Heranças de Derrida (vol. 1): Da ética à política 9788581280356

SUMÁRIO NÃO HÁ DESCONSTRUÇÃO SEM DEMOCRACIA – NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM DESCONSTRUÇÃO - IDIOMAS DA RESISTÊNCIA – PROMESSAS D

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SUMÁRIO
NÃO HÁ DESCONSTRUÇÃO SEM DEMOCRACIA – NÃO HÁ DEMOCRACIA
SEM DESCONSTRUÇÃO - IDIOMAS DA RESISTÊNCIA – PROMESSAS DE
REINVENÇÃO: O PENSAMENTO TAL COMO A DEMOCRACIA POR VIR
FERNANDA BERNARDO (UNIVERSIDADE DE COIMBRA)
DESERTO NO DESERTO: A POLÍTICA IMPOSSÍVEL ENTRE A PROMESSA E
O MESSIANISMO
MÓNICA B. CRAGNOLINI (UNIVERSIDADE DE BUENOS AIRES –
CONICET)
BABEL DERRIDA E O MONOLINGUISMO: DA RAZÃO PURA À RAZÃO
MARRANA
OLGÁRIA MATOS (USP/UNIFESP)
APORIA DA EXPERIÊNCIA – EXPERIÊNCIA DA APORIA
RAFAEL HADDOCK-LOBO (UFRJ)
DERRIDA, UM FILÓSOFO MALTRAPILHO
CARLA RODRIGUES (UFRJ)
JACQUES DERRIDA E A FREQUENTAÇÃO DOS ESPECTROS
DIRCE ELEONORA NIGRO SOLIS (UERJ)
NÃO HÁ DESCONSTRUÇÃO SEM DEMOCRACIA – NÃO HÁ DEMOCRACIA
SEM DESCONSTRUÇÃO 1 IDIOMAS DA RESISTÊNCIA – PROMESSAS DE
REINVENÇÃO: O PENSAMENTO TAL COMO A DEMOCRACIA POR VIR
FERNANDA BERNARDO (UNIVERSIDADE DE COIMBRA)
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Heranças de Derrida (vol. 1): Da ética à política
 9788581280356

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Vol. 1 HERANÇAS DE DERRIDA DA ÉTICA À POLÍTICA © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP. 21042-235 Rio de Janeiro RJ FONE [55 21] 3546 2838 [email protected] www.naueditora.com.br Projeto gráfico, capa e editoração: Mariana Lobo Revisão de texto: Miro Figueiredo, Andrea Leal Jardim e Renata Siqueira Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak e Vladimir Menezes Vieira CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H459 v.1 Heranças de Derrida : da ética à política [recurso eletrônico] / organização Rafael Haddock Lobo ... [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2014 recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia

ISBN 978-85-8128-035-6 (recurso eletrônico) 1. Derrida, Jacques, 1930-2004 2. Filosofia moderna 3. Livros eletrônicos. I. I Colóquio Internacional Desconstrução, Linguagem e Alteridade (2011: Rio de Janeiro, RJ). II. Lobo, Rafael Haddock, 1975-. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora. Rio de Janeiro - 1ª edição: 2014 Vol. 1 HERANÇAS DE DERRIDA DA ÉTICA À POLÍTICA RAFAEL HADDOCK-LOBO ∙ CARLA RODRIGUES ∙ ALICE SERRA GEORGIA AMITRANO ∙ FERNANDO RODRIGUES (ORGS.) ESCREVEM NESTE VOLUME: FERNANDA BERNARDO MÓNICA B. CRAGNOLINI OLGÁRIA MATOS RAFAEL HADDOCK-LOBO CARLA RODRIGUES DIRCE ELEONORA NIGRO SOLIS

SUMÁRIO NÃO HÁ DESCONSTRUÇÃO SEM DEMOCRACIA – NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM DESCONSTRUÇÃO - IDIOMAS DA RESISTÊNCIA – PROMESSAS DE REINVENÇÃO: O PENSAMENTO TAL COMO A DEMOCRACIA POR VIR FERNANDA BERNARDO (UNIVERSIDADE DE COIMBRA)

DESERTO NO DESERTO: A POLÍTICA IMPOSSÍVEL ENTRE A PROMESSA E O MESSIANISMO MÓNICA B. CRAGNOLINI (UNIVERSIDADE DE BUENOS AIRES – CONICET) BABEL DERRIDA E O MONOLINGUISMO: DA RAZÃO PURA À RAZÃO MARRANA OLGÁRIA MATOS (USP/UNIFESP) APORIA DA EXPERIÊNCIA – EXPERIÊNCIA DA APORIA RAFAEL HADDOCK-LOBO (UFRJ) DERRIDA, UM FILÓSOFO MALTRAPILHO CARLA RODRIGUES (UFRJ) JACQUES DERRIDA E A FREQUENTAÇÃO DOS ESPECTROS DIRCE ELEONORA NIGRO SOLIS (UERJ) NÃO HÁ DESCONSTRUÇÃO SEM DEMOCRACIA – NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM DESCONSTRUÇÃO ¹ IDIOMAS DA RESISTÊNCIA – PROMESSAS DE REINVENÇÃO: O PENSAMENTO TAL COMO A DEMOCRACIA POR VIR FERNANDA BERNARDO (UNIVERSIDADE DE COIMBRA) I. SOB O SIGNO DO “ PLUS D’UN/E ”: HERDAR UM SEGREDO – ALI ONDE A ARQUEO-GENEA-LOGIA FALTA On hérite toujours d’un secret – qui dit ‘lis-moi’, en seras-tu jamais capable J. Derrida , Spectres de Marx, p. 40 Nous sommes des héritiers, […] l’être de ce que nous sommes est d’abord héritage J. Derrida , Spectres de Marx, p. 94 Témoignons : il y a là du secret. J. Derrida , Passions, p. 56 – […] Rien ne vit sans mourir. Dieu lui-même, s’il veut vivre pour toi, doit mourir: Comment penses-tu, sans mort, hériter de sa vie?

(I, 33) (x 2) Traduzindo, melhor, apostando na tradução sem todavia descurar o intraduzível – o intraduzível a traduzir ² ou o indesconstrutível que dita, magnetiza e lo comove ³ a Desconstrução ⁴ derridiana, que é o seu sopro e a sua respiração não menos que o seu sufoco: – […] Nada vive sem morrer. O próprio Deus, se quiser viver para ti, tem de morrer: Como pensas tu, sem morte, herdar da sua vida? (I, 33) (x 2) É Silésius, é uma máxima de Angelus Silésius citada por Jacques Derrida em Sauf le Nom ⁵ – um dos cinco (c-i-n-c-o!) livros do filósofo editorialmente datados de 1993 [sendo os outros: Khôra, ⁶ Passions, ⁷ Prégnances, ⁸ e Spectres de Marx ⁹ ] com o bem significativo subtítulo de “ post-scriptum ”, ¹⁰ cujo incipit , imediatamente a seguir a aspas, “– […]”, ¹¹ e a um espaçoso branco de silêncio, como que mima à partida o “diálogo” entre o que parecem ser duas vozes e abre sob o signo do imperativo “ plus d’un ” e “ plus qu’un ” ¹² – eis aquela que parece ser a primeira das vozes que inaugura este aparente “diálogo” ¹³ ou, em todo o caso, este polilogo: “– Mais de um [ Plus d’un ], peço-vos perdão, é preciso ser sempre mais do que um [ plus qu’un ] para falar, são precisas várias vozes para isso” ¹⁴ (eu sublinho). Se aqui , no limiar deste colóquio em torno das “ Heranças de Jacques Derrida ”, começo por fazer estas citações de Silésius e de Derrida, fazendoas ressoar, é também por mais de uma razão – por duas, pelo menos, e na mais estrita consonância com a problemática deste colóquio com o título geral de “Desconstrução, Linguagem, Alteridade: Heranças de Jacques Derrida”. Deixando aqui de lado a (todavia importante) questão da relação existente entre a escrita e o perdão – mas, ainda assim, não sem lembrar que, segundo Derrida, se “pede sempre perdão quando se escreve” ¹⁵ (e/ou quando se herda!), se pede sempre “perdão por escrever, perdão pelo crime, pela blasfémia ou pelo perjúrio nos quais consiste presentemente o acto de escrever”, ¹⁶ em razão de a escrita abrir para a obliquidade ou para o desvio da destinerrância ¹⁷ ou da adestinerrância ¹⁸ e portanto, tanto para o “plus d’un”, como para o “plus qu’un” e, ipso facto , para a irrectidão, para a ininterrupta interrupção da relação (por isso sem relação e de inevitável traição ¹⁹ ) a uma dada singularidade absoluta (seja ela Deus, por exemplo, e o exemplo dos exemplos! ²⁰ ) –, deixando, pois, aqui de lado a relação existente entre a escrita e o perdão, dizia – relação que nos dá a pensar a escrita como queda, desastre, desvio, viagem, luto, sacrifício, apagamento, perjúrio, memória in memoriam , numa palavra, como o rastro ou o post scriptum da própria relação à alteridade absoluta –, uma primeira razão da

minha citação desta passagem de Sauf le Nom prende-se justamente com a imperatividade que nela se dá a escutar relativamente ao “ plus d’un/e ” e ao “ plus qu’un/e ” pelos quais Derrida pede perdão: a imperatividade absoluta do “ il faut ”, ²¹ do “ é preciso ”, do “ é preciso ” “mais de um/a” ou “mais do que um/a” para falar e, por excelência, para falar a Deus ou de Deus, um dos nomes ²² da alteridade absoluta que, como o filósofo ²³ o sublinha, não tem talvez nome próprio – um nome que, como qualquer nome, nomeia o que, no nome, escapa à própria nomeação. Com efeito, não há nome que não sobreviva ao portador do nome… Uma imperatividade absoluta , uma imperatividade incondicional ( anhypotheton , unbedingt , inconditionnel ) ligada à falta, ao que falta, ou ao que (faz) falta e é preciso, que faz ressoar à partida a tonalidade hiper-ética da Desconstrução derridiana, ²⁴ que me é grato começar também por sublinhar aqui fazendo ressoar a verticalidade do irredentismo do seu éthos de pensamento e de escrita intransigentes, ²⁵ do seu idioma ²⁶ de resistência que mostra, nomeadamente, como a paixão da origem e a paixão da escrita se confundem com a própria paixão (meta-)ético-desconstrutiva , e me traz também inevitavelmente à memória uma das divisas da própria Desconstrução derridiana – aquela com a qual, em Mémoires – pour Paul de Man (1988), o filósofo ousa nada mais nada menos do que uma “definição” da singularidade da Desconstrução enquanto pensamento e enquanto registo, posicionamento ou orientação específica do filosófico. Uma “definição” que eu ouso também recordar aqui, citando-a, com a intenção de relembrar e de enfatizar a peculiar singula ridade do idioma filosófico que aqui, neste colóquio, tentamos e aproximar e enfatizar, fazendo-o ressoar – ora escutem: “Se tivesse de arriscar”, arrisca Derrida, “Deus me livre, uma única definição da desconstrução, breve, elíptica, económica como uma palavra de ordem, eu diria sem frase: plus d’une langue .” ²⁷ E, em diálogo com Elizabeth Roudinesco (2001), Derrida reitera: […] esta divisão, esta deiscência [( plus d’un ) […]] é aquilo em torno do qual trabalho todo o tempo, desde sempre. Esta incalculável multiplicidade interior é o meu tormento, justamente, o meu trabalho , o meu tripalium , a minha paixão e o meu labor. ²⁸ “ Plus d’un/e”, “Plus d’une langue ”, eis então a Desconstrução segundo Derrida – a Desconstrução de Derrida – a Desconstrução para Derrida. Acontece, porém, que “ plus d’un/e”, “Plus d’une langue ” é um extraordinário sintagma da língua francesa através do qual a genialidade do pensamento de Derrida ²⁹ (e obviamente em sentido derridiano, ³⁰ em que a genialidade desenha pre cisamente a cena dissimétrico-heteronómica do pensamento ou da identificação do “eu” ou da “singularidade”) e do seu não menos genial trato com a língua (francesa), da sua não menos genial atenção à exposição ou à tradução do (seu) pensamento na língua, faz já como que performativamente aquilo mesmo que diz. Aquilo que, elidindo com engenho e arte a cópula ontológica [através da pontuação, através dos dois pontos: “eu diria sem frase : plus d’une langue ”], o pensador-filósofoescritor, que é Jacques Derrida, nos diz “ser” a Desconstrução como

pensamento e a sua tradução na língua, por um lado, por outro e, ipso facto (a Desconstrução), como um outro nome da tradução, ³¹ sugerindo assim à partida a singular intraduzibilidade deste idioma de pensamento – pensamento que, notemo-lo, ³² Derrida distingue da filosofia (a quem marca o atraso, o “après-coup”, o “sero”, o “tão tarde, tão demasiado tarde”, ³³ …) e define como um pensamento do impossível, do evento, da invenção, da vez, da singularidade ou da alteridade absoluta – e daquilo que o apela e o magnetiza ou lhe dá a pensar e ele pensa, co-respondendo-lhe: uma intraduzibilidade, uma resistência encarniçada à tradução, uma perda em tradução que, notemo-lo também, longe de insinuar qualquer irracionalismo ou qualquer romantismo, qualquer teologismo – seja ele no modo da dita Teologia Negativa (a que é suposto Silésius pertencer) – ou qualquer interdito à tradução, constitui antes um apelo lancinante à tradução – um apelo in-finito que desenha também, a par do desejo, da impaciência do desejo que dita e locomove a Desconstrução e/ou a tradução, a sua melancolia. É que não há tradução, seja ela a mais relevante das traduções, que não deixe sempre muito a desejar … Uma intraduzibilidade que, notemo-lo também, dá conta da experiência heteronómico-dissimétrica – uma experiência inexperienciável , à Blanchot ³⁴ pois, quer dizer, uma experiência que é uma provação , um padecimento, uma paixão ; ou seja, uma experiência ³⁵ que não se faz mas se sofre – que dita, magnetiza e locomove este singular pensamento da différance ou da alteridade, da alteridade ab-soluta ( tout autre ) que, enquanto tal, é ao mesmo tempo também um pensamento que re-pensa de novo, diferente, inventiva e hiperradicalmente a alteridade – a alteridade ou … o “nada”: ³⁶ a alteridade ou o “nada”, um certo “nada” para além do ser. Um “nada” que não é, no entanto, um “nada” do ser, por relação com o “ser”, como acontece, por exemplo, com o “nada” que o Dasein heideggeriano enfrenta na angústia diante da morte, por exemplo, que abre ainda para a questão do ser, ³⁷ tido pelo filósofo alemão pelo “transcendente puro e simples” ( SZ , § 7, p. 38). Um pensamento que repensa a alteridade em termos de uma alteridade ab-soluta ( ab-solus ) – isto é, separada ou secreta ³⁸ ( secretum , particípio passado de se-cernere : separar, dissociar, apartar): uma alteridade ab-soluta ou um “algures” secreto e, enquanto tal, infinitamente desejado (sem antropo-teomorfismo), aqui, nesta citação de Silésius com que (não) comecei, marcada pela altura das aspas e pelo espaçoso branco de silêncio iniciais (apenas) mal acolhidos pela palavra “Nada” na qual se pode talvez escutar o eco do silêncio, tão soberano quanto tumular, tão soberanamente, tão incondicionalmente ³⁹ tumular, do A mudo da différAnce ⁴⁰ – a letra do (não) começo absoluto… A letra piramidal, tumular da desconstrução da “origem” ou do começo, a letra da desconstrução da arqueo-genea-logia, da onto-topologia ou da onto-fenomenologia e, ipso facto , a letra da desconstrução de toda e qualquer soberania e da unidade, da unidentidade (unidade+identidade) de todo e qualquer corpus ( a metafísica, a ontologia, a fenomenologia, a história, a história do ser, a tradição, a herança, a religião, a identidade, subjectiva ou outra, a palavra, a língua etc.). Um pensamento que pensa a alteridade em termos de uma alteridade absoluta , ateológica pois, ⁴¹ sim, é certo, mas, ainda assim, aqui – algures aqui , isto é, nos post-scripta , no corpo e da língua e no próprio corpo, porque,

como nomeadamente O Monolinguismo do Outro (1966) também o dirá, ⁴² a língua, onde essa alteridade se diz retirando-se e retraçando-se, traindo-se, é sempre também uma coisa do corpo. Uma coisa que marca, que circuncisa, que tatua ⁴³ o corpo. Como Derrida o reitera em D’ailleurs, Derrida , o filme de Safaa Fathy que terão visionado há instantes, o “ ailleurs ” [“ algures ”, “ aliore loco ”, “ aloirsum ”] que ele bem cultiva e o cultiva, a ele, é um “ailleurs ici ” ⁴⁴ : um “algures aqui”: “aqui”, isto é, no coração, no corpo e nos postscripta que são a escrita ou a obra de Derrida. Daí também o registo aporético, irredutivelmente aporético ⁴⁵ inerente à incondicionalidade ou à impossibilidade da Desconstrução derridiana. Que o mesmo é dizer, inerente à via e ao modo singular da sua relação (sem relação) à alteridade ab-soluta – uma insistente relação de rectidão no eco do seu inevitável desvio. Da sua irremediável destinerrância ⁴⁶ – dos seus postscripta , restos do que não resta mais ou “o que resta sem restar do holocausto”. ⁴⁷ Cinzas do fogo – cinzas em fogo… Feu la cendre – Il y a là cendre é, diz Derrida, “a arte consumada do segredo”. ⁴⁸ Lembremos aqui, nas palavras do próprio Derrida, um e outro destes dois traços marcantes do seu pensamento (o da impossibilidade e o da aporeticidade – o da im-possibilidade , pois), deixando assim uma vez mais ressoar as palavras daquele que hoje aqui nos reúne: e comecemos por lembrar, em primeiro lugar, a “definição” da Desconstrução como um pensamento ou uma experiência do impossível , que o mesmo é dizer, da alteridade absoluta – um pensamento que repensa, isto é, que desconstrói a longa e dominante tradição ocidental do possível e do poder ⁴⁹ ( dynamis , possibilitas, faculdade, Möglichkeit ) de Aristóteles ( zoon logon ekhon ) a um certo Heidegger, ⁵⁰ inclusive: “a desconstrução mais rigorosa”, diz Derrida em “Pyché. Invention de l’autre”, jamais se apresentou […] como qualquer coisa de possível . Direi que ela não perde nada em confessar-se impossível, […] O perigo, para uma tarefa de desconstrução, seria antes a possibilidade , e tornar-se um conjunto disponível de procedimentos regrados, de práticas metódicas, de caminhos acessíveis. O interesse da desconstrução, da sua força e do seu desejo, se ela o tiver, é uma certa experiência do impossível: quer dizer […] do outro, a experiência do outro como invenção do impossível, noutros termos, como a única invenção possível. […] O outro apela a vir e isso não acontece senão a várias vozes . ⁵¹ Eu sublinho. E sublinho para, para além da “definição” da Desconstrução como um pensamento ou como uma experiência do impossível ou do outro, isto é, da alteridade absoluta, enfatizar o “mais de uma voz”, a polifonia ou a “multiplicidade das vozes” na voz, numa só voz, que faz soar o toque a finados pelo “monólogo” ou pelo dito “diálogo interior” e acolhe a visitação ou a vinda do outro como outro – como outro , isto é, como uma alteridade absoluta : um acolhimento que se confunde com a própria Desconstrução derridiana que é, ela própria, se assim se pode dizer, não só um pensamento da hospitalidade, ⁵² mas um pensamento como hospitalidade: ⁵³ a hospitalidade incondicional ou de visitação ⁵⁴ é, como o dom, o perdão e a justiça, um dos seus impossíveis.

E lembremos, de seguida, “a relação sem relação” do pensamento derridiano a um “algures” absoluto (“ ailleurs ”) ou secreto – de que “Deus” ou o “Nada” da máxima de Silésius, ou então a khora do Timeu de Platão, é um dos nomes (e um dos nomes, porque, de um tal “algo” ou de um tal “algures”, não há nome próprio ): um “ algures ” meta -ontofenomeno-lógico, meta -arqueo-genea-lógico e meta -topológico que apenas vem e sobre-vive a partir, a retirar-se ou a morrer ou, como na vossa língua vós tão bem o dizeis, morrendo . Morrendo e, paradoxalmente, sobrevivendo (para além da o-posição do viver e do morrer): “Na verdade, tudo quanto desde há muito tempo me tem, digamos, interessado – a título da escrita, do rastro, da desconstrução do falogocentrismo e ‘da’ metafísica ocidental”, confessa Derrida em O Monolinguismo do Outro , […] não pôde deixar de provir desta estranha referência a um “algures” de que o lugar e a língua me eram para mim próprio desconhecidos ou interditos, como se eu tentasse traduzir na única língua e na única cultura franco-ocidental de que disponho, na qual fui lançado no nascimento, uma possibilidade para mim mesmo inacessível, como se eu tentasse traduzir na minha “monolíngua” uma palavra que eu ainda não conhecia, como se tecesse ainda qualquer véu às avessas (o que aliás muitos tecelões fazem) e como se os pontos de passagem necessários a esta tecelagem às avessas fossem lugares de transcendência, logo de um “algures” absoluto, em relação à filosofia ocidental greco-latina-cristã, mas ainda nela […] era preciso contar com esta “cultura” para nela traduzir, atrair, seduzir isso mesmo, o “algures”, em direcção ao qual eu mesmo estava antecipadamente ex-portado, a saber, o “algures” deste outro absoluto com o qual fui obrigado a manter, para me guardar mas também para dele me resguardar, como de uma temível promessa, uma espécie de relação sem relação. ⁵⁵ Escutado Derrida a referir e a impossibilidade e a aporeticidade que dita e locomove o seu pensamento , a Desconstrução como pensamento , como um pensamento da alteridade absoluta , retomo o fio do motivo da minha citação inicial e volto de novo à questão do “plus d’une”, e pergunto: como não sentir já que o sintagma “ plus d’une langue ”, pelo qual Derrida aqui como que define a Desconstrução, e que deliberadamente eu não traduzi, põe à prova o desejo da sua “tradução relevante” para a nossa língua (a tradução que, no próprio dizer do filósofo, faz ou tenta fazer o impossível , justamente – justamente, isto é, na justiça, com justiça, como a própria justiça!), com o qual se mede, e que, no dizer do próprio filósofo, é uma tradução fiel à “lei económica da palavra”, que tradicionalmente define a essência da tradução”? Pelo que, acrescenta Derrida, sempre que “a unidade da palavra estiver ameaçada ou for posta em questão, não é apenas a operação da tradução que se encontra comprometida, é o conceito, a definição e a própria axiomática, a ideia da tradução que é preciso reconsiderar”. ⁵⁶ Pergunto ainda: acaso não é justamente esta “unidade”, esta pretensa “ unidentidade ” (unidade+identidade una) da palavra que este sintagma (“ plus d’une ”) põe à prova, intraduzível, como é, ao abrigo do preceito derridiano de traduzir uma palavra para uma palavra? É que, no idioma de

Derrida, o sintagma “ plus d’une ” consente, ao mesmo tempo ( ama ), e mais de uma escuta e mais de um entendimento, como se mais de uma palavra habitasse, assombrasse e dobrasse o seu corpus verbal: é que, em francês, “ plus d’une ”, “ plus d’une langue ”, escuta-se ao mesmo tempo , por um lado, no sentido de “mais de uma”, de “mais de uma língua” e, por outro lado, no sentido de “não mais uma língua”, de “não há mais uma língua”, não há mais a língua – uma língua una . Uma língua una e idêntica a si, uma língua sem diferença a si. ⁵⁷ Uma língua dita materna! ⁵⁸ O Monolinguismo do Outro di-lo assim: Uma língua não existe. Presentemente. Nem a língua. Nem o idioma nem o dialecto. Esta é, aliás, a razão pela qual nunca se poderão contar estas coisas e a razão pela qual se, num sentido que passarei a explicitar, não se tem nunca senão uma língua, este monolinguismo não faz um consigo mesmo. […] não há língua dada, ou antes, há língua, há doação de língua ( es gibt die Sprache ), mas uma língua não é. Não é dada. Não existe. Apelada, ela apela, como a hospitalidade do hóspede antes mesmo de qualquer convite. ⁵⁹ Nestes termos, porque vinda do outro, como a própria vinda do outro como outro , no seio de uma experiência heteronómico-dissimétrica de “exapropriação” ⁶⁰ in-finita (isto é, finitamente infinita) da língua por parte do dito “sujeito”, originariamente desapossado ou alienado ⁶¹ da língua, isto é, originariamente hóspede-refém da língua, que é sempre do outro ⁶² ( do outro, não no sentido de possuída pelo outro, mas no sentido de vinda ou de herdada do outro ⁶³ ), uma língua está já sempre timbrada , já sempre marcada, já sempre babelizada, ⁶⁴ … Numa palavra, já sempre heteroafectada ⁶⁵ pela língua do outro que fala já sempre – nem que seja em surdina, nem que seja no rumor do silêncio! – na língua do próprio “eu” que, assim ventriloquistado ou assim heteroafectado [“ Ich bin Du wenn Ich Ich bin ”, Celan], fala já sempre numa cena de herdeiro endividado e enlutado pela monolíngua do outro, ⁶⁶ que in-finitamente ex-apropria, antes mesmo de “ser” – antes mesmo de “ser” e a fim de vir a identificar-se ⁶⁷ (por relação com a língua e não mais por relação com o sangue ou o solo) diferentemente do “ser”. ⁶⁸ O que é também dizer duas coisas de uma mesma assentada – a saber: – Uma primeira, que, em razão de responder já sempre à língua do outro, melhor, à injunção ou ao apelo da língua do outro – ou em razão de tentar arquivar ou salva-guardar um dado evento, referente ou coisa, que sela a perder, que só sela a perder ou a apagar ⁶⁹ – a “palavra” como “escrita”, como arqui-escrita mais precisamente, é sempre um post-scriptum . Na cena derridiana, a fala, toda a fala é já sempre escrita ⁷⁰ – e toda a escrita é já sempre um post-scriptum espectral: quer dizer, um rastro de sobre-vivência desesperadamente (mas não sem júbilo! ⁷¹ ) enlutado. Como é sabido, o rastro – o que resta do que não resta mais! – pratica a “economia da morte”, o seu diferimento, o seu adiamento, a sua demora, a sua “demorança” e tem, como bem sabemos também, uma essência testamentária. ⁷² Derrida lembrao assim em L’Écriture et la Différence (1967):

“Os livros”, diz aí o filósofo, “são sempre livros de vida (o arquétipo seria o Livro da Vida mantido pelo Deus dos Judeus) ou de sobre-vida (os arquétipos seriam os Livros dos Mortos mantidos pelos Egípcios).” ⁷³ – Uma segunda, de todo imbricada com esta, que me remete para a minha citação inicial de Silésius, para a sua principal razão de ser no contexto deste olóquio, e que aqui desejo sublinhar, é o facto de a escrita, na sua condição de post-scriptum , pôr em cena e configurar já a lei do próprio herdar: com efeito, nesta cena teórico-filosófica que, à sua maneira, é a Desconstrução derridiana, “ser” é “herdar”: “ser” é sinónimo de (in-finita) inscrição endividada e enlutada numa dada cadeia genealógica, sinónimo de “seguir”, de “vir a seguir”, de “vir depois”, como Derrida o sugere por exemplo com o título L’animal que donc je suis (1997) jogando com a dupla ressonância do “ je suis ” (“eu sou” e “eu sigo”) para nos dar a pensar a sentir a in-finita melancolia ⁷⁴ do “cogito do adeus” ⁷⁵ (à autonomia orgulhosa da racionalidade soberana do sujeito antropológico ou da consciência egológica) que somos – que é a irremediável condição de herdeiros dos “ tarde-vindos que somos ” (Hölderlin/Derrida). A infinita melancolia e, acrescente-se, a infinita responsabilidade deste “cogito do adeus” – de um “adeus” que é, ao mesmo tempo, saudação e despedida como Derrida o lembra em Vadios (2003), nomeadamente. Para Derrida, “ser” é de facto sinónimo de “ser herdeiro” – e, em primeiro lugar, herdeiro da língua do outro, no poético dizer de Hölderlin, “o mais perigoso dos bens” que terá sido dado ao homem, “a fim de ele testemunhar ter herdado o que é ( damit er Zeuge, was er sei/ geerbt zu haben )”: “o que é”, a saber, um herdeiro endividado e enlutado. A língua é justamente “o mais perigoso dos bens” dado ao homem a fim de ele testemunhar que é um herdeiro – um herdeiro originariamente enlutado, como o são todos os herdeiros: originariamente enlutado da língua do outro e/ou do nome que lhe é dado ⁷⁶ pelo outro que, tendo-o igualmente recebido , dá afinal o que não tem (Plotino/Heidegger/Lacan/Derrida ⁷⁷ ). Um herdeiro originariamente enlutado e da língua e do outro e , ipso facto , de si próprio como outro [“Je est un autre” (Rimbaud)]. De si como “mais de um” [“ plus d’un ”], como um “nós” – como um “uns” ou um “singular plural” (à J-L Nancy). O que é dizer que a originariedade do luto, ⁷⁸ inerente à nossa condição de herdeiros da língua, depõe, expõe e deporta à partida o “ ser ” dele mesmo, endividando-o originariamente ao dever ser , ⁷⁹ tal como depõe e deporta o “ eu sou ”, o “ sum ” do herdeiro para o de um “eu” (antes mesmo de “ser” e a fim de “ser” justa ou responsavelmente) obrigado a falar , isto é, obrigado a responder à língua do outro na própria língua do outro. Isto é, singular ou idiomaticamente contra-assinada e ex-apropriada no decurso de uma experiência in-finita de não-identidade a si ⁸⁰ . Derrida lembra-o em Spectres de Marx , nomeadamente, ao lembrar no mesmo lance a impossibilidade da anamnese do outro absoluto para além da simples reconstituição e apropriação de uma herança dada, tal como para além de um passado disponível – o passado absoluto da herança, que porta a herança até nós, deportando-a, é sempre um porvir absoluto : um passado absoluto configurado como porvir absoluto atestado pelo “ futur antérieur ”, o tempo “fora dos eixos” (“ out of joint ”) da Desconstrução derridiana:

“A herança”, diz aí Derrida explicitando o que entende por herdar , não é nunca um dado – é sempre uma tarefa. De tal maneira ela permanece incontestavelmente diante de nós que, antes mesmo de o querermos ou de o recusarmos, nós somos herdeiros, e herdeiros enlutados, como todos os herdeiros. […] Ser , […] quer dizer, herdar . Todas as questões a respeito do ser ou do que há que ser (ou que não ser: or not to be ) são questões de herança. Não há qualquer fervor passadista em lembrá-lo, nenhum sabor tradicionalista. Somos herdeiros, o que não quer dizer que nós temos ou que recebemos isto ou aquilo, que tal herança nos enriquece um dia disto ou daquilo, mas que o ser do que somos é primeiramente herança, quer o queiramos ou o saibamos ou não. E nós não podemos senão testemunhá-lo . Testemunhar seria testemunhar por aquilo que somos enquanto o herdamos , e, eis o círculo, eis a chance ou a finitude, nós herdamos aquilo mesmo que nos permite testemunhá-lo. Hölderlin chama a isso a linguagem, “o mais perigoso dos bens” dado ao homem, “a fim de ele testemunhar ter herdado/ aquilo que é ( damit er zeuge, was er sei / geerbt zu haben )”. ⁸¹ E esta questão da transmutação do “ser” em “(ser) herdeiro” e, portanto, do “ser” (ontologia) em “dever ser” ⁸² (meta-eticidade, incondicionalidade da Desconstrução: uma incondicionalidade que repensa e hiperboliza a imperatividade do imperativo categórico da ética kantiana), leva-me finalmente à principal razão da minha citação desta máxima, com a qual e pela qual aqui ( não ) comecei – ela reside precisamente no facto de esta máxima de Silésius, herdada de Silésius e já herdada pelo próprio Silésius, nos dar a pensar a cena e a tarefa do próprio herdar . Como aliás muito explicitamente Derrida o referirá. Com efeito, não sem lembrar a grande dificuldade que é herdar – quando se herda, de facto? O que é herdar? Bem herdar? – nem sem referir também que, na sua genialidade própria, apesar dela, Silésius já repetia, ele também, e já transferia ou já traduzia também –, ou seja, Silésius encontrava-se já também em memória de uma herança, que o mesmo é dizer, inscrevia-se já de uma certa maneira numa certa genealogia e encontrava-se já também numa situação de herdeiro (de S. Paulo) – com efeito, dizia, a seguir à citação de Silésius com que abri , aqui, a minha comunicação, uma das vozes do signatário de Sauf le Nom acrescenta imediatamente – e, notemo-lo já também, numa linguagem, num registo ter minológico que não pode não surpreender, de tal modo ele é inabitual em Jacques Derrida: Alguma vez se escreveu algo de mais profundo sobre a herança? Escuto e entendo [ j’entends ] isto, [isto, quer dizer, esta citação de Silésius] como uma tese acerca do que herdar quer dizer. E dar o nome, e recebê-lo. ⁸³ “ Escuto e entendo isto ” – isto , quer dizer, esta citação e esta máxima de Silésisus: “ Nada vive sem morrer / O próprio Deus, se quiser viver para ti, tem de morrer: / Como pensas tu, sem morte, herdar da sua vida ?” – “como uma tese acerca do que herdar quer dizer .” Lemos na surpresa, como não confessá-lo? Com efeito, Derrida não é, demasiado bem o sabemos, e pour cause , justamente, o filósofo da “tese”, que, na linha repensada da skepsis do cepticismo ⁸⁴ ou da épokê da Teologia Negativa e da redução fenomenológica, o seu pensamento da escrita ou da

différance começa justamente por suspender: uma suspensão que examina e arruína à partida toda e qualquer proposição ontológica ou teológica e, na verdade, todo e qualquer filosofema como tal. E, por isso, também o “quererdizer”. Derrida não é, nem o filósofo da “tese”, nem o filósofo do “querer dizer”. Pelo contrário. ⁸⁵ Bem pelo contrário, dir-se-á mesmo: o seu pensamento, que, como ele mesmo o refere em De la Grammatologie (1967), “ não quer dizer nada ”, ⁸⁶ tenta antes “manter-se no ponto do sufoco do querer-dizer”. ⁸⁷ No “ponto de sufoco”, quer dizer, algures no limite ou na véspera do “querer-dizer” e, ipso facto , algures no hiato da sua elipse, da sua ferida ou da sua não-identidade a si: um limite que, limitando e impossibilitando o próprio “querer-dizer” como tal , é paradoxalmente ao mesmo tempo também a condição ( quase-transcendental ) da sua possibilidade. A condição de possibilidade do próprio “querer-dizer”; a condição de possibilidade da “significação” e do seu corpus (linguístico, discursivo, sistémico ou textual), a sua instância a-semântica – algo assim como a “significação da significação”, “a sinfonia onde todos os sentidos se tornam cantantes, o cântico dos cânticos”, ⁸⁸ como Levinas soube igualmente dizê-lo em Humanisme de l’Autre Homme (1972). Uma condição de possibilidade que está, aliás, na origem da diferença entre Desconstrução e Hermenêutica, entre polissemia e disseminação ⁸⁹ – uma condição de possibilidade, “um sentido do sentido” (mas sem meta-sentido!), que a disseminação ⁹⁰ lembra à polissemia regida, como esta é ainda, pelo horizonte onto-fenomenológico ou ôntico-hermenêutico do tempo ( do ser). Certo é que Derrida não hesita em conceder ao pensamento da herança , que se diz nesta máxima de Silésius – que é, ela própria, já uma marca ou um rastro da herança da leitura de Silésius de S. Paulo! –, a configuração de um axioma acerca do que é herdar – ou acerca do que deverá entender-se por herdar e que, para Derrida, significa sempre acolher e escolher respondendo ao legado, respondendo- lhe e respondendo por ele, assumindo assim a responsabilidade de o re-inventar, capitalizando-o. Repito: “Escuto e entendo isto” – isto, quer dizer a máxima de Silésius: “ Nada vive sem morrer / O próprio Deus, se quiser viver para ti, tem de morrer: / Como pensas tu, sem morte, herdar da sua vida ?” – “Escuto e entendo isto como uma tese acerca do que herdar quer dizer. E dar o nome, e recebê-lo.”

O que quer então dizer herdar ? O que é herdar ? Bem herdar ? Herdar segundo Derrida? Herdar para Derrida? E digo “para Derrida”, “herdar para Derrida”, porque escuto o subtítulo do nosso colóquio – “ Heranças de Derrida ” – não tanto, ou sobretudo (embora também, obviamente!), no sentido do legado de Derrida , no sentido do que a obra imensa de Derrida nos legou no campo do pensamento, do pensamento do político, da filosofia, da literatura, das artes, das religiões e dos vários saberes, mas antes no sentido do que ele mesmo terá sabido bem herdar no seio do legado da ocidentalidade filosófico-cultural [e, como veremos já, nos apelará, a nós, a saber também herdar!] e delineará e marcará o idioma do seu pensamento com um tom único. Único e ousadamente hiper-radical. E justo – justo de uma Justiça ⁹¹ que o filósofo distingue singularmente do Direito, de quem ela é o remorso infinito: o remorso infinito e, ipso facto , a in-finita injunção à sua crescente perfectibilidade. É pois ainda a singularidade da Desconstrução derridiana, enquanto herdeira da ocidentalidade filosófico-cultural, que eu tento aqui aproximar e enfatizar, dando-a a escutar. Em que consiste uma tal singularidade? O que a torna única, excepcionalmente única no seio da ocidentalidade filosóficocultural que ela herda atentando, no entanto, na não- identidade a si da sua memória? Atentando na imemorialidade da sua memória? Pois bem, é a sua hiper - ou a sua quase-transcendentalidade ⁹² – é a quasetranscendentalidade da Desconstrução derridiana na sua justa atenção ao limite, ⁹³ ao segredo ou à alteridade absoluta que eu procuro surpreender e realçar aqui a partir da difícil questão do herdar . Uma quase transcendentalidade que, a par de dar conta da impossibilidade ou da incondicionalidade da Desconstrução como pensamento , bem como da inevitável aporeticidade irredutível que a estrutura, magnetiza e locomove, dá também conta da excepcionalidade ou da genialidade da hiperradicalidade do seu idioma no contexto da ocidentalidade filosófica, de Platão a Heidegger e Lévinas inclusive – e para além ... E para além , justamente… Para além , quer dizer, na singularidade da sua atenção ao “absolutamente outro” (“tout autre”) desta ocidentalidade (embora excepcionalmente ainda nela , na não identidade-a-si do seu corpus , por isso abissalmente ⁹⁴ aberto ou heterogeneizado), no culto derridiano do “excesso para além do excesso” – um culto que Derrida confessa em O Monolinguismo do Outro, ⁹⁵ nomeadamente, confessando a “hiperbolite”, ⁹⁶ isto é, o “extremismo intemperante e compulsivo” que desde sempre terá locomovido o seu pensamento e a sua escrita – uma escrita que em Aprender finalmente a viver (2005) o filósofo diz ter desejado “uma revolução interminável” ⁹⁷ … E “uma revolução interminável”, como veremos já um pouco mais precisamente, em razão de ela responder, de cada vez, à urgência da passagem meteorítica deste excesso (no modo da injunção de um tempo que vem a partir). Para tal, começo muito sucintamente, necessariamente, por notar que o subtítulo do nosso colóquio fala muito justamente de herança s – no plural, quero dizer. E plurais e heterogéneas, e “ mais de uma ” para continuar ainda aqui sob o signo do “ plus d’un/e ” e, portanto, sob o signo da

desconstrução da arqueo-genea-logia, são ou foram de facto as heranças de Derrida. E, ainda aqui, e uma vez mais, por mais de uma razão – por uma dupla razão, pelo menos, que faz talvez também sentido lembrar e enfatizar aqui, embora muito sucintamente, necessariamente. A saber: – Por um lado , porque essas heranças são, de facto, mais de uma : elas integram a dupla memória da nossa ocidentalidade – a memória bíblica e a memória helénico-latina a que Derrida confessa a sua fidelidade, confessando assim a sua fidelidade a “ plus d’un/e ”. ⁹⁸ E confessando esta “fidelidade a mais de um/a” como o que haveria mesmo que saber “merecer herdar”. ⁹⁹ Uma memória, ela própria, todavia já in memoriam . Uma memória, como qualquer memória, maior do que ela própria, ¹⁰⁰ porque também já em memória do imemorial que a dita, locomove, heterogeneiza e enluta. Com efeito, na singularidade respectiva dos seus idiomas, estas duas memórias traduzem-se uma na outra ¹⁰¹ (elas que, traduzindo-se entre si, são já sempre traduções do intraduzível ou do imemorial!), traduzindo uma certa maneira de pensar e de habitar o mundo. ¹⁰² – Por outro lado , a pluralidade destas heranças (a bíblica e a helénicolatina) designa também, designa antes de mais , a heterogeneidade de cada uma delas em si própria, se assim se pode dizer. É que, na fidelidade a “mais de um/a”, há pluralidade e pluralidade – e agora, em Derrida, esta pluralidade não brota mais de uma suposta unidade originária e indivisa. Não brota da aritmética do Um/Uno+ 1+1+1 – a aritmética da arqueogenea-logia, da onto-teologia, da soberania onto-teológica de que a Desconstrução denuncia a ficção, denunciando a sua auto-imunidade ¹⁰³ . Não, as heranças de Derrida não são apenas mais de uma em virtude de serem plurais: duas, pelo menos – a bíblica e a helénico-latina. Não! Elas são também, elas são sobretudo plurais, elas são sobretudo mais de uma , em razão da sua respectiva heterogeneidade estrutural: cada uma delas é, em si própria, se assim se pode dizer, também mais de uma . Quer dizer: não idêntica a si. Heterogénea. Diferente. Diferente e em diferendo – em diferença a si (que não em diferença consigo ¹⁰⁴ ): e isto, porque abre para aquilo que a terá ditado, para aquilo a que ela responde já sem todavia poder conter como tal : para aquilo a que, enlutada e endividada, ela responde já sempre no desvio da palavra/ escrita ou do rastro (trace ¹⁰⁵ ) – isto é, no perjúrio ¹⁰⁶ do post-scriptum, ¹⁰⁷ signo do “ plus d’un ” e do “plus qu’un ”! Não há mais “um/uno” originário! Há somente “uns”, ¹⁰⁸ que o mesmo é dizer, há somente já sempre só quase “um” em tradução, em repetição ou em différance … Outra é pois agora a aritmética que lavra esta pluralidade heterogénea das heranças que se traduzem entre si, tentando traduzir o intraduzível ou o imemorial que as dita, assedia, locomove e heterogeneiza: n+1+1+1… ¹⁰⁹

A atenção ou a fidelidade ao segredo de uma tal heterogeneidade , ao segredo que secretamente segrega uma tal heterogeneidade ¹¹⁰ das heranças – uma heterogeneidade proveniente da própria paixão da origem ¹¹¹ ou do impossível ou do segredo! – terá sido a descoberta e a marca própria de Jacques Derrida – terá sido a sua assinatura, melhor, a contraassinatura ¹¹² da sua fidelidade ao legado da ocidentalidade filosóficocultural: o filósofo lembra-o em O Outro Cabo (1990), em “Nous autres Grecs” (1990) e em Le Droit à la Philosophie du point de vue Cosmopolitique (1977), nomeadamente. Lembremo-lo também aqui: Em O Outro Cabo insinuando a sua fidelidade a “mais de um/a” ao lembrar que “ o próprio de uma cultura”, de uma memória, de uma herança ou de uma tradição, é, justamente, “não ser idêntica a si mesma .” ¹¹³ Em Le Droit à la Philosophie du point de vue Cosmopolitique lembrando a outra via da filosofia e, portanto, (lembrando) a sua proveniência híbrida e bastarda: a filosofia nunca foi o desenrolar responsável de uma única consignação originária ligada à língua única ou ao lugar de um único povo. A filosofia não tem uma única memória. Sob o seu nome grego e na sua memória europeia, ela foi sempre bastarda, híbrida, enxertada, multilinear, poliglota e nós precisamos de ajustar a nossa prática da história da filosofia, da história e da filosofia, a esta realidade que foi também uma chance e que mais do que nunca permanece uma chance . ¹¹⁴ E em “Nous autres Grecs” lembrando, quer a multiplicidade da proveniência da “herança do pensamento”, quer a não-identidade-a-si de uma tal herança: Se a herança do pensamento (da verdade, do ser) na qual estamos inscritos não é somente, nem fundamentalmente, nem originariamente grega, é sem dúvida devido a outras filiações cruzadas e heterogéneas, a outras línguas, a outras identidades que não estão simplesmente juntas como acidentes secundários (o Judeu, o Árabe, o Cristão, o Romano, o Germânico etc.); é sem dúvida porque a história europeia não desenvolveu apenas um legado grego; é sobretudo já porque o Grego jamais se reuniu consigo mesmo ou se identificou a si-mesmo: os discursos de que temos o arquivo a este respeito […] não são senão um testemunho suplementar desta inquietude e desta não-identidade a si ¹¹⁵ (eu sublinho). A singularidade – e a hiper-radicalidade e a hiper-eticidade – do idioma de pensamento da Desconstrução derridiana passa justamente pela sua atenção à heterogeneidade do legado que criticamente herda na sua fidelidade a “mais de um” – melhor, e talvez mais precisamente ainda, passa pela sua atenção àquilo que faz a heterogeneidade da identidade de todo e qualquer legado: com efeito, herdando o legado bíblico-helénico da ocidentalidade filosófico-cultural, Derrida herdou também, soube também herdar, tal como o refere em “Nous autres Grecs”, nomeadamente, aquilo que tornava o Bíblico e o Grego “já outros relativamente a si mesmos, e mais ou menos do que eles mesmos o criam” ¹¹⁶ – a saber, Derrida soube (sobretudo) herdar o outro do Bíblico e o outro do Grego, o outro da sua língua e do seu logos .

O que é dizer que Derrida soube herdar, bem herdar a véspera ¹¹⁷ que vela pelo porvir da própria herança – e que terá também sido a sua condição de possibilidade. Uma “ véspera absoluta”, uma véspera que nunca se fará dia – “c’est pas demain la veille!” é, aliás, um ditado popular reiteradamente citado por Derrida ¹¹⁸ na sua obra – constituída pela singular imbricação do “tempo” (acrónico e anacrónico, ¹¹⁹ messiânico) e do “lugar (sem lugar)” do outro absoluto ou secreto – uma imbricação que, lembremo-lo também, talha a própria différAnce. ¹²⁰ E um “tempo” e um “espaço” ou um “espaçamento” que hão-de começar por receber, como sucintamente veremos já, os nomes “históricos” (necessariamente) de messiânico e de khôra : – messiânico pela via do legado bíblico – mas, notemo-lo já também, e pelo aqui e agora em questão, um messiânico sem messianismo, um messiânico “mais velho do que qualquer religião, mais originário do que qualquer messianismo”, ¹²¹ um messiânico que é para Derrida o nome de um tempo que vem, que só vem a faltar ¹²² – ; – khôra pela via do legado helénico e, muito especificamente, pela via do Timeu de Platão que, como Derrida o dirá, terá sido, “à sua maneira uma espécie de Bíblia avant la lettre …”. ¹²³ A-humana e a-teológica, khôra é para Derrida o lugar pré-histórico e a-histórico que dá lugar a tudo quanto tem lugar sem se dar, ela própria, ao lugar. Khôra e o messiânico atestam a fidelidade de Jacques Derrida a “ mais de um ”, a “ mais de um ” legado e a “ mais de um ” no próprio legado, atestando assim a sua fidelidade à heterogeneidade do próprio legado. Uma atenção à pluralidade e à heterogeneidade do seu legado que, dando embora conta da singularidade e da radicalidade do seu idioma de pensamento , ao dar conta da “hiperbolite” que o dita, o locomove e o desafia, ¹²⁴ no mesmo lance demarca também a Desconstrução derridiana de outros idiomas filosóficos com a mesma pretensão de radicalidade – como é, por exemplo, o caso da meta-ética levinasiana que se deslocou até a matinalidade bíblico-judaica onde, para Levinas, pela primeira vez terá ressoado o espírito da responsabilidade meta-ética, da justiça ou da misericórdia ¹²⁵ na sua condição de sublime incondição de um humano enfim digno do nome; como é também o caso da Fundamentalontologie de Heidegger, que, à semelhança de Nietzsche, ¹²⁶ deslocou-se também até aos pré-socráticos para aí tentar encontrar a jubilante nascente do pensamento; e como, à sua maneira, é também o caso da dita Teologia Negativa com a qual, no entanto, a Desconstrução derridiana assume ter leves parecenças – para além de, em Sauf le Nom , Derrida lembrar igualmente a inesperada e talvez surpreendente proximidade existente entre as apófases da Teologia Negativa, a skepsis do Cepticismo e a épokhê da Fenomenologia Transcendental de Husserl, ¹²⁷ ao lembrar que todas elas têm em comum a suspensão do predicativo, da tese, da doxa, da proposição ontológica ou teológica. Assim, a Desconstrução derridiana demarca-se da radicalidade da metaética de Levinas, que critica o registo privilegiadamente ontológico da filosofia ocidental a partir da meta-eticidade da sua interpretação do legado biblícojudaico, lembrando-lhe o seu esquecido: esquecido que terá sido, não

tanto o ser ou a diferença ôntico-ontológica, como pretendeu Heidegger, mas o absolutamente outro ( tout autre ): Levinas ¹²⁸ lembrará amiúde na sua obra que, no Timeu (37 c) de Platão, o círculo do Mesmo engloba e compreende sempre o círculo do Outro. Um absolutamente outro esquecido que, como é sabido, Levinas lembrará e pensará na figura sem figura do humano: o absolutamente outro é, para Levinas, o humano, o rosto humano na nudez da sua vulnerabilidade, e o humano como homem. Marcando o registo privilegiadamente antropocêntrico, androcêntrico e sacrificialista, carno-falogocêntrico ¹²⁹ mesmo, da meta-ética levinasiana, do qual se demarca, Derrida dirá, por sua vez, que “ tout autre est tout autre ” ¹³⁰ – o absolutamente outro é absolutamente todo e qualquer outro ! Não importa quem, o vivente em geral, e não apenas, como Levinas pretendeu, “o outro homem”: “Noto muito rapidamente en passant ”, escreve Derrida em L’animal que donc je suis (2006), a título da autobiografia intelectual que, se a desconstrução do “logocentrismo”, e depois do “carnofalogocentrismo”, a substituição inicial do conceito de rastro (trace) ou de marca pelos conceitos de palavra, de signo ou de significante destinava-se de antemão, e deliberadamente, a transpor a fronteira de um antropocentrismo, o limite de uma linguagem confinada no discurso e nas palavras humanas. A marca, o grama, o rastro, a différance concernem diferencialmente todos os viventes, todas as relações do vivente com o não-vivente. ¹³¹ Por outro lado, a atenção de Derrida ao motivo que opera a heterogeneidade do seu legado distancia igualmente a sua Desconstrução da tradição da Teologia Negativa, “sempre fundamentalmente agarrada a alguma revelação histórica, e sobretudo cristã”, ¹³² apesar de uma certa proximidade reconhecida pelo próprio filósofo ¹³³ – a proximidade desenhada pelo endereçamento praticado pelo discurso apofático da Teologia Negativa rumo à hiper-essencialidade. Mas, para além desta proximidade, não há de facto senão diferenças – como sibilinamente aliás Derrida as enuncia em “Comment ne pas parler” (1986), ao dizer: Não, o que eu escrevo não releva da “teologia negativa”. Em primeiro lugar, na medida em que esta pertence ao espaço predicativo ou judicativo do discurso, à sua forma estritamente proposicional e privilegia, não somente a unidade indestrutível da palavra mas também a autoridade do nome, outros tantos axiomas que uma “desconstrução” deve começar por reconsiderar (o que eu tentei fazer desde a primeira parte de De la Grammatologie ). De seguida, na medida em que ela parece reservar, para além de toda a predicação positiva, para além de toda a negação, para além do ser, alguma super-essencialidade, um ser para-além do ser. É a palavra que Dionísio usa tão frequentemente nos Noms Divins: hyperousios, -ôs, hyperousiotes . Deus como ser para além do ser e também Deus sem ser ¹³⁴ . Finalmente, a atenção de Derrida ao motivo que opera a heterogeneidade do seu legado distancia igualmente a sua Desconstrução da radicalidade da Destruktion luthérianoheideggeriana que, no entanto, Derrida herda, herdando também a necessidade de proceder à desconstrução da genealogia

estruturada da sua conceptualidade e da sua axiomática filosófica para ir mais além – como, em diálogo com Antoine Spire, Derrida o declara em “Autrui est secret parce qu’il est autre” (2000). ¹³⁵ Apesar da sua extensão, lembremos também aqui essa declaração: 1. Desde há mais de trinta anos a esta parte que há uma história da “desconstrução”, em França e no estrangeiro. Este caminho, não digo este método transformou, deslocou, complicou a definição, as estratégias, os estilos que variam, eles próprios, de um país para outro, de um individuo para outro, de um texto para outro. Diversificação essencial à desconstrução, que não é nem uma filosofia, nem uma ciência, nem um método, nem uma doutrina, mas como frequentemente eu o digo, o impossível e o impossível como o que acontece (eu sublinho). 2. Antes mesmo desta sequência histórica (entre trinta e quarenta anos), é preciso lembrar as premissas nietszchianas, freudianas, e sobretudo heideggerianas da desconstrução. E sobretudo, a respeito de Heidegger, que há uma tradição cristã, mais precisamente luteriana do que Heidegger chama a Destruktion . Luthero […] falava já de “ destructio ” para designar a necessidade de uma des-sedimentação de estratos teológicos que dissimulavam a nudez original da mensagem evangélica a restaurar. O que me interessa cada vez mais é discernir a especificidade de uma desconstrução que não seja necessariamente redutível a esta tradição luteriano-heideggeriana. E é talvez o que distingue o meu trabalho daqueles que me são próximos, em França e no estrangeiro. Sem refutar ou rejeitar o que quer que seja, eu queria tentar discernir o que subtrai a desconstrução em curso da memória de que ela herda, no próprio instante em que ela a reafirma e respeita a herança … ¹³⁶ (eu sublinho). E, retomando de novo a minha questão, pergunto: o que subtrai então a Desconstrução derridiana à memória (ou, melhor, às memórias) que ela herda no próprio instante em que singularmente a re-afirma reafirmando-se e mostrando assim, a par da singularidade, a hiper-radicalidade e a justiça do seu idioma de pensamento ? Pois bem, a sua atenção à injunção do segredo absoluto : na tradição re pensada ¹³⁷ do epekeina tes ousias de A República (509 b ss) e, e sobretudo, na da khôra do Timeu (48 e–52 a) de Platão, a qual, no dizer deste filósofo, é preciso chamar sempre da mesma maneira ( tauton auten aei prosreteon , 49 b); tal como na tradição re pensada do hen diapheron heautoi de Heraclito ¹³⁸ e das apófases da Teologia Negativa, o que subtrai a Desconstrução derridiana à’s memória’s que ela herda, reafirmando-a na sua singularidade e na singularidade da sua hiper-radicalidade, é a locomoção do seu passo para além desta memória bíblicogreco-europeia (“mais de uma”, portanto) – para além desta memória bíblico-helénico-europeia, sim, é certo, mas, ainda assim e paradoxalmente, nela , ainda nela fora dela , nela mas excepcionalmente fora dela, no “interior aberto” ¹³⁹ do seu corpus – na sua atenção à injunção – injunção que é para Derrida a forma de todo o começo! – do segredo absoluto que remotamente não só a terá ditado, assombrado e magnetizado, como, fazendo-o, no mesmo lance [e é a double bind / double blind ] a terá igualmente aberto, dobrado, rasgado ou interrompido e heterogeneizado,

arruinando a suposta unidentidade do seu corpus e, no mesmo lance, prometendo-lhe porvir. A Desconstrução derridiana é o testemunho deste segredo – ela foi, de cada vez [ela que é também um pensamento da vez, da singularidade ou do único ¹⁴⁰ ], em cada cena de pensamento e de escrita, em cada um dos seus postscripta e dos seus envios, a atenção à injunção deste segredo a que à sua maneira responde – um segredo que não é, porém, um segredo disto ou daquilo, mas um segredo a-b-s-o-l-u-t-o (absolutum) . E isto, a fim de o demarcar, quer do segredo psícofísico – a arte oculta nas profundezas da alma humana ( eine verborgene Kunst in den Tiefen der menschlichen Seele ) – de que fala Kant a propósito do esquematismo transcendental e da imaginação, ¹⁴¹ quer do conceito clássico de segredo que, como nomeadamente Políticas da Amizade o referem, pertence ainda “a um pensamento da comunidade, da solidariedade ou da seita, da iniciação ou do espaço privado”. ¹⁴² Pelo contrário, o segredo absoluto , isto é, um segredo impassível, mudo, irrevelável, um segredo que permanece segredo, um hiper- segredo, está, ele, antes e do outro lado da palavra , da linguagem , do mundo , do socius , do comunitário ou do privado , isto é, antes e do outro lado da visibilidade ou do aparecer da luz, do phainesthai do espaço público ou da fenomenalidade do fenómeno ¹⁴³ de que, na matinalidade da sua ancestralidade retraída, da sua arquioriginariedade sempre perdida e sempre ainda por vir (à-venir) , é também a condição de possibilidade. De possibilidade e de im-possibilidade: chance e ameaça ao mesmo tempo. Um segredo absoluto , um segredo universal e universalizável portanto que, a par da paixão (sem martírio ¹⁴⁴ ) do pensamento, como o próprio pensamento distinto de filosofia (que não tolera o segredo), terá também ditado a Jacques Derrida o seu “mal de pertença”, o sentimento de não-pertença que, mais de uma vez também, o filósofo confessará na sua obra. ¹⁴⁵ Eis a passagem de “Envois”, em que, contra o “número”, isto é, contra a “multidão”, contra a multiplicidade do calculável, numa palavra, contra o “mais do que um/a”, Derrida confessa o seu gosto absoluto pelo segredo ¹⁴⁶ como segredo – e prestemos também desde já atenção a este “contra”, porque ele insinua já, para além do registo contraditório ou aporético que é próprio à Desconstrução derridiana, a relação que, enquanto pensamento, ela entretece com o político e o democrático, insinuando ao mesmo tempo o alcance simultaneamente hiper-político-democrático inerente ao singular apolitismo do seu pensamento antes e para além e da filosofia e da lei do político (“ juris publici ”): O meu gosto do segredo (a-b-s-o-l-u-t-o): eu não posso fruir senão nesta condição, desta condição. MAS, a fruição secreta priva-me do essencial. Eu queria que o mundo inteiro […] soubesse, testemunhasse. Assistisse. E não é uma contradição, é para isso, em vista disso, que eu escrevo quando posso. Lanço o segredo contra os testemunhos fracos, os testemunhos particulares, mesmo se são multidão, porque são multidão. ¹⁴⁷ O gosto pelo “segredo a-b-s-o-l-u-t-o” , eis, então, o segredo da Desconstrução derridana – o segredo da singularidade e da hiperradicalidade ou o segredo da singular hiper-radicalidade e hiper-eticidade do seu pensamento. O segredo do irredentismo, da insurreição deste pensamento do impossível e, ele mesmo, impossível. Um gosto pelo segredo

que leva a Desconstrução a tudo suspender, a tudo questionar, a tudo , absolutamente tudo , pôr em questão ( tudo , quer dizer, tudo quanto constitui o registo do contexto, da proposicionalidade ou da condicionalidade: o socius , o comunitário, o discursivo, a política, a democracia, o direito, a filosofia, a ética, o saber, as artes, a literatura, o poético, … numa palavra, o constituído, o instituído ou o normativo), arvorando assim a hybris do Dever (um Dever do dever ¹⁴⁸ ) e da responsabilidade que magnetiza o seu pensamento. Um gosto pelo “segredo a-b-s-o-l-u-t-o ” que terá levado Derrida a autodesignar-se de “marrano”, de “marrano universal”, ¹⁴⁹ e a inscreve-se na linhagem daqueles [poucos, ¹⁵⁰ na verdade, mas em todo o caso, também eles, mais de um! E mais de um cada um!] que souberam, cada um à sua maneira, bem guardar um segredo: bem guardar, quero dizer, que souberam guardar o segredo como segredo . Um segredo mais antigo e maior, muito maior do que eles. Um segredo que os guardava mais, a eles próprios, do que eles o guardavam, a ele… Um segredo que eles não escolheram – que antes os escolheu ou os elegeu, a eles – e que, de todo , resiste à sua revelação. Um segredo absoluto . Lembremos apenas que, de entre esses raros amantes do “segredo a-b-s-o-lu-t-o” , de entre esses raros vigilantes da noite da noite ¹⁵¹ que apela e fascina e assombra ao mesmo tempo ( ama aristotélico) que ilumina e dá fulgor e porvir ao legado imenso – por isso imenso, e por isso sempre ainda por vir, justamente – da memória da ocidentalidade filosófico-cultural, Derrida começa por convocar Abraão, ¹⁵² não por acaso o patriarca que se encontra na origem das religiões abraâmicas tal como na origem quer da relação absoluta ao absoluto ( ab-solutum ) ¹⁵³ quer da própria literatura. ¹⁵⁴ E Derrida começa por convocar Abraão por mais de uma razão , uma vez mais: por um lado, com a intenção de, na peugada, ela também repensada, ¹⁵⁵ de Kierkegaard, evocar aquele que tão bem soube guardar um segredo como segredo; por outro lado, com a intenção de, na peugada de uma parábola de Kafka simplesmente intitulada “Abraham” [“ Ich könnte mir einen anderen Abraham denken ”], ousar pensar a hipótese de “um outro Abraão” e, portanto, a hipótese de “ mais de um ” Abraão, assim repensando (fazendo-a tremer) a própria ideia de eleição e a sua temerária vocação ou tentação narcisista para a exemplaridade universal. Uma hipótese de “ mais de um ” Abraão que começaria, aliás, por se insinuar na vertigem do próprio nome ¹⁵⁶ de Abraão, “aquele que, antes de mais”, lembra Derrida no “É favor inserir” de Donner la Mort (1999), recebeu, junto dos Carvalhos de Mambré, três homens, os enviados de Deus, e lhes dá hospitalidade para inaugurar a sua tradição. Mas Abraão é também aquele que, depois de tudo, sabe dever calar-se no Monte Morija antes de o anjo, um outro enviado, ter interrompido a morte que ele se predispunha a dar ao seu filho preferido, Isaac, para a dar a Deus – a menos que não seja, em terra do Islão, Ismael de Ibrahim… Como interpretar o segredo de Abraão e a lei do seu silêncio? Porque parece ele incomensurável com o interdito que parece reduzir ao mutismo todos os seus, todos aqueles e todas aquelas a quem ele nunca confia nada: e Sara e Isaac, e Agar e Ismael – tão cedo mandados embora? […] [e é o segredo absoluto, o segredo da sua relação a Deus e ao segredo de Deus, ao hipersegredo de Deus, de que, na realidade, Abraão nada sabe, contra o segredo

em cena na relação que o liga aos seus, ao seu espaço familiar e comunitário: um segredo que Abraão conhece e decide calar, um segredo que opera a ruptura ou a separação com o familiar e o comunitário]. Não se sabe mais como entender o indecifrável deste momento inaudito. Não se sabe mais reinterpretá-lo. Não se sabe mais, porque não é mais uma questão de saber, quem pode autorizar-se a reinterpretar o número infinito das interpretações que desde sempre rebentam aqui em vista de costas ou soçobram no fundo dos abismos que se abrem à nossa memória, ao mesmo tempo nela se descobrindo e recobrindo. Ora nós somos esta memória, por ela prevenidos e intimados. Inspeccionados em alto mar antes do naufrágio. Ela consigna-nos uma herança irrevocável. Nós podemos, é certo, denegá-la, ela permanece inegável – e continua a ditar uma certa leitura do mundo. Do que um “mundo” quer dizer. ¹⁵⁷ E, para além deste Abraão na figura do patriarca que não só soube honrar a hospitalidade devida ao absolutamente outro ou secreto como também soube bem guardar um segredo, um hiper-segredo, um segredo absoluto, assim respeitando e/ou acolhendo responsavelmente o “fundo abissal” da nossa memória – assim aberta ao imemorial –, que o mesmo é dizer, assim acolhendo responsavelmente a trans cendência ab-soluta ou secreta ¹⁵⁸ que ditou o tecido esgaçado da nossa memória, Derrida ousou ainda pensar e dar-nos a pensar em “Abraham, l’autre” (2000) – texto que o filósofo tem por um post-scriptum à leitura que em Donner la mort (1999) propõe da ligadura de Isaac e, já então, do “mais de um Abraão”: um “mais de um” desta feita constituído pelo Abraão de Kierkegaard, pelo Abraão de Levinas e pelo seu próprio Abraão, o único universal e universalizável para além das culturas provenientes das religiões abraâmicas –, Derrida ousou, pois, também ainda pensar a hipótese um tanto louca de um “outro Abraão”: um Abraão sem a certeza de ser, ele, o eleito de Deus… Um Abraão sem a certeza de ter sido ele o chamado. Um “outro Abraão” que, diz Derrida, […] estava pronto para responder ao apelo ou à prova da eleição, mas não tinha a certeza de ter sido, ele, o eleito. Ele, ele mesmo e não um outro. Não tinha a certeza de ser, ele, o eleito, e não um outro. ¹⁵⁹ Pergunto: como não aperceber na incerteza desta eleição, nesta espécie de contraeleição, a condição da libertação, quer do dogma da revelação antropo-teológica, ¹⁶⁰ quer do da própria eleição? A condição da libertação da tentação narcísica e exemplarista da eleição – estranhamente ainda patente em autores como Celan e Levinas? Uma tentação que, como Derrida o lembra e o adverte, pode conduzir “ao estato-nacionalismo nas suas formas mais violentas, até mesmo militaristas e colonialistas”. ¹⁶¹ Como não aperceber igualmente nesta libertação do dogma da revelação e da eleição o conteúdo da própria revelação ou da própria eleição, tal como Derrida as interpretou? E, finalmente, como não aperceber também no temor da incerteza desta eleição a condição do rasgão da inteireza da memória da nossa ocidentalidade? E, ipso facto , a declaração de fidelidade de Jacques Derrida ao “mais de um” originário?

Deslocando-se tanto para lá do corpus da memória bíblico-judaico-cristã como para lá do corpus da memória helénico-latina na sua “fidelidade a mais de um” legado, em razão da sua atenção ao “fundo dos abismos que se abrem à nossa memória”, que o mesmo é dizer, na sua atenção ao segredo da véspera (uma véspera que nunca se fará dia…) que terá e ditado e urdido esta tecelagem nela deixando (nela, isto é, no interior, por isso, aberto do seu corpus , por isso, em auto-desconstrução!) a marca de uma “malha caída”, ¹⁶² terá pois sido este “ segredo absoluto ” que a Desconstrução derridiana soube bem herdar – no modo da injunção ou da prece –, ao herdar a memória bíblico-helénico-latina (“mais de uma” pois!) onde este segredo terá deixado a sua marca – a marca de uma cicatriz. A cicatriz de uma ferida sem idade (acrónica e anacrónica pois) e sem história (a-histórica pois). Uma cicatriz que se modula na forma de um apelo lançado à nossa condição de herdeiros para ao mesmo tempo guardarmos e transformarmos esta memória – para a guardarmos transformando-a, dando-lhe porvir a partir do absoluto do seu passado. E, notemo-lo também, toda a leitura que, na sua obra imensa [e imensa justamente em razão deste segredo que a ditou e ela tão bem soube acolher e salvaguardar, cultivandoo!], Derrida faz desta memória – que fala a “mais de uma voz” e o intima –o revela, revelando assim também três aspectos de todo imbricados que, embora de passagem, eu gostaria igualmente de sublinhar ainda aqui: a saber, revelando assim, por um lado, que o corpus desta “herança irrevocável” (“mais de uma”) é, ele próprio, já um corpus em auto-desconstrução (é a “malha caída” no seu tecido!); revelando, por outro lado e ipso facto , que há Desconstrução antes da sua própria Desconstrução. ¹⁶³ Revelando que, no fundo, há Desconstrução desde que há “constructo”: a saber, desde o cintilar do primeiro raio de luz… Desde a primeira letra… Desde o primeiro post-scriptum ! Revelando, em suma, que a Desconstrução não é mais do que a atenção [insigne “oração da alma”!] à auto -desconstrução do “construído”, do “instituído”, do “normativo” ou do “próprio”, numa palavra, do próprio corpus legado – e é talvez a confissão de um outro “voto de pobreza em matéria de conhecimento”, ¹⁶⁴ que não o de Husserl –, e daí também a sua aposta e o seu apelo ao repensar da genealogia estruturada dos conceitos filosóficos “da maneira mais fiel, mais interior, mas ao mesmo tempo a partir de um certo exterior por ela inqualificável, inominável, determinar o que essa história pode dissimular ou proibir, fazendo-se história através dessa repressão algo interessada.” ¹⁶⁵ A Desconstrução é, antes de mais, a Desconstrução da auto-imunidade do próprio e/ou do instituído e, enquanto tal, um apelo lançado aos herdeiros, à responsabilidade dos herdeiros, de que é preciso ao mesmo tempo guardar, acolher e transformar ou reinventar o legado. Reinventá- lo ou transformá-lo a partir do interior aberto ou heterogeneizado do seu corpus . E, finalmente, revelando também a razão pela qual a Desconstrução não é também, como tantas e tantas vezes na sua obra Derrida o adverte, um método que, do exterior, se aplicaria, violentando o acolhimento ou a interpretação-recepção desse mesmo corpus – pelo contrário, a Desconstrução é também uma desconstrução do methodos (tal como da via ou do caminho ( hodos )!), de quem começa por lembrar a indecidibilidade estrutural que deveria interditar-lhe a consagrada ortopedia no recalcamento ou no esquecimento do desvio ou do fingimento que, como o

filósofo o lembrará, ¹⁶⁶ a própria palavra grega ( methodos ) deixava já escutar no seu corpo. Dito isto, é tempo de perguntar: não será também este segredo , este “segredo absoluto” que, no essencial e antes de mais, a Desconstrução derridiana nos dá e nos apela também a herdar, a bem herdar, para além do saber (mas não sem saber!), apelando cada um/a de nós à sua re -afirmação incondicional e, portanto, à contra-assinatura ¹⁶⁷ re-inventiva, singular e singularizante do legado? Apelando assim também à responsabilidade incondicional da nossa condição de herdeiros enlutados e endividados a mais de uma herança e a mais de uma palavra (“ plus d’une ”), como a uma injunção dela mesma disjunta, ¹⁶⁸ para incondicionalmente , quer dizer, sem álibis, aqui e agora, a cada instante, re -afirmarmos o segredo como segredo? “Herdamos sempre um segredo”, diz Derrida em Spectres de Marx . Um segredo “que diz “lê-me”, serás tu capaz?”. ¹⁶⁹ Serás capaz? “Serás tu capaz?” Quem será capaz? Quem será capaz de bem herdar um segredo? De herdar um segredo como segredo ? Quem for capaz merecerá o nome de herdeiro/ herdeira de Derrida e segundo Derrida… Ora, acontece também que, sem ponta de misticismo nem de irracionalismo nem de obscurantismo, e à luz de um assumido “ateísmo radical que se lembra de Deus”, ¹⁷⁰ um tal segredo – um segredo absoluto , insistimos, um segredo que, significando a desconstrução do esquema arqueo-genealógico , onto-teo-lógico e onto-topo-lógico que, determinantemente , entretece a memória da ocidentalidade filosófico-cultural, dá, ipso facto , conta da abertura , quer da proveniência , quer da textura ou do corpus desta mesma memória, por isso em si mesma “mais de uma” (“ plus d’une ”), prometendolhe porvir – acontece, pois, dizia, que um tal segredo tão bem herdado pela Desconstrução derridiana não é apenas o segredo da paixão e do irredentismo do seu pensamento e do pensamento segundo Derrida (distinto de filosofia, lembro e insisto). Não, de todo. Sendo-o, um tal segredo é também, para além do segredo da literatura, ¹⁷¹ o segredo da “democra cia por vir” e, no fundo, o segredo de todos os impossíveis da Desconstrução derridiana: a saber, o outro, o sim, o dom, o perdão, a hospitalidade, a justiça, a morte, a amizade, o amor, a decisão, a responsabilidade, o testemunho etc. etc.

O que é sugerir que a Desconstrução como pensamento não só põe imediatamente em cena um pensamento político, ou, mais precisamente, hiper-político, hiper-político-democrático, como configura um pensamento do político. Não uma filosofia política, mas um pensamento do político. No singular apolitismo lavrado pela hiper-radicalidade do seu “hiperbolismo”, apesar dele, [“hiperbolismo” que o leva a situar-se antes ou para além do político], este pensamento do segredo, amante do segredo tem também, e imediatamente , um alcance e um registo políticos – melhor, hiper-políticos. Um alcance e um registo hiper-políticos que apelam a um repensar do político, desde sempre, isto é, desde Platão e Aristóteles, determinantemente pensado a partir do território, a partir da polis e por referência à polis . Explicitemos muito sucintamente, explicitando o alcance e o registo imediatamente hiper-político da Desconstrução derridiana. Singularmente desligada do mundo, do contexto, da história, do saber, do poder ou do instituído, ou seja, do horizonte do possível ou do mundo, no fervor da sua atenção à véspera destes configurada pela “hiperbolite” do seu passo para além [ pas au-delà ] da onto-fenomenalidade e do ontológicosemantismo, que o mesmo é dizer, na sua atenção ao segredo absoluto e, por conseguinte, ao “mais de um” originário – de origem e da própria origem –, a Desconstrução derridiana não funda nenhuma política. ¹⁷² Nem permite a dedução de nenhuma política. Nem propõe uma filosofia política. É antes, em si própria, um pensamento do político – um singular pensamento do político. Um pensamento que apela e/ou obriga a re pensar, a pensar diferentemente o político-democrático – a repensá-lo sem a garantia de nenhuma fundação ontológica, justamente, e sem os traços que, hegemónica e determinantemente, o desenharam desde o berço à sua modernidade (a saber: o seu liame à polis , ao Estadonação, à soberania, à forma-partido, à topologia parlamentar etc.): este pensamento do segredo traduz-se ou testemunhase imediatamente, como que performativamente, numa crítica política militante e sem fim. Uma crítica a que, no mesmo lance, a Desconstrução derridiana apela também, apelando a uma reinvenção ou a uma espécie de revolução permanente do instituído, o qual, enquanto tal, tende sempre para a necrose ou, como Levinas também o diz do político, para a tirania – uma revolução ou uma reinvenção do instituído, sim, é certo, mas uma revolução ela mesma, no entanto, repensada: repensada como uma súbita, inesperada e in-finita interrupção de um instituído aberto , isto é, em auto-desconstrução e, por isso, prometido ao sem fim da sua perfectibilidade: “Se se quiser salvar a Revolução”, adverte Derrida em De quoi Demain … (2001), “é preciso transformar a própria ideia de Revolução. O que, por mil razões, está caduco, envelhecido, enrugado, impraticável, é um certo teatro revolucionário […].” E Derrida precisa, avançando com a sua ideia de revolução – com a ideia de revolução repensada, ou seja, subtraída ao seu tradicional conceito político: Eu creio na Revolução, quer dizer, numa interrupção, numa cesura radical no curso ordinário da História. Não existe, aliás, responsabilidade ética, nem decisão digna deste nome que não seja, por essência, revolucionária, que não esteja em ruptura com um sistema de normas dominante, ou até com a

própria ideia de norma, e portanto com um saber da norma que ditaria ou programaria a decisão. Toda a responsabilidade é revolucionária porque tenta fazer o impossível, porque tenta interromper a ordem das coisas a partir de eventos não programáveis. Uma revolução não se programa. De uma certa maneira, como o único evento digno deste nome, excede todo o horizonte possível, todo o horizonte do possível – logo da potência e do poder. ¹⁷³ A incondicionalidade (que Derrida ¹⁷⁴ distingue de soberania) que magnetiza e caracteriza a Desconstrução derridiana como pensamento – um pensamento desviado do contexto, da condicionalidade ou do horizonte do mundo para, de cada vez, responder à injunção (indesconstrutível da justiça) –, outorga-lhe o direito – direito que não passa afinal de um dever, de um DEVER absoluto e, portanto, de uma hiper-responsabilidade – para, a cada instante, tudo re pensar de novo ou tudo suspender e tudo questionar – para tudo repensar ou para tudo questionar em nome da incondicionalidade e/ou da justiça do próprio pensamento que, notemos, assim pensado é, em si próprio, tanto um idioma de resistência como um “acto de fé ” – um “ acto de fé ” na reinvenção do mais justo porvir. Esta a razão pela qual Derrida advoga que sem Democracia não há também Desconstrução . E vice-versa. Sem Desconstrução não há também democracia . E isto porque, a partir da incondicionalidade que anima a hiper-responsabilidade da sua hiperradicalidade enquanto pensamento, a Desconstrução se arroga o direito de tudo questionar – aproximando-se assim, notemo-lo, tanto das apófases da Teologia Negativa, como da skepsis do cepticismo e da épokhê da fenomenologia husserliana: a Desconstrução arroga-se o direito de tudo questionar e, mais, de o fazer publicamente (que foi, como Derrida lembra também, a definição das Luzes de Kant), configurando assim a sua experiência de pensamento (que é também o pensamento como experiência! Como paixão! Como passividade! Como “passi(acti)vidade” [“passactivité” ¹⁷⁵ ]), uma experiência emancipatória que Derrida designa por democracia por vir . Ou por alter-mundialização por vir . Com efeito, como o confessa ¹⁷⁶ a Michel Wieviorka em “Le siècle et le pardon” (1999), Derrida faz do singular apolitismo da resistência deste segredo ao phainesthai do espaço público, e, portanto, do instituído, um princípio político, uma regra e uma tomada de posição política. O confesso gosto derridiano pelo segredo absoluto , isto é, pelo que antecede e excede e interrompe toda a instituição e vulnerabiliza e limita todo o poder e todo o saber – um segredo que é não só ina cessível como intolerável à filosofia, à dialéctica, à política e ao direito – configura, de facto, para Derrida um princípio trans-político ou meta-político ¹⁷⁷ de que o filósofo faz, no entanto, um princípio e um ditame políticos: a saber, o de ser preciso (e é o imperativo incondicional: “ il faut ”) respeitar, em política, o segredo, isto é, o que excede o político. E é justamente a isto que Derrida chama, não “democracia”, mas “democracia por vir”. ¹⁷⁸ “Democracia por vir”, quer dizer, uma democracia que não é , que nunca é , que não é uma ideia ( eidos , idea ), seja ela uma Ideia reguladora em sentido kantiano, nem um ideal, nem um conceito político, ¹⁷⁹ mas [que é] sempre e só uma promessa que traduz e/ou apela a uma crítica política militante e sem fim, à luz da qual Derrida vai repensar o velho conceito filosófico-político de “democracia”, dissociando-o da autonomia e, consequentemente, do

tradicional registo onto-teológico da soberania que, de Platão e Aristóteles aos nossos dias ditos em mundialização, norteou e configurou o político e a democracia nos seus traços essenciais. Será por isso também em nome da “ democracia por vir ” – que Vadios (2003) diz ser algo assim como a “ khôra do político” ¹⁸⁰ – que Derrida vai herdar e repensar e reinventar ou contraassinar (é tudo o mesmo nele e para ele!) o velho nome grego de democracia (determinantemente pensada a partir da polis ou da soberania do Estadonação e da cidadania). Ao dizer que a manutenção do nome grego, democracia, é uma questão de contexto, de retórica ou de estratégia, de polémica mesmo; ao reafirmar que esse nome durará o tempo que for preciso, mas não mais; ao dizer que as coisas se aceleram singularmente nestes tempos que correm; não se cede necessariamente ao oportunismo ou ao cinismo do anti-democrata que esconde o seu jogo. Pelo contrário, salvaguarda-se o seu direito indefinido à questão, à crítica, à desconstrução (direitos garantidos, em princípio, por toda a democracia: não há desconstrução sem democracia, não há democracia sem desconstrução ¹⁸¹ ). Salvaguarda-se este direito para marcar estrategicamente o que não é mais uma questão de estratégia: o limite entre o condicional (os bordos do contexto e do conceito que encerra a prática efectiva da democracia e a alimenta no solo e no sangue) e o incondicional que desde o começo terá inscrito uma força autodesconstrutiva no próprio motivo da democracia, a possibilidade e o dever de a democracia se de-limitar ela mesma. A democracia é o autos da autodelimitação desconstrutiva. De-limitação, não apenas em nome de uma Ideia reguladora e de uma perfectibilidade indefinida, mas, de cada vez, na urgência singular de um aqui agora ¹⁸² (eu sublinho). Importará finalmente aperceber como é que no seu singular apolitismo – e apolitismo (apenas) se se pensar o político a partir da polis , a partir da politeia , a partir da res publica – no gosto derridano pelo segredo absoluto se revela também a condição para uma outra repolitização ¹⁸³ – e mesmo para a reinvenção dos conceito herdados do político e da democracia . É o que passarei agora a tentar fazer, tentando ao mesmo tempo três coisas absolutamente inter-ligadas: – Tentando, por um lado e em primeiro lugar, demonstrar, melhor, como que demonstrar a “tese” que se deixa escutar no meu título e segundo a qual “ Não há desconstrução sem democracia – Não há democracia sem desconstrução .” Título que, como referi, é uma citação de Derrida de Políticas da Amizade . Uma tentativa que equivale também a demonstrar que o gosto derridiano pelo segredo absoluto (que o mesmo é dizer pela alteridade absoluta), que dita e magnetiza o seu pensamento , confunde-se com o seu gosto absoluto pela democracia ¹⁸⁴ que o filósofo herdará baptizando-a ou contra-assinando-a sob a designação de “democracia por vir” – o que será igualmente mostrar que a herança do segredo não passa afinal da herança de uma promessa: da herança da promessa de “democracia” como promessa, justamente. ¹⁸⁵

– Tentando, por outro lado e em segundo lugar, mostrar como Derrida herdou à sua maneira , isto é, reinventando-o ou contra-assinando-o, o nome e o conceito de “democracia” a partir da obra de Platão – a partir do tecido (esgarço) do Menéxeno , mais precisamente. – Tentando, em terceiro lugar e finalmente, mostrar também que um tal herdar não passa afinal da própria desconstrução da democracia em nome da democracia por vir – uma desconstrução, isto é, um repensar que, a par de pôr a nu a auto-desconstrução da própria democracia, dá também conta da aporeticidade que disjunta e locomove a democracia enquanto modo do “viver juntos” – do justo e pacífico “bem viver juntos”. ¹⁸⁶ O que tanto Politiques de l’Amitié (1994) como Voyous (2003) nos lembram. Politiques de l’Amitié assim: Não há democracia sem respeito pela singularidade ou pela alteridade irredutível, mas também não há democracia sem “comunidade de amigos” ( koina ta philon ), sem cálculo de maiorias, sem sujeitos identificáveis, estabilizáveis, representáveis e iguais entre si. Estas duas leis são irredutíveis uma à outra. Tragicamente inconciliáveis e para sempre feríveis. ¹⁸⁷ E Voyous lembra-o assim: A expressão “démocratie à venir” [“ democracia por vir ”] traduz, é certo, ou apela a uma crítica política militante e sem fim. Arma de combate contra os inimigos da democracia, ela protesta contra toda e qualquer ingenuidade e todo e qualquer abuso político, contra toda a retórica que apresentaria como democracia presente ou existente, como democracia de facto, o que permanece inadequado à exigência democrática, perto ou longe, em sua casa [ chez soi ] ou no mundo, por todo o lado onde os discursos sobre os direitos do homem e a democracia permanecem álibis obscenos, quando se acomodam com a miséria pavorosa de biliões de mortais abandonados à desnutrição, à doença e à humilhação, massivamente privados não somente de água e de pão, mas de igualdade ou de liberdade, privados dos direitos de cada um, de quem quer que seja [ quiconque ] (antes de qualquer outra determinação metafísica do “ quiconque ” [do quem quer que seja] em sujeito, pessoa humana, consciência, antes de qualquer determinação jurídica em semelhante, em compatriota, congénere, irmão, próximo, correligionário ou concidadão. Paulhan diz algures, transcrevoo à minha maneira, que pensar a democracia é pensar “o primeiro vindo” [“ le permier venu ”]: quem quer que seja [ quiconque ], não importa quem, no limite de resto permeável entre o “quem” [“qui”] e o “o que” [“ quoi ”], o vivente, o cadáver e o fantasma). Acaso não é o primeiro vindo a melhor maneira de traduzir “o primeiro por vir”? O “por vir” [“ à venir ”] não significa apenas a promessa, mas também que a democracia não existirá nunca, no sentido da existência presente: não porque será diferida, mas porque permanecerá sempre aporética na sua estrutura (força sem força, singularidade incalculável e igualdade calculável, comensurabilidade e incomensurabilidade, heteronomia e autonomia, soberania indivisível e divisível ou partilhável, nome vazio, messianicidade desesperada ou desesperante etc.)

Mas, para além desta crítica activa e interminável, a expressão “democracia por vir” tem em conta a historicidade absoluta e intrínseca do único sistema que acolhe em si mesmo, no seu conceito, esta fórmula de auto-imunidade a que se chama o direito à autocrítica e à perfectibilidade. A democracia é o único sistema, o único paradigma constitucional no qual, em princípio, se tem ou se dá o direito de tudo criticar publicamente, incluindo a ideia da democracia, o seu conceito, a sua história e o seu nome. Incluindo a ideia do paradigma constitucional e a autoridade absoluta do direito. É portanto o único que é universalizável, e daí advêm a sua chance e a sua fragilidade. Mas para que esta historicidade – única entre todos os sistemas políticos – seja integral, há que subtraí-la não somente à Ideia em sentido kantiano, mas a toda e qualquer teleologia, a toda e qualquer onto-teo-teleologia. ¹⁸⁸ 1 Este título é uma citação de Politiques de l’Amitié , de Jacques Derrida (Paris: Galilée, 1994, p. 128) [ Políticas da Amizade. Trad. port. Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 17]. 2 Para esta questão do intraduzível a traduzir, cf. Fernanda Bernardo, “SINGBARER REST”: ou o que do resto aflora no poema – como o próprio poema: Celan-Derrida. Revista Filosófica de Coimbra , nº 38, p. 471-488, 2010. 3 Na sua carta datada de 10 de maio de 1997 (in La Contre-Allée , Paris: La Quinzaine Littéraire/Louis Vuitton, 1999, p. 42), J. Derrida salienta a composição desta palavra ( loco-comoção ) para definir a Desconstrução como pathos e viagem – como pathos em viagem: “lembro-me de ter recentemente utilizado […] a palavra locomoção ( locommotion ) para designar o afecto, ou mesmo o traumatismo que eu associo sempre à experiência da viagem.” J. Derrida, Lettres sur un aveugle, in Tourner les Mots , p. 104. 4 A maiúscula pretende apenas distinguir o nome desta área e orientação da Filosofia do seu gesto ou da sua própria praxis enquanto pensamento filosófico. 5 J. Derrida, Sauf le Nom , Paris, Galilée, 1993, p. 107. Doravante citado com a sigla : Sauf le Nom . 6 J. Derrida, Khôra, Paris, Galilée, 1993. 7 J. Derrida, Passions , Paris, Galilée, 1993. 8 J. Derrida, Prégnances , Paris, Brandes, 1993. 9 J. Derrida, Spectres de Marx , Paris, Galilée, 1993. 10 Na nota de advertência da edição, Jacques Derrida refere mesmo que Post-Scriptum (com o subtítulo de Apories, voies et voix ) havia, de facto, sido o título da primeira versão deste texto originariamente publicado em francês – ora, como a contra-assinatura, o post-scriptum é o testemunho de uma experiência do herdar . 11 Cf. J. Derrida, Sauf le Nom , p. 15.

12 Que não são, de todo, a mesma coisa, reenviando o primeiro para a diferença ou duplicidade originária (da origem e da identidade, da “unidentidade” (unidade+identidade) ou da interioridade em geral: a saber, o “eu” como relação sem relação e ao outro e a si mesmo como outro; o “eu” como um “nós” dissimétrico anterior a qualquer laço social e sua condição: Derrida lembra Levinas: “É este ser a dois que é humano, que é espiritual”, Fé e Saber (Paris, Seuil, 2000, p. 99)); e reenviando o segundo, quer para a condição deste na figura do duo originário, quer para o abismo deste “ plus d’un/e ” na figura do terceiro ( terstis, testis ): um outro ou uma outra do “plus d’un” ou da “plus d’une” e, como ele ou como ela, um outro outro ; quer dizer, uma alteridade ou uma diferença igualmente absoluta. Na figura do “terceiro” e, portanto, da multiplicidade calculável, ou então, e como Derrida também designará o “plus d’un/e” no Séminaire I, La Bête et le Souverain , na figura ou na condição da derradeira solidão : “O mais de Um é sem tardar mais de dois. Não há aliança a dois, a menos que isso signifique de facto a loucura pura da fé pura. A pior violência.”, J. Derrida, Fé e Saber , p. 99. O que é dizer que o “mais do que um” abre a multiplicidade calculável. Para esta diferença, veja-se a nota 1 das páginas 159-160 de Vadios . 13 E digo “aparente diálogo” porque, para Derrida – tal como para Levinas – o diálogo é aberto e ininterruptamente interrompido pelo que apela a entrar no diálogo. 14 “Plus d’un, je vous demande pardon, il faut toujours être plus qu’un pour parler, il y faut plusieurs voix…”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 15. 15 J. Derrida, Circonfession , p. 47. 16 Ibid. 17 Sincategorema composto pelo par de termos contraditórios “destinação” e “errância” para significar que a escrita/ a marca ou o rastro se desvia sempre da singularidade do destinatário, cuja singularidade assim perde e/ ou perverte: é, quer a tortuosidade ou a im-possibilidade, quer a chance da relação meta-ético-desconstrutiva ao outro como outro que assim se designa: “A partir do momento em que aquilo que te escrevo se torna literatura”, diz Derrida, “eu não me endereço mais a ti, e consequentemente falto a este dever que me intima a endereçar-me a ti singularmente.”, J. Derrida, “Envois” in La Carte Postale , p. 35-79. 18 Cf. J. Derrida, Tourner les mots , p. 88. 19 A escrita, lembra Derrida, “trai sempre a singularidade do destinatário, e tem de fazê-lo para ser legível.”, J. Derrida, “Lettres sur un aveugle” in Tourner les Mots , p. 89. E é justamente esta traição ou este perjúrio que desenha o “mais de um” originário – o “uns” – e o “mais do que um” que é, em si próprio, originariamente “uns”. 20 “O outro é Deus ou não importa quem, precisamente, uma singularidade qualquer, uma vez que absolutamente outro é absolutamente (qualquer) outro. [tout autre est tout autre]”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 92.

21 “’Il faut’ (“É preciso”) não quer somente dizer que é necessário mas, em francês, etimologicamente, “isso falta” (“cela manque”) ou “está em falta” (“fait défaut”). A falta ou a falha não anda nunca longe.”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 96. 22 “Deus” “é” o nome deste afundamento sem fundo, desta desertificação sem fim da lingugaem.”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 56. 23 Cf. J. Derrida, “Nous autres Grecs” in colectivo, Nos Grecs et leurs Modernes , p. 260; “The becoming possible of the impossible: an interview with Jacques Derrida” in Mark Dooley (ed.), A Passion for the Impossible , p. 21-33. 24 Aliás, em De la Grammatologie (p. 171): “reconhecer a escritura na fala, isto é, a diferencia e a ausência de fala, é começar a pensar o engodo. Não há ética sem presença do outro mas, também e por conseguinte, sem ausência, dissimulação, desvio, diferencia, escritura. A arquiescritura é a origem da moralidade como da imoralidade. A abertura não ética da ética.” 25 Cf. J. Derrida, Aprender finalmente a viver , trad. Fernanda Bernardo, Coimbra, Ariadne ed., 2005, p. 28. 26 Idioma em sentido derridiano: “O idioma, se o há, aquilo pelo qual se reconhece uma assinatura, não se reapropria, por paradoxal que isso pareça. Não pode ser apreendido senão pelo outro, abandonado ao outro.”, J. Derrida, “Une “folie” doit veiller sur la pensée” in Points de Suspension , p. 365. 27 J. Derrida, Mémoires – Pour Paul de Man , Paris, Galilée, 1988, p. 38. 28 J. Derrida e E. Roudinesco, De quoi Demain …, p. 184. 29 Para a questão do génio e da genialidade, cf. J. Derrida, Genèses, Généalogies, Genres et le Génie , Paris, Galilée, 2003: “A genialidade do génio, se a há, obriga-nos de facto a pensar o que subtrai uma singularidade absoluta à comunidade do comum, à generalidade ou a genericidade do género e, portanto, do partilhável.”, op. cit., p. 9. 30 Um pensamento do impossível ou do evento, a Desconstrução Derridiana pensa a genialidade do génio para-além da génese, do género e da genealogia: “a genialidade consiste precisamente em fazer acontecer, em dar lugar, em dar “tout court”, em dar nascença à obra como evento, cortando paradoxalmente com qualquer genealogia, qualquer génese e qualquer género. É aí que a genialidade do génio de todo o género não pertence mais à família homogénea da génese, do género e da genealogia.”, ibid, p. 55. 31 “[…] a questão da desconstrução é também de fio a pavio a questão da tradução”, J. Derrida, “Lettre à un ami japonais” in Psyché. Inventions de l’Autre , Paris, Galilée, 1987, p. 387.

E O Monolinguismo do Outro (p. 88) acrescenta: “Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é um outro nome do impossível.” 32 Jacques Derrida segue, à sua maneira , a distinção, quer de Kant quer de Heidegger, entre pensamento e filosofia – uma maneira , que passa pelo idioma latino da palavra ( pensar-pesar-carregar-suportar : como o filósofo o explica em Carneiros (2003)) contra o idioma greco-germânico de Heidegger ( Denken-Andenken : a memória, o agradecimento, o reconhecimento, que, como Derrida não se cansa de sublinhar, não está presente no “ penser ” latino ou francês, cf. J. Derrida, “Il n’y a pas le narcissisme” in Points de Suspension , p. 215-216. 33 Cf. J. Derrida, “Um bicho-da-seda de si” in Véus… à Vela , p. 32. 34 Cf. M. Blanchot, L’écriture du désastre , Paris, Gallimard e J. Derrida, Demeure. Maurice Blanchot , Paris, Galilée, 1998. 35 A Desconstrução é também a desconstrução do conceito metafísico de experiência, cf. J. Derrida, Da Gramatologia , p. 74-75: “a experiência do pensamento é uma experiência sem carta e sem mapa, uma experiência exposta ao evento […] quer dizer, à vinda do outro, do radicalmente outro, do outro não-apropriável.”, J. Derrida, “Penser à ne pas voir” in Annali (Bruno Mondadori), 2005, p. 64. 36 “[…] pensamento é aqui para nós um nome perfeitamente neutro, um branco textual, o índex necessariamente indeterminado de uma época por vir da diferência. De um certo modo, o “pensamento” não quer dizer nada .”, J. Derrida, Da Gramatologia , trad. Miriam Schaiderman e Renato Janini Ribeiro, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1973, p. 118. Foi et Savoir (Paris, Seuil, 2000) precisa, porém, que este “nada” não é o “Nada na angústia do Dasein [que] abriria ainda para a questão do ser.”, J. Derrida, op. cit., p. 35. 37 E como Derrida sublinha: “O Ser conta, digam lá o que disserem. É o ser, diferente do ente, diferente do conceito de ser, que reúne e que concede o legein e a Versammlung e é aí que as coisas se decidem.”, J. Derrida in D. Janicaud, Heidegger en France. II. Entretiens , Paris, Albin Michel, 2001, p. 118. 38 “Outrem é secreto porque é outro”, J. Derrida, Papel Máquina , trad. Evando Nascimento, São Paulo, Estação Liberdade, 2004, p. 331 ss. 39 E dizemos tão soberana ou tão incondicionalmente tumular, em razão de, em sede derridiana, a soberania ser pensada em termos de incondicionalidade: a Desconstrução é, de per si , uma desconstrução do registo onto-teológico da soberania, cf. J. Derrida, Vadios. 40 Cf. J. Derrida, “A Diferença” in Margens da Filosofia , p. 27-30. Em “Envois” (in La Carte Postale , p. 91) Derrida escreve: “é a voz, a minha vogal, a letra mais marcada , tudo começa com ela.” 41 Cf. J. Derrida, Donner la mort , p. 115 ss [trad. port. Fernanda Bernardo, Dar a Morte , Palimage/Terra Ocre, no prelo].

42 “E quando dizemos o corpo, nomeamos também não só o corpo da língua e da escrita como aquilo que faz delas uma coisa do corpo”, J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 42. 43 Para esta questão, veja-se, em especial, a nota 6 do cap. 6 de O Monolinguismo do Outro , p. 70. 44 Veja-se, também, J. Derrida, “Lettres sur un aveugle” in Tourner les Mots , p. 104. 45 “A aporia última é a impossibilidade da aporia como tal.”, J. Derrida, Apories , p. 137. 46 Cf. J. Derrida, “Envois” in La Carte Postale , p. 128 ss. 47 J. Derrida, Feu la Cendre , des femmes, Paris, 1987, p. 27. 48 Ibid, p. 19. 49 Cf. J. Derrida, “Como se fosse possível, “within such limits”…” in Papel Máquina , p. 265. 50 Heidegger, Carta sobre o Humanismo , Porto, Guimarães ed., s/d. 51 J. Derrida, “Invention de l’autre” in Psyché. Inventions de l’Autre , Paris, Galilée, 1987, p. 26-27 e 61. 52 Cf. J. Derrida, Da Hospitalidade . 53 “Eu compreendo bem que este conceito da hospitalidade pura não pode ter nenhum estatuto jurídico ou político. Estado algum a pode inscrever nas suas leis. Mas, pelo menos, sem o pensamento desta hospitalidade pura e incondicional, da própria hospitalidade, não teríamos nenhum conceito da hospitalidade em geral, não se poderia mesmo determinar nenhuma norma da hospitalidade condicional (com os seus ritos, o seu estatuto jurídico, as suas normas, as suas convenções nacionais ou internacionais). Sem este pensamento da hospitalidade pura (pensamento que é também, à sua maneira, uma experiência), não se teria sequer a ideia do outro, da alteridade do outro, quer dizer, daquele que entra na nossa vida sem ter sido convidado.”, J. Derrida, “Auto-immunités, suicides réels et symboliques” in J. Derrida, J. Habermas, Le “concept” du 11 setembre , p. 188. 54 “A hospitalidade pura e incondicional, a própria hospitalidade abre-se, está de antemão aberta a não importa quem que não é esperado nem esperado nem convidado, a não importa quem que chega como visitante absolutamente estrangeiro, como chegante ( arrivant ) não identificável e imprevisível, absolutamente outro. Chamemos a isto hospitalidade de visitação ( visitation ) e não de convite ( invitation ).”, ibid. 55 J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 104. 56 J. Derrida, “Qu’est-ce qu’une traduction “relevante ”?” in Quinzièmes Assises de la traduction Littéraire (Arles 1998) , Paris, Atlas/Actes Sud, 1999, p. 28.

57 Não há, por isso, mais identidade una de nada: da língua, do eu, do texto, da tradução, da metafísica, da filosofia, da fenomenologia, da onto-teologia, da revelação cristã, da história e da história do ser, da época, da tradição, … Veja-se, nomeadamente, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 85. 58 Para a questão da maternidade da língua, veja-se, nomeadamente, J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 74-87. 59 J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 97 e 99. 60 A ex-apropriação designa a desconstrução do próprio , da propriedade e da identidade : o registo contraditório que anima este sincategorema pretende dar conta do afã que anima a experiência da identificação como uma experiência in-finita de não-identidade a si: ou seja, a despossessão originária da língua, por exemplo, leva ao desejo ciosos da sua apropriação: é a este movimento contraditório que Derrida chama ex-apropriação , mostrando ao mesmo tempo que a Desconstrução, diferentemente dos Estruturalismos, não advoga a morte ou o fim do próprio ou da identidade. 61 Cf. J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 39-42. 62 “A minha língua, a única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro.”, ibid, p. 39. 63 “[…] não falamos senão uma língua – e ela é dissimetricamente, a ele regressando, sempre, do outro, do outro, guardada pelo outro. Vinda do outro, permanecendo do outro, ao outro reconduzida.”, ibid, p. 57. 64 Cf. J. Derrida, “Des tours de Babel” in Psyché , p. 230-235. 65 “É impossível contar as línguas, eis o que queria sugerir. Não há calculabilidade, a partir do momento em que nunca o Uno de uma língua, que escapa a qualquer contabilidade aritmética, é determinado.”, ibid, p. 45. 66 Referência a J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , trad. Fernanda Bernardo, Porto, Campo das Letras, 2002. 67 Diferentemente dos Estruturalismos, a Desconstrução não advoga o fim da identidade, mas sim da identidade una – não há a identidade mas antes uma experiência in-finita de não-identidade a si: “Uma identidade nunca é dada, recebida ou alcançada, não, apenas existe o processo interminável, indefinidamente fantasmático, de identificação.”, ibid, p. 43. 68 “[…] é preciso inventar e a sua língua e o seu eu , inventá-los ao mesmo tempo ”, ibid, p. 46. 69 “Meditar a escrita é igualmente meditar o apagamento – e a produção da escrita é também a produção de um sistema de apagamento, o rastro é ao mesmo tempo o que se inscreve e o que se apaga –, é meditar constantemente o que ilegibiliza ou o que é tornado ilegível.”, J. Derrida, “Passages – du traumatisme à la promesse” in Points de Suspension , p. 403. 70 Lembremo-lo aqui: “a linguagem é primeiramente […] escrita.”, J. Derrida, Gramatologia , p. 45. E O Monolinguismo do Outro reitera p. 48): “A

“escrita”, sim, designaríamos assim, entre outras coisas, um certo modo de apropriação amante e desesperada da língua.” 71 Cf. J. Derrida, “Journal de Bord” in Parages , p. 119-218 e Aprender finalmente a viver , p. 55-56. 72 “Todo o grafema é de essência testamentária”, J. Derrida, Gramatologia p. 84. E Mémoires – pour Paul de Man (p. 44) reitera: “A palavra e a escrita funerárias não viriam depois da morte, elas trabalham a vida naquilo a que se chama autobiografia.” 73 J. Derrida, “Edmond Jabès et la question du livre” in L’Écriture et la Différence , Paris, Seuil, 1997, p. 116. 74 Para a questão da melancolia ou do luto impossível , cf. Fernanda Bernardo, “ Nós de silêncio”, posfácio a J. Derrida, Carneiros , p. 57 ss. 75 J. Derrida, Carneiros , p. 16. 76 Eis a bela, tão bela descrição do destino ou da incondição do nomeado por Jacques Derrida: “Aquele que recebe um nome sente-se mortal ou morrendo, justamente porque o nome quereria salvá-lo, chamá-lo e assegurar a sua sobrevivência. Ser chamado, ouvir-se nomear, receber um nome pela primeira vez, é talvez saber-se mortal e é mesmo sentir-se morrer. Já morto por estar prometido à morte: morrendo.”, J. Derrida , L’animal que donc je suis , p. 39. 77 “Melhor do que nunca, segundo a fórmula que assedia a nossa tradição de Plotino a Heidegger que não o cita, a Lacan que não cita nem um nem outro, o dom do nome dá o que não tem, em que consiste antes de mais a essência, quer dizer, para-além do ser, a inessência do dom.”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 112. 78 “Digo “relação ao outro enquanto trabalho do luto”, porque o luto não espera a morte, ele é a própria essência da experiência do outro como outro, de uma alteridade inacessível e que não se pode perder senão amando-o – ou então também odiando-o. Está-se sempre enlutado de outrem.”, J. Derrida, Séminaire II, La Bête et le Souverain (2002-2003), p. 242. E em Mémoires pour Paul de Man o filósofo diz: “Sabemo-lo, sabíamo-lo, lembramo-nos, antes da morte do amado, que o ser-em-mim ou o ser-em-nós se constitui a partir da possibilidade do luto. Nós não somos nós-mesmos senão a partir deste saber mais velho do que nós-mesmos.” 79 J. Derrida, Carneiros , p. 74; “Avances” in S. Margel, Le tombeau du dieu artisan , Paris, Minuit, 1995, p. 14. 80 Cf. J. Derrida, “‘Il faut bien manger’ ou le calcul du sujet” in Points de Suspension , p. 280. 81 J. Derrida, Spectres de Marx , Paris, Galilée, 1993, p. 94.

82 “Imediatidade do abismo que me compromete com o outro por todo o lado em que o “eu devo” […] leva para sempre a melhor ao “eu sou”, ao sum e ao cogito .”, J. Derrida, Carneiros , p. 54. 83 J. Derrida, Sauf le nom , p. 107. 84 Ibid, p. 78 e Memórias de Cego , p. 9. 85 Cf. J. Derrida, La Voix et le Phénomène , Paris, PUF, 1993. 86 “ De uma certa maneira ‘o pensamento’ não quer dizer nada ”, J. Derrida, De la Grammatologie , Paris, Minuit, 1967, p. 142. 87 J. Derrida, “Implications” in Positions , Paris, Minuit, 1972, p. 23. 88 E. Levinas, “La signification et le sens” in Humanisme de l’Autre Homme , Montpellier, Fata Morgana, 1972, p. 40. 89 Cf. J. Derrida, “La Dissémination” in La Dissémination , Paris, Seuil, p. 389 ss. 90 J. Derrida, Carneiros , p. 34-35 e “La Dissémination” in La Dissémination . 91 “ A desconstrução é a justiça .”, J. Derrida, Força de lei , p. 26. Para a relação de heterogeneidade sem oposição e de indissociabilidade entre Justiça e Direito, veja-se Fernanda Bernardo, “A crença de Derrida na Justiça: para além do Direito, a Justiça”, ÁGORA (2009), vol. 28, nº 2, p. 53-94. 92 J. Derrida, Voyous , p. 207. 93 Cf. J. Derrida, “Timpanizar – a filosofia” in Margens da Filosofia , p. 11-25. E em “Le presque rien de l’imprésentable”, Derrida precisa: “O limite do filosófico é singular, a sua apreensão não vai nunca, para mim, sem uma certa reafirmação incondicional. Se não se pode designá-lo directamente ético ou político, está todavia aqui em questão as condições de uma ética e de uma política, e de uma responsabilidade de “pensamento” […] que não se confunde estritamente com a filosofia, a ciência ou a literatura enquanto tais…”, J. Derrida, “Le presque rien de l’imprésentable” in Points de Suspension , p. 86. 94 E dizemos “abissalmente aberto” para distinguir a sua abertura da abertura exercitada pela 3ª analogia da experiência da Crítica da Razão Pura de Kant, da abertura da intencionalidade da consciência husserliana e do êxtase da ek-sistência de Heidegger, cf. E. Levinas, Humanisme de l’Autre Homme , p. 103. 95 J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 66-67. 96 “[…] este gosto hiperbólico pela pureza da língua. E pela hipérbole em geral. Uma hiperbolite incurável. Uma hiperbolite generalizada. […] este hiperbolismo que invadiu a minha vida e o meu trabalho. Dele releva tudo quanto avança com o título da “desconstrução”, claro, […] a começar por

esta “hipérbole” (é a palavra de Platão) que comandou tudo, incluindo a reinterpretação de khora , a saber, a passagem para além da própria passagem do Bem ou do Uno para além do ser ( hyperbolè … epekeina tes ousias ), o excesso para além do excesso: inexpugnável.”, J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 66-67. 97 J. Derrida, Aprender finalmente a viver , p. 31. 98 Cf. J. Derrida, “Fidelidade a mais de um. Merecer herdar onde a genealogia falta”, trad. Paulo Ottoni in A Tradução Manifesta , São Paulo, Edusp/Editora da Universidade de S. Paulo e Editora Unicamp, 2005, p. 167-198. 99 J. Derrida, “Abraham, l’autre” in Judéités , p. 22. 100 J. Derrida, “Le veilleur, la veilleuse” in F. Brenner, DIASPORA: Terres natales de l’exil. Voix, Paris, Éditions de la Martinière, 2003, p. 67 e Mémoires, pour Paul de Man . 101 Para esta questão, veja-se nomeadamente o insinuante livro de Bruno Delorme, Le Christ Grec , Paris, Bayard, 2009. 102 Cf. J. Derrida, L’animal que donc je suis , p. 69-70; “Avances” in op. cit., p. 12-13. 103 Cf. J. Derrida, Vadios e “Auto-immunités, suicides réels et symboliques” in Le “concept” du 11 septembre . 104 O “comigo” implica o pressuposto da sua identidade una ou própria, cf. J. Derrida, O Monolinguismo do Outro e O Outro Cabo , p. 96-97. 105 Em “Envois” (in La Carte Postale , p. 43), Derrida lembrará que “ écart ” ( desvio ) é o anagrama de “ carte ” ( carta ) e de “ trace ” ( rastro ). 106 “uma certa experiência do perjúrio é a endurance dolorosa e originária da fidelidade […] o tema do perjúrio sendo um daqueles a que, no fundo, fiquei mais fiel.”, J. Derrida, “Abraham, l’autre” in Judéités , p. 22. 107 “[…] porque é que se deveria sempre pedir perdão quando se escreve (perjura-se a priori, perde-se fatalmente a singularidade do destinatário a partir do momento em que se envia uma mensagem legível – e o segredo perde-se imediatamente)”, J. Derrida, “Lettres sur un aveugle” in Tourner les Mots , p. 88. 108 Cf. Hachem Foda, “En Compagnie” e J. Derrida, “Fidélité à plus d’un” in Idiomes, Nationalités, Déconstruction , Cahiers INTERSIGNES , ed. Toubkal/ l’aube, Casablanca, 1998, p. 15-40 e p. 221 ss. 109 Esta é também a aritmética que Derrida propõe em Foi et Savoir para repensar a fé e a religião ou o religioso, o retorno do religioso, para além do seu tradicional esquema onto-teológico: “O “plus d’Un” é este n+Um que introduz a ordem da fé ou da fiabilidade no endereçamento ao outro, mas também a divisão maquinal, mecânica”, J. Derrida, Foi et Savoir , p. 99.

110 “É-se mais fiel à herança de uma cultura cultivando a diferença-a-si (consigo), que constitui a identidade, ou apoiando-se na identidade na qual esta diferença se mantém reunida?”, J. Derrida, O Outro Cabo , p. 97. 111 “A problemática da escrita abre-se com o pôr em questão do valor de arkhê .”, J. Derrida, “A Diferença” in Margens , p. 33. 112 Para esta questão, cf. J. Derrida, “Signature Evénement Contexte” in Marges – de la Philosophie , Paris, Minuit, 1972, p. 365-393. 113 J. Derrida, O Outro Cabo , p. 96. 114 J. Derrida, Le Droit à la Philosophie du Point de Vue Cosmopolitique , p. 33. 115 J. Derrida, “Nous autres grecs” in Nos Grecs et leurs Modernes , Paris, Seuil, 1992, p. 267. 116 Ibid, p. 262. 117 Para esta questão, veja-se “Veille et désoeuvrement: un temps devant l’autre” in “Avances” in S. Margel, Le tombeau du dieu artisan , p. 20-24. 118 Sem pretender a exaustão, lembremos aqui J. Derrida, Foi et Savoir , suivi de Le siècle et le pardon , Paris, Le Seuil, 2000, p. 133; “Un ver à soi” in J. Derrida, H. Cixous, Voiles , Paris, Galilée, 1998, p. 73 (duas vezes); J. Derrida, De Quoi Demain… , p. 298; Voyous , p. 146, 209. 119 Uma ana-cronia que, como Derrida o diz em “Avances”, introduz uma deslocação no presente na origem do mundo e uma disjunção interminável no tempo, por isso sempre “ out of joint ” – uma disjunção que é ao mesmo tempo uma chance e uma ameaça. 120 Cf. J. Derrida, “Diferença” in Margens , p. 35 ss. 121 J. Derrida, Foi et Savoir , p. 72. 122 “O tempo vem a faltar-nos. É sempre assim que ele vem, o tempo. É assim que ele nos chega. O tempo falta-nos. É-nos dado como o que vem a faltar-nos.”, J. Derrida, “Penser ce qui vient” in Derrida pour les temps à venir , p. 24. 123 J. Derrida, “Avances” in op. cit., p. 12. 124 Derrida confessa a sua tarefa e o seu sonho para, de muito longe, do fim do mundo ou do outro lado do mundo – o lado do outro, justamente! – desafiar e tentar diminuir a tecelagem da ocidentalidade filosófico-cultural em “Um bicho-da-seda de si” in Véus… à Vela : “desafiar de muito longe uma tecelagem, sim, de muito longe, ou antes velar pela sua diminuição.”, J. Derrida, “Um-bicho-da-seda de si” in op. cit., p. 23. 125 “O homem refém de todos os outros é necessário aos homens porque, sem ele, a moral não começaria em parte alguma. O pouco de generosidade

que se produz no mundo não exige menos. O judaísmo ensinou-o.”, E. Levinas, Quatre Lectures Talmudiques , Paris, Minuit, 1968, p. 186. 126 Também para Nietzsche a filosofia “nasce a morrer” – a degenerescência mina a filosofia desde o seu começo, desde Sócrates, precisamente: “sendo Sócrates considerado instrumento da degenerescência da Grécia e reconhecido pela primeira vez como decadente típico.”, F. Nietzsche, “A origem da Tragédia” in Ecce Homo , Porto, Guimarães ed., s/d, p. 88. 127 “Facto pelo qual a sua épokê (da Teologia Negativa) tem alguma afinidade, quer com a skepsis do cepticismo, quer com a redução fenomenológica. E […] a fenomenologia transcendental, enquanto ela passa pela suspensão de toda a doxa , de toda a posição de existência, de toda a tese, habita o mesmo elemento da teologia negativa. Uma seria uma boa propedêutica à outra. Bastante surpreendente, não é?”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 78. 128 E. Levinas, Deus, A Morte e o Tempo , p. 145. 129 Cf. J. Derrida, “‘Il faut bien manger” ou le calcul du sujet” (in Points de Suspension , p. 295-6) e L’animal que donc je suis . 130 “‘Tout autre est tout autre’ […] caiu primeiramente, ousarei dizê-lo, como uma pedra no jardim de Levinas…”, J. Derrida in J. Derrida e C. Malabou, La Contre-Allée , Paris, La Quinzaine/ L. Vuitton, 1999, p. 263. 131 J. Derrida, L’animal que donc je suis , p. 144. 132 J. Derrida, Vadios , p. 161. 133 “Silesius começa a ser-me familiar, desconhecido como permanece para mim, e amigável.”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 113. 134 J. Derrida, “Comment ne pas parler” in Psyché , p. 540. 135 J. Derrida, “Autrui est secret parce qu’il est autre” in Papier Machine ; Paris, Galilée, 2001, p. 369. Esta entrevista com Antoine Spire tinha sido publicada pela primeira vez em Le Monde de l’éducation , nº 284, septembre 2000. 136 Ibid, p. 368-369. 137 Cf. J. Derrida, “Comment ne pas parler” in Psyché , p. 563-569. 138 J. Derrida, “Désistance” in Psyché , p. 626-627. 139 Cf. J. Derrida, Fé e Saber , p. 33. 140 “Porque é como um pensamento do único, justamente, e não do plural, como demasiadas vezes se julgou, que um pensamento da disseminação se apresentou outrora como um pensamento dobrante da dobra – e dobrado à dobra.”, J. Derrida, O Monolinguismo do Outro , p. 41.

141 Cf. J. Derrida, Passions , p. 57. 142 J. Derrida, Politiques de l’Amitié , Paris, Galilée, 1994, p. 54. 143 “Heterogéneo ao escondido, ao obscuro, ao nocturno, ao invisível, ao dissimulável, ou mesmo ao não-manifesto em geral, ele não é desvelável. Permanece inviolável mesmo quando se crê tê-lo revelado. Não que ele se esconda para sempre numa cripta indecifrável ou por detrás de um véu absoluto. Simplesmente, ele excede o jogo do velamento/desvelamento: dissimulação/revelação, noite/dia, esquecimento/ anamnese, terra/céu etc. Ele não pertence portanto à verdade, nem à verdade como homoiosis ou adequação, nem à verdade como memória ( Mnémosyne , aletheia ), nem à verdade dada, nem à verdade prometida, nem à verdade inacessível. A sua não-fenomenalidade é sem relação, mesmo negativa, com a fenomenalidade. A sua reserva não é mais da ordem da intimidade que se gosta de dizer secreta, deste muito próximo ou muito próprio que aspira ou inspira tantos discursos profundos (a Geheimnis ou, mais rica ainda, a inesgotável Unheimliche ). Claro, poder-se-ia dizer este segredo por outros nomes, quer se os encontre, quer se lhos dê. Ele permanece secreto sob todos os nomes e é a sua própria irredutibilidade ao nome que o faz secreto”, J. Derrida, Passions , p. 60-61. 144 Ibid, p. 71. 145 Veja-se, por exemplo, “Abraham, l’autre” in Judéités , p. 20-22. 146 Veja-se também, J. Derrida, M. Ferraris, “Il gusto del segreto”, Roma – Bari, Laterza & Figli, 1997. 147 J. Derrida, “Envois” in La Carte Postale de Socrate à Freud et au-delà , Paris, Garnier-Flammarion, 1980, p. 53. 148 Para esta questão, veja-se, nomeadamente, J. Derrida, Passions , nota 2, p. 74-81. 149 “Se se chama marrano, por figura, a quem permanece fiel a um segredo que não escolheu, aí mesmo onde habita, […], este segredo guarda o marrano antes mesmo de este o guardar. Porque a um tal segredo, acaso não se pode pensar que ele subtrai à história, à idade e ao envelhecimento? Pela sorte desta anacronia, marranos de todos os modos, marranos que somos, quer o queiramos ou não, quer o saibamos ou não, […] seríamos sem cessar mais jovens e mais velhos, numa derradeira palavra infinitamente finitos.”, J. Derrida, Apories , p. 140-141. 150 “Reunidos em torno do corpus bíblico, alguns grandes veladores são escutados. Todos homens. Disputam-se a noite: Kierkegaard, em primeiro lugar, Kierkegaard indefinidamente, e Kafka sobretudo, e Melville, mas também Patocka, desde Platão, Nietzsche, Heidegger, Levinas.”, J. Derrida, “É favor inserir” in Dar a Morte , trad. Fernanda Bernardo, Coimbra, Palimage/ Terra Ocre (no prelo).

151 Para a questão da noite da noite , desconstrutora da tradicional e recorrente bipolaridade dia-noite que cartografa a ocidentalidade grecoeuropeia, ver J. Derrida, “Cette nuit dans la nuit de la nuit…” in Rue Descartes , 42, Paris, CIPH, PUF, 2003, p. 112-127. 152 Derrida evocará também a provação de Abraão para pensar, quer a génese bíblico-abraâmica da literatura, quer o segredo da literatura: “Entre todos quantos, em número infinito na história, guardaram um segredo absoluto, um segredo terrível, um segredo infinito, eu penso em Abraão, na origem de todas as religiões abraâmicas. Mas igualmente na origem deste fundo sem o qual aquilo a que nós chamamos literatura não teria sem dúvida jamais podido surgir como tal e sob este nome. O segredo de alguma afinidade electiva aliaria assim o segredo da Aliança electiva entre Deus e Abraão e o segredo do que nós chamamos literatura, o segredo da literatura e o segredo em literatura?”, J. Derrida, “A literatura no segredo” in Dar a Morte , p. 163. 153 “Um tal segredo […] não concerne essencialmente o conteúdo de qualquer coisa a esconder […] mas a pura singularidade do face a face com Deus, o segredo desta relação absoluta.”, J. Derrida, Donner la Mort , p. 203. 154 “[…] em que é que a literatura descende de Abraão para, ao mesmo tempo, o herdar e o trair. […] então a literatura herda, é certo, de uma história santa de que o momento abraâmico resta o segredo essencial, […] mas ela renega também esta história, esta pertença, esta herança. Ela renega esta filiação.”, J. Derrida, Donner la Mort , p. 205 e 208. 155 Derrida di-lo em Aprender finalmente a viver (p. 54): “ Donner la mort queria ser, entre muitas outras coisas (por exemplo uma nova reinterpretação crítica da responsabilidade como coisa europeiacristã segundo Patocka), uma tentativa de leitura outra de Abraão de Kierkegaard. Apesar da minha enorme admiração por este pensador, eu tentei mostrar que talvez ele tenha cristianizado a história da ligadura de Isaac.” 156 “Haveria, talvez, ainda um outro Abraão, não somente aquele que recebeu um outro nome na sua velhice e, aos 99 anos, no momento da sua circuncisão, ressentiu, com um golpe de letra, a letra h mesmo no meio do seu nome, não somente aquele que, mais tarde, no monte de Morija, foi chamado duas vezes pelo anjo, primeiramente, “Abraão, Abraão?”, depois uma segunda vez ainda, do alto dos céus, dizem-nos as Escrituras . Haveria talvez não somente Abrão, e a seguir Abraão, Abraão, duas vezes.”, J. Derrida, “Abraham, l’autre” in Judéités , p. 42. 157 J. Derrida, “É favor inserir” in Dar a Morte , trad. Fernanda Bernardo, Coimbra, Palimage/ Terra Ocre (no prelo) 158 Cf. J. Derrida, “Autrui est secret parce qu’il est autre” in Papier Machine , p. 367. 159 J. Derrida, “Abraham, l’autre” in Judéités , p. 12. 160 Para esta questão, veja-se nomeadamente J. Derrida, Foi et Savoir .

161 Ibid, p. 22-23. 162 A metáfora da “malha caída”, da “malha inapropriável” é sobretudo usada por Derrida em “Um bicho-da-seda de si” in op. cit. 163 “Há différ a nce (com um “a”) desde que há rastro vivo, uma relação vida/morte, ou presença/ausência. […] Há différ a nce (com um “a”) desde que há vivente, desde que há rastro”, J. Derrida , De quoi Demain …”, p. 43. 164 E. Husserl, Meditações Cartesianas , Porto, Rés, s/ d, p. 11. 165 J. Derrida, Posições , trad. Maria Margarida Barahona, Lisboa, Plátano Ed., 1975, p. 14. 166 J. Derrida, “S’il y a lieu de traduire” in Du droit à la Philosophie, Paris, Galilée, p. 311 ss, e “La langue et le discours de la méthode” in Recherches sur la Philosophie du Langage (Cahiers du Groupe de Recherches sur la Philosophie et le langage 3), Grenoble/Paris, 1983, p. 35-51. 167 “Os herdeiros autênticos, aqueles que podemos desejar, são herdeiros que romperam suficientemente com a origem, o pai, o testador, o escritor ou o filósofo para irem pelo seu próprio movimento assinar ou contra-assinar a sua herança. Contra-assinar é assinar outra coisa, a mesma coisa e outra coisa para fazer acontecer outra coisa. A contra-assinatura supõe em princípio uma liberdade absoluta.”, J. Derrida, Sur Parole , Paris, Ed. de l’Aube, 1999, p. 60. 168 Cf. Jacques Derrida, Spectres de Marx , p. 39. 169 J. Derrida, Spectres de Marx , p. 40. 170 J. Derrida, “Penser ce qui vient” in colectivo Derrida pour les temps à venir , p. 23 171 “Mas se, sem amar a literatura em geral e por ela mesma, eu gosto de algo nela que sobretudo não se reduz a nenhuma qualidade estética, a nenhuma fonte de fruição formal, seria no lugar do segredo . No lugar de um segredo absoluto. Aí residiria a paixão. Não há paixão sem segredo, sem este segredo, nem segredo sem esta paixão.”, J. Derrida, Paixões , p. 64. 172 O preâmbulo de Vadios adverte: “Deste pensamento não se pode sem dúvida deduzir nenhuma política, nenhuma ética nem nenhum direito. Nada se pode, claro, fazer com ele. Nada se tem de fazer com ele. Mas ir-se-á ao ponto de concluir que este pensamento não deixa nenhum rastro sobre o que há a fazer – por exemplo na política, na ética ou no direito por vir? Nela […] viria assim um apelo apelar: o apelo a um pensamento do evento por vir , da democracia por vir , da razão por vir .”, J. Derrida, Vadios , p. 36. 173 J. Derrida in J. Derrida e E. Roudinesco, De quoi Demain …, p. 138-139. 174 Cf. J. Derrida, A Universidade sem Condição e Vadios . 175 J. Derrida forja este sincategorema em Demeure, Athènes (Paris, Galilée, 2009, p. 58) para designar a experiência auto-hetero-afectiva do

“eu” – isto é, para referir como a passividade do “eu” não interdita nem impede a acção ou a resposta, antes pelo contrário, implica-a e requere-a. 176 J. Derrida, “Le siècle et le pardon” in Foi et Savoir , p. 129. 177 Um princípio meta-político porque Derrida crê que “nós não somos definidos de fio a pavio pelo político e, sobretudo, não pela cidadania, pela pertença estatutária a um Estado-nação.”, J. Derrida, “Le siècle et le pardon” in Foi et Savoir , p. 128. 178 Ibid, p. 129. 179 “não é certo a “democracia” ser um conceito de parte a parte político.”, J. Derrida, Vadios , p. 97. 180 Cf. J. Derrida, Vadios , p. 161. 181 E, em Passions , Derrida acordava o mesmo irredentismo à Literatura: “A literatura é uma invenção moderna, ela inscreve-se em convenções e em instituições que, para não reter senão este traço, asseguram-lhe em princípio o direito de tudo dizer . A literatura liga assim o seu destino a uma certa não-censura, ao espaço da liberdade democrática (liberdade de imprensa, liberdade de opinião etc.). Não há democracia sem literatura, não há literatura sem democracia .”, J. Derrida, Passions , p. 64-65. 182 J. Derrida, Políticas da Amizade , p. 117-118. 183 “Isso resiste à politização mas, como toda a resistência a uma politização, é também naturalmente uma força de repolitização, um deslocamento do político.”, J. Derrida, “Penser à ne pas voir” in op. cit., p. 72. 184 “O pensamento do político foi sempre um pensamento da différance e o pensamento da différance sempre também um pensamento do político, do contorno e dos limites do político, singularmente em torno do enigma ou do double bind auto-imunitário do democrático.”, J. Derrida, Vadios , p. 97. 185 “Tome por exemplo da democracia, da ideia da democracia, da democracia por vir (nem a Ideia em sentido kantiano nem o conceito actual, limitado e determinado da democracia, mas a democracia como a herança de uma promessa.”, J. Derrida, Sauf le Nom , p. 108. 186 Para esta questão do “viver juntos”, veja-se J. Derrida, “Avouer – l’impossile” in colectivo, Comment vivre ensemble? , Paris, Albin Michel, 2001, p. 181-216. 187 J. Derrida, Políticas da Amizade , p. 36. 188 J. Derrida, Vadios , p. 168-169. DESERTO NO DESERTO: A POLÍTICA IMPOSSÍVEL ENTRE A PROMESSA E O MESSIANISMO

¹ MÓNICA B. CRAGNOLINI (UNIVERSIDADE DE BUENOS AIRES – CONICET) I. DESERTO NO DESERTO Na ilha de Capri, no encontro em torno da religião, e perguntando-se sobre a possibilidade da mesma, Derrida nomeia três lugares aporéticos: a ilha, a Terra Prometida e o deserto. Os três são lugares sem mapas previsíveis, sem rotas nem metas. Os três, ícones de uma tópica religiosa, indicam nosso horizonte, que se configura como ausência de horizonte. Essa ausência de horizonte é a possibilidade impossível do por-vir: há nesses lugares um abismo, “ um deserto no deserto, ali onde não se pode nem se deve ver chegar o que deveria ou poderia – quiçá – vir . O que fica por deixar vir”. Desses três lugares, o mais anárquico é o deserto, não o lugar da revelação e da Kenosis , mas sim o deserto no deserto que torna possível esse outro deserto de Juan el Bautista, de Jesus, dos anacoretas. Dos nomes para este deserto no deserto: Khôra e messianidade sem messianismo. Este deserto no deserto seria a condição de possibilidade de todo re-ligar, de todo vínculo em toda comunidade ou fé positiva de “qualquer horizonte ontoantropoteológico”. Este deserto no deserto manifesta as aporias do pensamento e da política impossíveis da desconstrução: para compreender o sentido deste sintagma do “fundo sem fundo” ou do “deserto no deserto”, é necessário expor, em primeiro lugar, a pergunta em torno da possibilidade. II. DAS IMPOSSIBILIDADES O possível e o impossível organizam no pensamento filosófico tradicional um campo de significações que se distribuem de maneira esquemática: não se trata de vincular-se a esse campo reduzindo-o à unidade, derivando-o de uma simplicidade, ou buscando um terceiro termo que torne dialética a oposição. Há termos que “destroem o horizonte trinitário”, sendo sinais de disseminação que mostram a dificuldade de submeter certos termos a um conceito único. A tradição aristotélica do vínculo potência-ato assinala entre ambas as instâncias uma relação que tem sido interpretada de diferentes maneiras. Uma dessas maneiras consiste em considerar que o ato é a positividade dessa instância negativa que é a potência. Nessa linha de pensamento, é necessário considerar que a potência deve deixar de ser potência para se atualizar: uma potência que não se atualizasse seria algo não logrado, já que toda potência, na medida em que o ato a precede a nível conceitual, é um ato implícito. Isto não significa que não se conserve um resquício de potência em tudo o que é: se assim não fosse, não haveria possibilidade de movimento. Se na escala da natureza tudo tende para a instância superior, existe um constante movimento de toda potência em direção ao ato em que alcançará

seu télos (ainda que não o efetive na atualização). Na escala da natureza aristotélica, o télos é a razão de ser desse movimento constante em direção ao ato. A potência é a fonte dos possíveis em Aristóteles. No entanto, o que significa que para a desconstrução “o impossível” é a condição de possibilidade do possível? Como pensar esta aparente contradição? O perigoso talvez nietzschiano de Políticas da Amizade permita a aproximação a esta questão: “essa experiência do ‘talvez’ seria ao mesmo tempo do possível e do impossível, do possível como impossível”. O perigoso talvez se relacione, então, com o acontecimento: que é “a vinda do impossível”. Não haveria acontecimento se somente chegasse o previsível, o calculado, o programado: é possível o acontecimento quando procede do impossível. O talvez se encontra então na “junção desarticulada do possível e do impossível”. Um dos modos de entender esse vínculo aporético entre possibilidade e impossibilidade é através da ideia derridiana do perdão. Quando se diz que “não se perdoa mais que o imperdoável” se está indicando que o possível é o impossível: o único perdão possível seria o perdão impossível, o que perdoa o imperdoável. Um perdão que perdoasse somente o perdoável: que sentido teria? O problema é, portanto, como entender o impossível como condição de possibilidade. A desconstrução pode ser caracterizada como “a experiência do impossível”, e nesta caracterização se está indicando o aspecto de constante aporia em que se move, e um “lugar” paradoxalmente atopico em que transcorre: esse lugar é o deserto no deserto, uma das maneiras de se referir, também, à Khôra. III. A KHÔRA O termo Khôra que remete, em Platão, a um “certo lugar”, é tratado por Derrida quase como um nome próprio, para indicar que não pode ser equiparado a uma metáfora, e permanece, portanto, intraduzível. Khôra possui uma “unicidade sem propriedade”: não porque permaneça inacessível em sua ipseidade, mas porque é quase um nome sem referente (não há ente nem fenômeno a que remeta). Sendo um nome da língua natural, um nome que herdamos do uso ordinário da língua, é ao mesmo tempo substituível e insubstituível: “ser insubstituível em sua insubstitualidade mesma é o que ocorre com toda a singularidade”. O que uma singularidade nomeia “propriamente” não remete a uma ipseidade: nomeia um acontecimento. E neste nomear o acontecimento evidencia-se a aporia do performativo: a doação do nome é o performativo por excelência, porém se encontra além de todo domínio do “poder” (a que remete todo performativo no “poder fazer coisas com palavras”).

A Khôra põe em crise a lógica binária: pertence a um “terceiro gênero” ( triton genos, Timeo, 48e, 52a) que, contudo, não é uma síntese com relação aos outros dois (o sensível e o inteligível), senão, talvez, um “gênero além do gênero”. O discurso sobre a Khôra em Timeu procede “de um razoamento híbrido, bastardo ( logismô nothô ), isto é, corrompido”, e por isso, longe da segurança do logos, oscila entre duas formas de movimento pendular: o da dupla exclusão ( nem/nem ) e o da participação ( ao mesmo tempo... e, isto e aquilo ). Há muitas interpretações sobre a Khôra platônica e sobre a suposta metaforicidade dos termos “mãe” e “nutriz” para se referir a ela. Essas interpretações intentam dar forma ao que parece que se furta a toda determinação. A Khôra se oferece ou se promete em subtrair-se à determinação, permanece “amorfa” ( amorphon , 51a): “há Khôra , mas a Khôra não existe”. Todo o discurso do Timeu está regulado por uma constante myse en abyme , já que todo relato se converte em receptáculo de outro relato: isto remete ao abissal da Khôra . Porque se bem é possível perguntar-se pela physis ou a dynamis , a khôra (que “há”) “não dá nada dando lugar ou dando a pensar”. Este cair no abismo se exerce sobre um discurso dos lugares e dos sítios: “ Cair no abismo do discurso sobre khôra, lugar da política, política dos lugares”. Se Khôra pode ser um lugar ocupado por alguém, país, posto, posição designada, território ou região, então Khôra está sempre já ocupada (ainda que se diferencie como lugar geral do que toma lugar nela). Porque Khôra é receptáculo, lugar de acolhida ( hypodhokè ): recebe a todos os relatos que tomam lugar nela, mas não pode ser objeto de nenhum desses relatos. Khôra permanece como segredo (sem segredo). E se bem Khôra é nutriz (e parece, portanto, mulher) não é da “raça das mulheres” ( genos gynaikôn ), é uma mãe estranha que não gera, mas dá lugar, parece origem mas é pré-originária, está antes e fora de toda geração. É um discurso bastardo e híbrido o que tem levado a Khôra em direção a uma “ necessidade que não é nem geradora nem originária e que sustenta a filosofia, ‘precede’ (antes do tempo que passa ou do tempo eterno antes da história) e ‘recebe’ o efeito neste caso, a imagem das oposições (inteligível e sensível): a filosofia”. A noção de Khôra indica uma resistência do não reapropriável, um espaço atópico como a cripta, já que se subtrai a toda determinação e interpretação e, no entanto, as torna possíveis. Por isso permanece como “inapreensível, o improvável, extremamente próxima e infinitamente distante”. IV. KHÔRA, DESERTO E MESSIANIDADE SEM MESSIANISMO

As ideias de deserto e de messianidade parecem vincular-nos à tradição judaico-cristã, enquanto que a Khôra indica nossa marca no mundo grego. Contudo, Derrida estabelece um vínculo entre este termo e a tradição judia a partir da noção de lugar. Como assinala em “Abraão, o outro”, esta localidade nem humana nem teológica que abre o lugar para além de toda teologia negativa, este termo grego, tem uma afinidade com o Deus dos judeus: para eles Deus é também o Lugar. O deserto, na tradição judaico-cristã, é o lugar da oração. Quando Caputo pergunta a Derrida acerca da sua expressão em Circonfesión , onde afirma ser um homem de “preces e lágrimas”, e sobre o sentido da resposta que espera um ateu dessas preces, Derrida assinala que a prece deve suspender a certeza: se se espera uma resposta, isso seria o fim da oração. A oração supõe então uma epoche , por isso é cética. E Derrida caracteriza-se como um homem que ora todo o tempo, inclusive nesse momento em que está falando. A oração acompanha todo o discurso, a prece é o início da língua no vocativo, também é “uma suspensão de toda espera, de toda economia, de todo cálculo”. A oração é carente de esperança. Na conferência de Jerusalém, “Como não falar”, expõe-se esta questão da oração em relação com o outro, que não necessariamente é alguém determinado: daí que a oração seja apóstrofe errante do outro ao outro. Caputo tem acentuado esse caráter de destinerrância da oração, que em Les yeux de la langue se evidencia em Deus como o destinatário indeterminado. A oração seria um modo de envio, é a marca da destinerrância, porque Deus é o destinatário desconhecido, a quem me dirijo quando falo: “responda-me, por favor”. A oração remete, portanto, ao outro, mas no modo do envio, da destinerrância. O outro nome para o deserto no deserto, dizíamos, é “messianidade sem messianismo”. A messianidade sem messianismo “seria a abertura ao por-vir ou à vinda do outro como advento da justiça, porém sem horizonte de espera e sem prefiguração profética”. Essa messianidade é uma estrutura geral da experiência, que não remete a nenhum messianismo em particular, é uma estrutura do tipo dos sintagmas blanchotianos “x sem x”, “espera sem espera”. Esta espera sem espera vincula-se com uma experiência da fé (a Zusage heideggeriana), uma fé que torna possível a relação com o outro no testemunho. A messianidade é uma “fé sem dogma que se aventura no risco da noite absoluta”. Essa noite absoluta é a do segredo do outro, por isso a espera se relaciona com “Um invencível desejo de justiça”. Em Força de lei , a justiça como por-vir está vinculada à promessa messiânica. E em Fé e Saber se indica esse vínculo do messianismo como promessa a partir do sim dito ao outro: Nenhum por-vir sem uma certa memória e promessa messiânicas, de uma messianidade mais velha que qualquer religião e mais originária que qualquer messianismo. Não há discurso nem apóstrofe ao outro sem a possibilidade de uma promessa elementar. O perjúrio e a promessa não cumprida reclamam a mesma possibilidade. Não há promessa, pois, sem a promessa de uma confirmação do sim . Esse sim terá implicado e implicará sempre a fiabilidade e a fidelidade de uma fé.

Esse “sim, sim” dito ao outro, sobre o que se “sustenta” a desconstrução, é o amor fati nietzchiano, o amor ao acaso e ao acontecimento. A messianidade se vincula então ao “sim, sim” e à estrutura da promessa. Derrida caracteriza essa messianidade como “escatologia a priori”: um modo de espera que não tem “finalidade a esperar”. O que se espera é precisamente o inesperável, o acontecimento, o que não pode apresentar-se nem calcularse. Como assinala Caputo, Blanchot é a fonte secular do “vir” e do “sim sim” de Derrida (como o é também da lógica do sans e do pas ), e do messianismo que não acontece na figura do Messias. Quando, em A escritura do desastre , Blanchot recorda essa “fábula rabínica” que conta a aparição do Messias nas portas de Roma, ele torna patente na fábula os elementos a ser levados em conta na ideia de messianidade. Em primeiro lugar, o que reconhece o Messias pergunta-o: “Quando virás?”. Sua presença, a fenomenalidade da sua aparição, não cumpre com a espera do que espera e do que vê. Mas, por outro lado, o Messias responde à pergunta: “Quando virás?” ressaltando “Hoje”. Não se trata, portanto, da espera de um acontecimento que “nunca” ocorre: o impossível é o que já está ocorrendo. A irrupção do outro não é o que acontecerá ao fim dos tempos, mas o que já está ocorrendo. Daí, nossa responsabilidade como resposta. Por outro lado, uma lógica da impotência ou do “não-poder” deriva-se também da distinção blanchotiana entre a morte e o morrer: o morrer é “a ruína do si mesmo”. O morrer não pode ser uma tarefa a realizar, não pode ser algo que o eu deva assumir, mas antes é sempre acontecimento, com o qual o acontecimento obriga a depor toda a lógica da possessão e do domínio, já que nos enfrenta com o não-dominável. Tanto na noção de Khôra como na de messianidade sem messianismo se evidencia esse lugar do outro como acontecimento não-dominável: Sem esse deserto no deserto não haveria nem ato de fé, nem promessa, nem por-vir, nem espera sem espera da morte e do outro, nem relação com a singularidade do outro. A eventualidade desse deserto no deserto (como do que se parece com a via negativa, até se confundir com ela, mas sem se reduzir a ela, que abre passagem aí desde uma tradição greco-judaicocristã) é que se se desarraiga a tradição que a implica, se se a ateologiza, essa abstração libera, sem denegar a fé, uma racionalidade universal e a democracia política que o é indissociável. Khôra exprime então o imemorial de um deserto no deserto: por isso Khôra é nada, nada de ente, nada de presente. Khôra resiste a toda instância teológica, ontológica ou antropológica, permanece heterogênea a toda revelação, “e nunca se deixará sacralizar, santificar, humanizar, teologizar, cultivar, historializar”. Sempre será, então, uma restância: “ o lugar mesmo de uma resistência infinita, de uma remanescência infinitamente impassível: um qualquer / radicalmente outro sem rosto ”. Lugar da remanescência e da resistência, lugar político, então, por excelência. Lugar da possibilidade impossível do respeito à “ distância da alteridade infinita como singularidade ”. V. DESCONSTRUÇÃO DA SOBERANIA A política impossível, deserto no deserto, é a da Khôra e da messianidade sem messianismo. Na promessa, ambos os modos remetem ao outro. A

democracia por-vir tem relação com o adeus ao outro, adeus que “abandona” o outro à sua alteridade. Enquanto que as democracias possíveis e atuais se vinculam à estrutura da soberania, a democracia por-vir permite o questionamento do caráter incondicional da mesma. A desconstrução resiste à ipseidade que quer dominar o outro, por isso se relaciona com certa “debilidade”, a de deixar vir o outro. “Deixar lugar” ao outro: como se indica em A besta e o soberano , a ética e os bons costumes começam com o “primeiro o Senhor(a).” Esse outro é secreto: em O gosto pelo segredo referindo-se a Angelus Silesius se assinala que existe um devirnada, devir depois do outro (e talvez isso seja o “mais que impossível” ( überunmöglischste )). Para compreender algum dos sentidos da democracia por-vir é necessário então atravessar a desconstrução dessa figura da soberania que, ainda que pareça estranho, abriga a hospitalidade. Por que ressalto isto? No seminário A Besta e o soberano realiza-se esse movimento que vai da soberania ao outro, dos modos subjugantes da figura do outro à possibilidade de uma política que leva em conta o existente sem subjugá-lo, e esse movimento é possível desde a análise do que implica a ideia de soberania. Ali, na soberania, ainda que pareça difícil pensá-lo, está escondido o outro, vivente humano ou vivente animal. Qual é esse caminho que quero indicar e que deve atravessar a soberania? As sessões de 2001 e 2002 do seminário executam um movimento de ida e vinda em torno de certos conceitos, para que, no final, se vislumbre algo do secreto escondido na soberania: o que expõe o imenso cadáver da paquiderme na autópsia realizada ante Luís XIV. Ali, quando a besta e o soberano se encontram corpo a corpo, evidencia-se que a subjugação é possível porque há hospitalidade. E isto não porque a subjugação seja uma forma perversa ou pervertida da hospitalidade, e então somente se trataria de reconduzir o pervertido à normalidade, mas sim porque o segredo da política é a vida. E a vida, já o sabia Nietzsche, é uma mulher que sempre engana. A desconstrução da ideia de eu que evidencia os vínculos entre o ipse e a propriedade (e com isso, o ipse e o falo, o ipse e a casa própria, o ipse e sua capacidade de submeter a todo o mais) permite a aposta de “um próprio não soberano” e de encontrar, ali, no coração da soberania, a hospitalidade. O ipse não é somente um modo opaco e abstrato de dizer eu, mas antes, o “eu posso” está vinculado com o poder fazer e poder dispor, como o mostra o trabalho de Benveniste. Nesse ipse estão o potere , possum , potest , que indicam que o ipse sempre se erige como um quem que coloca o outro no lugar da disponibilidade. Pensar a soberania como o próprio do homem serve como álibi para políticas bestiais, apregoadas em nome da humanidade. Derrida dita este seminário tendo como pano de fundo a queda das Torres Gêmeas e as políticas desencadeadas em torno desse acontecimento. Este 2011 nos tem dado o “final” (ou o início de algo novo) com a morte de Osama bin Laden “em nome da humanidade”.

Em nome da humanidade, em nome dos humanos, tem-se afirmado muitas políticas bestiais. É necessário desconstruir a domesticidade, a lógica da soberania que se assenta na casa como domínio próprio e da própria propriedade. Há que se descontruir também a “virilidade carnívora” que faz do soberano a figura do homem, do padre, do macho que “devora” todo o outro. Desconstrói-se então, também, certo trato político com os animais, certas políticas da animalidade que reduzem o animal ao lugar da disponibilidade, da “possibilidade” para o homem potente, que “pode” dispor de todo o vivente. Há um próprio do homem a desconstruir, mas um “próprio” (desapropriado) prometido a pensar. Se o primeiro próprio implica soberania, o segundo tem de implicar hospitalidade. VI. SACRIFÍCIO DO SACRIFÍCIO O que resiste à economia do sacrifício que funda as políticas possíveis da soberania é o resto. Há uma resistência, uma resirestância do outro: o outro vivente (animal, humano) é o que não pode ser apropriado pelo sujeito (apesar de que a dialética da constituição do espírito assim o entende), o outro é o que resiste à lógica da soberania. A lógica da soberania só pode dar conta do mesmo, mas em seu trabalho devorador de todo o diferente deixa claro que o segredo da política é a vida. Isso é o que a lógica da soberania quer subjugar e devorar, isso é o que o soberano quer dominar e engolir para se erigir como soberano majestoso. Essa é a bobagem do eu que quer ocupar todo o espaço. Como salienta Simone Regazzoni, “a questão da Khôra é uma questão hiperpolítica, ou melhor, a questão da hiperpolítica da desconstrução como política do acontecimento”. Lendo em choreo um movimento que implica retirar-se, e ao mesmo tempo avançar, irromper, Regazzoni destaca uma lei de fuga ( anachoresis ) da comunidade que é, ao mesmo tempo, a hipérbole de sua possibilidade. A comunidade anacoreta dos que amam alijar-se é tema de Políticas da Amizade , seguindo os rastros nietzschianos da comunidade dos super-homens. O super-homem é promessa do por-vir, por isso tem o caráter do impossível derridiano. Por essa razão, deve-se liberar esse por-vir de toda ideia de horizonte possível. Há “regras para o impossível”: quase proposições aforísticas que, como ressalta Derrida, permanecem “oblíquas” em sua relação com os textos que tratam do impossível. Esta obliquidade não significa tangenciar a pergunta, mas sim “responder tangencialmente”, intentando conectar essas regras com retidão e de maneira inflexível com as problemáticas do dom, do perdão, da hospitalidade. Nessa tensão entre o impossível e o insustentável (a insustentável posição de querer elaborar “regras” para o acontecimento) se abre esse outro paradoxo da decisão: “a decisão responsável deve ser essa impossível possibilidade de uma decisão ‘passiva’, uma decisão do outro em mim que não me exonera de liberdade nem de responsabilidade alguma.”

Essa tensão da linha insustentável do possível-impossível se vincula com a problemática da destinerrância: somente é possível a “retidão” se existe essa possibilidade de que a carta não chega ao destino, de que haja malentendido, de que não haja concordância plena entre a pergunta e a resposta. Somente há ética, na desconstrução, se há risco. Se não houvesse desajuste, não haveria desajuste e erro na interpretação possível, o por-vir estaria proibido, não haveria acontecimento (porque tudo estaria transparentemente determinado e ajustado, e o outro chega no desajuste, na irrupção, na imprevisibilidade). Responsável frente ao outro: responsável frente a todo outro, humano ou animal, responsável diante de todo vivente. Nesta responsabilidade, talvez, chegará um dia em que o viver-com não seja um modo de subjugação do vivente. Cabe se pensar, então, a impossível possibilidade do sacrifício do sacrifício: Por conseguinte, a autoimunização e o sacrifício do sacrifício. Este representa sempre o mesmo movimento, o preço que há de se pagar para não ferir ou danificar o outro absoluto. Violência do sacrifício em nome da nãoviolência. O respeito absoluto ordena, em primeiro lugar, o sacrifício de si mesmo, do interesse mais estimado. Já em “Il faut bien manger” se projetava esta problemática do “sacrifício do sacrifício”, e da inevitabilidade, no âmbito da política possível, do sacrifício. No âmbito do direito somos sujeitos calculáveis e de cálculo, e o possível é a hospitalidade condicionada, que “calcula” e regula a chegada do outro. É no âmbito da justiça, da política impossível, que tem sentido a noção de “sacrifício do sacrifício”, em virtude desse respeito ao outro que supõe o sacrifício do ipse . A autoimunização, por sua parte, remete à autoinfecção de toda autoafecção. A soberania, ao se conceber como incondicional, tem a forma da indivisibilidade por assumir na decisão excepcional o instante sem tempo. Essa autoimunidade que a afeta ao mesmo tempo a infecta: o si mesmo, o ipse , encontra-se tão infectado, apesar de sua intenção majestática de se impor por sobre todo fora do tempo, que, na decisão soberana, necessita do outro. O ipse está infectado pelo acontecimento, pelo tempo e pelo outro. Deste ponto de vista, a autoimunização permite dar conta dessa passividade e vulnerabilidade ainda no mesmo ipse soberano. Por isso assinalava anteriormente que em A besta e o soberano essa desconstrução da soberania em sua incondicionalidade dá lugar a uma incondicionalidade sem soberania. Por isso a contínua imagem de encenarem juntos, ao longo do seminário, a besta e o soberano, a quem tem sido sempre um “quê” (a coisa, o disponível, o subjugável) e a quem tem sido sempre o “quem” (quem se impõe, falocraticamente, sobre esse “quê”). Deixar vir ao outro é a expressão de uma potência sem poder, sem soberania, e por isso se vincula com o impossível. Toda comunidade está afetada por essa autoimunidade, que é a que permite a sobrevivência espectral:

Comunidade como auto-imunidade co-mum: não há comunidade que não alimente sua própria autoimunidade, um princípio de autodestruição sacrificial que arruína o princípio de proteção de si (da manutenção da integridade intacta do eu mesmo), e isso com vistas a alguma sobre-vivência invisível e espectral. Esta atestação autocontestatária mantém a comunidade autoimune em vida, quer dizer, aberta a outra coisa distinta e que é mais que ela mesma: o outro, o por-vir, a morte, a liberdade, a vinda ou o amor do outro, o espaço e o tempo de uma messianidade espectralizante para além de qualquer messianismo. Os maiores problemas políticos a nível internacional são hoje temas de soberania: é necessário dissociar soberania de incondicionalidade, como é necessário dissociar Deus da onipotência. A soberania, que se tem pensado sempre como incondicional, é uma intenção de se imunizar contra o outro, que impede todo acontecimento. Derrida pretende pensar uma incondicionalidade sem soberania: essa é a justiça indesconstrutível. Justiça que ao “deixar-ser” ao outro se revela como im-potência para o potest do ipse , já que o outro é o que não pode ser apropriado, dominado. Essa promessa que é o outro, essa promessa incerta, pois não se pode prometer senão o que está em risco (que sentido teria prometer o seguro?), é aterrorizante, porque rompe todo o horizonte de calculabilidade e previsão. Se “a democracia por-vir seria como a khôra do político”, autoimunização e sacrifício do sacrifício são nomes para pensar a democracia por-vir nessa figura sem figura do “deserto no deserto”. Nomes desmesurados, excedidos, porque “não se pode pensar, desejar nem dizer mais que o impossível, na medida sem medida do impossível”. 1 Tradução de Denise Dardeau (PPGF/UFRJ). BABEL DERRIDA E O MONOLINGUISMO: DA RAZÃO PURA À RAZÃO MARRANA OLGÁRIA MATOS (USP/UNIFESP) O Monolinguismo do Outro evoca a França vencida pelas forças de Hitler e ocupada pelo exército nazista a partir de 1940, bem como a política racista adotada pelo governo de Vichy. Com as leis de Nuremberg de 1934, judeus e ciganos perderam a nacionalidade alemã, o mesmo ocorrendo na França. Francês judeu nascido na Argélia, criança, só conhece a língua oficial do Território de Ultra-Mar. Contrariando a ideia corrente de a língua natal ser propriedade originária de que se é o depositário ontológico, Derrida reflete sobre a natureza desse laço patrimonial e da retórica do pertencimento. Na França ocupada, provados de cidadania, os franceses judeus falam uma língua que se torna a do Outro, produzindo-se uma distância particular, distância não do mais afastado, mas no mais próximo. O exílio, o isolamento e a solidão revelam o que o conforto sedentário e a adequação a si mesmo dissimulam. Essa perda repentina da cidadania e da língua desconstrói a ilusão identitária, afetiva ou territorial: Imagine, pense em alguém que cultivasse o francês. O que se denomina francês. E que o francês cultivaria. E que, cidadão francês ainda por cima,

seria este sujeito, como se diz, de cultura francesa. Ora, um dia, este sujeito de cultura francesa viria dizer a você, em bom francês: “Eu só tenho uma língua e ela não é minha.” (DERRIDA, 2001c, p.13) Entre 1940 e 1943, a comunidade judaica da Argélia foi privada de cidadania e nacionalidade, “sem poder recuperar nenhuma outra. Nenhuma”. Eis assim uma comunidade – que falava somente o francês “colonizado”, sem manter praticamente laços com a tradição judaica e com as línguas locais, como o árabe e o kabile – em desintegração. Exilado na própria terra, vivendo um êxodo na imobilidade, o perseguido vêse excluído do campo jurídico, reduzido ao homo sacer e à “vida nua”. O estrangeiro não é mais quem vem de fora, mas aquele que não está em seu lugar em nenhum lugar. Em estado de “vazio radical”, Derrida pôde compreender que a transmissão de uma língua não é nem natural nem artificial, ¹ mas é procura de si e tarefa do pensa mento, um estar a sós consigo mesmo e um extroverter-se em direção ao Outro com as aporias que isso implica. No ensaio “Violência e Metafísica”, Derrida revisita Ulisses , de Joyce, reavendo a questão: “Nós somos gregos? Nós somos judeus? Mas quem, nós? Somos primeiro judeus ou primeiro gregos? Se para um “judeu grego” ² como Benjamin, o messianismo e, portanto, a ideia de “origem”, é um operador essencial, Derrida é um “grego-judeu” para quem a “origem” é objeto da desconstrução. ³ Para Derrida, a Filosofia é a “ciência primeira”; para Benjamin, a Teologia. Derrida desconstrói a noção de origem e, com ela, a ideia de Nação, compreendendo-a não a partir da política, mas a partir da língua, na diferença ( différance ) entre Nação política e Nação cultural, desconstrução que interroga a natureza da hierarquia política das Nações e do poder de que seu prestígio é portador. A desconstrução não é a passagem da estabilidade – garantida pela ideia de centro – para a “modernidade líquida”, mas é a apreensão da flexibilidade e do descentramento. Eis porque a différance não se refere mais ao logos , mas a forças que não se estabilizam em uma identidade: Aquilo que se deixa designar por différance não é simplesmente ativo nem simplesmente passivo, antes anunciando ou reclamando algo como a voz média, dizendo uma operação que não é uma operação, que não se deixa pensar como paixão nem como ação de um sujeito sobre um objeto, nem a partir de um agente nem de um paciente, nem a partir nem em vista de algum destes termos (DERRIDA, 1991, p. 35). A différance traz consigo o conceito freudiano de Entstellung – deformação e deslocamento, ⁴ pois a “ défigura tion ” diz respeito a uma incerta territorialização. Diferença e diferenciação, presentes no diferir, no adiamento, envolvem o tempo. É este o percurso derridiano em Fichus, discurso de recepção do prêmio Adorno em Frankfurt. Referindo-se a um sonho de Walter Benjamin, Derrida desenvolve uma segunda Traumdeutung . Sono e vigília, “ rêve” e “ reveil ” associam-se em um “transe sonanbúlico”, na partilha incerta entre o sonho e seus restos

diurnos, entre a “inércia” do sono e a atividade diurna, entre a consciência sonolenta e a vigília do inconsciente que vela e vigia todos os estados da consciência desperta. Transe sonambúlico dos insones, estes “estados segundos” da consciência trazem a marca de uma atividade passiva, como as fotografias das ruínas de Atenas, em que o fotógrafo se fotografa fotografando, em meio “ao dia e da noite do inconsciente”, da arqueologia e da psicanálise que trazem à memória derridiana “Uma perturbação da Memória na Acróple” de Freud. Perguntando-se em que pensava o fotógrafo ao “arquivar a velocidade da luz com a própria velocidade da luz”: ele pensava na Atenas de todos os dias, na Atenas de hoje ou na Atenas eterna(aei)? Já estaria assombrado pela estratificação de todas as memórias de Atenas que ele teria desejado, nesse dia, hoje, sob este sol, trazer aos olhos? [...]. É o mesmo que perguntar o que ocorre quando, fotografado (se)fotografando, fotografado-fotografando, ativo e passivo ao mesmo tempo – que sempre seria essa experiência autoafetiva de passatividade, no dizer de Derrida. ⁵ O próprio Fichus ⁶ é a narrativa deslocada de um sonho, que não é do próprio sonhador, mas de um outro que não sonhou esse sonho e que o relata em um limiar conceitual, ultrapassando as convenções do gênero “interpretação dos sonhos”: neste exato momento, dirigindo-me a vocês, de pé, de olhos abertos, prestes a agradecer-lhes do fundo do coração, com gestos unheimlich ou espectrais de um sonâmbulo, até mesmo de um assaltante vindo para açambarcar um prêmio que não lhe estava destinado, tudo se passa como se eu estivesse sonhando. Até mesmo confessar: em verdade, lhes digo, ao saudá-los com gratidão, penso estar sonhando (DERRIDA, 2001a, p. 11). Para considerar este estado e desenvolver suas análises, Derrida “refigura” palavras, desloca um substantivo ou um adjetivo para um verbo, mas um verbo em sua forma simultaneamente ativa e passiva: “eu sonambulo”, diz Derrida. Com isso, o filósofo não somente transgride, desestabilizando-os, o estado de sono e o estado de vigília, como espectraliza – decompondo-os e fantasmando – estados de consciência, sonhando de olhos abertos e dormindo de pé. Se Fichus é um sonho que Derrida herdou de um outro, a questão é saber se quem sonha o sonho é aquele que o sonha ou aquele que o interroga. Questão que se desvia para uma outra, a da diferença entre sonho e realidade. Nas palavras do filósofo: “o sonhador pode falar de seu sonho sem acordar?” Possíveis respostas, Derrida as encontra no âmbito da filosofia, da literatura e seus afins. Na filosofia, o “imperativo racional da vigília”, “do eu soberano”, pois “o que é a filosofia para o filósofo? O acordar e o despertar” (DERRIDA, 2001a, p. 13). Mas “a resposta do cineasta, do dramaturgo, do escritor, do músico, do pintor e mesmo do psicanalista” pode ser outra: “não responderiam não, mas sim, talvez, às vezes [...]. Há pois uma lucidez, uma Aufklãrung do discurso sonhador sobre o sonho [...]. Hesitando entre o ‘não’ e o ‘sim, às vezes, talvez’, [acolhe-se] os dois”. ⁷

O sonho de Benjamin interrogado por Derrida é a hermenêutica de um sonho que é de um outro, como a língua que não é a sua. E entre os sonhos e os sonhadores, como entre as línguas, estabelecem-se alianças, senhas, passagens e “traços”. Esta não coincidência de uma coisa consigo mesma não significa que ela está fora de si, pois ela é “uma negatividade sem negação”, inscrições sem espessura, expressões de um “entre-dois”, aparição e desaparecimento em um intervalo incerto entre a ausência de uma presença e a presença de uma ausência. Por isso, Derrida indica os “espectros”, espectros da desconstrução, da “fantomologia” ( hantologie) . “Je suis hanté ” é ser assediado por algo do passado, por rastros obsessivos cuja arquiescritura são as ambivalências judaico-egípcias de Moisés. A “fantasmologia” diz respeito à não identidade de toda identidade, na qual não há o retorno a uma especificidade anterior, mesmo que desejada, pois no mais profundo do que é específico grava-se a marca indelével do Outro, por mais esgarçada que esteja: “o espectro”, escreve Derrida, é uma incorporação paradoxal, o tornar-se-corpo, uma certa forma fenomenal e carnal do espírito: nem alma nem corpo, mas também um e outro. Pois a carne e a fenomenalidade, eis o que dá ao espírito sua aparição espectral, mas que desaparece já na aparição, na própria vinda do fantasma ou retorno do espectro. Há algo do desaparecido na própria desaparição, como reaparição do desaparecido. O espírito, o espectro, não é a coisa mesma [...], mas [o que] têm em comum, não se sabe o que é , o que é presentemente. É alguma coisa que não se sabe, justamente, e não se sabe se, precisamente, isto é , se isto responde por um nome e corresponde a uma essência. Não se o sabe: não por ignorância, mas porque este nãoobjeto, este presente não presente, este ser-aí de um ausente ou de um desaparecido não procede mais do saber (DERRIDA, 1993, p. 25-26). Quando Derrida afirma ter uma única língua e que ela não é a sua mas de um Outro, dá sequência, deslocando-a, à interpretação de Freud sobre a questão da identidade e da origem. Nesta refiguração da língua encontra-se o sentimento “perturbante”, a situação próxima à do pária, no paradoxo da impossível inclusão e da impossível exclusão. Derrida elabora a condição daquele que está à margem, sem uma referência a uma comunidade política. Na sequência da Primeira Guerra Mundial, a queda do Império russo, do Império austro-húngaro e do otomano, bem como os reordenamentos políticos do Leste europeu, as leis raciais sob o nazismo e a guerra civil espanhola disseminaram na Europa uma população de refugiados como fenômeno de massa contínuo. O apátrida e o refugiado, embora comportem diferenças com respeito a pertencimentos legais e simbólicos, dizem respeito, nos Estados industrializados, a “residentes não estáveis” e não cidadãos, que não podem nem ser naturalizados nem repatriados. A desconstrução derridiana busca o que na marginalidade é marginal e não o é, suscitando a aporia da proximidade na distância e da distância na proximidade. E Derrida o faz pela personagem interposta de Espinosa e Flaubert. Em “Une idée de Flaubert”, Derrida trata das relações do romancista com a filosofia e sua “hiperbólica admiração” por Espinosa:

“Quel homme! quel cerveau! Quelle science et quel esprit!” (1987, p. 310). Se Flaubert dirige-se à potência crítica do Tratado Teológico-Político – em que Espinosa discorre sobre Moisés e o monoteísmo, a profecia e a eleição do povo –, evoca, também, a Ética e a “ ideia da ideia”, a reflexão: É exatamente da mesma maneira que se ordenam e se concatenam os pensamentos e as ideias das coisas na mente que também se ordenam e se concatenam as afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas no corpo [...]. À medida que a mente compreende as coisas como necessárias, ela tem maior poder sobre os seus afetos, ou seja, deles padece menos (ESPINOSA, 2009, p. 373-375). Fazendo da razão um afeto, rompendo com a ideia do perfeito e do imperfeito e da hierarquia que implicam, refletindo sobre a potência de ser, agir e pensar que se encontra na paixão e na ação, Espinosa se diferencia do logos metafísico. Ao considerar a “Ideia” espinosana – nem platônica nem cartesiana (tampouco hegeliana ou marxista) – Derrida escreve: “a ideia de Espinosa [...] não dá lugar a nenhuma representação, mimética ou não [...], e Espinosa se opõe à tradição, principalmente à ideia cartesiana, o ato ou a afirmação [opondo-se] à cópia reprodutiva, ou até mesmo a seu modelo.” Sem muitas referências a Espinosa, Derrida, não obstante, encontra-se “impregnado” de sua presença, como Flaubert: “Embora Flaubert, admirador de Espinosa, não se refira nunca à ideia espinosana enquanto tal”, o próprio silêncio faz pensar que a força afirmativa dessa ideia confundiu-se, de alguma maneira, “com o ato de sua escritura, com a literatura, com sua própria obra” (DERRIDA, 1987, p. 323-324). Com isto, Derrida indica sua aproximação da filosofia de Espinosa, o filósofo crítico do “logos” dualista e mimético, o “filósofo da vida”. Porque o conceito espinosano de conatus é o esforço de autopreservação e de crescimento de sua vitalidade, dele se diferencia Freud que opõe drasticamente a “pulsão de morte” ao conatus. Em Espinosa, trata-se da felicidade que nasce da alegria e da companhia, da amizade: como a razão não exige nada que seja contra a natureza, ela exige que cada um ame a si próprio; que busque o que lhe seja útil, mas efetivamente útil; que deseje tudo aquilo que, efetivamente, conduza o homem a uma maior perfeição; e, mais geralmente, que cada um se esforce por conservar, tanto quanto está a seu alcance, o seu ser [...]. É totalmente impossível que não precisemos de nada que nos seja exterior para conservar o nosso ser, e que vivamos de maneira que não tenhamos nenhuma troca com as coisas que estão fora de nós [...]. Dentre elas, não se pode cogitar nenhuma outra melhor do que aquelas que estão inteiramente de acordo com nossa natureza. [...] Disso se segue que os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que buscam, sob a condução da razão o que lhes é útil, nada apetecem para si que não desejem também para os outros e são, por isso, justos, confiáveis e leais (ESPINOSA, 2009, p. 287-289). Do mesmo modo que a liberdade de Espinosa é a consciência da necessidade e, assim, é o devir ativo de uma paixão transformando-se em ação, em Derrida há no conceito de différance uma “conciliação”, a paixão não é só passiva, a diferença não é mais referida a um logos, porque

diferença e diferenciação de forças não poderiam ser neutralizadas em uma identidade ou síntese. Se Espinosa critica a noção de “povo eleito” e de “identidade judaica” que, como toda “eleição” e identidade fixa, engendram, ao excluir o outro, a própria exclusão, Derrida reflete sobre a colônia e a metrópole para além do binômio centro-periferia, judeu-gentio, argelinofrancês. Que se pense em Espinosa na Holanda e Derrida na Argélia, no marrano seiscentista e no “apátrida” sob as leis de Vichy (AGAMBEN, 1994), na différance entre Derrida e Espinosa. Na proposição 17 do Livro III da Ética, Espinosa define a “flutuação da alma” como a “estrutura do Espírito que nasce de dois afetos contrários”, base da ambivalência de quem se vê dilacerado entre dois polos contraditórios, entre um desejo de pertencimento (ou de repertencimento) ao povo judeu enquanto povo eleito e, por outro, a reticência, o recuo crítico com respeito ao retorno à comunidade judaica de Amsterdã, quer dizer, à instituição do judaísmo rabínico. Abensour reflete sobre a condição do judeu enquanto “cristão novo” e como “judeu novo”. Para compreender o marrano, Abensour considera-o como duplo em si mesmo. De início, o marrano foi o “cristão novo” sob as leis da conversão forçada na Espanha católica de 1492 e, depois da imigração para a Holanda, com a liberdade de culto, pôde reaver sua identidade de judeu e de praticante da lei mosaica, tornado-se, os marranos, então, “judeus-novos”. Sabe-se com Weber que o povo judeu, até certo ponto, poderia ser definido como “povo pária”, uma comunidade-hóspede em um meio estrangeiro do qual se diferencia formal, ritual e efetivamente. Sob os constrangimentos de uma conversão forçada, a condição marrana é a de viver em dois planos simultâneos, na vida pública, externamente, como novos cristãos, e na vida privada e na comunidade judaica continuando a recusar a lei de Cristo. Neste sentido, encontra-se nos marranos um “critpo-judaísmo”, cedo “deformado”, “deslocado”, “desfigurado, reconfigurado: Uma outra dualidade surgia em suas vidas: a da essência e da existência, da realidade da vida e do que deveria ser seu sentido profundo. Assim, o marrano judaizante não vivia apenas a alienação de seu meio católico mas também uma íntima, em seu próprio ser, que ele não podia expor à luz do dia; assim sua vida e sua essência permaneciam perpetuamente opostas (YOVEL, 1991, p. 42). Os marranos novamente judeus não reencontraram uma identidade plena, que pudesse ultrapassar a divisão interna vivida antes por seus antepassados. Se a oscilação do cristão novo se dava entre uma existência pública cristã e uma clandestina mosaica, a do judeu novo é outra, pois flutua entre seu novo pertencimento ao povo eleito e uma irreprimível distância crítica em face de um judaísmo que agora não é mais imaginário e fantasmado, mas real. Esta relutância e esta resistência produziram-se na interiorização do cristianismo e da influência do epicurismo com respeito à ideia de religião revelada, o epicurismo aplicado agora ao judaísmo. Assim, a luta com a Inquisição é substituída pelo conflito com as autoridades rabínicas do “judaísmo real”: “o conteúdo do judaísmo desaparecera do horizonte dos marranos e não poderia ser de outra forma: seus laços com o

judaísmo eram suficientemente fortes para lhes ser difícil viver ingenuamente no interior do mundo cristão, mas fracos demais para tornar possível a vida no interior do mundo judaico” (STRAUSS, 1996, p. 34-49). Esta tensão entre duas religiões – o judaísmo e o cristianismo – produz dúvidas, idas e vindas, afastamento cético, mas também interferências, hibridizaçãoes, “duplas sinceridades” (WACHTEL, 2001, p. 15). A relação ao Outro se realiza como “traço”, como “rastro” do Outro em mim, como presentificação “espectral” ou “conciliação”, como nas línguas. Nas Margens da Filosofia trata-se da différance que “não é um processo de “propriação” em nenhum sentido da palavra, pois, ao contrário da “propriação” heideggeriana (1990), não há “propriação” que não implique em si mesma a dimensão mais originária ainda da “despropriação”. Por isso, para Derrida, a différance tem os sentidos de diferir, de ser a raiz comum das oposições, de produzir oposições e desdobramentos da diferença (1972, p. 17). Assim também nas línguas. No judaísmo, a língua do paraíso, a língua originária anterior a Babel, era o hebraico que, como tal, era uma e uma. A multiplicidade das línguas foi, como para Benjamin, sua queda; já para Derrida, a língua anterior a Babel era já múltipla em si mesma. Diferenças que comunicam diferenças, a língua da origem é Pentecostes avant-la-lettre, em que todos falavam línguas diversas mas em que todos se entendiam em uma espécie de “tradução simultânea”. Derrida, “grego judeu”, aproxima-se do mundo grego. Se, para este, a língua da Idade de Ouro era o grego, ela o era por razões diversas do hebraico, pois Atenas procurava na origem a différance , sua potência alucinatória e surreal, a diversidade dos sentidos, enquanto Jerusalém encontrava na língua do Paraíso uma origem unitária e essencial. Do heteros ao allii, a língua, para Derrida, é mista, “contaminada”, híbrida. Se o “ heteros ” é o outro do “Um”, em si mesmo inalterado, “ allii ” são os outros no Mesmo. Se Babel é condenação divina e perda da “língua universal”, agora disponível à tradução, esta dá início à desconstrução da torre como língua universal e à violência: “[Deus] dispersa a filiação genealógica. Ele rompe a linhagem. Impõe e interdita, simultaneamente, a tradução” (DERRIDA, 1987, p. 207). Necessária e impossível, a tradução diz impropriamente o próprio, Babel significando, justamente, “confusão”. Para Derrida, o “marrano” sem melancolia, o desenraizamento originário encontra-se no interior das próprias línguas, ⁸ as palavras contendo, como pharmakon , pelo menos duas significações, solidária uma da outra ou das outras, não admitindo qualquer divisão interna ou externa, uma vez que só se conhece a própria língua se nos relacionamos com ela como língua estrangeira:

se amo a língua francesa como amo minha própria vida, às vezes mais do que a ama um francês de origem, é porque a amo como um estrangeiro que foi bem acolhido e se apropriou dela como se para ele fosse a única possível [...]. Todos os franceses da Argélia compartilham isto comigo, sejam ou não judeus [...]. Tenho apenas uma língua, mas, ao mesmo tempo, de maneira singular e exemplar, esta língua não me pertence [...].Uma história singular exacerbou em mim esta lei universal:uma língua não pertence. Não pertence por essência (DERRIDA, 2006, p. 35-36). A ideia de “eleição” e “origem” de uma língua acarreta os particularismos da “eleição-exclusão”. Neste sentido, não há línguas particulares que se hierarquizam entre si, nenhuma língua eleita por natureza, em sentido próximo ao que Espinosa, no capítulo “Sobre a Vocação dos Hebreus. Ou se o dom de profecia lhes é próprio” de seu Tratado Teológico Político ”, questionou na ideia de eleição do povo judeu, segundo a qual existiriam duas leis naturais diversas, uma para os judeus, outra para os gentios, pois “a verdadeira felicidade e a verdadeira beatitude consistem para cada um apenas no gozo do bem e não nesta vanglória de desfrutar sozinho de um bem, os outros sendo excluídos”. ⁹ Política da amizade, subjaz às reflexões de Espinosa e Derrida a consideração do que constitui uma sociedade e os laços entre os homens, devendo-se observar o que há em comum e não o que os separa: “o bem supremo daqueles que procuram a virtude é comum a todos, e todos podem igualmente desfrutar dele” (ESPINOSA, 2009, proposição 36). Neste sentido, a eleição tem por efeito produzir distância e fratura entre aqueles que a eleição congrega e os que não são chamados, a eleição expressando um “orgulho coletivo”: vemos assim que facilmente acontece que o homem faz de si mesmo e da coisa amada uma estimativa acima da justa e, contrariamente, de quem odeia, abaixo da justa. Essa imaginação, quando diz respeito ao homem que faz de si mesmo uma estimativa acima da justa, chama-se soberba e trata-se de uma espécie de delírio (ESPINOSA, 2009, Livro III, proposição 26, p. 193). Esta ilusão de superioridade arruína a convivência e a felicidade, sendo contrária à beatitude. A felicidade não seria menor “se Deus houvesse chamado todos os homens para a salvação da mesma maneira”. Por isso, quando Moisés dá a Lei aos judeus, ele os instrui “como os pais têm o costume de ensinar as crianças desprovidas de bom senso”. Eleição e origem não atestam a sabedoria de um povo, são sintoma de puerilidade, como a xenofobia, os nacionalismos, os chauvinismos. A busca do “universal” espinosano do conatus e seus devires, a différance de Derrida e suas semantizações desfazem a existência condenada ao acosmismo do pária (ARENDT, 1989), abrindo-se para o acolhimento do Outro, para a amizade e a hospitalidade. Assim, se “eu só tenho uma língua e ela não é a minha” é por ser ela, simultaneamente, minha e não minha, como na cidade não há dualismo entre o residente e o estrangeiro. Um é um e outro, sempre hóspede e estrangeiro.

Derrida inicia seu Hospitalidade, indagando: “a questão do estrangeiro não seria uma questão de ‘fora’, vinda de um ‘fora’”? A “universalidade” não é uma ideia abstrata porque ela não se submete aos critérios do logos. Por isso, ao analisar o pensamento de Lévinas, Derrida destaca um sentido peculiar da “eleição” de Israel como estranhamento absoluto e exemplar de um povo sem terra de origem. Entre a Grécia e Jerusalém, entre Ulisses e Abraão a diferença é a que existe entre nostos e êxodos , duas formas de viagem e de partida. Se a primeira vive à luz do retorno a Ítaca, a segunda aspira uma pátria onde não se nasceu e cada passo dado em sua direção não aproxima uma terra, não é uma casa que já pertencia: “a afirmação da verdade nômade”, observa Blanchot, “distingue o judaísmo do paganismo [...] [O nomadismo é a resposta a uma relação para a qual a posse não basta. Este movimento nômade afirma-se não como privação perene de uma sede, mas como um modo autêntico do habitar” (BLANCHOT, 1969). Assim, a questão do que vem de fora e o que é de dentro é sempre algo que provém do estrangeiro, o portador da questão. Com efeito, no Sofista de Platão, é o estrangeiro que propondo a intolerável questão, a questão parricida, contesta a tese parmenidiana, põe em questão o logos de nosso pai Parmênides [...]. O estrangeiro abala o ameaçador dogmatismo do logos paterno: o ser que é, o nãoser que não é. Como se o estrangeiro devesse começar contestando a autoridade do chefe, do pai, do senhor, da família, do “dono da casa”, do poder de hospitalidade (DERRIDA, 1997). Neste horizonte, o estrangeiro é o “terceiro”, alguém que é sempre e apenas um intruso, aquele que “chegou primeiro”, que “nos priva da segurança e faz advir o provir”. Este “convidado” ou “visitante inesperado” vem do futuro, contrariando a noção segundo a qual o que nos acontece é determinado em relação ao passado: “acontecimento inesperado e imprevisível de quem chega, em qualquer momento, adiantado ou atrasado, na acronia absoluta, sem ter sido convidado, sem avisar, sem horizonte de espera” (DERRIDA, 2001b, p. 296). Se uma língua é nossa, ela o é como uma casa, “só possuída porque é desde sempre “lugar de hospitalidade” para seu proprietário. Neste sentido, o espaço que hospeda é sempre de um outro e para outros, não havendo um retorno a uma propriedade originária. A hospitalidade precede a propriedade: o anfitrião que acolhe e que acredita ser o proprietário do lugar é, em verdade, hóspede recebido em sua própria casa. Ele recebe a hospitalidade que oferece na própria casa, recebe-a da própria casa-que no fundo não lhe pertence [...]. Quem convida é convidado do seu convidado. Aquele que recebe é recebido, recebe-o a hospitalidade no lugar que considera ser sua própria casa e assim a própria terra (DERRIDA, 1997, p. 103-104). Nesta proximidade dá-se o enigma dos contrários, como ospis e hostis , a hospitalidade e a hostilidade, a proximidade na distância e a distância na proximidade. Desconstruindo philia e neikos , amor e ódio, amigo e inimigo, Derrida descontroi a dualidade, toda oposição que prematuramente certifica a oposição, para encontrar o “exceto” , a “excedência” dessa oposição, o

“acordo”, que é, para Derrida, a paz. A recusa da partilha abrupta, de procedência metafísica, não convém a épocas que se encontram sob uma lei de decisão imediata, sempre violenta, lei do aqui e agora: “a decisão passiva”, escreve Derrida, condição do acontecimento, é sempre em mim, estruturalmente, um ato de decisão dilacerada como decisão de um outro. Do outro absoluto em mim, do outro como absoluto que decide por mim em mim. Absolutamente singular em princípio, segundo seu conceito mais tradicional, a decisão não é apenas e sempre excepcional, ela faz uma exceção de mim. Em mim. Eu decido, eu me decido e soberanamente. Isto quer dizer: o outro de mim, o outro eu como outro e outro de mim, faz ou faz exceção do mesmo. Norma suposta de toda decisão, esta exceção normal não exonera de nenhuma responsabilidade. Responsável por mim diante do outro, sou primeiramente e também responsável pelo outro diante do outro (DERRIDA, 1994, p. 87-88). Todas as vezes que se toma uma decisão sente-se a injustiça cometida contra a opção desconsiderada, fechando-se uma armadilha ao nosso redor: “quando se elege alguma coisa”, escreve Peter Sloterdijk, “expõe-se ao risco de identificação, e evitá-la sempre foi a inquietação imperiosa de Derrida. Seria preciso considerar a desconstrução, antes de tudo, como um procedimento destinado a defender a inteligência contra as consequências da unilateralização” (2007, p. 55). Eis por que Derrida inverte o enunciado atribuído a Aristóteles – “ó, meus amigos, não há nenhum amigo” – seguindo o paradoxo de Nietzsche – “Inimigos, não há inimigos”. E isto no sentido em que Montaigne anotou: “ame-o – dizia Chilon – como se você devesse um dia odiá-lo; odeie-o como se devesse amá-lo.” Ou, nos versos de William Blake citados por Derrida: “tua amizade muitas vezes me feriu o coração/sê meu inimigo por amor à amizade.” Formulação que deve ser aposta àquela de Nietzsche, quando escreve: “quem vive da luta contra um inimigo tem interesse que ele continue vivo” (NIETZSCHE, 2005, parágrafo 531). Derrida compreende esta afirmação nos termos de uma “amizade superior, um oxímoro: o “inimigo fiel” Ética hiperbólica aqui como a do dom ¹⁰ que, no limite de sua impossibilidade, não pode se saber doação, dom que não opera no registro da retribuição, que se esquece no próprio ato de dar, como pura gratuidade e graça. Como a hospitalidade, o acolhimento incondicional do visitante, do “suplicante”. Como Édipo que, deposto, cego e envelhecido, chega a Colono, e é recebido pelo rei, Édipo que não é mais Édipo, mas a quem se diz como a todo visitante inesperado e suplicante: “entre, quem quer que sejas e qualquer que seja teu nome, tua língua, teu sexo, tua espécie, que sejas humano, animal ou divino.” Nessa indecidibilidade das fronteiras, da delimitação de um território estável, a condição de Édipo é exemplar: “para oferecer hospitalidade é preciso partir da existência certa de uma morada ou então apenas a partir do deslocamento do sem-abrigo, do sem casa que pode se abrir a autenticidade da hospitalidade?” (DERRIDA, 1997, p. 56). Apenas aquele que perdeu uma morada, que fez a experiência da “desolação”, da perda de todo pertencimento, pode oferecer a hospitalidade. Esta hospitalidade sem reivindicações é o sentido da hospitalidade que não faz qualquer referência à soberania: “para uma tal experiência [da

hospitalidade], que se deixa atravessar por aquilo que chega e por quem chega, por aquilo que vem e por quem chega, do outro por vir, uma certa renúncia incondicional à soberania é solicitada a priori ” (DERRIDA, 2003, p. 12-13). Esta hospitalidade radical, absoluta, é, simultaneamente, inviável e necessária, permite ao outro ser outro, porque acolhe o apelo daquele que está “sem mundo”, aquele que não fala nossa língua. Deve ser recebido, não na lógica da razão de Estado e dos direitos humanos universais, não por ser um homem como nós, mas porque ele traz consigo aquilo que nele não se reduz ao gênero e ao cálculo do necessário, tampouco à lógica da doação e da gratidão: “o convite, o acolhimento, o asilo, o alojamento passam [...] pelo dirigir-se ao outro.” Mas, “o que sempre está à espreita é o dilema entre a hospitalidade incondicional que vai além do direito, do dever e mesmo da política, por um lado e, por outro, a hospitalidade circunscrita pelo direito e pelo dever” (DERRIDA, 1997). A hospitalidade não pede ao outro traduzir-se em nossas tradições e nossa língua. Assim Derrida pode então dizer “eu só tenho uma língua e ela não é a minha”, e ter iniciado seu discurso em Frankfurt com as palavras: “eu peço desculpas, estou prestes a saudá-los em minha língua. A língua será de resto meu tema: a língua do outro, a língua do hóspede, a língua do estrangeiro, até mesmo do imigrante, do emigrado ou do exilado” (DERRIDA, 2001a). Na periferia do Império, judeu e sem cidadania, na condição de estrangeiro sem pátria, Derrida se vê privado da língua que não lhe pertence mais. Ao tê-la como língua estrangeira, pôde dizer amá-la e conhecê-la, pois só se conhece a própria língua quando a recebemos como língua estrangeira. Discursando em francês, na língua em que encontrou hospitalidade, nessa língua do Outro que é seu ethos , Derrida reconhece um “dom sem restituição, sem apropriação e sem jurisdição”. Ética hiperbólica, para além do “para além”, para além da jurisdição e do direito, é a política da amizade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, G. Au dela dês droits de l´homme:exile t citoyenneté europeenne. Revue Tumultes. Diderot: Université Paris, n. 5, novembre de 1994. ARENDT, H. Origens do Totalitarismo . São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BENJAMIN, Walter. A Tarefa do Tradutor. In: Illuminationen. Frankfurt: Suhrkamp, 1981. _. Correspondance , carta a Scholem de 13 de janeiro de 1924. _. Übver Programm der kommenden Philosophie! In: Illuminationen. Frankfurt: Suhrkamp, 1981. BLANCHOT, M. L´Enttretien Infini . Paris: Gallimard, 1969. DERRIDA, J. L´Écriture et la Différence. Paris: Seuil, 1967.

_. Positions. Paris: Minuit, 1972. _. Tours de Babel. In: Psyché. Invention de l´autre . Paris: Galilée, 1987. _. Margens da Filosofia . São Paulo: Papirus, 1991. _. Spectres de Marx. Paris: Gallilée, 1993. _. Politiques de l´amitié . Paris: Galilée, 1994. _. Athènes à l´ombre de l´Acropole . Athens: Olkos, 1996. _. Adieux à Lèvinas . Paris: Galilée, 1997. _. De l´Hospitalité . Paris: Galilée, 1997. _. États d´âme de la psychanalyse. Paris: Galilée, 2000. _. Fichus . Paris: Galilée, 2001a. _. “Le principe d’hospitalité”. IN: Papier Machine . Paris: Galilée, 2001b. __. O monolinguismo do outro ou a prótese de origem . Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001c. _. Vouyous . Paris: Galilée, 2003. _. Aprender por fin a vivir. Trad. Nivolás Bersihand. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. ESPINOSA, B. Ética . Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 (Livros III, IV e V). _. Traité Théologico-politique , III, 1 , Oeuvres III. Trad. Jacqueline Lagrée et Pierre-Françõis Moreau. Paris: PUF, 1999. FREUD, S. Obras Completas . Buenos Aires: Amorrortu, 1980, v. 23. HEIDEGGER, M. Identidade e Diferença. In: Questions I . Paris: Gallimard, 1990. NIETZSCHE, F. A Vida do Inimigo. In: Humano demasiado humano . São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SCONFELD, Ele. Hommage à Jacques Derrida. Cahiers d´Études Lévinassiennes , Paris: Editions Verdier, 4, 2005. SLOTERDIJK, P. Derrida, um egípcio: el problema de la Pirâmide judia . Trad. Horacio Pons. Buenos Aires: Amorrortu, 2007. STRAUSS, Leo. La Critique de la Réligion chez Spinoza. Paris: Cerf, 1996. WACHTEL, N. La Foi du Souvenir . Paris: Seuil, 2001.

YOVEL, Y. Spinoza et autres hérétiques . Trad. do inglês de Erci Beaumatin et Jacqueline Lagrée. Paris: Seuil, 1991. 1 Lembre-se de que as reflexões de Derrida se desenvolvem na plena vigência da linguística de Saussure, do estruturalismo de Lévi-Strauss e, mais recentemente, do linguistic turn e da “virada semiológica”. Do arbitrário do signo, passando pela língua como sistema até sua formalização em modelos, trata-se do que Derrida denomina “logocentrismo”, a subordinação da língua em sua différance à sua oralidade, segundo uma “metafísica da presença”. A oralidade – a fala e a voz – é considerada a “verdadeira racionalidade”, sendo a escritura uma extensão secundária ou suplemento da voz, uma tecnologia auxiliar inessencial com respeito à razão: Saussure observa que “a crítica filológica ainda é deficiente em um aspecto – ela segue servilmente a linguagem escrita e negligencia a linguagem viva. O efeito recíproco da escrita sobre a fala é errado, tais equívocos são realmente patológicos”. Para Saussure, a escritura é “não-relacionada [...] ao sistema interno da linguagem”. Derrida mostra, pela “desconstrução”, pela “différance” e pelo “traço” como a linguística e o estruturalismo operam segundo a oposição binária entre um núcleo interno puro ou origem (da linguagem, da voz) e a mediação externa desse cerne ou origem que seria a escritura. Para Derrida, a própria possibilidade de suplementação da linguagem oral expõe uma carência essencial no coração mesmo desse sistema linguístico autossuficiente e “autônomo”. Como, para Derrida, não há origem pura, à questão “quando começa a escritura”, Derrida responde “sempre já”. Postular uma origem da escritura é desconsiderar que a escritura é a estrutura de todos os sistemas complexos em todos os seus níveis. A escritura ocupa um campo mais amplo que o do estruturalismo, pois é a própria condição de possibilidade da escritura empírica e da linguagem em geral (DERRIDA, 1967, p. 227). A “virada linguística” e a semiológica são as figuras finais dos processos de formalização do pensamento e seu ideário de cientificização do pensamento. 2 Filosofia e teologia assim concebidas tratam da natureza do logos e das línguas. Para Benjamin, há uma língua originária que é, antes de mais nada, um “palácio ancestral” que não é um simples sistema de signos, nem instrumento de comunicação, mas um medium, um âmbito em que se dá toda a comunicação, em suas inscrições mais ou menos densas, e a passagem de uma a outra é a tradução: “para além da consciência de que o conhecimento filosófico é absolutamente certo e apriorístico, para além da consciência destes aspectos da filosofia que a identificam à matemática, Kant negligenciou completamente o fato de que todo conhecimento filosófico tem sua única expressão na linguagem, não em fórmulas e números” (BENJAMIN, “Übver Programm der kommenden Philosophie”!,1981.) Kant descuidou da metafísica da linguagem, da “língua pura” ( reine Sprache) , que reenvia não apenas à língua adamítica, que, na Bíblia, preexiste à dispersão das línguas pós-Babel, pois a reine Sprache é correlata à reine Vernunft . Essa língua anterior às línguas empíricas e que faz delas línguas é a língua da verdade, a que torna possível a tradutibilidade, mas em um sentido específico: “que a tradutibilidade seja essencialmente própria a certas obras, isto não quer dizer que sua tradução seja essencial para elas mesmas, mas que uma significação determinada, inerente ao original, exprime-se em sua tradutibilidade. Que uma tradução, por melhor que seja,

não significa nada para o original, é uma evidência (BENJAMIN, “A Tarefa do Tradutor, 1981). Porque o essencial de uma obra jamais se transfere para a tradução, Benjamin enfatizava a esterilidade da tarefa quando traduzia. Em carta a Hofmannsthal, escreve: “é claro para mim que todo trabalho de tradução, a menos que seja empreendido para fins práticos bem evidentes e constrangedores (cujo modelo é a tradução da Bíblia) ou com a intenção de estudos estritamente filológicos, contém necessariamente um quê de absurdo.” Daí, talvez, serem suas traduções de Baudelaire, formalistas e “escolares” ( Correspondance , carta a Scholem de 13 de janeiro de 1924, p. 376). 3 Essa formulação é feita por Ele Sconfeld, referindo-se à relação entre Derrida e Lévinas. Cf. “Hommage à Jacques Derrida”, in Cahiers d´Études Lévinasssiennes , n. 4, 2005. 4 Em Moisés e o monoteísmo , Freud desenvolve a concepção de um Moisés egípcio, tanto por sua nacionalidade quanto por sua cultura, e que – tendo adotado a religião monoteísta de Akenaton e Athon e sendo essa fé impopular no Egito –, procurando difundir suas crenças entre os judeus, introduziu entre eles o costume egípcio da circuncisão. Do arbitrário do signo, passando pela língua como sistema até sua formalização em modelos, trata-se do que Derrida denomina “logocentrismo”, a subordinação da língua em sua différance à sua oralidade, segundo uma “metafísica da presença”. A oralidade – a fala e a voz – é considerada a “verdadeira racionalidade”, sendo a escritura uma extensão secundária ou suplemento da voz, uma tecnologia auxiliar inessencial com respeito à razão: Saussure observa que “a crítica filológica ainda é deficiente em um aspecto – ela segue servilmente a linguagem escrita e negligencia a linguagem viva. O efeito recíproco da escrita sobre a fala é errado, tais equívocos são realmente patológicos”. Para Saussure, a escritura é “não relacionada [...] ao sistema interno da linguagem”. Derrida mostra, pela “desconstrução”, pela “différance” e pelo “traço”, como a linguística e o estruturalismo operam segundo a oposição binária entre um núcleo interno puro ou origem (da linguagem, da voz) e a mediação externa desse cerne ou origem que seria a escritura. Para Derrida, a própria possibilidade de suplementação da linguagem oral expõe uma carência essencial no coração mesmo desse sistema linguístico autossuficiente e “autônomo”. Como, para Derrida, não há origem pura, à questão “quando começa a escritura”, Derrida responde “sempre já”. Postular uma origem da escritura é desconsiderar que a escritura é a estrutura de todos os sistemas complexos em todos os seus níveis. A escritura ocupa um campo mais amplo do que o do estruturalismo, pois é a própria condição de possibilidade da escritura empírica e da linguagem em geral (DERRIDA, 1967, p. 227). A “virada linguística” e a semiológica são as figuras finais dos processos de formalização do pensamento e seu ideário de cientificização do pensamento. Filosofia e teologia assim concebidas tratam da natureza do logos e das línguas. Para Benjamin, há uma língua originária que é, antes de mais nada, um “palácio ancestral”, que não é um simples sistema de signos, nem instrumento de comunicação, mas um medium, um âmbito em que se dá toda a comunicação, em suas inscrições mais ou menos densas, e a passagem de uma a outra é a tradução: “para além da consciência de que o

conhecimento filosófico é absolutamente certo e apriorístico, para além da consciência destes aspectos da filosofia que a identificam à matemática, Kant negligenciou completamente o fato de que todo conhecimento filosófico tem sua única expressão na linguagem, não em fórmulas e números.” Kant descuidou da metafísica da linguagem, da “língua pura” ( reine Sprache) , que reenvia não apenas à língua adamítica que, na Bíblia, preexiste à dispersão das línguas pós-Babel, pois a reine Sprache é correlata à reine Vernunft . Essa língua anterior às línguas empíricas e que faz delas línguas é a língua da verdade, a que torna possível a tradutibilidade, mas em um sentido específico: “que a tradutibilidade seja essencialmente própria a certas obras, isto se pode ser judeu sem de alguma forma encarnar o Egito ou um “espectro do Egito”. Os judeus seriam neoegípcios que realizaram o egipcianismo por meios judaicos. Esta Entstellung (deformação, deslocamento e desfiguramento) protege o egípcio, deixando-o incógnito e, uma vez conquistados os objetivos, o chefe do judaísmo não poderia mais, ao fim e ao cabo, dizer a si mesmo se era egípcio ou judeu. Porque seu projeto importava mais que sua origem, torna-se hetero-egípcio. Neste sentido, escreve Freud, “a que dar à palavra Entstellung o duplo sentido a que tem direito [...]. Não apenas significar ‘alterar em sua manifestação’, mas também ‘colocar em um lugar diferente’, ‘deslocar para outro lugar’” (FREUD, 1980 ,vol. 23, p. 42). 5 Cf. Derrida, Athènes à l´ombre de l´Acropole , quando analisa o sonho de Sócrates, em que ainda é o sonho que dita a lei. 6 Derrida lembra os sentidos da palavra “ fichu ” – como substantivo é o lenço feminino que cobre a cabeça, é echarpe, xale. Se adjetivo, “ fichu ” é o “dar-se mal”, estar sem saída, ou então o verbo “ se ficher ” é “zombar de alguém”, ou mesmo o sentido escatológico de fundo sexual. A desconstrução derridiana do sonho e do “ fichu ” detecta sua heterogeneidade, tornando manifesta a fragilidade e a vulnerabilidade de Benjamin (e de Adorno) em meio à ascensão do nazismo e, simultaneamente, a do animal, no que este reconduz à animalidade do homem, que o expõe à condição de “vítima sacrificial”. A “interpretação dos sonhos” de Derrida vem a ser um “Para além de Para o além do princípio do prazer”, uma outra maneira de relacionar-se com a crueldade, com a Soberania do Estado e com a morte, cuja hermenêutica ultrapassa a “pulsão de morte”: “afirmarei que há – ou deve haver – uma referência ao incondicional, um incondicional sem soberania e, assim, sem crueldade [como uma afirmação originária] a partir da qual e, portanto, para além da qual as pulsões de morte e de poder, a crueldade e a soberania se determinam como um ‘além’ dos princípios [...] [Esta afirmação originária do além do além se dá a partir de inúmeras figuras do incondicional impossível [...]: a hospitalidade, o dom, o perdão” (DERRIDA, 2000, p. 82-83). 7 Benjamin refere-se a Adorno e aos “sonhos” que são danificados, mutilados, prejudicados pelo despertar, como se o sonho “fosse mais vigilante que a vigília, o inconsciente mais reflexivo que a consciência, a literatura ou as artes mais filosóficas mais críticas, em todo caso, que a filosofia” (DERRIDA, 2001 , p. 18).

8 Quer se trate de palavras antes inexistentes e que Derrida acrescenta à língua literária e filosófica, o filósofo também desloca e desvia seus significados, fazendo-as liberar novas significações, como a différance, o Pharmakon , chaîne, marca, re-marca, trace, dissémination, supplement, greffe, ex-orbitant. 9 Neste sentido, Proust anotou: “todos os belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira” (ESPINOSA, 1999). 10 “O dom é inteiramente estranho ao horizonte da economia, da ontologia, do conhecimento, dos enunciados constatativos e julgamentos teórico” (DERRIDA, Sur lê Don, p. 9). APORIA DA EXPERIÊNCIA – EXPERIÊNCIA DA APORIA RAFAEL HADDOCK-LOBO (UFRJ) Ao contrário do que o nosso desejo não pode deixar de ser tentado a crer, a própria coisa se esquiva sempre Jacques Derrida A coisa mesma sempre escapa – la chose même se dérobe toujours (DERRIDA, 1994, p. 117). Começo, portanto, com uma das citações mais marcantes do pensamento de Derrida, que encerra seu pequeno e difícil livro A voz e o fenômeno , publicado em 1967, e que parece colocar uma questão central em seu pensamento: a impossibilidade da experiência , ou, talvez, a impossibilidade radical de acesso às coisas enquanto elas mesmas como condição de possibilidade de qualquer experiência. E isso é postulado, lá, sob a forma de um labirinto. A conclusão de A voz e o fenômeno retoma uma das três epígrafes do livro, na qual Husserl nos remete a um quadro de David Téniers, o moço, chamado O arquiduque Leopoldo Guilherme em sua galeria de pinturas , que se encontra, ainda hoje, exposto na galeria de Dresden – labirinto de remetimentos, portanto. Husserl diz, em Ideias : Um nome pronunciado diante de nós transporta-nos à galeria de Dresden e à última visita que fizemos a ela: erramos pelas salas e detemo-nos diante de uma tela de Téniers que representa uma galeria de quadros. Supomos, ademais, que os quadros dessa galeria representam, por sua vez, quadros que revelam inscrições passíveis de ser decifradas etc. (DERRIDA, 1994, p. 5). Tal seria, como toda epígrafe, o que assombraria o ensaio inteiro de Derrida sobre Husserl – e eu poderia aqui arriscar dizer que assombraria toda a obra de Derrida, se pudéssemos reunir seus textos em torno de uma obra. De volta às últimas páginas do livro, Derrida dirá: “a galeria é o labirinto que compreende em si suas saídas: nunca se cai aí como em um caso particular da experiência, aquele que Husserl acredita descrever então” (DERRIDA, 1994, p. 117) – parecendo rascunhar certa crítica da noção de experiência, particularmente uma crítica à noção de experiência como

“experiência de ”, como possibilidade de acesso à realidade das coisas, ao real enquanto tal; e, com isso, se “da plena luz da presença, fora da galeria, nenhuma percepção nos é dada, nem, certamente, prometida” (DERRIDA, 1994, p. 117), se não há este real-inacessível que se deixa ou não se deixa tocar e que se promete, como enigma ou como velado, fora da representação, Derrida nos dirá que “então, resta falar , fazer ressoar a voz nos corredores, para suprir o brilho da presença. O fonema, a akumene é o fenômeno do labirinto . Esse é o caso da phoné . Elevando-se em direção ao sol da presença, ela é o caminho de Ícaro” (DERRIDA, 1994, p. 117). E, logo em seguida, conclui com a ideia que aqui tomo como mote: a coisa mesma sempre escapa . Sem poder, nem querer, entrar agora na relação entre voz e presença, que é o tema de A voz e o fenômeno e que tematiza uma das figuras centrais daquilo que Derrida chama de metafísica da presença , seu caráter fonético, minha questão parece ser bastante simples: ao longo de seus textos, ao longo das quatro décadas que reúnem seus escritos, Derrida sempre pareceu propor um pensamento que busca afastar-se de certa postura filosófica estreitamente ligada à ideia de experiência , certo tratamento das questões como se a filosofia fosse capaz, ou ao menos devesse ser capaz, de nos aproximar das coisas, torná-las claras e distintas, presentificar-nos o real enquanto tal. Estou cada vez mais seguro disto (se é possível ainda se falar em segurança, certeza etc.) – e é o que me faz, inclusive, pensar como ponto central na obra derridiana a sua escrita, o seu estilo e a necessidade de trazer a questão do estilo para o cerne da filosofia. No entanto, o que vem me intrigando cada vez mais é não apenas o não abandono do termo “experiência” em seus escritos, mas seu uso insistente em momentos cruciais de sua obra. E meu objetivo neste momento é o de apenas reunir alguns destes rastros para iniciar um possível esboço da desconstrução da experiência , que não deixa de ser certa experiência da desconstrução . Força de lei , publicado em 1994, mas fruto de uma conferência de 1992, parece apresentar uma formulação de tal modo geral que pode, sem universalizar (pois este é justamente o tema da conferência, como tratar da aporia entre universal e singular e a aplicabilidade da lei), ajudar a reunir tais traços das noções derridianas de experiência. Derrida “nomeia” “isto” – entre muitas aspas, tanto o isto como o nomear – experiência da aporia : “uma experiência é uma travessia, como a palavra o indica, passa através e viaja a uma destinação para a qual ela encontra passagem. A experiência encontra sua passagem, ela é possível.” (DERRIDA, 2007, p. 29). Um breve parêntese aqui me parece obrigatório, conquanto possa ser extremamente repetitivo ou já exaurido, no que concerne às veredas dos Grandes Sertões de Guimarães Rosa. Riobaldo, jagunço errante, fala algumas vezes dessa vida-travessia, dessa experiência que precisa prescindir de qualquer presença. Cito duas das mais marcantes:

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou (ROSA, 1986, p. 26). E, algumas páginas à frente: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1986). Para fechar o parêntese, deixaria em suspenso a proximidade desta travessia de Rosa com o caminho oblíquo que aparece em tantos textos de Derrida, sobretudo em Paixões (DERRIDA, 1995, p. 21-23). Retornando a Força de lei , repito as palavras de Derrida: “uma experiência é uma travessia, como a palavra o indica, passa através e viaja a uma destinação para a qual ela encontra passagem. A experiência encontra sua passagem, ela é possível” (DERRIDA, 2007, p. 29), e prossigo na citação, ou na entrada em cena da aporia: “ora, nesse sentido, não pode haver uma experiência plena da aporia, isto é, daquilo que não dá passagem. Aporia é um não caminho” (DERRIDA, 2007, p. 29-30). Gostaria aqui de sublinhar o que Derrida chama da impossibilidade de uma experiência plena , bem próximo daquilo que ele chama de presença plena em outros textos, sobretudo em Gramatologia . Sublinhar essa impossibilidade plena, que é, no entanto, uma possibilidade, ou talvez mais ainda o que possibilite a possibilidade, o possível, parece ser a chave para pensar esta outra experiência da qual escreve Derrida em tantos textos seus. Nesse sentido, para se pensar um primeiro traço desta experiência da aporia, que, no entanto, apenas faz realçar a aporia da experiência, ou que se deixa entrever na aporia de toda experiência, será preciso um recuo à noção de rastro tal como Derrida nos apresenta em sua outra obra de 1967, Gramatologia . Logo no início de Gramatologia , quando Derrida apresenta as linhas gerais de seu “Programa Gramatológico”, apontando a necessidade de se pensar a escritura em um momento em que o transbordamento da extensão do conceito de linguagem parece apagar todos os seus limites (DERRIDA, 1999, p. 8), pode-se perceber já este discreto distanciamento do conceito tradicional de experiência, antecipando o que será a motivação central do livro: a noção de rastro . Neste momento da obra, quando Derrida afirma que “o conceito de escritura excede e compreende o de linguagem” (DERRIDA, 1999, p. 10), ele diz compreender por linguagem “ação, movimento, pensamento, reflexão, consciência, inconsciente, experiência, afetividade etc.” (DERRIDA, 1999, p. 10), e que haveria, então, a partir deste momento, “a tendência a designar por ‘escritura’ tudo isso e mais alguma coisa: não apenas os gestos físicos da inscrição literal, pictográfica ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita” (DERRIDA, 1999, p. 10-11).

E a menção ao para-além da experiência, como dentro-e-fora da experiência, como sua impossibilidade e condição de possibilidade, parece justamente emergir do que aí ele compreenderá como movimento mesmo do real, o rastro como substituto ao signo e como representação da relação com as coisas. Rastro, traço, grama ou grafema são os nomes “disto” que aí deveria proibir-nos a nós mesmos de definir no interior do sistema de oposições da metafísica [nem presença nem ausência, nem dentro nem fora e assim por diante], daquilo que portanto não deveríamos nem mesmo denominar a experiência em geral [e note-se que “experiência” está grifado], nem tampouco a origem do sentido em geral (DERRIDA, 1999, p. 11). Trata-se, então, em Gramatologia , de se pensar a experiência para-além de uma relação a algo presente em si mesmo, como tal (ecoando a ideia de uma “relação sem relação” no sentido blanchotiano e levinasiano), num mesmo golpe em que nos afastamos de qualquer possibilidade de ontologia (aqui, com relação ao rastro , gramatologia para-além da ontologia; mais tarde, no que diz respeito ao espectro , fantologia também para-além da ontologia). Mas este para-além , e isso é o que quero aqui sublinhar, aponta para certa “originalidade” ou “radicalidade” da própria experiência, ou da experiência mesma. É como se esta experiência sem experiência, ou sem o experimentado enquanto tal, ou sem a presença plena do experimentado, fosse mais intensa, porquanto impossível, mais marcante, mais impressionante em todos os sentidos de marca, impressão, cicatriz, tatuagem, mais grave e urgente a ser pensada do que qualquer experiência de algo. Não é à toa que Derrida diz que “é pois o jogo do mundo que é preciso pensar primeiramente : antes de tentar compreender todas as formas de jogo no mundo” (DERRIDA, 1999, p. 61). Escritura, aqui, é o nome deste “jogo do mundo” sobre os rastros ou nos rastros do qual se joga todo jogo, se experiencia toda e qualquer coisa. “Jogo do mundo” e escritura são então outros nomes possíveis para esta impossibilidade à qual Derrida quer apontar, e que “não é pensada sem o rastro ”, pois “não pode, nunca poderá ser reconhecida como objeto de uma ciência . Ela [a escritura] é aquilo mesmo que não se pode deixar reduzir à forma da presença ” (DERRIDA, 1999, p. 69). Ao apresentar o pensamento do rastro para além da ideia de presença, e também para além de seu mero negativo, a ideia de nada ou de ausência absoluta, Derrida acaba por chegar a um ponto em que se torna imprescindível a problematização explícita do conceito de presença – e minha hipótese aqui é a de que esta problematização, talvez a problematização da problematização como colocação mesma do problema, é central não apenas nestas páginas de gramatologia, mas uma chance para se pensar o movimento mesmo do que se costumou chamar de desconstrução ou pensamento da desconstrução – o gesto derridiano. Derrida diz: “Quanto ao conceito de experiência, ele é aqui bastante embaraçoso. Como todas as noções de que aqui nos servimos, ele pertence à história da metafísica e nós só podemos utilizá-lo sob rasura” (DERRIDA, 1999, p. 74). Antes de prosseguir, gostaria de sublinhar este “sob rasura” de que fala Derrida – não apenas por achar que esta escrita sob rasura já é ela própria uma experiência da aporia, pois este rasurar nada representa senão

a própria rasura ou não-presença plena da coisa, a impossibilidade de acesso total ou absoluto a ela, e que este acesso só se dá de modo barrado, mas também para antecipar que esta figura da rasura será posteriormente – sobretudo em Esporas , seu ensaio sobre Nietzsche – representada sob a forma das aspas, que aqui se deixa antever. Derrida prossegue: “ Experiência ” [em itálico e entre aspas] sempre designou a relação a uma presença, tenha ou não esta relação a forma da consciência. Devemos, todavia, de acordo com esta espécie de contorção e de contenção à qual o discurso é aqui obrigado esgotar os recursos do conceito de experiência antes e com o fim de alcançála, por desconstrução, em sua última profundeza (DERRIDA, 1999, p. 74). Portanto, não se trata de uma crítica no sentido restritivo do termo, mas sim de uma tentativa de, ao mostrá-la ou ao retratá-la sob rasura, alargar o próprio conceito de experiência, a fim de que, talvez, não mais acenando a um acesso às coisas mesmas, ele possa apontar à estrutura de não-presença das coisas, a um movimento do que se poderia talvez chamar de realidade. Nesse sentido, rastro aparece (sem aparecer) não como um conceito, mas como esta “estrutura sob rasura” das coisas, e a experiência entre aspas, ou experiência do rastro, não é a experiência de algo, nem de nada, mas certo rastro de experiência, que é, por sua vez, a estrutura de toda experiência possível. Ou seja, a impossibilidade de experiência não apenas como representação da experiência impossível, mas também como condição de possibilidade de toda experiência . Algo aqui antecipado tem me seduzido bastante a fim de entender o gesto derridiano, esta colocação entre aspas ou sob rasura dos conceitos, e isso merecerá mais um parêntese. Mas, ainda em Gramatologia , Derrida parece adiantar outro tema que pretendo apresentar aqui (ou talvez outro parêntese ou outro parêntese dentro de um parêntese, para ser fiel à galeria labiríntica de Téniers) – a frase de Derrida é impactante e será mantida em suspenso por um momento: “origem da experiência do espaço e do tempo, esta escritura da diferença, este tecido do rastro permite à diferença entre o espaço e o tempo articular-se, aparecer como tal na unidade de uma experiência” (DERRIDA, 1999, p. 8). Portanto, antes da noção de brisura como articulação desarticulada entre espaço e tempo, entre o aqui e o agora – o que antecipa a economia do espectro –, “deixemos o élitro flutuar entre masculino e feminino” (DERRIDA, 2013, p. 24). A referência a Esporas e aos estilos de Nietzsche, mais precisamente à oscilação como estilo, como oscilação entre isto e aquilo, entre as duas margens sem pretender inaugurar uma terceira margem, parece ser a única possibilidade de se tentar preservar a distância – sendo a proximidade aqui sempre entendida como presença. A operação à qual Derrida aponta através de Nietzsche, ou através da experiência da leitura que Nietzsche provoca, não pode se restringir ou se limitar a uma simples aproximação das coisas: pois se levamos a sério a ideia de que elas sempre escapam, a aproximação será sempre impossível, será sempre da ordem do afastamento, da perda, da distância . Mas se, ao contrário, radicalizarmos a ideia deste escapamento ou da distância como possibilidade, o pensamento deve então preocupar-se em manter a distância a distância. Em poucas palavras, se se leva a cabo a

ideia de que pensamento é texto, é textura, é tecido, não há como um pensamento se construir a não ser sob a economia do véu – como bordado, como pano sob pano que não possibilitará nunca nenhum desvelamento , a não ser se desvelamento seja entendido como outra superfície, outro véu. Outros nomes possíveis para o que Derrida, em Gramatologia , chama de escritura, e que aqui ele é chamado mulher . Lemos em Esporas : “A sedução da mulher opera a distância; a distância é o elemento de seu poder. Mas este canto, este charme, deve ser mantido aà distância; deve-se manter a distância a distância, não apenas, como se poderia supor, para se proteger contra essa fascinação, mas também pra experimentá-la” (DERRIDA, 2013, p. 31). E essa operação à distância , que representa o jogo dos véus e da dissimulação, da superfície sem profundidade, mas de uma dissimulação que se mostra totalmente, sem nada a esconder ou a velar, supõe então certa experiência, experiência disto “que não se deixa conquistar” (DERRIDA, 2013, p. 37). Experiência entre aspas ou experiência da suspensão entre aspas, como diz Derrida: “Este distanciamento da verdade que se retira de si própria, que se suspende entre aspas (...), tudo isso que vai obrigar, na escrita de Nietzsche, a colocação da ‘verdade’ entre aspas – e, como consequência rigorosa, de todo o resto –, isto que vai então inscrever a verdade – e, como consequência rigorosa, inscrever em geral –, não digamos que é o feminino: mas a ‘operação’ feminina” (DERRIDA, 2013, p. 38). Sem poder entrar aqui no entorno do feminino, da mulher, dos véus e das velas, eu encerraria este parêntese sublinhando a ideia de que, tendo como mote central de Esporas um afastamento – ou o afastamento mesmo – de toda identidade, de todo “lugar”, ou do lugar da filosofia como topologia, como determinação de lugares, para além inclusive e sobretudo dos lugares masculino e feminino, esta operação feminina , esta skepsis da mulher, esta operação a distância , trata tão somente de uma suspensão entre aspas daquilo que se apresenta como tal, da coisa, da presença, seja ela presente ou prometida no abscôndito, e que um simples levantar de véu resolveria o problema. Aliás, talvez o intuito, o motivo, o desejo de Derrida seja o de não resolver, ou ao menos de não acreditar que a resolução é algo simples ou pertencente à ordem das possibilidades. Talvez , e Derrida nos ensina sempre a grafar o talvez, neste gesto de suspensão entre aspas, neste ceticismo feminino, talvez isso se dê justamente para marcar ou inscrever a aporia em sua máxima potência: como caminho barrado, como algo da ordem da impossível resolução, e a filosofia, assim, não podendo mais caber ou confortar-se na tarefa de resolver aporias, deveria se lançar no desafio de apontá-las e preservá-las, incansavelmente. A formulação antecipada e suspendida de Gramatologia , colocada entre aspas, de brisura : “origem da experiência do espaço e do tempo, esta escritura da diferença, este tecido do rastro permite à diferença entre o espaço e o tempo articular- se, aparecer como tal na unidade de uma experiência” (DERRIDA, 1999, p. 80), inscreve, já na década de 1960, o que mais de vinte anos depois Derrida chamaria, em Espectros de Marx , de disjunção .

Na obra inicial, Derrida inspirava-se no sonho de Roger Laporte de “encontrar uma única palavra para designar a diferença e a articulação” (DERRIDA, 1999, p. 80), uma única palavra, brisure , para rotura e juntura. Em Gramatologia , a palavra aportuguesada “brisura” pretende dar conta dos muitos sentidos que Derrida toma de Laporte, ou seja: “– parte fragmentada, quebrada. Cf. brecha, fratura, fenda, fragmento. – articulação por charneira de duas partes de uma obra de carpintaria, de serraria. A rotura de uma veneziana. Cf. junta” (DERRIDA, 1999, p. 80). Lembro também que o termo brisura é introduzido como um dos subtítulos do segundo capítulo de Gramatologia , seguindo-se não por acaso aos anteriores “o fora e o dentro” e “o fora é o dentro”. Uma brisura, portanto, nunca como fora ou dentro, mas sim como o entre dois ou a oscilação que, não sendo nem fora nem dentro é também sempre fora e dentro. O interessante aqui é notar que esta “estrutura” sob rasura, brisurada, entre aspas, vai disseminar-se, na conferência de 1993 e publicada em 1994 sob os olhares de alguns espectros, para descrever, ou inscrever, a economia espectral do que, neste momento, Derrida nomeia “experiência”: a experiência de um “agora sem conjuntura. Um agora desajuntado ou desajustado, ‘ out of joint ’, um agora desencaixado que sempe corre o risco de nada manter junto, na firme conjunção de algum contexto, cujas bordas são ainda indetermináveis” (DERRIDA, 1994, p. 17). Esta expressão, “bordas ainda indetermináveis” pode parecer comportar a promessa de que um dia, um dia breve, logo à frente, tais bordas poderão ser precisas e determinadas. Mas, ao contrário, tratando-se aqui do que é estruturalmente não cabível em uma simples determinação, podemos ouvir ecoarem as palavras de Heidegger quando se refere a Mestre Eckhart e diz que “não é o ainda-não-determinável e aindanão-determinado, mas o que é em geral essencialmente destituído de determinação como tal que constitui o objeto originário” (HEIDEGGER, 2010, p. 301). Obviamente, as ligações entre a desconstrução e a teologia negativa são muitas e algumas vezes apontadas por John Caputo, mas é necessário ter em mente que escritura aqui não é de modo algum um outro nome para o absoluto originário. Quando Derrida parece se aproximar da teologia negativa, sobretudo em Salvo o nome , é para voltar o pensamento em direção ao que, neste livro, ele chama de “hiperimpossibilidade”. Hiperimpossibilidade é, então “o que parece impossível, mais que impossível, o mais impossível possível, mais impossível que o impossível se o impossível é a simples modalidade negativa do possível” (DERRIDA, 1995, p. 19). Em outras palavras, podemos tomar isto que aqui se chama de hiperimpossibilidade como o que possibilita e impossibilita ao mesmo tempo uma plena experiência, ou a experiência da coisa enquanto ela mesma, mas que, segundo o próprio Derrida, torna o pensamento da teologia negativa “estranhamente familiar à experiência daquilo que chamamos a ‘desconstrução’” (idem). Estranhamente familiar justamente por apontar a impossibilidade de familiaridade absoluta, mas que tornam tal experiência, paradoxalmente, a experiência mais própria da desconstrução, ou a desconstrução como esta experiência paradoxal. Esta definição aporética da desconstrução reformula-se logo em seguida, em Salvo o nome : “a ‘desconstrução’ foi frequentemente definida como a

própria experiência da possibilidade (impossível) do impossível” (idem) – outro nome aqui para alteridade. E é tal relação com a alteridade que, neste livro de 1992, Derrida parece herdar de Angelus Silesius, quando este escreve: “O mais (que) impossível é possível. | Tu não podes com tua flecha atingir o sol, | Eu bem posso, com a minha, tomar sob o meu tiro o sol eterno” (DERRIDA, 1995, p. 20). O poema de Silesius, ao contrário de negar a possibilidade do possível, em detrimento de uma impossibilidade originária, absoluta, parece introduzir uma heterogeneidade radical na ordem da possibilidade, uma ruptura na ordem da possibilidade, um abalo radical no possível que em nenhum momento deixa de fazer parte desta ordem. Nas palavras de Derrida: “esse ‘mais’, esse além, esse hiper ( über ) introduz, evidentemente, uma heterogeneidade absoluta na ordem e na modalidade do possível. A possibilidade do impossível, do ‘mais impossível’, que, no entanto, é também possível (‘mais impossível que o impossível’), marca uma interrupção absoluta no regime do possível que, apesar disso, permanece, se assim podemos dizer, no lugar” (DERRIDA, 1995, p. 20). O que parece então que deveria ser aqui sublinhado é o esforço hercúleo de Derrida para chamar a atenção à urgente necessidade de se pensar esta interrupção – outro nome para brisura ou disjunção. Interessante notar que Salvo o nome e Espectros de Marx são escritos em momentos bem próximos, o que me faz pensar que, neste momento, Silesius e Marx obsediavam, lado a lado, e ao lado de outros como Lévinas, Shakespeare e tantos ainda, em um movimento derridiano de dar nome a estes fantasmas – ou tentar nomear a infinidade de espectros, que são sempre infinitos – para tentar representar esta experiência radical com a alteridade. Ecoando as belas palavras de Psyché , que firmam que “o interesse da desconstrução, de sua força e de seu desejo, se é que ela os tem, é uma certa experiência do impossível” (DERRIDA, 1987, p. 27), ou seja, uma certa experiência do outro, da radical alteridade do outro, pode-se começar a compreender, contra qualquer possibilidade de divisão na obra derridiana em duas fases (uma mais “teórica” entre as décadas de 1960 e 1970; outra mais “prática”, a partir da década de 1980), que é a esta alteridade radical que Derrida sempre quis fazer justiça em seus textos, seja nomeando-a como rastro, como feminino, como espectro, como impossível, pois estes são apenas nomes, portanto significantes de sempre deixarão escapar o que, de fato, eles pretendem nomear, e do que permanecerão sempre como promessa: a espectralidade radical do que pode ser chamado de “real”. Não seriam o que, nas duas primeiras décadas de seus escritos, Derrida chamou de “experiência do rastro” ou “experiência do feminino” outros nomes impossíveis para o que, nas duas últimas décadas de seus escritos, Derrida chamaria de “experiência do adeus” (em Adeus a Emmanuel Lévinas ), ”experiência de interrupção” (em Béliers ), “experiência da cegueira” (em Memórias de cego ), “experiência do impossível” (em Psyché e em Salvo o nome ), “experiência do espectro” (em Espectros de Marx ), ou “experiência da aporia” ( Força de lei )?

Acreditando que sim, sem muita certeza nem muita precipitação, em um movimento mais próximo daquilo que em Memórias de cego Derrida chama de antecipação, quando caminhamos sem ver no escuro, com as mãos à frente do corpo, tateando a incerteza, gostaria de terminar apenas repetindo, diferindo, esta experiência radical da desconstrução. A experiência da disjunção de Espectros de Marx – que se faz ecoar nas palavras de Hamlet: “ enter the ghost, exit the ghost, re-enter the ghost ” – pode ser uma das melhores ilustrações para esta experiência do outro (e ilustração aqui deve fazer lembrar a galeria de quadros de David Téniers). Esta alteridade radical, que sempre escapa, só pode ser pensada à luz do espectro. Em primeiro lugar, por sua economia : não se pode falar em espectro, porque espectro, mesmo escrito no singular, sempre remeterá a uma pluralidade. Nunca somos assombrados por apenas um fantasma, uma horda infindável de alteridades nos obsedia e nos lega sua herança – outros termos para dizer que não há e nem deveria haver apenas um pai . No entanto, este “mais de um”, essa pluralidade, essa multiplicidade de fantasmas não chegaria a configurar uma unidade, uma identidade definida, um conjunto bem delimitado de entes que poderia ser reunido em um “nós”. Economia, por si só, paradoxal, a do espectro: “mais de um” “menos que um” (DERRIDA, 1994, p. 17). E é por essa falta que é transbordamento, ou por este excesso que faz faltar, que des-limita o limite, este menos que é mais e este mais que é menos, que a temporalidade espectral só pode ser pensada à luz da disjunção: the time is out of joint , como diz Hamlet. Momento, este da aparição do espectro, em que passado, presente e futuro se embaralham, pois o passado se presentifica ordenando um futuro – experiência do porvir , diz Derrida. E se futuro é o nome do que se presentificará, do presente projetado à frente, da presença futura de um presente, o porvir é justamente um futuro radical, inexperienciável enquanto tal, incalculável. Este “instante que não é dócil ao tempo” (DERRIDA, 1994, p. 13) só é pensável “a partir do movimento de algum desajuntamento, disjunção ou desproporção: na inadequação a si” (DERRIDA, 1994, p. 12), diz Derrida. “‘Experiência’ do passado como porvir, um e outro absolutamente absolutos, para além de toda modificação de um presente qualquer”, e conclui: “momento espectral, um momento que não pertence mais ao tempo, caso se compreenda debaixo desse nome o encadeamento das modalidades do presente (presente passado, presente atual: ‘agora’, presente futuro)” (idem). Experiência então, que por sua preocupação radical com a absoluta alteridade espectral do outro, por levar a sério o ser-com os fantasmas, abriria outra “ política da memória, da herança e das gerações” (DERRIDA, 1994, p. 11) em nome destes outros que não estão presentes nem vivos na plena presença. Derrida diz: “É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa , sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos , quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido. Justiça alguma (...) parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade , para além de todo presente vivo , nisto que desajunta o presente vivo, diante dos fantasmas

daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram” (DERRIDA, 1994, p. 11-12). É isso que, em Espectros de Marx , recebe o nome de justiça. E não foi justamente a justiça que forneceu nossa primeira figura da experiência, quando, em Força de lei , Derrida fala da experiência da aporia? Não se trata também de justiça a experiência aporética de Diante da lei , quando, lendo o conto homônimo de Kafka, Derrida descreve a lei das leis, o “que haja lei” de toda lei, através da aporia do homem do campo diante do tribunal, ao longo de toda a sua vida tentando ter acesso à Lei e sendo, também a sua vida inteira, barrado na porta de entrada (porta esta, aliás, que era destinada justamente e apenas a ele)? Não é esta justiça também outro nome para esta experiência da aporia que, em Força de lei , recebe o nome de mística ? Interrompo aqui meu discurso, por simples interrupção, sem conclusão nem lugar onde chegar, numa suspensão entre aspas, que pode apenas citar ou repetir, remarcar o que não se nomeia. Sem ponto final, com reticências, e disseminando a herança de Derrida, que diz desta experiência sem nome , em Força de lei : “o discurso encontra ali seu limite: nele mesmo, em seu próprio poder performativo [em uma palavra: o impossível no possível]. É o que proponho aqui chamar... o místico ” (DERRIDA, 2007, p. 25). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DERRIDA, Jacques. Psyché. inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1987. _. A voz e o fenômeno . Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1994. _. Espectros de Marx . Trad. Anamaria Skynner. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1994. _. Paixões . Trad. Lóris Z. Machado. Campinas, SP: Papirus, 1995. _. Salvo o nome . Trad. Nicia Adan Bonatti. Campinas, SP: Papirus, 1995. _. Gramatologia . Trad. de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro São Paulo: Perspectiva, 1999. _. Força da lei: o fundamento místico da autoridade . Trad. Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. _. Esporas – os estilos de Nietzsche . Trad. Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2013. HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa . Trad. Jairo Ferrandin, Renato Kirchner, Ênio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. DERRIDA, UM FILÓSOFO MALTRAPILHO CARLA RODRIGUES (UFRJ)

A leitura de Derrida nos departamentos de Filosofia no Brasil é recente e se iniciou há pouco mais de 10 anos na PUC-Rio. Por ser recente, essas leituras de Derrida na Filosofia ainda não trouxeram à luz – para ficar com o vocabulário iluminista ao qual vou recorrer outras vezes neste texto – todas as potencialidades do pensamento ético-político de Derrida ¹ . A descoberta desse pensamento ético-político ainda está sendo feita no Brasil, numa história da recepção de Derrida nas universidades brasileiras marcada pela sua leitura nos departamentos de Letras, ainda nos anos 1970, onde estudiosos da teoria literária se interessaram pelo que alguns comentadores gostariam de chamar de “o primeiro Derrida”: são livros como Gramatologia , Escritura e diferença , A farmácia de Platão , nos quais Derrida debate com os estruturalistas a questão da linguagem. Essas primeiras leituras de Derrida no Brasil marcam sua inscrição no nosso campo acadêmico como um “filósofo da linguagem”, numa versão generosa, ou, como querem seus críticos, “um autor que não faz filosofia, mas literatura”. Há entre alguns comentadores de Derrida a percepção de que foi a partir do final da década de 1980, mais precisamente da queda do Muro de Berlim, que ele teria começado a se dedicar a escrever sobre temas éticos e políticos. Essa percepção se expressa em muitos comentadores, sobretudos os americanos, que atribuem a esse momento da escrita derridiana um “segundo Derrida”. Ainda que não concorde com essa divisão, observo que nesse momento chamado de segundo Derrida, ele fez constante leitura de Kant, não para persegui-lo a marteladas, como já havia feito Nietzsche, nem para aprimorá-lo, como quis J. Habermas, ou para alargá-lo, como pretendeu Hannah Arendt no seu Lições da filosofia política de Kant , mas em certa medida para radicalizá-lo, partindo da constatação das insuficiências das suas proposições. A radicalização das proposições de Kant e o debate com Habermas ao longo do século XX inscrevem Derrida entre os grandes pensadores contemporâneos da ética e da política, novamente indissociáveis. Não porque ele tenha “desconstruído” Kant, mas por voltar a Kant a fim de perceber as brechas e lacunas sobre as quais o projeto Iluminista foi forjado. A identificação dessas lacunas passa a ser trabalhada no pensamento da desconstrução como uma forma de ir além dos limites estabelecidos por Kant e, mais, uma forma de interrogar esses limites. Inúmeros dos textos de Derrida são dedicados aos temas que perpassam a obra de Kant. Em “Fé e saber – as duas fontes da ‘religião’ nos limites da simples razão”, ele interroga as possibilidades de separação entre razão e religião – condições que Kant afirma no seu A religião nos limites da simples razão (KANT, 2008). Em seus textos dedicados à universidade, como “O olho da Universidade”, “A Universidade sem condição”, “Mochlos – O conflito das faculdades ” , Derrida questiona o ideal kantiano de universalidade. Em Le “Monde” des Lumières à venir , em tradução primorosa de Fernanda Bernardo como O mundo das luzes porvir, ele confronta, entre outras coisas, as afirmações de Kant sobre O que é o Iluminismo?. Em “A palavra acolhimento , discute as condições de hospitalidade de A paz perpétua e a insuficiência das formulações kantianas sobre o cosmopolitismo.

Em “A palavra acolhimento”, Derrida homenageia E. Lévinas e reconhece sua obra como “um imenso acontecimento desse século”. É quando ele diz que Totalidade e Infinito deixa um imenso tratado sobre hospitalidade. Para pensar a ética, Derrida recorrer às proposições levinasianas sobre alteridade, mas também a heranças como Nietzsche, Freud e Heidegger. Derrida propõe uma articulação entre alteridade e ética, que no pensamento da desconstrução vai passar a se chamar de abertura pré-ética a todo outro que é totalmente outro. Embora, para a sua proposição de abertura préética, ele tenha recorrido diretamente a Lévinas, não se poderia deixar de mencionar a influência do inconsciente na obra de Freud e da sua afirmação de que “o eu não é senhor em sua própria morada”, uma frase que também poderia ter sido dita por Lévinas nas suas metáforas sobre casa e acolhimento. Ainda como influência marcante está Heidegger com o seu deslocamento da ideia de sujeito e a destruição do conceito metafísico de consciência, pensando o ser-aí como uma estrutura referencial aberta, infinita. Ainda nas metáforas de morada, casa e habitação, Heidegger vai pensar a linguagem como “a casa do ser”, linguagem como o âmbito que permite que as coisas se revelem, mas que sempre mantém algo no registro do indizível, do incomunicável, do estranho a si. O percurso de leitura que Derrida faz da obra de Lévinas se aproxima da crítica levinasiana a Heidegger. Para Lévinas, Heidegger foi um pensador que subordinou relação com o Outro à relação ao Neutro. Lévinas quer confrontar a ideia de totalidade e de neutralidade que ele percebe na ontologia, pensando o ético na relação assimétrica com o outro e não na estrutura referencial proposta pela ontologia. Num gesto que será seguido por Derrida, Lévinas vai propor que, ao contrário do que gostaria Heidegger, a experiência do outro é a primeira. Derrida recupera as ligações levinasianas entre acolhimento, feminino e alteridade para propor um deslocamento da palavra “acolhimento” para a expressão “hospitalidade incondicional”, sem a qual não poderia haver experiência ético-política. Hospitalidade incondicional como sinônimo de abertura pré-ética, abertura à alteridade absoluta, suspensão do registro do próprio e da autonomia. Com a hospitalidade incondicional ele quer interrogar as insuficiências das condições da hospitalidade em Kant. Na Paz perpétua , Kant define as condições da hospitalidade universal, que deve ser dada ao estrangeiro, identificável como cidadão de outro país, a quem se pode conferir o direito de visita, não de residência. Quem o recebe mantém direitos sobre ele, o direito de mantê-lo “como se” estivesse em casa. Chamo a atenção para a condicionalidade desta expressão “sinta-se como se estivesse em casa”, que se pode observar também em “make yourself at home”, o “make” como um indicativo performativo de que só é preciso se “fazer em casa” porque não se está em casa. No francês, a expressão mantém a mesma conotação, o “Fais comme chez toi” apontando para a mesma condicionalidade. A hospitalidade kantiana se fundamenta, ainda, no direito natural de pertencimento ao solo, intrinsecamente ligado à universalidade proposta por

São Paulo, com sua formulação de igualdade a todos os homens sobre a terra (Carta aos Efésios, “Vós, portanto, já não sois estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos do povo de Deus e membros da família de Deus.”). Nesta condição ligada ao direito natural, Kant exclui da hospitalidade tudo aquilo que se edifica ou se constrói, como a cultura, o Estado, as instituições, mantendo a hospitalidade sob controle estatal. Entre os limites da hospitalidade universal kantiana está a determinação de dar ao estrangeiro o direito de visita, não de moradia, condicionando ao proprietário o poder sobre aquele que é recebido, que fica submetido às leis do próprio do lugar. Derrida parte da identificação desses limites da hospitalidade – que resumi aqui muito brevemente, porque haveria outros aspectos a explorar, sobretudo o que ele vai chamar de hostipitalidade, palavra com a qual ele quer marcar a ligação indissociável entre hostilidade e hospitalidade na tradição – para pensar a insuficiência da universalidade kantiana, mostrando a hospitalidade como submetida à exigência de manter aquele que chega na condição de estrangeiro. A hospitalidade incondicional se articula ao pensamento ético-político de Derrida porque tem como intenção apontar para os problemas das condicionalidades da hospitalidade pensada por Kant, mostrando o quanto as formulações kantianas estão sobretudo impossibilitadas de dar conta de um conjunto de “outros” que escapam à condição de hospitalidade pensada por Kant. As condições da hospitalidade pautam a política que pretende determinar quem é o próprio do lugar, o senhor de si, quem é o estrangeiro, que pode ser recebido sob condições, exigindo que todo outro, para ser reconhecido, se institua dentro desse mecanismo identitário. Essa estrutura que Derrida localiza na hospitalidade condicional não diz respeito, apenas, aos muitos exemplos das restrições impostas aos imigrantes ou aos sem-documentos, aos asilados, exilados, ou aos considerados apátridas. Essa estrutura que ele identifica na hospitalidade condicional estaria ligada, antes de tudo, à concepção do sujeito clássico, “senhor de si”, racional e inabalável, dotado e fundamentado nas certezas da razão. Essa seria, também, a estrutura da violência contra tudo que tem sido recalcado em nome desse “nós” – aqueles que recebem sob condições – em relação a eles – os que se submetem à hospitalidade condicionada. A hospitalidade incondicional seria mais universal, não por pretender determinar “melhores condições de universalidade”, a partir de um aprimoramento do que propunha Kant, mas a partir do reconhecimento dos limites da determinação de toda condicionalidade. Com as leituras que faz de Kant, seja nos textos políticos, como A paz perpétua , seja nos textos morais, Derrida pretende apontar para os limites das proposições kantianas de universalidade, indicando como o mero cumprimento de uma regra moral e universal que apenas aplaque as exigências da “boa consciência”, expressão na qual se pode ouvir o eco de Nietzsche, não é suficiente para o enfrentamento dos desafios ético-políticos do nosso tempo: Essa perspectiva de aplacar as exigências da boa consciência é o que estaria em obra nos discursos cotidianos, no exercício da justiça, e na axiomática do

direito privado, público ou internacional, na condução da política interna, da diplomacia e da guerra, é um léxico da responsabilidade que, não se dirá que não corresponde a nenhum conceito, mas que flutua sem rigor em torno de um conceito inincontrável. Basta denegar, incansavelmente, a aporia ou a antinomia, e tratar de irresponsáveis, niilistas, relativistas, de pósestruturalistas, ou, pior, de desconstrucionistas, todos aqueles que continuam a se inquietar diante de tanta boa consciência (DERRIDA, 1999a, p. 118). Quando lê Kant, Derrida não o faz para ser um anti-Iluminista, como querem muitos de seus críticos, nem tampouco para formular uma “nova ética”, mas para pôr em marcha no pensamento outra forma de pensar a ética não no registro da tolerância, para usar uma palavra de Habermas na qual Derrida identifica o vocabulário cristão que ligaria o pensador alemão ao mesmo cristianismo que Nietzsche viu em Kant. Derrida vai pensar a ética como abertura à singularidade do outro enquanto outro, acolhendo incondicionalmente o que percebeu de mais potente no texto levinasiano: a ideia de uma ética como filosofia primeira, entendendo ética como um tipo de relação não totalizante com o outro, ética como abertura a heteronomia, e se opondo à perspectiva solidária de inclusão do outro, conceitos novamente ligados ao cristianismo. Num dos principais textos que Gilles Deleuze (DELEUZE, 1962, 1976, 2001) dedica a Nietzsche, ele postula que, em Genealogia da Moral , o filósofo alemão quis “refazer” a Crítica da Razão Pura . Ressentimento, má consciência e ideal ascético formariam o tripé sobre o qual se apoia o livro mais sistemático de Nietzsche, cujo texto enfatiza a insuficiência do sistema kantiano. A crítica de Nietzsche a Kant passa pela afirmação de que o estabelecimento de fundamentos para atitudes morais era, em Kant, uma forma de reforçar a moral cristã. Já que esse é um texto sobre heranças, é importante lembrar que Derrida herda de Nietzsche inclusive o questionamento das proposições kantianas sobre liberdade, autonomia e universalidade da razão. O martelo nietzschiano deixa à desconstrução muitos legados: o reconhecimento de que o sentido se dá sempre por um ato de força; a ampliação das aspas com as quais Nietzsche suspende a verdade, que em Derrida suspendem todos os conceitos filosóficos; e a interrogação sobre as exigências morais do cristianismo e do kantismo, que em Nietzsche e em Derrida são sinônimos. Partindo da hipótese da herança de Nietzsche na crítica de Derrida a Kant, recupero brevemente os argumentos de Nietzsche na Genealogia da Moral , livro no qual ele expõe sua leitura para a história da origem da responsabilidade: tornar o homem confiável, com ajuda do que ele chama de “moralidade do costume” e da “camisa de força social”; criar um indivíduo capaz de cumprir promessas, o “senhor do livre arbítrio”, soberano sobre si e dono de sua vontade, orgulhoso do privilégio da responsabilidade, dotado de consciência, de poder sobre si mesmo e sobre seu destino. Nietzsche classifica a promessa como a origem da culpa e da sacralidade do dever, num mundo que jamais “perdeu inteiramente um certo odor de sangue e tortura”. Derrida recupera os argumentos nietzschianos, seguindo

o diagnóstico de que a crueldade kantiana estaria relacionada à ideia de falta como dívida, numa espécie de economia da moral que se relacionaria ao comércio mais primitivo, a uma forma de compra, venda e troca. De certa forma radicalizando os argumentos de Nietzsche, Derrida traz para o pensamento uma experiência hiperbólica – a hospitalidade é incondicional, o dom é sem retribuição, o perdão é relativo ao imperdoável, a responsabilidade é infinita, a justiça é inalcançável, a democracia é porvir. E não deliberativa. Derrida observa que o caminho de Nietzsche nessa crítica é o de afirmar que o cristianismo corresponde ao momento da destruição da justiça, já que ela é um privilégio alcançável por um contrato numa economia cruel em que o sacrífico da dívida é “o golpe de mestre do cristianismo” e vai localizar em Habermas e nos conceitos de tolerância e solidariedade essa herança cristã que se reatualiza como direito. Derrida recupera a associação entre o imperativo kantiano da veracidade e o imperativo das luzes, à loucura da luz do dia , como no título de Blanchot ( La Folie du Jour ), do qual se vale Fernanda Bernardo (2005, p. 975) para falar em “violência das luzes”, luzes que interditam sombras, segredos e singularidades. Kant reivindica que a Alfklärung depende de um exercício da razão pública, em nome da qual o segredo fica interdidado. Há segredos – é o que diz o pensamento da desconstrução –, segredos que não estão acessíveis nem pela correção do agir moral e monológico da razão autônoma nem pelo agir comunicativo e dialógico da razão pública. Ao invés da ideia de um progresso contínuo em direção ao esclarecimento e às luzes que, quando a tudo iluminarem, nos redimirão, Derrida se vale da expressão luzes porvir , à qual ele se refere em diversos outros textos. ² Luzes porvir apontam, sobretudo, para a constatação – um gesto éticopolítico – de que os ideias do Iluminisno não foram alcançados. Para Derrida, por mais que haja luz, sempre haverá um não saber, um segredo, um segredo que se articula à maneira como ele pensa o lugar da filosofia. Luzes porvir não seriam, assim, mais esclarecimento, mas o reconhecimento de que há – e de que sempre haverá – sombras, crepúsculos, cegueiras, lacunas, brechas, e principalmente falhas. Quando o pensamento da desconstrução nos diz que há segredo, indecifrável, encriptado, está nos confrontando com essa experiência de abismo, na qual estamos desde sempre lançados. Mesmo que sobre essa cripta indecifrável se lancem todas as luzes do esclarecimento, sempre haverá o inapropriável, questão que aparece em tudo que Derrida fez, escreveu e pensou. Como um pensador que apontou para as oposições da metafísica como construções hierárquicas nas quais o polo superior só poderia se constituir conforme definia, também, o seu oposto como polo inferior (como nos pares binários masculino/feminino, natureza/cultura, sensível/inteligível), Derrida propõe pensar as Luzes como o momento máximo dessas divisões, em que se pretendeu estabelecer separações seguras e absolutas como a distinção entre fé e saber ou entre autonomia e heteronomia.

Um pensamento ético-político, dirá Derrida, seria não mais seguir um conjunto de regras estabelecidas, mas a invenção da transação entre calculável e incalculável, entre autonomia e heteronomia. Entra em cena a palavra “razoável”, com a qual ele vai deslocar a razão de faculdade do sujeito da consciência para um tipo de racionalidade que leva em conta o incalculável. Observo que esse deslocamento não se dá com o objetivo de desqualificar ou desmerecer a razão, mas como forma de reconhecer os limites da razão, como forma de reconhecer a ausência de fundamento para qualquer decisão, o que não quer dizer não decidir, quer dizer reconhecer que a responsabilidade não está em decidir conforme uma regra. Com a palavra razoável, Derrida recupera, na etimologia, o verbo razoar , com o qual discutirá a concepção kantiana de razão calculadora. Ele vai propor pensar que a única chance de uma decisão ética está naquilo que é incalculável. Do sujeito racional e autônomo kantiano, Derrida propõe pensar o sujeito razoável e heterônomo. Com a palavra razoável, Derrida promove quatro deslocamentos importantes. Em primeiro lugar, com a palavra razoável Derrida vai deslocar a racionalidade como faculdade do sujeito da consciência para um tipo de razão que leva em conta o incalculável, a alteridade. Questiona, assim, a presença a si de um sujeito cuja razão e autonomia garantem a ética de suas decisões. A decisão ética passar a ser resultado de uma “transação entre o imperativo da autonomia e imperativo da heteronomia” (BORRADORI, 2004, p. 141). Heteronomia, no pensamento da desconstrução, é essa lei vinda do outro, é o reconhecimento de que a minha autonomia é também e sempre a minha heteronomia. Razoável será também a palavra que embaralha o par opositivo racional/ irracional sobre o qual tantas vezes o racionalismo se apoiou para desqualificar aqueles que interrogam os limites da razão. Com esta palavra, Derrida abre mais uma perspectiva de, pensando os limites da razão, ser ainda mais fiel à razão do que aqueles que se furtam a essa interrogação: “Quem é mais fiel ao apelo da razão, quem escuta com um ouvido mais afinado, quem enxerga melhor a diferença, aquele que interroga de novo e tenta pensar a possibilidade desse apelo ou aquele que não quer ouvir falar de uma questão sobre a razão da razão?” (DERRIDA, 1990c, p. 437). Por fim, com a palavra razoável Derrida está se diferenciando da ideia de consenso em Habermas. Não se trata, aqui, do razoável enquanto doxa, moderação, equilíbrio ou temperança. Com a palavra razoável, Derrida recupera, na etimologia, o verbo razoar , que tem o sentido de arrazoado, daquilo que é rascunhado, rabiscado, carregando, portanto, a conotação de precariedade, de contingente, de insuficiente, de provisório, instável – que está em constante movimento.

Pensar sobre os limites da razão seria o gesto ético-político do pensamento da desconstrução, gesto no qual sigo John Caputo quando ele afirma que o desejo do pensamento da desconstrução seria pensar sobre o que teve de ser declarado como irracional em nome da razão: a diferença foi recalcada em nome da presença; a escrita, em nome da voz; o feminino, do masculino. Para Caputo: Se o velho Iluminismo faz tudo voltar-se para a “razão”, o novo iluminismo quer conhecer a razão da razão, quer ter responsabilidade pelo ponto específico do que a história chama de razão e de idade da razão, e considerar cuidadosamente o que é declarado “irracional” em nome da razão (CAPUTO, 1997b, p. 55). Nos exemplos de Caputo, o Iluminismo teria desvalorizado a literatura, a fé e o messianismo. Caputo diz que Derrida teria ficado feliz em descrever a desconstrução como um “novo Iluminismo”, uma espécie de instante, uma piscadela de olhos, um olhar sempre aberto (CAPUTO, 1997a, p. 145). Estamos propondo chamar de “outro Iluminismo”, com o qual o objetivo de Derrida seria abrir o pensamento a um processo de esclarecimento em que o horizonte é o infinito – que não deixa de ser um ideal de emancipação e esclarecimento, mas que se diferencia de uma perspectiva de progresso histórico ³ . E horizonte é uma perspectiva nunca alcançável, cujo “motor” seria o reconhecimento da insuficiência das leis para a promoção da justiça, insuficiência que se reconhece não para defender uma paralisia, mas para pôr-se sempre em obra. Para seguir a leitura de Jean Luc Nancy, o imperativo do pensamento da desconstrução seria manter em aberto a liberdade da questão (NANCY, 1983). Seria preciso, então, entender o pensamento da desconstrução como um pensamento que quer ir além do que foi o Iluminismo, como propõe Fernanda Bernardo (2006, p. 697). O apelo das luzes, segundo ela, seria “também e sobretudo o grito que clama pela Luz das Luzes porvir, reclamando a imperativa e urgente necessidade de pensar e desejar outra Luz para as Luzes da razão e do ‘mundo das Luzes porvir’” (BERNARDO, 2006, p. 701, grifos da autora). Caputo diz que uma das críticas que o pensamento da desconstrução enfrenta é de querer ser um “tribunal supremo” passando em revista todos os textos e pensadores – essa é uma argumentação dos que acusam a desconstrução de ser um método de leitura de textos para “destruí-los”. Ele lembra que, para o pensamento da desconstrução, não se trata de apontar o que é verdadeiro ou falso nos textos, e que Derrida não seria um juiz iluminado capaz de a tudo julgar – tarefa, para Caputo, do velho Iluminismo. Derrida, argumenta Caputo, não quer a filosofia enclausurada nos tribunais, mas sim como um “nômade vagabundo”, em movimento, sem possibilidade de ficar parado: “Ela [a filosofia] corre sempre que, a qualquer momento, recebe um chamado do ‘outro’ que o intima a agir” (CAPUTO, 1997a, p. 51). Neste movimento, que a muitos pode parecer apenas errante, está a chance de “afirmação da alteridade irredutível”.

Nas luzes porvir , o filósofo seria uma espécie de maltrapilho [ chiffonnier ] – Caputo toma essa figura de Drucilla Cornell, que está se referindo a Walter Benjamin, que por sua vez está lendo Baudelaire – procurando por pedaços, pequenas peças, colhendo fragmentos, escutando com o ouvido atento as pequenas vozes do chamado do outro, na esperança de encontrar uma pequena fenda, de acender uma faísca, uma centelha. O maltrapilho é descrito por Cornell como aquele que encarnaria a aspiração de relação não violenta com o Outro, com a alteridade, e que assume a “responsabilidade [infinita] de proteger o Outro contra a apropriação que negaria sua diferença e sua singularidade” (CORNELL, 1992, p. 62). Para a autora, Derrida seria “o último chiffonnier ”, figura que aparece em Benjamin como “a mais provocadora da miséria humana”. Nas palavras de Benjamin, “tudo que a grande cidade joga fora, tudo que está perdido, desdenhado, tudo que está quebrado, ele cataloga e coleciona” (BENJAMIN, 1993, p. 365, citado em CORNELL, 1992, p. 62). Essa imagem do maltrapilho que se interessa pelo que é rejeitado sustenta a leitura de Cornell seguida por Caputo, para quem Derrida quer reivindicar “a singularidade do que é muito pequeno, muito finito para ser elevado pela grandeza e pela universalidade da lei, muito fraco e impotente quando é posto ‘diante da lei’” (CAPUTO, 1997a, p. 153). Para Caputo, a imagem do filósofo como um maltrapilho ajuda a demonstrar que a diferença entre o velho e o novo Iluminismo é uma questão de estilo : o “novo” das luzes porvir seria o respeito irredutível à singularidade do outro. Sigo Caputo quando ele destaca que o porvir implica aquilo que não vem, mas permanece sempre esperado, iminente, incompleto (CAPUTO, 2004, p. 304, citado em HAYES, 2007, p. 450). Antes de terminar, queria retomar muito rapidamente o início do meu texto sobre a importância desse colóquio, propondo nos pensar não como derridianos, o que seria uma contradição em termos, ainda que seja uma identidade útil em determinadas instâncias do cálculo. Mas para ser fiel ao pensamento de Derrida teríamos que nos perceber, também, como filósofos maltrapilhos. Por fim, retomando Caputo (1997a, p. 55), “a desconstrução pede que se admita que a filosofia não tenha a palavra final sobre as coisas que ama. A desconstrução surge do amor pela singularidade”. Eu acrescento um plural: a desconstrução surge do amor pelas singularidades , surge da capacidade de se manter aberto à chegada do outro, colocando a responsabilidade em relação ao outro antes do si mesmo, reconhecendo de que a minha autonomia é também e sempre a minha heteronomia; o reconhecimento do suplemento de origem como se fosse origem; e que aquilo que me é próprio me é também impróprio, mas que eu amo como se me fosse próprio. Amor diante do resto, do pequeno, da restance . Amor pelo talvez, talve z como o reconhecimento da experiência de tremor do pensamento da desconstrução. Talvez só assim se possa falar sobre o pensamento da desconstrução arriscandose na produção de sentidos precários, instáveis, provisórios. Como no chiffonier do poema de Baudelaire, cambaleante e maltrapilha, colecionando sobras, vestígios, rastros.

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1 Aqui permito-me referir a RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade, sobre ética e política em Jacques Derrida. Rio de Janeiro : NAU Editora/Faperj, 2013. 2 Políticas da Amizade (DERRIDA, 2003c, p. 308), A Universidade sem Condição (DERRIDA, 2003b, p. 14) e Minhas Humanidades de Domingo (DERRIDA, 2004c, p. 299), em levantamento feito por HAYES (2007). 3 Sobre o tema, ver: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/06/11/ derrida-por-um-outro-iluminismo-385756.asp. JACQUES DERRIDA E A FREQUENTAÇÃO DOS ESPECTROS DIRCE ELEONORA NIGRO SOLIS (UERJ) Inúmeras são as referências feitas por Derrida aos espectros presentes no pensamento em geral: na literatura, nas artes, na filosofia, no cinema, na relação com a psicanálise. Muitos dos ensaios publicados anteriormente a Espectros de Marx , por exemplo, já vinham tratando da lógica da espectralidade. Podemos constatar isto em De L’Esprit: Heidegger et la question (1987), texto em que Derrida enuncia: “Falarei da aparição, da chama e das cinzas” (DERRIDA, 1990, p. 7). Em Politiques de l’Amitié (1994(b)), obra publicada no ano seguinte a Espectros de Marx (1993), nos deparamos com uma série de lembranças derridianas sobre os espectros: a dimensão espectral da Unheimlichkeit , por exemplo, “que aloja o inimigo no coração do amigo e reciprocamente”, dando lugar “a uma forma de acolhimento que em si lembra a assombração tanto quanto o habitat – Unterkunft – o alojamento, o pouso, o habitat hospitaleiro” (DERRIDA, 2003, p. 70), referência ao epílogo de Humano demasiado Humano , citado anteriormente no texto por Derrida; a voz do amigo como a voz do espectro, espectros da amizade perdida (evocando ainda Nietzsche); a evocação de Jerusalém de William Blake (“ Each Man is His Spectres power... ”) (DERRIDA, 2003, p. 84). Ou então no capítulo 4 desta mesma obra, sobre “O amigo aparecido” (em nome da “democracia”), citando Nietzsche de Humano demasiado Humano : “Os amigos fantasmas ( Die Freunde als Gespenster ).” Ou ainda, “Quando nos transformamos muito, os nossos amigos que não mudaram tornam-se fantasmas do nosso próprio passado: o som de suas vozes chega-nos de modo horrivelmente espectral ( schattenhaftschauerlich ) – como se nos ouvíssemos a nós mesmos, mas mais jovens, mais duros, menos maduros” (DERRIDA, 2003, p. 85). Ou no capítulo 5 , apresentando a espectralidade do político (DERRIDA, 2003, p. 119). A referência ao espectro em Force de Loi (1994) também é significativa. Vejamos algumas passagens de Prenom de Benjamin , em que Derrida traz o pensamento de Benjamin e sua obra Zur Kritik der Gewalt : A lógica profunda desse ensaio efetua uma interpretação da linguagem – da origem e da experiência da linguagem... Esta teria sido a apelação, a nominação, o dom ou o apelo da presença no nome. Perguntaremos como esse pensamento do nome se articula com a assombração e a lógica do espectro. Esse ensaio de Benjamin trata, pois, do acontecimento, daquele

mal que vem à e da linguagem, pela representação (DERRIDA, 2007, p. 62-63). A presença do espectro se faz sentir também na passagem sobre a ordem do direito manifestar-se na possibilidade da pena de morte e a instituição policial, testemunho da maior violência: Aquilo de que deve dar testemunho a pena de morte é que o direito é uma violência contrária à natureza. Mas aquilo de que hoje dá testemunho de modo ainda mais “espectral” ( gespenstiche , espectral e não apenas alucinante como diz a tradução francesa), misturando as duas violências, a violência conservadora e a violência fundadora, é a instituição moderna da polícia. Mistura de duas violências, heterogêneas, mistura de certa maneira espectral ( in einer gleichsam gespenstischen Vermischung ) como se uma violência assombrasse a outra (embora Benjamin não o diga assim, ao comentar o duplo uso da palavra gespenstich ). A espectralidade decorre do fato de que um corpo nunca está presente para ele mesmo, para aquilo que ele é. Ele aparece desaparecendo, ou fazendo desaparecer aquilo que representa: um pelo outro (DERRIDA, 2007 p. 98). Ou então, sobre o acontecimento de uma nova crítica da violência no texto Zur Kritik der Gewalt , de Benjamin: Ele gostaria ou de fundar ou de conservar esse discurso, mas não pode nem fundá-lo nem conservá-lo de modo puro. No máximo, pode assiná-lo como um acontecimento espectral. Texto e assinatura são espectros. E Benjamin sabe disso... O texto não escapa à lei que anuncia. Ele se arruína e se contamina, torna-se o espectro dele mesmo. Haverá porém mais a dizer acerca dessa ruína da assinatura (DERRIDA, 2007, p. 100-101). E mais adiante: “Voltemos à própria coisa, isto é, ao fantasma. Pois esse texto narra uma história de fantasmas. Não podemos evitar o fantasma e a ruína, assim como não podemos eludir a questão do estatuto retórico desse evento textual” (DERRIDA, 2007, p. 102). Diz ainda, referindo-se à violência fantasmagórica e meio da espectralidade que é a polícia, que o próprio Benjamin reconhece “que o mal da polícia é o de ser uma figura sem rosto, uma violência sem forma ( gestaltlos ). Ela não é apreensível, como tal, em nenhum lugar ( nirgends fassbare ). ¹ Nos Estados ditos civilizados, o espectro de sua aparição fantasmática se estende por toda a parte” (DERRIDA, 2007, p. 103). Cada um desses exemplos citados mereceria uma análise específica que, entretanto, não podemos desenvolver aqui. Mas é importante, ao menos, pontuá-los. Porém, as noções de fantasma , espectro , espírito, toda a gama de “aparições” terão atenção mais significativa de Derrida em Espectros de Marx (1993). É importante ressaltar que anteriormente a Espectros não aparece com profusão de detalhes, como será o caso nesta obra, a discussão do termo em questão (espectros) nem tampouco se o que foi designado como “aparição” diz respeito a algo verdadeiro ou falso. Derrida, como pensador da desconstrução, não considera a distinção hierárquica da

metafísica tradicional, essência/aparência ou aparência/verdade. O que importa é o que aparece e as condições em que se dá a aparição. Antes disso, Derrida foi protagonista de um filme independente de 1983, Ghost Dance, dirigido pelo britânico Ken McMullen, onde surge na relação com o cinema a questão dos fantasmas. Trazendo a experiência de duas mulheres em Londres e Paris (Pascale e Marianne), o filme é permeado por realidades fantasmais. Os fantasmas são a memória de uma não presencialidade. Derrida se coloca no filme como um fantasma a falar da fantasmalidade em vários momentos. Convidado a participar, Derrida, ao encarnar eu próprio papel, coloca-se na posição de um fantasma que fala em seu lugar, tal como um ventríloquo, diz ele. Derrida afirma em Ghost Dance : O cinema é a arte dos fantasmas, uma batalha de fantasmas. Creio que o cinema, se não nos aborrece, é isto. É a arte de permitir aos fantasmas voltarem, de deixar retornar os fantasmas. Assim, se eu sou um fantasma, mas é precisamente porque eu acredito que estou falando com a minha própria voz, é precisamente porque ela pode ser retomada como a voz de outro, não a voz de qualquer outro, mas a voz de meus próprios fantasmas. Então, os fantasmas existem... E são eles que vão lhe responder e talvez eles já lhe tenham respondido. Tudo isto a mim me parece ter a ver com uma troca entre a arte do cinema em sua mais original e inédita forma e um aspecto da psicanálise. Creio que cinema mais psicanálise é igual a ciência dos fantasmas. E dirigindo-se a Pascale Ogier, que interpreta no filme a personagem Pascale: “A senhora sabe, Freud durante toda sua vida teve que lidar com fantasmas.” E como no início da cena, Pascale lhe havia perguntado se ele acreditava em fantasmas, Derrida responde: “Mesmo a senhora que conheci esta manhã, já foi atravessada para mim por toda sorte de figuras fantasmáticas. Assim, se acredito ou não em fantasmas, eu digo: “vida longa aos fantasmas”. O filme de Ken McMullen faz retornar vários fantasmas (Marx, Kafka, Freud), trazendo-os à questão (fantasmática) da memória (o passado) e como eles funcionam no presente. Derrida atua no filme e fala dos fantasmas enquanto eles pertencem ao mundo do cinema e da representação. Cinema para Derrida “é a arte dos fantasmas” e ele olha para ele mesmo – tal como é retratado no filme – como ainda um outro fantasma no qual ele “acredita”. A tecnologia moderna, mais especificamente as telecomunicações, ao invés de diluírem os fantasmas, enfatiza Derrida, acabam por expandi-los, multiplicá-los. E necessariamente, fantasmas não têm caráter negativo, ao contrário, eles vivem, eles estão sempre aí, eles retornam. Ao invés de simplesmente aparecerem, fantasmas são os “retornantes” (les revenants) . Assim sendo, fantasmas desafiam memórias que são de um passado que não gira em torno de uma presença, desafiam a morte. É preciso interiorizar o morto, mas enquanto isso não se dá, acolher o morto é um trabalho de luto, até que ele possa partir sozinho. Eis a realidade fantasmal.

Com a experiência do cinema foi possível trazer a dimensão espectral, ou melhor, daquilo que não é nem vivo nem morto, nem do estatuto da alucinação nem da percepção. O cinema é esta possibilidade de fazer retornar espectros e novos espectros, espectros de espectros, fazer aparecer na tela fantasmas que habitavam filmes já vistos (DERRIDA, 2001b, p. 75-85). Temos então que: fantasmas são imagens (de phantasma ), são manifestações da imaginação. Mas podem ser manifestações da realidade fantasmática do inconsciente, por exemplo, formas ou ecos mentais do inconsciente. Espectros são formados pela dispersão das ondas de um feixe irradiante de energia, para lembrar uma ideia presente na física. Tal como acontece com o feixe de luz refratado no prisma cristal, espectros se espalham, se expandem (eles não refletem/ o espectro não espelha, não aparece no espelho, como diz a crença popular). O espectro é refratado , seria, então, a melhor expressão. A refração, segundo a física, e de forma bastante simplificada, implica uma mudança de forma ou de direção de uma onda que, ao passar de forma oblíqua por uma interface que separa dois meios, tem, em cada um deles, velocidades diferentes de propagação. Portanto, espectros remetem a desvios, desvios de forma ou de direção e esta será uma característica cara à desconstrução. Espírito, em sentido amplo, é entendido como princípio inteligível, razão, ideia ou juízo. No entanto, embora existam diferenças conceituais entre espectro, fantasma ou espírito, muitas vezes, os pensadores citados por Derrida utilizam os termos indistintamente. Em Espectros de Marx (1993 ), numa referência a Paul Valéry ( La Crise de l’Esprit , 1957), Derrida diz que o espírito encarna-se como espírito no espectro, ou o espectro é uma certa forma fenomenal e carnal do espírito. Difícil de nomear, o espectro não é nem alma nem corpo (DERRIDA, 1994a, p. 21), mas, ao mesmo tempo, diríamos, almacorpo . Há uma ambivalência, portanto, tanto na noção de espectro como de espírito quando, neste caso, se deixa de distinguir espírito de espectro. Derrida assume: O espírito, o espectro não são a mesma coisa, teremos de agudizar essa diferença, mas, quanto ao que eles têm em comum, não se sabe o que é, o que é presentemente. É alguma coisa, justamente, e não se sabe se precisamente isto é, se isso existe, se isso responde por um nome e corresponde a uma essência. Não se sabe: não por ignorância, mas porque esse não-objeto, esse presente não presente, esse estar aí de um ausente ou de um desaparecido não pertence mais ao saber. Não se sabe se está vivo ou morto. Eis aqui, ou eis ali, lá longe, uma coisa inominável ou quase: alguma coisa, esta coisa aqui, “this thing”, esta coisa, entretanto, e não uma outra, esta coisa que nos olha vem desafiar tanto a semântica como a ontologia, tanto a psicanálise quanto a filosofia (DERRIDA, 1994a, p. 21). O espectro seria então, conforme afirmação do próprio Derrida, um “devircorpo” do espírito, uma incorporação. Ao mesmo tempo, não palpável, um

objeto não identificado que aparece, ou melhor, um não-objeto, já que não se pode tocá-lo ou senti-lo. Porém, pode-se sentir sua presença. Sabemos que ele está lá. Pode-se pensar no fantasma então como uma das manifestações do espírito. O fantasma seria um conjunto de traços ( traits ), mas para os propósitos da desconstrução, podem ser ditos como rastros ( traces ) de uma origem (mas todo o cuidado com esta palavra, “origem”) que se manifesta no “devircorpo”. Resistente às oposições hierarquizadas da metafísica, o espectro pode ser declarado um quase-conceito. ² Derrida irá recorrer, em Espectros de Marx , ao Hamlet de Shakespeare, povoado de espectros e fantasmas, ao apresentar o que ele chama o primeiro nome do Manifesto , isto é, o fantasma do comunismo: Ein Gespenst geht um in Europa-das Gespenst des Kommunismus. ³ Em Hamlet , de Shakespeare, a cena da espectralidade ( I am thy Fathers spirit , diz o espectro a Hamlet, pedindo-lhe que vingue o vil assassinato do rei) irá trazer uma série de implicações, tais como o efeito de viseira, ⁴ a questão da herança, a questão do luto. Ela remete, também, à constatação, naquele momento feita pelo próprio Hamlet, de que o mundo está “fora dos eixos”, está desconjuntado, fora das juntas ( the time is out of joint , literalmente, o tempo está disjunto) ⁵ e que cabe a ele, Hamlet, colocá-lo em ordem. Ora, a espectralidade como retorno, não a Marx, mas segundo Derrida, retorno de Marx, é o reflexo de um mundo desconjuntado, fora dos eixos. Nesse simpósio sobre o marxismo, Derrida exorta a aprender a viver e conviver com os espectros ao invés de exorcizá-los, o que implicará uma dimensão ético- política da memória, da geração e da herança. Hoje vivemos uma lógica espectral e o retornante não é mais apenas um como nós, tal qual o pai de Hamlet, mas, sim, um deslocamento para, por exemplo, um ambiente midiático, para a virtualização de todos os espaços (públicos e privados) através da telecomunicação, da internet. Isto faz com que não haja mais espanto ou assombro em falar e conviver com espectros. Na releitura do texto marxiano feita por Derrida, a insistência nos espectros não é uma figura retórica, mas uma demarcação do conteúdo do pensamento em relação a vários contextos. A hontologia (do verbo to haunt , de hânter ) evocará então os espectros, os fantasmas, os espíritos que serão trabalhados como tais por Marx, e poderia ser compreendida, ainda que impropriamente falando, como uma espécie de “ciência daquilo que retorna”, ou melhor, daquilo que retorna sob a forma de herança. Para os propósitos da desconstrução o espectro seria um indecidível (nem isto nem aquilo, nem vivo nem morto, nem corpo nem alma, nem dentro nem fora, nem passado nem presente, sempre milieu / meio, ponto de partida, no entanto, para qualquer decisão). I. A FREQUENTAÇÃO DOS ESPECTROS A perspectiva ontológica aparece aqui invertida e a favor de uma hontologia com h, uma obsidiologia (de hânter e de to haunt ), essa lógica da obsessão que, segundo Derrida, é muito mais ampla e poderosa que uma ontologia.

Não podemos ver de início o espectro, pois, como em Hamlet, é ele quem primeiro nos vê. O espectro é então uma aparição sensível/insensível, visível/não visível. Sentimos sua presença, sentimo-nos observados por ele, mas não o vemos, eis o efeito de viseira. O espectro, diz Derrida, “pertence ao acontecimento, ele nos vê por ocasião de uma visita ” (1994a, p. 138). “Este visitare é o frequentativo de visere (ver, examinar, contemplar), traduz bem a recorrência ou a reaparição, a frequência de uma visitação” (1994a, p. 138). O espectro como uma aparição recorrente, mas nem sempre generosa, segundo Derrida, por este processo de repetição, retorna e retorna mais uma vez, ou quantas outras vezes, para nos ver e este retornante “está longe de ser uma visita amigável”. Neste sentido, ele obsidia, assombra e aterroriza. “A este modo social da obsessão, seu estilo original”, e considerando essa repetição, Derrida chama, em Espectros de Marx , de “frequentação” ( fréquentation ) (1994a, p. 138-139). E Marx, mais do que qualquer outro, teria vivido na frequentação dos espectros. (1994a, p. 139), desta “determinada visibilidade invisível” (SKINNER, 2000, p. 71). Na obra Espectros de Marx , então, Derrida irá apontar toda a gama diversa dos espectros que, retornantes ( revenants ), nos frequentam. Assim temos: Como em Hamlet, o príncipe de um Estado apodrecido, tudo começa pelo aparecimento do espectro. Mais precisamente, pela espera desse aparecimento. A antecipação é ao mesmo tempo impaciente, ansiosa e fascinada: isso, a coisa ( this thing ) terminará por chegar (...). Com maior exatidão ainda, tudo se abre na iminência de uma re-aparição, mas da reaparição do espectro como aparição pela primeira vez na peça (1994a, p. 18). Marx irá denunciar de modo quase insuportável na visão de alguns, a frequentação dos espectros na teoria stirneriana dos fantasmas, por exemplo. “O espectro de que falava então Marx estava ali sem estar ali. Ainda não estava presente. Não há Dasein do espectro: mas não há Dasein sem a inquietante estranheza, sem a estranha familiaridade ( Unheimlichkeit ) com algum espectro” (1994a, p. 138). Então Derrida se pergunta na sequência: Mas, “O que vem a ser um espectro? Qual é a sua história e qual é o seu tempo?” (1994a, p. 138). Ao que ele responde: “O espectro, como seu nome o indica, é a frequência (grifos meus) de uma certa visibilidade. Mas a visibilidade do invisível. E a visibilidade, por essência, não se vê, por isso é que ela continua epekeina tes ousias , para além do fenômeno ou do ente” (1994a, p. 138). E precisa a questão mais ainda: “O espectro é também, entre outras coisas, o que se imagina, o que se acredita ver e que é projetado: sobre uma tela imaginária, aí onde não há nada para ver” (1994a, p. 138). Pois uma tela “tem no fundo, no fundo que ela é, uma estrutura de aparecimentodesaparecimento” (1994a, p. 138).

A partir dessas considerações é possível perguntar agora: Quais espectros nos frequentam ou que historicamente nos frequentaram? Derrida irá apontar pelo menos três grupos de espectros que podem ser desdobrados em outros tantos e que refratam a partir da obra de Marx e dos desdobramentos daí advindos: Num primeiro grupo estariam os espectros do comunismo e dos marxismos. Daí a citação por Derrida da primeira frase do Manifesto : “Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo” – ronda aterroriza, obsidia, assusta, assombra; do ponto de vista histórico tal afirmação possui desdobramentos conhecidos e que estão refletidos nos vários tipos de marxismo. Porém não é nosso objetivo aprofundar essa questão aqui. Entretanto, os propósitos de Derrida são claros ao criticar, considerando os desvios estratégicos da desconstrução, as posições mais ortodoxas: Quando, em 1847-1848, Marx nomeia o espectro do comunismo, inscreve-o em uma perspectiva histórica que é exatamente inversa àquela em que eu tinha inicialmente pensado ao propor um título como “os espectros de Marx”. Aí onde tive a tentação de nomear deste modo a persistência de um presente passado, o retorno de um morto, uma reaparição fantasmática de que o trabalho do luto mundial não consegue livrar-se, voltando-lhe as costas e caçando (exclui, bane, ao mesmo tempo que persegue), Marx anuncia e invoca a presença por vir. Parece dizer e prescrever: o que, por enquanto, só tem aparência de um espectro, na representação ideológica da velha Europa, deveria tornar-se, no futuro, uma realidade presente, ou seja, viva (DERRIDA, 1994a, p. 139). O Manifesto irá exortar a transformar em realidade viva o que naquele momento é espectral: a dimensão mundial da “associação de trabalhadores” (1994a, p. 139) e a fundação de um partido comunista universal, a Internacional comunista que será “a encarnação final, a presença real do espectro, portanto, o fim do espectral” (1994a, p. 140). Novamente a questão aqui é bastante complexa. Teríamos que investigar toda a proposta das Internacionais Comunistas e aquilo que Derrida chamou de uma Nova Internacional, o que não temos como aprofundar no momento. A respeito da Nova Internacional proposta por Derrida, no capítulo 3 , Desgastes (quadro de um mundo sem idade), ele assim a justifica: (...) refere-se a uma transformação profunda, projetada no longo prazo, do direito internacional, de seus conceitos e de seu campo de intervenção. Assim como o conceito dos direitos humanos foi-se determinando lentamente ao longo dos séculos..., do mesmo modo o direito internacional deveria estender e diversificar seu campo até incluir nele... o campo econômico e social mundial, para além da soberania dos Estados e dos Estados-fantasmas (...) (DERRIDA, 1994a, p. 116).

Considerando, do ponto de vista da desconstrução, a Nova Internacional como pertencendo ao escopo de uma impossibilidade e de um por vir, onde não há mais lugar para as hierarquias conceituais binárias, apanágio do pensamento ocidental tradicional, acompanhemos Derrida em sua explanação: É um vínculo de afinidade, de sofrimento e de esperança, um vínculo ainda discreto, quase secreto... É um vínculo intempestivo e sem estatuto, sem título, sem nome, apenas público, mesmo se não é clandestino, sem contrato, out of joint , sem coordenação, sem partido, sem pátria, sem comunidade internacional..., sem cocidadania, sem pertencimento comum a uma classe. O que se designa aqui, sob o nome da nova Internacional, é o que faz voltar à amizade de uma aliança sem instituição entre estes que, mesmo se não acreditam mais, ou nunca acreditaram, na internacional socialista-marxista, na ditadura do proletariado, no papel messianoescatológico da união universal dos proletários de todos os países, continuam a inspirar-se em um, pelo menos, dos espíritos de Marx ou do marxismo (...), para aliar-se, de um modo novo, concreto, real... (DERRIDA, 1994a, p. 117-118). São, portanto, muitas as observações que teríamos a empreender para dar conta deste aspecto fantasmal levantado em Espectros, a respeito do comunismo e dos marxismos. Num segundo grupo estão os espectros de Marx, tratados a partir de uma leitura minuciosa e profunda por Derrida, não apenas do Manifesto , mas da Contribuição à Crítica da Economia Política , de O Capital , pelo menos em seu primeiro volume, do 18 Brumário e da Ideologia Alemã . Mais especificamente, o recurso ao espectro do comunismo no Manifesto, a ressurreição dos mortos e a história da repetição no 18 Brumário de Luis Bonaparte, a fantasmagoria representada pelo fetichismo da mercadoria em O Capital e, principalmente, a discussão em A Ideologia Alemã, de Marx com Max Stirner sobre a fantasmagoria das produções humanas, da essência humana, do único e daquilo que lhe é próprio. É neste cenário de “fantasmalidade” que aparece a discussão dos espectros em Marx e neste com relação a Max Stirner e que serão objeto da preocupação desconstrutora em Derrida. Derrida irá discutir no capítulo sobre a “escamoteação fenomenológica” ou “Aparecimento do Inaparente” esta dimensão da discussão Marx/Stirner, considerando as colocações de Marx em A Ideologia Alemã (2007) a respeito da obra O Único e sua Propriedade (2009), de São Max. Trata-se de investigar esta questão sob o ponto de vista da desconstrução, considerando a crítica do fantasmático em ambos os autores, já que se trata de uma discussão sobre espectros.

O que vai interessar a Derrida nesta polêmica Marx e Max Stirner é mostrar que há uma desconstrução das certezas da ontologia clássica, ontologia da qual o discurso marxiano e o discurso stirneriano ainda não se libertaram e o consequente deslocamento para o que ele convencionou chamar de hontologia . Este deslocamento, que parte da crítica desconstrutora ao viés ontológico, será enfatizado por Derrida. Ele irá buscar, então, o recurso fenomenológico para justificar tal mudança de trajetória. A hontologia, deslocando sua fala para a espectralidade ou fantasmalidade concebe que há uma materialidade da ideia quando esta, alternando o aparecer e o desaparecer, surge como espectro, espírito ou fantasma. Por outro lado, considerando ainda a hontologia, pode-se dizer que há uma idealidade da matéria, pois esta não se apresenta como um dado fixado como presencialidade de uma vez por todas. Derrida aponta, na discussão Marx-São Max, que precisamente esta separação do material e do espiritual seria um limite, pois não há nada puramente material ou puramente espiritual. Tratando-se de espectros e espíritos, o que há, para a desconstrução, é o binômio visível/invisível; sensível/insensível, e que ao mesmo tempo que é testemunho da experiência dos fantasmas é também desmaterializado, como a matéria que tem o espírito ou o espírito que tem a matéria (Macherey in SPRINKER, 2008, p. 27). Marx irá tratar da questão stirneriana em “São Max”, terceiro capítulo de A Ideologia Alemã, onde a personagem é Stirner e sua obra acima referida. Nesta parte, Marx vai praticamente discutir todo O Único e sua Propriedade, apontando a fantasmalidade aí contida e assumindo um papel de caçador, conforme Derrida, de um caçador de fantasmas. ⁶ E a sagacidade de Derrida irá mostrar com isto o jogo das diferenças tão caro à desconstrução (a différance ), presente no texto que pode ser desconstruído (Marx que desconstrói Stirner, Derrida que desconstrói Marx). Primeiro, trata-se da passagem de das Gespenst (espectro) para der Geist (espírito); depois a utilização pelo Stirner, logo ironizada por Marx, da “transubstanciação entre Gas e Geist ”: “(...) Stirner descobre que no fim do mundo antigo o espírito transbordou como uma espuma irresistível, porque os gases (espíritos) (Gases/ Geister ) desenvolviam-se em seu seio” (Marx apud DERRIDA, 1994a, p. 163). Derrida observa que Hegel já havia mostrado esta afinidade entre gases e espírito, como o trabalho da morte, a fermentação do cadáver em decomposição, marcando a passagem do mundo de uma filosofia da natureza antiga para uma filosofia do espírito e que ele Derrida já havia explorado este tema em Glas (DERRIDA, 1974, p. 70, 106, 263). E segundo Marx, Stirner vê fantasmas por toda a parte; vê espíritos ( sieht Geister ) por toda a parte. A expressão idiomática alemã “es spukt” de difícil tradução ⁷ estará pre sente quando Marx cita Stirner, que exclama: “Sim, o mundo inteiro está povoado de fantasmas” ( Ja, es spukt in der ganzen Welt ) (DERRIDA (1994a, p. 182). Observa Derrida que:

O tratamento do fantasmático, em A Ideologia Alemã , anuncia ou confirma o privilégio absoluto que Marx concede sempre à religião, à ideologia como religião, mística ou teologia, em sua análise da ideologia em geral. Se o fantasma dá sua forma, isto é, seu corpo, ao ideologema, trata-se do próprio do religioso, segundo Marx, se é possível dizer, que se veio apagando a semântica ou o léxico do espectro, como o fazem frequentemente as traduções, em valores que se julgam tanto ou quanto equivalente (fantasmagoria, alucinação, fantástico, imaginário) (DERRIDA, 1994a, p. 198). Mas será em O Capital, segundo Derrida , que aparecerá de modo contundente o caráter espectral, com a mística do fetiche, o “devir-fetiche da mercadoria” (1994a, p. 199), um caráter irredutivelmente específico do espectro e que não devemos olhar como simplesmente uma figura de retórica, dirá Derrida (1994a, p. 199). Onde Marx se pergunta: “como descrever em seu surgimento o caráter místico da mercadoria, a mistificação da coisa mesma – e a forma-dinheiro de que a forma simples da mercadoria é ‘o germe’” (DERRIDA, 1994a, p. 199). Derrida irá insistir que no Capital a evocação dos fantasmas, da realidade fantasmática é uma consideração real de Marx: A sociedade capitalista, o capitalismo, produz fantasmas e espectros dos quais a sociedade não pode se desligar. São fantasmas reais. Para os homens, para o trabalhador, o devir-social passa por esta espectralização (DERRIDA, 1994 a, p. 209). Pertence ao terceiro grupo de frequentação anunciado por Derrida, o espectro neoliberal e a produção de fantasmas em nível econômico, político, social e midiático mundial. Vale ressaltar a crítica quase feroz empreendida por Derrida a Francis Fukuyama ⁸ e sua “retórica neoevangélica” (DERRIDA, 1994a, p. 86), logo no segundo capítulo de Espectros, “ Conjurar – o Marxismo” . Aqui ressaltamos a evocação do número dez, lembrando os dez mandamentos, tal como no que Marx apelidou de O Antigo Testamento em “São Max” da Ideologia Alemã . O número Dez. Dez evocado três vezes. Por que o Dez? Mas cada um dos dez pode ser desdobrado em outros tantos. Primeiro, o Dez aparece em O Único e sua propriedade , de Stirner, como dez teses que se tornam dez fantasmas ( Gespenst ) que caracterizam toda a história da humanidade e a filosofia. Em “São Max”, da Ideologia Alemã , Marx critica as dez aparições na obra stirneriana, num exercício de fazer inveja a muito pensamento analítico. Reduz, então, os dez a uma só e única coisa: o mesmo, o igual, o único. Então, dez é igual a um. São, pois, dez teses marcadas por Marx na “pura história dos espíritos” e dez aparições marcadas por ele na “impura história dos espíritos”. “Il table sur dix revenants”, ele faz conta de dez aparições, diz Derrida. Marx zomba das dez aparições (DERRIDA, 1994a, p. 190) – “Uma tábua da lei em dez tempos, o espectro de um decálogo e um decálogo dos espectros”, dirá Derrida (1994a, p. 190). E em Espectros de Marx , Derrida, além de discutir essas dez aparições, que no fundo são o apanágio de toda a filosofia ocidental, hierarquizada e binária, de toda a política do liberalismo burguês, irá apresentar as dez

aparições com as quais nos deparamos, estas calamidades da “nova ordem mundial” que nos assombram e nos aterrorizam, que nos frequentam como espectros indesejados. Elas são reais, estão em nossa consciência, em nosso quotidiano, em nossas projeções desejantes. Derrida pretende enunciá-las em Espectros no que ele chamou de “um telegrama de dez palavras” e foi produzido pela ordem liberal mundial predominante: desemprego; exclusão maciça dos cidadãos sem teto (dos homeless ); a guerra econômica entre os países da comunidade europeia, entre Europa e Europa do leste, entre Europa e Estados Unidos; as contradições do mercado liberal mundial; o agravamento da dívida externa; a indústria e o comércio de armamentos; a disseminação do armamento atômico; a multiplicação das guerras interétnicas; os Estados-Fantasmas que são a máfia e o consórcio da droga; os limites do presente estado do direito internacional e de suas instituições (DERRIDA, 1994a, p. 112-115). E não podemos fazer passar despercebida a preocupação de Derrida com fazer justiça a Marx. Isto vem no bojo de uma justificativa contra os liberalismos ou neo liberalismos. E Derrida é taxativo nisto. Certamente Marx estaria muito pouco preocupado com isso (1994a, p. 46-47). Mesmo porque só os liberais e os neoliberais poderiam não fazer justiça a Marx. Para um marxista, também, essa questão não se coloca. Para um marxiano, muito menos. Terminamos com um desafio: A frequentação dos espectros no corpo teórico da filosofia. Quem se habilita? REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA FUNDAMENTAL DERRIDA , Jacques. Spectres de Marx – L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale . Paris: Galilée, 1993. Trad. port. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994a. _. La Dissémination. Paris: Seuil, 1972(a). _. Marges de la Philosophie. Paris: Minuit, 1972(b). Trad. Joaquim Costa e Antonio Magalhães. Margens da Filosofia. Porto: Ed. Rés [S.D.]. _. Positions . Paris: Minuit, 1972(c). _. Glas. Paris: Galilée, 1974. Trad. ingl. John P. Leavy Jr. e Richard Rand. Glas. Lincoln: Univ. of Nebraska Press, 1986(a). _. De l’Esprit: Heidegger et la Question. Paris: Galilée, 1987 . Trad. port. Constança Marcondes César. Do Espírito. Campinas: Papirus, 1990. _. Points de Suspensions. Entretiens. Paris: Galilée, 1992. Points... Interviews 1974-1994 . Ed. Elisabeth Weber, Trad. ingl. Peggy Kamuf et al. Standford: Standford. Univ. Press, 1995. _. Politiques de L’Amitié . Paris: Galilée, 1994(b). Trad. port. Fernanda Bernardo. Políticas da Amizade. Seguido de O Ouvido de Heidegger . Porto: Campo das Letras, 2003.

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5 Hamlet: “And what a poore a man as Hamlet is,/ Doe t’express his loue and friending to you,/ God willing shall not lacke: Let us goe in together,/ And still your fingers on your lippes I pray,/ The time is out of ioynt: Oh cursed spight,/ That ever I was borne to set it right. / Nay, come let’s goe together (“E tudo que puder fazer um homem pobre como Hamlet/ Para mostrar-vos seu amor e sua fidelidade/ Sendo vontade de Deus será feito. Entremos juntos,/ E conservai, sempre, o dedo nos lábios, é o que vos peço/ O mundo está fora dos eixos. Oh! Maldita sorte.../ Porque nasci para colocá-lo em ordem!/ Mas, vinde, entremos juntos” – trad. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes). 6 “São Max” de A Ideologia Alemã ironiza a obra de Stirner, dividindo-a em Antigo Testamento (correspondendo a “O Homem” de O Único) e Novo Testamento (o “EU” de O Único ). Acompanhando a divisão da obra de Stirner, na parte sobre os Modernos, por exemplo, Marx irá apelidar o subtítulo “O Espírito” de O Único como “História pura dos espíritos”; “Os possessos”, de “História impura dos espíritos”; e assim vai denunciando a espectrologia da obra stirneriana. Por economia abreviaremos, por vezes, o título da obra stirneriana. Iremos nos referir a O Único. 7 Seria preciso contornar a expressão e dizer, segundo Derrida, “isso obsidia ( ça hante ), isso retoranta ( ça revenante ), isso espectra ( ça spectre )” (DERRIDA, 1994(a), p. 182) para apenas aproximar-se do significado desta expressão que mostra os fantasmas, o cheiro de morto-vivo. 8 Referência à defesa por Fukuyama do “fim da história” em The End of History and th Last Man . New York:The Free Press, 1992.