2019) traz uma análise da reação da União Européia - UE aos casos de enfraquecimento da democracia em países membros, como Hungria, Polônia e Romênia. No contexto do populismo, veem como uma alternativa à democracia 90

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liberal, sendo o retrocesso uma escolha política deliberada. Para os autores, nos casos polonês e húngaro parece não ter um único motivo para o retrocesso democrático, podendo acontecer em decorrência da ideologia ou pela busca incessante pelo poder, assim quanto mais liberal for um governo populista, mais ele tende a retroceder, e se o governo busca ir contra aos freios e contrapesos do sistema democrático de direito através da tripartição do Estado, que limita o poder do governo, mais liberal ele se torna. Os governos populistas que afrontam a democracia têm alvos como o judiciário, a mídia e a sociedade civil, e, no caso da Hungria, ainda a constituição e o sistema eleitoral. Schlipphak e Treib (2017) fazem um estudo sobre a possibilidade de intervenção pela UE nos países membros que afrontam a democracia, porém, uma intervenção poderia violar princípios essenciais da própria democracia e os governos apelam para o sentimento coletivo de orgulho nacional das pessoas. Cianetti, Dawson, Hanley (2018) argumentam que a democracia na Europa Central e oriental está deteriorando, e apontam como um consenso este fato na literatura científica, concordam que os dois casos mais temáticos é o da Hungria e Polônia, fortemente marcados por dois fatores – engrandecimento do executivo e nacionalismo não liberal – que corroem aquelas democracias. Os pesquisadores ponderam que ainda não é claro se o populismo em todas as suas formas deve ser considerado uma ideologia antissistema. Além da Hungria e Polônia, argumentam que há uma crescente atratividade por partidos populistas e não ortodoxos em toda Europa, marcados por uma competição partidária vazia, e não apenas como um descontentamento da democracia como regime, assim precisaria ir além do contexto de estabilidade de democracia para um patamar de qualidade de democracia para aferir as verdadeiras ameaças. O trabalho de Corrales (2020), Democratic backsliding through electoral irregularities: The case of Venezuela, por sua vez, traz uma análise sobre o contexto venezuelano, que tem no regime chavista (1999-2019) um atentado contra a democracia naquele país, marcado pelas irregularidades nos processos eleitorais, aniquilação da oposição, fortalecimento do poder no executivo. Apontam que nos estágios iniciais das irregularidades eleitorais, essas tendem a ser estreitas com a oposição com pouca força de reação; já em um contexto competitivo, o alcance das irregularidades aumenta, mesmo que o Estado ainda permita a atuação da oposição. Após a morte de Chaves, em 2013, Maduro assumiu o poder e permaneceu com os demandos e enfraquecimento da democracia, que continua não atendendo os padrões mínimos de estabilidade, liberdade e justiça. O artigo Transformations through polarizations and global threats to democracy (Somer; Mccoy, 2019) teve como objetivo explorar a polarização 91

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perniciosa, ou seja, quando e como uma sociedade se divide em blocos mutuamente desconfiados – nós contra eles – o que põe em risco a democracia. Esse tipo de polarização prejudica gravemente a capacidade das democracias de sobreviver e abordar problemas políticos críticos – incluem impasse e paralisia, inclinação e instabilidade, erosão democrática e colapso democrático. Um dos efeitos mais preocupantes da polarização perniciosa na democracia pode ser que, à medida que as políticas se tornam perniciosamente polarizadas, para a descrença de ambos os lados, os blocos opostos de eleitorados discordam fundamentalmente sobre se as transformações substantivas e processuais em andamento de seu país avançam ou minam a democracia (Somer; Mccoy, 2019, p. 9).

Somer e Mccoy (2019) apontam também que o equilíbrio de poder entre os polos e os objetivos estratégicos e ideológicos dos atores políticos polarizadores são fatores críticos para explicar os resultados do sistema democrático, assim, um equilíbrio irregular de poder entre dois polos pode acarretar capacidades semelhantes para mobilizar as pessoas nas urnas ou nas ruas, resultando em eleições alternadas ou protestos de rua conflitantes, ou ainda pode acarretar uma vantagem numérica nas urnas ou nas ruas de um lado, e uma vantagem no controle institucional, por outro. O Quadro 2 traz um resumo da situação vivida por alguns países quanto às ameaças à democracia. Quadro 2

- Relação do tipo de ameaça à democracia por país

País

Tipo

Bangladesh, Grécia, Filipinas e Estados Unidos

impasses e desvios democráticos - resultantes entre diferentes mobilizações de elite e realinhamentos políticos, e entre instituições estatais e novas elites

Hungria, Polônia, Turquia e Venezuela

erosão democrática ou colapso sob “novas” elites e grupos dominantes

Tailândia

passou de uma democracia cambaleante para um colapso democrático com o retorno de “velhas” elites e grupos dominantes

Zimbábue e a África do Sul (pós Mandela)

perspectivas precárias de reforma democrática

Fonte: organizado pelo autor com base em Somer, Mccoy (2019).

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Um caso no Brasil: a BNCC no contexto das ameaças ao Estado democrático

O trabalho da Micarello (2016), A BNCC no contexto de ameaças ao estado democrático de direito, trouxe a discussão das ameaças à democracia no Brasil para o contexto educacional, tendo como objetivo analisar aspectos do processo de elaboração da política pública educacional da Base Nacional Comum Curricular, considerando tal processo como ainda em construção, inclusive do texto que materializa essa política. A análise científica é sobre a formulação e implementação de uma segunda versão do documento Base Nacional Comum Curricular - BNCC, abordando seus avanços e limitações, bem como fazendo apontamentos das ameaças ao processo democrático de sua elaboração em meio à crise política enfrentada pelo Brasil em 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. De modo geral, a construção de uma base nacional comum passa pela ideia de mínimo necessário, é um momento de construção de consensos quanto aos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento fundamentais, que vão ao encontro da construção de uma escola mais justa (Micarello, 2016). No processo de revisão, houve um apoio das grandes mídias para deslegitimar tudo que havia sido feito pelo governo deposto, com uma concentração das críticas à primeira versão da BNCC nos apontamentos como o protagonismo dos povos africanos e indígenas na formação da identidade brasileira; e no papel do ensino da gramática ao longo da formação básica, de encontro aos relatórios de pesquisadores da área educacional. Para a autora, mesmo havendo um debate nacional heterogêneo que buscava compor a segunda versão da BNCC, como os 27 seminários que ocorreram em 2016 e providenciam um relatório para compor o texto da BNCC final, houve a implementação de medidas antidemocráticas, que atuaram no sentido de abafamento e sobreposição das vozes do debate, como a aprovação na comissão de educação do projeto de Lei n. 4486/2016, que alterou a deliberação do BNCC do Conselho Nacional de Educação - CNE e do Ministério da Educação - MEC, para o congresso, que se configura uma ameaça de silenciamento das vozes que atuam na elaboração da BNCC, e um sobreposição das vozes que reivindicam um estatuto de neutralidade para a educação (Micarello, 2016). Micarello (2016), ainda aponta a Medida Provisória n. 746/2016, que modificou a estrutura do ensino médio de ofício, sem debate nacional, mais uma medida em caráter antidemocrático.

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Impeachment é a nova ameaça à democracia?

O artigo científico Impeachment or backsliding? Threats to democracy in the twenty-first century, de autoria de Pérez-Liñán (2018), traz a temática do instituto do impeachment como uma nova ameaça à democracia, sendo que argumenta que esta figura desempenhou um papel importante no esgotamento do ciclo político no contexto da América Latina, aponta que, no caso dos procedimentos referidos contra os presidentes Fernando Lugo no Paraguai, em 2012, e Dilma Rousseff no Brasil, em 2016, mesmo considerando que há nos ordenamentos jurídicos desses países a norma para lidar com altos crimes e contravenções do presidente, ficou evidenciado que as lutas ideológicas muitas vezes prevalecem acima das considerações legais durante o processo de impedimento. O trabalho referenciado acima foi desenvolvido por meio de um ensaio e apresentou 3 argumentos principais, sendo: (1) o procedimento de impeachment tem sido consistentemente ampliado por razões políticas, por esse ponto de vista, quando manipulado o procedimento, se enquadraria como uma nova forma de golpe de Estado; (2) que as figuras dos impeachments contemporâneos e golpes militares passados são explicados por fatores semelhantes, que as condições sociais e políticas que fomentam os golpes militares durante o período da Guerra Fria podem também influenciar os impeachments do presente, exemplo das recessões econômicas, protestos em massa e radicalização política; (3) aponta que a história latino-americana fornece elementos que estruturam que a maioria das ameaças à democracia se origina no poder executivo, não no parlamento (Pérez-Liñán, 2018). Na América Latina, após uma rápida onda de democratização no final do século XX, os golpes militares tradicionais tornaram-se improváveis, e, por sua vez, os impeachments presidenciais surgiram como o instrumento mais comum, utilizado pelas oposições, para retirada do poder de presidentes impopulares. Todavia, a extensão do conceito de golpe de Estado para rotular impeachments controversos, também pode ser problemática por razões analíticas e políticas, a primeira por não haver ainda uma distinção clara entre as duas categorias, e a segunda, porque cria desafios inesperados para a identificação de impeachments e golpes, pois acaba implicando num modismo, e naturaliza a intervenção militar nas narrativas anticorrupção e, também, minimiza o fato de que são os presidentes poderosos, e não os legisladores poderosos, o principal perigo para a estabilidade democrática (Pérez-Liñán, 2018).

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A democracia não está morrendo!

Bresser-Pereira (2021) traz uma crítica aos que defendem que as democracias estão morrendo pelo mundo. Com o artigo, A democracia não está morrendo: foi o neoliberalismo que fracassou, argumenta que em países como Estados Unidos e Brasil a democracia foi uma conquista popular, assim, populistas de direita como Trump e Bolsonaro, mesmo ameaçando-as, a possibilidade de que eles se perpetuem no poder de forma autoritária é mínima. Isso não ocorre para países como Hungria, Polônia e Turquia, que tem eleições, mas com direitos civis e o processo eleitoral deteriorados por governantes autoritários. Contudo é uma tese equivocada em relação aos países ricos porque desvia a atenção do problema principal que essas democracias enfrentam: a forma neoliberal de organização econômica do capitalismo. Eu compreendo a inconformidade de muitos americanos com a eleição em 2016 de uma pessoa tão incapaz, violenta, má, porque eu também não me conformo com a eleição em meu país de um político ainda mais inaceitável sob um ponto de vista civilizado, no entanto isto não justifica que confundamos a “democracia liberal” com o capitalismo neoliberal, que confundamos a parte com o todo (Bresser-Pereira, 2021, p. 52).

Bresser-Preira (2021) argumenta que apenas países em profunda crise são capazes de eleger governantes como Trump e Bolsonaro, mas que a crise é principalmente econômica e social, ao invés do que a maioria pensa ser política; sendo que, para ele, a causa dessas ameaças à democracia acontece não porque as instituições políticas falharam, e, sim, porque a forma neoliberal que o capitalismo assumiu desde a década de 80, hoje enfrenta uma crise terminal, assim, as instituições econômicas fracassaram e tiveram consequências degradantes no plano social e político; argumenta ainda que não há fatos novos de ordem política que tenham encorajado populares e elite econômica a preferirem um regime autoritário, pelo contrário, para o neoliberalismo há acontecimentos que mobilizam a crise. Foi a emergência desta forma histórica do capitalismo, que não é simplesmente conservadora, mas sim agressiva, desestabilizadora e desestruturante, que vem deixando os cidadãos insatisfeitos, inseguros e ansiosos [...]. Há um fundo de verdade na tese do desaparecimento gradual da democracia: o populismo de direita está em alta não apenas nos países ricos, mas também nos de renda média como Turquia, Hungria e Polônia, onde o espírito antidemocrático pode ser mortal para a democracia. Por que, entretanto, esse populismo emergiu? 95

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Não surgiu da própria democracia, mas da forma perversa e ineficiente de capitalismo que as elites econômicas liberais dos países ricos impuseram a seus próprios países e a outros países dependentes (Bresser-Pereira, 2021, p. 53).

Há para Bresser-Pereira (2021) um sistema de organização econômica do capitalismo fracassado associado a uma estupenda desigualdade econômica, instabilidade financeira e redução do crescimento; e a democracia liberal não é a desejada pelo povo, sendo que o que está em jogo não é apenas a democracia, e sim o domínio de uma coalizão financeiro-rentista e tecno-burocrática, o que evidencia ser um equívoco falar em sua morte. Ameaça à democracia: impacto na saúde dos cidadãos

Um estudo com uma perspectiva mais humana foi o produzido por Hou et al. (2015), Threat to democracy: Physical and mental health impact of democracy movement in Hong Kong, que teve como objetivo descrever a prevalência de sintomas ansiosos e depressivos e a autoavaliação da saúde, durante o período imediato após o Movimento Umbrella em Hong Kong, movimento pró-democracia que surgiu em Hong Kong em meados de 2014. Nesse caso trata-se de um país que perdeu sua democracia e vive sob a tutela da China. Os resultados apontaram que 47,35% dos entrevistados relataram sintomas moderados/graves de ansiedade e 14,4% relataram sintomas depressivos moderados/graves; 9,11% relataram saúde “ruim” ou “muito ruim”. A literatura científica aponta que a agitação social ou política têm o poder de esgotar recursos internos e externos e contribuem para piorar a saúde mental e física (Hall et al., 2015). Ameaças digitais à democracia

No mundo digital desta era informacional, as ameaças à democracia são também virtuais. Miller e Vaccari (2020), com o artigo intitulado Digital threats to democracy: comparative lessons and possible remedies, apontam aspectos como a desinformação, o discurso de ódio e a interferência do Estado nas liberdades de expressão em meio digital como ameaças ao sistema democrático. Há alguns mecanismos, inclusive de prevenção, de ameaças digitais propostas por Miller e Vaccari (2020): a) fontes de ameaça digital

Citam aqui a propaganda estrangeira encoberta nas mídias sociais, que ameaça a integridade eleitoral e a soberania democrática. Um exemplo foi o mecanismo utilizado com algoritmos nas eleições presidenciais de 96

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2016, nos Estados Unidos da América, com o objetivo de apoiar Donald Trump ou semear discórdia espalhando mensagens polarizadoras em ambos os lados do espectro político. Foram utilizadas redes sociais de massa, como Twitter e Facebook, que canalizavam mensagens e vídeos com viés conservador e de fake news sobre os adversários políticos de Trump. b) cidadãos como alvo e contribuintes da ameaça digital

Há uma complexidade em relação a como os cidadãos na era digital decidem adquirir notícias, como interpretam esses conteúdos, que recursos utilizam para avaliar a qualidade e veracidade, e, enfim, como compartilham com outras pessoas. Os cidadãos com atitudes populistas tendem a consumir notícias de uma variedade de fontes on-line e uma dependência de sites hiper partidários, consumindo mais os conteúdos polarizadores. c) proteção das democracias das ameaças digitais

Apontam que o principal desafio para as democracias é ganhar resiliência para minimizar os efeitos da desinformação e fake news, como segurança cibernética e maior transparência. Outro ponto é a necessidade de regulação das mídias, quando a desinformação é enquadrada como uma ameaça à qualidade do discurso público. Já quando a desinformação é apresentada como uma ameaça à representação responsável, as respostas políticas giram em torno da regulamentação de campanhas e eleições, incluindo normas que impõem sanções para a disseminação de desinformação on-line, atualizando as leis de financiamento de campanha para incorporar gastos digitais e aumentando a transparência na publicidade política on-line. Considerações finais

Considerando os diversos trabalhos trazidos nesta revisão narrativa, observa-se que entre o vasto número de fatores que contribuem como ameaça aos regimes democráticos, têm destaque o populismo e a subversão das instituições democráticas. Num primeiro momento, líderes populistas se elegem com a promessa de renovação na política, e aos poucos se apropriam de mecanismos institucionais com o objetivo de ameaçar a democracia, reduzi-la, subvertê-la. e os adversários políticos passam ao status de inimigos da nação, num processo de redução e eliminação da oposição. O populismo e os mecanismos de subversão das instituições democráticas são apontados como dois pontos cruciais de ameaça à democracia. Governos populistas tendem a procurar acumular poder, reduzindo o sistema de freios e contrapesos. O acúmulo de poder no executivo faz a ruptura inicial de um sistema democrático. 97

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O trabalho de Pérez-Liãán (2018) traz 3 argumentos para defender os impeachments contemporâneos (como o caso da Dilma Rousseff no Brasil, considerado por muitos como um golpe de Estado): a ampliação do impeachment por razões políticas; a relação entre os motivos que baseiam os golpes na Guerra Fria com os que motivam os impedimentos; e que no caso da América Latina as ameaças à democracia iniciam geralmente no poder executivo e não no congresso. O artigo de Bresser-Pereira (2021) tenta explicar a crise da democracia no mundo a partir de um novo viés, o financeiro, saindo da esteira da maioria dos pesquisadores que o enfrentam potencialmente pelo ponto de vista político. Outro ponto que é importante destacar são as consequências aos direitos humanos das ameaças aos regimes democráticos, com destaque para: 1) restrições à liberdade de expressão: governos autoritários muitas vezes censuram a imprensa, proíbem a livre expressão e controlam a informação para manter o controle do poder. Isso pode levar à supressão da liberdade de expressão e da imprensa livre, e à limitação da capacidade das pessoas para se expressarem e expressarem suas opiniões; 2) violência e repressão policial: governos autoritários muitas vezes usam a força policial para silenciar a dissidência e a oposição política, levando a abusos de direitos humanos, prisões arbitrárias e desaparecimentos forçados; 3) restrições ao acesso à justiça: em muitos casos, governos autoritários limitam o acesso à justiça, restringindo o acesso aos tribunais e limitando as garantias judiciais. Isso pode levar a violações de direitos humanos sem a possibilidade de recurso ou reparação; 4) restrições à participação política: governos autoritários muitas vezes limitam a participação política, restringindo o direito de voto, proibindo partidos políticos e limitando a liberdade de associação. Isso pode levar a uma diminuição do engajamento político e à perda da capacidade das pessoas de influenciarem as políticas governamentais; 5) discriminação e exclusão: governos autoritários muitas vezes excluem minorias étnicas, religiosas, sexuais e de gênero, limitando seus direitos e oportunidades. Isso pode levar à discriminação e à marginalização, o que pode levar a uma diminuição da igualdade e da justiça social. Um último ponto que cabe destaque é quanto às ameaças digitais à democracia. Nesta era informacional, com o maior número de usuários na rede, a desinformação e as fake news, bem como os discursos de ódio e linchamentos on-lines, têm que ser objetos de debate em sociedade para serem criados mecanismos sólidos de prevenção e penalização. Como limitação deste trabalho, pelo tempo da realização do artigo, a revisão narrativa foi a escolhida, mas para eventual publicação será interessante produzir uma revisão sistemática ou de escopo, para ter um corpus maior de pesquisa e incluir bases científicas como a Scopus e Web of Science, e bases brasileiras como a Scielo. 98

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Referências

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CAPÍTULO 8 OS IMPACTOS DA PANDEMIA DE COVID-19 NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Ana Paula dos Santos Oliveira1

Introdução

Em dezembro de 2019, uma série de casos de pneumonia de origem desconhecida surgiu em Wuhan, na China. O vírus SARS-CoV-2 foi denominado como covid-19 e espalhou-se rapidamente tanto na China quanto globalmente. Devido ao alto índice de transmissibilidade a Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020, considerou que o mundo vivia uma pandemia (Campos et al., 2020). Assim, para enfrentar rapidamente a propagação da doença, medidas preventivas, tanto individuais quanto comunitárias foram implementadas. Entre as quais o distanciamento social e, com isso, a suspensão das atividades em escolas, creches e universidades (Campos et al., 2020). De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), aproximadamente 1,57 bilhão de crianças e jovens foram impactados pela interrupção das atividades escolares (UNESCO, 2020) que exigiram novas estratégias metodológicas de ensino, abrindo maiores espaços para o uso das tecnologias digitais, como uma tentativa de minimizar os efeitos da pandemia na educação. Nesse cenário, a implementação do ensino remoto configurou-se como uma possibilidade de garantia ao direito à educação (Camizão; Conde; Victor, 2021). Por outro lado, as políticas públicas foram implementadas de forma generalizada, sem pensar na grande parcela da população que não possuía condições adequadas de estudo em casa, como acesso à internet, computa-

1 Bacharel em Direito, UNESC (Faculdades Integradas de Cacoal); Pós-graduada em Direito Processual Civil e Direito Previdenciário, Pós-graduanda em Direito Civil e Empresarial, Mestre em Direitos Humanos (Unijuí-RS), Professora Substituta da Universidade Federal de Rondônia e advogada atuante em Direito Civil, Direito do Consumidor e Direito Previdenciário. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4562982800661410.

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dores, celulares, além da falta de espaços físicos, ambiente aconchegante e privativo para a realização das aulas on-line (Camizão; Conde; Victor, 2021). Além disso, houve a necessidade de reorganizar as atividades de presenciais para atividades não presenciais, sem planejamento e estruturação pelos governos estaduais e/ou municipais (Rocha; Vieira, 2021). Os coordenadores e professores passaram a depender de recursos tecnológicos para a inclusão dos alunos no sistema de educação não presencial, multiplicando a complexidade de atendimento educacional (Camizão; Conde; Victor, 2021; Panta; Picada; Pavão, 2021). Por isso, a pandemia produziu repercussões não apenas de ordem biomédica e epidemiológica, mas também gerou impactos sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos sem precedentes (Grossi; Minoda; Fonseca, 2020). Mediante isso, surge a inquietação: “Quais os impactos da pandemia de covid-19 na educação brasileira?”. Assim, o presente estudo objetiva compreender os impactos da pandemia de covid-19 na educação brasileira. Para isso, como metodologia realizou-se uma pesquisa qualitativa exploratória, uma vez que visa proporcionar uma maior familiaridade com o tema e com a sua delimitação, através de pesquisas bibliográficas, por meio de livros, artigos científicos e obras de divulgação, priorizando sempre aquelas mais atuais, de modo a esclarecer e debater o tema, além de aprender e explorar conteúdos científicos a respeito do mesmo (Gil, 2002; Marcone; Lakatos, 2007). Desenvolvimento Educação no Brasil

Para Rousseau (1979), educar é o processo por meio do qual o homem adquire as habilidades e capacitações necessárias para o desenvolvimento das atividades a serem desempenhadas no curso de suas vidas. Dessa forma, a educação constitui-se como uma capacitação ao homem de como pensar, compreender o mundo, saber ser e atuar. Por outro lado, entende-se que a percepção sobre a educação altera-se conforme a sociedade e o momento histórico vivenciado. Por exemplo, na sociedade primitiva, a educação era informal e visava a sobrevivência do indivíduo. Posteriormente, com o advento da escrita, a educação foi ampliada. Com isso, passou-se a atribuir a educação como uma capacidade e função social, munida de caráter político, como se evidencia na era grega (Basilio, 2009). No século XVIII, a educação abrangeu aspectos iluministas, ampliando os programas de estudo, promovendo um processo educativo sem distinção de classe social, a fim de transformar o homem como um ser pensante e inteligente. Com a Revolução Francesa iniciou-se a propagação 102

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de ideias de uma educação gratuita e universal, direcionada a todos os cidadãos. Neste contexto, efetivou-se a educação como um direito. Portanto, a educação passou-se a ser voltada para a capacitação do homem ao exercício de seu papel como agente de sua própria história como cidadão e como homem de bem (Basilio, 2009). No Brasil, a partir da formação de um estado democrático, efetivou-se a educação como um direito e através da Constituição da República de 1988 este direito foi previsto no artigo 6˚, detalhado no Título VIII, Capítulo III, entre os artigos 204 e 214, como um direito fundamental de caráter social cuja observação pelos cidadãos permite bem-estar social, igualdade, justiça, melhores oportunidades e dignidade (Brasil, 1988). Assim, evidencia-se que o acesso à educação permite o desenvolvimento do ser humano e o alcance de conhecimentos que ensejam sua transformação e seu progresso, como um direito protegido pelo Estado, para a obtenção de um sujeito participativo e incorporado na sociedade em que está inserido (Basilio, 2009). Dessa forma, ainda segundo o artigo 6º da Constituição, “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Brasil, 1988). Por isso, a educação trata-se de um direito universalmente reconhecido, atribuído a todos os seres humanos, independente de sexo, idade, raça e sem limitação espacial ou temporal. Assim, mediante o artigo 205, fora definido o objetivo da educação, como proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1998). Já no artigo 206 (Brasil, 1998), a Constituição trouxe os princípios do sistema de ensino, tal como igualdade de acesso e permanência na escola; a liberdade de ensino, pesquisa e aprendizado; e a garantia de padrão de qualidade. Ademais, evidencia-se que a educação deve se desenvolver no sentido de proporcionar ao homem o exercício de sua liberdade, por meio de sua capacitação para o pensar e decidir de acordo com a bagagem que a humanidade construiu ao longo dos anos, integrando-o a seu contexto e tradição sócio cultural. Além disso, a educação apresenta-se como um mecanismo de ‘humanização do homem’, tornando-os compromissados com o mundo, habilitando-os a atuar e refletir, modificando-se e transformando-se (Freire, 2002; Basilio, 2009). Educação em tempos de pandemia de covid-19

Com a pandemia de covid-19, as aulas foram suspensas e passaram a ser a distância, atuando como uma alternativa para que os alunos não ficas103

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sem afastados do processo de ensino e aprendizagem e não houvesse descontinuidade na construção do conhecimento (Grossi; Minoda; Fonseca, 2020). No Brasil, o Ministério da Educação (MEC), em 17 de março de 2020, por meio da Portaria nº 343, dispôs sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durasse a situação de pandemia da covid-19 (Brasil, 2020a). Posteriormente, o Conselho Nacional de Educação (CNE), em 18 de março de 2020, aprovou um parecer para a orientação das redes de ensino quanto à necessidade de reorganização das atividades acadêmicas (Brasil, 2020b). O Governo Federal Brasileiro, através da Medida Provisória 934, de 01 de abril de 2020, estabeleceu as normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior, decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública (Brasil, 2020c). Em 19 de março de 2020, o MEC autorizou, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizassem meios e tecnologias de informação e comunicação, valendo-se apenas enquanto durasse a situação de emergência de saúde pública (Brasil, 2020d). Além disso, foi flexibilizado o cumprimento dos 200 dias letivos, previstos na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a fim de diminuir os prejuízos aos estudantes da educação básica, autorizando os sistemas de ensino a contabilizar as atividades não presenciais para o cumprimento da carga horária. Ainda, recomendou-se que as atividades fossem oferecidas, desde a educação infantil, para que tanto estudante, como as famílias, não perdessem o contato com a escola e não tivessem retrocessos no seu desenvolvimento (Brasil, 2020a 2020b). Assim, devido à suspensão das aulas presenciais, os conteúdos passaram a ser disponibilizados em plataformas digitais, canais de televisão, entrega de material impresso, dentre outras. Em algumas localidades, as secretarias de educação orientaram as escolas a desenvolverem planos de atividades domiciliares, com a utilização de livro didático da própria rede, além da interação entre os professores e alunos por meio de plataformas como o Google Classroom e uso de WhatsApp para contato com o aluno e a família (Aguiar, 2020). Destaca-se, nesse sentido, que o contato dos professores com a família dos alunos compreende-se como fator prioritário para o desenvolvimento escolar, além de atuar como catalisador do processo de pertencimento e aprendizado (Rocha; Vieira, 2021). Por isso, para Oliveira, Oliveira e Barbosa (2021), a pandemia poderia construir-se como uma oportunidade de aproximação entre a escola e as famílias, uma vez que, as aulas saíram das escolas para o ambiente familiar, o que poderia criar oportunidades dos responsáveis de acompanharem o aprendizado dos seus filhos (Oliveira; Oliveira; Barbosa, 2021). 104

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Por outro lado, os impactos foram muito maiores, pois as famílias precisaram se organizar frente às mudanças e mesmo com o uso de tecnologias, houve um aumento da falta de interação entre alunos, famílias e professores, constituindo-se como uma das principais dificuldades enfrentadas para a manutenção do ensino, segundo estudo de Oliveira, Oliveira e Barbosa (2021). Os professores, em sua maioria, evidenciaram que muitas famílias não realizavam o retorno das atividades, seja pela falta de acesso à internet, pela falta de interesse ou por não se sentirem confiantes e aptos a auxiliarem seus filhos nas atividades pedagógicas. Além disso, a ausência do contato pessoal entre professores, alunos e famílias interferiu significativamente no processo ensino-aprendizagem (Queiroz; Melo, 2021). Cabe elencar que a não disponibilidade dos recursos tecnológicos e a falta de acesso à internet constituiram-se como outro impacto a uma educação de qualidade durante a pandemia, sendo enfrentado tanto pelos professores quanto pelos alunos e suas famílias. A dimensão da equidade no acesso às tecnologias digitais, aos computadores, celulares e outros meios de comunicação, revelou uma intensa exclusão digital. A suspensão das aulas presencias não poderia retirar o direito à educação, mas, a falta de acesso às plataformas digitais constituiu-se como uma forma de retirada de tal direito (Kruszewska; Nazaruk; Szewczyk, 2021). Assim, para os estudantes que não possuíam acesso à televisão e/ ou à internet, as atividades deveriam ser retiradas e entregues na escola, em períodos pré-estabelecidos, o que possibilitou, ainda mais, exclusão e impactos à manutenção da educação destes alunos. Além disso, observa-se que grande responsabilidade recaiu sobre os professores e em todos os profissionais que atuavam no segmento escolar, pois tiveram de alterar toda a rotina e aprender, em um curto período de tempo, a utilizar tecnologias específicas (Aguiar, 2020). Dessa forma, a dificuldade em planejar atividades não presencias constituiu-se como um desafio aos professores que impactou diretamente no processo ensino-aprendizagem, pois adaptar os materiais, enviar áudios, links com conteúdo, atividades interativas, vídeos e jogos educativos, não significaria que o aprendizado estaria sendo ofertado de maneira significativa (Panta; Picada; Pavão, 2021). Com isso, elenca-se que visando manter a educação, em tempos de distanciamento social, a inclusão das tecnologias digitais de informação e comunicação surgiram como possibilidade para continuação do ensino e interação entre alunos, professores e famílias. Entretanto, as condições sociais, linguísticas e cognitivas dos estudantes foram deixadas de lado e toda rede educacional foi submetida a um novo modelo de ensinar e aprender (Rocha; Vieira, 2021). 105

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Considerações finais

A covid-19 desafiou a todos, tanto no modo de viver como no modo de trabalhar, de se locomover e se relacionar. Durante o ano de 2020, foram inúmeros os desafios vivenciados pela sociedade. No âmbito da educação, a vivência que se obtinha em sala de aula foi alterada para o modo virtual, o que exigiu novas organizações, aprendizados e interações. Os impactos na educação brasileira foram significativos, abrangendo desafios enormes, que transitaram pela falta de interação entre professores, famílias e alunos, pela falta de acesso dos alunos à internet, aos dispositivos eletrônicos, pelas dificuldades dos professores com o uso das tecnologias e pela necessidade de readequação das atividades didáticas e do ensino. Tais desafios geraram impactos como o aumento das desigualdades sociais, a inacessibilidade e a falta de inclusão, ou seja, promoveram a visualização da exclusão de direitos de uma boa parcela da população, direitos estes trazidos pela Constituição Brasileira de 1988, como o da educação. Dessa forma, sugere-se que novos estudos sejam realizados para a compreensão, de modo mais profundo, dos impactos da pandemia de covid-19 na educação brasileira e dos novos desafios a serem enfrentados para promoção de um acesso igualitário e com equidade à educação no País. Referências

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CAPÍTULO 9 AVANÇO DA ECONOMIA NEOLIBERAL E RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA NOS DESASTRES AMBIENTAIS CAUSADOS PELOS INUNDAMENTOS ADVINDOS DAS BARRAGENS DE RISCO NO BRASIL Francisca Cecília de Carvalho Moura Fé1

Introdução

O presente artigo trata acerca dos impactos da política econômica neoliberal no que concerne à expansão de empresas de barragens no País e à responsabilidade civil objetiva do Estado quanto aos desastres ambientais causados por barragens de alto risco e alto potencial de dano. A memória nacional tem lembrança recente de desastres como o ocorrido em 2015, no estado de Minas Gerais, no subdistrito de Bento Rodrigues da cidade de Mariana, após um rompimento de barragem, além dos danos ao ecossistema do Rio Doce, aos ecossistemas marinhos, pelo menos 18 pessoas morreram e uma ainda está desaparecida. Pouco tempo depois, em 2019, Brumadinho, também em Minas Gerais, vivencia o maior desastre ambiental, humanitário e industrial do século, superando o de Mariana, o rompimento de mais uma barragem que eleva o número de mortos para 270, com três pessoas desaparecidas. Não houve só a perda irreparável da biodiversidade local, mas a perda de familiares e, para os que sobreviveram, a sensação de pertencimento e memória patrimonial e cultural. Estes são casos emblemáticos de comoção nacional e internacional, mas há dezenas de ocorrências de quebras de barragens com pelo menos uma ou duas mortes de pessoas e comprometimento ambiental. Ainda as1 Doutoranda em Direito Público na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bolsista CAPES/BRASIL. Mestre em Direito na Direito da Universidade Federal do Piauí. Advogada (UFPI). Especialista de Direito Civil e Processo Civil, UNINOVAFAPI; Especialista em Direito Constitucional e Administrativo, UNINOVAFAPI. E-mail: ceciliamourafe@gmail. com Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8822423275712919. ORCID https://orcid.org/0000-0001-7230-7093.

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sim, a média de acidentes é de três barragens por ano, conforme dados publicados pela Agência Nacional de Águas (ANA), responsável pelo Relatório de Segurança de Barragens (RSB), divulgado anualmente e encaminhado ao Congresso (A PÚBLICA, 2019). A hegemonia do pensamento neoliberal expressa-se em praticamente todos os setores da sociedade, sobretudo nas práticas políticas e de governança, fazendo com que predomine a crença de que só há desenvolvimento pleno das atividades econômicas a partir de mecanismos de autorregulação de mercado. Em virtude desse cenário, multinacionais constroem grandes empresas em locais arriscados, como é o caso das barragens, e, num cenário de emergências climáticas, o perigo anunciado manifesta-se em catástrofe. Assim, muitos prejuízos materiais são causados às famílias que moram nas proximidades e, em situações mais graves, até mesmo centenas de mortes. Em virtude disso, faz-se necessária a averiguação das políticas públicas, da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e dos planos de gerenciamento de riscos a fim de evitar mais desastres de mínimas ou grandes proporções. Bem como o aprofundamento no Direito dos Desastres, Direitos Humanos e Direito Internacional, áreas que se entrelaçam no que se refere à temática proposta, incluindo a investigação da atuação dos Estados Unidos, visto seus históricos inúmeros em catástrofes ambientais e antropogênicas. O objetivo geral do presente trabalho busca verificar se o avanço da política econômica neoliberal dirimiu a atuação do Estado quanto à responsabilidade civil objetiva nos desastres ambientais causados pelos inundamentos de barragens de alto risco que afetam, atualmente, o bem-estar e a vida de milhares de pessoas no Brasil. Os objetivos específicos: (a) analisar a política econômica neoliberal brasileira e sua relação de influência na atuação do Estado; (b) averiguar as políticas públicas de prevenção de riscos e a responsabilidade civil objetiva do Estado diante de catástrofes naturais e antropogênicas. O presente trabalho possui caráter metodológico pluridimensional, partindo da análise dimensional dogmática analítica, empírica e normativa, pois há necessidade de certos procedimentos na investigação dos problemas relativos às inundações provenientes de barragens de alto risco e com alto potencial de dano. Para isso, além da investigação das condições ambientais dos moradores próximos aos locais de risco, o artigo faz um rápido levantamento jurídico quanto ao suporte preventivo, regulatório e de responsabilização objetiva quanto aos possíveis danos. O estudo foi realizado por meio do acesso às seguintes bases de dados e materiais disponíveis e de livre acesso: Scielo, Periódicos Capes, Lexml, Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, livros, doutrinas, Leis 110

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e Códigos. Ambientes de pesquisa que reúnem uma coleção descentralizada e dinâmica de informações a respeito do conhecimento científico na área do direito, desenvolvimento e políticas públicas voltadas ao meio ambiente. Além disso, o pesquisa ocorreu por meio da coleta de informações quanto à distribuição espacial e à caracterização das barragens de alto risco e de alto potencial de dano a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (Snisb). O avanço da economia neoliberal frente às políticas ambientais

Depois de o mundo padecer frente a regimes totalitaristas, logo após a Segunda Guerra Mundial, o neoliberalismo tem sua origem como reação teórica e política contra o Estado intervencionista e de bem-estar, sobretudo nas regiões de predomínio capitalista, como Europa e América do Norte (Anderson, 1995). No entanto, ainda sob o efeito da crise financeira de 1929 e do pós-guerra, o desafio de reconstrução da Europa não oferecia estímulo à ideia de que o mercado livre solucionaria as necessidades materiais da sociedade. Com o apogeu da macroeconomia, a intervenção estatal adquire forma e regularidade, assim, as interferências não são arbitrárias, mas oriundas de um conjunto lógico e formalizado (Rizzo, 2019). Para o teórico britânico David Harvey, a proposta do neoliberalismo é a de que o bem-estar humano deva ser concedido por meio de liberdades individuais, capacidades empreendedoras individuais dentro de uma estrutura institucional formada por consagrados direitos à propriedade privada e livre mercado (Harvey, 2008). Dessa maneira, o Estado tem a função de dar origem e manter uma estrutura institucional adequada a essas práticas, além de promover a defesa nacional e as estruturas militares e legais para garantir os direitos de propriedade individuais e assegurar o funcionamento necessário do mercado, e, caso preciso, construir novos mercados, como a mercantilização da água, da segurança, saúde, educação, entre outros (Harvey, 2008). O Estado deve ser mínimo (se dedicar apenas à sua tarefa) também para que grupos de interesse não distorçam a intervenção do Estado em seus próprios benefícios. Conforme expressa Canotilho (2003), o Estado constitucional ecológico presume uma concepção integrada ou integrativa do ambiente e, como consequência, um direito integrado e integrativo do ambiente. Embora não exista muita clareza quanto ao conceito de direito integrado do ambiente (o conceito aparece sobretudo na avaliação integrada de impacto ambiental), ele aponta para a necessidade de uma proteção global e sistemática que não se reduza à defesa isolada dos componentes ambientais naturais (ar, luz, água, solo vivo e subsolo, flora, fauna) ou dos componentes humanos (paisagem, patrimônio natural construído, poluição). 111

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A incorporação do neoliberalismo nas instituições dominantes do espectro político, econômico e midiático consolida-se como paradigma atual de desenvolvimento, “formulando um modelo interpretativo da realidade e um padrão cultural que apenas se alicerça no campo da ideologia, pois ocultará suas anomalias e propugnará um discurso que exige a alienação e a derrocada do pensamento” (Ribeiro, 2012, p. 213). Embora a degradação ambiental seja típica do sistema capitalista, o neoliberalismo coadunou com as práticas de maneira a colaborar com as transformações pós 1970 que intensificaram os agravantes ambientais (Soares, 2020). O que acarretou em problemas ambientais, pois busca (do ponto de vista teórico e prático) acelerar o processo produtivo que degrada, além de demonstrar uma sociedade que: tem na desigualdade algo desejável para dar sentido à busca pela eficiência; e que possui o comportamento econômico maximizador presente em suas esferas políticas, sociais e culturais (Soares, 2020). É imperativo afirmar que o ambiente compreende um conjunto sistêmico e multidimensional, envolvendo uma combinação de valores que transpõem o aspecto ecológico, mas alcançam o âmbito cultural, além dos processos sociais e políticos. O saber ambiental ocupa seu lugar no vazio deixado pelo progresso da racionalidade científica, como sintoma de sua falta de conhecimento e como sinal de um processo interminável de produção teórica e de ações práticas orientadas por uma utopia: a construção de um mundo sustentável, democrático, igualitário e diverso (Leff, 2011, p.17).

Dessa maneira, a partir de 1970 a história da perspectiva ambiental alcançou uma dimensão de relevância em decorrência do fortalecimento de uma razão objetiva que universaliza a natureza como entidade em unicidade com o homem. Nesta década, o aprofundamento de uma crise ecológica acumulada em anos de crescimento econômico consolida um campo multidisciplinar em torno da questão ambiental que encontrará, nos anos posteriores, um vasto campo de pesquisa e investigação (Ribeiro, 2012). A economia tornou-se autônoma e de extrema relevância após a inclusão da economia à política, o que acarretou na grande relevância dela quanto à sua influência nas relações sociais. Nessa perspectiva de influência sobre as relações dos seres humanos, a economia estrutura-se essencialmente pela dominação, não pela atuação harmônica, sobretudo diante de sua relevância frente à sociedade (Derani, 2008). Logo, economia e meio ambiente estão profundamente vinculados, acarretando no surgimento de novas correntes doutrinárias e da chamada economia ecológica. Na seara constitucional, o princípio da propriedade privada assegurado como direito fundamental, como consta no artigo 5°, inciso XXIII, 112

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interpreta-se em conformidade com o princípio de que a propriedade atenderá a sua função social no que tange à proteção do meio ambiente ecologicamente em equilíbrio, pois, sendo bem de uso comum do povo (interesse público), há cristalina restrição à iniciativa privada por atos do Poder Público (Farias, 2008). Fica evidente, conforme estabelece Antunes (2002, p. 36), que enseja ao Estado o poder de se antecipar quanto à criação de medidas eficazes para prevenir os variados tipos de degradação do meio ambiente, não devendo, portanto, se isentar de tais responsabilidades. Visto o princípio da precaução – que alcança a finalidade de se antecipar aos riscos, permitido que a degradação ao meio ambiente seja evitada −, a proteção do meio ambiente se faz como uma das formas de promoção da dignidade humana (Antunes, 2002). Responsabilidade civil objetiva e as catástrofes naturais e antropogênicas

Em casos de desastres ambientais, a aplicação da responsabilidade civil objetiva é bastante comum, uma vez que em muitas situações há certa dificuldade em determinar com precisão a causa exata do dano ambiental e a culpa do agente causador. Seu objetivo principal é o de garantir a reparação integral dos danos causados ao meio ambiente e às pessoas afetadas pelo desastre. Primordialmente, necessita-se de um agente que seja responsabilizado, assim, na maioria dos ordenamentos jurídicos, o Estado de Direito ganha substancial fortalecimento a partir da imposição da responsabilidade do Estado como instrumento de legalidade, capaz de garantir a conformidade aos direitos dos atos estaduais, como a indenização por sacrifícios, autoritariamente impostos (Canotilho, 1974). Para Yussef Cahali, a responsabilidade civil do Estado trata-se da obrigação legal, que lhe é imposta, de ressarcir os danos causados a terceiros por suas atividades (Cahali, 2007). O Direito Civil brasileiro consolidou a responsabilidade civil objetiva a partir do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do Código Civil de 2002, mas teve como marco a Constituição de 1946, caracterizando-se por meio dos requisitos da conduta (ação ou omissão), do dano e do nexo de causalidade, não sendo exigido, portanto, a demonstração da culpa do agente. Na Constituição Federal de 1988, a responsabilidade civil do Estado foi designada no § 6º do artigo 37, no qual estabeleceu que as pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa. Assim, o agente que causa o dano, independentemente de culpa, deve ressarcir o prejuízo. Para caracterizá-la como responsabilidade civil 113

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objetiva, basta a mera relação causal entre o comportamento e o dano. Em caso de dano, prescinde-se do dolo ou culpa, bastando ficar provado o nexo de causalidade entre esse dano e a conduta (Barroso, 2005). Essa responsabilidade impõe-se significativamente à seara ambiental, como estabelecido por Paulo Affonso Leme Machado: A responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o ambiente tem o dever jurídico de repará-lo. Presente, pois, o binômio dano/reparação. Não se pergunta a razão da degradação para que haja o dever de indenizar e/ou reparar. A responsabilidade sem culpa tem incidência na indenização ou na reparação dos danos causados ao meio ambiente e aos terceiros afetados por sua atividade (art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/81). Não interessa que tipo de obra ou atividade seja exercida pelo que degrada, pois não há necessidade de que ela apresente risco ou seja perigosa. Procura-se quem foi atingido e, se for o meio ambiente e o homem, inicia-se o processo lógico-jurídico da imputação civil objetiva ambiental. Só depois é que se entrará na fase do estabelecimento do nexo de causalidade entre a ação ou omissão e do dano. É contra o Direito enriquecer-se ou ter lucro à custa da degradação do meio ambiente (Machado, 2004, p. 236-327).

Os casos de excludentes de responsabilidade alcançam: força maior, fato de terceiro, culpa exclusiva da vítima, estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito e caso fortuito. Diante de acontecimentos trágicos advindos dos desastres ambientais que têm como consequência não apenas o impacto das mudanças do ambiente, mas a morte de dezenas de pessoas, há necessidade de averiguar de quem é a responsabilidade do fato ocorrido, a fim de entender não apenas as causas, a penalização e o ressarcimento a quem incidir, mas a prevenção dos riscos. O decreto de n° 7.257 de 2010, no inciso II, do artigo 2º, define desastres como o resultado de eventos adversos, que podem ocorrer de forma natural ou provocada pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, resultando em danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais. Os desastres ambientais podem ser ocasionados em decorrência das ações naturais e das antropogênicas (de origem da ação humana), por isso, a necessidade de planos de prevenção e gerenciamento dos riscos. Entretanto, a partir de uma análise histórica, observa-se que, “ao contrário dos desastres antropogênicos, os desastres naturais eram considerados, frequentemente, como eventos da natureza e, portanto, carentes de atribuição de responsabilidade” (Carvalho, 2015b, p. 2). Já é entendimento pacífico nas ciências sociais quanto à inexistência de desastres genuina114

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mente naturais, “havendo sempre, para a ocorrência de desastres, fatores combinados de vulnerabilidades físicas e sociais” (Carvalho, 2015b, p. 3). Ainda que o desastre tenha causas naturais, a responsabilidade do Estado: No que diz respeito à responsabilidade civil por desastres naturais, há um destaque à responsabilidade do Estado, quer por atos comissivos (§ 6.º do art. 37 da CF), para a qual não há dúvidas acerca da imputação objetiva, ou omissivos (fortemente vinculada à ideia de descumprimento de deveres de agir). Especial destaque merece a responsabilidade civil da Administração por desastres naturais no que respeita os atos omissivos do Estado no fornecimento e cuidado à saúde e à segurança dos administrados. No domínio ambiental, em especial nos desastres denominados naturais, nota-se uma constituição de relações jurídicas multilaterais (administrados beneficiados, Estado e administrados vítimas) em detrimento a relações unidimensionais (autoridade administrativa e particular) (Carvalho, 20215b, p. 3).

A partir desse contexto, confere-se, então, uma nova compreensão no campo do direito positivo: a teoria do risco criado. Trata-se de uma questão de socialização dos riscos, visto que o dano decorrente da atividade de risco incidirá reiteradamente tanto no seu causador quanto na vítima, forçando, assim, o reconhecimento da injustiça, visto que o prejudicado seja aquele que não teve como evitar o risco. Entretanto, acerca da teoria do risco criado, é imperativo salientar que não é por ter causado o risco que o autor é obrigado à reparação, mas sim porque o causou injustamente, o que não quer dizer contra o direito, mas contra a justiça (Ripert, 2002). Gerenciamento de riscos de inundações de barragens de alto risco e alto potencial de dano

Para Délton Winter de Carvalho, em casos de desastres, o sistema legal possuía uma ênfase meramente compensatória, o que foi modificado pela promulgação da Lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, em 2012. O professor alerta que o valor jurídico do tema é expressivo, visto que os desastres atingem uma ou mais comunidades, e não apenas um indivíduo, uma vez que se referem aos acontecimentos que alcançam uma dimensão social (Carvalho, 2015a). “Após a introdução do novo marco regulatório, houve a atribuição prioritária às ações de prevenção e mitigação de desastres” (Carvalho, 2014, s/p). Os casos de situações críticas demandam uma postura organizacional integrada e ao gerenciamento de ações de resposta, esses casos são geralmente de alto risco, que são os decorrentes de situações críticas, o nível de risco é extremamente elevado e a possibilidade de que resultados 115

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indesejados se concretizem é sempre grande (Oliveira, 2009). “O risco elevado pode representar lesões, mortes, pessoas desabrigadas, desalojadas, danos à propriedade ou ao meio ambiente” (Oliveira, 2009, p. 17). Os desastres oriundos de ação antropogênica cumulados com as mudanças climáticas são aqueles que envolvem as barragens, sobretudo as de alto risco e alto potencial de dano. É imperioso destacar a importância dessas estruturas: Barragem é definida como qualquer estrutura em um curso permanente ou temporário de água para fins de contenção ou acumulação de substâncias líquidas ou misturas de líquidos e sólidos, compreendendo o barramento e as estruturas associadas. Sua importância se ampliou ao longo da história contribuindo para o controle de inundações, produção de eletricidade, disponibilização de água para consumo humano, para fins comerciais ou recreação, e ainda na atividade de mineração para a contenção de rejeitos (Silva; Silva, 2020, p. 243).

“No Brasil, a elaboração dos projetos, a construção e a manutenção das barragens seguem normativas e critérios distintos, o que reduz seu fator de confiança” (Silva; Silva, 2020, p. 243). Por isso, colapso dessas estruturas pode causar prejuízos irreversíveis ao ambiente e à propriedade, acarretando diversos impactos, diretos e indiretos, que podem perdurar por longo tempo. Em sua vida útil, a infraestrutura das barragens pode se desgastar ampliando o risco de rompimento e, com isso, o risco à vida (Silva; Silva, 2020). Os rompimentos de barragens não apenas causam destruição ecológica como diminuem a confiança que a população tem na construção dessas estruturas que são empreendimentos que visam de certa forma colaborar com o conforto e melhoria de vida das pessoas que vivem próximas a eles. No ano de 2010, foi sancionada a Lei n° 12.334, conhecida como Política Nacional de Segurança de Barragens(PNLB), que é direcionada a barragens que pretendem a acumulação de água para uso diverso, além da disposição de rejeitos e a acumulação de resíduos industriais. Pouco tempo depois, no ano de 2012, foi promulgada a lei n° 12.608 que instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil a fim de designar diretrizes que viabilizem ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação, com o propósito de articular políticas que promovam o desenvolvimento sustentável. Mesmo com uma política de prevenção e fiscalizatória, os dados mais recentes, de 2017, do Relatório de Segurança de Barragens (Snisb) revelaram que não se sabe o risco em 85,3% delas devido ao fato de possuírem apenas o cadastro e não existirem informações que possibilitem 116

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estabelecer o grau de risco, enquanto 7,3% são de baixo, 2,8% de médio e 4,7% de alto risco (Silva; Silva, 2020). A memória nacional tem lembrança recente de desastres como o ocorrido em 2015, no Estado de Minas Gerais, no subdistrito de Bento Rodrigues da cidade de Mariana, após um rompimento de barragem, além dos danos ao ecossistema do Rio Doce, aos ecossistemas marinhos, pelo menos 18 pessoas morreram e uma ainda está desaparecida. Pouco tempo depois, em 2019, Brumadinho, também em Minas Gerais, vivencia o maior desastre ambiental, humanitário e industrial do século, superando o de Mariana, o rompimento de mais uma barragem que eleva o número de mortos para 270, com três pessoas desaparecidas. Não houve só a perda irreparável da biodiversidade local, mas a perda de familiares e, para os que sobreviveram, a sensação de pertencimento e memória patrimonial e cultural. Estes são casos emblemáticos de comoção nacional e internacional, mas há dezenas de ocorrências de quebras de barragens com pelo menos uma ou duas mortes de pessoas e comprometimento ambiental. Ainda assim, a média de acidentes é de três barragens por ano, conforme dados publicados pela Agência Nacional de Águas (ANA), responsável pelo Relatório de Segurança de Barragens (RSB), divulgado anualmente e encaminhado ao Congresso (A PÚBLICA, 2019). Direito comparado: atuação dos Estados Unidos na condução dos desastres

Na condução do gerenciamento de riscos, existem instrumentos de gerenciamento que podem orientar as organizações que participam da administração de desastres a desenvolver suas atividades de maneira coordenada, eficiente e eficaz. Um exemplo é o Sistema de Comando em Operações (SCO), ferramenta gerencial (modelo), de concepção sistêmica e contingencial, que padroniza as ações de resposta em situações críticas de qualquer natureza ou tamanho (Oliveira, 2009). A origem e o desenvolvimento do Sistema de Comando de Incidentes (Incident Command System/ICS) provém de três etapas: sua origem na década de 70, nos Estados Unidos da América (EUA); sua consolidação; e, finalmente, a criação do National Incident Management System ou NIMS2 (Oliveira, 2009). Segundo Oliveira (2009), nessa mesma década, a questão relativa aos incêndios florestais nos Estados Unidos tornou-se tão grave que uma série de incêndios devastadores ocorridos na Califórnia suplantou o sistema de proteção do Estado. A falta de conceitos unificados e modelos sistêmicos resultou em problemas operacionais sem precedentes. Como resultado, o Congresso Norte-Americano recomendou ao Departamento Florestal (U. S. Forestry) que desenvolvesse um sistema que pudesse resolver a questão. Em 1980, o ICS acabou sendo adotado oficialmente pelo Estado da Califórnia (Oliveira, 2009). 117

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Então, a partir de 1982, ocorreu a consolidação do ICS, colocando-o como a referência para o Sistema Nacional de Gerenciamento de Incidentes com Múltiplas Agências (National Interagency Incident Management System – NIIMS). No Brasil, o uso do modelo norte-americano ICS produziu experiências a fim de se criar um modelo nacional próprio, de acordo com as condições e necessidades do País. Algumas delas se encontram bem desenvolvidas em alguns Estados da Federação, como o Sistema de Comando em Operações (baseado nas Diretrizes da Federal Emergency Management Agency (FEMA)) e do Standardized Emergency Management System (SEMS), da Califórnia, EUA, disseminado pela Defesa Civil do Estado de Santa Catarina e apoiado pelo CEPED/UFSC, também em uso pelo Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Espírito Santo (Oliveira, 2009). Vale salientar que países como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália foram pioneiros em normatizar a segurança de barragens, no entanto, o Brasil apenas estabeleceu uma política para o gerenciamento de riscos em 2010 (Silva; Silva, 2020). Considerações finais

É pertinente questionar se o Estado pode ser responsabilizado diretamente pelos danos ambientais causados por empresas. Surge então a necessidade de um arcabouço jurídico-ambiental que estabeleça normas e princípios para regular as relações entre a sociedade e o meio ambiente, visando a proteção dos recursos naturais e a garantia da sustentabilidade ecológica, econômica e social. Esse ramo do Direito Ambiental, que é apoiado pelo Estado, tem como objetivo equilibrar o desenvolvimento humano com a preservação do meio ambiente, de acordo com as bases constitucionais. Devido aos registros de desastres provocados por inundações provenientes de quebras de barragens, que acarretaram em catástrofes com centenas de mortes, além dos atuais registros de barragens de alto risco e alto potencial de dano, próximas a um contingente populacional expressivo, entende-se que o Estado atua de maneira comedida tanto na política de prevenção de danos quanto na responsabilidade civil objetiva. Compreende-se, também, que esse comportamento do Estado, por vezes em circunstância de omissão, é resultado do avanço política econômica neoliberal que visa o resultado financeiro de grandes empresas, como as de resíduo de mineração, em detrimento do bem-estar da comunidade e do meio ambiente que a cerca. Pode-se compreender que é papel do Estado tutelar o meio ambiente e regulamentar a imposição de limites a fim de prevenir desastres, tanto 118

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no controle das suas próprias atividades quanto no controle das atividades de terceiros. Portanto, os danos ambientais causados por empresas, por exemplo, não são exclusivamente de responsabilidade do agente causador, podendo ser também do Estado, seja por falhas na aplicação dos regulamentos de proteção, seja por omissão na contenção dos riscos decorrentes das diversas atividades econômicas. Referências

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CAPÍTULO 10 “SOMOS ATLÂNTICAS”: PROBLEMATIZANDO O PAPEL DAS MULHERES NEGRAS NAS 1 RELAÇÕES INTERNACIONAIS Erica Paula de Vasconcelos dos Santos2

Introdução

Apesar das relações internacionais desconsiderarem a participação primordial das mulheres negras escravizadas para o desenvolvimento da economia global, estas questões foram fundamentais para as relações internacionais, formações dos Estados e o princípios de soberania. No sistema que teve por base fornecedora escravizadas, açúcar, algodão e tabaco, sendo sinônimo de riqueza e poder para a Europa, entre a elite europeia, tendo como produto principal e de mais-valia as mulheres negras, que já eram fundamentais para expansão econômica, como eram vendidas por preços mais altos – por poderem procriar, cuidar dos serviços domésticos e aumentar a renda dos donos do mercado internacional e local. Neste sentido, o presente artigo faz uma análise crítica da entrada das mulheres negras na agenda das relações internacionais, demonstrando que essa entrada foi através da exploração pelo sistema de mercado escravista, entendendo que a raça e o gênero são fatores usados como marcadores da atualidade que perpetua as desigualdades, subalternização e o domínio na estrutura econômica do mercado de trabalho, afetando principalmente as mulheres negras. De modo a desenvolver o seu argumento, o artigo está estruturado em duas seções. A primeira seção irá delinear 1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho A responsabilização por graves violações dos Direitos Humanos, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Mestranda no Programa de Pós-graduação de Relações Internacionais (PPGRI), pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), bolsista PROBIU. E-mail: [email protected]. Lattes: http:// lattes.cnpq.br/1698626449272110. ORCID:https://orcid.org/0000-0003-1261-2912.

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a pertinência das navegações transatlânticas escravistas para pensar na estruturação das relações sociais e a conceituação de trabalho. A segunda irá evidenciar a crítica da estrutura colonial que influencia na estrutura do mercado de trabalho da atualidade. O debate presente neste artigo serve como contribuição de futuras pesquisas na área das relações internacionais, como, também, para novas resoluções de problemáticas relacionadas à escravidão, mulheres negras e às questões sobre racismo, apontando como estes fatores refletem na atualidade, criando estereótipos, imaginários e alimentando o machismo contra as mulheres negras, denotando a continuidade do colonialismo que continua a refletir nas questões sociais e políticas, fomentando desigualdades no âmbito profissional, comercial e doméstico. A entrada das mulheres negras na agenda das Relações Internacionais sob o pano de fundo do sistema comercial escravista

Para problematizar a entrada das mulheres negras nas agendas das relações internacionais, é necessário que entendamos que, primeiro, as relações internacionais, enquanto disciplina, não dão a centralidade necessária para as problemáticas sobre raça e gênero, o que torna ainda mais precário tal aspecto. Começando a entender qual é de fato a centralidade das RI enquanto disciplina, Sarfati (2005), no livro Teoria de relações internacionais, explica que em 1919 foi criada a primeira cadeira de Relações Internacionais, sob os auspícios do filantropo David Davies, na University of Wales, em Aberystwyth, no Reino Unido, direcionada à Política Internacional, após a Primeira Guerra Mundial, objetivando entender as causas das guerras e descobrir como preveni-las. Portanto, a área das RI nasceu para responder a questões como: “Quais as causas das guerras?”, “Como preveni-las?”, “Como alcançar a paz?”. O que desperta nos estudiosos mais interesse nas questões de segurança e cooperação internacionais, ou seja, como os Estados se protegem de ameaças externas e como poderiam ter evitado que os conflitos se transformassem em guerras. Dessa forma, o marco do início das relações internacionais é o Tratado de Paz de Westfália, assinado nas cidades alemãs de Munster e Osnabruck, o que colocou fim à guerra dos Trintas Anos - 1618-1648 (Kissinger, 2015, p. 13). Ainda neste contexto, de formação de movimentações comerciais pelo mar, se estabeleceu um determinado tipo de relações internacionais em 1492, através da comercialização de negros escravizados para fornecimento de mão de obra barata para a comercialização de produtos, o que foi muito disputado por Portugal, Espanha e Inglaterra. Em defesa deste sistema de dominação, o que também foi o início de um grande ciclo comercial da política econômica no mundo (Bezerra; Salgado; Yamato, 2018). 122

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Nesse sentido, as RI se estabelecem em direção à América Latina com o intuito de explorar a mão de obra, matérias-primas e territórios na lógica política de disputas por poder. Formando uma relação comercial entre estes exploradores através das vias marítimas com os navios escravistas, também chamados de navios negreiros, para as exportações de produtos e dos escravos (Rodrigues, 2022). Que na concepção de Bull e Watson (1984), a expansão colonial, desde o século XVI, é suficiente para ser incluído o espaço atlântico no sistema internacional, pois, a expansão das sociedades internacional só aconteceu com a adesão imposta e violenta dos povos sociedades às normas e aos valores cultivados pela colonização europeia (Bull; Watson, 1984) Estes contextos históricos estão explicitados nos livros Capitalismo e Escravidão, de Eric Williams (2012), e na obra Do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, de Laurentino Gomes (2019). Ambos os autores nos levarão a entender estes contextos, partindo de três pontos, que foram fundamentais para manutenção, tanto das relações econômicas, através do comércio colonial, quanto das relações internacionais, sendo eles: o comércio marítimo triangular; o sistema mercantil; e a descoberta das Américas. Williams (2012) menciona que o comércio marítimo triangular funcionava da seguinte forma: “a Inglaterra com os produtos de exportação, a África com a mercadoria humana e a França forneciam os navios e manufaturados” (p. 94). Este sistema formava, através do meio marítimo, um triângulo, em que os produtos saíam da metrópole com uma carga de artigos das fazendas e matérias-primas coloniais, nos navios negreiros na costa da África (Williams, 2012). Segundo Gomes (2019), este formato criou dois sistemas diferentes do comércio de escravos no Atlântico, o primeiro era dominado pelos portugueses que navegaram em direção ao Sul da Linha do Equador para o litoral brasileiro com navios carregados de escravos dos territórios de Benim, Nigéria e Congo, chegando a Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (Gomes, 2019). Já o segundo sistema era dominado por britânicos, franceses e holandeses, que saíam das regiões de Gana e Senegal indo até às ilhas do Caribe, retornando para a Europa, onde descarregavam as mercadorias, e então seguiam novamente para a África, no que se denominou o mercado triangular de escravos e produtos, como o açúcar (Gomes, 2019). No comércio marítimo triangular, os escravizados negros eram vendidos nas fazendas, o que aumentava o volume do tráfego, tanto deles, quanto das matérias-primas (Williams, 2012). Este tipo de sistema comercial também passou a ser chamado de colônias, pois manteve essa movimentação de trocas de mercadorias que seriam levadas de volta ao país de partida, com mais lucro, em troca de uma carga de produtos suplementados, 123

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mas nunca suplantado. Através do comércio de produtos coloniais, manufaturas de produção interna eram trocadas direto entre a Inglaterra e as Índias Ocidentais (Williams, 2012). Nesse sistema comercial, era operacionalizado um modelo de trabalho para sustentação econômica da Europa, sendo principalmente baseado na exploração dos negros, que deveriam trabalhar horas e dias sem descaso ou direitos e ainda saber manobrar as máquinas industriais para produção de açúcar, algodão, tabaco, melaço, anil, nas grandes fazendas, o que resultou em grandes indústrias na Inglaterra, com fornecimento de novos mercados coloniais na área da agricultura e o comércio pesqueiro (Williams, 2012). Durkheim (1999) descreve sobre a divisão de trabalho social e a divisão social do trabalho, em que ele aponta reflexões das divisões sociais dentro da estrutura social em que o trabalho está. Ele aborda a função de analogias entre um organismo vivo e a organização social, ou seja, ele questiona qual a finalidade da divisão do trabalho para a sociedade, já que esta divisão representa o equilíbrio de funcionamento da estrutura social (Durkheim, 1999; Silva; Santos; Durães, 2017). Apesar da análise de Durkheim (1999) explicitar que as instituições, por exemplo, a família, o Estado, a religião e o trabalho, se organizam na estrutura social com o papel de garantir a ordem da sociedade por meio dos princípios morais que transmitem aos indivíduos. Assim se configura a divisão do trabalho social, sendo responsável por dotar os indivíduos dos princípios morais necessários ao equilíbrio e ordenamento social (Durkheim, 1999; Silva; Santos; Durães, 2017). Há pontos que não podemos deixar de demarcar em relação à divisão de trabalho extraída do modelo colonial, por exemplo, o Séc. XII, com o surgimento da burguesia, o renascimento da vida urbana da Europa, as revoluções Francesa e Industrial, as técnicas de produção, etc. (Silva; Santos; Durães, 2017). Ou seja, enquanto os filósofos, antropólogos e cientistas sociais estavam preocupados em diagnosticar e achar soluções para os problemas que perturbavam a ordem das sociedades europeias, os negros continuavam sendo capturados da África e comercializados na Europa, prestando mão de obra gratuita por tempo indeterminado. Principalmente no sistema mercantil, surge a ideia da obrigatoriedade da dependência, do monopólio econômico do comércio colonial com as metrópoles (Williams, 2012). Neste caso, as colônias eram obrigadas a enviar seus produtos mais valiosos apenas para a Inglaterra, que era a demandante. Essa situação era regida por Lei, um exemplo disso foi a criação das Leis de Navegações que eram medidas inglesas com finalidades inglesas para outros países, como Irlanda, Escócia. Tais leis obrigavam esses países a pagarem tarifas e a comprarem produtos coloniais da Inglaterra (Williams, 2012, p. 100). 124

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O mercantilismo tornou-se um ponto crucial para as RI justamente pela sua operacionalização através das práticas econômicas estarem diretamente ligadas ao fim do feudalismo e à formação dos Estados Nacionais Modernos. O que muitos esquecem de pautar neste contexto é que esta transição surge, se desenvolve e termina através da escravidão de negros e negras, que tanto transformou e aguçou a Europa a fomentar novas tecnologias para continuar sustentando com este sistema, como foi o caso das navegações transatlânticas. Para Adam Smith (1996), o mercantilismo e a rivalidade mercantil eram inflamados pela violência, pela animosidade nacional e sendo por elas inflamados. E os comerciantes dos dois países anunciaram, com toda a apaixonada confiança da falsidade interesseira, a certeza da ruína de cada uma delas, em consequência dessa balança comercial desfavorável (Smith, 1996). Outro ponto importante foi a descoberta das Américas, o que, para Smith (1996, p. 221), “a descoberta da América e a rota do cabo da Boa Esperança até as Índias são os dois acontecimentos de maior grandeza e importância registrados na história da humanidade”. O descobrimento das Américas foi, economicamente, um ponto crucial para a formação do Brasil, pois, o capitalismo europeu se tornou o peso decisivo da escravidão negra nesse processo, o que, até hoje, impacta de forma negativa nas formações dos nacionais (Williams, 2012). O sistema escravista construiu uma estrutura que perpassa em torno dele mesmo, atribuindo papéis entre centro e periferia no sistema global, em relação à divisão do trabalho, à distribuição de bens e riquezas (Tomich, 2004). Por isso, de fato, o Brasil foi estruturado seguindo o mesmo exemplo mercantilista da Inglaterra no século XVII, através da exploração dos recursos naturais e dos escravizados indígenas e negros africanos, que, dentro do sistema colonial, deviam pagar impostos para as colonias. Graças a esta estrutura, o Brasil passou a ter um aumento significativo de fazendas com engenhos equipados para a industrialização do açúcar (Gomes, 2019). Anos adiante, foi criado pelo senador gaúcho Gaspar Silveira Martins, sob o dilema “O Brasil é o café, e o café é o negro”, a associação entre os barões do café e seus escravos para defenderem os interesses econômicos, com sedes em Vale do Paraíba, entre São Paulo, Rio de Janeiro e o sul de Minas Gerais (Gomes, 2019). Dessa forma se dá a entrada das mulheres negras escravizadas na agenda das relações internacionais. Através da exploração da mão de obra, elas eram colocadas para trabalhar por horas sem descanso nas indústrias canavieiras, por isso, muitas tinham partes do corpo mutiladas ou iam a óbito por atingir a sobrecarga de trabalho (Gomes, 2019). Outro ponto interessante está sendo discutido em diversas pesquisas que tentam especi125

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ficar as principais atividades que as mulheres negras escravizadas exerciam no Brasil colônia, uma parte destas especificidades está retratada nas pinturas de Jean-Baptiste Debret. No diário chamado Tome deuxième II de Voyage pittoresque et historique au Brésil, do artista Jean-Baptiste Debret (1768-1848), descreve-se o Brasil colônia – focando na industrialização canavieira –, no qual ele destacou3 as riquezas da cidade e o domínio portugues sobre elas (Debret, 1978). Esse domínio português foi intermediado, principalmente, por quatro tratados, no sistema internacional: o Tratado de Tordesilhas (1494), que autenticou o domínio do mundo extra-europeu, demarcando os dois hemisfério, polo a polo da posse de Portugal sobre o litoral brasileiro; o Tratado do Descobrimento (1500), que deu suporte ao primeiro; o Tratado de Utrecht (1713), que estabeleceu a fronteira portuguesa no Norte do Brasil; e, por último, o Tratado de Badajos entre Portugal e Espanha que incorporou os sete povos das missões do Brasil (IBGE, 2022). Neste caso, os indígenas, que eles chamavam de selvagens, incivilizados e atrasados, nestes tratados eram a mão de obra para trabalhar para as colônias portuguesas (Blanco; Delgado, 2019). Como os negros da África também eram escravos ideais, considerados pelos colonos como “povos sem história”, nação sem Deus, não eram humanos, deveriam ser explorados, chicoteados e torturados para obedecerem a seus senhores brancos, considerada a raça superior, escolhida por Deus (Gonzalez, 1982; Mbembe, 2014a, 2014b). O que por muitas vezes foi retratado no diário do artista Debret, convocado pela coroa portuguesa para retratar através da pintura de seus quadros a beleza e riqueza da fauna e da flora brasileira. Dessa forma, estas pinturas mostram as mulheres negras escravizadas exercendo funções de várias formas no Brasil colônia, como também, os vários castigos e punições recebidos por tentarem fugir dos trabalhos forçados. Entre o passado e o presente: mulheres negras e às várias formas de trabalho

No sistema mercantil, a ideia de dependência e a do monopólio econômico do comércio colonial com as metrópoles (Williams, 2012) deixam evidente como era a separação social da época, baseada na raça, exploração e humilhação, o que também forma a composição social e política. Exploração através das funções de lavadeiras, amas de leite, marisqueiras, quitandeiras, vendedoras de rua, curandeiras, empregadas domésticas, go3 Todas as pinturas datadas estão disponíveis em: https://www.guiadasartes.com.br/jean-baptiste-debret/imagens. Obra original O sistema da atualidade perpétua as desigualdades, a subalternização e o domínio na estrutura econômica do mercado de trabalho, afetando principalmente as mulheres negras, encontra-se no acervo digital da USP, disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3802.

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meiras, acompanhantes, meretrizes e parideiras de “crioulinhas” domésticas (Ariza, 2018; Gomes, 2021, Gonzalez, 2018b; Melo, 2015). Ou seja, as mulheres negras que chegavam nos navios negreiros eram comercializadas para aumentar o fornecimento de mão de obra para as indústrias, sendo esta uma das primeiras e mais importantes atividades econômicas que se propagou na economia entre os Estados e cidades (Gomes, 2022). Que eram sustentadas pelos impostos cobrados nas colônias de Cachoeira (interior do recôncavo baiano) com um alto índice de produção de açúcar, perto do local clandestino de desembarques dos escravos, até o século XIX, que era a comunidade do Solar do Unhão (Gomes, 2019). Dessa forma, estas mulheres negras escravizadas já exerciam um papel econômico fundamental nas relações internacionais, antes mesmo de desembarcarem dos navios negreiros eram hostilizadas durante as viagens longas, ficavam nos porões tendo que ficar deitadas de lado, acorrentadas pelos tornozelos e pulsos. Por serem acorrentados em dupla, em espaços apertados, escuro e úmido, não conseguiam chegar nos túneis que serviam de latrinas, tendo como saída urinar e defecar no mesmo espaço que estavam deitadas (Gomes, 2019). Além disso, o tormento era particularmente grande para as mulheres escravas, que ficavam separadas dos homens em porões mais próximas dos alojamentos da tripulação. Ali, elas estavam vulneráveis ao assédio e ao estupro por parte dos oficiais e marinheiros, que começavam ainda antes da partida do navio, com cometimento de excessos brutais (Gomes, 2019). Falar destes pontos é relevante, porque, apesar destas mulheres escravizadas serem transportadas como objetos para serem comercializadas, esse transporte ocorria de forma desumano (Gomes, 2019). O que explica também o domínio não apenas dos atos, mas também corpóreo, justificado não somente pelo gênero, mas principalmente pela raça. Gilroy (2001), na obra O atlântico negro, pondera que “as diferenças de gênero se tornam extremamente importantes nesta operação anti-política, porque elas são o signo mais proeminente da irresistível hierarquia natural que deve ser restabelecida no centro da vida diária” (Gilroy, 2001, p. 19). Por isso, a colocação da mulher no lugar de humilhação e a violação do seu corpo e de sua genitália através do estrupo do homem branco era realizada para demonstrar dominação e hierarquia (Gilroy, 2001). Para esse autor, estes demonstrativos de força formulou “uma forma de bio-política nacionalista, que interfere nos corpos das mulheres, encarregados da reprodução da diferente étnica absoluta e da continuação de linhagens de sangue específicas” (Gilroy, 2001, p. 19). Em Towards Corporeal Cosmopolitanism: performing decolonial solidarities, a autora Anjana Raghavan (2017) descreve sobre o estrupo contra as 127

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escravizadas e os abortos. Sobre aborto, “as parteiras usavam seus conhecimentos para realizar abortos como protesto contra o estupro e a criação de mais escravos, sendo este uma forma de proteção contra a ‘colonização corporal’ das negras africanas” (Raghavan, 2017, p. 194). Já o estupro, considerado uma violência de dominação corporal e símbolo do controle misógino, tornou-se uma das armas mais brutais do colonizador masculino, pois, sempre usado com o máximo de efeito, por uma violência colonial institucionalizada (Lorde, 1984; Mehta, 2009; Raghavan, 2017). Este formato de sistema, que se tornou em momentos de torturas para mulher negra escravizada no sistema internacional, foi modelado e piorado para estas mulheres enriquecerem mais a economia colonial. Pois as mulheres negras se tornaram objetos principais de comercialização com a colonização do corpo, o principal produto de consumo, tanto para trabalho de mão de obra, quanto para reprodução de crianças para serem escravizadas quanto à violação do seu corpo pelo homem branco (Raghavan, 2017). Isso desencadeou a objetificação e sexualização das mulheres negras, motivo de demanda tanto internacional quanto nacional, que visou elas enquanto objeto sexual (Lorde, 1984). Para trabalhos domésticos, as mulheres negras escravizadas eram anunciadas em jornais, vendidas, leiloadas, alugadas, hipotecadas, emprestadas, doadas, transmitidas em herança e até mesmo trocadas uma pela outra (Gomes, 2021). Ou seja, era um sistema de escambo que não só envolvia transação monetária através de anúncios como: “Troca-se uma negra ótima lavadeira e vendedeira de rua por uma que engome e costura”, propagada no Diário em 1835 (Gomes, 2021, p. 21). Eram compradas para: “cozinhar, lavar, engomar, coser, lavadeira, mucamas, amas de leite, ou seja, eram próprias para todos os serviços”. Suas filhas, menores de idade, eramanunciadas como aprendiz de doméstica, também moedeiras em engenho, que era introduzir as hastes de cana nas prensas nas máquinas do engenho de açúcar (Gomes, 2019, 2021; Reis; Gomes; Carvalho, 2010). Esta estrutura colonial, que colocou a mulher negra como objeto sexual, econômico e doméstico, formulou duas reações sociais, em que uma depende da outra, a primeira foi que essa colonialidade permanece presentemente e se unificou com o racismo (Ballestrin, 2013; Mignolo, 2011; Quijano, 2000). Como mostra os dados do boletim construído pela autoras Juliana Filleti e Gorayeb (2021) sobre Mulheres Negras no Mercado de Trabalho e o Boletim Núcleo de Pesquisas de Economia e Gênero (NPEGen), em conjunto com os resultados do microdados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Em relação a posições de ocupações no mercado de trabalho em Salvador-BA, colocando em práxis mulheres negras e mulheres brancas. 128

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Os dados do 2º trimestre de 2021, mostram algumas diferenças importantes na inserção das mulheres negras. Alguns dados revelaram uma presença majoritária das mulheres negras no trabalho doméstico com Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), 55,7%, e sem CTPS, 62,1% (Filleti; Gorayeb, 2021; IBGE, 2018). Tiveram uma participação inferior à do total das pessoas ocupadas (22,1%) nas seguintes posições: empregador, 8,7%; empregado do setor privado sem carteira, 16,4%; conta própria, 17,7%, e empregado do setor privado com carteira, 19,2%. Cabe ressaltar que na representatividade do total das ocupações, as mulheres negras chegam a 22,1% (Filleti; Gorayeb, 2021; IBGE, 2018) Durante a pandemia foram ainda mais afetadas, com saídas de ocupações 98 mil pessoas, que tiveram que procurar trabalhos informais (+16,8% para as mulheres negras, +13,4% para as mulheres brancas), significando um aumento 19 de 495 mil pessoas assumindo e 337 mil eram mulheres negras (Filleti; Gorayeb, 2021; IBGE, 2018). Esse último ponto, Luciana Ballestrin (2013) denuncia que a colonialidade como fator de poder, que interfere no saber e no ser dos indivíduos que são frutos da colonização. Isso justifica por que “somos atlânticas”. Utilizo este termo, mencionado pela autora Beatriz Nascimento, como autoidentificação de ser fruto do processo escravocrata de mulheres negras no mar Atlântico, como forma de percebermos que a terra negra, espaço-tempo marcado pelos reconhecimentos de raça negra do gênero feminino (Nascimento, 2007). Para Ballestrin (2013), é o que representa as ideologias do “giro decolonial”, relacionadas aos movimentos de resistência teóricos e práticos, políticos e epistemológicos contra a lógica da modernidade/colonialidade. Esse pensamento da Ballestrin está em consonância com o que Lélia Gonzalez chamou de “amefricanidade”, que ela utiliza como uma categoria política-cultural contra a falsa democracia brasileira que se contextualiza no Ocidente e postula políticas contra o negro, os indígenas e os latino-americanos. A amefricanidade é para denunciar o sexismo, nessas sociedades coloniais, contra as mulheres negras na diáspora africana. Estes fatores, e principalmente, a dominação colonial, são apontados como mecanismos de poder e a sua utilização para perpetuar hierarquizações entre a etnização (Gonzalez, 2020). Contexto que também faz parte do racismo alicerçado nas ideologias do branco, superior, de origem europeia, o que também alimenta o branqueamento e o mito da superioridade branca, impondo o desejo de embranquecer, ou seja, de se “limpar do sangue negro, africano ou afrodiásporico”. Estrutura chamada pela autora de “racismo à brasileira”. Com estes elementos, Lélia Gonzalez refuta o mito da democracia racial no Brasil, um mito de dominação que impede a consciência da exis129

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tência do racismo e o conhecimento de suas práticas na sociedade. Por este mito se baseia historicamente da miscigenação, que segundo Lélia, “na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços é resultado de estupro, de violentamento, de manipulação sexual da escrava” (Gonzalez; Hasenbalg, 1982, p. 110). Tanto o mito da democracia brasileira quanto a negação do racismo foram discutidos pela autora Beatriz Nascimento, que concorda com Lélia, em seu pensamento a respeito do racismo, especialmente sobre as formas praticadas na sociedade brasileira contra a população negra. Beatriz Nascimento nomeia o racismo contra as mulheres negras por “um emaranhado de sutilezas”, ou seja, o racismo é como uma trama de fios finos e complexos, mas astuciosos, pois ele é tratado ou mesmo inexistente. Dessa forma, o racismo no Brasil se mostra como uma sofisticada rede de pensamentos e ações que varia para determinados contextos, seja o contexto das navegações escravistas, seja da exploração e sexualização das mulheres negras. Ele é multifacetado em sua existência, sendo necessário passar por análises e possibilidades de reação multidimensionais (Nascimento, 2007). Considerações finais

Contatou-se que as navegações transatlânticas escravagistas foram o elemento central para formação estrutural das relações de poder e disputa nos setores da sociedade. Um dos fatores que aumentaram a riqueza e a expansão do domínio dos portugueses foi a descoberta das Américas através das explorações de mão de obra das escravizadas, do açúcar, algodão e do tabaco em uma relação comercial entre os exploradores através das vias marítimas – sendo considerada a expansão das sociedades internacionais, que só aconteceram com a adesão imposta e violenta dos povos às normas e aos valores cultivados pela colonização europeia. Dessa forma, dentro desse sistema, sendo o centro político e econômico para as colônias portuguesas, esta estrutura colonial resultou na marginalização das mulheres negras, colocando-as como objeto sexual nos setores econômicos e domésticos. Isso formou duas reações sociais, em que uma depende da outra, a primeira foi que essa colonialidade permanece presentemente e se unificou com o racismo. Mais as desigualdades nas áreas trabalhistas na conjuntura econômica, política e social. Tudo isso reflete na atualidade via estereótipos e o machismo contra as mulheres negras, o que de fato mostra que o colonialismo continua a refletir nas questões sociais e políticas, fomentando desigualdades no âmbito profissional, comercial e doméstico. Ele é o maior precursor do racismo e das desigualdades sociais e de gênero. Por isso é necessário repensar o contexto brasileiro, modelando o conhecimento científico e a educação, ensi130

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nando que somos frutos das mulheres negras escravizadas, amas de leite, imprensadoras, quitandeiras, cozinheiras, lavadeiras e gomeiras. É necessário, assim, que a democracia brasileira e a estrutura política passem por análises para a construção de possibilidades de reação multidimensionais. Referências

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CAPÍTULO 11 IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DA PÓS1 VERDADE NA DEMOCRACIA BRASILEIRA Ádamo Gabriel Lopes de Souza2

Introdução

Toda sociedade alimenta e circunscreve a sua concepção de verdade, emprazando inúmeros valores e regramentos a serem cumpridos no incremento da racionalidade política. De igual modo, sustenta Foucault (2013), prescreve, ressignifica e coisifica uma diversidade de regimes de verdade, cujo o produto é resultado de variados discursos e práticas sociais constituídos ao longo da história. Por esse ângulo surge a emergência hodierna de perscrutarmos sobre o valor da verdade, doravante ao fenômeno atual da pós-verdade e suas implicações para com a democracia, isto é, a verdade enquanto componente central nas trocas e disputas políticas no cenário brasileiro. Por isso, sobressai observar as relações estabelecidas entre ambos aspectos da racionalidade política contemporânea e a democracia brasileira, esquadrinhando “[...] um pensamento crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade” (Foucault, 2010, p. 22). Tendo em vista isso, tem-se como fio condutor o pensamento crítico da atualidade, delineando como objetivo geral a análise dos efeitos políticos da pós-verdade no Brasil contemporâneo. Para tanto, indaga-se sobre a seguinte problemática: como a pós-verdade tem impactado a democracia brasileira?

1 Artigo completo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Rondônia (PPGFIL/UNIR). Especialização em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Graduado em História e Filosofia pela Universidade Federal do Acre (UFAC). E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9845338849469602. ORCID: https://orcid. org/0000-0002-8061-0807.

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Desse modo, estabeleceu como investigação científica uma pesquisa de tipo exploratória, cujo os procedimentos envolvem o levantamento bibliográfico e documental de trabalhos correlacionados ao tema, circunstância que possibilitou um panorama geral do tipo aproximativo (Gil, 2008), acerca da temática estabelecida. Neste sentido, no primeiro momento, se apresenta os aspectos que caracterizam o advento da pós-verdade, enfatizando como este fenômeno demarca um momento crucial na política contemporânea; no segundo momento, se dedica a um exame da pós-verdade no campo político, salientado alguns efeitos no cenário brasileiro; no terceiro momento, encaminha com uma análise da democracia brasileira, a partir dos principais reflexos da pós-verdade, cujo os impactos têm colocado a democracia no Brasil em risco ou sob ameaça. Em suma, o respectivo texto encontra sua justificativa, posto os acontecimentos recentes, seja no contexto nacional como internacional, relativos à pós-verdade e à política, principalmente, visto a necessidade crucial de se refletir sobre as questões que emergem da racionalidade política contemporânea no Brasil, no qual os engendramentos têm colocado à prova o conjunto da sociedade democrática brasileira. O surgimento do pós na verdade

A princípio, perscrutar sobre a origem da pós-verdade, doravante os seus efeitos na política contemporânea, importa o exame de como o mundo ocidental se relaciona com a verdade e a honestidade, sobretudo, a partir do vínculo com os seus contrários, isto é, a mentira e a desonestidade. Em razão disso, observa-se que o desejo pela busca da verdade surge no horizonte dos seres humanos muito cedo e com distintos contornos. De acordo com Marilena Chauí (2003), a concepção de verdade é herdeira de três grandes noções, sendo oriundas da cultura grega, latina e hebraica. Para o grego, verdade se apresenta como alétheia (ver-perceber); em latim, verdade se delineia como veritas (falar-dizer); em hebraico, verdade significa emunah (crer-confiar). Alétheia se refere ao que as coisas são (isto é, o que elas sempre foram e sempre serão tais como se manifestam agora ao nosso espírito); veritas se refere aos fatos que foram (isto é, a acontecimentos que realmente se deram tais como são relatados); emunah se refere às ações e coisas que serão (isto é, ao que virá a ser ou a acontecer porque assim foi prometido). A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere à percepção das coisas reais (como na alétheia), à linguagem que relata fatos passados (como na veritas) e à expectativa de coisas futuras (como na emunah) (Chauí, 2003, p. 96). 136

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Neste sentido, depreende-se com base na literatura supracitada, a verdade se constitui em direção às coisas reais do presente – o que é (alétheia) –, assim como pelo relato do passado – o que foi (veritas) –, bem como pela confiança nas promessas futuras – o que será (emunah). Por outro lado, Michel Foucault (2013) alerta para o fato de existir vários lugares onde a verdade pode emergir com seus dispositivos e jogos de estratégias, nisso consiste a relevância em pensar a tríade da verdade de maneira oposta à forma legada pelos gregos, latinos e hebraicos, como: ilusão, falsidade e mentira, dado que: Desde quando os seres humanos passaram a ter palavras para dizer, eles disseram palavras que não eram verdadeiras. Ao mesmo tempo, a maioria das sociedades teve alguma variação de a honestidade ser a melhor política como norma. O que me preocupa é a perda de um estigma associado a contar mentiras, e uma aceitação generalizada do fato de mentiras poderem ser contadas impunemente. Mentir tornou-se, essencialmente, uma transgressão sem culpa (Keyses, 2018, p. 17).

A preocupação de Ralph Keyes (2018) salienta a relevância de dimensões éticas em relação à verdade, não obstante se vislumbre na trajetória da humanidade certo distanciamento na busca da verdade, uma vez que no desenvolvimento das relações sociais “[...] a verdade nunca teve papel de destaque na agenda do Homo Sapiens. […] Na prática, o poder de cooperação humana depende de um delicado equilíbrio entre a verdade e a ficção” (Harari, 2019, p. 232). Na medida em que a falta de honestidade ou mentira se revelam como elementos triviais na socialização dos seres humanos, se observa uma rotinização da desonestidade e a mentira, se tornando por sua vez, menos exceção, para se configurar como determinada norma na sociedade. Assim, nota-se um declínio ético significativo e o alargamento considerável da desonestidade e mentira no conjunto das relações sociais, tendo em vista que “à medida que a capacidade humana para falar se desenvolveu, igualmente se desenvolveu nossa capacidade não só para ludibriar presas e enganar predadores, mas também para mentir para outros humanos” (Keyes, 2018, p. 27), por sua vez, mentir no decurso da humanidade se tornou “tolerável” em muitas ocasiões, principalmente nos desdobramentos políticos. No entanto, a desonestidade e enganação na vida hodierna assume contornos distintos na ocorrência da pós-verdade3, dado que o fenômeno desenca3 De acordo com Keyes (2018) e D’Ancona (2018), a etimologia foi usada pela primeira vez em 1992, na revista The Nation pelo escritor Steve Tesich. No ano de 2016, o dicionário Oxford escolheu como o verbete do ano e definiu como “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais”.

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deia um novo atributo para com as dimensões práticas e políticas na contemporaneidade, cujo os impactos colocam em questão a autoridade e confiança da verdade como prerrogativa política, evidenciando ainda “[...] o cinismo como discurso básico do espaço público e da vida laboral” (Dunker, 2017, p. 17). Na era da pós-verdade, não temos apenas verdade e mentira, mas uma terceira categoria de afirmações ambíguas que não são exatamente a verdade, mas tampouco são uma mentira. Pode ser chamada de verdade melhorada. Neoverdade. Verdade suave. Verdade artificial. Verdade light. Através dessa eufemasia agressiva, tiramos o ferrão das mentiras. A eufemasia exige poderes notáveis de criatividade linguística. (Keyes, 2018, p. 22).

Dessa forma, identifica-se que a verdade se retira da esfera política, para ceder lugar ao imperativo das emoções na conjuntura política e social, sendo uma verdade útil, consumível e consumida (Tiburi, 2018). Neste sentido, segundo D’Ancona (2018), ainda que as mentiras, as manipulações e a falta de honestidade possam se configurar como aportes da política na contemporaneidade, contudo, a pós-verdade não pode ser compreendida como a mesma face da mesma moeda, uma vez que: A novidade não é a desonestidade dos políticos, mas a resposta do público a isso. A indignação dá lugar à indiferença e, por fim, à conivência. A mentira é considerada regra, e não exceção, mesmo em democracias […] Não esperamos mais que nossos políticos eleitos falem a verdade: isso, por enquanto, foi eliminado do perfil do cargo ou, no mínimo, relegado de forma significativa da lista de atributos requeridos (D’Ancona, 2018, p. 34-35).

Assim, observa-se que a incidência da pós-verdade atravessa não apenas o fazer prático dos políticos, mas o conjunto da sociedade e suas instituições democráticas, na medida em que não se verifica uma reação contrária ou certa resistência social ao fenômeno. Além disso, sobressai que muitos acontecimentos contemporâneos expõem significativamente a atualidade do contexto e o pano de fundo dos reflexos políticos da pós-verdade no qual “[…] esconde-se o trabalho feroz de dezenas de spin doctors, ideólogos e, cada mais, cientistas especializados em Big Data, sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder” (Empoli, 2019, p. 12). Por esse ângulo, tem-se que alguns eventos expõem parte do colapso da verdade na atualidade, como as repercussões em torno da eleição de Donald Trump, em 2016, como 45º presidente dos Estados Unidos; a campanha em volta do Brexit, no qual provocou a saída do Reino Unido da União Europeia; e, principalmente, a eleição para a presidência do Brasil de Jair Bolsonaro, em 2018, portanto, exemplos que revelam a ascensão e ostensiva contra a verdade, visto que “[...] usam-se sistemas automatiza138

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dos, os robôs ou bots, ou então pessoas contratadas, os trolls, para forjar maior engajamento em certos conteúdos e dar visibilidade a certo tema, simulando uma popularidade” (Mello, 2020, p. 24). No entanto, segundo Kakutani (2018), impressiona o desinteresse de multidões pela veracidade dos fatos no jogo político, muito embora seja mais assustador o descaso para com o valor da verdade nas trocas políticas e institucionais, bem como as suas implicações: […] os ataques à verdade não estão limitados aos Estados Unidos. Pelo mundo todo, ondas de populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo as instituições democráticas e trocando os especialistas pela sabedoria das multidões. Alegações falsas sobre as relações financeiras do Reino Unido com a União Europeia (em anúncios da campanha do partido Vote Leave num ônibus) ajudaram a mudar a votação em favor do Brexit; e a Rússia intensificou a propagação da sua desinformação durante as campanhas eleitorais na França, na Alemanha, na Holanda e em outros países, em esforços orquestrados de propaganda para desacreditar e desestabilizar democracias (Kakutani, 2018, p. 12).

Acresce que em comum, os respectivos eventos e grande parte dos agentes públicos partilham da sórdida convicção de que a verdade não é mais relevante na política, isto é, para ganhar determinada eleição, políticos não necessitam se pautar em uma verdade racional e factual, mas sim em notícias e fatos falsos, com grande apelo às emoções, valendo-se do uso indiscriminado de “[...] sistemas automatizados, os robôs ou bots, ou então pessoas contratadas, os trolls, para forjar maior engajamento em certos conteúdos e dar visibilidade a certo tema, simulando uma popularidade que ele não tem” (Mello, 2020, p. 24). Por isso tudo é possível compreender que a política e a comunicação do século XXI, cujo as características da pós-verdade se edifica, consiste em ter como sustentáculo o fato de que é “[...] importante perceber que a opinião pública não busca propriamente a verdade, e sim aquelas informações que confirmem suas crenças prévias” (Ramonet, 2019, p. 127), criando um cenário: […] exponencialmente acelerado pelas redes sociais, que conectam usuários que pensam da mesma forma e os abastecem com notícias personalizadas que reforçam suas ideias preconcebidas, permitindo que eles vivam em bolhas, ambientes cada vez mais fechados e sem comunicação com o exterior (Kakutani, 2018, p. 14).

Dessa forma, pode-se deduzir que a ascensão ao poder de Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro (BRA), muito embora não seja a causa em 139

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si da pós-verdade, entretanto, se configura como exemplo plausível desse contexto esboçado pelo ritmo vertiginoso e fechado em torno de notícias falsas, com um exército digital disposto a rifar a autonomia reflexiva em troca de compartilhamento enviesado. Destacam-se, ainda, as inúmeras denúncias do uso de agências especializadas4 em dados e manobras tecnológicas de (des)informação, por grande parte dos agentes políticos, dedicados a manipular, difundir propagandas e notícias falsas, circunstância que realçou, por sua vez, o papel massivo das redes sociais5, sobretudo substituindo fatos concretos e objetivos por uma intensa incitação às emoções políticas, transformando as disputas eleitorais contemporâneas em extensão da pós-verdade “[...] cujo o poder depende de criar ficções e acreditar nelas” (Harari, 2019, p. 227). Em suma, o surgimento do “pós” na verdade emerge no contexto de transformações sociais e subjetivas, evidenciando um assombroso descrédito para com as instituições democráticas, perceptíveis em muitos acontecimentos políticos, revelando, por sua vez, um sintoma paradigmático hodierno. Brasil em tempos de pós-verdade

Tendo em vista as consequências da pós-verdade na contemporaneidade, pode-se inferir que os primeiros respingos políticos do fenômeno no cenário nacional são visualizados nos engendramentos das manifestações de junho de 20136, sobretudo nos desdobramentos sociais e políticos no País, como se observa: No Brasil, vivemos um choque com o que diversos analistas têm chamado de golpe, o impeachment da presidenta Dilma Roussef, que se deu sem a demonstração cabal da ocorrência de um crime de responsabilidade. No que seria um arranjo entre imprensa, sobretudo televisiva, juízes, deputados e senadores, igrejas, corporações nacionais e internacionais, que vivem do mercado, e toda uma máfia econômica e política, que talvez estejam a regozijar-se enquanto a democracia fenece. Os Jogos Olimpícos de 2016 serviram de ópio para o povo, e cinicamente sempre se pode dizer que é melhor para o povo, afinal sofre-se menos com anestesia geral (Tiburi, 2017, p. 129).

A descrição de Márcia Tiburi (2017) demonstra as implicações decorrentes das manifestações de junho de 2013, cujo o reflexo se expressa 4 Brittany Kaiser (2020), apresenta como o escândalo da Cambridge Analityca e as redes sociais influenciam processos eleitorais pelo mundo. 5 Sobre a rede de impulsionamento digital e os discursos de ódio, ver o filme: “Rede de ódio”, de Jan Komasa. Polônia, 2020. 6 Sobre as manifestações de junho de 2013, ver o filme: “Junho: o mês que abalou o Brasil”, de João Weimer. Brasil, 2014.

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na série de protestos contrários à realização dos megaeventos esportivos internacionais sediados no Brasil, a saber, a Copa do Mundo de Futebol (2014) e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos do Rio de Janeiro (2016), no qual faraônicos gastos públicos foram destinados a garantir realização dos eventos aludidos. Acresce que o panorama político esboçado, muito embora tenha servido como ópio para muitos, para outros, provocou imensa indignação em razão do sucateamento de serviços elementares, como saneamento, equipamentos públicos ou mesmo habitação digna, circunstância que aprofundou ainda mais a desigualdade urbana em muitas capitais do país (Jennings et al., 2014). Verifica-se ainda que o cenário nacional se configurou ainda mais emblemático, por ocasião da articulação de grupos políticos alinhados à direita e extrema-direita, impulsionando toda uma agenda ultraconservadora e reacionária, na qual teve como culminância o golpe parlamentar impetrado pelo Congresso Nacional à presidente da República Dilma Rousseff, eleita democraticamente em 2014 e destituída do cargo, segundo o falso argumento de crime de responsabilidade, a respeito da Lei Orçamentaria e a Lei de Improbidade Administrativa, através de um espetáculo midiático e institucional chamado de Impeachment7 (Jinkings et al., 2016). Outrossim, após os desdobramentos de 2013, testemunha-se no Brasil certa radicalização política em que emergem elementos atinentes à reorganização neoconservadora, autoritária e antidemocrática no país, concomitante à progressiva militarização do espaço e vida pública, principalmente, a partir da nova acomodação das redes sociais no debate público e político. Por todos esses aspectos, vê-se que os acontecimentos e enquadramentos políticos no Brasil contemporâneo criam um ambiente auspicioso para a maximização da pós-verdade no âmbito do processo de socialização da população, escorado ainda pelo copioso sentimento antisistema, ou seja, “o que se chama de pós-verdade, no registro dessa espécie de pós-política, são a não verdade e a antipolítica” (Tiburi, 2018, p. 110). De acordo com Patrícia Campos Mello (2020), pode-se afirmar que muito da antipolítica brasileira se torna visível na medida em que surge a demanda pela aquisição de serviços digitais para fomentar candidaturas políticas no Brasil, caracterizando um novo ambiente na política contemporânea brasileira, isto é, “[…] comprar de fornecedores serviços digitais que beneficiam candidatos passou a ser um expediente […] em vez do clássico caixa dois, em que o dinheiro doado não é declarado ao TSE, inaugurava-se a terceirização do caixa dois” (Mello, 2020, p. 42). 7 Sobre o processo de impeachment da presidente Dilma, ver os filmes: “Democracia em Vertigem”, de direção de Petra Costa, 2019; “O Processo”, de direção de Maria Augusta Ramos, de, 2018.

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Além disso, Miguel (2019) sustenta que muito da antipolítica brasileira acaba sendo resultado de provenientes investidas da direita, paralelo aos desdobramentos políticos em torno ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, argumento esse sustentando por outros pensadores, como se observa: No Brasil, a ascensão desses fenômenos coincide com uma crise do sistema político-partidário, estruturado durante trinta anos em torno das lideranças do PSDB e do PT e que entrou em colapso com os resultados da Operação Lava Jato e das eleições de 2018 (Carneiro da Cunha; Barbosa, 2018, p. 21).

Neste sentido, segue-se que no Brasil a pós-verdade agudiza as transformações sociais, posto os inúmeros rearranjos e alianças políticas, principalmente em torno de especialistas em marketing ou engenheiros políticos, voltados a potencializar as premissas da pós-verdade tanto a nível nacional como internacional, tendo como base de trabalho o objetivo de “[…] reinventar uma propaganda adaptada à era dos selfies e das redes sociais, e, como consequência, transformar a própria natureza do jogo democrático” (Empoli, 2019, p. 12). Nisso consiste a pertinência em identificar os efeitos do fenômeno no Brasil, dado a incidência na democracia brasileira, visto que para os especialistas em markentig político: [...] o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquista uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos. Cultivando a cólera de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo, o algoritmo dos engenheiros do caos dilui as antigas barreiras ideológicas e rearticula o conflito político tendo como base uma simples oposição entre “o povo” e “as elites” (Empoli, 2019, p. 13).

De maneira geral, percebe-se um nítido refluxo do jogo político, capitaneado por figuras públicas, com amplo auxílio de engenheiros dispostos a substituir a razão pela emoção das paixões políticas, tendo a órbita o reforço das novas tecnologias da informação e comunicação, difundidas, ainda, pela ampla rede de computadores. Por esse ângulo, nota-se que, no Brasil, a nova dinâmica política expõe a fragmentação de agendas progressistas de representação social, principalmente, com o advento de populismo de direita e com notável inclinação neofascista e autocrática (Tiburi, 2020). Para Byung-Chu Han (2018), o atual regime de informações assentado nas mídias digitais e a comunicação do presente imediato têm colocado em crise o processo político, resultando no que o filósofo intitula como “desme142

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diatização”, em outros termos, o descrédito das instituições, principalmente como protagonista das mediações sociais e políticas na medida em que: A sociedade de opinião e de informação de hoje se apoia nessa comunicação desmediatizada. Todos produzem e enviam informação. A desmediatização da comunicação faz com que jornalistas, esses “fazedores de opinião” e mesmo sacerdotes da opinião, parecerem completamente superficiais e anacrônicos. A mídia digital dissolve toda classe sacerdotal. A desmediatização generalizada encerra a época da representação. Hoje, todos querem estar eles mesmos diretamente presentes e apresentar a sua opinião sem intermediários. A representação recua frente à presença ou à copresentação (Han, 2018, p. 37).

Em linhas gerais, os efeitos da desmediatização atingem em cheio as instituições democráticas no Brasil, colocando, assim, a democracia representativa em risco, principalmente pelo desprezo à mediação como instrumento de participação social, elemento imprescindível nas trocas políticas e sociais. Nisso se observa nos notáveis ataques a jornalistas, cientistas, políticos e outras instituições mediadoras nas relações práticas do espaço público. O reflexo dessa mudança na política contemporânea brasileira reside na intuição de que políticos populistas estão muito mais próximos dos seus eleitores, sem, para isso, necessitar da mediação de instituições, como, por exemplo, os partidos políticos, centrais sindicais e jornais, para com a dieta e a difusão de informações e comunicações, desencadeando certa anomalia na estrutura da esfera pública, como consequência, reconfigurando o cenário nacional. Ao mesmo tempo que tais transformações foram acontecendo, a ideia de que da internet surgia uma “nova política democrática” foi se turvando. A polarização política, o discurso de ódio e a disseminação de boatos nas redes sociais nublaram o céu azul da utopia de uma política sem intermediação. Mais do que isso, tais fenômenos evidenciaram que um novo tipo de intermediação se configurou. A intermediação passou a ser realizada pelas plataformas de internet, como grandes redes sociais, empresas com forte base tecnológica que se viabilizaram a partir da inserção da computação e das redes de computadores em nossas vidas (Cruz, 2019, p. 19).

Nesses termos, pode-se constatar que as eleições presidenciais no Brasil, em 2018, demonstram como os efeitos dessa transformação impactaram consideravelmente as trocas e disputas políticas no País, demonstrando que o declínio da verdade como elemento precípuo da política acaba substituído pela credulidade de grupos políticos, tanto vinculados 143

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à esquerda quanto à direita, principalmente, muitos, inclusive, com fortes inclinações neofascistas. Portanto, o Brasil em tempos de pós-verdade revela traços nos quais os engendramentos supõe uma crise institucional, concomitante à desconfiança em torno das instituições de mediação, como, por exemplo, as representações político-partidárias no País, mas acentuado pela juridificação do poder e politização do direito no Brasil, dimensões que demonstram a judicialização da política, como nos desdobramentos em volta da Operação Lava Jato8, cujo o resultado se expressa na eleição de Bolsonaro em 2018. Portanto, destaca-se que o colapso acerca da intermediação da comunicação política no Brasil surge atrelado às características da pós-verdade, mas, especialmente, relacionado aos eventos das manifestações de junho de 2013, agudizados no decurso dos anos de 2014 e 2016 pelas intensas mobilizações sociais e o impeachment de Dilma Rousseff, tendo como culminância 2018, uma vez que sublinhou que os “[…] processos eleitorais como o de 2018 se reflete[m] tanto na aparência da campanha como no resultado que ela produz” (Cruz, 2019, p. 22), no cenário brasileiro, produzindo a dimensão máxima da pós-verdade, ou seja, antipolítica. Efeito dominó: implicações da pós-verdade na democracia brasileira

É preciso pontuar de início que entre os efeitos mais emblemáticos na política contemporânea, pode-se frisar a questão da democracia. Para tanto, destaca-se que os efeitos da pós-verdade na democracia brasileira são visíveis doravante ao tecnopopulismo, a milícia digital e o discurso de ódio como parte da agenda de grupos políticos no Brasil. É necessário pontuar que a pós-verdade, como sustenta Tiburi (2018), realça que “[…] a democracia como governo do povo é evidentemente, deixado de lado pelo próprio povo, conduzido a crer que é melhor sem política” (Tiburi, 2018, p. 88). Dito isto, a pós-verdade no Brasil revela determinadas fissuras e efeitos negativos para com a democracia, posto o caráter antipolítico, no qual as implicações acentuam a desconfiança nas instituições democráticas, cujo o efeito dominó aponta para um cenário pós-democrático. Por “Pós-Democrático”, na ausência de um termo melhor, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase volta a se identificar, sem pudor. No Estado Pós-Democrático a democracia permane-

8 Nome alusivo ao conjunto de operações realizadas por uma força-tarefa da Polícia Federal e membros do Ministério Público Federal, em articulação com juízes federais, com suposto objetivo de acabar com a corrupção política e institucional no Brasil, conforme (Bello; Capela; Keller, 2021).

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ce, não mais com um conteúdo substancial e vinculante, mas como mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador (Casara, 2017, p. 23).

Por esse prisma, observa-se que os ataques dirigidos à democracia no Brasil nos últimos cincos anos colocam em relevo um aspecto distorcido, no qual se mantém a democracia, porém, sem o seu conteúdo formal/ideal, no qual possibilite o exercício representativo, participativo e cidadão. Não obstante, os impasses democráticos no Brasil, enfatiza Avritzer (2016), esbarram na condição do crescimento de políticas de inclusão social, assim como na viabilidade da participação popular e representativa, posto que a prática democrática pressupõe o exercício da cidadania, mediante o diálogo e debate no espaço público. Contudo, na pós-verdade, toda a dimensão democrática se esfacela dado à falta de confiança na viabilidade da participação como representação. Para Sérgio Abranches et al. (2019), os desdobramentos políticos no Brasil, especialmente com a eleição presidencial de 2018, colocam em relevo o fim do “[...] ciclo político que organizou o presidencialismo de coalizão brasileiro nos últimos 25 anos e acelerou o processo de realinhamento partidário que já estava em curso, pelo menos desde 2006” (Abranches et al., 2019, p. 8). Dessa forma, compreender a natureza da pós-verdade e seus impactos na democracia brasileira consiste termos como fluxo de análise o fato de que o fenômeno aparece como uma ponta do icerbeg, cujo o sintoma, sinaliza um nítido risco para a democracia, dado a disseminação de notícias falsas, discursos de ódios, além de um aparato de digital, no qual denota que: Há uma complexa atividade mostrando que a midiatização no lugar da uniformidade social, gera mais divergências na ordem socioinformativa. Sintomas se espalham por todas as partes sugerindo diagnósticos para se enfrentar esta nova ordem (des) informativa. Mas algo deve ser pensado, indo além das cruzadas de contenção (Fausto Neto, 2019, p. 195).

Neste sentido, consoante a Giorgio Agamben (2009), é defronte a contemporaneidade que se vislumbra uma forma singular de constituir um liame com o próprio tempo, tomando as devidas distâncias e articulando possíveis centelhas reflexivas entre a democracia brasileira e a pós-verdade, identificando por sua vez, alguns acontecimentos, como o tecnopopulismo, a milícia digital e o discurso de ódio, dado as suas perspectivas antipolíticas que agudizam a democracia brasileira e evidenciam reflexos peculiares da pós-verdade. Tecnopopulismo

Ao se averiguar o desenvolvimento tecnológico no Brasil e no mundo, visualiza-se a força da globalização, seja pelos aspectos positivos e negati145

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vos, mas sobretudo, um caminho no qual não se tem mais volta, alterando significativamente o fluxo da comunicação e informação, principalmente com advento das mídias digitais. No Brasil de hoje, com 210 milhões de habitantes, há, segundo estimativa oficial de 2017, a única disponível, mais de 120 milhões de usuários de WhatsApp. Na realidade, a cifra deve estar mais próxima de 136 milhões, ou seja: mais 60% dos brasileiros se servem do aplicativo de troca de mensagens. Segundo maior mercado do mundo para o WhatsApp, o Brasil só perde para a Índia, que tem 400 milhões de adeptos. Lá, porém, a população é de 1,3 bilhão – 29,28% dos indianos usam o aplicativo. Já o Facebook tem 120 milhões de usuários no Brasil – o quarto maior mercado da plataforma, perdendo apenas para Índia, Estados Unidos e Indonésia (Mello, 2020, p. 22).

A descrição precisa de Mello (2020) demonstra a relevância da tecnologia, especialmente das redes sociais como principais ferramentas comunicacionais, circunstância que descortina o terreno fértil para o tecnopopulismo. Segundo Guerra (2020), o neologismo foi disposto a partir das reflexões empreendidas por Arthur Lipow e Patrick Seyd, com as quais se define uma transformação direta de participação democrática, ou seja, participação política face a face, para uma participação estritamente digital, com fortes elementos populares. Sem embargo a confluência da tecnocracia com o neopopulismo em um ambiente carente de regas, dominados por algaritmos e novas tecnologias tais como a Big Data e o SEO, proporcionou uma deturpação do processo que atualmente coloca em perigo a própria democracia e fomenta o ódio e a formação de bolhas de opinião sem o diálogo necessário para a manutenção do sistema democrático (Guerra, 2020, p. 1).

Logo, o tecnopopulismo avulta determinadas facetas políticas, na qual a expressão maior gira em torno da negação das instituições democrática, sobretudo a perspectiva de participação efetiva, corpo a corpo, para o ambiente digital, cujo o controle se encontra nas mãos dos próprios usuários das redes digitais, a partir do imediato contato com seus políticos, evidenciando um espaço aberto para todos os tipos de manipulação de informação política, doravante a utilização de empresas especializadas em uso de dados, sendo que torna-se “[…] inegável que essas ferramentas algorítmicas se interliguem com o campo político-democrático, ainda mais quando há uma mistura entre interesses públicos e particulares” (Dias; Kampff, 2020, p. 525).

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Milícia digital

Dentre as inúmeras razões para se constatar a ameaça à democracia brasileira, destaca-se que a milícia digital se configura como uma das mais nocivas para política contemporânea no Brasil. De modo geral, o termo surge em contexto da massiva disseminação de notícias falsas no Brasil, especialmente, no calor das eleições de 2018, a partir de inúmeras denúncias acerca da contratação de serviços de impulsionamento digital em massa de notícias falsas: As milícias digitais alimentadas por fazendas de fake news em escala industrial surfando na onda antiestablishment só cresceram desde 2013, um contingente de eleitores distópicos que se vale de uma comunicação descentralizada como o WhatsApp para escrachar, zombar, descontruir reputações ou celebrá-las. Uma extrema direita que mistura uma militância orgânica com cidadãos zumbis, bots e uma opinião pública forjada pela era da comunicação automatizada (Bentes, 2018, p. 6).

A descrição supracitada demonstra que as milícias digitais estão para pós-verdade, assim como os políticos e engenheiros do caos estão para com a incitação e apelo as emoções. No entanto, o dinamismo das milícias digitais está assentado em campanhas de desinformação, dispostas a influenciar a qualquer custo processos eleitorais e figuras públicas, a partir de um conjunto de informações falsas, provocando a disseminação de discursos de xenofobia, misoginia, homofobia e ódio, no claro intuito de influenciar a sociedade brasileira. Agora se sabe, há inclusive investigações a respeito, que a campanha de Bolsonaro utilizou agências de ciberguerras para se infiltrar no WhatsApp. […] Uma série de empresas privadas financiou a difusão de propaganda no WhatsApp a favor de Bolsonaro. Foram investidos milhões de dólares para distribuição de milhões de mensagens favoráveis a Bolsonaro e, ao mesmo tempo, difundindo mentiras, tais como: seu adversário, o candidato do PT, Fernando Haddad, teria distribuído um “kit gay” para crianças de seis anos nas escolas; o homem que apunhalou Bolsonaro seria um militante do PT e amigo do (ex-presidente) Lula, inclusive se divulgou uma foto, evidentemente manipulada, de um comício de Lula em que aparecia a seu lado esse mesmo homem que apunhalou Bolsonaro. Também se difundiu a foto de uma conhecida atriz de televisão e cinema com os olhos roxos após ter levado uma surra por ter gritado em favor de Bolsonaro, coisa que era falsa, porque a atriz falecera há dois anos. Outra afirmação que se disseminou foi a de que, se Haddad ganhasse a eleição, sua primeira medida seria promulgar uma lei para legalizar a pedofilia (Ramonet, 2019, p. 127-128). 147

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De modo geral, Ramonet (2019) apresenta exemplos relevantes de como o uso em escala industrial de agências especializadas na produção de desinformação influencia e é capaz de colocar em questão o Estado democrático de direito. Discurso de ódio

Antes de mais nada, sobressai observar que o cenário abordado até o momento, concomitantemente aos reflexos da pós-verdade no Brasil, reporta elementos maléficos para a sociedade brasileira, especialmente para a democracia. Neste sentido, destacam-se as análises de Marcelo Mattos (2020): O conteúdo das declarações de Bolsonaro – nos últimos trinta anos, na campanha eleitoral e agora na Presidência – envolve todo tipo de apologia à violência, especialmente contra os chamados “bandidos” e “vagabundos”, mas também contra tudo o que identifica como “esquerda”, o que inclui partidos e partidários de todo o espectro que vai da centro-esquerda moderada ao que é comumente definido como “esquerda radical”. Mas “esquerda”, na fala de Bolsonaro, inclui também todo tipo de movimento em defesa dos direitos humanos, contra as opressões de gênero e a LGBTfobia, ecológico e de defesa indígena, além de organizações de professores, cientistas, artistas e produtores culturais em sentido amplo. A apologia à tortura e às ditaduras militares latino-americanas se combina, em suas falas, assim como nas de seus filhos e apoiadores mais próximos, com um discurso de ódio misógino, racista, LGBTfóbico e xenófobo, difundido abundantemente através das redes sociais (Mattos, 2020, p. 167-168).

Em linhas gerais a maximização do discurso de ódio através das milícias digitais, principalmente aquele mobilizado por políticos, como o presidente eleito em 2018, conforme sustenta Mattos (2020), demonstra um evidente neoconservadorismo atrelado a pressupostos neofascistas, cujo o impacto agudiza a participação social das minorias, frente ao desmantelamento público de direitos sociais há muito garantido pela sociedade. Em suma, o discurso de ódio às minorias detona aspectos elementares do fascismo, segundo o qual se modifica e se reconfigura no Brasil, sobretudo com advento das redes sociais e o seu aparato tecnológico como destaca Tiburi (2020): Podemos dizer que o fascismo é uma ideia migrante que se adapta ao momento histórico e às condições geográficas ou, melhor ainda, podemos dizer que essa ideia surge e ressurge em determinadas condições geopolíticas. Há uma questão geográfica em 148

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jogo, pois o fascismo precisa de um lugar e há, evidentemente, uma questão histórica, pois o fascismo estabelece no tempo. […] A ideia do fascismo se modifica conforme tais condições de possibilidade e se efetiva na prática de uma maneira diferente na Europa, na América Latina ou na Ásia (Tiburi, 2020, p. 83).

Deste modo, a difusão do discurso de ódio no Brasil reflete um efeito nocivo da pós-verdade na democracia, sendo que “[…] se caracteriza pelas manifestações de pensamentos, valores e ideologias que visam inferiorizar, desacreditar e humilhar uma pessoa ou um grupo social” (Trindade, 2022, p. 8), isto é, um nítido componente fascista, reconfigurado na lógica da antipolítica com um “turbofascimo” (Tiburi, 2020). Considerações finais

Ao analisar os efeitos políticos da pós-verdade no Brasil contemporâneo, procuramos refletir sobre os impactos do respectivo fenômeno para democracia brasileira, cujo as evidências e descrições ao longo do texto indicam que vivemos em uma democracia com nítidos contornos “pós-democrático”, portanto, com ameaça constante à sociedade democrática. Neste sentido, argumentou-se que o surgimento da pós-verdade na contemporaneidade emerge em um contexto de transformações sociais e tecnológicas, cujo os aspectos políticos têm revelado um assombroso descrédito para com as instituições democráticas, perceptíveis em muitos eventos políticos a nível internacional. Na mesma medida, procurou-se destacar que o colapso acerca da intermediação da comunicação política no Brasil surge atrelado às características da pós-verdade, mas, especialmente, relacionado aos eventos das manifestações de junho 2013, agudizados no decurso dos anos de 2014 e 2016 pelas intensas mobilizações sociais e impeachment de Dilma Rousseff, tendo como culminância 2018, uma vez que sublinhou que os “[…] processos eleitorais como o de 2018 se reflete tanto na aparência da campanha como no resultado que ela produz” (Cruz, 2019, p. 22), no caso brasileiro, produzindo a dimensão máxima da pós-verdade, ou seja, antipolítica. Deste modo, a análise acerca da democracia brasileira no contexto da pós-verdade revelou como a desconfiança nas instituições democráticas, a difusão em larga escala de notícias falsas no Brasil, aprofunda a polarização política, com sérios riscos para com a manutenção do Estado democrático de direito na medida em que se observa efervescência do tecnopopulismo alinhado a milícias digitais, dispostas a influenciar e disseminar discursos de ódio. Em suma, a política na rede e a rede na política na pós-verdade no Brasil padecem de um significativo hiato acerca de um controle social, 149

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tendo em vista que os efeitos e fissuras revelam a ausência de valores éticos e normativos, cujo os reflexos são patentes para com a democracia no Brasil, colocando a mesma em risco ou sob ameaça constante. Nesse sentido, ressalta-se a importância de agências de verificação de notícias como forma de romper com a lógica antipolítica, alicerçada na desinformação da pós-verdade, buscando compreender como se operacionaliza e constitui os dispositivos de poder em torno da verdade, reconhecendo a interdependência entre tecnologia e política na contemporaneidade, assim como a sua relação para com os desafios da democracia brasileira. Referências

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CAPÍTULO 12 A HISTÓRIA DA EUGENIA NA EUROPA E 1 SEU IMPACTO NA BIOÉTICA MODERNA Diego Marques Gonçalves2 Ezequiel Mariano Teixeira da Costa3

Introdução

No final do século XIX, a eugenia surgiu como um movimento científico e social que buscava melhorar a raça humana por meio da seleção artificial. Desde então, a eugenia foi abordada na legislação europeia, passando por diversos debates e leis que, em muitos casos, tiveram consequências desastrosas para a humanidade. Este artigo científico tem como objetivo apresentar um breve estudo sobre como a seleção artificial foi abordada na legislação europeia, desde os primeiros debates no final do século XIX até as leis de esterilização forçada e o Holocausto durante o século XX. Ao longo dos anos, a eugenia na legislação europeia teve ações e consequências graves, como a criação de políticas eugênicas durante a Primeira Guerra Mundial, a implantação de leis de esterilização em diversos países europeus e, infelizmente, a influência da eugenia no Holocausto e no genocídio de grupos considerados “inferiores”. É importante destacar que essas ações resultaram em graves violações dos direitos humanos, sendo consideradas por muitos como uma mancha na história. Após a Segunda Guerra Mundial, houve um esforço para acabar com as políticas eugênicas na Europa, mas a eugenia ainda teve implicações na socie1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Doutor em Desenvolvimento Regional pela UNISC. Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela UNISC. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela UNIFRA. Bacharel em Direito. Professor da URI/Santiago. Advogado. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2087394554023992. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6983-7149 3 Graduado em Direito pela URCAMP e Mediador Técnico na Garrastazu Advogados. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7318386392123257. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6658-489

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dade e cultura europeia. Atualmente, a legislação europeia sobre manipulação genética e seleção artificial é mais restritiva e tem como objetivo garantir a proteção dos direitos humanos e a integridade do patrimônio genético humano. Este estudo também tem como objetivo analisar as implicações da eugenia na legislação e na sociedade europeia, incluindo o papel da legislação na construção social da eugenia, as consequências da eugenia na sociedade e na cultura europeia, bem como as implicações da eugenia na bioética e na ética médica. Em suma, este artigo tem como objetivo contribuir para o debate acadêmico e jurídico sobre a eugenia e a legislação na Europa, oferecendo uma breve análise histórica e bioética desse movimento que ainda tem implicações na sociedade europeia. Para tanto, dividiu-se o texto em três seções. A primeira delas dedicada a compreender as origens da eugenia; a segunda aborda as consequências decorrentes da eugenia; e, por último, a terceira concerne aos reflexos da eugenia na legislação posterior à guerra. Utilizou-se dos métodos bibliográfico e qualitativo de pesquisa. As origens do movimento eugenista (final do séc. XIX)

A eugenia, termo cunhado pelo cientista britânico Francis Galton em 1883, foi definida como o estudo ou aplicação dos princípios da seleção hereditária aplicados às sociedades humanas (Chitty, 2009, p. 25-28). A ideia por trás da eugenia era a de melhorar a raça humana através do controle da reprodução. Galton, que era primo de Charles Darwin, aplicou as teorias darwinianas da seleção natural e da evolução às sociedades humanas, argumentando que o homem deveria controlar a seleção natural em vez de ser controlado por ela. Nesse sentido, Muitos darwinistas sociais insistiam que a biologia era o destino, pelo menos para os inaptos, e que um amplo espectro de características socialmente prejudiciais, variando do “pauperismo” à doença mental, resultava da hereditariedade. Tal raciocínio sugeria que a procriação dos aptos deveria ser encorajada e a dos inaptos limitada (Kevles, 1985, p. 20, tradução nossa).

Embora o termo eugenia se concretize em Galton, o conceito de eugenia se mostra anterior. Podemos verificar que em A República de Platão já era sugerido que a reprodução humana deveria ser assunto do Estado, e, posteriormente, acrescentou que deveria haver um sorteio para que só houvesse casamento entre os mais “desenvolvidos” (Curado, p. 230). Vemos também nas culturas de Atenas e Esparta a prática do infanticídio, bem como na sociedade romana que nas Doze Tábuas do Direito Romano, especificamente na quarta tábua, previa que crianças disformes deveriam ser descartadas. Inclusive, Sêneca diz que: 154

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Why should I hate him whom I most help when I rescue him from himself? No one, surely, hates his limb as he amputates it. His action is not one of anger, just a painful cure. We put down mad dogs; we kill the wild, untamed ox; we use the knife on sick sheep to stop their infecting the flock; we destroy abnormal offspring at birth; children, too, if they are borm weak or deformed, we drown. Yet this is not the work of anger, but of reason - to separate the sound from the worthless (1995, p. 32)4

Ademais, até o cristianismo contrapor-se fortemente, a prática da eugenia era algo comum. Todavia, a proibição do casamento entre primos que a igreja a partir de 506 no Concil of Adge proibiu (Morgenstern, 2014), se caracterizava como uma eugenia negativa, que representa a proibição do casamento e procriação de indivíduos por suas características genéticas. Por sua vez, na Europa, especificamente na Inglaterra, foi onde o movimento eugenista teve sua origem formalizada, onde Galton publicou seu livro Hereditary Genius, em 1869. O livro defendia a tese de que a genialidade era transmitida por hereditariedade e que, portanto, as elites deveriam se unir e se reproduzir para produzir uma nova geração de gênios. A partir daí, o movimento se espalhou por outros países europeus, como França, Alemanha e Suécia, entre outros. As primeiras propostas de legislação eugênica na Europa

No final do século XIX, as primeiras propostas de legislação eugênica começaram a surgir na Europa. Na França, em 1888, o Dr. Paul Broca, um dos fundadores da antropologia física, propôs a criação de uma “comissão eugênica” para investigar a hereditariedade em crimes e na pobreza (GOÉS, 2015, p. 32). Na Alemanha, em 1895, Alfred Ploetz fundou a Sociedade Alemã para a Raça Humana, que defendia a esterilização de pessoas consideradas “inferiores” e a promoção da reprodução de pessoas consideradas “superiores”. A partir de então, surgiram diversas propostas de legislação eugênica na Europa, como a proibição do casamento entre pessoas consideradas “inferiores”, a esterilização forçada de pessoas com deficiências físicas ou mentais e a promoção da reprodução entre pessoas da mesma “raça”. Pois, como acrescenta Lombardo (2011) “acreditava-se que algumas raças eram naturalmente superiores a outras e que a mistura entre elas resultaria em degeneração e inferioridade”. 4 Tradução do autor: “Por que eu deveria odiar aquele a quem eu mais ajudo quando o salvo de si mesmo? Ninguém certamente odeia seu membro quando o amputa. Sua ação não é de raiva, apenas uma cura dolorosa. Matamos cachorros raivosos; matamos o boi selvagem e indomável; usamos a faca em ovelhas doentes para evitar que infectem o rebanho; destruímos filhos anormais ao nascerem; crianças, também, se nascem fracas ou deformadas, afogamos. No entanto, isso não é obra de raiva, mas de razão – separar o saudável do inútil”.

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Um pensamento que pode ser resumido um século depois, em 1927, no caso histórico Buck v. Bell, o juiz Oliver Wendell Holmes Jr. proferiu uma frase icônica na Suprema Corte Norte Americana, na qual permitiu que os estados esterilizassem seus residentes à força, com o objetivo de evitar que pessoas socialmente inadequadas e com deficiências mentais tivessem filhos. A frase proferida pelo juiz resume até hoje como um eugenista pensa: “Três gerações de imbecis são suficientes” (Ibidem). Ações e consequências da eugenia no séc. XX

A Primeira Guerra Mundial foi um divisor de águas na história da Europa, não apenas do ponto de vista militar, mas também do ponto de vista social e político. Nesse contexto, a eugenia começou a se desenvolver como uma teoria que visava melhorar a raça humana por meio de medidas que restringiam a reprodução de indivíduos considerados “inferiores”. Essa teoria encontrou terreno fértil em vários países europeus, que passaram a adotar políticas eugênicas como forma de garantir a pureza racial e impedir a degeneração da espécie humana. Na Alemanha, além do ressentimento pelo resultado da Primeira Guerra Mundial com o Tratado de Versalhes e a “paz punitiva” imposta, por exemplo, a eugenia foi adotada como uma política oficial pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), que chegou ao poder em 1933 (Kershaw, 2000, p. 356). E com a chegada no poder, notório foi que a eugenia passaria a ser vista como uma ferramenta para a criação de uma sociedade ariana pura, livre de indivíduos considerados “inferiores”, como judeus, ciganos, homossexuais e portadores de deficiência física e mental. Essa política de exclusão e eliminação de grupos teve seu apogeu no que ficou conhecido como o Holocausto, um dos maiores genocídios da história. A influência da eugenia no Holocausto e suas consequências na Europa

Durante o regime nazista na Alemanha, a eugenia foi usada como uma ferramenta para a eliminação sistemática de grupos considerados “inferiores” na Segunda Guerra Mundial. Essa política de exclusão e eliminação foi oficializada em 1935 com a adoção das Leis de Nuremberg, são elas a Lei de Cidadania do Reich e a Lei de Proteção e Sangue e da Honra Alemã que evidenciavam a vontade guardada por anos pelos nazistas que buscavam uma sociedade ariana, por isso: Os legisladores nazistas se voltaram então para a genealogia familiar como forma de definição do que eles denominavam “raça judaica”. Pessoas com três ou mais avós nascidos na comunidade religiosa judaica passaram a ser considerados judeus por lei, pois os avós nascidos em uma comunidade re156

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ligiosa israelita eram “racialmente” considerados judeus e, desta forma, sua condição “racial” era transmitida para seus filhos e netos. Pela lei, na Alemanha os judeus não eram cidadãos, mas “súditos do estado (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, 2023b).

Ainda é possível notar que na Europa do século XX, a eugenia se manifestou de diversas maneiras na legislação e nas políticas públicas dos países. Embora tenha havido certa variabilidade na forma como as políticas eugenistas foram implementadas, em geral, essas ações eram justificadas com base em argumentos científicos, embora tais argumentos fossem frequentemente baseados em premissas pseudocientíficas e teorias racistas que visavam perpetuar desigualdades sociais. Por fim, é necessário reforçar que a eugenia na legislação europeia do século XX trouxe consigo inúmeras consequências. As políticas eugênicas afetaram a vida de milhares de pessoas, levando à esterilização forçada e à exclusão social de grupos considerados “inferiores”. Essas políticas também tiveram um papel significativo no Holocausto e no genocídio de grupos minoritários durante a Segunda Guerra Mundial, tendo influenciado diretamente a ideologia nazista. O surgimento de leis de esterilização na Europa no início do séc. XX

A partir da década de 1920, começaram a surgir leis de esterilização em vários países europeus como forma de impedir a reprodução de indivíduos considerados “inferiores”. Essas leis foram inspiradas na teoria da eugenia, que defendia a seleção artificial de características genéticas desejáveis em detrimento daquelas consideradas indesejáveis. Na Suécia, por exemplo, a Lei de Esterilização Compulsória de 1934 autorizou a esterilização de indivíduos com deficiência mental ou física, bem como de pessoas com histórico de doenças hereditárias e afetou cerca de 63.000 pessoas (Ekerwald, 1999, p. 4). Na Itália, por meio de lei, o governo fascista de Mussolini implementou políticas de incentivo à reprodução de casais “superiores” e esterilização dos “inferiores” (Gillette, 2003). Na Alemanha, a Lei para a Prevenção de Doenças Hereditárias Graves, aprovada em 1933, autorizou a esterilização de pessoas com deficiência mental ou física, bem como de portadores de doenças hereditárias. Essa lei foi responsável pela esterilização de cerca de 400.000 pessoas e serviu de base para as políticas de genocídio adotadas pelo regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, 2023, 2023a). Por fim, importante acrescentar que essas leis permaneceram em vigor após o fim da Segunda Guerra Mundial. A Dinamarca, por sua vez, 157

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manteve sua legislação eugênica até 2014, quando revogou a lei de esterilização coercitiva que estava em vigor desde 1929 (Zylberman, 2008, p. 945). Alguns países da União Europeia até hoje possuem legislação sobre esterilização forçada como demonstra o gráfico abaixo do relatório de setembro de 2022 do Forum Disability European: Forced sterilisation of persons with disabilities in the European Union: - Percentagem de mulheres afetadas pela esterilização forçada na União Europeia

Figura 1

Fonte: EDF (2022, p. 13).

Por fim, o relatório citado acima também traz que a própria Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women (CEDAW), em seu art. 12, preserva o direito das mulheres. Bem como o Council of Europe Convention on preventing and combating violence against women and domestic violence (Istanbul Convention), em seu art. 39, e o Rome Statute of the International Criminal Court, em seu art. 7, promulgado no Brasil pelo Decreto Nº 4.388, em 25/09/2002. Portanto, não deixando dúvidas de que o ultraje dessas legislações configura o não cumprimento da preserva158

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ção dos direitos humanos e deve ser tratado como crime contra a humanidade perante as cortes nacionais e internacionais (Ibidem, pág. 10-11). A eugenia na legislação europeia pós-guerra e a bioética

Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa testemunhou o declínio da eugenia como movimento político e científico. No entanto, a eugenia continuou a influenciar a ciência e a sociedade europeias de maneiras sutis e complexas. Além disso, a manipulação genética e a seleção artificial de características ainda são tópicos controversos na legislação europeia atual. Nesta seção, serão discutidos o fim das políticas eugênicas na Europa após a Segunda Guerra Mundial, a ressignificação da eugenia na ciência e na sociedade europeia e a legislação europeia atual sobre manipulação genética e seleção artificial. O fim das políticas eugênicas na Europa após a Segunda Guerra Mundial

Como vimos, a eugenia foi amplamente promovida na Europa no final do século XIX e início do século XX como uma forma de melhorar a qualidade da população e evitar a “degeneração” genética. No entanto, a eugenia foi amplamente associada aos horrores do Holocausto, que envolveram a seleção e extermínio de grupos étnicos considerados “inferiores” pelos nazistas. Esse evento histórico desacreditou a eugenia como movimento político e científico na Europa. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, tornou-se uma das principais bases jurídicas para a condenação da eugenia. O artigo 1 da declaração afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). Esse princípio se opõe diretamente à ideia de que certos grupos de pessoas são geneticamente superiores a outros e, portanto, merecem mais direitos ou privilégios. O fim das políticas eugênicas na Europa após a Segunda Guerra Mundial foi acompanhado por uma série de avanços científicos e tecnológicos que permitiram uma melhor compreensão da genética humana. A genética médica, que estuda a relação entre os genes e as doenças humanas, permitiu a identificação de mutações genéticas que aumentam o risco de desenvolver doenças hereditárias (Souza, 2003). Essa descoberta tem sido usada para aconselhar os pacientes sobre o risco de passar uma doença genética para seus filhos e para desenvolver tratamentos mais eficazes para essas doenças. A ressignificação da eugenia na ciência e na sociedade europeia

A ressignificação da eugenia após a Segunda Guerra Mundial trouxe novas discussões sobre a manipulação genética e suas possibilidades. Atualmente, com o avanço tecnológico na área da genética, é possível fa159

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zer modificações no genoma humano, o que pode gerar questionamentos éticos e morais (Hupffer; Berwig, 2020). A possibilidade de manipulação genética traz a reflexão sobre a seleção de características, que antes era realizada por meio da esterilização compulsória de indivíduos considerados “indesejáveis”. A eugenia, então, assume uma nova face e passa a ser discutida em um contexto em que as tecnologias permitem escolher características desejadas em seres humanos. A discussão sobre a eugenia moderna abrange temas como a engenharia genética, a terapia genética e a seleção artificial (Schneider, 2015). A engenharia genética consiste na modificação de genes em células vivas, enquanto a terapia genética visa a cura de doenças genéticas, sendo que ambas as práticas envolvem a modificação genética. Já a seleção artificial é uma técnica que consiste na escolha de características em seres humanos, sem que seja feita a modificação genética (Ibidem). Essa técnica levanta questões éticas relacionadas à igualdade e à justiça social, uma vez que a seleção artificial pode ser vista como uma forma de privilegiar indivíduos com determinadas características. Na Europa, a discussão sobre a manipulação genética está presente em diversos documentos legais que buscam regulamentar a prática. A Convenção de Oviedo é um exemplo de tratado internacional que trata dos Direitos Humanos e da biomedicina. Este documento tem como objetivo proteger a dignidade humana e garantir o respeito pelos direitos humanos e pela liberdade individual no campo da biomedicina (CONSELHO DA EUROPA, 1997). A Convenção proíbe a clonagem humana e a modificação genética germinal, mas permite a manipulação genética somática para fins terapêuticos. Ainda assim, a regulamentação europeia em relação à manipulação genética é alvo de críticas. Em 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que organismos geneticamente modificados obtidos por mutagênese (modificação genética em que não há introdução de material genético exógeno) se enquadram nas leis que regem a liberação de organismos geneticamente modificados. Isso significa que os organismos obtidos por mutagênese estão sujeitos a testes de segurança e rotulagem. A decisão gerou controvérsias, uma vez que a manipulação genética por meio de mutagênese não envolve a inserção de genes de outras espécies, mas sim a seleção de mutações existentes na própria espécie. A regulamentação europeia, então, é vista por alguns especialistas como muito restritiva em relação à manipulação genética, o que pode impedir o avanço da ciência nessa área (Souza, 2020). A legislação europeia atual sobre manipulação genética e seleção artificial

Com o avanço da tecnologia genética e da biotecnologia, a União Europeia se deparou com a necessidade de regulamentar a manipulação 160

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genética e a seleção artificial. Desde a década de 1990, a legislação da União Europeia tem sido aprimorada para proteger os direitos humanos e garantir que a biotecnologia seja utilizada de forma responsável. A legislação da União Europeia sobre manipulação genética e seleção artificial tem como objetivo principal proteger a saúde e o meio ambiente, bem como garantir que a biotecnologia seja utilizada de forma responsável e ética. Segundo Schönecker (2017, p. 184-187), a legislação europeia estabelece limites claros para a pesquisa e o desenvolvimento de produtos biotecnológicos, bem para o uso desses produtos em humanos e animais. A Diretiva 2001/18/CE5, por exemplo, estabelece os requisitos para a liberação de organismos geneticamente modificados no meio ambiente, incluindo testes de segurança e avaliação de risco (De Terán Velasco, 2003). Já a Diretiva 98/44/CE,6 sobre a proteção legal das invenções biotecnológicas, estabelece as condições para a proteção de invenções baseadas em material biológico, bem como para a comercialização desses produtos (Gómez, 2009). Além disso, a Comissão Mundial sobre Ética da Ciência e da Tecnologia da Unesco (Comest) publicou uma declaração em 2005 sobre a manipulação genética, destacando que para “atividades [que] podem conduzir a dano moralmente inaceitável, que seja cientificamente plausível, ainda que incerto, devem ser empreendidas ações para evitar ou diminuir aquele dano” (De Siqueira, 2005, p. 249). A declaração recomenda que a manipulação genética seja utilizada de forma responsável e que os direitos humanos sejam protegidos. Portanto, a legislação europeia atual sobre manipulação genética e seleção artificial busca garantir a segurança e proteção dos direitos humanos, garantindo que a biotecnologia seja utilizada de forma responsável e ética. Considerações finais

Em síntese, o presente artigo discutiu as implicações da eugenia na sociedade europeia. Foram apresentadas algumas legislações que colaboraram para a construção social da eugenia e como essa política teve consequências na sociedade e na cultura, como, por exemplo, o Holocausto. Também foi abordada a relação entre a eugenia e a bioética, bem como a ética médica. A eugenia foi uma política amplamente difundida na Europa no século XX e que resultou em consequências graves. Embora posteriormente a eugenia tenha sido condenada pelo mundo ocidental, ainda existem vestígios 5 Diretiva 2001/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à liberação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados e que revoga a Diretiva 90/220/CEE do Conselho. Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L 106/1, 17 abr. 2001. 6 Diretiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de julho de 1998, relativa à proteção jurídica das invenções biotecnológicas. Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L 213/13, 30 jul. 1998.

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dessa política em algumas práticas médicas, como a triagem genética. Por essa razão, é necessário continuar discutindo e investigando o impacto da eugenia na sociedade e na cultura, bem como nos sistemas de saúde atuais. Este artigo sugere que a abordagem crítica e histórica da eugenia pode auxiliar na compreensão das complexas interações entre ciência, direito, política e cultura. Ademais, a análise da legislação eugênica pode fornecer insights valiosos para a elaboração de políticas públicas que promovam a justiça social e os direitos humanos. Portanto, são necessárias pesquisas futuras que explorem mais profundamente as implicações da eugenia na legislação e na sociedade europeia. Em suma, é fundamental que as políticas públicas estejam pautadas em preceitos éticos, que reconheçam a dignidade humana e a igualdade de direitos. Assim, a investigação dos efeitos sociais, culturais e éticos das políticas de eugenia pode ajudar a evitar o uso indevido do conhecimento científico em detrimento da humanidade. Referências

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CAPÍTULO 13 MONITORAMENTO ELETRÔNICO: A UTOPIA DA LIBERDADE VIGIADA E AS REGRAS MÍNIMAS DE TÓQUIO PADRÃO 1 DAS NAÇÕES UNIDAS Lavinia Rico Wichinheski2

Introdução

Por muitos anos o cárcere tem assumido papel de grande relevância no que diz respeito ao controle social de condutas tipicamente consideradas criminosas. O mesmo tem demonstrado ser um espaço de deterioração e adestramento dos corpos, uma vez que além de promover a superlotação de casas prisionais, deixa os indivíduos à mercê da sua própria sorte, sem quaisquer instrumentos garantidores dos fundamentos da dignidade humana. O sistema carcerário brasileiro, além de não possuir uma infraestrutura mínima para a garantia dos direitos fundamentais do homem, revela-se um espaço torturante e humilhante. Assim, com a complexificação da sociedade e o aumento desenfreado do recrutamento de sujeitos junto ao cárcere, e as superlotações do sistema prisional brasileiro, o monitoramento eletrônico de presos tem assumido papel de desafogamento. Assim, o presente trabalho busca abordar de maneira crítica sobre o sistema de monitoramento eletrônico, prática que vem dividindo opiniões, visto que a tecnologia penal e o sistema prisional promovem um padrão de

1 Resumo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos, Violências Urbana e Rural e Segurança Pública..., na na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Bacharela em Direito. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul. Bolsista e integrante do grupo de pesquisa do CNPq Biopolítica e Direitos Humanos. Integrante voluntária do projeto de pesquisa e extensão REURB: Direito Social a Moradia Digna da Unijui. Integrante fundadora do grupo de pesquisa Rede de Mediação Sanitária da América Latina. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5275679196902268. E-mail: [email protected].

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vigilância e adestramento dos corpos, tais que traduzem ser ineficientes no que tange o combate ao aumento desenfreado à criminalidade. Nesse contexto, buscando responder o problema exposto, a referida pesquisa partindo do método exploratório hipotético-dedutivo, será estruturada da seguinte maneira: na primeira seção, serão abordados o sistema de monitoramento eletrônico e a maquinaria de poder sobre os corpos; na segunda seção, será abordada a função do dispositivos tecnopenais de monitoramento dos corpos, elucidando algumas de suas falhas e lacunas; por fim, na terceira e última seção, serão expostas as medidas mínimas de privação da liberdade do sujeito e a razão para a ultima ratio do direito penal, partindo da ideia da necessidade em nos espelharmos em modelos alternativos de resolução de conflitos. Maquinaria do poder: monitoramento eletrônico e a vigilância sobre os corpos

Vivemos tempos modernos que se traduzem sobre uma ordem de discurso de disciplina e adestramento sobre os corpos, na qual o homo sacer é o principal sujeito desta relação e é tido como objeto de aposta no jogo de conflito dos interesses políticos (Agamben, 2007). É nítida a relação de submissão e servidão voluntária das vidas nuas ao poder tirano do Estado, e com isso devemos nos questionar o porquê de uma maioria social ser fortemente convencida voluntariamente para debruçar-se sobre uma ordem de discurso decisória sobre as suas vidas baseada no poder e na ordem. Para Michel Foucault (1987, p. 164), o corpo humano corresponde a uma anatomia política à qual entra em uma maquinaria de poder, que irá definir o domínio sobre os corpos dos outros. Nesse sentido, o poder realiza um bom adestramento sobre os indivíduos, tal que funciona da seguinte maneira: “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. (Foucault, 1987, p. 195)

Hannah Arendt é clara ao dizer que “o poder, ao que tudo indica, é um instrumento de domínio, enquanto o domínio, assim nos é dito, deve a sua existência a uma “instinto de dominação” (Arendt, 2004, p. 52), nesse sentido, ao questionar sobre o porquê de uma maioria social debruçar-se voluntariamente diante do poder de discurso e ordem do Estado temos como resposta o fato de que este se manifesta de forma extrema e resume-se em todos contra um, já a extrema violência é um contra todos, sem instrumentos. Nesse sentido, a vontade de poder e a de obedecer encon166

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tram-se intrinsicamente interligadas, visto que há uma dominação absoluta, despercebida, em que violência irá aparecer onde o poder estiver em perigo, assim, falar do poder não-violento é tão cruel quanto aquele que é considerado violento. Segundo a autora a violência pode destruir o poder, mas sempre será incapaz de criá-lo. No campo da criminologia, a disciplina sobre os corpos é facilmente traduzida em adestramento social, basta observar a função social da pena e da punição, corpos adultos que de alguma forma se envolveram em algum conflito social, são simplesmente alocados em ruinas, e enclaves, sem que seja estudado as razões e circunstâncias do ato. O Estado através da ritualização do magistrado como detentor da única verdade priva a liberdade do sujeito e o condena à morte sem que exista de fato um homicídio, assim, nos traz o conceito de “vidas sem valores” e decide quem são seus homens sacros (Agamben, 2007). Os limites da sociedade encontram-se atrelados a tais conceitos, visto que aqueles que não são politicamente relevantes são simplesmente descartados do ideário social. Segundo Walter Benjamin, “a violência que o direito atual procura retirar das mãos dos indivíduos em todos os domínios da ação aparece como realmente ameaçadora e, mesmo vencida, ainda suscita a simpatia da multidão contra o direito (2011, p. 127). Com base na ideia de violência proposta por Walter Benjamin (2011), a ritualização da pena e da privação da liberdade do indivíduo como instrumento de pacificação e controle social não se detém apenas ao encarceramento, muito pelo contrário, tal situação se dá de forma multifacetária através da manifestação da violência e até mesmo através de dispositivos tecnopenais de discurso apaziguadores, sejam eles os instrumentos de monitoramento eletrônico dos indivíduos que merecem destaque no presente tópico. A penalidade contemporânea encontra-se sujeita à virtualização do poder e da ordem, há uma evidente manifestação da maquinaria sobre os corpos cujo a dinâmica vem da “construção do homo penalis, do homem penalizável e penalizado”, “um procedimento mais amplo e capilar de individuação e desindividuação, subjetivação e dessubjetivação, operado pela composição e sobreposição de diferentes dispositivos de poder” (Campello, 2019, p. 35). A penalização virtualizada constitui espaço do carcereiro de si mesmo, os dispositivos tecnopenais produzem a verdade de forma codificada, com emissão de beeps, LEDs, alertas vibratórios e linhas invisíveis delimitadoras de espaço. Os dispositivos de monitoramento eletrônico operam através do viés puramente imaginativo de liberdade, a liberdade é vigiada! O controle social que antes era limitado apenas dentro de uma prisão ou prédio, hoje sua tendência é de elasticidade, opera dentro das suas casas, nas ruas, nos 167

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bairros, no trabalho. A pulseira eletrônica elemento fundamental para virtualização da pena é tão severa quanto a cadeia, o sujeito continua preso estando livre, a vigilância dos corpos ultrapassa o viés físico, e atinge a vigilância sobre a mente: “Mais do que o sequestro das liberdades, o que está em jogo aqui é a produção, a concessão e o gerenciamento de liberdades sob medida” (Campello, 2019, p. 45). Com base na literatura de Walter Benjamin (2011), o controle social baseia-se no interesse do direito e do Estado em monopolizar a violência e, assim, garante o próprio direito. Contudo, os dispositivos modernos de penalização compreendem também uma ameaça ao Estado. Ainda segundo Arendt (2004): “O poder é de fato a essência de todo governo, mas não a violência. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada”. Com os dispositivos tecnopenais, a circulação dos indivíduos encontra-se regulada pelo autocontrole e responsabilização individual da pena: “[...] ao invés de inserir o corpo do indivíduo em um dispositivo de controle, instala-se o dispositivo de controle no corpo do indivíduo. Do corpo na prisão passa-se à prisão no corpo” (Campello, 2019, p. 46). Entretanto, ao converter o papel do condenado para o de agente prisional de si mesmo, o olhar de vigiar e punir revela-se através da autoexclusão impressa em seu próprio corpo. Há uma servidão maquínica e uma utopia frente à sua pretensão inicialmente inovadora, visto que suas premissas ainda se encontram sobre as sombras do cenário horrendo das estruturas prisionais, cujo elemento primordial é a espetacularização e mutilação dos corpos e da mente através de meios onipresentes da política penal. O monitoramento eletrônico promove a fabricação de indivíduos autocontrolados, na qual sua condutada já não diz respeito ao fator principal para a penalização, mas, sim, um conjunto sujeito-objeto, dados pessoais, jurídicos e digitais: “O usuário monitorado já não é mero sujeito fabricado, apartado da máquina que o fabrica, mas torna-se parte componente, interface de entradas e saídas” (Campello, 2019, p. 58). Para o autor Ricardo Campello (2019), os dispositivos tecnopenais, ou instalações high tech de controle sobre os corpos, e smart cities promovem uma marca identificatória de corpos marcados. O equipamento de controle estampa o crime como marca de identificação do sujeito executável, identifica a vida matável. Logo, o castigo converte-se em identidade. Espera-se que algum dia as prisões sejam apenas museus ou monumentos à desumanidade e a ineficácia do castigo social, assim como “a bola de aço e a corrente que foram substituídas pelos pátios da prisão, e os pátios da prisão que estão sendo substituídos pelos estabelecimentos semiabertos” (Schwitzgebel, 1969, p. 598). 168

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Pode-se dizer que no século XXI, o sistema carcerário opera como instrumento transformador dos corpos, uma máquina envelhecida composta por corpos segregados e apartados do universo social, “Corpo mutilado, soerguido como estandarte a cada novo massacre do qual ele é fatalmente o alvo” (Campello, 2019, p. 188). Em especial, os dispositivos tecnopenais alongam os braços do cárcere e aumentam a punição, uma vez que permanece a ideia de que nada deverá ser perdoado e tampouco humanizado. Segundo Foucault: “As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta” (1987). As críticas são tantas, mas de maneira alguma podemos deixar de elogiar e dar destaque que o sistema de monitoramento eletrônico está tão próximo da humanização das penas quanto o sistema de privação de liberdade em estabelecimentos prisionais. Além disso, o monitoramento eletrônico implica na redução de custos para o Estado diante de eventuais despesas pertinentes à segurança pública. Diante de todo o exposto, na próxima seção será discutido acerca das principais falhas e lacunas do sistema de monitoramento eletrônico no Estado Brasileiro sob o viés de uma verdade codificada. A verdade codificada do sistema de monitoramento eletrônico brasileiro

Com a complexificação do crime na sociedade, “A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar” (Foucault, 1987, p. 200). Com a globalização, evidenciam-se novas formas de vigilância sobre os corpos, tais como a citada implementação do monitoramento eletrônico dos presos, que diz respeito a um complexo sociotécnico constituído por hardwares, softwares, satélites artificiais, agentes prisionais, técnicos de monitoramento e usuários monitorados, situação em que evidencia que é no corpo e com o corpo que a máquina de instrumentalização das penas exerce seu poder sobre os indivíduos, bem como o corpo enquanto substrato biológico viabiliza exercícios de poder (Foucault, 1987). Em 1997, “A Argentina foi o primeiro país latino-americano a implementar o monitoramento eletrônico, tornando-se, pouco tempo depois, um dos parceiros de autoridades brasileiras que realizaram visitas técnicas ao país vizinho antes de implementarem a medida.” (Campello, 2019, p. 137); já em 17 de junho de 2008, através da Resolução 1587/20083, o Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos do país sancionou o uso de monitoração eletrônica nas prisões domiciliares. Sendo assim, “[...] a 3 Lei disponível para consulta em: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/resoluci%C3%B3n-1587-2008-141713.

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imagem virtual de prisioneiros automatizados, gerenciados pela mediação de correntes eletrônicas, encontra hoje sua mais completa atualização nos dispositivos de rastreamento de presos” (Campello, 2019, p. 161). A tecnologia prisional passa a operar na transformação do corpo do indivíduo em corpo maquínico: “corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (Foucault, p. 117). No Brasil, o sistema de monitoramento eletrônico foi inserido no ordenamento jurídico em 15 de junho de 2010 através da Lei 12.258/2010, tal que alterou a redação da Lei de Execução Penal nº 7210/1984. Nesse dispositivo, foi aprovada a permissão legal para a adoção do sistema de monitoramento eletrônico nas hipóteses de autorização de saída temporária, regime semiaberto e na prisão domiciliar, ainda em seu o artigo 146 - C prevê que o condenado deverá seguir uma série de deveres, sejam eles, abster-se de violar, modificar e danificar o dispositivo de monitoramento, sob pena de regressão de regime, revogação da saída temporária e advertência. A justificativa pela implementação da referida norma corresponde com a perspectiva do judiciário ver reduzida a população carcerária, sem que ocorra a diminuição do controle de vigilância sobre o apenado, enfatizando a maquinaria de poder sobre os corpos. Segundo o Ministério da Segurança pública4, no Brasil, em 2017, cerca de 51 mil pessoas utilizaram tornozeleiras eletrônicas, sendo que 75% destas pessoas cumpriam a pena pois teriam cometido algum crime e apenas 20% cumpriam com o enfoque na aplicabilidade de medidas alternativas à prisão. Ainda segundo o próprio Ministério da Segurança Pública, o custo para manter um monitorado chega a ser dez vezes menor em relação ao preso encarcerado em regime fechado, assim, a principal razão para a adoção do sistema de monitoramento eletrônico no Brasil justifica-se pois hoje o País compreende um dos Estados que possuem a maior população carcerária em escala mundial, visto que em 2017 o sistema carcerário compreendia cerca de 726 mil pessoas. O sistema de monitoramento dos corpos é composto por uma malha sociotécnica, a lei, os servidores públicos, os servidores privados, os usuários, e o dispositivo de geolocalização, ocorre que como qualquer outra ferramenta está sujeito a falhas de comunicação e interferências, e são justamente essas falhas que traduzem a ineficácia do dispositivo (Campello, 2019). No Brasil utiliza-se em grande escala a tornozeleira eletrônica, o aparelho é alimentado por uma bateria, assim, como um smartphone, e é colocado na perna do indivíduo, sua função é fiscalizar o indivíduo monitorado, com base nos limites territoriais e espaciais fixados em lei (Alva4 https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1545159104.96

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renga, 2017), segundo o autor Ricardo Campello (2019), em caso de violação das condições impostas as consequências são várias e difíceis de se prever. As tornozeleiras eletrônicas são compostas de uma única peça que é fixada sobre o corpo, O equipamento é dotado de LEDs de sinalização que indicam a falta de comunicação GPRS, ausência de sinal GPS, baixos níveis de bateria e chamadas para contato eventualmente realizadas pelos monitores. Além disso, a tornozeleira emite alertas sonoros e vibratórios quando registra perda de sinal GPS, bateria reduzida, contatos de monitores, ou ainda quando são detectados descumprimentos às regras relativas às áreas de inclusão e exclusão. A cinta de fixação no tornozelo é revestida por fibra óptica para detecção de tentativas de rompimento. O aparelho fixo ao corpo pesa em torno de 200 gramas (Campello, 2019 p. 54).

Mas como opera o software de monitoramento eletrônico? “O software de monitoramento SAC24 permite a visualização em tempo real da movimentação dos usuários. Os pontos de localização podem ser plotados em um mapa, em fotos de satélite, ou ainda, em um mapa híbrido (fotos de satélites com as ruas)” (Campello, 2019, p. 54). Ele opera com base na “programação e edição de zonas de controle, customizadas para cada usuário monitorado. As áreas de inclusão/exclusão são definidas por agentes penitenciários, junto aos técnicos da empresa contratada, a partir das determinações da justiça penal.” (Campello, 2019, p. 30). Geralmente as áreas de inclusão compreendem o espaço da residência do indivíduo, a unidade prisional, o trabalho, a escola ou a faculdade; já as áreas de exclusão abrangem os bares, as casas noturnas, e demais zonas consideradas potencialmente perigosas para as vítimas, a ultrapassagem de tais limites enseja nas mais variadas formas de punições. Segundo relatos dos usuários, o monitoramento eletrônico traduz uma tortura difusa, uma vez que as falhas do sistema de geolocalização promovem a verdade inquestionável do aparelho e a mentira do usuário. E as falhas do equipamento muitas vezes promovem um alerta sem quaisquer violações dos limites impostos, bem como, há ocasiões em que o aparelho promove queimaduras e feridas na pele do indivíduo em decorrência de superaquecimento (Campello, 2019). O sistema de monitoramento eletrônico constitui uma tecnofísica de controle dos corpos, segundo o autor Ricardo Campello (2019), em casos de violação, há relatos de que os indivíduos são espancados e colocados de castigo pelos agentes prisionais, assim como também há relatos de que o software de monitoramento emite beeps sonoros sem quaisquer violações, e mesmo com a notificação da referida “pane” o indivíduo é surpreendido 171

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nas unidades prisionais sob socos, algemas e empurrões, pois sua verdade não os convence, o aparelho falha e você se dá mal. A verdade é codificada pelo software de monitoramento (e decodificada pelos agentes prisionais) que os trazem novamente para dentro dos enclaves aqueles que tiveram a má sorte de portar um equipamento passível de falhas. A monitoração eletrônica promove a criação de um padrão de vida de alto risco, e vem sendo utilizada em grande escala sem que tenha amplo conhecimento sobre a tecnologia aplicada, ainda, pode-se dizer que o sistema de monitoramento eletrônico, em especial a tornozeleira, traz consigo o estigma e o preconceito, uma vez que os indivíduos portadores do aparelho são facilmente identificados e sistematicamente suspeitos em toda e qualquer situação que estiver próximo, violando assim a norma constitucional de presunção da inocência (Brasil, 2017). Há relatos de que muitos condenados se recusam ao uso dos equipamentos de monitoramento eletrônico, devido a sensação de falsa liberdade: [...] dizem que é como se tivessem a chave da cadeia na mão, mas sem poder sair. É um desafio compreender os fundamentos em torno dessa sensação. Por outro lado, podemos notar que ela decorre, dentre outras coisas, do superdimensionamento da área de exclusão e o subdimensionamento da área de inclusão, implicando restrições na circulação e na realização de atividades cotidianas. Fica nítido, nesses casos, que a inclusão social não é um postulado que orienta a concepção dos serviços de monitoração eletrônica (Brasil, 2017, p. 44).

Por um lado, o monitoramento eletrônico é um direito e, por outro, um castigo. É semelhante às bolas de ferro que se prendiam nos pés dos escravos, eles até poderiam andar, mas sem liberdade, e todos que estavam à sua volta estavam prontos para julgar, é como se fosse um carimbo, ou até mesmo um rótulo de delinquência estampado na sua testa. A inserção de um aparelho tecnopenal nos corpos intensifica o preconceito e o estigma social, fazendo parte das suas vidas os olhares maldosos e curiosos, bem como os termos esquisito(a), bicho solto, louco(a), aberração (Anibal, 2019). Ao realizar uma análise acerca do monitoramento eletrônico e a lógica de Foucault (1987, p. 165), pode-se dizer que os dispositivos tecnopenais dizem respeito às técnicas minuciosas de uma microfísica do poder, e com a globalização a tendência é que as referidas técnicas sejam cada vez mais ampliadas, são pequenas ações com aparência inocente dotadas de um vasto poder de difusão. A verdade codificada do sistema de monitoramento eletrônico caracteriza mais uma vez o monopólio do uso da violência, e em um país como o Brasil o despreparo e a ausência de condições estruturais para se 172

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lidar com tais configurações mostram-se escancaradas. Os avanços tecnológicos aliados às práticas de monitoramento eletrônico vislumbram uma sociedade em rede que se mobiliza com “o crescente fascínio por técnicas de vigilância e de controle disciplinar com base microeletrônica e tecnológica” (Depen, 2020). É de grande importância salientar que a substituição das unidades prisionais pela utilização de dispositivos tecnopenais de monitoração eletrônica possui motivação de lucro sobre os corpos, assim, quanto maior for o número da determinação do uso do referido dispositivo, maior será o lucro dos fabricantes e demais envolvidos. Para o autor Ricardo Urquizas Campello (2015, p. 39), “Cada rastro gera um lucro e a punição é mensurada e avaliada em termos de produtividade”, ao introduzir técnicas modernas de controle social, o viés punitivo do regime penal apenas irá reafirmar a produção do sofrimento alheio. Ademais, a tornozeleira eletrônica é mais barata que manter um preso no regime fechado, pois, em média, o custo para manter um preso atrás das grades é de R$ 3 mil, e já o da tornozeleira o valor gira em média de R$ 150 mensais por dispositivo (Anibal, 2019). Sob esse viés, a criação de uma política penal com boas intenções por si só não é capaz de superar tais mazelas, visto que o combate de algo não se dá a partir da utilização da sua própria mecânica, assim, a implementação do monitoramento eletrônico passa a ser considerada nada mais do que a expansão da punitividade, as liberdades individuais ainda encontram-se comprometidas sob a vigilância do Estado e aos olhares maldosos do senso comum. Para Foucault (1987, p. 200): “A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar”. Para Foucault (1987, p. 174), As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de “quadros vivos” que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas.

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Seguindo a literatura de Hannah Arendt (2004), a instrumentalização do direito penal representa a natureza instrumental e racional da violência, nesse sentido, o monitoramento eletrônico assim como as medidas de encarceramento promovem: “A prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento”. Se por um lado existem presídios sem condições suficientes para garantir o mínimo existencial dos indivíduos que ali compõem, e, por outro lado, há a possibilidade do uso de um dispositivo tecnopenal que visa apenas lucrar sobre os corpos, qual seria a opção mais viável para a resolução dos conflitos? Acredita-se que a solução encontra-se na implementação de medidas que tratem o direito penal como último recurso a ser utilizado, assunto a ser abordado na próxima seção. As medidas mínimas de privação de liberdade de Tóquio e as razões para a ultima ratio do direito penal

A privação da liberdade dos indivíduos caracteriza uma das formas mais severas de punição do Estado, bem como compreende a função do direito penal e da pena. O Estado promove uma anatomia política de domínio sobre os corpos, na qual opera como técnica de disciplina de corpos submissos, conhecidos segundo a literatura de Foucault (1987) de corpos dóceis. A pena privativa de liberdade assim como o sistema de monitoramento eletrônico de limitação espacial e territorial promovem a disciplina e logo transformam os indivíduos em “quadros vivos” de multidões confusas, inúteis ou até mesmo perigosas. Nesse sentido, “Poder, força, autoridade, violência – nada mais são do que palavras a indicar os meios pelos quais o homem governa o homem; são elas consideradas sinônimos por terem a mesma função” (Arendt, 2004, p. 27). Com base na maquinaria do poder do Estado sobre os indivíduos, e a articulação corpo-objeto, a Assembleia Geral das Nações Unidas, atenta às questões de abuso de direito dos Estados, e no aumento da população prisional, adotou, através da resolução 45/110 de 14 de dezembro de 1990, as regras mínimas das Nações Unidas para elaboração de medidas não privativas de liberdade, conhecidas como Regras De Tóquio. Tal dispositivo faz menção a uma série de princípios da coletividade social no âmbito de um processo criminal e de tratamento adequado aos infratores, bem como de responsabilização com a sociedade. Dentre os objetivos das regras de Tóquio, encontram-se a promoção de medidas alternativas à privação da liberdade do indivíduo, e participação ativa da coletividade no processo de justiça criminal, com observância aos direitos humanos, da justiça social e da necessidade de reabilitação dos infratores (CNJ, 2016) As Regras de Tóquio devem ser aplicadas sem quaisquer tipos de discriminação a todos os indivíduos. Em qualquer grau de acusação, jul174

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gamento ou execução da justiça criminal, nela, o suspeito, o acusado e o condenado deverão receber denominação de infrator. Dentre as principais disposições das Regras de Tóquio, merecem destaque as medidas não privativas de liberdade que podem ser tomadas antes da instauração de um processo penal para crimes de menor potencial ofensivo. Nelas, o dispositivo prevê que é adequado e compatível que a polícia, o ministério público e as demais instâncias formais de controle de justiça criminal não privem a liberdade dos infratores, sendo então a prisão preventiva o último recurso para resolução de procedimentos penais. Tal fase é denominada como Estágio anterior ao julgamento, e as medidas substitutivas da prisão devem ser utilizadas o mais cedo possível, com observância aos princípios da dignidade humana e com zelo e respeito (CNJ, 2016). Ainda sobre as Regras de Tóquio, há de se mencionar sobre o estágio de processo de condenação do infrator. Em tal momento é de grande importância a apresentação de um relatório que discorra acerca das informações do meio social do infrator, possibilitando uma explicação sobre os padrões das infrações passadas, se o indivíduo possuir, bem como, as infrações atuais, o relatório funciona como um mecanismo de recomendação para fixação da pena. Ademais, na fase de execução das medidas não privativas de liberdade, o dispositivo dá ênfase à necessidade de estipular um regime de supervisão psicológica, social e material do infrator para que possibilite a reinserção deste diante do convívio manso e pacífico em relação ao corpo social. Dentre as principais medidas não privativas de liberdade das Regras de Tóquio encontram-se: as sanções verbais, liberdade condicional, sanções econômicas, confisco, restituição ou indenização à vítima, suspensão de sentença ou execução da pena, prestação de serviços à comunidade, prisão domiciliar e comparecimento a centros de tratamento psicológico. Tais medidas deverão ter duração limitada e não devem ultrapassar os limites estabelecidos pela autoridade competente, salvo se decidir pelo encerramento antecipado da mesma. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2016, p. 19): “Quando se decide que um tratamento é necessário, deve-se fazer um esforço para compreender o histórico, a personalidade, as aptidões, a inteligência e os valores do infrator e, especialmente, as circunstâncias que o conduziram à infração.”. Outro aspecto importante que diz respeito às Regras de Tóquio corresponde com a participação de voluntários e demais recursos da comunidade para a resolução dos conflitos, a justificativa desta premissa encontra-se na ideia de que a coletividade é fator primário para o restabelecimento de laços entre as famílias e o corpo social. Segundo o CNJ (2016), é importante que os membros da comunidade possam contribuir para a proteção da sociedade. Ademais, é extremamente necessário que exista a 175

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compreensão e cooperação dos órgãos públicos governamentais, do setor privado e do público em geral, que devem organizar-se através de meios de comunicação de massa para a criação de atividades públicas, sejam elas seminários ou simpósios para a conscientização da população. As Regras de Tóquio, de modo geral, representam a função reeducadora da pena, promovem um direito penal mais brando e proporcionam um equilíbrio entre liberdade individual e os interesses sociais, visam colocar a política criminal diante de um padrão mais humanitário e moderno, focalizando em medidas alternativas a privação da liberdade, evitando deste modo que o infrator deixe sua família, o seu emprego e o meio em que vive em troca de um castigo. O princípio da intervenção mínima das Regras de Tóquio traduz o que chamamos de ultima ratio do direito penal, e promove a ideia de que o direito penal tem representado uma desastrosa intervenção em nossas vidas, visto que o Estado ao criminalizar cria um conflito muito mais ofensivo em relação ao bem jurídico inicialmente afetado pelo infrator, que a função penal originária nada mais é do que a criação de um estado de exceção, este na qual se apresenta como uma forma legal daquilo que não pode ser considerado legal (Agamben, 2004). A inobservância do direito penal mínimo, ou da ultima ratio penal, só se justifica quando os demais meios de controle se revelarem insuficientes, portanto, devemos nos questionar o seguinte: “O direito penal é capaz e suficiente para conter a violência?”. Não restam dúvidas quanto à resposta do presente questionamento, visto que o direito penal é a própria manifestação da violência, entretanto, é de suma importância entendermos que o crime é uma categoria criada para controlar e estigmatizar condutas, ou seja, o funcionamento do direito penal encontra-se atrelado à construção do crime e consequentemente o autor do crime. Nesse sentido, é necessário assumirmos a ideia de que nem todos os crimes são violentos, uma vez que este é apenas uma definição com base em uma dinâmica de interesses entre os autores envolvidos para a sua construção. Considerações finais

O sistema punitivo que antes apenas colocava atrás das grades pessoas que cometiam algum crime, hoje encontra-se alongado através dos dispositivos tecnopenais, tais como, o sistema de monitoramento eletrônico do indivíduo, que alonga não só a punição, mas também os braços do cárcere, atinge o corpo, a mente, o olhar e o gesto humano. O monitoramento eletrônico como estratégia de desencarceramento configura-se como uma tecnologia de codificação da verdade do sujeito diante de uma liberdade vigiada, A desterritorialização dos estabelecimentos pri176

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sionais e a marcação dos corpos por aparelhos tecnológicos de monitoramento constituem o controle e adestramento dos corpos dentro e fora da prisão. É preciso entender que o controle social merece receber uma manutenção e eliminar essa ideia de que pena pressupõe castigo. A função social da pena deve observar e respeitar os limites de ressocialização ou reintegração do indivíduo e prevenção dos conflitos; e a lei deve pautar-se na recuperação do sujeito para o bem da coletividade, e os instrumentos tecnológicos devem ser seus aliados. Referências

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2019. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-16122019-185040. CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Regras de Tóquio: regras mínimas padrão das Nações Unidas para a elaboração de medidas não privativas de liberdade. Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi. Brasília: CNJ, 2016. DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional. Medidas de combate ao covid-19. 2020. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMmU4ODAwNTAtY2IyMS00OWJiLWE3ZTgtZGNjY2ZhNTYzZDliIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZ ThlMSJ9. Acesso em: 5 dez. 2023. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 5. ed. Trad. Ligia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1987. (Terceira e Quarta partes). (Livro disponível em: https://www.ufsj.edu.br/portal2repositorio/File/centrocultural/foucault_vigiar_punir.pdf SCHWITZGEBEL, R. Issues in the use of na electronic rehabilitation system with chronic recidivists. In: Law and Society Review, v. 3, n. 4, p. 597-611, 1969.

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CAPÍTULO 14 A CIDADANIA MULTICULTURAL E OS IMIGRANTES LATINO-AMERICANOS NO BRASIL Daniela Nicolai de Oliveira Lima1 Ivanildo de Oliveira2

Introdução

O presente artigo científico se relaciona com a disciplina Teoria Política, ministrada pelos Professores Doutores Paulo Márcio Cruz e Pedro Abib Hecktheuer, no PPCJ do Curso de Mestrado da Univali, em convênio com a Faculdade Católica de Rondônia, que tem como linha de pesquisa “Constitucionalismo e Produção do Direito”. Os fluxos migratórios são parte da história da humanidade. Na era pós-moderna, esse fenômeno tem se intensificado, em razão da globalização. O fenômeno migratório na América Latina se apresenta complexo, com múltiplas correntes populacionais, que cruzam o continente latino-americano, partindo dos países mais pobres rumo aos países mais desenvolvidos. Atualmente, muitos desses deslocamentos ocorrem por razões ambientais (Bonassi, 2000, p. 18). O fluxo migratório latino-americano para o Brasil não é recente, mas se intensificou nos últimos anos, principalmente através da Região Norte do Brasil, que faz fronteira com sete países: Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia. Em decorrência de sua posi1 Mestra em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, em convênio com a Faculdade Católica de Rondônia, com área de concentração em Fundamentos do Direito Positivo. Promotora de Justiça do Ministério Público de Rondônia. Membro da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor - MPCON. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Universidade Anhanguera-Uniderp/SP. E-mail: [email protected]. Lattes: http:// lattes.cnpq.br/5014921548484504. 2 Procurador-Geral de Justiça do Estado de Rondônia. Membro do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Ministérios Públicos dos Estados e da União. Doutorando do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, em dupla titulação com a Universidade de Alicante. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, em dupla titulação com a Universidade de Alicante/Espanha. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3105592304991108.

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ção geopolítica estratégica e da condição de país emergente, o Brasil tem sido cada vez mais procurado por imigrantes latino-americanos, em busca de oportunidades e melhores condições de vida. O objetivo geral do presente trabalho é analisar o fenômeno da migração latino-americana para o Brasil e as suas consequências sociais, legais e culturais. Já como objetivos específicos do estudo, pretende-se identificar os povos em movimento migratório, verificar as políticas públicas de acolhimento e integração, identificar as normas de proteção e, por fim, apontar os reflexos e os benefícios de uma cidadania multicultural. A relevância do presente trabalho se evidencia pela necessidade de discutir as políticas públicas e as normas de proteção dos migrantes externos. A metodologia utilizada para este estudo foi de natureza indutiva, utilizando-se de fonte secundária, a partir de pesquisa bibliográfica qualitativa, pela via eletrônica, através da revisão de artigos científicos publicados sobre o tema abordado. Os refugiados ambientais haitianos

O número de refugiados no mundo é muito alto. Segundo a Organização Internacional de Migrações (OIM), com sede em Genebra, em 2008, havia um total de 46 milhões de refugiados no mundo, os quais deixaram seus países de origem em decorrência de tsunamis, terremotos, inundações, secas, acidentes nucleares, tempestades, dentre outras causas. A ONU estima que em 2050 o número de refugiados ambientais ficará acima de 250 milhões de pessoas (Zeferino; Aguado, 2012, p. 214). Esses deslocamentos humanos entre diversos territórios, por motivos ambientais, ensejam a necessidade de caracterização de um novo tipo de refugiados, os “refugiados ambientais”, que deixam seus países de origem, devastados por comoções da natureza, tornando-os inóspitos à vida humana. Os haitianos começaram a chegar ao Brasil em 2010, fugindo da crise econômica e humanitária de seu país, devido à guerra civil e ao terremoto que assolou sua população, agravando problemas sociais profundos. Embora não faça fronteira com o Haiti, o Brasil foi o alvo central desse processo migratório, devido à participação do Exército brasileiro, junto às forças de paz da ONU, que atuou naquele país (Rosa, 2019). O contingente populacional vindo do Haiti foi denominado “deslocados ambientais”, haja vista a ausência de definição e enquadramento legal ao conceito de refugiados, criando um limbo jurídico para a proteção dessa população, capaz de garantir sua dignidade humana. Segundo Cavedon e Vieira (2012), os riscos ambientais não são equitativamente distribuídos no mundo e fatores como a pobreza e a composição étnica ou racial podem contribuir para o agravamento dos riscos e 180

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custos ambientais. A exposição de uma população aos riscos e efeitos dos desastres ecológicos pode ser entendida como uma situação de violação de direitos humanos. Assim, a vulnerabilidade ambiental contribui para maior exposição à violação de direitos humanos, especialmente do direito à vida. Sobre o assunto, a Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH) possui uma jurisprudência inovadora e consolidada em matéria ambiental e reconhece a violação do direito à vida, motivada por desastres ecológicos naturais ou decorrentes de atividades humanas consideradas perigosas, fazendo com que grupos humanos sejam obrigados a deixar seus lugares de origem, em razão da exposição a riscos naturais, tecnológicos e a catástrofes ecológicas. Merece atenção, nessa matéria, o Projeto de Convenção Relativa ao Estatuto Internacional dos Deslocados Ambientais, elaborado por juristas da Universidade de Limoges, França, que pode reforçar o reconhecimento da dimensão ambiental dos direitos humanos e mesmo se constituir em mais uma importante norma de direito internacional a ser acionada pelos sistemas de proteção dos direitos humanos (Cavedon; Vieira, 2012, p. 181). O manual Direitos Humanos e Desastres Naturais: linhas diretrizes operacionais da INTER-AGENCY STANDING COMMITEE, 2008, define os desastres naturais como sendo o resultado de eventos, decorrentes de perigos naturais, que ultrapassam a capacidade local de uma região, gerando perdas humanas, materiais, econômicas e ambientais, excedendo a habilidade dos afetados de fazer frente a elas, por seus próprios meios. Este conceito se coaduna ao adotado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma, 2008), em seu documento intitulado Meio Ambiente e riscos de desastres: perspectivas emergentes (Cavedon; Vieira, 2012, p. 183). Os imigrantes venezuelanos Warao

Segundo dados da ONU Brasil, a partir de 2015, cerca de 4 milhões de venezuelanos deixaram seu país, devido à crise política e econômica da Venezuela, desencadeada pelos governos de Hugo Chavez e Nicolás Maduro. O Brasil é o quinto destino mais procurado por eles, havendo atualmente cerca de 50 mil refugiados e migrantes venezuelanos, interiorizados em 85 municípios brasileiros (ONU, 2019). Em 2018, houve a chegada de outros migrantes venezuelanos, num processo de interiorização que se iniciou em Boa Vista, Roraima, passando por Porto Velho, Rondônia, até chegarem às regiões Sul e Sudeste do País. Esses migrantes venezuelanos permaneceram em situação de maior vulnerabilidade social, pedindo esmolas nos sinais de trânsito dos grandes centros urbanos, devido aos seus hábitos culturais, por serem descenden181

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tes da etnia indígena Warao, oriunda do delta do Rio Orinoco, embora recebessem ajuda assistencial e financeira, através da sua inscrição no CadÚnico3, auxílio aluguel, cestas básicas, etc. Observou-se, ainda, que os Warao não se adaptaram às unidades de acolhimento oferecidas pela Secretaria Municipal de Assistência Social e pela Arquidiocese de Porto Velho (entidade filantrópica sem fins lucrativos), preferindo alugar apartamentos, onde vivem coletivamente. As mulheres da etnia Warao se destacam pela cor parda, longas tranças nos cabelos, uso de roupas em estilo andino, idioma espanhol e por levarem suas crianças amarradas na cintura ou nas costas. Convém ressaltar que os Warao foram orientados por conselheiros tutelares, da Vara da Infância e da Juventude, acerca da situação irregular de pedir esmolas nos sinais, utilizando-se de crianças menores de idade e das consequências legais desses atos. Desse modo, a demanda por assistência social, que já existia para os nacionais nos Estados de Roraima e Rondônia, se agravou com a chegada desses novos migrantes e também com a pandemia do novo coronavírus, sobrecarregando a estrutura estatal de resposta às graves questões sociais, uma vez que os referidos Estados federados não estavam preparados para receber esse grande fluxo populacional migratório, o que motivou a intervenção da União Federal com políticas públicas de interiorização dessas populações, para Estados do Sul e Sudeste de Brasil. O Programa de Interiorização do Governo Federal, criado em 2018 e denominado “Operação Acolhida”, visa garantir o atendimento humanitário, a assistência básica e a empregabilidade aos migrantes e refugiados venezuelanos em Roraima, principal porta de entrada da Venezuela no Brasil. Trata-se de uma grande força-tarefa humanitária, executada e coordenada pelo Governo Federal, com apoio da ACNUR (Agência da ONU para refugiados) e de mais de 100 entidades da sociedade civil, que tem por objetivo oferecer assistência emergencial aos migrantes e refugiados venezuelanos que entram no Brasil, pela fronteira com Roraima, mesmo que sob protestos e a contragosto de parcela da sociedade. A Operação Acolhida se encontra organizada em três eixos: 1) ordenamento da fronteira – documentação, vacinação e operação controle do Exército Brasileiro; 2) acolhimento – oferta de abrigo, alimentação e atenção à saúde; 3) interiorização – deslocamento voluntário de migrantes e refugiados venezuelanos de Roraima para outras Unidades da Federação, com objetivo de inclusão socioeconômica.4 3 O CadÚnico é a porta de entrada para programas sociais do Governo Federal, como Bolsa Família, a Tarifa Social de energia elétrica, o Benefício de Prestação Continuada (PPC), dentre outros. 4 Disponível em: https://www.gov.br› acolhida/historico.

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Em abril de 2019, a ONU Brasil, representando a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a Organização Internacional de Migração (OIM) e o Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA), bem como o Governo Federal e o Conselho Nacional de Migrantes (CNM), lançaram a Campanha de Interiorização mais Humana, a fim de acolher e prestar ajuda humanitária aos migrantes venezuelanos, que procuram refúgio no Brasil. A campanha tem o objetivo de expandir a estratégia de interiorização dessa população, através do apoio dos diversos municípios brasileiros, promovendo a inserção social e profissional dos refugiados e migrantes que buscam uma oportunidade de recomeçar a vida, construindo um futuro próspero e digno. Com base no Plano Regional de Resposta Humanitária para Refugiados e Migrantes da Venezuela, a OIM oferece apoio técnico e logístico à estratégia de interiorização, com orientações sobre as cidades acolhedoras e as condições de recepção, mediante a distribuição de materiais informativos, garantindo que as pessoas possam tomar decisões informadas sobre a mudança para outras partes do País. Também trabalha para ampliar a capacidade da “Operação Acolhida”, com a emissão de passagens em voos comerciais, beneficiando centenas de pessoas (ONU, 2019). Em dezembro de 2020, a Prefeitura de Porto Velho, por meio da Secretaria Municipal de Assistência Social e Família (SEMASF), em parceria com a Universidade Federal de Rondônia (UNIR), o Instituto Federal de Rondônia (IFRO) e o Ministério do Trabalho de Emprego (MTE), realizou um mutirão de atendimento para emissão da carteira de trabalho (CTPS), para os indígenas venezuelanos Warao, a fim de inseri-los no mercado de trabalho, possibilitando-lhes a busca de meios de sustento condignos. A Secretaria de Assistência Social do Governo do Estado de Rondônia (SEAS), por sua vez, implementou a Central de Informação aos Migrantes, Refugiados e Apátridas, situada no Centro de Atendimento ao Cidadão – “Tudo Aqui”, da capital Porto Velho. Essa central oferece informações, para migrantes e refugiados, quanto ao acesso a serviços públicos municipais, estaduais e federais que se encontram disponíveis àquela população, nas áreas de educação, saúde e assistência social, bem como quanto à assistência jurídica, através da Defensoria Pública Estadual e da União, da Polícia Federal (Delegacia de Migração) e de quaisquer órgãos ou entidades da sociedade civil que venham a prestar atendimento a imigrantes e refugiados em Porto Velho/RO. Também oferece serviços como elaboração de currículo, preenchimento de formulário de solicitação de carta de refúgio, dentre outros.5 5 Conforme Procedimento Preliminar nº 2020001010020454, que tramitou junto à 11ª Promotoria de Justiça da Comarca de Porto Velho, do Ministério Público do Estado de Rondônia (Ministério Público do Estado de Rondônia, 2020).

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Os imigrantes bolivianos e o caso Zara

Os imigrantes bolivianos, por sua vez, constituem a maior comunidade latino-americana instalada no Brasil, com cerca de 200 mil pessoas, residindo, principalmente, em São Paulo, capital. Essa população permanece, em sua maioria, em situação jurídica irregular, tornando-se mais vulnerável às violações de direitos humanos, pois trabalham, informalmente, na indústria têxtil e de confecções. Nas oficinas de costura, localizadas majoritariamente na capital paulista, ocorrem diversos casos de exploração da mão de obra desses migrantes, em condições análogas ao trabalho escravo, como foi o caso emblemático da empresa Zara. Em 2011, a grife espanhola ganhou destaque nas manchetes do mundo, quando foi flagrada por fiscais brasileiros, ao explorar trabalhadores na sua cadeia produtiva. Em três oficinas fornecedoras da marca, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo encontrou imigrantes bolivianos trabalhando em condições análogas a de escravos. A fiscalização registrou contratação ilegal, trabalho infantil, condições degradantes, jornadas de até 16 horas diárias, cobrança e desconto irregular de dívidas dos salários e proibição de deixar o local de trabalho (Lima, 2016, p. 62). Embora a empresa tenha tentado se esquivar da responsabilidade legal, alegando que a contratação dos trabalhadores bolivianos foi realizada por oficinas de costura menores, que eram empresas terceirizadas, tal prática foi considerada fraudulenta, visando encobrir o real empregador, fazendo com que a Zara fosse condenada pela Justiça do Trabalho, devido à prática ilícita. A justificativa para a condenação foi a de que a Zara, como detentora de poder econômico relevante na cadeia produtiva, ao consentir que seus fornecedores delegassem a terceiros a produção de peças de roupa para as quais foram contratadas, assumiu o risco da precarização extrema das relações de trabalho (Brasil, 2014). Após o episódio, a Zara comprometeu-se em monitorar as condições de trabalho de seus fornecedores, reiterando o compromisso com padrões de trabalho decentes em sua cadeia produtiva e com ações concretas de responsabilidade social. A evolução da legislação internacional e nacional Dos refugiados ambientais

A migração pode ser encarada em perspectiva internacional e nacional, para efeitos de estudo. A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, da Organização das Nações Unidas (Resolução nº 45/158, 184

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de 18 de dezembro de 1990 da Assembleia-Geral, que entrou em vigor em 2003) é o instrumento jurídico mais avançado no plano internacional, por ser um tratado internacional de alcance universal. Embora o Brasil não tenha ratificado o referido tratado, o Governo Federal tem adotado políticas públicas de acolhimento de estrangeiros em situações de vulnerabilidade social, decorrentes de graves violações de direitos humanos, de crises humanitárias e de catástrofes ambientais. A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de Genebra de 1951, foi o primeiro diploma internacional que definiu o conceito de refugiado6, estabelecendo os direitos dos indivíduos aos quais é concedido o direito de asilo e as responsabilidades das nações que concedem asilo. Porém, com o surgimento dos “refugiados ambientais”, que são aquelas pessoas que deixaram seus países de origem, devastados por comoções da natureza, que os tornaram inóspitos à vida humana, como ocorreu no Haiti, com o terremoto que assolou o país em 2010, surgiu a necessidade de caracterização desse novo tipo de refugiados. Nesse sentido, houve um adendo à norma internacional sobre refugiados, de autoria do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), denominado Protocolo à Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, cujos objetivos seriam a salvação, proteção e reabilitação das vidas de pessoas deslocadas, interna ou externamente, de ambientes ou habitats que foram, são ou serão destruídos por desastres naturais ou por impactos ambientais provocados pelo homem, cujo alcance atinja pessoas deslocadas em razão desses fatos, assegurando direitos básicos como abrigo, comida, água potável, medicamentos, assistência médica e a criação de um fundo de adaptação a impactos ambientais. O ACNUR pode determinar obrigações aos Estados-partes, signatários do Protocolo, como a adequação de seus ordenamentos jurídicos, em face de suas normas cogentes (Zeferino, 2012, p. 218). Posteriormente, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) estabeleceu uma definição jurídica para os refugiados ambientais, nos seguintes termos (Nogueira, 2007): As pessoas que foram obrigadas a abandonar, temporária ou definitivamente, a zona onde tradicionalmente vivem, devido ao visível declínio do ambiente, por razões naturais e humanas, 6 Art. 1º. Refugiado é toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia, como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo.

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perturbando a sua existência e/ou a qualidade do mesmo, de tal maneira que a subsistência dessas pessoas entre em perigo. Com o declínio do ambiente quer se dizer, o surgimento de uma transformação no campo físico, químico e/ou biológico do ecossistema que, por conseguinte, fará com que esse meio ambiente, temporária ou permanentemente, não possa ser utilizado.

A Declaração do Milênio, adotada pelas Nações Unidas, em 2000, estabeleceu entre suas metas a proteção dos vulneráveis, dos quais se encontram as populações que sofrem de maneira desproporcional as consequências dos desastres naturais. Entre os fatores que podem gerar maior vulnerabilidade ambiental aos desastres se destaca a pobreza, que afeta a capacidade de determinados indivíduos e comunidades de se prevenir e proteger dos desastres ecológicos. A maior dificuldade em acessar determinadas informações e mesmo de mobilidade, a necessidade de ocupar áreas de risco e de grande fragilidade ambiental, ou mesmo de superexplorar os recursos naturais de seu ambiente para garantir a sobrevivência, fazem dos mais pobres as vítimas preferenciais dos desastres” (Cavedon; Vieira, 2012, p. 184). O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas estabeleceu a relação entre as mudanças climáticas e os direitos humanos, que podem ser objeto de violação, em razão de seus efeitos, através da Resolução 7/23, de 28 de março de 2018, denominada Mudanças Climáticas e Direitos Humanos. De especial importância é o reconhecimento, no âmbito da Resolução, da vulnerabilidade dos mais pobres, especialmente os que vivem em zonas de alto risco, diante dos efeitos das mudanças climáticas e sua capacidade de adaptação mais limitada, o que, consequentemente, os torna também mais vulneráveis às violações de direitos humanos, originadas em razão das mudanças climáticas (Cavedon; Vieira, 2012, p. 190). Assim, os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos podem se configurar como um espaço de acesso à justiça para as vítimas de catástrofes ecológicas e de reparação das violações sofridas em seus direitos humanos, notadamente o direito à vida. Destaca-se, nesse contexto, a Corte Europeia de Direitos Humanos, que vem desenvolvendo uma jurisprudência ambiental de caráter inovador e bastante desenvolvida, atribuindo uma dimensão ambiental aos direitos humanos, reconhecidos na Declaração Europeia de Salvaguarda dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Cavedon; Vieira, 2012, p. 192). A resposta efetiva à situação dos “deslocados ambientais” exige um esforço conjunto no âmbito do direito ambiental e dos sistemas de proteção dos direitos humanos. O Projeto de Convenção sobre o Estatuto Internacional dos Deslocados Ambientais, realizado por um grupo de trabalho da 186

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Universidade de Limoges, França reconhece como direito comum a todos os deslocados ambientais: 1) direito à informação e à participação; 2) direito à assistência e socorro; 3) direito à água e à ajuda alimentar; 4) direito à habitação; 5) direito ao cuidado médico; 6) proteção dos direitos da pessoa; 7) direito ao respeito da unidade familiar; 8) direito à educação e à formação; 9) direito à subsistência pelo trabalho. Foi considerada a situação peculiar dos deslocados temporários, que dispõem de direitos específicos […]: 1) direito a um alojamento seguro; 2) direito à reinstalação; 3) direito ao retorno; 4) direito à permanência prolongada. Os deslocados definitivos também terão reconhecidos direitos específicos: o direito ao realojamento e o direito à nacionalidade. Famílias e populações deslocadas, por sua vez, têm direito à preservação da unidade familiar e as populações são beneficiadas pelo regime jurídico aplicado às minorias, nos países de acolhida. O Projeto prevê, além dos direitos reconhecidos aos deslocados ambientais, uma estrutura administrativa e organizacional para a implementação da Convenção, especialmente pela criação de uma Agência Mundial para os Deslocados Ambientais (Cavedon; Vieira, 2012, p. 198-201). Do princípio da dignidade da pessoa humana

Segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos há uma tendência mundial de internacionalização dos direitos fundamentais, condicionando a soberania das Nações aos costumes e tratados internacionais. Nesse sentido, os costumes internacionais condizentes à preservação da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos, em sentido amplo, teriam efeitos erga omnes no plano global, vinculando todos os Estados, em razão do contido no artigo 5º da Declaração de Viena, que reza que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”. Assim, surge a obrigação, da comunidade internacional, de tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, desvinculando os direitos fundamentais do conceito absoluto de soberania, ao transmudar-se em direitos internacionais de eficácia plena, imbuídos de jus cogens, cujo respeito a todos vincula, por orbitarem a dignidade humana, como ocorre com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, onde verificamos a subsunção dos ordenamentos estatais ao costume internacional, como fonte supressiva de lacunas, garantindo a plenitude dos direitos fundamentais, na esfera global (Zeferino, 2012, p. 216). O governo brasileiro tem manifestado respeito ao princípio internacional do non refoulement (princípio da não devolução), insculpido na Declaração de Cartagena de 1984, que estabelece a proibição de rejeição, em quaisquer fronteiras, de estrangeiros postulantes de pedidos de refúgio, 187

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cuja procedência deriva de países com históricos de violações de direitos humanos. Tal princípio veda qualquer forma de rechaço de pretendentes ao refúgio nas fronteiras dos Estados, primando por seus direitos fundamentais, consoante bases axiológicas presentes na convenção dos Refugiados de 1951 e nas alterações inseridas no Protocolo de 1967, devidamente ratificadas pelo Brasil, respectivamente no governo Juscelino Kubitschek (Decreto nº 50.215/1961) e no governo Fernando Henrique Cardoso (Lei nº 9.474/97, artigo 3º, III), possibilitando a extradição de refugiados apenas nos casos de cometimento de crimes graves. No Brasil, a dignidade da pessoa humana se enquadra como princípio jurídico-constitucional fundamental, ao constar, expressamente, no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. Já o artigo 4º, inciso II da Carta Magna assim determina: “a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelos seguintes princípios: […] II – prevalência dos direitos humanos”. O artigo 3º, inciso IV, por sua vez, estendeu aos estrangeiros todo o rol de direitos assegurados aos nacionais, ao afirmar que um dos fundamentos da República é a promoção “do bem de todos, sem quaisquer formas de preconceitos de origem, raça, sexo e cor”. Mais adiante, o artigo 5º, inciso XV, assegura a liberdade de locomoção, em termos amplos, a qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, em tempo de paz, que poderá permanecer em solo brasileiro ou dele sair, com seus bens, nos termos da lei (Brasil, 2008). Acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, ensina Silva (2001, p. 90): Tal princípio é atributo intrínseco, da essência da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite a substituição equivalente. Assim, a dignidade entranha e se confunde com o próprio ser humano. Por isso é que a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar o seu desenvolvimento.

Em face do viés geopolítico do princípio da dignidade da pessoa humana, D’Adesk (2003, p. 193-194) pondera que: O crescimento de fluxos migratórios mundiais vem ensejando crescentes recusas pelos Estados, notadamente quanto aos refugiados, em total afronta ao princípio da inclusão universal da cidadania, implicando, a certos países, um nacionalismo xenófobo, contrariando postulados consuetudinários de respeito à dignidade humana e à diversidade cultural. Tais nacionalismos extremistas repelem-se ao ideário de uma ordem internacional lastreada em axiomas principiológicos de paz, 188

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cooperação e solidariedade global, cuja materialização ocorre no reconhecimento destas coletividades em sua igualdade, independentemente de características étnicas e ideologias culturais e religiosas, efetivamente incluindo-as à determinada comunidade nacional.

Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana se encontra presente em nossa Carta Constitucional, devendo ser invocado para proteção dos migrantes latino-americanos que se encontrem em situação de vulnerabilidade social, por razões políticas, econômicas ou ambientais e que venham a pleitear refúgio junto ao Estado brasileiro. Da evolução da legislação brasileira

A primeira legislação brasileira que tratou do assunto dos imigrantes latino-americanos foi o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80), que foi marcado pela adoção de uma política migratória restritiva, de maneira a selecionar aqueles estrangeiros que apresentassem melhor qualificação profissional. Atualmente, a Lei Federal nº 13.445, de 24 de maio de 2017, dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante estrangeiro, regulamenta sua entrada e estadia no Brasil e estabelece os princípios e diretrizes para as políticas públicas a serem adotadas. Segundo o artigo 1º, II, imigrante é toda pessoa nacional de outro país ou apátrida, que trabalha ou reside e se estabelece, temporária ou definitivamente no Brasil. Segundo o artigo 3º da referida Lei, a política migratória brasileira se rege pelos seguintes princípios e garantias: I – universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; II – repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; III – não criminalização da migração; IV – não discriminação, em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional; V – promoção da entrada regular e de regularização documental; VI – acolhida humanitária; VII – desenvolvimento econômico, turístico, social, cultural, esportivo, científico e tecnológico do Brasil; VIII – garantia do direito à reunião familiar; IX – igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante, por meio de políticas públicas; X – inclusão social, laboral e produtiva do migrante, por meio de políticas públicas; XI – acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social; XII – promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante; XIII – diálogo social na formulação, na execução e na avaliação de políticas migratórias e promoção da participação cidadã do migrante; XIV – fortalecimento da integração econômica, política, social e cultural dos povos da 189

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América Latina, mediante constituição de espaços de cidadania e de livre circulação de pessoas; XV – cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante; XVI – integração e desenvolvimento das regiões de fronteira e articulação de políticas públicas regionais, capazes de garantir efetividade aos direitos do residente fronteiriço; XVII – proteção integral e atenção ao superior interesse da criança e do adolescente migrante; XVIII – observância do disposto em tratado; XIX – proteção ao brasileiro no exterior; XX – migração e desenvolvimento humano no local de origem, como direitos inalienáveis de todas as pessoas; XXI – promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil; XXII – repúdio às práticas de expulsão ou deportação coletivas. Já o artigo 4º estabelece que ao migrante é garantida, no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais: a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade, bem como, os direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos (I); o direito à liberdade de circulação em território nacional (II); o direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes (III); as medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos (IV); o direito de transferir recursos decorrentes de sua renda e economias pessoais, a outro país, observada a legislação aplicável (V); o direito de reunião para fins pacíficos (VI); o direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos (VII); o acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória (VIII); o amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (IX); o direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória (X); a garantia do cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória (XI); a isenção das taxas de que trata esta Lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica, na forma do regulamento (XII); o direito de acesso à informação e garantia de confidencialidade quanto aos dados pessoais do migrante, nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (XIII); o direito à abertura de conta bancária (XIV); o direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto pendente pedido de autorização de residência, de prorrogação de estada ou de transformação de visto em autorização de residência (XV); o direito do migrante de ser informado sobre as garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização migratória (XVI). 190

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Da cidadania multicultural

Na atualidade, a maioria das Nações são culturalmente diversas. Os 184 países do mundo contêm mais de 600 grupos de línguas vivas e 5.000 grupos étnicos. São poucos os países cujos cidadãos compartilham da mesma língua e pertencem ao mesmo grupo étnico (Kymlicka, 1995). Essa diversidade cultural traz uma série de questões importantes sobre as minorias a respeito de temas como direitos linguísticos, representação política, currículo educativo, política de imigração e naturalização. Encontrar respostas moralmente defensáveis e politicamente viáveis para estas questões constitui o principal desafio que enfrentam as democracias modernas (Kymlicka, 1995). No decorrer da história, os governos, para alcançarem uma sociedade e uma organização política hegemônica, seguiram políticas tendentes à eliminação das minorias culturais, quer fosse mediante expulsões massivas ou através de limpeza étnica e genocídio. Outras minorias foram assimiladas de forma coercitiva, mediante a adoção da linguagem, religião e costumes da maioria. Em outros casos, as minorias foram tratadas como estrangeiros residentes, submetidas à segregação física e discriminação econômica, assim como privação de direitos políticos (Kymlicka, 1995). Após a Segunda Guerra Mundial, houve ações no sentido de proteger as minorias culturais e regular os potenciais conflitos entre as culturas majoritárias e minoritárias. Acreditava-se que a nova ênfase nos direitos humanos resolveria os conflitos das minorias. Ao invés de se proteger diretamente os grupos vulneráveis, mediante direitos especiais, as minorias culturais se protegeriam, indiretamente, pelos direitos humanos básicos, garantidos a todos os indivíduos, como a liberdade de expressão, associação e consciência. Os liberais disseram que, onde se protegiam ditos direitos individuais, não era necessário atribuir direitos nacionais aos membros das minorias étnicas ou nacionais específicas. Assim, a ONU eliminou toda referência aos direitos das minorias étnicas em sua Declaração Universal dos Direitos Humanos (Kymlicka, 1995). Entretanto, a prática demonstrou que o direito das minorias não poderia subsumir-se somente à categoria de direitos humanos, por serem estes incapazes de resolver importantes e controvertidas questões relativas às minorias, referentes ao idioma, educação, integração cultural, representação política, ocupação do território nacional, imigração e outros aspectos de sua cidadania peculiar, razão pela qual surgiram os diplomas legais nacionais e internacionais que amparam esses direitos, como a nova denominação de “refugiados ambientais” (Kymlicka, 1995, p. 6). Ademais, a globalização evidenciou que o mito de um Estado culturalmente homogêneo é irreal, fazendo com que a maioria, dentro de cada 191

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Estado, seja mais aberta ao pluralismo e à diversidade, permitindo que as minorias étnicas mantenham a sua identidade e uma vida grupal distinta. Em um mundo de livre comércio e comunicações globais, a natureza das identidades étnicas e nacionais está experimentando uma mudança, na direção do multiculturalismo (Kymlicka, 1995). Considerações finais

O presente artigo buscou evidenciar o fluxo migratório latino-americano para o Brasil e as suas consequências sociais, legais e também culturais, em face desse intenso afluxo de estrangeiros, principalmente nos últimos anos, impulsionado por conflitos armados, crises econômicas, pobreza extrema, políticas e catástrofes ambientais, que se coadunam com o fenômeno da globalização. O fenômeno migratório, que não é apenas regional mas, também, de ordem global sistêmica, acarreta, sobretudo, uma grave questão de cunho social, que demanda por políticas públicas e normas legais à altura do problema experienciado, mas que devem ser sempre voltadas ao acolhimento dos migrantes externos, com vistas à dignidade humana e à solidariedade entre os povos e as nações, de modo a mitigarem o sofrimento dos povos acolhidos, que deixam seus países por melhores condições de vida ou por pura sobrevivência. O “direito de migrar” está amparado no Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional das Pessoas Refugiadas, não obstante, infelizmente, o Direito Internacional atual não contempla a proteção dos “refugiados ambientais” enquanto grupo específico. A legislação brasileira, conforme restou anotado, garante a igualdade dos direitos fundamentais de brasileiros e estrangeiros, muito embora também não reconheça os “refugiados ambientais”, valendo-se do emprego utilitarista de outros mecanismos legais, por exemplo, para o caso dos haitianos, assolados pela extrema pobreza e abalo sísmico que devastou o Haiti, em janeiro de 2010. O grande fluxo migratório existente, atualmente, na América Latina, possibilitará novas influências e identidades culturais e étnicas na Nação brasileira. Aliás, o Brasil, desde a sua colonização, já foi palco de outros movimentos migratórios, como de portugueses, holandeses, franceses, italianos, alemães, africanos, japoneses, judeus e árabes, dentre outros. Atualmente, contribuem para a formação da cultura brasileira os haitianos, os venezuelanos e os bolivianos, razão pela qual podemos afirmar que o Brasil é um País multicultural. Por essas razões, o País deve continuar aberto e receptivo para acolher essas novas identidades culturais e étnicas, oriundas de diversas re192

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giões da América Latina, às quais contribuirão para a formação do novo mosaico cultural brasileiro. Referências

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CAPÍTULO 15 INFANTICÍDIO E O ESTADO PUERPERAL Jéssica Paola da Costa Alves1

Introdução

Segundo disposto no Código Penal de 1940, em seu art. 123, o crime de infanticídio constitui ceifar a vida do nascente ou do neonato, realizada pela própria mãe sob a influência do estado puerperal, durante ou logo após o parto. A prática de matar crinças sempre esteve presente ao longo da história da humanidade. Prado (2019) cita que através da história o crime de infanticídio comporta quatro períodos, com punições variadas: a) impunidade; b) rigorismo penal com três fases: militar, religiosa e jurídica; c) equiparação do infanticídio ao homicídio – causa de diminuição de pena/ homicídio privilegiado; d) benignidade penal – crime autônomo. A Lei das XII Tábuas (século V a.C.) autorizava a morte do filho nascido disforme ou de aspecto monstruoso, mediante o julgamento de cinco vizinhos; o pai tinha sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los (Prado, 2019.) Na Idade Média não havia distinção entre os crimes de infanticídio e homicídio. A mãe que matava seu próprio filho poderia ser condenada ao enterramento vivo, empalamento ou a ser dilacerada com tenazes ardentes (Capez, 2020). Verifica-se uma mudança absoluta no tratamento da prática, passando de costume cultural à crime sujeito à pena de morte. Com o surgimento do Iluminismo, movimento intelectual humanista do século XVIII, sobre o influxo de novas ideias as legislações passaram a considerar o infanticídio, quando praticado honoris causa pelo pai ou pela mãe, como um homicídium in privilegiatum (Hungira, 2018). O Brasil, de 1500 a 1822, por ainda ser colônia, estava sujeito às legislações que vigoravam em Portugal na época – ordenações do reino –, assim, o Infanticídio era tratado genericamente como homicídio, sendo punido com a morte.

1 Acadêmica do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

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Já em 1830, o primeiro código penal do Brasil independente dispunha a pena de três a 12 anos para quem matasse um recém-nascido; e se fosse a própria mãe, a pena diminuia para prisão com trabalho por um a três anos. Ante à ótica iluminista, era uma legislação bastante avançada à época. O Código de 1890 trazia em sua redação a pena de seis a 20 anos para quem matasse recém-nascido nos sete primeiros dias de seu nascimento e pena atenuada para mãe, nos casos de ocultação da própria desonra. A partir da década de 1930 houve uma aproximação entre Estado e medicina, a construção de imagem feminina por meio de reprodução, junto com o aparecimento de ideias eugênicas, propagação de métodos contraceptivos, trabalho feminino fora de casa e crescente organização de mulheres reivindicando seus direitos. Debates em torno da reprodução feminina e controle de natalidade (Rohden, 2003). Rohden (2003) afirma que os temas “aborto” e “infanticídio” mobilizaram uma grande quantidade de debates entre juristas e médicos na primeira metade do século XX, particularmente a categoria “loucura puerperal”. Cabe à medicina explicar as atitudes “femininas antinaturais”. Fica evidente sem sua obra a disputa entre médicos e juristas sobre a relação de saberes e poderes sobre toda a natureza. Para ele, o médico teria o saber sobre o feminino, sexo e gestação. “O médico também deve saber que a gravidez influencia a moral da mulher, podendo levar à perversão, à perturbação da vontade, dos gostos, afetos e a paixões extravagantes.” (p. 49). Mulheres sãs podem apresentar moléstias provenientes do útero que podem ser responsáveis por crimes cometidos por mulheres grávidas (Rohden, 2003). Tal argumento coloca a mulher em uma posição de santidade maternal que lhe impede de cometer um crime contra seu filho. Logo, uma mulher que mata seu filho só pode ser louca ou doente. Por fim, o Código Penal de 1940 foi elaborado a partir de critérios fisiopatológicos sob a influência do estado puerperal. “Infanticídio Art. 123. Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos.” (Brasil, 1940). O estado puerperal

Aduz o artigo 123, Código Penal de 1940, que para configurar o crime de Infanticídio devem coexistir os elementos: fisiopsicológico “sob influência do estado puerperal”, o elemento temporal “durante ou logo após” e a especificidade de matar o próprio filho. Para parte da doutrina, o estado puerperal é um estado de perturbações de natureza físicas e mentais. É necessário que haja casualidade entre 196

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a morte do recém-nascido e a presunção absoluta de que a genitora esteja sofrendo transtornos psíquicos gerados pelo estado puerperal, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de discernimento da genitora. Gonçalves (2016) conceitua como: Estado puerperal é o conjunto de alterações físicas e psíquicas que ocorrerem no organismo da mulher em razão do fenômeno do parto. Toda mulher que está em trabalho de parto encontra-se em estado puerperal. O tipo penal, contudo, exige, para a configuração do infanticídio, que a mãe mate sob a influência do puerpério, isto é, que as alterações ocorridas em seu organismo a tenham levado a um sentimento de rejeição ao filho (p. 191).

Capez (2020): Trata-se o estado de perturbações, que acometem as mulheres, de ordem física e psicológica, decorrentes do parto. Ocorre, por vezes, que a ação física deste pode vir a acarretar transtornos de ordem mental na mulher produzindo sentimentos de angústia, ódio, desespero, vindo ela a eliminar a vida do seu próprio filho (p. 231).

Para Massom (2018): “Estado puerperal é o conjunto de alterações físicas e psíquicas que acometem a mulher em decorrência das circunstâncias relacionadas ao parto, tais como convulsões e emoções provocadas pelo choque corporal, as quais afetam sua saúde mental.” (p. 102). Nucci (2020) assevera no estado puerperal pode acontecer perda parcial da compreensão da conduta ilícita do fato: “Há profundas alterações psíquicas e físicas, que chegam a transtornar a mãe, deixando-a sem plenas condições de entender o que está fazendo. É uma hipótese de semi-imputa-bilidade que foi tratada pelo legislador com a criação de um tipo especial.” (p. 876). Diferente dos autores supracitados, que garantem que o estado puerperal é o estado de perturbação psíquica, Prado (2019) assume que o estado puerperal constitui um conjunto de sintomas fisiológicos, mas nem sempre ocasiona perturbações emocionais capazes de fazer com que a mãe mate o próprio filho. “É possível que o fenômeno do parto – com suas dores, com a perda de sangue e o esforço muscular que o acompanham – produza na parturiente um estado de perturbação da consciência” (p. 132). Bitencourt (2020) assegura que o estado puerperal nem sempre ocasiona alterações psíquicas na mulher. O fato de a genitora estar em situação de parto ou pós-parto, não é garantia de que esteja sofrendo transtorno psíquicos ocasionados pelo puerpério. Hungria (2018) também defende que nem sempre o estado puerperal pode determinar alteração psíquica em uma mulher normal, na maioria dos casos a parturiente não se conturba e nem perde o domínio de si mesma. 197

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O Código Penal de 1940, na sua exposição de motivos, adotou o conceito de que a mulher infante precisa comprovar, através de perícia médica, que sofre de perturbação psíquica durante ou logo após o parto. Para Hungria (2018), o legislador penal deixou a questão em aberto, a apreciação de cada caso concreto terá o juiz que invocar o parecer médico-legal a fim de que este informe se a infanticida, ainda que isentas de taras psicopáticas, francas, latentes, teve a contribuir para seu ato criminoso as desordens físicas e psíquicas derivadas do parto. No entanto, para Nucci (2020), é um período inerente a toda mulher, portanto, não haveria necessidade de perícia, pois toda genitora passa pelo estado puerperal e manifesta suas perturbações em graus diferentes. Porém, ao correr dos dias o estado puerperal pode desaparecer, cabendo à defesa comprovar por meio de prova pericial ou testemunhal que a infanticida sofreu com os efeitos do puerpério, lavando-a a matar seu próprio filho. O referido autor não cita o período de dias que o estado puerperal se estende, tampouco a média de duração, mas designa às provas sua constatação. Massom (2018), afirma que: “Prevalece o entendimento no sentido de ser desnecessária perícia para constatação do estado puerperal, por se tratar de efeito normal e inerente a todo e qualquer parto” (p. 102). Fato que merece destaque são as divergências doutrinárias sobre puerpério e estado puerperal. Para a literatura médica, o estado puerperal e puerpério não são sinônimos. Puerpério é um conceito médico que caracteriza o período após o parto até que o organismo da mulher volte às condições normais (pré-gestação). É um período cronologicamente variável, de âmbito impreciso, durante o qual se desenrolam todas as manifestações involutivas e de recuperação da genitália materna havidas após o parto (Rezende; Montenegro, 2014) De acordo com Ferreira, existem variações do período do puerpério: “puerpério imediato (até dez dias após o parto), puerpério tardio (que vai até os quarenta e cinco dias) e o puerpério remoto (que vai de quarenta e cinco dias em diante).” (2020). Ele é um quadro comum a todas as parturientes e termina quando o corpo da mulher volta às condições fisiológicas de ovulação e fertilidade. No entanto, na doutrina jurídica, muitos autores consideram sinônimos, até substituindo os termos em conceitos e exemplificação. Importante observar que, nesses casos, não se faz nenhuma menção à diferenciação, nem abordagem de teses contrárias. Veja como a expressão “puerpério” fora apresentada nas principais doutrinas jurídicas. Para Bintencourt (2020) é: Necessário, no entanto, que a mãe esteja sob a influência do estado puerperal. O puerpério, elemento fisiopsicológico, é um estado 198

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febril comum às parturientes, que pode variar de intensidade de uma para outra mulher, podendo influir na capacidade de discernimento da parturiente. O infanticídio é, a rigor, uma modalidade especial de homicídio privilegiado (p. 562, grifo nosso).

De acordo com Capez (2020): Qual é o período que o código penal presume que a genitora esteja sob influência do puerpério? Haverá, consoante legal, o estado puerperal, durante o parto logo após; contudo nem sempre o fenômeno quase parto produz transtornos psiquiátricos na mulher, de forma que não é uma regra a relação casual entre ambos (p. 231, grifo nosso).

Nucci (2020): “O puerpério é o período que se estende do início do parto até a volta da mulher às condições pré-gravidez. Como toda mãe passa pelo estado puerperal –algumas com graves perturbações e outras com menos – é desnecessária a perícia.” (p. 876). Lapso temporal

A lei define que para a caracterização do crime de infanticídio é necessário que, além da mãe matar o próprio filho, o crime deva ocorrer durante ou logo após o parto, sob influência do estado puerperal. A expressão “logo após”, delimita o espaço temporal do crime. Se cometido antes do parto, será considerado aborto, se após determinado período, homicídio. Entretanto, o uso da expressão “logo após” deixa impreciso o período para enquadramento do crime, pois não há prazo estipulado em lei fixando o seu tempo de duração. Tal delimitação é necessária para diferenciar os crimes de homicídio e infanticídio. Para a doutrina, a expressão “logo após” representa o período de duração da influência do estado puerperal, porém, não delimita a exata duração que a influência do estado puerperal causa na parturiente. Gonçalves (2016) explica que não há um prazo exato, apenas está atrelado à duração do estado puerperal: “Como a duração das alterações no organismo feminino podem variar de uma mulher para outra, acabou-se pacificando o entendimento de que a expressão ‘logo após o parto’ estará presente enquanto durar o estado puerperal de cada mãe em cada caso concreto” (p. 193). Nucci (2020) não fixa um período para ocorrer, para o autor deve-se interpretar o momento como imediatamente após o parto, em consonância com a “influência do estado puerperal”. Prado (2019) afirma que a expressão precisa ser interpretada a caso concreto, enquanto houver influência do estado puerperal na mãe, este 199

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será o lapso temporal que irá caracterizar o crime. Capez (2020) exprime que o termo “logo após” leva em consideração a duração do estado puerperal não importando o número de horas ou dias após o nascimento. Jesus (2020) segue na mesma linha ao afirmar que: “A melhor solução é deixar a conceituação da elementar ‘logo após’ para a análise do caso concreto, entendendo-se que há delito de infanticídio enquanto perdurar a influência do estado puerperal.” (p. 171). Croce e Croce Junior (2012) afirmam que o legislador optou por usar a expressão “sob influência o estado puerperal”, pois não há definição exata pelos doutrinadores do que seria o estado puerperal e, ao fazer a menção de “durante o parto” ou “logo após o parto”, estaria limitando a interpretação obstétrica a um período que compreende o início do parto e imediatamente após. França (2017) considera que não é um período propriamente cronológico, mas tem aspectos psicológicos. “Compreende-se que seja o período que vai desde a expulsão do feto e seus anexos até os primeiros cuidados ao infante nascido.” (p. 1242). No geral, não há na literatura autores que fazem a correlação do período “logo após” com a janela de tempo que a criança que corresponde ao nascente e recém-nascido. Exceção de França, como visto acima, que associa ao infante nascido. Grecco (2017), em analogia parecida, afirma que só configuraria o crime de infanticídio “se, entre o início do parto e a morte do próprio filho, houver uma relação de proximidade, a ser analisada sob o enfoque do princípio da razoabilidade.” (p. 519). Na visão de Angotti (2019), o posicionamento dos doutrinadores sobre o termo “logo após” não se baseia em pesquisas científicas ou o uso de dados e casos. Sem rigor na fundamentação teórica ou empírica. Psicoses puerperais

Sabe-se que o puerpério pode causar alterações psíquicas e fisiológicas na mulher levando a manifestação de psicoses puerperais. O estado puerperal também não se confunde de modo algum com as psicoses puerperais que ocorrem no período pós-parto. Segundo Capez (2020), nas hipóteses em que o estado puerperal ocasiona doença mental na genitora e, se em decorrência desse estado, perde-se a capacidade de entendimento do caráter ilícito da conduta, a mãe responderá como inimputável, por força do artigo 26, caput, do Código Penal, isentando-a de pena. Outras psicoses puerperais também são encontradas na literatura médica, destas, não há que se falar em estado puerperal. Mulheres com doenças mentais pré-existentes podem apresentar piora de suas doenças no período puerperal acarretando o filicídio, mas não sob influência do 200

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estado puerperal. “Débeis mentais, histéricas, perversas assassinas e mulheres portadoras de toda uma gama de personalidades psicopáticas podem desencadear impulsos filicidas no período puerperal, porém não sob influência do estado puerperal.” (Croce; Croce Junior, 2012, p. 1218). Existem alterações relacionadas ao puerpério: tristeza materna (baby blues), psicose puerperal e depressão pós-parto (Silva, 2010). Ficção jurídica?

Há uma corrente que afirma que somente o sofrimento mental não é motivo suficiente para o infanticídio, este seria apenas um elemento que estaria associado a fatores sociais, ambientais, econômicos e biológicos. Jesus (2020) descreve como: “O conceito misto, também chamado composto, leva-se em consideração, a um tempo, a influência do estado puerperal e o motivo de honra.” (p. 166). É possível identificar uma extensão do motivo de honra a fatores sociais. Noronha (2000) entende que o motivo honroso e mesmo a vulnerabilidade social não podem ser desprezados como fatores que originam o estado puerperal. Prado (2019) afirma que é possível a análise dos fatores psicológicos e fisiológicos para fundamentar a diminuição da culpabilidade da parturiente: “Não obstante, em que pese a ausência de referência explícita ao motivo de honra, a legislação penal brasileira não impede que esse antecedente psicológico seja examinado” (p. 791). Hungria (2018) cita que a maioria dos casos de infanticídio que ocorrem no Brasil é de mulheres de classes sociais mais baixas e de gravidezes indesejadas. O motivo de honra pode contribuir para a morbidez fisiológica proveniente do parto. Todas as causas – psicológica e fisiológica – devem ser pormenorizadas e analisadas globalmente. O estado puerperal é bastante questionável na literatura médica. No entanto, sobrepuja a ideia de que o crime de infanticídio está atrelado às vulnerabilidades sociais que a parturiente enfrenta. Para França (2017), seria uma forma que o legislador usou para justificar um tratamento mais brando da lei quando a principal causa seria a pressão social quando a gravidez é motivo de desonra social. Conforme ressalta o referido autor: Na verdade, não há nenhum elemento psicofísico capaz de fornecer à perícia elementos consistentes e seguros para se afirmar que uma mulher matou seu próprio filho durante ou logo após o parto motivada por uma alteração chamada “estado puerperal”, tão somente porque tal distúrbio não existe como patologia própria nos tratados médicos (p. 1239). 201

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França (2017) destaca que o infanticídio sempre ocorre em gravidezes indesejadas, mantidas sob sigilo, a fim de preservar a honra da genitora frente à família e à sociedade. São parturientes que usam métodos de crueldade e frieza como maneira de ocultar a desonra e livrar-se do fruto das suas relações clandestinas. Não apresentam doenças psicológicas preexistentes. As principais acometidas por esse estado psicofisiológico são mulheres em situação de vulnerabilidade social, que engravidam contra a sua vontade, mães solteiras, mulheres abandonadas por seus parceiros (Croce; Croce Junior, 2012). Gomes (1970) afirma que as emoções do abandono moral, as dores do parto causam um abalo psicológico na mulher que faz com que ela mate seu filho. Almeida Junior e Costa Junior (1988) descrevem situação intermediária, a mulher sob trauma da parturição, dominada por elementos psicológicos em conjunto com uma gestação indesejada. A pesquisadora estadunidense Oberman (2003), internacionalmente reconhecida por estudos sobre gravidez e maternidade, define quatro categorias em que o filicídio ocorre nos Estados Unidos: No primeiro padrão, são casos que envolvem mulheres jovens de diferentes classes sociais, socioeconômicas, raciais e religiosas, que negligenciam a gravidez a ponto de negarem para si e família que estão grávidas, com medo de enfrentarem a realidade social que as encara com desonra, dissociam de seus corpos em mudanças. Muitas delas negam inevitavelmente o trabalho de parto e confundem as dores do parto com as dores de defecar. Acabam tendo seus filhos em vasos sanitários e descartando-os em seguida (p. 495, tradução nossa).

O segundo padrão é de assassinatos não intencionais que ocorrem quando a mãe, em cuidados primários com o nascido, por negligência ou erro, acarreta a morte da criança. A exemplo, a criança deixada sozinha em casa ou no carro. A grande maioria de casos envolve mães solteiras que acumulam outras tarefas além no cuidado materno (Oberman, 2003) O terceiro padrão envolve mulheres que matam seus filhos em episódio de abuso infantil. São mulheres que têm um histórico de abuso contra seus filhos. A morte da criança não reflete um único ato, mas um processo longo de violência (Oberman, 2003). Uma quarta categoria seria a de mulheres que matam seus filhos em conjunto com seus parceiros. São mulheres que são vítimas de violência doméstica e que não conseguem proteger seus filhos das agressões do parceiro, ou até mesmo colaboram com ele (Oberman, 2003). Nas quatro categorias não há que se falar em doenças mentais, ou até mesmo em abalos psíquicos. A última categoria envolve mulheres que matam propositalmente seus filhos, manifestam algum grau de doença mental. Porém, doença esta 202

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que combina com sua situação de vulnerabilidade frente a uma gestação solitária, mulheres que sofrem com doenças mentais sem qualquer apoio externo (Oberman, 2003). Gumieri (2012) cita sistema classificatório desenvolvido pelo psiquiatra estadunidense Philip J. Resnick, em 1970, baseado na análise de 131 casos relatados na literatura mundial de homicídio infantil cometidos por mães e pais. Cinco categorias foram estabelecidas: a) filicídio altruístico, que ocorre quando a mãe mata o/a filha/o acreditando estar protegendo-lhe de algum perigo (no caso de mães suicidas, o perigo pode se relacionar às dificuldades previstas para a vida de uma criança órfã e desamparada; mães psicóticas podem acreditar estar salvando a criança de um destino pior que a morte); b) filicídio psicótico agudo, que se refere a mães psicóticas ou delirantes que matam sem motivos compreensíveis (como, por exemplo, a obediência a alucinações com comandos para matar); c) filicídio acidental, decorrente de maus tratos fatais, isto é, situações contínuas e cumulativas de abuso infantil ou negligência; d) filicídio decorrente de gravidez indesejada, quando a mãe encara a criança como um obstáculo em sua vida; e) filicídio por vingança conjugal, tipo mais raro, em que a mãe mata a criança para afetar emocionalmente o pai. Resnick não analisou casos de neonaticídio, por acreditar que se tratava de uma conduta diferente do filicídio (p. 9).

A maioria das análises de casos no Brasil debruça-se sobre processos criminais, não havendo análise de dados e interlocução entre os motivos que ocasionaram o fato. O principal estudo encontrado remonta há 1994, do psiquiatra Mauro Mendlowicz. Mendlowicz (1994), através de levantamentos processuais, inquéritos, laudos periciais, exames, avaliou 55 casos de mulheres que mataram seus filhos recém-nascidos logo após o parto, durante 1900 a 1989, no estado do Rio de Janeiro. Em seu estudo, ele identificou que 90% das infanticidas tinham idade que correspondia de 16 a 28 anos. Em 91% dos casos as infanticidas trabalhavam como empregadas domésticas ou em tarefas similares como, por exemplo, lavadeira e cozinheira. A grande maioria sem instrução primária, sendo negras e pardas. Em 80% dos casos o crime se deu com o assassinato do primeiro filho (80%). Gestações em segredo correspondiam a 78,18% dos casos, desses, 46,51% fizeram sem levantar suspeitas. A maioria dos partos aconteceu nas residências onde as infanticidas trabalhavam e pernoitavam ou em suas residências, 69,09% em horário noturno. A maior parte dos infanticídios ocorreu poucos minutos, ou no máximo, algumas horas após o nascimento da vítima. As únicas exceções a esta regra são os 2 casos de 203

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infanticídio hospitalar, nos quais o assassinato das crianças ocorreu após 6 e 8 dias. Cerca de 90% das infanticidas tiveram partos sigilosos. Em apenas 3 casos elas tiveram auxílio de outro agente (Mendlowicz, 1994). Quadro 1

- Justificativas para o crime de infanticídio

Ocultação da atividade sexual 19 casos (22,13%)

Vergonha/ocultar a desonra/”o namorado não podia casar” 16 casos (18,6%). Esconder do amante o fato de ter engravidado de terceiros 2 casos (2,32%); Para evitar escândalo familiar - 1 caso (1,16%)

Morte natural 16 casos (18,6%)

A criança nasceu morta - 14 casos (1 6,27%) A criança morreu espontaneamente - 2 casos (2,32%)

Morte acidental 16 casos (18,6%)

Parto em pé ou sentada no vaso, seguido de queda - 12 casos (13,95%) Outras formas de acidentes - 4 casos (4,65%)

Razões econômicas

Falta de recursos/medo de ser demitida - 8 casos (9,3%)

Recusa da criança

Afirmou que não queria a criança e/ou que a mataria - 3 casos (3,48%)

Distúrbio comportamental

Perda dos sentidos/"não se lembra do que fez"/"não tinha noção do que fez" - 17 casos (19,76%) Não forneceu explicações - 5 casos (5,81 %) Desconhecida - 2 casos (2,32%)

Fonte: Mendlowicz (1994, p. 218).

As pesquisadoras Ziomkowski e Levandowski (2017) analisaram 21 casos de infanticídio a partir de peças processuais nos anos de 1998 a 2011, no estado do Rio Grande do Sul. Constataram que eram mulheres jovens, predominantemente de baixa escolaridade, em sua maioria com empregos informais de baixa remuneração, em gestações não planejadas e grande parte dos casos houve ocultação da gravidez.

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Quadro 2 - Características do crime

Causa Mortis

asfixia - 14 casos (66,7%); ferimentos por instrumentos cortantes- 3 casos (14.2%) afogamento- 2 casos (9,52%); não consta a informação -1 caso; 1 caso de recém-nascido abandonado em local ermo, mas sobreviveu.

Ocultação de Cadáver 5 casos (23,8%)

Idade das Infanticidas

19 anos - 4 casos (19%); 18 anos -3 casos (14,28%); 20, 22 e 24 anos 3 casos (14,28%); 25, 31, 38 – 3 casos (14,28%); 8 casos desconhecido.

Situação Conjugal

mães eram solteiras - 11 caso (52,38%); casadas – 2 casos (9,52%); namoravam – 4 casos (19%); estupro – 1 caso (4,8%); sem informação -4 casos.

Escolaridade

Ensino Fundamental Completo – 1 caso (4,8%); Ensino Fundamental Incompleto – 3 casos (14,28%); não tinham informações se tinham concluído o Nível Fundamental -2 casos (9,52%); Ensino Médio completo – 2 casos (9,52%); Ensino Médio Incompleto – 1 caso (4,8%); sem informação – 12 casos.

Ocupações

Empregos informais (agricultura, doméstica, atividades do lar) – 10 casos (47,61%);

Relatos da Gravidez

Gestação não planejada – ¬14 casos (66,6%), destas, 11 (78%) delas houve ocultação da gestação; desejo de prosseguir com a gestação – 2 caos (9,52%); 2 (9,52%) casos as mães desconheciam que estavam grávidas.

Intenção de Cometer Aborto

(5 casos 23,8%)

Acompanhamento Gestacional

3 procuraram atendimento médico, mas não prosseguiram com as consultas.

Local de Parto

Âmbito residencial (principalmente em banheiros) – 16 casos (76,19%); trabalho de parto solitário: 16 casos (76,19%); em outros locais (banheiro, estrada, próximo a um banhado) – 3 casos (14,28%).

Laudos

Transtornos psiquiátricos: 5 casos (23,8%) destes 2 (40%) caos depressão pós-parto grave com sintomas psicóticos, 1 (20%) deficit cognitivo, 2 (40%) casos verificou-se a presença de quadro psicótico relativo ao nascimento do filho e de retardo mental leve, respectivamente; 4 (19%) casos a perícia negou a existência de transtornos psíquicos, nem mesmo sob a influência do estado. puerperal.)

Fonte: Ziomkowski e Levandowski (2017). 205

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Os dados permitem enxergar as mulheres além da figura apresentada pelo aspecto psicofisiológico atrelado às perturbações psíquicas que o estado puerperal pode ocasionar. A pesquisadora Angotti (2019), em análise a 179 acórdãos, constatou que em apenas 13 casos menciona-se a figura paterna apenas para relatar como aconteceu a gestação. Em 8 dos 179 casos o parceiro abandonou a mãe no momento que soube da gravidez. Em quatro casos há continuidade da relação durante toda a gestação sem que o parceiro soubesse da gravidez. Em dois acórdãos foram relatadas ameaças à mulher, caso ficasse grávida. No passado o crime teria sido causado em maior medida por homens, no presente, teria a figura feminina como alvo central. A atribuição de cuidados maternos historicamente é atribuída às mulheres, a garantia de sobrevivência do filho apenas à mãe. “As mulheres estariam, assim, em um constante estado de natureza como potenciais assassinas de violência natural por um lado, ou como mães naturalmente cuidadosas de outro.” (Santos, 2017). Há divergências no que se refere ao conceito de infanticídio, especialmente, no que tange ao estado puerperal e a medida da sua influência. As divergências doutrinárias geram grande dificuldade literária na sua definição, portanto, sua comprovação pela perícia médico-legal. É Preciso que a perícia médica analise o estado psíquico da parturiente, pois, para a configuração do delito é indispensável que a parturiente esteja sofrendo graves abalos psicológicos ocasionados pelo estado puerperal. Tal perícia é considerada a “cruz dos peritos”, pois na literatura médico legal há divergências quanto às técnicas utilizadas, sem consolidação ou padrão que atenda à complexidade de cada caso para a produção dos laudos. Não ficando claro quais elementos devem ser considerados para a identificação e avaliação das perturbações causadas pelo estado puerperal. O exame precisa ser realizado imediatamente após a consumação do ato criminoso, o que na prática mostra-se tarefa quase impossível. Para França (2017), mesmo levando em conta a existência do estado puerperal, o estado psíquico da parturiente sempre será levado em consideração. Para tanto, o autor define parâmetros a serem seguidos: 1. Se o parto transcorreu de forma angustiante ou dolorosa; 2. Se a parturiente, após ter realizado o crime, tratou ou não de esconder o cadáver do filho; 3. Se ela se lembra ou não do ocorrido ou se simula; 4. Se a mulher tem antecedentes psicopáticos ou se suas consequências surgiram no decorrer do parto; 5. Se há vestígios de outra perturbação mental cuja eclosão, durante o parto ou logo após, foi capaz de levá-la a praticar o crime (p. 1275).

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Croci e Croci Junior (2012), além dos elementos citados por França (2017), acrescentam “se a imputada, após o crime, escondeu ou não o filho morto” (p. 1235). Tribunal do júri

O Tribunal do Júri ou “Tribunal Popular” é um órgão especial do Poder Judiciário responsável por julgar crimes dolosos contra a vida. Previsto no art. 5º, XXXVIII da Constituição Federal de 1988, no rol de Direitos e Garantias Individuais. Lima (2016) considera que colocar o Tribunal do Júri no referido artigo da Constituição Federal (1988) guarda ideia de que o acusado será julgado pelos seu pares, através de pessoas leigas, uma garantia de defesa do cidadão contra as arbitrariedades do Estado. Além de ser uma forma de exercício da democracia, pois é um instrumento de participação direta do povo. “Garantindo-se a competência mínima, sob mando constitucional, ao Tribunal do Júri, dele não se pode subtrair o julgamento dos delitos dolosos contra a vida, que são basicamente os seguintes: homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto.” (Nucci, 2020, p. 106). Os quesitos para que o conselho de sentença diga se a ré é inocente ou culpada são descritos no artigo 483, no Código de Processo Penal: Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. [...] § 1º A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado (Brasil, 1941, grifo nosso).

No julgamento em plenário os jurados julgarão se a ré será condenada ou absolvida. Momento de suma importância, conforme cita Angotti: “Trata-se de espaço privilegiado para análise do direito em ação, uma vez que do plenário do júri participam os principais atores e atrizes processuais, como rés, defesa, acusação, testemunhas, juízes e/ou juízas.” (p. 89). Aduz ressaltar que há controvérsia em torno da hipótese que, na votação do júri, os jurados reconhecem a autoria, mas não aceitam que a acusada agiu sob influência do estado puerperal (Gonçalves, 2016). Ou seja, 207

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mesmo que para a doutrina majoritária para a tipificação do crime exija-se o laudo de especialistas psiquiátricos afirmando que a genitora agiu sob influência do estado puerperal, tal afirmação desmorona-se diante da negação do júri, formado por pessoas leigas. O ato de matar o próprio filho durante ou logo o parto não quer dizer que foi sob influência do estado puerperal. É necessário que haja provas que reconheçam que a parturiente estivesse sob forte efeito de perturbação psíquica hormonal, sendo incapaz de discernir ou se autodeterminar. “Contudo, havendo documentos médicos que atestem a higidez mental da acusada, deve-se deixar a cargo do Conselho de Sentença decidir se a vítima agiu ou não sob influência do estado puerperal.” (Grecco, 2017, p. 517). A dificuldade de elaboração do laudo que ateste a influência do estado puerperal gera discursões acerca da sua importância para a tipificação do crime. Em caso do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou-se a pronúncia da acusada sem o laudo pericial ter atestado a influência do estado puerperal, baseando-se no laudo pericial que afirmou que a acusada estava grávida há pouco tempo, de relatos de testemunhas que diziam que a infanticida escondera a gravidez dos familiares e do próprio depoimento da acusada afirmando que jogou a criança no matagal logo após o parto. E embora não haja laudo pericial que ateste o estado puerperal da acusada no momento do crime, é certo que também há indícios de que apontam para a existência dessa elementar, o que basta para decisão da pronúncia (São Paulo (2008).

Em decisão parecida, o Tribunal de Justiça de Rondônia deliberou que a ausência de laudo pericial por si só não enseja a falta de materialidade do delito: A desclassificação do crime de homicídio qualificado para homicídio culposo ou infanticídio não deve ser operada quando as provas dos autos não permitam que seja reconhecida de plano que o agente tenha agido sem intenção de matar a vítima, ou ainda, sob a influência de estado puerperal, devendo as dúvidas serem resolvidas em favor da sociedade, pois a real intenção do agente é questão diretamente ligada ao mérito da causa, cujo juízo preciso a ser formulado compete ao egrégio Tribunal do Júri (Rondônia, 2020).

Ao dolo e culpa, elementos que interferem na incidência da imputabilidade e semi-imputabilidade, o que caracterizaria a incidência do art. 26 do CP, com absolvição imprópria e a imposição de medida de segurança. Sem o laudo pericial que ateste que a acusada praticou o fato em decorrência das doenças ocasionadas pelo puerpério, restaria inviável sua verificação, restando para os jurados leigos decidirem, através do conjunto probatório. 208

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Em julgado do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, a defesa requereu a inimputabilidade da acusada. A acusada relata que não sabia que estava grávida. Ao dia do fato, relatou não se lembrar do ocorrido, que só acordou quando estava no hospital. O médico que lhe atendeu afirmou que a parturiente estava com a consciência alterada, tendo lhe encaminhado para a avaliação psiquiátrica, onde fora internada. O Tribunal decidiu pela pronúncia da acusada no crime de infanticídio, com o argumento de que não fora produzido laudo médico demonstrando a inimputabilidade de ré, porém também não há laudo atestando existência do estado puerperal. 1. Existindo prova da materialidade e indícios suficientes de autoria que apontem para a possível ocorrência de crime doloso contra vida, impõe-se a pronúncia da ré para julgamento pelo Tribunal do Júri, órgão constitucionalmente competente para analisar os elementos probatórios e proferir o veredicto. 2. Na atual fase processual, que é de mero juízo de admissibilidade da acusação, só pode ser operada a absolvição quando provada a inexistência do fato, provado não ser o acusado autor ou partícipe, o fato não constituir infração penal ou demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime (art. 415 do CPP), o que não se tem nos autos (Rio Grande do Sul, 2015).

Angotti (2019), em estudo sobre as audiências do tribunal do Júri nos crimes de infanticídio, constatou que membros do Ministério Público, a acusação, insistiam na pronúncia da acusada, mesmo na presença de laudo pericial, levantando dúvidas quanto à autoria da materialidade do crime, atestando a incapacidade da ré em perceber que estava acontecendo, insistindo em pedir a pronúncia, nos termos da denúncia. “É como se todo o processo probatório não tivesse veracidade” (p. 222). Cabe ao Conselho de Sentença, único competente para decidir sobre o mérito de acusações concernentes ao crime de infanticídio, determinar se a agente agiu sobre influência do estado puerperal ou doenças psíquicas, mesmo que não conste laudo psiquiátrico no processo. Considerações finais

O crime tem sua principal base no estado puerperal. Conceito jurídico que atrela a prática do crime às eventuais perturbações psíquicas que o estado pós-parto pode acarretar Descrito nas doutrinas jurídicas como um estado de perturbação psíquica ou um estado que pode acarretá-la, que ocorre em mulheres que passaram pelo trabalho de parto, de período impreciso, podendo durar horas, dias, semanas ou meses. Quanto tempo permanece? Cabe a medicina dizer. A medicina não abraça totalmente o termo. Alguns autores consi209

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deram ser uma ficção jurídica. Apesar de reconhecerem o puerpério e as doenças relacionadas a ele. O puerpério é definido como o período do parto que perdura até que o corpo da mulher volte às condições pré-gravíticas. Contudo, há doenças relacionadas ao puerpério, como loucura puerperal, depressão pós-parto e baby blus, que podem fazer com que a mãe mate seu próprio filho no período do puerpério (durante ou logo após o parto). Mas qualquer desses casos não caracterizaria o crime de infanticídio, e a mãe não responderia como inimputável, por força do artigo 26 do CP. Porém, em análise de casos, há um padrão de comportamento de infanticidas e muitos deles nada têm a ver com sofrimento mental. São mulheres em situação de vulnerabilidade social, mães jovens, em gestações solitárias que fecham os olhos para a realidade que as cercam ignorando o possível problema, escondendo a gravidez da família e da sociedade, até mesmo confundindo as dores do parto com o ato de defecar e matando seus filhos após o parto. Alguns doutrinadores trazem a matéria associada às variações hormonais do puerpério como fatores externos, mas não são considerados na prática do Juri, os crimes são julgados por pessoas comuns, que nada entendem sobre medicina. Diante disso, fica patente a enorme interdependência da medicina para a identificação do crime em questão. A convicção na interpretação do estado puerperal, suas influências no estado psíquico da parturiente e das consequências que essas podem acarretar, são de suma importância no resultado do julgamento. Não há interseção entre a antropologia, que reveste os casos, e o Direito. Não há estudos, no Brasil, que associam o sofrimento mental às gestações indesejadas e possíveis fatores de risco para o infanticídio. Referências

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Psiquiatria) – Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994. NORONHA, MAGALHÃES. Direito Penal. Volume 2. Dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 2. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Forensse, 2020. E-book OBERMAN, M. Mothers who kill: cross-cultural patterns in and perspectives on contemporary maternal filicide. International Journal of Law and Psychiatry, v. 26, n. 5, p. 493-514, 2003. DOI:10.1016/S01602527(03)00083-9. E-book. Disponível em: https://www.researchgate.net/ publication/9069924_Mothers_who_kill_Cross-cultural_patterns_in_and_ perspectives_on_contemporary_maternal_filicide. Acesso em: 1 nov. 2016. PRADO, L. R. Tratado de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 249 do CP. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. v. 2. REZENDE, Filho J; MONTENEGRO, Carlos Antonio. Rezende Obstetrícia. 13. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2014. RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Primeira Vara Criminal. Recurso em Sentido Estrito n. 70065040602. Ementa: recurso em sentido estrito. Tribunal do júri. Pronúncia. Infanticídio. Indícios suficientes de autoria e prova da materialidade da imputação. Negaram provimento ao recurso. Relator: Julio Cesar Finger, Julgado em: 04-11-2015. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/buscas/ jurisprudencia/exibe_html.php. Acesso em: 17/11/2022. ROHDEN, Fabíola. A arte de enganar a natureza: Contracepções, aborto e infanticídio no inicio do século XX. Coleção História e Saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003. RONDÔNIA (Estado).. Tribunal de Justiça de Rondônia. 1º Vara Criminal. Recurso em Sentido Estrito n. 0000956-87.2015.8.22.0006. Ementa: Tentativa de aborto provocado pela gestante. Homicídio qualificado. Preliminar de cerceamento de defesa. Ausência de laudo pericial. Irrelevância. Materialidade comprovada por outros meios de prova. Absolvição sumária. Impronúncia. Inviabilidade. Desclassificação do crime de homicídio para sua forma culposa ou Infanticídio. Improcedência. Indícios suficientes de autoria. Princípio in dubio pro societate. Relator: Desembargador José Jorge Ribeiro da Luz, publicado em 27/07/2020. Disponível em: https://webapp.tjro. jus.br/juris/consulta/detalhesJuris.jsf?cid=2. Acesso em: 17/ nov. 2022. SANTOS, Luna Borges Pereira. Infanticida e castigo moral e produção de verdade em um arquivo. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017. E-boook. Disponível em: https:// repositorio.unb.br/handle/10482/22913. Acesso em: 19 out. 2022. 212

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SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Relator: Teodomiro Méndez. Julgamento em 25/08/2008. Publicação em 18/09/2008. 2ª Câmara de Direito Criminal. TJ-SP – SP. SILVA, Lilian Ponchio. O estado puerperal e suas interseções com a bioética. 2010. 128f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2010. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/98936/ silva_lp_me_fran.pdf?. Acesso em 13 out. de 2022. ZIOMKOWSKI, Patrícia; LEVANDOWSKI, Daniela Centenaro. Fatores de risco ao crime de infanticídio: análise de julgamentos do tribunal de justiça do estado do Rio Grande do Sul. Pesqui. prát. psicossociais [online], v. 12, n. 2, p. 361-373, 2017. ISSN: 1809-8908.

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CAPÍTULO 16 A APREENSÃO DOS SENTIDOS DO TRABALHO REMOTO Hugo Luís Zuim Lavoyer1 João Carlos Caselli Messias2

Introdução

A forma como um trabalhador concebe o sentido que seu trabalho possui pode constituir um fator de risco ou proteção à sua saúde psíquica. Desde meados dos anos 1980, estudos a respeito do tema vêm sendo desenvolvidos ao redor do mundo como o capitaneado pelo grupo Meaning of Work – MOW que destaca: a) centralidade - o grau de importância na vida de uma pessoa, em termos relativos ou absolutos; b) normas - crenças sobre obrigações e direitos; c) valores - resultados e importância do trabalho (Salanova; Gracia; Peiró, 1996). O trabalho consiste em um importante elemento de estruturação da identidade, independência, liberdade e expressão da pessoa (Gai; Sales; Costa, 2021; Morin, 2001). Bendassolli e Gondim (2014) explicitam a função psicológica que o trabalho possui, ao mediar sentidos subjetivos que os trabalhadores possuem a respeito daquilo que fazem e os significados socialmente compartilhados acerca do mesmo tema. Rosso, Dekas e Wrzesniewski (2010) organizam estudos sobre o sentido do trabalho de outra forma. Ao invés de distinguirem significados (pessoais) e significados (coletivos), os autores preferem organizar os estudos de acordo com o (tipo de) significado e significado (grau de importância) atribuído à obra. Também não se pode deixar de considerar elementos contextuais econômicos, políticos e legais, para a compreensão dos aspectos psicológicos e sociais relacionados (Colomby; Oltramari; Rodrigues, 2018). 1 Graduando da Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-SP). E-mail: [email protected]. 2 Professor Orientador. Faculdade de Psicologia – Pontifícia Universidade Católica de Campinas. E-mail:[email protected]

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No início do ano de 2020, o advento da pandemia da covid-19 provocou mudanças profundas e repentinas na sociedade (Brooks et al., 2020). Em função da alta taxa de contaminação e letalidade do vírus somada à inexistência de vacinas eficazes durante praticamente todo o primeiro ano, o isolamento social foi a medida mais adotada como forma de proteção (Wang et al., 2020), impactando condições de trabalho de profissionais das mais variadas áreas, que passaram a atuar em suas casas, remotamente. Esse tipo de situação pode trazer agravos à Saúde Psíquica dos trabalhadores, pois altera drasticamente condições essenciais relacionadas aos Fatores Psicossociais de Risco no Trabalho – FPRT, que englobam o conteúdo do trabalho, carga e ritmo, agenda, controle, ambiente, equipamentos, cultura organizacional, relações interpessoais, clareza de papéis, carreira e interface com a vida pessoal (Leka; Cox, 2008). No caso de profissionais liberais, o sentido que atribuem à sua atuação foi colocado em questão, especialmente no tocante à sua própria viabilidade. Acostumados a buscarem competências distintas das suas áreas de formação, precisaram tomar decisões estratégicas importantes para manterem-se ativos (Messias et al., 2022). Profissionais celetistas, por sua vez, tiveram que sujeitar-se às diretrizes de suas organizações, adaptar espaços e recursos em suas casas para entregar resultados ao mesmo tempo em que perdiam apoios fundamentais como o de trabalhadores domésticos e da escola. Tal desequilíbrio ficou especialmente no caso das trabalhadoras mães de crianças pequenas (Rossini; Messias, no prelo). Para se entender a definição de Home office e teletrabalho, ambos trabalhos realizados fora da dependência do empregador, feita de maneira remota, faz-se necessário contextualizar a origem do trabalho em si. O trabalho, no sentido de sobrevivência, existe desde que o homem descobriu que precisava agir em sua defesa e precisou buscar recursos para satisfazer suas necessidades biológicas de sobrevivência, decidindo o que, como e quando produzir, sendo dono do seu próprio tempo. A medida de suas necessidades passaram a determinar a condição histórica do trabalho (Leal, 2014). Historicamente, a palavra trabalho vem carregada de sofrimento. De sua etimologia pode-se perceber a carga que ela representa, pois nas diversas línguas têm a mesma origem. Exemplo: labor (inglês), travail (francês), arbeit (alemão), ponos (grego). Elas têm a mesma raiz de fadiga, pena, sofrimento, pobreza que ganham materialidade nas fábricas-conventos, fábricas prisões, fábricas sem salário. A palavra trabalho era considerada até à época moderna como sinônimo de penalização e de cansaço (De Decca, 1985). Mas, foi a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial, principalmente, que o trabalho ganhou a configuração como vinha sendo conhecido atualmente, fazendo com que as pessoas passassem longos períodos da 216

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sua vida dentro do ambiente de trabalho. Este deve oferecer condições para que o trabalhador trabalhe a contento dele e da empresa, e estar adequado para proteger contra prejuízos físicos, psíquicos e sociais (Calhau, 2009). Sobre ambiente de trabalho, compreende-se, ainda, o espaço onde se espera que o trabalho aconteça, ou a unidade econômica para a qual o trabalho é realizado. No Dicionário on-line de Língua Portuguesa a expressão “ambiente” significa: substantivo masculino: Meio ambiente; tudo o que faz parte do meio em que vive o ser humano, os seres vivos e/ou as coisas. Recinto; lugar em que se está: ambiente aberto. Atmosfera; reunião do que envolve uma pessoa, sua situação financeira, cultural, psicológica e moral: ambiente pobre, alegre. [Informática] Conjunto dos elementos através dos quais os programas são executados. Adjetivo; Que está ao redor, envolvendo pessoas ou coisas: música ambiente. Etimologia (origem da palavra ambiente). Do latim ambiens.entis (Ambiente, s.p.).

Desde a década de 1960 o assunto passou a ter mais importância para ambientalistas e organizações internacionais. Em 1972, na Suécia, foi realizada a 1ª Conferência Mundial sobre o Meio ambiente, voltando com relevância na ECO, 92, no Rio de Janeiro, Brasil, com a presença de 179 países preocupados em discutir o tema. Melo (2015) esclarece que as áreas amparadas pela lei ambiental são divididas em quatro aspectos: natural, artificial, cultural e do trabalho. Este está amparado pelas normas legais que regem o Direito Ambiental. Sendo assim, entende-se que o meio ambiente de trabalho se enquadra no aspecto do meio ambiente geral, conforme os moldes do Art. 200 da Constituição Federal (Brasil, 1988) no que diz em seus incisos II e VIII respectivamente: executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. A Convenção 155 da OIT, em seu artigo 3º, alínea “c”, estabelece que: “a expressão ‘local de trabalho’ abrange todos os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou onde têm que comparecer, e que esteja sob o controle, direto ou indireto, do empregador”. As modificações estruturais econômicas e sociais alteraram o sentido de trabalho e do sujeito com ele, processo dinâmico que ganha nova relevância no atual contexto. Compete trazer à luz as origens do teletrabalho e suas primeiras aparições e quem, pela primeira vez, fez uso dessa prática. Sem saber que o 217

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seu sistema de trabalho fosse alcançar grandes proporções em futuro próximo, J. Edgar Thompson, da empresa Penn Railroad, em 1857, já utilizava o sistema privado de telegrafia para controlar os trabalhadores e os equipamentos nos canteiros remotos de uma construção de estrada de ferro. Pode-se dizer que Thompson foi o vanguardista do sistema de teletrabalho. Essa forma flexível de trabalho, o home office, favorece o tempo, o espaço, a comunicação e, eventualmente, a vida social e organizacional (Palmeira; Tenório, 2002 apud Silva, 2009). Com os avanços promovidos pela Terceira Revolução Industrial e a tecnologia ao alcance da população, modificou-se a forma de as pessoas relacionarem-se entre si e a desenvolverem suas atividades à distância (Cordeiro; Ferreira, 2021). Trata-se de uma evolução tecnológica que veio substituir o modelo taylorista-fordista e toyotista, possibilitando uma liberdade de ação e vida apregoadas pelo neoliberalismo (Silva; Figueira, 2017). Cabe, entretanto, distinguir home office de teletrabalho, o que vem causando confusões no meio jurídico e acadêmico, comumente usadas como sinônimo por juristas e pela jurisprudência. O termo teletrabalho ou telework não é o mesmo que trabalho em domicílio ou home office. Pode-se entender que teletrabalho é um gênero e home office é espécie, uma vez que o teletrabalhador pode realizar suas atividades em telecentros, escritórios satélites, ou qualquer locar adverso do estabelecimento empresarial em que tem vínculo. Assim o obreiro pode trabalhar além do seu âmbito residencial (Silva; Figueira, 2017). Compreende-se, assim, que no home office o trabalhador permanece em seu domicílio, sua habitação e seu trabalho confundem-se em apenas um ambiente. Diante de tal entrave, constata-se que, com a vigência da Lei 13.467, de 2017, a chamada Reforma Trabalhista, regulamenta-se o teletrabalho no Brasil e corrobora com a análise de Silva e Figueira (2017), de acordo com o artigo 75-B da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo. Logo, home office e teletrabalho devem ser analisados de forma distintas para se entender cada um, as vantagens e as desvantagens para o trabalhador envolvido nesses regimes laborais, uma vez que na Legislação brasileira ainda não existe lei que regulamente o home office, mas somente o teletrabalho. Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o teletrabalho apresenta diversas modalidades, devendo ser levadas em consideração: o local de trabalho (em casa, centro-satélite ou escritório satélite, centro de teletrabalho ou cento de recursos, teletrabalho móvel, nómada ou itinerante e tele-serviço); o horário de trabalho (tempo inteiro e tempo parcial); e a 218

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situação sócio-profissional (trabalho assalariado e trabalho independente) (European Comission, 2000 apud Cordeiro; Ferreira, 2021). Por um lado, há vantagens para o trabalhador, que reduz tempo e economiza com despesas para ir e vir ao local de trabalho, conciliando vida familiar com a profissional. Ganha autonomia e evita, se preferir, contatos com colegas de trabalho. Para a empresa há a redução de custos imobiliários, transporte e alimentação do funcionário e pode haver aumento de produtividade, uma vez que o tempo fica melhor administrado pelo funcionário. Esse processo é socialmente benéfico, pois estando em casa, diminui o fluxo nos meios de transportes, ruas, evitando aumento da poluição, novos empregos são criados possibilitando e diminuindo a exclusão social (Da Silva, 2018). Entretanto, as desvantagens também pesam para os mesmos envolvidos, como sentir-se socialmente isolado, longe dos colegas de trabalho, desenvolver estresse por estar constantemente com os membros familiares enquanto desenvolve suas atividades, podendo prejudicar seu relacionamento familiar, sem contar que pode perder sua privacidade, caso o empregador se envolva em sua vida particular (Cordeiro; Ferreira, 2021). Além disso, diminui a proteção jurídico trabalhista, prejudicando reivindicações coletivas e, isolado, não há como ser visto e valorizado para uma possível promoção profissional. Para a empresa dificulta o controle de assegurar o profissional no local do trabalho, acompanhar o resultado das tarefas (Da Silva, 2018). Objetivos Objetivo primário

- Compreender as vivências de profissionais que passaram a atuar remotamente ou em modelo híbrido em função da pandemia da covid-19. Objetivos secundários

- Identificar elementos relacionados ao sentido que as pessoas atribuem ao trabalho, considerando-se a abrupta mudança das condições de trabalho; - Buscar elementos relevantes para a compreensão da motivação e qualidade de vida no trabalho, com especial atenção à relação entre trabalho e vida pessoal. Metodologia

A presente pesquisa será realizada com base no recurso metodológico de Narrativas Compreensivas (Brisola; Cury; Davidson, 2017). Os par219

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ticipantes serão oito profissionais celetistas, maiores de idade, de ambos os sexos, com formação superior, que nunca haviam trabalhado em regime remoto ou híbrido e que passaram a desempenhar suas atividades a distância em função da pandemia da covid-19. Serão realizados dois encontros dialógicos com cada participante a partir da questão: “Qual é o sentido do trabalho para você?”. Após o primeiro encontro, será elaborada uma narrativa compreensiva buscando captar a essência do que foi compartilhado. A narrativa será refinada e discutida no grupo de pesquisa e apresentada ao participante no segundo encontro. Nesse momento, ele poderá fazer ajustes que julgar necessários, para atender aos critérios previstos no Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ) (Tong; Sainsbury; Craig, 2007). Ao final dos encontros, será elaborada uma Narrativa Síntese e os resultados serão analisados a partir dos referenciais da Psicologia da Saúde Ocupacional e da Abordagem Experiencial. Participantes

- Profissionais celetistas, maiores de idade, de ambos os sexos, com formação superior, que nunca haviam trabalhado em regime remoto ou híbrido e que passaram a desempenhar suas atividades à distância em função da pandemia da covid-19. Critérios de exclusão

- Pedidos de desistência em relação à participação na pesquisa, a qualquer momento; - Encontros dialógicos que não abordem, majoritariamente, a temática proposta. Procedimento

- A pesquisa está vinculada ao Projeto Docente, O Sentido do Trabalho: leituras a partir do Modelo Processual, do orientador; - Os pesquisadores buscarão participantes que estejam de acordo com os critérios de inclusão por meio de convites e indicações; - Os encontros dialógicos serão realizados com cada um dos participantes em local escolhido pelos mesmos ou por meio de videoconferência e que permita privacidade e sigilo; - Uma narrativa compreensiva será elaborada após cada encontro, discutida com o grupo de pesquisa e refinada; - As narrativas serão lidas pelos participantes no segundo encontro dialógico, permitindo ajustes que estes considerarem necessários; - Os resultados constantes da Narrativa Síntese serão analisados a partir da Psicologia da Saúde Ocupacional e da Abordagem Experiencial; 220

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- Um relatório parcial será apresentado ao final do primeiro semestre do projeto; - O relatório final, com os dados da pesquisa será apresentado ao final do segundo semestre; - Os dados serão tratados em formato de artigo científico e submetidos a revistas especializadas com Qualis B1 ou superior. Resultados esperados

O presente projeto está vinculado ao Projeto Docente do orientador, que objetiva propor uma discussão acerca do Sentido do Trabalho a partir de um referencial Existencial-Humanista. Em face à proposta de compreender como diferentes grupos de profissionais atribuem sentido aos seus trabalhos, optou-se por empreender uma série de estudos coordenados e de desenho similar para tornar possível, futuramente, compilar os resultados em uma meta-análise. Estão fazendo parte desse conjunto articulado projetos de mestrado e de Iniciação Científica. Guardadas as devidas proporções, o desenho metodológico se mantém o mesmo. Assim, já foram concluídas dissertações de mestrado e encontram-se em fase de pesquisa de campo outros estudos de Iniciação Científica. Estes estão em fase de conclusão, referentes ao período 2021-2022, todos abordando o mesmo tema geral – O sentido do trabalho – porém a partir de diferentes peculiaridades. Justificativa

Este projeto mostra-se relevante, especialmente a partir de dois aspectos. O primeiro diz respeito à compreensão de elementos que estejam envolvidos com a motivação para o trabalho em uma condição peculiar devido ao repentino advento da pandemia da covid-19. Se, por um lado, a modalidade remota ou em desenho híbrido podem agravar os Fatores Psicossociais de Risco no Trabalho, com especial atenção à relação trabalho-vida pessoal, por outro, podem abrir oportunidades, otimizar tempo e recursos. O segundo aspecto diz respeito ao aprofundamento das bases teóricas da Abordagem Experiencial, uma escola existencial humanista ainda em consolidação no Brasil. Este trabalho contribui para um corpo conceitual em construção. Contribuição e relevância social

A escolha de tal temática justifica-se pelo crescente interesse em Qualidade de Vida no Trabalho. A Psicologia da Saúde Ocupacional, que não se restringe às modalidades tradicionais de ocupação, busca compreender elementos relevantes para a saúde física e mental dos trabalhadores, a partir de 221

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira e Aparecida Luzia Alzira Zuin (orgs.)

análises das pessoas, grupos, instituições e contexto do trabalho como um todo. São temas de interesse os fatores de desgaste e sofrimento, com vistas à prevenção e intervenção, mas também aqueles promotores de satisfação e realização, como acredita-se ser o caso dos participantes do presente estudo. Referências

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CAPÍTULO 17 ESTRANGEIROS NO PRÓPRIO PAÍS: A DIFICULDADE DE INCLUSÃO DE PESSOAS SURDAS NA SOCIEDADE, CAUSADA PELA 1 FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS EFICAZES Ronaldo Amorim de Carvalho Junior2 Bruna Guimarães Setúbal3 Pedro Henrique Sales Lanes4 Sthevão da Silva Carvalho5

Introdução

O presente artigo busca apresentar através de uma análise social feita por um grupo de ouvintes acerca da violação dos direitos básicos de inclusão das pessoas surdas em nossa sociedade. Nossa pesquisa foi realizada baseando-se na análise bibliográfica de pesquisadores e juristas renomados na área, além de estudiosos no campo antropológico e sociológico, acerca da surdez. A base de pesquisa para o presente estudo foi por meio do conhecimento de um caso concreto em que foi observado que devido à falta de acessibilidade para realizar a tradução e interpretação durante o processo 1 Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho Direitos Humanos, Garantias Processuais e Acesso à Justiça, na 2ª Semana Acadêmica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, que tem como tema Direitos Humanos entre Civilização e Barbárie: quais os desafios pós-2022? 2 Acadêmico de Direito da Rede de Ensino Doctum Unidade de Serra, Espírito Santo, ex-estagiário da Defensoria Pública Estadual do Espírito Santo e atual estagiário do Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo. E-mail: [email protected]. Lattes: https://lattes.cnpq.br/3984888638253227. ORCID: https://orcid.org/00090002-4461-2765. 3 Acadêmica de Direito da Rede de Ensino Doctum Unidade de Serra, Espírito Santo, Defensoria Pública Estadual do Espírito Santo. E-mail: [email protected] 4 Acadêmico de Direito da Rede de Ensino Doctum Unidade de Serra, Espírito Santo, ex-estagiário da Defensoria Pública Estadual do Espírito Santo e atual estagiário da empresa Leaf Consultoria e Sistemas LTDA. E-mail: [email protected] 5 Acadêmico de Direito da Rede de Ensino Doctum Unidade de Serra, Espírito Santo, ex-estagiário do Ministério Público do Espírito Santo. E-mail: [email protected]

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judicial, o réu teve sua garantia constitucional à defesa prejudicada. Entretanto, esse é apenas um dos muitos casos em nossa sociedade em que pessoas surdas são prejudicadas e até mesmo discriminadas. Outro fator que corroborou para a construção do tema, foi a observação da influenciadora digital espiritossantense Malu Paris (@maluparis) que é surda. Em seu instagram sempre apresenta a importância de legendar stories, publicações, reels, para garantir acessibilidade para surdos. Diante das falas da influencer, traçamos um paralelo entre os surdos e os estrangeiros, tendo em vista que devido à LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) ser pouco difundida em nossa sociedade e que às vezes os surdos a possuem como única forma de comunicação. Dessa forma, foi possível observar a dificuldade das pessoas surdas de se relacionarem em nossa sociedade, já que nem todas as pessoas em um diálogo conseguem compreender o que é sinalizado e nem se fazer entender, ficando assim como se fossem estrangeiros dentro do próprio país. Fato importante a ser destacado é que o presente estudo não busca definir ou determinar a “surdez”, trata-se apenas da apresentação do contexto histórico-social fundado em fragmentos de ideias e pensamentos que estão em constante evolução, dentro da sociedade em geral, e, em especial, na comunidade surda. A visão sobre o olhar da diferença, de acordo com a perspectiva da antropologia jurídica

Primeiramente, deve-se compreender que ao abordar o tema da “diferença”, não se faz menção à ideia de anormalidade ou inferioridade; mas, sim, busca-se desenvolver um debate fundado na teoria da alteridade, apresentando questões de cunho social desenvolvidas a partir da ideia da “diversidade”, expondo aspectos característicos da comunidade surda. O estudo antropológico busca compreender o homem como ser biológico, social e cultural. “O campo de pesquisa da antropologia visa para a auto reflexão do seu papel político e social e dos parâmetros pelos quais tem produzido e representado os significados da cultura” (Laplantine, 2003, p. 12). Toda cultura é vista pela antropologia moderna como “aceitável”, fazendo com que todos possam expressar sua fé, costumes e tradições, sem ninguém ter o direito de julgar os costumes de outra sociedade. Nesse sentido, observa-se que a cultura da comunidade surda é uma forma legítima de identidade sociocultural. Assim, a Antropologia passou a estudar como são compostas as sociedades em suas diversidades históricas, geográficas e culturais (Laplantine, 2003). A teoria antropológica da alteridade é a contraposição ao etnocentrismo, pois tem como princípio a valorização da vida de todos e acima de 226

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tudo o respeito. Outrossim, tal estudo busca compreender sem julgamentos ou suposições, se colocando no lugar do outro, se constituindo como o outro. Essa definição se assemelha ao relativismo cultural, pois aborda que ninguém tem o direito de julgar os costumes de uma sociedade. Como mencionado acima, a cultura surda apresenta-se de forma heterogênea, isto é, não é tida como uma padronização cultural, mesmo no atual contexto social onde ainda existe grande pré-conceito, ou seja, um conceito previamente estabelecido, através da comparação entre o padrão sociocultural dos ouvintes. Tal característica afeta negativamente para que a cultura surda possa ser construída, fator este causado em especial devido a influência da cultura ouvinte. Esse contexto é exemplificado pelaa pesquisadora surda Gládis Perlin, Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina, quando afirma que: É evidente que as identidades surdas assumem formas multifacetadas em vista das fragmentações a que estão sujeitas, em face da presença do poder ouvintista que lhes impõem regras, inclusive, encontrando no estereótipo surdo uma resposta para a negação da representação da identidade surda ao sujeito surdo (apud Azeredo, 2006, p. 10).

Importante frisar que o contexto em que a Drª Gládis Perlin manifesta seu pensamento não deve ser compreendido como uma ideia de segregação entre ouvintes e surdos, mas, sim, em dar ênfase ao fato de pessoas surdas estarem sempre se sujeitando à cultura ouvinte, para poderem se sentir “incluídas”. Nesse caso, pode-se traçar um paralelo com o princípio moral da “Hierarquia de valores” (Duarte, 2017), que entende que nenhuma cultura deve sobressair a outra, ou determinar que a cultura considerada popularmente como “normal” seja a correta. Aspectos socioculturais referentes à comunidade surda no Brasil e os estereótipos enfrentados pela população surda

Inicialmente deve-se compreender que ao fazer referência à “comunidade surda”, não se fala sobre uma comunidade organizacional ou uma espécie de associação; mas trata-se da forma antropológica utilizada para se referir ao conjunto de pessoas e tradições. A diversidade cultural existente dentro da comunidade surda forma-se através de “identidades surdas” que mostram e vivem sua cultura. Sobre isso, descreve o ex-Senador Eduardo Azeredo: A comunidade de surdos é uma parte básica das vidas de muitas pessoas surdas. Os intérpretes necessitam ter familiaridade com seu funcionamento a fim de ter uma consciência da 227

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cultura do grupo e se manter confortável diante das características próprias da pessoa surda; [...] A comunidade de surdos consiste de unidades sociais desde a família até organizações internacionais (como a Federação Mundial de Surdos) e nacional (como a Associação dos Surdos, a principal voz das pessoas surdas nos EUA atualmente). (p. 13 e 14, grifo nosso).

Dentro da comunidade surda fazem parte todas as pessoas que possuem ausência, perda ou diminuição considerável do sentido da audição (Ministério da Saúde, 2017). Todavia, deve ser observado que a individualidade de cada sujeito como ser único, podendo ele se considerar ou não pertencente da comunidade surda, baseando-se no fato de se autodeclarar como pessoa surda ou pessoa com deficiência auditiva. De acordo com a matéria Dia Internacional da Linguagem de Sinais procura promover a inclusão de pessoas surdas, divulgada pela Assembleia Legislativa de São Paulo, em setembro de 2021: “No país, cerca de 5% da população é surda e, parte dela usa a LIBRAS como auxílio para comunicação. De acordo com dados do IBGE, esse número representa 10 milhões de pessoas, sendo que 2,7 milhões não ouvem nada” (Freitas, 2021). Nesse contexto, pode-se observar que o Brasil possui um alto número de pessoas surdas em sua sociedade, porém, pouco conhecimento em relação ao tema, o que corrobora para a caracterização dos paradigmas sociais enfrentados pela comunidade surda. Gesser (2009), em sua obra, Libras? que língua é essa?, utilizou as falas da pesquisadora surda Karin Strobel, em entrevista concedida em 02 de março de 2008 ao blog Vendo vozes, em que debatiam sobre a questão da visão etnocêntrica acerca da cultura: Ao analisarmos sua história, vemos que a cultura surda foi marcada por muitos estereótipos, seja através da imposição da cultura dominante, seja das representações sociais que narram o povo surdo como seres deficientes. Muitos autores escrevem lindos livros sobre o realismo, bilinguismo, comunicação total, ou sobre o sujeito surdos… Mas eles realmente conhecem-nos? Sabem o que é a cultura surda? Sentiram na própria pele como é ser surdo? [...] Mas não se trata somente de reconhecerem a diferença cultural do povo surdo, e sim, além disso, perceberem a cultura surda através do reconhecimento de suas diferentes identidades, suas histórias, suas subjetividade, suas línguas, valorização de suas formas de viver e de se relacionar (p. 53, grifo nosso)

Nesse mesmo sentido completa a autora: Pensar o surdo no singular, com uma identidade de uma identidade e uma cultura surda, é apagar a diversidade e o multicul228

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turalismo que distingue surto negro da mulher surda, do surdo cego, do surdo índio, do surdo cadeirante, do surdo homossexual, do surdo oralizado [...] (Gesser, 2009, p. 53, itálico da autora).

A surdez é compreendida na perspectiva social como um déficit, baseado na ideia de “anormalidade”, tendo em vista que o considerado “normal” pela sociedade é o ouvir (Gesser, 2009, p. 62). Esse discurso possui como embasamento o entendimento da medicina, acerca da surdez, uma vez que é compreendida como mencionado acima. Vale destacar que o entendimento da comunidade médica representa apenas que compreendem que o órgão em questão não possui sua funcionalidade natural. Infelizmente, ao longo dos anos, pessoas surdas foram injustiçadamente denominadas por meio de termos pejorativos e capacitistas, em especial, o mais utilizado, “mudinho”. Com o avanço da medicina, essa relação de vincular a pessoa surda como muda é uma afirmação equivocada, tendo em vista que “muda” seria uma pessoa sem cordas vocais e que pela ausência de tal órgão, não consegue transformar as vibrações em sons, sendo que atualmente existem modelos de cordas vocais artificiais que podem ser implantadas através de procedimento cirúrgico (Serviço de Otorrinolaringologia, 2013). Consequentemente, o próprio conceito de “fala”, não deve ser interpretado apenas como o meio convencional, que seria através da utilização de vibrações sonoras que formam a voz, tendo em vista que por meio das diversas línguas ou linguagens de sinais é possível o desenvolvimento de diálogos, meio pelo qual grande parte dos surdos se comunicam. Dentro da “comunidade surda” estão incluídos não apenas os declarados surdos, mas também os indivíduos que a ela integram como parte convivente com surdos. Diante disso, o entendimento social acerca da “organização” da comunidade surda pode ser dividido em duas formas de diferenciação: ouvinte, ou surdo, seja ele oralizado ou não. Perspectiva jurídica acerca da “Língua Brasileira de Sinais”, como direito linguístico da população surda

O estudo de língua de sinais no mundo teve seu início há vários séculos. O primeiro registro histórico de educação de surdos e ensino de sistema visual de comunicação tem seu registro entre os anos de 1520-1584, sendo o responsável o Monge Beneditino Pedro Ponce de León. Anos mais tarde, em 1750, surgiu a primeira escola de surdos, fundada pelo francês Charles Michel de L’Epée, que foi “considerado pai da língua gestual dos surdos” (Duarte et al., 2013). Dessa forma, observa-se que há muitos séculos o ensino da língua de sinais vem sendo utilizado em nosso mundo. No Brasil, segundo Saba229

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nai (2007), os primeiros movimentos em prol da escolarização dos surdos, iniciaram-se no ano de 1857, com a fundação do Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, conhecido atualmente como Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). A escola fundada pelo professor surdo francês, Ernest Huet, com o apoio de D. Pedro II, tinha como método a utilização da língua de sinais e o alfabeto manual para educar os surdos, sua finalidade foi devido a Dom Pedro II ter tido um neto nascido surdo e por este motivo buscou ajuda para que a família real aprendesse a comunicar-se com o filho da Princesa Isabel (Sabanai, 2007). Na década de 70, pôde-se observar os primeiros movimentos em prol da educação dos surdos. Durante esse período, a Língua Brasileira de Sinais já era utilizada pela comunidade surda, mesmo que viesse a ser regulamentada duas décadas depois. Com o avanço tecnológico e o aumento da facilidade de comunicação, os movimentos surdos puderam intensificar a busca pelo direito da regulamentação da LIBRAS como meio oficial de comunicação das pessoas surdas. Muitas foram as dificuldades enfrentadas pelos ativistas do movimento surdo, o preconceito existente contra pessoas surdas, em especial até os anos 2000. Por muitas vezes, pessoas surdas eram descritas e tratadas como portadoras de deficiência intelectual, tendo em vista que não conseguiam expressar-se da forma considerada pela sociedade como “normal”. A tentativa de comunicação oral feita pela pessoa surda da época, em grande parte não produzia o resultado desejado, visto que as condições científicas da época não auxiliavam muito no processo de oralização, que mesmo nos dias atuais é um processo difícil e que exige grande esforço pessoal, além do alto custo financeiro. Dessa forma, o surdo não possuía um exemplo de comunicação oral para que pudesse ter como exemplo para a produção e emissão das vibrações nas cordas vocais para a formação do som. Assim, suas falas eram marcadas pelo popularmente conhecido como “sotaque de surdo”. Este sotaque refere-se à maneira que o surdo se comunica oralmente, que aparenta ser um tom de voz mais grave, o que muitas vezes era tido como característica de uma pessoa com transtornos mentais, o que afetava diretamente o psicológico da pessoa surda, o que corrobora para que o indivíduo não desenvolva sua fala. Outro fato que era utilizado para justificar a afirmação é de que os surdos possuiam desenvolvimento intelectual retrógrado, devido à gesticulação excessiva. Entretanto, é da própria natureza da pessoa humana gesticular para poder se comunicar, até mesmo as pessoas ouvintes que possuem a linguagem verbal como primeira forma de se expressar utilizam gestos em sua comunicação. Já os surdos, na maioria das vezes, possuem 230

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como primeira língua os sinais, mesmo que não tenham conhecimento da Língua Brasileira de Sinais. LIBRAS, uma língua ou linguagem?

Depois de anos de lutas pela conquista do reconhecimento da LIBRAS como língua oficial de comunicação dos surdos no Brasil, o legislador entendeu a necessidade de reconhecê-la através da lei. Trata-se da lei 10.436 de 24 de abril de 2002, que “Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS e dá outras providências” (Brasil, 2002). Como o próprio nome especificado na lei, LIBRAS é considerada uma língua, apesar de, em alguns momentos do ordenamento jurídico brasileiro, o legislador utilizar o termo “linguagem”. Ela é considerada uma língua, visto que possui características próprias em sua formação. Sua organização gramatical estrutura-se através de seus parâmetros, que são formados por; “configuração de mão; ponto de articulação e localização dos sinais; movimento; orientação; e expressões faciais” (Brasil, 2002). Já a linguagem pode ser compreendida como qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através da comunicação verbal, que compreende a figura de linguagem da onomatopeia; ou a não verbal, podendo ser compreendido como a forma de sinais utilizados em nossa sociedade pela comunicação por sinais típicos em uma conversa (Carvalho; Oliveira; Vieira, 2020). De acordo com o representante da Federação de Surdos no Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência, Antonio de Campos Abreu, garantir o acesso das pessoas surdas a LIBRAS significa: Preservar a cultura da comunidade surda é necessário e importante. Usar a Língua Brasileira de Sinais é cidadania para toda a comunidade surda. Respeitar a forma de comunicação do surdo é um dever da sociedade e de todos. Os surdos sonham com um mundo pelas mãos que falam (apud Azeredo, 2006, p. 11).

Em colaboração ao livro Língua brasileira de sinais ‘uma conquista histórica, o professor Antônio Campos de Abreu, surdo e pós-graduado em LIBRAS, escreveu um capítulo do livro, apresentando o ponto de vista de um surdo em nossa sociedade. Em seu texto, destacou uma importante frase da Feneis (Federação Nacional de Educação de Surdos e Integração dos Surdos): “A língua de sinais é um direito do surdo à língua materna, responsável pelo seu desenvolvimento cultural, social e acadêmico/educacional”. Nesse mesmo sentido, Professor Antônio conclui que “A língua de sinais é a chave para ampliar a inserção do surdo no âmbito social” (apud Azeredo, 2006, p. 7-8). 231

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O caso “José”: um surdo no tribunal Apresentação do caso

O caso a ser apresentado agora aconteceu no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no final da primeira década de 2000. Esse caso é apresentado ao mundo através do artigo científico “Quando a lei é surda: um caso recente na História da Relação entre Psicologia e Direito”, escrito pela psicóloga jurídica do TJ-MG, Liliane Camargos, em colaboração com o psicanalista Fábio Belo. Foi por meio do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental, popularmente conhecido como “PAI-PJ”, criado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no ano de 2000, que tiveram acesso e conhecimento do caso. Esse programa criado pelo TJ-MG possui o intuito de fornecer suporte à autoridade judicial, no processo de classificação de incidentes de insanidade mental e promover o acompanhamento da aplicação das medidas de segurança ao agente inimputável. Esse programa atua no atendimento de réus sentenciados em medida de segurança, seja ela de internação ou na modalidade de tratamento ambulatorial (TJMG, 2020). Trata-se de um caso verídico de tentativa de homicídio, em que foram apresentadas, no referido artigo, os principais pontos inerentes ao processo, prezando sempre pela proteção dos dados sensíveis das partes. Vale ressaltar que, segundo informação dos autores6, o caso estava em segredo de justiça e por este motivo não é descrito informações detalhadas do processo. Nesse estudo, Camargos e Belo (2010) buscaram apresentar a falha no sistema e no princípio constitucional de acesso à justiça, sendo que a exposição do caso basear-se-á na premissa de que o réu, que será nomeado de José (conforme foi denominado no artigo, com nome fantasia), seja a vítima na situação, tendo em vista que apesar dele estar presente em todos os atos processuais, não tinha entendimento acerca do que estava sendo tratado, haja vista que estava sendo falado apenas na língua oral, na qual devido ser pessoa surda não compreendia o falado. Dessa forma, não será analisada sua culpabilidade ou não referente ao crime no qual foi indiciado, haja vista que tal fato foi analisado pelo juízo competente que julgou o caso. Seguindo a descrição dos autores acerca da história presente nos autos do processo, observou-se que o caso tratava-se de: Temos uma primeira descrição de seu crime presente no expediente policial. Lá se afirma que o denunciado, utilizando-se de instrumento cortante, desferiu golpe contra a vítima cau6 Informação obtida por meio de contato direto, via e-mail com o psicanalista, Dr. Fábio Belo.

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sando-lhe lesões. Ele atacou a vítima de surpresa, não dando a esta a mínima chance de se defender. Nesse documento, em busca de uma explicação para o crime, foi dito que, quando crianças, denunciado e vítima desentendiam-se frequentemente, razão pela qual o denunciado quis se vingar, tentando matar a vítima, sem, no entanto, conseguir cumprir sua meta (Camargo; Belo, 2010, p. 2, grifo nosso).

Em momento posterior no decorrer do processo, o pai do Sr. José foi o responsável por realizar o intermédio da conversa, fazendo a tradução das falas de seu filho durante a Audiência de Instrução e Julgamento (AIJ). Entretanto, o genitor não possuía nenhuma qualificação especial para realizar tal ato, sendo que muita das vezes ele próprio não conseguia comunicar-se com o seu filho e compreender o que ele estava dizendo. Como forma de validar a tradução fornecida, utilizaram o boletim de ocorrência para verificar se os fatos possuíam alguma ligação. Para finalizar sua participação, o genitor informou que seu filho era uma pessoa muito nervosa e que não fazia tratamento psicológico. Em outro momento, foi determinado a presença de um tradutor intérprete de LIBRAS, que conseguiu compreender e entender com mais clareza os detalhes que José havia apresentado. Com isso, foi possível a descrição detalhada do caso, onde foi descoberto que: Temos descrições de “sacanagens” que a vítima fazia com o declarante desde pequeno e que persiste na idade adulta, informações de que ele agira em legítima defesa sem intenção de matar a vítima, afirmações de como o declarante não gosta de brigas e faz de tudo para evitá-las, além de inúmeros detalhes sobre o dia do crime (Camargo; Belo, 2010, p. 2, grifo nosso).

Adiante na fase processual foi constatado pelos peritos que faltavam certos elementos essenciais que não foram observados na AIJ. Além disso, alegaram com base nos depoimentos colhidos que José era uma pessoa de conduta instável, sujeito a transtornos de ordem psíquica, decorrentes de sua condição de “surdo-mudo” (descrição dos peritos). Acrescentaram ainda como justificativa para tal suposição que: [...] O surdo-mudo, máxime se tratar de defeito congênito ou adquirido nos primeiros anos de vida, apresenta um déficit intelectual considerável, podendo, em certos casos, acarretar a inimputabilidade ao indivíduo ou determinar a redução de sua responsabilidade criminal (Camargo; Belo, 2010, 2010, p. 2).

Diante disso, o juiz determinou que fosse instaurado um processo separado para verificação de “insanidade mental”. Na realização do atendi233

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mento médico, mais uma vez seu pai, que já havia mostrado incapacidade no processo de tradução e interpretação, foi seu acompanhante e intérprete. No decorrer do atendimento, foram realizadas algumas perguntas ao genitor para que ele pudesse descrever os comportamentos de seu filho: Essa perícia foi realizada e, mais uma vez, seu pai o acompanhou. Ele disse, por exemplo, que seu filho fica agressivo e que ele tem medo. Contou que José não bebe, não fuma, nunca usou drogas, apesar de já terem insistido bastante, o que já foi motivo de irritação e brigas dele com seus colegas. Já o levaram algumas vezes a hospitais psiquiátricos onde ficou por poucas horas (Camargo; Belo, 2010, 2010, p. 2).

Os peritos responsáveis pela diligência concluíram sobre o caso que “ele gesticula para se expressar, mas não se trata de uma linguagem de surdo-mudo aprendida”. Nesse tópico, os peritos concluíram que José não possuía plenos conhecimentos sobre a Língua Brasileira de Sinais. Ademais, não foi possível manter um diálogo com José, sendo que os peritos informaram que ele se encontrava perdido no espaço e tempo. Devido a esses motivos, não foi possível concluir a avaliação clínica, sendo solicitado vista do processo originário para poderem analisar e apresentar o parecer solicitado pelo juiz. Após análise dos fatos presentes nos autos do processo concluíram: [...] Seu laudo de Exame de Sanidade Mental, nos quesitos sobre irresponsabilidade, os peritos reconheceram que o denunciado, ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato e reconheceram, também, que sua incapacidade era proveniente de desenvolvimento mental incompleto (surdo-mudo sem escolaridade), sendo inteiramente incapaz de se fazer entender (Camargo; Belo, 2010, 2010, p. 2, grifo nosso).

Como justificativa apresentaram os seguintes argumentos: Compilados todos os elementos da perícia, justificam o laudo afirmando que a parada ou ausência das funções auditivas provoca “inferioridade psicorgânica”. Afirmaram que o surdo-mudo, não podendo ouvir, tem dificuldade na aquisição de noções, ideias, conhecimentos ensejados quase somente pela palavra falada, ouvida ou compreendida, o que o torna cultural e afetivamente restrito. [...] Não se pode considerar o surdo-mudo plenamente como um indivíduo normal. Se não recebeu educação ou não foi capaz de adquiri-la por defeito cerebral, é equiparado a um idiota ou a um imbecil acentuado (Camargo; Belo, 2010, 2010, p. 2, grifo nosso). 234

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Apesar das diversas declarações dos peritos acerca de sua “sanidade mental”, tais comentários se assemelham aos discursos “arcaicos e absurdos”, uma clara motivação causada pelo preconceito histórico criado pela comunidade médica do século XX, bem como também era fomentado por religiões, já que consideravam qualquer anormalidade como fruto do pecado. Após o período do trânsito em julgado da ação, o Réu foi encaminhado para acompanhamento no PAI-PJ, tendo em seu primeiro atendimento impressionado aos integrantes, uma vez que seu comportamento foi totalmente contrário ao alegado pelos peritos. José esperou por cerca de 2 horas até ser atendido e com isso veio o primeiro questionamento “Como uma pessoa agitada poderia ficar por 2 horas sentado na recepção do programa quieto e tranquilo? Sem agredir nem incomodar ninguém, sem se exaltar pela demora em ser atendido?”(Camargo; Belo, 2010, 2010, p. 3). Ao prosseguir com o acompanhamento, a equipe do programa identificou que José sempre foi uma pessoa independente, mesmo com as dificuldades oriundas de sua comunicação, uma vez que sua língua materna era uma linguagem “interna” desenvolvida por ele ao longo dos anos de sua vida, uma vez que sua alfabetização em LIBRAS começou somente após atingir a fase adulta. Diante disso, a equipe chegou à seguinte conclusão: Como não seria possível reverter a medida de segurança em pena, decidimos interceder no sentido de “modular” a medida de internação na de tratamento ambulatorial, mesmo que não fosse necessária a realização deste tratamento psiquiátrico. Quando foi cumprido o tempo mínimo dessa medida, indicamos a realização do Exame Pericial de Cessação de Periculosidade. A nova perícia demonstra discordância com a primeira e o paciente passa nesse exame e sua periculosidade foi tida como cessada. Ele cumpriu um ano de liberdade condicional e seu processo se extinguiu (Camargo; Belo, 2010, 2010, p. 3, grifo nosso). A violação dos direitos fundamentais

O presente caso aconteceu no final da década de 2000, nesse período políticas públicas de inclusão já haviam sido estabelecidas e positivadas no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, ainda a política de inclusão não foi efetiva. Com a implementação da lei 10.436 de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre “a língua brasileira de sinais” garante no seu artigo 3º que: “As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor” (Brasil, 2002). 235

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Todavia, a referida lei apresenta uma falha estrutural, tendo em vista que ela não busca dispor da acessibilidade de pessoas surdas em todos os ambientes. Com a vinda da publicação do Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005, para regulamentar a lei da LIBRAS, dispõe no capítulo 8, acerca “Do papel do poder público e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos, no apoio ao uso e difusão da LIBRAS” (Brasil, 2005). O artigo 26 apresenta: O Poder Público, as empresas concessionárias de serviços públicos e os órgãos da administração pública federal, direta e indireta, deverão garantir às pessoas surdas ou com deficiência auditiva o seu efetivo e amplo atendimento, por meio do uso e da difusão da LIBRAS e da tradução e da interpretação de LIBRAS - Língua Portuguesa. § 1º Para garantir a difusão da LIBRAS, as instituições de que trata o caput deverão dispor de, no mínimo, cinco por cento de servidores, funcionários ou empregados com capacitação básica em LIBRAS (BRASIL, 2005, grifo nosso)

Essa norma regularizadora foi estabelecida em 2005, e em seu art. 31 diz: “Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.”. Dessa forma, observa-se de forma clara a violação do direito de inclusão e ao princípio constitucional de acesso à Justiça, tendo em vista o caput do art. 8 da lei complementar nº 95 de 26 de fevereiro de 1998: “A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula ‘entra em vigor na data de sua publicação’ para as leis de pequena repercussão” (Brasil, 1998). Diante disso, observa-se ser incompreensível o fato do descumprimento da referida lei, em especial vindo do órgão judiciário que tem como incumbência de “aplicar a lei em casos concretos, para assegurar a justiça e a realização dos direitos individuais e coletivos no processo das relações sociais, além de velar pelo respeito e cumprimento do ordenamento constitucional.” (Câmara dos Deputados, 2022). Nesse caso, observa-se que a aplicabilidade da norma, mesmo sendo de eficácia absoluta, é auto aplicável, sendo assim, requer ação dos poderes para que seus efeitos sejam efetivos (Barbosa, 1933 apud Leite, 2020). Citando os ensinamentos ministrados no “II Congresso Regional Sobre Democracia e Direitos Humanos de Teófilo Otoni”, no ano de 2020, pela Exma. Ministra Cármen Lúcia, acerca do tema “Entre a ordem e a desordem: os desafios do direito em tempo de pandemia”: [...] A justiça não é a busca por fornecer a todos as mesmas condições, mas sim fornecer a cada um de acordo com sua

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necessidade. Ninguém é menos ser humano que o outro por estar afastado dos grandes centros urbanos, em qualquer lugar do país onde alguém estiver sendo injustiçado a Constituição não está sendo aplicada. Nesse sentido, não existe seletividade dos direitos fundamentais, todos têm o mesmo direito à dignidade humana (Rocha, informação verbal, 10 de julho de 2020, grifo nosso).

Conforme pode-se observar através dos ensinamentos da Ministra, no caso em questão, a Constituição não teve eficácia, tendo em vista que a garantia aos direitos fundamentais não foi efetiva. Mesmo na época do acontecimento do caso, é inadmissível tamanha injustiça ocorrida com o réu, podendo até questionar a respeito se o ele estava ou não acompanhado de advogado ou defensor público, conforme estabelece o caput do art. 261: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. Além disso, mesmo se o acusado não apresentar defesa em algum momento do processo, será automaticamente nomeado um defensor público ou advogado dativo, como é descrito no caput do art. 263 CPP (Brasil, 1941). Tal hipótese pode ser aludida tendo em vista das barbáries ocorridas durante todo o processo, uma vez que a defesa não tenha questionado tais fatos e permitido que os atos processuais tivessem seguimento. Ademais, como é mencionado no relato dos casos dos pesquisadores, “José foi sentenciado a “uma medida de segurança de 3 anos de internação” (Camargo; Belo, 2010, p. 3). A importância da inserção da LIBRAS como matéria obrigatória na rede de ensino

A educação como é conhecida nos dias de hoje possui em sua grade curricular desde o Ensino Fundamental II até o final do Ensino Médio uma cadeira dedicada apenas ao ensino da língua estrangeira, conforme disposto no art. 26, §5º: “No currículo do ensino fundamental, a partir do sexto ano, será ofertada a língua inglesa” (Brasil, 1996). O ensino de tal matéria em nosso meio acadêmico justifica-se por meio do reconhecimento de ser o “idioma universal” (Anjos, 2016, p. 5). Dessa forma, em nossa cultura educacional, pode-se observar a existência do ensino de outro idioma que não seja o português, já que, no Ensino Fundamental II, somos iniciados ao estudo de idioma que não seja o português e, no Ensino Médio, é incluído também o estudo da língua espanhola. A Lei 9.394 de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, garante em seu art. 60-A a educação bilíngue para os surdos. Art. 60-A. Entende-se por educação bilíngue de surdos, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), como primeira língua, e em português escrito, como segunda língua, 237

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em escolas bilíngues de surdos, classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos, para educandos surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas, optantes pela modalidade de educação bilíngue de surdos (BRASIL, 1996, grifo nosso).

Entretanto, essa educação bilíngue refere-se apenas para pessoas surdas, sendo que aos ouvintes é passado pouco conhecimento sobre LIBRAS ou até mesmo nenhum. Ao ser questionado sobre como preferiria que fosse realizada a educação dos surdos, se deveriam estudar todos juntos (ouvintes e surdos) ou só em uma escola com surdos, um surdo respondeu: Eu fiz o segundo grau (atual Ensino Médio) numa escola comum, conheço bem isso. Eram poucas pessoas que vinham conversar comigo. Com muitas pessoas ouvintes é como se eu fosse um estrangeiro falando inglês. Pode, no futuro, até haver uma integração entre surdos e ouvintes, mas, o importante é que os ouvintes aprendam sinais. [...] Por exemplo: no segundo grau… todo mundo tem que aprender inglês: por que não pode aprender a língua de sinais? (Sá 1996 apud Skliar, 2016, p. 172-173, grifo nosso).

Nessa fala, pode-se observar claramente a angústia das pessoas surdas em relação ao convívio social com os demais cidadãos, devido à incompreensão de ambas as partes. Assim, é possível ter uma percepção acerca do sofrimento do surdo quando não tem sua “palavra” compreendida. Nesse sentido, o sociólogo francês Bernard Mottez apresenta uma definição sobre o que seria ser surdo, diante da sociedade, “Ser surdo, é em primeiro lugar, não ser escutado” (Mottez apud Bosse; Góes, 2017, p. 1). Como forma de atenuar o problema, houve um grande movimento por parte da comunidade surda para que fosse criado um projeto de lei para incluir a LIBRAS como matéria obrigatória nas redes de ensino de nível básico, seja de ensino público ou privado. Desde a publicação da Lei 10.436 de 2002, iniciativas populares para inclusão da LIBRAS como matéria obrigatória foram criadas, todavia, a maioria não obteve o apoio necessário para que fosse levada adiante. Já os projetos de lei propostos pelo poder legislativo, vários foram arquivados e não providos. Atualmente o principal projeto de lei inerente à matéria é o de n° 5.961, de 2019, de autoria da Senadora Zenaide Maia (PROS/RN), que possui como finalidade: “Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir, nos currículos do ensino fundamental e do ensino médio, para todos os alunos, conteúdos relativos à Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS)”. Esse projeto foi proposto e lido no plenário do Senado no dia 12 de novembro de 2019, 238

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tendo sido distribuído ao Senador Nelsinho Trad, em 18 de dezembro de 2019, para que pudesse emitir relatório do projeto. Desde de então o projeto encontra-se parado e as últimas movimentações existentes, foram de teor administrativo (Senado Federal, 2021). Com o fim do período legislativo no ano de 2022, os projetos ainda em tramitação são arquivados automaticamente, conforme estabelece o art. 332 do Regimento Interno do Senado. No entanto, existem possibilidades do projeto continuar sua tramitação, que no presente caso refere-se ao inciso II, que apresenta a seguinte exceção: “as de autoria de Senadores que permaneçam no exercício de mandato ou que tenham sido reeleitos”. Nesse caso, mesmo que o projeto não tenha sido arquivado, com o fim da legislatura o projeto volta para a comissão para ser redistribuído a um novo(a) relator(a), em que encontra-se esperando designação desde o dia 02 de fevereiro de 2023 (Senado Federal, 2021). Outro projeto de suma importância para a comunidade surda, que infelizmente também continua sem movimentação legislativa desde sua apresentação ao Plenário do Senado em 21 de maio de 2021. A aprovação da emenda à constituição nº 12 de 2021, que: “Altera o art. 13 da Constituição Federal para incluir a língua brasileira de sinais como um dos idiomas oficiais da República Federativa do Brasil”. Esse projeto foi apresentado como Ideia Legislativa no Portal e-Cidadania do Senado Federal, pela Dra. Kamila de Souza Gouveia, advogada inscrita na OAB-CE e militante na área dos direitos das pessoas com deficiência. A ideia legislativa, conseguiu o apoio necessário para que fosse direcionado a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Entretanto, para surpresa da Dra. Kamila sua ideia foi “adotada” pelo senador de Santa Catarina, Alessandro Vieira (Senado Federal, 2021). Como justificativa da proposta, foram apresentadas os seguintes fatos: O idioma oficial é a forma de comunicação universalmente aceita num país. [...] Assim, entendemos que a língua é instrumento convencional de comunicação e é uma forma de expressar tanto a individualidade, quanto a identidade coletiva de um povo. Há, contudo, brasileiros que não têm como língua materna o português ou as línguas indígenas. A língua brasileira de sinais (“LIBRAS”) é a língua primária de milhões de pessoas com deficiência auditiva ou da fala, ou ambas. Há, ainda, surdocegos que, apesar da incapacidade de ver e ouvir, conseguem se comunicar usando a LIBRAS tátil (Senado Federal, 2021).

Completam ainda expressando a relevância do tema: Muitas pessoas aprendem idiomas estrangeiros, o que é sempre bom e útil, e deve ser estimulado. Mas, além de olhar para fora, é preciso também olhar para dentro. Oficializar a LI239

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BRAS ajudará a promover o seu ensino nas escolas, permitindo que mais brasileiros possam se comunicar uns com os outros, derrubando uma das barreiras mais óbvias à inclusão das pessoas com deficiência (Senado Federal, 2021, grifo nosso). Considerações finais

Muito se fala na atualidade sobre a busca de um uma sociedade igualitária, em que todos sejam tratados de igual forma. No entanto, observa-se que a definição de igualdade não é a melhor forma para se presumir uma necessidade social. Cada indivíduo possui suas peculiaridades e necessidades próprias. No Brasil, muitas pessoas surdas enfrentam a difícil realidade de se sentirem “estrangeiras em seu próprio país”. Isto ocorre devido à falta de políticas públicas eficazes que garantam a inclusão dessas pessoas na sociedade. Outro fator que corrobora para tal situação é a falta de intérpretes de língua de sinais nos locais em que prestam serviço público, seja do âmbito público ou privado, conforme determina o decreto 5.626/2015. Dessa forma, os surdos ficam muitas vezes obrigados a depender de familiares e amigos para auxiliá-los na comunicação. Outro desafio importante é a falta de acesso a informações e atividades culturais, tendo em vista que a maioria dos materiais educacionais e informativos não é disponibilizada em formatos acessíveis para pessoas surdas, o que dificulta o acesso ao conhecimento e ao aprendizado. Nesse mesmo sentido fica de forma bem clara evidenciada a falta de inclusão no âmbito do judiciário, bem como a inclusão na fase educacional, quando José devia ter aprendido a se expressar por meio da LIBRAS, tendo seus direitos fundamentais ignorados. Todavia, é inegável que a conquista do reconhecimento da LIBRAS, como meio oficial de comunicação dos surdos, trouxe impactos significativos no âmbito social e político do País. No entanto, o provimento das condições básicas e fundamentais de acesso à LIBRAS se faz indispensável. É forçoso constatar que se faz necessária a positivação de novas normas jurídicas inerentes ao contexto acerca da surdez e suas particularidades. A aprovação de algum dos inúmeros projetos de leis existentes atualmente, que buscam incluir a LIBRAS como matéria obrigatória no ensino fundamental e médio, é de suma importância. Portanto, para superar esses obstáculos e garantir a plena inclusão das pessoas surdas na sociedade, é fundamental que as políticas públicas sejam mais eficazes. Como também ocorram a capacitação de profissionais para a língua de sinais, a disponibilização de intérpretes em locais públicos, a criação de materiais acessíveis e a promoção da acessibilidade em geral. Além disso, é importante que a sociedade em geral se sensibilize para essa questão e se esforce para garantir que todas as pessoas, indepen240

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dentemente de sua condição, tenham acesso aos mesmos direitos e oportunidades. Somente assim poderemos erradicar a sensação de os surdos sentirem-se como “estrangeiros no próprio país” e garantir a inclusão de todos na sociedade brasileira. Dito isso, é fundamental que as políticas públicas sejam mais sensíveis às necessidades da comunidade surda e que sejam integradas de maneira eficaz. É preciso promover a acessibilidade em todos os setores da sociedade, desde a educação até o mercado de trabalho. Por fim, mediante ao que foi exposto, observa-se que a validação de toda norma positivada no ordenamento jurídico depende da vontade dos poderes soberanos, oriundos das três esferas do poder, Legislativo, Executivo e Judiciário, em que há a garantia da validação desta norma. Assim sendo, as atuais políticas públicas existentes no ordenamento jurídico devem ser difundidas e fiscalizadas, devendo em especial o poder Executivo seguir o determinado no decreto 5.626/2005, em seu art. 26, §1º. Dessa forma, estando os estabelecimentos públicos seguindo o dispositivo, ajudará no impulsionamento da busca pelo conhecimento da Língua Brasileira de Sinais, fazendo com que a sociedade possa dar o primeiro passo para a conquista de uma sociedade igualitária e inclusiva. Referências

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CAPÍTULO 18 O ENSINO MÉDIO COM MEDIAÇÃO TECNOLÓGICA – EMMTEC - PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO VALE DO JAMARI-RO DE 2016 A 2022: DO CINISMO QUALITATIVO À TRÁGICA PRECARIZAÇÃO Francisco Magalhães de Lima1 Aparecida Luzia Alzira Zuin2

Resumo

O presente projeto de pesquisa foi apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação na Amazônia – PGEDA Associação Plena em Rede (EDUCANORTE), Edital Nº 04/2022-PGEDA, e tem por objetivo analisar as contradições e contrariedades da implantação e desenvolvimento do EMMTEC no Território do Vale do Jamari-RO e seus impactos sociais, culturais, tecnológicos e econômicos para a Educação do Campo, no período entre 2016 e 2022. Ele buscará responder às seguintes problematizações: Quais as contradições e contrariedades presentes no processo de implantação e desenvolvimento do EMMTEC no Território do Vale do Jamari-RO e seus impactos sociais, culturais, tecnológicos e econômicos para a Educação do Campo no período de 2016 e 2022? Quais os mecanismos ideológicos utilizados para falsear a realidade afim de que a proposta fosse “aceita”? Trata-se de uma pesquisa exploratória de cunho qualitativo-quantitativo. A organização dos dados se dará com base nos seguintes instrumentos: pesquisa bibliográfica, entrevistas com equipe gestora, pro1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação na Amazônia (PGEDA/EducaNorte). Docente de Sociologia no IFRO Campus Ariquemes. Membro do Grupo de Pesquisa Sociedade, Educação, Ciência e Tecnologia na Amazônia Ocidental – GPSECTAO. E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/5315274092537971. 2 Docente do Programa de Pós-graduação, Doutorado em Educação na Amazônia (PGEDA/EducaNorte). Docente do Programa de Mestrado em Educação - PPGE/UNIR. E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/158484106801721.

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fessores, alunos e egressos do EMMTEC. Utilizaremos a prática da observação participante com o intuito de captar a dinâmica do funcionamento do EMMTEC nas escolas do Campo em sua dinâmica interna. Pesquisa documental através do marco legal da constituição histórica da política do Ensino Médio no Brasil, na Amazônia, em Rondônia e no Território do Vale do Jamari-RO. Os dados levantados serão analisados ao longo do movimento dinâmico do método do materialismo histórico-dialético, com o firme propósito de compreender a rede de relações e o alinhamento entre o universal e o particular. Descortinar as contradições no âmbito das relações sociais na sua totalidade implica um esforço teórico em compreender o complexo alinhamento do universal (capitalismo global e políticas neoliberais) e o particular (Educação do Campo no Território do Vale do Jamari-RO). Contudo, como o próprio Marx já chamava a atenção, não basta apenas compreender a realidade, é importante a construção da práxis transformadora da mesma. Introdução

O Ensino Médio no Brasil sempre foi uma arena de disputa entre diversos atores sociais. Mas, não apenas no âmbito interno. Vários autores já produziram diversos trabalhos mostrando a influência de organismos multilaterais sobre a implementação das políticas educacionais no Brasil alinhados muito mais aos interesses do capital do que a garantia do direito a uma educação de qualidade como prescreve o documento constitucional brasileiro. Desvendar como esses interesses de organismos externos influenciam as políticas públicas no âmbito educacional é de importância abissal, pois, nos possibilita entender, de forma mais ampla, a complexa rede de interesses que circunda uma determinada política pública de educação, na relação dialética entre o universal (o capitalismo global) e o particular (o EMMTEC para a Educação do Campo no Território do Vale do Jamari-RO). Objetivo

Analisar as contradições e contrariedades da implantação e desenvolvimento do EMMTEC e seus impactos sociais, culturais, tecnológicos e econômicos para a Educação do Campo no Território do Vale do Jamari-RO no período entre 2016 e 2022. Metodologia

Trata-se de uma pesquisa exploratória de cunho qualitativo-quantitativo. A organização dos dados se dará com base nos seguintes instrumentos: pesquisa bibliográfica, entrevistas com equipe gestora, professores, alunos e egressos do EMMTEC. Utilizaremos a prática da observação par246

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ticipante com o intuito de captar a dinâmica do funcionamento do EMMTEC nas escolas do Campo em sua dinâmica interna. Pesquisa documental através do marco legal da constituição histórica da política do Ensino Médio no Brasil, na Amazônia, em Rondônia e no Território do Vale do Jamari-RO. Os dados levantados serão analisados ao longo do movimento dinâmico do método do materialismo histórico dialético, com o firme propósito de compreender a rede de relações e o alinhamento entre o universal e o particular. Resultado

O projeto está em fase inicial de readequação e ajustes teóricos e metodológicos em diálogo com a orientadora. Nesta fase, daremos atenção à revisão bibliográfica que mais nos ajude a atingir o objetivo proposto. Conclusões preliminares

A pesquisa pretende contribuir não apenas do ponto de vista acadêmico, mas, sobretudo na conscientização da sociedade no que tange aos objetivos latentes da política educacional pesquisada. As pesquisas preliminares apontam que o EMMTEC tem sido uma política de violência institucional contra a Educação do Campo, uma vez que visa não a qualidade da Educação, mas a mera economia de gastos. Negligencia a falta de infraestrutura das escolas do campo e precariza ainda mais a já precária atuação docente nestas localidades. A LEI N. 3.346, de 4 de julho de 2016, que instituiu o EMMTEC é marcada por uma série de contradições em seu conteúdo, sem falar que menospreza completamente toda a literatura e arcabouço legal sobre a Educação do Campo já produzida no país, o que coloca sob suspeita a plausibilidade da política. Referências

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CAPÍTULO 19 POLÍTICA DE INCLUSÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA NA ESCOLA RURAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL“03 DE DEZEMBRO” EM PORTO VELHO Geane Rocha Gomes Lima1 Aparecida Luzia Alzira Zuin2

Resumo

Embora a Educação Inclusiva tenha tido ao longo dos últimos anos alguns avanços com relação ao acesso do aluno com deficiência(s), ainda é possível observar resistências em vários aspectos que interferem na efetivação da Educação Especial e inclusiva. Isso se dá pelas práticas que deveriam ser ajustadas com as da política de inclusão nas instituições de ensino, já que a inclusão de crianças com deficiências é um direito universal adquirido e amparado por diversos documentos internacionais e nacionais. A educação sendo um direito de todos e defendido por leis que propõem que seja inclusiva, entende-se que não se faz somente através do acesso do aluno em uma instituição de ensino regular, mas, também, através da igualdade de oportunidade para todos os alunos. Portanto, as instituições de ensino deverão se adequar às necessidades individuais do aluno, para assim diminuir as barreiras de acessibilidade no espaço escolar, por exemplo, e ao ensino. A Educação Especial e inclusiva deverá ser responsável pelo atendimento especializado do aluno com algum tipo de deficiência, tais como: auditiva, visual, intelectual, física ou múltipla, com distúrbios de aprendizagem ou com altas habilidades (superdotados), essa modalidade de ensino é um complemento e/ou suplemento para a escolari1 Mestranda do Programa em Educação-PPGE/UNIR. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5973432788346490. 2 Docente do Programa de Mestrado em Educação - PPGE/UNIR. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1584841068017210.

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zação. Há uma política já bem estabelecida de inclusão desses estudantes nas escolas regulares. Essa política é fundamentada em diversos documentos legais, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (MEC, 2008) e a Lei Brasileira de Inclusão (2015), além das já citadas CF e LDB, entre outras. Diante disso, este projeto apresenta como tema a Política de Inclusão de Alunos com Deficiência Na Escola Rural de Educação Infantil e Ensino Fundamental “03 de Dezembro”, em Porto Velho. Objetiva-se com essa pesquisa investigar a política de inclusão de alunos com deficiência, na Escola Rural de Educação Infantil e Ensino Fundamental “03 de Dezembro”, no município de Porto Velho, e analisar como convergem com o Projeto Político Pedagógico da escola em análise. A instituição de ensino “03 de Dezembro” foi escolhida para a pesquisa e faz parte de uma comunidade rural, que fica aproximadamente a 160 quilômetros de distância da capital, município de Porto Velho. Essa instituição tem um considerável número de alunos com algum tipo de deficiência, com ou sem laudos clínicos, e constitui variedades de deficiências. Para tanto, justifica-se a importância em pesquisar essa escola em que a pesquisadora atua como professora, além da ideia de que essa pesquisa possa beneficiar a própria instituição através do processo que a envolve. A partir do contexto de Educação Inclusiva, a presente intenção de pesquisa, corrobora ainda mais com o desenvolvimento profissional da pesquisadora, bem como contribui para a Educação Pública Municipal, no que concerne à inclusão das crianças com deficiências nas escolas rurais. E por não ser um tema fechado, que se esgota em si mesmo, após a conclusão da Dissertação, o produto final poderá contribuir para a elaboração de outros trabalhos com temáticas afins. O questionamento-base para a elaboração deste projeto de pesquisa busca responder quais as práticas educativas direcionadas à inclusão de alunos com deficiência são convergentes com o Projeto Político Pedagógico da Escola “03 de Dezembro”, do Distrito de União Bandeirantes, no Município de Porto Velho; e de que modo elas estão condizentes com a Política de Educação Especial e Inclusiva. A pergunta da pesquisa considera primordial que é preciso entender alguns conceitos de pessoas com deficiência. Aqui ressaltam-se algumas contribuições teóricas de alguns autores. Santos (2008, p. 503) diz que: Há duas maneiras diferentes de compreender a deficiência. A primeira afirma que a deficiência é uma manifestação da diversidade humana que demanda adequação social para ampliar a sensibilidade dos ambientes às diversidades corporais. A segunda perspectiva sustenta que a deficiência é uma restri-

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ção corporal que necessita de avanços na área da Medicina, da reabilitação e da Genética para oferecer tratamento adequado para a melhoria do bem-estar das pessoas.

Esse pressuposto nos mostra que a concepção de deficiência precisa ser refletida por cada indivíduo, compreendendo a deficiência em suas maneiras diversas, e segundo Silva (2014, p. 16): [...] ao entendermos a deficiência como resultante da inter-relação das limitações individuais como as barreiras existentes no ambiente em que vivemos, passamos a considerar o contexto - e o nosso papel e, também o papel de cada um-na [sic] constituição de cada uma das deficiências.

Outro conceito necessário para entender a intenção da pesquisa é sobre a prática educativa. A prática educativa é o processo de formação que prepara a pessoa para a sociedade e na sociedade de acordo com seus limites de aprendizagem. Para Barboza (2009, p. 37), ela é “parte integrante da dinâmica das relações sociais e das formas da organização social”. Está presente na educação sistêmica de forma intencional. Envolve, conforme Barbosa (2009, p. 37), “a vida cotidiana, as relações professor-aluno, os objetivos da educação e o trabalho docente, estão carregados de significados que se constituem na dinâmica das relações sociais”. Portanto, a prática educativa é própria da sociedade humana. A prática educativa de inclusão compreende em ações e atuações baseadas no conceito em que o profissional deve refletir sobre a necessidade de aprendizagem de cada aluno e estimular a aprendizagem nas diversas possibilidades de entendimento, objetivando alcançar toda a turma. Com isso o aluno aprende com autonomia e constrói seus conhecimentos, na diversidade e na cooperatividade. Afirma Mantoan (2015, p. 78) que “investindo na singularidade de cada um, na riqueza de um ambiente que confronta significados, desejos e experiências, esse professor deve garantir a liberdade e as diversidades de opiniões dos alunos.” Para efetivação da Educação Inclusiva não se define em eliminar as diferenças, mas eliminar as barreiras, e mesmo com a inserção do aluno com deficiência na escola, ainda houver obstáculos na instituição de ensino que extinguem o acesso ao conhecimento e o envolvimento do aluno nesse processo educacional, a Educação Inclusiva de fato, não está acontecendo. Além do mais, a Educação Inclusiva favorece a todos como seres mais humanizados considerando que se aprende nas e com as diferenças para enfatizar Mantoan (2005, p. 96) contribui: [...] inclusão é a nossa capacidade de entender e receber o outro e, assim, ter o privilégio de conviver e compartilhar com pessoas diferentes de nós. A educação inclusiva acolhe todas 253

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as pessoas, sem exceção. É para o estudante com deficiência física, para os que têm comprometimento mental, para os superdotados, para todas as minorias e para a criança que é discriminada por qualquer outro motivo. Costumo dizer que estar junto é se aglomerar no cinema, no ônibus e até na sala de aula com pessoas que não conhecemos. Já inclusão é estar com, é interagir com outro.

A autora destaca que conviver na diferença é uma capacidade indispensável e uma oportunidade de privilégios. Entretanto, incluir significa ampliar as possibilidades das pessoas conviverem, sem preconceitos e discriminações, um aprendendo com o outro e a escola deve assumir um papel imprescindível nessa empreitada de instituir o indivíduo para uma sociedade mais inclusiva. Nessa perspectiva, compreendendo esse conjunto de medidas, a pergunta da pesquisa considera primordial conhecer também o conceito e a finalidade do Projeto Político Pedagógico (PPP) para a totalidade do processo de educação inclusiva. Para Ropoli et al., (2010, p. 10), “O Projeto Político Pedagógico é o instrumento por excelência para melhor desenvolver o plano de trabalho eleito e definido por um coletivo escolar; ele reflete a singularidade do grupo que o produziu, suas escolhas e especificidades.”, portanto, é um instrumento norteador para todos que precisam e querem atuar com eficácia no processo educacional na específica instituição. Além do mais, segundo Ropoli et al., (2010, p. 11): Nossa legislação educacional é clara no que toca à exigência de a escola ter o seu PPP; ela não pode se furtar ao compromisso assumido com a sociedade de formação e de desenvolvimento do processo de educação, devidamente planejado. A exigência legal do PPP está expressa na LDBEN - Lei Nº. 9.394/96 que, em seu artigo 12, define, entre as atribuições de uma escola, a tarefa de “[...] elaborar e executar sua proposta pedagógica”, deixando claro que ela precisa fundamentalmente saber o que quer e colocar em execução esse querer, não ficando apenas nas promessas ou nas intenções expostas no papel.

Portanto fica explícito sobre as exigências da política de educação e a importância do Projeto Político Pedagógico para uma escola que almeja fluir uma educação de qualidade e essa se faz inclusiva. As políticas de inclusão são as ações da sociedade que, ao seu modo, buscam se informar e reivindicar os direitos da pessoa com deficiência. Elas asseguram e promovem às pessoas com deficiência, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais para a pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania e deve se atentar aos princípios da educação, conforme o documento de Diretrizes Nacionais para a Edu254

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cação Especial (2001, p. 23). A política nacional de Educação Especial na perspectiva de Educação Inclusiva, de acordo com a Constituição Federal brasileira (1988), propõe amparar os alunos com deficiências, ofertando a educação como um direito de todos. Ela estabelece a igualdade de condições e permanência na escola, sendo um dever do Estado ofertar o atendimento educacional especializado preferencialmente na rede regular de ensino, sem excluir nenhuma pessoa por motivo de sua origem, raça, sexo, cor, idade ou deficiência. Portanto, é um dever das instituições escolares se ajustarem de acordo com a necessidade do aluno. Por fim, consideram-se necessários estudos e reflexão entre as práticas educativas e políticas de inclusão, para acontecer melhorias no contexto de Educação Inclusiva, assim Silva (2014, p. 15) contribui que: “A inclusão educacional depende tanto de políticas inclusivas quanto de práticas pedagógica”. Referências

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